universidade vale do rio verde recredenciamento e-mec ...€¦ · tropicália ou panis et circencis...

139
UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC 200901929 EDUARDO BASÍLIO RIBEIRO TROPICALIA OU PANIS ET CIRCENCIS: HISTÓRIAS DE RUPTURAS E INTERVENÇÃO CULTURAL DE UM AUTÊNTICO MANIFESTO TROPICALISTA? TRÊS CORAÇÕES - MG 2018

Upload: others

Post on 28-Mar-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

1

UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE

Recredenciamento e-MEC 200901929

EDUARDO BASÍLIO RIBEIRO

TROPICALIA OU PANIS ET CIRCENCIS: HISTÓRIAS DE RUPTURAS E

INTERVENÇÃO CULTURAL DE UM AUTÊNTICO MANIFESTO

TROPICALISTA?

TRÊS CORAÇÕES - MG

2018

Page 2: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

2

EDUARDO BASÍLIO RIBEIRO

TROPICALIA OU PANIS ET CIRCENCIS: HISTÓRIAS DE RUPTURAS E

INTERVENÇÃO CULTURAL DE UM AUTÊNTICO MANIFESTO

TROPICALISTA?

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras: Linguagem, Cultura e

Discurso da Universidade Vale do Rio Verde como

requisito parcial para obtenção do título de Mestre

em Letras. Linha de pesquisa: Literatura, história e

cultura. Área de concentração: Letras

Orientador: Prof. Dr. Luciano Marcos Dias

Cavalcanti

TRÊS CORAÇÕES - MG

2018

Page 3: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

3

Page 4: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

4

Page 5: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

5

Page 6: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

6

Dedicado ao Autor da Vida por esta inestimável oportunidade, à minha mãe e eterna

incentivadora, dona Dionísia, ao meu filho Jônatas pelo exemplo que luto para deixar como

legado, e a todos os que se propuseram a romper com coragem e ousadia as amarras de uma

arte engessada nas formalidades e no tradicionalismo para que a cultura brasileira fosse

mostrada em seu verdadeiro esplendor.

Page 7: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

7

AGRADECIMENTOS

A caminhada de uma milha começa sempre pelos primeiros passos. Este curso de Mestrado

foi uma porta de uma grande oportunidade que se abriu de forma inesperada, mas que foi

aproveitada com dedicação, apesar de todas as minhas limitações e dificuldades. Ao atingir

esta grande etapa, meus agradecimentos vão, em primeiro lugar, para as instituições que

possibilitaram a realidade deste momento de realização: Prefeitura Municipal de Três

Corações, na pessoa de sua Secretária de Educação, Lisa Paula Vilella e para a UNINCOR,

Universidade Vale do Rio Verde, cuja parceria tornou-se uma prerrogativa fundamental para

que este sonho se realizasse. Quero agradecer à coordenação e ao corpo docente do curso de

Mestrado em Letras pela extrema dedicação e zelo no exercício da função. Minha gratidão em

especial aos dois professores orientadores que me conduziram com firmeza e atenção em

diferentes momentos da pesquisa: na fase inicial, a doutora Maria Elisa Rodrigues Moreira.

Nas fases seguintes, o doutor Luciano Marcos Dias Cavalcanti. Uma menção também vai para

a coordenadora do curso, doutora Cilene Margarete Pereira, pelas importantes observações, e

sugestões apontadas que muito contribuíram para o desenvolvimento da pesquisa. Aos

colegas de curso pelos momentos de descontração e de aprendizagem compartilhados. Ao

grande amigo Lauander Silva pelas colaborações prestadas e a todos que de uma forma

indireta contribuíram para que esta grande etapa fosse conquistada. Parafraseando o grande

educador Paulo Freire: “O conhecimento não transforma o mundo. O conhecimento muda as

pessoas. Pessoas mudam o mundo”.

Ao Autor da Vida, minha mais preciosa gratidão. Em todo o tempo.

Page 8: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

8

“Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval

Eu inauguro o monumento

No planalto central do país”

(Caetano Veloso, “Tropicália”, 1968)

Page 9: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

9

RESUMO

O presente trabalho se propõe a uma investigação do álbum Tropicália ou Panis Et Circencis

como álbum–manifesto catalisador das principais ideias do movimento Tropicalista da década

dos anos 1960. O objetivo primordial é mostrar quais seriam as possíveis relações do gênero

manifesto com a obra fonográfica e de como estas ligações, que lhe parecem tão peculiar,

colaboraram, inseridas no contexto do movimento Tropicalista, para uma intervenção cultural

como poucas vezes observada na história da arte brasileira. Para tanto, partiremos de algumas

considerações sobre a particularidade da formação cultural brasileira, múltipla e imbricada,

para traçarmos, por meio de um método crítico analítico, alguns aspectos importantes da

trajetória da arte no Brasil através de movimentos vanguardistas como o Modernismo e o

Concretismo, além de um estudo pormenorizado do próprio gênero manifesto em suas várias

adequações, até o surgimento do Tropicalismo e o consequente lançamento do álbum, ao qual

terá nove dentre um total de doze fonogramas, analisados e comentados. Dentro deste

contexto, estaremos propondo uma reflexão crítica a respeito das intervenções culturais e das

rupturas estéticas provocadas pelo álbum e pelo movimento em geral, bem como a relação

artística que ele - o próprio álbum – desenvolveu, até a atualidade, enquanto um manifesto-

arte.

Palavras-chave: Tropicalismo, Caetano Veloso, manifesto, antropofagia.

Page 10: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

10

ABSTRACT

The present work is proposed to an investigation of the album Tropicália or Panis Et

Circencis as a manifesto album catalyzing the main ideas of the Tropicalist movement of the

decade of the 1960s. The main objective is to show the possible relations between the genre

manifesto and the phonographic work and how these connections, which seem to it so

peculiar, have collaborated, inserted in the context of the Tropicalist movement, into a

cultural intervention rarely observed in the Brazilian history of art. We will start from some

considerations about the particularity of the formation of Brazilian culture, as multiple and

imbricated, to draw, through a critical and analytical method, some important aspects of the

trajectory of art in Brazil through avant-garde movements such as Modernism and

Concretism, as well as a detailed study of the genre manifesto in its various forms, until the

emergence of Tropicalismo and the consequent release of the album, which will have nine

phonograms, analyzed and commented, of a total of twelve. Within this context, we will be

proposing a critical reflection on the cultural interventions and aesthetic ruptures provoked by

the album and the movement in general, as well as the artistic relationship that he - the album

itself - has developed until today, as a manifesto-art.

Keywords: Tropicalismo, Caetano Veloso, manifesto, antropofagia.

Page 11: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

11

LISTA DE IMAGENS

FIGURA 1. Capa do álbum Tropicália ou Panis Et Circencis 84

FIGURA 2. Contracapa do album Tropicália ou Panis Et Circencis 86

FIGURA 3. Capa do álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles 89

FIGURA 4. Quadro Lindoneia: a Gioconda do Subúrbio, de Rubens Gerchman 103

Page 12: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

12

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 CULTURAS BRASILEIRAS: DA SINGULARIDADE À MULTIPLICIDADE -

CONSIDERAÇÕES DE ALFREDO BOSI 14

2 O MOVIMENTO MODERNISTA E AS NOVAS TENDÊNCIAS DE

RENOVAÇÕES ARTÍSTICAS 26

2.1 O Modernismo e a transição entre a renovação estética e o projeto ideológico 29

2.2 Oswald de Andrade: poética radical e manifestos 36

2.3 O surgimento do Concretismo e o advento da contracultura. 47

3 TROPICALISMO E TROPICALISTAS 52

3.1 Marco inicial: 1967 e o Festival da Canção da TV Record 52

3.2 Surge então o Tropicalismo 58

3.3 Interlúdio: as novas concepções estéticas presentes no trabalho de Caetano Veloso 64

3.4 Tropicália ou Panis Et Circencis – contextualização e repercussões 72

4 TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENSIS – MANIFESTO TROPICALISTA? 78

4.1 O gênero manifesto e suas implicações na arte moderna 78

4.2 As concepções estéticas presentes na produção capista do álbum 84

4.3 “Eu quis cantar...” – histórias e análises das canções 90

CONSIDERAÇÕES FINAIS 127

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 133

Page 13: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

13

INTRODUÇÃO

Esta dissertação de mestrado tem como objetivo propor uma reflexão crítica e analítica

sobre uma das obras fonográficas mais emblemáticas da história da discografia da música

popular brasileira: Tropicália ou Panis Et Circencis. Lançado no ano de 1968, em meio a um

contexto cultural, histórico e político efervescente, este álbum transcendeu os limites de um

simples registro fonográfico produzido pela indústria de entretenimento de sua época para se

tornar – dentro do movimento tropicalista que o deflagrou - uma verdadeira referência

musical, conceitual e artística, que viria, inclusive, a influenciar decisivamente os rumos da

música popular brasileira, bem como toda uma leva de artistas e músicos de gerações

posteriores.

Tal relevância logo lhe renderia o epíteto de “álbum-manifesto”, o que se constitui o

mote deflagrador do escopo desta pesquisa em relação a seu corpus: analisar o disco

Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um

“manifesto” do Tropicalismo, identificando por meio da análise integral da obra – que

perpassa por capa, recursos gráficos e principalmente pelas letras e estrutura da maioria de

suas canções – identificando em que medida o álbum corresponderia a este epíteto.

Esta pesquisa se justifica por propor uma reflexão sobre o álbum Tropicália ou Panis

et Circencis sob um viés ainda pouco explorado por outras pesquisas acadêmicas, qual seja,

discutir a adequação ou não de se considerar esta obra, referencial no panorama da música

brasileira, como um manifesto do movimento Tropicalista.

Em nossas pesquisas preliminares, encontramos uma série de livros dedicados ao

Tropicalismo, dentre os quais se destacam: A forma da festa: Tropicalismo: a explosão e seus

estilhaços, organizado por Sylvia Helena Cyntrão (2000); Tropicália, alegoria, alegria, de

Celso Favaretto (2007); Brutalidade Jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura

brasileira, de Christopher Dunn (2009); e Tropicália, organizado por Sérgio Cohn e Frederic

o Coelho (2012). Todos esses livros, no entanto, abordam o movimento em suas

características mais amplas, identificando sua contextualização, surgimento e principais obras,

mas não se dedicam ao álbum que elegemos para estudo. O único livro que encontramos

dedicado exclusivamente ao álbum tem título homônimo a este, e foi organizado por Ana de

Oliveira em 2010. O livro Tropicália ou Panis Et Circencis apresenta um texto crítico acerca

de cada canção do álbum, além de um pôster elaborado por um artista como interpretação da

canção analisada. Assim, sua abordagem é bastante distinta da aqui proposta.

Page 14: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

14

Foram encontrados também artigos, dissertações e teses dedicados ao estudo do

movimento Tropicalista, como “Tropicalismo e Vanguardas Europeias: Imperativo de

Ruptura, Processos Construtivos e Alcance Crítico”, dissertação defendida em 2016, por

Guilherme de Azevedo Granato, “Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate” de

Marcos Napolitano e Mariana Martins Villaça (1997) e “O Desenho de Capas de Discos

Bossa-Novistas e Tropicalistas, Indicação da Cultura Brasileira de Um Tempo”, de Valéria

Nanci de Macêdo Santana (2013), além de uma dissertação muito importante por conter em

seu objeto um tema similar a esta pesquisa: “Vozes Dissonantes: Discurso da Diversidade e

Diversidade de Discursos no Manifesto Tropicalista”, de Juliano Malínverni da Silveira

defendida em 2010, em que o autor parte da premissa já evidenciada de que a obra se trata de

um disco-manifesto, analisando suas diferentes vozes e discursos a partir de sua produção

capista e trechos de algumas faixas, sem contudo, estabelecer uma investigação mais

aprofundada sobre as relações do álbum com o próprio gênero manifesto, discussão esta

primordial para análise circunstanciada do objeto desta pesquisa. Esta fortuna crítica nos

permitiu analisar, com mais profundidade, a obra em questão dentro da perspectiva desta

denominação de álbum-manifesto que lhe é atribuída, a qual parece ser tomada como natural.

Para o desenvolvimento desta pesquisa, recorreremos a um método crítico-analítico,

no qual o álbum será analisado sob o prisma do movimento Tropicalista e de suas propostas

vanguardistas, contextualizadas e inseridas no momento histórico e político da década de

1960, e aproximado a elementos característicos dos “manifestos”.

Entretanto, analisar a história deste álbum, sob o viés do gênero manifesto, ultrapassa

uma simples investigação de suas canções e da relevância do Tropicalismo enquanto

movimento artístico que o desencadeou. A história do álbum confunde-se com o movimento

que ele – o próprio álbum – quis representar.

Portanto, esta pesquisa requer um estudo que perpassa pelo panorama de algumas das

principais tendências artísticas brasileiras e, acima de tudo, requer reconhecer e mapear que

caminhos contribuíram para que essas próprias tendências se consolidassem na construção de

uma identidade cultural brasileira a partir do início do século XX, até convergirem ao

movimento Tropicalista nos anos 1960.

Para tanto, os capítulos da pesquisa foram organizados da seguinte forma:

No primeiro capítulo, “Culturas brasileiras: da singularidade à multiplicidade–

considerações de Alfredo Bosi”, faremos uma reflexão preponderante sobre os aspectos gerais

e determinantes da cultura e das culturas brasileira, por meio de importantes textos de Alfredo

Bosi (“Plural, mas não caótico” de 1999 e, principalmente, por “Cultura brasileira e culturas

Page 15: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

15

brasileiras” e “Post-scriptum”, de 1992), os quais de forma sintética, o autor elabora, a partir

da síntese do pensamento de grandes estudiosos, a formação do Brasil e de sua cultura, como:

Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, etc. Além disso, consideraremos a

sua própria contribuição, que dá um passo adiante a esses pensadores, no sentido de que, para

ele, não existe um Brasil harmônico e puro, mas sim uma pluralidade cultural, que mistura

desde aspectos mais arcaicos de nosso povo, até a tecnologia hi-tech de uma indústria cultural

de entretenimento. Nesse sentido, a intenção deste capítulo é traçar um percurso inicial que

nos possibilitará visualizar e analisar, de forma mais crítica e apurada, as múltiplas

intersecções culturais de diferentes estratos sociais, empreendidas do Modernismo ao

Tropicalismo e, sobretudo, neste último, representadas pelo lançamento do álbum Tropicália

ou Panis Et Circencis.

No segundo capítulo – “O movimento Modernista e as novas tendências de renovações

artísticas” – concentraremos o foco no Modernismo, procurando investigar os fatores que

contribuíram para um período fértil de ruptura e renovação da arte no Brasil. Dois autores, em

especial, merecerão destaque neste capítulo, por suas pesquisas e aproveitamento de novas

concepções estéticas literárias: Mário de Andrade, um dos precursores e expoentes do

movimento e Oswald de Andrade pela corrente vanguardista que seria mais tarde uma

influência peremptória para o movimento Tropicalista: a Antropofagia. Neste capítulo,

também abordaremos duas correntes importantes para as futuras proposições tropicalistas: o

Concretismo e a Contracultura dos anos 50 e 60.

No capítulo seguinte – “Tropicalismo e tropicalistas” – o movimento Tropicalista

estará em foco a partir do seu surgimento, especificamente após o Festival da Canção da TV

Record, ocorrido em outubro de 1967, quando a imprensa passou a rotular as canções

apresentadas por Caetano Veloso e Gilberto Gil como “tropicalistas”. Serão apresentadas as

referências e influências do movimento Modernista sobre o Tropicalismo, suas características

mais importantes, assim como sua repercussão no meio artístico da época e uma reavaliação

crítica e contextualizada de seu importante legado algumas décadas depois.

No quarto capítulo, “Tropicália ou Panis Et Circencis – Manifesto Tropicalista?”,

iremos abordar o manifesto enquanto gênero textual específico, que ultrapassou as fronteiras

de suas raízes políticas para abarcar diversas frentes artísticas, como as artes plásticas, a

literatura e a música, bem como suas contribuições para as produções culturais e artísticas.

Neste capítulo, o objetivo principal recairá sobre o álbum, objeto da pesquisa, em

relação ao qual serão apresentados: detalhes de sua produção e concepção estética, análise

crítica de sua capa emblemática e polêmica e, por fim, análise de suas canções, que

Page 16: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

16

possibilitarão tratar de maneira mais apurada das propostas do álbum bem como as

correlações dessas proposições em relação ao gênero manifesto.

Do total das doze faixas que perfazem o álbum (a saber: “Miserere Nóbis”, “Coração

Materno”, “Panis et Circensis”, “Lindoneia”, “Parque Industrial”, “Geleia Geral”,

“Baby”,”Las Três Caravelas” “Enquanto Seu Lobo Não Vem”, “Mamãe, Coragem” “Bat

Macumba” e “Hino ao Senhor do Bonfim”) as canções serão analisadas na íntegra através de

investigações que procurarão perpassar pelas propostas tropicalistas de retratarem, dentro do

ideário do manifesto, a complexidade da cultura e da arte brasileira.

Diante de todos esses fatores e objetivos elencados, acreditamos que esta pesquisa

venha a ajudar a suprir uma importante lacuna nos estudos acerca da Música Popular

Brasileira e suas repercussões associadas ao universo cultural e literário brasileiro, lançando

novos olhares sobre um aspecto relevante relacionado a um álbum fundamental em nosso

cancioneiro popular, mas ainda hoje pouco analisado.

Page 17: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

17

1 CULTURAS BRASILEIRAS: DA SINGULARIDADE À MULTIPLICIDADE -

CONSIDERAÇÕES DE ALFREDO BOSI

Ao considerarmos a expressão “cultura brasileira”, no singular, temos uma percepção

de que uma cultura homogênea e única perpassa todas as atividades e manifestações artísticas

dos costumes do povo brasileiro. No entanto, ao refletirmos de maneira mais aprofundada

nesta questão, rapidamente percebemos a inviabilidade dessa expressão, uma vez que,

levando em conta fatores como o histórico de colonização e o consequente processo de

mestiçagem racial, que, por sua vez, resultaram em uma inevitável sociedade de classes, tal

concepção de uniformidade tende a cair por terra imediatamente.

As várias subdivisões e fragmentações imanentes a quaisquer grupos sociais estão

direta e proporcionalmente ligadas às múltiplas direções e interseções pelas quais determinada

cultura passa, perdendo gradualmente seu aspecto homogêneo inicial. Tal processo perpassa

todo o intercurso das manifestações artísticas, saberes e costumes de uma nação, sendo,

inclusive, tema pertinente de longos estudos e análises antropológicas através dos tempos.

Alfredo Bosi sustenta a tese de que a cultura brasileira sempre carregou consigo as

marcas da miscigenação, até por conta das razões históricas que perpassaram todo um período

histórico colonial supracitado.

A tradição da nossa Antropologia Cultural já fazia uma repartição do Brasil

em culturas, aplicando-lhes um critério racial: cultura indígena, cultura

negra, cultura branca, culturas mestiças, Uma obra excelente, e ainda hoje

útil como informação e método, a Introdução à antropologia brasileira, de

Arthur Ramos, terminada em 1943, divide-se em capítulos sobre as culturas

não europeias (culturas indígenas, culturas negras, tudo no plural) e culturas

europeias (culturas portuguesa, italiana, alemã...), fechando-se pelo exame

dos contatos raciais e culturais. (BOSI, 1992, p. 308)

Quanto à concepção de cultura aqui analisada, em uma definição abrangente,

compreende toda “uma herança de valores e objetos compartilhada por um grupo humano

relativamente coeso” (BOSI 1992. p. 309) a qual podemos subdividir por categorias que

transitam por um saber cultural erudito centralizado no sistema educacional, mais

especificamente nas universidades e uma cultura mais simples, rudimentar em sua essência

iletrada, compreendendo aqui os costumes, as manifestações e os saberes que abarcam o

homem interiorano, de aspectos e modos rústicos, sertanejo e provinciano. Ou ainda do

homem pobre, suburbano, morador de periferia, todavia sem assimilação ou acesso às

estruturas modernizantes. (Cf. BOSI, 1992, p. 309)

Page 18: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

18

Importante observar que, somado a esses dois polos (“Academia e Folclore”), o crítico

enumera também categorias intermediárias de produção cultural, fruto do constante

desenvolvimento de uma sociedade essencialmente capitalista e de consumo: “a cultura

criadora individualizada de escritores, compositores, artistas plásticos, dramaturgos, cineastas,

enfim, intelectuais […]” (BOSI, 1992, p. 309), uma produção independente, autônoma e à

margem dos meios acadêmicos. Por fim, reconhece uma cultura resultante das relações de

sistemas de produções de bens de consumo, presentes em uma sociedade urbano-capitalista

sendo, portanto, constituída de meios de comunicação e aparatos tecnológicos, tendo como

objetivo principal atingir o maior contingente possível a partir de uma perspectiva globalizada

(Cf. BOSI, 1992, p. 309).

Justamente em decorrência desta estreita relação com os sistemas de produção e

mercado de bens de consumo, tal fenômeno recebeu a denominação de cultura de massa,

sendo também denominada, conforme observa Bosi, “pelos intérpretes da Escola de Frankfurt

de indústria cultural e cultura do consumo” (BOSI, 1992, p. 309).

Portanto, analisando por um prisma mais pragmático, essas quatro categorizações, a

saber, a cultura universitária, a cultura criadora individualizada extrauniversitária, a cultura de

massa ou de consumo e a cultura popular formam o quadrante básico e catalisador das

produções culturais.

Entretanto, tais segmentações não permanecem estanques em suas propostas, muito

menos produzem atividades compartimentadas. Mesmo em uma sociedade estratificada em

classes, como a brasileira, há de se observar as múltiplas correlações e imbricações pelas

quais tais níveis de cultura atravessam, percorrendo múltiplas influências e absorções de uma

série de fatores sociais tais como a influência das culturas imigratórias estrangeiras, além das

próprias variações regionalistas do Brasil, país de dimensões continentais em que se torna

incontestável e perceptível a pluralidade das manifestações culturais decorrentes de um

imanente processo de miscigenação.

Ora, tais considerações, longe de apontarem para um quadro esquizofrênico e caótico,

delimitam, ao contrário, um panorama rico, multiforme, contribuindo mais para o aspecto

singular em meio à multiplicidade e suas interseções. Em lugar de expressões consagradas e

cunhadas no imaginário popular como “geleia geral” e “samba do crioulo doido” o que se

espera desse caleidoscópio é justamente o seu “efeito de sentido” conforme constata Bosi:

A cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se em certas

situações, com a cultura de massa. Esta com a cultura e erudita, e vice–versa.

Há imbricações de velhas culturas ibéricas indígenas e africanas, todas elas

Page 19: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

19

também polimorfas, pois já traziam um teor considerável de fusão no

momento do contato interétnico. E há outros casamentos mais recentes de

culturas migrantes quer externas (italiana, alemã, síria, judaica, japonesa...,),

quer internas (nordestina, paulista, gaúcha...) que penetraram fundo no nosso

cotidiano material e moral. Sem esquecer a presença norte-americana que

vem representando, desde a Segunda Guerra Mundial, uma fonte

privilegiada no mercado de bens simbólicos. (BOSI, 1999, p. 7-8)

Torna-se, portanto, fundamental observar a questão que se impõe neste instante: o que

vem a ser na realidade a cultura brasileira? É possível defini-la ou revesti-la de alguma

identidade? Como considerá-la única ou pura em meio a tantas imbricações e interseções

possíveis?

Essas múltiplas interseções constituem um tema vasto e complexo. No entanto, é

possível detectar algumas correlações entre os níveis de cultura que permeiam de maneira

profunda e inalterável as relações do brasileiro para com a sociedade, independente do seu

pertencimento a um dos múltiplos estratos sociais possíveis.

Tomemos como exemplos as inúmeras correlações entre a cultura popular e a cultura

de massa, ou “popularesca”, numa expressão cunhada por Mário de Andrade. (Cf. BOSI

1992, p. 324) A cultura popular, espontânea, e por isso mesmo carregada de simbolismos,

transcorre em tempos e espaços diferentes.

Sua singularidade está atrelada ao discurso dialético entre o material e o espiritual, ou

seja, há uma questão intrínseca que revela tradições de costumes, modos de viver, as

representações manifestas em comunidades rurais pobres, em sua grande maioria iletradas,

nas pequenas cidades interioranas ou ainda em áreas de periferia dos grandes centros cujas

condições sociais estáveis, embora precárias, pressupõem uma gama de preservação de

situações na memória. Assim, como enumera Bosi:

Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação

homem-mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as

relações de parentesco [...], as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a

pesca, o fumo, a bebida, os provérbios, o modo de cumprimentar, as palavras

tabus, os eufemismos, [...] as romarias, as promessas, as festas de padroeiro,

o modo de criar galinha e porco, os modos de plantar feijão, milho e

mandioca, o conhecimento do tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir e

de consolar... (BOSI, 1992, p. 324)

Não obstante, todo este cenário aparentemente caótico e desordenado revela diretrizes

interessantes, constituindo um leque amplo de inspirações de produções artísticas para a

cultura popular. A arte brasileira sempre foi pródiga em contemplar a cultura popular e tomá-

la como fonte de inspiração para produções extremamente marcantes e profícuas ao longo de

décadas, não importasse se seus matizes fossem ideológicas ou puramente estéticas.

Page 20: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

20

Obras literárias canônicas como Vidas Secas e Grande Sertão: Veredas são incursões

voluntárias e viscerais a este Brasil arcaico, iletrado, sertanejo e provinciano que sempre

fascinou Graciliano Ramos e João Guimarães Rosa, respectivamente. As imagens icônicas

retratadas em Os Retirantes de Cândido Portinari ou Abaporu de Tarsila do Amaral, que, no

auge do Modernismo Brasileiro dos anos 30 e 40, ousaram retratar a crueza do sertão em

quadros arrojadamente influenciados pelo contato com as vanguardas e técnicas cubistas,

revestidas de primoroso acabamento estético e de denúncia social.

Registros fonográficos como o álbum Tropicália Ou Panis Et Circensis que, em pleno

auge da ditadura militar nos anos 1960, fez ecoar as propostas presentes na antropofagia

preconizada por Oswald de Andrade, expoente do movimento Modernista, misturando em

uma “geleia geral” sonoridades díspares provenientes do folclore, dos ritmos populares em

uma fusão com a sonoridade da música pop, mais especificamente de circulação anglo-

americana da época, para retratar de forma mimética e alegórica “as relíquias do Brasil”

(FAVARETTO, 1995, p. 79).

Entender a cultura brasileira e suas múltiplas facetas perpassa por delimitações de

ações claras: a cultura de massa, colonizadora em sua origem, elaborando produções em série,

em um espaço cada vez mais curto de tempo, valendo-se da produção industrial de meios de

comunicação como a televisão e o cinema, em áreas quase que estritamente urbanas; em

contraponto a esta, a cultura popular, que, de maneira cíclica e sazonal, manifesta-se em

populações oriundas de regiões e populações mais humildes, e, por isto, mostra-se calcada na

ideia da celebração do valor que se atribui aos feitos perpetuados de geração em geração pela

memória social.

No entanto, tal entrelaçamento entre as culturas ocorre justamente devido ao poder

latente dos meios de comunicação de massa. Valendo-se de todo o seu potencial enquanto

produtos tecnológicos de médio e longo alcance, respaldados pelo poder econômico, a cultura

de massa adentra as habitações mais humildes, “entra na casa do caboclo e do trabalhador de

periferia, ocupando-lhe as horas de lazer em que poderia desenvolver alguma forma criativa

de autoexpressão” (BOSI, 1992, p. 328).

Tal relação não somente se porta de forma impositiva, mas também de absorção,

provocando em determinados segmentos certa descaracterização das expressões populares,

um reducionismo da importância de suas manifestações, transformando-as em meras atrações

formalizadas:

O poder econômico expansivo dos meios de comunicação parece ter abolido,

em vários momentos e lugares, as manifestações da cultura popular,

Page 21: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

21

reduzindo-as a função de folclore para turismo. Tal é a penetração de certos

programas de rádio e TV junto às classes pobres, tal é a aparência de

modernização que cobre a vida do povo em todo o território brasileiro, que à

primeira vista, parece não ter sobrado nenhum espaço próprio para os modos

de ser, pensar e falar, em suma, viver, tradicional-populares. (BOSI, 1992, p.

328)

Entretanto, nem todo o poder dos meios de comunicação de massa, nem toda

tecnologia alavancada pelo predomínio econômico impregnado pelas relações de lucro, poder

e consumo, e até mesmo de toda manipulação oportunista dessa cultura que se vale de sua

supremacia, para inclusive expor e utilizar-se da própria cultura popular, seja através das

festividades tradicionais do Bumba Meu Boi no Maranhão, seja através da transmissão dos

desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro, é capaz de interceptar ou obstruir o processo

ainda que lento e cadenciado das manifestações populares.

Em plena segunda década do século XXI, em tempos de progressos tecnológicos e da

velocidade das transformações e da informação, a cultura popular ainda pode ser reconhecida,

especialmente em cidades interioranas, através das festividades nas quermesses em

homenagem a determinado santo padroeiro, no desfile das congadas ou no canto das

companhias de Folia de Reis nas pequenas comunidades de periferia.

Onde houver, enfim, “uma rede familiar ou comunitária, apoiada pela socialização do

parentesco, do vicinato e dos grupos religiosos” (BOSI, 1992, p. 329), este Brasil arcaico,

provinciano, quase iletrado e rústico em sua essência ainda será palco para as mais diversas

expressões populares, perpetuando as tradições por gerações vindouras ainda que sem vigor

de tempos de outrora.

Assim, por exemplo, o que distingue uma produção cinematográfica da última geração

ou uma teledramaturgia exibida na televisão de uma festa de congada ou celebração de uma

companhia de Folia de Reis, é que, enquanto os primeiros terão um espaço relativamente

efêmero na memória ou na vivência de seus consumidores, os segundos estarão sempre

presentes tanto na memória como na práxis coletiva por se tratar de manifestações que estão

enraizadas em seus participantes, na vida deles. (Cf. BOSI, 1999, p.11).

Além destas prerrogativas, é preciso levar em consideração que toda essa interseção

entre os níveis e tipos de cultura, deve-se a conjunções de fatores sociais como a influência de

culturas migratórias estrangeiras (Cf. BOSI, 1999, p. 8), além da abrangente e riquíssima

variação regional do Brasil, um país de dimensões continentais, portanto extremamente

múltiplo no que diz respeito às manifestações culturais.

Page 22: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

22

Aparentemente opostas entre si, a cultura erudita e a cultura de massa podem

convergir de diversas formas. Bosi observa que, dentro do ambiente tecnicista e acadêmico,

por exemplo, um profissional técnico e universitário pode dispor-se de diferentes produtos

oferecidos pela produção tecnológica em diferentes plataformas de comunicação. Tais

produtos acionam uma verdadeira “pletora de elementos mecânicos e eletrônicos” (BOSI,

1992, p. 327) que, por sua vez, são produtos que se instalam no mercado de consumo,

multiplicam-se em série, mas em sua origem foram resultado de extensas pesquisas

desenvolvidas em laboratórios de determinadas universidades.

Ora, tal convergência se processa de modo semelhante nos campos da arte e das letras.

É histórica, produtiva e notória, através da segunda metade do século XX, a proliferação de

produtos tecnológicos, que, devido à sua grande capacidade de armazenamento de

informações e consequente distribuição desses recursos em médio e longo alcance, tornaram-

se aliados naturais de toda uma classe artística preocupada em se posicionar como

pesquisadora e antecipadora de novas tendências e direcionamentos, como alguns escritores e

músicos.

No Brasil, por exemplo, alguns escritores e compositores de música de

vanguarda estabeleceram desde os fins da década de 1950, um projeto de

aproveitamento das conquistas da eletrônica e do computador, dando ao

acaso e às suas combinações um peso estético dominante. Essa relação

íntima com os meios técnicos levou alguns ideólogos experimentalistas a

condenar toda forma de arte que não se valesse dos recursos mais modernos

de programação e comunicação. Entrava nesse campo de prestígio sobretudo

a televisão que, na teoria – matriz de Marshall McLuhan, teria estourado a

percepção de todos os homens, estourado a barreira entre as classes sociais e

instituído a Aldeia Global (Global Village) que, retribalizou eletronicamente

a humanidade e fez tábua rasa das mil e umas diferenças regionais e culturais

que caracterizam, há milênios, os povos do planeta. Temos, aqui, um caso

expressivo de incorporação do mass media a um projeto de origem letrada e

erudita. (BOSI, 1992, p. 327)

Esta noção das barreiras e distâncias encurtadas ou rompidas pelos meios de

comunicação de massa proporcionariam nas décadas posteriores verdadeiros “fenômenos

midiáticos” e, de certa forma, alterariam profundamente as relações entre a humanidade e as

manifestações culturais, resultando em segmentações de representações artísticas aos

cuidados de um termo que emergiu justamente do alavancamento do poder econômico de

consumo em relação à indústria de massa, ou seja, a indústria de entretenimento, ou conforme

já cunhado pelos ingleses de show business (ou sua forma abreviada show biz).

Os parâmetros para produções artísticas sofreriam, inclusive, um processo inverso, a

saber, a apropriação das fabricações em série das ideias oriundas da cultura erudita, o

Page 23: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

23

chamado fenômeno kitsch, que, segundo estudos de Abrahan Moles, consiste em “divulgar

junto aos consumidores das classes alta e média, palavras gostos, melodias, enfim, bens

culturais produzidos inicialmente pela chamada cultura superior” (BOSI, 1992, p. 327-328).

Por cultura erudita entendemos a produção cultural de uma parcela letrada, em geral

abastada, a partir das camadas de classe média a alta que possuem acesso às universidades e

às múltiplas possibilidades da instrução superior. Forma a base das inserções no mercado de

trabalho, especificamente para atividades de natureza burocráticas.

As delimitações nas áreas de atuação da cultura universitária têm visto os horizontes

se expandirem cada vez mais, justamente por se tratar de setores de tradição científica, que se

notabilizam por uma forte prática impulsionada pelo sistema capitalista, embora mesmo entre

elas existam disparidades de prestígio e procura. Bosi observa algumas disparidades, entre as

ciências de formação humana como História, Pedagogia, Letras, Estudos Sociais e

Comunicação, em relação às Ciências Biológicas (Psicologia, Medicina, Saúde Pública) e às

Ciências Exatas (Economia, Administração, Engenharia, Arquitetura, Urbanismo). Tais

disparidades são marcadas por tensões baseadas na evolução do capitalismo que faz irromper

“o conflito entre tecnocratas e os estudiosos que desejariam por a sua especialidade a serviço

da democracia social”. (BOSI, 1992, p. 316)

É preciso lembrar que “no mundo extrauniversitário, os símbolos e os bens culturais

não são objeto de análise detida ou de interpretação sistemática. Eles são vividos e pensados,

esporadicamente, mas não tematizados em abstrato”. (BOSI, 1992, p. 320, grifo do autor).

Acontece, porém, que a disparidade entre esses polos (erudito e popular) não exclui

uma proximidade com resultados profícuos nas inter-relações. As extremidades se tocam de

maneira mais comum do que se possa imaginar, pois justamente os elementos contraditórios

convergirão para que a atração se concretize.

Assim, as características opostas da cultura popular, carregadas do que há de mais

espontâneo, visceral, exótico e multifacetado, colocar-se-á de forma instigante, provocativa,

despertando na “frieza” erudita o desejo pelo conhecimento, que, por sua vez, fará com que

esta se deixe instigar e seduzir, como atesta Bosi: “a cultura erudita quer sentir um arrepio

diante do selvagem” (BOSI, 1992, p. 331).

Tal imbricação pode tanto resultar em análises etnocêntricas que buscam elucidar a

questão das chamadas classes dominantes, que se valem da persuasão demagógica de caráter

elitista em relação às classes menos favorecidas, como podem também suscitar incursões por

obras que perpassam “a arte elaborada em tornos de motivos populares como a música de

Page 24: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

24

Villa-Lobos, o romance de Guimarães Rosa, a pintura de Portinari e a poesia negra de Jorge

de Lima” (BOSI, 1992, p. 331).

A Antropologia brasileira revelou-se pródiga em sempre desvendar os meandros da

chamada “psicologia dos povos”, cuja prerrogativa mais urgente seria exatamente esta: o

fascínio da cultura erudita pelos povos selvagens, rudimentares, pelos costumes simplórios,

porém constantes e atemporais, pelos saberes e sabedorias de uma camada iletrada, embora

rica na manutenção e promulgação de tradições variadas.

Para Alfredo Bosi, este híbrido entre as culturas encontrou uma ressonância relevante,

sobretudo na literatura, refletindo-se em movimentos como o Modernismo que propugnava,

nas décadas dos anos 1920, propostas que visavam apresentar o “caráter nacional brasileiro”.

O tema do cruzamento entre culturas é proposto especificamente por alguns

escritores modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Raul

Bopp e Cassiano Ricardo. Fique apenas o registro de duas tendências: o

nacionalismo estético e crítico de Mário de Andrade e o antropofagismo de

Oswald de Andrade Mário inclinava-se à fusão de uma perícia técnica

supranacional com a sondagem de uma psicologia brasileira semiprimitiva,

mestiça, fluída, romântica. Oswald pregava uma incorporação violenta e

indiscriminada dos conteúdos e das formas internacionais pelo processo

antropofágico brasileiro, que tudo devoraria, que tudo fundiria no seu

organismo inconsciente, entre o anárquico e o matriarcal. (BOSI, 1992, p.

332)

O direcionamento tomado por essas duas teses pressupunham, portanto, uma relação

entre cultura erudita e cultura popular, perpassadas “segundo um vetor nitidamente

mitopoético” (BOSI, 1992, p. 333), isto é, um panorama resultante de uma sensibilidade tupi

“articulada em lendas, mitos e ritos, recontados pelos cronistas, pelos jesuítas e por alguns

antropólogos contemporâneos”. (BOSI, 1992, p. 333)

Torna-se evidente, portanto, que se, por um lado tal tendência se consolida rica em

representações, gerando obras literárias tanto sólidas quanto canônicas e influentes como

Macunaíma de Mário de Andrade e Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, por

outro não escapou de um efeito inevitável e psicológico da projeção e do escapismo que se

apresenta decorrente de tal direção justamente por contemplar a cultura popular, conforme

observa Bosi como mero veículo para projeções de “neuroses, desequilíbrios, preconceitos,

recalques e desrecalques do intelectual na matéria popular assumida como válvula de escape

da subjetividade pequeno-burguesa” (BOSI, 1992, p. 333).

Portanto, esse entrelaçamento entre as culturas propõe quase sempre um olhar vertical

da cultura erudita que se debruça a observar e estudar com profundo afinco o pobre moderno

Page 25: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

25

em seu contexto cultural e social como atesta os romancistas regionalistas nordestinos e

gaúchos, pertencentes a uma tradição neorrealista.

Em contrapartida, São Paulo, por se estabelecer como um grande centro, configurou-se

para uma tendência estética primitivista expressa no famoso trocadilho oswaldiano “tupy or

not tupy, that’s the question”, equilibrando-se no binômio primitivismo e futurismo para

abarcar as principais propostas do movimento modernista. (Cf. BOSI, 1992, p. 333).

Todas essas “tensões” ideológicas que marcam o nascimento de um novo projeto

estético dentro de determinado movimento artístico também contrapõem a técnica e a

erudição com os chamados “programas estéticos irracionalistas”, mais conhecidos pela

alcunha de movimentos contraculturais. Bosi destaca que nos anos 1960 esta tensão entre a

técnica e o contracultural se colocaria cada vez mais em evidência através de um movimento

que retomou as bases ideológicas do projeto estético do modernismo, ao passo que

representou uma interrupção em relação às bases estruturais artísticas em vigência até então.

O apelo para fundir técnica e irracionalismo se fez ouvir sintomaticamente

nos fins das décadas de 60, período em que o Brasil viveu uma primeira

onda de saturação do consumo tecnológico e dos meios de comunicação de

massa. Não por acaso é o momento áureo do tropicalismo que repropõe a

volta do pensamento antropofágico do modernismo. Evidentemente agora os

índios tupis são substituídos pelas massas cujos modos de sentir e dizer

passam a integrar, por exemplo, conto e o teatro da violência. (BOSI, 1992,

p. 333-334)

Por fim, nesta interseção entre o erudito e o popular, torna-se importante ressaltar que

não se trata de uma relação unilateral, em que a cultura propriamente elitizada se apropria

única e exclusivamente das manifestações da cultura popular. Porém tal afirmação se encontra

muito mais respaldada por questões históricas de colonização do que propriamente uma

relação de troca.

A cultura portuguesa, europeia, do século XVI, permeou a aculturação dos povos

subjugados pela sua catequese tradicional. Assim, o fenômeno da chamada cultura dominante

é absorvida pelos povos dominados, de modo que tal absorção reconfigura a manifestação

original, transpondo seus elementos essenciais, porém retrabalhando e readaptando ao

contexto social e histórico social em que são inseridos.

Ora, o resultado de tal cruzamento se traduz em inúmeras manifestações populares,

folclóricas, entranhadas no cânone das práticas coletivas, influenciando profundamente as

noções de relação de um povo, revelando um caleidoscópio de diferentes matizes, pois, afinal,

as camadas pobres invariavelmente iletradas e aculturadas por esta tradição portuguesa sofrem

com a própria assimilação da cultura expansiva, dominante. Na realidade, não existe cultura

Page 26: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

26

dominante que se mantenha totalmente intacta e cultura subjugada que se mantenha pura.

Ambas atravessam um processo de transformações ao se cruzarem. (Cf. BOSI, 1992, p.337).

Bosi nos lembra de inúmeros exemplos de passagens de formas da cultura aristocrática

medieval para a cultura popular sertaneja.

[...] os pares de França projetaram-se nas cavalhadas nordestinas e valem

como paradigma aos crentes rebeldes do Contestado. O Carnaval, de origem

europeia, serve de espaço e de tempo propício à expressão da música negra e

mulata nos maiores centros urbanos. O candomblé nagô assimila, no seu

sincretismo fundamental, os santos cristãos, as entidades africanas. O

exemplo norte-americano do Negro Spirituals é probante: para exprimir

esperança de liberação da sua raça e de seu povo, os negros se valem do

livro sagrado de seus dominantes, a Bíblia. (BOSI, 1992, p. 336-337)

Tal premissa também é defendida pelo antropólogo Melville Jean Herskovits, que

apresenta a tese do fenômeno da reinterpretação, pela qual “toda cultura dominante é

absorvida e descodificada pela cultura dominada de tal modo que, nesta última já não fica da

cultura superior nada, a não ser, talvez, o desejo que têm os dominados de aprender com os

seus patrões” (Cf. BOSI, 1992, p. 337), indicia que o reaproveitamento do culto pelo iletrado

se constitui um grande campo de análises e estudos, como mais adiante se verificará nesta

pesquisa, através de movimentos como o Modernismo e particularmente a tendência da

antropofagia preconizada por Oswald de Andrade.

A interseção entre os níveis de cultura analisada até aqui, (a cultura erudita, indústria

cultural ou cultura de massa e a cultura popular), opera-se de forma distribuída em uma

sociedade permeada entre o controle político e a organização de uma economia organizada

voltada cada vez mais nas ações individuais em detrimento a organizações ou instituições

coletivas.

Atuando e transitando por estes três polos, há ainda um quarto grupo, menos análogo

enquanto segmento, é verdade, devido a sua forma de atuação, mas que encara de forma mais

direta o binômio “intelectual-sociedade” e todas as possíveis consequências que possam advir

desta relação: “a cultura criadora individualizada” (Cf. BOSI, 1992, p. 327).

A relação de imbricações entre as culturas será sempre regida pelas regras

determinantes do poder econômico regente na sociedade. Assim, “estimuladas reproduzem-se

a indústria universitária (tecnicista) e a indústria cultural. Ignoradas, quando não exploradas,

as várias formas de cultura popular. Absorvidas até um limite, as manifestações criadoras

individuais. Reprimidas, as formas abertamente críticas em qualquer faixa se pronunciem.”

(BOSI, 1992, p. 340).

Page 27: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

27

Emergindo deste panorama, surgem reflexões e questionamentos que se interpõem ao

povo brasileiro e a sua relação ao mesmo tempo ambígua e frutífera com a arte. É possível

abordarmos antropologicamente uma teoria da cultura brasileira? E se tal teoria, uma vez

desenvolvida, que desdobramentos e direcionamentos tomariam para além das tensões

decorrentes dos contextos históricos e sociais? Ou se posicionaria como uma teoria reflexiva e

crítica em relação a este próprio sistema? Haveria porque se empreender uma busca por uma

arte genuinamente brasileira?

Bosi destaca, em seu estudo, os elementos e os pressupostos básicos para o que

considera uma cultura fundamental:

A cultura fundamental deve ser um prolongamento e uma reflexão do

cotidiano. É na experiência com a terra, com o instrumento mecânico, com a

máquina, com o seu grupo de trabalho, com a própria família, que o homem

se inicia no conhecimento real da vida e do drama da sociedade, que as

disciplinas escolares formalizam, às vezes precocemente. A erudição e a

tecnologia mais moderna, não tiram, por si só, o homem da barbárie e da

opressão. Apenas dão-lhe mais um “meio de vida”, isto é, um meio de defesa

e ataque na sociedade de concorrência. (BOSI 1992, p. 341-342)

Está, portanto, mergulhada em toda esta complexidade de elementos plurais,

contraditórios e ambíguos a essência da arte brasileira. Da sua gênese fortemente marcada

pela colonização à sua desenvoltura no mundo contemporâneo, a cultura brasileira sempre foi

plural e plurissignificativa, sem, contudo, abrir mão da sua singularidade. Como observa Bosi,

“plural, mas não caótico” (BOSI, 1999, p. 15).

Como resultado de todas essas tensões que decorrem das inter-relações entre os níveis

de cultura, a cultura individualizada transita de forma consideravelmente livre entre os demais

segmentos, ora absorvendo, ora fragmentando, ora correlacionando suas múltiplas

intervenções nas características e propostas que a cultura erudita, a cultura de massa e a

cultura popular podem proporcionar.

O indivíduo que se propõe a compor ou criar um poema, um romance, uma música,

escrever uma peça teatral, uma teledramaturgia, ou um roteiro para o cinema, está

mimetizando a realidade que tão profundamente lhe toca, lhe seduz, mas ao mesmo tempo lhe

subjuga através de constantes dilemas, indagações e tensões.

O artista precisa se permitir a viver a dialética de seu tempo que lhe impõe de forma

irreversível o entrelaçamento entre as vivências tradicionais de seu meio, de sua autoformação

e as correntes internacionalizantes que se interpõem em todas as instâncias, inserindo-se,

Page 28: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

28

algumas vezes, como cultura dominante a ser absorvida, retrabalhada e transformada pela

cultura dominada. (Cf. BOSI, 1992, p. 343).

Bosi destaca, por exemplo, que obras-primas como Macunaíma, Vidas Secas, Grande

Sertão: Veredas, “nunca poderiam ter-se produzido sem que seus autores tivessem

atravessado longa e penosamente as barreiras ideológicas e psicológicas que os separavam do

cotidiano e do imaginário popular.” (BOSI, 1992, p. 343).

Fica evidente, portanto, que produções artísticas por excelência nunca se constituíram

obras do mero acaso. Autores como Érico Veríssimo e José Lins do Rego, por exemplo,

fizeram do elemento regionalista um ponto conflitante e crucial em O Tempo e o Vento e

Fogo Morto, respectivamente, para abordarem os aspectos contraditórios da nossa formação

social. A classe média e a pobreza suburbana viram-se representadas em obras de Dyonélio

Machado e nos contos de Dalton Trevisan e João Antônio. (Cf. BOSI, 1992, p. 343).

As lições antropocêntricas e visionárias nas obras de expoentes modernistas como

Mário de Andrade e Oswald de Andrade renovaram a estética poética da nossa literatura. As

múltiplas referências populares presentes na música de Adoniram Barbosa, Chico Buarque,

Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, Clementina de Jesus, Edu

Lobo e de tantos outros. Nas artes cênicas, a intermediação entre o culto e o popular nas obras

teatrais de Plínio Marcos e Ariano Suassuna. (Cf. BOSI, 1992, p. 343).

Seja qual for à frente, seja qual for o segmento, a cultura ou as culturas brasileiras

jamais irão prescindir dos elementos que a tornam única, singular, em meio a tanta

pluralidade de sentidos e manifestações.

Page 29: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

29

2 O MOVIMENTO MODERNISTA E AS NOVAS TENDÊNCIAS DE RENOVAÇÕES

ARTÍSTICAS

O Movimento de Arte Moderna de 1922 tornou-se o ponto de partida para uma grande

redescoberta na busca de uma identidade para a arte brasileira. Entretanto, é necessário

observar que a própria razão do surgimento do Movimento Modernista deve-se a um

momento peculiar na trajetória de nossa cultura, marcada no começo do século XX, pelas

profundas transformações causadas pela Revolução Industrial, influenciando de modo

determinante a arte moderna como um todo.

A transposição das profundas transformações consolidadas no final do século XIX na

economia, na ciência e na política delimitará todo um novo conceito de visão histórica para o

novo século que se iniciava. A pesquisadora Vanessa Bortulucce contextualiza aquele

instante:

O século XIX foi marcado pela consolidação da economia capitalista, pela

formação das nações-estado europeias, pelos avanços na ciência e na

tecnologia, e pela influência do positivismo como paradigma da produção do

conhecimento. Tal filosofia, herdeira do Iluminismo, acreditava no método

científico como a ferramenta que tornaria possível ao homem o domínio do

mundo e de si próprio. Não à toa, século XIX produziu, de forma exaustiva,

uma visão da sociedade baseada na formulação de diversos modelos morais,

culturais, etc. Construir modelos significaria ter mais controle sobre a

natureza, o homem e a sociedade: não haveria nenhuma “surpresa” graças à

ciência e aos métodos de catalogação e análise. Tais aspectos constituíram a

chamada Modernidade que abriu caminho para o modernismo e a vanguarda

do século XX, bem como estabeleceu a utilização das grandes narrativas de

caráter teleológico. A modernidade é um conceito tão historicizado que

carrega em si uma constelação de conceitos distintos, que constroem

relações de rupturas e continuidades com o modernismo, a vanguarda e o

pós-modernismo. (BORTULUCCE, 2015, p. 8)

Como consequência de tal contextualização, o panorama da arte moderna tenderá a

sofrer com algumas mudanças de aspectos ideológicos e geográficos. Com os avanços

tecnológicos decorrentes das transformações causadas pela Revolução Industrial, vieram

também à tona todas as evidências de desigualdades e conflitos sociais. Haveria, portanto,

motivos para que a arte continuasse sendo veiculada como expressão para glorificação da

realidade, fosse ela de natureza histórica, política ou geográfica?

Segundo o historiador e crítico Carlos Zilio, a partir deste período, verificou-se uma

forte tendência à “internacionalização” da cultura francesa enquanto escola de referência,

mais notadamente a partir do Impressionismo que “entrou em contato com culturas estranhas

à tradição ocidental como a japonesa”. (ZILIO, 1983, p. 13). O historiador observa ainda que

Page 30: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

30

a “a aproximação com a arte da Oceania e da África seria decisiva para o desenvolvimento da

arte moderna”. (ZILIO, 1983, p. 13)

Todavia tal direcionamento não diluiu a identidade cultural das nações que se

tornavam referência e escola para as produções artísticas. Antes, ao contrário, o sentimento de

independência política e nacional trazia consigo um forte sentimento de identidade como

aconteceu nos Estados Unidos, por exemplo. Em sua análise sobre este momento da cultura

americana, o historiador Carlos Zílio remonta ao prefácio de Walt Whitman, em que a ideia

de um projeto de cultura livre e democrático previa uma arte moderna com um forte

sentimento de identificação com a América, como fruto de uma expressão genuína e

autêntica. “Os Estados Unidos são na sua essência o poema mais grandioso”. (WHITMAN,

apud ZILIO, 1983, p. 14).

No Brasil, entretanto, tais ideias da arte correlacionada com independência política

teve pouco eco visto que por aqui, ainda imperava uma forte influência do academismo

francês. Nossos artistas, por mais reminiscências que tivessem, pelo menos no campo das

artes plásticas, aos trabalhos de temática indianista, fruto ainda do Romantismo, pouco

voltava suas produções para um olhar mais nacional. Esta visão distorcida dos artistas

nacionais era resultante de uma perspectiva estreita que considerava que a arte tão somente

deveria reproduzir a nossa realidade além de possuir pouca representatividade, não seria

suficiente para colocar o país dentro da vanguarda das produções das nações consideradas

“cultas” e “civilizadas” (ZÍLIO, 1983, p. 14).

Tal direcionamento não proporcionava à arte brasileira uma legibilidade, uma

identidade que a tornasse autêntica, autônoma e singular, visto que, uma vez subserviente aos

domínios e segredos da Academia, nossos artistas, impregnados pelas doutrinas

academicistas, pouco ou quase nenhum olhar teriam para as belezas naturais, por exemplo,

sob pretexto de a considerarem uma expressão menor, primitivista no sentido mais pejorativo

que esta conotação pudesse implicar. (Cf. ZÍLIO, 1983, p. 14)

Outro equívoco importante anotado pelo autor e pesquisador Gilberto Mendonça

Teles, durante este período, diz respeito à condição de simples plágio por parte da formação

academicista brasileira em relação à Academia Francesa:

O segundo erro da formação da academia foi copiar a Academia Francesa. A

imitação é uma prática brasileira. Em tudo renunciamos à energia de criar

para fazermos comodamente a cópia, que mal se ajeita à nossa índole e ao

nosso ambiente. Copiando a Academia Francesa, fizemos logo ao nascer ato

de submissão e passamos a ser reflexo da invenção estrangeira, em vez de

sermos dínamo propulsor e original da cultura brasileira. [...] A nossa

Page 31: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

31

Academia é brasileira. Por que brasileira? Para ser um instrumento enérgico

da formação nacional, uma alavanca do espírito brasileiro. (TELES, 1992, p.

321)

É dentro deste contexto, que se torna crescente o sentimento de uma arte

genuinamente brasileira, uma arte que procurasse uma identificação não apenas com os

elementos da cultura pátria, mas que fosse além da proposta mimética da representação das

belezas naturais e que sobretudo construísse um cenário de ineditismo, ao mesmo tempo em

que alinhasse suas propostas com o que havia de melhor na cultura ocidental. Evidente que tal

ruptura provocaria a abertura de uma gama considerável de influências, fossem elas nas

produções literárias ou nas representações das artes plásticas.

Zílio traça o panorama daquele momento da nossa arte e a relevância fundamental do

surgimento do movimento modernista brasileiro:

O Modernismo elimina o complexo de inferioridade da arte brasileira,

transformando-a em virtude. Movimento em duas etapas intimamente

associadas: colocar a arte brasileira em dia com a cultura ocidental e fazê-la

voltar-se para a apreensão do Brasil. Paradoxalmente, a arte moderna

“internacionalista” deflagra e encaminha a cultura brasileira a sua alto-

indagação. Evidentemente esta posição seria impossível ao Academismo,

preso ao formulário das regras. A arte moderna liberando a criatividade,

incorporando culturas diferentes da ocidental e utilizando a temática como

um simples pretexto, permitiu que os artistas brasileiros se voltassem para os

aspectos culturais que lhes eram próprios. (ZÍLIO, 1983, p. 14)

Ao se posicionar desta forma, o Modernismo passa a responder uma importante e

determinante questão: como equalizar a discussão dialética entre a produção de arte no Brasil

e sua evidente ligação com a arte europeia? Como escapar da reverência absoluta prestada à

cultura europeia, através de uma tendência que se tornou praticamente uma expressão

institucionalizada e tradicional que perpassou todas as escolas de formação da arte nacional

do começo do século XIX até início do século XX? Zílio responde esta questão dizendo que

“o movimento antropofágico dará a fórmula numa busca de síntese entre o “nacional” e o

“internacional”, propondo a devoração do pai totêmico europeu assimilando suas virtudes e

tomando o seu lugar”. (ZÍLIO, 1983, p. 21)

É dentro deste epicentro de renovação artística que a antropofagia surge como uma

importante corrente de vanguarda, uma tendência fundamental dentro do movimento

modernista para que esta síntese que se traduziu em assimilação, deglutição e transformação

da cultura de várias procedências, principalmente a europeia, se tornasse uma cultura de

caráter nacional.

Page 32: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

32

Nesta chamada primeira fase do Modernismo, dois nomes surgiram como principais

pontas de lança desta tendência: no campo das artes plásticas, as obras de referência de

Tarsila do Amaral fortemente influenciadas por correntes artísticas como o Cubismo e o

Dadaísmo. E, no campo da literatura, a poética desconcertante, desconstrutiva, polêmica,

provocativa e esteticamente inovadora de Oswald de Andrade. E é sobre a obra deste último,

dentro do contexto Modernista, que recairá o foco deste capítulo que procurará analisar as

razões que levaram à construção de uma identidade genuinamente brasileira para a arte,

através de uma reflexão das produções poéticas daquele período, sobretudo examinadas sob o

prisma da instigante e relevante obra oswaldiana.

Num primeiro momento, analisaremos o movimento Modernista de maneira mais

ampla, de forma que possamos não só entender suas propostas, como seus pressupostos

básicos, para aquele momento de renovação da arte brasileira, com um enfoque sobre a

concepção estética de um de seus expoentes precursores: Mário de Andrade.

A segunda e terceira partes deste capítulo darão um enfoque mais nítido às análises de

autores que estudaram minuciosamente a poética presente na corrente antropofágica

protagonizada por um de seus maiores expoentes: Oswald de Andrade.

Finalizaremos com um enfoque a respeito do legado da antropofagia oswaldiana sobre

o futuro movimento de ruptura que, a exemplo do Modernismo de primeira hora, abarcaria

várias frentes de produções e atividades de vanguarda e que se tornaria igualmente um

movimento de referência, atualização e renovação para o futuro da arte produzida no Brasil: o

movimento Tropicalista.

2.1 O Modernismo e a transição entre a renovação estética e o projeto ideológico

Em sua primeira fase, na década de 20, marcada pela Semana de Arte Moderna, evento

que se caracterizou como um marco inicial para o surgimento do movimento, o Modernismo

encontrava-se na encruzilhada do impasse em que todo movimento artístico se depara. Se por

um lado era praticamente consenso entre as classes artística e intelectual que era preciso

abandonar valores estéticos antigos, sobretudo os do campo da literatura, que de certa forma

ainda eram muito apreciados no país, por outro lado, os novos rumos ainda não estavam

delimitados.

Para João Luís Lafetá, este momento de impasse se traduz na tensão dialética do

projeto estético em relação ao projeto ideológico e que tal dialética torna-se profundamente

válida enquanto objeto de análise: “O exame de um movimento artístico deverá buscar a

Page 33: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

33

complementaridade nesses dois aspectos, mas deverá também buscar os pontos de atrito e

tensão existentes entre eles”. (LAFETÁ, 2000, p.21). Sendo assim, para o crítico, a partir das

produções literárias daquela década, foi possível chegar à compreensão da distinção entre esta

polarização inevitavelmente presente na primeira fase do modernismo brasileiro, que definiu

suas linhas de evolução: “Distinguimos o projeto estético do Modernismo (renovação dos

meios, ruptura da linguagem tradicional), do seu projeto ideológico (consciência do país,

desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e

produções)”. (LAFETÁ, 2000, p. 21).

Mesmo em sua primeira fase, o projeto estético já não fugia às inquietações advindas

da recepção e consequente estranheza por uma parcela do público e da crítica. Transitar entre

as novas propostas sem abandonar a tradição constituiu-se na tensão dialética a que o

movimento modernista se viu inserido.

Mário de Andrade, considerado um dos precursores do movimento, ao lado de nomes

como Lima Barreto, Monteiro Lobato e Euclides da Cunha, já expressava em sua poética esta

tensão, este inconformismo. Em seu célebre poema “Prefácio Interessantíssimo” lançado no

ano de 1922 e presente em Pauliceia desvairada, uma coletânea de seus primeiros poemas,

podemos observar sua poética contestadora e analítica:

Leitor

Está fundado o Desvairismo.

Este prefácio, apesar de interessante, inútil.

Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis

ambos. Os curiosos terão o prazer em descobrir minhas conclusões,

confrontando obra e dados. Para que me rejeita trabalho perdido explicar o

que, antes de ler, já não aceitou.

[…] (ANDRADE, 2016, p. 2)

“Prefácio Interessantíssimo” constitui-se em um manifesto poético no qual o próprio

autor rompe com as formalidades de um gênero essencialmente prosaico (o próprio

manifesto) ao fazer uso de um gênero lírico para estabelecer suas proposições estéticas. Neste

sentido, o poema de Mário de Andrade estabelece uma relação metalinguística, na medida em

que se realiza enquanto poema, e simultaneamente expõe os pressupostos básicos de sua

poética.

Chegando a questionar a própria seriedade da intencionalidade de sua poesia, ao pedir

para não ser levado totalmente a sério, e dirigindo-se ao seu interlocutor/leitor ao pedir para

Page 34: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

34

acompanhá-lo na fundação de um “Desvairismo” crítico, Mário De Andrade propõe uma

noção de produção poética baseada muito mais na “impulsão lírica” do que nas preocupações

estéticas com a estruturação e o acabamento primoroso da poesia parnasianista, sem, contudo,

renegar totalmente as tradições produtivas.

Hilda Magalhães aponta essas características de ruptura e fruição nas produções

literárias modernistas:

Em relação aos textos modernistas propriamente ditos, o que todos sabemos

é que foram elaborados a partir da proposta de tácita e radical negação da

estética verborrágica e bem comportada no século passado. Entretanto isso

não elimina a tradição do processo produtivo. [...] A concepção estética de

Mário de Andrade passa, pois, pela reedição do passado, entendido por ele

não como algo a ser esquecido, mas como “lição” para se meditar.

(MAGALHÃES, 1997, p. 3).

Portanto, prosseguindo para além do binômio passado-futuro, Mário de Andrade

propõe uma forma de expressão poética mais livre em que a ordenação temporal é subjetiva e

a inspiração não se prenda a uma representação da realidade como produto final, “escrever

arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior:

automóveis, cinema, asfalto” (ANDRADE, 2016, p. 10).

E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou

passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma só vez das teorias avós

que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita se pretendesse representar

orientação moderna que ainda não compreende bem. (ANDRADE, 2016, p.

2).

Na concepção de Mário de Andrade “se libertar duma só vez das teorias avós que

bebeu” (ANDRADE, 2016, p. 2) significa uma ruptura brusca com as tradições o que seria de

forma geral contraproducente para o prosseguimento e construção das futuras produções

artísticas. Há que se buscar sempre o equilíbrio entre o antigo e o moderno, no qual o autor

pressupõe ser um fator indissociável para uma produção literária mais fluida. Assim, a

concepção estética de Mário de Andrade passa pela “reedição do passado, entendido por ele

não como algo a ser esquecido, mas como ‘lição’ a se meditar” (“O passado é lição para se

meditar, não para reproduzir”). (ANDRADE, 2016, p. 10)

Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo,

simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás, velha como

Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo.

Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim

e inda bebo no copo dos outros. (ANDRADE, 2016, p. 6)

Page 35: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

35

Ao citar a importância de Marinetti, fundador e expoente do futurismo italiano, em um

primeiro momento, o poeta reconhece o poder “sugestivo, associativo, simbólico, universal,

musical da palavra em liberdade”. (ANDRADE, 2016, p. 6). Mas em seguida adverte que o

artista errou ao simplesmente enquadrá-la em um “sistema”. Mário de Andrade pressupõe que

para construir o novo é preciso não só reconhecer as lições e verdades herdadas da tradição

tão antigas e perenes como Adão. E, outrossim, não basta apenas beber do próprio copo da

inspiração, é preciso também estar atento e beber no “copo dos outros”. (ANDRADE, 2016,

p. 6)

Dessa forma, Mário de Andrade propõe um ideal estético baseado na liberdade de

pesquisa para que o autor possa alcançar os resultados estéticos sem estar necessariamente

preso a padrões paradigmáticos, mas ao mesmo tempo reconhecendo seus valores e sua

importância, ou seja, “o nosso primitivismo representa uma nova fase construtiva. A nós

compete esquematizar e metodizar as lições do passado”. (ANDRADE, 2016, p. 8)

Ora, tal concepção acaba se constituindo em uma grande tendência em ascensão: a arte

vista e analisada pela própria arte, através de um grande processo metalinguístico:

No contexto acima, acha-se embutida toda a concepção moderna de arte do

nosso século, que encontrará sua expressão máxima nos concretistas de 50: a

arte enquanto revisão da tradição; a tradição vista como o velho atualizado; a

arte enquanto fenômeno intertextual. […] É quando o texto debruça-se sobre

si mesmo, assumindo este debruçar metalinguístico como a razão da sua

própria existência. É quando a arte é finalmente reconhecida na sua condição

básica e visceralmente metalinguística. (MAGALHÃES, 1997, p. 5)

Outro aspecto que chama a atenção é justamente a abordagem que o poeta faz dos

aspectos semânticos e fonéticos da língua portuguesa, para ele, também um veículo para a

livre expressão: “A língua brasileira é das mais ricas e sonoras e possui o admirabilíssimo

‘ão’”. (ANDRADE, 2016, p. 6). Processa-se neste verso a licença poética para a expressão

“língua brasileira”, permeando todas as peculiaridades imanentes que um idioma pertencente

à nação colonizadora exerce em relação à nação colonizada. Assim, para Mário de Andrade, a

“língua brasileira” com todas as suas variações regionalistas, sua multiplicidade de sotaques e

expressões constituem a sua verdadeira língua pátria.

Tais concepções estéticas revelar-se-iam extremamente próximas das propostas do

autor em obras seminais como Macunaíma, cuja personagem principal é uma construção

representativa do “herói da nossa gente”, pressupondo muito dos valores contraditórios e

determinantes da nossa identidade cultural e popular.

Page 36: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

36

Não obstante, Magalhães denota, na obra de Mário de Andrade, “o direito à liberdade,

construindo uma nova sintaxe, um novo conceito de verso, inaugurando, enfim, um novo

modo lírico, de ver o mundo”. (MAGALHÃES, 1997, p. 70). Entretanto, para o modernista, a

busca pelo novo jamais prescindirá o equilíbrio dos elementos básicos essenciais da própria

arte. A partir desses pressupostos valiosos, o movimento Modernista se vê finalmente

preparado e amadurecido para alcançar uma nova etapa.

A experimentação estética torna-se decisiva para que as produções literárias alcancem

um patamar de independência e deixem para trás o simples recurso mimético de temática

naturalista. Por outro lado, os rudimentos estéticos não impediram que as produções literárias

voltassem seus olhos para a realidade, procurando interpretá-la e estabelecer uma visão

política e social do país.

Assim, a fase seguinte do Modernismo caminharia para uma consciência ideológica

muito mais ampla. Estética e ideologia caminhariam para a tendência de uma crescente

politização direcionando a arte “como reflexo da realidade e como instrumento de

conscientização política”. (ZÍLIO, 1983, p. 15).

Analisando o período histórico pós Primeira Grande Guerra Mundial, Haroldo de

Campos faz uma revisão do panorama socioeconômico e político que se tornaria o cenário

determinante para que a inquietação, os questionamentos e o inconformismo pudessem

permear as produções artísticas, a partir do Modernismo, em detrimento de um período

passadista que se encontrava deslocado e anacrônico, em relação aos novos tempos que se

apresentavam:

A Guerra Mundial de 1914-18 dera grande impulso à indústria brasileira. [...]

Começou a despontar uma “economia propriamente nacional” (como nunca

existira antes no Brasil), “condicionada sobretudo pela constituição e

ampliação de um mercado interno, isto é, o desenvolvimento do fator

consumo, praticamente imponderável no sistema anterior, em que prevalece

o sistema produção.” A abolição dos escravos, a imigração maciça de

trabalhadores europeus, o progresso tecnológico dos transportes e

comunicações, contam-se, ainda entre as causas determinantes dessa nova

economia em geminação. (CAMPOS, 1991, p. 9).

Ficaria evidente, portanto, que toda produção voltada para a linguagem sofresse, de

certa forma, influência de todos esses processos que conduziam a sociedade para uma

constante transformação e, consequentemente, para um processo de industrialização dos

meios de produção, seguindo uma tendência que se observou na revolução industrial inglesa.

O movimento Modernista não só procurou romper com uma concepção de arte, mas

adquiriu, principalmente, em sua segunda fase, na década dos anos 1930, uma consciência

Page 37: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

37

ideológica cada vez mais progressiva, estabelecendo também outra ruptura dominante no

campo da linguagem daquele instante, conforme observa Lafetá em sua análise sobre o

movimento modernista:

[...] assumindo a modernidade dos procedimentos expressionais o

Modernismo rompeu com a linguagem bacharelesca, artificial e idealizante,

que espelhava na literatura passadista de 1890 a 1920, a consciência

ideológica da oligarquia rural instalada no poder, a gerir estruturas

esclerosadas que em breve, graças a transformações provocadas pela

imigração, pelo surto industrial, pela urbanização (enfim, pelo

desenvolvimento do país) iriam estalar e desaparecer em parte. (LAFETÁ,

2000, p. 21-22).

A partir daí o que o movimento se propõe a fazer é desenvolver uma sensibilidade

para com toda esta modernização e transmutação dos quadros sociais rompendo com essa

linguagem “oficializada” e promovendo uma linguagem mais experimental, livre das amarras

impostas pela ideologia oficial.

Se de um lado fez vir à tona elementos tidos como reprimidos, por outro lado é

justamente esta experimentação que irá flertar com um novo léxico e novos recursos sintáticos

e semânticos que promoverão de vez este rompimento com a linguagem da ideologia

dominante.

Fato é que no primeiro período considerado heroico, conceituado por Antônio Candido

como “Desrecalque localista, assimilação da vanguarda europeia”, (CANDIDO apud

LAFETÁ, 2000, p. 25), algumas obras são consideradas referências fundamentais por

conseguirem unir o conceito de projeto ideológico ao projeto estético e, dentro desta

perspectiva, consolidarem-se com o que o Modernismo apresentou de mais radical,

considerando sua proposta de ruptura dos valores que impregnavam a linguagem literária,

contrapondo-a com uma visão mimética do cenário, da realidade nacional de então:

Miraramar e o Serafim de Oswald de Andrade, O Macunaíma, de Mário de Andrade, além do

surgimento da poética incisiva e contundente de Pau-Brasil, também de Oswald.

Estas obras surgem em um contexto singular como observa Lafetá: “A ruptura na

linguagem literária correspondia ao instante em que o curso da história propiciava um

reajustamento da vida nacional” (LAFETÁ, 2000, p. 25) ou como nas próprias palavras de

Oswald de Andrade, “É a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de

reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil.” (ANDRADE, apud LAFETÁ, 2000, p. 25).

Se em sua primeira década, nos anos 1920, houve uma preocupação maior com a

proposta estética, ou seja, com o uso da linguagem e, consequentemente, um ajuste na

estrutura das suas propostas; os anos 1930 marcariam a transição do movimento para uma

Page 38: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

38

consciência ideológica maior, visto que uma vez consolidado enquanto tendência e

movimento, uma nova visão se fazia necessária. Um olhar acurado para o momento social que

se apresentava.

Aqui, o movimento retoma uma tradição importante que, segundo Lafetá, perpassava

uma “crítica radical às instituições já ultrapassadas” (SODRÉ apud LAFETÁ, 2000, p. 27).

Retomando, portanto, uma tradição importante em nossa literatura. “Nesse ponto o

Modernismo retoma e aprofunda uma tradição que vem de Euclides da Cunha, passa por Lima

Barreto, Graça Aranha e Monteiro Lobato: trata-se da denúncia do Brasil arcaico, regido por

uma política ineficaz e incompetente.” (LAFETÁ, 2000, p. 27).

Segundo Guilherme de Azevedo Granato a problematização a respeito das

características formadoras do Modernismo vão muito além da especificação estilística como

uma tendência estética. Entretanto, é praticamente consenso a prevalência do direcionamento

notadamente crítico:

É certamente problemático tentar caracterizar o Modernismo a partir de um

estilo específico, no entanto, uma característica central é a sua postura diante

da tradição. Acima de tudo o Modernismo, que diz respeito a uma

desnaturalização dos padrões do gosto e dos processos construtivos, afirma a

necessidade de não se seguir nenhuma regra pré-concebida, de modo que, a

partir desse postulado, aponta-se para vários caminhos possíveis, muitas

vezes recaindo em nova normatividade. Mas, como vertente refratária aos

imperativos e normatização na arte, ele é, a priori, crítico. (GRANATO

2016, p. 18, grifo do autor).

A diferença é que agora uma postura “anarquista”, aliada a um tom carnavalesco

debochado, tendendo para o humorismo, propõe a temática das críticas, em contraponto ao

ufanismo exacerbado de outras épocas. Segundo Lafetá é consenso entre os estudiosos e

analistas do movimento que o Modernismo atingiu a década de 30 com desenvoltura e

maturidade. Tal análise torna-se aqui altamente pertinente, uma vez que a leva de produções

que adentrou aquele decênio apresenta uma seleção considerável de estreias de escritores, de

obras relevantes em diferentes gêneros, caminhos e títulos que futuramente passariam a

figurar no cânone da literatura brasileira. Novamente Lafetá traça o perfil do panorama

daquele período:

É fato que a década de 1930 deu-nos algumas das obras mais realizadas e

alguns dos escritores mais importantes da literatura brasileira. Na poesia

bastaria lembrar a qualidade dos dois estreantes (em livro) de 1930, Carlos

Drummond de Andrade e Murilo Mendes, acrescentando ainda que o

período tem Remate de Males, Libertinagem e Estrela da Manhã, além de

Jorge de Lima. A prosa de ficção o romance social de José Lins do Rego,

Jorge Amado e Raquel de Queiroz, o ponto alto atingido por Graciliano

Page 39: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

39

Ramos, a direção diferente de Cyro dos Anjos; no ensaio, os estudos

sociológicos de Gilberto Freyre, Caio Prado Jr, Sérgio Buarque de Holanda,

o próprio Mário de Andrade. (LAFETÁ, 2000, p. 31- 32)

É evidente que tais produções tão variadas e ecléticas em seus diferentes campos

levariam o Modernismo ao seu ápice no que diz respeito às produções de vanguarda e,

principalmente, a mudança de rumos, transpondo com eficiência o foco da linguagem

característica da sua primeira fase para os problemas sociais vigentes, ênfase que ainda seria

respaldada por um importante fato histórico que estava por vir: a revolução de 1930.

Torna-se claro que tal período embora tão rico, não tenha escapado de uma tensão e

até mesmo de certa diluição em sua estrutura que se verificaria tempos depois. Porém, traçado

o panorama da gênese do Modernismo e sua vitoriosa trajetória inicial em várias frentes

artísticas no objetivo de modernizar e impregnar uma identidade para arte brasileira, passemos

agora o foco à obra e ao artista cuja produção se reveste de uma importância fundamental,

justamente por se constituir na obra precursora do movimento subsequente que, a exemplo do

Modernismo, se tornaria igualmente um movimento de ruptura e proposições de novas ideias

para a renovação da arte no Brasil: o movimento Tropicalista dos anos 60. A seguir, a poética

de Oswald de Andrade.

2.3 Oswald de Andrade: poética radical e manifestos.

Inovador, irônico, gozador, controverso, polêmico, perturbador de ordens, visionário.

Em toda biografia que se pesquise ou consulte os adjetivos acima estarão presentes para

descrever a personalidade dinâmica e irrequieta de José Oswald de Sousa de Andrade,

romancista, poeta, ensaísta, nascido em 11 de janeiro de 1890 e falecido em 22 de outubro de

1954, em São Paulo. Para grande parte da crítica literária o maior nome do modernismo

brasileiro, embora alguns ainda relutem em reconhecê-lo como tal.

Discorrendo acerca de sua obra poética, Haroldo de Campos, poeta, tradutor e um dos

maiores estudiosos da produção oswaldiana recorre ao termo “radical” para caracterizar sua

poética. Partindo deste pressuposto, o poeta cita uma reflexão de Marx a respeito do conceito

do que é ser radical: “Ser radical é tomar as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem é o

próprio homem.” Procurando especificar melhor este ponto de partida para explicar suas

convicções acerca de sua tese, Campos recorre novamente às reflexões de Marx que, por sua

vez, desenvolve seu pensamento nos seguintes termos:

Page 40: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

40

A linguagem é tão velha como a consciência – a linguagem é a consciência

real, prática, que existe também para outros homens, que existe então

igualmente para mim mesmo pela primeira vez, e, assim como a consciência,

a linguagem aparece senão, como o imperativo, a necessidade do comércio

com os outros homens. Onde quer que exista uma relação ela existe para

mim”. (MARX apud CAMPOS, 1991, p. 7).

Este pressuposto torna-se extremamente oportuno, uma vez que a obra de Oswald de

Andrade traz em sua essência o processo da linguagem em seu estado mais primordial: o de

uma consciência coletiva que perpassa pelo homem e suas relações, não apenas através de

uma necessidade básica de interação, mas, sobretudo em um espelho que reflete o homem

para o homem, em seus múltiplos contextos históricos e sociais. A linguagem, portanto, tem o

papel de se colocar como a consciência em ação. Dessa forma Haroldo de Campos justifica a

tese da radicalidade na poética de Oswald de Andrade.

A radicalidade da poesia oswaldiana se afere, portanto, no campo específico

da linguagem, na medida em que esta poesia afeta, na raiz, aquela

consciência prática, real, que é a linguagem. Sendo a linguagem, como a

consciência, um produto social, um produto do homem como ser em relação,

é bom que situemos a empresa oswaldiana em seu tempo. (CAMPOS, 1991,

p. 7)

A poesia de Oswald não se revelaria assim tão radical e transgressora se no quadro do

contexto em que se encontravam nossas produções literárias não imperasse um cenário

artificial, ou como nos aponta Antonio Candido, um “patriotismo ornamental” no qual ícones

incontestes de então, como Rui Barbosa, “a águia de Haia”, Coelho Neto, “o último heleno”,

Olavo Bilac, “o príncipe dos poetas” carregavam tais epítetos que só reforçavam o fato da

linguagem literária estabelecer um fosso entre as classes, estabelecendo-se assim um

verdadeiro abismo entre a ala intelectual e linguagem coloquial e “desleixada” falada pelas

classes menos favorecidas compostas em sua grande maioria por correntes migratórias

portadoras de determinadas peculiaridades orais que já, naqueles anos do início do século XX,

já confluíam para São Paulo. (CANDIDO apud CAMPOS, 1991, p. 8).

Evidente que, dentro deste contexto, uma poesia como Pau-Brasil representasse uma

guinada vertiginosa em todo aquele status quo, uma poética urgente, valendo-se do gênero

manifesto para em seu primeiro verso já preconizar que “a poesia existe nos fatos, os casebres

de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino são fatos estéticos”.

(ANDRADE apud CAMPOS, 1991, p. 9) e que procurava ao longo de seus versos localizar a

singularidade e a inquietação do homem brasileiro diante de um novo tempo em detrimento

de toda aquela consciência nacional e coletiva “ilustrada”.

Page 41: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

41

Um povo diante de todas aquelas transformações que ora confluíam, ora emergiam

para a cidade de São Paulo, o epicentro nacional dos novos ventos, do processo de

industrialização cada vez mais acelerado, das manifestações artísticas culturais populares e de

vanguarda cada vez mais atuantes, enfim, da cidade que se tornou praticamente o berço do

movimento Modernista do Brasil.

Em depoimento prestado à revista Anhembi, o próprio Oswald reflete, em retrospecto,

sobre as razões que levaram a São Paulo das décadas de 1920 e 1930 a se tornar o ponto

central do fenômeno modernista.

Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou

em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi

uma consequência de nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há

muito batido por todos os ventos de cultura. Não só a economia cafeeira

promovia os recursos, mas a indústria com a sua ansiedade do novo a sua

estimulação do progresso fazia com que a competição invadisse todos os

campos de atividade. (ANDRADE apud CAMPOS, 1991, p. 8).

Inserido nesse cenário de mudanças, onde o elemento produção passa a prevalecer,

completam o quadro elementos que irão contribuir para transformações significativas e

profundas.

A abolição dos escravos, a imigração maciça de trabalhadores europeus, o progresso e

desenvolvimento do transporte e das tecnologias de comunicação, a crescente urbanização e

uma progressiva caminhada a uma massificação de costumes, consumo e valores favoreceram

os novos rumos na busca de uma arte que se viu obrigada a atualizar-se para refletir, dentro

desta nova perspectiva, os anseios da massa, sujeita a governos populistas e ao controle do

Estado, como observa Campos, diante de toda a contradição apresentada pelo contexto

socioeconômico: “Os esforços de atualização da linguagem literária levadas a cabo pelo

Modernismo de 22 acusam, como uma placa sensível, o configurar-se dessas contradições.

Mais agudamente como nenhuma outra, na seara modernista, a obra de Oswald de Andrade”.

(CAMPOS, 1991, p. 10). Portanto analisar a “poética radical” de Oswald é analisar o projeto

de natureza estética mais ousado do movimento modernista, como assevera seu Manifesto

Pau- Brasil:

A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da

Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.

O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau-Brasil. Wagner

submerge ante os cordões de Botafogo. Bárbaro e nosso. A formação étnica

rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança.

[...]

A nunca exportação de poesia. A poesia anda oculta nos cipós maliciosos da

sabedoria. Nas lianas da saudade universitária.

Page 42: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

42

[...]

A volta à especialização. Filósofos fazendo filosofia, críticos, critica, donas

de casa tratando de cozinha.

A Poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem.

[...]

(ANDRADE, apud TELES, 1972, p. 326).

As expressões utilizadas ao longo do Manifesto Pau-Brasil propõem uma

desvinculação com a poética passadista, a partir da prerrogativa já em suas primeiras linhas

que afirmam que “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre no verde da

Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos.”, despojando sua poética daquela “aura” de

objeto de veneração, que perpetuada pela tradição colocava as produções poéticas como

objetos de contemplação.

A proposta de dessacralização e de despojamento da poética de Oswald de Andrade é

refletida não apenas de uma forma a simplificar, mas a reproduzir o cotidiano, visando ao

circunstancial, ao pitoresco ao comum. “Ver com os olhos livres”, aos “Leitores de jornais”,

ao tempo presente e urgente. Ou ainda, em uma definição mais ampla, “A poesia Pau-Brasil é

uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida das gaiolas, um

sujeito magro, compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal”. (CAMPOS,

1991, p. 19)

Neste processo de desnudamento, a fruição da linguagem, a exemplo das propostas do

amigo Mário, se tornaria livre das amarras do formalismo normativo do padrão culto,

revelando as marcas de um povo que faz uso criativo das múltiplas variações linguísticas

possíveis: “A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição

milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos”. (ANDRADE, apud TELES,

1992, p. 327).

Prosseguindo neste direcionamento, Oswald de Andrade aponta para um aspecto

fundamental para produção poética de seu tempo que iria nortear todos os elementos possíveis

das propostas estéticas modernistas: o rompimento das barreiras culturais através do

reaproveitamento das ideias internacionais, tendo em vista os processos de reprodução pelos

meios tecnológicos que passaram a influenciar a própria arte.

Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do

mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não

fosse lã mesmo, não prestava. A interpretação no dicionário oral das Escolas

de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As

meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica.

E com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa

genialidade de olho virado - o artista fotográfico. (ANDRADE apud TELES,

1992, p. 328).

Page 43: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

43

Os avanços tecnológicos e os meios de reprodução de uma sociedade

progressivamente mais industrializada corroboravam para uma produção poética cada vez

mais urbana, influenciada, sobretudo pelas técnicas de impressão, segundo Campos, “a

fotografia e, sobretudo, o cinema”. (CAMPOS, 1991, p. 19)

Walter Benjamim já observava essa relação da influência das manifestações artísticas

como o Dadaísmo nas produções poéticas do começo do século XX (mais notadamente na

exposição Cabaret Voltaire, exibida em Zurique, em 1916), baseadas em fragmentos de

imagem que se refletiam em uma poética também fragmentada, deslocando-se em sucessivas

paisagens, recortes, rápidas1. (Cf. CAMPOS, 1991, p. 20)

Esteticamente, entretanto, o poeta lançaria mão deste recurso dos recortes rápidos, ora

explorando descrições, ora criando efeitos de sentido para explicar uma poesia rápida,

sintética e objetiva.

Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico

dos fatores destrutivos.

A síntese

O equilíbrio

O acabamento de carrosserie

A invenção

A surpresa

Uma nova perspectiva

Uma nova escala

Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil.

(ANDRADE apud TELES, 1992, p. 328).

Tal recurso estabelecia uma relação muito mais direta no contato com o leitor,

preterindo a contemplação e a estrutura métrica tradicionais do verso, estabelecendo uma

nova estética baseada na síntese e no verso despojado de “poetizações”, conforme observou

Décio Pignatari, baseado nas teorias de Walter Benjamim, a temática cinematográfica do

“olho da câmera”, “a poesia ready made”. (PIGNATARI apud CAMPOS, 1991, p. 26).

No entanto, tal acabamento estético desses elementos se configuraria como evento

seminal para movimentos subsequentes como o movimento Concretista brasileiro, conforme

se pode verificar nos anos de 1950, que por sua vez, exerceria uma inquestionável influência

1 Porém, segundo observa Campos, “a análise de Benjamim é instigante, mas limitada no que se refere à pintura

e à literatura”. Considerando a função crítica de movimento Dada que assim como o Futurismo e o Cubismo

tornou-se influência determinante na poética de Oswald de Andrade, Benjamim coloca o cinema como a única

linguagem capaz de “dar uma representação artística do real” (BENJAMIM, apud CAMPOS, 1991, p.21), no

que Campos considera uma visão estreita, visto que alterações profundas também se processaram em outras

frentes artísticas. (Cf. CAMPOS, 1991, p. 21)

Page 44: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

44

nas estruturas músico-poéticas dos principais compositores do movimento Tropicalista dos

anos 1960.

Campos constata que, essencialmente, a poética trabalhada por Oswald de Andrade em

Pau-Brasil opera dentro de uma dialética de destruição/construção.

A poesia de Oswald de Andrade acusa assim ambas as vertentes: a

destrutiva, dessacralizante e a construtiva que rearticula os materiais,

preliminarmente desierarquizados. [...] De um lado, os poemas-paródias, em

que peças obrigatórias dos florilégios nacionais, como a “Canção do Exílio”

de Gonçalves Dias ou “Meus Oito Anos” de Casimiro de Abreu são

reescritos com uma sem-cerimônia lustral (“Canto do Regresso à Pátria”, em

Pau-Brasil, e “Meus Oito Anos”, precedido de “Meus Sete Anos”, em

Primeiro Caderno) e de outro os poemas construídos sobre a língua “natural

e neológica”, imantados pelo “erro” criativo (CAMPOS, 1991, p. 23).

Outro ponto determinante trabalhado pelo autor na poesia de Pau-Brasil foi a dialética

entre “regionalismo” e “contemporaneidade” através de versos como “Ser regional e puro em

sua época”. Ao contrário do que se parecia se enunciar, tal fragmento estava longe de

preconizar o regionalismo provinciano, o isolamento intencional. Antes a proposta estética de

Oswald era a interpretação do “ser regional” com o “ser contemporâneo”, ou seja, “Apenas

brasileiros de sua época”. (CAMPOS, 1991, p. 28)

Candido constata que “Oswald propugnava uma atitude brasileira de devoração ritual

dos valores europeus, a fim de superar a civilização patriarcal e capitalista, com suas normas

rígidas, no plano social, e os seus recalques impostos no plano psicológico”. (CANDIDO,

apud CAMPOS, 1991, p. 29). É esta característica fundamental da poética oswaldiana que

vamos dissertar em nossa sequência argumentativa.

As influências vanguardistas presentes nas poéticas de Mário e Oswald de Andrade

derivavam em grande parte dos movimentos europeus, nas exposições exibidas na Semana de

Arte Moderna de 1922, como, por exemplo, a estética do Cubismo ligado a nomes como

Appolinaire, Max Jacob, Blaise, Cendras, Jean Cocteau, Pierry Reverdy e Paul Dermée. (Cf.

NUNES, 1979, p. 7). Segundo Benedito Nunes, as produções artísticas brasileiras que

emolduraram o Modernismo, em sua primeira fase, foram consequências de uma síntese de

diversos ismos da época:

Todos esses degraus da modernidade – Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo –

galgou o movimento de 22 por meio das obras de Mário e Oswald de

Andrade. Ambos jamais ocultaram a convivência intelectual que mantiveram

com os escritos representativos das correntes renovadoras de então, o que

eram, como se pode ver hoje, as alas de um só movimento, sensíveis à

situação problemática da literatura e da arte. (NUNES, 1979, p. 8)

Page 45: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

45

Tais considerações chegam à constatação evidente que uma nova tendência estaria por

se consolidar dentro do Modernismo ainda que cercada de um contexto de tensão e

contestação: a antropofagia.

Nunes relembra o longo ensaio escrito por Heitor Martins, intitulado: Canibais

Europeus e Antropófagos Brasileiros (Introdução aos estudos das origens da Antropofagia),

em que o autor se dispôs a desvendar as complexidades daqueles movimentos vanguardistas

que se refletiam em novas tendências literárias, concordando, com o ensaísta, sobretudo,

quanto “à identidade dos veios principais da antropofagia, que são o Futurismo, o Dadaísmo e

o Surrealismo”. (NUNES, 1979, p. 10)

Traçado este panorama, Nunes estabelece três parâmetros que se constituem

pressupostos fundamentais para se compreender e desvendar a poética oswaldiana. O primeiro

é situar o autor e a sua obra “perante o sentido que a vida primitiva e a primitividade em geral

alcançaram nas experiências vanguardistas da época”. (NUNES, 1979, p. 21)

Em segundo, é a própria obra de Oswald de Andrade, na qual se compreende os dois

Manifestos, o Pau-Brasil, de 1924 e o Antropófago, de 1928, segundo Nunes, “insubstituíveis

peças de convicção no levantamento das ideias oswaldianas” e na própria dialética do

Modernismo. E, finalmente, o próprio movimento Modernista que “contrabalanceou, na sua

fase militante, com o anteparo do espírito crítico, a natural receptividade ao espírito das

vanguardas europeias, que o caracterizou”. (NUNES, 1979, p. 21)

Entretanto a obra oswaldiana não se limitava às propostas da vanguarda estética, pois a

concepção poética iniciada no Manifesto Pau Brasil passava por uma síntese da própria

concepção da cultura brasileira, ou seja, “para Oswald, a originalidade nativa compreendia os

elementos etnográficos da cultura brasileira, outrora marginalizados pelo idealismo

doutoresco da intelligentsia nacional no século XIX” (NUNES, 1979, p. 33 – grifo do autor).

Paradoxal a estes elementos trazia “o melhor de nossa tradição lírica” essencialmente

romântica, todavia eclipsada pelo uso ideológico da língua portuguesa. Segundo Nunes, a

grande ambição embutida nas propostas da poética do escritor era “liberar a originalidade

nativa das camadas idealizantes e ideológicas”, fazendo com que os elementos trabalhados

voltassem a um estado de pureza, “nos fatos significativos da vida social e cultural, que

constituem a matéria-prima da poesia Pau-Brasil” (NUNES, 1979, p. 32).

Indo mais além, a proposta oswaldiana propunha a impregnação desses elementos aos

produtos da civilização técnico-industrial tornando-se intelectualmente assimilados, tornando-

se parte integrante da nossa cultura:

Page 46: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

46

O primitivismo de Oswald de Andrade em Pau-Brasil tende para uma

estética de equilíbrio. Ele pretende realizar, na expressão, o mesmo acordo

harmonioso que se produziria na realidade, graças a um processo de

assimilação espontâneo, entre a cultura nativa e a cultura intelectual entre “a

floresta e a escola”. (NUNES, 1979, p. 33)

Ora, se um artista considerado um dos expoentes do modernismo em sua primeira fase

propõe a estética do primitivismo como principal norte de sua obra, estaria ele opondo-se

radicalmente aos aspectos culturais advindos da modernidade? Como equilibrar este

primitivismo estético com toda a proposta de modernização e atualização da arte brasileira?

A estética antropofágica presente na obra de Oswald de Andrade, antes de tudo, era

fruto de uma forte convivência que o autor, e por extensão a classe artística brasileira, passou

a manter em relação às correntes vanguardistas europeias.

A presença de uma arte que não fosse genuinamente brasileira era impregnada pela

noção de estranheza, de inadequação, uma vez que se pressupunha a ideia de diluição e

fragmentação decorrentes da absorção de culturas exteriores. Em contrapartida a esta visão

conservadora, Mário e Oswald de Andrade nunca esconderam seu compartilhamento com

correntes literárias europeias, especialmente francesas. O próprio Oswald visitaria Paris em

1923 às vésperas da eclosão do movimento Surrealista.

Atuar como receptáculo dessas novas tendências não poderia apenas requerer uma

atitude passiva de mera recepção. É preciso o componente ativo de assimilação para que o

processo não seja apenas de influências unilaterais. Para que se entenda o posicionamento de

Andrade dentro do contexto Modernista, Antonio Candido propôs a seguinte argumentação:

Os nossos modernistas, […], se informaram, pois, rapidamente da arte

europeia de vanguarda, aprenderam a psicanálise e plasmaram um tipo ao

mesmo tempo local e universal de expressão, reencontrando a influência

europeia por um mergulho no detalhe brasileiro. É impressionante a

concordância que um Appolinaire e um Cocteau ressurgem, por exemplo em

Oswald de Andrade. (CANDIDO, apud NUNES, 1979, p. 27).

E é exatamente através de Oswald de Andrade, o artista que mais procurou estabelecer

relações com as correntes renovadoras, que a estética da antropofagia se materializou em sua

plenitude instigante. Publicado em 1928, logo no primeiro exemplar da Revista da

Antropofagia, Manifesto Antropófago veio para consolidar as ideias e proposições anunciadas

em Manifesto Pau-Brasil.

Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de

todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi, that is the question. Contra todas as catequeses. E contra

Page 47: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

47

a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do

antropófago.

[...]

Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A

unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a

Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem.

[...]

Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas

praças públicas. Suprimarnos s ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros.

Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra

Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos

nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela

contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o

modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para

transformá-lo em totem.

[...]

Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a

realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem

penitenciárias do matriarcado de Pindorama. (ANDRADE apud TELES

1992, p. 359).

Se a estética primitivista propagada no manifesto anterior era sugerida como uma

forma de se conceber uma arte genuinamente brasileira, reconhecendo todos os seus aspectos

imanentes, ao mesmo tempo em que propugnava uma filtragem crítica das novas correntes

artísticas da vanguarda europeia no Manifesto Antropófago o autor é incisivo: somente a

antropofagia será a ferramenta necessária para que a nossa arte natural e antropologicamente

mestiça possa se estabelecer e se consolidar frente às inovações e tendências da arte

internacional. “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”.

Embora a estética antropofágica já permeasse a mentalidade de boa parte dos artistas

europeus inseridos no contexto das correntes vanguardistas, o fato é que a própria definição

etimológica, bem como toda a sua carga semântica, já nos proporciona uma reflexão sobre

seus elementos que remontam já nos primórdios do século XIV.

Resultante da junção das palavras anthropo (que significa homem) mais phagia (que

denota o verbo comer) a antropofagia significa o ato de comer carne humana. Historicamente

presente na prática dos índios brasileiros, “consistia em deglutir e em ingerir os inimigos mais

inteligentes, os melhores guerreiros, a fim de absorver suas boas qualidades” (MASSEBEUF,

2006, s/p).

Evidente que, com o limiar das correntes modernistas, o termo adquirisse uma

conotação metafórica e passasse a integrar um procedimento artístico no meio cultural.

No século XIX ele é usado culturalmente, como metáfora, para analisar

todos os processos de assimilação e aculturação, aos quais os índios foram

submetidos com a chegada dos colonizadores portugueses, o que ilustra a

absorção de tudo o que vem do estrangeiro, preterindo-se o nacional. No

Page 48: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

48

século XX essa metáfora do canibalismo reaparece em várias manifestações

vanguardistas: dadaísmo, surrealismo, fauvismo. O antropofagismo, nesses

movimentos de vanguarda, é associado à destruição do outro, à aquisição do

poder do outro e à transformação de si próprio. O mais importante não é o

fato de ingerir o outro, mas o de digeri-lo; trata-se da noção de simbiose.

Come-se o outro para se apropriar de seu poder, utilizando-o para o

benefício pessoal. Em toda a Europa há a noção de antropofagia cultural

ligada ao movimento dada. (MASSEBEAUF, 2006, s/p).

Torna-se claro, logo nas primeiras linhas do manifesto, uma referência direta à questão

da catequese, da colonização, da noção do estrangeiro colonizador que usurpa e catequiza os

nativos. Trata-se, de início, de uma clara alusão não só em relação ao domínio colonial

português, como também à presença da Igreja Católica: “Contra todas as catequeses. E contra

as mães dos Gracos”. (ANDRADE apud TELES, 1992, p. 353).

As múltiplas referências à história do Brasil, com seus personagens icônicos como

Anchieta, Padre Vieira, a Mãe dos Gracos, a corte de D João VI, figuras míticas como

Guaraci, Jaci, e a Cobra Grande remetem à construção cultural única no que diz respeito à

questão da integração do modo de ser e de falar, enfim das características peculiares do nosso

povo, da nossa língua. (Cf. MASSEBEUF, 2006, s/p.)

Em contraposição à nossa natureza primitivista, engatilha uma série de referências a

pensadores como Freud, Marx, Breton, Russeau, Francis Picábia, Montaigne, e Herman

Keyserling, todos meticulosamente selecionados e combinados no que poderíamos pressupor

a base do pensamento que articula e denuncia as ações de natureza puramente opressoras:

“Porém só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais

alto sentido da vida, e evita todos os males identificados por Freud. Males catequistas”.

(ANDRADE apud TELES, 1992, p. 359).

Condensar em um mesmo manifesto visões tão paradoxais e contraditórias parece

denotar um quadro caótico e subversivo. Não obstante, Benedito Nunes elucida que são

exatamente esses pressupostos conflitantes que apontam para as representações críticas

presentes no direcionamento das propostas modernistas.

Como se vê o primitivismo tende a tornar-se aqui o instrumento agressivo, a

arma crítica impiedosa com que se pretende atingir, de uma só vez, o

arcabouço – ético, social, religioso e político, - que resultou do passado

colonial da história brasileira. No “antropofagismo” tudo é contraditório, e

tudo é significativo por ser contraditório. Mitifica-se a antropofagia, e

utiliza-se o mito que é irracional, tanto para criticar a história do Brasil –

para desmistificá-la – quanto para abrir-lhe, com o apelo igualitarista da

sociedade natural e primitiva, um horizonte utópico, em que o matriarcado,

símbolo da liberdade sexual, substitui o sistema do patriarcado rural.

(NUNES, 1979, p. 34-35)

Page 49: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

49

Colocada a questão ideológica, o que prevalece nas proposições do manifesto de

Oswald de Andrade é a renovação pela assimilação, através de um resgate radical do nosso

primitivismo frente aos valores de uma sociedade ocidental industrializada, propondo

simultaneamente não apenas um canibalismo puro e simples das suas propostas, mas uma

deglutição, para que o resultado final não se revele apenas uma cópia, mas se manifeste

autônomo e capaz de contribuir para a renovação da arte, conferindo-lhe uma identidade

singular:

A luta entre o que chamaria Incriado e a Criatura – Ilustrada pela contradição

permanente do homem e seu Tabu. O amor cotidiano e o modus vivendi

capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro para transformá-lo em

totem (ANDRADE apud TELES, 1992, p. 359).

Em sua prosa lírica fluida, porém entrecruzada por frases fragmentadas, Oswald

propõe também um olhar para o Concretismo como uma tendência que visava nortear “uma

língua sem arcaísmos”, “natural e neológica”, pela língua “brasileira” já prenunciada pelo

amigo Mário de Andrade em “Prefácio Interessantíssimo”, a afirmação de um português

mestiço, miscigenado e dinâmico enquanto idioma, pertencente a um povo igualmente

caldeado e, portanto, todo peculiar no seu falar, fazendo tábua rasa de expressões e jargões

puramente lusitanos:

Oswald recorreu a uma sensibilidade primitiva (como fizeram os cubistas,

inspirando-se nas geometrias elementares da arte negra) e a uma poética de

concretude (“Somos concretistas”, lê-se em Manifesto Antropófago) para

comensurar a literatura brasileira às novas necessidades de comunicação

engendradas pela civilização técnica. Sua ideia antropofágica, repara

Oliveira Bastos, não se encaminhava, como a da “Anta”, para uma literatura

de “temas exóticos, de efeito turístico garantido”, mas vinculava-se à

revolução tecnológica, ao novo círculo de “disponibilidade órfica”, por ela

provado. (CAMPOS, 1991, p. 45, grifo do autor).

Portanto, com sua poética desconcertante e inovadora, Oswald de Andrade aponta para

o próprio movimento modernista os caminhos para a união do projeto estético e ideológico

que o modernismo trilharia com desenvoltura na década posterior.

Sob o ponto de vista de um texto escrito no gênero manifesto, os princípios defendidos

pelo autor possibilitaram o vislumbre da nossa identidade cultural através da somatória e

assimilação das culturas brasileiras e estrangeiras sem descaracterização de ambas: “Só me

interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. O único caminho aberto e

proposto para uma revolução, “A Revolução Caraíba”.

Page 50: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

50

Estava aberto o caminho para uma compreensão dos aspectos primordiais da nossa

arte que finalmente responderiam às questões conflitantes que se interpunham na incerteza de

se conceber produção artística genuinamente brasileira sem negar ou cair na pura imitação das

correntes modernizantes, principalmente as da vanguarda europeia. Resgatar as tradições do

passado, retrabalhar, assimilando as correntes modernizantes do presente, reconhecer as

experimentações e resultados, projetando-os para o futuro, afinal disso vive o artista: a

concepção de uma arte que lance um olhar contemporâneo e ao mesmo tempo transcendente à

realidade que o cerca.

2.3 O surgimento do Concretismo e o advento da Contracultura

Não obstante as propostas do movimento modernista em sua terceira fase, as

tendências literárias de vanguarda, em paralelo, continuavam levando adiante os rumos das

produções poéticas para novos direcionamentos.

Hilda Lontra lembra que o século XX foi marcado pela substituição de um tom

ufanista e nacionalista por outro mais realista e crítico, de modo que “a ideologia do

desenvolvimento, ao lado de uma postura que buscava registrar as angústias nacionais,

marcaram as bases da poética brasileira contemporânea”. (LONTRA, 2000, p. 14).

Essa mudança de comportamento verificou-se principalmente nos movimentos de

vanguarda, como no movimento modernista de 1922. Longe de se constituírem como

movimentos homogêneos, as vanguardas procuravam apresentar novas propostas de

construção pela linguagem dentro de uma visão intersemiótica, ou seja, recorrendo a uma

sintaxe fragmentada, à reelaboração do uso semântico e ao questionamento do verbo.

A partir daí, nas décadas seguintes, a tendência perpassaria por uma poesia cada vez

mais dialética na relação entre discurso e realidade brasileira, como reforça a autora:

Para efetivarem seus intentos, as grandes correntes da vanguarda brasileira

posicionaram-se (ou tentaram [...]) dentro das poéticas de descentramento.

Propugnar por uma poética anti-ideológica, crítica, contestatória é o ponto de

convergência do pensamento de vanguarda em suas mais notáveis

contribuições. Rastrear as formas pelas quais foi perseguido esse objetivo e o

alcance obtido em cada manifestação de vanguarda, do Concretismo ao

advento do Tropicalismo, é o que se passa a fazer. (LONTRA, 2000, p. 18)

Traçando um panorama histórico desses movimentos antecedentes, a autora constata

que as bases para o movimento da Poesia Concreta no Brasil surgiram no ano de 1956, através

Page 51: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

51

da métrica e do preciosismo verbal de autores como Augusto de Campos, Haroldo de Campos

e Décio Pignatari.

É através da publicação Noigrandes 4, lançada em 1958, em que se encontra o

chamado “Plano Piloto da Poesia Concreta” que serão explicitadas as bases dos pensamentos,

intenções e objetivos dos escritores concretistas. “‘O poema é uma realidade em si, não um

poema sobre’, registrava a Teoria da Poesia Concreta, assinada por Décio Pignatari, Haroldo

e Augusto de Campos”. (LONTRA, 2000, p. 19, grifos da autora). Partindo “da procura de

códigos” em detrimento da “procura por mensagens”, o Concretismo firmou-se como um

movimento inovador pela presença dos seguintes elementos:

1. recursos sintáticos: técnica de justaposição aleatória, atomização das

partes do discurso;

2. recursos morfológicos: construção e distribuição ímpar de prefixos e

sufixos, exploração de novos radicais;

3. recursos lexicais: neologismos, empréstimos inusitados,

estrangeirismos, recurso a siglas;

4. recursos fonológicos: excessiva exploração de assonâncias,

aliterações, ecos, rimas internas, distribuições fonéticas contrastantes;

5. recursos gráficos: exploração do espaço em branco, do silêncio

gráfico, ruptura com o verso, não linearidade, pontuação.

6. recursos semânticos: ideogramas, trocadilhos, vocábulos

polissêmicos.

(LONTRA, 2000, p. 19-20).

Esses elementos, de certa forma inovadores e, por que não, até mesmo

“transgressores” em relação à métrica e à versificação da poesia tradicional, tornar-se-iam um

marco nas produções poéticas posteriores e seriam uma das influências claramente verificadas

no álbum Tropicália ou Panis et Circencis, através de faixas como “Miserere Nobis” e “Bat

Macumba”.

Logo na sequência, o Neoconcretismo procurou cumprir a missão de levar o

movimento a um estágio de amadurecimento, através de uma postura menos cerebral.

Verificava-se no Concretismo o predomínio de elaborações visuais, a aproximação da

linguagem verbal à cibernética, que se traduzia, por uma artificialidade da literatura e certa

supressão ou sufocamento do eu poético. (Cf. LONTRA, 2000, p. 22)

Assim, a recolocação do eu poético no texto, a revalorização da palavra como

expressão do homem e a tendência ao esoterismo foram algumas das preocupações dos

escritores deste período, que começaram a publicar suas manifestações na coluna

“Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, a partir do ano de 1959. (Cf. LONTRA, 2000,

p. 22-23).

Page 52: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

52

Progredindo nesta linha do tempo, surge o grupo mineiro Tendência que procurou

fundir ideais concretistas de São Paulo (Cf. LONTRA, 2000, p. 24-26), e o movimento de

militância política Violão de Rua, de 1962, que representou a tentativa de manter uma posição

de vanguarda, sem comprometimento com o formalismo estético, proporcionando o

ressurgimento da poesia discursiva (Cf. LONTRA, 2000, p. 27-29).

Todas essas manifestações de vanguarda na poesia brasileira ofereceram fortes

elementos que vieram a influenciar de maneira decisiva o movimento Tropicalista que se

concretizaria a seguir.

O termo contracultura consolidou-se através da imprensa norte-americana no começo

dos anos 1960. Sua concepção baseava-se principalmente no movimento hippie, que, por sua

vez, procurava abranger um número crescente de pessoas – estudantes, grupos minoritários e

marginalizados da sociedade e intelectuais da chamada nova Esquerda, dentre outros – como

um tema obrigatório da discussão. (Cf. BARROS, 2016, p. 2).

É importante ressaltar que a década de 1950 viu emergir o chamado “poder jovem”, ou

seja, a juventude passa a ser vista como importante protagonista consumidora de tendências e

símbolos diferenciados. Fosse na música, através da eclosão do rock and roll revelando

nomes como Elvis Presley e Little Richard, nas indumentárias das roupas, ou ainda nos

fenômenos midiáticos que se insurgiam no cinema - caso de obras como O Selvagem (The

Wild One, EUA, 1953) e Juventude Transviada (Rebel Without a Case, EUA, 1955) – o fato é

que uma crescente e efervescente atmosfera de renovação artística somada à contestação

política de questionamentos sobre a ordem vigente do status quo, dos direcionamentos

econômicos, enfim, de todas as práticas regidas por uma sociedade capitalista e tecnocrata,

toma forma, procurando repensar os valores defendidos até então. (Cf. BARROS, 2016, p. 2).

Todas estas manifestações, portanto, atingem o ápice através de novas experiências

propagadas a partir dos anos 1960, resultando em uma verdadeira revolução comportamental

preconizada pela cultura hippie: êxtase propiciado pelas drogas e filosofias orientalistas, do

rock (como “hino da revolução hormonal” da juventude), da colocação do sexo como

proposição social, da formação de comunidades voltadas para a reintegração da totalidade

humana, aspirando a uma volta à natureza e à retribalização. (Cf. BARROS, 2016, p. 2).

Tais direcionamentos não tinham como pressupostos a substituição do modelo

capitalista pelo modelo marxista socialista, mas sim, a prerrogativa de que era possível viver

em uma sociedade mais livre do paradigma das convenções tecnocratas e rígidas.

A contracultura com seu caráter eclético, simultaneamente místico e político,

emergiu como uma resposta crítica diante das ilusões do capitalismo e do

Page 53: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

53

rigoroso sistema tecnocrático. Seu caráter político ganhou visibilidade nos

Estados Unidos por causa da luta integrada pelos direitos civis dos negros,

homossexuais e mulheres, da inserção do jovem enquanto importante ator

social, do pacifismo e do pensamento ecológico, entre outras novas

proposições que não eram contempladas na chamada política tradicional.

(BARROS, 2016, p. 2)

Evidente que, a arte global não passaria imune a tal fenômeno, antes pelo contrário,

tornar-se-ia ferramenta fundamental para a disseminação das aspirações do movimento, fosse

nas artes plásticas, no cinema, no fenômeno da retribalização cada vez mais crescente

proposta pela televisão. Mas foi, principalmente na música, que os ventos da contracultura

viveram um período fértil de criatividade e inovação, através do surgimento de grandes nomes

que ajudaram a consolidar os ideais hippies: o chamado rock psicodélico propagado por

bandas como The Doors, Gratefull Dead, The Jimi Hendrix Experience, The Velvet

Underground, Jefferson Airplaine, Love, Montain, Pink Floyd. A constatação inequívoca da

consolidação dos Beatles como peça fundamental para a formatação da música pop

contemporânea e a era dos grandes festivais que se tornariam verdadeiros manifestos da

chamada “geração paz e amor”, como Monterey, em 1967, e o icônico Woodstock, em 1969,

contribuiriam de forma decisiva para que aquela década se tornasse uma das mais

representativas e significativas para o desenvolvimento das produções artísticas pelo mundo.

Todo este panorama não passaria incólume também abaixo da linha do Equador. No Brasil,

entretanto, os ecos da contracultura soariam um pouco tardios e viriam, sobretudo, em forma

de reação e contestação ao limiar de um novo tempo marcado por turbulentas mudanças no

cenário político que culminaram em um regime militar perpetrado pelo golpe de primeiro de

abril de 1964.

Através das considerações de Roberto Schwarz, sobre o contexto político-social da

época, expressas no artigo “Cultura e Política, 1964-1969: alguns esquemas”, podemos inferir

o quanto, em um primeiro momento, os ideais da contracultura, se tornariam verdadeiros

desafios, caso fossem abraçados pela classe artística e intelectual brasileira.

Em 1964, instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e

o continente contra o socialismo. O governo populista de Goulart, apesar da

vasta mobilização esquerdizante a que procedera, temia a luta de classes e

recuou diante da possível guerra-civil. Em consequência, a vitória da direita

pode tomar a costumeira forma de acerto entre os generais. O povo, na

ocasião, mobilizado, mas sem armas e organização própria, assistiu

passivamente a troca de governos. Em seguida, sofreu as consequências:

intervenção e terror nos sindicatos, terror na zona rural, rebaixamento geral

nos salários, expurgo, especialmente nos escalões baixos das Forças

Armadas, inquérito militar na Universidade, invasão de igrejas, dissolução

Page 54: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

54

das organizações estudantis, censura, suspensão de habeas corpus, etc.

(SCHWARZ, 1978, p. 71).

Entretanto, observa o crítico, surpreendentemente, apesar de todo este cenário

repressor, as produções artísticas e culturais de esquerda não foram imediatamente suspensas

naquele período; pelo contrário, até mesmo receberam apoio para seu livre trânsito, o que

Schwarz considera uma “anomalia” responsável pelo panorama efervescente que convergiria

para o nascimento do movimento Tropicalista. (Cf. SCHWARZ, 1978, p. 71).

Boa parte deste cenário vinha dos movimentos estudantis e das universidades, onde, de

certa forma, encontravam o respaldo da classe intelectual. É neste contexto que surgem jovens

talentos promissores da música: egressos da Bahia, Gilberto Gil e Caetano Veloso tentavam

uma penetração maior no cenário artístico, procurando discutir a realidade brasileira que se

fazia representar, até então, através das artes visuais, mais notadamente do cinema e das artes

plásticas.

Page 55: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

55

3 TROPICALISMO E TROPICALISTAS

Influenciados por uma corrente ideológica socialista, Gil, Caetano e outros artistas

expoentes do Tropicalismo vinculavam-se a uma efervescência cultural que se evidenciaria

em “uma revisão do panorama cultural brasileiro, no percurso dos meios de comunicação

social”, a qual “vai apontar para as influências imediatas da poética tropicalista.” (LONTRA,

2000, p. 35). Sendo assim, o surgimento do Tropicalismo enquanto movimento partiu, como

afirmam as palavras de Gilberto Gil dirigidas a Augusto de Campos, “muito mais de uma

preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento

organizado.” (GIL apud FAVARETTO, 2007 a, p.19).

É importante salientar que, após a implantação do regime militar, a classe estudantil

oriunda dos movimentos universitários mobilizou-se contra as ações repressoras. Estas

mobilizações tomaram forma de diversas manifestações, entre elas, os grandes festivais de

música popular.

É nesse contexto que, num período entre os anos de 1965 e 1972, uma leva

privilegiada de compositores e intérpretes surgia para longas e marcantes carreiras na música

popular brasileira, muitos em atividade ainda nos dias de hoje. Caetano Veloso, Chico

Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Jair Rodrigues, Elis Regina, Geraldo Vandré, Nara Leão,

MPB 4 e tantos outros despontaram e se firmaram no panteão do que seria uma nova música

popular brasileira em ascensão.

Mais do que simples manifestações, a chamada “Era dos Festivais” consistia em

grandes eventos midiáticos que mobilizavam milhares de espectadores e telespectadores por

todo o país. Um desses eventos ficaria marcado em sua edição por se tornar uma espécie de

marco inicial para um novo movimento que se iniciava: o Tropicalismo.

3.1 Marco inicial: 1967 e o Festival da Canção da TV Record

O mês era outubro. O ano, 1967. O local, o teatro Paramount na cidade de São Paulo,

mais precisamente o III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record. Sobem ao palco

dois jovens talentos promissores da MPB para, cada um em seu tempo, entoarem suas

canções: Caetano Veloso com “Alegria, Alegria” e Gilberto Gil com “Domingo no Parque”.

Page 56: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

56

Juntas, essas duas canções, em princípio, destoavam de tudo que se conhecia como “Moderna

Música Popular Brasileira”.2

Pela primeira vez tornava-se necessário um esforço do público e da crítica para a

interpretação das propostas implícitas daquelas canções permeadas por metáforas e imagens

fragmentadas, numa espécie de painel caleidoscópico do contexto cultural e social vigente

naquele momento: um país dividido entre uma recém-implantada ditadura militar que, desde o

golpe perpetrado em 1º de abril de 1964, procurava “garantir a nação contra a ameaça

socialista”. (LONTRA 2000, p. 33), a eclosão de novos comportamentos provocados pelos

ideais da contracultura e a explosão tecnológica dos meios de comunicação de massa,

especialmente a televisão.

Diante deste panorama, as canções de Caetano e Gil soavam estranhas, ambíguas,

desprovidas de um norteamento político mais claro e nítido que pudesse contextualizá-las.

Especialmente “Alegria, Alegria”, de Caetano, que apregoava remissões tão improváveis,

como díspares a Brigitte Bardot e à Coca-Cola, em detrimento a declarações de conotação

política e social, como se percebe nos seguintes fragmentos da canção:

[...]

Em caras de presidentes

Em grandes beijos de amor

Em dentes, pernas, bandeiras

Bomba e Brigitte Bardot

O sol nas bancas de revista

Me enche de alegria e preguiça

Quem lê tanta notícia

Eu vou

[...]

Eu tomo uma coca-cola

Ela pensa em casamento

E uma canção me consola

Eu vou

Por entre fotos e nomes

Sem livros e sem fuzil

Nogueira GalvãoSem fome sem telefone

No coração do Brasil

Ela nem sabe até pensei

Em cantar na televisão

O sol é tão bonito

2 O termo “Moderna Música Popular Brasileira”, cunhado à época por Walnice Nogueira Galvão, estava

intrinsicamente ligado a outro termo denominado “Linha Evolutiva” da música brasileira. Sobre o debate a

respeito desses dois temas, Caetano disserta em entrevista à Revista Civilização Brasileira de 1966. (Ver

citação na página 124).

Page 57: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

57

Eu vou

Sem lenço, sem documento

Nada no bolso ou nas mãos

Eu quero seguir vivendo, amor

Eu vou

Por que não, por que não…3

Em ritmo de marchinha pop e com o acompanhamento de arranjos inusitados do grupo

argentino Beat Boys, a canção de Caetano causou reações díspares, que iam da euforia ao

estranhamento, por exigir uma análise mais apurada de sua letra polissêmica e complexa.

Ao contrário da poética direta e linear da maioria das canções de engajamento político,

por exemplo, Caetano opta pelo recurso de “versos visuais”, agrupando em uma sequência

melódica substantivos aparentemente desconexos, fragmentados, onde já é possível observar

ecos da influência da poesia concreta e o conceito implícito do recurso da poesia ready made,

já preconizada antes como elemento estético preponderante nas incursões poéticas de Oswald

de Andrade. Todos esses múltiplos elementos estéticos naturalmente não passariam

despercebidos, constituindo-se obviamente em objetos para novas prospecções:

Furando a maré redundante de violas e marias, a letra de Alegria, Alegria,

traz o imprevisto da realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada,

isomorficamente, através de uma linguagem nova, também fragmentária,

onde predominam substantivos - estilhaços da “implosão informativa

moderna, crimes, espaçonaves, guerrilhas, cardinales, caras de presidente,

beijos, dentes, pernas, bandeiras, bomba e Brigitte Bardot”. É o mundo das

“bancas de revistas”, o mundo de “tanta notícia/”, isto é, o mundo da

comunicação rápida, do “mosaico informativo” de que fala Marshall

Mcluhan. Nesse sentido, pode-se afirmar que “Alegria, Alegria” percorre o

caminho inverso de “A Banda”. Das duas marchas, esta mergulha no

passado na busca evocativa da “pureza” das bandinhas e dos coretos da

infância. “Alegria, Alegria”, ao contrário, se encharca de presente, se

envolve diretamente no presente, se envolve diretamente no dia-a-dia da

comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo. (CAMPOS, 1974, p.

141)

Para Heloísa Buarque de Hollanda, dois aspectos relevantes e subjacentes chamam a

atenção na canção e que se tornariam elementos importantes para se conhecer e contextualizar

as tendências do nascente movimento Tropicalista: a crítica dos intelectuais de esquerda (“por

entre fotos e nomes sem livro e sem fuzil / sem fome, sem telefone / no coração do Brasil”) e

a presença dos meios de comunicação de massa (“ela nem sabe até pensei/ em cantar na

televisão”). (Cf. HOLLANDA, 2004, p.55)

Neste sentido, a poética de Caetano deflagra um recorte das transformações sociais

conjugando e equilibrando os elementos de seu tempo, ao mesmo tempo em que evita o

3 Canção gravada no álbum Caetano Veloso - 1968, Philips Records / Universal Music.

Page 58: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

58

embate direto contra os rumos políticos e estabelece uma percepção aguda frente aos

caminhos de sua geração, apontando novos rumos para a música popular brasileira.

Tal qual Caetano, Gil subiu ao palco acompanhado por uma jovem banda de rock, e, sob a

direção e arranjos musicais do produtor e maestro Rogério Duprat. Na apresentação triunfante

que lhe rendeu a segunda colocação no festival, Gil aparece ao violão ladeado pelos

integrantes da banda Mutantes, tendo ao fundo uma orquestra regida pelo maestro. Após um

introito que lembra as matinês carnavalescas, os acordes do violão, juntamente com um

berimbau transpõem os andamentos rítmicos para um baião, com direito a belas e pontuais

intervenções orquestrais ambientando as cenas descritas nos versos.

Para a estrutura da canção, Gil e o produtor Rogério Duprat recorreram a um arranjo

feito por instrumentos clássicos, instrumentos elétricos, berimbau, uso de corais, tudo

sincronizado para discursar sobre um parque de diversões metaforicamente usado como uma

alegoria para os encontros e desencontros da vida, especialmente a tragédia amorosa que

resulta dos conflitos vividos pelas personagens da canção:

O rei da brincadeira (ê, José)

O rei da confusão (ê, João)

Um trabalhava na feira (ê, José)

Outro na construção (ê, João)

[...]

O José como sempre no fim da semana

Guardou a barraca e sumiu

Foi fazer no domingo um passeio no parque

Lá perto da Boca do Rio

Foi no parque que ele avistou Juliana

Foi que ele viu

Foi que ele viu Juliana na roda com João

Uma rosa e um sorvete na mão

Juliana seu sonho, uma ilusão

Juliana e o amigo João

O espinho da rosa feriu Zé

E o sorvete gelou seu coração

[...]

O sorvete e a rosa (ô, José)

A rosa e o sorvete (ô, José)

Oi, girando na mente (ô, José)

Do José brincalhão (ô, José)

Juliana girando (oi, girando)

Oi, na roda gigante (oi, girando)

Oi, na roda gigante (oi, girando)

O amigo João (João)

O sorvete é morango (é vermelho)

Oi girando e a rosa (é vermelha)

Oi, girando, girando (é vermelha)

Page 59: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

59

Oi, girando, girando...

Olha a faca! (olha a faca!)

Olha o sangue na mão (ê, José)

Juliana no chão (ê, José)

Outro corpo caído (ê, José)

Seu amigo João (ê, José)

Amanhã não tem feira (ê, José)

Não tem mais construção (ê, João)

Não tem mais brincadeira (ê, José)

Não tem mais confusão (ê, João)4

Assim como em “Alegria, Alegria” de Caetano, Gil imprime um ritmo sintético e

veloz aos versos, cuja narrativa concentra seu foco nas construções objetivas e subjetivas que

circundam as personagens: João, operário da construção civil vive um romance estável com

Juliana, alvo do amor idealizado e incondicional de José, ambulante, trabalhador de feira

livre.

As citações das profissões dos personagens protagonistas são propositais,

estabelecendo uma contraposição entre o espaço urbano e rural, entre a cidade e o campo,

revelando o impasse que o país vivia naquele instante, em que a transposição de uma vida

mais tradicional, arraigada no campo, nos costumes arcaicos, cedia cada vez mais espaço para

a crescente urbanização, para modernidade que se instaurava através do desenvolvimentismo

que, por sua vez, trazia a reboque todas as características e complexidades intrínsecas a uma

sociedade em franco progresso. (Cf. SORROCE, 2005, p. 73)

Gil também subverte a ordem natural da dialética entre o bem e o mal através da

construção dos elementos psicológicos dos personagens apresentadas. O pacato e extrovertido

José (“O rei da brincadeira”) é tomado por um profundo sentimento de ódio e vingança contra

o “amigo” e intempestivo João (“O rei da confusão”), a partir do momento em que no parque

avista “Juliana na roda com João”. O instante é capturado com maestria pelos versos de Gil

(“Juliana seu sonho, uma ilusão / Juliana e o amigo João / O espinho da rosa feriu Zé / E o

sorvete gelou seu coração”). (Cf. SORROCE, 2005, p. 75-76)

A partir deste instante, os acontecimentos se sucedem em uma gradação progressiva

de imagens e elementos simbólicos – o sorvete, a rosa, o espinho, o sangue, o morango –

criando um efeito de sentido “giratório”, proporcionado pela cena do casal na roda gigante -

até chegar ao desfecho fatal prenunciado (“Olha a faca!”), um crime passional em que o “rei

da brincadeira” insurge-se violentamente contra o “rei da confusão” e sua amada.

4 Canção gravada no álbum Gilberto Gil, Frevo Rasgado – 1968, Mercury Records.

Page 60: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

60

O triângulo amoroso retratado neste pequeno romance tropicalista revela um recorte

de um momento, de um contexto social e toda sua carga de vivências e expectativas subjetivas

imanentes às transformações pelas quais uma sociedade passa, como, por exemplo, na

destreza e perspicácia do autor em tocar em um tema ainda espinhoso para aquele momento

como um crime passional.

“Domingo no Parque” traz marcas de todo um movimento em que música,

poesia, teatro e cinema dialogam convergindo numa mesma direção, que foi

conduzida pela instabilidade e pela fragilidade de uma sociedade oprimida

durante um período conturbado, reflexo da realidade do mundo exterior.

(SORROCE, 2005, p. 75)

Nota-se, portanto, tanto na composição de Gil como na de Caetano, a preocupação da

alegoria como uma forma estética, a efusão de imagens em sucessões de referências que,

aparentemente, desprovidas ou “alienadas” de algum discurso político mais pungente e

expressivo, representaram marcas, pistas iniciais de um movimento que viria exatamente para

intrigar e instigar propostas renovadoras e provocativas.

Para Augusto de Campos, “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque” são duas peças

complementares e representativas de um modelo estético voltado para a liberdade da pesquisa,

em que prevalecem as fusões e experimentações, exatamente como preconizava a bossa nova.

(Cf. CAMPOS, 1974, p. 140)

Neste sentido, as resoluções tomadas por Gil e Caetano propunham um

direcionamento voltado claramente para a música pop sem, contudo, abrir mão dos

fundamentos tradicionais - notadamente as bases estruturais das canções, uma marchinha e

um baião – objetivando nitidamente assim o rompimento com certos padrões estabelecidos

que impunham um engessamento e uma estagnação das composições.

Recusando-se à falsa alternativa de optar pela “guerra santa” ao iê-iê-iê ou

pelo comportamento de avestruz (fingir ignorar ou desprezar o aparecimento

de músicos, compositores e intérpretes, por vezes de grande sensibilidade,

quando não verdadeiramente inovadores como os Beatles, na faixa da

“música jovem”). Caetano Veloso e Gilberto Gil com “Alegria, Alegria” e

“Domingo no Parque” se propuseram oswaldianamente, “deglutir” o que há

de novo nesses movimentos de massa e de juventude e incorporar as

conquistas da moderna música popular ao seu próprio campo de pesquisa,

sem por isso, abdicar dos pressupostos formais de suas canções que se

assentam com nitidez em raízes musicais nordestinas. (CAMPOS, 1974, p.

140)

As canções de Gil e Caetano não venceram o festival. Ficaram em quarto e segundo

lugar, respectivamente intercaladas entre “Ponteio” (1º lugar, parceria entre Edu Lobo e

Page 61: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

61

Capinam) e “Roda Viva” (3º lugar, de Chico Buarque). Mas a polêmica em torno de suas

propostas já estava estabelecida. Nasciam ali as propostas tropicalistas. Logo a imprensa

tratou de rotular a música que apresentaram como “tropicalista”, surgindo então o termo

“tropicalismo”, que, por sua vez, era uma referência à canção “Tropicália”, de Caetano,

inspirada em uma exposição homônima feita pelo artista visual Hélio Oiticica.

3.2 Surge então o Tropicalismo

Segundo o pesquisador Christopher Dunn, em sua obra Brutalidade Jardim: a

Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira, o termo tropicalismo tanto brincava

com a imagem de um “paraíso tropical” referido na carta de Pero Vaz de Caminha, em 1500,

como fazia alusão ao “luso-tropicalismo”, teoria desenvolvida por Gilberto Freyre na década

de 1940, cujo foco central era a expansão empreendedora das atividades coloniais portuguesas

nos trópicos. (Cf. DUNN, 2009, p. 24-25)

Longe, porém, de se constituir como um movimento nacionalista e ufanista,

ideologicamente interessava aos tropicalistas uma crítica com teor irônico e perspicaz tanto ao

nacionalismo conservador quanto ao patriotismo ferrenho. O que se observava era, como se

dizia nas palavras de Caetano Veloso, um “nacionalismo agressivo” da chamada esquerda

anti-imperialista. (Cf. DUNN, 2009, p. 12)

Estética e artisticamente, o termo “Tropicalismo” logo serviu para deflagrar um

movimento que abarcava várias frentes artísticas, diversas ideias que se correlacionavam e

confluíram para um momento de ruptura e inovação, bebendo principalmente nas fontes do

movimento modernista brasileiro, sobretudo na noção de antropofagia de artistas até então

renegados, como Oswald de Andrade, e também nos manifestos de vanguarda.

O movimento tropicalista surgiu de uma necessidade premente de se discutir a arte

brasileira nos intempestivos e revolucionários dias da década dos anos 1960. Sua aparição,

aparentemente desarticulada e sem propostas definidas, nasceu, como nas palavras de Gilberto

Gil, do surgimento “de uma preocupação entusiasmada pelo novo do que propriamente um

movimento organizado” (GIL apud FAVARETTO, 1995, p. 19).

No entanto, sua proposta despretensiosa e despojada, mesmo não sendo fruto de um

esforço ou de um planejamento da classe artística e intelectual, notabilizou-se principalmente

no ano de 1967, pelo “afluxo de propostas, experiências e talentos responsáveis por uma

ampla atividade de vanguarda com a convergência de projetos e tendências em

Page 62: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

62

desenvolvimento nas diversas áreas artísticas desde o início da década”. (FAVARETTO apud

BASUALDO, 2007, p. 81).

A discussão da “realidade brasileira” passaria a estar na ordem do dia, em um país

mergulhado em um período político e socioeconômico conturbado, com o recém-implantado

regime militar à espreita, compondo um cenário de vigilância e repressão cada vez mais

crescentes, propondo um contexto de fundo para profundas reflexões.

Essas atividades confluíram da necessidade, que se impunha, de fazer a

crítica da “realidade brasileira” e de articular a resistência política face às

restrições da liberdade de expressão impostas pelo regime militar. Mas, antes

de tudo, tratava-se de levar adiante o trabalho de renovação que vinha

impulsionando o desejo de modernidade artístico-cultural, desde o início da

década de 1950. (FAVARETTO apud BASUALDO, 2007b, p. 81).

Essas atividades que se propunham a acompanhar o que havia de mais relevante em

termos de tendências de vanguarda, abarcaram frentes artísticas distintas como as artes

plásticas, o cinema, a literatura de todos os gêneros e as artes cênicas. E, sobretudo,

encontraram na música a união do projeto estético da poética literária, influenciada

diretamente por correntes como a Antropofagia e o Concretismo presentes no movimento

modernista do começo do século com uma sonoridade até então ousada, polêmica para

ocasião, eclética em sua mistura de influências variadas que perpassariam pela música pop

internacional, elementos do folclore, da tradição da bossa-nova, dos ritmos regionais, das

referências tão díspares quanto inesperadas e irreverentes.

O movimento tropicalista representou naquele instante um momento de ruptura com as

tradições nacionalistas na busca de uma atualização da arte brasileira perante o cenário

nacional e internacional,

Dentro deste panorama, o artista plástico Hélio Oiticica traçou a seguinte análise:

O conjunto daquelas atividades identificava a vanguarda brasileira como um

“fenômeno novo no panorama internacional”, pois o processo de

redimensionamento estético, manifesto em toda parte desde a emergência da

arte pop foi especificado no Brasil por uma inédita e vigorosa fusão das

propostas e experiências recentes – notadamente as surgidas do projeto

concretista e da dissidência. (OITICICA apud FAVARETTO, 2007, p. 81-

82).

Ora, se partirmos da própria concepção etimológica da palavra vanguarda originária de

um hibridismo - do latim avant e do germânico garde - que, por sua vez se traduz como

“guarda avançado” (Cf. TELES, 1992, p. 81), assumindo a conotação de obras que se

destacam pelo pioneirismo e pela ruptura com padrões vigentes em busca da renovação

Page 63: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

63

artística, o movimento tropicalista alinha-se, assim, com o seu grande e influente predecessor,

o movimento modernista dos anos 1920 e 1930, como um movimento de grande atividade

construtivista para a nossa arte.

É evidente, portanto, o fato dessas atividades confluírem, especialmente no ano de

1967, para produções artísticas que promoveriam toda uma autorreflexão no cenário cultural

do país, bem como lançariam, apesar de seu curto período de existência, as bases para um

panorama diferente a partir de então, revisando tradições, ampliando horizontes e

questionando, de certa forma, nossas contradições mais profundas.

Assim, o país Eldorado, retratado na obra cinematográfica Terra em transe (1967) de

Glauber Rocha, que se constituía em uma espécie de uma grande metáfora mimetizando,

através dos desdobramentos de seu enredo e do posicionamento de seus personagens, o

cenário político do Brasil do começo dos anos 1960, encontrava, de certa forma, um diálogo

ideológico com a peça teatral O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, escrita em 1933,

encenada em 1967, através de uma adaptação do dramaturgo José Celso Martinez, cujo

enredo gira em torno de um industrial do ramo de velas, que se encontra endividado em uma

alusão clara à situação de um país subdesenvolvido que lutava para modernizar-se de maneira

sofrida ao tentar acompanhar os ventos da revolução industrial do começo do século XX. (Cf.

SANTANA, 2013, p. 99)

Ou ainda o cenário ambiental ideológico presente na criação do artista plástico Hélio

Oiticica denominada Tropicália, (1967) cuja instalação, composta por corredores temáticos,

era adornada pela experiência de uma profusão multissensorial que misturava natureza

(plantas e araras) com poemas recitados de autoria de sua irmã Roberta Oiticica. Tal

influência estética se tornaria presente no título da canção “Tropicália” de Caetano Veloso,

sobre o próprio Tropicalismo, e, sobretudo, seria um dos pilares a influenciar a obra mais

conhecida e relevante do movimento: o registro fonográfico Tropicália ou Panis Et Circencis

(1968).

As múltiplas propostas contidas na obra, que carrega o epíteto de álbum manifesto,

tornaram-se uma espécie de amálgama da representação das “relíquias do Brasil”. (Cf.

FAVARETTO 1995, p. 72).

Essas atividades artísticas, que se configuravam em áreas como a música, as artes

plásticas, o cinema e o teatro, logo encontraram seu “meio termo”, ou seja, o inconformismo,

fosse ele de natureza estética, política ou social, enfim, uma alternativa que procurava tratar a

arte a partir de uma perspectiva simultaneamente moderna, desafiadora e instigante. Já para

Affonso Romano de Sant’Anna, “O Tropicalismo é, antes de tudo, um movimento

Page 64: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

64

dessacralizador. Irônico e parodístico, não se conteve apenas na música popular, mas

manifestou-se em outros gêneros artísticos” (SANT’ANNA, 2013, p. 65).

O Tropicalismo empenhava-se num esforço pela atualização da música popular

brasileira, principalmente em relação ao que vinha acontecendo na Europa e nos Estados

Unidos. Como exemplo, Sant’Anna cita uma pesquisa realizada nos Estados Unidos por

Horton e Carey, a qual foi adaptada e aproveitada no Brasil por C. A. Medina em Música

Popular e Comunicação, livro lançado em 1973 no qual afirma que a música que se fazia em

1957 era diametralmente oposta à que seria feita em 1969. Os pesquisadores traçam um

esquema das canções dos anos 1950, categorizadas como romances narrados, seguindo

praticamente o seguinte roteiro: 1. O prólogo; 2. O início do namoro; 3. A lua de mel; 4. O

aparecimento de forças impeditivas; 5. A solidão. (Cf. SANT’ANNA, 2013, p. 65)

A conclusão dos pesquisadores americanos leva a um confronto entre os dois períodos

citados: no primeiro momento, o amor “é um profundo envolvimento romântico” e, no outro,

é “reduzido à atração física” (Cf. SANT’ANNA, 2013, p. 65). Adaptando este esquema à

música popular brasileira, Medina constata, através de comparações entre diversos

compositores, que estatisticamente Roberto Carlos está ligado ao tratamento “romântico”,

enquanto Gilberto Gil, em 85% de suas composições, trata de assuntos variados, que não

sejam propriamente o amor e a paixão, mostrando uma preocupação essencial do compositor

com “o outro”. (Cf. SANT’ANNA, 2013, p. 65).

É a partir dessa multiplicidade de temas que o Tropicalismo vai procurar, num esforço

que já se observava a partir dos anos 1950, e perpassava inclusive pela bossa nova, atualizar

de forma expressiva e inovadora as propostas para a música popular brasileira.

Protagonistas desse processo, Caetano Veloso e Gal Costa, por exemplo, logo deixariam o

clima intimista e introspectivo característico da bossa nova para abraçarem, respectivamente,

a androginia em cores e significados e os arrojos vocálicos de Janis Joplin. Grupos vocais e

instrumentais, na linha de MPB4 e Quarteto em Cy, surgem também durante este período. O

maestro Isaac Karabtchevsky coloca sua orquestra sinfônica a serviço de shows de artistas

populares como Chico Buarque, enquanto o poeta Carlos Drummond de Andrade traduz

músicas dos Beatles para a revista Realidade. (Cf. SANT’ANNA, 2013, p. 67).

Diante desta numerosidade de estilos e referências, Affonso Romano de Sant’Anna

conclui sua análise afirmando que “ocorre com o Tropicalismo aquilo que teóricos como

Mikhail Bakhtin chamam de ‘carnavalização’. A pluralidade de estilos e vozes, o erudito e o

popular mesclados, o prosaico e o poético, tudo dentro de um efeito crítico de paródia.”

(SANT’ANNA, 2013, p. 67).

Page 65: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

65

O sociólogo e jornalista Gilberto Vasconcellos aponta para uma tendência

determinante que passou a se verificar na música popular brasileira, a partir do ano de 1962: o

engajamento político, cujas diretrizes fizeram com que surgisse o termo “música de protesto”.

Tal tendência se tornaria crescente devido a fatores como a crise do populismo e uma

crescente acomodação das produções musicais atreladas, naquele momento, ao palatável

direcionamento de mero entretenimento sob as rédeas da indústria cultural. (Cf.

VASCONCELLOS, 1977, p.40).

No entanto, Vasconcellos observa que tal direcionamento passou a incorrer no

equívoco de transformar as canções em meros veículos para “significados políticos”,

relegando para segundo plano um aspecto igualmente primordial, a concepção estética. Como

resultado desta equação, “a questão da função social da música popular acabou sendo

concebida de maneira unilateral e esquemática”. (VASCONCELLOS, 1977, p.42).

O Tropicalismo – especificamente em seu âmbito musical - surge, portanto, como uma

alternativa entre a polarização de uma postura formalista e o engajamento, dois termos que

procuravam nortear as produções artísticas de vanguarda que, de alguma forma, buscavam

também um significado social. Sua posição intermediária lançou um olhar mais lúcido e

realista, embora também cético e provocador para a realidade brasileira através de uma

reflexão metalinguística da cultura musical vigente e dos rumos sociopolíticos seguidos pelo

país até então.

A tropicália situa-se em dois planos: crítica à musicalidade do passado e

crítica ao miúdo engajamento da canção de protesto. Reveste-se, por outro

lado, de dupla determinação: surge como uma reação aos acontecimentos de

abril de 64, ao mesmo tempo que transcende o novo quadro político-

institucional implantado no país. Do ponto de vista cultural, ela significa a

primeira formulação, ao nível da MPB, da deglutição estética estrangeira e a

consequente superação do tradicional nacionalismo musical. [...] A produção

artística do grupo baiano resolveu, ou equacionou sob outro ângulo, os

principais obstáculos com que se defrontaram os anteriores movimentos

musicais no Brasil. (VASCONCELLOS, 1977, p. 45).

O jornalista afirma ainda, em seu artigo “Tropicalismo: a propósito de ‘Geleia Geral’”

que a grande contribuição do movimento foi ter “alargado o horizonte da música popular

brasileira” (VASCONCELLOS, 1977 p. 17). Comentando sobre a importância do legado

tropicalista, o autor vai adiante em suas considerações e pontua, de forma categórica:

Além de revelar criticamente a interpenetração cultural da

contemporaneidade, como resultado da tecnologia dos meios de

comunicação de massa, incentivou a pesquisa […] o rigor instrumental, e

afastou o decantado improviso em relação às letras das canções. E, last but

Page 66: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

66

no least, mostrou aos compositores que não faz mal a ninguém entrar em

contato com as poéticas contemporâneas. (VASCONCELLOS, 1977, p. 17,

grifos do autor).

O grande legado do Tropicalismo, portanto, foi unir de maneira equilibrada elementos

da contemporaneidade a elementos de movimentos precedentes. Assim como o próprio

Modernismo, o movimento Tropicalista propõe um momento de ruptura e rearticulação da

arte brasileira, revisando, consolidando e ampliando de certa forma, elementos como a poesia

concreta e as proposições modernistas de quatro décadas atrás, dentre elas, principalmente, a

forte presença das concepções estéticas preconizadas pela antropofagia de Oswald de

Andrade.

Este legado permanece vivo e suas propostas enraizaram-se na cultura popular. A

contundência da intervenção cultural e histórica do movimento Tropicalista é praticamente

um consenso, mesmo entre críticos que não se identificaram imediatamente com as propostas

difusas das inúmeras frentes artísticas que se correlacionavam e tinham em seu âmbito

musical a sua expressão de maior representatividade.

Autores do artigo “Tropicalismo: as Relíquias do Brasil em Debate”, o crítico e

ensaísta Marcos Napolitano, em parceria com a historiadora social Mariana Martins Villaça,

reavaliaram, 30 anos depois de sua eclosão, o contexto cultural e midiático em que o

movimento se deflagrou:

O Tropicalismo, logo depois de sua explosão inicial, transformou-se num

termo corrente da indústria cultural e da mídia. Em que pesem as polêmicas

geradas inicialmente (e não forma poucas), o Tropicalismo acabou

consagrado como ponto de clivagem ou ruptura, em diversos níveis:

comportamental, político-ideológico, estético. Ora apresentado como a face

brasileira da contracultura, ora apresentado como o ponto de convergência

das vanguardas artísticas mais radicais (como a Antropofagia modernista dos

anos 1920 e a Poesia Concreta dos anos 1950, passando pelos procedimentos

musicais da Bossa Nova), o Tropicalismo, seus heróis e “eventos

fundadores” passaram a ser amados e odiados com a mesma intensidade.

Atualmente mais amados do que odiados, diga-se. (NAPOLITANO –

VILLAÇA, 1998, p. 2)

O Tropicalismo revestiu-se de alegorias para que o Brasil pudesse redescobrir o

próprio Brasil. Rompeu com tradições passadistas e nacionalistas para promover um painel

onde se encontravam e se entrecruzavam inserções, citações, colagens, bricolagens, paródias,

carnavalizações e rupturas que se valeram tanto do suporte das tendências de vanguarda,

quanto das correntes da contracultura, ao mesmo tempo em que se propunha um movimento

também veiculado à indústria cultural. (Cf. NAPOLITANO – VILLAÇA, 1998, p. 2)

Page 67: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

67

Portanto, é fundamental ressaltar que o movimento Tropicalista não se tratou de um

modismo passageiro - embora efêmero na sua jornada cronológica, transcorrendo entre

outubro de 1967 e dezembro de 1968 - ou de uma peça esquecida e envelhecida de museu:

suas contribuições tornaram-se atemporais e colaboraram decisivamente para os rumos da

história da cultura popular do país.

3.3 Interlúdio: as novas concepções estéticas presentes no trabalho de Caetano Veloso

Nenhum artista ou movimento artístico surge do nada. Ao contrário, eles se

apresentam após uma somatória de construções e gestações de vivências, influências,

experiências e muitas vezes exaustivas pesquisas em diferentes áreas de atuação. A trajetória

do álbum Tropicália ou Panis Et Circencis e, por consequência de todo o movimento

Tropicalista, passa obrigatoriamente pela trajetória autoral do seu principal mentor e

idealizador: Caetano Veloso.

Lançado em 1967, Domingo, seu primeiro álbum revela suas primeiras composições,

bem como inaugura sua longa amizade e parceria artística com uma cantora que ainda

buscava seu lugar no cenário nacional: Gal Costa. As canções apontavam para uma

sonoridade suave, fortemente influenciada pela bossa nova e que pressupunham as ambições

artísticas iniciais do autor até aquele momento: “De minha parte tentava fazer uma poesia

como a de Lorca, partindo dos sambas de roda de Santo Amaro, tratando-as à maneira de

Caymmi revisto por João Gilberto”. (VELOSO apud PERRONE, 1988, p. 61).

Entretanto as inspirações e ambições de Caetano já vinham passando por profundas

reflexões e transformações quando canções de reconhecida beleza poética como “Um Dia”

“Coração Vagabundo” e “Avarandado” estavam sendo divulgadas. Sua inquietação ficara

latente, quando meses após a bem sucedida participação no III Festival da Record, discutindo

com o amigo e poeta Augusto de Campos sobre os novos rumos da arte e, sobretudo, da

música popular brasileira, confessou:

Acho que cheguei a gostar de cantar essas músicas porque minha inspiração

agora está tendendo para caminhos muito diferentes dos que segui até aqui

[...]. A minha inspiração não quer mais viver apenas da nostalgia de tempos

e lugares, ao contrário, quer incorporar essa saudade num um tempo futuro.

(VELOSO apud CAMPOS, 1974, p. 132)

É dessa forma, com os olhos voltados para o futuro, que Caetano prossegue em sua

pesquisa estética por meio de duas obras essenciais que curiosamente não estariam ligadas ao

Page 68: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

68

âmbito da música e sim às artes cênicas, mas que se tornariam decisivas para suas futuras

ideias tropicalistas: a adaptação teatral para a peça O Rei da Vela (1967), dirigida por José

Celso Martinez, interpretada pelo Grupo Oficina e escrita por Oswald de Andrade, em 1933 e

a obra contestadora e polêmica do diretor Glauber Rocha, um dos expoentes da corrente

vanguardista cinematográfica brasileira conhecida como Cinema Novo, intitulada Terra em

Transe (1967).

Caetano descreve a experiência de assistir à montagem da peça como um verdadeiro

“encontro” com a obra de Oswald de Andrade, a quem reconhece, juntamente ao

contemporâneo Mário de Andrade, como as duas principais lideranças intelectuais do

movimento Modernista (Cf. VELOSO, 1997, p. 241). A direção precisa de José Carlos

Martinez, as nuances e contundentes performances dos atores durante os três atos da peça e,

sobretudo, a representação mimética e parodista de uma sociedade burguesa, porém em franco

declínio, representado por Abelardo, um industrial do ramo de velas, representação de um

Brasil aristocrático às voltas com a crise financeira mundial de 1929, retratada com requintes

de decadência e ironia.

Fui ver o Rei da Vela a peça de Oswald de Andrade que o Oficina tirava de

ostracismo de trinta anos – cheio de grande expectativa. [...] – e, de fato,

aquela noite significou para mim muito mais um encontro com Oswald do

que com Zé Celso [...] A peça continha os elementos de deboche e a mirada

antropológica de Terra em Transe [...] Eu tinha escrito “Tropicália” havia

pouco tempo quando o Rei da Vela estreou. Assistir a essa peça representou

para mim a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no

Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular.

(VELOSO, 1997, p. 243-244)

O reflexo do impacto dessa obra se traduziria em Caetano em uma longa pesquisa do

ideário estético de Oswald de Andrade. Por influência e sugestão dos amigos e poetas Haroldo

e Augusto de Campos, Caetano mergulha em contato com as obras Manifestos Pau-Brasil de

1924 e principalmente o Manifesto Antropofágico, de 1928. (Cf. VELOSO, 1997, p. 246-247)

Ora, tal imersão iria se constituir em uma verdadeira revelação para o artista, uma vez que, as

propostas e ideias, principalmente de “devoração crítica”, das correntes artísticas

vanguardistas preconizadas por Oswald, através do lançamento do “mito da antropofagia”,

acabariam encontrando em Caetano um terreno sólido e fértil para que as inspirações

tropicalistas tomassem forma. Mais do que isso, as proposições estéticas oswaldianas se

consolidariam na obra do poeta-cantor baiano, juntamente com Gil, no início, e se estenderia

para todo um movimento em gestação.

Todavia nenhuma obra exerceu em Caetano um impacto tão profundo no campo

ideológico como o filme produzido e dirigido pelo cineasta Glauber Rocha. Terra em Transe

Page 69: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

69

lançado em 1967 é considerado um marco e um divisor de águas no cenário das produções

cinematográficas nacional pela grande contundência e capacidade de argumentação polêmica

e dessacralizadora proposta em seu roteiro. O cineasta baiano, que já vinha proporcionando

uma grande revisão crítica dos rumos do país através de obras seu livro: Revisão Crítica do

Cinema Brasileiro e o filme emblemático Deus e o Diabo na Terra do Sol. (Cf. VELOSO,

1997, p. 100), proporciona em Terra em Transe a metaforização dos rumos políticos do país

da primeira metade da década dos anos 1960, através dos comportamentos e ambições dos

personagens no fictício país de Eldorado.

Para Caetano, tal alegoria presente no direcionamento do enredo haveria de se tornar

um recurso valioso, ainda que provocasse imensa polêmica em alguns setores da esquerda

devido à crueza e acinte com que algumas cenas foram retratadas.

Se o Tropicalismo se deveu em algumas medidas a meus atos e minhas

ideias, temos então que considerar como deflagrador do movimento o

impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe de Glauber Rocha, em

minha temporada carioca de 66-7. Meu coração disparou na cena de

abertura, quando ao som do mesmo cântico de candomblé que já estava na

trilha sonora de Barravento – o primeiro longa-metragem de Glauber – se vê

numa tomada aérea do mar, aproximar-se a costa brasileira. E, à medida que

o filme seguia em frente, as imagens de grande força que se sucediam,

confirmavam a impressão de que aspectos inconscientes de nossa realidade

estavam à beira de se revelar. [...] O filme, naturalmente, não foi um sucesso

de bilheteria, mas provocou escândalo entre os intelectuais e artistas da

esquerda carioca. [...] Uma cena em particular chocava esse grupo de

espectadores: durante uma manifestação popular – um comício – um poeta

que está entre os que discursam, chamam para perto de si um dos que o

ouvem, operário sindicalizado, e, para mostrar o quanto despreparado ele

está para lutar pelos seus direitos, tapa-lhe violentamente a boca com a mão,

gritando para os demais assistentes (e para nós na sala de cinema): “Isto é o

Povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado”. [...] Vivi essa cena – e

as cenas de reação indignada que ela suscitou em rodas de bar – como o

núcleo de um grande acontecimento cujo nome breve que hoje posso lhe dar

não me ocorreria com tanta facilidade então (e por isso eu buscava mil

maneiras de dizê-lo para mim mesmo e para os outros); a morte do

populismo. Esta hecatombe eu estava preparado para enfrentá-la. E excitado

para examinar-lhe os fenômenos íntimos e antever-lhe as consequências.

Nada do que veio a se chamar “tropicalismo” teria tido lugar sem esse

acontecimento traumático. (VELOSO, 1997, p. 99; 105-106)

Tal depoimento revelador e contundente pressupõe novas e múltiplas perspectivas para

a discussão do que se convencionava chamar naquele instante de “realidade brasileira”. As

diversas cenas retratadas no filme propunham uma reflexão sobre a natureza contraditória da

sociedade brasileira, o que naturalmente não se harmonizava mais com as pretensões das

ideologias populistas.

Page 70: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

70

Após este instante de revelação, deste insight captado na sala de cinema, nas rodas de

bar e no contexto do cotidiano do país, Caetano parecia sentir-se preparado para protagonizar

uma guinada que se tornaria relevante e se configuraria como momento-chave para o

nascimento do movimento tropicalista. “A maneira inovadora de o cineasta baiano retratar o

país, simbólica e violenta, produziu o efeito de uma iluminação interior. Caetano encontrou

no filme de Glauber a chave para começar a encarar as ideias e questões estéticas que o

incomodavam havia tempo” (CALADO, 1997, p. 102).

Lançado no começo de 1968, Caetano Veloso, é recebido com surpresa por boa parte

do público e crítica. O crítico e poeta Augusto de Campos saldou o disco como “oswaldiano,

antropofágico e desmistificador” como também “o mais inventivo na música popular

brasileira desde João Gilberto”. (CAMPOS, 1974, p. 161). Todavia, ao contrário do grande

nome expoente da Bossa Nova, Caetano correlacionava significativamente diversos estilos

musicais de forma explícita e sobreposta. Nesse sentido, as canções apontavam para

diferentes direcionamentos que perpassavam pelo baião, pela Bossa Nova, pelos ritmos

tradicionais brasileiros, pela crescente influência da música pop internacional e até mesmo por

gêneros caribenhos. (Cf. PERRONE, 1988, p. 65).

O direcionamento apontado em “Alegria, Alegria” daria o norteamento trabalhado nas

faixas do álbum que também apresentava uma preocupação do autor em unir, através do seu

projeto, os elementos da música popular com a poética culta de vertente literária. As parcerias

nas composições revelam esta progressiva tendência: “Onde Andarás” é de autoria de Ferreira

Gullar, ao passo que “Anunciação”, tem o texto de autoria do poeta baiano Rogério Duarte.

José Carlos Capinam e Torquato Neto assinam, ao lado de Gil, a canção “Soy Loco por Ti

América”.

Esta última entoada de forma bilíngue (em português e espanhol), a letra versa sobre a

importância da união das correntes artísticas dos países da América Latina. Contendo citações

políticas, inclusive uma referência a Che Guevara (nos versos “El nombre del homem muerto

/ ya no se pode decirlo quién sabe?”)5 revelam, já naquele instante, uma preocupação

premente de artistas como Caetano para que o olhar das classes artísticas, intelectuais,

políticas e populares não ficasse voltado pura e simplesmente para os ventos que vinham da

Europa ou dos Estados Unidos. Segundo Charles Perrone, “a interpretação desta canção por

Caetano é um testemunho da amplidão das preocupações temáticas e estilísticas que este LP

propõe”. (PERRONE, 1988, p. 70)

5 Tradução livre do trecho em referência à morte de Che Guevara: “O nome do homem morto / já não se pode

dizê-lo, quem sabe?”.

Page 71: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

71

Não obstante toda esta múltipla gama de referências e resoluções, é em “Tropicália”

que podemos encontrar a síntese maior do que viria a se propor como movimento. Faixa de

abertura do álbum, ela se impõe como a música mais importante do trabalho. Plural, rica em

citações e referências, multifacetada em seu discurso, a canção propõe um recorte reflexivo e

autocrítico do cenário cultural brasileiro daquele instante.

É importante salientar que neste período, as músicas de Gil e Caetano se

caracterizariam por uma produção apurada e meticulosa que procurava aliar os arranjos às

proposições temáticas das canções. Dessa forma, sob os auspícios da produção valiosa de

Rogério Duprat, a introdução é fortemente marcada por “uma montagem de instrumentos de

percussão nativos brasileiros juntamente com instrumentos melódicos que imitam pássaros

selvagens”. (PERRONE, 1988. p. 69) O efeito de sentido alcançado aqui é nítido: evocar a

tradição das matas e florestas, especialmente no período pré-colonização.

Em seguida uma voz declama a carta de Pero Vaz de Caminha, o mesmo texto

referenciado no Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade, transcendendo neste instante a

simples reverência ou citação e incorporando os ideais antropofágicos defendidos pelo autor

modernista às estruturas músico-poéticas. Inicialmente tal trecho não fazia parte da canção.

Sua inserção ocorreu de forma inusitada e oportunista; em meio às sessões de gravação,

Dirceu, o baterista, recitou o trecho da Carta de Caminha em tom solene e parodista e, durante

as mixagens da faixa, o trecho foi incorporado à canção devido à alta carga de

contextualização que a letra de Caetano desenvolveria a seguir. A transposição é perfeita,

pois logo após este introito a atmosfera que se cria no ouvinte é de pura expectativa reforçada

pelo trecho orquestrado regido pelo maestro Júlio Medáglia.

Na sequência, Caetano destila os versos iniciais:

Sobre a cabeça os aviões

Sob os meus pés, os caminhões

Aponta contra os chapadões, meu nariz

Eu organizo o movimento

Eu oriento o carnaval

Eu inauguro o monumento

No planalto central do país

Viva a bossa, sa, sa

Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça

O monumento é de papel crepom e prata

Os olhos verdes da mulata

A cabeleira esconde atrás da verde mata

Page 72: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

72

O luar do sertão

O monumento não tem porta

A entrada é uma rua antiga,

Estreita e torta

E no joelho uma criança sorridente,

Feia e morta,

Estende a mão

Viva a mata, ta, ta

Viva a mulata, ta, ta, ta, ta

[...]

Viva Maria, ia, ia

Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia

[...]

Viva Iracema, ma, ma

Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma

Domingo é o fino-da-bossa

Segunda-feira está na fossa

Terça-feira vai à roça

Porém, o monumento

É bem moderno

Não disse nada do modelo

Do meu terno

Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Viva a banda, da, da

Carmen Miranda, da, da, da da6.

Com seus recortes cinematográficos (“aviões”, “caminhões”, “chapadões”) logo nos

versos da estrofe inicial, Caetano estabelece em tom convocatório e impositivo em primeira

pessoa: “Eu organizo o movimento/ eu oriento o carnaval”. A canção-manifesto se desdobra

num andamento rítmico lembrando um baião. A carnavalização proposta na segunda estrofe

nunca se realiza por completo, pois os elementos se alternam entre o moderno e o arcaico,

sendo que este último é carregado de visões que beiram o jocoso, o inusitado e o grotesco. O

“monumento no planalto central do país” configura-se em uma clara alusão à Brasília, capital

federal inaugurada há oito anos e que se tornara o mote político para um país que procurava se

firmar nas raias do desenvolvimentismo.

A canção-manifesto de Caetano “Tropicália” […] é o exemplo mais notável

de representação alegórica na música brasileira. Como alegoria nacional, a

música evidencia tanto o amargo desespero do filme de Glauber como a

6 Canção gravada no álbum Caetano Veloso – 1968, Philips Records / Universal Music.

Page 73: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

73

exuberância carnavalesca da pintura de Rodrigues7. A letra de “Tropicália”

forma uma montagem fragmentada de eventos, emblemas, ditados populares

e citações musicais. […] “Tropicália” alude à trajetória de Brasília de um

símbolo utópico de progresso nacional à alegoria antiutópica do fracasso de

uma modernidade democrática no Brasil. […] Na música, Brasília é

apresentada como um “monumento” feito de “papel crepom e prata”,

sugerindo que a brilhante grandiosidade do exterior oculta uma estrutura

frágil, da mesma forma como a triunfante inauguração da capital futurista

eclipsou um contexto mais amplo de subdesenvolvimento e igualdade social.

(DUNN, 2009, p. 111)

Quando a composição avança para o refrão, “explode” em uma contraditória euforia

ufanista composta de cinco pares de “viva” cada um enfocando um aspecto da realidade

cultural brasileira. (Cf. PERRONE, 1988, p. 68) Neste sentido, a Bossa Nova representando a

modernização e sofisticação da música popular brasileira é contraposta à palhoça, habitação

rústica, típica de áreas com climas tropicais, moradias de camponeses. “Iracema”, nome

indígena imortalizado pelo romance de José de Alencar, é contraposto a outro nome de

origem indígena “Ipanema”, referência ao famoso bairro, por muito tempo símbolo da

sofisticação da sociedade carioca. Em uma das estrofes Caetano consegue conjugar com

destreza estilística os conceitos típicos que revelam os inúmeros paradoxos que marcam a

estrutura da canção: “O Fino da Bossa” referente ao prestigioso programa televisivo, a “fossa”

estado moral característico das segundas-feiras e a “roça” estabelecendo mais uma vez a

profunda dialética entre o espaço urbano com suas tecnologias inseridas na cultura de massa e

o espaço rural com suas tradições ainda características da cultura popular.

Apesar dos “acordes dissonantes” ainda há espaço para a reverência a Roberto Carlos

e à Jovem Guarda no verso “Que tudo mais vá pro inferno, meu bem”. O último par de “viva”

reverencia “A Banda” de Chico Buarque, contrapondo a singeleza das típicas bandinhas de

coreto do interior, através da evocação da pureza do amor, com a exuberância, as cores e toda

expressividade do ícone Carmen Miranda, uma das primeiras artistas a se tornar, no Brasil,

precursora da arte como modelo para exportação, carnavalizando desta forma o clímax, o

ápice da canção.

Fica evidente nos versos de Caetano uma conscientização muito íntima das

transformações decorrentes de um processo de transformações que se desenrolavam no país,

notadamente no início da década de 1960. Tais mudanças não apenas provocavam um afluxo

de novas perspectivas e direcionamentos em todos os segmentos (culturais, sociais,

econômicos), como também causavam, segundo o pesquisador Carlos Eduardo Pires, uma

7 Christopher Dunn refere-se às obras do pintor e ilustrador gaúcho Glauco Otávio Castilho Rodrigues. Para

maiores informações, consulte http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1529/glauco-rodrigues. Acesso em 6

fev 2018.

Page 74: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

74

espécie de subjetividade da adequação do eu lírico da canção enquanto sujeito de uma

modernidade instaurada.

Uma nova e estranha subjetividade, se é que dá para chamar assim, é

fundada no processo da canção que figura a modernização que o Brasil

passou no início dos anos 50 ao fim dos anos 60. A televisão marca esse

momento terminal, mas desta vez pelo programa concorrente ao Fino da

Bossa, o Jovem Guarda, responsável pelos influxos internacionais que

aquele combatia. O refrão-festa saúda por último Carmen Miranda,

personalidade que ganhou a vida no exterior vendendo uma imagem do

Brasil exótico para exportação e a banda, referência que cruza oficialismo

militar e a música de Chico Buarque, vencedora do festival, anos antes.

(PIRES, 2011, p. 56)

“Tropicália” se configura dessa forma como um marco de um artista que trafegava

com a confiança e desenvoltura de quem buscava a amplidão artística no cenário musical

brasileiro. Se por um lado, “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque” surpreenderam pelas

novas abordagens estéticas e poéticas, “Tropicália” avança para a consolidação de novas

propostas em um sinal claro de que um momento extremamente novo e relevante para a

cultura brasileira acabara de chegar.

“Tropicália” é música inaugural, constitui a matriz estética do movimento.

Pressupõe um projeto de intervenção cultural e um modo de construção que

são de ruptura. Em linguagem transparente, configura um painel histórico

que resulta em metaforização do Brasil. Desenha uma situação contraditória,

um contexto em desarticulação, presentificando as indefinições do país, em

que indiferenciadamente convivem os traços mais arcaicos e os mais

modernos. Com uma operação de bricolagem, o Brasil emerge da montagem

sincrônica dos fatos, eventos citações, jargões e emblemas, resíduos,

fragmentos. Resulta uma imagem mítica do Brasil, grotescamente

monumentalizada, que emite “acordes dissonantes”, num movimento

indefinido, pois além dos fatos citados, outros podem ser incluídos.

(FAVARETTO, 1995, p. 64)

O afluxo crescente dessas referências fragmentadas e correlacionadas se interpunha

em meio ao cenário social e político efervescente da década, fazendo emergir desafios

constantes. O Tropicalismo estava se estabelecendo no cenário cultural brasileiro,

impulsionado a exemplo de outros movimentos artísticos, pela inédita exposição nos meios de

comunicação de massa.

Entre as obras deflagradoras já mencionadas anteriormente nesta pesquisa, uma

haveria de se destacar como uma espécie de manifesto dos princípios tropicalistas. Partindo

da premissa de que todo movimento artístico requer suas intenções manifestarias, Caetano

talvez intuísse que esta tarefa deveria ficar a cargo da música popular. Nascia assim a ideia de

Page 75: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

75

um álbum-manifesto. Começava a se configurar o que seria o álbum Tropicália ou Panis Et

Circensis.

3.4 Tropicália ou Panis Et Circencis – contextualização e repercussões

Conforme já abordado nesta pesquisa, a década de 1960 encontrava-se profundamente

mergulhada em uma efervescência social, cultural, contracultural e política. Justamente por

isso, tornou-se um período marcado por inúmeras produções musicais que se multiplicavam

em profusões de estilos, fosse no cenário nacional ou internacional. Para suprema

desconfiança dos nacionalistas passadistas, Caetano, Gil e amigos seguiam os ventos da

contracultura mantendo os ouvidos totalmente livres de quaisquer amarras. E procuravam, no

melhor estilo oswaldiano, ouvir e deglutir criticamente todas as novidades que lhes eram

apresentadas até então, principalmente as do cenário pop anglo-americano:

A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva.

Estávamos comendo os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentações

contra as atitudes defensivas dos nacionalistas encontravam aqui uma

formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza

e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei a cada passo repensar os

termos que a adotamos. […] Além de Mahalia Jackson e Jorge Ben, nós

continuávamos ouvindo os Beatles e passamos a ouvir Mothers of Invention

(um favorito de Agrippino) e James Brown e John Lee Hooker e Pink Floyd

e The Doors e o que fosse, mas não tínhamos deixado de ouvir e reouvir

João Gilberto. […] Eu me impressionava com a modernidade de Hendrix

[…]. Janis Joplin era a garota branca negra, a garota da nossa geração que

sintetizava os Estados Unidos da liberdade, da aventura e da rebeldia. Bob

Dylan não era um fenômeno comercial como os Beatles, mas de certa forma

era mais conhecido do que os Rolling Stones no Brasil, quando essas

novidades nos foram apresentadas. (VELOSO, 1997, p. 247; 263; 270-271)

E, embora toda esta multiplicidade insurgisse como uma força tremenda de influências

e novas possibilidades, o fato é que nenhuma delas jamais faria tanto Gil quanto Caetano

esquecerem ou abdicarem das convicções e das formações musicais, as quais estavam

profundamente arraigados, as tradições regionalistas nordestinas, as tradições folclóricas, os

fundamentos da Bossa Nova, o baião, o samba, Dorival Caymmi, João Gilberto, Orlando

Silva, Vicente Celestino, Lupicínio Rodrigues, Luís Gonzaga, Pixinguinha, Carmen Miranda.

Tal hibridismo de referências e novas associações tornava-se a cada instante um amálgama

criativo para as composições que viriam a seguir.

Tal multiplicidade de sentidos e direcionamentos apresentada por Caetano, Gil e seus

amigos colaboradores, longe de proporcionar ambiguidades e diluição, colabora para um

Page 76: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

76

instante de reflexão sobre a própria ressignificação de um espírito construtor de novas

identidades, a partir do momento em que o sujeito parte da reestruturação da sua própria

imagem, enquanto assimila as influências, reestruturando o sentido da imagem do outro.

Dessa forma, a proposta antropofágica conforme adotada por seus

contemporâneos tropicalistas é cuidadosa e criteriosa em seu fazer-se,

tornando-a por uma identificação que vai além da mimese pura, valendo-se

de sua diferença como elemento construtor e agregador – e essa diferença é

ao mesmo tempo motriz e produto das formações identitárias e de

singularidade dos sujeitos, [...]. Porém, nesse gesto, os sujeitos encontram-se

em uma situação de dupla ressignificação, uma vez que ao ressignificar a si

mesmo, recontextualiza a imagem do outro que lhe seja posta em contraste,

de modo que assim partimos para o segundo ponto mencionado, o de como

os tropicalistas deram evidência a uma possível ressignificação de seus

precursores e pressupostos. (SILVEIRA, 2010, p. 44)

Todavia para este novo projeto, Caetano intuiu que era preciso somar forças e ideias.

A parceria com Gil já se tornara sólida e estabelecida, e as recentes incursões fonográficas de

ambos com músicos e produtores despertou em Caetano a possibilidade da formação de um

coletivo para que se configurasse a materialização das próximas composições.

Suponho que fui eu a decidir que devíamos fazer um disco-manifesto, um

disco coletivo que explicitasse o caráter de movimento do nosso trabalho. De

todo modo uma vez lançada a ideia, assumi logo a liderança. Conversei com

Gil, com Torquato, com Gal, com Bethânia, com Duprat. […] Eu acreditava

– e não creio que estivesse errado – que a feitura do disco coletivo seria uma

excelente oportunidade de somar as forças dos componentes do grupo para

atingir resultados mais precisos. (VELOSO, 1997, p. 272, 273)

O caminho natural para a escolha dos integrantes passaria naturalmente pelas

intérpretes mais próximas: Gal Costa e Maria Bethânia. Porém a irmã do cantor

surpreendentemente declinou do convite alegando razões artísticas incompatíveis para não

participar do projeto. Os Mutantes, banda de rock paulistana, integrada pelos ainda

adolescentes irmãos Arnaldo Baptista (baixo, teclados e vocais), Sérgio Baptista (guitarras e

vocais) e por Rita Lee (vocais) tiveram sua participação extremamente apreciada por Caetano,

tanto no LP de estreia de Gil, como na performance do Festival da Canção da TV Record.

De sua Bahia natal, Caetano trouxe um músico que vinha se destacando não apenas

pela formação musical acadêmica, mas também por sua grande inventividade e criatividade e

que se notabilizaria mais tarde como um dos mais importantes expoentes da vanguarda

tropicalista: Tom Zé. Para o lugar de Bethânia, Nara Leão foi o nome que lembraria o quanto

a Bossa Nova ainda se tornava uma escola extremamente influente para a estética sonora

tropicalista. Nas composições, as parcerias continuariam a cargo dos poetas escritores

Torquato Neto e José Carlos Capinam. As contribuições valiosas de Rogério Duprat na

Page 77: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

77

produção e direção do projeto seriam determinantes, bem como as colaborações nos arranjos a

cargo do maestro erudito Júlio Medáglia.8

Gravado em maio e lançado em julho de 1968, Tropicália ou Panis Et Circencis

revela-se, dentro de uma concepção vanguardista, como uma ruptura com o que se fazia

musicalmente no Brasil, apresentando, numa sucessão de doze canções, de forma ininterrupta,

uma estruturação polifônica e polissêmica, bem característica do pluralismo tropicalista.

Ideologicamente, o álbum pode ser dividido em vários blocos temáticos. Possui canções de

cunho panfletário e urbanista, como “Misererere Nobis” (Gilberto Gil e Capinam), que abre o

disco na voz de Gilberto Gil, marcada por um solo de órgão e tilintar de sinos. Passa pelos

tons ufanistas e irônicos de “Parque Industrial” (Tom Zé), interpretada por Gilberto Gil, Gal

Costa e Caetano Veloso, e “Geleia Geral” (Torquato Neto e Gilberto Gil), também na

interpretação de Gil.

Aborda temas líricos e dramas existenciais imanentes àquela década marcada por

revoluções ideológicas e comportamentais, como “Baby”, de Caetano, numa interpretação

precisa de Gal Costa; “Mamãe Coragem” (Torquato Neto e Caetano Veloso), novamente na

voz de Gal; e pela mirada psicodélica em “Panis et Circenses”, composta por Gil e Caetano

para a performance do grupo Os Mutantes. Caetano regrava “Coração Materno”, de Vicente

Celestino, cuja letra traça um intrigante painel do Brasil rural dos anos 1950.

O sincretismo cultural e religioso marca presença em “Caravelas” (Las Tres

Carabelas), canção caribenha popular, adaptada por João de Barro, na qual Gil e Caetano se

revezam entre o português e o espanhol; no religioso “Hino ao Senhor do Bonfim” (Petion de

Vilar e João Antônio Wanderley), perpassando pela poesia concreta e igualmente sincrética de

“Bat Macumba”. Caetano e Gil ainda compõem o bolero “Lindoneia” para a interpretação

educada e contida de Nara Leão. Enquanto o próprio Caetano encarrega-se, através da

construção metafórica de várias imagens panorâmicas, de traçar o cenário para a engajada

“Enquanto Seu Lobo Não Vem”.

Dessa forma, cada faixa do álbum torna-se um recorte com foco em aspectos culturais

do país, ao mesmo tempo em que mantêm uma perspectiva dialógica entre si ao mesmo tempo

em que se constata não haver uma delimitação de temas presos às canções. O lirismo e

romantismo de “Baby”, por exemplo, não exclui a visão crítica dos modelos consumistas cada

vez mais onipresentes, enquanto que “Parque Industrial”, contém simultaneamente pesadas

críticas aos estereótipos de consumo e industrialização, carregados de deboche e ironia

8 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018.

Page 78: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

78

explícitos (Cf. FAVARETTO, 1995, p.84). A Lindoneia “perdida nas ruas” encontra uma

similaridade de emoções em relação ao drama existencial vivido pelo eu lírico de “Mamãe

Coragem”. As imagens surrealistas evocadas em “Panis Et Circenses” dialogam com as

metáforas utilizadas por Caetano em “Enquanto Seu Lobo Não Vem”, ambas questionando o

estado vigente do momento sociopolítico.

Segundo Celso Favaretto, o álbum cumpre a função de atualizar “o projeto estético e o

exercício de linguagem tropicalista” (FAVARETTO, 1995 p. 78), ou seja, é um projeto que

propõe, através de uma trajetória crítica, a desconstrução da música brasileira até então

centralizada na mentalidade nacionalista e nos fundamentos da bossa nova, proporcionando

uma volta ao seu início dentro de uma visão carnavalizada.

Sua repercussão inicial, obviamente, não deixou de provocar estranheza ao público e à

crítica, que não receberam exatamente de maneira positiva, aquelas canções e todas aquelas

propostas que traziam uma intrigante representação mimética da realidade.

Em reportagem publicada por Arlette Neves na revista Cruzeiro, de 20 de abril de

1968, o jornalista e crítico musical Nelson Motta afirmava que “o tropicalismo é, por

enquanto, apenas uma série de ideias esparsas que anota certas tendências e determinada visão

da realidade brasileira”. (NEVES apud LONTRA, 2000, p. 32) Ainda segundo o crítico, o

Tropicalismo “não tem exatamente uma ideologia ou uma estética”. (NEVES apud LONTRA,

2000, p. 32) Mas a visão de Nelson Motta é contraposta, na própria reportagem, à do

professor Maurício Vinhas de Queirós, sociólogo e pesquisador do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais, que afirma que o movimento pode ser considerado um “nacionalismo de

epiderme consentido, um tanto para inglês ver. Uma espécie de saudosismo disfarçado dos

tempos da senzala”. (NEVES apud LONTRA, 2000, p. 32).

Já a historiadora Hilda Lontra lembra que, na época em que o Tropicalismo surgiu,

“não foram poucas as pessoas que o viram como uma atitude imatura, ação e produto de um

modismo que a nada conduziria, uma efervescência passageira” 9. (LONTRA, 2000, p. 32) E,

para subsidiar esta afirmação, ela transcreve os depoimentos de vários críticos especializados

em jornais e revistas da época, como Dinah Silveira de Queiroz, que em 1968 dizia que “Esta

tropicália que anda por aí importada da Europa, não é nada para nós. […] Não se aperceberam

de uma realidade dramática; estão caricaturando sua própria condição” (QUEIROZ apud

LONTRA, 2000, p. 32) ou a manchete de uma matéria publicada n’O Estado de São Paulo

9 Depoimento feito à época por Fernando Gabeira que, décadas após o surgimento do Tropicalismo, chegou a

pedir publicamente desculpas por não ter captado de imediato, o avanço poético político das mensagens

tropicalistas. (Cf. LONTRA, 2000, p. 32).

Page 79: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

79

em abril do mesmo ano, que afirmava: “Tropicalismo não convence”. (LONTRA, 2000, p.

32)

Dentre todas as críticas ao movimento, talvez as mais contundentes tenham partido do

ensaísta Augusto Boal. Em sua obra “Que pensa você da arte de esquerda”, o dramaturgo,

citado por Lontra, tece críticas ácidas ao movimento, sobretudo acerca do seu desempenho no

segmento musical.

Augusto Boal [...] caracterizou o Tropicalismo como romântico: agride o

predicado e não o sujeito; homeopático, por endossar o objeto da crítica,

inarticulado, por não haver conseguido coordenar qualquer proposta

sistemática, tímido e gentil, pois teria apenas satisfeito os burgueses e um

fenômeno de importação – cópia dos Beatles. (LONTRA, 2000 p. 33, grifos

da autora).

Talvez seja da natureza de qualquer novo movimento artístico causar uma certa

estranheza inicial na ordem natural dos eventos. Ainda que a crítica especializada se revelasse

um tanto cética e despreparada para compreender aquele instante, o fato é que as maiores

virtudes do movimento, suas direções múltiplas e plurissignificativas, também se constituíam

entraves refutáveis para a compreensão de suas grandes proposições. Trata-se, então, “de um

movimento musical que não é caracterizado por um gênero”. (SILVEIRA, 2010, p. 20)

Tom Zé, em entrevista ao site Imprensa Cantada, corrobora com estas prerrogativas

críticas a respeito do Tropicalismo através do seguinte depoimento:

Não chega a ser sequer um movimento, um movimento estético

estruturalmente radical como a Bossa Nova. Esta sim, criou realmente um

gênero. […] O Tropicalismo nem constituiu um gênero próprio. Abriu as

portas para as outras assimilações. Muito bem. Renovou o texto das canções.

Estabeleceu arsenal comparável ao de Satie, ou seja, utilizou a composição

de peças para exercer atividade crítica. (ZÉ apud SILVEIRA, 2010, p. 21).

No entanto, ainda que o Tropicalismo tenha existido enquanto movimento atuante e

relevante por um período temporal fugaz – já em dezembro daquele ano, sob forte repressão

do regime militar, através da implantação do decreto AI-5, Caetano declararia em um

programa de TV o fim do movimento10 – a temporalidade da sua delimitação não o impediria

de tornar inegável e irrefutável sua enorme contribuição e proposta de atualização e renovação

da música popular brasileira.

Suas influências e seu legado – especificando aqui apenas no âmbito musical - se

fariam perceber nítidos nas décadas posteriores e no trabalho de diferentes e futuras gerações.

O Tropicalismo cumpria sua missão enquanto movimento de vanguarda atualizando e

10 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - o álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018.

Page 80: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

80

renovando a arte brasileira em várias frentes. Tropicália ou Panis Et Circencis foi a trilha

sonora, o legado maior de sua imensa contribuição.

Page 81: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

81

4 TROPICÁLIA OU PANIS ET CIRCENSIS – MANIFESTO TROPICALISTA?

Gravado em maio e lançado em julho de 1968, Tropicália ou Panis Et Circencis logo

adquiriu status de álbum manifesto do movimento tropicalista, título que o acompanha até os

dias de hoje, quase cinquenta anos após seu lançamento e que se constitui, inclusive, na razão

maior desta pesquisa de dissertação. Nesse sentido, para que se prossiga nas investigações das

implicações deste álbum como uma obra manifestária, é necessário, neste instante, que

concentremos o foco no gênero que se tornou um símbolo de mudanças, ruptura,

descobrimentos e novos direcionamentos para as ambições políticas e artísticas da história da

humanidade, o manifesto.

Quais são os objetivos de um manifesto? Qual é a sua finalidade? Que elementos

fazem parte de sua estrutura? Qual é a sua relação com a arte contemporânea? São perguntas

que nos vêm imediatamente à tona, quando se trata de investigar um objeto de pesquisa sob o

prisma de um gênero ao mesmo tempo tão representativo para a modernidade, mas nem

sempre perceptível de se identificar nas práticas contemporâneas.

4.1 O gênero manifesto e suas implicações na arte moderna

A palavra manifesto, morfológica e etimologicamente, é formada por nominação e

adjetivação: vem do latim manifestus, de manus (mão), e o adjetivo festus, ligado à raiz

fendere. Dessa forma o vocábulo assume literalmente a denotação semântica de “tomado pela

mão” ou “palpável”. (BORTULUCCE, 2015, p. 6) Porém, Luca Somigli, na sua obra:

Legitimando o Artista: Escrita de Manifesto e Modernismo Europeu (1885 – 1915), constata

que a palavra também assume conotações metafóricas, pressupondo dois significados: “torna-

se um sinônimo para ‘evidente’, ‘óbvio’, como em ‘destino manifesto’ […] – e também

implica no sentido de uma descoberta ou desvelamento”. (SOMIGLI apud BORTULUCCE,

2015, p. 6).

A substantivação da palavra manifesto se consolidou mais recentemente em sua

morfologia adjetivada, era usada em diferentes situações como termo empregado para

legitimar produtos trazidos da alfândega, um dos seus significados mais antigos, passando por

uma declaração de princípios ligada, por exemplo, principalmente a partir do século XVII, a

códigos de cavalaria e que visavam a uma “proclamação onde um partido ou um personagem

Page 82: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

82

de relevância social justifica sua conduta, defendendo-se das palavras de um oponente ou

adversário”. (Cf. BORTULUCCE, 2015, p. 6)

A configuração do manifesto como texto surgiu na França do século XVI e passou a

ser utilizada por políticos com a intencionalidade de tornar público seus princípios, bem como

esclarecer acerca de seus procedimentos, e condutas. De acordo com Vanessa Bortulucce, a

partir daí, a expansão da palavra manifesto em diversos países tornou-se inevitável,

ultrapassando o uso para simples denotações de termos locais:

No século XVII, o manifesto disseminou-se em outras línguas, como veículo

para declarações de guerra e demais atos políticos oficiais, tornando-se um

gênero discursivo pertencente ao campo pragmático da política. Neste

mesmo período, o termo adquiriu significado mais amplo de “declaração ou

proclamação pública” que é o que nos interessa. Do século XVII até meados

do século XVIII, o manifesto situou-se no terreno específico da política,

como uma declaração ou proclamação feita por líderes, por um Estado, ou

por um partido. Isso fez com que ele também pudesse ser usado como um

instrumento de legitimação política. (BORTULUCCE, 2015, p. 6)

Entretanto as proposições declaradas nos manifestos eram unilaterais, uma via de mão

única que só cabiam as declarações de determinadas autoridades. Este panorama mudou. Em

decorrência dos constantes conflitos sociais e religiosos da época, os manifestos passaram a

ser redigidos também por civis, anônimos ou não, ganhando assim uma ampliação e

ressignificação de sua práxis.

Tal mudança se tornaria fundamental, uma vez que, com a desobrigação de um

emissor autoritário que determinasse seus princípios absolutos, o manifesto se coloca como

campo para vários discursos concorrentes. Dessa forma, o período da Revolução Francesa, foi

um momento determinante para legitimar o manifesto como um documento “revolucionário”,

transcendendo a sua forma de documento de apoio às práticas políticas, para constituir-se –

ele próprio – como ato revolucionário em si. (Cf. BORTULUCCE, 2015, p. 7)

Entretanto, foi no ano de 1848 que o gênero ganharia notoriedade através de um

documento que se tornaria um verdadeiro marco histórico devido à importância de toda sua

estrutura de redação, obedecida de forma pragmática e organizacional: o Manifesto do Partido

Comunista, redigido por Marx e Engels, em Bruxelas na Bélgica. Ora, tal documento se

constituiria em um verdadeiro arquétipo do gênero manifesto a ser utilizado devido ao seu

apuro meticuloso na análise e problematização e diagnóstico dos problemas, para em seguida

divulgar as possíveis proposições e resoluções. Para Marshall Berman, este texto é um dos

documentos mais significativos da contemporaneidade; “O Manifesto [do Partido Comunista]

é notável pelo seu poder imaginativo, sua captação e expressão das possibilidades luminosas e

Page 83: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

83

ameaçadoras que impregnam a vida moderna”. Berman, inclusive, vai além, classificando-o

como a ‘primeira grande obra modernista’”. (BERMAN, 1986, p. 99-100).

Já a inserção do manifesto no campo das artes deu-se por meio das vanguardas

artísticas. Interessante notar que, dentro deste contexto, a palavra vanguarda ficaria conhecida

por razões puramente estéticas, uma vez que os artistas passariam a ser reconhecidos como

aqueles que estariam na “vanguarda da revolução”, ou seja, os responsáveis, através de sua

arte por antever ou antecipar novas tendências dada a prerrogativa de “possuírem toda sorte

de arma à sua disposição para disseminar as ideias entre os homens, bem como influenciá-los

de modo contundente”. (BORTULUCCE, 2015, p. 8)

A partir deste período em que o termo vanguarda passaria a integrar os movimentos

artísticos, tornou-se necessária a transposição da natureza documental do manifesto para um

caráter mais estético. Entretanto, indo além deste caráter estético, o manifesto passou a se

tornar um instrumento fundamental para o próprio discurso vanguardista, adquirindo – ele

próprio – as características de um gênero discursivo que se notabilizaria pelos próprios

elementos precursores presentes na concepção de vanguarda. Em síntese: um manifesto

passaria também a ser uma experiência estética de vanguarda em si. (Cf. BORTULUCCE,

2015, p. 8)

Esta nova concepção do manifesto integrado à noção de vanguarda impregnou

inevitavelmente o sentido das produções artísticas, incentivando as experiências, as

inovações, a ousadia pela busca de novas resoluções, tendo como centro dessas principais

divulgações a Europa do século XIX.

Os manifestos invadem a obra de arte e são, por sua vez, absorvidos e

assimilados por elas. O resultado é aquilo que chamo de “manifesto-arte”,

uma arte formulada no manifesto, agressiva ao invés de introvertida: sonora

ao invés de reticente; coletiva ao invés de individual. O modernismo radical

e a arte de vanguarda devem portanto ser vistos como uma arte baseada não

nas doutrinas e teorias proclamadas nos manifestos, mas na influência formal

do manifesto, sua poesia na arte. (PUCHNER apud BORTULUCCE, 2015,

p. 8).

A transposição do século XIX para o século XX é marcada, sobretudo, por

transformações determinantes na economia através do impulso do sistema capitalista, do

desenvolvimento veloz da ciência e das novas tecnologias, alavancadas majoritariamente

pelos ventos da revolução industrial. Todos esses elementos foram fortemente influenciados

por uma filosofia herdeira do positivismo que acreditava que seria possível ao homem

dominar o mundo e a si mesmo. (Cf. BORTULUCCE, 2015, p. 8).

Page 84: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

84

Todas essas transformações passam a fomentar reflexões sobre o papel do próprio

artista. Inserido em uma sociedade que passa a prestigiar cada vez mais a ciência e o poder

econômico, a sensação de “não pertencimento” do seu lugar, da perda da “aura”, da

inadequação do artista perante a nova realidade imersa na confusão urbana e no caos é

abordada, de forma alegórica, pelo poeta francês Baudelaire em sua obra O pintor da vida

moderna, publicada em 1863, e resumida por Bortulucce, a partir das considerações de

Baudelaire, como a “perda da função social do artista na modernidade, o artista e a obra

ambos imersos na multidão e no anonimato, passam a integrar a lógica do mercado

capitalista” (BORTULUCCE, 2015, p. 9).

O resultado de tais transformações passa a nortear os diversos direcionamentos

tomados pelos principais movimentos artísticos da época. O futurismo italiano tenderá a uma

valorização da inovação tecnológica como símbolo da modernidade, a inclusão de

neologismos técnicos e o culto à máquina. Assim como o futurismo italiano, o Dadaísmo

promoverá a introdução de uma série de neologismos, além de uma ressemantização da língua

concebida, embora em uma sintaxe mais simplificada. Por outro lado, o Surrealismo proporá

uma resolução baseada na legitimação cultural do inconsciente, do culto ao infantil, da

hegemonia da poesia como gênero da vida e, acima de qualquer gênero, proporá através de

seus manifestos uma releitura do sistema literário. (Cf. GELADO, 2006, p. 199)

Viviane Gelado constata que as proposições de movimentos como o Futurismo foram

fundamentais para a pesquisa e formulação de manifestos de autores latino-americanos,

particularmente os brasileiros Oswald de Andrade e Mário de Andrade. Entretanto, observa

ela, os autores receberam tais influências e as trabalharam de maneira totalmente distinta.

Enquanto Oswald empregava às influências as suas “deglutições críticas”, Mário de Andrade

se aplicava a um estudo sistemático e meticuloso de suas implicações.

No entanto, embora vários movimentos de vanguarda na América Latina

incorporassem slogans futuristas em seus manifestos, não aconteceu o

mesmo com o uso das fórmulas. O questionamento das “complicações

lógicas” efetuou-se através do uso de uma sintaxe simples, baseada em

apenas sintagmas nominais ou estruturas frasais simples. Os manifestos

assinados por Oswald de Andrade são um exemplo contundente desta(s)

ele(i)ção. [...] Em particular, em Oswald de Andrade, a simplificação

sintática pode interpretar-se como significativa de um questionamento do

discurso lógico e bacharelesco enquanto trama de argumentos que encobrem

razões e relações coloniais de apropriação. Contudo houve sim um poeta

brasileiro que usou, embora raramente, este tipo de formulação: foi ele, além

do mais, quem se ocupou de estudar mais seriamente os movimentos de

renovação estética: Mário de Andrade e com uma grande preocupação: o

primitivismo. (GELADO, 2006, p. 204)

Page 85: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

85

Portanto, a partir desta contextualização histórica, o manifesto também haveria de se

tornar uma ferramenta para a legitimação da obra do artista, para a validação de produções

que determinassem o caráter autônomo do seu autor, ao mesmo tempo em que procurassem

reestabelecer a sua relação com o público. Para isto, constata Bortulucce, “o caráter ambíguo

do manifesto cria uma ponte entre o artista e a sociedade, pois a arte, uma vez autônoma das

várias funções sociais, distancia-se da experiência vivida”. (BORTULUCCE, 2015, p. 11)

A questão que se formularia a seguir é como o artista, de alguma forma, conseguiria

abolir o abismo existente entre o caráter estético e a demanda social de sua obra, sem com

isso renunciar à sua autonomia e se prostrar a mercê dos ventos do mercado mercantilista?

Um produto literário, por exemplo, procura atender uma condição dupla: a aprovação de boa

parte da crítica e do público resulta em apreciação estética, porém simultaneamente torna-se

objeto de permuta e submete-se às leis do mercado de oferta e de procura. (Cf.

BORTULUCCE, 2015, p. 13)

Exatamente por ocasião desta indefinição dialógica que o manifesto irá se configurar

como um dos textos mais representativos e significativos para o cenário artístico, justamente

por possibilitar a visibilidade de determinado grupo, aumentando assim a capacidade de

divulgação de sua obra, retirando-a de seu “nicho” ou confinamento, conforme observa

Somigli:

A emergência do manifesto estético do século XIX está intimamente

relacionada com as transformações no mercado artístico e literário que fez

com que escritores e artistas passassem a depender de um novo público. A

obra de arte não é mais capaz de mediar sua própria mensagem ou intenção,

estando em necessidade de um discurso metaestético para cumprir essa

função intermediária, como pode ser visto em numerosos textos

programáticos publicados no período. (SOMIGLI apud BORTULUCCE,

2016, p.13).

Entretanto, se a práxis do manifesto confere ao artista o controle e autonomização de

sua obra, qual seria, portanto, a função do manifesto moderno? Existe, na contemporaneidade,

uma concepção específica para enquadrá-lo? Bortulucce observa que, enquanto gênero

relevante e contemporâneo sua textualidade procura ir “além dos limites do próprio texto”

(BORTULUCCE 2015, p. 13), o que pressupõe automaticamente a formulação de novos

discursos a serem colocados em prática. Já para Puchner, a modernidade possui uma

temporalidade que imprime ao manifesto “rupturas e novos começos que não obstante

continuam a ser confrontadas com um passado que nunca está abandonado completamente”.

(PUCHNER apud BORTULUCCE, p. 2015, p. 7).

Page 86: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

86

Constata-se, portanto, que encontrar uma definição específica para o manifesto na

modernidade tem se tornado uma proposição muito difícil, dada à ampliação de suas

possibilidades estéticas e das suas inúmeras representações de “esperanças, fantasias, desejos

e contradições da modernidade”. (BORTULUCCE, 2015, p. 13) A multiplicidade de

possibilidades para a sua utilização em diferentes frentes artísticas proporcionaram ao

manifesto um status que transcendeu os próprios limites da textualidade em si, conferindo-o

uma versatilidade que o transformou em gênero com uma capacidade de hibridação de

diversos estilos. Esta certamente era uma das concepções que perpassavam pelas intenções de

Caetano quando declarou em sua autobiografia Verdade Tropical as seguintes proposições:

“Suponho que fui eu a decidir que devíamos fazer um disco-manifesto, um disco coletivo que

explicitasse o caráter de movimento do nosso trabalho”. (VELOSO, 1997, p. 272)

Independente das repercussões iniciais majoritariamente negativas ao álbum por boa

parte da crítica especializada da época, a grande questão que nos é imposta agora é: as

intenções de Caetano, Gil e amigos de realizar um “álbum manifesto”, que divulgasse os

princípios do movimento Tropicalistas foram exitosas? A julgar pelo consenso quase unânime

de público e crítica, através desses quase cinquenta anos após seu lançamento, torna-se

perceptível o reconhecimento e a relevância que a obra adquiriu, atendendo claramente nos

textos direcionados a sua pesquisa pela nominação de “álbum manifesto”.

Entretanto, quais seriam esses elementos, esses aspectos que o configurariam como

um disco manifesto do movimento Tropicalista? Analisar e investigar os possíveis motivos e

elementos que levaram este álbum a se configurar como um manifesto das aspirações

artísticas de um movimento que capturou um momento único da história da cultura brasileira

é o que se constitui como objetivo principal e razão maior desta pesquisa.

Não obstante, é preciso salientar que o que será posto em análise neste trabalho, não se

limita à discussão circunstanciada do álbum por meio do gênero textual do manifesto, mas

também como ele (o álbum) se realiza esteticamente por meio do que se manifesta em sua

construção artística, ou seja, o álbum integra um caráter enunciador de pressupostos estéticos

e se realiza artisticamente enquanto tal. Nota-se, portanto, especificamente aqui a necessidade,

a partir do advento da era moderna entre os séculos XIX e XX, das proposições e divulgações

das principais ideias do artista enquanto emissor através de sua obra. Valendo-se

principalmente de movimentos artísticos de vanguarda, confirma-se a premissa de que “a

cultura dos manifestos corresponde a uma necessidade legítima dos artistas de conquistar um

espaço nos meios de comunicação responsáveis por fazer a ponte entre suas ideias e o grande

público”. (FERREIRA, 2014, p. 13)

Page 87: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

87

4.2 As concepções estéticas presentes na produção capista do álbum

Partindo deste pressuposto central, Tropicália ou Panis Et Circencis é considerado um

dos primeiros álbuns conceituais da história da discografia da música popular brasileira. Pela

primeira vez um álbum era lançado no mercado fonográfico brasileiro contendo um conceito

temático único em que canções, capa, contracapa, figurino dos artistas, aspectos e totalidades

estéticas direcionavam-se para uma grande e determinante prospecção, como categorizou

Celso Favaretto, “As relíquias do Brasil”:

Suma tropicalista, este disco integra e atualiza o projeto estético e o

exercício de linguagem tropicalistas. Os diversos procedimentos e efeitos da

mistura aí comparecem – carnavalização, festa, alegoria do Brasil, crítica da

musicalidade brasileira, crítica social, cafonice – compondo um ritual de

devoração. Compondo um objeto-disco, a capa e as músicas produzem

conjuntamente uma significação geral, alegórica, enunciada como a fala de

um sujeito que se figura no próprio enunciado. […] O disco, com efeito,

realiza uma encenação das “relíquias do Brasil” (culturais, políticas,

artísticas), ritualizando, ao desdobrar-se, o próprio ato de fazer música,

também exposto à devoração. Este caráter “artificial”, distanciado, aparece

em cada detalhe da capa, na construção das letras, ritmos arranjos e

interpretação. […] Um disco para se ouvir e “ler” como se fosse uma

alucinação, propõe ao ouvinte-crítico a participação de “um sonho de

onipotência criadora”. (FAVARETTO, 1995, p. 78)

A partir dessas concepções estéticas meticulosamente planejadas, torna-se interessante

analisar cada aspecto do álbum, pois cada um deles reunidos se traduzirá em uma totalidade

de aspectos significativos e fundamentais.

Em uma análise minuciosa, é possível perceber que o caráter manifestário do álbum já

começa a se configurar a partir de sua capa. Ela constitui não só o “rosto” do trabalho, a

formatação física, mas prescinde de sua materialidade, estabelecendo elementos de ruptura

com os lançamentos de produtos fonográficos vigentes, bem como antecipa também as

proposições e os princípios que mais tarde as canções se encarregarão de consolidar.

FIGURA 1: A icônica capa do célebre álbum tropicalista produzida por Rubens Gerchman com fotografia de

Oliver Perroy.

Page 88: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

88

O cuidado meticuloso com o figurino dos tropicalistas, o cenário em que se

encontram, o acabamento estético nos contrastes de cores, todos os aspectos se tornam

relevantes para que se componham um cenário circunstancial e dialógico com outros

elementos estéticos restantes, presentes no álbum. Em primeiro plano e perfilado em conjunto,

a foto do grupo nos remete aos quadros típicos que retratavam as famílias patriarcais.

Entretanto esta percepção assume traços parodistas. Logo se constata que está contextualizada

para a época quando observamos que a figuração de cada integrante representa arquétipos

múltiplos pelos quais os tropicalistas gostariam de se ver representados.

O LP dos tropicalistas tem, em sua especificidade de disco-manifesto, uma

delicada relação com cada elemento discursivo de sua composição; desse

modo, nos esforçamos em perceber a capa como parte integrante do prazer

estético e comunicativo da obra, e do sentido dos olhares sobre ela, mais do

que um aparato de complementação de uma obra que se caracterizaria

somente pela música. (SILVEIRA, 2010, p. 58)

Neste sentido, vê-se, ao fundo, Caetano com vasta cabeleira, indumentária hippie e um

olhar altivo que se alterna entre o confiante e o atrevido, segurando uma foto de Nara Leão

(que não pôde comparecer às sessões), descontraída, de óculos escuros e chapéu,

possivelmente em um dia de sol e muito calor, representando o que poderia ser a típica moça

brejeira. Ladeando o cantor estão os Mutantes, as faces adolescentes, porém sérias, com os

irmãos Arnaldo e Sérgio Baptista empunhando ousadamente seus instrumentos elétricos

(contrabaixo e guitarra) com Rita Lee e Caetano entre eles. A pose de ambos é igualmente

altiva e confiante. A presença dos Mutantes é uma declaração explícita da sonoridade pop, da

“deglutição crítica e oswaldiana” dos novos rumos da música pop anglo-americana, calcada

na psicodelia, no flower power, tendo à frente o trabalho notável desenvolvido pelos Beatles.

Porém tal postura, também se constitui uma resposta ideológica à famigerada passeata cívica,

protagonizada no ano anterior por nomes como Elis Regina e que procurava reivindicar

supostos princípios de brasilidade, posicionando-se entre outros temas contra a guitarra

elétrica. 11

Em contraponto a estas representações temos a figura de Tom Zé, de terno e gravata e

apetrechos que lembram nitidamente os caixeiros viajantes do nordeste, conhecidos

popularmente pela alcunha de “homens da mala”.12 Tom Zé personifica aqui a alegoria do

nordestino migrante que se desloca para os centros populosos e mais abastados como força de

11 REVISTA FORUM. “Os 50 anos da Marcha Contra a Guitarra Elétrica”. Disponível em

https://www.revistaforum.com.br/os-50-anos-da-marcha-contra-guitarra-eletrica/. Acesso em 6 fev 2018. 12 ALMANAQUE BRASIL. “Tom Zé e o homem da mala”. Disponível em https://youtu.be/JsWw-vMnAiU.

Acesso em Acesso em 6 fev 2018.

Page 89: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

89

trabalho para sua própria subsistência, mas nunca abdicando de suas raízes e de suas

tradições. À frente dele, Torquato Neto e Gal Costa personificam o típico casal interiorano,

com trajes formais, postura comportada e contida. Ao lado, a postura enigmática e irônica do

produtor Rogério Duprat, segurando um enorme penico, como se fosse uma xícara de chá,

remete à famosa obra dadaísta do francês Marcel Duchamp, A Fonte (1917). Esta referência

denota a proposta vanguardista dos tropicalistas, implícita na questão de discutir os elementos

da própria arte contemporânea. Finalmente, centralizado e à frente de todos, se posiciona

Gilberto Gil. Trajando uma toga multicolorida segura a foto do amigo compositor José Carlos

Capinam em sua formatura colegial.

Na contracapa, a foto da capa é reproduzida, porém agora em preto e branco, e cercada

de várias outras referências artísticas que perpassam por cinema, música e política, conforme

constata o pesquisador Celso Favaretto:

Na outra face, envolvendo a foto, agora reduzida em preto e branco, há o

script de uma sequência de um filme (Tropicália?). A sequência é

incompleta e nas falas há comentários debochados, referentes a aspectos do

projeto tropicalista, à reação da crítica, a referências musicais e pessoais dos

tropicalistas (Lupicínio Rodrigues, Pixiguinha, Vicente Celestino, João

Gilberto, Augusto de Campos): a filmes e artistas cafonas (Átila, Rei dos

Hunos, Charlton Helston etc.) [...] Finalmente a última cena da chave da

produção tropicalista: reproduz um diálogo entre Augusto de Campos e João

Gilberto, em que este diz estar “olhando” para os tropicalistas de seu refúgio

em New Jersey. (FAVARETTO, 1995, p. 83)

FIGURA 2: Na contracapa do álbum, os tropicalistas correlacionaram uma série de referências que perpassavam

pela música, cinema e produções animadas.

Page 90: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

90

Portanto o posicionamento “anárquico” aponta para inúmeras direções propondo um

direcionamento que integra os elementos de capa e contracapa como um processo

metalinguístico do próprio álbum, ao disponibilizar aleatoriamente as inúmeras citações

aglutinadas, desconexas, mas perfeitamente plausíveis e dialógicas dentro das propostas

múltiplas dos tropicalistas.

Tropicália, o álbum, portanto, é fruto deste momento inovador onde as capas

constituíam elementos estéticos participante dos álbuns. Registrados pelas lentes do fotógrafo

Oliver Perroy, os tropicalistas posicionaram-se em um amplo cenário com detalhes vitorianos.

O tratamento da arte gráfica dada ao álbum foi feito pelo artista gráfico Rubens Gerchman, o

mesmo autor do quadro Lindoneia: a Gioconda do Subúrbio que serviu de inspiração para a

canção homônima. (Cf. SANTANA 2013, p. 122).

As tonalidades predominantes em verde e amarelo reforçam um fundo preto. A

cenografia composta por algumas folhagens “contribuem para a construção de um repertório

de uma possível imagem brasileira, como recurso para a problematização dessas ‘relíquias do

Brasil’”. (OLIVEIRA, 2014, p. 97)

A parede ao fundo, com seus vitrais, lembra o interior de uma igreja, o que nos remete

imediatamente às referências religiosas desenvolvidas em uma “tríade sincrética” presentes no

álbum (Cf. OLIVEIRA, 2014, p. 98): “Miserere Nobis”, “Batmakumba”, e “Hino do Senhor

do Bonfim”. Assim, as faixas desenvolvem proposições dialógicas não apenas entre si, mas

também a partir de elementos já constitutivos em sua própria capa: os canhões ameaçadores

que encerram o álbum após a regravação de “Hino ao Senhor do Bonfim” - uma ode

carregada de ironia ao nacionalismo, mesclada à religiosidade e coro de vozes suplicantes –

são os mesmos que encerram a faixa de abertura “Miserere Nobis”, que chega a trabalhar com

montagens silábicas que formam, entre outras, a rima “Brasil” “fuzil”. (Cf. OLIVEIRA, 2014,

p. 98)

A regravação de “Coração Materno”, por exemplo, encontra referência nas posturas

interioranas e recatadas do interior representadas pelo casal Torquato e Gal. As guitarras

empunhadas pelos Mutantes ficam evidentes na psicodélica “Panis Et Circensis”, A morena

festeira representada por Nara Leão na foto segurada por Caetano remete à figura comum da

personagem suburbana de “Lindoneia”. Cada aspecto da capa e, por conseguinte, da

contracapa, é traduzido de alguma forma sonora no álbum, seja por referências explícitas ou

implícitas.

É fundamental, portanto, ressaltar que as capas do período tropicalista, especialmente

a de “Tropicália ou Panis Et Circencis”, passaram a determinar caminhos mais criativos,

Page 91: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

91

procurando trazer uma carga semântica que rompesse com as meras formalidades de uma

capa utilitarista cuja função resumia-se à mera formalidade de apresentar o artista e o título de

sua obra.

A partir de capas de álbuns lançados neste período como Caetano Veloso (1968),

Frevo Rasgado (1968) de Gilberto Gil, A Grande Liquidação (1968) de Tom Zé, Jorge Ben

(1969) e de Tropicália (1968), as produções capistas passariam não apenas a ser parte

integrante das propostas de um artista, como também seriam objeto de trabalho de toda uma

geração de designers, muitos deles, artistas oriundos das artes plásticas, como o próprio

Rubens Gerchman, a desenvolverem verdadeiras obras em forma de capas de discos. (Cf.

SANTANA, 2013, p. 117)

Não é difícil ver na Tropicália um eixo de mudança para as capas de discos.

Do mesmo modo como digeriam em suas composições o arcaico e o

moderno, o nacional e o internacional, o pop e o kitsch, os tropicalistas

transportaram para as capas de discos essa mesma polifonia. (RODRIGUES

apud OLIVEIRA, 2014 p. 99).

Não por acaso, a partir dos anos 70, a cultura da valorização das capas de vinis

ganharia a sua maior projeção. Como se fossem grandes quadros, simples, duplas ou até

mesmo triplas, as capas dos LPs formavam uma parte indissociável do disco.

O desenho das capas de discos, nesse contexto, ganha novos horizontes. As

produções capistas passam a receber cada vez mais atenção e dedicação.

Também mais cores e elementos A Tropicália interferiu, diretamente, no

novo modo de composição e visualização das capas dali por diante, tanto

que, até mesmo artistas que não faziam parte do movimento tropicalista,

tinham em suas produções capistas elementos do contexto cultural, como foi

caso da capa do disco de Jorge Ben, de 1969. (SANTANA, 2013, p. 117)

O movimento tropicalista seria responsável, a partir deste período, por um fenômeno

importante nos setores de produção capista de obras fonográficas: a busca pela identidade não

só estética como ideológica do artista, ou seja, a capa trabalhada e planejada enquanto um

elemento identificador e constitutivo de sua obra. (Cf. SANTANA, 2013, p. 118).

Entretanto, torna-se praticamente impossível analisar esta capa sem as implicações de

similaridade com outra obra que se tornou um marco da música popular contemporânea. Até

porque a capa de Tropicália ou Panis Et Circencis só se tornou possível graças ao lançamento

no ano anterior de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles. As similaridades

estéticas entre as duas capas são flagrantes. Mas enquanto os Beatles atribuíram à capa do seu

clássico álbum de 1967 um caráter de manifesto mais global, conjugando no mesmo espaço

físico ícones contemporâneos e de outras épocas de diversas áreas, que iam da literatura ao

Page 92: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

92

cinema, da ciência à música, como Marilyn Monroe, Bob Dylan, Lewis Carroll, Carl Jung,

Edgar Allan Poe, Albert Einstein, Marlon Brando, Marlene Dietrich, dentre outros, os

tropicalistas optaram por uma representação mais local.

FIGURA 3: A antológica capa de Sgt Peppers and Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, lançado em junho de

1967: principal fonte de inspiração para a capa do álbum tropicalista.

Estética e ideologicamente, portanto, as intenções da capa tropicalista perpassam por

reflexões mais profundas, não estão restritas apenas à perspectiva estilística – algo que as

canções só vão fazer explicitar e confirmar depois. O olhar assertivo dos integrantes chama a

atenção. A postura confiante, as indumentárias do figurino, a pluralidade das citações

pressupõe mais do que uma simples apresentação. É o recorte de uma época, de um instante.

É um momento em que os tropicalistas não só se materializam, mas assumem a sua

identidade, que na verdade perpassa pela não-identidade, ou seja, pelas intencionalidades de

um projeto multifacetado e plurissignificativo. É como se dissessem: estes somos nós, nossas

contradições e convicções, nossa complexidade, nossa visão de Brasil, nossa arte, nossa

cultura mestiça e internacional, nossa mistura, nossa cafonice e nossa sofisticação, o arcaico,

o primitivo podem e devem conviver harmoniosamente com a vanguarda e com o moderno.

Analisando o papel da práxis do manifesto no contexto do surgimento da

modernidade, Puschner destaca que esta possui a sua temporalidade específica, na qual o

manifesto deve adequar suas intenções enquanto gênero discursivo:

Rupturas e novos começos que não obstante continuam a ser confrontadas

com um passado que nunca está abandonado completamente. Esta

temporalidade com todas as suas tensões e contradições, surge na filosofia

iluminista e na declaração política, no primitivismo modernista, na poesia da

vanguarda, nos contos modernistas, mas em nenhum outro lugar de forma

Page 93: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

93

tão sucinta e notável como no gênero manifesto. (PUSCHNER apud

BORTULUCCE, 2015, p. 7)

Evidente que as marcas desta temporalidade específica deixariam suas impressões de

forma indelével no escopo que perpassam as doze canções do álbum. Portanto é

principalmente através das estruturas, músico–poéticas fragmentárias, mas que reunidas

totalizam um álbum coeso, que vamos continuar aqui investigando as razões que subsidiam o

fato de estarmos diante de um manifesto-arte de um movimento.

4.3 “Eu quis cantar...” – histórias e análises das canções

Composto como uma suíte – uma peça musical única em que as faixas funcionam

como partes que vão se intercalando13, técnica explorada também em Sgt Peppers Lonely

Hearts Club Band dos Beatles – o álbum apresenta seu introito com a faixa de abertura

intitulada “Miserere Nobis.”

Esta canção apresenta em sua introdução recursos sonoros que aludem a uma espécie

de convocação, um chamamento. Um órgão abre em tom solene, ritualístico, o que parece nos

convidar para um cerimonial religioso, que logo se desfaz com o badalar de pequenos sinos.

Em seguida, o repique de uma caixa mostra os compassos de um toque marcial de marcha

militar, anunciando a entrada pulsante de um riff de violão bem ritmado, alternando as notas

em dó maior e ré menor para, enfim, adentrar a voz vibrante e, ao mesmo tempo, suplicante

de Gil recitando os seguintes versos em latim:

Miserere-re nobis

Ora, ora pro nobis

É no sempre será, ô, iaiá

É no sempre, sempre serão

Já não somos como na chegada

Calados e magros, esperando o jantar

Na borda do prato se limita a janta

As espinhas do peixe de volta pro mar

[...]

Tomara que um dia de um dia seja

Que seja de linho a toalha da mesa

Tomara que um dia de um dia não

Na mesa da gente tem banana e feijão

[...]

Já não somos como na chegada

O sol já é claro nas águas quietas do mangue

13 Faixas integrantes do álbum Tropicália ou Panis Et Circencis – 1968, Philips Records.

Page 94: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

94

Derramemos vinho no linho da mesa

Molhada de vinho e manchada de sangue

Miserere-re nobis

Ora, ora pro nobis

É no sempre será, ô, iaiá

É no sempre, sempre serão

Bê, rê, a - Bra

Zê, i, lê - zil

Fê, u - fu

Zê, i, lê - zil

Cê, a - ca

Nê, agá, a, o, til - ão

Ora pro nobis, ora pro nobis

Os versos em latim evocam a sentença litúrgica que traduzida significa: “Tende

misericórdia de nós/ rogai por nós” e nos versos seguintes os anseios proferidos: “É no

sempre será, ô iá, iá/ é no sempre, sempre serão” constituirão o refrão da canção sendo

repetidos como um mantra.

A partir da segunda estrofe, Gil e Capinam, autores da canção, oferecem várias

imagens que compõem uma alegoria de possíveis duas referências históricas, conforme

observa Favaretto:

Esta fala é pontuada por um pistão insistente, mantendo suspense e

indicando iminência de ação. Há, nela, duas referências históricas: a primeira

missa no Brasil, início de uma história que desemboca no presente

contraditório e à chegada dos “baianos” ao Sul desenvolvido os baianos que

desorganizam a música brasileira e que, talvez, signifiquem os “baianos”, os

miseráveis do país. (FAVARETTO, 1995, p. 88)

Nas duas estrofes seguintes, prevalece o desejo de uma vida utópica, igualitária,

sempre iniciadas pela expressão “tomara”, indicando que os verbos no modo subjuntivo

anunciem que esta comunhão hipotética se concretize na forma de mudanças que

proporcionem estes momentos.

Os desejos expressos nestas estrofes não só trazem os anseios por mudanças sociais e

políticas, mas pressupõem também o papel que o artista desempenha ao posicionar-se, através

de sua arte, apontando para visão – ainda que romantizada ou puramente utópica – de uma

sociedade mais igualitária, menos submetida ao peso do poder político absolutista e das

opressões e desigualdades resultantes. Comentando o posicionamento do ensaísta Claude

Abastado a respeito do papel pragmático da leitura do manifesto, na medida em que a mesma

expressa e expõe as tensões ideológicas, suas relações polêmicas e as lutas pelo poder

Page 95: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

95

simbólico, Viviane Gelado destaca também o caráter utópico do gênero que pode ser

interpretado como um projeto ideológico e filosófico:

Abastado também compara o manifesto com o relato utópico, o mito.

Segundo este autor, o pensamento manifestário tem em comum com o relato

utópico o amálgama de projetos filosófico, político e estético: o desejo de

instaurar uma nova vida. alterar a ordem social e praticar novas formas de

arte, ou em outras palavras, o desejo de conquistar o poder simbólico, o

domínio político e a hegemonia estética. (GELADO, 2006, p. 5)

“Miserere Nobis” constitui assim, uma súplica invocatória por uma vida idealizada e

fraternal que se interpõe às resoluções autoritárias e unilaterais do poder simbólico

institucionalizado. Os elementos litúrgicos, porém são profanados: “Derramemos vinho no

linho da mesa/ manchada de vinho e manchada de sangue”. Mostrando que esta utopia

almejada só se realizará por meio do sacrifício, Gil e Capinam constatam que esta conquista

jamais se realizará sem a violência e sem o sangue.

O final da canção é marcado por um recurso notável: primeiramente a influência da

poesia concreta através de palavras que vão se sucedendo, lembrando, em princípio,

brincadeiras infantis de trava-línguas mas que, aos poucos, vão revelando uma frase, numa

clara referência às cada vez mais crescentes repressões sociais e políticas resultantes do

regime militar.

Bê, rê, a - Bra

Zê, i, lê - zil

Fê, u - fu

Zê, i, lê - zil

Cê, a - ca

Nê, agá, a, o, til – ão

A influência vanguardista da poesia Concreta se faz notar aqui. Segundo Perrone,

existe nesta última parte uma “plurisignificação notável” que encerra a canção de uma forma

criativa e por que não dizer em sinal de resistência contra o vigente regime opressor.

A técnica de separação de sílabas sugere brincadeiras linguísticas infantis,

remete à decomposição verbal da poesia de vanguarda, e implica no disfarce

para driblar a censura, a qual poderia interpretar “Brasil-fuzil-canhão” como

referência direta à violência anti-governo. (PERRONE 1988, p, 74).

Tiros de canhão encerram de maneira apropriada a canção, mas possibilitando uma

interpretação ambígua: estariam os tiros sinalizando uma possível rebelião ou seriam indícios

do poder silenciando a voz da oposição? “Miserere Nobis” não responde a essas questões,

talvez pelo fato de os anseios por uma transformação social serem maiores.

Terceira faixa do álbum, composta por Gil e Caetano para a interpretação do grupo de

rock paulistano Os Mutantes, “Panis et Circenses” também vale em seu título de uma frase

Page 96: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

96

adaptada do latim panem circenses, expressão usada pelo poeta romano Juvenal no qual o

mesmo expressava seu desgosto e sua total desaprovação para com a decadência da

sociedade, na passagem entre os séculos I e II cuja única atividade cultural proposta pelas

autoridades resumia-se a fornecer pão e divertimento barato ao povo. (Cf. PERRONE, 1988,

p. 75)

Trata-se da faixa mais psicodélica e a que mais se aproxima em sintonia com o rico

cenário da música pop anglo-americana dos anos 1960. Seu andamento lento, cadenciado,

uma espécie de valsa circense é enriquecido pelos arranjos minuciosos do produtor Rogério

Duprat, que não hesitou em pontuar as passagens com o sons de um coro, pandeiros, teclados,

cordas e de uma trombeta intermitente traduzindo aquele clima festivo e de celebração típicos

de uma sessão circense, mas que intencionalmente transmite em sua essência uma grande

celebração psicodélica.

Nesta canção - como em várias outras ao longo do álbum – fica cada vez mais

evidente a noção do “canibalismo cultural” preconizado por Oswald de Andrade.

Sonoramente “Panis et Circenses” não só sofre influência direta dos Beatles, como se alinha –

graças, principalmente, às noções de vanguarda e a produção primorosa de Rogério Duprat - a

produções do quarteto de Liverpool como “All You Need is Love” e “Lucy in the Sky with

Diamonds”.

Os seus versos evidenciam a dialética entre a liberação e a estagnação, na qual o eu

poético dirige-se a um grupo de indivíduos, no que seria uma referência clara à classe média

brasileira, como “essas pessoas na sala de jantar”, representando o status quo, a vida

ordinária, sem maiores acontecimentos, tudo o que o eu lírico despreza, pois se posiciona

como portador de uma visão, de um novo direcionamento no modo de viver, mas que

prontamente é ignorada pelo grupo da sala que se ocupa exclusivamente em “nascer e

morrer”.

Eu quis cantar minha canção iluminada de sol

Soltei os panos sobre os mastros no ar

Soltei os tigres e os leões nos quintais

Mas as pessoas na sala de jantar

São ocupadas em nascer e em morrer

Mandei fazer de puro aço luminoso um punhal

Para matar o meu amor e matei

Às cinco horas na avenida central

Mas as pessoas da sala de jantar

São ocupadas em nascer e em morrer

Mandei plantar folhas de sonho no jardim do solar

As folhas sabem procurar pelo sol

E as raízes procurar, procurar

Page 97: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

97

Mas as pessoas da sala de jantar

Essas pessoas da sala de jantar

São as pessoas da sala de jantar

Mas as pessoas da sala de jantar

São ocupadas em nascer e em morrer

Essas pessoas da sala de jantar (10 vezes)

Essas pessoas na sala...

Para Favaretto, “a música contrapõe o desejo de libertação ao ritual da sala de jantar.

À afirmação do sonho, opõe-se a vida regida pela ‘ocupação’ de ‘nascer e morrer’”. A canção

iluminada de sol “projeta-se surrealisticamente para desarranjar o cotidiano”. (FAVARETTO,

1995, p. 102)

A gradação das passagens surrealistas se intensificam sugerindo, por exemplo,

imagens de uma aventura marítima (“panos sobre os mastros no ar”), o instinto selvagem

(“soltei os tigres e os leões no quintal”) e a supremacia dos sacrilégios são evocados, um

homicídio passional chega a ser minuciosamente planejado e executado (“mandei fazer de

puro aço luminoso um punhal/ para matar o meu amor e matei/ às cinco horas na avenida

central”), ou seja, a consciência premente da violência cada vez mais crescente, intensificada

naqueles dias pelos confrontos entre manifestantes, estudantes e militares. Nenhuma dessas

imagens, porém, é capaz de retirar as pessoas da monotonia em que se encontram, nada as

consegue tirar da letargia da “sala de jantar”.

Mais uma vez percebe-se, à exemplo de “Miserere Nobis” - porém visto de uma

forma mais localizada - o desejo premente pela mudança, ainda que aqui alegoricamente

representada por imagens surrealistas. O questionamento da ordem vigente, do estado geral

das coisas, da normalidade que impede a fruição da novidade, do pensamento político livre,

da formulação de novas ideologias ou a apreciação de um modo de vida diferente, nenhuma

dessas prerrogativas é considerada, pois tudo se resume à rotina permanente aqui

metaforicamente representada pelas “pessoas na sala de jantar”.

Neste sentido, torna-se evidente em “Panis Et Circenses” o anseio pela mudança, pela

renovação. Porém o caráter persuasivo contido na alegoria da letra da canção vale-se muito

mais de elementos como o deboche, o riso, a ironia, a carnavalização, do que propriamente

um convite formalizado. Em contraposição à atmosfera severa e fechada dos formalismos

político e religioso, o riso carnavalesco é “ambivalente alegre e cheio de alvoroço, mas ao

mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente”.

(BAKHTIN apud SORROCE, 2005, p. 54)

Caminhando para o seu final, a canção é pontuada por recursos e efeitos considerados

inovadores e transgressores para a época: ao final de um refrão a voz de Rita Lee literalmente

Page 98: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

98

“morre” (“São ocupadas em nascer e morreeeeeeeeerrrrr...”), a canção é interrompida

abruptamente, através do retardamento de rotação provocando uma total quebra de

expectativas. Depois é reiniciada e acelerada até uma nova quebra, coincidindo com a queda

de um prato se espatifando, ruído de vozes e de talheres na sala de jantar, alguém pede salada,

ao fundo ouve-se um trecho da orquestração de “Danúbio Azul”, de Strauss. A ruptura

ideológica dos comportamentos e das sonoridades dos tropicalistas pede passagem para que

sua proposta se realize no imaginário e no inconsciente do interlocutor ouvinte-crítico.

Se as nuances alegóricas e as imagens surrealistas são sugeridas em “Miserere Nobis”

e “Panis Et Circensis”, em “Enquanto Seu Lobo Não Vem”, elas encontram a culminância

através das construções metafóricas que Caetano imprime aos versos. Utilizando cenários e

personagens da tradicional fábula Chapeuzinho Vermelho e valendo-se de uma mirada

parodista de uma cantiga infantil homônima, o que presenciamos é um caleidoscópio de

imagens que se alternam entre o realismo e o surrealismo no qual prevalece a convocação

para uma realidade virtual, um passeio, para o desfrute do desejo ao lado da pessoa amada.

Entretanto à medida em que se desenrola, o passeio vai adquirindo contornos imagéticos, com

imagens sobrepostas tal qual um sonho, uma visão:

Vamos passear na floresta escondida, meu amor

Vamos passear na avenida

Vamos passear nas veredas, no alto meu amor

Há uma cordilheira sob o asfalto

(Os clarins da banda militar…)

A Estação Primeira da Mangueira passa em ruas largas

(Os clarins da banda militar…)

Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas

(Os clarins da banda militar…)

Presidente Vargas, Presidente Vargas, Presidente Vargas

(Os clarins da banda militar…)

Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil

Vamos passear escondidos

Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou

Vamos por debaixo das ruas

(Os clarins da banda militar…)

Debaixo das bombas, das bandeiras

(Os clarins da banda militar…)

Debaixo das botas

(Os clarins da banda militar…)

Debaixo das rosas, dos jardins

(Os clarins da banda militar…)

Debaixo da lama

Page 99: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

99

(Os clarins da banda militar…)

Debaixo da cama

O eu poético estende um convite para a pessoa amada, o que parece pressupor um

simples passeio, um encontro amoroso, o que se pode entender que, naturalmente, estará

presente o elemento erótico, em suma, uma simples canção popular de amor. Entretanto em

seguida, os cenários vão mudando e se ampliando conforme vamos observando a gradação

das locuções adverbiais que denotam lugar (“na avenida”, “nas veredas”, “no alto”). Mas, ao

longo da canção, o espectro político também vai tomando forma sempre “vigiando” o prazer,

estabelecendo uma dialética entre liberação e repressão.

O clima festivo e carnavalesco é confirmado pela referência, e ao mesmo tempo

reverência, à Estação Primeira de Mangueira que, desfilando “em ruas largas” insurge

imponente para o que parece nos representar, neste instante, a carnavalização através da

liberação do prazer e da festa. Porém em seguida, o eu lírico nos lembra que o desfile

transcorre exatamente na avenida Presidente Vargas, referência que o eu poético vai repetindo

como um mantra como que para ressaltar que o proibido, a repressão, a vigilância estão

sempre à espreita.

Caetano propõe um quadro metafórico nítido, onde o cuidado com a instrumentação

ambiente caminha harmoniosamente com as construções propostas nos versos, ou seja, “a

letra e o arranjo estruturam-se como um passeio, em que os obstáculos (político-militares) são

contornados por ações sub-reptícias para que se reinstale o prazer”. (FAVARETTO, 1995, p.

99)

À medida que os arranjos da canção se desdobram, Caetano prossegue em tom

descritivo surrealista enquanto ao fundo, a voz de Gal Costa repete de forma suave e

intermitente o verso “Os clarins da banda militar” como que delimitando cada novo cenário

por onde o passeio deve se realizar. A concepção do proibido, da clandestinidade, dos efeitos

da repressão notabilizam-se em uma clara progressão de ideias, inclusive de descompasso e

descontinuidade em relação ao próprio desfile “pela rua onde Mangueira passou”.

As alusões ao contexto sociopolítico ficam mais explícitas nos versos seguintes,

conforme o passeio avança, sempre precedidas pelo advérbio de lugar “debaixo”. Assim “as

bombas”, “as bandeiras”, “as botas”, “a lama” assumem conotações de elementos que

representariam a corrupção, a repressão, o momento político conturbado.

Os elementos presentes na narrativa de Caetano tornam-se propositadamente

contraditórios, subvertendo a lógica da própria condição de carnavalização que aqui é

Page 100: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

100

submetida à clandestinidade, á ilicitude, ao proibido, em clara contraposição aos elementos

representativos da ordem vigente do poder repressor:

No discurso do narrador há fanfarronice carnavalesca, propondo a subversão

pelo desejo na sua figura da festa de Mangueira, o que é ambíguo, pois o

desfile de escolas de samba é festa oficial. Se mantivesse seu aspecto de

“passeio” e não de “desfile”, o carnaval de Mangueira também teria que ser

feito às ocultas, “por debaixo da avenida”, das “bombas” e das “botas”. Vê-

se aqui uma alusão à repressão militar mas também ao populismo, já que são

citados /”Vargas” e “lama”. (FAVARETTO, 1995, p, 101)

O fato do passeio passar por “debaixo da avenida presidente Vargas” denota a

revelação já descrita em relato por Caetano nesta pesquisa, ao comentar as duras críticas ao

populismo esquerdizante demagógico pós golpe de 64, presente em Terra em Transe, a obra

marcante de Glauber Rocha: ficavam nítidas aos olhos de Caetano, as múltiplas possibilidades

de se criticar a complexidade da realidade brasileira com todas as suas inúmeras e inerentes

contradições, ou seja, a constatação de que “o povo brasileiro é captado em seus paradoxos

que não se sabem se são desesperantes ou sugestivos”. (VELOSO, 1997, p. 105) A partir

deste instante, o poeta se vê livre para direcionar a sua arte a um projeto ideológico que

reforçasse ousadamente suas convicções morais e políticas.

O golpe no populismo de esquerda libertava a mente para enquadrar o Brasil

de uma perspectiva ampla, permitindo miradas críticas de natureza

antropológica, mítica, mística, formalista e moral com que nem se sonhava.

[…] Sobretudo era a retórica e a poética da vida brasileira do pós-64: um

grito fundo de dor e revolta impotente, mas também um olhar atualizado,

quase profético das possibilidades reais, para nós, de ser e sentir. (VELOSO,

1997, p. 105-106)

A necessidade básica do artista é manifestar-se. E a arte é naturalmente sua ferramenta

por excelência. O caráter manifestário se processa justamente através da necessidade de se

estabelecer essa comunicação dentro de uma relação de desarticulação entre o próprio artista e

seu espaço na sociedade moderna, no descompasso em relação ao seu próprio público e às

instituições sociais. Desta forma o artista testemunha a “fragmentação das experiências

humanas”. (Cf. BORTULUCCE, 2015, p. 5).

O desejo de liberação do prazer carnavalizado contrapondo-se à sensação de

inadequação no espaço, aliado ao fato de uma constante vigilância do “seu Lobo” aqui

metaforizado para representar as instituições políticas, o regime totalitário e populista, o poder

político simbolizado enfim, conferem à canção de Caetano um engajamento inusitado,

interpretativo e ao mesmo tempo mirado embora nunca confrontante.

Page 101: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

101

“Batmakumba” é a canção do álbum que melhor sintetiza a herança direta do

movimento concretista dos anos 50 às ideias da corrente antropofágica ao melhor estilo

Oswald de Andrade. Composta por Gil e Caetano temos aqui um afluxo de referências que

trabalham símbolos verbais e não verbais, da cultura pop aos rituais das religiões afro-

brasileiras, numa justaposição notável de elementos que se fundem e abandonam qualquer

pretensão de linearidade linguística, seja ela semântica ou sintática.

Batmakumbayêyê batmakumbaoba

Batmakumbayêyê batmakumbao

Batmakumbayêyê batmakumba

Batmakumbayêyê batmakum

Batmakumbayêyê batman

Batmakumbayêyê bat

Batmakumbayêyê bat

Batmakumbayêyê

Batmakumbayê

Batmakumba

Batmakum

Batman

Bat

Ba

Bat

Batman

Batmakum

Batmakumba

Batmakumbayê

Batmakumbayêyê

Batmakumbayêyê ba

Batmakumbayêyê bat

Batmakumbayêyê batman

Batmakumbayêyê batmakum

Batmakumbayêyê bamakumba

Batmakumbayêyê batmakumbao

Batmakumbayêyê batmakumbaoba

Segundo Perrone, “a efetividade estética desta canção-futurista baseia-se em

combinações e associações não usuais”. (PERRONE, 1988. p. 76) Analisando

minuciosamente os elementos que compõem a poética de clara influência concretista, Perrone

constata que longe de provocar um panorama caótico, um nonsense generalizado, tais

elementos se aglutinam e se justapõem dentro da maior tradição oswaldiana de devoração e

sincretismo cultural.

Bem no centro do texto está “bá’, que significa “pai de santo”. A palavra

“obá”, no final da primeira e da última linha, significa “rei” ou um dos

ministros de Xangô. A palavra “bat” é apoiada pela batida dos tambores, que

evocam os rituais de macumba. Logo depois aparece o fictício super-herói

“Batman” opondo a indústria internacional de massa ao elemento nativo, ou

seja, ao ritual A linha melódica repetitiva é diminuída e aumentada de

Page 102: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

102

acordo com o formato visual do texto, que assume a forma das asas de um

morcego ou um “k”, o fonema que divide o texto em quartetos verticais. No

termo, “iêiê”, está presente o elemento da cultura popular internacional,

assim como no acompanhamento geral. (PERRONE, 1988, p. 77)

Em “Batmakumba” podemos ver reunidas, com mais nitidez, diversas tendências

analisadas até aqui que convergem para as proposições estéticas iniciais de Caetano de propor

um álbum-manifesto que representasse as intencionalidades do movimento Tropicalista.

A antropofagia enquanto corrente de vanguarda ideológica concebida por Oswald de

Andrade e tratada com contundência expositiva em seu O Manifesto Antropofágico lançado

em 1928 é revisto obedecendo-se um dos fundamentos básicos e mais valiosos da

contribuição das ideias oswaldianas: a renovação das correntes literárias e poéticas brasileiras,

ou em uma visão mais ampla, a tarefa vital da antropofagia era desenvolver uma proposição

dialética entre “desconstrução e a reconstrução, tendo como objetivo básico a criação de uma

poesia tupiniquim, organizada para a liberação do verso brasileiro, que, então, deveria

libertar-se por completo das influências das velhas civilizações”. (SORROCE 2005, p. 83).

Já a influência da estética concretista pode ser notada através da relação intersemiótica

de diversos recursos como o lexical neologístico que intitula a canção (“Batmakumba”),

gráficos (o acabamento estético em formato de um “K”, o rompimento com a estética formal

da metrificação do verso) e semântico (através da exploração polissêmica dos vocábulos:

“Batmakumba”, “Batman”, “Bat”, “Ba”). (Cf. LONTRA, 2000, p. 19-20)

A canção ainda une a levada pop característica do universo do rock and roll aos

batuques e percussões que lembram uma celebração afro-umbandista, ao mesmo tempo que,

ao fundo, pode-se ouvir instrumentos característicos como a cítara compondo uma melodia

oriental indiana, reforçando a atmosfera tribal. A interpretação de Gil, tendo Caetano e os

Mutantes ao coro, é enérgica e cheia de sobressaltos e soluços, lembrando nitidamente as

sessões umbandistas na qual Gil se caracteriza como o “pai de santo” a liderar os “trabalhos”

daquele instante.

Em depoimento ao jornalista Carlos Rennó, Gilberto Gil relembra os momentos

casuais, quase prosaicos, que envolveram o processo de composição da canção ao lado de

Caetano Veloso.

O Caetano e eu sentados no chão do apartamento dele, na avenida São Luis,

centro de São Paulo, compondo a música: o que a gente queria hoje, me

parece, era fazer uma canção com um dístico, que fosse despida de

ornamentos e possível de ser cantada por um bando não musical, algo tribal,

e que, por isso mesmo, estivesse ligado a um signo de nossa cultura popular

como a macumba, essa palavra nacional para significar todas as religiões

Page 103: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

103

africanas, não cristãs, e que é um termo que o Oswald de Andrade usou. O

Oswald estava muito presente na época, nós estávamos descobrindo a sua

obra e nos encantando com o poder de premonição que ela tem. A ideia de

reunir o antigo e o moderno, o primitivo e o tecnológico, era preconizada em

sua filosofia: Batmakumba é de inspiração oswaldiana. E concretista - na

concretização das palavras e na construção visual do K como uma marca; no

sentido impressivo, não só expressivo da criação. Não é só uma canção, é

uma música multimídia, poema gráfico, feita também para ser vista. (GIL

apud RENNÓ, 2000, p. 98)

“Batmakumba” figura dessa forma, como um dos exemplos mais notáveis de fusão das

concepções estéticas modernistas e concretistas aliadas a procedimentos intersemióticos e ao

projeto da música popular, apontando, portanto, para novos direcionamentos para a moderna

música popular brasileira.

Aqui, como em muitos outros momentos do álbum, os tropicalistas lançam seu

manifesto por uma cultura popular brasileira plural e plurissignificativa, dinâmica na relação

entre o arcaico e o moderno, conjugando elementos aparentemente estanques como a tradição

das religiões afro-brasileiras com símbolos marcantes da cultura pop, correlacionando

aspectos da cultura popular com a cultura de massa, sem abdicar da cultura erudita,

confirmando de forma irrevogável as lições da máxima oswaldiana: “Tupy or not tupy. That is

the question”. (ANDRADE apud TELES, 1972, p. 353)

Conforme já abordado nesta pesquisa, a obra fonográfica em questão apresenta

múltiplas possibilidades de rompimento com as obras tradicionais tanto em termos sonoros,

estéticos, ideológicos e, até mesmo, comportamentais via padrões inerentes ao movimento

como a moda tropicalista, por exemplo. (Cf. CAMPOS, 1974, p. 207)

No entanto, se as canções contêm histórias acerca de seu processo de produção,

naturalmente também contam histórias perpetrando as tradições da narrativa na música

popular brasileira. Portanto, um diálogo com as abordagens críticas do álbum passa

inequivocamente por uma análise de cunho crítico dos elementos estruturais narrativos

presentes em algumas de suas canções.

Entretanto não é intenção da presente dissertação propor uma análise adensada de tais

elementos, o que já se constituiria por si só um material minucioso para uma pesquisa

acadêmica mais apurada. O que há de se propor aqui será uma breve exposição crítica que

partirá dos chamados elementos tradicionais e estruturadores da narração e de como as

canções tropicalistas, enquanto peças compostas no período contemporâneo, apresentaram ou

não rupturas em relação a estes mesmos padrões tradicionais.

A concepção clássica da narratalogia tradicional possui em seu cerne teorias

idealizadas por Aristóteles. Segundo a pesquisadora Cristiane Alves Silva, Aristóteles

Page 104: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

104

“definiu ação una como um todo dividido em três partes: princípio, meio e fim”.

(ARISTÓTELES, apud SILVA, 2010, p. 19, grifo da autora). Esta concepção estrutural

ternária tornou-se uma prerrogativa básica, justamente por permitir acompanhar os eventos de

um enredo simultaneamente a uma temporalidade ordenada de forma cronológica.

O estudioso pensava a narrativa da seguinte maneira: “[…] o princípio é o

que tem depois de si algo com o que está ou estará unido; o meio é o que

está depois de alguma coisa; o fim é o que depois de si nada tem”. Essa

característica do texto narrativo nasceu com os poetas clássicos e persiste até

hoje com os teóricos estruturalistas da narrativa como com Adam (1997).

Por esse motivo decidimos empregar a expressão narratividade tradicional,

no sentido de ser a narrativa constituída por um esquema rígido formado por

uma estrutura ternária de começo, meio e fim, sendo essa sequência dotada

de princípios lógicos e ações que se desenrolam cronologicamente. (SILVA,

2010, p. 19)

Entretanto, uma simples sequência de fatos ordenados dentro de uma temporalidade de

ordem cronológica não basta para que se tenha, de fato, uma narrativa estruturada. É preciso

que, no decorrer do texto narrativo, haja um “processo de mudança”, que, segundo alguns

teóricos pensadores da narratalogia moderna se processa através do esquema a seguir:

1. SITUAÇÃO INICIAL

(Antes, princípio)

2. TRANSFORMAÇÃO (PRATICADA OU SOFRIDA)

(Processo e meio)

3. SITUAÇÃO FINAL

(Depois, fim). (ADAM e REVAZ, apud SILVA, p. 19)

Em síntese, estes são os pressupostos para uma narrativa estruturada, lembrando que

se trata, aqui, de uma concepção essencialmente clássica.

Com o advento da tecnologia especificamente no transcorrer entre os séculos XIX e

XX, inúmeros fatores passam a interferir de forma profunda e irreversível no modelo

tradicional de narratividade afetando inclusive a sua relação com a estruturação canônica, no

que diz respeito a aspectos de ordenação de acontecimentos. (Cf. SILVA, 2010, p. 28)

O processo de industrialização acarretou uma série de transformações determinantes.

Entre elas o acesso à informação talvez tenha sido o movimento mais radical em direção às

mudanças de percepção do mundo que agora passaria a ser compreendido por experiências

fragmentadas. A invenção da imprensa, por exemplo, passa a transpor a narratividade para

gêneros literários como o romance, dispensando assim a necessidade contínua das tradições

orais da narração, ocasionando, consequentemente uma perda significativa de experiências

compartilhadas em detrimento de experiências cada vez mais individuais.

Page 105: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

105

Com o avanço da tecnologia, novos meios de comunicação como a televisão e o

computador aceleraram exponencialmente a capacidade de organização de informações que

fazem com que o homem moderno contente-se em estar informado, porém simultaneamente

não desenvolva uma percepção autocrítica sobre isso. (Cf. SILVA, 2010, p. 28). É dentro

deste quadro que as proposições dos tropicalistas surgem e se configuram de uma forma

hipercrítica.

O Tropicalismo é, então, exemplo de um movimento que rompe com a

tradição na Pós-Modernidade, cujo objetivo era exatamente o de

desestruturar esquemas tradicionais. Por isso, os idealistas do movimento

adotaram uma nova forma de compor textos e também desarticularam

algumas concepções estruturais, criando uma nova maneira de se pensar na

arte. (SILVA, 2010, p. 29)

Assim, em sintonia com os rumos de seu tempo, a narratividade acaba por sofrer

transformações e perdas na sua estruturação clássica e canônica em função de fatores como a

tecnologia que, enquanto fornecedora de informações, acabou por afetar significativamente a

narrativa tal qual era conhecida na Antiguidade. Analisar, portanto, as canções tropicalistas

sob a perspectiva de elementos de narratividade é, acima de tudo, procurar compreendê-las

dentro deste rompimento de paradigmas estruturais imposto no seu tempo de criação, uma vez

que as canções se articulam dentro deste contexto.

Seguindo este contexto, o álbum apresenta algumas faixas que oferecem uma

interessante abordagem em relação aos elementos da narratividade como, por exemplo, a

canção “Lindoneia”:

Na frente do espelho

Sem que ninguém a visse

Miss, linda, feia

Lindoneia desaparecida

Despedaçados, atropelados

Cachorros mortos na rua

Policiais vigiando

O sol batendo nas frutas

Sangrando

Ai, meu amor

A solidão vai me matar de amor

Lindoneia, cor parda

Fruta na feira

Lindoneia solteira

Lindoneia, domingo, segunda-feira

Lindoneia desaparecida

Na preguiça, no progresso

Lindoneia desaparecida

Nas paradas de sucesso

Ai, meu amor

Page 106: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

106

A solidão vai me matar de dor

No avesso do espelho

Mas desaparecida

Ela aparece na fotografia

Do outro lado da vida

Quarta faixa do álbum, contendo em seus compassos o andamento de um bolero que

conjuga simultaneamente melancolia e cafonice, o título desta canção faz uma remissão a uma

obra idealizada pelo artista plástico Rubens Gerchman. Seu quadro intitulava-se “Lindoneia:

A Gioconda do Subúrbio” de 1966. (Cf. FAVARETTO, 1995, p. 103) Neste quadro, o retrato

de uma moça é simplificado sugerindo uma foto mal impressa de jornal. Seu rosto está

desprovido de maior expressividade, reforçando um olhar melancólico e triste, prevalecendo

cores amarronzadas, reforçando as tonalidades pardas de sua pele bem como os lábios

assimétricos e desproporcionais.

FIGURA 4: “Lindoneia: a Gioconda do subúrbio” – Rubens Gerchman

Baseados nesta obra, Caetano e Gil compuseram letra e canção para a interpretação na

voz cândida e serena de Nara Leão. A apresentação da personagem é feita logo nos primeiros

versos da canção bem como a situação inicial que apontam para o seu desaparecimento. “Na

frente do espelho/ Sem que ninguém a visse/ Miss/ Linda, feia/ Lindoneia desaparecida”. Na

sequência, a relação temporalidade e espaço é marcada por algumas referências como os dias

da semana (“domingo, segunda-feira”), na subjetividade de um possível trajeto de um passeio

por onde teria sido vista pelas últimas vezes (“Lindoneia, cor parda/ fruta na feira”)

(“Lindoneia desaparecida/ Na igreja, no andor”).

Influenciados fortemente pela corrente vanguardista da poesia Concreta, a narrativa

tropicalista foge do arquétipo tradicional apresentando somente um quadro de situação inicial

e desenvolvendo as partes conseguintes através de palavras sobrepostas em contínuas

justaposição, seja de sons-sílabas, de estrofes-ritmos, de metrificações-heterogêneas

Page 107: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

107

exatamente como observa Affonso Romano de Sant´Anna. (SANT’ANNA, apud SILVA,

2010, p. 65)

Interessante observar que os versos que compõem o refrão vão sucedendo-se na

mesma gradação concretista, deixando em suspense ao ouvinte-crítico acerca da real situação

por trás do paradeiro da personagem principal. “despedaçados/ atropelados/ cachorros mortos

na rua/ policiais vigiando/ o sol batendo nas frutas/ sangrando”.

A não linearidade da narrativa tropicalista estava muito mais ligada a um rompimento

do modelo canônico de centramento e mais influenciada por uma poética de descentramento,

ou seja, uma poética que rompia com os padrões vigentes e rígidos de metrificação dos

versos, invertendo por consequência o significado dos elementos e apresentando-se de forma

desarticulada, livre e fragmentada. (Cf. SILVA, 2010, p. 65)

É extremamente importante salientar as relações de intersemiótica entre quadro e

canção e reforçar o quão criativo tornou-se o processo de composição de uma peça musical

narrativa a partir da obra de um artista plástico. Ao estabelecer uma relação de

intertextualidade com o quadro de Gerchman, cujo foco narrativo recai sobre uma mulher

negra, pobre, suburbana e possivelmente vítima de um crime passional, de um sequestro ou de

um abuso – tanto o quadro, quanto a canção, deixam essas questões em aberto - os

tropicalistas tocam também em uma problemática de cunho social, já vigente naquela década

e ainda bastante atual: a violência contra a mulher. Principalmente a mulher negra.

É uma música melancólica, falando dos sonhos românticos de uma moça do

subúrbio, solteira, empregada doméstica, leitora de fotonovelas, que ouve

rádio e vê televisão. Nela se justapõem a sentimentalidade alienada e a

violência social e policial. O mundo de Lindoneia é sem alternativas: só lhe

resta a fuga onírica dos folhetins. A letra é construída por imagens violentas,

como nas montagens cubistas. O arranjo é tradicional romântico.

(FAVARETTO, 1995, p. 104)

Evidente que uma adaptação cinematográfica ampliaria em muito a narrativa através

da construção de toda uma cenografia, e de novos personagens, compondo um enredo mais

elaborado. Entretanto é importante salientar que a não obediência aos padrões canônicos da

estruturação tradicional da narrativa, não impede que observemos que as canções tropicalistas

possuem elementos narrativos. Ainda que esses elementos sugiram apenas indícios de

narrativas, do que narrativas propriamente ditas. (Cf. SILVA, 2010, p. 65).

Page 108: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

108

Sirenes de fábrica irrompem durante a introdução da antepenúltima faixa do álbum14,

o que pressupõe uma possível convocação para a vida urbana. A década de 1960 não ficaria

apenas marcada pelas grandes transformações políticas e culturais, mas também pelas

profundas rupturas nas estruturas familiares. Um período que ficaria conhecido pela expressão

“fim da inocência”, no qual muitos jovens, inspirados pelos ideais hippies propagados pela

contracultura, colocariam os “pés na estrada” rumo às manifestações, aos movimentos, “ao

Carnaval” ou simplesmente movidos pela descoberta de uma experiência migratória rumo à

liberdade dos grandes centros urbanos, sem as amarras da monotonia e dos formalismos.15

Caetano e Torquato Neto captam em “Mamãe Coragem” este momento através de uma

narrativa esparsa e fragmentada.

Mamãe, mamãe, não chore

A vida é assim mesmo

Eu fui embora

Mamãe, mamãe, não chore

Eu nunca mais vou voltar por aí

Mamãe, mamãe, não chore

A vida é assim mesmo

Eu quero mesmo é isto aqui

Mamãe, mamãe, não chore

Pegue uns panos pra lavar

Leia um romance

Veja as contas do mercado

Pague as prestações

Ser mãe

É desdobrar fibra por fibra

Os corações dos filhos

Seja feliz Seja feliz

Mamãe, mamãe, não chore

Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz

Mamãe, seja feliz

Mamãe, mamãe, não chore

Não chore nunca mais, não adianta

Eu tenho um beijo preso na garganta

Eu tenho um jeito de quem não se espanta

(Braço de ouro vale 10 milhões)

Eu tenho corações fora do peito

Mamãe, não chore

Não tem jeito

Pegue uns panos pra lavar

14 Existe uma versão alternativa na qual o som de uma sirene abre a canção. Na versão oficial do álbum este

recurso ficou de fora. Cf. BRAZIL 70 TRANSLATION PROJECT. “#34 – Gal Costa – Mamãe, Coragem

(1968)”. Disponível em https://brazil70translationproject.wordpress.com/2014/02/28/34-gal-costa-mamae-

coragem-1968/. Acesso em 8 fev 2018. 15 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018.

Page 109: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

109

Leia um romance

Leia “Elzira morta virgem”

“O grande industrial”

Eu por aqui vou indo muito bem

De vez em quando brinco Carnaval

E vou vivendo assim: felicidade

Na cidade que eu plantei pra mim

E que não tem mais fim

Não tem mais fim

Não tem mais fim

Décima canção do álbum, esta faixa é interpretada por Gal Costa. Analisando-a dentro

de uma concepção narrativa clássica, é possível identificar o narrador - personagem em

primeira pessoa e sua situação enunciada: a partida do lar para uma vida independente rumo a

novos projetos e objetivos. Evidente que tal ruptura não se concretiza sem alguma tensão, o

que proporciona ao mesmo tempo um desenrolar da narrativa simultâneo a um diálogo entre o

narrador e a personagem secundária, sua mãe, a qual funciona como uma interlocutora de seus

conselhos para que esta possa prosseguir em frente, mesmo diante de sua ausência. (Cf.

SILVA, 2010, p. 60)

Nos primeiros versos ficam nítidos o cuidado e ao mesmo tempo a preocupação do eu

lírico em confortar sua mãe em função de sua ausência, empregando para tanto verbos na

forma imperativa e no pretérito perfeito: “Mamãe, mamãe, não chore/ A vida é assim mesmo/

eu fui embora”. Ao longo da canção, a relação das ações do eu poético com a temporalidade

vão se alternando entre verbos no presente e no passado do modo indicativo: “quero”,

“posso”, “quis”, “fiz”, como que justificando sua partida (no tempo passado) através da

legitimidade no tempo presente de suas escolhas (“Eu quero mesmo é isto aqui”).

Não obstante a situação enunciativa, não se desenvolve mais adiante numa narrativa

linear. Apesar do lamento da mãe mencionado nos versos que introduzem as primeiras

estrofes, não ocorre nenhuma transformação do quadro em função da situação inicial

praticada pelo eu lírico de partir ou de sua mãe de permanecer. À exemplo de “Lindoneia”

esses “espaços vazios” na narrativa não linear dos tropicalistas fica por conta da subjetividade

realizada pelo ouvinte-crítico. A única prerrogativa de que a vida deve prosseguir para a mãe,

são os conselhos para que uma vida cotidiana e bucólica seja levada sem maiores

sobressaltos: “Pegue uns panos pra lavar/Leia um romance / Veja as contas do mercado/

Pague as prestações”.

Para Cristiane Silva, a canção rompe com a estruturação clássica da narratividade

apesar de alguns elementos terem sido apresentados em sua situação enunciativa inicial:

Page 110: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

110

O texto, como se observa, não segue uma sequência linear, pois, após o

acontecimento, no caso a saída do enunciador de casa e a solidão da mãe,

não se desenvolve uma problemática e nem se conta o final da situação que

foi apresentada no início. Destarte, a canção analisada não apresenta o

estatuto de narrativa clássica porque não carrega todas as etapas que a

configurariam como tal. Vale salientar, no entanto, que encontramos

elementos próprios de uma narrativa, mas que apenas apontam para o que

seria uma ideia desta. Esses elementos são justamente os constituintes da

situação inicial que já mencionamos e o emprego do diálogo. (SILVA, 2010,

p. 63)

Porém, é na questão da intertextualidade e das referências que a canção deixa

transparecer as principais virtudes das propostas tropicalistas. A segunda estrofe inicia-se com

uma remissão direta ao verso inicial do poema “Ser mãe” de Coelho Neto: “Ser mãe é

desdobrar fibra por fibra o coração”. (Cf. SILVA, 2010, p. 61) Na visão tropicalista, a citação

do verso é dilatada de maneira a constituir-se uma ampliação parodista do eterno sacrifício

vicário de sua mãe pelos filhos. “Ser mãe é desdobrar fibra por fibra/ o coração dos filhos”.

Ao prosseguir com seus conselhos para que sua mãe continue em frente, duas obras

literárias do século XIX são mencionadas ao longo dos versos. Silva constata que tais

referências longe de constituírem mera citações, integram juntamente com o próprio título da

canção as proposições ideológicas e vanguardistas inerentes ao projeto tropicalista.

Nessa mesma estrofe da canção, o enunciador continua invocando sua mãe e,

para isso, faz-se uma referência interdiscursiva ao discurso literário, quando

a personagem pede que a mãe leia Elzira, a morta virgem e O grande

industrial. O primeiro texto é do escritor Pedro Roberto Viana, publicado em

1833 e adaptado para o teatro e também para a literatura de cordel. A obra

discorre sobre a história de uma jovem que preferiu morrer virgem a casar

com o homem que não amava. Já o segundo livro é uma obra de Georges

Ohnet, escritor francês de grande sucesso em toda a Europa durante o século

XIX. No próprio título da canção, também se percebe referência à peça

teatral Mamãe coragem e seus filhos, de Bertold Brecht. O texto parece

utilizar a cenografia de uma peça teatral, mas que não segue a esperada

ordem estrutural de começo, meio e fim. Tampouco há a presença do nó, já

que a narrativa é apenas interrompida por essa espécie de apelo que

verificamos. (SILVA, 2010, p. 79-80)

Portanto, é importante ressaltar nesta etapa que as canções tropicalistas não se

configuram em sua totalidade em textos narrativos estruturados, visto que as canções em geral

apresentam uma situação inicial enunciativa que, geralmente, não será desenvolvida no

processo ternário da narratividade tradicional através da transformação ou problematização

dos fatos e de uma conclusão ligada a uma situação final. (Cf. SILVA, 2010, p. 65).

Esta prerrogativa também é desenvolvida em relação a temporalidade, em que se

tornam explícitas as proposições do projeto tropicalista em aglutinar simultaneamente em um

espaço de tempo não linear, uma narrativa fragmentada, entrecortada por referências

Page 111: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

111

históricas. “Três Caravelas”, a exemplo de “Soy Louco Por Ti América”, presente no LP

anterior de Caetano, reafirma e idealiza um Brasil latino-americano, remetendo-o às suas

origens mais profundas, ou seja, o descobrimento da América pelas grandes navegações

lideradas por Cristóvão Colombo.

Un navegante atrevido

Salió de Palos un día

Iba con tres carabelas

La Pinta, la Niña y la Santa María

Hacia la tierra cubana

Con toda sua valentía

Fue con las tres carabelas

La Pinta, la Niña y la Santa María

Muita coisa sucedeu

Daquele tempo pra cá

O Brasil aconteceu

É o maior

Que que há?!

Um navegante atrevido

Saiu de Palos um dia

Vinha com três caravelas

A Pinta, a Nina e a Santa Maria

Em terras americanas

Saltou feliz certo dia

Vinha com três caravelas

A Pinta, a Nina e a Santa Maria

Mira, tu, que cosas pasan

Que algunos años después

En esta tierra cubana

Yo encontré a mí querer

Viva el señor don Cristóbal

Que viva la patria mía

Vivan las tres carabelas

La Pinta, la Niña y la Santa María

Viva Cristóvão Colombo

Que para nossa alegria

Veio com três caravelas

A Pinta, a Nina e a Santa Maria

Valendo-se de ritmos latino-americanos como a cumbia colombiana e revezando-se

em uma interpretação bilíngue que mescla o português e o castelhano, Gil e Caetano,

revezam-se nos vocais desta versão que procura estabelecer uma relação intertextual com a

gravação original, “Las Três Carabelas” de autoria dos espanhóis Augusto Alguero Júnior e

Santiago Guardia Moreau, (Cf. SILVA, 2010, p. 67). Aqui ocorre novamente uma ruptura em

Page 112: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

112

relação à perspectiva de uma concepção ternária da narratividade. A situação enunciativa

apresenta como foco narrativo o personagem, navegante ousado, “atrevido” que partiu da

cidade de Palos, na Espanha, em busca do novo mundo, dirigindo suas caravelas exploradoras

em direção às Índias, entretanto deparando-se, em sua trajetória, com o descobrimento do

continente americano. (Cf. SILVA, 2010, p. 67).

No entanto, essa quebra de perspectiva na estrutura da narratologia da canção se dá, no

momento em que Gil intervém, a partir da terceira estrofe:

Muita coisa sucedeu

Daquele tempo pra cá

O Brasil aconteceu

É o maior

Que que há?

O que parece pressupor uma simples exaltação ufanista, os versos em português

remetem, na realidade, à importância da ressignificação histórica que o descobrimento do

Brasil representaria para o próprio continente americano, a partir das explorações das

caravelas portuguesas lideradas por Pedro Álvares Cabral, algumas décadas depois. Estes

versos também representam uma quebra na sequência narrativa que, por sua vez, desloca seu

escopo das proezas e trajetórias realizadas por Cristóvão Colombo, para exaltar, em

português, o descobrimento das terras brasileiras.

Dentro deste contexto, o tempo arcaico resgatado pelo projeto manifestário

tropicalista, perpassa também por uma discussão crítica através de um olhar revisional das

tradições brasileiras, ao mesmo tempo em que as insere em uma condição de

contemporaneidade latino americana,

Aqui, podemos notar o projeto tropicalista, desconstrutor herdado das

influências pós-modernas na medida em que a narrativa é interrompida pela

presença da comemoração pelo descobrimento do Brasil e por uma exaltação

ao país – o que também vai de encontro à característica de o Tropicalismo

resgatar tradições nacionais – em vez de haver uma continuidade na canção

sobre o descobrimento do Novo Mundo, notável feito de Colombo e dos

navegadores que o acompanhavam. (SILVA, 2010, p. 68).

Com esta jornada não linear e fragmentada, típica das influências de elementos

próprios da chamada modernidade, como a tecnologia dos meios de comunicação, os

tropicalistas apresentam seu legado instigante: textos que flertam com elementos da

narratividade tradicional, inseridos no recurso músico-poético de vanguarda da poesia

concreta. Estas rupturas com as formalidades da narrativa tradicional revelam uma postura

hipercrítica na medida em que correlaciona diferentes recursos impregnados de referências

pontuais e pertinentes a serviço da canção popular e que se coaduna aos princípios do ideário

Page 113: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

113

dos manifestos, que primam pela ruptura e por novos experimentos estéticos. Música feita

com conhecimento de causa.

“Coração Materno”, resgatada por Caetano Veloso do repertório de Vicente

Celestino, é outra canção que prima pelo resgate do tempo arcaico. A diferença é que aqui o

escopo narrativo se concentra em um recorte do Brasil rural sertanejo, da década dos anos

1930. Em seu projeto de resgate e revisão crítica das tradições brasileiras, Caetano e os

tropicalistas pinçam uma das músicas mais pungentes do repertório do cancioneiro popular

sob o ponto de vista da relação dialógica entre o emocional e social.

Disse o campônio a sua amada:

-Minha idolatrada diga o que quer?

Por ti vou matar, vou roubar

Embora tristezas me causes, mulher.

Provar quero eu que te quero

Venero os teus olhos, teu porte, teu ser

Mais diga tua ordem espero

Por ti não importa matar ou morrer.

E ela disse ao campônio a brincar:

-Se é verdade tua louca paixão

Partes já e pra mim vai buscar

De tua mãe inteiro o coração.

E a correr o campônio partiu

Como um raio na estrada sumiu

E sua amada quão louca ficou

A chorar na estrada tombou

Chega a choupana o campônio

Encontra a mãezinha ajoelhada a rezar

Rasga-lhe o peito o demônio

Tombando a velhinha aos pés do altar

Tira do peito sangrando da velha mãezinha

O pobre coração

E volta a correr proclamando:

-Vitória, vitória tem minha paixão.

Mais em meio da estrada caiu

E na queda uma perna partiu

E a distância saltou-lhe da mão

Sobre a terra o pobre coração

Nesse instante uma voz ecoou:

-Magoou-se pobre filho meu

Vem buscar-me filho, aqui estou

Vem buscar-me que ainda sou teu!

Contrapondo a sensibilidade rural, provinciana e bucólica às demandas do

desenvolvimento econômico e industrial presentes em canções como “Baby” e “Parque

Industrial”, “Coração Materno”, segunda faixa do álbum, está entre as canções que sofreram

com as intervenções pontuais do maestro, produtor e arranjador Rogério Duprat. Sua inserção

no álbum suscitou reações díspares: causou ao mesmo estranheza por se tratar de uma canção

Page 114: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

114

notadamente de caráter popularesco, portanto revestida de um certo teor kitsch,(Cf.

FAVARETTO, 1995, p. 97) ao passo que, simultaneamente, provoca o deslumbramento

através da síntese da combinação dos elementos populares e eruditos, aqui representados por

uma suntuosa e sofisticada peça orquestrada por Duprat.

Tais sutilezas no arranjo atingem um nível de harmonia tão grande, que se torna

impossível não imaginar as cenas dramáticas dos versos interpretados pela voz calma e

cerimonial de Caetano.

O arranjo que Rogério Duprat fez para essa canção é uma das maiores

vitórias do Tropicalismo. Excelente orquestrador, Duprat criou uma

atmosfera de ópera séria (sem, no entanto, deixar de lembrar trilhas de filmes

de Hollywood), restituindo dignidade e conferindo dignidade à canção

execrável, o que fazia ressaltar minha interpretação assustadoramente sincera

e sóbria. (...) O resultado da combinação do arranjo de Duprat – que

inicialmente se funde aos tiros de canhão da faixa anterior – e minha

“leitura” (...) da letra de Celestino é uma peça que comove porque faz o

ouvinte passar, consciente ou inconscientemente por todas essas referências

que pude explicitar aqui – e por tantas outras que não pude16.

(VELOSO, 1997, p. 294-295)

E é justamente na reinterpretação de Caetano que podemos notar todo um

desnivelamento em relação à composição original, visto que se compararmos as duas versões,

Caetano se despe de toda carga dramática presente nas impostações da voz tenor de Celestino,

para cantar com voz serena os versos narrativos. Para Favaretto, a divergência “estabelece-se

entre a interpretação de Caetano e o arranjo que funciona como se fosse Vicente Celestino:

melodramáticos, cheio de floreios melódicos, sons plangentes nas cordas, com passagens

patéticas ou rompantes nos momentos mais dramáticos”. (FAVARETTO, 1995, p. 97)

A narrativa da canção apresenta uma estruturação mais compacta e ternária em

comparação às três faixas anteriores aqui analisadas, com a cena enunciativa apresentando

como personagem protagonista um camponês que, perdidamente apaixonado por sua amada,

suplica-lhe o amor incondicional mesmo que para isso seja preciso “matar ou morrer”. Num

misto de brincadeira e provocação, sua amada solicita-lhe “de tua mãe, inteiro o coração”. O

desenvolvimento é repleto de ações dramáticas: imediatamente o camponês parte, sem

perceber, em sua ânsia, a sua amada que enlouquece, arrependida, na estrada a tombar. A

tensão se desenvolve de maneira mais pungente, no momento em que o campônio encontra

16 Caetano fez questão de explicar as razões que o levaram a reinterpretar a canção de Vicente Celestino de uma

forma totalmente diferente das entonações dramáticas e operísticas imprimidas por seu autor na versão original.

Para tanto, citou duas de suas principais referências para sua ‘leitura” da canção no álbum: o cantor Sílvio Caldas

e o radiator Roberto Faissal, considerados por Caetano dois “anti-Celestino” em termos de entonação vocal.

(VELOSO, 1997, p. 295)

Page 115: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

115

sua mãezinha na choupana “ajoelhada a rezar”. Cego de paixão, não hesita em cometer o

matricídio, rasgando-lhe o peito, retirando “o pobre coração”.

No desenlace inesperado, tropeça violentamente, deixando escapar-lhe o coração.

Neste instante, ouve a voz de sua própria mãe, suplicando-lhe: “Vem buscar-me, filho aqui

estou / vem buscar-me porque ainda sou teu!”

Ao combinar, com ousadia, elementos da cultura erudita, através da orquestração

primorosa do arranjador Rogério Duprat, com a narrativa da canção dramática de Vicente

Celestino, cujo teor poético, tão somente ressalta o popularesco das convenções provincianas

de um sentimento rural, Caetano e os tropicalistas abarcam em seu álbum-manifesto, talvez

uma das faces mais emblemáticas e ao mesmo tempo estigmatizadas de nossa cultura popular:

o Brasil sertanejo, interiorano, simplório, pobre e distante das engrenagens dos grandes

centros urbanos e industriais que jamais poderia passar incólume ao projeto tropicalista, ainda

que o ônus por tal mirada ideológica e estética tenham sido as acusações de oportunismo,

empreitada de mau gosto ou mera cafonice kitsch.

De qualquer forma, “as relíquias do Brasil”, haveriam de passar por um processo de

resgate destes arcaísmos em contraponto aos rumos econômicos e aos avanços tecnológicos

que se faziam cada vez mais presentes e necessários no cotidiano daquela década.

“Baby” inicia a segunda parte do disco, o chamado “lado B”. Composta por Caetano

Veloso, tornou-se uma das músicas mais conhecidas e bem sucedidas da obra, imortalizada

pela interpretação marcante de Gal Costa. Caetano compusera a canção a pedido de sua irmã,

Maria Bethânia, que além da ideia original do título sugeriu que a mesma contivesse os versos

“leia na minha camisa/ baby I love you”. (Cf. VELOSO, 1997, p. 273)

Tratando-se de Bethânia, tenho certeza de que havia também uma razão

factual e muito pessoal para tão precisas especificações. Fiz a música

procurando recriar a cultura de cançonetas e camisetas e, ao mesmo tempo, o

clima pessoal de Bethânia. Julguei o resultado perfeitamente representativo

da estética (e dada a contribuição de Bethânia, da história) e combinei que

entraria no disco coletivo na sua voz”. (VELOSO, 1997, p. 273-274).

No entanto, Bethânia subitamente declinou de gravá-la, talvez por não querer ver seu

nome diretamente ligado ao projeto tropicalista em detrimento de polêmicas e movimentos

contrários. Gal Costa, que se interessara de imediato pelo lirismo e beleza de “Baby”, abraçou

a oportunidade com sua voz soprano cristalina, consolidando assim o passaporte definitivo

Page 116: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

116

para se tornar não só uma das grandes intérpretes do movimento tropicalista, como

posteriormente da história da música popular brasileira17.

Instrumentalmente a faixa é pontuada, na sua abertura, por um contrabaixo,

acompanhado por leves toques de percussão. Logo a seguir, um acréscimo primoroso de

arranjos de cordas, sob os auspícios de Rogério Duprat, prepara solenemente a voz de Gal,

que adentra a canção numa entonação intimista, espontânea.

Você precisa saber da piscina

Da margarina

Da Carolina

Da gasolina

Você precisa saber de mim

Baby baby

Eu sei que é assim

Você precisa tomar um sorvete

Na lanchonete

Andar com a gente

Me ver de perto

Ouvir aquela canção do Roberto

Baby baby

Há quanto tempo

Você precisa aprender inglês

Precisa aprender o que eu sei

E o que eu não sei mais

E o que eu não sei mais

Não sei, comigo vai tudo azul

Contigo vai tudo em paz

Vivemos na melhor cidade

Da América do Sul

Da América do Sul

Você precisa

Você precisa

Não sei

Leia na minha camisa

Baby, baby

I love you

Como na maioria das faixas do álbum, o lirismo e a leveza presentes em “Baby” não

escapam de uma temática voltada para um exercício de criticidade de seu tempo, como bem

especifica Celso Favaretto:

17 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018.

Page 117: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

117

Diferentemente das canções da época, não há no Tropicalismo uma

demarcação entre músicas líricas (que seriam caracterizadas pelo intimismo,

como na bossa nova) e músicas épicas (significadas pelo engajamento como

nas músicas de protesto). Mesclam-se neles as duas orientações, resultando

daí a especificidade crítica das canções, em que não há violência nem

agressão contra o ouvinte. Assim, na música tropicalista, o prazer é crítico.

O lirismo de “Baby” não exclui a crítica dos estereótipos consumistas;

analogamente, o épico de “Parque Industrial”, é, como deboche, divertido.

(FAVARETTO, 1995, p. 84)

O sentimentalismo de “Baby” contrapõe-se com o cotidiano político-econômico e

paradoxal e simultaneamente se insere nele. Não se pode esquecer a economia, os

movimentos culturais, a “Carolina” de Chico Buarque - importante referência para os

tropicalistas igualmente reverenciada em “Geleia Geral” - a emergente efervescência

protagonizada pela jovem guarda (representada pelo verso “aquela canção do Roberto”) e,

para supremo desgosto de muitos nacionalistas reacionários da época, a própria noção

imperialista de colonização cultural, em que as palavras “querida” e “amor” são substituídas

no tratamento da pessoa amada pelo americanismo “baby” e, de forma mais explícita e

provocativa, em versos como “você precisa aprender inglês” e “baby I love you”. 18

Para Favaretto, trata-se de uma música que capta exatamente o momento e o

sentimento de uma juventude vivenciando suas novas experiências, permeadas por afetividade

e urbanidade:

É música investida de afetividade correspondendo à nova “sensibilidade”

disseminada entre jovens marcados pela expansão das comunicações e do

consumo. Capta o tempo urbano como espaço de uma vida leve e

descontraída, sensibilidade da pele: “Não sei, leia na minha camisa.”

(FAVARETTO, 1995, p. 98)

Já para Frederico Coelho, em sua análise da canção publicada na obra Tropicália ou

Panis Et Circencis, de Ana de Oliveira, a interlocução entre a voz do eu lírico e a personagem

central da canção, aliada a todo um cenário inserido em um contexto socioeconômico, torna-

se um fator preponderante para se compreender a essência das proposições dos versos

compostos por Caetano.

Lembremos: na gravação clássica dos tempos tropicalistas, quem escreve a

canção é um rapaz, mas quem a canta é uma moça. Ambos, tão jovens, nos

seus vinte e poucos anos, assertivos e iconoclastas, são os que afirmam e

avisam Baby enfaticamente: eu sei que é assim. Estamos em 1968,

explodindo o sol dos cinco sentidos na melhor cidade da América do Sul.

Nada mais e nada menos do que isso. O que narram a Baby é a constatação

de que estávamos, finalmente, sendo parte do mundo todo. E esse mundo,

18 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018.

Page 118: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

118

em plena convulsão, exige o novo. (COELHO apud OLIVEIRA, 2010, p.

70)

“Baby”, portanto, representa não apenas o convite para o novo, para a realidade

multifacetada emergente e urgente, especificada aqui pelo tom impositivo usado pelo eu lírico

ao dirigir-se à sua interlocutora (“Você precisa”). Ao metaforizar a contemporaneidade do

final dos anos 1960, a canção assume também uma posição emblemática para as proposições

manifestárias do próprio movimento Tropicalista.

Ao entoar o verso “ouvir aquela canção do Roberto”, por exemplo, Gal vocalizava,

naquele instante, muito mais do que um simples verso arquitetado por Caetano, mas também

uma equação difícil de se definir, devido ao impasse em que se encontrava a própria MPB

naquele instante: indecisa entre “manter suas convicções ideológicas e a integridade de suas

opções estéticas sem perder o contato com o público” (GRANATO, 2016, p. 91). Em

contraposição à Jovem Guarda que se desvinculava propositadamente do engajamento

político, tornando-se um movimento mais fácil de ser veiculado pelos meios de comunicação

de massa, a MPB com seu discurso majoritariamente nacionalista-revolucionário procurava

preservar o mito do artista-intelectual preservando não apenas uma certa distância do público,

como também mantendo a crença unicamente nos poderes redentores da arte. (Cf.

GRANATO, 2016, p. 91-92)

É exatamente neste ponto que canções como “Baby” propõem não apenas a ruptura,

mas a discussão crítica dos rumos da música popular brasileira a partir daquele instante.

Segundo Granato, as canções tropicalistas revelaram este desnivelamento e propuseram uma

desmistificação crítica enquanto criações que poderiam se considerar ao mesmo tempo

produções artísticas e produtos perfeitamente acabados para o consumo da indústria cultural

de massa.

O Tropicalismo representou uma ruptura dentro deste cenário ao propor, ao

mesmo tempo, uma ruptura com o engajamento esquemático da canção de

protesto e uma adesão crítica ao comercialismo midiático ao qual estava

associada a Jovem Guarda. Assim, o movimento desmistificava certas

imagens recorrentes no imaginário nacionalista da MPB e flertava com uma

linguagem que, em alguns momentos, assemelhava-se aquela da Jovem

Guarda. No entanto o flerte com o pop comercial era sempre permeado por

certa malícia e cinismo e o distanciamento em relação à MPB nunca era

total, dado que os tropicalistas sempre prestaram reverência aos ícones da

música popular brasileira e nunca deixaram de tematizar as contradições que

permeavam a cultura nacional. Assim, pode-se afirmar que o movimento

explicitou os impasses do processo cultural brasileiro e redimensionou a

questão da cultura, assimilando novos valores culturais e resgatando outros

do ostracismo. (GRANATO, 2016, p. 92)

Page 119: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

119

“Baby” segue a mesma linha de outras canções de Caetano, como “Alegria, Alegria”,

“Paisagem Útil”, “Superbacana” e “Divino Maravilhoso”, ou seja, uma efusão de construções

imagéticas sobrepostas que evocam a temática do imperialismo através de uma antologia de

estereótipos de consumo perpassadas por suaves metáforas (Cf. FAVARETTO, 1995, p. 98).

No caso de canções como “Baby”, acrescente-se à característica intersemiótica este painel

caleidoscópico de imagens, sempre numa construção dialética com as demais canções do

álbum e com a realidade inerente ao seu tempo. E é exatamente neste ponto em que reside o

maior trunfo da canção.

Ao final da canção, Gal repete os versos em inglês: “Baby, baby I love you”, enquanto

Caetano, ao fundo, entoa os versos de “Diana”, balada rock de grande sucesso nos anos 1950,

fazendo referências a Paul Anka e Celly Campello. “Baby” cumpria, assim, a missão de

atualizar e mudar o conceito das canções românticas, não deixando de aproximar o sujeito de

seu objeto de paixão, porém através de belas e suaves metáforas, como reforça Frederico

Coelho: “‘Baby’ tem que ser o retrato de seu tempo em expansão.” (COELHO apud

OLIVEIRA 2010, p.70).

A sociedade de consumo e o cotidiano socioeconômico inseridos no lirismo de “Baby”

dão a tônica em “Parque Industrial”. Entretanto, esta faixa é extremamente marcada pela

criticidade radical ao período marcado pela ideologia desenvolvimentista vigente naquela

década, ao mesmo tempo em que tece comentários e reflexões igualmente ácidos aos

maneirismos tendenciosos da emergente indústria cultural de massa. (Cf. FAVARETTO,

1995, p. 106)

Retocai o céu de anil

Bandeirolas no cordão

Grande festa em toda nação

Despertai com orações

O avanço industrial

Vem trazer nossa redenção

Tem garotas-propaganda

Aeromoças e ternura no cartaz,

Basta olhar na parede

Minha alegria

Num instante se refaz

Pois temos o sorriso engarrafado

Já vem pronto e tabelado

É somente requentar

E usar

É somente requentar

E usar

Porque é made, made, made, made in Brazil

Page 120: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

120

Porque é made, made, made, made in Brazil.

[...]

A revista moralista

Traz uma lista dos pecados da vedete

E tem jornal popular que

Nunca se espreme

Porque pode derramar

É um banco de sangue encadernado

Já vem pronto e tabelado

É somente folhear e usar

É somente folhear e usar

Porque é made, made, made, made in Brazil

Porque é made, made, made, made in Brazil

A convocação logo na primeira estrofe possui um caráter festivo e solene (“Retocai o

céu de anil/ Bandeirolas no cordão/ Grande festa em toda a nação”), reforçado pela estrutura

da canção calcada nas marchinhas carnavalescas em uma clara remissão às bandinhas de

coreto do interior19. Composta por Tom Zé, a canção tem seu título baseado no livro

homônimo de Patrícia Galvão, a Pagú, influente escritora modernista, cujas produções

circularam entre os anos de 1920 e 193020. Nos vocais, além da voz irônica e irreverente de

Tom Zé, revezam-se ao microfone as vozes de Gil e Gal Costa, e de Caetano e Os Mutantes

no coro durante o refrão, o que leva o ouvinte a desvendar os enunciados por diferentes

ângulos e perspectivas.

“Parque Industrial” talvez seja a faixa que carregue de forma mais acentuada algumas

marcas usadas com extrema habilidade pelos tropicalistas: a ironia, a paródia e o deboche. A

crença cega em um crescimento econômico acelerado que viesse trazer ventos de puro

progresso e transformações é retratada de forma irônica claramente reconhecida pela

entonação desleixada e ao mesmo tempo perspicaz de Gil (“Despertai com orações/ O avanço

industrial/ Vem trazer nossa redenção”).

Na segunda estrofe, o tom irônico e debochado prossegue com a simples satisfação do

eu poético diante da vertigem onírica provocada pela multiplicidade dos alcances da

publicidade, das “garotas-propaganda”, “aeromoças” e “ternuras no cartaz”, que o conduzem

19 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018. 20 Lançado em 1932 com tiragens e divulgações pequenas pagas por Oswald de Andrade, Parque Industrial é

conhecido como o primeiro romance proletário brasileiro, denunciando a vida dos excluídos da sociedade

paulistana e retratando a desigualdade social, numa sociedade moralmente hipócrita. A obra foi assinada pelo

pseudônimo Mara Lobo devido a atritos políticos da autora com o Partido Comunista, decorrentes de sua origem

em um passado pequeno-burguês. Cf. https://www.estantevirtual.com.br/livros/patricia-galvao/parque-

industrial/2272891816. Acesso em 10 mar 2018.

Page 121: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

121

a uma constatação instantânea e autoinduzida (“Basta olhar na parede/ Minha alegria/ Num

instante se refaz”). Porém esta alegria artificial é imediatamente confrontada com os versos da

ponte que antecede o refrão, pois na verdade o nosso sorriso “engarrafado” e “tabelado”,

numa alusão crítica às profundas marcas deixadas pelos governos populistas.

Analisando e contextualizando o período socioeconômico em que se encontrava a

nação naquela década, Roberto Schwarz constata o impacto e o impasse que caracterizavam

os rumos da sociedade brasileira frente às mudanças impostas pelo ciclo desenvolvimentista

que passava a se intensificar mesmo após o golpe de 1964, adquirindo status de uma “causa

patriótica”.

Seja como for, o nacionalismo desenvolvimentista armou um imaginário social

novo, que pela primeira vez se refere à nação inteira, e que aspira, também pela

primeira vez. a certa consistência interna: um imaginário, no qual, sem as falácias

nacionalistas e populistas, parecia razoável testar a cultura pela prática social e pelo

destino de oprimidos e excluídos. […] Nascido na conjunção de mercado interno e

industrialização, o ciclo desenvolvimentista adquiriu certo alento de epopeia

patriótica a partir da construção de Brasília; o seu ponto de chegada seria a

sociedade nacional integrada, livre dos estigmas coloniais e equiparada aos países

adiantados. […] Com o golpe de 1964 a dimensão democratizante do processo

chegava

ao fim. Mas não o próprio nacionalismo desenvolvimentista, que depois de uma

curta interrupção […] voltava e até se intensificava, agora sob a direção, e com

características de direita. (SCHWARZ, 1999, p. 157)

Em meio à tão grande euforia e expectativas provocadas pelo ufanismo decorrente da

ideologia desenvolvimentista, a letra da canção tropicalista alegoriza e satiriza as convenções

provocando no ouvinte crítico o sentimento inverso causado pela crescente onda de progresso.

Tal sentimento recai também sobre os estereótipos viciantes e tendenciosos da indústria

cultural, cuja eclosão tornou-se um resultado direto da expansão desenvolvimentista, mas que

mesmo assim não escapava dos maneirismos mencionados e ironizados na canção.

A revista moralista

Traz uma lista dos pecados da vedete

E tem jornal popular que

Nunca se espreme

Porque pode derramar

Na sequência, o refrão irrompe em uma alegria carnavalizada de gritos, risos, aplausos

e cores entrecortada pelos versos de comando de Gil, conduzindo o espetáculo como se fosse

um mestre de cerimônias: “mais uma vez”, “vamos voltar”. (Cf., FAVARETTO, 1995, p.

107)

O estrangeirismo da expressão “made in Brazil” (fabricado no Brasil), cantada durante

o refrão e ao final numa entonação blasé e cafona por Tom Zé, constitui o tom parodista da

Page 122: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

122

canção suscitando a dialética entre o nacional e o internacional, sugerindo que, por mais que a

imagem do país em desenvolvimento fosse projetada no exterior, ainda não seria o suficiente

para ocultar nossas contradições e dificuldades mais profundas, sobretudo marcadas pela

imensa desigualdade de um país em pleno subdesenvolvimento e ainda fortemente marcado

pelo “acirramento da luta de classes”. (Cf. SCHWARS, 1999, p. 157)

“Parque Industrial” consolida assim um manifesto planfetário em que os tropicalistas

tornam pública a sua insatisfação com a situação vigente da realidade brasileira de uma forma

marcadamente velada pelos recursos alegóricos, revestidos de passagens irônicas e parodistas.

“Geleia Geral” é a canção matriz do álbum. É a canção que sintetiza, resume e transmite os

pressupostos máximos do pensamento e do caráter manifestário tropicalista. Sua construção

notável de imagens, a exuberante profusão de múltiplas referências, recursos estilísticos como

a paródia e a paráfrase, bricolagens, intertextualidade e direcionamentos múltiplos de

elementos de espaço e temporalidade a colocam alinhada às propostas de “Tropicália” de

Caetano, porém avançam significativamente nas questões complexas, paradoxais e sugestivas

da espinhosa tarefa de discutir a realidade nacional, através das “relíquias do Brasil”.

Um poeta desfolha a bandeira

E a manhã tropical se inicia

Resplandente, cadente, fagueira

Num calor girassol com alegria

Na geleia geral brasileira

Que o Jornal do Brasil anuncia

Ê, bumba-yê-yê-boi

Ano que vem, mês que foi

Ê, bumba-yê-yê-yê

É a mesma dança, meu boi

A alegria é a prova dos nove

E a tristeza é teu porto seguro

Minha terra é onde o sol é mais limpo

E Mangueira é onde o samba é mais puro

Tumbadora na selva-selvagem

Pindorama, país do futuro

[...]

Plurialva, contente e brejeira

Miss linda Brasil diz “bom dia”

E outra moça também, Carolina

Da janela examina a folia

Salve o lindo pendão dos seus olhos

E a saúde que o olhar irradia

[...]

Page 123: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

123

Ê, bumba-yê-yê-boi

Ano que vem, mês que foi

Ê, bumba-yê-yê-yê

É a mesma dança, meu boi

[...]

É a mesma dança, meu boi

Na rica alegoria da canção, o poeta “desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia”.

O poeta é o sujeito enunciador e ao mesmo tempo protagonista do foco enunciativo, ao qual

cabe a tarefa de conduzir o ouvinte para uma incursão pela manhã tropical, ensolarada, alegre,

fagueira, festiva, entremeada pelas múltiplas realidades, “a geleia geral brasileira”, imersa na

sua pluralidade que “o Jornal do Brasil anuncia”.

A letra projeta essa alegria instantânea junto a uma tristeza tacanha e

brasileira, em um porto seguro que persegue de melancolia a solitude dos

poetas. Mas, para ela, doa-se uma terra solar, com o mais limpo dos sóis.

Põe-nos à sombra de uma verdadeira escola: a Mangueira, onde o samba é

mais ritmo e mais puro. Toca os tambores contagiantes na selva selvagem, a

Pindorama de um país do futuro que Caetano ironiza no texto/roteiro da

contracapa do disco: “Esse gênero está caindo de moda”, e Capinan

completa: “No Brasil e lá fora: nem ideologia nem futuro”. (FONTELES

apud OLIVEIRA, 2010, p. 60)

Na interpretação vibrante e simultaneamente irônica de Gilberto Gil, o Brasil vai se

descortinando pela canção em um desfile que retrata ícones e riquezas de uma cultura

latejante. A audição aqui é duplamente dirigida, pois capta a fala de um sujeito que se faz

representar e que se dirige a um interlocutor, o outro, o ouvinte, que por sua vez é instado a

decodificar as referências. Para Favaretto, realiza-se assim “a integração dos diversos níveis:

o da música, o dos textos parodiados e o do contexto.” (FAVARETTO, 1995, p. 86)

O resultado de tal recurso faz a canção transitar por diferentes estágios na relação de

espaço e temporalidade, o que remete imediatamente a sua proposta dialógica em relação a

elementos presentes em outras canções do próprio álbum:

Dentre as músicas, “Geleia Geral”, de Gil e Torquato Neto, pode ser

considerada o interpretante do disco: ela é a matriz que condensa todos os

paradigmas redistribuídos na combinatória das outras músicas, da capa a

contracapa. Nela se representa a representação do grau máximo: ato de fazer

música, referência ao contexto, música-tipo que se faz como desconstrução

(de si, do referente, de outros textos). Em “Geleia Geral” sobressai a

justaposição do arcaico e do moderno, feita numa fusão espaço temporal. O

espaço-tempo arcaico: referências à região rural – sertaneja, especialmente

tratada em “Coração Materno”: à época colonial (século XVI) de “Três

Caravelas”. O espaço-tempo moderno: referências ao meio urbano

Page 124: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

124

desenvolvido em “Parque Industrial”: à modernidade, apresentada em

“Baby”. (FAVARETTO, 1995, p. 87)

A canção, cuja letra fora composta por Torquato Neto, encarrega-se de enfileirar

diversas referências que vão compondo a construção de um panorama plurissignificativo e ao

mesmo tempo autorreflexivo, através de um exercício metalinguístico do próprio ato desse

fazer música. O título “Geleia Geral” remonta a um termo usado pelo poeta e ensaísta

concretista Décio Pignatari na revista Invenção. (Cf. PERRONE, 1988, p. 73), passa pela

citação e reverência a versos contidos no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade (“a

alegria é a prova dos nove”, “Pindorama o país do futuro”) e, à exemplo do caráter de ruptura

e renovação proposto no manifesto oswaldiano, busca uma realidade utópica baseada na

quebra de paradigmas estabelecidos pelo patriarcado em detrimento de uma sociedade

utópica, mais livre de modelos de opressão: “Contra a realidade social, vestida e opressora,

cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem

penitenciárias do matriarcado de Pindorama.” (ANDRADE apud TELES, 1992, p. 360)

Por sua vez, o verso “brutalidade e jardim” constitui-se uma nova alusão à onipresente

inspiração oswaldiana na obra tropicalista, fazendo menção ao romance Memórias

sentimentais de João Miraramar. Prosseguindo na dialética de desconstrução e construção a

letra estabelece uma relação dessacralizadora e parodista com trechos que integram o cânone

da literatura brasileira: “Minha terra onde o sol é mais limpo/ E Mangueira onde o samba é

mais puro”, numa clara referência à “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias, enquanto “salve o

lindo pendão dos seus olhos” apresenta conotações à abertura da primeira estrofe do Hino à

Bandeira. Tais recursos conferem à canção não apenas um dinamismo quanto à riqueza de

referências e citações, mas uma proposta de pesquisa e reflexão sobre os nossos valores mais

profundos, à medida que também os desmitifica, retirando-lhes o halo do sagrado.

Torquato e Gil apresentam na quinta estrofe a personagem Carolina. A moça que “da

janela examina a folia” compõe um recorte interessante, se analisarmos a canção homônima

lançada por Chico Buarque no ano anterior (1967). Na canção de Chico21, o eu lírico interpela

a jovem Carolina, a moça de “olhos fundos”, explicando-lhe que o amor acabou. Não

obstante, Carolina não se conforma com o rompimento de tão grande paixão. Cabe ao eu

lírico explicar - primeiro perante ela, depois perante o ouvinte-crítico – que as chances de uma

reviravolta, de um regresso são irreversíveis. Ao longo da canção, Carolina é sempre situada

em uma janela com o semblante triste e os olhos marejados. Ao final, o eu poético sentencia

entre a cumplicidade e o pesar.

21 Canção gravada no álbum Chico Buarque Vol.3 – 1968, RGE.

Page 125: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

125

Lá fora, amor, uma rosa morreu, uma festa acabou, nosso barco partiu

Eu bem que mostrei a ela, o tempo passou na janela

E só Carolina não viu

Em um intrigante recorte de intertextualidade, os tropicalistas situam a mesma

Carolina no espaço e na temporalidade, conferindo-lhe da janela a celebração que o

sofrimento amoroso lhe impediu de auferir na canção de Chico.

E outra moça também Carolina,

Da janela examina a folia

Neste ponto, podemos conferir a versatilidade notável da poética tropicalista, na

medida em que nenhuma referência lhes é gratuita. A fluidez para subverter, desconstruir e

apontar direções é construída com total liberdade de pesquisa para que se persiga o resultado

estético, como se comprova em outra canção, “Baby”, através de uma nova aparição da

personagem Carolina.

Após a quinta estrofe Gil faz uma ponte antes de repetir o refrão. Esta estrofe é

praticamente falada, declamada, no melhor estilo dos ritmos regionais como o repente e a

poesia de cordel. Ela é bem mais longa que as demais (contendo 18 versos), correlacionando

com mais fluidez as múltiplas referências.

É a mesma dança na sala

No Canecão, na TV

E quem não dança não fala

Assiste a tudo e se cala

Não vê no meio da sala

As relíquias do Brasil:

Doce mulata malvada

Um LP de Sinatra

Maracujá, mês de abril

Santo barroco baiano

Superpoder de paisano

Formiplac e céu de anil

Três destaques da Portela

Carne-seca na janela

Alguém que chora por mim

Um carnaval de verdade

Hospitaleira amizade

Brutalidade jardim

As contraposições entre os traços da cultura popular e da cultura de massa encontram

neste trecho uma generosa intersecção. A aglutinação entre o rústico e o moderno fica cada

vez mais explícita e envolvente, afinal nas “relíquias do Brasil” não existe o pudor em se

conjugar o que há de mais sofisticado com o simples, o provinciano, correlacionando

elementos da indústria de entretenimento de massa (“No Canecão, na TV”, “Um LP de

Page 126: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

126

Sinatra”) com o desenvolvimentismo e a simplicidade (Formiplac e céu de anil”) ao passo

que revela nossos traços mais contraditórios e pitorescos (“Doce mulata malvada”, “Santo

barroco baiano”, “Três destaques da Portela”, “Carne-seca na janela”).

Entretanto, nenhuma parte da canção possui poder de síntese maior das intenções

manifestárias tropicalistas que o poderoso refrão que se constitui também no clímax da

canção:

Ê, bumba-yê-yê-boi

Ano que vem, mês que foi

Ê, bumba-yê-yê-yê

É a mesma dança, meu boi

Cantado de forma efusiva e triunfante, o refrão configura-se na tradução concisa do

pensamento central antropofágico oswaldiano: a convergência da dramaticidade presente em

uma das danças típicas nacionais mais representativas da cultura popular brasileira: o bumba-

meu-boi encontra-se com o yê-yê-yê, a forma lúdica, carinhosa e abreviada da expressão

yeah, yeah, yeah, muito explorada pelos Beatles e que caracterizou a sua primeira fase pré-

psicodélica de canções de temáticas adolescentes, marcadamente ingênuas e românticas, mas

que conferiram ao quarteto de Liverpool o status de fenômeno mundial da música pop. Esta

mirada certeira na fusão estilística cria um clima festivo, empolgante. A estrutura musical é

regionalista lembrando ritmos nordestinos como o repente e o baião, porém tendo em

primeiro plano o entrelaçamento de violões e guitarras sugerindo simultaneamente uma

levada rock and roll.

No final, a canção recria um trecho de “Disparada”, de Geraldo Vandré, numa

tentativa sutil dos tropicalistas de se aproximarem de um de seus principais opositores

ideológicos, além de se constituir uma breve referência a canções de protestos, uma vez que

uma das críticas pertinentes ao movimento tropicalista é de que suas canções eram vagas e

alienadas. 22

“Geleia Geral” é o atestado pungente de um momento em que o Tropicalismo tornou-

se um movimento concreto, plausível e crível. A proposição tropicalista básica de um

movimento que estava redirecionando os rumos da cultura brasileira encontra nesta canção a

sua voz. Aqui mais uma vez os tropicalistas escrevem a sua carta de declaração através de um

projeto de revisão crítica livre de amarras isolacionistas, pluralizado através de suas inúmeras

22 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 06 fev. 2018. LETRA 10

Page 127: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

127

possibilidades estéticas e ideológicas, sem temores de expor o que é a arte brasileira: mestiça,

miscigenada, cabocla, arcaica e moderna, provinciana e sofisticada. Segundo Caetano, a

canção era fruto da visão de Torquato Neto para o Tropicalismo e colocava lado a lado “o

folclore tradicional brasileiro e o folclore urbano internacional”, correlacionando-os de forma

concisa relembrando o célebre termo cunhado por Décio Pignatari para a edição da revista

Invenção e que também dá título à canção: uma autêntica “Geleia Geral” (Cf. VELOSO,

1997, p. 296)

Tais proposições alinham “Geleia Geral” de Torquato e Gil à “Tropicália” de Caetano

como as duas principais composições que sintetizavam as intenções máximas do projeto

tropicalista. Duas canções-manifesto que ousaram se posicionar como pontos de

convergência, atualização e revisão crítica da cultura brasileira.

Sons de metais típicos das bandas de festividades religiosas anunciam a última faixa

do álbum. “Hino ao Senhor do Bonfim” – de autoria de Petion de Vilar e João Antônio

Wanderley – trata-se de um hino tradicional religioso sincrético que encerra o álbum na

mesma mirada contrita e religiosa que o abriu.

Glória a ti neste dia de glória

Glória a ti redentor que há cem anos

Nossos pais conduziste à vitória

Pelos mares e campos baianos

Dessa sagrada colina

Mansão da misericórdia

Dai-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia

Glória a ti nessa altura sagrada

És o eterno farol, és o guia

És, senhor, sentinela avançada

És a guarda imortal da bahia.

Dessa sagrada colina

Mansão da misericórdia

Dai-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia

Aos teus pés que nos deste o direito

Aos teus pés que nos deste a verdade

Trata e exulta num férvido preito

A alma em festa da tua cidade

Desta sagrada colina

Mansão da misericórdia

Dai-nos a graça divina

Da justiça e da concórdia

Page 128: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

128

A exemplo de “Miserere Nobis”, as referências religiosas presentes em “Hino ao Senhor

do Bonfim” remontam ás festas típicas oriundas das tradições legadas pelos “baianos do Sul.”

Articulando-se com o introito “Hino ao Senhor do Bonfim” fecha o disco-

ritual. É um hino sincrético, popular religioso: cantado na festa do padroeiro,

celebra as passadas conquistas do povo baiano referindo-se à conquista

presente dos músicos baianos do Sul. (FAVARETTO, 1995, p. 90)

Entoado de forma contrita, suplicante, porém com elevada dose de entusiasmo e

confiança, Caetano e Gil revezam-se nos versos que discorrem acerca das vitórias concedidas

pela graça divina. Esta prerrogativa fica explícita principalmente através de versos que

exaltam as diversas características da divindade exaltada: seus feitos no passado (“Nossos

pais conduziste à vitória/ Pelos mares e campos baianos.”), sua graça protetora (“És o eterno

farol, és o guia/ És senhor, sentinela avançada”), sua revelação que guia e restabelece a

liberdade (“Aos teus pés que nos deste o direito/ Aos teus pés que nos deste a verdade.”).

A estrutura rítmica da canção, pontuada pelos metais exultantes, aqui já mencionados,

passa desde o andamento característico das bandas de coreto do interior até uma típica

marchinha carnavalesca sincopada, conforme podemos notar nos versos da terceira estrofe

entoados por Caetano. O estribilho é puro êxtase de epifania traduzido nos versos entoados

por Gil, Caetano e os Mutantes (“Dai-nos a graça divina/ da justiça e da concórdia”).

Entretanto, após a última vez em que o refrão é entoado, ocorre uma ruptura total de

expectativas em que a palavra “concórdia” vai sofrendo uma extensão fonética através das

vozes até se transformar em puro lamento, numa profusão de gritos, prantos, choros,

sofrimentos, causando no ouvinte crítico uma espécie de anti-clímax, transformando o hino

em um anti-hino, provocando uma ambiguidade estética que parece colocar em cheque todas

as benesses divinas que acabaram de ser cantadas.

Tal recurso acabou sendo interpretado como uma provocação tanto por setores

conservadores da igreja católica, que enxergaram a gravação como uma profanação das

tradições religiosas, como da ala esquerda engajada que considerou a gravação como “ponto

de arremate da alienação dos tropicalistas”23. Quando as vozes terminam seu lamento, são

silenciadas por ruídos de tiros de canhões, os mesmos que encerram “Miserere Nobis”, a faixa

de abertura, o que pressupõe, o medo, o perigo à espreita, as tensões decorrentes de um país

cada vez mais submetido aos estertores de um regime político de vigília e repressão militar.

23 LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível em

https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 10 jul 2018.

Page 129: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

129

Longe, porém, de buscarem um consenso, os tropicalistas procuraram unir introito e

epílogo de seu álbum-manifesto reivindicando a utopia de uma sociedade igualitária, menos

repressora, mais generosa e mais justa em suas atribuições. Entre “Miserere Nobis” e “Hino

ao Senhor do Bonfim”, as relíquias do Brasil foram expostas e entoadas pelo disco-manifesto

tropicalista sem pudor algum em se ocultar as contradições mais complexas e profundas da

pluralidade da cultura brasileira.

Page 130: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

130

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste biênio 2017-2018, que marca os cinquenta anos do surgimento do movimento

Tropicalista, torna-se extremamente relevante uma revisão contínua do legado permanente e

da importância histórica da intervenção cultural e hipercrítica processada a partir dos rumos

abertos, expandidos e percorridos por suas proposições. É praticamente um consenso que o

Tropicalismo, enquanto representação da última vanguarda brasileira, posicionou-se

simultaneamente de forma inadvertida e estratégica, beneficiado não apenas pelos rumos e

polarizações de uma emergente indústria cultural de massa, problematizando, dentre outras

coisas, especificamente no campo musical, a relação entre a canção e o consumo, como

também por esses fatores assumiu de certa forma seu lugar como movimento catalisador das

tendências antecedentes (Concretismo, Modernismo e, consequentemente, os movimentos

artísticos do início do século XX), o que somado aos fundamentos estabelecidos pela Bossa

Nova, valeu-lhe também a polêmica inserção como movimento sucessor na chamada linha

evolutiva 24 (grifo meu) da música popular brasileira. (Cf. NAPOLITANO; VILLAÇA, 1997,

p. 12).

Dentre os chamados eventos fundadores do Tropicalismo, o seguimento musical foi,

sem sombra de dúvidas, aquele que melhor soube alinhar e catalisar as proposições

vanguardistas, além de estabelecer um novo padrão de “brasilidade” às canções, conjugando e

correlacionando aspectos paradoxais, através do seu “caráter pluralista capaz de agregar o

melhor (e o pior) da cultura, sua inserção despudorada nos meios de comunicação de massa,

seu viés festivo em consonância com certa vocação celebratória presente na cultura popular

brasileira”. (GRANATO, 2016, p. 10)

Neste momento chegamos, então, ao ponto nevrálgico desta pesquisa. Tropicália ou

Panis Et Circencis cumpriu as proposições planejadas por Caetano enquanto álbum manifesto

das intenções tropicalistas? Baseado nos preceitos modernos do gênero manifesto, o álbum

merece esta alcunha a que lhe vem sendo atribuída, ao longo de cinco décadas?

Primeiramente, é importante ressaltar o papel singular que o álbum representou para o próprio

movimento. Temos nele um ponto de intersecção entre os chamados eventos fundadores. O

disco tanto carrega elementos estéticos da obra plástica sensorial Tropicália de Hélio Oiticica,

24 Napolitano e Villaça citam um debate em que Caetano Veloso, em entrevista à Revista Civilização Brasileira

explica que “a música brasileira se moderniza e continua brasileira à medida em que toda informação é

aproveitada (e entendida) da vivência e da compreensão da realidade brasileira”. Em seguida reforçam que o

termo linha evolutiva pode sugerir “uma temporalidade própria da ideia de vanguarda: a reafirmação, cultural e

ideológica, de rupturas, como eixos determinantes da relação arte-sociedade”. (NAPOLITANO;VILLAÇA,

1997, p. 10).

Page 131: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

131

via versos de “Geleia Geral”, considerada por Caetano como uma visão ampliada de Torquato

Neto e Gilberto Gil para a sua própria “Tropicália”, como herdou elementos do deboche, da

provocação e da mirada antropológica presentes tanto na remontagem da peça O Rei da Vela

por José Celso Martinez, como na obra cinematográfica Terra em Transe de Glauber Rocha

(conforme ocorre na própria “Geleia Geral” e em canções como “Parque Industrial” e “Hino

ao Senhor do Bonfim”). A própria noção da representação mimética fragmentada da realidade

através da exposição de signos, de linguagens e narrativas não lineares, perpassaria não

apenas pelas imagens trabalhadas na dramatização da peça de Oswald de Andrade e dos

cortes da obra de Glauber, como se tornariam uma marca autenticada em canções pré-

tropicalistas como “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, e do álbum, através de

“Lindoneia” e das imagens sobrepostas metafóricas de “Enquanto o Seu Lobo Não Vem”.

(Cf. VELOSO, 1997, p. 244-245)

O grande mérito do álbum, portanto, foi saber sintetizar e transpor para o campo

poético-musical todas essas “tensões” estéticas prementes, ampliando-lhes os horizontes,

revestindo suas doze canções de uma revisão crítica das “tradições culturais, porém sem tentar

perpetuar nada”. (PERRONE, 1988, p. 77)

Como todo manifesto elaborado na contemporaneidade, Tropicália ou Panis Et

Circencis baseou suas proposições básicas na problematização das “relíquias do Brasil” em

uma revisão parodista das nossas contradições e riquezas culturais, políticas, artísticas e

sociais, correlacionando procedimentos diversos como carnavalização, festa, alegoria do

Brasil, crítica da musicalidade brasileira, crítica social, cafonice (Cf. FAVARETTO, 1995, p.

78). Sem conter sequer um verso explícito de protesto, o “coletivo baiano” lançou um álbum

conceitual e polissêmico, em que as noções de rupturas e retomadas já ficariam explícitas

desde a produção capista multicolorida e representativa de elementos intersemióticos, que ora

dialogariam com as canções, ora se revelariam plenas de referências multifacetadas que

abarcavam filmes, produções animadas, referências políticas rompendo com isso as

concepções meramente formais e utilitaristas de tais produções.

Rupturas e retomadas, aliás, que norteariam praticamente o direcionamento das doze

canções selecionadas para o repertório da obra. As narrativas fragmentadas e despidas de

linearidade, com fortes influências concretistas de “Lindoneia”, e “Mamãe Coragem”,

infringiam as concepções formais e clássicas da narratologia tradicional. A temporalidade

específica da interpretação bilíngue (português e espanhol) da adaptação em “Três Caravelas”

em que, em meio ao tema das grandes navegações e feitos do personagem Cristóvão

Colombo, os tropicalistas exaltam o descobrimento do Brasil. A retomada de gosto

Page 132: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

132

considerado duvidoso e até mesmo kitsch para época de uma canção notadamente marcada do

cancioneiro popular da chamada era do rádio está presente na regravação da narrativa

dramática do recorte de um Brasil rural representado em “Coração Materno” de Vicente

Celestino e até mesmo na cafonice escancarada dos arranjos para o bolerão de “Lindoneia”

revelavam a capacidade dos tropicalistas em retomar tendências e elementos considerados

recalcados dentro do próprio cenário da música popular.

Não obstante todos estes fatores, o caráter manifestário maior e mais ambicioso de

Caetano Veloso e Gilberto Gil como idealizadores e mentores desta obra, foi consolidar as

tendências de vanguarda presentes na literatura brasileira a um projeto musical poético e

crível que passaria a estabelecer a partir de então todo um novo padrão para os rumos da

música popular brasileira. Ao se alinhar a correntes vanguardistas como a Antropofagia de

Oswald de Andrade e o Concretismo protagonizado nos anos 1950, o álbum posicionou a si

próprio como um projeto de vanguarda ao mesmo tempo em que se apresentava como produto

de consumo através de canções claramente populares. Entre a polarização causada na

indústria musical pelas músicas marcadamente engajadas de cunho nacionalista e de protesto

e os movimentos musicais que marcavam a juventude mas se posicionavam com uma certa

neutralidade ideológica como a Jovem Guarda, os tropicalistas marcaram sua intervenção

unindo o projeto estético dos versos concretistas presentes em canções como “Miserere

Nobis” e “Batmakumba” ao conceito do canibalismo cultural promulgado pelos modernistas,

notadamente através da Antropofagia, corrente vanguardista elaborada por Oswald de

Andrade. A influência oswaldiana nas propostas tropicalistas se revelaria decisiva tanto

através dos versos concretistas sintéticos “visuais” – herança do recurso da poesia ready made

– como na estética do “canibalismo cultural” incorporando de forma ousada, para época,

elementos do pop internacional e de vanguarda como Beatles, psicodelia, experimentações

múltiplas via recursos eletrônicos e colagens em sobreposições, como acontece, por exemplo,

em determinadas passagens de “Panis Et Circenses”.

A estética concretista presente na decomposição e recomposição da canção

“Batmakumba” evidencia toda a importância da influência concretista em uma música

futurista que se vale das correlações intersemióticas (poema concreto, recurso visual,

elementos da cultura pop, referências a religiões afro brasileiras) para discutir criticamente as

nossas tradições e contradições culturais mais profundas, correlacionando simultaneamente o

arcaico e o provinciano ao tecnológico e o moderno.

Dentro desta perspectiva, as intenções iniciais de Caetano de realizar um álbum que

funcionasse como um manifesto das proposições do movimento tropicalista acabaram se

Page 133: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

133

revelando bem-sucedidas, na medida em que a obra - a partir das revisões inexoráveis

proporcionadas pelo tempo - foi se tornando um revisor de paradigmas que a própria

intervenção e retomada tropicalistas vieram problematizar. O álbum, muito mais que seus

eventos cofundadores, contribuiu para a captura de um momento singular na cultura

brasileira. A reivindicação implícita do projeto, das canções à capa, da produção aos figurinos

dos artistas, era de que aquele seria o momento decisivo para que se revelasse a cultura

brasileira como ela realmente deveria ser mostrada: um axioma de múltiplas possibilidades e

direções. É fundamental ressaltar também a pluralidade de discursos presentes na obra

tropicalista, e de como esses discursos foram estruturados como produto e uma ideia a serem

vendidas, no sentido mais amplo de disseminação de ideias, presentes na carga semântica do

verbo vender. (Cf. SILVEIRA, 2010, p. 32)

Uma grande intersecção que transcende o termo “mistura” e é capaz de unir em uma

mesma canção a sofisticação dos arranjos eruditos às narrativas e anseios das culturas rurais e

urbanas (como em “Coração Materno” e em “Baby” respectivamente), a cultura popular

entranhada na tradição folclórica da festa do Bumba meu Boi ao fenômeno de massa da

música pop internacional dos Beatles (como no refrão épico de “Geleia Geral”).

Neste sentido, enquanto uma obra que se dispôs a se posicionar como um manifesto-

arte das proposições do movimento, o álbum estabeleceria também uma espécie de padrão

musical na música popular brasileira. A partir dele, as múltiplas percepções das contradições

socioeconômicas brasileiras, o binômio música e poesia, o tratamento apurado e técnico das

canções, as pesquisas e experimentações de novas sonoridades, a valorização e revisão das

nossas tradições culturais e, sobretudo, a abertura para as influências da música pop

estrangeira de diferentes matizes passariam a ficar cada vez mais presentes nas composições

das produções musicais, como podemos verificar nos trabalhos de nomes como Novos

Baianos, Secos e Molhados e os próprios Mutantes. Ainda no começo da década dos anos

1970, Milton Nascimento e Lô Borges lideraram, em Belo Horizonte, o célebre movimento

Clube da Esquina que se caracterizou por uma importante fusão entre os elementos

regionalistas e a música pop centralizada nos Beatles, através do disco homônimo lançado em

1972. Nos anos 1980, o trabalho de pesquisa de bandas do cenário do rock nacional como

Paralamas do Sucesso e Titãs, e de nomes ligados ao movimento Vanguarda Paulistana como

Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção exploravam nitidamente as tradições da nossa música

popular junto aos elementos pop internacionais com forte influência marcada da poesia

concreta, além de letras engajadas de forte cunho de crítica social.

Page 134: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

134

A partir da década dos anos 1990, novos nomes e talentos foram surgindo e

perpetuando trabalhos de influências claramente tropicalistas ora revisando, ora revisitando a

cartilha básica das proposições manifestárias idealizadas por Caetano e Gil como Lenine,

Zeca Baleiro, Maria Gadú, Chico César, Pedro Luís e a Parede e Los Hermanos. Em Recife, o

movimento manguebeat ganhou força graças ao engajamento de bandas como Mundo Livre

S/A e Chico Science e Nação Zumbi, caracterizando-se pela correlação de ritmos regionais,

como o maracatu com o rock, o hip hop, o funk e elementos da música eletrônica.25

Ao adentrarmos o novo milênio, Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown

uniram forças para o projeto Tribalistas, cujo álbum homônimo de 2002 alcançou grande

êxito comercial simultaneamente à sua influência direta dos Tropicalistas, tanto no título,

como nas propostas de intersecção de música pop, poesia concreta e ritmos regionais.

E mesmo em tempos cínicos e belicosos que seguem, os ecos das intervenções

culturais e ideológicas dos tropicalistas encontram ressonância em segmentos marcados pela

resistência e pela acuidade visual com que enfrentam os múltiplos desafios turbulentos dos

horizontes da realidade social, como podemos verificar, por exemplo, no movimento hip hop

brasileiro. Trabalhos de grupos como Racionais MC’s e Facção Central, e de rappers como

Emicida, Criolo, Rappin’Hood e Flávio Renegado inserem-se, a exemplo dos ideais

tropicalistas, a uma tradição contracultural brasileira de artistas engajados em movimentos

que se dispõem a propor uma “criação que pensa e reflete sobre o tempo histórico em que

estão inseridos. Observam o mundo e apontam para novos caminhos e propostas estéticas,

além de conviverem fisicamente com as formas de repressão patrocinadas pelo Estado”.

(PIRES, 2007, p. 8).

Enquanto movimento de vanguarda, o Tropicalismo, sobretudo no âmbito musical,

soube, através de seu álbum-manifesto que se apresentou como um manifesto-arte, captar

variadas tendências de rupturas paradigmáticas da música brasileira, provocando a

ressignificação de seus aspectos, tradições e contradições, projetando-os para o futuro

conforme observa Luciano Cavalcanti: “O Tropicalismo [...] vinha denunciar a pretensão à

pureza da MPB, fazendo um corte na cultura brasileira e unindo o artesanal ao industrial, o

acústico ao elétrico, o rural ao suburbano, o brasileiro ao estrangeiro, a arte à mercadoria.”

(CAVALCANTI, 2007, p. 49).

25 OLIVEIRA, Ana de. “Ruídos Pulsativos: herdeiros musicais”. Disponível em http://tropicalia.com.br/ruidos-

pulsativos/herdeiros-musicais. Acesso em 17 mar 2018.

Page 135: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

135

Tal clivagem e ao mesmo tempo afluxo de intersecções tornam-se totalmente

convergentes e relevantes para que retornemos, de forma sintética, às considerações

pertinentes de Alfredo Bosi, apresentadas no primeiro capítulo desta dissertação.

Para Bosi, o Brasil não é um país dividido com uma metade moderna e progressiva e

outra anacrônica e regressiva. Mas um conjunto articulado que produz desenvolvimento e

atraso, riqueza e desigualdade, ostentação e miséria. Um país em que não se pode

necessariamente atribuir a uma parcela letrada o monopólio de ideias genuinamente autênticas

ou importadas de países desenvolvidos, enquanto as parcelas mais humildes ficariam

condenadas e sujeitas a superstições de uma cultura popular provinciana. A conclusão que

podemos inferir e reforçar junto ao crítico é que não existe uma cultura genuinamente

brasileira, pura. O que existe, na realidade, no cerne do que poderíamos considerar como

culturas brasileiras, é a noção de conflito, de choques de interesses, de movimentos de ideias e

de um contínuo processo antropofágico de assimilação e deglutição das influências exteriores

na vivência brasileira em que os Tropicalistas, dentro de uma linha evolutiva na arte

brasileira, souberam mimetizar tão bem.

Portanto, sem qualquer pretensão de esgotarmos todas as questões e reflexões a

respeito de um tema extremamente rico e complexo como é o Tropicalismo e de um álbum

essencial para discografia e historiografia da música popular brasileira, cremos que o ponto de

interrogação pode ser retirado do final do título desta pesquisa para finalmente podermos

afirmar: Tropicália ou Panis Et Circencis: Histórias de Rupturas e Intervenção Cultural de

um Autêntico Manifesto Tropicalista.

Page 136: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

136

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMANAQUE BRASIL. “Tom Zé e o homem da mala”. Disponível em

https://youtu.be/JsWw-vMnAiU. Acesso em Acesso em 6 fev 2018.

ANDRADE, Mário de. “Prefácio Interessantíssimo”. In: Pauliceia Desvairada. São Paulo:

Poeteiro Editor Digital, Projeto Livro Livre, São Paulo, [1922] 2016. p. 2-11. Disponível em

http://sanderlei.com.br/PDF/Mario-de-Andrade/Mario-de-Andrade-Pauliceia-Desvairada.pdf.

Acesso em 30 mar 2018.

BARROS, Patrícia Marcondes de. “Tropicália: contracultura, moda e comportamento em fins

da década de 60”. In: dObra[s]. v. 9, n. 20 (2016), p. 160-177. Disponível em

https://dobras.emnuvens.com.br/dobras/article/view/482. Acesso em 30 mar 2018.

BASUALDO, Carlos, Tropicália: uma revolução na cultura brasileira (1967-1972). São

Paulo, Cosac Naify, 2007.

BERMAN, Marshall, “Marx, Modernismo e Modernização”. In: Tudo o que é sólido

desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BORTULUCCE, Vanessa Beatriz. “O manifesto como poética da modernidade”. In:

Literatura e Sociedade. n. 21 (2015), p. 5-17. Disponível em:

http://www.revistas.usp.br/ls/article/view/114486. Acesso em 30 mar 2018.

BOSI, Alfredo. “Cultura brasileira e culturas brasileiras/pós-scriptum”. In: ______. Dialética

da colonização. São Paulo: Cia das Letras, 1992. p. 308-375.

BOSI, Alfredo, “Plural, mas não caótico”. In: Temas e situações. São Paulo. Ática, 1999.

BRAZIL 70 TRANSLATION PROJECT. “#34 – Gal Costa – Mamãe, Coragem (1968)”.

Disponível em https://brazil70translationproject.wordpress.com/2014/02/28/34-gal-costa-

mamae-coragem-1968/. Acesso em 8 fev 2018.

CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34,

1997.

CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 2 ed. São Paulo: Perspectiva,

1974.

CAMPOS, Haroldo. “Uma poética da radicalidade”. In: ANDRADE, Oswald de. Pau-Brasil.

São Paulo, Globo, 1991.

CAVALCANTI, Luciano Marcos Dias. Música popular brasileira e poesia: a valorização do

“pequeno” em Chico Buarque e Manuel Bandeira. Belém: Paka-Tatu, 2007.

CYNTRÃO, Sylvia Helena (Org.). A forma da festa. Tropicalismo: a explosão e seus

estilhaços. Brasília: Editora UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.

DUNN, Christopher. Brutalidade Jardim: a Tropicália e o surgimento da contracultura

brasileira. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

Page 137: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

137

FAVARETTO, Celso. Tropicália, alegoria, alegria. 3 ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 1995.

FERREIRA, Judivan Alves. “Intersecções entre Comunicações e Artes: Uma leitura

possível”. In: Analis do XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-

Oeste, 2014. Disponível em https://goo.gl/jcj3uc. Acesso em 30 mar 2018.

GELADO, Viviane. "O manifesto de vanguarda na América Latina". In: Sínteses. v. 11

(2016), p.193-214. Disponível em https://goo.gl/j3JCqj. Acesso em 30 mar 2018.

“GLAUCO Rodrigues”. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São

Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em:

http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa1529/glauco-rodrigues. Acesso em 30 mar 2018.

GRANATO, Guilherme de Azevedo. Tropicalismo e vanguardas europeias: Imperativo de

ruptura, processos construtivos e alcance crítico. Dissertação (Mestrado em Filosofia).

Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Ouro Preto, 2016. Disponível em

http://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/8167. Acesso em 30 mar 2018.

HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde

1960/70. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004. Disponível em

https://issuu.com/heloisabuarquedehollanda/docs/impress__es_de_viagem. Acesso em 30 mar

2018.

LAFETÁ, João Luiz. “Os pressupostos básicos”. In: 1930: A crítica e o Modernismo. São

Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p. 19-38.

LEE-MEDDI, Jeocaz. “Tropicália ou Panis Et Circencis - O álbum manifesto”. Disponível

em https://virtualia.blogs.sapo.pt/34145.html. Acesso em 6 fev 2018.

LONTRA, Hilda O. H. “Tropicalismo, a explosão e seus estilhaços”. In: CYNTRÃO, Sylvia

Helena (Org.). A forma da festa. Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços. Brasília: Editora

UnB; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. p. 9-69.

MAGALHÃES, Hilda Gomes Dutra.“Tradição e modernismo em Prefácio interessantíssimo

de Mário de Andrade”. In: Polifonia, v. 3, n. 03 (1997). p. 60-71. Disponível em

http://www.periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/1176/0. Acesso

em 30 mar 2018.

MASSEBEUF, Fernanda. “Feminismo e literatura”. In: Blog Verdes Trigos. Disponível em

http://www.verdestrigos.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=1342. Acesso em 30 mar 2018.

NAPOLITANO, Marcos; VILLAÇA, Mariana Martins. “Tropicalismo: As relíquias do Brasil

em debate”. Revista Brasileira de História [online]. 1998, vol.18, n.35, pp.53-75. Disponível

em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881998000100003.

Acesso em 30 mar 2018.

NUNES, Benedito. “Antropofagia ao alcance de todos”. In: ANDRADE, Oswald de. Obras

Completas. vol. VI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p. xi-liii.

Page 138: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

138

NUNES, Benedito. Oswald Canibal, São Paulo: Perspectiva, 1979.

OLIVEIRA, Ana de (Org.). Tropicália ou Panis et Circencis. São Paulo: Iyá Omin, 2010.

OLIVEIRA, Ana de. “Ruídos Pulsativos: herdeiros musicais”. Disponível em

http://tropicalia.com.br/ruidos-pulsativos/herdeiros-musicais. Acesso em 17 mar 2018.

OLIVEIRA, Cauhana Tafarelo de. O design gráfico tropicalista e sua repercussão nas

capas de disco da década de 1970. Dissertação (Mestrado em Tecnologia). Universidade

Federal do Paraná, 2014. Disponível em http://repositorio.utfpr.edu.br/jspui/handle/1/807.

Acesso em 30 mar 2018.

PERRONE, Charles. “Caetano Veloso e a Tropicália” In: Letras e Letras da MPB. Tradução

José Luiz Paulo Machado. Rio de Janeiro: Elo, 1988.

PIRES, Carlos Eduardo de Barros Moreira. Canção popular e processo social no

tropicalismo. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada). São Paulo:

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009.

Disponível em http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8151/tde-22022010-135938/pt-

br.php. Acesso em 30 mar 2018.

PIRES, João Rodrigo Xavier. Da Tropicália ao Hip-Hop: Contracultura, repressão e alguns

diálogos possíveis. Monografia (Bacharelado em História). Departamento de História.

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2007. Disponível em

https://goo.gl/nAqB3C. Acesso em 30 mar 2018.

RENNÓ, Carlos, (org.) Gilberto Gil todas as letras. 2 ed. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

REVISTA FORUM. “Os 50 anos da Marcha Contra a Guitarra Elétrica”. Disponível em

https://www.revistaforum.com.br/os-50-anos-da-marcha-contra-guitarra-eletrica/. Acesso em

6 fev 2018.

SANTANA, Valeria Nanci de Macedo. O desenho de capas de discos bossa-novistas e

tropicalistas: indicação da cultura brasileira num tempo (1958-1968). Dissertação (Mestrado

Acadêmico em Desenho Cultura e Interatividade). Universidade Estadual de Feira de Santana,

Feira de Santana, 2013. Disponível em http://tede2.uefs.br:8080/handle/tede/256. Acesso em

30 mar 2018.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. “Tropicalismo, a paródia e os meios de comunicação;

Tropicalismo! Tropicalismo! Abre as asas sobre nós!” In: ______. Música popular e moderna

poesia brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 2013.

SCHWARZ, Roberto, “Cultura e política, 1964-1968”. In: O pai de família e outros estudos.

Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 70-111.

SCHWARZ, Roberto, “Fim de Século”. In: ______. Sequências brasileiras: ensaios. São

Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 155-162.

SILVA, Cristiane Alves. A ruptura da narratividade tradicional nas cenas enunciativas das

canções do tropicalismo. Dissertação (mestrado em Linguística). Universidade Federal do

Page 139: UNIVERSIDADE VALE DO RIO VERDE Recredenciamento e-MEC ...€¦ · Tropicália ou Panis Et Circencis a partir da ideia corrente de sua configuração como um “manifesto” do Tropicalismo,

139

Ceará, Departamento de Letras Vernáculas 2010. Disponível em

http://www.repositorio.ufc.br/handle/riufc/8857. Acesso em 30 mar 2018.

SILVEIRA, Juliano Maliverni da. Vozes dissonantes: discurso da diversidade e diversidade

de discursos no manifesto tropicalista. Dissertação (Mestrado em Literatura). Universidade

Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós-Graduação

em Literatura, Florianópolis, 2010. Disponível em https://goo.gl/tWVnEL. Acesso em 30 mar

2018.

SORROCE, Danilo Sérgio. Domingo no Parque: Canção e poética de Gilberto Gil.

Campinas: Editora Komedi, 2005.

TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia & Modernismo brasileiro. Rio de Janeiro:

José Olympio, 2012.

VASCONCELLOS, Gilberto. Música Popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Graal,

1977.

VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

ZILIO, Carlos. “Da Antropofagia à Tropicália”. In: ZILIO, Carlos; LAFETÁ, João Luiz;

LEITE, Ligia Chiappini M. Artes plásticas e Literatura, Brasília: Brasiliense, 1983.