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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Paula Francielle Domingues LYGIA BOJUNGA QUEBRANDO “TABUS” CURITIBA 2011

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Paula Francielle Domingues

LYGIA BOJUNGA QUEBRANDO “TABUS”

CURITIBA

2011

Paula Francielle Domingues

LYGIA BOJUNGA QUEBRANDO “TABUS”

Monografia de Conclusão de Curso apresentado ao curso de Especialização em Língua Portuguesa e Estudos Literários da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do grau de Especialista. Orientadora: Profª. Ms. Deisily de Quadros.

CURITIBA

2011

Que coisa é o livro? Que contém na sua frágil arquitetura aparente? São palavras, apenas, ou é a nua exposição de uma alma confidente? De que lenho brotou? Que nobre instinto da prensa fez surgir esta obra de arte que vive junto a nós, sente o que sinto e vai clareando o mundo em toda parte?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................8

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................................11

2.1 AS LEITURAS PROIBIDAS NO DECORRER DA HISTÓRIA...................11

2.2 OS “TABUS” NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL ...........................29

3 LYGIA BOJUNGA QUEBRANDO OS “TABUS” ...........................................44

3.1 CONTEXTUALIZANDO A AUTORA ...................................................................44

3.2 O ABRAÇO .........................................................................................................48

3.2 AULA DE INGLÊS...............................................................................................58

3.3 SAPATO DE SALTO ...........................................................................................66

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................80

REFERÊNCIAS ................................................................................................................83

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1 – LIVRO CAÇADAS DE PEDRINHO, DE MONTEIRO LOBATO,

DISTRIBUÍDO A ESCOLAS PÚBLICAS NO PNBE (FOTO:

DIVULGAÇÃO)............21

FIGURA 2 – LIVRO NARIZINHO ARREBITADO, DE MONTEIRO LOBATO. CAPA

DA 1ª EDIÇÃO DE 1921.-

...........................................................................................30

FIGURA 3 – LIVRO O MENINO QUE BRINCAVA DE SER, DE GEORGINA DA

COSTA MARTINS. CAPA DA 1ª

EDIÇÃO.................................................................37

FIGURA 4 – LIVRO O MENINO QUE BRINCAVA DE SER, DE GEORGINA DA

COSTA MARTINS. CAPA DA 2ª

EDIÇÃO.................................................................38

FIGURA 5 – LYGIA

BOJUNGA..................................................................................41

FIGURA 6 – CAPA DO LIVRO O ABRAÇO, ILUSTRADA POR RUBEM

GRILO.....44

FIGURA 7 – GRAFISMO INTERNO DO LIVRO O ABRAÇO, ILUSTRADO POR

RUBEM

GRILO..........................................................................................................46

FIGURA 8 – CAPA DO LIVRO AULA DE INGLÊS, ILUSTRADA POR REGINA

YOLANDA..................................................................................................................

55

FIGURA 9 – CAPA DO LIVRO SAPATO DE SALTO, ILUSTRADA POR REGINA

YOLANDA..................................................................................................................

66

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo verificar as peculiaridades da autora Lygia Bojunga ao abordar com maestria, em suas obras, temas que são considerados “tabus” em nossa sociedade conservadora, temas que são inerentes à condição humana e fazem parte do cotidiano de todos, bem como das crianças e jovens. Diante de uma variedade de temas tratados pela autora, será feito um recorte para a análise da abordagem dos conflitos de ordem sexual e amorosa nas seguintes obras: O abraço (1995), Aula de inglês (2006) e Sapato de salto (2006). Na primeira, a fantasia se funde com a realidade dos fatos; na segunda, o desejo se faz presente nas relações de amores e paixões não correspondidas e, na terceira, a realidade nua e crua de uma vida de abandono, abusos, pobreza e prostituição é revelava por meio de uma linguagem clara e objetiva. Palavras chave: censura; literatura brasileira; literatura infantil e juvenil; “tabus”; Lygia Bojunga.

1 INTRODUÇÃO

A leitura está presente na vida de todo ser humano desde o princípio de sua

vida. Assim como existem vários tipos de leituras, também existem vários tipos de

leitores. Iremos nos deter apenas nos leitores da palavra escrita, aqueles que

através da leitura se apropriam de um texto, interpretando-o e significando-o. O

texto, quando apropriado pelo leitor, passa a exercer um grande poder, poder este

assimilado pelos grandes líderes políticos, religiosos, econômicos e sociais do

mundo todo. Tal assimilação resultou em diversos tipos de censura em relação à

leitura, com a tentativa de anular o potencial de construção, reflexão e ação que a

leitura proporciona aos leitores. No segundo capítulo do presente trabalho serão

expostas diversas faces da censura à leitura, ocorridas em várias partes do mundo

e por diferentes motivos.

A literatura sempre foi alvo da censura, principalmente pela Igreja e pelos

governos autoritaristas. Durante muito tempo, vivemos sob regimes que de certa

forma selecionavam o que era permitido e o que não era permitido ler. Os textos

que – segundo a visão dos censores – pudessem gerar a desordem política ou

social, que fossem contra a “moral” e os “bons costumes”, eram censurados. A

literatura infantil e juvenil também não saiu ilesa da história da censura.

Ainda no segundo capítulo, em 2.2, veremos o percurso percorrido pela

literatura infanto- juvenil desde seu surgimento até o momento em que

percebemos um rompimento com seu compromisso pedagógico e sua função

utilitária – o que prevalecia até os anos 70 aproximadamente – e passamos a ver

a incorporação de temas considerados “tabus” e inapropriados para seu público,

como: a pobreza, a miséria, a injustiça, a marginalização, o autoritarismo, os

preconceitos, uso de drogas, a carência afetiva, o homossexualismo, os conflitos

sexuais, a morte, entre outros. Diferente dos textos que tinham como objetivo

“educar” as crianças, trazendo estereótipos e doutrinas de uma realidade que não

existia, o que iremos encontrar a partir dos anos 70 são críticas radicais da

sociedade numa representação realista do contexto social.

Esse novo direcionamento apenas inclui aspectos que são inerentes à

condição humana, que fazem parte do cotidiano de todos, inclusive das crianças e

adolescentes. Durante muito tempo a literatura infantil e juvenil evitou abordar

temas que tivessem como foco os conflitos sociais e existenciais, além daqueles

relacionados à violência urbana. A resistência a esses temas ainda existe,

principalmente por parte dos pais desses leitores e da escola, mas a presença

deles na literatura se faz necessária para o amadurecimento e transformação dos

jovens leitores.

Lygia Bojunga aborda com muita naturalidade, na maioria de suas obras, os

temas “tabus”, que acabam por revelar a preocupação da autora com o homem

moderno nos seus diferentes contextos e dilemas sociais em que está inserido.

Suas obras são caracterizadas por uma marcante infração dos limites entre

realidade e fantasia, repletas de simbologia. As fantasias geralmente servem para

auxiliar na superação das experiências e conflitos pessoais. O conjunto de sua

obra constitui vários exemplos de textos que buscam a emancipação da criança

diante dos condicionamentos impostos a ela pelos adultos.

Essa literatura inovadora revela uma visão mais clara da realidade na qual

o leitor já está inserido – apesar de muitas vezes não conhecê-la – ultrapassando

a função didática moralizante. Ao cumprir seu papel social, a literatura colabora

para a formação da sociedade, por meio da emancipação do homem que tem

seus horizontes e percepções ampliadas. Os textos de Lygia Bojunga se

enquadram nesse contexto.

No terceiro capítulo nos aprofundaremos em três obras de Lygia Bojunga, O

abraço (1995), Aula de inglês (2006) e Sapato de salto (2006). Estas obras

abordam vários tipos de conflitos sexuais e amorosos, além de tratar também da

morte, da violência e do preconceito. O abraço trata de uma maneira simbólica

sobre o estupro, Aula de inglês nos traz diferentes conflitos amorosos e Sapato de

salto revela o abuso sexual, a prostituição e o homossexualismo. As três obras

abordam temas sexuais e amorosos, mas cada uma trata desses temas de forma

diferente: na primeira, a fantasia se funde com a realidade dos fatos; na segunda,

o desejo se faz muito presente nas relações de amores e paixões não

correspondidas e, na terceira, a realidade nua e crua de uma vida de abandono,

abusos, pobreza e prostituição é apresentada numa linguagem muito clara.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A censura à leitura sempre esteve presente na nossa história devido ao

poder que o texto exerce quando apropriado pelo leitor. No decorrer do presente

trabalho veremos as diversas manifestações da censura, como por exemplo: a

censura religiosa e política, que agiam em prol da anulação do potencial de

construção, reflexão e ação que a leitura proporciona ao ser humano. Não

podendo ser diferente, a literatura sempre foi alvo da censura, inclusive a literatura

infantil e juvenil, que até os anos de 1970, aproximadamente, seguia preceitos

pedagógicos e utilitaristas. A partir daí, alguns autores de textos para crianças

passaram a abordar temas considerados “tabus” e que até então eram

censurados. Essa literatura inovadora proporciona o amadurecimento dos jovens

leitores e ajuda-os a enfrentar e compreender os diversos conflitos que a vida em

sociedade pode proporcionar a um ser humano.

2.1 AS LEITURAS PROIBIDAS NO DECORRER DA HISTÓRIA

Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.

ALBERTO MANGUEL

Quando pensamos na palavra ler e nas suas derivações como leitura e

leitor, logo nos vem à mente um livro, um jornal, um conto, uma revista, uma

receita, um poema, enfim, um texto escrito. Porém, se tal vocábulo estivesse

restrito ao texto escrito, Manguel (1997) não teria comparado o ato de ler com o de

respirar. Quem vive sem respirar? Ninguém. Assim como, ninguém vive sem ler.

Os leitores que encontramos são os mais diversos possíveis. Aquele que lê

as páginas de um livro é apenas um dentre tantos outros. Manguel afirma que

todos os tipos de leitores compartilham da mesma arte, que é a arte de decifrar e

traduzir signos, cada um com sua especificidade:

O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os gestos do parceiro antes de jogar a carta vencedora; a dançarina lendo as notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco... (MANGUEL, 1997, p. 19).

Ser um leitor acarreta em carregar consigo uma grande responsabilidade,

porque é o leitor que irá “atribuir significado a um sistema de signos e depois

decifrá-lo” (MANGUEL, 1997, p. 19 e 20). A apropriação do texto pelo leitor tem

como consequência uma responsabilidade social, cultural e política, o que nos

leva à visão de Umberto Eco do “leitor ativo” ou “leitor-modelo”.1

O poder exercido pelo texto quando apropriado por um leitor, desde sempre

foi percebido pelos grandes detentores do poder político, religioso, econômico e

social do mundo todo. Assim, os leitores foram muito prejudicados em

determinados períodos da história da humanidade, em diversos lugares do mundo,

por diferentes motivos, os quais sempre tinham a mesma intenção, anular o

potencial de construção, reflexão e ação que a leitura proporciona aos leitores.

1 A temática sobre o leitor ativo ou leitor-modelo comparece basicamente no ensaio O leitor-modelo, presente no livro Lector in fabula (1979), de Umberto Eco.

A censura à leitura sempre esteve presente na nossa história. Alberto

Manguel dedica em seu livro Uma história da leitura (1997), um capítulo que fala

sobre as leituras proibidas, a censura e seus censores. O autor relata um decreto

de 1660, do Rei Carlos ll, da Inglaterra, que estabelecia a instrução dos nativos,

servos e escravos das colônias britânicas nos preceitos do cristianismo. O Rei

Carlos acreditava que a salvação da alma vinha da capacidade de cada um ler,

por si mesmo, a palavra de Deus. Porém, os donos de escravos não estavam de

acordo com o Rei. Para eles, a alfabetização dos escravos poderia levá-los a

encontrar ideias revolucionárias e perigosas nos livros, considerando que quem

pode ler a Bíblia pode ler qualquer coisa.

A oposição ao decreto acabou sendo mais forte, e um século depois foram

criadas leis que proibiam todos os negros, escravos ou livres, de aprender a ler,

leis estas que perduraram até metade do séc. XlX. Durante séculos os escravos

que queriam aprender a ler enfrentaram as mais difíceis condições para fazê-lo,

arriscando suas vidas, em um processo que poderia levar anos devido às

dificuldades presentes. Eles tinham que encontrar métodos alternativos para

aprender a ler, e muitos conseguiam. Para os escravos, a alfabetização “não era

um passaporte imediato para a liberdade, mas uma maneira de ter acesso a um

dos instrumentos poderosos de seus opressores: o livro” (MANGUEL, 1997, p.

313).

Os donos de escravos, assim como os tiranos, os ditadores, os monarcas

absolutos e outros detentores ilícitos do poder, reconheciam o poder da palavra

escrita, a força da leitura, mais importante que tudo isso, a possibilidade de

reflexão, ação e significação que o leitor tem sobre o texto lido. Os livros têm sido

o mais poderoso inimigo das ditaduras, sendo assim, “a história da leitura está

iluminada por uma fileira interminável de fogueiras e de censores, dos primeiros

rolos de papiro aos livros de nossa época” (MANGUEL. 1997 p. 315). A citação

abaixo nos revela tamanha crueldade exercida pela censura no decorrer dos

séculos:

As obras de Protágoras foram queimadas em 411 a.C., em Atenas. No ano de 213 a.C., o imperador chinês Chi Huang-Ti tentou acabar com a leitura queimando todos os livros de seu reino. Em 168 a.C., a biblioteca judaica de Jerusalém foi deliberadamente destruída durante o levante dos macabeus. No primeiro século da era cristã, Augusto exilou os poetas Cornélio Galo e Ovídio e baniu suas obras. O imperador Calígula mandou queimar todos os livros de Homero, Virgílio e Lívio (mas seu decreto não foi cumprido). Em 303, Diocleciano condenou todos os livros cristãos à fogueira. E esse foi só o começo (MANGUEL, 1997, p. 315).

Fernando Báez, escritor venezuelano, dedicou 12 anos a um estudo que

resultou na obra História universal da destruição dos livros (2006). Como o próprio

subtítulo diz, Das tábuas sumérias à guerra do Iraque, ele começa registrando a

destruição dos primeiros registros em argila, na Mesopotâmia (hoje sul do Iraque),

que datam aproximadamente de 5.300 anos e termina relatando a extinção de

mais de um milhão de livros e dez milhões de documentos da Biblioteca Nacional

do Iraque, na Guerra, em 2003. Apesar de tais fatos ocorrerem no mesmo

território, a trajetória de Báez passa por diversas partes do mundo em várias

épocas.

O autor também levanta fatos sabidos popularmente, como o controle

imposto pela Inquisição e o Bibliocausto Nazista. O primeiro não pode passar

despercebido a nenhum estudo que venha tratar sobre a censura à leitura. Como

se sabe, a Inquisição foi uma instituição da Igreja Católica Romana, sendo criada

para combater a dissidência e o pensamento heterodoxo. Por muitos séculos, “sua

atividade representou na Europa e nos países onde atuou um terrível período de

censura, perseguição, tortura e destruição de vidas e livros” (BÁEZ, 2006, p. 159).

O início da Inquisição foi marcado pela edição da bula “Licet ad capiendos”

(dirigida aos dominicanos, inquisitores), em 20 de abril de 1233, pelo Papa

Gregório lX, numa época em que o poder religioso confundia-se com o poder real.

Mais ou menos duas décadas depois, o Papa Inocêncio lV editou a bula “Ad

extirpanda”, que institucionalizava o Tribunal do Santo Ofício (Inquisição) e

permitia o uso da tortura.

O poder secular era obrigado a contribuir com a atividade do tribunal da

igreja. Em 1536, foi autorizada a instalação de um tribunal do Santo Ofício em

Lisboa; nasceu, então, a Inquisição Portuguesa, que a partir de 1547 passou a

sofrer forte influência do poder civil, sendo então instalados três tribunais em

Portugal, entre eles o de Lisboa, que estendia sua jurisdição até o Brasil. É a partir

daí que inicia a censura de livros e leituras em Portugal e no Brasil.

Antes do advento dos livros escritos, os pensamentos e as histórias eram

passados de um para outro oralmente; poucos eram aqueles que tinham acesso

aos textos escritos, que eram restritos aos conventos, o que facilitava para a Igreja

e o Estado o controle do pensamento do povo. A igreja tinha que preservar a

moral e os bons costumes do povo, e as autoridades políticas do Estado, cuidar

da boa ordem da sociedade civil. Quando as histórias e os pensamentos

passaram a ser impressos, o alcance tornou-se muito maior; por mais que o

analfabetismo fosse grande, uma pessoa letrada poderia interferir na atitude moral

e política de outra, através da leitura.

Devido à censura imposta pela inquisição, ficou cada vez mais difícil a

impressão de um livro. Em 1540, o Cardeal D. Henrique, Inquisitor Geral desde

1539, nomeou uma comissão para examinar todas as obras existentes em Lisboa

e obras que vinham de fora. Além disso, todos os textos dos livros que ainda não

tinham sido impressos também eram examinados (CARNEIRO, 2002, p. 38). A

partir daí, tornaram-se necessárias duas licenças para que um livro fosse

impresso, uma do Santo Ofício (inquisição) e outra do Ordinário (Bispo). Mais

tarde, além dessas duas licenças, se fez necessária a autorização da Mesa do

Desembargo do Paço – órgão do poder régio:

Até então a preocupação estava concentrada nos textos de autores hereges, suspeitos, defesos e danados. Para qualquer um desses casos, leia-se “proibido”, “impedido”, “Interditado”, por “fazer mal”. Assim, a partir de 1547, o infante D. Henrique mandou publicar uma lista dos livros proibidos, reiterada em 1551, indicando aqueles que não podiam ser lidos ou impressos sem o exame e autorização da Inquisição (CARNEIRO, 2002, p. 38).

Em 1564, em Portugal, foi publicado o Index Romano – Índex Librorum

Prohibitorum –, uma lista de publicações proibidas, que foi atualizado

regularmente até a 32° edição em 1948. As obras eram censuradas por diversas

razões: heresia, deficiência moral, sexualidade explícita, incorreção política etc.

Vale ressaltar que obras de grandes cientistas, filósofos, pensadores,

enciclopedistas também pertenceram a esta lista, além de alguns notáveis

romancistas e poetas. O índex foi abolido somente em 1966.

Os censores eram encarregados da qualificação dos textos e da inspeção

das livrarias públicas e particulares, dos navios, dos impressores, livreiros e

leitores. O cuidado maior era com as leituras que apresentavam perigo para a

alma, aquelas que colocavam em risco a moral e os bons costumes. Para os

censores, os livros difundiam ideias falsas, capazes de parecerem verdadeiras,

estimulando a imaginação e combatendo o pudor e a honestidade.

Em 1768, o Marques de Pombal instituiu a Real Mesa Censória que unificou

o sistema censório. Em 1794, na regência de D. João VI, a censura volta a ser

exercida pelas três instâncias, a Inquisição, o Ordinário e a Mesa do Desembargo

do Paço. Após o estabelecimento da corte no Rio de Janeiro, todas as ordens

deveriam partir da colônia americana. Para facilitar a comunicação, surge a

primeira tipologia brasileira, em 13 de maio de 1808: a Imprensa Régia, com o

objetivo exclusivo de imprimir os papéis diplomáticos e a legislação. Mais tarde,

autorizada a publicar outros títulos e assuntos, e enfim, novas tipografias, se

instalam na corte e em outras localidades.

O processo de censura no período Joanino (1808 -1821), assim como em

outros períodos, era lento e falho. As normas não eram claras e as listas

desorganizadas, o que gerava desavenças e disputas entre os censores.

Em 1821, o governo do Rio de Janeiro aboliu aparentemente a censura

prévia dos escritos, devido à preocupação com o progresso e a civilização das

letras. Porém, havia pena de multa e prisão para os abusos cometidos. No mesmo

ano também foi abolida a Inquisição, passando a censura aos cuidados apenas do

Ordinário e do Desembargo do Paço.

A proclamação da liberdade de imprensa em Portugal e no Brasil também

aconteceu em 1821, mas foram conservadas as mesmas penas para os abusos. A

partir da segunda metade do século XIX, a censura se manifestava por controles

informais, como boicotes, segregações, marginalizações, perseguições.

Infelizmente, os processos de veto, de censura, de proibição de livros e de

pensamentos, símbolos da purificação da sociedade ameaçada pelas ideias

heréticas, não foram comuns apenas aos homens da Igreja Medieval ou aos

inquisidores do Santo Ofício na época Moderna, pois tais processos também

foram comuns nos anos posteriores em países regidos pelo totalitarismo ou

autoritarismo.

Em 1933, na Praça da Ópera em Berlim, na Alemanha hitlerista, foram

queimados centenas de livros, ato que simbolizava a morte da República de

Weimar e a ressurreição de uma nova era. No Chile, em fevereiro de 1986, não

mais pela “Fé Católica”, mas pela “Segurança Nacional”, policiais civis assistiram à

queima de 15 mil livros durante uma cerimônia secreta. No Brasil, constatamos

situações semelhantes durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945), que

“adotou uma postura antiliberal, anticomunista, nacionalista e centralizadora”

(CARNEIRO, 2002, p. 29). Em novembro de 1937, centenas de livros - dentre os

autores mais atingidos estavam Jorge Amado e José Lins do Rego - foram

destruídos em frente da Escola de Aprendizes de Marinheiros, acusados de

propagarem o credo vermelho.

Durante o governo Vargas, a censura – com o propósito de purificar as

ideias e de bloquear a heterogeneidade do pensamento silenciando aqueles que

eram potencialmente perigosos – abrangia todo o país. O governo estadonovista

buscava a homogeneidade para facilitar a dominação e o controle, através de um

processo de domesticação das massas. O Estado articulava inúmeros discursos

criando novos significados para a realidade da época.

Os livros perigosos, considerados nocivos à sociedade, eram perseguidos

por todos os cantos do Brasil. Neste período, temos a censura se manifestando

enquanto “fenômeno da história cuja delimitação, uso e introjeção emerge

interligada ao conceito de criminalidade política” (CARNEIRO, 2002, p. 30). O

Governo censurava brutalmente todo e qualquer escrito que fosse considerado

uma ameaça ao regime político da época.

O Governo Vargas, com sua radical política saneadora de ideias, acabou de

certa maneira gerando uma literatura e uma imprensa alternativas, que eram

“obrigadas a circular nos subterrâneos da sociedade” (CARNEIRO, 2002, p.32).

Para facilitar essa circulação, muitos livros foram maquiados, e mesmo desta

maneira, os leitores tinham de ser cautelosos:

Em pleno século XX – na era da informação e da imagem multiplicada – a cultura viu-se obrigada a ser novamente sussurrada. Livros libertários e bolchevistas circulavam travestidos de romance e, quem quisesse ler, deveria fazê-los às escondidas no fundo de um porão ou fechado entre quatro paredes. Sem se esquecer, logicamente, de que “as paredes escutam” (CARNEIRO, 2002, p. 43).

Com a consolidação da revolução dita liberal, em 1930, esperava-se a

extinção da censura e acreditava-se que a liberdade de expressão fizesse parte

do projeto maior de Vargas. Mas as evidências de que isso era apenas uma triste

ilusão já apareceram no texto da “Plataforma da Aliança Liberal”, lido na

Esplanada do Castelo, com o título de As Leis Compressoras. Em nome da

revolução, Vargas pregava que a anistia seria

[...] de providência incompleta, sem a revogação das leis compressoras da liberdade do pensamento. É que estas, tanto quanto a ausência

daquela, concorrem também para manter a intranquilidade e o fermento revolucionário. Conjugam-se, assim, nos seus efeitos deploráveis (CARNEIRO, 2002, p. 46).

As regras do controle foram publicadas, em 1933, pelo ministro da Justiça

Francisco Antunes Maciel. O artigo 113, item 9 da Constituição de 1934, deixou

claro a intolerância a propagandas de guerra ou de processos violentos que

acarretassem a desordem política e social. Após a “Intetona Comunista” de 1935,

com o decreto de estado de sítio e censura à imprensa, aumenta o clima de

tensão e de censura à palavra. A censura à imprensa torna-se oficial a partir de

1939 com o surgimento do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda –, que

buscava unificar a informação e construir uma imagem positiva do Estado filtrando

a realidade. Esse trabalho era executado em conjunto com o DEOPS –

Departamento Estadual de Ordem Política e Social (1924-1983). Este

departamento, durante seu período de atuação, juntamente com o DIP e o

Ministério da Educação e Saúde, foi responsável “por atos de saneamento

ideológico que nos revelaram como se processava a lenta mutilação do saber”

(CARNEIRO, 2002, p. 48). A unificação da informação, a busca pela

homogeneidade de ideias, a imagem mascarada do Governo, assim como todos

os outros processos de censura, acabaram prejudicando a evolução cultural e

educacional do nosso país.

O rompimento do cerceamento censório acabou tornado-se uma das metas

dos vários intelectuais revolucionários, que utilizavam suas ideias e livros para

tentar enfraquecer o projeto de hegemonia cultural e dominação política defendida

pelo Estado autoritário varguista. Ser escritor, intelectual, jornalista, professor,

tipógrafo, ou editor não era nada tranquilo no período de 1924 a 1983. As editoras

eram perseguidas permanentemente pelo DOPS e pelo DIP, que trabalhavam

rigorosamente em busca dos livros de doutrinas exóticas (comunistas, libertárias,

feministas, antifascistas, etc.). Várias editoras se travestiam com falsas fachadas

para tentar se livrar da fiscalização da polícia política, mas diversas delas foram

autuadas como “criminosas” entre 1931 e 1983. Porém, não podemos deixar de

expressar a mobilização desses grupos envolvidos na ação revolucionária –

editores, tipógrafos, intelectuais, livreiros e leitores –, tendo em vista que a

tipologia dos documentos confiscados pela polícia (livros, livretos, catálogos,

folhetos, etc.) em sua maioria provinha deles. Com toda essa repressão e

perseguição, esses grupos clandestinos conseguiam participar efetivamente de

uma complicada rede de comunicação.

A caça aos livros “perigosos”, além de ter como objetivo o saneamento e a

homogeneidade das ideias, deve ser vista como

expressão da ideologia nacionalista e xenófoba sustentada pelo governo brasileiro nos diferentes momentos de sua trajetória política: pró-nazismo, pró-fascismo, antisemita, antiintegralismo, anticomunismo. Os conteúdos dos livros apreendidos, por sua vez, expressam esses conflitos ideológicos, as rupturas de pensamento e a persistência de certas posturas ao longo de décadas, como foi o caso do anticomunismo (CARNEIRO, 2002, p. 100).

Alguns casos de censura chegam a ser curiosos, como a censura de

algumas obras infantis do autor Monteiro Lobato. Em 1940, a obra Peter Pan. A

história do menino que não queira crescer, contada por Dona Benta, foi procurada

por todo o estado de São Paulo a pedido do Tribunal de Segurança Nacional. O

autor era acusado de alimentar os espíritos infantis com um sentimento errôneo

em relação ao governo do país. Os fragmentos do livro que “justificava” a

acusação se referem às diferenças de vida entre as crianças do Brasil e as da

Inglaterra. O texto era considerado perigoso por incutir nas crianças brasileiras a

sua inferioridade. Lobato foi acusado de agir “insidiosamente” ao explicar o motivo

da desigualdade, descrevendo como a arrecadação de impostos era efetuada no

país e de como os impostos eram aplicados:

Por causa dos impostos, meu filho. Há no Brasil uma peste chamada governo que vai botando impostos e selos em todas as coisas que vêm de fora, a torto e direito, só pela ganância de arrecadar dinheiro do povo para encher a barriga dos parasitas2 (LOBATO apud CARNEIRO, 2002, p. 153).

Na narrativa, a comparação da vida da criança brasileira com a da criança

inglesa parte da fala da personagem Emília, que com sua curiosidade quer saber

como era o quarto de uma criança inglesa. Muito diferente do quarto de uma

criança brasileira, que segundo a vovó Benta, era qualquer quarto, o quarto da

criança inglesa tinha um nome específico (nursery), com móveis especiais, muitos

brinquedos e pinturas engraçadas pelas paredes.

Durante o diálogo com sua avó, Emília pergunta se entre os brinquedos das

crianças inglesas havia o “boi de xuxu”, muito comum nas cidades do interior do

Brasil “onde as crianças são obrigadas a improvisar brinquedos confeccionados

com sabugos de milho, retalhos de panos, caixinhas de fósforos e botões de

roupas velhas” (CARNEIRO, 2002, p. 153). A frase que acabou comprometendo o

2 Carneiro cita em sua obra M. Lobato, Peter Pan. A história do menino que não queria crescer, contada por Dona Benta. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p. 3.

escritor foi a que se referia ao “boi de xuxu”, que segundo o procurador, tecia

críticas à economia nacional:

[...] boi de xuxu é brinquedo de meninos da roça e Londres é uma grande cidade, a maior do mundo. As crianças inglesas são muito mimadas e têm brinquedos que querem, porque na Inglaterra os brinquedos não custam os olhos da cara, como aqui. E que bons e bonitos são! (LOBATO apud CARNEIRO, 2002, p. 153).

As obras de Lobato tiveram muitas outras críticas, o que levou à “caça” aos

livros do escritor, que eram considerados capazes de desvirtuar o programa de

Educação e perigosos à nacionalidade brasileira. A polícia do governo não era a

única a censurar as obras do escritor, que ouviu severas críticas da igreja católica,

mostrando “seu olhar censor às obras do criador da pernóstica Emília, D. Benta,

Tia Anastácia, Narizinho, e Pedrinho, deliciosas personagens que encantaram o

imaginário fantástico das crianças brasileiras de Norte a Sul” (CARNEIRO, 2002,

p. 155). A Igreja Católica, através do Padre Sales Brasil, manifestou-se,

denegrindo os escritos lobatianos como um “errado” na literatura infantil,

classificando-a como perniciosa, desenvolvendo “numa dosagem psicológica

verdadeiramente assombrosa, todo o programa teórico e prático da revolução

comunista, desde a negação de Deus, até os mínimos detalhes do convívio

doméstico e social” (CARNEIRO, 2002, p. 157). Para embasar sua argumentação,

o Padre Sales Brasil apoiou-se em vários trechos das principais obras infantis do

autor, entre elas: A chave do tamanho, Aritmética da Emília, Caçadas de

Pedrinho, Geografia de D. Benta, O Saci, Peter Pan, O Sítio do Picapau Amarelo,

Reinações de Narizinho, etc.

Podemos considerar um fato mais curioso ainda: a censura ao texto de

Lobato em pleno século XXl. O livro Caçadas de Pedrinho, publicado em 1933, foi

vetado em 2010 pelo Conselho Nacional de Educação, sob a alegação de ser

racista e preconceituoso, já que muitos termos usados pelo autor não são

considerados nos dias de hoje “politicamente corretos”.

FIGURA 1 – LIVRO 'CAÇADAS DE PEDRINHO', DE MONTEIRO LOBATO, DISTRIBUÍDO A ESCOLAS PÚBLICAS NO PNBE (FOTO: DIVULGAÇÃO). NOTA: Imagem extraída do site http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2010/10/cne-quer-que-monteiro-lobato-com-trechos-racistas-tenha-nova-edicao.html. Acesso em 09/09/2011.

A conselheira que redigiu o parecer ao CNE, Nilma Lino Gomes, professora

da Universidade Federal de Minas Gerais, diz que a abordagem da personagem

Tia Nastácia e de alguns animais como urubu e macaco fazem menção revestida

de estereotipia ao negro e ao universo africano. Os argumentos que fundamentam

as acusações de racismo e preconceito são expressões que se referem à

personagem feminina e negra Tia Nastácia, bem como a menção à África como

lugar de origem de animais ferozes e aos personagens animais como urubu e

macaco. Em um trecho do livro, por exemplo, a personagem Emília (do Sítio do

Pica-Pau Amarelo) diz: "É guerra, e guerra das boas. Não vai escapar ninguém -

nem Tia Nastácia, que tem carne negra".3

No parecer encontramos sugestões da conselheira Nilma, como não

selecionar para o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) obras que

descumpram o preceito de "ausência de preconceitos e estereótipos". Caso estas

obras sejam adotadas, que tenham nota "sobre os estudos atuais e críticos que

discutam a presença de estereótipos raciais na literatura". Outro trecho do parecer

afirma que o governo deve implementar uma política pública que busque "formar

professores que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente" com

"obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que

apresentem estereótipos raciais".

O veto foi derrubado pelo ministro da Educação, Fernando Haddad, que

devolveu o texto ao conselho solicitando uma revisão. Segundo Marisa Lajolo4, “o

episódio torna-se assustador pelo que endossa, anuncia e recomenda de

patrulhamento da leitura na escola brasileira. A nota exigida transforma livros em

produtos de botica, que devem circular acompanhados de bula com instruções de

3 M. Lobato, Caçadas de Pedrinho. São Paulo, Editora Globo, 2008. 4 Professora titular (aposentada) da Unicamp; professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie; pesquisadora sênior do CNPq; foi Secretária de Educação de Atibaia (SP); e organizadora (com João Luís Ceccantini) da obra Monteiro Lobato livro a livro, que recebeu o Prêmio Jabuti 2009 como melhor livro de Não Ficção.

uso” 5. Para a professora, qualquer nota publicada dará início a uma literatura

“autoritariamente auto-amordaçada”, e este tipo de censura é mais pernicioso do

que os espetáculos de queimas de livros em praça pública. “Pois, desta vez, a

censura não quer determinar apenas o que se pode ou não se pode ler, mas é

mais sutil, determinando como se deve ler o que se lê!”.6

Além disso, é colocada em questão também a liberdade do leitor em

relação à interpretação do texto que ele lê. Ainda segundo Marisa Lajolo, a leitura

é fundamentada pela experiência do leitor, “dependendo da vida que teve e que

tem, daquilo em que acredita ou desacredita, da situação da qual lê o que lê, cada

um entende uma história de um jeito”. 7

Exemplos de censura não faltam para relatar neste presente trabalho.

Aparecida Paiva, no seu livro A voz do veto - A censura católica à leitura de

romances, faz uma análise sobre a crítica literária católica praticada no início do

século XX no Brasil, de tendência moralista conservadora, através da obra de Frei

Sinzig, Através dos romances: guia para as consciências (1923). Trata-se de um

manual de veto, um livro de censura católica aos romances, no qual o autor

comenta 21.553 livros e 6.657 escritores. Os livros e autores comentados são

condenados ou recomendados aos leitores católicos (principalmente às mulheres);

é uma censura pautada em critérios moralistas. A obra de Sinzig pode ser

comparada, pela afinidade de abordagem, com o Índex Librorum Prohibitorum,

matriz geradora e fonte maior da Igreja na questão da proibição:

5 Quem paga a música escolhe a dança? Disponível em: http://www.comunidadeeducativa.org.br/Arquivos/Downloads/45.pdf. Acesso em: outubro de 2011. 6 Idem 4. 7 Idem 4.

Esse manual funcionou como um índex brasileiro para os leitores católicos e, portanto, a censura ou a aprovação dos livros nele contidos apresentam-se como instâncias privilegiadas para se captar o discurso da Igreja em relação à leitura (PAIVA, 1997, p. 28).

Sinzig tinha como objetivo principal “guiar as consciências”, ou seja,

moralizar a sociedade brasileira tentando fazer valer a moral católica como crivo

fundamental para o cristão se relacionar com a produção escrita, principalmente a

literária. Para o censor, o manual do veto poderia ser visto também como um

meio de divulgação de uma leitura saudável, não deixando que os lares católicos

fossem impregnados pelo veneno do “lixo literário”. O adultério, o amor livre, os

suicídios, crimes e o naturalismo na literatura eram os principais temas

condenados pelo Frei, os quais estavam em sintonia com as preocupações da

Igreja na época.

É visível a preocupação de Sinzig com aquele leitor considerado frágil e

inocente – as mulheres – que fica aturdido e tentado diante de tantos impropérios.

O autor admite que as mulheres “se apaixonam loucamente pelas más leituras

como pela morfina e pelo baile” (PAIVA, 1997, p. 81). A mulher era vista como o

esteio moral do lar e guardiã da fé católica na família. Assim, era preciso educá-la

na religião e na doutrina cristã evitando que influências desagregadoras a

desviassem de seu caminho.

Em seu manual encontramos 381 romances brasileiros comentados, tendo

sido escritos por 148 escritores, entre eles, Aluísio de Azevedo, que foi o iniciador

do naturalismo no Brasil, gênero que Sinzig desaprovava profundamente. A maior

parte das obras de Azevedo está ligada a prostituição, crimes e escândalos. O

censor cita Casa de pensão em seu manual como uma obra “imoralíssima”;

Girândola de amores, “impudico”; O mulato, “o que se pode conceber de mais

pornográfico”, e muitos outros.

Outro autor condenado pelo Frei é Gustave Flaubert, pelo seu romance

Madame Bovary. Flaubert foi processado em 1857, por um advogado imperial, por

“ofensas à moral pública e à religião”. A personagem principal de seu livro –

Emma Bovary – é apresentada como adúltera e leviana em consequência das

leituras inadequadas que fez:

Eram somente amores, amantes, senhoras perseguidas que desmaiavam em pavilhões solitários, postilhões assassinos em todas as pousadas, florestas sombrias, tumultos do coração, promessas, soluços, lágrimas e beijos, barcos ao luar, rouxinóis nos arvoredos, cavalheiros corajosos como leões, doces como cordeiros, virtuosos como ninguém pode ser (...) (FLAUBERT apud PAIVA, 1997, p. 93).

Além disso, o autor, ao falar de sexo e de adultério, acabou colocando em

questão a moral burguesa da época. Flaubert foi absolvido, mas Emma Bovary

continuará sempre incriminada e condenada.

Como acabamos de ver, a censura se mostra com diversas faces em

diferentes épocas e por vários motivos. Poderíamos citar aqui muitos outros

exemplos de censura em relação à leitura, justamente por ser considerada uma

prática “perigosa” pelo poder que exerce. O texto, quando apropriado por um

leitor, desde sempre foi considerado uma ameaça para os grandes detentores do

poder político, religioso, econômico e social do mundo todo, que tinham e ainda

têm como objetivo anular o potencial de construção, reflexão e ação que a leitura

proporciona aos leitores.

2.2 OS “TABUS” NA LITERATURA INFANTIL E JUVENIL

Pode-se avaliar a beleza de um livro pelo vigor dos safanões que ele nos deu e pelo tempo que levamos depois a recompor-nos.

GUSTAVE FLAUBERT

O início da literatura destinada ao público infantil é marcado pelas primeiras

publicações que apareceram no mercado livreiro em meados do século XVlll.

Antecedendo este período, no século XVll, durante o classicismo francês, foram

escritas histórias que vieram a ser consideradas como literatura também

apropriadas à infância: as Fábulas (1668 e 1694), de La Fontaine, As aventuras de

Telêmaco (1717), de Fénelon, e os Contos da Mamãe Gansa, cujo título original

era Histórias ou narrativas do tempo passado com moralidades, que Charles

Perrault publicou em 1697.

Entretanto, os franceses não obtiveram a exclusividade do desenvolvimento

da literatura infantil. A expansão desta aconteceu simultaneamente na Inglaterra e

está diretamente associada a acontecimentos sociais e econômicos. Com a

revolução industrial e consequentemente o crescimento político e financeiro das

cidades, é inevitável a decadência do sistema medieval feudal que valorizava o

poder rural. Surge então uma nova classe social urbana, a burguesia, que

substituiu os grandes senhores feudais. Para atingir algumas metas desejadas, a

burguesia passa a incentivar a consolidação de instituições como a família e a

escola. A intenção era estimular um modo de vida mais doméstico e menos

participativo publicamente, criando um determinado estereótipo familiar, baseado

na organização patriarcal e no modelo de família nuclear.

Para a legitimação de tal estereótipo – que representava o sustentáculo da

nova forma de governo – foi necessário promover a criança, considerada maior

beneficiário dessa estrutura. Até o século XVII, a criança era vista como um adulto

em miniatura; a partir do século XVIII, ela adquire um novo status, determinando a

valorização dos laços de afetividade e não mais de parentesco e herança

conforme previa o sistema medieval.

A partir desse momento a criança detém um novo papel na sociedade. Vista

agora como um ser desprotegido, frágil e dependente, passa a ser alvo de

valorização e de proteção, sendo separada da hostilidade do mundo adulto. Tal

proteção redunda em isolamento, fazendo-se necessário o surgimento de

instituições que preservem o lugar do jovem na sociedade e sirvam de mediação

entre a criança e a sociedade. É nesse contexto que surge a escola. A inserção do

jovem no novo quadro social da época torna-se também responsabilidade da

escola. Isso é feito primordialmente por meio da alfabetização, habilitando a

criança ao consumo das obras impressas que se proliferam no século XVIII, o que

determinou os laços entre a literatura e a escola.

O livro como produto da industrialização e, portanto, sujeito às leis do

mercado, passa a promover e a estimular a escola, como condição de viabilizar

sua própria circulação e consumo. Nesse sentido, sua criação – visando a um

mercado específico cujas características precisam respeitar e motivar – adota

posturas, por vezes, nitidamente pedagógicas e endossa valores burgueses a fim

de assegurar sua utilidade. Surge, nesse momento, o grande impasse que

acompanhará todo o percurso de evolução do gênero: arte literária ou produto

pedagógico-comercial? Longe de ser resolvido, tal impasse faz emergir um

questionamento incômodo: se, de um lado, tantas concessões interferem na

qualidade artística dos textos, de outro, denunciam que, sem concessões de

qualquer grau, a literatura não subsiste como ofício, ou seja,

Deixa claro que a liberdade de criação é relativa, e que é enquanto relatividade — fato que abre lugar para a mediação do leitor e/ou do público no processo de elaboração de um texto — que a literatura conquista seu sentido, pois somente assim se socializa, convivendo com aspirações comunitárias (LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina, 2007, p.18).

Embora a literatura infantil tenha surgido no século XVIII, na Europa, foi

apenas no século XIX que ela conseguiu definir com maior segurança os tipos de

livros mais apreciados pelos seus leitores, relativizando o pacto com as

instituições pedagógicas, determinando, assim, suas principais linhas de ação:

histórias fantásticas, de aventuras e que retratem o cotidiano infantil. A partir da

descoberta e valorização desse interesse, a literatura infantil ganha consistência e

um perfil definido por meio do trabalho dos autores da segunda metade do século

XIX, garantindo sua continuidade e atração.

É nesse contexto que a literatura infantil brasileira emerge. Embora os livros

destinados ao público jovem comecem a ser publicados no Brasil em 1808 com a

implantação da Imprensa Régia, a literatura infantil brasileira nasce apenas no

final do século XIX. Enquanto sistema (de textos e autores postos em circulação

junto ao público), a literatura destinada ao jovem público brasileiro se consolida

apenas nos arredores da Proclamação da República, o que não é gratuito: no final

do século XIX, vários elementos convergem para a formação da imagem do Brasil

como um país em processo de modernização. Entre eles destacam-se a extinção

do trabalho escravo, o crescimento e a diversificação da população urbana e a

incorporação progressiva de levas de imigrantes à paisagem da cidade. Visto que

essas massas urbanas começam a configurar a existência de um público

consumidor de produtos culturais, o saber obtido por meio da leitura passa a deter

grande importância no emergente modelo social que se impõe, fazendo com que a

escola exerça um papel fundamental para a transformação da sociedade.

Os livros infantis e escolares – elementos auxiliares nesse processo –, são

fortalecidos pelas várias campanhas de alfabetização, abrindo espaço, nas letras

brasileiras, para um tipo de produção didática e literária direcionada

especificamente ao público infantil. Com a expansão desse campo, começa a

despontar a preocupação generalizada com a carência de material de leitura

adequado às crianças do país, as quais contavam apenas com adaptações e

traduções dos clássicos infantis europeus que, muitas vezes, circulavam em

edições portuguesas cujo código linguístico se distanciava bastante da língua

materna dos leitores brasileiros. Em função da necessidade do abrasileiramento

dos textos, o que aumentaria sua penetração junto às crianças, o início da

literatura infantil brasileira fica marcado pelo transplante de temas e textos

europeus adaptados à linguagem brasileira.

Nas primeiras décadas do século XX, os conceitos de Modernização e

Modernismo determinaram o processo de produção da literatura infantil brasileira.

Esse período (1920 - 1945) correspondeu à progressiva emancipação das

condições que, na época de seu aparecimento, impediram a autonomia do gênero.

Ao longo dos anos 1920 e 1930, as editoras começam a valorizar a literatura

infantil, motivando um aumento significativo da produção, assim como a adesão

progressiva de alguns escritores da nova e atuante geração modernista que

incorporam, nas obras destinadas às crianças, algumas inovações temáticas e

estilísticas, como a valorização do presente, da cultura nacional e da oralidade, já

presentes em alguns textos da literatura adulta.

Apesar do sucesso, a literatura infantil brasileira continuava sem

legitimação artística. O estímulo para a produção restringia-se à carência do

mercado escolar que, por sua vez, determinava aos escritores adequação aos

cursos e aos programas educativos vigentes, limitando a fantasia e criatividade em

função das exigências do Estado, responsável pelo projeto de alfabetização.

Sendo assim, a renovação não pôde ocultar a conciliação com o tradicional,

seguindo o percurso natural pelo qual também passou a sociedade brasileira.

A produção literária de Monteiro Lobato é nota dissonante nesse quadro.

Como autor, investe progressivamente na literatura para crianças, incorporando

elementos estilísticos inovadores; como empresário, funda editoras e contribui

para a modernização da produção editorial brasileira.

Com Narizinho arrebitado, publicado em 1921, Lobato inaugura uma nova

estética da literatura infantil no país, concebendo-a como arte capaz de modificar

a percepção de mundo e emancipar seus leitores.

FIGURA 2 – LIVRO NARIZINHO ARREBITADO, DE MONTEIRO LOBATO. CAPA DA 1ª EDIÇÃO DE 1921. NOTA: Imagem extraída do site http://urupes.wordpress.com/2009/07/08/narizinho-arrebitado-1921/. Acesso em 05/11/2011.

A renovação por ele proposta pode ser observada tanto no plano retórico

como no ideológico. No primeiro, observam-se soluções comunicativas no plano

linguístico que despem a língua de qualquer rebuscamento; a primazia é dada à

espontaneidade do estilo infantil por meio da valorização do discurso oral,

expressões de linguagem popular, neologismos e onomatopeias. No plano

ideológico, ou seja, no conjunto de ideias que dão conformação ao texto, o que se

observa em sua produção infantil é a captação do leitor pelo mundo ficcional.

Estimulando esse leitor a ver a realidade por conceitos próprios, o autor incita-lhe

o senso crítico, apresentando problemas sociais, políticos, econômicos e culturais

que, por meio de especulações e discussões das personagens, são vistos

criticamente. Destaca-se ainda em sua obra: a apresentação de situações

ignoradas pelo receptor, provocando uma postura crítica diante delas; a

valorização da verdade e da liberdade, estabelecendo uma nova moral; a

relativização do maniqueísmo da moral absoluta; e a presença do elemento

maravilhoso utilizado não como antítese do real, mas como uma forma de

interpretá-lo.

Nesse sentido, observa-se a ruptura estabelecida por Lobato, que inova

tanto na produção de obras que rompem com a tradicional postura pedagógico-

conservadora presente nos textos da época, quanto na sua divulgação. Por sua

obra renovadora, o autor tornou-se não apenas marco na literatura infantil

brasileira, mas sua referência máxima.

O período de 1940 a 1960 foi considerado fértil para a literatura infantil no

Brasil, principalmente pela profissionalização dos autores, especialização das

editoras e escritores e expansão do mercado constituído pelo público leitor.

Porém, o progresso no setor editorial acabou evitando a renovação literária, pois

as obras eram muito repetitivas. Como resultado, a literatura infantil foi associada

à cultura de massa, além de não abdicar de sua tradicional missão patriótica, não

dar lugar à expressão popular e não romper com as cadeias de dominação.

A consolidação do gênero é marcada pela produção literária que surge

entre os anos 1960 e 1980, tanto na perspectiva concreta da produção de

consumo, como nas formas e conteúdos dos livros. Alguns aspectos caracterizam

essa produção: nova maneira de compor personagens; enredos que incorporam a

temática urbana, propondo uma fusão entre o social e o individual; valorização da

linguagem oral; espessamento do texto infantil enquanto discurso literário, além do

“desaparecimento” do compromisso com a História oficial e com conteúdos

escolares mais ortodoxos e a adesão a uma vertente originada na cultura de

massa.

Vale ressaltar que, a partir dos anos 1960, entra em vigor uma concepção

mais moderna de política cultural, que recebe investimentos por parte do Estado;

este passa a atuar como mediador entre a cultura e a população em geral. A

literatura infantil, fiel às suas origens, incorpora a destinação pedagógica,

prestando-se bem como veículo dessa mediação.

Os valores, comportamentos e atitudes da literatura infantil não são mais

conservadores como no tempo de sua formação, mas continuam sendo auxiliares

no processo civilizador e educativo.

Até os anos 1970, em maior ou menor grau, predominou nos textos

destinados ao público jovem no Brasil uma concepção utilitária8 de literatura.

Assim como ocorreu com o desenvolvimento do gênero, essa postura utilitária

começa a mudar com Monteiro Lobato, que tinha como objetivo desenvolver o

espírito crítico do leitor, ampliando sua capacidade de ver o mundo de forma

questionadora através de suas obras.

Como vimos até o momento, a literatura infantil sempre esteve atrelada a

uma dimensão pedagógica e moral e às instituições e projetos do governo em

questão, pois eram os responsáveis pela sua propagação. Assim, os autores não

tinham “liberdade” para a criação de suas obras, o que, na maioria das vezes,

8 Utilitária é a concepção da literatura, não apenas como agente formador, mas, sobretudo, como manifestação retórica capaz de doutrinar o leitor de modo que este jamais coloque em questão a ordem estabelecida. Cf., PERROTTI, Edmir. O texto sedutor na literatura infantil.

influenciava no literário do texto. A maioria dos textos tinha personagens

estereotipadas e envoltas em situação modelares de aprendizagem.

Mais tarde, com a modernização da produção cultural, a literatura infantil

passa a ser produzida “em série” para conseguir suprir as expectativas do

mercado. Dezenas e dezenas de títulos são lançados, independentemente de sua

qualidade. A repetição das personagens e ambientes, como fez Lobato, foi

incorporada por outros autores como Edy Lima e J. C. Marinho, inspirados pela

necessidade da produção industrial.

A literatura infantil Brasileira mais contemporânea também reata laços com

a tradição lobatiana por meio da

inversão a que submete os conteúdos mais típicos da literatura infantil. Essa tendência contestadora se manifesta com clareza na ficção moderna, que envereda pela temática urbana, focalizando o Brasil atual, seus impasses e suas crises (LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina, 2007, p.122).

O sinal de partida desse percurso de urbanização é dado pela autora Isa

Silveira Leal com a sua série de Glorinhas. A autora incorporou a vida urbana aos

livros destinados aos jovens leitores. Mas é com Odette B. Mott “que a literatura

infantil brasileira passa a apontar crises e problemas da sociedade

contemporânea” (LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina, 2007, p. 122). A

pobreza, a miséria, a injustiça, a marginalização, o autoritarismo e os preconceitos

são temáticas que se tornaram irreversíveis e progressivamente mais amargas

nas obras da literatura infantil. E o ponto de partida foi a obra Justino, o retirante

(1970), de Odette B. Mott. A partir daí, podemos dizer que começam a surgir os

temas considerados por alguns como “tabus” e inapropriados para menores.

Diferente dos textos que tinham como objetivo “educar” as crianças, trazendo

estereótipos e doutrinas de uma realidade que não existia, agora o que

encontraremos são críticas radicais à sociedade brasileira numa representação

realista do contexto social. Fez-se submergir a antiga prática de privilegiar apenas

as situações não problemáticas nos livros infantis, assim como o compromisso

com os valores autoritários, conservadores e maniqueístas.

Depois de Justino, o retirante (1970), Odette B. Mott registra uma realidade

urbana ainda mais degradada em A rosa dos ventos (1972). A história

protagonizada por um grupo de jovens que moram na periferia de São Paulo é

“um retrato quase sem retoques da realidade urbana e da marginalização

econômica vivida por crianças e jovens” (LAJOLO, Marisa e ZILBERMAN, Regina,

2007, p.136). São encontradas no enredo outras questões como o uso de drogas,

a carência afetiva e tendências homossexuais. No fim da história, nem todas

essas questões abordadas são resolvidas; um dos personagens, Luís, acaba

sendo derrotado pela sua dependência das drogas. Este livro desencadeia vários

outros que abordam o submundo urbano de menores abandonados, como: Lando

das ruas (1975), de Carlos de Marigny, Pivete (1977), de Henry Correia e Araújo,

A casa da madrinha (1978), de Lygia Bojunga, Coisa de menino (1979), de Eliane

Ganem, Os meninos da rua da Praia (1979), de Sérgio Caparelli, entre outros.

Em Pivete, Henry Correia de Araújo é radical na representação da vida de

menores abandonados numa cidade grande. O enredo é amargo e não tem final

feliz. O autor enfatiza a ausência de nomes próprios das personagens no processo

de despersonificação; há uma descrição nua e crua do espaço, mostrando a

degradação do ambiente, além das relações familiares e da aparência das

personagens.

A partir de então, várias obras passam a representar situações que até

então eram evitadas na literatura infantil, devido ao status que a criança adquiriu a

partir do século XVlll, no qual era vista como um ser frágil, desprotegido e

dependente. A separação conjugal é abordada em O dia de ver meu pai (1977),

de Viviane de Assis Viana. Zero zero alpiste (1978) e Iniciação (1981), de Mirna

Pinsky, tratam, respectivamente, da repressão social ao choro do menino e do

amadurecimento sexual de uma menina. Xixi na cama (1979), de Drummond

Amorim e Nó na garganta (1979), de Mirna Pinsky, falam do preconceito racial; a

marginalização dos velhos é tratada em Vovô fugiu de casa (1981), de Sérgio

Caparelli.

Tereza Colomer, em A formação do leitor literário (2003), afirma que a

literatura infantil e juvenil contemporânea é caracterizada, entre outros aspectos,

por abordar temas que são considerados inadequados para o público jovem. A

autora salienta que esse novo direcionamento apenas inclui aspectos que são

inerentes à condição humana, como a morte, a doença, a invalidez, entre outros.

Essa nova perspectiva da literatura infantil e juvenil nos revela temáticas e

personagens que não poupam o jovem leitor de assuntos considerados

desagradáveis, inadequados e que eram propositalmente deixados de lado nas

obras direcionadas a esse público, além de não subestimar a capacidade deste

leitor de compreender e assimilar as problemáticas que já fazem parte do seu

cotidiano. Assim como as crianças e jovens, as personagens que fazem parte

dessa nova perspectiva sofrem, têm conflitos, amadurecem, tornando-se então,

mais humanas.

A temática sexual, como se sabe, sempre foi considerada um tabu na

literatura infantil e juvenil, principalmente quando se trata de uma de suas

vertentes, o homossexualismo. Na obra No presente (2008), de Márcio El-Jaick,

encontramos um pré-adolescente perdido em um furacão de sentimentos e

conflitos que surgem a partir da morte de seu tio e pela descoberta de sua

sexualidade. A construção da identidade desse personagem se dá justamente por

meio desses inúmeros conflitos vivenciados por ele: a morte do tio portador de

AIDS, a separação dos pais, a descoberta da homossexualidade do tio e de sua

própria homossexualidade.

O autor italiano Gianne Rodari, em A gramática da fantasia (1982),

menciona um determinado grupo de histórias denominadas “tabus”. Rodari é

favorável que as histórias pertencentes a este grupo sejam contadas às crianças,

pois, segundo ele, elas “representam a tentativa de discorrer com a criança sobre

argumentos pelos quais se interessam intimamente, mas que, em geral, a

educação tradicional coloca entre as coisas sobre as quais ‘não fica bem falar’”

(RODARE, 1982, p. 100).

Margaret Clark, em seu trabalho intitulado Escribir literatura infantil y juvenil

(Writing for children, 2005), também esboça preocupação com os tabus, mas, ao

contrário de Rodari, mostra-se cautelosa ao debater esta questão polêmica. A

autora orienta que não se deve escrever nada que possa afetar a segurança das

crianças e sugere um extremo cuidado com a narrativa para que a história não

induza a criança a praticar algo que lhe seja prejudicial.

Outro tabu consignado pela autora diz respeito à linguagem. Clark

recomenda um cuidado maior com a linguagem do que com os temas que possam

indispor os adultos que se encontram entre o escritor e o leitor. Segundo a autora,

de um modo em geral, será a linguagem que provocará as queixas dos pais,

mesmo sabendo que o mal não está nas palavras.

Na série de tabus estabelecida por Margart Clark, ganham lugar de

destaque os temas controvertidos, ao contrário de Gianni Rodari, para quem as

histórias-tabu estariam relacionadas às “funções corporais” e a “curiosidade

sexual” (RODARE, 1982, p. 100). Clark dedica-se a discorrer sobre livros que

possam assustar as crianças ou que tenham como tema a morte; porém, sua

maior preocupação é com questões mais práticas que possam a vir colocar as

crianças em perigo de alguma maneira.

Para mostrar a recepção de histórias-tabu e as maneiras de censurar-lhes a

leitura dessas histórias, vale relatar o caso do livro de Georgina da Costa Martins,

ilustrado por Pink Wainer, intitulado O menino que brincava de ser (2000). O livro

tem como protagonista um menino que gostava de brincar de vestir roupas

femininas e de se fantasiar de bruxa. A editora em questão tomou diversas

providências para se resguardar de possíveis acusações, bem como proteger a

autora e o livro de ataques homofóbicos.

Contudo, a divulgação do livro por um determinado programa anunciando o

livro como um “livro gay” para crianças acabou nos tribunais. O encaminhamento

sensacionalista prejudicou a editora, assim como a autora do livro. As

consequências foram sentidas de imediato, pois logo as escolas começaram a

retirar os livros das listas de compras. A obra também não saiu ilesa, sofreu

reflexos no seu aspecto gráfico, com a substituição da capa da 1ª edição por uma

nova. A intenção era de evitar comentários maledicentes e apagar a imagem

disseminada pela mídia de “livro gay” para crianças.

FIGURA 3 – LIVRO O MENINO QUE BRINCAVA DE SER, DE GEORGINA DA COSTA MARTINS. CAPA DA 1ª EDIÇÃO. NOTA: Imagem extraída do site http://ensaioplural.wordpress.com/category/categorias/biblioteca/. Acesso em 05/11/2011.

A capa acima, assinada por Pink Wainer, apresentava uma leitura sensível

e inteligente da obra. A ilustração inibia qualquer comentário maldoso, distante de

um projeto gráfico sensacionalista. O diálogo entre o verbal e o não-verbal ocorria

de uma forma satisfatória e instigava o núcleo semântico da história. Percebemos

uma representação que investia no não convencional, na estilização, na

desproporção e no dinamismo, o que amplia, por meio do visual, a compreensão

da obra. A superposição de roupas contribui para a representação da atitude do

menino como uma expressão de fantasia e não como uma opção sexual, tanto

que em nenhum momento a definição da personagem foi posta em dúvida. O que

saltava a vista era o brincar, a criatividade da criança nos jogos de faz de conta e

a curiosidade de se aproximar de tabus impostos pela cultura.

Para tentar contornar os problemas e prejuízos causados pela má

divulgação do livro, foi realizada uma segunda edição da obra com uma nova capa

que arremata a história.

FIGURA 4 – LIVRO O MENINO QUE BRINCAVA DE SER, DE GEORGINA DA COSTA MARTINS. CAPA DA 2ª EDIÇÃO. NOTA: Imagem extraída do site http://www.skoob.com.br/livro/26820-o-menino-que-brincava-de-ser. Acesso em 05/11/2011.

O novo projeto gráfico tornou-se frio. O menino que antes era o centro das

atenções tornou-se pequeno, secundário, perdendo sua autonomia. Fica evidente

a perda da intensidade simbólica e um enfraquecimento semântico da composição

visual que acaba mascarando o sentido da obra e deslocando o olhar para um

episódio da história, por meio de uma comportada cena familiar sem grandes

indagações.

Sabemos que todo livro destinado ao público infantil passa pelo crivo de

instituições que o julgam, a partir da visão de um adulto, o que leva a um

direcionamento da leitura que acaba por reforçar estruturas legitimadas pela força

das tradições. O controle sobre a leitura e a censura aos temas considerados

tabus só servem para tranquilizar os adultos em relação aos seus fantasmas e

seus medos, assim como para manter as construções culturais admitidas.

3 LYGIA BOJUNGA QUEBRANDO OS “TABUS”

Pra mim, livro é vida; desde que eu era muito pequena os livros me deram casa e comida. Foi assim: eu brincava de construtora, livro era tijolo; em pé, fazia parede, deitado, fazia degrau de escada; inclinado, encostava num outro e fazia telhado. E quando a casinha ficava pronta eu me espremia lá dentro pra brincar de morar em livro. De casa em casa eu fui descobrindo o mundo (de tanto olhar pras paredes). Primeiro, olhando desenhos; depois, decifrando palavras. Fui crescendo; e derrubei telhados com a cabeça. Mas fui pegando intimidade com as palavras. E quanto mais íntimas a gente ficava, menos eu ia me lembrando de consertar o telhado ou de construir novas casas. Só por causa de uma razão: o livro agora alimentava a minha imaginação. Todo dia a minha imaginação comia, comia e comia; e de barriga assim toda cheia, me levava pra morar no mundo inteiro: iglu, cabana, palácio, arranha-céu, era só escolher e pronto, o livro me dava. Foi assim que, devagarinho, me habituei com essa troca tão gostosa que – no meu jeito de ver as coisas – é a troca da própria vida; quanto mais eu buscava no livro, mais ele me dava. Mas, como a gente tem mania de sempre querer mais, eu cismei um dia de alargar a troca: comecei a fabricar tijolo pra – em algum lugar – uma criança juntar com outros, e levantar a casa onde ela vai morar.

LYGIA BOJUNGA

3.1 Contextualizando a autora

Lygia Bojunga é um dos nomes mais expressivos do movimento renovador

da literatura infantil e juvenil brasileira, destacando-se por manter em suas obras

indiscutível qualidade literária, originalidade ímpar e altíssimo nível de criação.

Nascida em Pelotas, Rio Grande do Sul, onde passou seus primeiros anos e vida.

Aos oito anos de idade sua família se mudou para Copacabana, Rio de Janeiro, e

ela logo se rendeu à beleza da paisagem que tinha ao seu redor. Bojunga iniciou

sua carreira profissional como atriz, tomada pela paixão ao teatro. Após

abandonar sua carreira de atriz, passou dez anos escrevendo para rádio e

televisão, até voltar-se para a literatura.

"... naquele tempo escrever/criar personagens era, pra mim, uma forma de sobreviver e de poder construir a casa que eu queria pra morar (a Boa Liga); só depois, quando eu abracei a literatura, é que eu me dei conta que escrever/criar personagens era muito mais que um jeito de sobreviver: era – e agora sim! – o jeito de viver que eu, realmente, queria pra mim.” 9

Sua obra é composta por 22 livros: Os colegas (1972), Angélica (1975), A

bolsa amarela (1976), A casa da madrinha (1978), Corda bamba (1979), O sofá

estampado (1980), Tchau (1984), O meu amigo pintor (1987), Nós três (1987),

Livro, um encontro (1988), Fazendo Ana Paz (1991), Paisagem (1992), 6 vezes

Lucas (1995), O abraço (1995), Feito à mão (1996), A cama (1999), O Rio e eu

(1999), Retratos de Carolina (2002), Aula de inglês (2006), Sapato de salto (2006),

Dos vinte 1 (2007) e Querida (2009).

9 Lygia Bojunga. Texto retirado do site http://www.casalygiabojunga.com.br. Acesso em 06/11/2011.

FIGURA 5 – LYGIA BOJUNGA. NOTA: Imagem extraída do site http://www.casalygiabojunga.com.br/imprensa/. Acesso em 06/11/2011.

Lygia Bojunga tem recebido, no decorrer de sua carreira, reiterados elogios

da crítica especializada brasileira, assim como da estrangeira. No cenário literário

brasileiro tem sido referida como sucessora ou herdeira de Monteiro Lobato, por

estabelecer um espaço onde a criança tem – por meio da liberdade de imaginação

– uma chave para a resolução de conflitos, o que era feito com maestria por

Monteiro Lobato.

Bojunga já recebeu inúmeros prêmios, entre eles: Prêmio Jabuti (1973) –

Os colegas – Ed. José Olympio; Prêmio HANS CHRISTIAN ANDERSEN (1982) –

IBBY (pelo conjunto de sua obra) – o mais tradicional prêmio internacional de

literatura para crianças e jovens; Prêmio Jabuti (1993) – Câmara Brasileira do

Livro (CBL) – Fazendo Ana Paz – Ed. AGIR; Prêmio Jabuti (1997) – Câmara

Brasileira do Livro (CBL) – Seis vezes Lucas – Ed. AGIR; ALMA (2004) – Astrid

Lindgren Memorial Award (pelo conjunto de sua obra) – o maior prêmio

internacional jamais instituído em prol da literatura para crianças e jovens, criado

pelo governo da Suécia; Prêmio FAZ DIFERENÇA (2004) – personalidade literária

do ano – O GLOBO; etc. Lygia Bojunga foi a primeira escritora fora do eixo

Europa-Estados Unidos a receber a medalha Hans Christian Andersen,

considerada o prêmio Nobel dos autores para a infância e juventude de todo o

mundo. Após o prêmio Andersen, a obra de Lygia Bojunga se espalhou pelo

mundo e a autora teve livros publicados em vinte idiomas.

Num continente que se tornou conhecido por seu realismo mágico e contos

fantásticos, a literatura infantil brasileira caracteriza-se por uma acentuada

transgressão dos limites entre a realidade e a fantasia. Lygia Bojunga é uma

escritora que perpetuou esta tradição de forma espetacular. Para a autora, o

quotidiano está repleto de magia, e esta relação que ela estabelece com perfeição

entre a realidade e o maravilhoso permite o alcance de uma comunicação plena

com seus leitores. Seus textos baseiam-se fortemente na perspectiva da infância

na medida em que a autora observa o mundo por meio dos olhos travessos e

brincalhões da criança, por onde tudo se torna possível. As fantasias geralmente

servem para auxiliar na superação das experiências e conflitos pessoais. O

conjunto de sua obra constitui vários exemplos de textos que buscam a

emancipação da criança diante dos condicionamentos impostos a ela pelos

adultos.

Durante muito tempo a literatura para crianças evitou abordar temas que

tivessem como foco os conflitos sociais e existenciais, além daqueles relacionados

à violência urbana, todos diretamente inseridos na realidade das crianças. As

narrativas de Bojunga abordam temas que acabam por revelar sua preocupação

com o homem moderno nos diferentes contextos e dilemas sociais em que está

inserido, como as relações familiares que encontramos em Angélica, A casa da

madrinha, Tchau e Seis vezes Lucas; as desigualdades sociais também

abordadas em Tchau; a discriminação e o preconceito em Salto alto; os conflitos

sexuais em Aula de inglês e Salto alto; a morte em Corda bamba, Nós três e O

abraço; o suicídio em O meu amigo pintor e Salto alto; a violência sexual em O

abraço e Salto alto, entre outros. A abordagem desses temas determina o

afastamento da índole utilitarista da produção literária tradicional destinada à

criança, fazendo com que a literatura passe a assumir um papel mais relevante

enquanto arte.

A literatura inovadora revela uma visão mais clara da realidade na qual o

leitor já está inserido – apesar de muitas vezes não a conhecer – ultrapassando a

função didática moralizante. Ao cumprir seu papel social, a literatura colabora para

a formação da sociedade, por meio da emancipação do homem que tem seus

horizontes e percepções ampliadas. Os textos de Lygia Bojunga se enquadram

nesse contexto.

Diante da variedade de temas abordados nas obras de Lygia Bojunga, que

são considerados tabus para o público a quem são destinadas, será feito um

recorte para uma análise mais aprofundada da abordagem dos conflitos sexuais e

amorosos presentes em O abraço (1995), Aula de Inglês (2006) e Sapato de salto

(2006).

3.2 O abraço

“A narrativa de Lygia é a denúncia de um crime que não tem perdão” 10, a

violência sexual. Em O abraço (1995), Lygia Bojunga trata de uma maneira muito

simbólica o estupro, além de trazer a morte personificada por meio de uma

personagem misteriosa.

Num enredo em que a fusão do fantástico e do real se dá de maneira tão

perfeita e tão integrada, não há marcas evidentes da passagem de um para o

outro, a narrativa se constrói sobre o estupro sofrido pela protagonista Cristina,

aos oito anos de idade, numa fazenda no interior de Minas Gerais. A menina

cresce com as marcas e lembranças deixadas pelo crime. Depois de dez anos ela

reencontra por acaso o Homem da Água – seu estuprador – agora na figura de um

palhaço de circo. A revolta e o medo dão lugar ao desejo; Cristina se vê seduzida

por aquele homem que a tinha violentado quando criança. Ao completar dezenove

anos, numa festa, depara-se com a “morte” sob a figura de uma mulher

mascarada que a deixa fascinada, ao imaginar que ela poderia ser a Clarice, uma

amiga de infância que sumiu quando tinha sete anos de idade. Mais tarde, em

outra festa, por intermédio da “morte”, Cristina reencontra o homem que a

violentou e acaba vítima dele novamente.

10 Lygia Bojunga. Texto retirado do site da editora da autora http://www.casalygiabojunga.com.br. Acesso em 06/11/2011.

FIGURA 6 – CAPA DO LIVRO O ABRAÇO, ILUSTRADA POR RUBEM GRILO. NOTA: Imagem extraída do site http://www.casalygiabojunga.com.br/imprensa/. Acesso em 06/11/2011.

Quando nos deparamos com o título da obra, poderíamos supor que se

trata de uma história em que o afeto, o carinho e a amizade prevalecem, já que a

palavra “abraço” está vinculada a uma carga semântica que remete a tais

conotações. Porém, se verificarmos a capa atentamente, a impressão inicial que o

título poderia suscitar, acaba por se desfazer. Primorosamente produzida por

Rubem Grilo, temos uma estranha figura de uma mulher mascarada, personagem

que na obra pode ser interpretada como a alegoria da morte. O ilustrador

acertadamente a retratou como uma figura muito pálida – palidez essa acentuada

pelo contraste com os lábios e trajes negros –, com o corpo todo retorcido e os

olhos ocultos pelo chapéu também negro. Ao seu redor, algumas marcas de mãos

que poderiam sugerir um movimento de embate, de luta. Mas também poderíamos

interpretar a ilustração trazendo à tona os três personagens: a morte,

representada pelo rosto mascarado; Cristina, representada pelo corpo – que de

um determinado ponto de vista nos transmite certa suavidade e leveza –, objeto

de desejo, e o estuprador, visto através das mãos aparentemente preparadas para

se apoderar daquele corpo.

O desenrolar da narrativa também corrobora a refutação da possível

hipótese inicial relacionada ao campo semântico da palavra “abraço”, pois a

palavra adquiriu conotações um tanto quanto sombrias como: o abraço do

estuprador – “eu te prometo, Clarice, eu te prometo que, dessa vez, você não vai

morrer no meu abraço” (O abraço, p. 31) 11; o angustiado abraço da mãe, ao

reencontrar a Cristina-menina após o estupro – “minha mãe veio correndo, nós

duas assim, correndo uma pra outra, de braço estendido, pra gente se pegar mais

depressa, se abraçar mais depressa, e como a gente se abraçou!” (O abraço, p.

32); os vários tipos de abraço que tiveram lugar nos sonhos da Cristina com a

Clarice, em que se ressaltam o abraço da morte e o do não-perdão – “é esse o

abraço que eu deixo pra ti, Cristina. Pra você nunca esquecer, pra você nunca

perdoar o que te aconteceu” (O abraço, p. 41).

A narrativa, entremeada com diálogos ágeis e concisos, de linguagem e

ritmo característicos da comunicação juvenil, posiciona o leitor no tempo real da

narrativa, cativando-o e envolvendo-o na trama. Esse recurso de linguagem faz

com que o leitor assimile a história de uma maneira muito particular. A história se

desenvolve em um fôlego só, sem quebra de capítulos e com uma única pausa

proposta por um grafismo, bem enigmático, antes do desfecho.

11 A partir de agora a notação científica das citações das obras de Lygia Bojunga será simplificada, contendo apenas o nome da obra e o número da página em que a citação encontra-se.

FIGURA 7 – GRAFISMO INTERNO DO LIVRO O ABRAÇO, ILUSTRADO POR RUBEM GRILO. NOTA: Imagem extraída do livro O abraço, 2005, p. 76.

Temos a ilustração da morte personificada por meio da mulher mascarada.

A imagem torna-se marcante pela sua representação; a ilustração em preto e

branco com a prevalência de preto, cor que representa o luto, nos leva a crer que

o final será trágico. A ilustração que se apresenta antecedendo o desfecho da

narrativa permite que o leitor faça uma inferência, antecipando o que irá acontecer

com a personagem Cristina. Essa estratégia é recorrente nas obras de Lygia

Bojunga.

A violência e a morte se despem de qualquer recurso eufemístico na obra,

como podemos verificar na citação a seguir:

... ele entra na marra porque tem mais músculo, só por isso, ele me arromba, ele me rasga, ele me humilha (ele sabe que humilhação é a dor que dói mais, e pra qualquer ser que se preze não tem humilhação maior do que ser arrombado assim) e ainda arrisca na saída de deixar um filho que eu vou ter que arrancar, uma AIDS que eu nunca mais vou curar (O abraço, p.63).

A narração do estupro assume um tom de confissão. A linguagem utilizada

para descrever os acontecimentos particulares de Cristina e suas implicações

sentimentais logo nos remete à maneira característica do tipo de linguagem

utilizada em diários pessoais. Além de ser uma linguagem coloquial, muito

próxima da fala, característica recorrente na literatura de Bojunga, o que acaba

trazendo o seu público alvo com mais facilidade para a leitura:

Ontem foi o meu aniversário, eu fiz dezenove anos. Eu não sou muito festiva, sabe, mas quando o Jorge – o Jorge é um amigão que eu tenho – quando ele me chamou pra eu ir à festa, ele me garantiu que eu ia curtir... (O abraço, p.8).

O texto em questão está repleto de simbologia. Ao observar a personagem

de Clarice, constatamos que ela surge como uma personagem simbólica

construída para representar todas as vítimas que sofreram alguma violência

sexual. Percebemos isso quando o estuprador diz para Cristina: “– Menina bonita

feito você se chama Clarice” (O abraço, p. 30). Esta fala dá a entender que não

havia apenas uma Clarice, mas várias. Em outras palavras, o nome Clarice

estaria, metonimicamente, representando as várias meninas que teriam sido ou

haveriam de ser alvos do desejo insano do Homem da Água. Clarice é uma

personagem que representa os conflitos de uma coletividade. Depreendemos,

portanto, que, se o Homem da Água andava sempre em busca de sua Clarice, em

contrapartida, a Mulher mascarada parece representar as várias Clarices

doentiamente desejadas por ele:

Mas que diferença faz se eu sou a Clarice-tua-de-infância-que-um-dia-saiu-de-casa-e-nunca-mais-voltou, ou se eu sou a Clarice-que-se-fingiu-

de-morta, ou a Clarice-que-morreu-numa-gravata-cinzenta, ou as mil outras Clarices que eu posso te contar... (O abraço, p.67).

O fato de Clarice estar sempre presente nos sonhos de Cristina já aponta a

simbologia da personagem. Ela parece ser um fluxo da consciência de Cristina e

os sonhos sinalizam a tensão da personagem que se revela indefinida no conflito

interior entre o lado avesso e o lado direito, ou seja, entre os sonhos e a vida real.

Os sonhos adquirem sentido de evasão, de fuga do problema. Além disso, a

personagem simbólica de Clarice é uma fusão da imagem da amiga que

desapareceu associada à condição de silêncio que a própria Cristina estabeleceu

em relação ao estupro que sofreu:

... eu não pensava acordada no que tinha acontecido, eu só pensava dormindo, quer dizer, sonhando, e quando a gente pensa sonhando o pensamento vira do lado avesso, não é? E a gente vê coisas que nunca tinha visto do lado direito. Então, em vez do Homem da Água, era a Clarice que eu encontrava nos meus sonhos (O abraço, p.35).

É válido atentar para o significado do nome Clarice: derivado do latim Clara,

significa “brilhante”, “ilustre”, remetendo, pois, à ideia de claridade. A claridade, por

sua vez, remete à ideia de pureza e inocência, imagens tradicionalmente

associadas à infância. Assim, a luz inerente ao nome contrasta-se ostensivamente

com o mundo sombrio por onde andava o Homem da Água, de modo a acentuar,

por meio do contraste, a alma obscura desse homem.

O estuprador, o Homem da Água, é outra personagem com uma carga

simbólica. Ele nos chama a atenção pelo tom denunciativo, pela crítica social aos

criminosos que continuam impunes. Ao caracterizar a personagem, a autora

mostra um homem como qualquer outro, sem marcas que possam identificá-lo

como um criminoso – “Ele estava vestido do jeito que milhões de homens se

vestem, mas, naquele lugar, era um jeito tão estranho!” (O abraço, p. 23) –,

embora apresente alguns indícios sutis, como o descontrole emocional e a

obsessão com o pedaço de cabelo que guardava. Essa obsessão por um

determinado tipo de cabelo, a atitude de comparar e o zelo com que o Homem da

Água manipula uma mecha traduzem, realmente, um comportamento fetichista.

Esse comportamento está diretamente relacionado com o de outros maníacos

sexuais:

Aí ele tirou do bolso do paletó uma caixa de fósforos. [...] Dentro da caixa tinha um pedaço de cabelo amarrado com uma fita vermelha. Ele botou a caixa no chão. Pegou o cabelo com cuidado (mas a outra mão sempre agarrando firme o meu braço) e encostou ele na ponta do meu cabelo. Comparando. Olhou pra mim com uma expressão assim... como é que eu vou dizer... assim, entre contente e terna. Eu olhei pras duas pontas de cabelo e me admirei: que igual que era! (O abraço, p.24).

Outra personagem simbólica é a Mulher Mascarada que aparece como

alegoria da morte. É através desse símbolo que temos pistas dos acontecimentos

finais de Cristina na narrativa, pois a presença da Mulher Mascarada desempenha

sutilmente um papel anunciativo. Essa sutileza com a qual a morte é anunciada

revela a pena maior das vítimas da ação de um estupro que é a morte, física e

também emocional. “Você é mesmo uma infeliz, você merece o pior” (O abraço,

p.62).

Conforme já sabemos, o conflito é desencadeado pelo estupro

experienciado na infância, mas há um lapso de tempo em que a lembrança se

manifesta somente em sonhos, havendo, posteriormente, um “branco” total, visto

que a lembrança permanece adormecida no inconsciente. Nesse lapso de tempo,

imaginamos que Cristina teve uma vida normal, como qualquer jovem de sua

idade. Como ela própria diz, todo sábado se reunia com os amigos e frequentava

cinemas, festas, discotecas e, num desses sábados, sua turma decide ir ao circo.

É nesse ambiente que Cristina “entra em parafuso”, ao deparar-se com um

palhaço, que, como um agente catalisador, desperta a lembrança há tanto tempo

inerte na memória:

E nessa hora a fazenda de Minas acordou dentro de mim. Com tanta força que doeu. Doeu! feito coisa que eu tinha levado uma pancada no peito. O rio, a cara do Homem na água, o barraco fechado, a voz falando no escuro, os sonhos. Em vez da banda tocando, de risada e de palma, do barulho todo do circo, eu só ouvia a voz dele, eu só sentia o peso do corpo dele aqui. O meu olho não largava mais o palhaço. [...] Meu coração não parava de correr de susto, o que que tinha na pintura daquela cara pra me trazer assim de volta o episódio que eu tinha esquecido? A figura de macacão vermelho era tão grotesca que eu até custei pra pensar, quem sabe se esse palhaço é ele? E aí eu ainda me assustei mais (O abraço, p. 46,47).

É interessante observar que o próprio ambiente circense – a alegria da

plateia, o som da banda tocando, o barulho de risada e de palma – contrasta

violentamente com a dor que Cristina revive, de modo que esse contraste

corrobora para acentuar, ainda mais, o estado de choque da personagem.

Cristina ficou tão perturbada que voltou ao circo no outro dia para

reencontrar o palhaço, e tentar descobrir se ele é o homem que a havia violentado

na sua infância. Para isso ela “tinha que escutar depressa a voz dele pra acabar

com um resto de dúvida” (O abraço, p. 51). E ao ouvir sua voz vem a confirmação:

“era a voz grave, lenta, meio baixa, uma voz que não combinava nada-nada com a

cara e a roupa de palhaço que ele tinha arrumado” (O abraço, p.52). A reação de

Cristina não é a mais esperada, ao invés de sentir revolta, raiva, desprezo, sente-

se profundamente atraída pelo homem que arrombou sua infância:

Mas, sabe, na hora que o encontro aconteceu eu saquei: o que eu tinha pensado que era cansaço não era: era a minha perna amolecida, era o meu peito pesando; e o que eu tinha pensado que era vontade de beber qualquer coisa também não era: a minha sede continuava, a minha salivação aumentava; e o que eu ainda não tinha pensado que era eu comecei a pensar: era tesão dele (O abraço, p. 58).

No bar para o qual Cristina e o palhaço se dirigem, ela se dá conta,

angustiada, da forte atração que a dominava. Dividida entre o dever e o querer,

sabe que não deveria querer aquele homem, mas ela o quer e esse desejo escapa

ao seu controle:

...eu não podia sentir o que eu estava sentindo, eu tinha que ir embora depressa. Mas a gente, quer dizer, a mão da gente não se largava mais [...] e eu nem me lembrava mais nada do que eu queria perguntar pra ele, de tanto que eu fui me entregando pro tesão que tomou conta de mim (O abraço, p. 58).

Eles combinam de se encontrar mais tarde, mas o palhaço não aparece,

deixando Cristina alucinada. A partir daí, a obsessão da protagonista pelo palhaço

toma dimensões absurdas; Cristina passa a procurá-lo em todos os circos da

cidade, mas sem nenhum sucesso. Por intermédio da Mulher Mascarada, em

outra festa, Cristina reencontra o palhaço:

Cristina se virou. Ficou paralisada de susto: era um palhaço de circo; o macacão, o colarinho, a peruca, tudo igual ao palhaço dela. Será possível que... será que era ele? [...] “Ah, então era mesmo ele! A voz baixa, grave, pausada, que ela tinha decorado tão bem, era ele. E o susto de Cristina se misturou de fascinação (O abraço, p. 78).

Sob a figura de um palhaço, o Homem da Água ressurge como um

fantasma do passado, e a amarga experiência vivida na infância é revivida não

somente através da lembrança de Cristina, mas também por meio da experiência

que está prestes a se repetir. O palhaço a leva para o fundo do jardim, violenta-a

novamente, mas desta vez ele acaba por utilizar sua gravata cinzenta

estrangulando sua vítima:

O Homem aperta a gravata na mão feito uma rédea. Com a outra mão vai arrancando, vai rasgando, se livrando de tudo que é pano no caminho. Agora o homem é todo músculo. Crescendo. Só afrouxa a rédea depois do gozo. Cristina mal consegue tomar fôlego, já sente a gravata solavancando pro pescoço e se enroscando num nó. Que aperta. Aperta mais. Mais (O abraço, p. 80).

Além de abordar um tema tão forte como o estupro, a obra nos traz um final

muito diferente daqueles que estamos acostumados a encontrar nos textos de

literatura infantil e juvenil, que normalmente nos trazem a resolução dos conflitos,

ou pelo menos a esperança de que possam ser resolvidos. Em O abraço temos

um final trágico, com a suposta morte de Cristina, já que o texto não termina com

a personagem estrangulada, mas sim sendo estrangulada. Temos então uma obra

que propicia o diálogo espontâneo sobre assuntos latentes como a morte e a

violência sexual.

2.3.2 Aula de Inglês

Depois de quatro anos sem publicar nenhum livro, Lygia Bojunga nos

presenteia com dois num único ano. Em 2006 publica Aula de inglês e Sapato de

salto, dois livros que trazem histórias que abordam os “permanentes conflitos

sexuais, amorosos e familiares que dificultam e/ou iluminam a trajetória de

adolescentes e adultos.” 12 Aula de inglês (2006), uma obra direcionada ao público

jovem e adulto, nos apresenta com muita sensibilidade o anseio das personagens

por realizações sentimentais e sexuais. Dessa maneira, a narrativa é centrada no

íntimo das personagens, revelando seus desejos, frustrações e anseios. Bojunga

nos revela no decorrer da narrativa “uma colcha retalhada de sentimentos

múltiplos, numa sucessão de desencontros, que nos faz peregrinos no universo

dos amores.”13

O protagonista da obra ora é Aluno, ora é Professor – assim, com

maiúsculas, porque é dessa forma que sua história é contada, sem nome, por

meio dos papéis que desempenha. Primeiramente, como Aluno, conhece sua

primeira Penélope: a tia Penny, uma jovem escocesa viúva de seu tio, loura e

linda. Ela o ensinou a língua inglesa, que serviria, posteriormente, de sustento

para a vida dele, já que sua paixão pela profissão fotográfica não lhe concedeu

bons rendimentos financeiros. O jovem de apenas onze anos de idade, com alma

e olhos de fotógrafo, acabou se encantando pela mestra, despertando sua

primeira paixão amorosa. Mas também foi com ela que ele teve seu primeiro

desencanto. Ao partir para Londres, sem saber que era o primeiro amor da vida

daquele garoto, Penny o deixou arrasado.

12 Texto retirado do site http://www.casalygiabojunga.com.br. Acesso em 06/11/2011. 13 Beatriz Moura. Texto retirado do site http://www.estacaodasletras.com.br/arquivos/letrafalante/lydia-bojunga/aula-de-ingles.html. Acesso em 14/11/2011.

Agora como Professor, já na faixa dos sessenta anos de idade, outra

Penélope entra em sua vida. Aluna do Professor, uma jovem de 19 anos que na

verdade se chama Tereza Cristina – mas quer ser Penélope na África, para virar

personagem de um escritor chamado Octavio Ignácio. A relação entre Professor e

Aluna é muito amistosa; muitas vezes o Professor passa a ser até mesmo um

confidente de Tereza Cristina. E foi numa dessas confissões que ela revelou sua

paixão e obsessão pelo escritor Octávio Ignácio. Paixão esta tão intensa que a

levaria a abandonar sua vida indo embora para África e que também acabou por

provocar uma nova decepção amorosa na vida do Professor, já que ele escondia

atrás de sua câmera imaginária – sempre estava focalizando uma imagem da

aluna – um imenso desejo por Tereza Cristina.

Entre chegadas e partidas de suas Penélopes, o Professor se refugia

dentro de si mesmo. Até o dia em que seus sentimentos o impulsionam a uma

viagem para Londres, atrás de suas Penélopes.

Lygia Bojunga proporciona aos seus leitores a escolha do desfecho a ser

dado ao relacionamento do Professor com Tereza Cristina, trazendo dois

fascinantes epílogos, o que atribui à obra um grande teor qualitativo.

Como já mencionado anteriormente, uma das especificações que se

dispõem em Aula de Inglês é o tratamento concedido ao desejo sexual, aos

sentimentos amorosos. A autora não abre mão de nos revelar a paixão e o desejo

que existe, primeiramente, entre Aluno e professora e posteriormente entre

Professor e aluna, relacionamentos que não são bem vistos aos olhos da nossa

sociedade conservadora. Assim como o relacionamento entre um homem mais

velho com uma jovem garota – como o que houve entre Octávio Ignácio e Tereza

Cristina – também sofre com o preconceito da sociedade. Esses tipos de

relacionamentos ainda são vistos pela sociedade como inapropriados e

indecentes. Bojunga não faz nenhum julgamento ou crítica ao comportamento de

seus personagens, deixa para que seus leitores o façam. Ela trata desses conflitos

de uma maneira muito natural.

Outra paixão que percebemos já no início da narrativa, e que no decorrer se

torna mais clara, é a que o Professor tem pela fotografia:

Que interessante esse ângulo. Ela assim de perfil olhando a chuva lá fora. A cabeça ficou tão bem emoldurada no quadrado da janela. Ia ser uma foto perfeita. Preto e branco (Aula de inglês, p. 10).

Antes mesmo de abrir o livro já podemos fazer alguma inferência, pois

temos na capa, ilustrada por Regina Yolanda, a imagem de uma máquina

fotográfica focalizando uma garota de cabelos compridos.

FIGURA 8 – CAPA DO LIVRO AULA DE INGLÊS, ILUSTRADA POR REGINA YOLANDA. NOTA: Imagem extraída do site da editora da autora http://www.casalygiabojunga.com.br/imprensa/. Acesso em 15/11/2011.

E através das lentes de sua primeira máquina fotográfica é que a primeira

paixão do Aluno – papel exercido pela personagem neste momento – é revelada,

a paixão que brotou dentro do seu coração pela tia Penny:

A primeira foto que ele fez foi um retrato da tia Penny. Ela nem viu: estava tão distraída na praia, olhando pra tudo e pra todos, que ele ficou um tempão procurando o melhor ângulo. O cabelo da tia Penny tinha um tom vermelhado que deixava ele fascinado [...] Foi chegando mais perto. A tia Penny levantou a mão querendo tirar da frente do olho o cabelo que esvoaçava. [...] Focou a atenção na mão da tia Penny; chegou ainda mais perto [...] E, de tão interessado que ficou na mão, chegou ainda mais perto. O movimento fez a tia Penny virar a cabeça depressa, e o dedo, todo nervoso, clique! apertou o botão (Aula de inglês, p. 21-22).

Por meio da visão de fotógrafo retratista é que o Professor acaba se

encantando por Teresa Cristina, uma garota com uma expressão, ou melhor,

várias expressões, tão marcantes que logo na primeira vez que o Professor a viu,

não hesitou em começar a tirar inúmeras fotos imaginárias da garota. Seu

encantamento foi tão grande que, quando soube que ela gostaria de aprender a

língua inglesa, logo se disponibilizou para lecionar as aulas para a garota:

E naquele dia em que conheci você fiquei tão encantado na mobilidade de seu rosto que comecei logo, mentalmente, a fazer fotos de você. [...] Fiquei quieto, num canto, enquadrando você de várias maneiras diferentes, conforma as expressões do seu rosto iam variando. Usei rolos e mais rolos de filme em você (Aula de inglês, p. 56).

Poderíamos dizer então que a paixão do Professor pela fotografia está

relacionada com as outras duas paixões de sua vida, a tia Penny e Teresa

Cristina. O olhar do fotógrafo é que revela a ele o que cada uma delas tem de

mais encantador, e é esse mesmo olhar que faz com que ele se apaixone por

elas.

Não poderíamos deixar de chamar atenção também para o título da obra,

Aula de inglês, que está diretamente relacionado com o desenrolar dos conflitos

amorosos da obra. Pois, é por meio das aulas de inglês que o protagonista

mantém o contato com suas paixões e que passa a assimilar melhor – não com

tanta clareza – os seus sentimentos. Primeiramente na posição de Aluno, quando

se encanta pela sua mestra, “no decorrer das aulas que você me dava, eu fui me

apaixonando mais e mais por você” (Aula de inglês, p. 195). Depois como

Professor acaba se apaixonando pela sua aluna:

Na primeira terça-feira eu ainda pensava que era só um encantamento de fotógrafo retratista que eu sentia por você. Mas na quinta-feira eu desconfiei que não era só.

Na segunda terça-feira achei que era encanamento de professor também: era possível que você estivesse aprendendo inglês com tanta facilidade assim? Na quinta-feira confirmei: era sim. Mas na terceira terça-feira me assustei: era possível que o encantamento fosse também... (Aula de inglês, p. 57).

Além dos conflitos amorosos do Professor, temos também o de Teresa

Cristina com Octávio Ignácio – homem de quarenta anos, supostamente casado.

Entre eles é travada uma relação um tanto quanto “pitoresca”. Teresa Cristina

acaba se apaixonando pelo escritor de A prisioneira. Sua obsessão pelo texto e o

fato de ter se identificado com a personagem principal do livro faz com que ela

procure o autor. Eufórica pela ideia de ser o pivô da próxima produção do escritor,

Tereza Cristina acaba se entregando a ele por inteiro, numa paixão avassaladora,

que mudará o rumo de sua vida:

- Será que o senhor não sacou até que ponto eu to apaixonada por ele? Até que ponto eu to vivendo no céu e não na terra desde que a gente começou essa relação? O senhor, por acaso, não sabe o que é a gente se dar inteirinha para outra pessoa? Inteirinha, Professor, inteirinha! (Aula de inglês, p. 96).

Octávio Ignácio por sua vez, não hesitou em aceitar a proposta da garota e

acabou por seduzi-la e usá-la, até o dia em que ele decidiu se livrar da presença

de Teresa Cristina e arrumou uma desculpa para mandá-la para bem longe. Cega

de paixão, ela partiu para África, para trabalhar numa ONG.

Preocupado com Teresa Cristina, manifestando agora um sentimento

fraterno, o Professor procura por Octávio Ignácio e trava com ele uma conversa

audaz que acaba por revelar o que ele já sabia: a viagem de Tereza Cristina era

apenas um pretexto para se ver distante dela. Motivado pela ideia de contar-lhe a

verdade e até mesmo de tê-la para si depois que ela soubesse de tudo, o

Professor segue para Londres – por onde Teresa Cristina passaria antes de sua

jornada para África. Em Londres, encontra a garota, que não se altera nem por um

minuto e não muda sua decisão mesmo depois de tudo que ele lhe contou sobre

Octávio Ignácio. Teresa Cristina estava irredutível na sua decisão de viver a

Penélope de Octávio Ignácio. Nesse momento de angústia e de ansiedade, o

professor acaba se declarando – por meio de um abraço – para Teresa Cristina:

[...] colhe Teresa Cristina num abraço impetuoso e fala no ouvido dela, vê se entende, vê se entende, vê se entende, pelo amor de deus! E nem a japona nem o casaco de Teresa Cristina conseguem amortecer o impacto com que o corpo do Professor, ao se colar no dela, mostra toda a força de um tesão (Aula de inglês, p. 153).

Muito decepcionado, percorrendo as ruas de Londres, o Professor relembra

sua primeira paixão, a tia Penny. A última notícia que teve dela foi um cartão

postal de Londres; ele, então, decide procurá-la e acaba encontrando-a. A

narração do encontro entre o Aluno e a tia Penny é uma das mais belas do livro. A

nostalgia toma conta da narrativa e contagia o leitor. Nesse encontro ele cria

coragem e confessa a ela sua paixão quando menino:

[...] não foi à toa que eu me apaixonei por você. No momento em que você chegou lá em casa eu me impressionei com a sua beleza, e depois, no decorrer das aulas que você me dava, eu fui me apaixonando mais e mais por você. No dia em que eu fiquei um tempo imenso lá na praia enquadrando você pra foto que eu queria fazer, eu tomei consciência de que você era o meu primeiro amor. O meu primeiro e grande amor (Aula de inglês, p. 195).

Poderíamos interpretar a ida do Professor para Londres como sua

libertação, pois lá ele consegue expor seus sentimentos para suas duas

Penélopes, para os dois amores de sua vida. Com o sentimento de missão

cumprida, o que ele mais deseja depois de ter passado por todas essas emoções

é voltar para sua casa e sua pacata vidinha de sempre.

Finalmente, os epílogos que a autora nos traz, com o desfecho do

relacionamento entre o Professor e Teresa Cristina, levam ao mesmo final, apenas

por meios diferentes. No primeiro, o mais condizente com o enredo, depois de dois

anos, Teresa Cristina se faz lembrada por meio de uma carta enviada ao

Professor. Junto com a carta ela enviou o seu último relatório escrito para Octávio

Ignácio, que revelava sua consciência dos sentimentos que permeavam sua

relação com ele e sua satisfação com o trabalho e a vida que estava levando. Ao

final da carta, como sempre, ela agradece ao Professor por tudo que aprendeu

com ele e lhe deseja saúde e paz. No segundo epílogo, o Professor – que

sempre evitava tudo que lembrasse Teresa Cristina – acaba sabendo pelo pai

dela, num encontro acidental, que a garota estava muito bem na África,

entusiasmada com o trabalho que estava exercendo e realizada pessoalmente.

Em 214 páginas, Lygia Bojunga consegue expor diferentes tipos de

sentimentos que um relacionamento a dois pode fazer aflorar num ser humano. De

uma maneira muito natural, ultrapassando o “correto” estabelecido pela sociedade,

são revelados no seu texto a necessidade e o desejo de um relacionamento

conjugal, independentemente de idade e posição daqueles que estão envolvidos.

2.3.3 Sapato de salto

A última obra a ser analisada é Sapato de salto, que aborda inúmeros

conflitos sociais como: os sentimentos amorosos e sexuais, o preconceito sexual,

a homossexualidade, a prostituição, o suicídio, a pobreza, o abandono, o

assassinato, entre outros. Todos esses temas “tabus” presentes na obra são

expostos ao leitor numa linguagem clara e direta. Em Sapato de salto, Lygia

Bojunga abre mão da fantasia, retratando a realidade nua e crua das experiências

humanas, em um livro que a própria autora dedica aos jovens e adultos.

A narrativa relata a história de Sabrina, uma criança com pouco menos de

11 anos de idade, órfã, que fora tirada de um orfanato por uma família que

supostamente seria sua protetora, mas que acaba se revelando ao longo da

narrativa como seu mais terrível algoz. Ela sofre com os maus tratos de Dona

Matilde e com os abusos sexuais de Seu Gonçalves, que vê na menina uma fonte

de prazer. No decorrer da narrativa, aparece a verdadeira família de Sabrina, não

muito convencional. A tia da menina surge para levá-la para o seu novo lar, e a

conforta nos braços de sua família, formada agora pela tia Inês e pela avó Dona

Gracinha, uma senhora que ficou louca de tanta tristeza pela perda da filha, a mãe

de Sabrina.

No caminho para casa, tia Inês e Sabrina se deparam com Andrea Doria,

um garoto de treze anos apaixonado pela dança, confuso em relação à sua

sexualidade e que sofre com o preconceito e discriminação do pai. A ligação entre

Andrea Doria e Sabrina se dará, futuramente, pela dança, já que o garoto começa

a fazer aulas com a tia Inês. Nas aulas, tia Inês e Andrea descobrem o talento de

Sabrina para dança.

Quando as coisas parecem estar se encaminhando na vida de Sabrina, sua

tia é assassinada por um homem que um dia tinha sido seu cafetão. É nesse

momento que a garota passa a conhecer o passado da tia. Numa briga entre os

dois, tia Inês é morta brutalmente na frente de Sabrina e Dona Gracinha. A partir

desse momento a família da menina se resume nela e na Avó, e para sustentá-la,

Sabrina passa a se prostituir.

A salvação de Sabrina vem por meio da mãe de Andrea Doria, Paloma.

Certo dia Andrea Doria leva Sabrina para almoçar em sua casa, e apresenta a

menina para sua família. Paloma acaba conhecendo melhor a garota no decorrer

da narrativa e se afeiçoa por ela e pela avó, o que a leva a tomar uma atitude que

mudará completamente sua vida e a vida de Sabrina. Paloma tira a menina da

prostituição e adota a garota e a avó.

Lygia Bojunga não poupou a menina Sabrina de presenciar e viver várias

experiências chocantes, que não condizem com as que uma menina de 10 anos

deveria viver – de acordo com a concepção de infância da nossa sociedade –,

como: o convívio com o abandono em um orfanato; a vida de servidão e de

abusos; o testemunho impotente do assassinato da tia; a responsabilidade de

cuidar da avó louca; a prostituição como a única forma de sobrevivência. Somente

a dança, a liberdade do corpo livre conduzido pela música, traz prazer e alegria

para Sabrina e é a partir desta arte que ela se liberta e sua vida se transforma.

As duas primeiras questões expostas ao leitor são a condição de órfã de

Sabrina e os abusos que ela sofre com a família que a adotou. No início do texto o

leitor irá se deparar com a família que tirou Sabrina do orfanato. Dona Matilde,

uma dona de casa frustrada e traída pelo marido, deixa clara sua antipatia por

Sabrina logo no primeiro momento em que vê a garota. “– Não gostei do jeito dela”

(Sapato de salto, p. 9).

Dona Matilde ainda faz questão de deixar clara a dúvida em relação ao

caráter de Sabrina – plantando essa dúvida no leitor também –, pela “falta de

origem” da menina. “– Uma menina assim sem pai, sem mãe, sem nada, será que

presta?” (Sapato de salto, p. 10). Presenciamos nesse momento o preconceito em

relação às crianças órfãs.

Ao contrário de Dona Matilde, seu Gonçalves desde o primeiro olhar para

garota já deixa claro seu interesse, e não demora em começar a conquistar

Sabrina com doces, presentinhos e chamegos, mas sempre em segredo, num tom

de brincadeira, pois Dona Matilde não podia saber de nada. A narrativa traz

indícios de que o interesse de Seu Gonçalves por Sabrina não é fraterno –

“Quando ela virava cambalhota pra se divertir com as crianças, ele ainda ria mais.

E meio que fechava o olho querendo ver melhor a calcinha que a Sabrina usava”

(Sapato de salto, p. 14). De segredo em segredo, um dia o segredo azul fraquinho,

nos é revelado. Seu Gonçalves passa a abusar sexualmente de Sabrina:

Entrou uma noite no quarto dela e se instalou na cama com jeito de quem está inventando uma nova brincadeira. Quando Sabrina foi gritar de susto, ele tapou o grito com um beijo, e depois cochichou: - Esse vai ser o nosso maior segredo, viu? – e foi brincando de roçar o bigode a cara dela. Sabrina sentiu o coração disparando. O bigode desceu pro pescoço [...] O bigode foi varrendo cada vez mais forte os cantinhos de Sabrina. [...] Ele tirou do caminho lençol, camisola, calcinha. [...] - Que que há, Seu Gonçalves? Não faz isso, pelo amor de deus! O senhor é que nem meu pai. Pai não faz assim com a gente. [...] - Não faz isso! Por favor! Não faz isso! – Tremia, suava. – Não faz isso! Fez (Sapato de salto, p. 19-20).

Sem outra opção, com medo de ter que voltar para o orfanato, Sabrina se

submete aos abusos do Seu Gonçalves, que passam a animar as noites dele e

assombrar as dela. A situação de Sabrina fica ainda mais crítica quando Dona

Matilde descobre que seu marido visita a menina quase todas as noites. A partir

daí, além de se submeter aos abusos sexuais de Seu Gonçalves, a menina é

maltratada por Dona Matilde. Toda noite que Seu Gonçalves aparecia no quarto

de Sabrina, antes de sair deixava um presentinho de recompensa para menina,

balas, chocolates, calcinhas. Uma noite ele se explicou dizendo que não teve

tempo de comprar nada e deixou um “dinheirinho” para ela. “E, na outra noite,

quando Seu Gonçalves já ia saindo: - Ei!! e o dinheirinho?” (Sapato de salto, p.

26). Inconscientemente Sabrina estava se prostituindo; Seu Gonçalves induz a

menina à prostituição. Nesse momento nasce a dúvida no leitor quanto ao caráter

de Sabrina, será que Dona Matilde estava certa?

Em seguida, surge a revelação de que Sabrina tem uma família verdadeira.

Inês aparece na casa de Dona Matilde atrás de Sabrina, se apresenta como tia da

garota. A utilização de determinadas palavras na descrição da tia Inês leva o leitor

a inferir uma imagem estereotipada de uma prostituta, fazendo com que ele passe

a suspeitar também do caráter da personagem:

Primeiro o olho de Sabrina se prendeu no olho da mulher; depois, subiu pro cabelo: ruivo, farto, uma mecha loura daqui, um encaracolado de lá; desceu pra orelha: argolona dourada na ponta; atravessou pra boca: o lábio era grosso, o batom bem vermelho; mergulhou no pescoço: conta de vidro dando três voltas, cada volta de uma cor; o olho ganhou velocidade, atravessou o decote ousado, meio que tropeçou na alça da bolsa e foi despencando pro cinto grosso (que cinturinha que ela tem!), e pro branco apertado da saia, e pra perna morena e forte, que descansava o pé num sapato de salto. Bem alto. Unha da mão pintada da mesma cor do batom

(Sapato de salto, p. 27-28).

A narrativa oferece ao leitor vários indícios para a confirmação da suspeita

criada em relação à tia Inês. Seu modo de falar – “Taí: a tua mãe ainda não tinha

feito quinze anos e já tava trepando pra não passar fome” (Sapato de salto, p.

106), “Não deixo porra nenhuma!” (Sapato de salto, p. 37); a descrição do seu

quarto que faz lembrar um quarto de motel – “Sempre gostei de quarto grande,

cama grande, espelho grande” (Sapato de salto, p. 46); a desconfiança de sua

mãe quando ela era ainda adolescente – “Inesinha! me conta a verdade: o que

que tá acontecendo? Pelo amor de Deus, me conta a verdade: quando tu chega

em casa a essa hora, o que que tu fica fazendo na rua?” (Sapato de salto, p. 121),

“Não tô te reconhecendo Inesinha! Cada vez o salto é mais alto, e a cara é mais

pintada, e a blusa, mais decotada! (Sapato de salto, p. 123); a conversa entre

Paloma e Leonardo – “Corre aí um boato que, no Rio, ela era prostituta assumida,

mas aqui, dizem, ela recebe é pra dançar. Dizem que ela dança muitíssimo bem”

(Sapato de salto, p.76). Tia Inês agora dava aulas de dança para sustentar sua

família, mas na briga que tem com seu antigo cafetão – que ela pensava estar

morto – é que realmente temos a certeza absoluta de que Inês tinha sido

realmente uma prostituta – “Agora eu já sei que zona ’ cê vai trabalhar pra gente

descolar muito mais grana do que descolava no Rio” (Sapato de salto, p. 131) – e

que suas aulas de dança iam, em determinados casos, além da dança – “Dando

aula de dança e fazendo tudo mais que é preciso pra dar uma vida legal pra minha

família” (Sapato de salto, p. 135). O próprio discurso de Inês leva o leitor a inferir

que a prostituição ainda faz parte da vida dela.

Todas as mulheres da família de Sabrina passaram por grandes decepções

na vida e nos relacionamentos. Sua avó foi abandonada com duas filhas para

criar: seu marido simplesmente sumiu dizendo que ia para o mar e nunca mais

voltou; sua mãe também foi abandonada pelo seu pai – que a deixou grávida –

tendo que se prostituir para se sustentar, já que tinha saído de casa quando Dona

Gracinha descobriu que ela estava grávida; tia Inês se apaixonou perdidamente

por um cafetão que a fazia se prostituir e se drogar; e Sabrina, que aos 10 anos de

idade é abusada sexualmente e depois se prostitui, assim como a mãe e a tia,

para poder sobreviver e sustentar a avó. Será que a prostituição era a sina das

mulheres dessa família? “Tô achando que esse negócio é de família” (Sapato de

salto, p. 216). Até Sabrina chegou a desconfiar disso.

Aprofundando-se mais na protagonista da história, podemos afirmar que ela

assume no decorrer da narrativa várias identidades sociais. Para os padrões

sociais contemporâneos, Sabrina é uma criança, e jamais poderia passar pelas

experiências horrendas que passou. Mesmo se reconhecendo como tal, as

circunstâncias da vida levam Sabrina a incorporar outras identidades: a de mulher

desejada sexualmente pelo homem que a adotou; a de “puta” que troca seu corpo

por dinheiro para sustentar a avó e a si mesma – “Trinta reais. Daí pra cima. E tem

mais! Pagamento adiantado. Feito a dona de casa. Pagou, deito; não pagou, não

deito!” (Sapato de salto, p. 175); a de adulta responsável pelo sustento e

sobrevivência da família – “[...] e disse que criança eu também não era: conhecia

homem melhor que ela, e era bom ela ficar entendendo que se eu tinha uma

família eu tinha mais é que tomar conta da minha família” (Sapato de salto, p.

218).

Quando Sabrina é adotada por uma família, muito ao contrário do que

deveria acontecer, ela passa a assumir o papel de empregada doméstica da

esposa, babá das crianças e de objeto sexual do marido. A imposição desses

papéis é muito dolorida para Sabrina, pois ela ainda guarda lembranças de uma

identidade infantil e anseia por laços familiares que a coloquem em condição de

proteção:

- Posso chamar a senhora de tia? - Por que, ué? - É que se eu chamo de mãe a senhora pode não gostar. - Nem tia, nem mãe, nem coisa nenhuma, que que é isso? tá esquecendo que é babá das crianças? ora, já se viu? (Sapato de salto, p. 13). Sabrina caprichou no desenho da flor e concluiu: não voltou porque, na certa, achou um pai. Que nem eu. E deu a flor de presente pro seu Gonçalves (Sapato de salto, p. 19).

O “pai” em questão leva Sabrina a descobrir, inconscientemente, o papel da

prostituta: sempre lhe dá presentinhos em troca dos seus préstimos sexuais – que

se tornaram constantes. A consciência desse papel virá após o convívio com a tia,

que sustentava a família se prostituindo, e com a descoberta de que a mãe

também se prostituiu para não passar fome, o que leva a sedimentação da visão

desse papel social como a única saída para a sobrevivência de uma mulher pobre,

sozinha e sem estudo. Então, após a morte da Tia Inês, Sabrina assume a

identidade de “puta” – “Sabia que eu sou puta?” (Sapato de salto, p. 168). Mesmo

tendo consciência dessa identidade, Sabrina ainda deixa vestígios de que é

apenas uma criança, pela maneira ingênua como interpreta seu papel. “Puta não é

quem descola uma grana pra fazer coisa que homem quer que a gente faz quando

fica pelada?” (Sapato de salto, p. 214).

A identidade de “puta” incorporada por Sabrina tem um aliado, o sapato de

salto, objeto ilustrado na capa do livro e que nomeia a obra. A simbologia desse

objeto está diretamente relacionada com a transformação das nossas

personagens. O sapato de salto é o símbolo da transição da menina para mulher.

FIGURA 9 – CAPA DO LIVRO SAPATO DE SALTO, ILUSTRADA POR REGINA YOLANDA. NOTA: Imagem extraída do site da editora da autora http://www.casalygiabojunga.com.br/imprensa/. Acesso em 29/11/2011.

Primeiramente presenciamos a transformação de Inês, que compra seu

primeiro sapato de salto, de verniz, ainda adolescente. – “Que tanto salto é esse,

menina?! Menina não, senhora! menina não usa sapato assim. [...] Agora sim, sou

mulher!” (Sapato de salto, p. 119). Percebemos no decorrer da narrativa uma

progressão. Conforme Inês vai comprando seus sapatos, com saltos diferentes e

cada vez mais altos, mais ela se transforma em mulher, em prostituta – “Pra que

outro sapato, Inesinha?! O salto é diferente, Dona Gracinha” (Sapato de salto, p.

119); “Não to te reconhecendo, Inesinha! Cada vez o salto mais alto, e a cara mais

pintada [...]” (Sapato de salto, p. 122). Essa progressão é vista também na

ilustração de Rubem Grilo, que traz uma medição no salto do sapato ilustrado.

Os sapatos de salto passaram a ter uma grande significação na vida de

Inês, tanto que às vezes assimilava suas lembranças aos seus sapatos:

De olho aberto, via passar na escuridão do quarto cena atrás de cena do passado, intercaladas sempre pela mesma imagem: o primeiro sapato de salto que ela comprou para usar. Preto. De verniz. Salto bem alto (Sapato de salto, p. 118). A lembrança de tia Inês deu marcha-à-ré: se fixou de novo no primeiro sapato de salto; depois foi percorrendo outros sapatos... sandálias... chinelos... até se deter numa sandália vermelha de salto estilete, que tinha uma flor aplicada na altura do peito do pé. Ah!... ela tava usando a sandália naquele dia... (Sapato de salto, p. 123).

A primeira vez que Sabrina colocou um sapato de salto foi para ir com o

açougueiro para o capinzal, fazer seu primeiro programa. Mas, o sapato em

Sabrina destoava, artificializando seu visual, pois Sabrina ainda era uma criança:

O olho de Andrea Doria se prendeu na Sabrina: a cara muito séria; uma sainha muito curta. Mais uma vez o Andrea Doria se surpreendeu: achou que, de repente, a Sabrina tinha crescido [...] o olho do Andrea Doria viu o pé dela calçado num sapato abotinado de salto bem alto, tal e qual a Inês usava para dançar (Sapato de salto, p. 160-161).

Sabrina adota o sapato de salto como o símbolo de uma identidade

feminina estigmatizada. Ícone de sensualidade o sapato reporta a menina para um

papel social de desejo sexual, além de deixá-la mais alta, mais velha, mais mulher

– “Que saltão, heim, Sabrina? Sabrina se botou na ponta do pé descalço. É

mesmo; fico da altura da senhora, ta vendo?” (Sapato de salto, p. 208-209);

“Quando eu saio eu boto o sapato da tia Inês pra não parecer que eu ainda vou

fazer onze anos” (Sapato de salto, p. 214).

Sabrina adota o sapato também para incorporar o papel de mulher adulta,

responsável pela sua família:

E quando eu botei o sapato pra não parecer mais criança, não foi só pra descolar grana de homem querendo sacanagem. Isso também, né? Isso também, senão... como é que eu vou comprar comida? Mas eu não quero parecer mais criança porque fica aí essa vizinhança toda dizendo que eu sou criança e que a vó Gracinha é maluca, e que criança que ir pra casa do menor abandonado, e que maluco tem que ir pra casa de maluco [...] (Sapato de salto, p. 217).

Ainda podemos interpretar o sapato de salto como uma fonte de renda.

Colocando o sapato Sabrina se transforma e consegue dinheiro para sustentar a

avó e a ela mesma, já que a “poupança” que a tia Inês havia deixado acabou. Era

nos sapatos que tia Inês guardava seu dinheiro, usando-os como cofre – “Ela

guardava dinheiro aqui, ó. – Levantou a palmilha” (Sapato de salto, p. 171); “A

poupança da tia Inês tava aqui. – Bateu no sapato. – Mas acabou rapidinho [...]”

(Sapato de salto, p.173). Sabrina então seguiu o exemplo da tia:

[...] Eu conto também cada palmilha que eu descolo. – Meio que encolheu o ombro. – Agora não precisa mais contar. – Pegou o sapato, enfiou uma nota de dez debaixo da palmilha e a outra escondeu no decote da blusa (Sapato de salto, p. 172).

Outro tema tabu pertinente na obra é o homossexualismo. Andrea Doria é

um adolescente, que sofre com a discriminação e preconceito do pai, pois gosta

de dançar e tem um jeito um pouco delicado – “a delicadeza de Andrea Doria não

morava só nos gestos e nos traços fisionômicos perfeitos: morava também nos

sentimentos e nas reações que ele tinha” (Sapato de salto, p. 191). Encontramos

na figura do pai de Andrea o reflexo de uma sociedade conservadora e machista:

[...] ele me acusa de não ter cortado, desde pequenininho, esse gosto que Andrea tem pra dançar, “tem mais é que jogar futebol! tem mais é que chutar bola pra aprender a ser homem (Sapato de salto, p. 71).

O garoto encontra-se num momento de autoconhecimento e de auto-

afirmação da sexualidade. Andrea tem um relacionamento um pouco conturbado

com Joel – “um amigo que é uns cinco ou seis anos mais velho que Andrea”

(Sapato de salto, p.67). Confuso em relação aos seus sentimentos e ao seu

relacionamento com Joel, sua única certeza é o amor pela dança:

[...] Tem tanta coisa que eu sinto e que eu não entendo por que que eu sinto, então, foi assim que... que começou minha história com o Joel; eu queria conversar com alguém que sacasse mais da vida do que eu (Sapato de salto, p. 185). - Pois é, essa é a primeira vez que eu experimento ter um caso com alguém. Eu não sabia como é que era. Calhou que foi com o Joel. Mas, às vezes, eu fico pensando que podia ter calhado com uma mulher, e aí? Eu quero dizer assim: se uma mulher mais velha (o Joel é seis anos mais velho que eu, sabia?) tivesse me pegado, veio o Joel me pegou pra gente... transar... aí como é que ficava? eu não era mais gay? (Sapato de salto, p. 192).

A opção sexual de Andrea é evidenciada pela arte da dança. E é por meio

dela que Andrea Doria se aproxima de Sabrina. O menino conheceu Sabrina nas

aulas de dança que fazia com Inês, e após a morte desta passou a dançar com

Sabrina, tornando-se seu amigo. Assim como Sabrina, era dançando que Andrea

se libertava e esquecia todos os seus problemas e aflições:

- Puxa, tio Leo, que troço pra fazer bem que é dançar. Então agora, duas, três vezes por semana eu vou lá. É só chegar que a dona Gracinha já sai gritando, Neta! Neta! Bota a música pra dançar! E não tem papo, não tem nada. É só dançar (Sapato de salto, p. 194).

A relação entre Andrea e Sabrina é primordial para o desfecho da história,

pois a mãe de Andrea, Paloma, passa a frequentar também a casa de Sabrina,

para vê-los dançando. Num determinado dia, depois de uma “conversa de mulher

para mulher” com Sabrina, Paloma toma conhecimento do que a menina fazia

para poder colocar comida dentro de casa –“Naquele dia que eu fui almoçar na

sua casa. Ele não contou pra senhora que me viu com o açougueiro? Lá no

capinzal?” (Sapato de salto, p. 212). A partir desse dia Paloma decide ajudar a

menina. E poderíamos constatar que a recíproca é a mesma, pois a história de

Sabrina leva Paloma a uma reflexão que a liberta do sentimento de culpa que

sente por ter perdido sua filha e da submissão em relação ao marido.

O relacionamento conjugal de Paloma não ia muito bem desde que Rodolfo

viu Andrea Doria beijando Joel – “Ficou espiando e lá pelas tantas viu os dois se

beijando. Na boca” (Sapato de salto, p. 67). O marido acusava Paloma pela opção

sexual de seu filho. O relacionamento piorou ainda mais depois que eles perderam

a menina que Paloma estava esperando. Paloma – deprimida devido a todos os

conflitos que permeavam sua família – depois de tomar conhecimento da vida de

Sabrina e da situação em que a menina vivia com a avó toma uma atitude que

mudará sua vida: decide adotar Sabrina e dona Gracinha, tirando a menina da

prostituição e lhe dando um novo lar. Rodolfo não aceita a decisão da esposa e

novamente se mostra preconceituoso:

Nas suas intermináveis reflexões, será que você nunca se lembrou de pensar que, nessa idade, uma criança já foi marcada pelo ambiente em que viveu? E que nunca mais vai se libertar dessas marcas? Nem isso você pensou, não é? Ela já é uma prostituta! E vai ser sempre! Bonitos planos você arrumou pra mim! Além de estimular meu filho pra ser gay, agora está querendo trazer uma puta pra morar na minha casa” (Sapato de salto, p. 241).

A consequência da atitude de Paloma é o rompimento de um casamento

infeliz, sua própria libertação e a salvação de Sabrina:

[...] Você acaba de trazer a sua “perfilhada” Sabrina e a sua “adotada” Vó pra esta casa. (Tanto o perfilhada quanto pro adotada ele faz sinal de aspas no ar.) Não estou a fim de conviver nem com uma nem com outra. – Se ergue e, afinal, olha pra Paloma: - Então, minha cara, não me resta senão dizer: até mais ver. – E acompanha o gesto de despedida com uma expressão irônica” (Sapato de salto, p. 268). Sabrina se levantou num pulo. Abraçou a Paloma; abraçou o Andrea Doria; abraçou a dona Gracinha; correu pro som; botou música; pé, braço, cabelo, corpo, tudo desatou a dançar, celebrando a nova estação de vida que ia começar (Sapato de salto, p. 260).

Por meio de uma literatura amadurecida retratando a realidade de muitos

jovens nos dias de hoje, Lygia Bojunga estimula a reflexão no leitor. Sapato de

salto revela ao leitor a marginalização e inferiorização das personagens pela sua

condição social e sexual ressaltando a submissão das mulheres em diferentes

aspectos, principalmente no que diz respeito ao desejo sexual do homem – sendo

a mulher um objeto sexual. Mas também nos mostra a luta dessas personagens

em busca da libertação. Sapato de salto é uma obra que desperta o prazer e

também o senso crítico do leitor, expondo claramente as mais duras experiências

que um ser humano pode vivenciar.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura é uma das atividades humanas que proporciona o aumento do

potencial de construção, reflexão e ação dos leitores. Ela integra os leitores com o

meio em que estão inseridos. O presente trabalho vem ressaltar o papel da

literatura infantil e juvenil enquanto fonte dessa integração.

Durante muitos anos a Literatura infantil e juvenil foi colocada em segundo

plano como arte menor, inferior à literatura destinada aos adultos. Mas no decorrer

de sua história vem se consolidando cada vez mais, embora hoje esse gênero

ainda seja considerado subliteratura por parte da crítica e do meio acadêmico.

Como vimos no segundo capítulo do presente trabalho, a literatura infantil e juvenil

passa a inovar a partir dos anos 1970, com a abordagem de temas que até então

eram evitados pelos autores, por serem considerados impróprios para o público

infantil e jovem. Esses temas chamados de “tabus” estão e sempre estiveram

presentes na vida em sociedade, logo, são inerentes à vida dos jovens leitores –

por mais que eles não tenham conhecimento de alguns deles. Essa literatura

inovadora proporciona o amadurecimento dos jovens leitores ajudando-os a

enfrentar e compreender os diversos conflitos que a vida em sociedade pode

proporcionar a um ser humano. Porém, a incorporação desses temas na literatura

infantil e juvenil ainda não é bem aceita pelos pais e pela escola devido à

concepção que apresentam sobre a infância.

Lygia Bojunga, por meio de uma literatura amadurecida para crianças e

jovens, no que diz respeito à linguagem, aos temas e ao seu leitor modelo,

incentiva, seduz e cria suspense enquanto retrata trajetórias repletas de conflitos e

superações vivenciadas pelas suas personagens. Esses conflitos refletem a

constante influência da sociedade na construção da personalidade, na formação e

no amadurecimento individual. Lygia Bojunga não trata a criança de forma

infantilizada, mas como um leitor especial com capacidades leitoras e

interpretativas que podem equivaler-se com as de um adulto. Ao contrário dos pais

e da escola, a autora não vê a criança e o adolescente como seres frágeis, como

leitores inexperientes e “menores”, mas como leitores em desenvolvimento.

Percebemos isso em suas obras, onde não há a simplificação dos temas e da

linguagem, além de não submeter seus textos aos finais felizes. Bojunga desafia

seu leitor, exigindo dele uma posição ativa e crítica.

A contextualização desses temas nas obras de Bojunga contribui para que

o leitor reflita sobre o cotidiano, sobre o outro e sobre si mesmo, pois o mundo

infantil não é feito apenas de fantasia, mas também de fatos reais e conflitantes,

porém, passíveis de transformação em busca do crescimento e soluções para os

problemas.

Este trabalho pretende contribuir com os estudos contemporâneos no

universo literário infantil e juvenil ao valorizar a oportunidade de uma leitura

reflexiva dos textos de Bojunga, mostrando as peculiaridades da autora no cenário

literário. Abordando os diversos conflitos sexuais e amorosos que permeiam nossa

sociedade, usando uma linguagem coloquial e desafiadora, concebendo o sujeito

leitor como capaz de desvendar os caminhos de seu texto, cuja participação possa

contribuir para o desenvolvimento do mesmo e para o seu próprio

desenvolvimento, a autora torna sua obra única e permite que o jovem leitor possa

vislumbrar a realidade buscando novos horizontes e o crescimento individual e

coletivo numa permanente interação entre literatura e vida.

REFERÊNCIAS

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