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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE IEDA MARIA CARICARI CIPRIANI AS NARRATIVAS ENQUADRADAS N’AS AFINIDADES ELETIVAS DE GOETHE São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE  PRESBITERIANA  MACKENZIE    

 

 

 

 

IEDA  MARIA  CARICARI  CIPRIANI  

 

 

 

 

 

AS  NARRATIVAS  ENQUADRADAS  N’AS  AFINIDADES  ELETIVAS  DE  GOETHE  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

São  Paulo  

2012  

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IEDA  MARIA  CARICARI  CIPRIANI  

 

 

 

 

 

AS  NARRATIVAS  ENQUADRADAS  N’AS  AFINIDADES  ELETIVAS  DE  GOETHE  

 

 

 

 

 

 

 

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Doutorado em Letras, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção ao título de Doutor em Letras.

 

Orientadora: Profa. Dra. Glória Carneiro do Amaral

 

 

 

 

 

 

São  Paulo  

2012  

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IEDA  MARIA  CARICARI  CIPRIANI  

 

AS  NARRATIVAS  ENQUADRADAS  N’AS  AFINIDADES  ELETIVAS  DE  GOETHE  

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação, Doutorado em Letras, na Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito à obtenção ao título de Doutor em Letras.

 

 

Banca  examinadora  

 

_____________________________________________________________________________  

Profa. Dra. Glória Carneiro do Amaral

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

_________________________________________________________

Profa.  Dra.  Marlise  Vaz  Bridi  

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

______________________________________________________________________________  

Profa.  Dra.  Karin  Volobuef  

Universidade  Estadual  Paulista  -­‐  UNESP  

________________________________________________________________________________  

Profa.  Dra.  Eloá  Heise  

Universidade  de  São  Paulo  -­‐  USP  

________________________________________________________________________________  

Profa.  Dra.  Lilian  Lopondo  

Universidade Presbiteriana Mackenzie - UPM

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Ao  meu  pai  pelo  exemplo.  

 

Ao  Felipe  pelo  amor.  

 

Ao   amado   Bento   por   me   dar   a  chance   de   apreender   a   vida   desde   o  seu  primeiro  segundo.  

 

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Agradecimentos  

A Deus pela saúde e pela paz.

À minha mãe, que não está apenas em minha memória, mas em toda a minha existência. Por embelezar minha vida, por me enriquecer com o seu modo de ver o mundo. Essencial.

Ao meu pai, por me ensinar a trabalhar muito, acordar cedo e ir até o fim. Exemplo.

Ao amado Bento, por seu abraço que me tranquiliza, por seu olhar doce, esperto e amável, por aliviar as dores físicas e o cansaço, por tornar o doutorado menos solitário. Amor que revigora. Liebe belebt.

Ao amado Felipe pela presença, pela convivência, pela realização, pelo fôlego, pela ajuda prática em tudo. Amor que revigora. Liebe belebt.

À minha orientadora professora Glória pela acolhida, pela generosidade e pela disposição em se relacionar com algo distante. Por tudo que me ensinou.

À professora Karin pelos primeiros passos na Literatura Alemã. Gratidão.

À professora Marlise por tornar a literatura ainda mais significativa e pela generosidade ao dividir tanto conhecimento em nossas aulas.

À professora Lilian pelas colaborações já na qualificação.

À professora Eloá pelas colaborações já na qualificação e pela honra de ter a sua presença e a sua leitura tanto da dissertação de mestrado como da tese de doutorado. Profunda admiração.

À amiga Jeane, pela companhia durante as disciplinas do doutorado, pela nova amizade, por me ensinar sobre a cor azul e por dividir seu conhecimento literário.

À amiga Dani, amiga desde a graduação e por mais muitos anos, pela imensa generosidade.

À amiga Thais, por me apresentar Bachelard e pela longa amizade.

Às queridas amigas: Kika, Bianca, Cátia, Priscila, Sarah, Vanderli, Viviane, pelas narrativas inseridas em minha vida.

À Universidade Presbiteriana Mackenzie pelo benefício educação e por confiar em mim como profissional.

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“SALVE”1  

                                                                                                               1 Como presságio de amável acolhida. (ECKERMANN, 2004, p. 19)

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‘Minh’alma está repleta de Goethe como uma gota de orvalho reflete os raios do sol que se vai erguendo. Sinto uma alegria profunda em vê-lo tão belo, tão grande, em senti-lo tão superior a mim e pairando numa altura a que nunca me será dado alcançar!’ Wieland em carta a um amigo. (ECKERMANN).2

 

   

                                                                                                               2 (2004, p. 198)

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Resumo  

As afinidades eletivas (Die Wahlverwandtschaften, 1809) de Johann Wolfgang

von Goethe é um romance todo imbricado, elaborado por símbolos reiterados

ao longo da narrativa, que constroem uma estrutura complexa e organizada. O

elemento essencial para a organização deste romance são as narrativas

enquadradas: o diário de Ottilie, os quadros vivos e a novela Die Wunderlichen

Nachbarskinder, que constituem a narrativa maior. O objetivo desta tese de

doutorado é analisar como essas narrativas enquadradas são enxertadas no

romance, qual a relação da narrativa maior com as narrativas menores e como

elas funcionam no romance. O estudo é feito como uma Close Reading, uma

leitura atenta que encontra inter-relações significativas da narrativa maior nas

narrativas enquadradas e vice versa. As teorias de Barthes e de Bachelard

proporcionam um novo olhar para a obra Goethiana e foram utilizadas como

alicerce teórico desta tese.

Palavras-chave: Johann Wolfgang von Goethe. As afinidades eletivas. Die

Wahlverwandtschaften. Narrativa enquadrada. Romance.

   

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Abstract  

Elective Affinities (Die Wahlverwandtschaften, 1809) by Johann Wolfgang von

Goethe is an imbricated novel, elaborated by symbols repeated throughout the

narrative, which build a complex and organized structure. The essential element

for the organization of this novel is inserted narratives: Ottilie's diary, the

tableaus and the novel “Die Wunderlichen Nachbarskinder”, which constitute

the main narrative. The objective of this doctoral thesis is to analyze how these

inserted narratives are grafted in the novel, what is the relationship between the

main narrative and inserted narratives and how they work in the novel. The

study is done as a Close Reading, that finds significant interrelationships of the

main narrative in the inserted narratives and vice versa. The theories of Barthes

and Bachelard provide a fresh look at the Goethean work and were used as

theoretical foundation of this thesis.

Keywords: Johann Wolfgang von Goethe. Elective Affinities. Die Wahlverwandtschaften. Inserted narratives. Novel.      

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Sumário  

 

 

CONSIDERAÇÕES  INICIAIS  .............................................................................................  11  1.  O  AUTOR  E  A  OBRA  ......................................................................................................  19  

1.1  Goethe  ........................................................................................................................................  20  1.2  As  afinidades  eletivas  ..........................................................................................................  34  1.2.1  Um  romance  ........................................................................................................................  34  1.2.2  Die  Wahlverwandtschaften  ..........................................................................................  40  

2.  AS  NARRATIVAS  ENQUADRADAS  N’AS  AFINIDADES  ELETIVAS  ......................  92  2.1  Sobre  o  Diário  de  Ottilie  ..................................................................................................  100  2.1.1  Ottilie  ...................................................................................................................................  101  2.1.2  O  Diário  ...............................................................................................................................  117  2.2  Os  quadros  vivos  .................................................................................................................  146  2.2.1  O  Belisário  de  Van  Dyck  ...............................................................................................  153  2.2.2  Três  personagens  conversando  em  um  interior,  antes  conhecido  como  Admoestação  paterna  de  Gerard  Ter  Borch  ..................................................................  155  2.2.3  Assuero  e  Ester  de  Nicolas  Poussin  .........................................................................  157  2.3  A  Novela  no  Romance  ......................................................................................................  162  

CONSIDERAÇÕES  FINAIS  ..............................................................................................  187  REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS  ...............................................................................  191  APÊNDICE  .........................................................................................................................  205  ESTUDOS  GOETHIANOS  NO  BRASIL  ..............................................................................................  205  

ANEXOS  .............................................................................................................................  209  ANEXO  A:  O  DIÁRIO  DE  OTTILIE  (TRANSCRITO)  .....................................................................  210  ANEXO  B:  OS  QUADROS  VIVOS  ....................................................................................................  223  

     

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Considerações iniciais  

Em 1997 fiz a primeira leitura d’As afinidades eletivas (Die

Wahlverwandtschaften, 1809) de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832).

Lembro-me perfeitamente da reação produzida naquele momento e foi a partir

da saudade que senti da narrativa que desenvolvi a dissertação de mestrado. No

campo do amor deve ser colocado o que é durador, aquilo que se mantém por

décadas em uma vida. Essa é a minha relação com a literatura e, nesse ínterim,

com As afinidades eletivas. Ao longo desses 14 anos nenhuma leitura me

cativou mais do que As afinidades eletivas.

Nesse romance sempre me encantou seu caráter constantemente atual,

próprio das grandes obras. Por exemplo, a ideia de selecionar “elementos

humanos” e colocá-los em uma mesma casa sob o intuito de investigar suas

reações, observar suas ligações, questionar suas renúncias e invadir sua

intimidade.

Na primeira leitura desse romance, atentei para dois pontos principais.

O primeiro refere-se à relação construída na narrativa entre Eduard, Charlotte,

Capitão e Ottilie, e a forma como o leitor é convocado a observar as ligações

construídas e desconstruídas como em um experimento químico. Isso é

estabelecido pelo narrador já no primeiro parágrafo do romance. Instaura-se

assim a relação do leitor com a narrativa laboratorial, como se recebesse um

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convite: observemos juntos! Tal interesse em relação à obra foi o ponto de

partida para o estudo realizado no mestrado.

O segundo ponto está nos momentos de reflexão inseridos tanto no

diário de Ottilie, na novela e nos quadros vivos, como também na narrativa

maior: ora por parte das personagens, ora pelo narrador. Assim se originaria o

questionamento sobre as narrativas enquadradas estudadas nesta tese de

doutorado. Isso se inicia com a percepção de um elemento de teor reflexivo

inserido no romance e se desenrola para a análise das narrativas nele

enxertadas. Justamente por ser um romance, segundo Schlegel, acolhe essas

narrativas de forma natural.

A meta central na dissertação de mestrado consistiu em analisar as

relações humanas nesse romance de Goethe. O tópico principal dessa proposta

foi a ligação química entre os elementos humanos, que é um fator interpessoal;

e em decorrência dessas ligações observar os movimentos desenvolvidos pelas

personagens do romance, respondendo às reações de atração e repulsão umas

em relação às outras. No terceiro capítulo da dissertação foi iniciado um estudo

sobre o diário de Ottilie como narrativa menor dentro da narrativa maior.

Esse estudo inicial sobre o diário de Ottilie deixou aberta uma

possibilidade de continuá-lo no doutorado. Dessa forma, após a experiência

positiva de lecionar na Universidade Estadual de Ponta Grossa, no curso de

Letras, nas disciplinas que envolviam literatura e teoria literária, decidi avançar

mais um passo na carreira acadêmica ampliando o estudo sobre as narrativas

enquadradas no doutorado.

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Neste estudo olho para As afinidades eletivas pelo viés das narrativas

enquadradas, que me chamaram a atenção já na primeira vez que ouvi sobre

isso ainda na graduação. Tenho em minha memória o desenho explicativo sobre

esse tema na lousa, feito pela profa. Karin Volobuef. Para essa aula, a leitura

foi A caravana e A história de Califa-Cegonha de Wilhelm Hauff. Essa forma

narrativa me interessou e essa aula reverberou ao trazer sentido às relações que

construiria futuramente.

As narrativas enquadradas n’As afinidades eletivas, a princípio, podem

parecer simples interferência sem consequências nítidas. Contudo, esse efeito

de eco, segundo Laurent Jenny3 (1979), contribui para a legibilidade da obra

literária. Depende de como o leitor se relaciona com a obra e de quanto está

apto a apreender do caráter intertextual ali inserido.

Apesar de poder denominar tais narrativas menores como “encaixe”,

segundo Todorov, ou caracterizá-las como “elemento intertextual”, segundo

Kristeva, neste trabalho tais narrativas serão denominadas como

enquadramentos. Essa nomenclatura enfatiza a noção de quadro relacionado a

origem grega da palavra idílio. Em Questões de literatura e estética, Bakhtin

trata a relevância da narrativa enquadrada, e confere tanto o termo

“intercalada”, como “enquadrada”:

Um jogo humorístico com as linguagens, uma narração ‘que não parte do autor’ do narrador, do suposto autor, do personagem, os discursos e as áreas dos personagens, enfim os gêneros intercalados ou enquadrados são as formas

                                                                                                               3 Em “A estratégia da forma”, primeiro capítulo de Poétique, Revue de Théorie et d’Analyse littéraires, n. 27.

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fundamentais para introduzir e organizar o modo da utilização indireta, restritiva, distanciada das linguagens. (BAKHTIN, 1988, p. 126-127, grifo nosso).

Observamos graus diferentes para tais enquadramentos. O mais nítido é

o diário de Ottilie, formado por citações diretas e entre aspas. Isso determina

que o diário não pertence diretamente à narrativa maior. Para a novela temos

um novo narrador que não é o do romance. Existe para essa narrativa

enquadrada um título, que a distingue da sequência existente na narrativa

maior. Podemos dizer que a novela simula um fazer parte e ao mesmo tempo

não fazer parte do romance. Na inserção dos quadros vivos observamos uma

sutileza maior para a sua denominação como narrativa enquadrada. Contudo, a

representação da obra pictórica introduz no romance um novo gênero artístico.

Segundo Lucien Dallenbach (1979), no capítulo “Intertexto e

Autotexto”4, o texto pode integrar uma ‘mise en abyme’, outra nomenclatura

possível às narrativas enquadradas: apresentando-a uma única vez e em bloco;

dividindo-a, de modo que alterne com a narrativa maior; submetendo-a a

diversas ocorrências. N’As afinidades eletivas temos alguns desses padrões: o

diário de Ottilie é dividido em 6 conjuntos e alterna-se com a narrativa maior; a

novela é apresentada em um único bloco; os quadros vivos estão mais próximos

da narrativa maior apesar de serem compostos por matéria diferente, a obra

pictórica. As outras narrativas enquadradas – relacionadas no próximo

parágrafo abaixo –, que fazem parte desse romance, mas não serão analisadas

diretamente nesta tese, legitimam as narrativas aqui mencionadas, são eco e

                                                                                                               4 Em Poétique: Revue de Théorie et d’Analyse littéraires – n. 27.

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15    

reflexo, por isso aparecem em diversos momentos ao longo d’As afinidades

eletivas.

Além das narrativas acima, que constituem o objeto de análise desta

tese, encontramos outros enquadramentos dentro desse romance. Como

exemplo: as cartas vindas do internato, que apresentam trechos transcritos,

assim como a carta de Eduard a Charlotte; as cartas apenas mencionadas do

Capitão a Eduard ou de Ottilie aos amigos; outra narrativa externa à narrativa

maior é o discurso do pedreiro, no lançamento da pedra fundamental, proferido

em versos, mas nós o lemos nas palavras do narrador em prosa. Temos, ainda, o

quadro vivo com tema natalino, que eleva Ottilie à Virgem Maria. Encontramos

enxertados no romance ainda os quadros admirados pelas personagens ou pelo

narrador, como exemplo: Ottilie em uma cena de seu cotidiano como a

Penserosa; Eduard ao descrever a paisagem vista pela janela da cabana; o

arquiteto, em frente ao caixão de Ottilie, sente-se como se estivesse diante de

Belisário; as declamações e recitais de Luciane; ou ainda, as leituras de Eduard.

Temos então, nesse romance, uma espessa rede de símbolos que se

relacionam em uma tentativa de dar ordem à construção narrativa. Segundo

Schlegel no fragmento 116:

O gênero poético romântico ainda está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada. Não pode ser esgotado por nenhuma teoria, e apenas uma crítica divinatória poderia ousar pretender caracterizar-lhe o ideal. Só ele é infinito, assim como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei que o arbítrio do poeta não suporta nenhuma lei sobre si. O gênero poético romântico é o único que é mais do que gênero e é, por assim dizer, a própria

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poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou deve ser romântica. (SCHLEGEL, 1997, p. 65).

O romance produz assim uma série de interligações, como obras dentro

da obra e leituras dentro da leitura. Em contraponto podemos ressaltar ainda,

por exemplo, a leitura vetada: Eduard não permite que Charlotte olhe para a

página em que ele está lendo. Apesar de tantos enquadramentos, encontramos

no romance o livrar-se das margens. Aquilo que enquadra dá forma, dá limite,

estabelece fronteira, mas pode também em sentido contrário livrar da rigidez da

forma, da obrigação de moldar-se ao sistema e da delimitação espacial.

O termo ‘romântico’ possuía então, à época de Schlegel, uma carga semântica que possibilitara um amplo espectro de conotações adequando-se à caracterização de uma literatura moderna que se opusesse essencialmente a contenção e orientação para a hegemonia dos modelos clássicos. ‘Romântico’ qualifica-se então como expressão do ‘essencialmente moderno’, do romanesco, do poético e do prosaico. Para Schlegel, o conceito deve conter em si todos os ‘subgêneros’ possíveis, o drama e o épico, a poesia e a filosofia, o fantástico, o sentimental; a crítica e a filosofia devem unir-se à poesia, constituindo-se assim a ‘poesia universal’ em clara oposição aos ideais puristas de seus escritos anteriores. (MAAS, 1999, p. 119).

Em conversa com Eckermann, seu secretário para assuntos literários,

Goethe relata sobre sua vida. Em 27 de janeiro de 1824:

Fui constantemente considerado como um homem extremamente favorecido pela sorte; aliás não me quero queixar e maldizer do curso da minha vida. Esta porém não foi no fundo senão penas e trabalho; e posso bem dizer que nos meus setenta e cinco anos não tive propriamente quatro semanas de perfeito lazer. (ECKERMANN, 2004, p. 57).

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17    

Goethe realmente produziu muito, resultado da exploração de seu

variado interesse. Existem muitos estudos sobre sua literatura ao redor do

mundo e claro que em maior número na Alemanha. No Brasil, encontramos

relativamente poucos estudos goethianos. Esta tese é antes resultado de um

desejo pessoal de estudar mais sobre o autor e a obra de análise, e num sentido

mais amplo realizar mais um trabalho que constitua, na academia brasileira, o

corpo de estudos goethianos5.

As afinidades eletivas já foi fonte de muitos estudos na Alemanha e em

todo o mundo. No Brasil, hoje, temos alguns artigos publicados em revistas

científicas. No que se refere a teses de mestrado e de doutorado sobre As

afinidades eletivas temos publicadas nas universidades brasileiras, ao menos do

que está acessível por meio da Plataforma Lattes, a tese de doutorado de

Mônica Krausz Bornebusch (“‘Mistério evidente’: a estrutura arquitetônica no

romance Die Wahlverwandtschaften”) e minha dissertação de mestrado (“Entre

renúncia e desejo: uma análise das relações humanas em Die

Wahlverwandtschaften de Goethe”) Os três trabalhos, em stricto sensu,

(contando com esta tese) sobre As afinidades eletivas, evidentemente, não

esgotam as muitas possibilidades de olhar para esse romance. Muito, ainda, se

pode trabalhar sobre a obra de Goethe nas universidades brasileiras e esta tese

pretende colaborar com os estudos futuros.

No primeiro capítulo apresentaremos o autor em relação à obra de

análise. Traçaremos um viés do que é relevante na longa e produtiva vida de

                                                                                                               5 No apêndice desta tese consta um levantamento realizado por mim dos estudos goethianos no Brasil.

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18    

Goethe em relação a esse romance, que faz parte da sua maturidade. No

segundo momento desse capítulo, analisaremos o romance com foco em seus

enquadramentos. O termo refletir ou reflexo é essencial dentro d’As afinidades

eletivas e observaremos que as narrativas menores refletem a narrativa maior e

isso é recíproco. O reflexo também está na água, que perpassa todo o romance.

Tal relação, reflexo e água, compõe essencialmente o mito de Narciso. Ele é

mencionado no texto do romance e faz sentido na construção da narrativas

enquadradas. Isso imprime ao romance, por um lado, auto-interpretação e, por

outro lado, auto-reflexão, o que garante à obra forte coesão interna e à

legibilidade mencionada no início desta introdução. Por isso, antes de passar à

análise das narrativas enquadradas faremos um estudo do mito de narciso em

relação ao romance.

No segundo capítulo, trataremos d’As afinidades eletivas em relação às

narrativas enquadradas: o diário, os quadros vivos e a novela. Todas elas estão

na segunda parte do romance, mas são formadas por elementos recorrentes na

primeira parte e produzem elementos significativos que se desenvolverão após

as suas inserções. Observaremos como as narrativas enquadradas são inseridas

na narrativa maior e o reflexo que uma reproduz na outra.

   

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19    

1. O autor e a obra

Goethe escreveu uma biblioteca inteira, e uma biblioteca ainda maior tem sido escrita a respeito dele. (WELLEK)6

Neste capítulo discorreremos, em um primeiro momento sobre Johann

Wolfgang von Goethe como escritor d’As afinidades eletivas, publicado em

1809. No segundo momento, analisaremos esse romance tendo como foco as

narrativas enquadradas. Encerraremos essa parte com uma leitura do mito de

Narciso em relação a nossa obra de análise.

O primeiro capítulo desta tese é orientado, principalmente, pelas leituras

dos registros de Johann Peter Eckermann (1792-1854), em Conversações com

Goethe (1835) e das obras autobiográficas do próprio autor, tais como Viagem

à Itália (1829), Memórias: Poesia e Verdade (1831), como também da

coletânea Máximas e Reflexões (1907), publicada postumamente, isso para

tratar sobre Goethe; para relacionar a obra ao mito de Narciso recorremos a

Junito Brandão; e a análise d’As afinidades eletivas seguiu, especialmente,

Walter Benjamin, em seu ensaio sobre esse romance.

                                                                                                               6 (1967, p. 182)

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20    

1.1 Goethe

‘estar-imerso-em-si-mesmo’.

(BENJAMIN)7

René Wellek, em História da crítica moderna (1955), depara-se com a

longa vida de Johann Wolfgang von Goethe (28.08.1749-22.03.1832) e com a

dificuldade em sistematizar tantas áreas de trabalho, tantos interesses

desenvolvidos e uma produção literária tão vasta.

Para tratar completamente da sua obra seria necessário um volume inteiro. Para um estudo metodologicamente bem executado seria preciso proceder de modo cronológico, distinguindo, com cuidado, a época anterior à sua chegada em Weimar (1775), a época de Weimar antes da viagem à Itália (1786-88), a própria viagem à Itália, o período posterior a volta à Weimar, antes da amizade com Schiller (1794), a amizade com Schiller até a morte deste (1805) e os últimos anos, nos quais ainda se podem descobrir várias fases. (WELLEK, 1967, p. 182).

Goethe transforma sua existência, por meio da literatura, em interesse

universal. “É um grande segredo saber transformar tudo em néctar para o

espírito” (VALÉRY, 1999, p. 48) e é justamente isso que se observa nesse

escritor alemão.

                                                                                                               7 (2009, p. 52)

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Paul Valéry, em seu “discurso em honra a Goethe”, admira-se com

Goethe, ao observar sua possibilidade de viver:

[…] diversas vidas através de uma só. Assimila tudo e transforma em substância. Muda até o meio onde se implanta e prospera. Weimar deve-lhe um culto e presta-o. Lá ele encontra e ilustra uma terra excelente onde se adapta bem. O que poderia ser mais propício do que esse pequeno terreno de cultura para crescerem e florescerem tantos ramos, que são vistos em todo o universo? Cortesão, confidente, ministro, funcionário pontual e poeta; colecionador e naturalista – lá encontra também o prazer tão agitado de dirigir com zelo e paixão o teatro, enquanto vigia as mudas ou os viveiros de plantas raras que estuda, e alguns casulos de bicho-da-seda, talvez, de cuja eclosão ele se ocupa. Mas ai também ele pode observar a vontade, como se fosse através do vidro de um relógio, uma miniatura da vida política e diplomática, e curvando-se facilmente a todas as regras cerimoniais e à etiqueta, respira uma atmosfera de amável liberdade. Talvez seja o último homem a desfrutar a perfeição da Europa. (VALÉRY, 1999, p. 38).

Para os pesquisadores são ricos os seus diários, seus relatos, suas

anotações, seus esquemas para a elaboração literária ou para os estudos

científicos. É prazeroso para os pesquisadores ver através da janela de sua casa

em Weimar; olhar para as portas enquadradas na passagem de uma sala para

outra, com suas cores bem escolhidas; andar pelas ruas por onde ele passava;

admirar os jardins nos dias quentes ou respirar o ar gelado na Frauenplan

coberta de neve.

Contudo, Goethe deixa claro que n’As afinidades eletivas, por exemplo,

o que é literário se sobressai ao que aconteceu de fato. Em carta a Zelter,

Goethe conta ao amigo sobre sua experiência com a elaboração literária:

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‘Espero que o senhor encontre ali a minha velha maneira de trabalhar. Coloquei muitas coisas ali, escondi outras tantas. Que esse mistério evidente também possa proporcionar-lhe prazer’. Assim escreve Goethe a Zelter. No mesmo sentido ele insiste na tese de que haveria mais coisas na obra do que ‘alguém seria capaz de apreender em uma só leitura’. A destruição dos rascunhos, no entanto, fala mais alto do que tudo. Pois dificilmente poderia ser uma causalidade que nem se quer um fragmento desses rascunhos tenha sido preservado. Pelo contrário, é evidente que o autor destruiu de forma bem deliberada tudo aquilo que revelasse a técnica inteiramente construtiva da obra. (BENJAMIN, 2009, p. 43-44).

No entanto, não é o que o rodeia, ou seja, sua época, suas relações, seus

amores, seus experimentos, sua atuação política e administrativa e sua postura

social, que o torna tão interessante; o que realmente encanta é o Goethe que se

traduz na obra literária. E ainda assim queremos conhecer suas opiniões: sobre

o seu momento; sobre a ciência e seus experimentos; sobre a sua cidade e o

teatro; sobre seus amigos e seus jantares; sobre a Itália e a experiência de

sentir-se só em meio a multidão; sobre os gregos e a filosofia; sobre as

mulheres de olhos escuros e cabelos negros cacheados, sobre as revoluções e o

seu desinteresse por elas; sobre o governo e sua vida de administrador público;

sobre a religião e sua ligação com a Natureza.

Carpeaux refere-se à impossibilidade de analisarmos todos esses lados

do autor. Ao mesmo tempo, parece que, quando olhamos para um único

momento da obra goethiana, encontramos a dedicação de uma vida inteira.

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Quem quisesse explicá-los todos, deveria escrever uma enciclopédia do espírito humano. Nenhum comentário esgotou jamais a obra. É mesmo o programa dos tempos modernos: o humanista, já não condenado pela velha religião, dedica-se à dominação da Natureza e ao trabalho para o povo. O trabalho e o bem-estar social são as últimas palavras de Fausto e de Goethe. (CARPEAUX, 1964, p. 83).

A partir de sua produção literária variada (poemas, baladas, contos,

novelas, romances, tragédias, dramas, autobiografias, máximas, cartas) não se

pode negar que muito da riqueza desses escritos está presente na longa vida do

escritor. Seu interesse pela ciência, pela geologia, pela filosofia, pela

meteorologia, pela física, pela botânica, pela biologia, pela anatomia, pela

osteologia, pela zoologia, pelas artes plásticas fez com que sua obra fosse

influenciada por todas essas áreas. Contudo, na sua maturidade, Goethe percebe

a Era da Especialização que se anunciava e orienta seus jovens companheiros a

não explorarem tantos campos do saber. Isso pode ser confirmado por meio do

que relata Eckermann, em Conversações com Goethe no dia 20 de abril de

1825:

Assim, em todo este tempo que com ele privo, Goethe desviou-me sempre de qualquer tendência derivativa aconselhando-me que me concentrasse num único assunto. Se me via inclinado às ciências naturais, persuadia-me a deixá-las de lado e fixar-me, no momento; exclusivamente na poesia, se eu desejava ler um livro que ele sabia não me fazer progredir em meu ramo atual, dissuadia-me sempre, pois que eu não tiraria disso vantagem alguma. (ECKERMANN, 2004, p. 119).

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Na maturidade de Goethe, a quantidade de temas abordados,

pesquisados e estudados, ao longo dos seus 82 anos de vida, segundo ele

mesmo, não instigava o interesse daquele que quisesse ser grande em uma dada

área. Por isso, dizia “[...] quem for sensato evitará qualquer dispersão,

limitando-se a um ramo e tornando-se assim competente nesse mesmo ramo”.

(ECKERMANN, 2004, p. 60, grifo do autor).

Ele pesquisa e estuda muitos temas e escreve em tantas modalidades

literárias, como observa Eckermann, pois, naquele tempo, seu país ainda era

carente de todos esses conhecimentos, ou de grandes obras como Os anos de

aprendizado de Wilhelm Meister (Wilhelm Meisters Lehrjahre, 1795-96).

‘Tive a grande vantagem’, prosseguiu, ‘de nascer numa época em que estiveram na ordem do dia os mais importantes acontecimentos mundiais os quais continuaram a se desenrolar durante minha longa existência, de forma que fui testemunha viva da Guerra dos Sete Anos assim como da Independência da América; em seguida, da Revolução Francesa, e, finalmente, de toda a era napoleônica até a queda do herói, e dos subsequentes acontecimentos’. (ECKERMANN, 2004, p. 62).

A sua mudança de Frankfurt para Weimar possibilita novos

conhecimentos, principalmente, no que se refere às atividades políticas. Aos

trinta anos, Goethe é nomeado Conselheiro Privado (Geheimer Legationsrat)

do estado weimariano, cargo de confiança do Grão-duque Carl August com o

segundo maior salário do funcionalismo do Grão-ducado. Torna-se um ministro

encarregado da exploração de minas e florestas, do teatro e da vida cultural,

como relata Pietro Citati em Goethe (1996):

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Assim, em Weimar, talvez pela última vez na história da Europa a poesia tentou assumir o governo do estado: Goethe envergou o traje do conselheiro secreto e por muitos anos não procurou diferenciar a atividade política da vida moral e artística. Seguindo o mesmo espírito com que escrevia Ifigênia ou Limites da humanidade [Grenzen der Menschheit], tomou a si tarefas práticas de toda ordem: presidia longas sessões administrativas, redigia documentos burocráticos; ocupava-se de estradas, pontes, canais, das minas de Ilmenau e da Universidade de Iena; treinava os bombeiros, procurava reduzir as despesas da corte e do pequeno exercito. (CITATI, 1996, p. 21).

Ele se volta então aos valores estéticos da Antiguidade, busca a arte

conciliadora, baseada na harmonia, na beleza e na perfeição. Ponto essencial

desse processo é o tempo decorrido na Itália (1786-1788). Durante essa viagem,

Goethe faz observações, principalmente, botânicas, geológicas e

meteorológicas. Visita museus, igrejas, parques e hortos botânicos. Observa a

vida e o povo e desenha muito do que presencia e admira.

Mas o argumento principal já não é o Werther nem o Goetz nem a primeira versão do Fausto, as obras capitais do pré-romantismo. O argumento decisivo é o fato de que em Goethe a vida e a obra estão indissoluvelmente ligadas, de modo que a obra parece o próprio conteúdo da vida e todas as obras cristalizações de momentos da vida (o próprio Goethe chamou-se de ‘poeta de ocasiões’. Pois essa ligação Vida-Obra é um dos traços característicos do romantismo. A diferença só é, porém, de termos. Dir-se-ia: a maior obra de arte de Goethe é sua própria vida; mas essa vida é uma obra de arte clássica. É a história de um temperamento romântico que, disciplinando-se, se transforma em estátua de si próprio. Entre todos os Bildungsromane (romances de formação) da literatura alemã, o maior é a biografia de Goethe”. (CARPEAUX, 1964, p. 76-77).

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No Palazzo dei Normanni, em Palermo, em uma conversa com um

“homenzinho alegre”, o conde de Statella, Goethe em Viagem a Itália (1829)

afirma a sua transição literária: “entre Weimar e Palermo passei por muitas

mudanças”. (GOETHE, 1999, p. 287).

Com a viagem à Itália, Goethe pretende preencher de significados as

palavras ocas que o angustiam. Viaja para dentro de si mesmo, quer se

conhecer melhor e buscar a solidão para observar a multidão; como relata nas

anotações feitas em Veneza, na obra Viagem à Itália (1999, p. 76). Olha para as

cidades e relaciona-as com muito do que conhecia anteriormente dos livros e

das gravuras admiradas na infância, trazidas da Itália por seu pai, mencionadas

em Poesia e Verdade (1986, p. 22).

Quando Goethe retorna a Weimar, com trinta e nove anos de idade,

torna real tudo aquilo que havia sentido e apreendido na Itália. Dessa forma, as

relações construídas nessa pequena cidade e na viagem à Itália estão totalmente

ligadas à transição de Goethe para o Classicismo. A amizade com Schiller

também é um importante fator intensificador do Classicismo de Weimar.

Weimar und Goethe, Menschen und Schicksale (1949), de Friedrich

August Hohenstein, é dividida em duas partes, e a primeira relata a chegada de

Goethe a Weimar vindo de Frankfurt. Nesse momento, as impressões e

experiências de Goethe estão relacionadas a algumas das obras escritas nesse

período.

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27    

Na segunda parte, que se inicia com a mesma pergunta da primeira

parte: “Weimar?”, é relatado o retorno ao Grão-ducado depois da viagem à

Itália. Goethe encontra tudo como era antes, com exceção das estradas que

melhoraram. Ele já não é mais o mesmo, ninguém entende a sua nova

linguagem.

As afinidades eletivas condensa toda a vivência e a sabedoria ao olhar o

mundo depois de tantas experiências enriquecedoras. Paul Valéry ressalta ainda

a metamorfose e o transformismo, que podem ser vistos nos estudos científicos

como nas mudanças literárias. Ele vê Goethe como um sistema completo de

contrastes, “como uma combinação rara e fecunda. É um clássico e um

romântico alternadamente”. (VALÉRY, 1999, p. 44). Abaixo uma proposta de

Goethe para definir os termos clássico e romântico em conversa com

Eckermann no dia 2 de abril de 1829:

[...] Goethe lembrou-se de uma nova expressão que não define mal essa distinção: ‘Chamarei clássico ao saudável, e romântico ao que é doentio. E os Nibelungen passarão a ser tão clássicos como Homero, pois que são saudáveis e resistentes. A maioria das novas criações não é romântica por ser recente, mas por ser fraca, doentia e combalida; e a antiga não é clássica por ser velha, mas sim por ser forte, animosa e benéfica. (ECKERMANN, 2004, p. 274).

Goethe vive o suficiente para conhecer muitas transformações na sua

vida, como o desenvolvimento do pré-romantismo ao classicismo. Na produção

artística de uma vida inteira estão presentes vários estilos, vários gêneros, e

também análises e experimentos fora da literatura. Uma busca incansável pelo

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conhecimento e pela lapidação do ser por meio da arte. N’As afinidades eletivas

encontramos muitas dessas relações. Temos uma obra entre o romantismo e o

classicismo.

A sua vida literária parece acompanhar a evolução da literatura alemã e as fases da conquista de Shakespeare: poeta anacreôntico em Leipzig; Sturm und Drang e sentimentalista em Goetz von Berlichingen e Werther; neoclassicista até chegar a transições românticas; e, na velhice, depois da apostasia dos românticos, a solidão completa. Só esta era a posição verdadeira de Goethe. (CARPEAUX, 2008, p. 1313).

Ao olhar para Goethe a partir d’As afinidades eletivas temos de levar

em conta muitas mudanças em sua vida, muitas experiências literárias e

também seus experimentos científicos.

Um tema caro à prosa goethiana é a renúncia (Entsagung). Tanto em

relação ao amor da juventude, quanto ao amor da velhice, tanto a pátria como

também a vida. A renúncia é um dos grandes temas da maturidade de Goethe.

N’As afinidades eletivas tal tema está nas decisões e no comportamento das

personagens. Cada uma exerce a renúncia a sua maneira. Ora no que se refere

ao sentimento, ora no que se refere a própria vida.

A renúncia para o romântico está ligada ao sentimento, ao amor

impossível. A renúncia no clássico refere-se às decisões que racionalizam a

vida. Esta corresponde a Charlotte e o Capitão, aquela a Eduard e Ottilie. As

afinidades eletivas não é seu único romance. Apesar de Goethe ser muito mais

conhecido como poeta, escreveu algumas obras em prosa, de que tratam os

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próximos parágrafos. Os sofrimentos do jovem Werther (Die Leiden des jungen

Werther, 1774) foi seu primeiro romance e o tornou conhecido e respeitado

dentro e fora da Alemanha aos 25 anos.

‘É muito simples’, considerou Goethe, ‘para escrever prosa é necessário ter algo a dizer, quem porém nada tem a dizer, deve rimar e versejar, pois uma palavra substitui outra, e por fim sempre sai algo que em verdade nada é, mas que parece sê-lo’. (ECKERMANN, 2004, p. 177).

Werther é um romance epistolar na esteira de La nouvelle Héloïse

(1761) de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Segundo Fritz Martini (1971),

Goethe sente-se sufocado no mundo burguês familiar, em Frankfurt, e na

profissão que o pai determinou para ele. A pedido de seu pai, ainda, transfere-

se para Wetzlar e apaixona-se por Charlotte Buff. Goethe é forçado a renunciar

a esse amor. Supera a dor com a elaboração de Werther. Seu primeiro romance

nasce então da sua necessidade íntima de renunciar à paixão em um momento

em que quase preferia renunciar à vida, como veremos mais adiante na citação

de Carpeaux sobre sua relação com Charlotte Kestner.

Em conversa com Eckermann, em 2 de janeiro de 1824, Goethe fala

sobre sua relação com Werther:

‘É essa também uma criatura que nutri, como o pelicano, do meu coração. Encerra tanto de íntimo, do meu próprio âmago, que daria bem para uns dez pequenos volumes, tais como ele. De resto, eu o li uma única vez, desde que apareceu, conforme já declarei, e evitei repeti-la. São fogos de artifício! Sinto verdadeiro pavor de voltar ao mesmo

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estado patológico de que o livro resultou’. (ECKERMANN, 2004, p. 53).

Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister trata do problema da

formação do homem, por isso é o Bildungsroman por excelência.

O jovem Meister liberta-se da unilateralidade pragmática do burguesismo lançando-se numa atividade que dá azo ao desenvolvimento das suas capacidades; [...] A força modeladora da vida é exemplificada no seu amadurecimento interior; o seu esforço e os seus erros são passos do caminho para a perfeição. [...] nele se conjuga a consciência do domínio moral e ativo da vida com o sereno respeito pelos ditames imperscrutáveis do destino. (MARTINI, 1971, p. 255-256).

O romance intitulado Wilhelm Meisters Wanderjahre (1821-29) é

formado por narrativas enquadradas, mas numa sequência aleatória de novelas

e aforismos. Alguns deles simplesmente com o objetivo de completar a

quantidade necessária de páginas pedidas pela editora ao observar que os dois

últimos volumes ficariam muito pequenos.

O próprio Goethe reconhece a arbitrariedade formal deste livro: ‘Acontece neste livrinho o mesmo que se dá na vida; no complexo total mistura-se o necessário e o fortuito, o principal e o secundário, umas vezes o sucesso, outras o malogro, o que lhe confere uma espécie de unidade’, diz ele em 1829. (MARTINI, 1971, p. 263).

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Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister foi inicialmente publicado

em um único tomo em 1821. Em 1829, para a segunda publicação, foram

planejados dois volumes que se tornaram três, por causa da letra espaçada do

copiador.

Este [Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister] apresenta características diferentes das do primeiro: o tema enfatiza a atuação do indivíduo em prol da comunidade; a construção também não segue uma linha única, sendo mais um mosaico de outras formas literárias, como a novela o ensaio, o aforismo”. (HEISE, 1986, p. 36).

No trecho abaixo, Eckermann discorre sobre como se deu o fechamento

dessa obra para a sua segunda publicação:

Goethe pareceu-me muito satisfeito. Eu tinha reunido o conjunto em duas partes principais, às quais demos os títulos de: “Do arquivo de Macário” e “No sentido dos peregrinos”. E como Goethe houvesse concluído precisamente nesse tempo, as poesias denominadas: ‘Ao crânio de Schiller’ e ‘Nenhum ente pode desfazer-se em nada’, teve o desejo de publicá-las logo, pelo que as inserimos no fim de ambas as partes. (ECKERMANN, 2004, p. 317, grifo nosso).

O conjunto referido por Eckermann é composto por diversos escritos

não publicados até então, “minudências, trabalhos terminados ou por terminar,

opiniões sobre estudos da Natureza, sobre arte, literatura e a existência, tudo

misturado”. (ECKERMANN, 2004, p. 316). Isso foi reorganizado para

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preencher as folhas que faltavam para que os volumes tivessem um tamanho

mais interessante para o editor.

Goethe inicia, em 1808, uma novela para ser parte de Os anos de

peregrinação de Wilhelm Meister, mas depois de poucos meses ela é publicada

com o título de As afinidades eletivas. Romance singular para a sua época, que

tem em sua estrutura outras narrativas enquadradas.

Goethe refere-se pela primeira vez a As afinidades eletivas em 1808.

Durante a rápida produção dessa obra, o autor faz algumas viagens e dedica-se

intensamente a sua elaboração: de maio a agosto de 1808 em Karlsbad e

Franzensbad; entre maio e outubro de 1809 em Jena. Esse romance é publicado

ainda em 1809.

A obra pertence a maturidade de Goethe, já que, ao escrevê-la, conta 60

anos. Em algumas pausas desse trabalho Goethe retoma a Teoria das Cores8

(Farbenlehre, 1810), intermitentemente à elaboração da autobiografia Poesia e

verdade (Dichtung und Wahrheit, 1830) e de algumas pesquisas filosóficas

sobre a essência da liberdade humana. As afinidades eletivas recebe influência

                                                                                                               8 “Zur Farbenlehre (A teoria das cores) de Goethe, publicado em 1810, discordava violentamente das conclusões de Newton sobre a luz e a cor. Sua oposição era filosófica, e também prática. Goethe acreditava que a divisão do espectro era sintomática da tendência da ciência de romper o mundo em pedaços sem significado, destruindo qualquer sentido de unidade. Embora seu objetivo declarado fosse reduzir a ‘confusão’ em torno do uso da cor na arte, Goethe recorreu à linguagem e conceitos idiossincrásicos ao expor suas ideias aludindo a ‘efeitos sensuais-morais’, ‘privação’ e ‘poder’. Apesar disso, abordando a cor por meio de observações da percepção humana em lugar da física da luz, ele cobriu uma área bem maior que a de Newton, explorando simultaneamente o contraste, a imagem residual, a cor das sombras e o efeito da iluminação sobre os objetos, e considerou como as cores podem se relacionar a estados emocionais. Ele também formulou proporções das forças de diferentes matizes para permitir que fossem combinados em proporção visual igual. Artistas e designers ainda se referem largamente a seus princípios”. (FRASER, 2007, p. 48).

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33    

de suas experiências científicas, o que confere à obra literária um caráter

laboratorial.

Restringimo-nos a olhar para Goethe como autor d’As afinidades

eletivas. A ideia principal aqui foi resgatar elementos da sua longa existência

relacionada a nossa obra de análise, no sentido de que esse romance se constrói

a partir de toda experiência rica em olhar e reflexão do autor até 1809. Não

simplesmente como fatos de vida pessoal, mas como cristalização da reflexão

de tudo o que lhe era relevante. Na sequência analisaremos As afinidades

eletivas sob a perspectiva de suas narrativas enquadradas.

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1.2 As afinidades eletivas

O Romance é uma morte; ele faz da vida um destino, da lembrança um ato útil, e da duração um tempo dirigido e significativo. (BARTHES)9

1.2.1 Um romance

Até o século XVIII, o romance é um gênero desprestigiado. “O romance

medieval, renascentista e barroco dirige-se fundamentalmente a um público

feminino, ao qual oferece motivos de entretenimento e de evasão” (AGUIAR e

SILVA, 2007, p. 678). É considerado pelos críticos da época como um

divertimento fácil.

O problema principal para a aceitação do romance como um gênero é

sua falta de antepassados ilustres na literatura greco-latina. Ele não tem

modelos a imitar, nem regras a que obedecer. Aristóteles não conhece o

romance e por isso não prevê regras para esse gênero. O romance era

considerado uma obra frívola, escrito por autores inferiores a um público de

pouco conhecimento literário.

                                                                                                               9 (2004, p. 35)

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35    

Na literatura europeia da Idade Média, o que se encontra são

longuíssimas composições romanescas em geral elaboradas em verso. Elas

apresentam-se em duas vertentes: o romance de cavalaria e o romance

sentimental. No século XVII, no período barroco, o romance é repleto de

“situações e aventura excepcionais e inverossímeis: naufrágios, duelos raptos,

confusões de personagens, aparições de monstros e de gigantes [...]”.

(AGUIAR e SILVA, 2007, p. 676).

Dom Quixote de Cervantes pertence a esse momento como um anti-

romance ao satirizar essas características barrocas e entrou na história como o

primeiro grande romance. Vale ressaltar que “o romance moderno se constitui

não só sobre a dissolução da narrativa puramente imaginosa do barroco, mas

também sobre a desagregação da estética clássica. [...]”. (AGUIAR e SILVA,

2007, p. 678).

É curioso verificar até que ponto, antes de meados do século XVIII, era raro os artistas se desviarem dos estreitos limites da ilustração, pintarem uma cena de romance ou um episódio da história medieval ou de seu próprio tempo. Tudo isso mudou muito rapidamente durante o evoluir da Revolução Francesa. De repente, os artistas sentiram-se livres para escolher qualquer coisa como tema, desde uma cena de Shakespeare a um acontecimento do dia, o que quer que, de fato, apelasse para a imaginação e despertasse interesse. (GOMBRICH, 1999, p. 481).

Não é só nas artes plásticas que ocorre essa mudança de atitude tanto do

público como do artista. No século XVIII, o desinteresse pela estética clássica e

o novo gosto artístico é afirmado por um novo público: o público burguês. “[...]

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36    

o romance, o gênero literário de ascendência obscura e desprezado pelos

teorizadores das poéticas, conhece uma metamorfose e um desenvolvimento

muito profundos [...]”. (AGUIAR e SILVA, 2007, p. 680). Os assuntos

preferidos nesse momento pelos leitores ávidos por livros muito longos eram,

por exemplo: “a análise das paixões e dos sentimentos humanos [...] em sátira

social e política ou em escrito de intenções filosóficas”. (AGUIAR e SILVA,

2007, p. 681). Neste momento, cabe também ao romance o melancolismo, o

desespero e a sensibilidade do pré-romântico.

Observamos, antes desse momento, uma sequência de mudanças na

narrativa em decorrência do interesse do público. Apenas no século XIX,

verificamos a possibilidade de o autor fazer suas próprias escolhas, segundo o

trecho de Gombrich transcrito acima. Hoje, “o romance permanece, pelas

possibilidades expressivas que oferece ao autor e pela difusão e influência que

alcança entre o público”. (AGUIAR e SILVA, 2007, p. 684).

Para esse novo momento, o mundo narrado é então mais pessoal, mais

particular e mais solitário (KAYSER, 1976, p. 399). O narrador também tem

caráter pessoal, não narrando mais para um público fisicamente presente e

sentado ao seu redor, mas para um leitor solitário, que lê em silêncio e para si

mesmo.

O romance assimilara sincreticamente diversos gêneros literários, desde o ensaio e as memórias até à crónica de viagens; incorporara múltiplos registros literários revelando-se apto quer para a representação da vida quotidiana quer para a criação de uma atmosfera poética, quer para a análise de uma ideologia. (AGUIAR e SILVA, 2007, p. 682-683).

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Antonio Candido, em seu ensaio “O Patriarca”, contextualiza o romance

a partir da dificuldade em lhe conferir reconhecimento, o que só se dá no século

XIX. O romance, aqui, representa a sociedade, o homem, o mundo e a sua

multiplicidade. Assim, apenas ao que vem depois de Goethe é possível romper

com as estruturas existentes, antes disso não existem estruturas pré-

estabelecidas, mas sim um gênero em constante transformação.

Quanto ao Novo Romance, de conceito flutuante e escorregadio,

segundo Sandra Nitrini, “pode-se destacar como traço comum aos novos

romancistas a oposição visceral à produção, no século XX, de uma literatura

tradicionalista, nos moldes do romance de análise psicológica, segundo o

modelo de Balzac”. (NITRINI, 1987, p. 42).

O Novo Romance não encarna uma criação absoluta, mas constitui a expressão sistemática de diversas invenções e correntes que antecedem no tempo, como o uso frequente do monologo interior, das ‘mise-en-abyme’, da visão minuciosa e detalhista [...]. (NITRINI, 1987, p. 42-43).

Em Questões de literatura e estética (1988), no capítulo “O discurso no

romance”, Mikhail Bakhtin (1895-1975) trata de “uma das formas mais

importantes e substanciais de introdução e organização do plurilinguismo no

romance: os gêneros intercalados”. (BAKHTIN, 1988, p. 124).

O romance, com sua ascendência sem moldes e sem padrões, aceita ao

longo de sua história novas possibilidades. Por isso é admissível enxertar no

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romance outros textos como: novelas, cartas, diários íntimos, discursos

proferidos em momentos especiais, obras pictóricas, aforismos, sentenças,

poemas, questões científicas ou filosóficas, mandamentos bíblicos.

Encontramos todas essas inserções n’As afinidades eletivas.

“Os gêneros introduzidos no romance conservam habitualmente a sua

elasticidade estrutural, a sua autonomia e a sua originalidade linguística e

estilística”. (BAKHTIN, 1988, p. 124). N’As afinidades eletivas, as narrativas

enquadradas realmente não alteram a estrutura da narrativa maior, que continua

sendo um romance de acontecimentos. As cartas ali inseridas não o tornam um

romance epistolar, o diário de Ottilie não o torna um romance-diário, ou ainda,

não temos aqui uma série de novelas ou de contos enquadrados numa sequência

de histórias dentro de uma história principal. Em nosso romance de análise

esses outros gêneros inseridos dão a ele maior complexidade, atrasam o

desfecho, retiram o leitor da narrativa principal e ainda assim permanece

sempre um romance.

Todos esses gêneros que entram no romance introduzem nele as suas linguagens e, portanto, estratificam a sua unidade linguística e aprofundam de um modo novo seu plurilinguismo. (BAKHTIN, 1988, p. 125).

Dällenbach cita Jean Ricardou,

No estudo apresentado ao colóquio Claude Simon de Cerisy-la-Salle (1974), estabelece-se uma discriminação entre intertextualidade geral (relações intertextuais entre textos de autores diferentes) e intertextualidade restrita (relações intertextuais entre textos do mesmo autor). (RICARDOU apud DÄLLENBACH, 1979, p. 51, grifo do autor).

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E de modo concorrente, Ricardou, em Pour une théorie du nouveau

roman (1971), faz “a distinção entre uma intertextualidade externa, entendida

como relação dum texto com outro texto, e uma intertextualidade interna,

compreendida como relação dum texto consigo mesmo”. (DÄLLENBACH,

1979, p. 52). Em As afinidades eletivas observamos a presença constante da

intertextualidade restrita tanto na novela, como nos quadros vivos, mas,

principalmente, no diário de Ottilie. Mas, ressaltamos também a

intertextualidade geral ou externa nos quadros vivos e em relações construídas

com textos bíblicos, com o mito de Narciso ou ainda com conteúdos científicos.

Os textos enquadrados não são felizes coincidências ou meras narrativas

curtas facilmente acrescentadas a textos como um romance. N’As afinidades

eletivas o enquadramento de novos textos é elucidador em relação ao seu todo.

Tal sentido se constrói pela reiterada repetição ao longo de todo o romance.

Crucial para a compreensão da aliança preferencial ‘mise en abyme’-obra de arte, esta intrusão quase fatal do outro no mesmo parece traduzir o destino variável que afeta o processo na história da literatura. Não será a sua incompatibilidade com o dogma da ‘pureza’ dos gêneros que explica a sua marginalização pelo Classicismo? [...] suas relações com esta ou aquela poética histórica nem sempre são francas, e que a articulação dum gênero noutro pode operar-se de diversas maneiras. (DÄLLENBACH, 1979, p. 69).

Goethe não precisa apresentar postura contestadora por meio da

estrutura narrativa de seu romance, pois não existe nenhum modelo fechado, ou

pré-estabelecido. Contudo, faz experimentos narrativos em sua obra assim

como realiza nas estufas e no laboratório.

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1.2.2 Die Wahlverwandtschaften

O termo químico Wahlverwandtschaft foi empregado pela primeira vez

em 1785 na tradução da obra do químico sueco Torbern Olof Bergmann,

denominada De attractionibus electivis (1775). Antes da publicação de As

afinidades eletivas, Goethe anuncia seu novo romance em 4 de setembro de

1809 no periódico Morgenblatt für gebildete Stände, direcionado ao público

culto. Goethe deixou clara a relação do título de seu romance com estudos

contemporâneos de química analítica. Tal afirmação encontra-se no trecho

abaixo conforme tradução de C.G.S.M10:

Parece que o constante estudo da física induziu o autor a este título singular. Ele deve ter observado que, na física, muitas vezes, nos servimos de exemplos práticos para aproximar do alcance da ciência humana algo que esteja distante; desta maneira pretendeu também aplicar, num caso moral, uma fórmula química, sublimando-a à sua origem espiritual, tanto mais que a natureza é uma só. Através dos serenos domínios do livre arbítrio, arrastam-se, incessantemente, os vestígios da sombria e impulsiva necessidade, que somente com o auxílio de uma força superior e, decerto, não nesta vida, serão completamente apagados11. (1966, p. 26).

                                                                                                               10 Prefácio a As afinidades eletivas na edição de 1966 da Ediouro, p. 26.

11 “Es scheint, dass den Verfasser seine fortgesetzten physikalischen Arbeiten zu diesem seltsamen Titel veranlassten. Er mochte bemerkt haben, dass man in der Naturlehre sich sehr oft ethischer Gleichnisse bedient, um etwas von dem Kreise menschlichen Wissens weit Entferntes näher heranzubringen, und so hat er auch wohl in einem sittlichen Falle eine chemische Gleichnis Rede zu ihrem geistigen Ursprunge zurückführen mögen, um so mehr, als doch überall nur eine Natur ist und auch durch das Reich der heitern Vernunftfreiheit die Spuren trüber, leidenschaftlicher Notwendigkeit sich unaufhaltsam hindurchziehen, die nur durch eine höhere Hand und

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Segundo Renhard Baumgart (1980), a narrativa começa como em uma

estufa, e depois torna-se claro, que essa estufa – na verdade a própria narrativa

– é o grande tubo de ensaio de seu autor.

Goethe ia além de sua época, e As afinidades eletivas também. O

romance não foi aceito, nem entendido no momento de sua publicação. Os

leitores o consideraram mais que uma audácia: uma análise crítica negativa do

matrimônio, subversivo, imoral e pagão. Para o autor, isso não passava de

mesquinharias. “Só depois de 1900 se tornou possível a amadurecida

compreensão d’As afinidades eletivas, do Divã Oriental e Ocidental e da

segunda parte do Fausto” (MARTINI, 1971, p. 231).

Para Thomas Mann, essa talvez seja a obra de Goethe mais repassada de

espírito cristão. Isso porque um dos focos do romance é a tentativa da

superação das paixões por meio da disciplina consciente e da renúncia. “As

Wahlverwandtschaften são o romance da vitória moral sobre o demônio [...]”.

(CARPEAUX, 2008, p. 1321).

Novas experiências eróticas inspiraram o romance Die Wahlverwandtschaften (As afinidades eletivas), história nobre e contida de um adultério meio sonhado meio realizado. As muitas digressões e delongas são capazes de cansar o leitor moderno. Mas a leitura atenta revela a necessidade estrutural mesmo daqueles capítulos: os episódios constroem a ponte entre a vida sentimental e a vida ativa dos personagens; constituem o fundo do problema

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     vielleicht auch nicht in diesem Leben völlig auszulöschen sind”. (GOETHE, 1809 apud EGEBAK, 1982, p. 69)

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moral, que eleva as Wahlverwandtschaften à categoria de um dos romances mais sérios da literatura universal. (CARPEAUX, 1964, p. 82).

N’As afinidades eletivas temos um romance de fatos. Sua matéria é

pautada nas relações humanas e a interferência das narrativas enquadradas

acrescenta maior reflexão sobre tais temas. Walter Benjamin inicia seu ensaio

sobre As afinidades eletivas discorrendo longamente sobre o teor factual e o

teor de verdade. Nessa linha de reflexão, o casamento seria o ponto chave de

análise das relações humanas nos parâmetros éticos e morais. Contudo,

Benjamin observa que o objeto d’As afinidades eletivas não é o casamento, mas

sim “aquelas forças que dele nascem no processo de seu declínio”

(BENJAMIN, 2009, p. 21). Aí está uma matéria delimitada e separada do

convívio social para análise científica do elemento humano.

O romance é dividido em duas partes, cada uma das quais com dezoito

capítulos. Na primeira parte, a ação desenvolve-se no ritmo de Eduard:

apaixonado, vivo, mimado e viril. Neste momento, as personagens reúnem-se,

escolhem-se, apaixonam-se de maneira inesperada, segundo a química das

relações. Acontecem as festas, os planos de reformas e de novas construções,

como também os planos de organização de escritos e de embelezamento do

cotidiano. A atividade é intensa e a ação é guiada por um impulso alegre e

pleno. Cada personagem imprime sua força vivaz de acordo com o seu instinto.

Na segunda parte, o foco é Ottilie e a narrativa apresenta mais

fortemente características que se aproximam dessa personagem: introspectiva,

obscura, misteriosa e insegura. Aqui as quatro personagens principais se

afastam. Elas não têm ímpeto para seguir seus desejos, demonstram fraqueza e

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indecisão. Com a notícia da gestação e da morte do bebê, que é denominado

Otto e é fruto do adultério subjetivo, as personagens reagem distanciando-se do

núcleo de atração entre os quatro amigos. Essas personagens romanescas

assemelham-se às características próprias das personagens de novelas, na

indicação de Massaud Moisés em seu Dicionário de termos literários:

Quais títeres, obedecem ao comando do escritor e a circunstâncias artificiais criadas à sua volta. Em suma: personagens planas, bidimensionais, carentes de profundidade, estáticas, monolíticas. E podem ser substituídas, regra geral, sem comprometer o todo da obra, uma vez que o novelista está voltado precipuamente para o enredo. (MOISES, 1974, p. 366-367).

“Eduard ⎯ assim denominaremos um rico barão em plena virilidade

[...]12”. (GOETHE, 1998a, p. 21), é o segundo nome da personagem, nome

escolhido em detrimento de ‘Otto’, o primeiro nome. Esse último é substantivo

próprio palíndromo, pois pode ser lido da esquerda para a direita ou da direita

para a esquerda, sem qualquer alteração. É um nome que marca o núcleo da

história, a centralidade de atração e de repulsão entre Eduard, Charlotte, Ottilie

e o Capitão, que também se chama Otto. E por fim, a criança, fruto do duplo

adultério subjetivo, que recebe o mesmo nome, mas não o carrega por muito

tempo, por conta da morte trágica. Os nomes todos juntos figuram da seguinte

forma: OTTilie, CharlOTTe, OTTo Eduard, OTTo (Capitão > Major), e o bebê

OTTo.

                                                                                                               12 “Eduard – so nennen wir einen reichen Baron im besten Mannesalter” […]. (GOETHE, 1998b, p. 3).

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Nada vincula tanto o ser humano à linguagem quanto seu nome. Dificilmente haverá em qualquer outra literatura uma narrativa da extensão das Afinidades eletivas em que se encontrem tão poucos nomes. (BENJAMIN, 2009, p. 26).

No Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes de Rosário Farâni

Mansur Guérios o radical -ot- significa “bens materiais, riqueza, patrimônio”, e

por extensão: “fortuna, sorte, fidalguia, nobreza”. (GUÉRIOS, 1981, p. 192).

Para o nome Ottilie, o caminho é: Otília – Odilia – Odila – Oda, que significa:

“bens, riquezas (materiais)”. (GUÉRIOS, 1981, p. 189). O nome Eduard tem

como significado uma função: “guarda das riquezas, dos bens”. (GUÉRIOS,

1981, p. 108). Charlotte é o feminino de Carlos que significa “homem”. “É um

dos pouquíssimos nomes germânicos antigos de um só tema; contudo há quem

afirme ser abreviatura de Karalmann. Sentido primitivo: ‘viril, varonil,

vigoroso’. De uso frequentíssimo desde Carlos Magno”. (GUÉRIOS, 1981, p.

86).

É bastante significativa a relação dos nomes das personagens do

romance segundo o Dicionário etimológico de nomes e sobrenomes. O material

se sobrepõe ao sentimental, que fica apenas na idealização ou no desejo, mas

não se concretiza. O fundamento principal dessas personagens é o que elas têm,

a terra que possuem e onde estão, o título nobre que carregam e a fortuna que

administram, que é a única atividade que ocupa seus dias.  

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Charlotte é apresentada como esposa, como mãe, como responsável por

Ottilie. Ela existe no romance em decorrência de suas relações. Quanto a

Eduard:    

 

Sua irresponsabilidade, a bem dizer, sua rudeza e a expressão de desespero fugidio numa vida perdida. ‘Na disposição toda desse relacionamento’ diz Cohen, Eduard aparece ‘exatamente como se define a si mesmo’ diante de Charlotte: ‘pois na verdade eu dependo mesmo só de você!’ Ele é um joguete, certamente não para os caprichos que Charlotte de maneira alguma possui, mas para o objetivo final das afinidades eletivas, ao qual tende, a partir de todas as oscilações, a natureza central dessas afinidades com o seu centro de gravidade fixo’. (BENJAMIN, 2009, p. 25).

Nesse romance, as personagens são apresentadas aos pares, resultados

de atrações químicas inevitáveis. Conforme se separam e se reagrupam,

seguindo seus instintos, ocorre o jogo imprevisível de outras formas de

afinidades. Como resultado de atrações químicas observamos que: Eduard e

Ottilie vivem uma paixão romântica, a despeito da moral e das leis divinas; o

Capitão e Charlotte apresentam o amor equilibrado e de compreensão mútua,

são racionais e não se entregam ao amor; o Conde e a Baronesa são ligados por

um amor comum, de instinto, conveniência e ajuste social.

Os dois primeiros casais são os elementos principais da trama, e

inicialmente existem de forma alternada. Eduard e Charlotte, como casal

matrimonial, são felizes e bem sucedidos. Decidem, por generosidade, receber,

em sua propriedade, o amigo de Eduard, o Capitão, que não consegue uma boa

colocação profissional; e a filha adotiva de Charlotte, Ottilie, que passa por

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problemas no internato. Concordam, assim, que quatro seria o número ideal,

dessa forma o Capitão e Ottilie formariam um novo casal.

Entretanto, nem tudo pode ser tão planejado. Respondendo às forças dos

acontecimentos, ocorrem mudanças nesses relacionamentos. Elas não são

explícitas, mas profundas. As personagens são influenciadas entre si e assim

ocorre o duplo adultério.

O terceiro casal, formado pelo Conde e pela Baronesa, visita seus

amigos por duas vezes no decorrer da narrativa. A primeira visita acontece na

primeira parte, pouco tempo depois de Ottilie juntar-se ao grupo. Aqui,

Charlotte preocupa-se em não expor Ottilie à verdade sobre a relação adúltera

do casal. Para resolver isso Charlotte e Eduard decidem separar homens e

mulheres em alas opostas do castelo. Assim, cada um, supostamente, dormiria

em seu quarto.

Mittler, que estava nas propriedades do casal quando os visitantes

chegaram, recusa-se a ocupar o mesmo espaço que esse casal. Repudia a

conduta do Conde e da Baronesa. Estar com eles poderia sinalizar um futuro

desfavorável. Mittler “apesar de sua conduta autossuficiente, [apresenta] traços

desse medo verdadeiramente supersticioso perante sinais de mau agouro.

(BENJAMIN, 2009, p. 23). Ao saber da chegada do casal adúltero, Mittler

enraivece-se:

Uma má estrela paira sobre mim sempre que procuro descansar e distrair-me! Mas por que contrario o meu caráter? Não devia ter vindo, e agora estão me expulsando, pois não quero ficar com aqueles dois sob o mesmo teto; e tomem cuidado, eles só trazem desgraças! Esses seres

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parecem o fermento, que se propaga pelo contágio. 13 (GOETHE, 1998a, p. 83-84).

Para Benjamin a superstição não é própria das pessoas cultas, dessa

forma as outras personagens não se submetem a tais pensamentos

desfavoráveis. Eduard, por exemplo, tem uma inclinação a presságios

favoráveis. Ele se prende a sinais, mas esses são livres de superstição.

A superstição faz parte da essência humana e, se pensamos poder bani-la por completo, há-de refugiar-se nos mais pequenos espaços, nos recantos mais estranhos, para voltar a sair de súbito, logo que se ache com força suficiente. (GOETHE, 2000, p. 228)

Importa ressaltar que, embora a situação sinalize um desenrolar

negativo, as personagens principais preferem acreditar em possibilidades

positivas e de final favorável aos seus desejos.

Na segunda visita, o Conde e a Baronesa chegam juntos e estão

tranquilos e realizados. O falecimento da esposa do Conde permite então que

em breve os dois oficializem a relação. Neste momento, tanto Charlotte como

Ottilie sentem-se esperançosas diante de suas expectativas para suas futuras

uniões. O casal chega e compõe o momento em que são feitas as produções e

encenações dos quadros vivos, o que acontece por sugestão do Conde.

Para Walter Benjamin o ponto principal dessa última relação é a sua

nulidade.

                                                                                                               13 “Schwebt doch immer ein Unstern über mir, sobald ich einmal ruhen und mir wohltun will! Aber warum gehe ich aus meinem Charakter heraus! Ich hätte nicht kommen sollen, und nun werd’ ich vertrieben. Denn mit jenen will ich nicht unter einem Dache bleiben; und nehmt euch in acht: sie bringen nichts als Unheil! Ihr Wesen ist wie ein Sauerteig, der seine Ansteckung fortpflanzt”. (GOETHE, 1998b, p. 70).

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Isso se comprova justamente no fato de que eles não estão conscientes nem da natureza moral de seu presente relacionamento nem da natureza jurídica daqueles relacionamentos que abandonaram. (BENJAMIN, 2009, p. 21).

O Conde e a Baronesa parecem não se importar com tudo o que os

cerca, e simplesmente colocam suas forças e expectativas num futuro em

comum. Contudo, executam ações que contribuem com a permanência do

casamento de Eduard e de Charlotte. A ação do Conde de indicar ao Capitão

um novo posto de trabalho na corte é voluntária, mas contribui para o seu

afastamento de Charlotte. A Baronesa indica algumas maneiras de afastar

Ottilie das propriedades de Eduard. Aqui, no entanto, não existe êxito, mesmo

que a paixão de Eduard seja nítida. A Baronesa percebe o perigo que Ottilie

representa para o casamento de seus amigos.

A Baronesa não só possui terras produtivas como é também alguém que

realiza seus intentos amorosos. O Conde e a Baronesa optam por viver a paixão

e renunciam somente às suas situações anteriores que consideram indesejáveis.

E por mais que se fale de propriedade rural, jamais se menciona a semeadura ou se toca em negócios que sirvam, não ao ornamento, mas sim ao sustento. A única alusão neste sentido – a previsão da colheita no vinhedo – conduz do cenário da ação à propriedade da baronesa. (BENJAMIN, 2009, p. 23).

As quatro personagens principais movem-se alheias às suas vontades.

Parecem não ter força própria. São observadas em suas propriedades (rurais),

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mas não plantam nem colhem dessa terra, nada além de flores, tanto para festas

como para funerais.

Na construção da ação apresentam-se reiterados Leitmotive compostos

por objetos que fazem sentido no decorrer da narrativa. Um exemplo de

Leitmotiv n’As afinidades eletivas é a taça decorada com as letras “O” “E”, que

significa originalmente “Otto Eduard”, mas o Barão prefere, em um novo

enquadramento, ler ali “Ottilie” e “Eduard”. Ele questiona seu futuro com

Ottilie e mensura a realidade a partir de sinais ilusórios, o que pode ser

percebido no trecho que segue:

Tantos presságios consoladores, tantos sinais propícios fortaleceram-me a crença, a ilusão de que Ottilie poderia ser minha. Uma taça gravada com as nossas iniciais, atirada ao ar naquele dia do lançamento da pedra fundamental, não se despedaçou, foi apanhada a tempo e está novamente em minhas mãos. ‘Quero’, exclamei neste lugar ermo, onde passei tantas horas de incerteza, ‘eu mesmo me colocar no lugar da taça, como um símbolo, para saber se a nossa união é possível ou não. Irei para guerra [...].14 (GOETHE, 1998a, p. 223).

Nesse trecho, temos não só menção à taça, mas também a ideia de

repetição desse objeto no decorrer do romance. Do início ao fim, ela é bastante

significativa para Eduard. Tanto ao notar a coincidência de suas iniciais com a

                                                                                                               14 “So manche tröstliche Ahnung, so manches heitere Zeichen hatte mich in dem Glauben, in dem Wahn bestärkt, Ottilie könne die Meine warden. Ein Glas mit unserm Namenszug bezeichnet, bei der Grundsteinlegung in die Lüfte geworfen, ging nicht zu Trümmern; es ward aufgefangen und ist wieder in meinen Händen. So will ich mich den selbst, rief ich mir zu, als an diesem einsamen Orte viel zweifelhafte Stunden verlebt hatte: mich selbst will ich an die Stelle des Glasses zum Zeichen manchen, ob unsre Verbindung möglich sei oder nicht. Ich gehe hin […]”. (GOETHE, 1998b, p. 215-216).

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ligação do nome de sua amada ao seu, como também no desfecho, quando

descobre que na verdade a taça em que bebe é uma réplica, pois a original se

quebrou. A partir daí, ele entende claramente que tudo está acabado. O final

trágico é então compreensível para ele ao saber que a taça não existe mais.

O narrador prepara o leitor continuamente com prenúncios, que

antecedem as ações das personagens. Faz isso algumas vezes de forma irônica,

como no capítulo 13 da primeira parte, em que sabemos sobre a concretização

da paixão de Eduard por Ottilie. Esse trecho é demarcado por características

negativas que anunciam o desfecho infeliz. No primeiro parágrafo desse

capítulo, o narrador apresenta de forma cordial a situação de Eduard, que está

enlouquecido com a prova que tem em suas mãos quanto ao amor de Ottilie.

Apesar da grande conquista de Eduard, o final desse parágrafo tem um fecho

disfórico.

Eduard, por sua vez, está com uma disposição completamente diferente. Pensa tão pouco em dormir que nem lhe ocorre despir-se. Beija mil vezes a cópia do documento, o começo com a letra infantil e tímida de Ottilie; mas no final mal ousa beijar, pois julga ver a sua própria caligrafia. “Oh! Se fosse um outro documento!”, disse para si mesmo; e, todavia, era para ele a mais bela prova de que o seu maior desejo fora satisfeito. Se ele ficasse sempre em suas mãos, então o apertaria constantemente de encontro ao coração, apesar de conspurcado pela assinatura de um terceiro!15 (GOETHE, 1998a, p. 104).

                                                                                                               15 “Eduard von seiner Seite ist in einer ganz verschiedenen Stimmung. Zu schlafen denkt er so wenig, daß es ihm nicht einmal einfällt, sich auszuziehen. Die Abschrift des Dokuments küßte er tausendmal, den Anfang von Ottiliens kindlich schüchterner Hand; das Ende wagt er kaum zu küssen, weil er seine eigene Hand zu sehen glaubt. 'O, daß es ein andres Dokument wäre!' sagt er sich im stillen; und doch ist es ihm auch schon die schönste Versicherung, daß sein höchster Wunsch erfüllt sei. Bleibt es ja doch in seinen Händen! Und wird er es nicht immerfort an sein Herz drücken, obgleich entstellt durch die Unterschrift eines Dritten?” (GOETHE, 1998b, p. 91).

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Este trecho é também uma indicação do desenvolvimento prometido e

esperado da personagem Ottilie: aquela que aprende para ensinar ou a que

surpreenderá, segundo o assistente da diretora do internato. A semelhança da

letra funciona como um espelho para Eduard – que, assim como Narciso,

encanta-se com a sua imagem. A ironia do narrador está no elemento

desfavorável, no final da citação: o documento conspurcado por terceiro,

indicando que em nenhum momento a relação de Eduard e Ottilie é pura. Até

no encantamento tem a marca indesejada de um terceiro.

No capítulo 15, acontece a festa de aniversário de Ottilie, que também

está repleta de prenúncios infelizes. Uma imensa felicidade ou um forte sinal de

que tudo dará certo, seguidos por uma situação caótica, que invalida a

possibilidade de um desfecho harmônico e feliz.

Uma noite tranquila, uma calma absoluta prometiam ser propícias para a festa noturna, quando, de repente, teve início uma gritaria terrível. Grandes torrões de terra desprenderam-se dos diques, e várias pessoas caíram na água. O solo cedera com o peso e a movimentação da multidão cada vez maior. Todos quiseram pegar o melhor lugar, e agora ninguém podia andar nem para frente nem para trás16. (GOETHE, 1998a, p.113-114).

Nesta noite, o Capitão salva um menino já semimorto que se afogou

com o rompimento do dique. O acontecimento funciona como prenúncio para a

                                                                                                               16 “Ein ruhiger Abend, eine vollkommene Windstille versprachen das nächtliche Fest zu begünstigen, als auf einmal ein entsetzliches Geschrei entstand. Große Schollen hatten sich vom Damme losgetrennt, man sah mehrere Menschen ins Wasser stürzen. Das Erdreich hatte nachgegeben unter dem Drängen und Treten der immer zunehmenden Menge. Jeder wollte den besten Platz haben, und nun konnte niemand vorwärts noch zurück”. (GOETHE, 1998b, p. 101).

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morte por afogamento do bebê de Charlotte. Depois de toda tragédia, Eduard

insiste em acender os fogos de artifício e os dois amantes assistem ao

espetáculo sozinhos.

Os foguetes espocavam, os rojões trovejavam, as balas luminosas subiam, os busca-pés serpenteavam e estouravam, rodas de fogo sibilavam, primeiro isoladas, depois aos pares, por fim todas juntas, girando cada vez com maior violência. Eduard, cujo peito ardia, seguia com o olhar vivo satisfeito aquele espetáculo pirotécnico. Para a alma delicada e sensível de Ottilie, esses brilhos fugazes e ruidosos eram mais assustadores que agradáveis. Encostou-se timidamente em Eduard, a quem essa aproximação, essa confiança deram a sensação plena de que ela lhe pertencia por inteiro17 . (GOETHE, 1999a, p. 115-116).

Sinal da entrega total à paixão, do egoísmo e da infantilidade de Eduard.

Essa atitude repete-se diante da morte do pequeno Otto, quando Eduard vê o

caminho aberto para concretizar as novas uniões: Eduard e Ottilie – Charlotte e

o Capitão. O narrador chama a atenção para a ilusão, a ingenuidade ou a

esperança dessas personagens.

Ela [Charlotte] havia vivenciado tanta coisa naquela tarde [...] tinha presenciado o sacrifício de seu amigo ao salvar o menino e a si próprio. Esses assombrosos acontecimentos pareciam pressagiar-lhe um futuro significativo e de modo algum infeliz. 18 (GOETHE, 1998a, p. 116).

                                                                                                               17 “Raketen rauschten auf, Kanonenschläge donnerten, Leuchtkugeln stiegen, Schwärmer schlängelten und platzten, Räder gischten, jedes erst einzeln, dann gepaart, dann alle zusammen und immer gewaltsamer hintereinander und zusammen. Eduard, dessen Busen brannte, verfolgte mit lebhaft zufriedenem Blick diese feurigen Erscheinungen. Ottiliens zartem, aufgeregtem Gemüt war dieses rauschende, blitzende Entstehen und Verschwinden eher ängstlich als angenehm. Sie lehnte sich schüchtern an Eduard, dem diese Annäherung, dieses Zutrauen das volle Gefühl gab, daß sie ihm ganz angehöre”. (GOETHE, 1998b, p. 103). 18 “Sie hatte diesen Abend so viel erlebt, daß diese Entdeckung wenig Eindruck auf sie machte; sie hatte gesehen, wie der Freund sich aufopferte, wie er rettete und selbst

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No romance a água é um ambiente perigoso e aterrorizador. Para Gaston

Bachelard em A água e os sonhos (1942), a água é um destino, um elemento

transitório. É na água que se dá a tragédia final, nela também se expõem as

paixões. Ela é a responsável pela quase morte de um menino, convidado da

festa de Ottilie: “[...] Todos seguiram com os olhos o hábil nadador, que logo

alcançou o menino semimorto e o levou ao dique”19 (GOETHE, 1998a, p. 114);

pela morte do bebê por afogamento: “[...] tira a criança da água, mas os seus

olhos estão fechados: tinha parado de respirar”.20 (GOETHE, 1998a, p. 233).

Além disso, Ottilie se deixa à deriva em seu barco, no meio do lago, em

momentos de solidão.

Quantas vezes, ao alvorecer, a boa menina saía correndo da casa, onde outrora encontrara a sua bem-aventurança, em direção ao campo, à paisagem que lhe era antes tão indiferente. Mas mesmo em terra não gostava de ficar muito tempo. Saltava para o barco e remava até o centro do lago; lá, então, abria uma descrição de viagens e, deixando-se embalar pelo movimento das ondas, lia e sonhava com terras distantes, onde sempre acabava encontrando seu amigo; estava sempre próxima do coração dele, e ele do dela.21 (GOETHE, 1998a, p. 128).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     gerettet war. Diese wunderbaren Ereignisse schienen ihr eine bedeutende Zukunft, aber keine unglückliche zu weissagen”. (GOETHE, 1998b, p. 104). 19 “Jedes Auge begleitete ihn, der als geschickter Schwimmer den Knaben bald erreichte und ihn, jedoch für tot, an den Damm brachte”. (GOETHE, 1998b, p. 102) 20 “sie zieht das Kind aus dem Wasser, aber seine Augen sind geschlossen, es hat aufgehört zu atmen”. (GOETHE, 1998b, p. 226). 21 “Wie oft eilte das gute Mädchen mit Sonnenaufgang aus dem Hause, in dem sie sonst alle ihre Glückseligkeit gefunden hatte, ins Freie hinaus, in die Gegend, die sie sonst nicht ansprach. Auch auf dem Boden mochte sie nicht verweilen. Sie sprang in den Kahn und ruderte sich bis mitten in den See; dann zog sie eine Reisebeschreibung hervor, ließ sich von den bewegten Wellen schaukeln, las, träumte sich in die Fremde,

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Tudo isso acontece em um lago artificial, resultado da união de três lagos num

grande empreendimento planejado por Eduard. Algo que foi bastante

questionado pelo Capitão, por ter conhecimento da área e por ser um homem de

ação prática.

“Isolada de todos, flutua sobre o elemento traiçoeiro e inacessível”.22

(GOETHE, 1998a, p. 233). No momento da morte do bebê, a água é para

Ottilie o inimigo sobre o qual ela está a deriva sem conseguir retomar suas

forças, sem conseguir dominar tal situação.

Segundo o Dicionário de símbolos, “O afogamento é o castigo aplicado

a um poeta culpado de adultério”. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p.

21). N’As afinidades eletivas o bebê morre afogado. É necessário retirá-lo da

frente dos olhos. Ele denuncia o erro do casal unido em matrimônio, pois se

parece fisicamente com Ottilie e com o Capitão, e olha para o mundo como

quem já o entende.

Como mãe, Charlotte volta suas atenções para o bebê e envolve-se

muito com ele, como é normal que aconteça. Ottilie cuida do bebê ora como a

irmã mais velha, ora como a mãe do filho de Eduard. Esse cuidado é por

algumas vezes acompanhado de desatenção ou imprudência. Ela gosta de ler

enquanto caminha com o bebê em seu colo, escolhe entrar no barco com a

criança ainda que Charlotte não aprove isso. Um dado de sua irresponsabilidade

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     und immer fand sie dort ihren Freund; seinem Herzen war sie noch immer nahe geblieben, er dem ihrigen”. (GOETHE, 1998b, p. 117). 22 “Von allem abgesondert schwebt sie auf dem treulosen unzugänglichen Elemente”. (GOETHE, 1998b, p. 226).

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ou distração está no momento em que deixa o bebê cair no lago e caem também

o livro e o remo.

Ottilie vê seus olhos nos olhos do bebê, como em um espelho, isso é

uma suposta prova do amor de Eduard por ela. O olhar e os olhos são

elementos importantes nessa personagem; o que será tratado no próximo

capítulo. Eduard não tem nenhum sentimento pelo bebê, prefere que o Major23

o crie com Charlotte. Eduard entende que a partir da morte do bebê não existem

mais barreiras para a sua felicidade. Para o Major também: “tal sacrifício

parecia-lhe necessário para a felicidade de todos”. 24 (GOETHE, 1998, p. 237).

Ele considera que agora poderá ter um filho que, com maior direito, será

semelhante a ele.

A natureza é um ponto importante n’As afinidades eletivas. Nela reflete-

se o interior das personagens: seus sentimentos e suas emoções. A partir dessa

analogia, o narrador confidencia reflexões e sentimentos calados de Eduard,

Charlotte, Capitão e Ottilie. É uma leitura do olhar para dentro do outro, a partir

do que elas veem no jardim. É possível, como em um espelho, observar o

interior do castelo refletido no seu exterior: o jardim, assim como a natureza e o

tempo. O ciclo da natureza está ligado ao tempo e ao modo como as

personagens reagem às ações sofridas ou realizadas.

O tempo nessa obra é marcado de forma sutil, pelas estações do ano e

no jardim. Contudo, o romance contém uma demarcação do tempo no sentido

                                                                                                               23 O Capitão foi promovido a Major. “[Eduard] Antes de mais nada mandou chamar o Major [Nesse ínterim, o Capitão fora promovido a Major. (nota do tradutor)]”. (GOETHE, 1998a, p. 222). 24 “Ein solches Opfer schien ihm nötig zu ihrem allseitigen Glück”. (GOETHE, 1998b, p. 230).

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de que podemos acompanhá-lo: pela sequência de episódios, pelas mudanças

das estações do ano, com a presença ou a ausência de flores, as condições

climáticas e os tipos de vegetação na paisagem e no jardim, com o início e com

o término das obras nas propriedades e das tarefas as quais os amigos dedicam-

se; não há, tampouco, identificação de datas. A única informação precisa

fornecida ao leitor é o mês de abril, na primavera, em que a história se inicia.

Esse frescor que sentimos ao lavar as mãos no regato estende-se, expande-se, apodera-se da natureza inteira. Torna-se logo o frescor da primavera. A nenhum substantivo, mais intensamente que a água, pode-se associar o adjetivo primaveril. Para um ouvido francês, não existe vocábulo mais fresco que eaux printanières (águas primaveris). O frescor impregna a primavera por suas águas corredias: ele valoriza toda a estação da primavera. Ao contrário, o frescor é pejorativo no reino das imagens do ar. Um vento fresco provoca sensação de frio. Arrefece um entusiasmo. (BACHELARD, 2002, p. 34).

Voltamos às águas que determinam a paisagem no jardim, o ciclo da

natureza. As águas determinam também o frescor dos dias. Sabemos que esse

romance se inicia em um ambiente calmo, tranquilo e agradável.

Uma vez que o narciso floresce na primavera, em lugares úmidos, ele se prende a simbólica das águas e do ritmo das estações e, por conseguinte, da fecundidade, o que caracteriza sua ambivalência morte (sono) – renascimento. (BRANDÃO, 2010, p. 181-182).

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Na primavera está o início do ciclo da natureza. Para que a flora e a

fauna realize esse ciclo, a água é fundamental. Ela está no centro do romance.

Ela determina a vida e a morte. “A água como se dizia nos antigos livros de

química, ‘tempera os outros elementos’”. (BACHELARD, 2002, p. 109).

Para Kathrin Holzermayr Rosenfield 25 (1998, p. 272), existe uma

oposição entre o tempo determinado por gestos simbólicos, como as decisões, e

o tempo indeterminado, que aparece na imagem do fluir. Na citação abaixo,

observamos essa imagem do tempo que flui em oposição ao tempo

determinado, em uma exposição do Conde:

 

Um de meus amigos, cujo bom humor quase sempre se distinguia em sugestões para novas leis, afirmava que todo casamento devia durar apenas cinco anos. Ele dizia que esse número ímpar era belo e sagrado, e que tal período de tempo bastaria para se conhecer, ter alguns filhos, brigar e, o que é mais belo, se reconciliar. Ele costumava exclamar: ‘Como decorreriam felizes os primeiros tempos! Dois ou três anos, no mínimo, passar-se-iam com prazer. Então, um dos cônjuges provavelmente se empenharia para que essa situação durasse mais tempo, e as amabilidades aumentariam à medida que se aproximasse o momento da despedida. O cônjuge indiferente, e até mesmo descontente, seria aquietado e reconquistado, através dessa conduta. Esqueceriam o fluir do tempo, tal como se esquecem as horas passadas em boa companhia, e teriam uma agradável surpresa ao notarem, somente depois de decorrido o prazo, que tacitamente já o haviam prorrogado! 26 (GOETHE, 1998a, p. 87).

                                                                                                               25 Nas notas da terceira edição, da editora Nova Alexandria, d’As afinidades eletivas. 26 “Einer von meinen Freuden, dessen gute Laune sich meist in Vorschlägen zu neuen Gesetzen hervortat, behauptete: eine jede Ehe solle nur auf fünf Jahre geschlossen werden. Es sei, sagte er, dies eine schöne, ungrade heilige Zahl und ein solcher Zeitraum eben hinreichend, um sich kennen zu lernen, einige Kinder heranzubringen, sich zu entzweien und, was das schönste sei, sich wieder zu versöhnen. Gewöhnlich rief er aus: wie glücklich würde die erste Zeit verstreichen! Zwei, drei Jahre wenigstens gingen vergnüglich hin. Dann würde doch wohl dem einen Teil daran

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No segundo caso, como observa Rosenfield (1998, p. 274), a manobra

de Eduard suspende a situação das duas mulheres em um tempo e em um

espaço que pertencem à paixão – universo irreal da ilusão, onde não valem

mais as leis e as relações objetivas da sociedade.

Na citação abaixo temos um fragmento de uma carta que Eduard

escreve a Charlotte, comunicando sua decisão de sair de suas propriedades para

que Ottilie continuasse no castelo sob os cuidados de sua esposa:

 

Gostaria que ela ficasse com você e não com estranhos. Cuide dela, tratando-a normalmente, como até agora, cada vez com mais carinho, afeto e amizade. Prometo não tentar com ela nenhuma relação às ocultas. Deixe-me ignorar, por algum tempo, como vivem; quero imaginar o melhor. Imaginem o mesmo de mim. Só lhe peço uma coisa, do mais fundo de meu ser: não faça nenhuma tentativa de levar Ottilie para outro lugar ou colocá-la em um novo ambiente. Fora da área deste castelo, deste parque, confiada a estranhos, ela me pertencerá, e apossar-me-ei dela. Se respeitar a minha afeição, os meus desejos e as minhas dores; se levar em conta a minha ilusão, as minhas esperanças, não rejeitarei a cura, caso ela venha a ocorrer.27 (GOETHE, 1998a, p. 121).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     gelegen sein, das Verhältnis länger dauern zu sehen, die Gefälligkeit würde wachsen, je mehr man sich dem Termin der Aufkündigung näherte. Der gleichgültige, ja selbst der unzufriedene Teil würde durch ein solches Betragen begütigt und eingenommen. Man vergässe, wie man in guter Gesellschaft die Stunden vergisst, dass die Zeit verfliesse, und fände sich aufs angenehmste überrascht, wenn man nach verlaufenem Termin erst bemerkte, dass er schon stillschweigend verlängert sei”. (GOETHE, 1998b, p. 73). 27 “Bei dir will ich sie wissen, nicht unter fremden Menschen. Sorge für sie, behandle sie wie sonst, wie bisher, ja nur immer liebevoller, freundlicher und zarter. Ich verspreche kein heimliches Verhältnis zu Ottilien zu suchen. Lasst mich lieber eine Zeitlang ganz unwissend, wie ihr lebt; ich will mir das Beste denken. Denkt auch so von mir. Nur, was ich dich bitte, auf das innigste, auf das lebhafteste: mache keine Versuch Ottilien sonst irgendwo unterzugeben, in neue Verhältnisse zu bringen. Ausser dem Bezirk deines Schlosses, deines Parks, fremden Menschen anvertraut, gehört sie mir und ich werde mich ihrer bemächtigen. Ehrst du aber meine Neigung, meine Wünsche, meine Schmerzen; schmeichelst du meinem Wahn, meinen

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O tempo n’As afinidades eletivas apresenta características do tempo na

novela. Notamos isso ao aplicarmos à nossa obra de análise a definição de

Massaud Moisés para o tempo próprio da novela:

Tempo histórico, marcado pelo relógio ou as convenções sociais, que impõe aos eventos uma ordenação horizontal segundo uma rígida causalidade. Sempre no presente, assume especial importância, na medida em que o novelista dele se utiliza para produzir os efeitos de surpresa na mente do leitor e criar a ilusão de expectativas novas. De onde uma paradoxal sensação de intemporalidade. (MOISES, 1974, p. 364).

Ocorrem ainda no romance duas formas de tempo ligadas à paixão. Em

uma apagam-se as determinações temporais e a paixão torna-se imperativa para

as personagens – “o tempo lhes começava a ser indiferente”. 28 (GOETHE,

1998a, p. 68) –; é o sinal da perda dos limites e o início do transbordamento da

paixão. As horas do relógio já não influenciam suas vidas. Segundo Bourneuf e

Ouellet (1976, p. 179), em O universo do romance, isso é a rejeição do tempo

mensurável mecanicamente. As quatro personagens perdem a noção do tempo,

preocupam-se apenas com a satisfação da boa companhia.

Só então o Capitão viu que havia esquecido de dar corda em seu cronometro, pela primeira vez desde muitos anos; e pareceram, se não perceber, pelo menos não pressentir que o

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     Hoffnungen, so will ich auch der Genesung nicht widerstreben, wenn sie sich mir anbietet”. (GOETHE, 1998b, p. 109). 28 “die Zeit anfange ihnen gleichgültig zu werden”. (GOETHE, 1998b, p. 53).

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tempo lhes começava a ser indiferente29. (GOETHE, 1998a, p. 68).

“Desde o início as personagens estão sob o encantamento das afinidades

eletivas”. (BENJAMIN, 2009, p. 26). Elas estão submetidas a um espaço

delimitado, a um tempo que age sobre elas, a escolhas que não ofendam os

desígnios religiosos e nem a moral da sociedade. Estão para as suas próprias

ações como autômatos, mas quando não podem reagir ao resultado de suas

afinidades eletivas, essas personagens, que já pareciam não ter vida, preferem

morrer.

O espaço descrito no núcleo desse romance é bastante restrito. Não são

dadas informações precisas sobre qual é a região onde se passa a história,

sabemos apenas que são as propriedades de Eduard. Wolfgang Staroste

distingue quatro espaços significativos dentro do romance: o velho castelo com

seus jardins; a colina rochosa com a cabana de musgo; o cemitério com a

capela; a lagoa com o moinho e os plátanos. (ROSENFIELD, 1998, p. 267).

Podemos ver alguns desses espaços que fazem parte do romance no

trecho abaixo, em que o jardineiro, dirigindo-se a Eduard, indica onde está

Charlotte:

Está no outro lado, nas novas plantações – respondeu o jardineiro –; a cabana revestida de musgo que ela mandou construir na escarpa do rochedo defronte do castelo ficará

                                                                                                               29 “Da zeigte sich den, daß der Hauptmann vergessen hatte seine chronometrische Sekundenuhr aufzuziehen, das erstemal seit vielen Jahren; und sie schienen, wo nicht zu empfinden, doch zu ahnen, daß die Zeit anfange ihnen gleichgültig zu warden”. (GOETHE, 1998b, p. 53)

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pronta hoje. Tudo ficou muito bonito e deve agradar a Vossa Senhoria. Tem-se uma visão excelente: lá embaixo, o vilarejo; um pouco à direita, a igreja, cuja vista quase ultrapassa as suas torres e, em frente, o castelo e os jardins.30 (GOETHE, 1998a, p. 21).

Embora seja comum no romance a paisagem urbana, visto que esse gênero

literário nasce na burguesia e é escrito para ela, isso não vale para a obra em

análise. Para Benjamin (1996, p. 202), “O romance, cujos primórdios remontam

à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia

ascendente, os elementos favoráveis ao seu crescimento”.

Contudo, a geografia d’As afinidades eletivas fecha-se no campo, no

lugar escolhido para o idílio de Charlotte e Eduard.

O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes. O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda perplexidade de quem a vive. [...] Quando no correr dos séculos se tentou ocasionalmente incluir no romance algum ensinamento – talvez o melhor exemplo seja Wilhelm Meister Wanderjahre (Os anos de peregrinação de Wilhelm Meister) – , essas tentativas resultaram sempre na transformação da própria forma romanesca. O romance de formação (bildungsroman), por

                                                                                                               30 “Drüben in den neuen Anlagen, versetzte der Gärtner. Die Mooshütte wird heute fertig, die sie an der Felswand, dem Schlosse gegenüber, gebaut hat. Alles ist recht schön geworden und muss Euer Gnaden gefallen. Man hat einen vortrefflichen Anblick: unter das Dorf, ein wenig rechter Hand die Kirche, über deren Turmspitze man fast hinwegsieht; gegenüber das Schloss und die Gärten”. (GOETHE, 1998b, p. 3).

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outro lado, não se afasta absolutamente de estrutura fundamental do romance. Ao integrar o processo da vida social na vida de uma pessoa, ele justifica de modo extremamente frágil as leis que determinam tal processo. A legitimação dessas leis nada tem a ver com sua realidade. No romance de formação, é essa insuficiência que está na base da ação. (BENJAMIN, 1996, p. 201-202).

Ao contrário dos romances que se desenrolam no campo, com

características de imutabilidade da paisagem e das estruturas sociais, As

afinidades eletivas está em constante transformação. Passa por reformas e por

novas construções. Demole-se o existente para experimentar o novo. As

personagens transferem-se do castelo para a nova casa no alto da colina.

Socialmente, também existem transformações com a burguesia ascendente e a

aristocracia decadente. Profissionalmente, temos como exemplo a promoção do

Capitão para Major.

O Capitão é a personagem que vem para mostrar suas habilidades. Sua

característica principal é a de ser um homem de ação. Isso pode ser notado pelo

modo como ele usa a nova tecnologia a fim de medir, de forma precisa e

rápida, as propriedades; da maneira como analisa os projetos de obras que serão

realizadas ou que já estão em andamento; da forma por meio da qual indica

maneiras mais eficazes de realizar o que está nos planos e o que já está sendo

concretizado.

Isso tudo é feito por ele de forma ponderada e objetiva. Outra função do

Capitão no romance é trazer aos seus amigos conhecimentos científicos e

conteúdos atuais em momentos de prazer, como nas noites de leitura:

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– Não se deviam resolver tais coisas com palavras – retrucou o Capitão. – Como já disse, logo que possa lhe mostrar as próprias experiências, tudo ficará mais claro e mais agradável. Agora teria de estender-me com horríveis termos técnicos que não lhe dariam ideia alguma do fato. É preciso ver agirem diante dos próprios olhos esses seres aparentemente mortos, mas internamente sempre prontos para a ação, e observar com atenção como eles se procuram uns aos outros, como se atraem, se juntam, se destroem, se devoram, se consomem, ressurgindo depois da união mais íntima numa forma revigorada, nova e inesperada: só então lhes atribuímos uma vida eterna, até mesmo sentido e raciocínio, pois percebemos que nossos sentidos mal conseguem observá-los corretamente, e nossa razão mal basta para compreendê-los.31 (GOETHE, 1998a, p. 54).

Em outras palavras, o Capitão seria o protótipo daquele que age guiado

pela Lógica, pela tecnologia, pela habilidade de aplicar os conhecimentos

científicos da época. Por isso, tal personagem representaria a importância da

ciência para a sociedade e, principalmente, para Goethe.

Ainda quanto ao seu espaço, as personagens transitam não só pelos

limites das propriedades de Eduard, mas também além deles. Movimentos de

partidas e chegadas, que, ora retiram as personagens do ambiente principal –

tranquilo e idealizado – ora, em sentido contrário, trazendo-as de volta dos mais

diversos ambientes, tais como o internato, a pousada, a propriedade vizinha –

também pertencente a Eduard, ali ele fica estrategicamente para se reaproximar                                                                                                                31 “Man sollte dergleichen, versetzte der Hauptmann, nicht mit Worten abtun. Wie schon gesagt! sobald ich Ihnen die Versuche selbst kann, wird alles anschaulicher und angenehmer werden. Jetzt müsste ich Sie mit schrecklichen Kunstworten hinhalten, die Ihnen doch keine Vorstellung gäben. Man muss diese totscheinenden und doch zur Tätigkeit innerlich immer bereiten Wesen wirkend vor seinen Augen anziehen, ergreifen, zerstören, verschlingen, aufzehren und sodann aus der innigsten Verbindung wieder in erneuter, neuer, unerwarteter Gestalt hervortreten: dann traut man ihnen erst ein ewiges Leben, ja wohl gar Sinn und Verstand zu beobachten, und unsre Vernunft kaum hinlänglich, sie zu fassen”. (GOETHE, 1998b, p. 38).

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de Ottilie e de Charlotte –. Além disso, o Conde e a Baronesa pertencem ao

espaço urbano e trazem de lá o que há de novo, o que pode ser notado nos

trechos abaixo:

Os recém-chegados, vindos diretamente do mundo, como se podia ver pelas suas roupas, seus objetos e tudo que os cercava, de certo modo faziam uma espécie de contraste com os nossos amigos, com o seu comportamento campestre e as suas paixões secretas [...].

[...] as mulheres [...] examinando os mais recentes figurinos e moldes para vestidos, chapéus e coisas semelhantes, enquanto os homens se ocupavam das novas carruagens e dos cavalos que foram apresentados, falando logo em seguida de negócios e trocas32. (GOETHE, 1998a, p. 85-86).

É mencionada uma amiga da Baronesa que mora na cidade e adoraria

receber Ottilie, como se fosse sua segunda filha, para instruí-la e dar à menina

novos ares. Além dessas marcas, as personagens têm prazer em lembrar-se da

época em que Charlotte e Eduard, mais jovens, formavam o casal mais lindo da

corte. “Quando dançavam, todos os olhares se dirigiam para os dois, e como

                                                                                                               32 “Die Neueintretenden, welche unmittelbar aus der Welt kamen, wie man sogar an ihren Kleidern, Gerätschaften und allen Umgebungen sehen konnte, machten gewissermaßen mit unsern Freunden, ihrem ländlichen und heimlich leidenschaftlichen Zustande eine Art von Gegensatz […] Die Frauen zogen sich auf ihren Flügel zurück und fanden daselbst, indem sie sich mancherlei vertrauten und zugleich die neuesten Formen und Zuschnitte von Frühkleidern, Hüten und dergleichen zu mustern anfingen, genugsame Unterhaltung, während die Männer sich um die neuen Reisewagen, mit vorgeführten Pferden, beschäftigten und gleich zu handeln und zu tauschen anfingen”. (GOETHE, 1998b, p. 71-72).

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eram admirados por se verem somente um ao outro”33. (GOETHE, 1998a, p.

89).

O tempo e o espaço não são exatamente determinados e demarcados,

mesmo por que todo o romance desenrola-se com características de uma

experiência científica. Para que as relações aconteçam necessita-se apenas de

um local – um tubo de ensaio, ou mais amplo, um laboratório –, e isso o

romance nos informa: é o equivalente ao castelo e a área das propriedades de

Eduard. O tempo é a duração da experiência, é o momento em que se agrupam

os elementos em um tubo de ensaio agita-os e aguarda-se o resultado das

associações e das alterações: o equivalente a atração e a repulsão sofrida pelas

quatro personagens.

Nas personagens vemos o individualismo, pois são todas voltadas para o

seu ‘eu’: “o romântico sente-se centro do Universo; seu ego constitui a única

paisagem que lhe interessa, de tal forma que a Natureza se lhe afigura mera

projeção do seu mundo interior”. (MOISES, 1974, p. 463). Eduard e Ottilie são

essencialmente personagens com características românticas. Egocêntricos,

guiam suas vidas por seus desejos e por seu sentimento compulsivo. Livram-se

de suas obrigações perante a sociedade e perante as leis. Não se importam com

as relações parentais nem com o matrimônio. Querem simplesmente viver o

novo sentimento que os liga.

Tal egocentrismo explica a presença de um componente feminóide na personalidade romântica, traduzida num

                                                                                                               33 “Wenn Sie beide zusammen tanzten, aller Augen waren auf Sie gerichtet, und wie umworben beide, indem Sie sich nur ineinander bespiegelten!” (GOETHE, 1998b, p. 75).

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dandismo exagerado: à Razão clássica, opõem o sentimento; colocam as razões do coração em lugar do racionalismo, o sentimentalismo em vez da especulação ou investigação ‘científica’; cultuam a imaginação desenfreada. Introvertidos, terminam por manifestar as incongruências próprias dos embates sentimentais; jogados entre sentimentos nem sempre coerentes, derivam para atitudes paradoxais, anárquicas, oscilantes, peculiares à sensibilidade feminina e dos adolescentes. (MOISES, 1974, p. 463).

São personagens melancólicas, que fora do amor encontram o tédio, o

desespero e o suicídio. Sentem-se bem admirando os lagos e as paisagens

elaboradas pela natureza. Para a relação com a natureza podemos mencionar,

tanto no início do romance, Eduard animado com os novos enxertos dispostos

em troncos no seu jardim, quanto na segunda parte do romance, Ottilie sentada

relacionando sua tristeza com a paisagem em frente à casa.

O idílio, que é a proposta de vida inicial de Eduard e Charlotte, também

é, em sua essência, um quadro. Segundo o modelo relatado por Charlotte a

Eduard:

Desse modo começou a nossa vida no campo. Assumi o interior, e você o exterior e o que se refere ao conjunto. Estou disposta a segui-lo em tudo e viver somente para você; vamos tentar, pelo menos durante algum tempo, para ver até que ponto nos sairemos bem desta maneira.34 (GOETHE, 1998a, p. 25).

                                                                                                               34 “So haben wir unsern ländlichen Aufenthalt angetreten. Ich übernahm das Innere, du das äußere und was ins Ganze geht. Meine Einrichtung ist gemacht, dir in allem entgegenzukommen, nur für dich allein zu leben; laß uns wenigstens eine Zeitlang versuchen, inwiefern wir auf diese Weise miteinander ausreichen”. (GOETHE, 1998b, p. 7-8).

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Wolfgang Kayser ao tratar das “Atitudes e formas do épico” em Análise

e interpretação da obra literária (1948) discorre sobre o espaço na novela:

Numa forma breve o espaço seria entendido como sector próprio fechado. Resultaria um quadro. ‘Quadro’, ou antes ‘quadrinho’, chama-se em grego ‘eidyllion’, e o Idílio é a forma da realização poética que nos seria lícito esperar. (KAYSER, 1976, p. 395).

É, claramente, o desejo de se colocar em um quadro, tanto pela beleza

que o compõe, como pela moldura em que se fecha. Deste modo, isolar-se da

sociedade para experimentar uma vida ideal.

Grego eidyllion, pequeno quadro. Primitivamente, o termo ‘idílio’ designava todo poema curto de vário assunto, descritivo, narrativo, dramático, épico ou lírico. Com tal sentido, Teócrito, poeta grego do século III a.C., empregou-o para rotular os seus poemas. E visto que os de tema bucólico se fizeram mais conhecidos, o vocábulo ‘idílio’ passou a ser entendido como sinônimo de poesia pastoril, e Teócrito, o supremo mestre da matéria [...]. (MOISES, 1974, p. 279).

Essa é a situação das personagens na área das propriedades de Eduard

com a casa no alto da colina, o castelo, a capela, o moinho e os plátanos.

Dentro do quadrilátero delimitado chamado de “as propriedades de Eduard” os

ambientes são fechados em quatro paredes, onde as personagens estão

inseridas, mensuradas e delimitadas.

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Como a cena, também o quadro é uma unidade que pode abranger diversas formas do discurso; é certo que a descrição tem sempre a preferência e, muitas vezes, ela, só por si, formar um quadro. O que distingue seu caráter fechado, a plenitude objetiva, visualidade, isolamento temporal, ou antes, estática, e, por último, uma riqueza especial de significado. Como na Lírica, o quadro facilmente se transforma em símbolo. Por causa da estática e devido ainda à tendência para encaminhar o movimento a profundidades insondáveis em vez de o dirigir para frente, o quadro representa na narrativa, geralmente, papel inferior ao que tem, por exemplo, na lírica. Mas, por outro lado, sempre que surge em todo o seu esplendor, é de efeito surpreendente. É em todo o caso de notar quão raras vezes o quadro é utilizado para o fecho de romances. Em alguns, no entanto, encontramos como fecho o quadro final. (KAYSER, 1976, p. 193-194).

No caso d’As afinidades eletivas temos, sim, como exemplo o quadro

final exposto pelo narrador nas últimas linhas do romance:

E, assim, os dois amantes descansam lado a lado. A paz paira sobre a sua morada; imagens de anjos serenos, seus afins, miram-nos da cúpula; e que momento agradável aquele em que um dia despertarão juntos!35 (GOETHE, 1998a, p. 265).

Os quatro lados do quadrado também podem ser vistos no número de

personagens. Em relação ao quadrado: “seu caráter estático e severo,

considerando do ângulo da psicologia da forma, explica sua utilização tão

frequente no que quer que signifique organização e construção” (CIRLOT,

                                                                                                               35 “So ruhen die Liebenden nebeneinander. Friede schwebt über ihrer Stätte, heitere verwandte Engelsbilder schauen vom Gewölbe auf sie herab, und welch ein freundlicher Augenblick wird es sein, wenn sie dereinst wieder zusammen erwachen”. (GOETHE, 1998b, p. 261).

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1984, p. 481). Vemos isso na ligação implícita da construção do caráter de

Charlotte e do Capitão que têm em comum as seguintes características:

estáticos, severos consigo mesmos, ligados à organização da vida, tanto

individualmente como nas relações interpessoais. Além disso, interessam-se

por manter o já existente nas suas relações e também nas propriedades. Ambos

funcionam como base e sustento para as demais personagens.

As formas ímpares, tais como três, cinco, triângulo e pentágono, que são

mais dinâmicas e vulneráveis e relacionam-se a fenômenos do mundo

espiritual, não estão presentes no romance. Isso porque as formas pares, tais

como quatro, seis, quadrado e hexágono são estáticas, firmes e definidas e

relacionam-se ao material, ao intelectual e ao racional, que são temas caros ao

romance. Isso consta na definição do verbete “quadrado” do Dicionário de

Símbolos de Juan-Eduardo Cirlot (1984, p. 481). Mais uma vez mencionamos o

material em detrimento do espiritual e do emocional, como nas definições do

Dicionário de nomes abordadas anteriormente.

O quadrado está ligado ao espaço, o círculo ao tempo (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2006, p. 751). N’As afinidades eletivas, em alguns

momentos, o tempo é sublimado, por exemplo, na apresentação ou mesmo na

preparação dos quadros vivos, o tempo mais uma vez é imensurável. Esses são

momentos de criatividade, de distração e de contemplação. O tempo enquadra

as personagens, elas não conseguem detê-lo ou dominá-lo. O espaço é quadrado

e determinado, ainda que não seja especificado.

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As obras pictóricas, escolhidas pelo grupo de personagens que se dedica

a essa distração, têm as dimensões fixadas por molduras e tais obras encenadas

têm as quatro paredes do teatro.

Outro quadrado possível n’As afinidades eletivas é o quiasmo:

Grego khiasmós, disposto em cruz; o termo deriva da letra grega X (qui). Espécie de antítese, o quiasmo consiste no cruzamento de grupos sintáticos paralelos, de forma que um vocábulo do primeiro se repete no segundo, em posição inversa (A B x B A). (MOISES, 1974, p. 426).

Um exemplo ilustrativo de quiasmo é a dor de cabeça que Ottilie e

Eduard sentem frequentemente. Sofrem de uma mesma perturbação: em Ottilie,

a dor manifesta-se no lado esquerdo, e em Eduard no lado direito. Essa dor de

cabeça é mencionada por recorrentes vezes ao longo da narrativa. Ela aparece

nos capítulos três, cinco, seis e oito da primeira parte, e nos capítulos onze e

dezesseis da segunda parte do romance.

Essa semelhança entre as duas personagens cria um “X” que estabelece

uma simetria entre elas, como uma imagem refletida em um espelho. Podemos

observar essa formação nas palavras de Eduard:

É bastante amável da parte de sua sobrinha ter uma dorzinha de cabeça do lado esquerdo; às vezes, a tenho do lado direito. Se ocorrerem juntas e estivermos sentados um em frente ao outro, eu apoiado no cotovelo direito, ela no esquerdo, as cabeças pendidas para lados diferentes e

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encostadas nas mãos, formaremos um belo quadro!” 36 (GOETHE, 1998a, p. 58-59, grifo nosso).

Os momentos em que as personagens fazem leituras, ou seja, leitura

dentro da leitura do romance, também podem ser vistos como enquadramentos.

A tendência de Eduard para a leitura coletiva em voz alta servia de pretexto ocasional, mas sempre oportuno, para essas distrações. Ele possuía uma voz profunda e harmoniosa e outrora havia sido admirado e apreciado por causa de suas declamações, cheias de vida e sentimento, de obras poéticas e oratórias. Agora eram outros assuntos que o ocupavam, outros escritos que lia em voz alta, preferindo desde há algum tempo justamente as obras de Física, Química e técnicas.37 (GOETHE, 1998a, p. 47).

Em toda primeira parte do romance acontecem os experimentos e as

reações químicas que interligam as relações humanas. Na segunda parte da

obra, os homens partem e tudo cai numa rotina forçosamente tranquila e

ensimesmada ou até entristecida. Assim como, nas novelas de cavalaria em que

os cavaleiros afastam-se cedendo lugar a outros que protagonizarão suas

                                                                                                               36 “Es ist doch recht zuvorkommend vor der Nichte, ein wenig Kopfweh auf der linken Seite zu haben; ich habe es manchmal auf der rechten. Trifft es zusammen und wir sitzen gegeneinander, ich auf den rechten Ellbogen sie auf den linken gestützt, und die Köpfe nach verschiedenen Seiten in die Hand gelegt, so muss das ein Paar artige Gegenbilder geben”. (GOETHE, 1998b, p. 43).

37 “Zufälligen, aber immer willkommenen Anlaß zu solchen Unterhaltungen gab Eduards Neigung, der Gesellschaft vorzulesen. Er hatte eine sehr wohlklingende, tiefe Stimme und war früher wegen lebhafter, gefühlter Rezitation dichterischer und rednerischer Arbeiten angenehm und berühmt gewesen. Nun waren es andre Gegenstände, die ihn beschäftigten, andre Schriften, woraus er vorlas, und eben seit einiger Zeit vorzüglich Werke physischen, chemischen und technischen Inhalts”. (GOETHE, 1998b, p. 31).

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atuações. Eduard e o Capitão também são substituídos por terceiros e assim “a

novela vai-se formando, portanto, da agregação de unidades dramáticas

permanentemente abertas”. (MOISES, 1974, p. 363). Essa é também uma

característica d’As afinidades eletivas que se aproxima da novela.

A sequência de visitantes e acompanhantes que preenchem os dias de

Charlotte e Ottilie, após a partida de Eduard e do Capitão, dá-se realmente

nesse formato. Cada um cumpre seu papel e deixa as propriedades. Esses

visitantes caracterizam uma interferência do mundo externo, algo contrário à

proposta inicial do idílio do casal. Os visitantes formam novos quadrados,

novas narrativas fechadas dentro da narrativa maior.

Na segunda parte do romance, compartilham da convivência de

Charlotte e Ottilie: o jovem advogado, no capítulo um, que vem em defesa de

seus clientes que se sentem prejudicados pelas mudanças feitas no cemitério; o

arquiteto, que já estava presente no final da primeira parte e deixa a companhia

das suas amigas somente no capítulo 7, depois da chegada do assistente da

diretora do internato no final do capítulo 6. Nesse período, as conversas são

profundas sobre as relações humanas. O assistente permanece até o capítulo 9,

quando nasce o bebê de Charlotte. Ao longo dos capítulos 4 e 5, Luciane, filha

de Charlotte, organiza atividades de entretenimento no castelo e nas

redondezas. Nos capítulos 10 e 11, os acontecimentos transcorrem na

companhia do lorde inglês, com seu acompanhante, que narra às anfitriãs a

novela “Os vizinhos singulares”. No capítulo 12, inicia-se o movimento de

retorno do Major e de Eduard para a reaproximação final das quatro

personagens.

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Ao longo de todo capítulo 7, estão descritos interessantes diálogos

acerca da educação, da pedagogia, dos gêneros e das relações humanas. O

assistente é bem articulado, especialmente no que trata da formação da

juventude. Mas o narrador, apesar de permitir ao assistente boas páginas para as

suas reflexões e de elogiar seu conhecimento e seu cuidado com relação a

Ottilie, imprime neste homem inteligente e competente alguns sinais de

preconceito, de intransigência tanto no diário de Ottilie, como no trecho a

seguir que faz parte da narrativa maior:

Não disse absolutamente nada sobre o quadro vivo que o acolhera na chegada. Todavia, quando lhe mostraram com toda satisfação a igreja, a capela e tudo o que se relacionava com elas, não pôde dissimular a sua opinião, nem seu modo de pensar. – Para mim – disse ele –, essa aproximação, essa mistura do sagrado com o profano não me agrada de maneira alguma, tampouco me agrada que dediquem, consagrem e ornamentem certos recintos especiais, para fomentar e manter um sentimento de devoção. Nenhum ambiente, mesmo o mais vulgar, deve perturbar o nosso sentimento de Deus, que pode nos acompanhar em toda parte transformar qualquer lugar num templo.38 (GOETHE, 1998a, p. 184).

O assistente se coloca, então, contrário à conduta do arquiteto. Esta

personagem também recebeu boas palavras do narrador, elogios à sua

                                                                                                               38 “Von dem lebendigen Gemälde, das ihn bei seiner Ankunft empfing, sprach er gar nicht. Als man ihm hingegen Kirche, Kapelle und was sich darauf bezog, mit Zufriedenheit sehen ließ, konnte er seine Meinung, seine Gesinnungen darüber nicht zurückhalten. "Was mich betrifft", sagte er, "so will mir diese Annäherung, diese Vermischung des Heiligen zu und mit dem Sinnlichen keineswegs gefallen, nicht gefallen, daß man sich gewisse besondere Räume widmet, weihet und aufschmückt, um erst dabei ein Gefühl der Frömmigkeit zu hegen und zu unterhalten. Keine Umgebung, selbst die gemeinste nicht, soll in uns das Gefühl des Göttlichen stören, das uns überallhin begleiten und jede Stätte zu einem Tempel einweihen kann”. (GOETHE, 1998b, p. 174)

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objetividade, conhecimento, capacidade e ação. Isso durante os capítulos de que

participou da rotina de Charlotte e de Ottilie, mas quando decide deixar as

amigas, o narrador diminui sua destreza com indicações de ciúmes e inveja, no

primeiro parágrafo do capítulo 7:

Como finalmente precisava partir e desejasse o melhor às suas protetoras, o arquiteto se alegrou em vê-las na boa companhia do estimado assistente; todavia, após todo esse tempo atraindo para si a atenção delas, foi-lhe de certo modo penoso ver-se substituído tão rapidamente e – como deveria parecer a sua modéstia – tão bem, tão perfeitamente. Hesitara muitas vezes, mas a partida era inadiável, pois não queria presenciar agora aquilo que teria de suportar depois de seu afastamento39. (GOETHE, 1998a, p. 183).

O arquiteto, o assistente e o narrador são na verdade devotos de Ottilie, e é bem

provável que seja esse o ponto incômodo entre essas três personagens.

Ignace Feuerlicht em Der „Erzähler” und das „Tagebuch“ in Goethes

„Wahlverwandtschaften“ (1986) relata que há mais ou menos cinquenta anos

veio à luz uma nova visão sobre As afinidades eletivas. Um dos maiores

conhecedores de Goethe, Paul Stöcklein, em Wege zum späten Goethe (1949),

acreditou ter descoberto uma importante figura do romance: o narrador pessoal

(Persönlicher Erzähler). Os pesquisadores que aceitam que esse narrador aja de

forma pessoal, abordam ora as suas boas, ora as suas más qualidades. Assim,

                                                                                                               39 “Insofern der Architekt seinen Gönnerinnen das Beste wünschte, war es ihm angenehm, da er doch endlich scheiden mußte, sie in der guten Gesellschaft des schätzbaren Gehülfen zu wissen; indem er jedoch ihre Gunst auf sich selbst bezog, empfand er es einigermaßen schmerzhaft, sich so bald und, wie es seiner Bescheidenheit dünken mochte, so gut, ja vollkommen ersetzt zu sehen. Er hatte noch immer gezaudert, nun aber drängte es ihn hinweg; denn was er wollte sich nach seiner Entfernung mußte gefallen lassen, das wollte er wenigstens gegenwärtig nicht erleben”. (GOETHE, 1998b, p. 173).

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observando as posições do narrador, ele se torna tanto um analista da psique,

um intelectual, quanto um conhecedor dos sentimentos e das atitudes das

personagens.

Seguindo essa teoria, o narrador interfere no texto de forma pessoal.

Dirige a ação das personagens segundo a sua afeição ou desafeição por elas.

Ele sabe muito sobre essas personagens e convida o leitor a observá-las. Para

isso usa a primeira pessoa do plural. Em suas palavras conhecemos os

pensamentos das personagens, a relação existente entre elas, seus interesses,

seus planos, suas qualidades e seus defeitos.

[...] o ‘eu’ se coloca além da convenção e tenta destruí-la devolvendo a narrativa à falsa naturalidade de uma confidência (tal é o aspecto arrevesado de algumas narrativas gidianas). Da mesma forma, o emprego do ‘ele’ romanesco implica duas éticas opostas: pois que a terceira pessoa do romance representa uma convenção indiscutível, ela seduz os mais acadêmicos e os menos atormentados tanto quanto os outros, que julgam finalmente a convenção necessária para o frescor de sua obra. (BARTHES, 2004, p. 32).

Para Feuerlicht (1986), tratamos o narrador como o autor do romance, o

narrador-autor. Nele acreditamos ver um aristocrata. Termina com cordialidade

um capítulo e começa outro de forma elegante com reflexões. Tanto o narrador

do romance, o da novela e o do diário, como as personagens têm o mesmo

padrão intelectual, o mesmo tom dado aos diálogos se repete na narração. Em

todos eles identificamos características goethianas.

O narrador admira Eduard ou o inveja. Dá ao Capitão serenidade e

independência. Luciane não é querida pelo narrador ou será que ele se diverte

com sua crueldade juvenil? Tal aspecto contribui com a sua preferência por

Ottilie, já que Luciane é declaradamente sua rival. Ela também é apresentada no

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romance por meio da carta da diretora do internato, como uma excelente aluna,

mas nem isso a livra da ironia do narrador. Como observamos em suas palavras

no trecho seguinte:

Talvez não houvesse maldade verdadeira neste ímpeto destrutivo, provavelmente fosse estimulada por um habitual impulso egoísta; em sua [de Luciane] relação com Ottilie, porém mostrava sempre uma amargura autêntica. Via com desprezo a atividade tranquila e ininterrupta da boa menina, admirada e enaltecida por todos; quando falaram do zelo dedicado de Ottilie pelos jardins e estufas, ela não somente fez troça disso [...].40 (GOETHE, 1998a, p. 166).

Charlotte e Ottilie estão mais próximas do narrador. Ele contempla

Ottilie com os olhos cheios de desejo. Quanto a Charlotte, a aborda com

serenidade e respeito em meio ao seu rigor diante da vida. Conhecemos uma

única característica física de Charlotte pelo olhar do Conde: os mais belos pés,

o que podemos ligar a base, sustento, direção, ação. De Ottilie o narrador nos

apresenta características físicas: as mais belas mãos, o que corresponde a

delicadeza, cuidado, toque e também ação. E como já foi abordado

anteriormente, fala sobre seus olhos. Em O narrador Walter Benjamin discorre

sobre o ato da narração:

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos no mesmo campo. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho

                                                                                                               40 “Eigentliche Bosheit war vielleicht nicht in diesem verneinenden Bestreben; ein selbstscher Mutwille mochte sie gewöhnlich anreizen, aber eine wahrhafte Bitterkeit hatte sich in ihrem Verhältnis zu Ottilien erzeugt. Auf die ruhige ununterbrochene Tätigkeit des lieben Kindes, die von jedermann bemerkt und gepriesen wurde, sah sie mit Veranchtung herab; und als zur Sprache kam, wie sehr sich Ottilie der Gärten und der Treibhäuser annehme, spottete sie nicht allein darüber [...]”. (GOETHE, 1998b, p. 154-155).

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tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) (BENJAMIN, 1996, p. 220-221).

O narrador do romance atribui a autoria do diário a Ottilie. Trabalho da

alma, do olho e da mão. É o narrador que denomina o diário como sendo de

Ottilie e é ele mesmo quem questiona essa autoria. Ainda que chame a atenção

para a revelação do que Ottilie secreta em sua alma – intimidade –, que discorra

sobre os seus olhos – reflexo do mundo – e as suas mãos – ação e devaneio.

Benjamin fala também do trabalho manual enquanto ouvimos uma narração –

tecer, costurar, cozinhar, moldar.

Para alguns conjuntos de aforismos do diário, temos a possibilidade de

Ottilie ter feito anotações enquanto ouvia as conversas de Charlotte com o

jovem advogado e com o arquiteto ou a conversa de Charlotte com o assistente

da diretora, ou ainda as frases soltas nos salões, principalmente no período em

que Luciane movimenta a vida no castelo. Ottilie ou a autora do diário coloca

ali o resultado da narração: ela escreve sobre o que ela ouve falar. Isso não

passa pela reflexão, é antes uma escolha do que lhe agrada. É principalmente

uma maneira de se expressar.

Questionamos por que não seriam Charlotte ou o arquiteto os supostos

autores do assim denominado diário de Ottilie. O arquiteto conhece arte e

estética, sabemos que faz uso de seu caderno de anotações. Tal caderno poderia

ser fonte de cópia ou de inspiração para as transcrições presentes no diário.

Charlotte é uma mulher madura, sensata, reflexiva e experiente quanto às

relações humanas, ela tem postura observadora e compreensiva.

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Temos, ainda que sob os questionamentos do narrador, Ottilie como o

possível ‘eu’ do diário. Podemos duvidar, juntamente com o narrador do

romance, que os trechos tenham saído da sua própria reflexão. Contudo, a

proposta do próprio narrador para um diário elaborado a partir de cópias de

trechos de cartas de amigos ou então de conversas ouvidas no castelo se

encaixa bem a natureza e a idade de Ottilie. Todavia, conhecemos o narrador

especialmente através do modo como ele apresenta o diário de Ottilie, como ele

o caracteriza e liga-o ao romance.

O narrador do romance é construído como mais uma personagem, com

o diferencial de ser onisciente. Ele é fundamental na apresentação do diário.

Empenha-se em provar que os aforismos têm ligação com Ottilie e que

correspondem aos capítulos nos quais estão inseridos. Ele se esforça para evitar

que o diário seja somente um enxerto em meio ao corpo do romance. Para ele o

diário, mais do que isso, é uma forma de conhecer a intimidade de Ottilie, tão

misteriosa e introspectiva. É também uma forma de convidar o leitor para a

segunda parte do romance.

Quando o narrador apresenta pela primeira vez o diário ao leitor, no

final da primeira parte do romance, convida-o a entrar na intimidade de Ottilie.

A intenção é tentar entender o que se passava com a personagem naquele

momento crítico, em que toma conhecimento da gravidez de Charlotte. Isso

representa para Ottilie o fim de qualquer possibilidade de evolução em seu

relacionamento com Eduard. É com a citação abaixo que o narrador nos

informa da existência do diário pertencente a Ottilie:

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Depois de ficar sabendo do segredo de Charlotte, Ottilie, ainda mais surpreendida que Eduard, recolheu-se em si mesma. Não tinha mais nada a dizer. Não podia nutrir esperanças, tampouco desejos. O seu diário, do qual tencionamos reproduzir alguns trechos, concede-nos, contudo, um acesso a sua intimidade.41 (GOETHE, 1998a, p. 135).

Podemos então considerar que interessa àquele que entra em contato

com a narrativa tanto as histórias que narram segredos íntimos, como os relatos

de viagem, que contam sobre as terras distantes. Ambas são experiências de

mundo pouco acessíveis. O narrador é então sempre bem-vindo, pois o ser

humano é carente de histórias.

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. [...] ‘Quem viaja tem muito que contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1996, p. 198-199).

O narrador da novela, que conhecemos como “o acompanhante do lorde

inglês”, é mais uma daquelas figuras inseridas na segunda parte do romance

para dar novo ritmo à narrativa, para substituir Eduard e o Capitão, que estão

ausentes nesse momento, ou para desviar o leitor da narrativa principal. “[...]

                                                                                                               41 “Ottilie, nachdem auch ihr Charlottens Geheimnis bekannt geworden, betroffen wie Eduard, und mehr, ging in sich zurück. Sie hatte nichts weiter zu sagen. Hoffen konnte sie nicht, und wünschen durfte sie nicht. Einen Blick jedoch in ihr Inneres gewährt uns ihr Tagebuch, aus dem wir einiges mitzuteilen gedenken”. (GOETHE, 1998b, p. 125).

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um homem silencioso, mas muito solicito [...]”.42 (GOETHE, 1998a, p. 206);

“[...] homem calmo, sensato e bom observador [...]”.43 (GOETHE, 1998a, p.

210). Obedecendo as suas características, o acompanhante do lorde sempre se

informa sobre a situação do lugar onde se hospeda:

[...] numa viagem tinha o maior interesse em acontecimentos estranhos provocados por relacionamentos naturais e artificiais, por conflitos entre a lei e a insubmissão, entre o entendimento e a razão, entre a paixão e o preconceito, já havia se informado antes, e na própria casa depois de sua chegada, de tudo o que ali se passara e ainda estava se passando.44 (GOETHE, 1998a, p. 210).

O lorde apresentou às anfitriãs seu olhar sobre as propriedades de

Eduard. Elas deleitaram-se com sua pasta de desenhos de suas viagens.

Contudo, durante a narração do lorde sobre o seu estilo de vida, Ottilie vê

Eduard:

[...] Elas se alegraram em poder viajar pelo mundo, comodamente instaladas em sua solidão, vendo passar diante de si margens e portos, montanhas, lagos e rios, cidades,

                                                                                                               42 “[...] einen stillen, aber sehr gefälligen Mann [...]”. (GOETHE, 1998b, p. 197). 43 “[…] ein verständiger ruhiger Mann und guter Beobachter […]”. (GOETHE, 1998b, p. 201).  44 “den eigentlich auf der Reise nichts mehr interessierte als die sonderbaren Ereignisse, welche durch natürliche und künstliche Verhältnisse, durch den Konflikt des Gesetzlichen und des Ungebändigten, des Verstandes und der Vernunft, der Leidenschaft und des Vorurteils hervorgebracht werden, jener hatte sich schon früherund mehr noch im Hause selbst mit allem bekannt gemacht, was vorgegangen war und noch vorging”. (GOETHE, 1998b, p. 201)

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castelos e vários outros lugares que ganharam nome na história.45 (GOETHE, 1998a, p. 207, grifo nosso).

Na representação dos quadros vivos, cada personagem na encenação

estática é um narrador, cada personagem conta uma história dentro do quadro.

Apesar de representarem ao vivo uma cena pictórica, continuam sendo seres de

papel. O encantamento de quem assiste ao quadro vivo está justamente na

abstração. Não se vê ali pessoas representando elementos de um quadro, a cena

é formada por um todo real e fictício, ao mesmo tempo.

O autor (material) de uma narrativa não pode confundir em nada com o narrador desta narrativa; os signos do narrador são imanentes a narrativa, e por conseguinte perfeitamente, acessíveis a uma análise semiológica; mas para decidir que o próprio autor (que se mostre, se esconda ou se apague) disponha de ‘signos’ com os quais salpicaria sua obra, é necessário supor entre a ‘pessoa’ e sua linguagem uma relação signalética que faz do autor um sujeito pleno e da narrativa a expressão instrumental desta plenitude: a isto a análise estrutural não se pode resolver: quem fala (na narrativa) não é quem escreve (na vida) e quem escreve não é quem é. (BARTHES, 1972, p. 48-49).

O narrador do romance nos guia para ver um quadro que não estamos de

fato vendo e nos leva a essa ilusão por meio das palavras. O leitor é retirado da

narrativa e colocado verticalmente em outra narrativa: a dos quadros vivos. Isso

é um jogo de reconstrução do pictórico. Mais uma interferência na linearidade

do romance.

                                                                                                               45 “Sie freuten sich, hier in ihrer Einsamkeit die Welt so bequem zu durchreisen, Ufer und Häfen, Berge, Seen und Flüsse, Städte, Kastelle und manches andre Lokal, das in der Geschichte einen Namen hat, vor sich vorbeiziehen zu sehen”. (GOETHE, 1998b, p. 198).

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O narrador do romance conhece suas personagens intimamente. Aborda

resumidamente seu passado e conhece o seu caráter e seu modo de agir em

sociedade. Ele é muitas vezes irônico e demonstra suas preferências com

elogios ou com comentários maldosos. Ele se delicia ao observá-las e descreve

situações como se estivesse admirando-as em um quadro. Os quadros são

recorrentes na narrativa. Mais um exemplo para essa característica do narrador:

Ottilie continuava levando a criança para o ar livre e habituara-se a fazer passeios cada vez mais longos. Trazia a mamadeira consigo para alimentar a criança quando necessário. Era raro se esquecer de levar também um livro e, assim, lendo e caminhando com a criança no colo, formava a imagem de uma graciosa penserosa.46 (GOETHE, 1998a, p. 222).

Ele gosta de observar suas personagens em detalhes, como se as cenas

narradas fossem emolduradas como quadros. A descrição abaixo reflete essa

característica:

Charlotte recebeu o esposo à porta, fazendo-o sentar-se, de modo que num único olhar ele pudesse ver, pela porta e pela janela, os diversos quadros mostrando a paisagem como que emoldurada. Ele se alegrou, esperançoso de que a primavera em breve vivificasse tudo de maneira ainda mais abundante.47 (GOETHE, 1998a, p. 22).

                                                                                                               46 “Ottilie fuhr fort, das Kind in die freie Luft zu tragen, und gewöhnte sich an immer weitere Spaziergänge. Sie hatte das Milchfläschchen bei sich, um dem Kinde, wenn es nötig, seine Nahrung zu reichen. Selten unterließ sie dabei, ein Buch mitzunehmen, und so bildete sie, das Kind auf dem Arm, lesend und wandelnd, eine gar anmutige Penserosa”. (GOETHE, 1998b, p. 214). 47 “An der Türe empfing Charlotte ihren Gemahl und ließ ihn dergestalt niedersitzen, daß er durch Tür und Fenster die verschiedenen Bilder, welche die Landschaft gleichsam im Rahmen zeigten, auf einen Blick übersehen konnte. Er freute sich daran in Hoffnung, daß der Frühling bald alles noch reichlicher beleben würde”. (GOETHE,

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Em outra forma de enquadramento, as personagens aparecem

emolduradas por janelas ou adornadas por elementos da natureza. Como se essa

situação fosse natural apesar de estarem fechadas em uma moldura, que é

artificial. O narrador descreve sua devoção por Ottilie nesses moldes, conforme

se vê abaixo:

[...] mas era tão encantador contemplá-la assim sentada, absorta na leitura, entregue a si mesma, que as árvores e os arbustos ao seu redor deveriam ser dotados de alma e visão, para a admirar e se deliciar com sua presença. E justamente nesse momento, um avermelhado raio de sol do crepúsculo brilhou por trás dela, dourando-lhe a face e os ombros.48 (GOETHE, 1998a, p. 230).

Ao olhar para As afinidades eletivas sob o encantamento das narrativas

enquadradas, que acompanham todo o romance, observamos outro intertexto: o

mito de narciso. Na análise que desenvolvemos no capítulo 2, temos como

elementos essenciais: o espelho, a água e os quadros. Dessa forma, antes de

iniciarmos essa análise olharemos para o mito de narciso.

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     1998b, p. 4). 48 “[…] aber sie saβ versenkt in ihr Buch, in sich selbst, so liebenswürdig anzusehen, daβ die Bäume, die Sträuche rings umher hätten belebt, mit Augen begabt sein sollen, um sie zu bewundern und sich an ihr zu erfreuen. Und eben fiel ein rötliches Streiflicht der sinkenden Sonne hinter ihr her und vergoldete Wange und Schulter”. (GOETHE, 1998b, p. 223).

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1.2.3  O  mito  de  Narciso    

 

Aqui certamente só se trata de terras e minerais, mas o ser humano é um verdadeiro Narciso; gosta de se ver refletido em toda parte e coloca-se acima do mundo inteiro. (GOETHE).49

A primeira parte do romance que se encerra com o capítulo 18 apresenta

uma conversa entre Eduard e Mittler. Nas longas falas de Eduard, vemos seu

desequilíbrio diante de sua situação, pois presenta sua intimidade com lágrimas,

sensação de perseguição e oscilações abruptas de comportamento, e ainda faz

observações narcísicas colocando-se como centro da vida de Ottilie.

Primeiramente, transcrevemos a tragédia de Narciso nas palavras de

Ovídio (Metamorfoses III, 414-428), segundo a obra de Junito de Souza

Brandão em Mitologia grega:

“Deitou-se e tentando matar a sede,

Outra mais forte achou. Enquanto bebia,

Viu-se na água e ficou embevecido com sua própria imagem.

Julga corpo o que é sombra, e a sombra adora.

Extasiado diante de si mesmo, sem mover-se do lugar,

O rosto fixo, Narciso parece uma estatua de mármore de Paros.

Deitado, contempla dois astros: seus olhos e seus cabelos,

Dignos de Baco, dignos também de Apolo;                                                                                                                49 Eduard em conversa sobre o termo afinidades, com Charlotte e o Capitão. (1998a, p. 48)

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Suas faces ainda imberbes, seu pescoço de marfim,

Sua boca encantadora, o leve rubor que lhe colore a nívea pele.

Admira tudo quanto admiram nele.

Em sua ingenuidade deseja a si mesmo.

A si próprio exalta e louva. Inspira ele mesmo os ardores que sente.

É uma chama que a si própria alimenta.

Quantos beijos lançados às ondas enganadoras!

Para sustentar o pescoço ali refletido, quantas vezes

Mergulhou inutilmente suas mãos nas águas.

O mesmo erro que lhe engana os olhos, ascende-lhe a paixão.

Crédulo menino, por que buscas, em vão, uma imagem fugitiva?

O que procuras não existe. Não olhes e desaparecerá o objeto de teu amor.

A sombra que vês é um reflexo de tua imagem.

Nada é em si mesma: contigo veio e contigo permanece.

Tua partida a dissiparia, se pudesses partir...

Inútil: sustento, sono, tudo esqueceu.

Estirado na relva opaca, não se cansa de olhar o seu falso enlevo,

E por seus próprios olhos morre de amor”. (OVÍDIO apud BRANDÃO, 2010, p.189-190).

Narciso apaixona-se por sua imagem. Está aí a escolha errada do objeto

do amor, que não é o outro mas é ele mesmo. Em nenhum momento Eduard

declara: “eu amo Ottilie” ou “eu a amo”. Essa relação se constrói em sentido

oposto: “Ottilie me ama”, “ela me ama”, “você me ama”. Esse sentimento é um

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auto-amor. A relação saudável esperada é aquela em que o amor se dirige ao

outro. Nas palavras de Eduard:

Se me ama como penso, como sei, por que não se resolve? [...] o seu espírito a sensação de sua presença pairam sobre mim [...] para que eu tenha alguma certeza de que ela pensa em mim, de que ela é minha. [...] [Em sonho Ottilie lhe diz]: ‘Olhe a sua volta! Não achará maior beleza, nem maior amor do que em mim’ [...] sua imagem se introduz em todos os meus sonhos. Tudo o que se passa conosco mistura-se e se embaralha.50 (GOETHE, 1998a, p. 130).

Neste mesmo momento Mittler encontra Charlotte “serena e alegre,

como de costume. Ela informou-lhe, com prazer, tudo o que havia acontecido,

pois, das palavras de Eduard, ele só pudera deduzir os efeitos”.51 (GOETHE,

1998a, p. 133). Juntamente com Mittler o leitor toma conhecimento da gravidez

de Charlotte. Ela está esperançosa em relação a manter seu casamento com

Eduard. Para Mittler, a partir daí está tudo resolvido entre eles. “Devo crer e

esperar que tudo se resolverá e Eduard voltará para mim. Como poderia ser de

outro modo, visto que estou esperando um filho?”52 (GOETHE, 1998a, p.134).

                                                                                                               50 “Wenn sie mich liebt, wie ich glaube, wie ich weiß, warum entschließt sie sich nicht, warum wagt sie es nicht […]da sollte ihre Gestalt, ihr Geist, eine Ahnung von ihr vorüberschweben […]nur einen Augenblick, daß ich eine Art von Versicherung hätte, sie denke mein, sie sei mein. […] jetzt erst erscheint mir ihr Bild im Traum, als wenn sie mir sagen wollte: 'siehe nur hin und her! Du findest doch nichts Schöneres und Lieberes als mich.' Und so mischt sich ihr Bild in jeden meiner Träume. Alles, was mir mit ihr begegnet, schiebt sich durch--und übereinander”. (GOETHE, 1998b, p. 119-120). 51 “[...] die er wie sonst gefaßt und heiter fand. Sie unterrichtete ihn gern von allem, was vorgefallen war; denn aus Eduards Reden konnte er nur die Wirkung abnehmen”. (GOETHE, 1998b, p. 123). 52 "ich muß glauben, ich muß hoffen, daß alles sich wieder geben, daß Eduard sich wieder nähern werde. Wie kann es auch wohl anders sein, da Sie mich guter Hoffnung finden". (GOETHE, 1998b, p. 123).

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Provavelmente, o momento narcísico de Charlotte seja a gravidez. Um

estado recluso em si, fechada para o mundo, ela olha só para o que acontece

dentro de seu ventre. As relações externas são menos importantes e tudo pode

ser possível porque agora ela está grávida.

O narciso em relação ao Capitão está, possivelmente, na dificuldade em

realizar o seu amor por Charlotte, pois seu foco está na realização profissional.

Ele é recebido pelos amigos, apresenta e aplica seu conhecimento, mas não está

aberto para o amor ao outro. Sua relação com o mundo acontece de acordo com

suas características profissionais, pois ele não demonstra sentimentos. As ações

dessa personagem são sempre elevadas ao nível do herói, por exemplo sua

atitude de ir ao encontro do outro está no salvamento do menino.

O perigo que oferece o aprofundar-se em demasia na linha narcísica de alma e amor-reflexão está não somente na autocontenção, no solipcismo, no incesto intrapsíquico, mas também no suicídio. De modo explícito, ao recusar comer, Narciso se suicidou. Esse suicídio anoréxico foi motivado pela desilusão: a imagem querida e amada, que surge no reflexo, não possui equivalência no mundo real e objetivo. (BRANDÃO, 2010, p. 193).

Ottilie também se aproxima do narcisismo quando escolhe a renúncia à

vida e recusa-se a alimentar-se do mundo. Não quer relacionar-se com ninguém

e pede aos amigos que permitam que ela passe mais tempo recolhida em seu

quarto. Contudo, não renuncia ao amor por Eduard, preferindo não viver após a

impossibilidade de viver junto a ele.

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Ottilie não quer mais exercer nenhuma interação com o mundo e não

quer receber mais nada que venha do mundo.

Narciso e eco são dois caminhos provenientes de uma raiz comum, do sofrimento cultural, e que buscam, através de suas peripécias, se encontrar e se resolver. Acontece que, como se encontram e não se resolvem, e mais ainda, se separam, nos fica desse encontro-desencontro a marca de uma discórdia e de uma tragédia, que muito nos elucida sobre a realidade do homem e da mulher, a realidade da relação conjugal e, mais que tudo, a realidade do desenvolvimento psicológico da personalidade individual e da cultura. (BYINGTON, 1982 apud BRANDÃO, 2010, p. 187 ).

Ottilie está para Eduard como Eco está para Narciso. Narciso permanece

em si mesmo e Eco vive no outro. São opostos complementares, sujeito e

objeto. Ottilie acompanha Eduard em várias tarefas, faz cópias a ponto de sua

letra se tornar idêntica a dele, cuida dos detalhes do cotidiano para que tudo

esteja ao contento dele.

Tenho o extraordinário dom de poder imaginar onde Ottilie está, aonde vai, onde para, onde descansa. Vejo-a diante de mim comportando-se e agindo como de costume, trabalhando e fazendo evidentemente sempre aquilo que mais lisonjeava. Mas não me contento com isso, pois como posso ser feliz longe dela? A minha fantasia elabora então o que Ottilie deveria fazer para se aproximar de mim. Escrevo a mim mesmo cartas ternas e meigas em seu nome; respondo-as e guardo-as todas juntas”.53 (GOETHE, 1998a, p. 130).

                                                                                                               53 “Ich habe den unschätzbaren Vorteil, mir denken zu können, wo sich Ottilie befindet, wo sie geht, wo sie steht, wo sie ausruht. Ich sehe sie vor mir tun und handeln wie gewöhnlich, schaffen und vornehmen, freilich immer das, was mir am meisten schmeichelt. Dabei bleibt es aber nicht; denn wie kann ich fern von ihr glücklich sein! Nun arbeitet meine Phantasie durch, was Ottilie tun sollte, sich mir zu nähern. Ich

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Segundo Bachelard, Narciso contempla o que está por vir, enquanto

medita sobre sua beleza, tem esperança:

Narciso vai, pois, à fonte secreta, no fundo dos bosques. Só ali ele sente que é naturalmente duplo; estende os braços, mergulha as mãos na direção de sua própria imagem, fala à sua própria voz. Eco não é uma ninfa distante. Ela vive na cavidade da fonte. Eco está incessantemente com narciso. Ela é ele. Tem a voz dele. Tem seu rosto. Ele não a ouve num grande grito. Ouve-a num murmúrio, como o murmúrio de sua voz sedutora, de sua voz de sedutor. Diante das águas, Narciso tem a revelação de sua identidade e de sua dualidade, a revelação de seus duplos poderes viris e femininos, a revelação, sobretudo, de sua realidade e de sua idealidade. (BACHELARD, 2002, p. 25).

O narcísico não percebe que se alimenta de sua própria imagem,

sustentando sozinho o amor que tem como referência ele mesmo. Eduard está

na melhor idade do homem e é visto como alguém interessante e viril. É

mimado e rico, planeja sua vida a partir da organização de seus documentos de

viagens e pelo embelezamento de suas propriedades. Seu mundo é fechado nos

seus desejos e os que estão ao seu redor acertam o compasso, atrasando-se ou

acelerando-se, para acompanhá-lo, até mesmo nos saraus e nas noites musicais.

Nesses momentos o ritmo orquestrado é o dele, pois toca mal e os amigos é que

devem segui-lo para que se faça uma noite agradável. Quando faz as leituras

para o grupo, Charlotte não pode olhar para a página que ele está lendo, pois ele

se sente invadido. A temperatura da sala onde todos estão reunidos deve ser a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     schreibe süße, zutrauliche Briefe in ihrem Namen an mich, ich antworte ihr und verwahre die Blätter zusammen”. (GOETHE, 1998b, p. 119).

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do seu agrado, pois qualquer brisa mais fria o incomoda. Inicialmente Charlotte

cuidava disso e quando Ottilie assume suas funções na administração doméstica

passa a observar também todos os detalhes que agradam a Eduard.

É verdade que Ottilie adapta-se à forma de Eduard tocar flauta, mas essa forma é errada. É verdade que Eduard, enquanto lê, tolera em Ottilie aquilo que veda a Charlotte, mas se trata de um mau costume. É verdade que ele se sente maravilhosamente entretido por Ottilie, mas ela se mantem em silêncio. É verdade que ambos até mesmo sofrem juntos, mas isso não passa de uma dor de cabeça. Essas figuras não são naturais, pois os filhos da natureza – num estado natural fictício ou real – são seres humanos. [...] Não se trata aqui de um julgamento de sua ação, mas um julgamento de sua linguagem. Pois eles seguem seu caminho sentindo, porém surdos; enxergando, porém mudos. Surdos perante Deus e mudos diante do mundo. Ao prestarem contas fracassam, não pelo seu agir, mas sim pelo seu existir. Eles emudecem”. (BENJAMIN, 2009, p. 26).

Terminamos a primeira parte com as quatro personagens voltadas para

si próprias. O Capitão vivendo na corte sua nova experiência profissional.

Charlotte, no movimento da gestação, volta-se para o seu ventre. Eduard fecha-

se para a vida e entrega-se a guerra. Ottilie “recolhe-se em si mesma”.54

(GOETHE, 1998a, p. 135).

O experimento proposto nesta obra literária implica na reação química

resultante da aproximação dessas quatro personagens. Agora, na segunda parte

do romance, os personagens – que funcionam como elementos químicos dentro

da narrativa – estão separadas e por isso desinteressantes. O narrador promete

                                                                                                               54 “[…] ging in sich zurück”. (GOETHE, 1998b, p. 125)

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então um diário que nos permitirá o acesso à intimidade de Ottilie, para

convidar o leitor para a próxima parte do romance.

O cosmos, é pois, de certa maneira, tocado de narcisismo. O mundo quer se ver. A vontade, tomada em seu aspecto schopenhaueriano, cria olhos para contemplar, para se apascentar na beleza. O olho, por si só, não é uma beleza luminosa? (BACHELARD, 2002, p. 31).

O convite, feito pelo narrador diante da segunda parte do romance, é o

de desvendar a intimidade de Ottilie. Essa intimidade deveria estar no diário de

Ottilie, mas não lemos nele o cotidiano ou as sensações das experiências

diárias. O diário é antes uma seleção de aforismos. A contemplação afasta-se

dos personagens – contemplação narcísica – e os aforismos, os quadros e a

novela nos oferecem várias possibilidades de olhar. O olhar para si, para o

mundo como nova perspectiva nas personagens do romance.

No próximo capítulo analisaremos os enquadramentos, que compõem a

segunda parte d’As afinidades eletivas.

   

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2. As narrativas enquadradas n’As afinidades eletivas

Mas será o lago ou será o olho que contempla melhor? O lago, o tanque, a água dormente nos detêm em suas margens. Ele diz ao querer: não irás mais longe; tens o dever de contemplar as coisas distantes, coisas além! Enquanto corrias, alguma coisa aqui, já, olhava. O lago é um grande olho tranquilo. O lago recebe toda a luz e com ela faz um mundo. Por ele o mundo é contemplado, o mundo é representado. (BACHELARD).55

A análise elaborada neste momento se desenvolverá, principalmente, a

partir das leituras dos formalistas russos, Teoria da literatura (1971), de

Compagnon, O trabalho da citação (1979) e, de Bachelard, A água e os sonhos

(1989). Importa salientar ainda que o cerne deste é as três narrativas

enquadradas que compõem As afinidades eletivas, qual seja: o diário de Ottilie,

os quadros vivos e a novela “Os vizinhos singulares”. Analisaremos como elas

são inseridas no romance e qual a função desses encaixes na composição da

diegese.

Pensar na inserção dessas narrativas enquadradas no romance é como

pensar no lago dentro das propriedades de Eduard. O lago, como grande olho

tranquilo, assiste às cenas mais importantes dentro da narrativa maior. Ele é

também um grande espelho, a verdade é nítida diante do lago, pois presencia

encontros e desencontros como testemunha.

Observemos, então, a maneira como o narrador organiza os capítulos e

como usa os parágrafos iniciais de cada um desses capítulos para dar o tom das                                                                                                                55 (2002, p. 30-31, grifo nosso)

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próximas páginas no romance. Como o foco desta tese é a segunda parte do

romance, em que encontramos as narrativas enquadradas, não nos interessa

aqui as chegadas e a reunião das quatro personagens dispostas no início da

primeira parte. O estudo foi apresentado na dissertação de mestrado, já

mencionada anteriormente. Assim, é interessante neste momento atermo-nos a

como se dá a separação das personagens e como elas reagem. Isso tem início no

final da primeira parte. A consequência dessas separações é um dos escopos do

desenvolvimento da segunda parte do romance.

No final da primeira parte, o narrador abre o capítulo 16 contando sobre

a partida do Capitão:

Na manhã seguinte, o Capitão havia desaparecido, deixando aos amigos uma carta repleta de gratidão. Charlotte e ele já haviam se despedido na noite anterior com algumas palavras lacônicas. Ela pressentiu uma separação eterna e conformou-se, pois a segunda carta do Conde, que o Capitão resolveu por fim mostrar-lhe, mencionava também a perspectiva de um casamento vantajoso e, embora ele não tivesse dado atenção a essa proposta, ela considerou o fato consumado, assumindo a renúncia pura e completa.56 (GOETHE, 1998a, p. 117).

No início da narrativa, o Capitão é apresentado por meio de uma carta.

Alguns capítulos depois, da mesma maneira, deixa seus amigos. Despede-se

deles e conforta-os pela palavra escrita, que é precisa e registra a informação

                                                                                                               56 “Des anders Morgens war der Hauptmann verschwunden, und ein dankbar gefühltes Blatt an die Freude von ihm zurückgeblieben. Er und Charlotte hatten abends vorher schon halben und einsilbigen Abschied genommen. Sie empfand eine ewige Trennung und ergab sich darein: denn in dem zweiten Briefe des Grafen, den ihr der Hauptmann zuletzt mitteilte, war auch von einer Aussicht auf eine vorteilhafte Heirat die Rede; und obgleich er diesem Punkt keine Aufmerksamkeit schenkte so hielt sie doch die Sache schon für gewiß und entsagte ihm rein und völlig”. (GOETHE, 1998b, p. 105).

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em uma forma mais duradoura do que a palavra falada. Isso combina com o

Capitão, que é bastante reflexivo, determinado, um homem de ação, de grande

conhecimento, habilidoso e prático.

– Não se deviam resolver tais coisas com palavras – retrucou o Capitão. – Como já disse, logo que possa lhe mostrar as próprias experiências, tudo ficará mais claro e mais agradável. Agora teria de estender-me com horríveis termos técnicos que não lhe dariam ideia alguma do fato. É preciso ver agirem diante dos próprios olhos esses seres aparentemente mortos, mas internamente sempre prontos para a ação, e observar com atenção como eles se procuram uns aos outros, como se atraem, se juntam, se destroem, se devoram, se consomem, ressurgindo depois da união mais íntima numa forma revigorada, nova e inesperada: só então lhes atribuímos uma vida eterna, até mesmo sentido e raciocínio, pois percebemos que nossos sentidos mal conseguem observá-los corretamente, e nossa razão mal basta para compreendê-los.57 (GOETHE, 1998a, p. 54).

O Capitão é quem possui os conhecimentos práticos e científicos e tem

habilidade para aplicá-los. A ciência é um tema caro à época do romance e

especial para Goethe.

                                                                                                               57 “Man sollte dergleichen, versetzte der Hauptmann, nicht mit Worten abtun. Wie schon gesagt! sobald ich Ihnen die Versuche selbst kann, wird alles anschaulicher und angenehmer werden. Jetzt müsste ich Sie mit schrecklichen Kunstworten hinhalten, die Ihnen doch keine Vorstellung gäben. Man muss diese totscheinenden und doch zur Tätigkeit innerlich immer bereiten Wesen wirkend vor seinen Augen anziehen, ergreifen, zerstören, verschlingen, aufzehren und sodann aus der innigsten Verbindung wieder in erneuter, neuer, unerwarteter Gestalt hervortreten: dann traut man ihnen erst ein ewiges Leben, ja wohl gar Sinn und Verstand zu beobachten, und unsre Vernunft kaum hinlänglich, sie zu fassen”. (GOETHE, 1998b, p. 38).

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No primeiro parágrafo do capítulo 17, o narrador conta sobre a partida

de Eduard e como isso se reflete na nova convivência das mulheres.

Ottilie correu à janela ao ouvir alguém partindo a cavalo, e ainda viu Eduard por trás. Achou estranho que ele saísse de casa sem vê-la, sem ter-lhe desejado um bom dia. Foi ficando inquieta e cada vez mais pensativa, quando Charlotte a levou para um longo passeio e falou de vários assuntos, evitando mencionar o esposo. Desse modo, aumentou ainda mais a sua surpresa ao ver, em seu regresso, a mesa posta apenas com talheres para duas pessoas.58 (GOETHE, 1998a, p.122).

Ottilie apresenta atitudes e reações infantis, ela corre até a janela para

ver quem parte. Ninguém, nem mesmo Eduard, conversa com ela sobre a nova

situação das relações dentro do castelo. Ainda aqui, é possível notar, a

infantilidade no caráter de Eduard, que sai sem se despedir e sem ter nenhum

diálogo com Ottilie. Essa separação reafirma a serenidade de Charlotte.

Os capítulos 16 a 18 da primeira parte apresentam um tom lacônico.

Temos a partida do Capitão e de Eduard e a interferência de Mittler. O narrador

alerta, em sentido pejorativo, que dessa personagem se pode esperar tudo. Ele

refere-se a Mittler com um tanto de ironia como um homem “diligente e já

conhecido nosso”.59 (GOETHE, 1998a, p. 128).

                                                                                                               58 “Ottilie trat ans Fenster als sie jemanden wegreiten hörte und sah Eduarden noch im Rücken. Es kam ihr wunderbar vor, dass er das Haus verliess, ohne sie gesehen, ohne ihr einen Morgengruss geboten zu haben. Sie ward unruhig und immer nachdenklicher, als Charlotte sie auf einen weiten Spaziergang mit sich zog und von mancherlei Gegenständen sprach, aber des Gemahls, und wie es schien, vorsätzlich, nicht erwähnte. Doppelt betroffen war sie daher, bei ihrer Zurückkunft den Tisch nur mit zwei Gedecken besetzt zu finden”. (GOETHE, 1998b, p. 110). 59 “tätige Mann, den wir bereits kennen gelernt”. (GOETHE, 1998b, 117).

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Nos desfechos dos capítulos, o narrador marca as condutas e as decisões

das personagens. Por exemplo, Eduard chega a invejar um mendigo, a quem dá

uma esmola levado por imensa felicidade, ainda que esse fosse um ato proibido

no dia da festa de aniversário de Ottilie. Ao ver o mendigo, Eduard diz: “Oh!

Como é digno de inveja! – exclamou. – A esmola de ontem ainda pode

alimentá-lo, mas a minha felicidade de ontem se esvaiu!”60 (GOETHE, 1998a,

p. 122).

Os capítulos são enquadrados, pelo narrador, através de observação

geral ou relacionados às personagens. A elaboração dos desfechos, em sua

maioria, é composta por observações do narrador sobre o tema tratado no

capítulo. É interessante notar que até mesmo Charlotte, quando desenvolve uma

narração, apresenta uma postura semelhante à do narrador:

(...) começarei então com uma observação geral. Os homens pensam mais nos detalhes no presente, e com razão, pois estão predestinados a agir, a atuar; as mulheres, ao contrário, pensam mais nas relações da vida, e também com razão, pois o destino delas e de suas famílias está ligado justamente a essa coesão que, por sua vez, lhes é exigida61. (GOETHE, 1998, p. 24).

Nos inícios e desfechos da segunda parte do romance temos, na maioria

dos parágrafos, observações do narrador sobre as ações das personagens, sobre

                                                                                                               60 “O du Beneidenwerter! Rief er aus: du kannst noch am gestrigen Almosen zehren, und ich mehr am gestrigen Glücke!” (GOETHE, 1998b, 110). 61 “[…] so will ich gleich mit einer algemeinen Bemerkung anfang. Die Männer denken mehr auf das Einzelne, auf das Gegenwärtige, und das mit Recht, weil sie zu tun, zu wirken berufen sind; die Weiber hingegen mehr auf das, was im Leben zusammenhängt, und das mit gleichem Rechte, weil ihr Schicksal, ihrer Familien, an diesen Zusammenhang geknüpft ist, und auch gerade dieses Zusammenhängenden von ihnen gefordert wird”. (GOETHE, 1998b, p. 6-7).

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as suas partidas e seus retornos. Sete capítulos iniciam-se com observações

gerais de teor reflexivo. Os seis capítulos que recebem os trechos do diário de

Ottilie são encerrados por ele. A novela “Os vizinhos singulares” fecha o

capítulo 10. O capítulo 11 inicia-se com a reação de Charlotte a essa narrativa

enquadrada. Além da simetria, que delimita o romance em duas partes de 18

capítulos cada, observamos que tais capítulos abrem-se e fecham-se como

enquadramentos referentes às personagens e às relações que elas constroem.

No capítulo 9 da primeira parte, o narrador reproduz o discurso que o

pedreiro profere no lançamento da pedra fundamental. Esse é o marco do início

da construção da nova casa no alto da colina. O pedreiro profere o discurso em

versos, mas nós o conhecemos em prosa. Discorre sobre a pedra fundamental

no momento de assentá-la. Ele divide a construção em três pontos: 1. o lugar

em que ela é erguida (na área rural é escolha do proprietário), 2. alicerçá-la bem

(função do pedreiro), 3. dar-lhe um acabamento perfeito (missão de vários

profissionais).

O pedreiro tem, de acordo com seu discurso, a tarefa principal na

construção: o alicerce. Indica também a importância da cal como elemento de

ligação, que é essencial para edificar uma construção.

Mas também aqui a cal, o elemento de ligação, não deve faltar, pois, assim como as pessoas com uma inclinação natural mútua mantêm-se ainda mais unidas quando a lei as argamassa, assim também as pedras, ajustadas pelo formato, unem-se ainda melhor por meio dessas forças de ligação [...]. 62 (GOETHE, 1998a, p. 78).

                                                                                                               62 “Aber auch hier soll es am Kalk, am Bindungsmittel nicht fehlen; denn so wie Menschen, die einander von Natur geneigt sind, noch besser zusammenhalten, wenn

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É a Charlotte que o pedreiro dá a sua colher para que ela coloque a

argamassa sobre a pedra. Charlotte colabora para a união inicial dos quatro

elementos, e também para a reunião final. Ela acolhe, aceita, entende, gera,

proporciona ambientes agradáveis a todos, recebe e harmoniza, tudo isso ela faz

para manter todos bem e aconchegados em suas propriedades. Ela renuncia ao

que é desfavorável à união e à boa convivência de todos. Sua racionalidade, sua

sensatez e seu cuidado unem. Assim como Charlotte, a água tem a capacidade

de unir e de se misturar a outros elementos. Dentro da narrativa a água produz

ligações e sentido às suas partes.

Charlotte aceita a vinda do Capitão e também se preocupa com Ottilie e

cuida dela, recebe todos os visitantes cordialmente. Ela tem características de

ligação, como a argamassa. Assim como o pedreiro, Charlotte considera

importante a lei, como uma argamassa para a união de um casal. Ela seria,

então, a organizadora assim como o pedreiro que também tem a mesma função

organizadora do narrador. A organização também é um predicado do narrador.

Ele marca cenas e diálogos, elabora a narrativa de forma simétrica na relação

das duas partes da obra e de seus capítulos.

Para Bachelard, o significativo dessa metáfora – da argamassa como

elemento de ligação entre as pedras – está no seu momento precedente: o

momento de sua feitura.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     das Gesetz sie verkittet, so werden auch Steine, deren Form schon zusammenpaßt, noch besser durch diese bindenden Kräfte vereinigt […]”. (GOETHE, 1998b, p. 64).

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Na massa, a ação da água é evidente. Quando a amassadura continuar, o operário poderá passar à natureza especial da terra, da farinha, do gesso; mas, no início de seu trabalho, seu primeiro pensamento é para a água. É a água que constitui seu primeiro auxiliar. É pela atividade da água que começa o primeiro devaneio do operário que amassa. Assim, não é de admirar que a água seja então sonhada numa ambivalência ativa. Não há devaneio sem ambivalência, não há ambivalência sem devaneio. Ora, a água é sonhada sucessivamente em seu papel emoliente em seu papel aglomerante. Ela desune e une. (BACHELARD, 2002, p. 109).

A ligação entre as partes desse romance está outra vez na água, assim

como tratamos no início desta parte. Antes de unir as pedras com a argamassa

em um trabalho pesado e braçal está o devaneio na elaboração de tal elemento

de ligação.

O narrador encerra a primeira parte anunciando o recolhimento de

Ottilie em si mesma e a promessa de acesso à sua intimidade por meio do

diário. Pouco antes, ele discorre sobre a dificuldade de “descrever o que se

passou na alma de Eduard a partir desse momento”.63 (GOETHE, 1998a, p.

135). O narrador escolhe o que fica explícito e o que é escondido do leitor. Ou

ainda, promete uma revelação, mas não cumpre o combinado.

Analisaremos na próxima parte a narrativa enquadrada denominada

“diário de Ottilie”.

                                                                                                               63 “Was von dem Augenblick an in der Seele Eduards vornig, würde schwer zu schildern sein”. (GOETHE, 1998b, p. 124).

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2.1 Sobre o Diário de Ottilie

[...] a história raramente é simples: contém frequentemente muitos fios e é apenas a partir de um certo momento que estes fios se reúnem. (TODOROV).64

O diário de Ottilie, como narrativa enquadrada, representa uma pausa no

romance que retarda a ação da narrativa maior, assim como seu desfecho. Antes

de analisar o diário, focalizaremos Ottilie em suas relações com as outras

personagens e também com o narrador do romance.

Quanto ao diário, primeiro o observaremos como parte do romance.

Atentaremos para a definição dos fragmentos que compõem o diário.

Analisaremos a questão da autoria que o narrador dá a Ottilie. Por último,

estudaremos os seis conjuntos do diário de Ottilie em relação aos capítulos nos

quais eles estão inseridos.

                                                                                                               64 (1972, p. 213).

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2.1.1 Ottilie

É necessária uma alma muito perturbada para realmente se deixar enganar pelas miragens do rio. (BACHELARD).65

N’As afinidades eletivas, Ottilie é introduzida ao leitor por meio de

informações lidas por Charlotte nas cartas recebidas do internato. As cartas são

usadas para apresentar a personagem, assim como bulas que descrevem

elementos químicos. O Capitão também é acrescentado ao romance por meio

de cartas enviadas por ele a Eduard. Essas personagens funcionam como novos

integrantes de um experimento.

Essas cartas acentuam, logo no início da narrativa, o momento adverso

de Ottilie. “A amável menina”66 (GOETHE, 1998a, p. 59), como é tratada pelo

narrador, encontra-se impotente e precisa novamente da ajuda de Charlotte.

Quando era criança, após a morte de sua mãe, foi entregue aos cuidados de

Charlotte. Agora, adolescente, com mais ou menos 17 anos, Ottilie está em uma

situação sufocante no internato. Não consegue se descobrir e não se dispõe a

mostrar nenhuma capacidade ou habilidade.

Em caligrafia, quase nenhuma outra tem a letra tão bem-feita, embora tenham traços bem mais livres; em cálculos são todas mais rápidas, e os problemas difíceis, que ela resolve bem melhor, não fizeram parte da prova. Em francês, várias a superaram, tanto em gramática como em conversação; em

                                                                                                               65 (2002, p. 21). 66 “Das liebe Kind”. (GOETHE, 1998b, p. 44).

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história de imediato não tinha à mão nomes e datas; em geografia, percebia-se a desatenção quanto à divisão política. Para a execução musical de suas poucas e singelas melodias, não houve tempo nem tranquilidade. Em desenho, ela certamente teria ganho o prêmio; os seus esboços eram perfeitos e executados com esmero e graça. Infelizmente quis fazer algo demasiado grande e não conseguiu acabar. 67 (GOETHE, 1998a, p. 56).

A formação oferecida pelo internato é bastante ampla: exatas,

humanidades e habilidades artísticas. Ela não demonstra interesse pelo

conhecimento oferecido e não se relaciona bem com os que com ela convivem,

permanecendo fechada em si mesma. Ottilie não se enquadra ao ensino regular,

comum às outras alunas da mesma etapa escolar, pois parece não ter nenhuma

intenção em receber notas pelo que apreende das matérias ensinadas. Ottilie

não tem ação quando se sente avaliada ou sob pressão, por isso apresenta-se

despreparada para competir socialmente.

Charlotte recebe correspondências da diretora e do assistente de ensino

do internato. A diretora, que prefere não se pronunciar sobre as dificuldades da

aluna, diz apenas que Ottilie continua “modesta e solícita”. Quem realmente

disserta sobre as atitudes e sobre o desempenho da menina é o assistente da

diretora. Ele relata suas características e seu modo de pensar e de aprender em

                                                                                                               67 “Im Schreiben hatten andere kaum so wohlgeformte Buchstaben, doch viel freiere Züge; im Rechnen waren alle schneller, und an schwierige Aufgaben, welche sie besser löst, kam es bei der Untersuchung nicht. Im Französischen überparlierten und überexponierten sie manche; in der Geschichte waren ihr Namen und Jahrzahlen nicht gleich bei der Hand; bei der Geographie vermißte man Aufmerksamkeit auf die politische Einteilung. Zum musikalischen Vortrag ihrer wenigen bescheidenen Melodien fand sich weder Zeit noch Ruhe. Im Zeichnen hätte sie gewiß den Preis davon getragen; ihre Umrisse waren rein und Ausführung bei vieler Sorgfalt geistreich. Leider hatte sie etwas zu Großes unternommen und war nicht fertig geworden”. (GOETHE, 1998b, p. 40).

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oposição as colegas de turma. “[...] ela não aprende como alguém que precisa

ser educado, mas como quem pretende educar; não como aluna, mas como

futura mestra”. 68 (GOETHE, 1998a, p. 44). Essa sentença prenuncia o

desenvolvimento que Ottilie manifestará ao longo do romance. O olhar do

professor assistente a diferencia das outras alunas, não de maneira pejorativa,

mas elevando-a.

Isso de fato não acontece no internato, pois ela não consegue as notas

necessárias nas disciplinas. Identifica-se com as matérias artísticas, em que

pode usar sua imaginação livre e naturalmente, mas não tem êxito nem mesmo

nessas avaliações. Segundo o assistente, isso se deve ora à falta de agilidade,

ora à falta de capacidade. O assistente adverte o leitor de que pode aguardá-la e

atentar para ela, pois Ottilie o surpreenderá no decorrer da narrativa. Ainda que

só consigamos observar sua inabilidade diante de testes práticos, de ações

reflexivas e de convívio social, Ottilie mostra-se indefesa sob qualquer situação

e despreparada para agir em momentos que precisa devolver respostas rápidas

diante do imprevisto.

Ottilie é uma figura notável no romance, principalmente no que se

refere a sua beleza. Ela é a concretização do ideal masculino, mais do que

qualquer outra personagem feminina. Desperta o interesse de Eduard, do

Capitão, do arquiteto, do assistente da diretora, do noivo de Luciane, que é filha

de Charlotte e rival de Ottilie.

                                                                                                               68 “[…] sie lernt nicht als eine, die erzogen werden soll, sondern als eine, die erziehen will; nicht als Schülerin, sondern als künftige Lehrerin”. (GOETHE, 1998b, p. 27).

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[...] embora Ottilie se vestisse de maneira muito simples, ela continuava sendo – ou ao menos assim parecia – a mais bela para os homens. Uma atração suave os reunia a sua volta, estivesse ela, nos grandes salões, em primeiro ou em último lugar; até o próprio noivo de Luciane conversava frequentemente com ela, chegando mesmo a pedir os seus conselhos e a sua cooperação em um assunto qualquer que o estivesse preocupando.69 (GOETHE, 1998a, p. 166).

Ottilie é, especialmente para os homens, uma companhia interessante.

Aqui, ela também exerce a função daquela que ensina, apesar de ser silenciosa

ou até mesmo calada, como aponta o assistente da diretora. Sua presença efetua

mudanças no comportamento dos homens: Eduard e o Capitão tornam-se mais

pontuais e envolvidos nas atividades realizadas em grupo, seja no castelo, seja

nos passeios.

“Na cultura grega, de modo particular, beleza fora do comum sempre

assustava”. (BRANDÃO, 2010, p. 182). Ottilie provoca, involuntariamente, o

desprezo ou despeito por parte das personagens femininas, como a diretora do

internato, a Baronesa e Luciane.

[...] em sua relação com Ottilie, porém, [Luciane] mostrava sempre uma amargura autêntica. Via com desprezo a atividade tranquila e ininterrupta da boa menina, admirada e enaltecida por todos [...].70 (GOETHE, 1998a, p. 166).

                                                                                                               69 “denn obgleich Ottilie sehr einfach gekleidet ging, so war sie doch, oder so schien sie wenigstens immer den Männern die schönste. Ein sanftes Anziehen versammelte alle Männer um sie her, sie mochte sich in den großen Räumen am ersten oder am letzten Platze befinden, ja der Bräutigam Lucianens selbst unterhielt sich oft mit ihr, und zwar um so mehr, als er in einer Angelegenheit die ihn beschäftigte, ihren Rat, ihre Mitwirkung verlangte”. (GOETHE, 1998b, p. 155). 70 “[...] aber eine wahrhafte Bitterkeit hatte sich in ihrem Verhältnis zu Ottilien erzeugt. Auf die ruhige ununterbrochene Tätigkeit des lieben Kindes, die von jedermann bemerkt und gepriesen wurde [...]”. (GOETHE, 1998b, p. 154).

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Sobre Ottilie, como já foi dito, a diretora não quer se pronunciar. Ela

demonstra irritação diante das características da aluna. A Baronesa a percebe

como uma rival perigosa ao observar o modo como os homens se distraem com

ela e como a admiram.

Da conversa com Goethe, em 22 de outubro de 1828, Eckermann anota:

Hoje à mesa, falando-se em mulheres, Goethe expressou-se com encanto. ‘As mulheres são salvas de prata, nas quais colocamos maçãs de ouro. Minha ideia sobre as mulheres não abstrai da realidade, é congênita ou formada em mim sabe Deus como. Os caráteres femininos que representei em meus livros são por isso todos bem sucedidos, e melhores do que os encontrados na vida real. (ECKERMANN, 2004, p. 259).

Ottilie não é apenas melhor do que toda mulher real, é a personagem

idealizada de Goethe, a mulher perfeita. É a moça preferida 71, que representa o

modelo ideal. Ottilie é referida pelo narrador como das Kind, substantivo

neutro que significa “criança”, mas é também usado para designar moças. Além

disso, esse termo pode ser relacionado com algo de infantil do caráter de

Eduard, como conta o narrador: “Eduard tinha conservado, apesar dos anos

decorridos, algo de infantil, que condizia bem com a juventude de Ottilie”.72

(GOETHE, 1998a, p. 67).

É interessante lembrar que Ottilie vem para esse convívio também para

ajudar na organização doméstica. Ela cumpre funções dentro do castelo e na

área do jardim. Ela tem a liberdade de interagir tanto no ambiente feminino

como no ambiente masculino, enquanto Charlotte pertence apenas ao interior

                                                                                                               71 Lieblingskind. 72 “Eduard hatte bei zunehmenden Jahren immer etwas Kindliches behalten, das der Jugend Ottiliens besonders zusagte”. (GOETHE, 1998b, p. 52).

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do castelo, área delimitada e fechada em quatro paredes. Os homens cuidam da

área externa, que é mensurada pelas fronteiras das propriedades, e,

consequentemente, aproveitam espaços mais extensos, e passam a maior parte

do dia ao ar livre. Tais características pontuam as funções masculinas e

femininas na época do romance.

Em relação a Eduard, Ottilie preocupa-se em agir de maneira a agradá-

lo, atentando para os seus gostos e preferências. Ele a vê, depois de sua morte,

como um anjo da guarda e, no final da narrativa, eleva-a à posição de santa.

Em relação a Ottilie, Charlotte se coloca como mãe e como amiga.

Sente-se na obrigação de direcionar a sua vida preocupando-se com o seu

futuro, mas pensa também no destino de seu casamento. Em relação à

Charlotte, Ottilie é denominada como sobrinha, filha adotiva e amiga, desde o

início até o final. Charlotte não muda seu tratamento nem seu sentimento por

Ottilie. Até mesmo quando quer distanciá-la de Eduard ou após a morte do

bebê.

O Capitão admira a beleza física de Ottilie. Contudo, a ligação que

Eduard e Charlotte planejaram não ocorre entre essas duas personagens. Eles

não estabelecem, em geral, nenhuma relação significativa. Eduard e Charlotte

convidam Ottilie para participar de suas vidas, juntamente com o Capitão.

Esperavam que ela e o Capitão se identificassem e dali surgisse uma relação

amorosa. A relação resultante de afinidades eletivas é oposta à escolha racional

feita inicialmente. Segundo o próprio título, Wahlverwandtschaften, como já foi

tratado, é uma questão química de identidade com o outro. É uma escolha livre

e não uma escolha racional.

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Ottilie é uma personagem complexa, e, ainda que possua o lado formoso

e inocente, é obscura e misteriosa. Ela vai contra as convenções morais e

sociais, desacata o amor materno e a gratidão que sentia por Charlotte e se

desliga dessa relação passando por cima de sua formação de boa moça. Quando

chega do internato, ajoelha-se aos pés de Charlotte em sinal de respeito. Pouco

tempo depois, seu amor por Eduard é muito maior do que a consideração

inicialmente demonstrada a Charlotte. Ottilie cria seu próprio caminho. Não

apenas pelo amor adúltero, mas também ao ultrapassar os limites entre as

gerações.

O narrador refere-se a Ottilie de forma amável até mesmo após a morte

do bebê. Charlotte frente a tragédia de perder um filho consegue ter lucidez e

ser cuidadosa com seus amigos a ponto de chamar para si a responsabilidade da

morte: “Devia ter-me resolvido há mais tempo; por minhas hesitações, minha

relutância, matei esta criança”.73 (GOETHE, 1998a, p. 236). Diante da mesma

situação Ottilie, nas palavras do narrador: “Nesse momento recobra toda a sua

presença de espírito, mas isso só aumenta a sua dor. [...]”. 74 (GOETHE, 1998a,

p. 233). Ela não demonstra força interior para superar a morte do bebê, que caiu

de seus braços na água.

[...] mas aqui a sua bela alma não a deixa desamparada. Olha para cima. Cai de joelhos e com ambos os braços ergue a criança enrijecida, colocando-a sobre o seu seio inocente, que por sua alvura e, infelizmente, também por sua gelidez, assemelhava-se ao mármore. Dirige para o céu os seus olhos molhados e clama por socorro de lá, onde um coração

                                                                                                               73 “Ich hätte mich früher dazu entschließen sollen; durch mein Zaudern, mein Wiederstreben habe ich das Kind getötet”. (GOETHE, 1998b, p. 229). 74 “In dem Augenblicke kehrte ihre ganze Besonnenheit zurück, aber um desto größer ist ihr Schmerz [...]”. (GOETHE, 1998b, p. 226).

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delicado espera encontrar em grande abundância o que falta em toda parte75. (GOETHE, 1998a, p. 233).

Ela não renuncia ao amor por Eduard, contudo, após a trágica morte do

bebê, prefere morrer. Sente não ter mais direito a vida e, como em um retorno

ao estado inicial, repete a cena da infância dormindo no colo de Charlotte.

Pela segunda vez – disse a magnífica menina, com irresistível e graciosa gravidade –, pela segunda vez me acontece a mesma coisa. Você um dia disse-me que na vida das pessoas ocorrem, com frequência, fatos parecidos, de maneira semelhante e sempre em momentos significativos. Agora acho que essa observação é verdadeira e vejo-me obrigada a fazer-lhe uma confissão. Pouco depois da morte de minha mãe, quando ainda era criança, empurrei o meu banquinho para perto de você: estava sentada no sofá como agora; minha cabeça recostada sobre seus joelhos; eu não dormia, nem velava; cochilava apenas”.76 (GOETHE, 1998a, p. 238).

O narrador demonstra, no trecho abaixo, certa ironia diante da tragédia

que invade a almejada tranquilidade idílica de suas personagens. Pouco antes

da morte do bebê, narra o encontro inesperado, mas desejado, entre Eduard e

Ottilie:

                                                                                                               75 “aber auch hier läßt ihr schönes Gemüt sie nicht hülflos. Sie wendet sich nach oben. Knieend sinkt sie in dem Kahne nieder und hebt das erstarrte Kind mit beiden Armen über ihrer unschuldige Brust, die an Weiße und leider auch an Kälte dem Marmor gleicht. Mit feuchtem Blick sieht sie empor und ruft Hülfe von daher, wo ein zartes Herz die größte Fülle zu finden hofft, wenn es überall mangelt”. (GOETHE, 1998b, p. 227). 76 “Zum zweitenmal – so begann das herrliche Kind mit einem unüberwindlichen anmutigen Ernst – zum zweitenmal wiederfährt mir dasselbige. Du sagtest mir einst: es begegne den Menschen in ihrem Leben oft Ähnliches auf ähnliche Weise, und immer in bedeutenden Augenblicken. Ich finde nun die Bemerkung wahr, und bin gedrungen dir ein Bekenntnis zu machen. Kurz nach meiner Mutter Tode, als ein kleines Kind, hatte ich meinen Schemel an dich gerückt: du sassest auf dem Sofa wie jetzt; mein Haupt lag auf deinen Knien, ich schlief nicht, ich wachte nicht; ich schlummerte”. (GOETHE, 1998b, p. 231).

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[...] [Eduard] olhando-a agora com paixão e apertando-a fortemente em seus braços. Ela [Ottilie] o abraçou também, comprimindo-o carinhosamente contra seu peito. A esperança passou sobre as suas cabeças como uma estrela caindo do céu. Supunham, acreditavam que se pertenciam e pela primeira vez trocaram beijos ardentes, voluptuosos; separaram-se dolorosa e violentamente.77 (GOETHE, 1998a, p. 232).

Toda a ingenuidade, inocência e candura dadas a Ottilie após a morte do

bebê, indicam o desejo de inocentá-la por seu descuido. As palavras do

narrador relativizam o momento anterior ou existe ai uma tentativa de tirar o

peso do adultério, da suposta relação incestuosa e da traição em relação a

Charlotte, inocentando-a então por tudo? Como se sua beleza, sua amabilidade,

seu cuidado com os amigos, sua forma tranquila de agir no cotidiano e sua

pouca idade retirassem dela a responsabilidade de seus atos.

Contudo, Ottilie não é inocentada, entrega-se à morte, não se permite

viver com Eduard ainda que Charlotte conceda o divórcio. Ela não suporta

conviver com sua falha. No começo deste capítulo desta tese, observamos que

ela não faz boas escolhas em seus testes no internato. Isso reflete-se em suas

atitudes diante da vida, aqui também suas ações são insatisfatórias não tem

coragem de realizar sua paixão por Eduard e não tem forças para retomar sua

história.

                                                                                                               77 “indem er sie erst leidenschaftlich anblickte und sie dann fest in seine Arme schloß. Sie umschlang ihn mit den ihrigen und drückte ihn auf das zärtlichste an ihre Brust. Die Hoffnung fuhr wie ein Stern, der vom Himmel fällt, über ihre Häupter weg. Sie wähnten, sie glaubten einander anzugehören; sie wechselten zum erstenmal entschiedene freie Küsse und trennten sich gewaltsam und schmerzlich”. (GOETHE, 1998b, p. 225).

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Durante a apresentação de “quadros vivos”78, a sua personagem é a

Virgem Maria. Conforme é seu desejo, apenas alguns amigos estão na plateia.

Ela faz parte de um quadro vivo, somente após a partida de Luciane. Essa

representação a desconcerta, pois tem consciência do sentimento adúltero que

nutre por Eduard. Ao desconfiar que na plateia está presente o assistente da

diretora do internato, questiona a sua figura em cena e sua situação entre seus

amigos:

‘Serei capaz de revelar-lhe e confessar-lhe tudo? Quão pouco digna estou sendo, ao aparecer diante dele sob esta forma sagrada e quão estranha lhe deve parecer, com esse figurino, aquela que ele contemplou somente ao natural!’ Com uma rapidez inigualável defrontavam-se no seu íntimo sentimento e reflexão. O seu coração estava aflito, os seus olhos encheram-se de lágrimas, enquanto se esforçava para manter-se imóvel [...]. 79 (GOETHE, 1998a, p. 182).

Aqui estão relacionados simbolicamente o sagrado e o profano. No

entanto, tal relação não agrada ao assistente da diretora, que de fato está na

plateia, como suspeita Ottilie. Ele acaba de chegar para participar do convívio

das duas mulheres. Na segunda parte da obra, Charlotte e Ottilie estão como

que suspensas em relação à narrativa. O assistente toma parte nesse novo

contexto, praticamente em substituição ao arquiteto que as deixa triste e

enciumado, mas não pode mais adiar sua partida.

                                                                                                               78 sobre os quadros vivos trataremos na próxima parte. 79 “[…] darfst du ihm alles bekennen und gestehen? Und wie wenig wert bist du, unter dieser heiligen Gestalt vor ihm zu erscheinen, und wie seltsam muß es ihm vorkommen, dich, die er nur natürlich gesehen, als Maske zu erblicken?' Mit einer Schnelligkeit, die keinesgleichen hat, wirkten Gefühl und Betrachtung in ihr gegeneinander. Ihr Herz war befangen, ihre Augen füllten sich mit Tränen, indem sie sich zwang, immerfort als ein starres Bild zu erscheinen”. (GOETHE, 1998b, p. 172).

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Junto ao arquiteto a rotina é ativa e divertida, cercada de trabalhos

artísticos, objetos de viagens, conceitos estéticos. Ele completa seus dias de

forma prazerosa, sendo também muito agradável e cortês. Com a colaboração

do arquiteto são elaborados os quadros vivos e a ornamentação da capela. Ele

contribui também para a continuidade das construções e reformas que estão em

andamento nas propriedades. Torna belo o sagrado e o profano, não os

diferencia diante do seu trabalho.

O assistente dá novo tom a narrativa. É reflexivo, traz conversas longas

sobre as relações humanas e não aprecia a ornamentação profana em local

sagrado. Desmerece as atividades dirigidas pelo arquiteto nas propriedades.

Existem ainda as marcas das gerações que separam Eduard, Ottilie e o

bebê, conforme fica expresso nas palavras de Eduard a Ottilie: “eu já plantava

árvores quando a Senhorita ainda estava no berço”. 80 (GOETHE, 1998a, p.

81). Ou ainda, como conta o narrador: “O dia e o ano em que plantou aquelas

árvores era o mesmo dia e o mesmo ano do nascimento de Ottilie”. 81

(GOETHE, 1998a, p. 111). Para Eduard isso era um presságio e, segundo

Rosenfield 82 (1998, p. 269-270), é a confusão irracional e infeliz das gerações.

Um vínculo obscuro liga Ottilie a Eduard – uma geração acima –, e ao

filho de Eduard – uma geração abaixo. Eduard é seu pai simbolicamente,

enquanto marido de Charlotte, que a tem como filha. Por outro lado, Ottilie

                                                                                                               80 “Ja, liebes Kind, ich pflanzte schon, da Sie noch in der Wiege lagen”80 (GOETHE, 1998b, p. 67) 81 “Der Tag, das Jahr jener Baumpflanzung ist zugleich der Tag, das Jahr von Ottiliens Geburt”. (GOETHE, 1998b, p. 99). 82  nas notas da terceira edição d’As afinidades eletivas da Editora Nova Alexandria.  

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assume, pelos seus gestos e cuidados, a maternidade do filho de Charlotte. Ora

como a irmã mais velha, ora como mãe do filho de Eduard. Assim,

desaparecem os limites nítidos, próprios das relações de parentesco, retiram-se

as margens das relações socialmente estabelecidas.

Eduard representa para Ottilie um misto de amante e de figura paterna.

Correspondendo a isso ela ocupa um espaço neutro e indeterminado. Ela escapa

dos atributos humanos determinados pelas relações de parentesco. Quando

assume a posição de criança (das Kind) na relação filial, coloca-se como um ser

ainda indeterminado sexualmente. Está aí também a semelhança que seu olhar

possui com o do filho de Eduard. No que diz respeito à questão da

indeterminação, menciona-se a relação de identificação que Ottilie desenvolve

pouco a pouco com Eduard. Quando ela faz a cópia do contrato de venda da

propriedade de Eduard, sua letra modifica-se e torna-se idêntica a dele. Isso

pode ser relacionado aos presságios já tratados anteriormente.

Certa vez, as quatro personagens saíram para um passeio e, como

Eduard conhecia o caminho para o velho moinho, adiantou-se com Ottilie. Ao

chegarem no local desejado, Eduard pediu a ela que tirasse o medalhão que lhe

pendia ao peito, preso a uma corrente. Ottilie atende ao pedido de Eduard da

seguinte maneira:

Ottilie, calada, olhava para frente enquanto ele falava; depois, sem precipitação e sem hesitar, com o olhar dirigido mais para o céu do que para Eduard, abriu a corrente, tirou o retrato, comprimiu-o à testa e entregou-o ao amigo dizendo: Guarde-o até chegarmos a casa! Essa é a melhor prova de quanto aprecio o seu afetuoso cuidado. O amigo não ousou levar o retrato aos lábios, mas pegou a mão dela e comprimiu-a contra os seus olhos. Eram talvez as mais belas

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mãos que jamais se juntaram. Foi como se lhe tivessem tirado um peso do coração, como se uma parede entre ele e Ottilie tivesse vindo abaixo.83 (GOETHE, 1998a, p. 70).

Segundo Kathrin Holzermayr Rosenfield 84 (1998, p. 271), a entrega do

retrato do pai a Eduard encerra uma simbologia ambígua: Ottilie entrega a ele a

função paterna ou se desfaz de toda lei e autoridade paternas. Esse retrato é a

única menção ao pai de Ottilie no romance. Desde muito pequena a única

referência paterna ou materna que ela conheceu foram os cuidados e o amor de

Charlotte.

Em “Affinité Eletive” de Paolo e Vitorio Taviani, a leitura

cinematográfica retira o retrato da mãe da corrente que Ottilie carregava ao

peito. Isso é declaradamente uma ruptura da sua relação com Charlotte.

[...] quanto mais um sentimento de amor e de simpatia for metafórico, mais ele terá necessidade de ir buscar forças no sentimento fundamental. Nestas condições, amar uma imagem é sempre ilustrar um amor; amar uma imagem é encontrar sem o saber uma metáfora nova para um amor

                                                                                                               83 “Tun Sie es mir zu Liebe, entfernen Sie das Bild, nicht aus Ihrem Andenken, nicht aus Ihrem Zimmer; ja geben Sie ihm den schönsten, den heiligsten Ort Ihrer Wohnung: nur von Ihrer Brust entfernen Sie etwas, dessen Nähe mir, vielleicht aus übertriebener Ängstlichkeit, so gefährlich scheint. Ottilie schwieg, und hatte während er sprach vor sich hingesehen; dann ohne Übereilung und ohne Zaudern, mit einem Blick mehr gen Himmel als auf Eduard gewendet, löste sie die Kette, zog das Bild hervor, drückte es gegen ihre Stirn und reichte es dem Freunde hin, mit den Worten: Heben Sie es mir auf, bis wir nach Hause kommen. Ich vermag Ihnen nicht besser zu bezeugen, wie sehr ich Ihre freundliche Sorgfalt zu schätzen weiss. Der Freund wagte nicht das Bild an seine Lippen zu drücken, aber er fasste ihre Hand und drückte sie an seine Augen. Es waren vielleicht die zwei schönsten Hände, die sich jemals zusammenschlossen. Ihm war, als wenn ihm ein Stein vom Herzen gefallen wäre, als wenn sich eine Scheidewand zwischen ihm und Ottilien niedergelegt hätte”. (GOETHE, 1998b, p. 55-56). 84 Nas notas da terceira edição d’As afinidades eletivas da Editora Nova Alexandria.

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antigo. Amar o universo infinito é dar um sentido material, um sentido objetivo à infinitude do amor por uma mãe. Amar uma paisagem solitária, quando estamos abandonados por todos, é compensar uma ausência dolorosa, é lembrar-nos daquela que não abandona... Quando amamos uma realidade com toda a nossa alma, é porque essa realidade é já uma alma, é porque essa realidade é uma lembrança”. (BACHELARD, 2002, p. 120-121, grifo do autor).

Em A água e os sonhos, Bachelard conecta experiências humanas com

as muitas possibilidades de olhar para a água, evidentemente o faz de maneira

singular. No trecho acima, podemos relacionar a poeticidade de Bachelard com

a experiência amorosa de Ottilie. Amor existente nela, que a desliga de

Charlotte e a liga a Eduard. Tanto na primeira parte do trecho, que se relaciona

a imagem simbólica da afeição materna ou paterna. Como também na segunda

metade do trecho, que remete à relação de Ottilie com a solidão, com a ausência

do amado ou com a ausência da mãe biológica. São elementos caros ao caráter

recluso dessa personagem.

Temos alguns momentos n’As afinidades eletivas em que Ottilie se

entrega à solidão e aos devaneios quando em contato com a natureza. Como por

exemplo: quando ela está à deriva no barco no meio do lago à mercê do vento,

quando senta-se em frente à casa e fica olhando para o jardim. A natureza

reflete o que está dentro dela. Assim como a sensação de estar a deriva indica o

interior de Ottilie.

Notamos que a identidade da personagem Ottilie se apresenta pelo

pouco que ela fala, por suas ações, por seu olhar ou ainda pelo que tais sinais

despertam nas outras personagens. Ottilie é uma moça de, aproximadamente 17

anos em meio a um grupo de amigos que têm em média 35 anos. A princípio

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ingênua e frágil, mas em resposta às reações de atração e de repulsão

recorrentes da química experimentada no romance, ora ela se entrega à paixão e

ora renuncia à vida.

Os olhos e o olhar são pontos importantes dessa personagem. O olhar de

Ottilie é, segundo o arquiteto, “sereno, amável e afetuoso”.85 (GOETHE,

1998a, p. 180), o que cativa os homens e os atrai para perto de si. Quando se

busca os olhos grandes e pretos de Ottilie, eles também são refletidos como em

um espelho, nos olhos do bebê, que são idênticos aos dela. Filho biológico de

Charlotte e Eduard, mas que se assemelha fisicamente ao Capitão, se está de

olhos fechados; quando o bebê abre os olhos se parece com Ottilie. Aos olhos

de Ottilie, podemos ligar o grande lago formado artificialmente por 3 lagos,

relacionados às narrativas enquadradas tratado anteriormente.

Mas, se o olhar das coisas for um tanto suave, um tanto grave, um tanto pensativo, é um olhar da água. O exame da imaginação conduz-nos a este paradoxo: na imaginação da visão generalizada, a água desempenha um papel inesperado. O verdadeiro olho da terra é a água. Nos nossos olhos, é a água que sonha. Nossos olhos não serão ‘essa poça inexplorada de luz líquida que Deus colocou no fundo de nós mesmos’? Na natureza, é novamente a água que vê, é novamente a água que sonha. ‘O lago fez o jardim. Tudo se compõe em torno dessa água que pensa’. Tão logo entregamos inteiramente ao reino da imaginação, com todas as forças reunidas do sonho e da contemplação, compreendemos a profundidade do pensamento de Paul Claudel: ‘A água, assim, é o olhar da terra, seu aparelho de olhar o tempo’. (BACHELARD, 2002, p. 33, grifo do autor).

                                                                                                               85 “ruhig freundlich gewogenen”. (GOETHE, 1998b, p. 169).

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A marca dos seus olhos não se refere, apenas, à sua aparência física ou

ao seu modo de ver o mundo, mas, principalmente, aos que a olham. Como

descreve o narrador:

Desse modo, ela se tornou para os homens, desde o princípio e cada vez mais, um verdadeiro colírio para os olhos, para usar o termo correto. Pois, se a esmeralda com sua cor magnífica faz bem à vista e até exerce um poder curativo nesse precioso sentido, a beleza humana, por sua vez, atua com intensidade bem maior sobre nossos sentidos externo e interno. Quem a contempla não é tocado por nenhum mal: sente-se em harmonia consigo mesmo e com o mundo”.86 (GOETHE, 1998a, p. 61).

As máximas e os aforismos do diário também designam formas de olhar

para o mundo. São olhares diante da vida e das relações humanas em formato

mínimo. Quando lidos separadamente são como olhares rápidos, abrem ao

leitor novas possibilidades de experimentar a vida nas suas relações ou ainda

novas reflexões para o cotidiano. Se lidos na sequência mostram ao leitor o

olhar de quem os escreveu.

 

                                                                                                               86 “Dadurch ward sie den Männern, wie von Anfang so immer mehr, dass wir es nur mit dem rechten Namen nennen, ein wahrer Augentrost. Denn wenn der Smaragd durch seine herrliche Farbe dem Gesicht wohltut, ja sogar einige Heilkraft an diesem edlen Sinn ausübt, so wirkt die menschliche Schönheit noch mit weit grösserer Gewalt auf den äussern und innern Sinn. Wer sie erblickt, den kann nichts Übles anwehen; er fühlt sich mit sich selbst und mit der Welt in Übereinstimmung”. (GOETHE, 1998b, p. 45-46).

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2.1.2 O Diário

Para montar bem a unidade vocal da poesia da água, vamos desenvolver imediatamente um paradoxo extremo: a água é a senhora da linguagem fluida, da linguagem sem brusquidão, da linguagem contínua, continuada, da linguagem que abranda o ritmo, que proporciona uma matéria uniforme a ritmos diferentes. (BACHELARD)87

O diário de Ottilie88, margeado pela narrativa maior, tem características

hídricas. Ele abranda a narrativa maior, tanto com um ritmo lento nos conjuntos

formados por aforismos longos, como com ritmo rápido com seus aforismos

curtos. Ele é fluido, contínuo, líquido. A água como elemento vivo e natural

contribui para tornar Ottilie mais humana. Para Walter Benjamin (2009) é no

diário que Ottilie apresenta características humanas. A narrativa maior também

se humaniza com o diário. Ele se movimenta dentro do romance como um rio,

que pode ter margens amplas e águas tranquilas ou margens estreitas com

corredeiras. As margens enquadram o rio, assim como o diário se fecha em seus

conjuntos.

Esse diário perpassa o romance ao longo de 9 capítulos, em 6 conjuntos

separados e distintos nos seus temas e nas suas características internas. Ainda

que sejam 6 conjuntos diferentes, estão ligados pela denominação: Do diário de

Ottilie. Ainda que os conjuntos não se liguem organicamente, exercem em suas

diferentes interações sempre a mesma função de narrativa encaixada ao                                                                                                                87 (2002, p. 193). 88 O diário de Ottilie está no Anexo A desta tese de forma integral.  

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romance. Podemos relacionar cada um desses conjuntos tanto com o capítulo

no qual está inserido, como com outros capítulos próximos, ou podemos ainda

não relacioná-los diretamente nem com os capítulos nem com as personagens.

Isso daria à narrativa um caráter preciso para a interpretação dos trechos e

também um aspecto simples de comprovação dos fatos de um texto no outro.

No entanto, tais relações são mais soltas ou nem sempre são construídas a partir

da narrativa maior.

Uns poucos aforismos aproximam-se de Ottilie, outros relacionam-se

com as outras personagens do romance. O diário de Ottilie é composto por 86

aforismos no seu total: 45 aforismos na terceira pessoa do singular; 34

aforismos na primeira pessoa do plural; 9 aforismos na primeira pessoa do

singular. Nesse último grupo de aforismos, que apresenta proximidade maior

com sua suposta autora, são citadas as personagens Charlotte, o arquiteto e o

assistente. Observamos também um aforismo com um apontamento sobre o

gênero feminino no diário: “nós mulheres”. Contudo, o uso da primeira pessoa

não torna os aforismos mais próximos de Ottilie.

O diário discorre sobre a vida e a relação dos seres em sociedade.

Algumas intervenções do narrador, para direcionar a leitura do diário de Ottilie,

indicam que temas tratados ali fazem parte de conversas que aconteceram entre

as personagens, mas que na verdade não constam na narrativa maior.

Tal modo de registrar pensamentos em um diário assemelha-se mais às

cópias ou anotações de pensamentos de outrem em um caderno de reflexões.

Não é exatamente um diário, no qual se escreve acontecimentos cronológicos e

cotidianos.

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Existe uma dificuldade latente em relacionar tais conjuntos de máximas

e aforismos com um diário. Segundo Bourneuf e Ouellet em O universo do

romance (1976, p. 246-247), “o Diário íntimo, em princípio redigido dia a dia,

pretende traduzir a vida interior à medida que ela se desenrola”. No entanto, o

diário de Ottilie não se caracteriza pela ideia de anotações para relatar a vida

diária e assim conseguir apresentar a sua intimidade ou seus pensamentos

secretos. Nesse diário, encontramos vários trechos que são antes reflexões e

expressões de outrem. Podem ter sido ouvidos pelos salões e corredores do

castelo, podem ter sido copiadas de outros caderninhos ou de cartas recebidas.

Latim diariu (m), ração diária; die (m), dia

Designa o relato de acontecimentos ocorridos durante as vinte e quatro horas do dia. De duas formas se processa o registro de eventos: por meio do jornal, ou seja, papel impresso publicado todos os dias ou em certa periodicidade; ou nas páginas reservadas em que o escritor aponta e comenta os fatos principais do seu dia a dia. A segunda modalidade, chamada “diário íntimo”, é que carrega interesse literário, posto que restrito. (MOISES, 1974, p. 148).

No diário de Ottilie não existe nenhuma marcação temporal, como é

comum ver em diários. Isso porque tais anotações não são referentes a

acontecimentos do cotidiano, mas sim a reflexões. Recebe o nome de “diário”

mas poderia ser chamado de “caderno de anotações”.

No primeiro capítulo desta tese analisamos as marcas do tempo n’As

afinidades eletivas. Temos como marcas as estações do ano, o mês de início da

narrativa, as festas religiosas, os onomásticos e as comemorações de

aniversários. Contudo, não são apresentados dias da semana, do mês ou

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qualquer contagem de ano. Para acompanhar a evolução do tempo no romance

é necessário atentar a alguns sinais dados na narrativa. Os registros do diário de

Goethe, em sua obra autobiográfica Viagem à Itália, são feitos por meio de

descrições sobre o dia, o lugar e às vezes também sobre o período referente:

“Den 15. september. Abends. Verona”.

No romance de Gide, Os moedeiros falsos, o diário de Edouard tece

comentários sobre outras personagens. Refere-se a seus sentimentos e suas

impressões e, por isso, aparenta ter sido mesmo escrito por Edouard. Esse

diário dentro do romance funciona como um encaixe e se assemelha a um

romance dentro do romance, como observa Ubiratan Machado, em “Roteiro de

Gide”. Um trecho retirado do diário de Edouard em Os moedeiros falsos:

‘Despojar o romance de todos os elementos que não pertençam especificamente ao romance. Assim como a fotografia, recentemente, livrou a pintura da preocupação com certas exatidões, o fonógrafo certamente desembaraçará amanhã o romance de seus diálogos narrativos, dos quais o realista frequentemente se vangloria. Os acontecimentos anteriores, os acidentes, os traumatismos pertencem ao cinema; é preciso que o romance lho ceda. Mesmo a descrição dos personagens não me parece pertencer convenientemente ao gênero. Sim, realmente, não me parece que o romance puro (em arte, como em tudo, só a pureza me interessa) deva se ocupar dela. Não mais do que o drama. E não me venham dizer que o dramaturgo não descreve seus personagens por que o espectador é levado a vê-los representados vivos no palco, pois quantas vezes não nos sentimos perturbados, no teatro, pelo ator, e sofremos por este parecer tão pouco com aquele do qual, sem ele, tínhamos uma ideia tão clara. – O romancista, em geral, não dá suficiente crédito à imaginação do leitor’. (GIDE, 1983, p. 66).

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Esse trecho do diário de Edouard apresenta várias camadas espelhadas

de intenções denotadas dentro e fora do romance. Temos o interesse do

romancista sobre a criação da narrativa refletida em um romance. O seu desejo

é atingir a elaboração de um romance puro, romance este que não quer se livrar

de textos enxertados, da interferência de outros gêneros dentro do romance.

Esse romance puro, segundo Gide, quer livrar-se de descrições excessivas.

Pretende que o leitor exerça sua liberdade de criação a partir de sua leitura da

narrativa.

Observamos essa característica também n’As afinidades eletivas. É um

romance que trabalha com os fatos e com as inter-relações de personagens.

Apresenta outros gêneros incorporadas ao romance e esses outros gêneros

misturam-se em sua narrativa. Os dois diários, de Ottilie e de Edouard,

funcionam como narrativas enquadradas em seus respectivos romances. Um

escape para o leitor retomar o fôlego ou devanear. A função do diário no texto

do romance pode ser entendida como uma pausa na narrativa maior, como

também um momento de deleite presenteado ao leitor.

As narrativas enquadradas enxertadas na narrativa maior desviam o

leitor. Segundo Gaston Bachelard em A poética do devaneio (2001), rompe-se

com o tempo horizontal, para observar as relações humanas por um outro

ângulo. Sai do tempo da narrativa e coloca o leitor no tempo vertical, no tempo

da dança, que poetiza as relações humanas.

Nesse contexto, o arquiteto tem o destino mais singular de todos. Quantas vezes emprega todo o seu espírito, toda a sua afeição, para criar espaços dos quais ele próprio deve se excluir! Os salões reais lhe devem a sua suntuosidade, de cujo efeito maior ele não desfruta. Nos templos traça uma

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fronteira entre ele e o Altíssimo; não poderá jamais pisar os degraus que assentou para uma cerimônia que eleva os corações, tal como o ourives, que só pode adorar de longe a custódia na qual passou o esmalte e cravou as pedras preciosas. Junto com a chave do palácio, o arquiteto entrega ao rico toda a comodidade e conforto sem poder usufruir deles. Assim, a arte não acabará se afastando aos poucos do artista, se a obra ⎯ como um filho emancipado ⎯ deixar de atuar sobre o pai? E quantos impulsos a arte teria de dar a si mesma, se estivesse destinada a se ocupar quase unicamente com o que é público, com aquilo que pertence a todos e, portanto, também ao artista!”89 (GOETHE, 1998a, p. 153).

Esse trecho pode funcionar como resposta para a questão da autoria que

será tratada mais a diante na relação estabelecida com O trabalho da citação de

Antoine Compagnon. Desta vez, por um outro lado, sobre aquele que elabora a

obra de arte e aquele que desfruta dela. Compagnon, no capítulo denominado

“Posse, apropriação, propriedade”, trata sobre o que é próprio e o que é alheio e

como isso se caracteriza intelectualmente.

‘O primeiro que, cercando um terreno, lembrou-se de dizer: isso é meu’. Eis aí, segundo Rousseau, a origem da propriedade. Com efeito, na perigrafia, é da edificação da propriedade intelectual, literária, artística, estética, que se trata. A perigrafia faz da paisagem textual um campo cultivado; põe fim ao debate, ao delírio quanto à utilização do já dito; resolve uma vez por todas os litígios de usufruto,

                                                                                                               89 “Der Baukünstler vor allen hat hierin das wunderlichste Schicksal. Wie oft wendet er seinen ganzen Geist, seine ganze Neigung auf, um Räume hervorzubringen, von denen er sich selbst ausschließen muß! Die königlichen Säle sind ihm ihre Pracht schuldig, deren größte Wirkung er nicht mitgenießt. In den Tempeln zieht er eine Grenze zwischen sich und dem Allerheiligsten; er darf die Stufen nicht mehr betreten, die er zur hrzerhebenden Feierlichkeit gründete, so wie der Goldschmied die Monstranz nur von fern anbetet, deren Schmelz und Edelsteine er zusammengeordnet hat. Dem Reichen übergibt der Baumeister mit dem Schlüssel des Palastes alle Bequemlichkeit und Behäbigkeit, ohne irgend etwas davon mitzugenießen. Muß sich nicht allgemach auf diese Weise die Kunst von dem Künstler entfernen, wenn das Werk wie ein ausgestattetes Kind nicht mehr auf den Vater zurückwirkt? Und wie sehr mußte die Kunst sich selbst befördern, als sie fast allein mit dem öffentlichen, mit dem, was allen und also auch dem Künstler gehörte, sich zu beschäftigen bestimmt war!” (GOETHE, 1998b, p. 141).

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pois regulariza, no duplo sentido de dar as regras e tornar regular, o funcionamento da máquina de escrever ou de discorrer. (COMPAGNON, 2007, p. 139).

E pensando na propriedade intelectual, quando se copia de outro livro

citações ou se faz empréstimos, paráfrases e alusões pode se questionar o que

realmente é seu e o que é do outro.

A questão recai sobre o resíduo que identifica, que individualiza cada texto na sua uni(ci)dade, logo, sobre o nome próprio, categoria lógica (o que denota um objeto determinado) tanto quanto denominativo societário ou chamamento controlado. A propriedade é fundamentalmente uma questão de discurso, de reconhecimento; ela se opõe ao confisco ou a posse: “A posse (Besitz) torna-se propriedade (Eigentum) e toma um caráter de direito na medida em que todos os outros reconhecem que a coisa que faço minha é minha”. (COMPAGNON, 2007, p. 140-141).

É interessante pensar que a propriedade literária é um objeto imaginário,

apesar de não ter sido elaborado por quem o toma como seu, um texto existe de

forma palpável. O narrador questiona a autoria de Ottilie quanto ao diário que

recebe seu nome. Leva o leitor a acreditar que dificilmente teria sido escrito

pela moça de aproximadamente 17 anos, órfã e que acabou de sair do internato.

Contudo, a propriedade literária que forma esse diário tende, por exemplo, para

o teor das Máximas e Reflexões goethianas.

Permanece, pois, mais perto da verdade da escrita, a apropriação: o que copia uma frase, o que desmascara um sujeito, o que zomba tanto do sujeito quanto do objeto. Isso não é meu, isso não sou eu, falo em nome de alguém; isso é meu sintoma, e o sintoma é sempre o discurso do outro, o real. Não há nada mais real que o roubo ⎯ ausente das considerações hegelianas sobre a propriedade, a não ser na forma do plágio ⎯, o roubo da escrita que abala toda

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propriedade no seu fundamento. (COMPAGNON, 2007, p. 148).

As entradas dos conjuntos de máximas e aforismos são indicadas em

seus capítulos por: Do diário de Ottilie90. Isso pode simplesmente nomear e

distinguir o texto ou também indicar que não temos o diário completo com

anotações integrais referentes a um dia específico. A partícula Do avisa que

acessamos tão somente uma parte retirada do diário. Podemos constatar, então,

que temos possivelmente nas cópias anotadas do diário a escolha de Ottilie e

nos trechos que nos são apresentados no romance a seleção do narrador a partir

do diário de Ottilie.

O narrador aumenta a dúvida sobre a autoria de Ottilie ao questionar sua

capacidade e supor que ela copie trechos de algum caderninho. A escolha de

trechos que nos agradem indica quem nós somos. Talvez essa não seja a

intensidade de aproximação ou de invasão da intimidade de Ottilie prometida

pelo narrador ou esperada pelo leitor, mas a partir de suas escolhas ela está

presente nos trechos selecionados do diário.

O diário de Ottilie apresenta todos os seus conjuntos de máximas e

aforismos entre aspas. Isso pode ser observado tanto nos exemplos de trechos

do diário inseridos nessa tese e também no diário transcrito integralmente no

anexo.

Existe um sinal tipográfico da citação, um indicador que equivale a “Eu cito”: as aspas, que o impressor Guillaume teria inventado no século XVII para enquadrar isolar um discurso apresentado em estilo direto ou uma citação. Anteriormente, apenas a repetição do nome próprio do autor citado, sob a forma de uma oração intercalada, “diz fulano”,

                                                                                                               90 Aus Ottiliens Tagebuche.

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preenchia essa função. O que as aspas dizem é que a palavra é dada a um outro, que o autor renuncia à enunciação em benefício de um outro: as aspas designam uma re-enunciação, ou uma renúncia a um direito de autor. Elas operam uma sutil divisão entre sujeitos e assinalam o lugar em que a silhueta do sujeito da citação se mostra em retirada, como uma sombra chinesa. (COMPAGNON, 2007, p. 52).

Podemos assim considerar que essas máximas e aforismos não

pertencem, então, à suposta autora do diário, contudo as aspas não dizem quem

escreve o texto. As aspas indicam que o texto pertence a outro e dissimula

juntamente com o autor um faz de conta. Podemos ler aí também uma fuga do

autor da narrativa maior. Não sabemos ao certo a quem esses conjuntos de

máximas e aforismos pertencem e podemos fazer nossas suposições. Tais

máximas e aforismos estão entre aspas porque não são do autor do romance?

Ou porque, segundo o narrador, não são originários da propriedade intelectual

de Ottilie? Ou simplesmente, por serem cópias do diário de Ottilie,

independente de ela os ter copiado ou elaborado sozinha?

Assim podem ser cópias de cartas de amigos ou de trechos retirados do

caderninho do arquiteto ou empréstimos do autor do romance para Ottilie. Em

algumas introduções do narrador ao diário, ele indica dúvida a respeito da

autoria de Ottilie. A dúvida em relação à autoria é uma das constantes da pós-

modernidade. A perda da aura da obra de arte deve-se também a isso. Ora o

narrador sugere que ela teria copiado trechos do caderninho do arquiteto, ora

sugere que ela não teria tempo para tais reflexões e ora indica que os trechos

seriam resultado de conversas acontecidas no castelo por aqueles dias, mas tais

conversas não estão presentes na narrativa, são apenas mencionadas.

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Nos capítulos em que o diário faz parte da narrativa maior, Ottilie está

em atividade intensa. Não conseguimos precisar em quais momentos fazia as

anotações. Talvez após seus dias plenos de trabalho recorde-se sozinha em seu

quarto dos diálogos ouvidos nos salões do castelo. Talvez sozinha à noite lesse

e relesse cartas e anotações de seus amigos e copiasse o que lhe agradasse em

seu diário. Ela tem muitas atividades enquanto os quatro amigos estão juntos, e

depois, na segunda parte do romance está ainda mais atarefada quando ela e

Charlotte recebem muitos visitantes.

Em relação a quem escreve ou quantos participam da escritura,

podemos considerar que o diário recebe características temáticas de acordo com

o momento da narrativa maior de que ele faz parte.

Enquanto o arquiteto compartilha a ação da narrativa com as duas

mulheres, os temas do diário de Ottilie, nos capítulos: 2, 3, 4 e 5, tratam da

ornamentação do local sagrado, a interferência do que é profano no que é

sagrado, a arte e o artista, a paixão e assuntos livremente tratos em sociedade.

No primeiro conjunto do diário, o arquiteto é mencionado em referência à sua

coleção de antiguidades.

No capítulo 7, quando o assistente está presente, o conjunto do diário

apresentado tem trechos longos e trata sobre humanidades, como as conversas

desenvolvidas em sua estada nas propriedades. Nesse conjunto, o assistente é

mencionado em relação às suas aulas.

Nos grupos de máximas dos capítulos 4 e 5 da segunda parte, é pouco

provável que Ottilie tivesse feito notas em seu diário. Nesse período o castelo

está cheio de visitantes. Ela tem então muito trabalho na coordenação das

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tarefas domésticas. Nesses dois capítulos, observa-se a presença de Luciane, a

filha de Charlotte que, com toda a sua comitiva, dá ao castelo uma intensa

movimentação de hóspedes e convidados. Nesse momento, Ottilie precisa sair

da presença de Luciane e manter sua atenção e atividade na administração

doméstica. Primeiro pela mútua antipatia entre essas personagens, e segundo,

para que Ottilie pudesse cumprir suas obrigações, o que a deixa certamente com

pouco tempo e sem tranquilidade para escrever. Os trechos desse conjunto são

curtos e se aproximam das conversas ouvidas nos salões.

Quem supostamente compartilhou o caderno com Ottilie? O leitor

poderia apontar poucas possibilidades. Talvez só Charlotte e o arquiteto, que

poderiam dividir esse caderno com a moça. Junto com o assistente da diretora

esses três personagens, como já foi mencionado no início dessa parte, são os

únicos claramente citados no diário. Mas quando, em que oportunidade ou com

quais intenções? E por que essa segunda ou terceira personagem não é apontada

ao menos como coautora?

Desse período de intensa atividade e pouca tranquilidade para Ottilie

estão presentes no romance dois conjuntos do diário. Um com 24 e o outro com

35 máximas. O que significa mais da metade de todo o conteúdo do diário

apresentado no romance. O conjunto total é formado por 86 máximas, como já

foi indicado.

A maioria das reflexões no diário não faz alusão à visão de mundo e ao

modo de agir de Ottilie. Algumas são de um nível intelectual que não

correspondem nem à sua maneira de pensar, nem mesmo poderiam despertar

seu interesse, conforme relatam as cartas do internato recebidas por Charlotte.

O assistente, em uma dessas cartas, transcreve um momento de indignação da

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diretora “‘Mas diga-me, pelo amor de Deus, como pode alguém parecer tão tolo

quando não é?’”91 (GOETHE, 1998a, p. 57); ou ainda como indica o presidente

da banca examinadora sobre o trabalho do assistente junto a Ottilie:

‘As aptidões estão latentes e precisam tornar-se realidade. Esse é o objetivo de toda educação, essa é a intenção notória e evidente dos pais e responsáveis e implícita e semiconsciente das próprias crianças. [...] Transforme-as em realidade até o próximo ano, e não faltarão aplausos nem ao senhor, nem a sua aluna predileta’92. (GOETHE, 1998a, p. 57).

Por outro lado, ao analisar o total de máximas e aforismos não se

consegue decodificar as marcas de uma moça apaixonada por um homem

comprometido e mais velho. Percebemos, sim, claramente as marcas, as

características condizentes com a idade, a experiência e a cultura de Goethe. “O

autor das máximas não é um escritor; ele diz a verdade [...] prefigura portanto

antes aquele a quem chamamos intelectual”. (BARTHES, 2004, p. 100-101).

No início do capítulo 3, lemos sobre o prazer do diletante. Ottilie atua

como o diletante ao ajudar o arquiteto na pintura da capela. Ela também é uma

diletante se assume a escrita do diário.

                                                                                                               91 “Aber sagen Sie mir, ums Himmels willen! Wie kann man so dumm aussehen, wenn man es nicht ist?”. (GOETHE, 1998b, p. 41). 92 “Fähigkeiten werden vorausgesetzt, sie sollen zu Fertigkeiten werden. Dies ist der Zweck aller Erziehung, dies ist die laute, deutliche Absicht der Eltern und Vorgesetzten, die stille, nur halb bewußte der Kinder selbst. Dies ist auch der Gegenstand der Prüfung, wobei zugleich Lehrer und Schüler beurteilt werden. Aus dem, was wir von Ihnen vernehmen, schöpfen wir gute Hoffnung von dem Kinde, und Sie sind allerdings lobenswürdig, indem Sie auf die Fähigkeiten der Schülerinnen genau achtgeben. Verwandeln Sie solche übers Jahr in Fertigkeiten, so wird es Ihnen und Ihrer begünstigten Schülerin nicht an Beifall mangeln”. (GOETHE, 1998b, p. 41).

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É uma sensação tão agradável ocuparmo-nos com algo que só conhecemos pela metade, que ninguém deveria censurar o diletante, quando este se dedica a uma arte que nunca aprenderá, e nem o artista que, transpondo as fronteiras de sua arte, se deleita em passear pelos campos vizinhos.93 (GOETHE, 1998a, p. 149).

Talvez a tal intimidade de Ottilie tenha essa característica flutuante do

pensamento solto, talvez ela fique fechada em seu mundo refletindo sobre a

condição humana, sobre a morte, sobre a vida, sobre a arte, sobre a paixão. Ora

pairando em aforismos que a levam a lugares profundos do seu pensamento, ora

brincando com os que cortam a reflexão em qualquer momento e não se

concluem.

Não é possível dizer quando ou por que Ottilie começou o diário. Ele é

introduzido bruscamente na narrativa maior pelo narrador e é também ele quem

cessa as inserções do diário sem nenhum motivo claro. Não existe nenhuma

indicação sobre o final do diário nem por que a inserção dos conjuntos do

diário para com o sexto conjunto.

Importante para o final dos enquadramentos do diário talvez seja o

eminente retorno das quatro personagens no ambiente das propriedades de

Eduard. Essas personagens novamente juntas preparam-se para o desfecho do

romance. Protagonizam os últimos capítulos e não é mais necessário desviar a

atenção do leitor.

Ottilie mostra-se sensível à arte nesse momento em que temos a

inserção do diário, admira-se com as relíquias e figuras esboçadas pelo                                                                                                                93 “Es ist eine so angenehme Emfpindung, sich mit etwas zu beschäftigen, was man nur halb kann, daß niemand den Dilettanten schelten sollte, wenn er sich mit einer Kunst abgibt, die er nie lernen wird, noch den Künstler tadeln dürfte, wenn er über die Grenze seiner Kunst hinaus in einem benachbarten Felde sich zu ergehen Lust hat”. (GOETHE, 1998b, p. 136).

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arquiteto, envolve-se com a pintura da capela e deleita-se com o resultado final

dessas pinturas. Aqui, Ottilie quase não faz parte dos diálogos ou da ação da

narrativa maior, talvez esteja tão somente na habilidade escrita sua expressão

enquanto está fechada para o mundo.

Ao final do capítulo 2 da segunda parte, o narrador apresenta o primeiro

conjunto do diário de Ottilie. Esse capítulo é elaborado por inserções do

narrador. Não temos aqui nenhum diálogo entre as personagens, apenas

descrições e intromissões do narrador. Os capítulos nesse romance, em geral,

não são longos. O capítulo que apresenta o primeiro conjunto de aforismos é

um dos menores em número de páginas.

Ele é composto por 7 aforismos, e os temas principais são a morte e a

arte, a relação com imagens e retratos e a ligação pessoal com os amigos e

parentes. Tais temas são tratados nos dois capítulos iniciais da segunda parte do

romance.

Nos capítulos 1 e 2 da segunda parte, o tema discutido por Charlotte,

Ottilie, o arquiteto e o jovem advogado é a reforma do cemitério. O jovem

advogado vai até Charlotte para defender os interesses de seus clientes, contra

as mudanças que ela executa no campo santo e na capela. Toda a confusão se

dá, pois:

[...] alguns paroquianos haviam desaprovado o fato de se terem retirado os marcos que indicavam os lugares onde descansavam seus antepassados, apagando, de certo modo, a lembrança deles. Na verdade, os monumentos bem conservados indicam quem, mas não onde a pessoa está enterrada, e justamente o onde é o mais importante, como muitos afirmavam. (GOETHE, 1998a, p. 140).

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O sentimento puro de igualdade enfim alcançado, ao menos depois da morte, parece-me [para Charlotte] mais tranquilizador do que essa afirmação obstinada e inflexível de nossa personalidade, de nossos afetos e de nossos relacionamentos em vida. (GOETHE, 1998a, p. 142).

[para o arquiteto] no entanto o mais belo monumento para o ser humano continua sendo a sua própria imagem. (GOETHE, 1998a, p. 143).94

Ottilie praticamente não participa da conversa, apenas observa o

mostruário de arte do arquiteto. A única fala dela, nesses dois capítulos,

questiona a atitude de Charlotte em contraponto com o discurso do arquiteto

que se coloca a favor de Charlotte, defendendo-a da reinvindicação do jovem

advogado. Ela demonstra desinteresse pelo tema, mas ainda assim, tal tema é

retomado em seu diário inserido no capítulo seguinte.

O arquiteto já convivia com Charlotte e Ottilie há algum tempo. Agora,

com a partida de Eduard e do Capitão, ele cuida das mulheres e as acompanha

no seu dia a dia. Ele atua bastante em defesa de Charlotte durante a conversa

com o jovem advogado.

No terceiro e no quarto aforismo do capítulo 2 está latente a admiração

com algo real por intermédio de uma imagem irreal. É o gosto pela cópia, que                                                                                                                94 “Allein desungeachtet hatten schon manche Gemeindeglieder früher gemißbilligt, daß man die Bezeichnung der Stelle, wo ihre Vorfahren ruhten, aufgehoben und das Andenken dadurch gleichsam ausgelöscht; denn die wohlerhaltenden Monumente zeigen zwar an, wer begraben sei, aber nicht, wo er begraben sei, und auf das Wo komme es eigentlich an, wie viele behaupteten”. (GOETHE, 1998b, p. 127). “Das reine Gefühl einer endlichen allgemeinen Gleichheit, wenigstens nach dem Tode, scheint mir beruhigender als dieses eigensinnige, starre Fortsetzen unserer Persönlichkeiten, Anhänglichkeiten und Lebensverhältnisse. Und was sagen Sie hierzu?" richtete sie ihre Frage an den Architekten”. (GOETHE, 1998b, p. 129). “[…] doch bleibt immer das schönste Denkmal des Menschen eigenes Bildnis”. (GOETHE, 1998b, p. 143).

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consiste em deleitar-se mais com a reprodução do que com o original. Esse

tema tem relação tanto com a representação de quadros vivos, o pictórico

encenado ao vivo, como também com o próprio diário, que indica ser feito de

cópias. Charlotte também apresenta essa postura ao preferir ouvir as impressões

de Ottilie antes de conhecer fisicamente a reforma da capela executada pelo

arquiteto, e só depois admirar pessoalmente o que lá foi feito.

– Por melhor que seja a surpresa que ele [o Arquiteto] nos tenha preparado – disse Charlotte, assim que ele saiu – , não tenho, no momento, nenhuma vontade de descer até lá. Você pode muito bem ir sozinha e me contar depois. Com certeza, ele deve ter preparado algo agradável. Gozarei primeiro a sua descrição e depois a realidade95. (GOETHE, 1998a, p. 151).

Tudo indica que Ottilie está com Charlotte e o arquiteto ao longo desses

dois primeiros capítulos, que compõem as reflexões apresentadas nesse

conjunto de aforismos do diário. Podemos acreditar que ela estivesse anotando

em um caderninho tudo o que era discutido. Tanto Charlotte como o arquiteto

também anotariam tais reflexões, pois essas falas fazem parte de seus próprios

discursos. Nesse capítulo, o narrador faz a passagem do romance para o diário

com o seguinte trecho:

Esses dias, aliás, não foram pródigos em acontecimentos, embora repletos de pretextos para conversas sérias. Portanto aproveitaremos a ocasião para comunicar uma passagem do

                                                                                                               95 “Was er uns auch für eine überraschung zugedacht haben mag", sagte Charlotte, als er weggegangen war, "so habe ich doch gegenwärtig keine Lust hinunterzugehen. Du nimmst es wohl allein über dich und gibst mir Nachricht. Gewiß hat er etwas Angenehmes zustande gebracht. Ich werde es erst in deiner Beschreibung und dann gern in der Wirklichkeit genießen”. (GOETHE, 1998b, p. 139).

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diário de Ottilie, relacionada a esse assunto, para a qual não encontraremos transcrição mais adequada, a não ser através de uma metáfora inevitável ao contemplarmos essas afetuosas folhas96. (GOETHE, 1998a, p. 146).

Em Conversações com Goethe, Eckermann resolve a falta de anotações

para o dia 16 de agosto de 1824 com uma atitude semelhante à do narrador ao

inserir o diário de Ottilie:

‘A convivência com Goethe foi-me nestes dias altamente proveitosa; estive porém demasiado atarefado com outros assuntos, o que me impediu de tomar notas da grande parte de suas inestimáveis reflexões. Encontro apenas em seu caderno as seguintes máximas, esquecido todavia dos motivos e conexão que as originaram:

‘Os homens são potes de barro levados pela corrente, que se entrechocam.

‘De manhã sentimo-nos mais prudentes, mas também mais apreensivos, pois o receio é já uma prudência, embora passiva. Os tolos não têm preocupações.

‘Não se deve levar para a velhice as faltas da mocidade pois a velhice já carrega as suas.

‘A vida de Corte assemelha-se a uma orquestra em que cada um tem que marcar seu compasso e pausa.

‘Os cortesãos morreriam de aborrecimento se o seu tempo não estivesse preenchido pelas cerimônias.

‘Não é bom aconselhar a um príncipe que renuncie mesmo as coisas mais significantes.

‘Quem quiser formar bons atores deve munir-se de inesgotável paciência. (ECKERMANN, 2004, p. 86-87).

                                                                                                               96 “Übrigens waren diese Tage zwar nicht reich an Begebenheiten, doch voller Anlässe zu ernsthafter Unterhaltung. Wir nehmen daher Gelegenheit, von demjenigen, was Ottilie sich daraus in ihren Heften angemerkt, einiges mitzuteilen, wozu wir keinen schicklichern übergang finden als durch ein Gleichnis, das sich uns beim Betrachten ihrer liebenswürdigen Blätter aufdringt”. (GOETHE, 1998b, p. 134).

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134    

Eckermann apresenta máximas copiadas do caderno de Goethe de forma

aleatória. Confessa não saber sua origem, nem sua conexão e também não se

dispõe a solucionar suas dúvidas. São máximas livremente inseridas em suas

anotações.

O diário é inserido no romance, segundo o narrador, por falta de

acontecimentos no momento, como se realmente não existisse mais nada a ser

contado sobre as personagens, suas relações, suas atividades, suas escolhas e

desejos. O narrador indica não ter mais o que tratar na narrativa maior e

introduz então o diário de Ottilie. A promessa é a de conhecer as conversas

ocorridas por trás da narrativa maior.

O narrador introduz no romance a comparação do fio de afeição, que é a

suposta marca de Ottilie, com o fio vermelho, que é a marca da marinha

inglesa:

Já ouvimos falar de uma tática singular da marinha inglesa. Todas as cordas da Armada Real, da mais forte à mais fraca, são tecidas de tal maneira, que um fio vermelho as perpassa por inteiro, sendo impossível de ser tirado sem desfazer tudo, e assim podem-se reconhecer até mesmo os menores pedaços pertencentes à coroa.

Do mesmo modo, o diário de Ottilie é perpassado por um fio de afeição e de ternura que liga e caracteriza todo o conjunto. Por conseguinte essas observações, essas ponderações, essas máximas selecionadas e o que mais possa aparecer são bem peculiares e muito significativas para quem as escreveu. Cada trecho escolhido e citado por nós dará disso a prova mais concludente.97 (GOETHE, 1998a, p. 147, grifo nosso).

                                                                                                               97 “Wir hören von einer besondern Einrichtung bei der englischen Marine. Sämtliche Tauwerke der königlichen Flotte, vom stärksten bis zum schwächsten, sind dergestalt

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135    

A posição do narrador na narrativa maior está além da posição de

testemunha, em claro contraste com sua observação no trecho transcrito. Nesse

parágrafo, que liga o romance ao diário, ele aponta uma possibilidade de

conhecer a intimidade da personagem aparentemente tão reclusa. Contudo, essa

é uma afirmação vazia. Apesar de indicar a existência de uma interligação entre

os trechos, o narrador deixa a dúvida sobre a autoria ao usar o pronome “quem”

no final da citação acima.

Nessa ligação do romance com o diário, o narrador encontra dificuldade

em definir ao certo uma categoria a tais transcrições. Destacados em itálico na

citação acima, ele as nomeia como: “essas observações, essas ponderações,

essas máximas selecionadas”. Reafirma a dificuldade de identificação ao

demonstrar a sua dúvida com: “o que mais possa aparecer”. Realmente é um

tanto incerta a qualificação desses trechos.

Grego aphorismós, definição.

Empregado inicialmente por Hipócrates (século V a. C.) em seus Aforismos, o termo designava toda proposição concisa encerrando um saber medicinal baseado na experiência e que podia ser considerado norma ou verdade dogmática. Com o tempo, o vocábulo se estendeu a outros ramos do conhecimento, como as Leis, a Política, a Agricultura, as Artes. [...] (MOISES, 1974, p. 14).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     geht, den man nicht herauswinden kann, ohne alles aufzulösen, und woran auch die kleinsten Stücke kenntlich sind, daß sie der Krone gehören. Ebenso zieht sich durch Ottiliens Tagebuch ein Faden der Neigung und Anhänglichkeit, der alles verbindet und das Ganze bezeichnet. Dadurch werden diese Bemerkungen, Betrachtungen, ausgezogenen Sinnsprüche und was sonst vorkommen mag, der Schreibenden ganz besonders eigen und für sie von Bedeutung. Selbst jede einzelne von uns ausgewählte und mitgeteilte Stelle gibt davon das entschiedenste Zeugnis. (GOETHE, 1998b, p. 137-135).

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Para os dois primeiros conjuntos consideramos que “aforismos”

denomine as sentenças que figuram nessa parte. O conjunto é aberto, pois

aceita vários temas. Não depende de ter ligação com o capítulo em que está

inserido. Não denota o crivo da suposta autora. Não está diretamente

relacionado com a sua intimidade, como promete o narrador. Um aforismo tem

por característica principal o formato aberto, que dá ao leitor a possibilidade de

completar a reflexão. Nesse modelo de reflexão apresentada em aforismos, o

leitor tem maior liberdade de compreensão ou de interpretação. Existe, dessa

forma, uma interação do leitor com o suposto autor do diário.

Nas máximas tudo é, ao contrário, o que traça uma relação de máscara

entre as virtudes e as paixões. Quanto ao sentido da máxima, Barthes (2004)

contrapõe o primeiro e o segundo termo que a compõem. O primeiro trata de

decepcionar e faz parte da classe das virtudes (a clemência, a valentia, a força

da alma, a sinceridade, o desprezo pela morte). Tais virtudes devem encontrar a

realidade que está no segundo termo da máxima. Essa realidade revela a

identidade verdadeira das virtudes. No segundo termo estão as paixões (a

vaidade, o furor, a preguiça, a ambição e o amor-próprio).

Barthes (2004, p. 94) distingue o segundo termo em contingências e

realidades atenuadas. As contingências representam tudo o que depende do

acaso e as realidades atenuadas, que expressam certa insignificância do mundo,

são representadas por ações, defeitos, efeitos e as palavras gerais.

Segundo a definição de Barthes (2004) as máximas podem ser

puramente comparativas (com o uso de mais, tanto quanto, menos), podem

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compor uma relação de equivalência ou de aspecto quantitativo. Elas podem

definir uma identidade de forma direta: isso é aquilo. As máximas podem ser

enfáticas ou de aparência pouco igualitária. Podem ser desmistificantes quando,

ao invés de explicar uma definição, apresentam um desvendamento redutor e

disfórico, essa é a relação de identidade deceptiva. Sua forma restritiva denota

um racionalismo incompleto perpassado de pessimismo.

Trata-se, em suma, pelo próprio estado da estrutura, de uma relação de essência, não de fazer, de identidade, não de transformação; efetivamente, na máxima, a linguagem sempre tem uma atividade definidora e não uma atividade transitiva; uma coletânea de máximas é sempre mais ou menos (e isso é flagrante para La Rochefoucauld) um dicionário, não um livro de receitas: ele esclarece o ser de certos comportamentos, não os seus modos ou as suas técnicas. Essa relação de equivalência é de um tipo bastante arcaico; definir as coisas (com a ajuda de uma relação imóvel) é sempre mais ou menos sacralizá-las, e a máxima não se exime disso, a despeito de seu projeto racionalista. (BARTHES, 2004, p. 85-86).

No capítulo 3 da segunda parte, analisamos o segundo conjunto

composto por cinco aforismos. Eles fazem alusão ao tema da arte e relações

com os estamentos, que estão presentes nesse capítulo. Contudo, o narrador não

faz nenhuma mediação do romance para o diário. Dos cinco aforismos, apenas

um tem caráter pessoal, pelo uso da primeira pessoa do singular. Tal aforismo

está relacionado ao momento em que Ottilie admira o trabalho realizado na

capela.

‘Os povos antigos tinham uma concepção séria que pode parecer terrível. Imaginavam os seus antepassados dentro de

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cavernas, sentados em tronos e entretendo-se em silêncio. Ao entrar um novato, se fosse bastante digno, eles se levantavam e se inclinavam, dando-lhes as boas-vindas. Ontem, sentada na capela, ao ver em frente à minha cadeira esculpida várias outras ao redor, essa idéia me pareceu amável e graciosa. ‘Por que não posso ficar aqui sentada?’, pensei comigo mesma. ‘Ficar sentada, quieta e recolhida, muito tempo, muito tempo, até chegarem os amigos, diante dos quais me levantarei, indicando com uma amável inclinação os seus lugares’. As cores do vitral davam ao crepúsculo um tom grave, e alguém deveria trazer uma lâmpada eterna para que a noite não ficasse completamente escura’. 98 (GOETHE, 1998a, p. 153).

O próximo trecho transcrito é retirado do corpo da narrativa maior e o

relacionamos com o aforismo do diário acima transcrito. É a experiência da

menina no momento em que contempla o resultado da reforma da capela.

Interessante que, ao observar esse diário, também nos deleitamos com trechos

conhecidos e desconhecidos.

Ottilie deleitava-se com as partes conhecidas, mas que formavam agora um conjunto desconhecido. Ia de um lado para o outro, parava, olhava e examinava; por fim, sentou-se numa das cadeiras e, olhando em volta e para cima, teve a impressão de que existia e não existia, de que sentia e não

                                                                                                               98 “Eine Vorstellung der alten Völker ist ernst und kann furchtbar scheinen. Sie dachten sich ihre Vorfahren in großen Höhlen ringsumher auf Thronen sitzend in stummer Unterhaltung. Dem Neuen, der hereintrat, wenn er würdig genug war, standen sie auf und neigten ihm einen Willkommen. Gestern, als ich in der Kapelle saß und meinem geschnitzten Stuhle gegenüber noch mehrere umhergestellt sah, erschien mir jener Gedanke gar freundlich und anmutig. Warum kannst du nicht sitzenbleiben? dachte ich bei mir selbst, still und in dich gekehrt sitzenbleiben, lange, lange, bis endlich die Freunde kämen, denen du aufstündest und ihren Platz mit freundlichem Neigen anwiesest. Die farbigen Scheiben machen den Tag zur ernsten Dämmerung, und jemand müßte eine ewige Lampe stiften, damit auch die Nacht nicht ganz finster bliebe”. (GOETHE, 1998b, p. 141-142).

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sentia, de que tudo diante dela e ela própria iriam desaparecer [...].99 (GOETHE, 1998a, p. 152).

Nessa relação está um dos poucos aforismos do diário que faz alusão a

Ottilie e a um momento de introspecção da personagem. Podemos aí entender

um desejo seu para o após a morte, ou ainda observar que Charlotte aprecia a

igualdade após a morte para as demais sepulturas no cemitério, mas separa

Ottilie e Eduard na capela. Eles não são iguais a ela, eles não renunciam à

paixão. Após a morte de Ottilie, o caixão com a tampa de vidro, onde ela jazia,

foi colocado na capela junto a uma lâmpada, que deveria sempre estar acesa a

pedido de Eduard. Pouco tempo depois Eduard morre, por motivos naturais,

segundo o médico, e morais segundo Mittler, e é colocado na capela ao lado de

sua amada. Charlotte determina que mais ninguém seja enterrado naquele local.

O último aforismo desse conjunto trata do tempo observado no ciclo da

natureza. Anuncia o final do ano, o que corresponde ao tempo na narrativa

maior. Constatamos a partir desse aforismo que a elaboração do diário pode

acontecer concomitantemente à narrativa linear, não seriam então trechos

guardados de outros momentos. Existe em todo diário uma coincidência do

tempo nas duas narrativas.

No capítulo 4 da segunda parte, está presente o terceiro conjunto do

diário. Este compreende 24 máximas, na sua maior parte sobre como os

indivíduos se comportam socialmente. Aqui, o narrador apresenta uma

                                                                                                               99 “Ottilie freute sich der bekannten, ihr als ein unbekanntes Ganze entgegentretenden Teile. Sie stand, ging hin und wider, sah und besah; endlich setzte sie sich auf einen der Stühle, und es schien ihr, indem sie auf und umherblickte, als wenn sie wäre und nicht wäre, als wenn sie sich empfände und nicht empfände, als wenn dies alles vor ihr, sie vor sich selbst verschwinden sollte”. (GOETHE, 1998b, p. 140).

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introdução no corpo da narrativa maior para inserir o diário. Ele demonstra

certo desconhecimento sobre a origem dessas cópias. Introduz esse conjunto de

extratos com o trecho abaixo:

Sobre esta época encontramos pouquíssimas anotações no diário de Ottilie; em compensação, abundam as máximas e sentenças referentes à vida ou dela extraídas. Mas, como a maior parte delas não parece ter nascido de sua própria reflexão, é bem provável que lhe tivessem emprestado um caderno qualquer, do qual tenha copiado o que lhe agradava. Muitas particularidades relacionadas a sua intimidade podem ser reconhecidas através do fio vermelho100 . (GOETHE, 1998a, p. 161, grifo nosso).

O narrador volta a mencionar o fio vermelho, para reafirmar a relação

dos aforismos com a intimidade de Ottilie. No entanto, o narrador não vai além

disso. Ele não comprova a existência de ligação entre as máximas ou a

existência do fio vermelho de ligação entre os seus conjuntos, como já havia

anteriormente prometido no primeiro trecho de apresentação do diário. Ali ele

faz a comparação entre as cordas da Armada Real e o fio de afeição no diário

de Ottilie. Afirma a sua falta de conhecimentos e de acesso às informações, a

despeito de sua habitual onisciência. Onisciência que ele demonstra ou não

quando lhe convém.

                                                                                                               100 Um diese Zeit finden sich in Ottiliens Tagebuch Ereignisse seltner angemerkt, dagegen häufiger auf das Leben bezügliche und vom Leben abgezogene Maximen und Sentenzen. Weil aber die meisten derselben wohl nicht durch ihre eigene Reflexion entstanden sein können, so ist es wahrscheinlich, daß man ihr irgendeinen Heft mitgeteilt, aus dem sie sich, was ihr gemütlich war, ausgeschrieben. Manches Eigene von innigererem Bezug wird an dem roten Faden wohl zu erkennen sein. (GOETHE, 1998b, p. 150).

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Nesse momento, o narrador novamente demonstra dúvida em nomear

esses trechos. “Abundam as máximas e sentenças referentes à vida ou dela

extraídas”. Nesse conjunto e no próximo, optaremos por denominar os trechos

como “máximas”.

Os capítulos que antecedem os capítulos compostos pelo diário parecem

ser explicativos em relação aos conjuntos de máximas e aforismos. Podemos

observar durante a conversa sobre as reformas no campo santo que um

descuido semelhante ocorre na elaboração do diário. Em decorrência da noção

de igualdade entre os mortos enterrados ou de homogeneização entre os trechos

transcritos não necessitam ser nomeados. Retirando a placa com o nome do

ente querido, a família não conseguia prestar suas homenagens de maneira

individual. Da mesma forma, os aforismos são supostamente cópias de cartas

recebidas de amigos. Ao não serem identificadas formam um novo conjunto,

não sabemos o que eram antes e por outro lado algumas vezes encontramos

dificuldade em ligá-los a Ottilie.

Podemos ainda ressaltar que das 35 máximas do capítulo 5 da segunda

parte, no quarto conjunto, 31 abordam simbolicamente as relações sociais; 3

tratam da arte; e 1 única é de fundo pessoal. No entanto, tal caráter pessoal é

duvidoso, por não encontrar correspondência no romance.

No capítulo 7 da segunda parte, o narrador faz a passagem do romance

para o diário introduzindo o seguinte trecho.

Andavam no salão de um lado para o outro; o assistente folheava alguns livros e, por fim, apanhou o volume in-fólio, que tinha ficado ali desde o tempo de Luciane. Ao ver que só

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continha figuras de macacos, fechou-o logo. Esse incidente, contudo, foi provavelmente o motivo de uma conversa, da qual encontramos alguns indícios no diário de Ottilie101 . (GOETHE, 1998a, p. 192).

Tal introdução ao quinto conjunto de aforismos do diário de Ottilie é

bastante esclarecedora. Nesse momento, o assistente da diretora do internato

faz parte do cotidiano de Charlotte e de Ottilie.

Todo o capítulo 7 apresenta um conteúdo rico, sob a influência da

presença do assistente da diretora. Esse conteúdo caberia muito bem nos

aforismos do diário. O diálogo, aqui, se desenvolve muito mais entre o

assistente e Charlotte, pois Ottilie está presente, mas faz apenas pequenas

interferências, e num segundo momento ela é o assunto. A pouca participação

intelectual de Ottilie nas conversas é um motivo de estranheza para que ela seja

a autora ou a única autora do diário. Podemos considerar que, apesar do

questionamento do narrador sobre tal autoria, o veículo de expressão, para esse

momento perturbador de Ottilie, seja o seu diário.

Como indica o narrador, esse conjunto do diário pode estar relacionado

a uma suposta conversa entre Ottilie e o assistente, sobre a qual não temos

registro no romance. A observação do volume in-fólio e a brincadeira com as

figuras de macacos é feita por Luciane de forma grosseira e deselegante no

capítulo 4 da segunda parte. O livro é deixado na sala e o tema é retomado pelo

assistente em oposição à situação anterior. Assim os aforismos do diário não se

                                                                                                               101 “Man ging im Saale auf und ab, der Gehülfe blätterte in einigen Büchern und kam endlich an den Folioband, der noch von Lucianens Zeiten her liegengeblieben war. Als er sah, daß darin nur Affen enthalten waren, schlug er ihn gleich wieder zu. Dieser Vorfall mag jedoch zu einem Gespräch Anlaß gegeben haben, wovon wir die Spuren in Ottiliens Tagebuch finden”. (GOETHE, 1998b, p. 182-183).

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relacionam com o capítulo 4, mas com a conversa apenas mencionada pelo

narrador.

Nesse grupo estão transcritos 8 aforismos e os temas tratados são o

estudo da ciência, o viajante, o pesquisador da natureza: Alexander von

Humboldt (1769-1859), os macacos e o quanto é estranho aproximá-los do

humano. Os interlocutores desse conjunto são: o assistente que é citado e

supostamente Ottilie, como autora, que usa a primeira pessoa do singular. As

falas do assistente podem servir como inspiração para a elaboração do diário de

Ottilie.

Nos capítulos 3, 5 e 9, o narrador não faz a transição da narrativa maior

para o diário. No capítulo 9 da segunda parte, está o sexto e último conjunto do

diário. Dentre os 7 aforismos deste grupo: 1 faz alusão simbólica à sociedade e

3 referem-se ao tempo e a natureza. No primeiro trecho desse conjunto,

podemos considerar que é revelado como o diário foi feito e de onde os trechos

foram retirados. A máxima que abre o último conjunto, no capítulo 9, questiona

a elaboração de um diário e a nossa relação com as palavras que entram de

alguma forma em contato conosco:

‘Anotamos com prazer em nosso diário algum bom pensamento que lemos ou algo notável que ouvimos. Mas, se ao mesmo tempo nos déssemos ao trabalho de copiar das cartas de nossos amigos as observações particulares, as opiniões originais, as expressões sutis e espirituosas, ficaríamos então bastante enriquecidos. Guardamos as cartas e nunca mais as relemos; por fim as rasgamos com discrição e assim desaparece irremediavelmente, para nós e para os outros, o mais belo e o mais imediato sopro de vida.

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Proponho-me a reparar essa falta’.102 (GOETHE, 1998a, p. 202-203).

Esse trecho apresenta uma resposta possível à dúvida sobre a origem

dos conjuntos de máximas e aforismos do diário de Ottilie.

Os conjuntos param aqui, sem que o narrador expresse um motivo.

Contudo, no último aforismo obtém-se a resposta metafórica para o

encerramento do diário.

Uma vida sem amor, sem a presença do ser amado, não passa de uma comédie à tiroir, de uma peça engavetada de má qualidade. Tiramos da gaveta uma após a outra, tornamos a guardá-las e corremos atrás das seguintes. Tudo o que acontece de bom e de importante possui relações frágeis. Temos de começar qualquer coisa pelo princípio, mas queremos terminá-la em qualquer lugar. 103 (GOETHE, 1998a, p. 204).

Na verdade, esse último trecho não é declaradamente um final para o

diário e nem mesmo um aviso claro de que ele se encerra ali. Ele é

interrompido como um devaneio ou um momento de reflexão. Dessa forma, a

                                                                                                               102 “Einen guten Gedanken, den wir gelegen, etwas Auffallendes, das wir gehört, tragen wir wohl in unser Tagebuch. Nähmen wir uns aber zugleich die Mühe, aus den Briefen unserer Freunde eigentümliche Bemerkungen, originelle Ansichten, flüchtige geistreiche Worte auszuzeichnen, so würden wir sehr reich werden. Briefe hebt man auf, um sie nie wieder zu lesen; man zerstört sie zuletzt einmal aus Diskretion, und so verschwindet der schönste, unmittelbarste Lebenshauch unwiederbringlich für uns und andre. Ich nehme mir vor, dieses Versäumnis wiedergutzumachen”. (GOETHE, 1998b, p. 193-194). 103 “Ein Leben ohne Liebe, ohne die Nähe des Geliebten ist nur eine "comedie a tiroir", ein schlechtes Schubladenstück. Man schiebt eine nach der andern heraus und wieder hinein und und eilt zur folgenden. Alles, was auch Gutes und Bedeutendes vorkommt, hängt nur kümmerlich zusammen. Man muß überall von vorn anfangen und möchte überall enden. (GOETHE, 1998b, p. 195).

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ação do romance retorna ao conflito central, com os preparativos para o

(re)agrupamento das quatro personagens.

Quando lemos o diário como parte dos capítulos, na sequência da

narrativa maior, cobramos a necessidade de encontrar sentido de uma narrativa

na outra. Queremos compreender qual é a ligação entre as narrativas e porque o

diário faz parte desses capítulos específicos. Quando lemos o diário procurando

marcas da intimidade de Ottilie, como nos promete o narrador, dos 86 trechos

encontramos apenas 9 em que seria possível indicar sua autoria, no entanto não

corresponde ao fio de afeição simbolizado pelo fio vermelho das cordas da

marinha inglesa.

Se escolhemos apenas um trecho do diário retirado do seu conjunto e até

mesmo da composição do romance e o lemos assim separadamente, nós nos

vemos nele e ele nos reflete. Um trecho do diário pode ser reconhecido como

um todo em si mesmo na apropriação de quem o lê. Reflete suas características,

seu modo de se relacionar com o outro e com o mundo. Produz reflexão e se

torna uma verdade latente para o leitor. “[...] cada máxima é de algum modo,

arquétipo de todas as máximas [...]”. (BARTHES, 2004, p. 80). Ao ler o

conjunto do diário completo ou a sequência de trechos separada da narrativa

maior, temos uma nova experiência. Os conjuntos do diário “são seu autor, as

observações dele, seu tempo, que elas nos entregam, não nós mesmos”.

(BARTHES, 2004, p. 79).

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2.2 Os quadros vivos  

[...] arte é, antes de mais nada, uma palavra, uma palavra que reconhece quer o conceito de arte, quer o fato da sua existência [...] (JANSON)104

Analisaremos aqui os quadros vivos105: Assuero e Ester de Nicolas

Poussin (1594-1665), Belisário de Antonius Van Dyck (1599-1641) e a

Admoestação paterna de Gerard Ter Borch (1608-1681) como narrativa

enquadrada ao romance. Atentamos para a relação do literário com o pictórico e

como isso reverbera n’As afinidades eletivas.

A representação de quadros vivos consiste na reconstituição de uma

imagem pictórica por meio da encenação de personagens estáticas repetindo a

cena exposta na obra de arte. Essa releitura de quadros era um divertimento

social em moda na época. Para uma sociedade encantada com a imagem

(re)produzida artificialmente, era um momento emocionante vê-la repetida na

forma pictórica com personagens vivas. Essas cenas reúnem o vivo e o não-

vivo. Trata-se de personagens literários, dando vida a quadros e, ao mesmo

tempo, representando, de modo estático, um quadro “sem vida”. Os

espectadores entusiasmados admiravam obras que até então existiam apenas na

tela em sua relação das cores, luz e sombra.

                                                                                                               104 (1992, p. 9). 105 Tais obras estão inseridas no Anexo B.  

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Por meio da linguagem escrita, o narrador apresenta o que é pictórico,

ou seja, o que é fundado em imagens. Ele nos faz ver um quadro e, desta forma,

é como se ele pintasse o quadro outra vez, no ato de contar a história. A

descrição que temos já não é mais de um quadro, mas da percepção que esse

espectador, o narrador, tem de tal obra de arte.

No capítulo “O simulacro” de O trabalho da citação, Antoine

Compagnon apresenta uma reflexão sobre a mimésis no seu valor ontológico

em relação ao livro X d’ A República de Platão. Traça assim o caminho entre a

realidade e a mimésis “terceiro descendente partindo-se do rei, quer dizer, da

verdade”. (COMPAGNON, 2007, p. 69)

Primeiramente, a da verdade ou da realidade: há a forma única ou a ideia de cada coisa [eidos] (a ideia de cama ou de mesa, a mesa ou a cama em si), cujo criador é Deus; em segundo lugar, há o objeto de uso que o operário ou o artesão produz segundo o modelo único, e que é cópia da realidade [eidolon]; em terceiro lugar, enfim, a imagem obtida pelo pintor ou pelo poeta e que é a cópia da cópia [phantasma], pois é imitação do objeto do artesão e não da ideia”. (COMPAGNON, 2007, p. 69).

Tal conceito de Platão é refutado e retomado algumas vezes pelo

próprio Platão e por outros pensadores. Podemos acreditar, como Aristóteles,

no final de sua vida, que não existem “ideias as quais os objetos manufaturados

correspondessem [...] os objetos pintados não são mais apresentados como

cópias de cópias, mas como imagens opostas às realidades”. (COMPAGNON,

2007, p.71). Essa explicação é considerada mais satisfatória que a anterior e

apresenta uma diferença de natureza entre a realidade e a imagem.

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O poeta Simonide de Céos considera a pintura como poesia silenciosa e

a poesia como pintura que fala, “pois a pintura pinta as ações enquanto elas

acontecem, as palavras as descrevem uma vez terminadas”. (apud

COMPAGNON, 2007, p. 75). Com Simonide de Céos, o visível se torna mais

importante que o acústico. Os olhos têm assim mais importância que o ouvido

na percepção do discurso artístico.

Em A água e os sonhos, Bachelard afirma que “[...] o verdadeiro campo

para o estudo da imaginação não é a pintura, mas a obra literária, a palavra, a

frase [...]”. (BACHELARD, 2002, p. 194). A pintura é a materialização que o

artista produz a partir de sua imaginação, de suas memórias, ou de cenas vistas

por ele. A obra literária passa por processo semelhante de criação. A diferença

está na realização da obra de arte quando entra em contato com seu público.

Um quadro, por exemplo, não depende diretamente da imaginação de quem o

vê, pois ele existe como tal, as imagens, as cores, as formas, as sombras em

suas infinitas possibilidades estão registradas nele. Já a obra literária entrega ao

leitor palavras e é com elas que o leitor constrói suas imagens.

Na verdade, um quadro vale milhares de palavras, não só pelo seu valor descritivo, mas ainda pela sua importância simbólica. Na arte como na linguagem, o homem é acima de tudo um criador de símbolos, através dos quais nos transmite, de um modo novo, pensamentos complexos. Temos de encarar a arte não em termos de prosa comum do dia a dia, mas em termos de poesia, que tem a liberdade de reordenar a sintaxe e o léxico convencionais [...] Do mesmo modo um quadro sugere muito mais do que diz. E tal como um poema, o seu valor reside tanto naquilo que diz como na maneira como o diz. (JANSON, 1992, p. 10).

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O encantamento recorrente dessas expressões artísticas se dá no campo

da estética. É comum pintores se inspirarem em poesias e poetas se inspirarem

em pinturas. Em Goethe, podemos observar essa relação em ambas as formas.

Mais diretamente, n’As afinidades eletivas quando insere em seu romance as

obras pictóricas Assuero e Ester, Belisário e a Admoestação paterna. Ele

transfere a obra pictórica tanto para a narração discursiva como também para a

representação teatral.

Por outro lado, Goethe questiona pintores que elaboram arte pictórica a

partir de sua poesia. Como relata em conversa com Eckermann em 3 de

novembro de 1823:

‘A minoria dos artistas’, continuou, ‘vê claro a esse respeito e sabe o que lhe convém. Pintam, por exemplo, o meu ‘Pescador’ e não percebem que é algo que não se pode reproduzir. Nessa balada representei apenas a sensação da água e a delícia de um banho no verão; não há lá mais nada, como então pintam isso?’ (ECKERMANN, 2004, p. 38). 106

Na representação dos quadros vivos, os atores diletantes realizavam o

que, talvez, em algum momento passado, tenha sido vivido pelo pintor da obra

ou por outrem ou que tenha sido lido em um texto literário ou ainda algo que

tenha sido simplesmente resultado da imaginação de um artista. Os

espectadores maravilhavam-se com a proximidade dos opostos – a realidade e a

imaginação. “Imaginar quer simplesmente dizer criar uma imagem – um quadro

– no nosso espírito”. (JANSON, 1992, p. 10).

                                                                                                                 

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Dessa forma, a pintura é descrita por meio da literatura e é encenada de

maneira estática, em formato de quadro vivo. Observamos aí duas

transferências ou duas novas possibilidades de leitura para a arte pictórica. É

uma leitura livre, elaborada em um passatempo pelo grupo de visitantes e

conhecidos que participam dos dias de inverno na companhia de Charlotte,

Ottilie e Luciane nas propriedades de Eduard.

Nesse momento, interessa-nos a estada de Luciane que, por algumas

vezes, é mencionada na primeira parte do romance. Até então ela morava em

um internato e era considerada ali uma excelente aluna. Ela participa dessa obra

apenas por dois capítulos, e por dois meses da narrativa. Em pouco tempo,

consegue transformar a rotina de toda a redondeza.

Luciane era o centro das atenções o tempo todo. Fantasiava-se e trocava

de vestido várias vezes ao dia. Promovia noites dançantes, apresentações de

pantomimas, mímicas, fazia cavalgadas e visitas. A casa estava sempre lotada,

e a filha de Charlotte era o próprio espetáculo: cantava e tocava violão, tinha

sempre uma ideia para animar os visitantes, ainda que nem sempre agradasse a

todos.

O que leva o homem a criar obras de arte? Sem dúvida uma das razões será a necessidade premente de se enfeitar e de decorar o mundo à sua volta, necessidade que faz parte de um outro desejo, mais vasto, não o de recriar o mundo à sua imagem, mas antes o de dar a si próprio e ao mundo que o cerca nova forma ideal. [...] A arte permite-nos transmitir a nossa percepção de coisas que não podem ser expressas de outra forma. (JANSON, 1992, p. 10).

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Por sugestão do Conde, Luciane aprova a ideia de elaborar, em grupo,

todo preparo necessário para a apresentação de quadros vivos. No trecho

abaixo, temos, juntamente com os motivos que a levaram à execução dessas

encenações, a mais detalhada descrição de uma personagem dentro d’As

afinidades eletivas.

Luciane percebeu de imediato que isso coincidia inteiramente com a sua especialidade. A sua bela estatura, as suas formas arredondadas, o seu rosto simétrico, porém expressivo, as suas tranças castanha-claras, o seu colo esbelto: era tudo sob medida para um quadro; e, se soubesse o quanto era mais bonita parada do que em movimento – pois nesse último caso escapava-lhe, por vezes, algo de desgracioso e perturbador –, Ter-se-ia dedicado com maior afã a essa confecção de quadros vivos.107 (GOETHE, 1998a, p. 169-170, grifo nosso).

A representação dos quadros era realizada por amadores para

descontrair os dias e as noites de inverno. Os participantes atentaram para cada

detalhe, prepararam-se e mobilizaram-se para a concretização do espetáculo.

Chegou finalmente a noite, e a representação foi feita diante de um grande grupo de pessoas, recebendo aplausos gerais. Uma música sugestiva aumentou a expectativa. Começaram o espetáculo com o Belisário. As figuras estavam tão bem ajustadas, as cores tão bem combinadas, a iluminação fora executada com tanta arte, que se tinha realmente a impressão

                                                                                                               107 “Schnell ward Luciane gewahr, daβ sie hier ganz in ihrem Fach sein würde. Ihr schöner Wuchs, ihre volle Gestalt, ihr regelmäβiges und doch bedeutendes Gesicht, ihre lichtbraunen Haarflechten, ihr schlanker Hals, alles war schon wie aufs Gemälde berechnet; und hätte sie nun gar gewuβt, daβ sie schöner aussah, wenn sie still stand, als wenn sie sich bewegte, indem ihr im letzten Falle manchmal etwas Störendes, Ungraziöses entschlüpfte, so hätte sie sich mit noch mehrerem Eifer dieser natürlichen Bildnerei ergeben”. (GOETHE, 1998b, p. 159).

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de se estar num outro mundo, embora a presença da realidade, ao invés da imagem, produzisse uma certa sensação de inquietude.108 (GOETHE, 1998a, p. 170).

O Conde cuidou de tudo como um diretor. O grupo se empenhou na

preparação do espaço cênico e da iluminação, sem esquecer da música.

Encontraram o representante certo para cada atuação. Luciane cedeu seus

vestidos para serem retalhados e transformados em figurinos necessários.  Tudo

isso contribuiu para uma visão arrebatadora dos quadros, que, por terem sido

escolhidos pelos visitantes que ali estavam, estabelece uma relação de afinidade

ainda mais forte.

Nessa tarefa está o fazer artístico. A arte que trata da arte. Não basta

aglomerar elementos aleatoriamente para causar a reação própria da arte. Ela é

cuidadosamente elaborada. No papel é necessária a escolha de palavras, o

cuidado com a construção da ideia, a organização das partes do texto. Na

representação teatral ou na arte pictórica:

Recorre à alegoria, à pose, à expressão facial, para sugerir significados, ou então evoca-os através de elementos visuais, como o traço, a forma, a cor e a composição. (JANSON, 1992, p. 10).

                                                                                                               108 “Der Abend kam herbei, und die Darstellung wurde vor einer großen Gesellschaft und zu allgemeinem Beifall ausgeführt. Eine bedeutende Musik spannte die Erwartung. Jener Belisar eröffnete die Bühne. Die Gestalten waren so passend, die Farben so glücklich ausgeteilt, die Beleuchtung so kunstreich, daß man fürwahr in einer andern Welt zu sein glaubte, nur daß die Gegenwart des Wirklichen statt des Scheins eine Art von ängstlicher Empfindung hervorbrachte”. (GOETHE, 1998b, p. 159-160)

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Na tela, não bastam cores desconexas ou combinadas. O artista

considera a luz, a sombra, a relação das cores e também a organização do todo

na tela. Na representação literária elaborada a partir da obra pictórica, a

organização e os esforços para que o planejado se realize também são intensos.

O narrador nos faz saber disso e preocupa-se também em descrever a obra

representada. Observemos as três obras pictóricas enquadradas à narrativa

maior.

2.2.1 O Belisário de Van Dyck

Antony van Dyck (1599-1641) pertencia à geração de Poussin e Claude

Lorrain e foi um dos principais discípulos de Rubens. Muito habilidoso e

virtuoso, apreende as características do mestre quanto às telas e às cores. Em

seus quadros predomina um estado de ânimo lânguido e melancólico.

Apresentava-se com refinamento e gostava da conduta aristocrática.

(GOMBRICH, 1999, p. 403-404).

Em O Belisário109 a situação representada é de piedade e de clemência

pelos necessitados e doentes. Uma jovem bem vestida dá moedas a uma mulher

pobre, à direita e ao fundo do quadro. O cachorro, que está à direita

                                                                                                               109 Essa obra faz parte do acervo do British Museum, em Londres, desde 1935. A data para essa obra é aproximada entre 1733-1755. Na sua descrição consta como uma gravura e seus traços assemelham-se ao entalho.

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aproximando-se do centro apresenta postura entristecida e carente. Belisário

cego tem também um semblante de sofrimento e recebe auxílio de um jovem

que está a sua esquerda. O soldado romano, que está diante de Belisário,

demonstra piedade em seu olhar.

Procuraram então gravuras de quadros célebres; escolheram primeiro o Belisário de Van Dyck. Um homem alto e bem proporcionado, de certa idade, deveria representar o general cego, sentado; o arquiteto faria o guerreiro triste e compassivo, em pé diante do general, por se assemelhar um pouco com ele; Luciane, em parte por modéstia, tinha escolhido para ela a jovem que no fundo do quadro conta, na palma da mão, a pródiga esmola tirada de uma bolsa, enquanto uma velha parece dissuadi-la e demonstrar-lhe que está exagerando. Uma outra figura feminina, que está dando uma esmola ao cego, também não foi esquecida. 110 (GOETHE, 1998a, p. 170)

Belisário foi um general do império Bizantino com grandes conquistas

durante o reinado de Justiniano. Nessa obra temos um homem forte em situação

de piedade, sem forças, sem bens e desamparado. Para um general, em especial,

terminar a vida cego e pobre, representa um sofrimento imenso. Essa obra

acrescenta à narrativa o sentimento de impotência diante da vida e a espera por

um final trágico.

                                                                                                               110 “Man suchte nun Kupferstiche nach berühmten Gemälden, man wählte zuerst den Belisar nach van Dyck. Ein großer und wohlgebauter Mann von gewissen Jahren sollte den sitzenden blinden General, der Architekt den vor ihm teilnehmend traurig stehenden Krieger nachbilden, dem er wirklich etwas ähnlich sah. Luciane hatte sich, halb bescheiden, das junge Weibchen im Hintergrunde gewählt, das reichliche Almosen aus einem Beutel in die flache Hand zählt, indes eine Alte sie abzumahnen und ihr vorzustellen scheint, daß sie zuviel tue. Eine andre, ihm wirklich Almosen reichende Frauensperson war nicht vergessen”. (GOETHE, 1998b, p. 159).

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2.2.2 Três personagens conversando em um interior, antes

conhecido como Admoestação paterna de Gerard Ter Borch

Sobre Gerard Ter Borch não pudemos encontrar muitas informações.

Sabemos apenas que é um pintor holandês, que tinha predileção pelas cenas do

cotidiano.

Como consta na descrição da obra que faz parte do acervo do

Rijksmuseum em Amsterdam, ela foi inicialmente conhecida como

“Admoestação paterna”. O narrador do romance olha para esse quadro a partir

dessa primeira interpretação.

Um pai, nobre cavalheiro, está sentado com uma perna cruzada sobre a outra e parece apelar à consciência de sua filha, em pé diante dele. Esta – uma magnifica figura, com um vestido de cetim branco cheio de pregas – só é vista pelas costas, mas todo o seu ser parece indicar que está se controlando. Contudo vê-se pelo semblante e gesto do pai que a admoestação não é severa nem humilhante; a mãe, por sua vez, parece dissimular um pequeno embaraço ao examinar a taça de vinho que está prestes a sorver. 111 (GOETHE, 1998a, p.171)

                                                                                                               111 “Einen Fuß über den andern geschlagen, sitzt ein edler, ritterlicher Vater und scheint seiner vor ihm stehenden Tochter ins Gewissen zu reden. Diese, eine herrliche Gestalt im faltenreichen, weißen Atlaskleide, wird zwar nur von hinten gesehen, aber ihr ganzes Wesen scheint anzudeuten, daß sie sich zusammennimmt. Daß jedoch die Ermahnung nicht heftig und beschämend sei, sieht man aus der Miene und Gebärde des Vaters; und was die Mutter betrifft, so scheint diese eine kleine Verlegenheit zu verbergen, indem sie in ein Glas Wein blickt, das sie eben auszuschlürfen im Begriff ist”. (GOETHE, 1998b, p. 160).

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Interpretações mais recentes dessa obra fazem uma leitura diferente da

apresentada no romance. Mas é possível que o narrador do romance tenha

apresentado diretamente uma leitura e deixado subentendida uma segunda

possibilidade de olhar para essa tela.

Mais tarde, observou-se que o homem seria muito jovem para ser o pai

da moça. Ele seria então um soldado em um bordel. A mulher não seria a mãe,

mas sim a cafetina. A suposta filha, nesse novo sentido, seria uma prostituta. A

cama e o espelho ao fundo contribuem para essa nova leitura da obra. A obra

passa a ser denominada: “Três personagens conversando em um interior”.

Nem Luciane, nem Ottilie conheceram seus pais biológicos ou

conviveram com eles por muito pouco tempo. A necessidade da participação do

pai em suas vidas pode ser relacionada à escolha da obra “Admoestação

Paterna”, de Ter Borch.

Apesar de Luciane e Ottilie terem experimentado essa ausência paterna

e de terem sido criadas por Charlotte, elas representam naturezas opostas.

Luciane revela seu caráter por meio do “turbilhão social” em suas danças,

cenas, pantomimas e recitais de poesia ou de música. Nas representações dos

quadros vivos ela se coloca sempre de modo a chamar a atenção em cada cena

reconstituída. Em contrapartida, Ottilie recebe a atenção de todos sem esforços.

A moça, na obra de Ter Borch, que vemos apenas de costas parece estar

em situação difícil. Está sob avaliação ou está sendo repreendida. Apreensiva

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diante de sua situação, parece também precisar de ajuda. Assim como as

personagens do romance.

2.2.3 Assuero e Ester de Nicolas Poussin

O francês Nicolas Poussin (1594-1665) foi o maior dos mestres

“acadêmicos”112. Assuero e Ester apresenta tema bíblico referente ao velho

testamento. A rainha Ester, esposa de Assuero, rei da Pérsia, vai ao rei para

pedir pelos judeus que moravam na Pérsia. O rei não sabia que sua esposa era

judia.

Observamos neste quadro dois blocos de personagens: à direita o rei

acompanhado por seus súditos e à esquerda Ester com seus auxiliadores, que a

                                                                                                               112 “A arte desenvolvera-se a tal ponto que os artistas inevitavelmente ficaram conscientes das opções de métodos que se lhes apresentavam. E, uma vez que aceitemos isso, estamos livres para admirar o modo como Reni executou o seu programa de beleza, como descartou deliberadamente qualquer detalhe na natureza que considera-se baixo ou feio ou inadequado para as suas ideias grandiosas, e como sua busca de formas mais perfeitas e mais ideais do que a realidade se viu recompensada pelo sucesso. Foram Annibale Carracci, Reni e seus seguidores que formularam o programa de natureza idealizada, de natureza “embelezada”, segundo cânones estabelecidos pelas estátuas clássicas. Chamamos-lhe programa neoclássico ou “acadêmico”, para distingui-lo da arte clássica, a qual não está vinculada a nenhum programa. É improvável que as disputas em torno dele venham cedo a cessar, mas ninguém nega que, entre os seus defensores, grandes mestres nos ofereceram o vislumbre de um mundo de pureza e esplendor, sem o qual seríamos todos mais pobres”. (GOMBRICH, 1999, p. 394)

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socorrem quando ela desmaia em frente ao rei. O ambiente é suntuoso e

clássico com as colunas e estátuas.

Era a conhecida tela de Poussin, Assuero e Ester. Dessa vez Luciane refletira melhor. Usou de todos os seus encantos ao representar a rainha desmaiando e inteligentemente escolhera, para os papéis das jovens que a rodeavam e a amparavam, somente moças bonitas, bem-feitas, mas entre as quais não havia absolutamente nenhuma que pudesse se equiparar a ela. Ottilie ficou fora deste quadro e de todos os outros. Para representar o rei, semelhante a Zeus, sentado em um trono de ouro, escolhera o homem mais robusto e mais belo do grupo, dando a esse quadro uma perfeição realmente incomparável.113 (GOETHE, 1998a, p. 171)

Nas três obras, encenadas como quadros vivos, as personagens

principais da obra pictórica estão em posição desfavorável, em pedido de

clemência, necessitadas de socorro. As mãos retratadas nessas obras ora se

estendem para apaziguar, ora estão estendidas para pedir ajuda. As personagens

pictóricas dessas obras, que podem ser consideradas como parte do lado

privilegiado, aqueles que podem oferecer auxílio, não exercem força extrema

ou não impõem terror ou temor diante dos que estão em situação desfavorável.

As quatro personagens do romance também têm necessidade de auxílio.

Precisam ser orientadas e ajudadas, pois não sabem para onde ir não sabem                                                                                                                113 “Es war die bekannte Vorstellung von Poussin: Ahasverus und Esther. Diesmal hatte sich Luciane besser bedacht. Sie entwickelte in der ohnmächtig hingesunkenen Königin alle ihre Reize und hatte sich klugerweise zu den umgebenden, unterstützenden Mädchen lauter hübsche, wohlgebildete Figuren ausgesucht, worunter sich jedoch keine mit ihr auch nur im mindesten messen konnte. Ottilie blieb von diesem Bilde wie von den übrigen ausgeschlossen. Auf den goldnen Thron hatten sie, um den Zeus gleichen König vorzustellen, den rüstigsten und schönsten Mann der Gesellschaft gewählt, sodaß dieses Bild wirklich eine unvergleichliche Vollkommenheit gewann”. (GOETHE, 1998b, p. 160).

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como resolver aquilo que saiu do controle após o casal, Eduard e Charlotte, ter

recebido seus amigos, Ottilie e o Capitão.

No momento da representação o tempo para; só existe o tempo do

quadro. O espectador se torna parte do quadro. Uma função possível para a

inserção de quadros vivos dentro do romance pode ser a de pausar a narrativa e

abstrair de toda preocupação e tensão vivida pelas personagens principais do

romance. Ou ainda, sair do centro de tensão da ação e assim a observá-la com

olhar mais experimentado e atento.

“O sentido (ou função) de um elemento da obra é a sua possibilidade de

entrar em correlação com outros elementos desta obra e com a obra inteira”.

(TODOROV, 1972, p. 210). Temos por vários momentos n’As afinidades

eletivas a admiração de cenas narradas como se fossem quadros, já

transcrevemos três desses exemplos nesta tese. Temos ainda a contemplação do

arquiteto diante do caixão de Ottilie:

Já uma vez estivera assim parado diante de Belisário. Agora involuntariamente ficou na mesma posição; e dessa vez quão natural ela era! Aqui também uma certa dignidade indescritível projetava-se de sua grandeza; e se naquela ocasião lastimavam-se, como irreparavelmente perdidos, a coragem, a inteligência, o poder, a reputação e a fortuna de um homem; se não se apreciavam, ao contrário, reprovavam-se e repeliam-se as qualidades imprescindíveis a uma nação, a um príncipe, em momentos decisivos, aqui, por sua vez, havia muitas outras virtudes implícitas, que a natureza fez surgir de suas naturezas fecundas, aniquilando-as logo em seguida por sua mão indiferente; virtudes raras, belas, delicadas, cuja influência pacífica o mundo carente, em todos os tempos, recebe com deliciosa satisfação e sente a sua

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ausência com saudosa tristeza. 114 (GOETHE, 1998a, p. 262-263).

Outra forma de enquadramento é o registro feito pelo Capitão a partir de

suas medições e estudos das áreas das propriedades de Eduard:

[...] Eduard viu claramente as suas propriedades irem surgindo no papel como uma nova criação. Parecia-lhe que só agora começava a conhecê-las, que só agora lhe pertenciam de fato.115 (GOETHE, 1998a, p. 40).

Eduard só tem a dimensão das margens de suas propriedades quando o

Capitão as desenha em um papel. A visualização do real enquadrado em um

desenho técnico causa admiração.

O grupo que promove as noites com as encenações dos quadros vivos e

também assiste e aplaude, tem a presença forte da arte. É interessante pensar

que os atores estão ali estáticos, passando toda a emoção que captam do

pictórico. “O quadro é silêncio e é por meio do olho e do pensamento que o

                                                                                                               114 “Schon einmal hatte er so vor Belisar gestanden. Unwillkürlich geriet er jetzt in die gleiche Stellung; und wie natürlich war sie auch diesmal! Auch hier war etwas unschätzbar Würdiges von seiner Höhe herabgestürzt; und wenn dort Tapferkeit, Klugheit, Macht, Rang und Vermögen in einem Manne als unwiederbringlich verloren bedauert wurden, wenn Eigenschaften, die der Nation, dem Fürsten in entscheidenden Momenten unentbehrlich sind, nicht geschätzt, vielmehr verworfen und ausgestoßen worden, so waren hier soviel andere stille Tugenden, von der Natur erst kurz aus ihren gehaltreichen Tiefen hervorgerufen, durch ihre gleichgültige Hand schnell wieder ausgetilgt, seltene, schöne, liebenswürdige Tugenden, deren friedliche Einwirkung die bedürftige Welt zu jeder Zeit mit wonnevollem Genügen umfängt und mit sehnsüchtiger Trauer vermißt”. (GOETHE, 1998b, p. 258) 115 “Eduard sah seine Besitzungen auf das deutlichste aus dem Papier wie eine neue Schöpfung hervorwachsen. Er glaubte sie jetzt erst kennenzulernen, sie schienen ihm jetzt erst recht zu gehören”. (GOETHE, 1998b, p. 22).

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movimento verdadeiro se manifesta. É uma fala que se movimenta com sua

própria língua”. (GONÇALVES, 1994, p. 249). Sendo que o quadro num só

momento narra uma história e instiga a imaginação do admirador de arte, isso

causa reação no espectador.

A reação do público também é descrita: a apresentação real de algo

pictórico provoca e emociona aos visitantes.

[...] suscitando um fascínio geral. Não paravam de bisar, e o desejo muito natural de olhar de frente uma criatura assim tão bela, vista o suficiente de costas, cresceu tanto, que um engraçadinho impaciente exclamou bem alto as palavras que, às vezes, se costuma escrever no final de uma página: Tournez, s’il vous plait!, suscitando a aprovação geral.116 (GOETHE, 1998a, p. 172).

Quanto mais próximos ficamos de determinadas obras pictóricas, mais

penetramos em sua esfera. A encenação traz à presença dos espectadores um

momento do passado que imita a realidade. Na representação dos quadros

vivos, a narrativa literária imita a arte pictórica. Nos limites do quadro

encenado está a cópia da cópia. Consequentemente, congela-se a imagem, para

que o tempo não passe, fixando-o para sempre na memória. Passemos agora à

novela como narrativa enquadrada.

                                                                                                               116 “[...] ein allgemeines Entzücken erregte. Man konnte mit dem Wiederverlangen nicht endigen, und der ganz natürliche Wunsch, einem so schönen Wesen, das man genugsam von der Rückseite gesehen, auch ins Angesicht zu schauen, nahm dergestalt überhand, daß ein lustiger, ungeduldiger Vogel die Worte, die man manchmal an das Ende einer Seite zu schreiben pflegt: "tournez s'il vous plaît", laut ausrief und eine allgemeine Beistimmung erregte”. (GOETHE, 1998b, p. 161).

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162    

2.3 A Novela no Romance

Em terra firme também ocorrem muitos naufrágios, recobrar-se e restabelecer-se deles, o mais rápido possível, é belo e louvável. (GOETHE).117

Pretendemos nesta parte analisar a novela, narrativa menor, dentro do

romance, narrativa maior, e apontar também a relação que se estabelece entre

essas duas narrativas. A novela – Die wunderlichen Nachbarskinder (“Os

vizinhos singulares”) – indica como se realizará o desfecho do romance – As

afinidades eletivas – de forma espelhada.

Novella, Nouvelle, Novelle, Novela, nas literaturas de língua italiana,

francesa, alemã e portuguesa, denomina um acontecimento que não é habitual,

aquilo que não é comum. Ela é formada por um acontecimento central que gera

um ponto de viragem na linha narrativa e em torno dele desenrola-se uma ação

que a partir daí se fecha.

A novela chega na Alemanha na Idade Média ainda em versos. Somente

em 1795, com a obra Unterhaltungen deutscher Ausgewanderten (Conversas

entre emigrados alemães) de Johann Wolfgang von Goethe, é que temos a

novela no modelo de Decamerone (1348-1353) de Boccaccio (1313-1375)

(VOLOBUEF, 1999, p. 51).

                                                                                                               117  (1998a, p. 205)  

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[...] criou-se na Europa uma maneira original de enquadrar as novelas, maneira na qual a narração é um fim em si mesma. Falo aqui do Decameron. O Decameron, assim como sua posteridade literária, é ainda muito diferente do romance europeu dos séculos XVIII e XIX porque os mesmos personagens não ligam os episódios particulares. Mas ainda: aqui não encontramos personagens; a atenção concentra-se sobre a ação, o agente é a carta do jogo que permite que a trama se desenvolva. (CHKLOVSKI, 1978, p. 221).

Em conversa com Eckermann, no dia 25 de janeiro de 1827, Goethe

discorre sobre a sua obra Novela (1828), que assim é intitulada e comparada

com a novela que faz parte d’As afinidades eletivas.

‘Sabe o que mais? Intitulemo-la simplesmente Novela’, decidiu ele, ‘pois o que é afinal uma novela senão um acontecimento excepcional? Essa é a definição própria, e muito do que circula pela Alemanha sob essa denominação, não é novela alguma, é apenas um conto ou o que quer que seja. É com aquela acepção primitiva de um fato extraordinário, que se apresenta também nas Afinidades Eletivas’. (ECKERMANN, 2004, p. 176).

Para Aldous Leonard Huxley (1894-1963), “Pode-se fazer o que se

puder do assunto. Os cânones da novela não são estabelecidos pelos deuses.

Tudo que é preciso é que seja interessante” (ECKERMANN, 2004, p. 176)118.

Desde Boccaccio até Goethe, o que observamos é que o principal para que uma

narrativa seja denominada novela está na ação. O foco é a ação e ela deve ser

incrível.

Lucien Dällenbach, no capítulo “Intertexto e Autotexto”119, discorre

sobre a novela e o romance.

                                                                                                               118 nota do editor. 119 Em Poétique: Revue de Théorie et d’Analyse littéraires – n. 27.  

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A [...] novela inserida ‘Die wunderlichen Nachbarskinder’. Novela-tipo – como o testemunham os seus caracteres genéricos, o seu subtítulo (‘Novelle’) e uma declaração do próprio Goethe [a Eckermann] – esta última não é exemplar sem intenção: antítese temática, mas também estrutural da narrativa que engloba, ela afirma-a romance afirmando-se novela, e permite-lhe dialeticamente merecer também o seu subtítulo: Die Wahlverwandtschaften, ‘Um Romance’. (DÄLLENBACH, 1979, p. 69-70, grifo do autor).

Os subtítulos dados – “novela” e “romance” –indicam como Goethe via

tais narrativas. Para Walter Benjamin, a novela n’As afinidades eletivas é

apresentada como um exemplar puro do seu gênero, o que reforça a narrativa

maior como romance.

Goethe quis colocar a novela como exemplar – não menos, mas em certo sentido até mais do que o romance. Pois, embora o acontecimento relatado seja concebido no próprio romance como real, ainda assim a narrativa é denominada novela. Ela deve valer como ‘Novela’ de maneira tão categórica quanto a obra principal deve valer como ‘Um romance’. (BENJAMIN, 2009, p. 75).

Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, define o

verbete romance quanto à sua estrutura, contrapondo-o à estrutura da novela:

[...] o romance apresenta menos células dramáticas que a novela: esta pode estender-se para além do derradeiro episódio, ao passo que o romance termina completamente na última cena. Na perspectiva da macroestrutura, a novela é aberta no epílogo, enquanto o romance é fechado. Por outro lado, a novela se fecha para a vida, como se a pusesse entre

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parênteses, ao passo que o romance estabelece com a realidade um permanente intercâmbio. De onde a polivalência do romance e um dinamismo análogos à vida real, e a petrificação da novela”. (MOISES, 1974, p. 452, grifo nosso).

Usamos a definição de Massaud Moisés, em especial a partir do trecho

destacado, para abordar a novela que faz parte d’As afinidades eletivas. “Os

vizinhos singulares” é sim um parênteses dentro do romance, mas ao mesmo

tempo é recebida pelas personagens como um desejo de vida. Essa novela não

se fecha para a vida. Ela é antes algo já vivido pelo Capitão e após a sua

narração é uma intenção impossível para Charlotte. A novela convida as

personagens do romance à reflexão.

A novela, na sua definição teórica, é uma obra fechada, que não

estabelece conexão direta com o real ou com o possível. Nela a imaginação

justifica tudo. Entretanto, o seu final é aberto e após o desfecho seria possível

retomar as células que a compõem e até mesmo acrescentar novas personagens

no seu novo desenrolar.

Para Walter Benjamin, As afinidades eletivas fica entre o romance e a

novela. Destacamos ao longo da análise que se segue, momentos em que o

romance se aproxima da estrutura própria da novela. Contudo, dada a sua

extensão, As afinidades eletivas só pode ser considerada romance.

O romance e a novela não são formas homogêneas mas, pelo contrário, formas completamente estranhas uma a outra. Por isso, não de desenvolvem simultaneamente, nem com a mesma intensidade numa mesma literatura. O romance é uma forma sincrética (pouco importa se ele é desenvolvido diretamente a partir da compilação de novelas, ou se é tornado complexo pela inclusão de descrições de costumes); a novela é uma forma fundamental, elementar (o que não

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quer dizer primitiva). O romance provém da história, do relato de viagens; a novela provém do conto, da anedota. De fato, trata-se de uma diferença de princípio, determinada pela extensão da obra. (EIKHENBAUM, 1978, p. 161-162).

Como já tratado no primeiro capítulo desta tese, As afinidades eletivas

foi concebida como novela para fazer parte de Os anos de peregrinação de

Wilhelm Meister. No entanto, a elaboração se desenvolveu a ponto de tornar-se

por si só um romance, composto também por narrativas menores enxertadas

dentro da narrativa maior.

Encontramos relações significativas ao longo de todo o romance e nas

narrativas nele enquadradas. “Podemos dizer em geral que também o

enquadramento assim como o picaresco, ajudaram a integrar cada vez mais as

matérias exteriores no corpo do romance” (CHKLOVSKI, 1978, p. 226). Isso é

possível observar, por exemplo, do romance para a novela e da novela para o

romance. As teias de ligação são percebidas antes da inserção da narrativa

menor, ao longo dela e no retorno à narrativa maior para o seu desfecho.

O romance prepara a inserção da novela e a novela prepara o desfecho

do romance. Dessa forma, essas narrativas encontram sentido uma na outra. O

romance se reflete na novela e a novela se reflete no romance.

Podemos estabelecer muitos tipos de novelas que servem de padrão a outras ou que são antes uma maneira de introduzir uma novela em outra. O meio mais divulgado é o de contar as novelas ou contos para retardar a conclusão de uma ação qualquer. Assim, através de suas estórias, os sete vizires impedem o rei de executar seu filho; em As Mil e Uma Noites, Sheherazade retarda, com suas histórias, o momento de sua própria execução [...]. (CHKLOVSKI, 1978, p. 220).

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A novela “Os vizinhos singulares” não suaviza o teor do romance. Ela

apresenta seu sentido contrário e direciona-o para um desfecho disfórico. O

gênero romance acolhe outras possibilidades narrativas como parte dele e isso é

o que o caracteriza como tal. Sua matéria é bastante ampla; segundo Massaud

Moisés, ele pode comportar tudo o que é reflexo da vida.

Todas as metamorfoses do real, todas as formas de conhecimento cabem no perímetro do romance, assim transformado numa espécie de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo. Dessa conjuntura promana a sua função gnoseológica: mais conhecimento que entretenimento, o romance permite ao escritor construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de modo privilegiado, sem risco para a sua própria existência; o prosador conhece o mundo por meio do romance, e dá-o a conhecer ao leitor; não existe, nos quadrantes da criação literária, meio mais completo para se chegar a uma imagem totalizante do Universo”. (MOISES, 1974, p. 452).

A matéria universal como tema e a interferência de outros textos no

romance também podem ser observados como característica da novela.

Portanto, “em esquema, a novela não passa duma sucessão de cenas dialogadas e cenas de movimento (estas mais raras) grudadas por trechos narrativos mais ou menos sóbrios e abstratos, exposições, observações psicológicas e morais, cartas, digressões, expansões líricas. O processo da narração é sucessivo, aditivo; a novela pode dizer-se um relato linear, cujo ritmos é determinado pelos próprios eventos, que constam dos ‘apontamentos’ verdadeiros ou fictícios de que o novelista fala de quando em quando: o ‘cronista’ obedece a Cronos” (Jacinto do Prado Coelho, Introdução ao Estudo da

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Novela Camiliana, 1946, p. 525 apud MOISES, 1974, p. 364-365).

A novela funciona dentro deste romance como um espelho. Segundo

Gustav Fridrich Hartlaub (1884-1963) em Zauber des Spiegels (1951), reflexo é

o “fenômeno da reprodução da imagem, a característica plana, reluzente,

superfície não transparente que encontra um raio de luz para refletir e produz

uma imagem daquilo que emite”.120 (HARTLAUB, 1951, p. 11, tradução

nossa).

O espelho dá-nos a única possibilidade de vermo-nos, apenas através

dele somos capazes de nos olharmos nos olhos. Com isso não se separa o

processo do resultado do reflexo. Isto é, a novela não deve ser enxergada

apenas como resultado de uma ilustração no romance, mas também, como a

narrativa menor em que se realiza o momento crucial para desencadear o

desfecho do romance. Ela liga os dois mundos na sua narração. O romance se

vê na novela e se reconhece para então tomar a decisão final.

A novela “Os vizinhos singulares” está inserida na segunda parte do

romance, em um momento em que Charlotte e Ottilie estão sozinhas no castelo

e recebem a visita do lorde inglês e de seu acompanhante. Eles estavam de

passagem pelas redondezas e decidiram conhecer as propriedades do amigo

Eduard. Após ter feito comentários desagradáveis às anfitriãs, o lorde, por mais

                                                                                                               120 “Das Phänomen des Widerscheins, die Eigenschaft glatter, glänzender, nicht durchsichtiger flächen, auftreffende Lichtstralen regular zu reflektieren und so von den Dingen die sie aussenden ein Abbild zu geben”. (HARTLAUB, 1951, p. 11).

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uma infelicidade, pede ao seu acompanhante que conte uma de suas histórias

para entretê-las.

A intenção é tornar o ambiente mais agradável, sem suspeitar o mal que

isso causaria às ouvintes. E assim se dá a narração da novela “Os vizinhos

singulares”, que surpreende, pois a história já é conhecida por Charlotte. Ao

final da narração, Charlotte, extremamente abalada, retira-se assim que o

acompanhante do lorde termina seu relato.

A narração da novela não valoriza o passado das personagens, mas sim

as relações construídas. Tais relatos situam o leitor ou informam dados que

contribuem para o desenvolvimento da ação. Assim a narrativa não se alonga

demais e o narrador não se perde em detalhes desnecessários para a novela.

Na novela o tempo acompanha a estrutura linear. Apesar de ter a

possibilidade de narrar toda a história das personagens desde o seu nascimento,

prefere fazer de maneira rápida e demorar-se nos momentos de relevância

narrativa. Observamos, no trecho abaixo, a diminuta narração que aborda a

infância das personagens principais.

Faremos uma apresentação de “Os vizinhos singulares” a partir dos seus

pontos mais relevantes destacados em negrito.

Os protagonistas ainda crianças são prometidos em casamento:

‘Duas crianças da vizinhança, um menino e uma menina, filhos de importantes famílias, em idades equivalentes para que pudessem se casar um dia, cresciam juntos sob essa agradável perspectiva, e os pais de ambos alegravam-se com essa futura união. Contudo logo notaram que esse plano parecia fadado ao fracasso, pois manifestava-se entre essas

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duas excelentes naturezas uma estranha antipatia. [...] ‘Esse relacionamento singular evidenciou-se já nas brincadeiras infantis e intensificou-se com o passar dos anos. 121 (GOETHE, 1998a, p. 211).

Cada um toma seu rumo:

Em suma, parecia faltar-lhe algo e não havia nada à sua volta que fosse digno de despertar o seu ódio. Também não havia achado ninguém que fosse digno de seu amor122. (GOETHE, 1998a, p. 212).

Retorno do rapaz:

Mas agora, pela primeira vez após tanto tempo, algo a perturbava; não era ódio; tinha se tornado incapaz de odiar; mesmo aquele ódio infantil que não passava de um obscuro reconhecimento do valor íntimo, transformara-se em alegre admiração, em agradável contemplação, em amável confissão, em aproximações meio voluntárias, meio involuntárias, porém necessárias; e tudo isso era recíproco.123 (GOETHE, 1998a, p. 213).

A moça se apaixona pelo inimigo da infância:

                                                                                                               121 “Zwei Nachbarskinder von bedeutenden Häusern, Knabe und Mädchen, in verhältnismäβigem Alter um dereinst Gatten zu werden, lieβ man in dieser angenehmen Aussicht miteinander aufwachsen, und die beiderseitigen Eltern freuten sich einer künftigen Verbindung. Doch man bemerkte gar bald, daβ die Absicht zu miβlingen schien, indem sich zwieschen den beiden trefflichen Naturen ein sonderbarer Widerwille hervortat. […] Dieses wunderliche Verhältnis zeigte sich schon bei kindischen Spielen, es zeigte sich bei zunehmenden Jahren”. (GOETHE, 1998b, p. 202-203). 122 “Im ganzen schien ihr etwas zu fehlen, nichts war um sie herum, das wert gewesen ware, ihren Haβ zu erregen. Liebenswürdig hatte sie noch niemanden gefunden”. (GOETHE, 1998b, p. 204) 123 “Aber nun stand ihr zum erstenmal seit langer Zeit wieder etwas entgegen: es war nicht hassendswert, sie war des Hasses unfähig geworden; ja der kindische Haβ, der eigentlich nur ein dunkles Anerkennen des inneren Wertes gewesen, äuβerte sich nun in frohem Erstaunen, erfreulichem Betrachten, gefälligem Eingestehen, halb willigem, halb unwilligem und doch notwendigem Annahen, und das alles war wechselseitig”. (GOETHE, 1998b, p. 205)

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[...] o jovem ambicioso não fazia nenhum segredo de seus sentimentos, de seus planos e intenções e comportava-se diante dela apenas como um irmão fiel, mas não carinhoso, falando somente de sua breve partida; assim o antigo espírito infantil dela pareceu despertar novamente em toda a sua maldade e violência, e, nessa fase mais elevada da vida, muniu-se de despeito para agir com maior eficiência e crueldade. Resolveu morrer para punir o rapaz, antes tão odiado e agora amado com tanta veemência, por sua indiferença, e unir-se eternamente a ele, ao menos em seu pensamento e em seu arrependimento, já que não estava destinada a possuí-lo.124 (GOETHE, 1998a, p. 214).

A moça prefere morrer:

‘Não vou atrapalhá-lo mais’, gritou ela, ‘não me verá nunca mais!’ Dizendo isso, correu para a proa do barco e atirou-se à água.125 (GOETHE, 1998a, p. 215)

O novo acontecimento:

Passar da água à terra, da morte à vida, do seio da família ao desamparo, do desespero ao deslumbramento, da indiferença à afeição, à paixão, e tudo isso num instante... a cabeça não teria forças para conceber tudo isso: explodiria ou enlouqueceria. Nesse caso, cabe ao coração a tarefa de tornar suportável uma tal surpresa”.126 (GOETHE, 1998a, p. 217).

                                                                                                               124 “[...] der emporstrebende Jüngling gar kein Geheimnis von seinen Gesinnungen, Planen und Aussichten machte, sich nur als ein treuer und nicht einmal zärtlicher Bruder gegen sie bewies, und nun gar von seiner unmittelbaren Abreise die Rede war, so schien es, als ob ihr früher kindischer Geist mit allen seinen Tücken und Gewaltsamkeiten wieder erwachte, und sich nun auf einer höheren Lebensstufe mit Unwillen rüstete, bedeutender und verderblicher zu wirken. Sie beschloβ zu sterben, um den ehemals Gehaβten und nun so heftig Geliebten für seine Unteilnahme zu strafen und sich, indem sie ihn nicht besitzen sollte, wenigstens mit seiner Einbildungskraft, seiner Reue auf ewig zu vermählen”. (GOETHE, 1998b, p. 206-207). 125 “Ich store dich nicht weiter, rief sie: du siehst mich nicht wieder! Sie sprach’s und eilte nach dem Vorderteil des Schiffs, von da sie ins Wasser sprang”. (GOETHE, 1998b, p. 208). 126 “Sich vom Wasser zur Erde, vom Tode zum Leben, aus dem Familienkreise in eine Wildnis, aus der Verzweiflung zum Entzücken, aus der Gleichgültigkeit zur Neigung, zur Leidenschaft gefunden zu haben, alles in einem Augenblick – der Kopf wäre nicht

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Benção paterna:

‘Abençoem-nos!’ Exclamaram ambos, já que todo mundo tinha emudecido de espanto. ‘Abençoem-nos!’ ressoou pela terceira vez, e quem poderia recusar essa bênção? 127 (GOETHE, 1998a, p. 218).

A novela termina com a benção dos pais para o casamento, que se

realiza independente dos obstáculos. “o narrador se sente livre para o fazer, sem

qualquer respeito às leis da verossimilhança: num breve lapso de tempo, faz

que a personagem se transfira para lugares remotos e por vezes inacessíveis”

(MOISES, 1974, p. 364).

Os vizinhos têm poder para renunciar à tragédia e obter o sucesso no

salvamento. Assim, o casal consegue encontrar-se renovado. Tudo se consuma,

todavia, tão repentinamente, que não é possível falar de um momento, mas de

uma rápida reviravolta.

Entretanto, o ‘destino’ da novela não se encontra no epílogo, e sim em cada célula. Vale dizer: as células não se acumulam para um desfecho determinado ou para solucionar um drama que se avoluma progressivamente; não existem para, mas por si, na medida em que cumprem uma trajetória própria, posto que enquadrados num universo ficcional de que não podem escapar. (MOISES, 1974, p. 367, grifo do autor).

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     hinreichend das zu fassen, er würde zerspringen oder sich verwirren. Hiebei muss das Herz das Beste tun, wenn eine solche Überraschung ertragen werden soll”. (GOETHE, 1998b, p. 209).

127 “Gebt uns euren Segen! Riefen beide, da alle Welt staunend verstummte. Euren Segen! ertönte es zum drittenmal, und wer hätte den versagen können?”. (GOETHE, 1998b, p. 210).

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173    

Desse modo, reflexo pode ser então transformação, isso vale sobretudo

para a relação entre o romance e seu reflexo na novela. Na primeira, a

surpreendente virada para o final afórico e no segundo um lento desdobramento

para o desfecho trágico.

Pois nela [na novela] o mistério é a catástrofe disposta em posição central como princípio vivo da narrativa, enquanto no romance o significado da catástrofe, como aquele do acontecimento final, permanece fenomênico”. (BENJAMIN, 2009, p. 75).

O romance conhece a catástrofe só no final, quando as personagens já

não têm mais chance de reagir. Contudo, a novela e o romance usam a

catástrofe como ponto de mudança. Em “Os vizinhos singulares” a tentativa de

suicídio pela noiva; n’As afinidades eletivas o imprevisto acidente com o

afogamento do bebê. São dois momentos que envolvem a água com

possibilidade de desfecho para o afogamento ou para o salvamento.

Na novela, o ambiente é claro e nítido. Ela é elaborada a partir de

decisões e de soluções e não por dúvidas, incertezas e contrariedades como o

romance. É com esses aspectos que ela define os acontecimentos que se seguem

após sua narração no romance. A partir daí, Charlotte percebe sua situação com

mais clareza.

No entanto, Ottilie parece continuar sem enxergar os seus próximos

passos, apesar de ser considerada, conforme já visto anteriormente, como um

“colírio para os olhos” daqueles que se aproximam dela. Ottilie agrada e acalma

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174    

os olhos das outras personagens, mas seus olhos não encontram clareza no que

está diante de si. A novela não abre nenhuma nova perspectiva ou não ilumina

nenhum acontecimento anterior nem posterior à sua narração para essa

personagem. Daqui em diante, Ottilie se fecha cada vez mais até a sua morte.

Não existe para ela o salvamento, ao contrário da noiva da novela.

Na novela – “Os vizinhos singulares” –, toda palavra está ligada a

gestos. O romance – As afinidades eletivas –, em comparação, é algumas vezes

mudo, pois há momentos em que as personagens não ousam falar. “Toda

palavra dita suscita o seu sentido oposto”.128 (GOETHE, 1998a, p. 162).

Contudo, a novela está presente no romance. Ela é contada como parte da ação

do romance para que nele aconteça o ponto de viragem. A partir da novela, o

romance é explicado e seu desenrolar é determinado. Assume uma

característica de texto auto explicativo.

O final dessa novela é então o prenúncio espelhado – invertido – do

final do romance e também sugere ao leitor elementos e fatos mencionados

anteriormente na primeira parte d’As afinidades eletivas. Dessa forma, os

prenúncios referentes à água, ao afogamento, ao salvamento são indicados na

narrativa maior na sua primeira parte e voltam significativamente na narração

da novela.

Na novela não temos nenhum nome próprio, pois as personagens são

denominadas como: “os pais”, “duas crianças”, “o menino”, “a menina”, “um

jovem”, “o rapaz”, “a bela jovem”. É como se nesses papéis pudessem ser

                                                                                                               128 “Jedes ausgesprochene Wort erregt den Gegensinn”. (GOETHE, 1998b, p. 151) – Do diário de Ottilie

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colocadas outras personagem, que poderiam viver a mesma história. Como

aborda Wolfgang Kayser no trecho abaixo.

Aqui [na novela], as personagens não podem ter valor próprio; são, absolutamente, partes da estrutura do evento. Da mesma forma não fica espaço para grandes descrições de episódios e imagens do mundo. No fundo, a novela não é puramente épica, não se demora com agrado a cada passo, mas sim com sua concentração no evento e a sua tensão temporal, aproxima-se do dramático. Com isso fica também limitado o papel do narrador. Não pode divagar para longe, tem de contar objetivamente e, pelo seu tom, nota-se como ele próprio é impressionado pelo que há de estranho no mundo que a novela abrange e modela. (KAYSER, 1976, p. 395)

As personagens do romance recebem todas o mesmo nome, todas são -

ott-. Isso permite a ideia de que qualquer outro personagem poderia ser

colocado nesses lugares. Notamos aí mais uma característica da novela

apresentada no romance. O estudo sobre os nomes das personagens do romance

faz parte do primeiro capítulo desta tese.

As personagens do romance têm uma existência solitária dentro de um

espaço recluso e determinado: as propriedades do casal. Em algumas situações

sofrem a ação como peças de um jogo em um tabuleiro ou como elementos

químicos sendo manipulados em um laboratório. Agem de maneira egoísta.

Apesar de em parte da narrativa estarem ali reunidas as quatro personagens nas

propriedades, elas existem de forma individual. Não estabelecem relações de

parentesco ou de intimidade e de amizade. Eles estão separados da sociedade na

tentativa frustrada de uma vida ideal.

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Na análise do diário de Ottilie foi mencionado o momento na narrativa

maior em que a moça entrega a Eduard o colar com o retrato do pai,

desfazendo-se de qualquer raiz ou de qualquer parentesco. Nesse ato ela se

desfaz também do que pode acolhê-la e amá-la de forma incondicional, desfaz-

se daquilo que a torna humana. Assim, torna-se mais uma peça livre de

qualquer responsabilidade com o outro e sem ninguém para responder por ela.

Para Benjamin (2009) na novela, os noivos estão cercados pelos

cuidados paternos e pelo olhar da sociedade, inseridos em um círculo zeloso.

Eles se voltam para a família após o ímpeto do ponto de viragem, próprio da

novela. Pedem a benção aos pais. Eles estão em posição contrária à das

personagens no romance, que ignoram qualquer existência fora do idílio

escolhido por eles e impõem a inexistência de tais relações.

O reflexo como repetição é fundamental na organização d’As afinidades

eletivas. As repetições acontecem ao se retomar, na segunda parte, elementos

mencionados na primeira parte. São esses elementos que preparam o leitor para

os futuros acontecimentos. Por exemplo, no momento em que Ottilie tenta

reanimar o bebê que ela deixou cair no lago: “Procura auxílio em si mesma.

Havia ouvido falar tantas vezes em salvamento de pessoas afogadas. Na tarde

de seu aniversário tinha presenciado um caso desses”.129 (GOETHE, 1998a, p.

233). Só neste pequeno trecho já notamos a questão do afogamento abordada

por diversas vezes ao longo do romance.

                                                                                                               129 “Sie sucht Hülfe bei sich selbst. So oft hatte sie von Rettung der Ertrunkenen gehört. Noch am Abend ihres Geburtstags hatte sie es erlebt”. (GOETHE, 1998b, p. 226).

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A ideia do espelhamento que transporta um elemento da física para essa

narrativa não parece inadequado para uma obra que tem como título o termo

científico Wahlverwandtschaften. De fato, o que temos é uma questão química

enquadrada em meio a um romance, como já vimos no primeiro capítulo desta

tese. Tal conceito da química designa a atração de dois corpos, sem que se

saiba quem se uniu ao outro primeiro. Podemos observar tal aplicação nas

palavras do Capitão:

Imaginem um A intimamente ligado a um B e incapaz de se separar dele, nem pela força; suponham um C que esteja na mesma situação com um D; coloquem então os dois pares em contato; A atirar-se-á para D, e C para B, sem que se possa afirmar quem abandonou quem e se uniu ao outro primeiro130. (GOETHE,1998a, p. 54, grifo nosso).

Nas ciências exatas é possível prever um resultado antes de conhecê-lo

objetivamente. A partir de experimentos e cálculos, o cientista elabora uma

fórmula com a possível solução para o seu problema. Podemos identificar a

novela como modelo de desenvolvimento em relação a As afinidades eletivas,

ou seja, um modelo de desfecho em um sentido espelhado.

A novela lembra o problema que consiste em colocar uma equação a uma incógnita; o romance é um problema de regras diversas que se resolve através de um sistema de equações com muitas incógnitas, sendo as construções

                                                                                                               130 “Denken Sie sich ein A, das mit einem B innig verbunden ist, durch viele Mittel und durch manche Gewalt nicht von ihm zu trennen; denken Sie sich ein C, das sich eben so zu einem D verhält; bringen Sie nun die beiden Paare in Berührung: A wird sich zu D, C zu B werfen, ohne daß man sagen kann, wer das andere zuerst verlassen, wer sich mit dem andern zuerst wieder verbunden habe”.130 (GOETHE, 1998b, p. 38)

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intermediárias mais importantes que a resposta final. A novela é um enigma; o romance corresponde à charada ou ao jogo de palavras. (EIKHENBAUM, 1978, p. 163).

Segundo Junito Brandão, em Mitologia Grega (2010), Reflectere, de re,

‘novamente’ e flectere, ‘curvar-se’, significa etimologicamente ‘voltar para

trás’. Essa é uma aplicação precisa para a função da novela dentro do romance.

Vinculamos voltar para trás com memórias, com lembranças de

acontecimentos, com sinais dados ao longo do romance até a apresentação da

novela. Após a novela, relacionamos ao Reflectere: o retorno das quatro

personagens reunidas no mesmo ambiente; o repensar das ligações resultantes

das experiências ocorridas; o voltar para trás e encerrar as situações que

precisam ser solucionadas. Carl August Jung (1875-1961) compreende por

reflexão:

‘O termo reflexão não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma atitude. A reflexão é uma atitude de prudência da liberdade humana, face às necessidades das leis da natureza. Como bem indica a palavra ‘reflexio’, isto é, ‘inclinação para trás’, a reflexão é um ato espiritual de sentido contrário ao desenvolvimento natural; isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em relação a um confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de consciência’. (JUNG apud BRANDÃO, 2010, p. 192).

As quatro personagens, cada uma ao seu modo, tomam consciência de

sua existência e de seus desejos na narrativa que se desenvolve após a novela.

Refletir é uma ação física própria do espelho. “O que reflete o espelho? A

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verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência [...]”.

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 393). A novela vai ao encontro da

intimidade das personagens.

Retomaremos aqui, rapidamente, elementos tratados no primeiro

capítulo desta tese. Nesse contexto, relacionamos o reflexo com a simetria tanto

das partes do romance – duas vezes dezoito capítulos –, como também quanto

as personagens principais – duas vezes dois. O sentido do reflexo como reação

inversa: a primeira parte do romance é regida por Eduard e tem um ambiente

ativo e vivo; a segunda parte é regida por Ottilie e tem um ambiente obscuro e

trágico. Até mesmo os casais comparados se apresentam com características

opostas. Um exemplo é a disposição de Ottilie e Eduard para viver a paixão e a

intenção de Charlotte e do Capitão para racionalizar a emoção.

A história narrada em “Os vizinhos singulares” aconteceu com o

Capitão de forma muito semelhante, segundo Eduard no início do romance:

Pensaram também nos casos de urgência, corriqueiros, quase sempre inesperados, adquirindo assim todo o necessário para o salvamento de afogados, tanto mais que acidentes desse tipo eram frequentes nas proximidades de tantas lagoas, águas e serviços hidráulicos. O Capitão cuidou pormenorizadamente dessa tarefa, e Eduard deixou escapar um comentário sobre um caso semelhante que marcara época na vida de seu amigo de maneira muito singular. Mas, como este se calou, parecendo evitar uma triste recordação, Eduard se conteve, e Charlotte, que também estava a par do fato, desviou o assunto.131 (GOETHE, 1998a, p. 46-47).

                                                                                                               131 “Da man auch die gewöhnlichen und dessenungeachtet nur zu oft überraschenden Notfälle durchdachte, so wurde alles, was zur Rettung der Ertrunkenen nötig sein möchte, um so mehr angeschafft, als bei der Nähe so mancher Teiche, Gewässer und Wasserwerke, öfters ein und der andere Unfall dieser Art vorkam. Diese Rubrik

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Esse acontecimento também é recordado pelo narrador após a narração

da novela:

Esse fato havia realmente acontecido com o Capitão e uma vizinha, embora não totalmente como o inglês contara, mas os pontos principais não haviam sido adulterados, somente mais reforçados e ampliados nos pormenores, tal como costuma ocorrer com histórias assim, quando passam primeiro pela boca do povo e depois pela fantasia de um narrador dotado de espírito e de bom-gosto. No final conta-se quase sempre tudo mas nada como efetivamente se passou.132 (GOETHE, 1998a, p. 218).

As pesquisas científicas de Goethe têm como fio condutor a busca da

forma original, modelo principal a partir do qual todos os elementos podem ser

analisados ou dimensionados. Essa é a ideia da Ur-Pflanze, que também é

aplicada em seu interesse literário. N’As afinidades eletivas podemos observar

a busca pela personagem que representa a forma básica para qualquer outro

personagem uma vez que todos têm o mesmo nome. A novela enquadrada é

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     besorgte der Hauptmann sehr ausführlich, und Eduarden entschlüpfte die Bemerkung, dass ein solcher Fall in dem Leben seines Freundes auf die seltsamste Weise Epoche gemacht. Doch als dieser schwieg und einer traurigen Erinnerung auszuweichen schien, hielt Eduard gleichfalls an, so wie auch Charlotte, die nicht weniger im allgemeinen davon unterrichtet war, über jene Äusserungen hinausging”. (GOETHE, 1998b, p. 30).

132 “Diese Begebenheit hatte sich mit dem Hauptmann und einer Nachbarin wirklich zugetragen, zwar nicht ganz wie sie der Engländer erzählte, doch war sie in den Hauptzügen nicht entstellt, nur im einzelnen mehr ausgebildet und ausgeschmückt, wie es dergleichen Geschichten zu gehen pflegt, wenn sie erst durch den Mund der Menge und sodann durch die Phantasie eines geist- und geschmackreichen Erzählers durchgehen. Es bleibt zuletzt meist alles und nichts wie es war”. (GOETHE, 1998b, p. 210-211).  

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uma novela tipo, como caracteriza Dällembach (1979) em trecho anteriormente

transcrito, ou seja, padrão para qualquer outra narrativa que se queira

denominar como novela.

Assim a água, por seus reflexos, duplica o mundo, duplica as coisas. Duplica também o sonhador, não simplesmente como uma vã imagem, mas envolvendo-o numa nova experiência onírica. (BACHELARD, 2002, p. 51).

A água perpassa o romance e é também um símbolo na novela. É um

elemento amigo para o vizinho. Ela lhe permite dominar a situação, já que ele

realiza o salvamento e consegue trazer a moça de volta. Segundo o Dicionário

de símbolos (2006) de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant:

As águas, massa indiferenciada, representando a infinidade dos possíveis, contêm todo o virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as promessas de desenvolvimento, mas também todas as ameaças de reabsorção. Mergulhar nas águas para delas sair sem se dissolver totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se de novo num imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova: fase passageira de regressão e desintegração, condicionando uma fase progressiva de reintegração e regenerescência. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2006, p. 15).

Para as personagens da novela, a água age positivamente como símbolo

universal de fertilidade e de fecundidade. Ela se mostra na sua função

regeneradora e purificadora. Os vizinhos são envolvidos e transportados pela

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água para um novo estado, melhor do que o anterior. Considerada como

medicamento e poção de imortalidade a água soluciona a desavença religando

as personagens da novela. Aqui, a água também funciona como espelho, que

produz seus reflexos no romance.

Ambos [os vizinhos na novela] mergulham na correnteza viva cujo poder benéfico não se manifesta com menos força nesse acontecimento do que, no romance, o poder letal das águas dormentes. (BENJAMIN, 2009, p. 77, grifo nosso).

A água na novela colabora com o vizinho. Ela conduz o jovem casal

para o desfecho feliz. No momento em que o barco encalha e alguns tentam

salvar a moça, o vizinho não se deixa distrair, ele rapidamente a arrebata com

êxito, consegue puxá-la e carregá-la. A água é sua amiga.

A água é um elemento amigável para aquele que a conhece e sabe como tratá-la. Ela o susteve, e o hábil nadador a dominou. Com rapidez alcançou a beldade entregue à correnteza; agarrou-a, ergueu-a e puxou-a; os dois foram violentamente arrastados, deixando atrás de si ilhas e ilhotas; o rio agora ia ficando mais largo e começava a fluir outra vez com lentidão133. (GOETHE, 1998a, p. 216).

                                                                                                               133 “Das Wasser ist ein freundliches Element für den, der damit bekannt ist und es zu behandeln weiß. Es trug ihn, und der geschickte Schwimmer beherrschte es. Bald hatte er die vor ihm fortgerissene Schöne erreicht; er faßte sie, wußte sie zu heben und zu tragen; beide wurden vom Strom gewaltsam fortgerissen, bis sie die Inseln, die Werder weit hinter sich hatten und der Fluß wieder breit und gemächlich zu fließen anfing”. (GOETHE, 1998b, p. 208).

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A novela está ligada ao novo, como imagem e expressão do novo

tempo. Portanto, nesse sentido o romance move-se entre o antigo e o novo.

Assim como a economia interna do romance oscila entre as velhas e as novas

construções, o castelo e a nova casa. A mudança do castelo para a nova casa no

alto da colina está no capítulo em que também está inserida a novela. Pode-se

dizer que Charlotte, neste momento, por causa da maternidade está aberta ao

novo. Consegue vislumbrar novas atividades e considera que o mais difícil já

passou.

Já na primeira frase do romance, há um contraponto particular: ela

mostra como a disciplina e a forma são inseridas como meios de defesa do caos

para a realização e o domínio do novo conteúdo:

Eduard – assim denominaremos um rico barão em plena virilidade – tinha passado as mais belas horas de uma tarde de abril em seu viveiro de plantas, introduzindo nos troncos novos enxertos recebidos há pouco. Terminada a tarefa, guardou as ferramentas na caixa e contemplava satisfeito seu trabalho [...].134 (GOETHE, 1998a, p. 21).

A narrativa do romance começa num espaço delimitado desenvolvendo

uma ação prática e específica. A situação inicial é organizada no sentido de que

tudo terminará bem. A última frase do romance também indica essa direção,

                                                                                                               134 “Eduard – so nennen wir einen reichen Baron im besten Mannesalter – Eduard hatte in seiner Baumschule die schönste Stunde eines Aprilnachmittags zugebracht, um frisch erhaltene Pfropfreiser auf junge Stämme zu bringen. Sein Geschäft war eben vollendet; er legte die Gerätschaften in das Futteral zusammen und betrachtete seine Arbeit mit Vergnügen […]” (GOETHE, 1998b, p. 3)

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ainda que aconteça em decorrência do trágico. Depois de Eduard ser encontrado

morto e colocado a pedido de Charlotte ao lado do corpo de Ottilie na capela:

E, assim, os dois amantes descansam lado a lado. A paz paira sobre a sua morada; imagens de anjos serenos, seus afins, miram-nos da cúpula; e que momento agradável aquele em que um dia despertarão juntos!135 (GOETHE, 1998a, p. 265, grifo nosso).

A única perspectiva, oferecida na última frase do romance, é um verbo

no futuro na oração subordinada final: “em que um dia despertarão juntos”.

Essa expressão final do romance pode ser comparada ao desfecho claro da

novela, como observamos anteriormente.

No romance e na novela, a pergunta final é retórica. O final do romance

não é a solução dos conflitos, mas a expressão da impossibilidade de uma

solução.

A vida como matéria literária está no romance como um espelho ou um

momento de reflexão. É assim que a novela realiza a função no romance. De

alguma forma, o caso narrado nessa novela serve também para Charlotte. Mas

na mesma situação ela se reprime, não protestou como a noiva, casou-se na

primeira possibilidade “sem muitas perspectivas, tive de dar minha mão a um

                                                                                                               135 “So ruhen die Liebenden nebeneinander. Friede schwebt über ihre Stätte, heitere verwandte Engelsbilder schauen vom gewölbe auf sie herab, und welch ein freundlicher Augenblick wird es sein, wenn sie dereinst wieder zusammen erwachen”. (GOETHE, 1998b, p. 261).

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homem abastado e honrado, mas a quem não amava”. 136 (GOETHE, 1998a, p.

25). Como ouvinte da narração, ela percebe que nunca amou tanto a Eduard

como a noiva ao vizinho, que em protesto por seu amor se atira na água. A

novela conta a Charlotte como tudo poderia ter acontecido, apresenta uma outra

possibilidade.

Em consequência imediata, após a narração do acompanhante do lorde

inglês, Charlotte concorda em conceder o divórcio a Eduard. No entanto, isso

não modifica o desfecho, que se direciona para o trágico.

Um tratado sobre a narrativa inicia a “Introdução à Análise Estrutural”

(1966) de Roland Barthes:

Inumeráveis são as narrativas do mundo. Há em primeiro lugar uma variedade prodigiosa de gêneros, distribuídos entre substâncias diferentes, como se toda matéria fosse boa para que o homem lhe confiasse suas narrativas: a narrativa pode ser sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita, pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas substâncias; está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura (recorde-se de a Santa Úrsula de Carpaccio), no vitral, no cinema, nas histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação. Além disso sobre estas formas quase infinitas, a narrativa está presente em todos os tempos, em todos os lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa com a própria história da humanidade; não há, não há em parte alguma povo algum sem narrativa; todas as classes, todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas narrativas são apreciadas em comum por homens de cultura diferente, e mesmo oposta: a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura: internacional, trans-

                                                                                                               136 “[...] weil ich, ohne sonderliche Aussichten, einem wohlhabenden, nicht geliebten, aber geehrten Manne meine Hand reichen mußte”. (GOETHE, 1998b, p. 6).

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histórica, transcultural, a narrativa está aí, como a vida”. (BARTHES, 1972, p. 19-20).

O ato de contar histórias sempre encantou a humanidade. É uma

maneira de entreter e assim passar o tempo. As narrativas acompanham as

caravanas no deserto, nos momentos de diversão e de descanso. É, também,

uma ferramenta disciplinadora e didática. Elas ajudam aos pais e aos

professores a educar e a cuidar de suas crianças.

As narrativas nos acompanham o tempo todo, elas não descansam nem

quando dormimos. Contar histórias é uma maneira de se relacionar com o

outro, de aproximar aquele que ouve daquele que narra. Além das palavras, a

teatralidade e o lúdico fazem parte do momento de contar histórias. Elas

marcam seus ouvintes, ficam gravadas e vão se amontoando no compartimento

de histórias bem contadas e nunca esquecidas. Dessa forma, o narrador atinge o

encantamento do interlocutor, que imagina um mundo a partir de fatos

narrados.

   

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Considerações finais

N’As afinidades eletivas as narrativas enquadradas nos aproximam e nos

afastam da narrativa maior. Ora estamos mais próximos, ora mais distantes.

Elas funcionam como pausas para o deleite artístico, como um momento de

devaneio. Vemos, então, as narrativas enquadradas no romance como arte que

sublima, que aproxima do autoconhecimento, que produz momentos de prazer

e, principalmente, que alivia a alma das tensões do ser. A arte como elemento

essencial para uma vida plena.

O primeiro elemento enquadrado que analisamos foi o diário de Ottilie.

Ao ler o diário somos retirados da narrativa maior e internalizados. A cada

aforismo e a cada máxima é revelada a intimidade de quem o lê. Aquele que se

demora pensando sobre um aforismo elabora um exercício solitário. Indaga-se a

si mesmo sobre suas reações diante de tais palavras e sobre suas relações com o

mundo. Refletimos sobre nós mesmos.

O fio de afeição proposto pelo narrador nos liga aos aforismos.

Reconhecemos em todos esses aforismos nossas diversas possibilidades de

relação com o mundo. O fio de ligação entre os aforismos e também entre seus

conjuntos ao longo do romance é conferido pela ideia primordial de que a

essência do homem é única. Continuamos reagindo aos aforismos e as máximas

do diário de Ottilie mais de dois séculos após sua publicação. Deleitamo-nos

com o diário e nos esquecemos dos desejos e das renúncias, que envolvem

Eduard, Charlotte, Ottilie e o Capitão. Nós nos vemos no diário, ele é o nosso

espelho.

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O segundo enquadramento analisado foi a encenação de quadros vivos

dentro do romance. As personagens do romance escolhem obras de arte e

transferem aquilo que é pictórico para a forma dramática. Elaboram

pormenorizadamente todo o trabalho preparatório para a apresentação. A

personagem do romance experimenta o que é estar no posto da personagem do

quadro. O espectador, que participa das noites agradáveis no castelo, vivencia o

admirar-se com uma cena ao vivo, que anteriormente era contemplada em uma

tela.

Construímos aqui uma cadeia de olhares. Podemos começar por quem lê

o romance e na sequência estão os convidados que participam da noite

agradável; depois os diletantes que representam no palco a obra por eles

escolhida, esses estudaram tal obra para absorver sua atmosfera e assim poder

encená-la; chegamos ao pintor idealizador dessa criação, que viu a cena como

testemunha, ou a viveu como parte dela, ou a ouviu de alguém que a narrou, ou

ainda que a leu em um romance e a transferiu para a tela em uma nova leitura

artística.

Assuero e Ester de Nicolas Poussin, Belisário de Antonius Van Dyck e

a Admoestação paterna de Gerard Ter Borch nos revelam as dores, as

apreensões e as misérias do outro. Charlotte e Ottilie também protagonizam

simultaneamente um período de sofrimento. Em silêncio, elas se identificam

com as representações. Vemos aqui a vida encenada, pintada a óleo ou

entalhada em uma gravura e como consequência reagimos a arte – assim como

as personagens do romance reagem –, para a partir dela olharmos para nós. Em

reflexo vemos nossas dores, nossas apreensões e nossas misérias.

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O terceiro enquadramento analisado foi a novela. Um novo narrador

indica uma possibilidade de nos revelar algo, mas na verdade ao narrar a novela

ele atrasa o desfecho e torna as relações dentro do romance ainda mais tensas.

A partir da narração de “Os vizinhos singulares” os prenúncios referentes a

água ganham sentido e a apreensão em direção ao desfecho aumenta.

É com a novela que a água, como elemento central d’As afinidades

eletivas, indica seu poder de ligação entre o romance e suas narrativas

enquadradas. A novela funciona como um espelho dentro do romance. A

característica física de refletir, própria do espelho, também é uma característica

da água. A água é um espelho natural e Narciso se vê nela. Em contraponto, a

água, como testemunha, contempla os acontecimentos principais no romance e

na novela. A partir da novela, vemos o romance.

As narrativas enquadradas nos colocam em evidência diante da

literatura. Elas nos permitem novas experiências para olharmos de forma mais

apurada para a narrativa maior. Quando nos ligamos às narrativas enquadradas

e nos desligamos da narrativa maior, elas produzem ecos em todas as partes de

As afinidades eletivas.

Segundo Orhan Pamuk, a relevância de um romance está no tempo de

permanência que ele exerce em nossa vida. A nossa convivência com As

afinidades eletivas e com seus textos teóricos já passa de 14 anos. Isso causa

proximidade com a obra, por outro lado, o estudo de caráter científico, nos

distancia da obra para analisá-la segundo outros olhares teóricos, com os quais

naturalmente concordamos. As referências foram dadas aos respectivos autores,

como rigidamente deve acontecer em um estudo acadêmico, contudo,

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preocupamo-nos se em algum momento não nos aproximamos demais de

termos ou de leituras que não tenham sido inicialmente pensamentos nossos.

Contudo, a iluminação das ideias de Bachelard e de Barthes

colaboraram para um novo olhar e para uma nova análise de As afinidades

eletivas. Essa tese apresentou uma nova leitura do romance. Observamos um

romance singular todo imbricado e de relações complexas. Isso foi analisado do

romance para as narrativas enquadradas e dessas narrativas para o romance. As

afinidades eletivas é um todo complexo, como deve ser a literatura.

No último mês de fechamento desta tese Orhan Pamuk proferiu uma

palestra na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pamuk também é

reconhecido como teórico da Literatura em O romancista ingênuo e o

sentimental (2010) e em Outras cores (2007). Enxertamos esse acontecimento

no desfecho desta tese, pois foi significativo para este trabalho ler, em textos

teóricos desse renomado escritor contemporâneo e oriental, a repetição das

palavras: quadro, pintura, moldura, olhar, nos textos em que os temas eram o

romance, o romancista e seu leitor. Além, de constatar seu interesse pelo ensaio

de Schiller “Sobre a poesia ingênua e sentimental”. Isso confirma a importância

inesgotável dos escritores significativos do século XVIII e XIX, eles formam

uma base importante para a literatura contemporânea. Goethe também buscou o

oriente, pelos quadros, pela pintura, pelo olhar para o mundo emoldurado em

um romance.

Encerro esta tese, para minha felicidade, com novas ideias de estudo

sobre As afinidades eletivas. Continuo interessada nesse romance e também em

novos olhares para as narrativas enquadradas. A literatura realmente está no

campo do amor, em minha vida, ela é duradora.

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205    

Apêndice

Estudos  goethianos  no  Brasil  

Em meu projeto de mestrado (escrito em 1999), um parágrafo deu conta

de indicar os principais estudos existentes sobre Goethe nas universidades –

Um dos principais fatores para a elaboração desse projeto foi o fato de que, até

tal momento, ao menos na USP, na UNICAMP e na UNESP apenas foram

feitas três teses sobre Goethe: Primeira parte do Fausto de Goethe: uma

tentativa de interpretação através do estudo da forma, de Delton de Mattos da

Silva (USP, 1960), O conceito da totalidade e o lugar de Goethe no

pensamento de George Lukács, de Luiz Barros Montez (USP, 1998) e O

Bildungsroman: romance de formação como manifestação discursiva, de

Wilma Patrícia Maas (USP, 1996).

No cenário brasileiro, Goethe é reconhecido por muitos apenas como o

autor de Faust e de Werther. Não obstante haver grande interesse pelo autor, o

que é comprovado pelas reedições dessas obras. As afinidades eletivas137 138

mereceu uma nova edição publicada em 2009, na comemoração de 200 anos de

seu lançamento.

Na Internationale Bibliographie zur deutschen Klassik 1750-1850,

editada pela Herzogin Anna Amalia Bibliothek de Weimar estão catalogados

                                                                                                               137 Com prefácio e notas de Kathrin Holzermayr Rosenfield e tradução de Erlon José Paschoal pela editora Nova Alexandria. 138 Há uma edição mais antiga, de 196?, publicada pela Ediouro, com introdução de Augusto Meyer e tradução de Conceição G. Sotto Maior.

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mais de 115.000 livros e artigos que tratam sobre o período da literatura alemã

que vai do Iluminismo até o Romantismo. Este trabalho de seleção e

organização das publicações existentes sobre Goethe no Brasil, apesar da sua

pequena proporção, é inspirado na publicação da Herzogin Anna Amalia

Bibliothek de Weimar: Internationale Bibliographie zur deutschen Klassik

1750-1850. O objetivo dessa seleção é indexar as pesquisas realizadas sobre o

autor nos centros acadêmicos brasileiros.

Nos resultados 139 são encontradas publicações e apresentações em

congressos ou até mesmo dissertações e teses, que fazem a relação entre Goethe

e diversas áreas do conhecimento como: Química, Geografia, Arquitetura,

Música, Teologia, Direito, Filosofia e naturalmente com os Estudos Literários.

Aí está a imagem invertida, como num espelho, dos diversos campos de estudo

que Goethe explorou, e que agora possibilitam as múltiplas relações de

especialistas de várias áreas da atualidade com tais campos de estudo.

150 dessas são de revistas científicas, anais de congressos e outras

publicações da área acadêmica. Cerca de 60 são publicações em jornais e

revistas de circulação e 40 somam as publicações editoriais tanto em capítulos

de livros ou livros inteiros. Desse total de publicações envolvendo o assunto de

busca “goethe”, apenas 6140 delas referem-se ao romance As afinidades eletivas,

                                                                                                               139 Essa coleta foi efetuada na Plataforma Lattes entre os dias 10.01.2011 e 17.01.2011. 140 MAAS, W. P. M. D. Hermenêutica e Ininteligibilidade n'As afinidades eletivas. In: I Congresso da Associação Goethe do Brasil, 2009, São Paulo. Caderno de Resumos, 2009. <http://lattes.cnpq.br/6170804864096892>

OLIVEIRA, Everaldo de. Crítica e experiência em nova chave: o ensaio benjaminiano sobre as Afinidades eletivas de Goethe. In: MENEZES, E.; OLIVEIRA, E.. (Org.). Modernidade filosófica: um projeto, múltiplos caminhos. 1 ed. São Cristóvão: Editora

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sendo que uma trata da sua adaptação cinematográfica e outra sobre o ensaio

benjaminiano. Sobre Wilhelm Meister contam 9 publicações, 7 sobre Werther e

27 estudos discorrem sobre Faust.

Muitos dos estudos elencados propõem a relação de Goethe com outros

nomes como: Goethe e Schiller, Goethe e J.G. Rosa, Goethe e o “brasileiro”

Martius, Goethe e Brecht, Goethe e Machado, Goethe e Hackert, Goethe e

Humboldt, Goethe e Barrabás, Goethe e Mann, Goethe e Winckelmann, Goethe

e Keats, Goethe e o Papa João XXIII, Goethe e Michelet, Goethe e Lima e

Silva, Goethe e Kant. Outros estudos relacionam o autor a alguns temas, tais

como filosofia, Goethe e os mitos gregos, o conceito de organismo, a História,

o cristianismo, a literatura modernista brasileira, a tradução, a Geografia.

Entre os 170 currículos resultantes dessa pesquisa estão registradas 35

teses e dissertações, como orientações concluídas entre 1993 e 2010. Das quais

21 dissertações de mestrado, 8 teses de doutorado, 1 pós-doutorado e 2 livre-

                                                                                                                                                                                                                                                                                                     da Universidade Federal de Sergipe, 2010, v. 1, p. 315-342. <http://lattes.cnpq.br/8266106844773619>

CERASOLI,  J.  F.; PUCCI, B.  Afinidades  Eletivas:  os  irmãos  Taviani  recriam  Goethe.  In:  Robson  Loureiro;  Antônio  Alvaro   Soares   Zuin.   (Org.).  A  Teoria  Crítica   vai   ao  cinema.   1   ed.   Vitória-­‐ES:   EDUFES,   2010,   v.   1,   p.   177-­‐204.  <http://lattes.cnpq.br/6133789166966359>

CERASOLI, J. F. As Afinidades Eletivas de Goethe: recriações. In: Colóquio Internacional Estéticas do Deslocamento UFMG, 2007, Belo Horizonte. As Afinidades Eletivas de Goethe: recriações, 2007. <http://lattes.cnpq.br/6133789166966359>

ALMEIDA, A. V. O jogo performático trágico e antitrágico em Afinidades eletivas, de Goethe. Vozes em Diálogo, UERJ, v. 1, p. 8-17, 2005. <http://lattes.cnpq.br/0576392370349635>

CASTRIOTA, L. B. O Jardim de Goethe - A Dominação da Natureza Externa em As afinidades Eletivas. In: Colóquio Internacional As Luzes da Arte, 1997, Belo Horizonte. Anais do Colóquio Internacional As Luzes da Arte. Belo Horizonte : FAFICH, 1997. <http://lattes.cnpq.br/5080058473539252>

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docências. Desses 35 estudos apenas 2 tratam de As afinidades eletivas. Um

deles é a tese de Doutorado em Letras (Língua e Literatura alemã), de Mônica

Kraus Bornebusch, intitulada Mistério evidente: a estrutura arquitetônica do

romance Die Wahlverwandtschaften defendida, em 2003 na Universidade de

São Paulo, sob a orientação da Profª. Dra. Eloá Di Pierro Heise. O outro é uma

dissertação de mestrado em Estudos Literários, intitulada Entre renúncia e

desejo: uma análise das relações humanas em Die Wahlverwandschaften,

defendia por Ieda Maria Caricari em 2003, na Universidade Estadual

Paulista/CAr, sob a orientação da Profª. Dra. Karin Volobuef.

A partir desse levantamento, foi possível notar que, no Brasil, há um

pequeno número de estudos acadêmicos sobre Goethe. Em relação ao romance

foco desta tese, a quantidade é ainda mais escassa. As produções sobre a obra

literária de Goethe apresentam-se em número pequeno nos estudos acadêmicos

brasileiros. Menor ainda quando se trata da nossa obra de análise. Nas

publicações externas a área acadêmica Goethe e suas obras são tomados como

exemplificação ou elementos de comparação. Aí estão os diletantes, que

encontram sentido nos temas goethianos e constroem relações com outros

estudos. Goethe também interessava-se pelo diletantismo diante de vários

temas. Isso é mencionado n’As afinidades eletivas e no “Diário de Ottilie”.

 

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Anexos  

 

 

   

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ANEXO  A:  O  diário  de  Ottilie  (transcrito)  

I-­‐Do  diário  de  Ottilie  (II  Capítulo)  

“Poder descansar um dia ao lado de quem se ama é a esperança mais agradável

que uma pessoa pode nutrir, se alguma vez pensar no além da vida. ‘Reunir-se

aos seus’ é uma expressão tão como vedora!

“ Há vários monumentos e homenagens que nos fazem próximos dos ausentes e

dos mortos, mas nenhum tem a significação de um retrato. Conversar com o

retrato de uma pessoa querida, ainda que seja muito parecida, tem o mesmo

encanto que ás vezes experimentamos ao discutir com um amigo. Sentimos de

um modo agradável que somos dois seres, porém inseparáveis.

“Por vezes conversamos com uma pessoa presente como se ela fosse um

retrato. Ela não precisa falar, olhar-nos, nem ocupar-se conosco; nós a vemos,

relacionamo-nos com ela, e esse relacionamento pode até aumentar, sem que

ela nada faça para isso, sem que perceba que não passa de um retrato para nós.

“Nunca estamos satisfeitos com o retrato de uma pessoa conhecida. Por essa

razão sempre lastimei os retratistas. Raramente se exige o impossível de uma

pessoa, e é justamente isso o que fazemos com eles. Queremos que registrem na

imagem também a nossa relação com a pessoa, a nossa afeição ou antipatia;

devem representá-la não somente como eles a veem, mas como nós a vemos.

Não me admira que esses artistas tenham se tornado, aos poucos, obstinados,

indiferentes e teimosos. Isso não teria nenhuma importância se, em função

disso, não tivéssemos de nos privar dos retratos de tantas pessoas caras e

queridas.

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“Sem dúvida alguma, a coleção do arquiteto, de armas e objetos antigos, que

juntamente com os corpos, estavam cobertos por montes de terra e blocos de

pedra, demonstra-nos como são inúteis as precauções das pessoas para

conservar a sua personalidade até a morte. Como somos contraditórios! O

arquiteto confessa ter aberto, ele mesmo, esses túmulos dos antepassados, e,

entretanto, continua a se ocupar de monumentos para a posteridade.

“Mas por que levar isso tão a sério? Será que tudo o que fazemos é para a

eternidade? Não nos vestimos de manhã para tornarmo-nos despir à noite? Não

saímos de viagem justamente para regressarmos? E por que não desejarmos

descansarmos ao lado dos nossos, mesmo que seja só por um século?

“Ao vermos tantas lapides afundadas na terra e gastas pelos pés dos fiéis, e

tantas igrejas desmoronadas sobre a suas próprias tumbas, a vida após a morte

pode parecer-nos, então, uma segunda vida, na qual se ingressa através de uma

imagem, essa segunda existência também se extingue, mais cedo ou mais tarde.

O tempo não cede em seus direitos sobre o homem, nem sobre os

monumentos.” (p. 147-148)

II-­‐Do  diário  de  Ottilie  (III  Capítulo)    

“Uma observação do jovem artista é digna de nota: ‘Tanto no artesão como no

artista plástico pode-se perceber, com a maior clareza, que o ser humano tem

menor capacidade de se apropriar daquilo que justamente lhe é próprio. As suas

obras o abandonam, como os pássaros, o ninho em que foram chocados’.

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“Nesse contexto o arquiteto tem o destino mais singular de todos. Quantas

vezes emprega todo o seu espírito, toda a sua afeição, para criar espaços dos

quais ele próprio deve se excluir! Os salões reais lhe devem a sua suntuosidade,

de cujo efeito maior ele não desfruta. Nos templos traça uma fronteira entre ele

e o Altíssimo; não poderá jamais pisar os degraus que assentou para uma

cerimônia que eleva os corações, tal como o ourives, que só pode adorar de

longe a custódia na qual passou o esmalte e cravou as pedras preciosas. Junto

com a chave do palácio, o arquiteto entrega ao rico toda a comodidade e

conforto sem poder usufruir deles. Assim, a arte não acabará se afastando aos

poucos do artista, se a obra – como um filho emancipado – deixar de atuar

sobre o pai? E quantos impulsos a arte teria de dar a si mesma, se estivesse

destinada a se ocupar quase unicamente com o que é público, com aquilo que

pertence a todos e, portanto, também ao artista!

“Os povos antigos tinham uma concepção séria que pode parecer terrível.

Imaginavam os seus antepassados dentro de cavernas, sentados em tronos e

entretendo-se em silêncio. Ao entrar um novato, se fosse bastante digno, eles se

levantavam e se inclinavam, dando-lhes as boas-vindas. Ontem, sentada na

capela, ao ver em frente a minha cadeira esculpida várias outras ao redor, essa

ideia me pareceu amável e graciosa. ‘Por que não posso ficar aqui sentada?’,

pensei comigo mesma. ‘Ficar sentada, quieta e recolhida, muito tempo, muito

tempo, até chegarem os amigos, diante dos quais me levantarei, indicando com

uma amável inclinação os seus lugares’. As cores do trivial davam ao

crepúsculo um tom grave, e alguém deveria trazer uma lâmpada eterna para que

a noite não ficasse completamente escura.

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“Não importa como nos posicionemos: sempre nos imaginaremos vendo. Acho

que o ser humano sonha apenas para não parar de ver. É bem possível que

algum dia a nossa luz interior emane, para que não necessitemos mais de

nenhuma outra.

“O ano está acabando. O vento passa pelo restolho do trigo e não encontra nada

para agitar; somente os frutos vermelhos daquelas árvores esbeltas parecem

querer nos lembrar de algo alegre, tal como os golpes compassados do

debulhador suscita-nos o pensamento de que nas espigas cortadas jazem ocultos

o alimento e a vida.”(p.153-154)

III-­‐  Do  diário  de  Ottilie  (IV  Capítulo)  

“Gostamos tanto de olhar para o futuro porque preferiríamos direcionar a nosso

favor, através de desejos secretos, as probabilidades que nele oscilam.

“Não é fácil parar de pensar quando se está acompanhado de muitas pessoas; o

acaso, que as reúne, deveria também aproximar-nos de nossos amigos.

“Por mais retirado que se viva, acaba-se sempre um devedor ou um credor, sem

que se perceba.

“Se encontramos alguém que nos deve gratidão, imediatamente lembramo-nos

disso. Mas quantas vezes encontramos alguém a quem devemos gratidão e nem

pensamos nisso!

“Comunicar-se é um ato natural; captar a comunicação, tal como ocorre, é

educação.

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“Ninguém falaria demais em sociedade, se estivesse consciente de quantas

vezes entendeu mal os outros.

“Alteramos tanto as palavras estrangeira ao repeti-las apenas por que não a

entendemos.

“Quem fala demais diante dos outros, sem lisonjear os ouvintes, desperta

antipatias.

“Toda palavra dita suscita o seu sentido oposto.

“Contradição e adulação fazem, ambos, um péssimo diálogo.

“As companhias mais agradáveis são aquelas entre as quais predomina um

sereno respeito mútuo.

“Não há nada que demonstre mais o caráter de uma pessoa do que aquilo que

ela acha ridículo.

“O ridículo brota de um contraste moral apresentado de uma maneira

inofensiva aos sentidos.

“Muitas vezes a pessoa sensual ri, quando não há nada para rir. Qualquer

excitação faz com que ela manifeste o seu bem-estar interior.

“A pessoa sensata acha quase tudo digno de risos; a racional, quase nada.

“Censuraram um homem idoso por ainda cortejar as moças. – É o único meio

de rejuvenescer – respondeu ele –, e isso é o que todos querem.

“Permitimos que critiquem os nossos defeitos e nos castiguem, e por causa

deles sofremos tanto, com paciência; mas tornamo-nos impacientes quando

temos de abandoná-los.

“Certos defeitos são necessários à existência do indivíduo. Acharíamos muito

desagradável ver velhos amigos sem certas particularidades.

“Dizem ‘Ele morrerá logo’, quando alguém age contra a sua maneira de ser.

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“Quais defeitos devemos conservar e até mesmo cultivar? De preferência

aqueles que lisonjeiam, e não os que ferem os outros.

“As paixões são vícios ou virtudes, só que intensificados.

“As nossas paixões são verdadeiras fênix. Mal a velha foi consumida pelo fogo,

ressurge das cinzas a nova.

“As grandes paixões são doenças sem esperança. Justamente o que poderia

curá-las torna-as ainda mais perigosas.

“A paixão aumenta e diminui através da confissão. Em nada seria mais

desejável o caminho do meio, do que na confiança e na discriminação para com

as pessoas que amamos.” (p. 162-163)

IV-­‐  Do  diário  de  Ottilie  (V  Capítulo)  

“Nesse mundo toma-se a pessoa pelo que ela aparenta, porém ela tem de

aparentar alguma coisa. Suportam-se melhor as pessoas incômodas do que as

insignificantes.

“Pode-se impor tudo à sociedade, menos o que tiver consequência.

“Não conhecemos as pessoas quando vêm até nós; precisamos ir até elas para

sabermos como realmente são.

“Acho até natural que tenhamos algo a criticar em nossas visitas e que,

imediatamente após a sua saída, as julguemos sem comiseração, pois temos,

por assim dizer, o direito de medi-las, usando os nossos próprios critérios. Em

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tais casos, mesmo as pessoas justas e sensatas não estão completamente isentas

de uma censura severa.

“Mas, se estamos na casa dos outros e os vemos em seu ambiente, em seus

hábitos, em circunstâncias prementes e inevitáveis e como eles agem e se

adaptam a elas, então é preciso incompreensão e má vontade para achar ridículo

o que, sob diversos aspectos, nos deveria parecer respeitável.

“Através daquilo que chamamos de boa conduta e bons costumes, deve-se obter

o que, caso contrário, só pode ser obtido pela força ou, ás vezes, nem sequer

através dela.

“O relacionamento com mulheres é a base dos bons costumes.

“Como o caráter e as particularidades de uma pessoa podem coexistir com as

boas maneiras?

“As particularidades deveriam se sobressair, antes de mais nada, pelas boas

maneiras. Todos querem o que é significativo, desde que não seja incômodo.

“Quem tem maiores vantagens, tanto na vida como na sociedade, é o soldado

bem-educado.

“Militares grosseiros mantêm ao menos o seu caráter, e, como atrás da força

quase sempre está oculta a bondade, podemos então, se necessário, nos

entender com eles.

“Nada mais inoportuno que um civil parvo. Poderíamos exigir dele fineza, já

que não precisa se ocupar com coisas grosseiras.

“Quando convivemos com pessoas sensíveis às convenções, sentimos receio

por elas, quando algo inconveniente ocorre. Então, sinto muito por e com

Charlotte, quando alguém se balança na cadeira, por que nem morta ela

suportaria isso.

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“Nenhum homem entraria num aposento íntimo com os óculos no nariz, se

soubesse como nós, mulheres, logo perdemos a vontade de olhá-lo e de

conversar com ele.

“Familiaridade em lugar de respeito é sempre ridículo. Ninguém tiraria o

chapéu para cumprimentar, se soubesse como isso é risível.

“Não há nenhum sinal exterior de cortesia que não possua uma profunda base

moral. A verdadeira educação seria a que ligasse esse sinal a sua respectiva

base.

“A conduta é um espelho no qual cada um reflete a sua imagem.

“Há uma cortesia do coração, que é parente do amor. Dela advém a mais suave

cortesia da conduta exterior.

“A dependência voluntária é uma das sensações mais belas, mas como ela seria

possível sem o amor?

“Nunca nos afastamos tanto dos nossos desejos, como quando acreditamos

possuir o objeto desejado.

“Ninguém mais escravo do que aquele que se considera livre sem sê-lo.

“Basta que nos declaremos livres para nos sentirmos imediatamente

dependentes. Se ousarmos nos declarar dependentes, então nos sentiremos

livres.

“Contra os grandes méritos de uma outra pessoa, o único meio de salvação é o

amor.

“Algo terrível para o homem superior é ver os tolos se vangloriarem diante

dele.

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“Dizem que para o camareiro não existem heróis. Mas isso por que um herói só

pode ser reconhecido por um outro herói. Provavelmente, porém, um camareiro

saiba apreciar apenas aquele que lhe é semelhante.

“O maior consolo para o medíocre é saber que o gênio não é imortal.

“Os grandes homens estão sempre ligados ao seu século, através de alguma

fraqueza.

“Comumente julgamos os homens mais perigosos do que realmente são.

“Os tolos e os sensatos são igualmente inofensivos. Os meio-bobos e os meio-

sábios é que são os mais perigosos.

“A arte é o meio mais seguro de se afastar do mundo e, ao mesmo tempo, de se

ligar a ele.

“Precisamos do artista até mesmo nos momentos de maior felicidade e de maior

carência.

“A arte se ocupa do que é difícil e bom.

“Ver alguém fazer algo difícil com facilidade é apreciar o impossível.

“As dificuldades aumentam à medida que nos aproximamos do objetivo.

“Semear não é tão penoso quanto colher.

(p. 173-176)

V-­‐  Do  diário  de  Ottilie  (VII  Capítulo)  

“Como alguém pode ser capaz de ilustrar com tanto esmero os macacos

asquerosos! Já nos degradamos quando os consideramos apenas como animais,

mas nos tornamos ainda mais maldosos quando deixamo-nos levar pela

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tentação de procurar, sob essas máscaras, semelhanças com pessoas

conhecidas.

“Realmente é preciso ser um pouco excêntrico para sentir prazer em ocupar-se

com caricaturas e figuras burlescas. Agradeço ao nosso bom assistente não ter

sido torturada com a História Natural; nunca poderia familiarizar-me com

vermes e coleópteros.

“Confessou-me, então, que com ele acontecia o mesmo. ‘Da natureza’, disse

ele, ‘só deveríamos conhecer o que vive imediatamente ao nosso redor. Temos

um relacionamento verdadeiro com as árvores que florescem, verdejam e dão

frutos a nossa volta; com cada arbusto junto ao qual passamos e com toda

vergôntea sobre a qual saltamos: são os nossos autênticos compatriotas. Os

pássaros, que saltitam em nossos galhos e cantam em nossas ramagens,

pertencem-nos; eles nos falam desde a nossa infância e aprendemos a entender

a sua linguagem. Perguntemo-nos se toda criatura estrangeira, arrancada de seu

meio, não nos causa uma certa impressão penosa, atenuada apenas pelo hábito.

É preciso uma vida agitada e barulhenta para suportar, perto de si macacos,

papagaios e negros.’

“Às vezes, quando me assalta um curioso desejo por tais aventuras, invejo o

viajante que vê tais maravilhas numa relação cotidiana e vive com outras

maravilhas. Mas ele também se torna um outro homem. Ninguém passeia

impunimente sob palmeiras, e certamente a visão de mundo modificam-se, num

país onde elefantes e tigres sentem-se em casa.

“Só é digno de veneração o pesquisador da natureza que sabe descrever e

representar o mais estranho, o mais extraordinário, em seu respectivo habitat,

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em seu contexto e junto aos seus elementos mais próprios. Com que prazer

ouviria as narrações de Humboldt, mesmo que uma só vez!

“Um laboratório de pesquisa pode nos parecer uma sepultura egípcia, onde

diversas plantas e animais idolatrados acham-se embalsamados. Convém a uma

casta sacerdotal ocupar-se disso numa misteriosa penumbra; mas tais coisas não

deveriam fazer parte do ensino geral, principalmente por que, assim, passa-se a

negligenciar algo mais próximo e digno.

“Um professor que sabe despertar a nossa sensibilidade para uma única boa

ação, um único bom poema, realiza mais do que um outro que nos transmite

séries inteiras de fenômenos naturais, classificados segundo a sua forma e seu

nome, pois o resultado disso tudo – o que aliás deveríamos saber – é que a

figura humana traz em si, da maneira mais extraordinária e única, a imagem de

Deus.

“Ao indivíduo resta a liberdade de se ocupar com o que o atrair, com o que lhe

der prazer, com o que julgar útil, mas o verdadeiro objeto de estudo da

humanidade é o homem.”

(p. 192-193)

VI-­‐  Do  diário  de  Ottilie  (IX  Capítulo)  

“Anotamos com prazer em nosso diário algum pensamento que lemos ou algo

notável que ouvimos. Mas se ao mesmo tempo nos déssemos ao trabalho de

copiar das cartas de nossos amigos as observações particulares, as opiniões

originais, as expressões sutis e espirituosas, ficaríamos então bastante

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enriquecidos. Guardamos as cartas e nunca mais as relemos; por fim as

rasgamos com discrição e assim desaparece irremediavelmente, para nós e para

os outros, o mais belo e imediato sopro da vida. Proponho-me a reparar essa

falta.

“Assim, pois, repete-se desde o princípio o livro da história do ano. Estamos

novamente – graças a Deus! – em seu mais gracioso capítulo. Violetas e lírios

formarão o seu frontispício e as suas vinhetas. Causam-nos sempre uma

sensação agradável revê-los quando abrimos o livro da vida.

“Repreendemos os pobres, sobretudo as crianças, que ficam deitados na

calçadas pedindo esmolas. Ninguém percebe que eles logo se tornam ativos,

assim que surge algo para fazer? Mal a natureza põe à mostra os seus amáveis

tesouros, e logo as crianças aparecem para iniciar uma atividade; não pedem

mais esmolas e nos oferecem um ramalhete; colheram-no antes que

acordássemos, e o pedinte nos contempla com a mesma amabilidade que a

dadiva. Ninguém se julga miserável quando se julga no direito de exigir alguma

coisa.

“Por que será que algumas vezes o ano nos parece tão curto e outras vezes tão

longo? Por que será que ele parece tão curto e ao mesmo tempo tão longo em

nossa lembrança? É essa a impressão que tenho do ano passado, e em nenhum

lugar isso é tão evidente como no jardim, onde o efêmero e o duradouro se

interpenetram. Contudo nada é tão fugaz a ponto de não deixar um rastro ou

algo semelhante atrás de si.

“O inverno tem também os seus encantos. Julgamos expandir-nos mais

livremente, quando vemos diante de nós árvores tão fantasmagóricas, tão

diáfanas. Não são nada e também não encobrem nada. Mas, quando surgem os

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botões e começa a floração, ficamos impacientes até que a folhagem apareça

por completo, a paisagem se corporifique e as árvores reassumam as suas

formas.

“Tudo o que é perfeito em sua espécie deve sobrepujá-la, deve tornar-se algo

diferente, incomparável. Em algumas modulações o rouxinol continua sendo

um pássaro, mas depois se revela acima de sua classe e parece querer indicar a

todas as aves o que é realmente cantar.

“Uma vida sem amor, sem a presença do ser amado, não passa de uma comedie

à tiroir, de uma peça engavetada de má qualidade. Tiramos da gaveta uma após

a outra, tornamos a guardá-las e corremos atrás das seguintes. Tudo o que

acontece de bom e de importante possui relações frágeis. Temos de começar

qualquer coisa pelo princípio, mas queremos terminá-la em qualquer lugar.” (p.

202-204)

   

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ANEXO  B:  Os  quadros  vivos  

O Belisário de Van Dyck

 

 

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Três personagens conversando em um interior, antes conhecido como Admoestação paterna de Gerard Ter Borch

 

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Ester e Assuero de Poussin