universidade tecnolÓgica federal do...
TRANSCRIPT
UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ
DEPARTAMENTO ACADÊMICO DE LINGUAGEM E COMUNICAÇÃO
ESPECIALIZAÇÃO EM ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
THAÍS LOTTO NICOLA
O CARÁTER ULTRARROMÂNTICO PRESENTE NO SAMBA-CANÇÃO:
RECRIAÇÃO DA ESTÉTICA ULTRARROMÂNTICA
MONOGRAFIA DE ESPECIALIZAÇÃO
CURITIBA
2015
THAÍS LOTTO NICOLA
O CARÁTER ULTRARROMÂNTICO PRESENTE NO SAMBA-CANÇÃO:
RECRIAÇÃO DA ESTÉTICA ULTRARROMÂNTICA
Monografia apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Especialista
em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura,
pelo Departamento Acadêmico de Linguagem
e Comunicação da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná.
Orientadora: Profª. Mariana Sbaraini Cordeiro
CURITIBA
2015
Ministério da Educação
Universidade Tecnológica Federal do Paraná Departamento Acadêmico de Linguagem e Comunicação - DALIC
Especialização em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura - ELPL
TERMO DE APROVAÇÃO
ALUNO: Thaís Lotto Nicola Polo: Polo Jaú
TÍTULO DA MONOGRAFIA:
O caráter ultrarromântico presente no samba-canção: recriação da estética
ultrarromântica
Esta monografia foi apresentada às 10:30:00 AM h do dia 11/28/2015 como requisito
parcial para a obtenção do título de Especialista no curso de Especialização em Ensino de
Língua Portuguesa e Literatura da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus
Curitiba. O candidato foi argüido pela Banca Examinadora composta pelos professores
abaixo assinados. Após deliberação, a Banca Examinadora considerou o trabalho:
1 Aprovado
2 x Aprovado condicionado às correções Pós-banca, postagem
da tarefa e liberação do Orientador.
3 Reprovado
Professora Mariana Sbaraini Cordeiro
UTFPR – PR
(orientador)
Professor Márcio Matiassi Cantarin
UTFPR – PR
Professora Maurini de Souza
UTFPR – PR
OBS: O DOCUMENTO ORIGINAL ENCONTRA-SE ARQUIVADO NA SECRETARIA DO
CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA.
RESUMO
NICOLA, Thaís Lotto. O caráter ultrarromântico presente no samba canção: recriação da
estética ultrarromântica. Curitiba, 2015. 26 fls. Monografia. (Especialização em Ensino de
Língua Portuguesa e Literatura) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Campus
Curitiba, 2015.
O samba-canção é um gênero musical pertencente à música popular brasileira e possui em
sua temática um forte apelo ao romantismo em sua essência, identificando-se, portanto, com
o ultrarromantismo. Esse gênero musical teve seu apogeu na década de 50 com a ajuda de
intérpretes e compositores tais como: Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa,
Adelino Moreira, Dalva de Oliveira, Angela Maria, Maysa, Francisco Alves e Nelson
Gonçalves, entre tantos outros. Com origem em classes menos favorecidas do Rio de Janeiro,
o samba- canção utilizava em suas letras moldes linguísticos importados de realidades bem
distintas das suas, de modo a espelhar um desejo de ascensão social por parte de seus
compositores, bem como o ganho de seu espaço entre classes sociais de maior prestígio.
Por meio de um paralelo entre o samba-canção e o ultrarromantismo, ressaltam-se as
semelhanças existentes entre ambos, desde o modo de vida do homem-poeta até sua
expressão lírico-amorosa que encerra em si as desventuras do amor, os desejos de morte e
autopunição, a presença da mulher amada e a resignação diante do destino.
Palavras-chave: Samba-canção; Ultrarromantismo; Música popular brasileira
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 5
2 SAMBA – DAS ORIGENS À CONSOLIDAÇÃO ................................................... 7
2.1 O SAMBA-CANÇÃO ................................................................................................ 9
2.1.1 O kitsch na linguagem ........................................................................................... 10
2.1.2 Características da linguagem ................................................................................. 11
3 SAMBA-CANÇÃO E ULTRARROMANTISMO ................................................ 15
4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS .............................................................. 18
4.1 ANÁLISE DE COMPOSIÇÕES DO SAMBA-CANÇÃO ..................................... 18
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 24
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 25
5
1 INTRODUÇÃO
O estudo que permeia o desenvolvimento deste trabalho tratará de abordar o samba-
canção, gênero da música popular brasileira surgido na década de 1930, em seus mais
diversos aspectos, chegando até a verificação de pontos de convergência entre ele e a
segunda geração Romântica do século XIX, o ultrarromantismo.
Veremos que tanto o ultrarromantismo, quanto o samba-canção, abordam o amor e
suas desventuras em sua temática. Desse modo, podemos aproximar, comparar e distinguir
estas diferentes manifestações artísticas buscando seu elo fundamental: a necessidade
humana de manifestar-se e de criar a ficção.
O objeto de estudo desse trabalho será a literatura em paralelo com o gênero musical
samba-canção. Apresentaremos quais são as formas de criar um cruzamento entre as
diferentes linguagens artísticas: música e literatura. Os objetivos do trabalho visam ampliar
o conhecimento do leitor de literatura em relação a outras artes; encontrar pontos de
aproximação entre composições do samba-canção com as características presentes em
poemas do ultrarromantismo; aproximar as diferentes linguagens por meio de temas
semelhantes das duas manifestações artísticas: o amor e suas desventuras.
Primeiramente, será retratada a história do samba, desde suas origens até sua
consolidação enquanto ritmo genuinamente brasileiro, que também originou diversas
vertentes, dentre elas: o samba-canção. Para propiciar ao leitor uma efetiva compreensão do
gênero musical em análise, será abordado o contexto socioeconômico de seu surgimento que
justificará todo o seu desenvolver, mediante panorama histórico. Assim, serão utilizados
como autores Jairo Severiano, para dar embasamento quanto às origens do samba-canção,
autores que exemplificarão o contexto do gênero citado: Beatriz Borges (1982), Ribeiro
(2006), Caldas (1985), Napolitano (2007) entre outros.
O leitor poderá conhecer também os representantes desse gênero musical em
análise. Representantes como: Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, Dalva de Oliveira e
Maysa Monjardim. Os dois primeiros figurando a classe de compositores do gênero, e as
duas seguintes caracterizando a maneira de interpretação dos sambas-canção que,
juntamente com os compositores, acabam por participar da criação das canções e dar-lhes
ainda maior pungência romântica.
6
Por se tratar de um gênero que tem por temática o amor e suas desventuras, o samba-
canção tem seus caminhos cruzados pelo kitsch que é algo por que se atrai, mas não
se consegue assumir como artístico (BORGES, 1982). O kitsch na linguagem será tratado
detalhadamente e exemplificado na linguagem do samba- canção.
A posteriori, este estudo apresentará uma explanação do que foi, como surgiu e se
desenvolveu a segunda geração Romântica do século XIX, ou seja, o Ultrarromantismo, com
vistas a fornecer ao leitor a formação das bases necessárias para a visualização e
compreensão das influências ultrarromânticas no samba- canção, no que tange a temática
e a linguagem. Usaremos críticos literários como Bosi (2000), Candido (1984), Coutinho
(1986) entre outros.
Como material de análise para este trabalho, serão citadas letras de alguns dos mais
importantes sambas-canção para aproximar a temática e linguagem destas duas
manifestações artísticas. Desse modo, será analisada a composição Cabelos brancos, de
Herivelto Martins; Vingança e Meu pecado, de Lupicínio Rodrigues; Neste mesmo lugar,
composta por Klécius Caldas e Armando Cavalcanti e Bom dia tristeza, de Vinicius De
Moraes e Adoniran Barbosa. A partir delas, desenvolver-se-á uma análise que trará à
luz vestígios ultrarromânticos presentes em suas entrelinhas.
Desse modo, a partir da utilização de uma metodologia de caráter teórico
bibliográfico no desenvolver deste trabalho, sua leitura fornecerá subsídios que conduzirão
o leitor por caminhos que o levarão ao alcance de seu objetivo central, ou seja, o
reconhecimento da existência de diversos pontos de convergência entre o samba-canção e o
ultrarromantismo.
7
2 SAMBA – DAS ORIGENS À CONSOLIDAÇÃO
O samba é um gênero musical essencialmente urbano e carioca originário da mistura
de estilos musicais de procedência africana e brasileira. O termo da palavra samba é de
origem africana e tem seu significado ligado às danças típicas tribais do continente. Nei
Lopes, compositor, historiador e estudioso da cultura afro-brasileira elaborou a seguinte
definição do vocábulo samba:
O vocábulo samba é africaníssimo. [...] legitimamente banto, das bandas de
Angola e Congo. Samba entre os quiocos de Angola, é verbo que significa
cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito. Entre os bacongos angolanos e
congueses o termo designa uma espécie de dança em que um dançarino bate
contra o peito do outro. (NEI LOPES apud SEVERIANO, 2008, p.69).
A essência desse estilo musical foi fixada em solo brasileiro na época do Brasil
Colonial, com a chegada da mão-de-obra escrava em nosso país. Nessa época o samba
era tocado com a ajuda de alguns instrumentos de percussão como: tambores, surdo, timbau
e acompanhados por violão e cavaquinho.
E sobre a origem do gênero importado da África e posteriormente da Bahia, o autor
Vasconcelos acrescenta:
[...] com a vinda dos escravos da África para o Brasil, vieram também suas
músicas e suas danças e, ao que tudo indica, foi na Bahia onde começaram a surgir
as primeiras sessões de samba, ou seja, danças de negros, sagradas e profanas.
Essas danças foram aos poucos tomando forma autônoma, distinguindo-se das
danças africanas originais. Mais tarde, baianas como Tia Ciata [...] e baianos como
Hilário Jovino transferiram-se para o Rio e continuaram aqui a promover, em suas
casas, na Rua da Alfândega e adjacências, sessões de samba e de candomblé.
A partir de 1870, pelo cruzamento ou influência recíproca e sucessiva do
lundu, polca [...], habanera, maxixe e choro, começaram a aparecer músicas que
tendiam ritmicamente para o samba [...] (VASCONCELOS, 1977, p. 25)
O primeiro samba que se tornou sucesso nacional, nasceu em agosto de 1916
em uma roda de batuqueiros, integrada por Ernesto dos Santos (Donga), Germano Lopes da
Silva, Hilário Jovino Ferreira, José Barbosa da Silva (o Sinhô), João da Mata e tia Ciata. Essa
composição foi chamada “O roceiro”, que Donga registrou com o título de “Pelo telefone”
(CALDAS, 1985).
A princípio a elaboração do samba era feita de maneira coletiva, os compositores
trabalhavam juntos na criação, não havia interesse comercial porque o samba não era visto
como meio de ganhar dinheiro, mas era produzido por prazer e diversão. Geralmente, as
8
letras de sambas retratam a vida e o cotidiano de quem morava nas cidades, com destaque
para as populações de classe mais baixa.
Mais tarde, com a comercialização, as composições do samba passa a pertencer a
quem o registrasse primeiro. O novo ritmo firmou-se no mercado fonográfico e, a partir da
inauguração do rádio em 1922, chegou às casas da classe média (CALDAS, 1985).
Mas a promoção do samba à condição de símbolo da identidade cultural brasileira
se deu em meio a duas perspectivas: a da valorização da "tradição" e a da sua
"modernização". Em determinados momentos, tais perspectivas oscilaram entre movimentos
de confluência e oposição. A ideia de “tradição” se refere à década de 1930, no qual o
samba tem como espaço segmentos sociais populares como origem. Conforme explicitado
por Napolitano, nesse momento verificava-se o movimento de subida ao morro como
maneira de entrar em contato direto com essa "tradição":
A partir de 1935, incrementou-se a prática das visitas organizadas aos morros
e às escolas de samba, por parte de personalidades nacionais e estrangeiras,
ciceroneadas pelos mediadores de plantão: artistas cultos, intelectuais boêmios e
sambistas das comunidades envolvidas. Esse movimento simbólico buscava
reafirmar a nacionalidade ancorada nas tradições populares, para reinventar as
bases da brasilidade e redirecionar os caminhos da arte brasileira, culta e popular
(NAPOLITANO, 2007, p.33)
Já a perspectiva de “modernização” se refere ao desejo de alguns indivíduos em
refinar o samba, ou seja, melhorar sua qualidade poética e abandonar das temáticas ligadas
à malandragem como a apologia à vadiagem. Ary Barroso parece ter traduzido plenamente
essas metas em Aquarela do Brasil. Essa composição conseguiu conciliar "tradição" e
"modernização". Portanto, o samba deveria "abrir a cortina do passado" nacional e realizar
a fusão com a tradição, sem negligenciar a modernidade (NAPOLITANO, 2007, p.44-5).
Na década seguinte, a polarização entre essas duas perspectivas se acentuou. O
debate entre os que valorizavam o refinamento da música popular e os adeptos da
preservação da "pureza" das nossas tradições culturais aparece nas páginas da Revista da
Música Brasileira, editada por Lúcio Rangel, que circulou durante os anos de 1954 e 1955.
Conforme nos mostra a pesquisadora Saraiva (2007), essa revista foi porta-voz de um amplo
debate sobre o jazz, que era visto por alguns como fonte de procedimentos que
descaracterizavam a música brasileira, mas por outros, como um símbolo de
"modernização".
9
O samba é o ritmo que melhor expressa musicalmente as zonas urbanas. E é neste
contexto que surge o gênero samba-canção.
2.1 O SAMBA-CANÇÃO
O grande aumento no número de pessoas nos centros urbanos desencadeou um
consequente crescimento na quantidade de prédios, bem como a concentração de classes
menos favorecidas nos subúrbios, que devido também ao número de habitantes por moradia,
levou à transferência do centro familiar e social de casa para espaços externos, daí o
aparecimento dos bares de esquinas. É nesse cenário que se encontram os compositores do
gênero em análise.
Justamente nos bares de esquinas é que nasce o samba-canção, com caráter coletivo,
em sua grande maioria, de parcerias que proporcionavam um lapidar por meio de palpites e
correções pelos que mais dominavam a norma culta, até transcrições musicais em partituras
pelos que dominavam teoria musical, como meio de fixar e registrar fielmente as
composições (RIBEIRO, 2006).
Pery Ribeiro, filho da cantora Dalva de Oliveira e do compositor Herivelto Martins,
exemplifica esta parceria entre eruditos e músicos ordinários do samba- canção citado
anteriormente, por meio de um relato do maestro e compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos
que se surpreende com o talento de Herivelto Martins.
Herivelto, como é possível, você não sabendo uma nota musical, tocando mal
esse violão, ser autor de uma maravilha como Ave Maria no morro? Enquanto
eu, formado, erudito, não consegui ainda fazer algo assim? (VILLA-LOBOS apud
RIBEIRO, 2006, p. 30).
Essa parceria chega à familiaridade e permeia todo o cenário de surgimento e
desenrolar do samba-canção, bem como a vida de seus autores tão associada ao seu meio
em uma relação intrínseca.
O samba-canção, enquanto gênero musical, passou por dificuldades desde seu
aparecimento até definir-se como tal. Surgiu por volta de 1928, por compositores
semieruditos, e era chamado de samba de meio de ano, já que não se encaixava nos
moldes nem do samba, nem da canção, mas uma espécie de misto de ambos. “Enquanto a
melodia canta como canção, o ritmo marca o samba, e acaba não sendo nada
propriamente dito.” (LYRA apud BORGES, 1982, p.15). Assim, Borges (1982, p.15),
define que “é através de seus principais temas que o samba-canção melhor se define”.
10
A Enciclopédia da música brasileira (1977, p. 684), define o samba-canção como
“samba cuja ênfase musical recai sobre a melodia, geralmente romântica e sentimental,
contribuindo para amolecer o ritmo”.
Dentre seus principais compositores, podemos destacar: Cartola, Noel Rosa,
Lupicínio Rodrigues, Herivelto Martins, Ataulfo Alves, Adelino Moreira; os quais
protagonizaram uma tendência que além de musical era principalmente poética.
“Nos anos 40 e 50, em conjunção com a voga de música romântica estrangeira, o
samba-canção faz muito sucesso e consagra alguns de seus maiores cultores” (MATOS,
2013, p. 130).
Desse modo, esse gênero caracteriza-se pelo grau de rebuscamento de suas
metáforas, que revelam uma tentativa de aprimoramento linguístico, de modo a espelhar um
desejo de ascensão social por meio da arte. Com letras de poética lírico amorosas pungentes,
o samba-canção é um reflexo de padrões estéticos superiores tomados de empréstimo do
Romantismo. Sua poética caracteriza-se pela presença da sentimentalidade e do excesso,
tanto formal quanto temático (BORGES, 1982).
A tomada de padrões da arte culta na produção popular origina um gênero misto
que confunde o bom e o mau gosto. Daí esse gênero ser caracterizado como Kitsch. Nas
palavras de Borges (1982, p. 234), o Kitsch “acaba sendo tudo aquilo por que nos atraímos
e que não temos coragem de chamar de artístico.”
2.1.1 O kitsch na linguagem
Os compositores do samba-canção se utilizam de uma linguagem literária e
rebuscada para conseguir status cultural para poder estar em meio às camadas mais
cultas. Com isso, abandonam a linguagem cotidiana e popular na busca de uma elevação
estilística para que a obra seja considerada original, pois acredita-se que para haver
poeticidade é preciso originalidade. Assim, no samba-canção a poeticidade pode virar
sinônimo de complicação.
Embora tente reproduzir uma cultura superior, não se pode dizer que este gênero
negue sua origem popular, posto que é por meio dela que ele atinge o grande mercado.
As composições desse gênero se valem de um modelo romântico, culto, antigo,
expresso em metáforas gastas, em tom demasiado solene, em ordem indireta que
ressaltam uma espécie de não valorização de suas origens (MATOS, 2013). Assim, pode-
se situar o samba-canção no terreno do Kitsch devido a sua dependência em relação a outra
11
matriz formal, ou seja, por se prender a um modelo de arte culta não pertencente à realidade
de seus compositores.
Decorrente da arte culta, o kitsch se marca como a arte da classe média ou
baixa, que na perseguição do mito da grande arte, copia e imita procedimentos,
muitas vezes exagerados, atropelando-os sem muita organicidade, caracterizando-
se pelo excesso e pelo rebuscamento (BORGES, 1982, p. 112).
Outro fator que coloca o samba-canção enquanto kitsch é a ingenuidade encontrada
nessas produções, tida como fundamental à criação e à recepção, revelando a fé no poder e
sinceridade da arte expressa: o artista se coloca pessoalmente nas composições, na maioria
das vezes, as temáticas lhe são vivenciadas, e o receptor crê nisso, pois o compositor
enriquece as composições transformando sua vivência em arte (BORGES, 1982).
O conformismo presente nos sambas-canção também lhes confere o título de kitsch.
A ideia de pecado vinculada à religiosidade e o “castigo” são comuns e denotam forte
ligação com um fatalismo cristão. A vida, sempre detentora de um destino verte-se no
lamento ou na exaltação do que lhe foi dado, com total resignação. Todavia, a válvula de
escape acaba por ser o excesso e a sentimentalidade das letras (BORGES, 1982). Embora
ocupem terrenos culturalmente distintos, o sublime e a vulgaridade, a arte popular sempre
se nutriu da arte culta.
2.1.2 Características da linguagem
Os modernistas da primeira geração, primavam pela dissonância na linguagem
porque visavam uma quebra com o padrão vigente. O contrário do samba-canção, que busca
a consonância. Há um desejo de compor de acordo com um valor estético, mesmo que este
padrão seja antigo. Deste modo, usam as normas que conhecem: o padrão romântico
rebuscado.
As composições do samba-canção buscam o estilo do exagero romântico ou como é
caracterizado por Borges (1982, p. 56) “o derramamento que engloba o exagero e a grande
ênfase na expressão da linguagem”. A autora traz o conceito derramamento em oposição
à síntese. O segundo termo ligado a linguagem das letras da bossa nova.
O exagero na linguagem é o que peca em termos estéticos desde a queda dos
padrões românticos. Isto pesará mais para um público exigente e com concepções modernas.
Em termos musicais brasileiros, este público se concentra na bossa nova.
12
A bossa nova está centrada num universo mais sofisticado. A música sai da classe
média e é orientada e consumida por ela. A criação das composições participa de um
processo no qual a criatividade combina beleza com clareza. Assim, a bossa nova vem
acentuar essa diferença entre a síntese moderna em contrapartida com o
derramamento do samba-canção (ALBIN, 2003).
O termo “derramamento” pode ser interpretado como uma linguagem vasta,
prolixa e excessiva, decorrente da tensão causada pelas desventuras amorosas.
O público da bossa nova, ouvinte intelectualizado ou bem informado, reconhece sua
própria dicção. Há uma aceitação desta música, mediante a uma identificação do ouvinte
com as ideias, contexto e valores presentes nas composições, fazendo com que haja o
reconhecimento por meio de semelhanças.
Diferentemente do samba-canção, que traz a diferença como forma de
reconhecimento, pois faz com que esse mesmo público se encante ou se deslumbre diante
de uma produção esteticamente extravagante, enfática e tida como de mau gosto, segundo
o público da bossa nova, pois que é contrário a sua concepção (BORGES, 1982).
O samba-canção aborda o modelo de um comportamento romântico que sofre pelo
seu amor mal sucedido e não mostra nenhum tipo de superação em relação a essa dor. Isso
tudo, não impede, no entanto, que o ouvinte da bossa nova provavelmente se emocione ao
ouvir um dramalhão de Lupicínio Rodrigues, pois este tipo de música fala do
sentimento de todos, ainda que censurados pelos ditames do bom gosto moderno.
Esse discurso romântico consegue aproximar dois públicos: o popular, que se
encanta com o rebuscamento, e o público mais sofisticado que se encanta a partir da
relação de estranhamento, pois este público está diante de algo não mais previsível como as
composições de sucesso popular. Quando se deparam com a cafonice sentimental, isto
causa-lhes estranhamento que até emociona, pois esse sentimentalismo todo é capaz de
mexer em partes não admitidas e impublicáveis porque revelam os sentimentos que muitas
vezes estão adormecidos. (WISNIK apud BORGES, 1982).
Há outro aspecto na linguagem do samba-canção: a redundância.
Essa redundância se dá pelo fato de o compositor, com medo de não ser
compreendido, repetir-se muitas vezes para assegurar que a sua mensagem seja
bem enfatizada e entendida. Com isso, abusa das imagens, dos conectivos e demais
elementos de ligação. Essas repetições podem causar confusões [...] duplo sentido
na letra, o que acaba por revelar significados ocultos. (BORGES, 1982, p. 62).
13
A redundância se opõe à economia, sendo assim surge outro fator que se alia ao
derramamento: a extensão dos versos. O eu lírico num desejo de conter a dor e os conflitos
interiores acaba por passar esse desejo de controle para a linguagem que acaba por se
alongar nos versos e usar termos ou expressões prolixos.
Ao dirigir-se à escolha vocabular, a maioria das produções procura ao máximo
se desprender da linguagem comum para a busca de palavras literárias, pois é por meio
da escolha vocabular refinada que depende a originalidade da letra e a capacidade de causar
emoção. Assim, Borges (1982, p.52), afirma que “a única maneira de o autor do samba-
canção enfeitar e dar brilho a sua realidade é através da linguagem”.
Muitas vezes nas escolhas de linguagem há combinações de rimas e palavras que
deixam outros significados aparecerem mesmo que não intencionalmente. Essa espécie de
“ato falho” é chamado pela autora de “fratura significativa” (BORGES, 1982, p. 68).
De maneira geral, o samba-canção procura uma consonância com os valores
burgueses românticos. Essa consonância nunca é absoluta e o romantismo acaba algumas
vezes tornando-se barroco, devido aos excessos de imagens, exageros e o sentimento que se
torna mais universal. Assim, procura-se esquecer a existência cotidiana e circunstancial
como: a pobreza, o dinheiro e a injustiça.
Sendo assim, para exemplificar, a injustiça desloca-se e passa a ser vista apenas
como injustiça amorosa: a grande metáfora do samba-canção. Dessa forma, o eu lírico
sempre viverá conflitos amorosos, melancolia e tristeza advinda desses conflitos,
semelhante ao ultrarromantismo no qual o poeta rejeitado passará sua vida em extremo
sofrimento, conformismo e autopiedade. Essas semelhanças com o Ultrarromantismo serão
mais exploradas a seguir.
Cabe ainda mostrar os principais valores que estão embutidos nas letras. A
idealização da mulher provoca uma série de consequências nesse universo de valores.
Justamente por ser idealizada, a ela cabe a culpa por toda e qualquer desilusão. Por isso,
homens e mulheres aparecem sempre em terrenos diferentes. A mulher, em boa parte das
letras, não consegue compreender e nem sentir o sofrimento amoroso, pois não possui a
lógica e a honra que são características únicas do homem nas letras do samba-canção.
Sendo assim, observa-se que o samba de um modo geral constitui-se num discurso
masculino e reforça a cumplicidade entre os homens.
Outros valores vinculados a essas músicas estão ligados ao esquema maniqueísta
baseado na ideologia cristã e burguesa. Assim as músicas tratarão desses esquemas como o
14
“bem” e o “mal”, que nestas letras firmam seus conceitos sobre bases sólidas do tema da
traição.
Apesar de seus valores, o samba-canção trabalha com temas universais e ligados
às dores sentimentais. A dor é elemento principal nessas letras, cantá-la
pode ser uma forma catártica de ser livre dela, mas cantá-la constantemente pode
ser uma maneira de cultivá-la também. Sendo assim, o sofrimento pode ser
exorcizado através do lamento (BORGES, 1982, p.95).
De uma maneira ou de outra tais letras buscam um distanciamento entre a paixão,
que lhe serve de tema e o instrumento de que se utiliza: a linguagem. Há sempre uma
interdição da própria linguagem diante do sofrimento, assim a linguagem não dá
conta do mesmo, e é a partir daí que ultrapassa os limites do bom gosto, segundo o público
da bossa nova. O lamento e o sofrimento transferem-se para uma linguagem literária, de
exageros e de metáforas rebuscadas que não combinam com aspirações mais modernas.
Como já abordada, a elevação da linguagem busca uma originalidade na produção
artística, para assim, ser considerada poética. Esse preciosismo tratará de temas não tão
raros, mas comum a todos como: paixão, traição, saudade, despedidas, ou seja, tratará dos
sentimentos e desventuras amorosas e o modo como o eu lírico as enfrenta. Este será o ponto
de encontro com o ultrarromantismo.
15
3 SAMBA-CANÇÃO E ULTRARROMANTISMO
O movimento literário do Romantismo tem como lugar de origem a Europa e surge
como sendo fruto de momentos de turbulência e agitação social. Sendo assim, essas
agitações refletem em uma literatura também de conflitos, porém tais conflitos estão ligados
ao mundo interior do próprio homem. Segundo interpretação do sociólogo Mannheim
apud Bosi (2000, p.10), “o romantismo expressa o sentimento dos descontentes”.
Bosi (2000, p.10) define o romantismo como sendo “um progressivo dissolver- se de
hierarquias (Pátria, Igreja, Tradição) em estados de alma individuais”. Moisés (2000, p.117)
mostra que “Os românticos vivem voltados para dentro de si, na sondagem de seu mundo
interior, onde vegetam sentimentos vagos”.
Em termos de Brasil, o Romantismo contribuiu para a firmação de uma literatura
nacional. A poesia romântica se manifestou no Brasil em 1836 com Suspiros Poéticos
e Saudades de Gonçalves de Magalhães. Os exageros do romantismo ideologicamente
levaram ao movimento que ficou conhecido como Ultrarromantismo. Trata-se assim de um
momento literário com as normas e ideais do romantismo, com a exaltação da
subjetividade, do individualismo, do idealismo amoroso e etc (BOSI, 2000).
Os ultrarromânticos de maior destaque no Brasil são Alvares de Azevedo, Junqueira
Freire e Fagundes Varela que buscam em poetas europeus como: Byron, Goethe e Musset,
inspiração para uma poesia de caráter intensamente subjetivo.
A segunda geração romântica é marcada por uma postura de exagero sentimental
que se torna inconfundível. Inspirados por escritores ingleses como Byron e Shelley,
os representantes dessa geração liam uma poesia que exaltava os sentimentos arrebatados
ao mesmo tempo em que apresentava o poeta isolado da sociedade, incompreendido por
defender valores morais e éticos contrários aos interesses econômicos da burguesia, como
afirma Candido: “Esses poetas levaram a melancolia ao desespero e o sentimentalismo
ao masoquismo, além de os temperar frequentemente pela ironia e o sarcasmo [...]” (2002,
p. 51).
Álvares de Azevedo foi o mais destacado autor ultrarromântico brasileiro. O autor
sempre explorou o tema dos desesperos passionais, porém sua obra é dividida entre: ironia,
amor e evasão da realidade nos sonhos ou na morte. Segundo Candido (2002, p. 54),
Álvares de Azevedo teve o “dom de passar de um pólo ao outro, modulando a dor e o
sarcasmo, o patético e o cômico, a grandiloquência e o prosaísmo, com uma versatilidade
16
que era programada e ele manifesta pela adesão à teoria romântica dos contrastes, a
binomia, como a chamava.” Desse conflito, nasce sua identidade literária, que o torna
único entre os ultrarromânticos, e que será definida pelo modo contrastante de tratar os
temas da época.
Outra faceta do projeto literário ultrarromântico será exemplificada por
Casimiro de Abreu. Em oposição à expressão pessimista do sentimento amoroso, típica, por
exemplo, de Álvares de Azevedo, que fala da solidão e da morte, Casimiro de Abreu
fala de sonhos de amor e suspiros de saudade. Suas figuras femininas não vêm associadas a
imagens de morte. (CANDIDO, 2002).
Junqueira Freire também fez parte de autores da segunda geração. Sua temática está
ligada “ao egocentrismo, patente num curto escrito autobiográfico que exprime a vocação
romântica da autoanálise desalentada, à qual não faltava certo prazer no sofrimento [...]”
(CANDIDO, 2002, p. 60).
Outro renomado autor foi Fagundes Varela que tem como principal característica
uma poesia confessional. Sua vida foi marcada por uma tragédia pessoal: seu primeiro filho
morreu com três anos de vida. A dor provocada por essa perda levou-o à vida boêmia e ao
alcoolismo. Em homenagem ao filho, compôs um de seus poemas mais conhecidos “Cântico
do calvário”.
O samba-canção faz uma releitura desses sentimentos ultrarromânticos, pois ambos
possuem as mesmas características e temáticas como: a solidão advinda do desprezo e
abandono do ser amado que acaba por exprimir um pessimismo doentio e descrença
generalizada. Temas que se repetem na literatura, desde as cantigas de amor, e em outros
estilos musicais, como por exemplo, o sertanejo universitário.
Tendo ainda como tema, o desejo de vingança, o tédio pela vida e até o chamado
Byronismo, relativo ao poeta inglês Lord Byron, uma atitude amplamente praticada pelos
românticos brasileiros da segunda geração, que é caracterizada por um estilo de vida
boêmia, voltada para o vício, para os prazeres da bebida, do fumo e do sexo, movidas pelo
egocentrismo, narcisismo, pessimismo e angústia (BOSI, 2000).
Os poetas da segunda geração romântica oscilavam o seu estado de espírito, o que
refletia em uma poesia de exagero, narcisismo e egocentrismo. Esses poetas eram dotados
de máscaras, pois ora vestiam a máscara de devassos, ora a máscara da loucura, embriaguez,
que por vezes cediam lugar às máscaras da ingenuidade e sensibilidade ao amar
(CANDIDO, 1984).
17
Tanto os poetas ultrarromânticos quanto os compositores do samba-canção
possuíam uma vida boêmia e plena de conflitos amorosos. Almeida Garrett, um dos mais
importantes representantes do Romantismo português, tem em seus poemas o reflexo de
dores de angústia de seus relacionamentos amorosos, assim como os demais poetas
românticos, bem como no samba-canção.
Um exemplo disso é o compositor Herivelto Martins que diante do sofrimento da
separação da esposa, a cantora Dalva de Oliveira, compartilha com o público por meio de
suas músicas a crise e a angústia que estava vivendo. Tais letras são rebatidas pela ex-
mulher, Dalva, e a partir daí começa um verdadeiro duelo musical. Ambos expõem os
sentimentos de decepção e mágoa em suas letras (RIBEIRO, 2006).
Amor, medo, solidão e sentimentos contraditórios e exagero sentimental são vividos
tanto pelos poetas ultrarromânticos quanto pelos compositores. Sendo assim, podemos
dizer que há uma recriação da estética ultrarromântica.
Faremos no capítulo a seguir análises de algumas composições do samba- canção,
buscando mostrar a semelhança das temáticas do Ultrarromantismo presentes no samba-
canção.
18
4 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Neste capítulo será desenvolvida uma análise comparativa entre algumas
composições do samba-canção. Tal análise trará à luz vestígios ultrarromânticos presentes
em suas entrelinhas, destacando como ponto de convergência o amor e suas desventuras.
4.1 ANÁLISE DE COMPOSIÇÕES DO SAMBA-CANÇÃO
Diante das comparações entre o samba-canção e o Ultrarromantismo é preciso, por
meio de análises das letras, mostrar esse caráter ultrarromântico que está presente nas
músicas. A primeira letra a ser analisada será a composição de Herivelto Martins,
interpretada por Sílvio Caldas, chamada Cabelos brancos.
Não falem desta mulher perto de mim
Não falem pra não lembrar minha dor
Já fui moço, já gozei a mocidade
Se me lembro dela me dá saudade
Por ela vivo aos trancos e barrancos
Respeitem ao menos os meus cabelos
Brancos
Ninguém viveu a vida que eu vivi
Ninguém sofreu na vida o que eu sofri
As lágrimas sentidas
Os meus sorrisos francos
Refletem-se hoje em dia
Nos meus cabelos brancos
E agora em homenagem ao meu fim Não falem desta mulher perto de mim
Esta letra traz a tristeza do eu lírico pela impossibilidade da união, temática
recorrente nos poemas ultrarromânticos, na qual mostra um esforço desesperador e
comovente do eu lírico em controlar seu sofrimento: “Não falem desta mulher perto de
mim/ Não falem pra não lembrar minha dor”. A autopiedade também é explicitada na letra:
19
“Respeitem ao menos os meus cabelos brancos[...] em homenagem ao meu fim/ Não
falem desta mulher perto de mim”. O uso do termo cabelos brancos se aplica como uma
metáfora de que todo o sofrimento e desfeita amorosa acabam por acelerar o processo de
envelhecimento.
Podemos aproximar a temática da composição Cabelos brancos, com o poema
ultrarromântico Por que mentias? de Álvares de Azevedo (1831-1852): “Por tua causa
desespero e morro.../ Leviana sem dó, por que mentias?/Sabe Deus se te amei! Sabem as
noites/ Essa dor que alentei, que tu nutrias!/ Sabe esse pobre coração que treme/ Que a
esperança perdeu por que mentias![...]. Tanto no poema quanto na canção há a atribuição
da dor da separação a mulher. O eu lírico em ambos os casos adoece pela dor da separação.
Assim, o estado da alma do eu lírico da canção se assemelha ao do romântico. “O romântico
é temperamental, exaltado, melancólico. Procura idealizar a realidade, e não reproduzi-
la” (COUTINHO, 1986, p.7).
Toda a tensão e sofrimento vivido pelo eu lírico acaba influenciando na linguagem.
Sendo assim, os versos acabam se alongando devido à oscilação que se estabelece entre o
derramamento (explosão, choro e briga) e o esforço do eu lírico em controlar sua angústia.
Na composição de Herivelto Martins, Cabelos brancos, não houve tanta extensão nos
versos como na letra de Lupicínio Rodrigues, Vingança:
Eu gostei tanto, tanto quando me contaram que lhe encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar, e que
quando os amigos do peito por mim perguntaram
um soluço cortou sua
voz, não lhe deixou falar
Mas eu gostei tanto, tanto, quando me contaram que tive mesmo de fazer esforço para ninguém notar. O
remorso talvez seja a causa do seu desespero
Ela deve estar bem consciente do que praticou, me fazer passar tanta vergonha com um companheiro e a
vergonha é herança maior que meu pai em deixou; mas
enquanto houver força em meu peito
eu não quero mais nada
20
só vingança, vingança, vingança aos santos clamar. Ela há
de rolar como as pedras que rolam na estrada sem ter nunca
um cantinho de seu pra poder descansar.
O discurso configurado pela extensão dos versos aumenta a impressão de
derramamento. Há um forte aspecto confessional na letra, no qual o eu lírico deixa
transparecer o orgulho ferido. Os níveis masculinos sobrepondo-se aos femininos também
estão presentes. Nessas composições, o companheirismo é algo que só se tem entre homens
e se sobrepõe-se a qualquer experiência amorosa.
Na letra, o ouvinte fica sem saber qual foi o mal cometido e quem é esse
companheiro: “Ela deve estar bem consciente do que praticou/ me fazer passar tanta
vergonha com um companheiro”. A impressão que se tem é que esse companheiro
presenciou alguma cena de abandono ou desprezo amoroso, daí a humilhação. E devido tal
humilhação, o eu lírico deseja vingança e o mal para a mulher.
Há grande exagero e ódio, o eu lírico enxerga apenas a si próprio, só se preocupa
com sua dor e com o seu mundo, assemelhando-se às características típicas dos românticos
da segunda geração, “[...] a oclusão do sujeito em si próprio” (BOSI, 2000, p.120). Há uma
busca de evadir-se em si mesmo, dando mais valor ao indivíduo do que ao coletivo.
Outra característica presente nas canções é a fuga da realidade. Na letra Meu pecado,
de Lupicínio Rodrigues, o eu lírico busca alívio na fé que é o consolo. Assim, o poeta
se dirige a Deus para reclamar de seus dissabores.
Deixa-me sofrer que eu mereço Pois um pouco que padeço, não paga nem um terço do que fiz
Tão horrível meu pecado
Que sendo assim castigado
É que me sinto feliz
Deus concedeu-me o direito
De eu mesmo ferir meu peito
Não quis me ouvir ou julgar
Bem feliz é todo aquele que erra E aqui mesmo na terra
Pode seu crime pagar
Joguei uma jovem ao rigor dos caminhos
21
A trilhar por um monte de espinhos
Vejam só a maldade que fiz
E quando a encontrei assim atirada,
doentia, tristonha e arruinada
Pus-me a rir desta pobre infeliz E hoje o remorso que trago comigo
Transformou-se em meu inimigo
E procura vingar-se em meu ser
Ando a vagar qual um louco morcego
Que procura fugir do sossego [...]
Observa-se nesta composição quase todos os valores e características do universo do
samba-canção: as metáforas rebuscadas combinadas com o registro coloquial, o
alongamento dos versos, a expiação da culpa, o kitsch, ou seja, a cafonice formal que rima
“sossego” com “morcego” e constrói versos como: “E quando a encontrei assim atirada/
doentia, tristonha e arruinada/ Pus-me a rir desta pobre infeliz”, no qual a redundância
aumenta o patético de uma construção se quer poética.
O homem é tido como onipotente, decide e perdoa, para logo em seguida se vitimar
diante da força arrebatadora da mulher, que normalmente, é quem castiga. A mulher ou
Deus, nunca o próprio homem. Assim, o eu lírico foge desta realidade de culpa, buscando
consolo em Deus. Podemos observar a fuga da realidade nas composições do samba-canção,
característica presente nos poetas ultrarromânticos. De acordo com Bosi (2000, p. 102), “o
eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à
evasão”.
Os poetas românticos buscavam a fuga para as desilusões na morte, pois segundo
eles, a morte garante o término da dor e desilusões da vida: “Pensamento gentil de paz
eterna/ Amiga morte, vem./ Tu és o nada,/Tu és a ausência das moções da vida,/Do
prazer que nos custa a dor passada [...]”. Os versos de Junqueira Freire revelam as
razões românticas para o culto da morte. Ela é amiga e dá paz a quem vive em agonia. Tanto
os poetas quanto os compositores não podem negar a força dos desejos, mas os associam a
um sentimento de culpa e destruição.
Outra característica do ultrarromantismo é o conflito interior causado por uma
desilusão amorosa, característica presente no samba-canção. A principal temática das
22
composições desse gênero musical é o desencontro amoroso. É importante destacar então, a
letra Neste mesmo lugar, composta por Armando Cavalcanti e Klécius Caldas, e interpretada
por Dalva de Oliveira:
Aqui, neste mesmo lugar, Neste mesmo lugar de nós dois, jamais poderia pensar
Que eu voltasse sozinho depois.
O mesmo garçom se aproxima,
Parece que nada mudou,
Porém qualquer coisa não rima
Com o tempo feliz que passou.
Por ironia cruel
Alguém começou a cantar
Um samba-canção de Noel,
Que viu nosso amor começar.
Só falta agora a porta se abrir
E ela ao lado de outro chegar
E por mim passar sem me olhar.
Só falta agora a porta se abrir
E ela ao lado de outro chegar E por mim passar.
Nesta composição observamos outros aspectos ultrarromânticos presentes como: a
solidão e a sensação de deslocamento do poeta depois de uma separação amorosa. Por causa
do sofrimento o eu lírico, assim como o poeta ultrarromântico, acaba se voltando ao passado
como uma forma de fuga desta dor: “Porém qualquer coisa não rima / Com o tempo feliz
que passou”, o presente nunca é bom ou satisfatório, por isso o sujeito se remete a uma
sessão nostálgica. Na poesia da segunda geração, temos o poeta Casimiro de Abreu que
volta ao passado com saudades da infância, no poema Meus oito anos. Sendo assim, o elo
entre o poema e a canção se dá pela nostalgia, pela crença de que o passado era bem melhor
que o presente, porém a nostalgia do poema se refere à infância, já a nostalgia da
canção se refere ao amor vivido.
23
Para finalizar as análises, veremos a letra Bom dia tristeza, composta por Adoniran
Barbosa e Vinicius de Moraes, e interpretada por Maysa:
Bom dia tristeza Que
tarde tristeza Você
veio hoje me ver Já
estava ficando
Até meio triste De estar tanto tempo
Longe de você
Se chegue tristeza
Se sente comigo
Aqui nesta mesa de bar
Beba do meu copo
Me dê o seu ombro
Que é para eu chorar
Chorar de tristeza
Tristeza de amar.
Além do conformismo, do eu lírico em já estar habituado a estar triste, encontram-
se também vestígios do chamado Byronismo, devido à atitude praticada pelo poeta que é
caracterizado por um estilo de vida boêmia, movida pelo pessimismo e angústia: “Se chegue
tristeza/ Se sente comigo/ Aqui nesta mesa de bar/ Beba do meu copo/ Me dê o seu ombro/
Que é para eu chorar”. Além desta atitude há também o fechamento do indivíduo em si
próprio, num devaneio melancólico. O sofrimento no samba-canção é quase que um status
do poeta- compositor.
Desse modo, podemos observar que tanto o samba-canção quanto o
ultrarromantismo se constituem como a expressão máxima de sentimentalismo. A
valorização das emoções pessoais constitui uma das motivações dos poetas e compositores,
pois o mundo interior é o que conta no momento da produção das suas obras.
24
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo abordado neste trabalho visou mostrar o paralelo que o samba- canção faz
com o ultrarromantismo. Para poder explicitar tais semelhanças, foi necessário selecionar
cinco letras de músicas dos principais compositores desse gênero musical, tais como:
Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, Vinicius De
Moraes e Adoniran Barbosa.
Por meio de análises, foi possível encontrar vestígios ultrarromânticos nas
composições do samba-canção, caracterizados por conflitos amorosos. A partir desses
conflitos, pode-se constatar que a dor do sofrimento amoroso refletiu em uma produção
artística em que o sujeito adquire uma postura pessimista e melancólica diante da vida e dos
relacionamentos que se assemelha a esta segunda geração romântica. Sendo assim, maior
parte dessas composições refletem a estética ultrarromântica.
Em relação à linguagem, foi observado que no samba-canção havia uma grande
preocupação com a forma, pois existia um forte desejo por parte dos letristas de elevar a
linguagem, para assim atingir as camadas mais cultas da sociedade. Abandona-se a fala
popular em função de um registro formal, fazendo uso de imagens literárias, o
rebuscamento de metáforas e o excesso de sentimentalismo que acabava beirando o mau
gosto, segundo o público da bossa nova, que foi denominado com a expressão: kitsch.
A partir do estudo realizado, conclui-se que o caráter ultrarromântico está presente
nas composições do samba-canção porque tais letras tratam de temas que abordam o
sentimento amoroso e o sofrimento por um amor frustrado, e por se utilizar de uma
linguagem rebuscada. Devido aos exageros ultrarromânticos, esse gênero musical acabou
sendo interpretado positivamente por mau gosto pela autora Borges (1982). É visto assim,
pois o samba-canção é intenso e consegue mexer nos sentimentos não admitidos e
inconfessáveis de cada indivíduo, despertando assim desejos reprimidos que acabam por
confortar as inseguranças e o sofrimento amoroso existente em cada ouvinte.
25
REFERÊNCIAS
BORGES, Beatriz. Samba-canção: fratura & paixão. 1. ed.Rio de Janeiro: Codecri,
1982
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3. Ed. São Paulo: Cultriz,
2000.
CALDAS, Waldenyr. Iniciação à música popular brasileira. São Paulo: Ática,
1985.
CANDIDO, Antônio. A literatura e a formação do homem. Ciência e cultura. São
Paulo, v. 24, n. 9, p. 803-809, set. 1972.
. Formação da Literatura Brasileira. 2º volume. 7. ed. São Paulo: Editora
Itatiaia, 1984.
. 2002. O romantismo no Brasil. São Paulo: Humanitas/USP.
COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2013. Disponível em:
<http://copyfight.me/Acervo/livros/O%20Que%20e%CC%81%20Arte%20%20Jorge
%20Coli.pdf>. Acesso em: 09 jul. 2015.
COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói:
UFF, 1986.
CRAVO ALBIN, Ricardo. O livro de ouro da MPB: a história de nossa música
popular de sua origem até hoje. 1. Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. Trad. Álvaro Cabral. São
Paulo: Martins Fontes, 2000.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos. 2ª edição especial brasileira. Trad. De
Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. 35. Ed. São Paulo: Cultrix, 2009.
NAPOLITANO, Marcos e WASSERMAN, Maria Clara. Desde que o samba é samba:
a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39, p.167-
189, 2007.
RIBEIRO, Pery; DUARTE, Ana. Minhas duas estrelas: uma vida com meus pais
Dalva de Oliveira e Herivelto Martins. 1. ed. São Paulo: Globo, 2006.
SEVERIANO, Jairo. Uma história da música popular brasileira: das origens à
modernidade. 1. Ed. São Paulo: 34, 2008.
26
VASCONCELOS, Ary. Panorama da Música Popular Brasileira na Belle Époque.
Rio de Janeiro: Livraria Sant’Anna Ltda., 1977.
The ultra-romantic character presents in samba-canção: recreation of ultra-romantic
aesthetic
Abstract: Samba-canção is a musical genre that belongs to the Brazilian popular music
and it has in its subject matters a strong appeal to the romanticism in its pure essence,
therefore there is identification with ultra-romanticism. This musical genre had an apogee
in the fifties with the support of performers and composers such as: Herivelto Martins,
Lupicínio Rodrigues, Noel Rosa, Adelino Moreira, Dalva de Oliveira, Angela Maria,
Maysa, Francisco Alves e Nelson Gonçalves, among others. Originating in low classes
in Rio de Janeiro, samba-canção used in its lyrics, linguistic mold of different realities,
reflecting in a desire for social advancement by their composers, as well as the gain of its
place among the social classes of most prestigious. Through a parallel between samba-
canção and ultra-romanticism, it finds similarities between both, from the way of life of the
man-poet until its lyric-loving expression which contains within itself the love
misadventures, the death wishes and self-punishment, the presence of the beloved woman
and the resignation before the destination.
Keywords: Samba-canção; Ultra-romanticis; Brazilian popular music.