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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ JAQUES LUIZ DALLAZUANA O CABIMENTO DE HABEAS CORPUS NA TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR MILITAR CURITIBA 2013

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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ

JAQUES LUIZ DALLAZUANA

O CABIMENTO DE HABEAS CORPUS NA TRANSGRESSÃO

DISCIPLINAR MILITAR

CURITIBA

2013

JAQUES LUIZ DALLAZUANA

O CABIMENTO DE HABEAS CORPUS NA TRANSGRESSÃO

DISCIPLINAR MILITAR

Monografia de conclusão de curso, apresentado ao Curso de Direito, da Faculdade de Ciências Jurídicas, da Universidade Tuiuti do Paraná, como requisito parcial á obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Armando Antonio Sobreiro Neto.

CURITIBA

2013

TERMO DE APROVAÇÃO

JAQUES LUIZ DALLAZUANA

O CABIMENTO DE HABEAS CORPUS NA TRANSGRESSÃO

DISCIPLINAR MILITAR

Esta Monografia foi julgada aprovada para obtenção do título de Bacharel no Curso de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná.

Curitiba, 30 de Setembro de 2013.

Bacharel no Curso de Direito Universidade Tuiuti do Paraná.

Orientador: Professor Armando Antonio Sobreiro Neto Universidade Tuiuti do Paraná

Professor Universidade Tuiuti do Paraná Professor Universidade Tuiuti do Paraná

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Senhor Prof. Armando Antonio Sobreiro Neto,

bem como a todos os colegas de classe, professores e funcionários da faculdade de

Direito da Universidade Tuiuti do Paraná, que colaboram positivamente nesta longa

jornada de estudos e abdicação por esta causa nobre na busca do conhecimento,

bem como na elaboração desta monografia e conclusão do meu Curso de Direito.

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo discutir a utilização ou não do instituto do

habeas corpus nos casos de restrição à liberdade de locomoção em consequência

de punição por transgressão disciplinar militar. O instituto previsto na Constituição

Federal, em seu artigo 5º, inciso LXVIII, define que: “Conceder-se á habeas corpus

sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em

sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Porem a mesma

Carta Magna que diz que “todos são iguais perante a lei”, possui antagonismo em

seus direitos fundamentais de igualdade, quando restringe o uso do habeas corpus,

quando se trata de militares das forças armadas e consequentemente das policias

militares e bombeiros militares, forças auxiliares e reserva das forças armadas, em

seu artigo 142, § 2º, in verbis: “Não caberá habeas corpus em relação a punições

disciplinares”. Foi estudado a formação da culpa pela transgressão disciplinar, sua

legalidade, os princípios básicos da doutrina militar, quais sejam, a hierarquia e a

disciplina, consultando-se a mais atual doutrina e jurisprudência a respeito desta

restrição de liberdade tão controvertida no meio militar. Chegou-se a conclusão que

a jurisprudência de nossos tribunais é pacifica na mitigação desta questão, existindo

a restrição quanto ao mérito administrativo, mas admite-se o writ quando o ato

estiver viciado em sua forma.

Palavra Chave: Habeas Corpus, Direito Disciplinar Militar, Transgressão Militar.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................... 07

2 GENERALIDADES DO HABEAS CORPUS ....................................................... 09

2.1 DEFINIÇÃO ........................................................................................................ 09

2.2 HISTÓRICO ......................................................................................................... 09

2.3 ESPÉCIES ........................................................................................................... 11

2.4 NATUREZA JURÍDICA ........................................................................................ 12

3 HIERARQUIA E DISCIPLINA ............................................................................ .14

3.1 CONCEITO E FINALIDADE ................................................................................. 14

3.2 O PODER HIERÁRQUICO .................................................................................. 15

3.3 O PODER DISCIPLINAR ..................................................................................... 16

3.4 ANÁLISE DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA ................................................... 17

4 DIREITO ADMINISTRATIVO “LATO SENSU”.................................................. .19

4.1 O DIREITO ADMINISTRATIVO ........................................................................... 19

4.2 O DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR .................................................... 20

4.3 O DIREITO ADMINISTRATIVO MILITAR ............................................................ 22

5 TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR ...................................................................... 24

5.1 A TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR E A CONSTITUIÇÃO ................................. 24

5.2 DA VIOLAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES E DEVERES MILITARES ......................... 26

5.3 TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES TIPICAS E ATÍPICAS ............................ 27

6 LIMITES DO ATO DISCIPLINAR....................................................................... .30

6.1 O ATO DISCIPLINAR MILITAR............................................................................ 30

6.2 REQUISITOS DO ATO DISCIPLINAR MILITAR .................................................. 30

6.3 A CONSTITUIÇÃO E O HABEAS CORPUS ........................................................ 32

7 DA LEGALIDADE DA RESTRIÇÃO AOS MILITARES ..................................... .36

7.1 EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL DA TRANSGRESSÃO .................................... 36

7.2 REGULAMENTOS DISCIPLINARES E SUA CONFORMIDADE COM A ATUAL

CONSTITUIÇÃO ....................................................................................................... 38

7.3 PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA LEGAL ...................................... 39

7.4 DA POSSIBILIDADE OU NÃO DO CABIMENTO DE HABEAS CORPUS EM

TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR MILITAR .............................................................. 42

8 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 49

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 52

7

1 INTRODUÇÃO

A proposta deste estudo tem como escopo verificar a possibilidade, ou não,

da utilização do instituto do habeas corpus em casos de restrição à liberdade de

locomoção em decorrência de punição disciplinar militar, esta prevista no art. 5º,

LXVIII, da Constituição Federal de 1988, que expressa:

"Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de

sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso

de poder"; integra também o capítulo reservado às Forças Armadas, no art. 142 ,§ 2º

que estabelece: "Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares

militares".

O ato administrativo da punição disciplinar militar, não poderá fugir à aferição

dos seus requisitos obrigatórios e conformidade legal por parte do judiciário. As

consequências legais de um ato administrativo somente poderão surgir quando este

estiver em completa consonância com as normas e princípios estabelecidos pela

Constituição Federal em vigor. A dissonância com a Carta Magna torna o ato viciado,

consequentemente incapaz de produzir efeitos e, no caso de punição que culmine

em restrição à liberdade, ao lado do direito à vida, ultraja o bem jurídico mais

sagrado e natural do ser humano, que é o direito a liberdade.

O Supremo Tribunal Federal já consolidou entendimento de que o ato de

punição militar é um mero ato administrativo oriundo do poder disciplinar e, para

gerar os efeitos legais, devem estar presentes todos os elementos concorrentes para

sua formação, tais como:

a) Finalidade de interesse público;

b) Competência da autoridade para aplicar a punição;

c) Devido processo legal, observando-se o contraditório e a ampla defesa;

d) Forma prescrita em lei.

Os tribunais superiores tem firmado posição de apenas excluir da

apreciação judicial questão sobre conveniência e oportunidade da punição, pois,

caso assim não ocorresse, criaria uma invasão por parte do Poder Judiciário em

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assuntos de competência do Poder Executivo.

Em suma, se algum dos atos anteriormente citados apresentarem vício,

deverá ser levado à apreciação do judiciário que os declarará nulo, assim como, no

caso de restrição à liberdade, expedição do remédio constitucional, para fazer

cessar a arbitrariedade ou impedir que a mesma se concretize.

Por tratar-se de direito essencial ao ser humano, a liberdade somente pode

ser restringida nos limites expressamente delimitados pela Constituição Federal, não

podendo ser aceita uma atuação desvinculada da tutela legal por quem detém o

dever de cumprimento dos seus princípios. Isto quer dizer que todos os elementos

obrigatoriamente devem ter sido concretizados para que o ato ao final proferido seja

legítimo, não se podendo aceitar qualquer mitigação da letra constitucional,

principalmente em relação a direito tão básico para a existência das pessoas, sob o

risco de provocar uma ruptura da homogeneidade do ordenamento como um todo,

onde a Constituição Federal é o ápice do ordenamento jurídico.

Colocando a Constituição Federal como norte direcionador, assim como

invocando a doutrina e a jurisprudência sobre o assunto, será estudado todas as

etapas que embasam a formação do ato punitivo, desde os princípios da

administração pública, passando pelos conceitos de transgressão, hierarquia,

disciplina, autoridade competente, além do devido processo legal, culminando com a

previsão legal das transgressões disciplinares militares.

9

2 GENERALIDADES DO HABEAS CORPUS

2.1 DEFINIÇÃO

A expressão habeas corpus procede do latim, proveniente de dois vocábulos

da referida língua: habeas e corpus. No seu sentido literal, significa “ande com o

corpo ou tome o corpo”. Como habeas, que é subjuntivo de habeo (habere, habui,

habitum) significando ter, possuir, manter e corpus (corporis) ou corpo. A expressão

tem o significado espiritual de entender-se que se toma a pessoa presa para

apresentá-la ao juiz, a fim de ser julgada, coibindo assim ilegalidades.

É como dizia o professor Julio Fabbrini Mirabete (2001, p. 709):

O habeas corpus é uma garantia individual, ou seja, um remédio jurídico destinado a tutelar a liberdade física do individuo, a liberdade de ir, ficar e vir, tendo por finalidade evitar ou fazer cessar a violência ou a coação a liberdade de locomoção decorrente de ilegalidade ou abuso de poder.

2.2 HISTÓRICO

Foi através da Magna Charta Libertatum, de 15 de junho de 1215, que se

instaurou de forma solene a tutela da liberdade individual e, por via de consequência,

a exigência de controle jurisdicional da prisão de qualquer cidadão. Imposta pelos

barões ingleses ao rei João Sem Terra, passaram, desde então, a ser expedidos

writs (mandados) para que o homem (corpus) fosse trazido à presença do juiz com a

finalidade de que este decidisse, de forma sumária, sobre se a prisão poderia ou não

ser mantida. Com efeito, estabelecia aquele texto constitucional a seguinte

determinação:

(nº 39) "Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer forma molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele, senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país”.

Do Direito inglês o habeas corpus foi transportado para outras legislações,

chegando a nós, como remédio processual, através do Código de Processo Criminal

do Império, de 1832 (art. 340), passando a fazer parte de todas as constituições que

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se seguiram, ainda que por vezes tenha sido restringido, como se verá mais adiante.

É certo que, antes de tudo, por tocar de perto com os direitos e garantias individuais,

ele é um verdadeiro instituto de Direito Processual Constitucional, tal como ocorre

com o Mandado de Segurança. Porém, não há como negar que sua aplicação se dá

no campo criminal, justificando assim, sua disciplina nas leis que regem o processo

penal. E foi assim, como lei processual, que ele ingressou em nosso direito positivo.

Releva observar, portanto, que na Constituição do Império, o habeas corpus

não mereceu referência, muito embora em várias passagens do texto legal daquela

Lei Maior tenha o legislador constituinte tutelado a liberdade individual (art. 179

inciso VIII, IX e X), ficando o remédio heroico relegado à lei ordinária até o advento

da Constituição republicana de 1891. Ali, no art. 72 parágrafo 22, garantiu-se o

habeas corpus "sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de

sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder" (seção II, que cuidava

da "Declaração de Direitos").

A reforma constitucional de 1926, elaborada através da EC de 3 de

setembro de 1926, em seu art. 72 parágrafo 22 (Seção II, que cogitava da

"Declaração de Direitos"), sem dúvida restringiu o âmbito do remédio heroico à

liberdade de ir e vir, ao aludir que a medida se daria "sempre que alguém sofrer ou

se achar em iminente perigo de sofrer violência por meio de prisão ou

constrangimento ilegal em sua liberdade de locomoção”.

A lei Magna de 1934 foi uma inovação dos textos constitucionais,

restringindo o remédio heroico aos militares, acrescentando que "nas transgressões

disciplinares" não caberia o habeas corpus (art. 113, 23). Porém, a grande novidade

da Constituição de 1934, no âmbito da tutela dos direitos e garantias individuais,

resultou na criação do mandado de segurança (art.113, 33), destinado à defesa de

direito "certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente

inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade". Estabelecia, ainda, que o

processo (rectius procedimento) seria o mesmo do habeas corpus, bem como a

obrigatoriedade da ouvida da pessoa de direito público interessado.

Com a criação do mandado de segurança, resguardou-se a tutela de direitos

não amparados pelo habeas corpus, uma vez que, com a limitação imposta pela

reforma de 1926, muitos juristas de renome foram buscar nos interditos possessórios

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a defesa para os direitos que, em razão da norma constitucional, ficaram à deriva.

Com o advento da Carta Magna de 1937, outorgada por Getúlio Vargas com

o apoio das Forças Armadas, manteve a vedação do habeas corpus nos casos de

punição disciplinar (art. 122, 16), foram mantidos também os preceitos anteriores

constantes da reforma de 26, falando-se, agora, em "liberdade de ir e vir".

Carta Magna de 1946, tido por muitos como a mais liberal deste país,

manteve o habeas corpus, em seu art. 141 parágrafo 23, como também vedava o

writ nas punições disciplinares, reafirmando os princípios básicos originários da

Reforma de 1926, sem deixar de amparar, pela via do mandado de segurança,

outros direitos subjetivos não protegidos pelo habeas corpus (art. 141 parágrafo 24).

E, dessa forma, a matéria voltou a ser tratada nas Constituições de 1967 (art.

150, § 20 e 21) e na Emenda Constitucional nº 1 de 17 de Outubro de 1969 (art. 153,

§ 20 e 21), ambas vedando habeas corpus nas punições disciplinares.

A Constituição de 1988 em vigor, em seu art. 5º, LXVIII, estabelece que

"conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de

sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso

de poder", mantendo o mandado de segurança destinado à proteção de direito

líquido e certo não amparado pelo habeas corpus ou habeas data, quando o

responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de

pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (art. 5º, LXIX).

2.3 ESPÉCIES

Basicamente há duas espécies de habeas corpus, o repressivo e o

preventivo (salvo-conduto), dependendo do momento em que for proposto.

Será repressivo ou liberatório, quando impetrado após a consumação do ato

ilegal, tendo por fim o retorno do direito a livre locomoção do paciente, o qual já foi

atingido pela ilegalidade.

Será preventivo quando impetrado anteriormente ao ato ilegal se concretizar.

Também chamado de "salvo conduto", necessita de alguns elementos necessários,

como: não basta um simples temor, mas deve ser mencionada a autoridade pública

(delegado de policia, superior hierárquico, juiz etc.), contra a qual a ordem será

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emanada. Se por acaso, mesmo com o deferimento do remédio constitucional, a

autoridade realizar a prisão proibida, bastará uma simples reclamação do paciente

para ser imediatamente concedido o alvará de soltura.

Tanto um como outro são ações constitucionais de caráter penal e de

procedimentos especiais, isentos de custas, e que visam evitar ou cessar violência

ou ameaça à liberdade de locomoção.

O instituto pode ser utilizado em caso de ilegalidade de coação sobre a

liberdade individual por falta de justa causa, ou seja, a falta de fundamentação legal

a validar a prisão. Esta forma de utilização está baseada no Código de Processo

Penal, que considera a coação como ilegal quando não houver justa causa (art. 648,

I). Outra espécie de habeas corpus é utilizada quando a prisão ultrapassar os prazos

legalmente previstos, conforme o Código de Processo Penal, que considera a

coação como ilegal quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina

a lei (art. 648, II).

Em outro caso, o remédio constitucional é utilizado quando a denegação de

liberdade provisória com ou sem fiança. Estando presentes os requisitos, o juiz não

possui a faculdade em conceder ou não a liberdade, pois, trata-se de um direito

subjetivo do detido.

O juiz tem o dever, ou seja a obrigatoriedade de dar liberdade provisória a

quem dela faz jus. É um direito do indiciado ou réu a ser necessariamente satisfeito,

desde que presentes os pressupostos para a sua concessão, constituindo a negação

do benefício coação ilegal. Com isso, remete-se até a Constituição Federal, que

expressa que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a

liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5º, LXVI).

2.4 NATUREZA JURÍDICA

Apesar de nossa legislação incluir o habeas corpus entre os recursos, é

discutida a sua natureza jurídica. É tido por alguns como recurso extraordinário,

recurso especial ou misto, instituição sui generis. A opinião mais aceita é a de que se

trata de uma verdadeira ação. Vejamos, não pode ser recurso porque pode ser

instaurado independentemente da existência de processo, ataca a coisa julgada e é

instaurado pelo acusado que pretende seja daclarada a inexistência do direito de

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punir. Trata-se realmente de ação penal constitucional, embora por vezes possa

servir de recurso.

14

3 HIERARQUIA E DISCIPLINA

3.1 CONCEITO E FINALIDADE

A base que sustenta as instituições militares se traduz nos institutos da

hierarquia e da disciplina, como ensinado massivamente a todos os civis que

ingressam na vida militar. São os pilares fundamentais sobre os quais estão

estruturadas todas as atividades e procedimentos referentes à vida militar. Estão

dispostos na própria Carta Maior da República, in verbis:

“Art. 142, caput, As Forças Armadas (...) são instituições nacionais

permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina... (grifo

nosso)”.

A Lei Federal nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980 (Estatuto dos Militares),

menciona tais institutos da seguinte forma:

Art. 14 - A hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. A autoridade e a responsabilidade crescem com o grau hierárquico. § 1º A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferentes, dentro da estrutura das Forças Armadas (...). § 2º Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico (...). § 3º A disciplina e o respeito a hierarquia devem ser mantidos em todas as circunstâncias da vida entre militares(...).

O atual Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002, Regulamento Disciplinar

do Exercito (RDE), também traz o conceito destes dois princípios basilares:

Art. 7o A hierarquia militar é a ordenação da autoridade, em níveis diferen-tes, por postos e graduações. Parágrafo único. A ordenação dos postos e graduações se faz conforme preceitua o Estatuto dos Militares. Art. 8o A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar (...).

Para ASSIS (2011, p.76 apud VALLA, 2003, p.116), afirma que:

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A organização militar é baseada em princípios simples, claros e que existem há muito tempo, a exemplo da disciplina e da hierarquia. Como se trata dos valores centrais das instituições militares, é necessário conhecer alguns atributos que revestem a relação do profissional com estes dois ditames basilares da investidura militar, manifestados pelo dever de obediência e subordinação, cujas particularidades não encontram similitudes na vida civil (grifo no original).

Em resumo, pode-se dizer que a hierarquia é o escalonamento, ou seja,

disposição de órgãos ou autoridades em diferentes graus e através da qual o de

maior posição exerce autoridade sobre o que lhe está subordinado na mesma escala.

Por sua vez, a disciplina conceitua-se como a rigorosa obediência às normas,

regulamentos ou autoridades.

Apesar de os institutos serem considerados como pilares fundamentais das

instituições militares, podemos dizer em uma perspectiva ainda mais estrita que a

disciplina é fator de sustentação da hierarquia, ao passo que o inverso não é

verdadeiro, já que a hierarquia não é condição de existência da disciplina, mas tão

somente dela necessita para que tenha existência e eficácia.

3.2 O PODER HIERÁRQUICO

Para se compreender qual o conteúdo do poder hierárquico, faz-se

necessário esclarecer o que significa hierarquia. A palavra hierarquia vem do grego,

que se traduz em “poder maior ou autoridade proeminente”. Esta pode ser definida

como relações internas de coordenação e subordinação existentes na Administração

Pública, atribuindo competências para órgãos e agentes para o adequado

desempenho da função administrativa. Em suma é o que dispõe o Executivo para

distribuir e escalonar as funções de seus órgãos, ordenar e rever a atuação de seus

agentes, estabelecendo a relação de subordinação entre os servidores do seu

quadro de pessoal.

Hierarquia é a relação de subordinação existente entre vários órgãos e

agentes do executivo, com distribuição de funções e garantias da autoridade de

cada um; o poder hierárquico tem por objetivo ordenar, coordenar, controlar e corrigir

as atividades administrativas, no âmbito interno da administração, desse modo atua

como instrumento de organização e aperfeiçoamento do serviço e age como meio

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de responsabilização dos agentes administrativos, impondo-lhes o dever de

obediência.

Do poder hierárquico decorrem faculdades implícitas para o superior, tais

como a de dar ordens e fiscalizar o seu cumprimento, a de delegar e avocar

atribuições e a de rever os atos dos subordinados. No Exército, a hierarquia se faz

através dos postos, conferidos aos oficiais, e das graduações, conferidas às praças.

Entende-se por praças todas as posições hierárquicas compreendidas entre

soldados e aspirantes-a-oficial, e por oficiais de todos os postos, desde tenentes até

oficiais-generais.

Deste modo, através da hierarquia, tem-se a instituição de um poder na

autoridade que é exercida por determinada pessoa. Tal poder é capaz de atribuir ao

ascendente no escalonamento hierárquico a possibilidade de emitir ordens aos seus

subordinados. Em contrapartida, do subordinado se espera estrita e pronta

obediência às ordens emanadas de seus superiores.

3.3 O PODER DISCIPLINAR

É a faculdade de punir internamente as infrações funcionais dos servidores e

demais pessoas sujeitas à disciplina dos órgãos e serviços da Administração, é uma

supremacia especial que o Estado exerce sobre todos aqueles que se vinculam à

Administraçao por relações de qualquer natureza, subordinando-se às normas de

funcionamento do serviço ou do estabelecimento que passam a integrar definitiva ou

transitoriamente.

Uma característica do poder disciplinar é seu discricionarismo, no sentido de

que não esta vinculada a prévia definição da lei sobre a infração funcional e

respectiva sanção, o administrador, no seu prudente critério, em relação ao serviço e

verificando a falta, aplicará a sanção que julgar cabível, oportuna e conveniente,

dentre as que estiverem enumeradas em lei ou regulamento para a generalidade das

infrações administrativas.

A apuração regular da falta disciplinar é indispensável para a legalidade da

punição interna da Administraçao, primeiramente deve-se apurar a falta, pelos meios

legais compatíveis com a gravidade da pena a ser imposta, dando-se oportunidade

de defesa e do contraditório ao acusado (requisitos fundamentais, sem o qual se

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torna ilegítima e inválida a punição).

A motivação da punição disciplinar é sempre imprescindível para a validade

da pena, não se pode admitir como legal a punição desacompanhada de justificativa

da autoridade que a impõe, destina-se a evidenciar a conformação da pena com a

falta e permitir que se confira a todo tempo à realidade e a legitimidade dos atos ou

fatos ensejadores da punição administrativa.

Os militares das forças armadas e das forças auxiliares (Polícia Militar e

Corpo de Bombeiro Militar) no exercício de suas atividades constitucionais ficam

sujeitos a dois diplomas pelo cometimento de faltas contrárias ao ordenamento: o

Código Penal Militar (C.P.M) e o Regulamento Disciplinar do Exército (R.D.E);

ademais têm seu funcionamento alicerçado sobre diversos regulamentos que, ao

seu tempo, balizam as atividades desenvolvidas pela força, ditando seus

procedimentos. Assim, para assegurar uma correta observância de seus

regulamentos e uma exata execução de suas atividades, tem-se por necessária

aplicação de uma rígida disciplina a fim de que seja atingido pontualmente o escopo

da instituição, evitando, assim, um desvirtuamento de finalidade ou uma execução

errônea de suas atividades.

A qualificação “Militar” resulta na exigência de um grau muito maior de

disciplina, com a aplicação de institutos próprios e a práticas de comportamentos em

muito distintos dos observados nos servidores civis. Por exemplo: no meio militar,

diz-se ser disciplinado o subordinado que, ao ser chamado por seu superior, atende-

o prontamente, deixando de fazer seja lá o que for ou, encontrando-se distante, que

se dirija “acelerado” até alcançar seu superior e, ao chegar, atenda suas ordens

prontamente, mesmo que elas não sejam coerentes, desde que não sejam

manifestamente ilegais.

3.4 ANÁLISE DA HIERARQUIA E DA DISCIPLINA

Fica evidenciado que em todas as organizações de pessoas que se reúnem

para um fim especifico, precisa ser calcada em uma relação de subordinação, tanto

as relações administrativas, civis, trabalhista, educativas, etc..., se configuram com

base no princípio da autoridade, ainda que todos estes âmbitos estejam longe da

organização militar, onde o princípio da eficácia e com ele o da hierarquia e da

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disciplina adquirem uma significação de todo particular. Não seria em vão, portanto,

concluir que a organização burocrática militar é a técnica de dominação mais perfeita.

A quase totalidade dos regulamentos disciplinares brasileiros prevê, como

sendo uma das manifestações da disciplina, a obediência pronta às ordens dos

superiores hierárquicos, é “conditio sine qua non” para a existência das instituições

militares, a circunstância elementar do militar dever consideração, respeito e

acatamento aos seus superiores hierárquicos.

Só se podem admitir válidos os comandos emanados com base no poder

hierárquico se estes estiverem fundados em razoabilidade, se a ordem contrariar

preceito regulamentar ou legal, o executante pode solicitar sua confirmação por

escrito, cumprindo ao superior que a emitiu, atender a solicitação. Mas mesmo assim

o subordinado deverá cumpri-la, já que o regulamento apenas admite à recusa a

ordem flagrantemente ilegal (criminosa).

A aplicação rígida e severa da hierarquia é justificável na medida em que é

preciso estabelecer uma relação de obediência entre comandante e comandado,

sem a qual os subordinados poderiam desenvolver o espírito do questionamento das

ordens superiores que, em campo de batalha, seria fatal. Da mesma forma, sem

uma disciplina intensa, não se concretiza uma hierarquia fortificada. Entretanto, o

que não se pode admitir sob hipótese alguma é um desvirtuamento da finalidade e

da aplicação de tais institutos que, ao invés de serem usados para manter a ordem,

sejam instrumentos de abuso nas mãos de pessoas que não correspondam aos

verdadeiros anseios da instituição que carrega a função tão nobre: a defesa da

pátria e dos poderes constituídos.

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4 DIREITO ADMINISTRATIVO “LATO SENSU”

4.1 O DIREITO ADMINISTRATIVO

A origem do Direito Administrativo como conjunto independente de princípios

ocorreu após as revoluções que determinaram a queda das monarquias absolutistas

em fins do século XVIII. Ao lado do Direito Constitucional, o surgimento do Direito

Administrativo desencadeou-se com a noção de Estado de Direito, este com

fundamento nos princípios da legalidade e da “separação de poderes”. Esses

princípios limitaram o poder estatal frente aos direitos dos cidadãos. Através do

princípio da legalidade, passou-se a entender que todos devem submeter-se à lei,

inclusive os governantes, destruindo-se a ideia de que o monarca estaria acima da

ordem jurídica e não poderia ser responsabilizado pelos seus atos.

Já o principio da “separação dos poderes” confere, em verdade, equilíbrio

entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, representado pelo sistema de

freios e contrapesos no sistema jurídico brasileiro. O poder controla e limita o poder.

O Direito Administrativo Comum ou lato sensu vem a ser o Ramo do Direito

Público que estuda os aspectos atinentes à Administração Pública, seus órgãos e

seus agentes, ontologicamente ligados à noção de Estado.

Não obstante, a definição da professora Di Pietro (2003, p. 52) é a seguinte:

O ramo do direito público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoa jurídico administrativa que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins, de natureza pública.

Entre os conceitos mais difundidos, na doutrina brasileira, sobressai o do

inesquecível Hely Lopes Meirelles (2009, p.40) para o qual o Direito Administrativo é:

“o conjunto harmônico de princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as

atividades públicas tendentes a realizar concreta, direta e imediatamente os fins

desejados pelo Estado”.

Conforme leciona Duarte (1998, p.3) o conceito apresentado acima “por sua

amplitude, demonstra que o campo de estudo do Direito Administrativo atinge as

várias faces da atividade administrativa, inclusive os atos praticados no âmbito dos

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demais poderes, quais sejam, Legislativo e o Judiciário”.

4.2 O DIREITO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

A fim de que se possa entender de forma plena o significado e a aplicação

do Direito Administrativo Disciplinar, é importante estabelecermos a distinção entre o

Direito Administrativo Comum e o Direito Administrativo Disciplinar. A delimitação do

conteúdo do primeiro se faz por exclusão. Logo, pertence a esta matéria toda aquela

que não dispõe sobre a estruturação do sistema disciplinar e suas respectivas

sanções. Resta, assim, ao Direito Administrativo Comum todo restante atinente ao

Direito Administrativo, conforme definição já explicitada.

Assim como as relações humanas, o Direito também evolui, até mesmo

como forma de se alcançar as frequentes mudanças que ocorrem no corpo social.

Do mesmo modo ocorreu com o Direito Administrativo que, a fim de se adaptar,

especializou-se em relação aos procedimentos disciplinares. Esta evolução ocorreu

em três fases distintas: a fase do aprimoramento da teoria dos atos administrativos,

passando pela fase da processualidade relativa e finalmente, alcançando a fase da

processualidade plena.

A primeira deu-se pelo aprimoramento da teoria dos atos administrativos,

que se compõem nas seguintes espécies: atos normativos, ordinatórios,

enunciativos, negociais e punitivos. Segundo conceito do professor Martins:

Denomina-se ato administrativo punitivo, aquele que se preordena a impor sanção àqueles que infringem disposições legais ou regulamentares da administração Pública. O que se colima, portanto, é reprimir as infrações administrativas ou a conduta irregular dos servidores ou particular em face da Administração Pública. (MARTINS, 1996, p.50).

Dada à singularidade do assunto dentro do Direito Administrativo comum, foi

necessário reconhecer os atos punitivos como espécie autônoma, e que incoerente

seria tentar enquadrá-lo dentre as demais espécies. A segunda fase da evolução,

que se caracteriza pela processualidade relativa, advém da própria criação

doutrinária e jurisprudencial que de maneira acertada passou a reconhecer que o

ramo do Direito Administrativo Disciplinar possui princípios próprios que não os do

Direito Administrativo Comum. Este aprimoramento foi necessário na medida em que

21

não se poderia mais continuar aplicando ao ramo disciplinar os mesmos princípios

instituídos no ramo comum. Neste, aplica-se, por exemplo, a imperatividade dos atos

normativos, ordinatórios, enunciativos e negociais, que impossibilita a contestação

ou postergação dos atos da administração. Claro é que, em se tratando de atos

punitivos, não se pode aplicar tal princípio, já que a defesa baseada no contraditório

e a acusação fundada em razões fundamentadas são requisito de validade para

concretizar a pretensão punitiva da Administração Pública.

Por fim, chegamos a fase da processualidade plena, que tem início com a

promulgação da Carta Constitucional de 1988. Com a sua vigência, passou-se a

assegurar ao acusado nos procedimentos administrativos os mesmos benefícios de

defesa atribuídos ao acusado na esfera judicial sem qualquer tipo de distinção. Logo,

seria inadmissível se ter reconhecido a desigualdade jurídica entre o administrador e

o administrado, postulado norteador do Direito Administrativo comum que torna a

relação jurídica verticalizada, dada imperiosa aplicação do contraditório e da ampla

defesa no âmbito do processo administrativo disciplinar. Assim dispõe a nossa Carta

Magna, in verbis:

“Art. 5º, inciso LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e

aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os

meios e recursos a ela inerentes”.

Em verdade, não existe uma separação cronológica nítida das fases

evolutivas apresentadas. Elas coexistem no mundo jurídico, já que, ao mesmo

tempo, podem-se observar algumas instituições perfeitamente afinadas com o

princípio da legalidade, ampla defesa e o contraditório e outras que ainda não se

adaptaram à ordem jurídica vigente, baseando seus procedimentos no inaceitável

princípio da verdade sabida.

O Direito Administrativo Disciplinar não existe como um ramo de estudo

autônomo dentro da ciência do Direito. Contudo, não se pode considerá-lo como um

simples capítulo pertencente ao Direito Administrativo, o que geraria distorções no

direito de punir da administração e no direito de defesa do acusado no bojo do

procedimento administrativo. O próprio reconhecimento e aplicação de princípios

diferenciados no estudo do Direito Administrativo Disciplinar em relação ao Direito

Administrativo denuncia a diferença fundamental existente entre ambos. Logo, é

22

correto asseverar que o Direito Administrativo Disciplinar surge como parte distinta

que, apesar de não ser sub-ramo autônomo do Direito Administrativo, a ele não se

pode negar especificidade.

Hoje, podemos dizer que o Direito Disciplinar se aproxima mais do Direito

Penal do que do Administrativo. A aplicação dos princípios atinentes ao Direito

Administrativo não se mostra adequada para resolver os problemas de ordem

disciplinar existentes nas organizações militares. Embora, como já dito, não seja

parte autônoma do Direito Administrativo, o Direito Disciplinar afina-se em muito com

o Direito Penal.

Nesse parâmetro, a doutrina o define como Direito Penal Disciplinar, que é

exercido pela administração e supõe, no destinatário da norma, reflexo de

dependência de caráter administrativo ou de subordinação hierárquica, empregando

sanções de natureza meramente corretiva. Fala-se também em Direito Penal

Administrativo, conjunto de disposições que, mediante uma pena, tem em vista o

cumprimento, pelo particular, de um dever seu para com a administração.

Assim, é correto dizer que aos atos administrativos punitivos aplicam-se os

dispositivos do Direito Administrativo tão somente até o momento em que estes não

comprometam o devido processo legal, mandamento constitucional garantido nos

procedimentos administrativos e que deve ser preservado a todo custo.

4.3 O DIREITO ADMINISTRATIVO MILITAR

Antes de adentrarmos no estudo das transgressões disciplinares militares,

cabe-nos fazer a constatação da especialíssima área do Direito Administrativo

Disciplinar Militar que, por ter princípios próprios, merece estudo apartado do Direito

Administrativo Disciplinar em geral.

O direito Administrativo Comum possui como vertente o Direito

Administrativo Militar. A respeito deste, o professor Antônio Pereira, traz a seguinte

definição:

Ramo especialíssimo do Direito Administrativo, o Direito Administrativo Militar não discrepa do conceito retroesposado, antes com ele se coaduna, enfocando o tema pertinente à relação do servidor militar federal (integrante das Forças Armadas) e do servidor militar estadual,

23

integrantes da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros de cada Estado, do Distrito Federal e dos Territórios, com a respectiva força ou corporação (...).

Deste modo, o Direito Administrativo Militar pode ser entendido como sub- ramo do Direito Administrativo Comum, que, através de um conjunto de princípios jurídicos entrelaçados, disciplina e regula a atuação dos órgãos militares, dos agentes/servidores militares, objetivando atingir a função constitucional reservada às Forças Militarizadas. (DUARTE, 1998, p.3 e 4).

Assim como no Direito Administrativo Comum, que possui o Direito

Administrativo Disciplinar, o Direito Administrativo Militar também possui este sub-

ramo que se preocupa com os atos punitivos, denominado Direito Administrativo

Disciplinar Militar, matéria deste estudo.

A hierarquia e a disciplina nas instituições militares apresentam-se de

maneira singular, sendo diferenciada com relação às demais. Logo, é mister que o

Direito Administrativo Disciplinar utilizado pelas instituições militares seja distinto do

aplicado aos civis. Enxergando tal especialidade, as instituições militares têm seu

próprio regulamento disciplinar, utilizando-se dos regulamentos aplicáveis aos civis

somente em caso de lacuna (analogia in bonam partem).

Assim, o Direito Administrativo Disciplinar Militar apresenta instrumentos

específicos. A ele, aplicam-se inteiramente os institutos do Direito Penal Militar, a que

dele também se deriva. Contudo, o inverso não é verdadeiro, já que alguns institutos

que nascem do Direito Administrativo Disciplinar somente a ele se aplicam.

Outro elemento específico é a transgressão disciplinar militar, que somente

pode ser praticada por militares e, portanto, não tipificável aos servidores públicos

civis. Contida em regulamento próprio (RDE – Regulamento Disciplinar do Exército),

as transgressões disciplinares militares têm fulcro na violação da hierarquia e

disciplina militares, também específicas.

Talvez o elemento mais significativo e que marca a fundamental importância

do estudo em separado do Direito Administrativo Disciplinar Militar, conforme Eliezer

Martins (1996, p.50) é a “odiosa prisão por transgressão disciplinar militar, a

derradeira e infeliz modalidade de prisão administrativa admitida no ordenamento

jurídico brasileiro”. Desconsiderando todas as outras, somente a previsão da

modalidade punitiva de sanção restritiva de liberdade individual, situação em que o

militar pode ficar até um mês encarcerado no xadrez, já justificaria a especificidade

do Direito Administrativo Disciplinar Militar.

24

5 TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

O conceito de transgressão disciplinar esta elencado no decreto nº 4.346, de

26 de agosto de 2002, que aprovou o RDE (Regulamento Disciplinar do Exército),

em seu artigo 14, in verbis:

Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensivo à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe (...).

A função militar gera a criação de um vínculo estreito com a Pátria e o

sentimento de sua preservação e defesa. É dentro desse contexto que se originam

os vários deveres militares, entre os quais o da fidelidade à Pátria, o culto aos

símbolos nacionais, a probidade e lealdade em todas as ocasiões e circunstâncias, a

disciplina e o respeito à hierarquia, o cumprimento das obrigações e ordens e a

obrigação de tratar o subordinado com dignidade e urbanidade.

Como já estudado, a hierarquia e disciplina norteiam as funções militares, de

tal sorte que a obediência aos preceitos, normas e ordens superiores integram o

conjunto de deveres militares, importante ressaltar que o militar, nos termos descritos

no artigo 41 do Estatuto dos Militares é plenamente responsável pelas decisões que

toma, pelas ordens que profere e pelos atos que pratica.

5.1 A TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR E A CONSTITUIÇÃO

A transgressão militar, é mencionada no inciso LXI da Carta Magna de 1988,

in verbis:

“Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada

de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou

crime propriamente militar, definidos em lei (grifo nosso)”. A definição de

transgressão militar esta estatuída em norma administrativa, consubstanciada em

regulamentos militares das forças militares, e não em legislação penal militar.

Para a verificação de transgressão militar devem-se observar principalmente

os chamados Regulamentos Disciplinares, que as Forças Armadas e as Forças

25

Militares Estaduais possuem.

Basicamente, tais Regulamentos Disciplinares (RDs) descrevem os

princípios gerais da hierarquia e da disciplina; da esfera de ação e da competência

na aplicação do RD; das transgressões disciplinares – espécies, julgamento,

classificação, gradação e execução das punições disciplinares, normas para a

aplicação e cumprimento dessa punição, comportamento do militar, direitos e

recompensas, e relação de transgressões militares.

Transgressão militar, ou melhor, transgressão disciplinar, de acordo com o

Regulamento Disciplinador do Exército (R-4, mais conhecido por RDE), em seu

artigo 14º, conceitua como:

Transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensivo à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe (...).

O Regulamento Disciplinar para a Marinha chama a Transgressão Disciplinar

de “Contravenção Disciplinar”, definindo-a em seu artigo 6º como:

Contravenção Disciplinar é toda ação ou omissão contrária às obrigações ou aos deveres militares estatuídos nas leis, nos regulamentos, nas normas e nas disposições em vigor que fundamentam a Organização Militar, desde que não incidindo no que é capitulado pelo Código Penal Militar como crime.

O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica, a exemplo do RDE, também

denomina de Transgressão Disciplinar e a conceitua em seu artigo 8º como:

Transgressão Disciplinar é toda ação ou omissão contrária ao dever militar, e como tal classificada nos termos do presente Regulamento. Distingue-se do crime militar que é ofensa mais grave a esse mesmo dever, segundo o preceituado na legislação penal militar.

Todos os três Regulamentos Disciplinares apresentam uma relação do que

consideram ser Transgressão ou Contravenção Disciplinar; o RDE apresenta 121; o

RDMAR, 84 e o RDAER, 100 tipos de transgressões.

26

Os três RDs se acautelam, acrescentando que também consideram

TRANSGRESSÃO (ou CONTRAVENÇÃO) MILITAR, todas as ações ou omissões,

não especificadas na relação, nem qualificadas como crime nas leis penais

brasileiras, que afetam a honra pessoal, o pundonor militar, o decoro da classe e

outras prescrições estabelecidas no Estatuto dos Militares, leis e regulamentos, bem

como aquelas praticadas contra normas e ordens de serviço, emanadas de

autoridade competente (RDE, art. 14º; RDMAR, parágrafo único, do art. 7º; e

RDAER, parágrafo único, do art. 10º).

5.2 DA VIOLAÇÃO DAS OBRIGAÇÕES E DEVERES MILITARES

Conforme disposto no Estatuto dos Militares, a violação das obrigações ou

dos deveres militares poderá constituir crime, contravenção ou transgressão

disciplinar, de acordo com o previsto nos regulamentos e leis militares. No caso de

violação de algum preceito ético-militar, este será tanto mais grave quanto maior for

o grau hierárquico do infrator.

Existe uma estreita ligação entre o Direito Penal Militar e o Direito Disciplinar,

pois a diferença entre crime militar e transgressão disciplinar é apenas de

intensidade da referida violação das obrigações e deveres impostos aos militares, a

semelhança do crime e contravenção na esfera civil.

Se houver concurso entre transgressão disciplinar e crime militar, somente

se aplicará a pena referente ao crime. É que o crime militar é bem mais grave, e

absorve a transgressão disciplinar, conforme o principio da consunção, que diz que

há consunção quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em

outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta.

Faz-se míster também explicar outros institutos que o artigo 6º do RDE que

sinaliza como transgressão, os institutos da:

I – Honra pessoal: sentimento de dignidade própria, como o apreço e o respeito de que é objeto ou se torna merecedor o militar, perante seus superiores, pares e subordinados;

II – pundonor militar: dever de o militar pautar a sua conduta como a de um profissional correto. Exige dele, em qualquer ocasião, alto padrão de comportamento ético que refletirá no seu desempenho perante a Instituição a que serve e no grau de respeito que lhe é devido; e

27

III – decoro da classe: valor moral e social da Instituição. Ele representa o conceito social dos militares que a compõe e não subsiste sem esse.

A transgressão disciplinar é uma espécie de ilícito, já o ilícito pode ser de

várias categorias, conforme seja o ramo do Direito ao qual esteja relacionado. Logo,

o ilícito pode ser civil, penal, administrativo, etc... A transgressão disciplinar se

enquadra ao ilícito administrativo por envolver um agente público no campo do

Direito Administrativo. Assim, mostra-se possível simplificar dizendo que a

transgressão disciplinar é um ilícito administrativo que viola a hierarquia e a

disciplina militar.

As transgressões disciplinares estão “enumeradas” no anexo I do decreto nº

4.346, de 26 de agosto de 2002, que aprovou o RDE (Regulamento Disciplinar do

Exército). A transgressão disciplinar é um ilícito de menor gravidade e, portanto, é

punida com menor rigor. Todavia, a prática reiterada de condutas infracionais poderá

levar a consequências mais graves na carreira do militar, como o atraso de

promoções ou até mesmo a expulsão a bem da disciplina.

Talvez o maior problema a ser enfrentado neste tema esteja ligado às

próprias raízes do RDE. Apesar de ter sido atualizado em 26 de agosto de 2002 por

meio de decreto presidencial, a base estrutural do regulamento ainda está calcada

em sua primeira edição, que remonta aos tempos da institucionalização das Forças

Armadas. Este arcaísmo do regulamento traz como consequência a estipulação de

certas condutas infracionais inadmissíveis em um Estado Democrático de Direito,

conforme relato de Eliezer Pereira Martins:

O aplicador de o sistema disciplinar militar tem a sua frente o dilema de ter a necessidade de fazer atuar disposições que não foram adaptadas ao novo ordenamento constitucional, o que pode levar às imposições inconstitucionais e invariavelmente injustas” (MARTINS,1996, p.76).

5.3 TRANSGRESSÕES DISCIPLINARES TÍPICAS E ATÍPICAS

As transgressões disciplinares militares podem ser classificadas em duas

espécies distintas: típica e atípicas.

As transgressões disciplinares típicas são aquelas que estão arroladas no

Anexo I do RDE. São típicas porque a conduta considerada infringente à hierarquia e

28

disciplina está perfeitamente descrita, assim como acontece no tipo penal. Embora

muitas delas estejam desajustadas à ordem vigente, pelo menos os agentes

militares têm a possibilidade de autodeterminar sua conduta no sentido de não

transgredir o regulamento, pois já conhecem sua existência.

Já as transgressões disciplinares atípicas são aquelas não descritas ou não

definidas de forma específica, sendo seu conteúdo infracional preenchido pelo

aplicador da sanção (critério subjetivo). Pode-se dizer que a punição referente

transgressão disciplinar atípica esta em dissonância com a Constituição Federal,

pois o tipo é a descrição abstrata de um fato real que a lei proíbe, sendo deste modo

a ação ou omissão dolosa ou culposa de que afetam bens jurídicos amparados pela

lei, norma e regulamentos, o militar deve ter ciência exata de qual conduta, assim

como no Direito Penal Militar é considerada como crime ou transgressão.

O ilustre penalista Luiz Regis Prado, em seu livro Curso de Direito Penal

Brasileiro, nos relata que:

A tipicidade é a subsunção ou adequação do fato ao modelo previsto no tipo legal. É um predicado, um atributo da ação, que a considera típica (juízo de tipicidade positiva) ou atípica (juízo de tipicidade negativa). Daí ser a ação típica um substantivo, isto é, a ação já qualificada ou predicada como típica (subsumida ao tipo legal). A tipicidade é a base do injusto penal (PRADO, 2008, p.309).

Tem-se como exemplo de transgressão disciplinar atípica, a seguinte

modalidade de transgressão disciplinar insculpida no Regulamento Disciplinar do

Exército(RDE) que dispõe, in verbis:

Anexo I – nº 9 - Deixar de cumprir prescrições expressamente estabelecidas no Estatuto dos Militares ou em outras leis e regulamentos, desde que não haja tipificação como crime ou contravenção penal, cuja violação afete os preceitos da hierarquia e disciplina, a ética militar, a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe.

Ora, essa definição passou longe da tipicidade concreta, pois qual a real

conduta a ensejar a punição disciplinar? Fica ao arbítrio da autoridade dizer se a

conduta se encaixa ou não nesta “tipicidade extensiva”. Assim, exige-se disposição

mais clara da conduta proibitiva, sendo, portanto, absurdo que se puna alguém ape-

29

nas porque o comandante subjetivamente acredita que tal conduta fere a honra pes-

soal ou o pundonor militar ou o decoro da classe.

Pois a honra, o pundonor militar, o decoro têm acepções variadas para cada

pessoa e localidade, sendo inadmissível que uma mesma conduta seja punida por

um tipo de comandante e não por outro, bem como é inaceitável que tal conduta se-

ja repudiada no Estado do Amazonas e não no Rio Grande do Sul por exemplo, já

que todas as polícias e bombeiros militares têm como princípios basilares a hierar-

quia e disciplina, não podendo haver, portanto, diferenças entre as “disciplinas” e as

“hierarquias” nas várias polícias militares, sob pena de desrespeito ao princípio da

isonomia, já que todas as forças auxiliares do Exército possuem o mesmo dever

constitucional de manter a ordem pública e a incolumidade das pessoas.

Desta forma, somente pode ser considerada transgressão disciplinar as

condutas expressamente disposta em lei, sendo incabível a sua extensão, analogia

ou proximidade. Há de argumentar, ainda, que o simples fato de a conduta estar

disposta em norma legal não significa, necessariamente, o seu acatamento ao prin-

cípio da reserva legal, já que para a sua observância requer, ainda, que tal dispositi-

vo seja preciso e não genérico, impedindo que qualquer conduta humana se encaixe

no tipo legal.

Ademais, para o vislumbramento do principio da legalidade, exige-se que ha-

ja a perfeita correspondência entre a conduta e a norma que a descreve, não se

permitindo que se puna por uma conduta aproximada ou assemelhada. Assim, não é

cabível que a disposição em norma seja genérica, enquadrando-se em várias condu-

tas, já que o princípio da legalidade impõe que a descrição da conduta seja deta-

lhada e especifica.

Desta forma, não deve estabelecer em normas expressões vagas e de sen-

tido ambíguo ou abrangentes, capazes de alcançar qualquer comportamento huma-

no, fazendo ineficaz a garantia da legalidade.

30

6 LIMITES DO ATO DISCIPLINAR MILITAR

6.1 O ATO DISCIPLINAR MILITAR

O ato disciplinar militar se insere no conceito amplo do ato administrativo e,

sendo assim, deve estar dotado dos mesmos requisitos que os informam.

O ato administrativo militar é a manifestação unilateral de vontade da

Administraçao Pública Militar que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato

impor uma sanção disciplinar ao servidor militar em face do cometimento de uma

infração disciplinar preestabelecida, e ao fim de um processo apuratório em que se

lhe faculte a ampla defesa.

6.2 REQUISITOS DO ATO DISCIPLINAR MILITAR

O ato administrativo militar deve conter cinco requisitos para sua existência,

conforme nos ensina o administrativista Hely Lopes Meirelles:

O exame do ato administrativo revela nitidamente a existência de cinco requisitos necessários à sua formação, a saber: competência, finalidade, forma, motivo e objeto. Tais componentes pode-se dizer, constituem a infraestrutura do ato administrativo, seja ele vinculado ou discricionário, simples ou complexo, de império ou de gestão. (MEIRELLES, 2009, p.154).

a) COMPETÊNCIA:

Competência administrativa para punir o subordinado é o poder atribuído

para determinadas autoridades militares em razão dos cargos que ocupem, daí

oportuna a advertência de Caio Tácito (1959, p.27) de que “Não é competente quem

quer, mas quem pode, segundo a norma de Direito”.

Via de regra, todos os regulamentos disciplinares preveem as autoridades

competentes para aplicar punições, ressalvando que tal competência decorre do

cargo ocupado pelo militar superior e não pelo grau hierárquico que ocupa.

b) FINALIDADE:

A finalidade do ato disciplinar militar é o objetivo de interesse público a atingir.

31

Se considerarmos a pessoa do militar em relação á sua organização militar, teremos

que a finalidade da punição estará alcançada quando dela advier benefício para o

punido, pela sua reeducação, ou para organização a que pertença, pode-se dizer

também que, “A punição visa à preservação da disciplina e deve ter em vista o

benefício educativo do punido e à coletividade a que pertence” (RDE, art. 23).

Porém, se considerarmos a organização militar a que pertence o militar

faltoso, e sua relação com a sociedade que serve, pode-se afirmar que a punição

disciplinar tem por finalidade manter a disciplina e coesão daquele corpo

especializado, tendo em vista o melhor desempenho de suas funções constitucionais,

quais sejam, a defesa da pátria e a preservação da ordem pública.

c) FORMA:

A forma é o revestimento pelo qual se exterioriza o ato disciplinar,

constituindo elemento vinculado e imprescindível à sua perfeição. O ato disciplinar

militar é sempre formal. É a roupagem com o qual o ato se apresenta, prevalece a

forma escrita.

A forma pela qual se exterioriza as punições na Policia Militar do Paraná,

vem descrita do artigo 34 do Regulamento Disciplinar do Exército(RDE), in fine:

Art. 34. A aplicação da punição disciplinar compreende: I - elaboração de nota de punição, de acordo com o modelo do Anexo II; II - publicação no boletim interno da OM, exceto no caso de advertência; e III - registro na ficha disciplinar individual. § 1º A nota de punição deve conter: I - a descrição sumária, clara e precisa dos fatos; II - as circunstâncias que configuram a transgressão, relacionando-as às prescritas neste Regulamento; e III - o enquadramento que caracteriza a transgressão, acrescida de outros detalhes relacionados com o comportamento do transgressor, para as praças, e com o cumprimento da punição disciplinar. § 2º No enquadramento, serão mencionados: I - a descrição clara e precisa do fato, bem como o número da relação do Anexo I no qual este se enquadra; II - a referência aos artigos, parágrafos, incisos, alíneas e números das leis, regulamentos, convenções, normas ou ordens que forem contrariados ou contra os quais tenha havido omissão, no caso de transgressões a outras normas do ordenamento jurídico; III - os artigos, incisos e alíneas das circunstâncias atenuantes ou agravantes, ou causas de exclusão ou de justificação; IV - a classificação da transgressão; V - a punição disciplinar imposta; VI - o local para o cumprimento da punição disciplinar, se for o caso;

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VII - a classificação do comportamento militar em que o punido permanecer ou ingressar; VIII - as datas do início e do término do cumprimento da punição disciplinar; e IX - a determinação para posterior cumprimento, se o punido estiver baixado, afastado do serviço ou à disposição de outras autoridades (...).

d) MOTIVO:

É a situação de direito ou de fato que determina ou autoriza a realização do

ato administrativo. O motivo do ato disciplinar militar pode ser expresso de duas

formas. Quando se tratar da aplicação de uma punição disciplinar, seu motivo será a

transgressão de um preceito estabelecido no regulamento disciplinar e não

qualificado como crime nas leis penais militares, contra a honra e o pundonor militar,

contra o decoro da classe, contra os preceitos sociais e as normas da moral, contra

os princípios da subordinação, regras e ordens de serviço.

e) OBJETO:

O objeto do ato disciplinar identifica-se com o conteúdo do próprio ato, o

objetivo a ser alcançado, através do qual a Administração Militar manifesta sua

potestade sancionadora, apurando a falta disciplinar e punindo o militar faltoso.

6.3 A CONSTITUIÇÃO E O HABEAS CORPUS

O habeas corpus, sem ser novidade na atual Lei Maior e com alguma

variação, vem sendo tratada em todas as Constituições brasileiras. A de 1967 em

seu art. 150, § 20, determinava que:

Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares não caberá habeas corpus.

A mesma redação é encontrada na Emenda Constitucional nº 01 de 17 de

Outubro de 1969 em seu artigo 153, § 20. Já então era feita a ressalva, colocando-

se um impedimento para que, nas transgressões disciplinares, houvesse a

possibilidade de aplicação desse mandamus.

33

As “transgressões disciplinares” seriam aquelas resultantes de

“regulamentos disciplinares”, militares ou não. Incluídas estavam as “transgressões

disciplinares” cometidas por funcionários civis.

Na Constituição atual, esta expressão foi alterada para “punições

disciplinares militares” e passou a constar, não mais junto às disposições do habeas

corpus e sim no capítulo das Forças Armadas. O constituinte não foi preciso, pois

ora chama de transgressão militar (art. 5º, LXI), que é o ato, e ora denomina como a

punição disciplinar militar (§ 2 º, do art. 142), que é o resultado desse ato.

Aparentemente, pelo menos, parece que a questão está definida; quando se

tratar de punição disciplinar, segundo os Regulamentos Militares, no âmbito portanto

dos quartéis, aplicada a militares, o conhecido “remédio heroico” não poderia ser

usado em favor do prejudicado ou do assim punido.

O instituto do habeas copus tem amparo em vários artigos da Magna Carta,

sendo o mais importante o inscrito no rol dos Direitos e Deveres Individuais e

coletivos estabelecidos no artigo 5º, ele irá aparecer inicialmente em seu inciso

LXVIII, com a seguinte redação:

“Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar

ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por

ilegalidade ou abuso de poder”.

São requisitos do habeas corpus portanto, que alguém - pessoa certa e

determinada - sofra ou esteja na iminência de sofrer efetiva violência ou coação na

sua liberdade de locomoção, que é direito garantido pelo artigo 5º, inciso XV da

Carta Maior, a qualquer pessoa, no território nacional em tempo de paz, incluindo-se

neste contexto “os militares”, é esta liberdade individual que o instituto do habeas

corpus visa proteger.

Destacamos que desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, as

normas garantidoras dos direitos, que são os bens jurídicos protegidos e as

garantias fundamentais, que são os meios disponíveis para alcançá-las, tem

aplicação imediata, conforme (artigo 5º, parágrafo 1º), sendo o artigo 5º, cláusula

pétrea da CF/88, ou seja, não admite proposta de emenda constitucional que tenha

por objetivo a abolição destes direitos, conforme artigo 60º, §4, alínea IV.

Fica a pergunta no ar, qual seria a intenção do constituinte originário, ao

34

tratar das Forças Armadas, em dispor no artigo 142, §2, que “não caberá habeas

corpus em relação a punições disciplinares militares”, tendo por extensão a

aplicação a militares estaduais, a bem da verdade esta vedação constitucional

sempre existiu.

É assente na doutrina que a Constituição não possui dispositivos

antagônicos, então não podemos falar em antinomia entre seu artigo 5º, inciso

LXVIII, e o artigo 142, § 2º, sendo necessário conciliá-los.

A discussão sobre o cabimento ou não do habeas corpus nas transgressões

disciplinares militares ganhou destacado aliado no artigo mais importante da

Constituição Federal, que elenca os direitos e garantias individuais em seu inciso

LXI que dispõe o seguinte enunciado:

Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei (grifo nosso).

Este inciso excepciona duas hipóteses em que não será necessário o

flagrante delito ou ordem de um juiz, quais sejam, o crime propriamente militar, ou

seja, aquele que somente um militar poderá cometer, como por exemplo o crime de

deserção capitulado no Código Penal Militar ou no objeto de nosso estudo a

“transgressão disciplinar”.

Existem doutrinadores que observando a parte literal do inciso em comento,

entendem que tanto o crime militar quanto a transgressão disciplinar deveriam estar

descritos em lei, e não em regulamento como é caso em questão, pois a segunda

vírgula do texto, antes da expressão final “definidos em lei”, teleologicamente daria a

entender que ambos os institutos, ou seja, tanto o crime militar quanto a

transgressão deveriam estar definidos em lei.

No entanto se a vírgula estivesse colocada logo após a expressão

“transgressão militar”, teríamos então a interpretação gramatical de que apenas os

crimes militares é que deveriam estar previstos em lei, mas não é essa a impressão

que se tem, causando duvida ao interprete da lei, sendo que não se tem noticia de

jurisprudência esclarecedora sobre a exegese deste artigo constitucional,

permanecendo a interpretação (mesmo que duvidosa), de que apenas os crimes

35

propriamente militares é que serão definidos em lei, deixando para os regulamentos

disciplinares especificar as transgressões militares, lembrando que estes

regulamentos são instituídos por decreto do Chefe do poder Executivo, estando

portanto ausente a discussão em uma casa legislativa, onde o debate sobre o que

vem a ser uma transgressão disciplinar militar seria bem mais ampla.

36

7 DA LEGALIDADE DA RESTRIÇÃO AOS MILITARES

Ruy Barbosa, ao analisar a Constituição de 1891, estabeleceu distinção

entre direitos e garantias fundamentais. Segundo o ilustre jurista, direitos são

disposições meramente declaratórias, enquanto garantias são medidas

assecuratórias que visam à defesa de direitos, limitando o poder. Assim sendo,

podemos conceituar o habeas corpus como uma ação constitucionalmente

qualificada que tem por escopo assegurar a liberdade física do indivíduo, a liberdade

de ir, ficar e vir (direitos humanos de primeira geração, liberdade). Não obstante a

tão grande importância desse instrumento, nosso constituinte originário de 1988

exclui, a princípio, seu cabimento em punições disciplinares de militares

pertencentes às Forças Armadas (art. 142, § 2º, CF) e aos Estados, Distrito Federal

e Territórios (art. 42, § 1º, também da CF).

7.1 EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL DA TRANSGRESSÃO

Primeiramente analisa-se a Lei 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que criou

o Estatuto dos Militares, e o Decreto no 76.322, de 22 de setembro de 1975, que

aprovou o Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER), ambos anteriores à

atual Constituição Federal, com o intuito de fornecer um maior esclarecimento da

evolução histórica sobre a estipulação das transgressões disciplinares militares.

A Constituição Federal de 1967 estabelecia em seu art. 150, § 12º, in verbis:

Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita de autoridade competente. A Lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal.

Percebe-se que na citada Constituição inexistia qualquer previsão a respeito

do tipo de norma legal que iria fundamentar a aplicação da pena de prisão ou

detenção. A única exigência constitucional expressa é de ser a prisão decretada por

autoridade competente, possibilitando que praticamente qualquer funcionário civil ou

militar fosse, por mero decreto do Poder Executivo, designado competente para

decretar prisão ou detenção de outra pessoa.

Sob a vigência da Constituição Federal de 1967, existiam poucas garantias à

37

pessoa que sofria a prisão. Provavelmente, esta orientação era uma consequência

do pensamento reinante no período de repressão militar, onde milhares de pessoas

foram presas, conforme relatos dos mais diversos já publicados, sob o fundamento

de assim estar-se agindo para a defesa do governo contra os “comunistas” e outros

contrários ao regime instituído.

A lei 6.880 (Estatuto dos Militares) expressa em seu art. 47º, in verbis:

Os regulamentos disciplinares das Forças Armadas especificarão e classificarão as contravenções ou transgressões disciplinares e estabelecerão as normas relativas à amplitude e aplicação das penas disciplinares, à classificação do comportamento militar e à interposição de recursos contra as penas disciplinares.

A Lei transfere para a competência interna de cada Força Armada, por meio de regulamentos instituídos por decretos do Poder Executivo, a determinação dos casos de transgressão disciplinar, assim como a classificação e formas de apuração dos fatos. Em função disso, o Decreto no 76.322, de 1975, que institui o Regulamento Disciplinar da Aeronáutica, em vigor até os dias de hoje, traz como seu fundamento legal o art. 83, II da Constituição de 1967, in verbis:

Art .83 - Compete privativamente ao Presidente da República: (...) II – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução.

A emissão do regulamento disciplinar teve, portanto, a finalidade de cumprir

a determinação da lei, dando a esta eficácia, em um rol com cerca de 100 itens, o

artigo 10º daquele decreto estabelece os casos de transgressão disciplinar para

militares da Aeronáutica, como por exemplo:

9 - deixar por negligência, de cumprir ordem recebida: 10 - deixar de comunicar ao superior a execução de ordem dele recebida: 11 - deixar de executar serviço para o qual tenha sido escalado; 12 - deixar de participar, a tempo, à autoridade a que estiver imediatamente subordinado, a impossibilidade de comparecer ao local de trabalho, ou a qualquer ato de serviço ou instrução a que deva tomar parte ou a que deva assistir; 13 - retardar, sem justo motivo, a execução de qualquer ordem;

Já o artigo 15º do decreto em comento dispõe que as punições disciplinares

serão assim especificadas:

38

“detenção até 30 dias; prisão (comum até 30 dias; sem fazer serviço até 15

dias; em separado até 10 dias); licenciamento a bem da disciplina; e; exclusão a

bem da disciplina”.

Com base no que foi relatado, é transparente que tanto a Lei 6.880 quanto o

Decreto 76.322 estavam em conformidade com os preceitos da Constituição de 1967,

já que inexistia restrição no tocante à formalidade para o estabelecimento das

transgressões disciplinares, bem como autoridade competente especificada na Lei

Maior.

7.2 REGULAMENTOS DISCIPLINARES E SUA CONFORMIDADE COM A ATUAL

CONSTITUIÇÃO

Primeiramente, se diga que em relação aos regulamentos disciplinares, eles

têm, de forma indireta, uma previsão constitucional, inserida no art. 5º, inciso LXI,

conforme segue: “Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem

escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de

transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

Ao se referir à transgressão militar, o dispositivo constitucional esta

admitindo a existência de um Regulamento Disciplinar, já que neles estão

relacionados o que vem a constituir transgressão disciplinar ou militar.

Cada força singular possui o seu próprio regulamento, ou seja, o da Marinha

que foi baixado pelo decreto 88.545 de 26 de junho de 1983 e o da Aeronáutica que

foi baixado pelo decreto 76.322 de 22 de setembro de 1975, ambos recepcionados

pela Constituição Federal de 1988 com força de lei.

Já o atual Regulamento Disciplinar do Exército, que é usado pela maioria

das Policias Militares do Brasil, inclusive pela PMPR foi editado após a Carta Magna

de 1988, pelo decreto 4.346 de 26 de agosto de 2002 e que veio em substituição ao

decreto 90.608 de 08 de dezembro de 1984.

Pois bem, grande parte da doutrina entende que este novo decreto é

inconstitucional, pois conforme a Constituição Federal de 1988 determina em seu

artigo 5º, LXI, os crimes propriamente militares e as transgressões militares devem

ser definidas por lei e não via decreto presidencial, entende-se que os decretos das

39

três forças militares, anteriores a atual Constituição Federal foram recepcionados

com força de lei, mas o atual regulamento do exército datado de 2002 não poderia

ser editado através de decreto, mas sim através de lei, tornando-se inconstitucional

privar alguém de sua liberdade motivada por decreto e não por lei, mas em

contrapartida o Supremo Tribunal Federal não reconheceu a ação Direta de

Inconstitucionalidade proposta contra o RDE, sendo que entre dez Ministros

presentes, sete decidiram não julgar o mérito da questão porque a petição inicial não

detalhou quais os dispositivos do decreto seriam inconstitucional, persistindo até o

momento a eficácia do atual RDE, conforme decisão abaixo:

EMENTA: Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o Decreto no 4.346/2002 e seu Anexo I, que estabelecem o Regulamento Disciplinar do Exército Brasileiro e versam sobre as transgressões disciplinares. 2. Alegada violação ao art. 5º, LXI, da Constituição Federal. 3. Voto vencido (Rel. Min. Marco Aurélio): a expressão ("definidos em lei") contida no art. 5º, LXI, refere-se propriamente a crimes militares. 4. A Lei no 6.880/1980 que dispõe sobre o Estatuto dos Militares, no seu art. 47, delegou ao Chefe do Poder Executivo a competência para regulamentar transgressões militares. Lei recepcionada pela Constituição Federal de 1988. Improcedência da presente ação. 5. Voto vencedor (divergência iniciada pelo Min. Gilmar Mendes): cabe ao requerente demonstrar, no mérito, cada um dos casos de violação. Incabível a análise tão somente do vício formal alegado a partir da formulação vaga contida na ADI. 6. Ausência de exatidão na formulação da ADI quanto às disposições e normas violadoras deste regime de reserva legal estrita. 7. Dada a ausência de indicação pelo decreto e, sobretudo, pelo Anexo, penalidade específica para as transgressões (a serem graduadas, no caso concreto) não é possível cotejar eventuais vícios de constitucionalidade com relação a cada uma de suas disposições. Ainda que as infrações estivessem enunciadas na lei, estas deveriam ser devidamente atacadas na inicial. 8. Não conhecimento da ADI na forma do artigo 3º da Lei no 9.868/1999. 9. Ação Direta de Inconstitucionalidade não-conhecida. (ADI 3340, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 03/11/2005, DJ 09-03-2007 PP-00025 EMENT VOL-02267-01 PP-00089)

7.3 PRINCIPIO CONSTITUCIONAL DA RESERVA LEGAL

Agora analisemos ambas as normas às luzes da Constituição Federal de

1988, que em seu art. 5º, LXI, in verbis:

“Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e

fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão

militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

Com relação ao princípio da reserva legal, nos ensina Luiz Regis Prado:

40

O Direito Penal moderno se assenta em determinados princípios fundamentais, próprios de Estado Democrático de Direito, entre os quais sobreleva o da legalidade dos delitos e das penas, da reserva legal ou da intervenção legalizada, que, enunciado no art. 1º do Código Penal, tem base constitucional expressa (art. 5º, XXXIX, CF). A sua dicção tem sentido amplo: não há crime (infração penal) nem pena (sanção penal) sem previa lei (stricto sensu). Isso vale dizer: a criação dos tipos incriminadores e de suas respectivas consequências jurídicas esta submetida à lei formal anterior [...] (PRADO, 2008, p.130).

A previsão constitucional que assegura a reserva legal dos crimes

propriamente militares, descritas no art. 5º, LXI, não é isolado, visto que existe no

mesmo artigo, em relação aos crimes propriamente militares, suporte mais

abrangente, qual seja, no inciso XXXIX, determinando que: “não há crime sem lei

anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”, principio vigente em

todas as constituições democráticas, como confirmação da precisa lição de

Feuerbach: “nullum crimen, nulla poena sine lege”.

O principio da legalidade deve ser instituto inabalável no Estado

Democrático de Direito, como nos leciona José Afonso da silva, in verbis:

O principio da legalidade é também um principio basilar do Estado Democrático de Direito. É da essência do seu conceito subordinar-se à Constituição e fundar-se na legalidade democrática. Sujeita-se , como todo o Estado de Direito, ao império da lei, mas da lei que realize o principio da igualdade e da justiça, não pela sua generalidade, mas pela busca da equalização das condições dos socialmente desiguais (...). A lei é efetivamente o ato oficial de maior realce na vida política. Ato de decisão política por excelência, é por meio dela, enquanto emanada da atuação da vontade popular, que o poder estatal propicia ao viver social modos predeterminados de conduta, de maneira que os membros da sociedade saibam, de antemão, como guiar-se na realização de seus interesses. (SILVA, 2008, p.121).

Esta constatação nos permite dizer que não existe na constituição, principio

similar que nos de suporte para admitir transgressão disciplinar apenas estabelecida

em lei, ou seja, não há determinação constitucional dizendo: “não há transgressão

disciplinar sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.

Assim deve-se concluir, salvo melhor juízo, que o constituinte originário ao

inserir a vedação ao habeas corpus nas hipóteses do artigo 5º, inciso LXI, quis

principalmente, fortalecer a hierarquia e a disciplina das Forças Armadas, que são as

vigas mestras dessas instituições, deixando para o Chefe do poder Executivo

41

normatizar através de decreto (regulamento) o que vem a constituir o instituto da

transgressão disciplinar.

A lei é a forma prevista pela Constituição Federal para estabelecer regras

abstratas e genéricas que imponham obrigações e restrições aos indivíduos. Depois

de estabelecidas estas regras, permite-se que normas menores, tais como decretos,

estabeleçam as formas mais específicas para aplicação da norma legal.

É o que dispõe o artigo 47 da lei nº 6.880 (Estatuto dos Militares), da seção

que trata das “contravenções ou transgressões disciplinares” que delega aos

regulamentos militares a definição e aplicação de punição disciplinar ao que for

considerado afronta aos princípios basilares da instituição, como já comentado

acima, olhando por este prisma percebe-se que foi a própria lei básica dos militares

que delegou ao poder disciplinar regulamentar o que vem a ser uma transgressão

disciplinar, e qual delas de maior gravidade ensejarão a prisão ou detenção,

suprimindo assim a liberdade de ir e vir do cidadão militar.

Nunca é demais esclarecer que quando a Constituição Federal de 1988

alude à prisão, também engloba a pena de detenção, prevista no regulamento

disciplinar anteriormente citado, pois, trata-se de restrição à liberdade, apesar de

não prever explicitamente detenção, tal qual expressão contida na Constituição de

1967 (art. 150 § 12º). Pensar diferente levaria a uma interpretação gramatical do art.

5º, incisos LXI, LXII, LXIII e LXV, estabelecendo somente a modalidade de privação

da liberdade por meio da “prisão”, afinal não estaria prevista na Norma Maior a

possibilidade de “detenção” de qualquer pessoa.

Devemos esclarecer que o Código Penal Militar trata, exclusivamente, dos

crimes propriamente militares, repassando para outra norma o estabelecimento dos

casos de transgressão militar. A própria lei 6.880 define em seu art. 46, in verbis:

“O Código Penal Militar relaciona e classifica os crimes militares, em tempo

de paz e em tempo de guerra, e dispõe sobre a aplicação aos militares das penas

correspondentes aos crimes por eles cometidos”.

Com relação aos regulamentos militares, estes poderão existir e tratar de

assuntos específicos de cada Força, desde que não contrariem norma constitucional,

a Constituição vigente apenas menciona tal exigência no tocante a transgressão

militar e crime militar. Isto não significa que a dispense nos demais casos.

42

Certamente, o constituinte considerou tão obvia a cláusula que a enunciou de modo

explícito. De modo indireto, porém, o fez conforme comprova o inciso LXVIII deste

mesmo artigo, ao prever o habeas corpus nos casos de ilegalidade ou abuso de

poder.

Chega-se à conclusão de que, a partir da Constituição Federal de 1988, não

seria mais possível a previsão de transgressão militar passível de prisão ou

detenção em norma diferente de lei formal, que requer a participação e debate junto

ao Congresso Nacional, mas por enquanto este assunto não foi ainda analisado

plenamente pelo Supremo Tribunal Federal.

7.4 DA POSSIBILIDADE OU NÃO DO CABIMENTO DE HABEAS CORPUS EM

TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR MILITAR

A maioria dos doutrinadores é acorde no sentido de que não cabe habeas

corpus contra a aplicação de punição disciplinar militar, a razão seria instituída com

base na hierarquia e na disciplina, as forças armadas e as polícias militares teriam

suas vigas mestras duramente atingidas se fosse possível questionar judicialmente a

validade da punição disciplinar aplicada, visto que os regulamentos disciplinares

preveem uma série de recursos adequados à espécie, se bem que nunca é tarde

lembrar que estes recursos não tem efeito suspensivo.

Entendemos que o parágrafo 2º, do art. 142, da Carta Magna ao mencionar

o não cabimento do referido remédio constitucional em relação às punições

disciplinares, refere-se obviamente à ordem de habeas corpus em relação ao seu

mérito, e não ao direito subjetivo do paciente de obter uma resposta do Estado-Juiz

(princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional art. 5º, XXXV, CF).

De forma clara, a Constituição Federal de 1988 vetou o cabimento do

habeas corpus às punições disciplinares. Vejamos: “Art. 142, § 2º - Não caberá

habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”.

De rápida análise, conclui-se que há impeditivo constitucional no que tange a

concessão de habeas corpus às punições disciplinares. Apesar disso, não podemos

esquecer que o direito é uma ciência complexa e a interpretação da lei, por diversas

vezes, pede uma elaboração mental mais apurada a fim de se chegar à verdadeira

amplitude da norma legal, alcançando-se, desta forma, a vontade do legislador ao

43

elaborar o texto normativo.

Assim acontece com o § 2º do artigo 142 da nossa Carta Magna. Como

bem diz o professor Eliezer Pereira Martins(1996, p.191): “felizmente, contudo, a

presente vedação, não tem a extensão que pretendem lhe dar os administradores e

juristas do terror”. Para atingir seu real significado se faz necessária uma análise

sistêmica da norma constitucional.

A Constituição de 1967 já cuidava deste tema. Com a emenda constitucional

nº 1, de 17 de outubro de 1969, artigo 153, § 20 foi restringido o direito ao habeas

corpus aos militares. Vejamos como o tema era tratado na época, in verbis:

Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não caberá habeas corpus.

É de se reparar que na Constituição da época o impeditivo constitucional

acompanhava o próprio instituto do habeas corpus, formando um entendimento

praticamente unânime quanto ao não cabimento do remédio às punições

disciplinares em acordo ao regulamento disciplinar.

Todavia, a Constituição de 1988 inovou ao tratar do tema. O habeas corpus

recebeu redação diferente ao ser assim disciplinado no art. 5º, LXVIII, in verbis:

“Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar

ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por

ilegalidade ou abuso de poder”.

Como se pode perceber, o legislador constituinte não mais impôs a restrição

da concessão do instituto aos militares no mesmo texto que estabelece a garantia

constitucional do habeas corpus. Na atual Constituição, a restrição à aplicação do

remédio jurídico em tela às punições disciplinares militares permaneceu, porém sem

status de cláusula pétrea, já que é estabelecida no título “DA DEFESA DO ESTADO

E DAS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS” e não no título “DOS DIREITOS E

GARANTIAS FUNDAMENTAIS”. Assim, ficou parcialmente abolida a vedação da

possibilidade de concessão do habeas corpus às punições disciplinares militares.

Isto se explica pois, se a intenção do legislador fosse impor vedação total, teria

44

mantido a restrição no bojo do próprio instituto. Além do mais, não se admite a

restrição de um direito constitucional pétreo se a restrição não tiver o mesmo status

constitucional. Conforme afirma Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, especialista em

Direito Administrativo, sobre a questão:

A prisão administrativa encontra-se sujeita a controle jurisdicional em atendimento ao art. 5.º, inciso XXXV, da CF, segundo o qual, "a lei não

excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou ameaça a direito". O militar preso sob a acusação de ter praticado uma transgressão disciplinar ou contravenção militar poderá caso esta seja abusiva interpor habeas

corpus na forma do art. 5º, inciso LXVIII, da CF. Para fundamentar o não cabimento de habeas corpus nas transgressões disciplinares os estudiosos se apoiam no art. 142, § 2º, da CF, que integra o capítulo da CF, que trata da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas segundo o qual, "Não caberá habeas corpus em relação a

punições disciplinares militares" (grifo nosso). Esse dispositivo está flagrantemente em conflito com o art. 5.º, inciso LXVIII, da CF e com o art. 7.º, n.º 06, da Convenção Americana de Direitos Humanos. Os militares por força de disposições regulamentares encontram-se sujeitos aos princípios de hierarquia e disciplina, mas isso não significa que os direitos e garantias fundamentais possam ser desrespeitados. A vedação de cabimento de habeas corpus prevista no art., 142, § 2º, da CF, por mais que se conteste, é inconstitucional por ferir flagrantemente o disposto no art. 5.º, inciso LXVIII, da CF. Caso fosse a intenção do constituinte de limitar o seu cabimento nas transgressões disciplinares o teria feito expressamente no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão, o que não ocorreu. O militar que se sinta constrangido em seu direito de ir e vir está legitimado interpor habeas corpus, que é uma garantia assegurada a todos os brasileiros e até mesmo aos estrangeiros residentes no país ou que estejam de passagem no território nacional em atendimento as regras da Convenção Americana de Direitos Humanos e Declaração Universal de Direitos Humanos. (FONTE: RODRIGUES ROSA, 2013, disponível em: http://jus.com.br/artigos/1593/militares-e-habeas-corpus-inconstitucionalida-de-do-art-142-2º-da-cf).

A restrição imposta à aplicabilidade do habeas corpus às punições

disciplinares não é incondicional. Neste diapasão, devem ser analisadas as

alegações do paciente, verificando qual é o seu questionamento.

Caberá a sua impetração sempre que a autoridade que decidir o processo

de punição disciplinar militar não for competente para tal, não houver previsão legal

para a punição ou não for conferido ao acusado o exercício do direito de defesa.

Completamos este pensamento com as palavras do professor Antônio Pereira

Duarte: “Quando houver por parte do aplicador da sanção disciplinar

descumprimento à lei ou abuso, não pode pairar dúvidas quanto à legitimidade do

emprego do remédio heroico” (DUARTE, 1995, p.53).

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Não obstante o artigo 142, § 2º da nossa Carta Magna, o próprio CPPM

(Código de Processo Penal Militar) viabiliza a aplicação do instituto, dando, por

conseguinte, maior fundamentação para a flexibilização do impeditivo

Constitucional. Vejamos o CPPM, in verbis:

Art. 466 Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Parágrafo único Excetuam-se, todavia, os casos em que a ameaça ou a coação resultar: a) de punição aplicada de acordo com os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas...

Em análise apurada, verificamos que o legislador “excetuou” a aplicação do

instituto somente quando a punição estiver de “acordo” com os Regulamentos

Disciplinares da Forças Armadas. Assim, através de interpretação inversa, pode-se

concluir que não se excetua o habeas corpus quando a punição estiver em

desacordo com os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas. E é claro, se o

desacordo com normas administrativas já da sustentação para a sua impetração,

não se pode afastar a sua propositura quando o desacordo for com norma maior,

como a norma constitucional, por exemplo.

Não obstante toda a análise sistemática já feita, reproduziremos um trecho

da Convenção Americana de Direitos Humanos, norma interna de Direito

Constitucional por se tratar de direitos e garantias fundamentais asseguradas a todo

cidadão das Américas, que assim estabelece:

Art. 7º, nº 06 - Toda pessoa privada de liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção e ordene a sua soltura se a prisão ou detenção forem ilegais. Nos Estados Partes cujas leis preveem que toda pessoa que se vir ameaçada de ser privada de sua liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente a fim de que este decida sobre a legalidade de tal ameaça, tal recurso não pode ser restringido nem abolido. O recurso pode ser interposto pela própria pessoa ou por outra pessoa.

Reforçando este entendimento o professor Eliezer diz que:

A restrição da liberdade de ir e vir consistente na prisão administrativa disciplinar é providência adequada ao conscrito, aos momentos de guerra ou convulsão interna, jamais medida adequada para o militar profissional, no

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mais das vezes o chefe de família, cidadão socialmente adaptado; sobretudo nos períodos de paz e na nova ordem constitucional (MARTINS, 1996, p.193).

Ao contrário do que se possa pensar, não estará o poder judiciário a interferir

nas questões administrativas da caserna ao conceder o habeas corpus às punições

disciplinares aplicadas aos militares; mas tão somente controlando a legalidade dos

atos do administrador público no exercício de suas funções. Assim sendo, o

magistrado deve acatar a impetração do habeas corpus, analisá-lo, sob o prisma da

legalidade, tanto na formação do ato administrativo, bem como nas garantias

individuais. Deve, assim, julgar: a feitura do ato administrativo obedeceu à

competência, à finalidade, o motivo? Houve a devida motivação? Foi assegurado ao

militar, o devido processo legal? Foi oportunizada a mais ampla defesa, com seus

meios? Foi-lhe assegurado o contraditório? Houve motivos determinantes? Se um

ou mais desses pressupostos não foi atendido segundo o art. 4º, letra “d”, da lei nº

4.898/65, é dever de ofício do juiz, na liminar, mandar relaxar a restrição de

liberdade, deixando para, ao final julgar da ilegalidade do ato administrativo e assim

não procedendo caberá a impetração do instituto para livrar o paciente militar da

punição disciplinar por transgressão.

O que é vedado aos juízes e tribunais, até mesmo como natural decorrência

do principio da separação dos poderes, é a apreciação da conveniência, da utilidade,

da oportunidade e da necessidade da punição disciplinar. Isso não significa, porém,

a impossibilidade de o judiciário verificar, se existe, ou não, causa legítima que

autorize a imposição da sanção disciplinar. O que se lhe veda , nesse âmbito, é , tão

somente, o exame do mérito da decisão administrativa, já que mérito trata-se de

elemento temático inerente ao poder discricionário da administração pública.

Corroborando, é bom trazer o entendimento do Supremo Tribunal Federal

(STF):

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MATÉRIA CRIMINAL. PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. Não há que se falar em violação ao art. 142, § 2º, da CF, se a concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tão-somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito. Concessão de ordem que se pautou pela apreciação dos aspectos fáticos da medida punitiva militar, invadindo seu mérito. A punição disciplinar militar atendeu aos pressupostos de legalidade, quais sejam, a hierarquia, o poder disciplinar, o ato ligado à função e a pena susceptível de ser aplicada

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disciplinarmente, tornando, portanto, incabível a apreciação do habeas corpus. Recurso conhecido e provido. (RE 338840, Relator(a): Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 19/08/2003, DJ 12-09-2003 PP-00049 EMENT VOL-02123-03 PP-00647).

Consubstanciando este entendimento, diz o professor Antônio Pereira

Duarte que “se o ato punitivo militar é editado com observância dos pressupostos

legais, estando reunidos os elementos que dão validade ao referido ato, é obvio não

caber habeas corpus” (DUARTE, 1995, p.53).

Assim também já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme descrito

abaixo:

CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PROCESSO DISCIPLINAR. MILITAR. TRANCAMENTO. INTERPRETAÇÃO DO ART. 142, § 2º, DA CF. CABIMENTO DA AÇÃO CONSTITUCIONAL SOMENTE PARA EXAME PELO PODER JUDICIÁRIO DA REGULARIDADE FORMAL DO PROCESSO. HIPÓTESE NÃO CONFIGURADA NOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISÃO DO MÉRITO DA IMPOSIÇÃO DA PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. No caso dos autos, o presente habeas corpus foi impetrado contra acórdão que afastou o cabimento da ação constitucional com o objetivo de trancar processo administrativo disciplinar militar. 2. Efetivamente, não obstante o disposto no art. 142, § 2º, da Constituição Federal, os Tribunais Superiores admitem a impetração de habeas corpus para trancamento de processo administrativo disciplinar militar. Entretanto, as hipóteses de cabimento estão restritas à regularidade formal do procedimento administrativo disciplinar militar ou aos casos de manifesta teratologia. 3. Sobre o tema, os seguintes precedentes: STF - RHC 88.543/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 3.4.2007; STF - RE 338.840/RS, 2ª Turma, Rel Min. Ellen Gracie, DJ de 12.9.2003; STJ - RHC 27.897/PI, 1ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 8.10.2010; HC 129.466/RO, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJe de 1º.2.2010; STJ - HC 80.852/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 28.4.2008. 4. Na hipótese examinada, a impetrante não alega qualquer vício formal no procedimento administrativo disciplinar, mas tão somente irresignação no tocante à legalidade da imposição da sanção disciplinar militar o que, por si só, afasta o cabimento de habeas corpus. 5. Habeas Corpus não conhecido. (HC 211.002/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2011, DJe 09/12/2011).

Em resumo, nossos tribunais superiores veem decidindo não conceder a

ordem de habeas corpus quando o pedido refere-se ao mérito da questão, pois

estaria assim prejudicando a conservação dos pilares das instituições militares,

quais sejam a hierarquia e a disciplina, no entanto quanto aos aspectos da

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legalidade, é possível sim discuti-los judicialmente, desde que o ato esteja eivado de

ilegalidade, tais como incompetência, ausência de contraditório, teratologia etc....

Assim, resta evidente a possibilidade da concessão da ordem de “habeas

corpus” contra punições disciplinares militares, quando o ato estiver eivado de

ilegalidade ou inconstitucionalidade, observando-se os graus da jurisdição militar

estadual.

Em nada difere o habeas corpus concedido pela autoridade judiciária em

relação às punições disciplinares militares e os demais concedidos aos cidadãos que

não têm a farda como uniforme de trabalho. Assim, vale dizer que todas as

peculiaridades atinentes ao instituto, como a informalidade, a possibilidade de

interposição por terceiros e a desnecessidade de impetração por advogado, também

têm efetividade quando concedido aos militares.

Conforme entende o professor Antônio Pereira Duarte, em última análise, se

não se admitir o cabimento do habeas corpus contra punição disciplinar militar

eivada de ilegalidade ainda resta ao agredido à oposição de outro remédio jurídico

contra o ato ilegal proferido pela administração pública, qual seja, o Mandado de

Segurança. Assim, a inadmissibilidade de interposição do habeas corpus não

impossibilita a impetração do mandado de segurança.

É de extrema importância que se possa recorrer ao judiciário, em caso de

abusos, caso contrário não se teria a segurança jurídica no meio militar, pois os

comandantes poderiam cometer toda sorte de abusos e ilegalidades sem temor da

atuação do Poder Judiciário, trazendo aos subordinados intranquilidade para

oferecer seus serviços à população.

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8 CONCLUSÃO

É imperioso que se diga que as instituições militares funcionam baseando-se

em dois princípios fundamentais que são seus pilares estruturais, que são os

princípios da hierarquia e da disciplina. A manutenção destes genuínos princípios

castrenses deve ser garantida não só pela sua nobreza, mas também pela

importância que assumem nas organizações militares. Contudo, as questões

disciplinares militares não podem ser resolvidas somente com base nestes princípios,

pois antes deles é necessário que se observe outros princípios que são basilares do

Estado Democrático de Direito, quais sejam:

Princípios constitucionais elementares como o da legalidade (art. 5º, II), o

princípio da dignidade da pessoa humana (art. 5º, X), o principio da inafastabilidade

do poder judiciário (art. 5º, XXXV), o princípio da reserva legal (art. 5º, XXXIX), do

devido processo legal (art. 5º, LIV), o princípio do contraditório e ampla defesa (art.

5º, LV) e o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII).

Estes princípios serão sempre fundamentos, ao lado da alegada violação ao

direito de ir e vir dos militares, frente a uma eventual e questionada aplicação de pu-

nição disciplinar restritiva de liberdade. De plano se diga que há um impeditivo cons-

titucional quanto a matéria (impossibilidade jurídica do pedido) calcada no art. 142, §

2º - “não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”. Este

impeditivo está em harmonia com o inciso LXI, do art. 5º, do mesmo diploma:

“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fun-

damentada de autoridade judiciária competente, salvo os casos de transgressão

militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.

A proibição advirta-se, não é absoluta. O Judiciário, até mesmo em decor-

rência da inafastabilidade de sua apreciação, não entrando no mérito do ato admi-

nistrativo (que é prerrogativa do Comandante), poderá aferir, juridicamente, alguns

requisitos próprios do ato administrativo disciplinar, como a competência, a legalida-

de e as formalidades da medida restritiva de liberdade.

Fundamentalmente, devem restringir-se a três, as alegações pertinentes à

análise pelo Judiciário do ato administrativo disciplinar militar: se a autoridade militar

é competente para proferir o ato; se existe previsão legal para impor a punição; se

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foi disponibilizada a ampla defesa e o contraditório para o pleno exercício do direito

de defesa.

Podemos concluir que a essência da sociedade militar esta lastreada nos

princípios da hierarquia e da disciplina, mas mesmo sendo uma sociedade peculiar,

esta inserida na administração pública brasileira como parte de um todo, que deverá

obedecer aos princípios seguidos pelos demais administradores públicos, além da-

queles já citados do art. 5º, também os previstos no art. 37º, caput, da Carta Magna:

legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Os direitos fundamentais dos militares devem ser respeitados, assim como

qualquer outro cidadão, pois antes de serem militares, são cidadãos brasileiros, é

fato que a carreira das armas requer certo despojamento de liberdade. Quem nela

não se enquadra, deve procurar seus objetivos no amplo domínio da vida civil, onde

a liberdade e a livre iniciativa constituem valores, entretanto a sociedade militar deve

submeter-se aos princípios gerais do Direito. Pode e deve ser submetida ao controle

do Poder Judiciário, do qual a ninguém é dado furtar-se em um Estado Democrático

de Direito. Conquanto se tenha como certo que o uso do poder é prerrogativa das

autoridades, não raras vezes estas dele abusam, seja pela prática do excesso de

poder, seja pelo desvio de finalidade de seus atos.

Entretanto, este controle das punições disciplinares pelo Poder Judiciário

deverá se restringir a parte legal do ato administrativo militar, quais sejam: A compe-

tência, que resulta da lei e por ela é limitada; a finalidade, que é o objetivo de inte-

resse público a atingir; a forma, que é requisito vinculado e imprescindível, no caso

o devido processo legal e; o motivo, que é a situação de direito ou de fato que auto-

riza a realização do ato administrativo. Em resumo jamais deve o Judiciário analisar

o mérito do ato administrativo, sob pena de abalar os princípios fundamentais da

hierarquia e da disciplina, base da existência dos milicianos.

O sistema jurídico militar vigente no Brasil pressupõe uma indissociável rela-

ção entre o poder de mando dos Comandantes, Chefes e Diretores Militares (confe-

rido pela Lei e delimitado por esta) e o dever de obediência de todos os que lhe são

subordinados, relação esta tutelada pelos Regulamentos Disciplinares e pela legis-

lação penal militar.

Em virtude disso, pode-se deduzir que todas as punições administrativas

que restrinjam a liberdade de locomoção (prisão ou detenção), sem uma motivação

expressa e exaustiva, nos termos da legislação militar, são ilegais, por falta de

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fundamentação no ordenamento jurídico. Por fim conclui-se que apesar da

Constituição Federal vedar o instituto do habeas corpus em sede de transgressão

disciplinar, esta determinação é mitigada por nossos tribunais, conforme podemos

constatar nas recentes decisões em favor do deferimento de habeas corpus no caso

de sanção disciplinar militar, para desconstituir restrição ao direito de liberdade

individual, em decorrência de o ato punitivo estar viciado em sua forma legal,

abstendo-se de julgar, quando o pedido refere-se ao mérito administrativo da

questão.

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