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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
MARLI TEREZINHA MORGENSTERN
UM CERTO ORIENTE
SOB OS OLHOS DA MEMÓRIA
Profª. Dr. Denise Almeida Silva Orientadora
Frederico Westphalen
2009
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MARLI TEREZINHA MORGENSTERN
UM CERTO ORIENTE
SOB OS OLHOS DA MEMÓRIA
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Letras como requisito parcial e último à obtenção do grau de Mestre em Letras da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões, Campus de Frederico Westphalen. Área de Concentração: Literatura. Orientadora: Prof. Dr. Denise Almeida Silva
Pesquisa parcialmente financiada pela URI/Frederico Westphalen
Frederico Westphalen, 2009.
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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA, LETRAS E ARTES CAMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN
MESTRADO EM LETRAS – ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA
A Comissão Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação de Mestrado
UM CERTO ORIENTE
SOB OS OLHOS DA MEMÓRIA
elaborada por MARLI TEREZINHA MORGENSTERN
como requisito para obtenção do grau de Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________________ Profª. Dr. Denise Almeida Silva – URI
(Presidente/Co-Orientador)
______________________________________________ Membro Prof. Dr. Adeítalo Manoel Pinho –UEFS
____________________________________________ Membro Prof. Dr. André Luis Mitidieri Pereira – URI
Frederico Westphalen, 05 de novembro de 2009.
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Dedico à minha família e, em especial, à minha mãe, Maria Luiza.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, a Deus, amigo de todas as horas.
Agradeço ainda,
a minha orientadora, Prof. Dr. Denise Almeida Silva, pela sua atenção e orientação
cuidadosa;
à Prof. Dr. Ada Maria Hemilewski (in memoriam), com quem aprendi a gostar de
Literatura;
à Aline Pavan Lopes, pelo apoio técnico;
à Diretora da minha escola, Marlisa Guerra, pela compreensão.
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RESUMO
Este trabalho tem como objetivo estudar a maneira como, através do exercício da memória e, em especial, através do cruzamento da memória individual com a memória coletiva, recupera-se uma história pessoal e coletiva e os espaços nas quais essas histórias se constroem. A dissertação foi embasada a partir dos estudos sobre a memória de Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff e Paul Ricouer, que são resenhados no primeiro capítulo. Os três capítulos seguintes são dedicados à análise textual. No capítulo 2, “A esfera da infância” estudam-se os espaços geométricos, vividos e habitados no romance; no capítulo 3, “A sombra espessa de Emilie”, dá-se a recuperação da personagem principal do romance. O capítulo seguinte, “Um acervo de surpresas de vida”, examina a forma como a fotografia foi usada como instrumental para o resgate da memória pessoal e familiar. Estudos de Roland Barthes e Pierre Bourdieu sobre a fotografia fornecem o substrato teórico para esse capítulo. Conclui-se confirmando a suposição inicial acerca da relevância do compartilhamento da memória individual e coletiva, dos espaços e objetos a que ela se associa, e da fotografia para o resgate das experiências passadas por parte da neta de Emilie. Palavras-chave: Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente. Memória. Espaço. Fotografia.
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RESUMEN
Este trabajo tiene como objetivo estudiar la maneira como a través del ejercicio de la memoria y, em particular, por el cruce de la memoria individual a la memoria colectiva, se recupera uma historia personal y colectiva y los espacios en que se construyen estas historias. La disertación se basó em los estúdios sobre la memória de la Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff e Paul Ricouer, que son revisados em el primer capítulo. Los tres capitulos siguientes están dedicados al análisis textual. Em el capítulo 2, “La esfera de la infancia”, se estudian los espacios geométricos, los espacios vividos y los espacios habitados; en el capítulo 3, “La sombra gruesa de Emilie”, es la recuperación de la protagonista de la novela. El seguiente capítulo, “Un acervo de sorpresas de la vida”, examina la forma como la foto fue utilizada como un instrumento para la recuperación de la memoria personal y familiar. Estudios del Roland Barthes el Pierre Bourdieu a la fotografía proporcionó dotación teorico a ello capitulo. Se concluye confirmando la suposición inicial acerca de la relevância del reparto de la memoria individual y colectiva, de los espacios y objetos a que ella se asocia, y de la fotografía para el rescate de las experiencias pasadas por parte de la nieta de Emilie. Palabras-clave: Milton Hatoum. Relato de um certo Oriente. Memoria. Espacio. Fotografía.
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SUMÁRIO
1 “VIAGENS DA MEMÓRIA”, COM AFETO..................................................................08
1.1 “Viagens da Memória”.....................................................................................................08
1.2 Com Afeto..........................................................................................................................11
1.3 Itinerário: Breve Discussão .............................................................................................14
2 “COM OS OLHOS DA MEMÓRIA” ...............................................................................18
3 “A ESFERA DA INFÂNCIA”............................................................................................31
4 A “SOMBRA ESPESSA DE EMILIE”.............................................................................48
5 UM “ACERVO DE SURPRESAS DA VIDA” .................................................................60
6 ESCALA FINAL .................................................................................................................72
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................76
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1 “VIAGENS DA MEMÓRIA”, COM AFETO
1.1 “Viagens da Memória”
Este estudo tem como objetivo analisar o romance Relato de um certo Oriente sob o
olhar da memória, estudando como, através do cruzamento da memória individual com a
memória coletiva, a neta de Emilie reconstrói um lugar (Manaus, e as casas habitadas pela
família) e um grupo familiar, no qual avulta a figura da matriarca Emilie.
Essa recuperação da história pessoal envolve deslocamento físico: após ter vivido sua
infância e parte de sua adolescência em Manaus, a jovem abandona a cidade em que nascera.
Assim, rever o cenário da infância requer uma viagem. Esta é, porém, a realização factual de
viagens imaginárias que a precedem e preparam: internada em uma clínica por problemas
psicológicos, após ter sido abandonada pela mãe, a neta de Emilie relata como, à noite, ao
perder o sono, volta ao lugar onde passara seus primeiros anos: “Em certos momentos da
noite, sobretudo nas horas de insônia, arrisquei várias viagens, todas imaginárias: viagens da
memória” (HATOUM, 2006, p. 163).
Tal como sua personagem, Milton Hatoum transita pelo que ele mesmo chama de
“dupla viagem” (2001). Refletindo sobre a situação do escritor residente na Amazônia, “longe
dos centros irradiadores da cultura, mas perto de uma das regiões mais exóticas do mundo”, o
escritor levanta a questão acerca de como escrever tendo como referência essa ambiência
konradiana, duplamente obscurecida pela floresta e pelos desvãos obscurecidos da história.
Ao invés de discorrer sobre esse dilema, tece um comentário sobre sua experiência pessoal
escolhendo falar de
Uma dupla viagem. A primeira imaginária. O viajante imóvel que durante a sua infância em Manaus, imagina dois mundos diferentes. A segunda, uma viagem real rumo ao sul do Brasil e outro hemisfério: deslocamento da periferia para vários centros (o centro é sempre plural), desejo de deixar a margem e navegar no rio de uma outra cultura ou sociedade (HATOUM, 2001).
Recordando o primeiro tipo de viagem, as imaginárias, Hatoum comenta como viajou,
sem nunca sair da Amazônia, através do relato de comerciantes-viajantes e outros estrangeiros
com quem conviveu em sua infância. Como faz questão de frisar, o contato com seus Outros
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aconteceu na própria casa paterna: na qualidade de filho de imigrante oriental e de brasileira,
também de origem oriental, o Milton menino conviveu, na Amazônia, com árabes do Oriente
Médio e judeus do norte da África, o que lhe permitiu assimilar um pouco de sua cultura e
religião.
Na infância, a convivência com o Outro aconteceu na própria casa paterna, lugar onde
passavam viajantes estrangeiros. Milton escutava os adultos falar em árabe, chegando a
pensar que era uma língua falada pelos de mais idade, enquanto o português seria reservado às
crianças. Aos poucos, a língua árabe, as histórias, as paisagens e os costumes de um país
longínquo tornaram-se familiares para ele.
A religião, a língua, os costumes e a cultura do Outro se apresentavam como um
caminho fecundo, o da narração oral. Essa forma de discurso era usada por contadores de
histórias, freqüentadores da Pensão Fenícia, lugar onde passou a infância. Havia, ainda, a
presença de alguns parentes mais velhos, comerciante-viajantes, que contavam histórias sobre
experiências em povoados longínquos do Amazonas. Esses orientais rudes ou letrados,
narravam também episódios do passado, ocorridos em diversos lugares do Oriente Médio,
antes de atravessar para o hemisfério Sul. Por outro lado os amazonenses traziam no
imaginário as lendas e os mitos indígenas.
Na pensão Fenícia, as vozes dissonantes narravam histórias muito diferentes. Ouvir
essas histórias, ver os narradores com gestos e expressões foi uma das experiências mais
fecundas da infância e adolescência para Hatoum: através delas viajou aos lugares mais
recônditos do Amazonas e ao longínquo Oriente. Para ele, aquelas histórias narradas
assumiam um caráter ao mesmo tempo familiar e estranho, e aqueles mundos, reais ou
fictícios, passaram a fazer parte de sua vida. Assim, mesmo como viajante imóvel,
experimenta, a percepção do Outro através do convívio da palavra oral (HANANIA, 2001).
Essa experiência de Hatoum nos leva a pensar na figura do narrador descrita por
Walter Benjamin. O estudioso alemão distingue entre dois tipos de narradores, os que
exercem sua função a partir do que vêem em torno de si, e os que se inspiram na experiência
do deslocamento da viagem:
‘Quem viaja tem muito para contar’, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escuta com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições (BENJAMIN, 1996, p. 198).
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Por outro lado, como Hatoum avalia em seu depoimento “Escrever à margem da
história”, viagens reais têm-lhe sido
uma experiência de vida e de leitura: uma peregrinação pelo sul do Brasil e por várias cidades européias que começou há mais de vinte anos. De certa maneira, essa viagem-leitura tem amplificado as vozes e as visões que passaram pela minha infância (HATOUM, 2001).
Já aos quinze anos Hatoum enfrentou um dos muitos desafios. Deixou a família e foi
morar em Brasília. Era o período da ditadura militar. Depois se transferiu para São Paulo, em
1970, onde cursou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na USP. No ano de 1979, viajou
para Madri para estudar como bolsista de uma instituição ibero-americana. Passou seis meses
em Barcelona, onde lecionou Português e trabalhou na tradução de romances de Jorge
Amado.
Em 1981, foi morar em Paris, onde começou um doutorado na Universidade de Paris
III. Permaneceu ali durante três anos, durante os quais escreveu um longo ensaio sobre
narrativa e começou a esboçar o primeiro romance. No ano de 1984, decidiu retornar para
Manaus, lá permanecendo até 1998; nesse período foi professor na Universidade Federal do
Amazonas e titulou-se doutor em teoria literária na USP. Sentiu-se insatisfeito com a política
de Manaus, e passou a morar, definitivamente, em São Paulo onde terminou de escrever a
segunda obra de ficção. Milton Hatoum publicou três romances: Relato de um certo Oriente,
Dois irmãos, Cinzas do norte e Órfãos do Eldorado. Publicou também diversos contos e
revistas do Brasil e do exterior.
A convivência em um ambiente onde as narrações orais eram freqüentes abre, mais
tarde, caminhos para Hatoum escrever seus romances. Em entrevista concedida a Hanania, o
escritor reflete sobre a motivação que move um autor: escreve porque “tem vontade de
escrever, desejo de escrever; uma necessidade de escrever que surge de uma falta, de uma
ausência” (2001). No caso do Relato de um certo Oriente, a notícia da morte daquele que foi
o grande narrador que povoou a sua infância, seu avô, despertou a vontade de recuperar a voz
que silenciara para sempre, bem como as de outros velhos conhecidos, libaneses, judeus e,
amigos que moravam na Espanha e na França, mas que lhe contavam histórias do Oriente,
lembranças do Marrocos, da Síria.
Nascido, assim, da intenção “de ligar a história pessoal à história familiar”, o romance
é, segundo depoimento do próprio autor, “um texto de memória sem ser memorialístico, sem
ser auto-biográfico”. Como o autor ainda comenta a distância o ajudou a escrever, uma vez
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que o fato de estar “longe do Brasil, muito longe de Manaus, permitiu-me escrever com mais
liberdade” (HANANIA, 2001).
1.2 Com Afeto
A opção pela análise de Relato de um certo Oriente repousa, em parte, sobre motivos
pessoais: o contato com libaneses. Semelhante ao que acontece no romance de Hatoum, a
família com quem convivemos é formada pela esposa, brasileira e católica, e seu esposo
libanês. Como o esposo de Emilie, esse libanês é fiel muçulmano, observa religiosamente o
jejum, o período do Ramadã. Conhecemos, então, alguns de seus costumes, as comidas típicas
e festas religiosas; participamos de uma comemoração natalina.
Leituras de O local da cultura, de Homi Bhabha e, em especial, o conceito de “entre-
lugar” nos fizeram relembrar o trânsito intercultural com o qual havíamos convivido; um
artigo sobre Nur na escuridão levou-nos à leitura do romance de Salim Miguel e, daí, ao
desejo de encontrar ainda outro autor que se ocupasse da convivência dos libaneses no Brasil.
Conversas com uma colega do Mestrado conduziram a Hatoum. Após lidos Órfãos do
Eldorado, Dois Irmãos e Relato de um Certo Oriente, optamos por Relato de um certo
Oriente, porque o romance nos levou a recordar as vivências passadas.
Iniciar uma investigação científica motivada pelo afeto pode parecer estranho à
mentalidade acadêmica, acostumada à objetividade e rigor científico. No entanto, ao discorrer
sobre a periodização literária, Heidrun Krieger Olinto (1996, p. 15-45), ao comentar a maneira
como a história da literatura tem sido construída, chama a atenção para o fato de que a opção
por uma periodização que evite uma concepção de tempo cronológica e homogênea implica
uma concepção de história da literatura a partir da expectativa do leitor. Ora, valorizar a sua
posição circunstanciada, tanto na referência institucional como social, leva a valorizar não só
o contexto histórico como afetivo.
Já em 1967, em sua A história da Literatura como provocação à teoria literária, Hans
Robert Jauss desenvolve modelos de análise dos complexos processos de transformação do
fenômeno literário, questionando teses monocausais e globalizantes e, conceitos lineares;
privilegia, ao contrário, explicações multicausais, funcionais e estruturais. Como Olinto
reconhece, o mérito do ensaio repousa tanto em suas indagações sobre as premissas
epistemológicas e as categorias da escrita historiográfica da literatura como em sua proposta
de reescrever a história da literatura tento em vista o horizonte de expectativa do leitor.
Ademais, como a autora ainda enfatiza, o clima da época favorecia, em nível historiográfico,
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uma revolução epistemológica que levasse em conta o caráter construtivo, seletivo e relativo
da atividade do historiador, contrapondo-se à visão marcada pela encoberta do olhar
interessado e de comprometimentos sociais e institucionais, típica da visão tradicional. Essa
nova consciência abrange, assim, “reflexões críticas sobre o lugar específico da fala do
historiador e de suas motivações” (OLINTO, 1996, p. 26-7).
Ao interrogar sobre como construir modelos teóricos que permitam analisar a
literatura a partir de um complexo conjunto dinâmico, Olinto lembra a posição de Gebhard
Rusch que, reconhecendo como um olhar sobre o objeto a ser modelado teoricamente no
contexto de uma ciência da literatura empírica é extremamente complexo, seleciona possíveis
variáveis, englobando textos de diferentes meios de comunicação (como manuscritos, artigos
de revista, livros, teatro, etc.), variados meios de produção e organizado e ações específicas de
produção, divulgação, recepção e processamento em suas múltiplas interações. Rusch é da
opinião que
Questões relacionadas com as motivações e forças que iniciam, mantêm, organizam e modificam processos literários, que produzem textos literários e os transformam em objetos desejáveis, oferecem perspectivas sobre as necessidades culturais, sociais, materiais e ideais, sobre a esfera das motivações gerais e específicas, dos critérios de valor, de interesse, objetivos, sobre o reconhecimento social e a identidade pessoal, sobre qualidade hedonistas e emotivas relacionadas com processos literários (GEBHARD RUSCH, apud OLINTO, 1996, p. 36).
Embora a partir de outro enfoque, e com maior ênfase ainda que Olinto, Humberto
Maturana nos alerta sobre a importância do afeto. O objetivo do estudioso é explicar o
fenômeno do conhecer, ou seja, o modo como se validam nossas cognições. Essa não é uma
atividade trivial, embora pertença à vida cotidiana e nela estejamos imersos momento a
momento. Maturana defende que primeiro é preciso explicar o ser humano como um
conhecedor, um sujeito observador. E propõe, então, o que chama de ontologia do observar
(2001, p. 42).
O cientista distingue entre dois domínios explicativos. O primeiro, situado no domínio
das ontologias constitutivas, diz respeito ao processo de cognição em que fazemos referência
às condições de constituição daquilo de que falamos. A esse espaço cognitivo, Maturana se
refere como o da “objetividade sem parênteses”. Funcionamos nessa objetividade quando
fazemos referência a uma realidade independente, o “ser em si”, em termos aristotélicos. A
“objetividade entre parêntese” não significa subjetividade, significa apenas assumimos não
podemos fazer referências a entidades independentes de nós para construir nosso explicar.
Isso é o que quer dizer “colocar a objetividade entre parênteses” (2001, p. 35; 42-43). No
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momento em que seguimos o caminho da objetividade sem parênteses pretendemos ter acesso
privilegiado à realidade, que é o que validará o nosso explicar. A esse domínio, o filósofo
chileno opõe o que chama de ontologia do observar, ou “caminho da objetividade sem
parênteses”. Nesse domínio, toda a explicação é uma reformulação da experiência com
elementos da própria experiência.
Maturana explica que:
[...] estes dois caminhos explicativos têm certas conseqüências no espaço das relações humanas. De fato, eu os coloquei como dois caminhos explicativos, mas ao mesmo tempo correspondem a dois modos de estar em relação com os outros, pela seguinte razão: no momento em que assumo que tenho acesso à existência independente de mim, de modo que eu posso usar esse acesso como um argumento explicativo, coloco-me inevitavelmente na condição de possuidor de um acesso privilegiado à realidade (MATURANA, 2001, p. 35).
Uma vez que o objetivo primeiro de Maturana é uma ontologia do observar, frente a
um dado fenômeno ou ser, a resposta à pergunta “como se explica” tem importância
fundamental. Por outro lado, a noção de que os dois caminhos explicativos propostos são
relevantes para a dinâmica relacional torna-se particularmente relevante para este estudo
quando se considera, como o faz Maturana, que todas as ações humanas acontecem num
espaço de ação especificado estruturalmente como emoção.
Se quisermos falar em emoções a partir da objetividade sem parênteses teremos que
fazer referências àquilo que é independente do observador, que é a emoção. No caminho da
objetividade entre parêntese, a pergunta que se coloca é sobre a natureza da distinção que se
deve fazer entre uma emoção ou outra.
Maturana propõe uma tipologia das relações humanas baseada na existência ou não de
emoções: relações diferentes fundamentam-se emoções de natureza diversa; a emoção que
fundamenta o domínio social é o amor, pois essa emoção é fundamental para a aceitação
mútua sem a qual as relações sociais se fazem impossíveis. De acordo com esse raciocínio,
relações de autoridade, de trabalho ou hierárquica não se configuram como relações sociais
(MATURANA, 2001, p. 46-48).
Relevante para nosso raciocínio aqui é o fato de que as emoções fundam os espaços de
ação, constituindo-os. Até mesmo os sistemas racionais, constituídos como um sistema de
coerências operacionais fundados num conjunto de premissas aceitas a priori, estão, para
Maturana, baseados no amor/aceitação mútua. Assim, poder-se-ia dizer que a presente
pesquisa funda-se a partir do espaço emocional do reconhecimento e interesse pela cultura
árabe, que passou a se constituir no espaço de ação que alavancou a presente pesquisa.
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1.3 Itinerário: Breve Discussão
Chamou-nos inicialmente a atenção a ambiência híbrida do romance, e havíamos nos
proposto a fazer uma leitura da questão identitária na obra, salientando o entre-lugar ocupado
pelos personagens. Contudo, à medida que leituras e releituras se sucederam, surgiam novos
caminhos a ser percorridos. Aos poucos, a questão da recuperação da memória familiar e
pessoal através da memória compartilhada começou a se impor, principalmente pela maneira
como a neta de Emilie resgata a o passado da avó ao mesmo tempo em que traz para o
romance a sua história e sua cultura. Iniciamos a vislumbrar, então, a possibilidade de
trilhamos os caminhos da memória, recuperando assim, também, a identidade cultural das
personagens.
Ademais, o resgate da memória está na ordem do dia. Fausto Colombo registra uma
verdadeira obsessão pela arquivística, alavancada pelo temor da perda da memória por parte
de uma geração que já sobreviveu a duas guerras mundiais (COLOMBO, 1991, p. 17). O
resgate da memória é essencial à preservação da identidade de grupos sociais, e à construção
de seus referenciais. Hoje a falta de referentes preocupa; daí talvez, por que, a memória volta
a ser estudada e debatida em centros universitários e de pesquisa.
Escolhido o objetivo da investigação, o desafio passou a ser a forma como organizar a
pesquisa. Essa foi tarefa que demandou várias leituras. Cada uma delas parecia sugerir uma
nova maneira de organizar o material. Foram vários começos e recomeços, e muitas vezes
sentimo-nos um pouco como a neta de Emilie que, ao tentar ordenar os relatos colhidos,
perde-se em meio ao vaivém de acontecimentos, narradores, confidências, espaços e tempos
colhidos aqui e acolá. Por fim, optamos por organizar a análise em torno de uma pessoa, dos
espaços habitados e vividos, e de uma técnica utilizada para escapar ao esquecimento, a
fotografia.
Como o próprio Hatoum comenta, “causou, talvez, para alguns leitores, um certa
estranheza, a estrutura de encaixes em que [o romance] está vazado”. Porém, como raciocina
em seguida, a própria memória se estrutura desse modo, razão pela qual optou por um tempo
narrativo fragmentário que “reproduz, de certa forma, a estrutura de funcionamento da
memória: essa espécie de vertiginoso vaivém no tempo e no espaço” (HANANIA, 2001).
O estudo do primeiro romance de Milton Hatoum tem, amiúde, se ocupado de
aspectos estruturais da obra, especialmente a análise desse modelo fragmentário, em que um
emaranhado das vozes narra os fatos acontecidos. Embora sendo outro o objetivo desta
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análise, parece-nos útil, para benefício do leitor não familiarizado com a obra, apresentamos
breve resumo da obra e da maneira como se estrutura.
O romance compõe-se de oito capítulos. O primeiro é narrado pela neta de Emilie, que
volta à casa de sua infância, e recorda os fatos e ambiências que marcaram seus primeiros
anos: a casa da avó, a mudança de residência da família da loja Parisiense para o sobrado, a
gravidez de Samara e a breve e reclusa existência de sua filha Soraya, discriminada por ser
ilegítima, e precocemente morta em um acidente. O segundo capítulo tem como narrador
Hakim, filho de Emilie, que relata a passagem da mãe pelo convento em Ebrin, quando ainda
adolescente, o sumiço do pai numa noite de Natal e as noites de reuniões da família e amigos;
apresenta ainda o fotógrafo Dorner, que assume a narração do terceiro capítulo, no qual conta
os últimos instantes de vida de Emir, e a última foto que tira do amigo pouco antes de seu
suicídio. Passa depois a relatar a ocasião em que Emilie conhece o futuro marido, com quem
se casa logo após a morte do irmão Emir. O quarto capítulo é narrado pelo marido de Emilie,
que conta sua chegada ao Brasil e seu encontro com a futura esposa. Dorner reassume a
narração do quinto capítulo, recordando como o marido de Emilie, a pedido da esposa,
encomenda ampliações da última fotografia tirada de Emir, colocando uma delas no túmulo
do suicida, que permanecia inacabado pela ausência do retrato. A certa altura desse capítulo,
Hakim assume a narração, concluindo-o com possível explicação para o suicídio de Emir
(revolta contra Emilie, que o forçara a abandonar a cidade de Marselha, onde queria
permanecer), e seu desacordo com a exploração e dos empregados da casa em Manaus, um
dos motivos pelos quais deixa a família e vai para o Sul. Hakim relata também o único
passeio de Samara Delia com a filha, e o acidente que vitima Soraya. No sexto capítulo, a neta
retorna, desnudando minúcias de sua volta a Manaus, vinte anos após sua partida, e revelando
alguns momentos vividos no passado. Relata ainda seu demorado reencontro com Dorner, a
planejada visita a Emilie e a descoberta de sua morte. O sétimo capítulo apresenta os
depoimentos de Hindié, amiga inseparável de Emilie, que participou dos seus últimos
momentos de vida e testemunhou seu desejo de reconciliar os filhos, o vazio deixado pela
partida de Hakim e os sonhos com o irmão Emir. Narra também a partida de Samara e o
aluguel da Parisiense, que era administrada por ela. Finalmente, o último capítulo volta a ser
narrado pela neta de Emilie, que conta pormenores de sua permanência na clínica psiquiátrica,
apresenta o material que utilizou para produzir o relato, e as dificuldades para produzi-lo: sua
viagem a Manaus, o planejado, mas finalmente não efetuado encontro com a avó, a coleta dos
depoimentos de familiares e amigos, e sua organização da narrativa no relato final, que resulta
no romance.
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Organizamos esta dissertação ao longo de quatro capítulos, cujos títulos, em sua
maioria, forma retirados da poética linguagem de Hatoum. No primeiro capítulo, resenham-se
os estudos sobre a memória de Santo Agostinho, Jacques Le Goff, Paul Ricouer, Maurice
Halbwachs e Pierre Nora como forma de embasar a analise textual. Os três capítulos seguintes
são dedicados à análise do romance.
Inicialmente, destacamos a figura da matriarca da família e matriz de toda a história, a
personagem Emilie. A escolha da personagem deve-se ao fato de que, ao se resgatar a sua
vida, é possível construirmos muitas outras histórias de personagens ligados a ela. Emilie
convive com filhos, netos e pessoas amigas, que encontram nela segurança e proteção. Assim,
imprime neles marca que fica significativamente gravada na memória dessas pessoas.
Também através de objetos pessoais revela-se a história da vida da personagem.
A opção de dedicar um capítulo aos locais onde se dá o trânsito das personagens deve-
se ao fato de que o espaço é um dos suportes para a memória, porque é nele que os grupos
convivem. Dificilmente vivenciaremos algo se não estivermos relacionados a um espaço
material. As casas, em Relato de um certo Oriente, formam um espaço onde são vividas
experiências que marcam a vida dos narradores, estando profundamente ligadas às suas
histórias vitais. À leitura de alguém que não se detém em uma análise mais aprofundada do
texto, passa despercebida a existência de outros lugares que dividem espaço com a Parisiense
e o Sobrado. As casas da família, Parisiense e Sobrado, a casa da mãe adotiva, a casa da
empregada, são lugares que se misturam, deixando o leitor muitas vezes confuso. Isso sem
contar que, tão forte é a presença da Parisiense pelos muitos acontecimentos de que foi palco,
que mesmo não estando mais habitada, conserva-se ainda tão presente como se a família ainda
lá residisse. Na verdade, o que mantém a Parisiense viva são as muitas recordações dos
momentos lá compartilhados.
O quarto e último capítulo, “Acervos de Surpresas da Vida”, aborda a fotografia como
uma das técnicas profundamente associadas à rememoração. Estudos de Roland Barthes,
Walter Benjamin e Pierre Bourdieu embasam esse capítulo, que se justifica pelo espaço
dedicado à fotografia em sua função social e memorial.
Esperamos que o presente estudo contribua para a compreensão da forma como se
constrói, no romance, um certo Oriente disperso em uma certa Manaus de um certo Brasil.
Nossa intenção é que o estudo dos mecanismos de recuperação da memória no romance se
junte, com proveito, à bibliografia sobre o autor.
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Grande é o poder da memória! E ela tem algo de terrível, meu Deus, em sua complexidade infinita e profunda.
Santo Agostinho A memória é uma tábua de salvação do narrador-naúfrago. Para mim, não há literatura sem memória, que é o outro nome da imaginação.
Milton Hatoum
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2 “COM OS OLHOS DA MEMÓRIA”
O capítulo final de Relato de um certo Oriente revela a resposta a uma pergunta que
ressoa na mente de quem lê o romance pela primeira vez, ou seja, a identidade da narradora
anônima que resgata a memória pessoal e familiar ordenando os relatos ouvidos de outros e
narrando os fatos que ela própria testemunhou. Ao se identificar, a neta de Emilie enfatiza que
o resgate desse Oriente peculiar na Amazônia não seria possível sem que imaginasse cenas da
infância, convívios e a própria fala dos outros “com os olhos da memória” (HATOUM, 2007,
p. 166). Uma vez que este estudo pretende analisar o papel da memória nesse processo, faz-se
necessário, inicialmente, conceituar o que seja memória e como opera.
Como Le Goff resenha, a memória tem um papel determinante na compreensão da
vida, e a atividade mnésica é uma constante não só nas culturas escritas como nas orais (2003,
p. 423-428). Nessas últimas, a acumulação de elementos na memória é essencial à vida
cotidiana, sendo que o primeiro domínio que se cristaliza na memória coletiva desses povos é
o mito de origem, que fundamenta a existência da coletividade. Especialistas da memória, ou
homens-memória, são fundamentais, nas sociedades orais, para manter a coesão do grupo.
O aparecimento da escrita está ligado a uma transformação profunda da memória
coletiva, uma vez que a escrita permite o desenvolvimento de duas técnicas de memória.
Assume, na comemoração, a forma de inscrição, preservando um acontecimento considerado
de importância para os grupos sociais. Durável, a pedra presta-se a essa gravação, que passa a
servir como arquivo. Uma segunda técnica é o documento, escrito num suporte especialmente
dedicado à escrita, que permite o armazenamento de informações e, assegurando a passagem
da esfera auditiva à visual, facilita o reexame, reordenação e retificação dos dados registrados.
A passagem da memória oral ao registro escrito depende essencialmente do
desenvolvimento urbano, com o qual surge a preocupação de fixar de modo excepcional um
sistema social nascente. Fixam-se, seletivamente, os atos financeiros e religiosos, as
dedicatórias, genealogias, o calendário, enfim, tudo o que nas novas estruturas das cidades
não é passível de ser fixado na memória de modo completo. Essa memória urbana está
intimamente associada, em seus primórdios, com a memória real: o rei institui um programa
de memorização, do qual ele é o centro, e sobre o qual tem autoridade. Surgem instituições-
memória: arquivos, bibliotecas, museus.
19
É entre os gregos que se percebe de forma clara a evolução para uma história da
memória coletiva. Como Le Goff resume, “Divinização e, depois, laicização da memória,
nascimento da mnemotécnica: tal é o rico quadro que oferece a memória coletiva grega entre
Hesíodo e Aristóteles, entre os séculos VIII e IV” (2003, p. 432). No curso da história, a
memória escrita agrega-se à oral, modificando-a; da mesma forma, a história viria a substituir
a memória coletiva, transformando sem destruí-la.
É o aparecimento do mnemon que marca o surgimento de função social da memória:
reza a lenda que o mnemon, servidor de um herói, acompanhava-o sem cessar, para lembrar-
lhe ordem divina cujo esquecimento traria a morte. Na cidade, passa a ser funcionário da
memória, ou seja, o magistrado encarregado de preservar a memória religiosa e jurídica
relevante, e guardar a lembrança do passado em vista de uma decisão da justiça.
Os gregos instituem Mnemosine como uma deusa que não somente lembra aos homens
seus feitos heróicos como preside a poesia. Revelando ao poeta os segredos do passado, ela o
introduz nos mistérios do além. A memória torna-se, assim, um dom para iniciados, e a
anamnesis, ou reminiscência, uma técnica ascética e mística.
Nas doutrinas órficas e pitagóricas, a memória é a antítese do esquecimento. Nelas, a
deusa da memória é transposta do plano da cosmologia para o da escatologia, o que modifica
o equilíbrio dos mitos da memória, colocando-os fora do tempo. Uma vez que “o esforço de
rememorização, predicado e exaltado no mito, não manifesta o vestígio de um interesse pelo
passado, nem uma tentativa de exploração do tempo humano” (VERNANT, apud LE GOFF,
2003, p. 434), a colocação da memória fora do tempo faz com que, para os gregos, não haja
reconciliação da memória com a história quando posta a serviço da escatologia.
Para Platão e Aristóteles, a memória é um componente da alma, e não se manifesta
apenas ao nível intelectual, mas unicamente na parte sensível do ser humano. Para Aristóteles,
a memória segue dois caminhos diferentes, um que guarda as lembranças e outro que a torna
capaz de resgatá-las: “a mnemê, mera faculdade de conservar o passado, e a reminiscência, a
mamnesi, faculdade de evocar voluntariamente esse passado” (LE GOFF, 2003, p. 435).
A laicização da memória e a invenção da escrita permitem à Grécia criar novas
técnicas de memória: atribui-se a mnemotécnica a Simônides de Céos que, conta-se, foi capaz
de reproduzir, de memória, a ordem em que estavam assentadas as vítimas que morreram
soterradas quando o teto da casa de Scopa caiu sobre ele e seus convidados. Simônides fixava
assim, dois princípios da memória artificial (Memoriae Artificiosa), segundo os antigos: a
lembrança das imagens, e o recurso da sua organização.
20
Embora nenhum tratado da mnometécnica grega tenha chegado a nós, três textos
latinos - a Rhetorica ad Herenniurn, compilação atribuída a Cícero na Idade Média, De
oratore de Cícero e o Institutio oratoria de Quintiliano – informam sobre o desenvolvimento
dessa arte, fixando a distinção entre lugares e imagens, e precisando o caráter das imagens
agentes do processo de rememoração e a formalização da divisão entre a memória das coisas e
a das palavras. Colocam, assim, a memória no grande sistema da retórica, que iria dominar a
cultura antiga e renascer na Idade Média. Esses tratados continuam a tradição de Simônides,
fundador da arte da memória, de colocar as lembranças em lugares exatos, de onde pudessem
ser regatadas e momentos de necessidade. Como Colombo comenta essa não é uma
concepção neutra, desinteressada, uma vez que “a retórica necessita de uma memória nova,
ágil, capaz, apta a permitir a correta reevocação de uma oração qualquer” (COLOMBO, 1994,
p. 31).
Na Idade Média a memória coletiva sofre profundas transformações sob o impacto do
cristianismo como religião e ideologia dominante. Há a cristianização da memória e da
mnemotécnica, a repartição da memória coletiva entre memória litúrgica e laica, o
desenvolvimento da memória dos mortos e o surgimento de tratados de memória (ars
memoriae). Agostinho aprofunda e adapta ao cristianismo a teoria da retórica antiga sobre a
memória. Em suas Confissões, compara a memória a “uma sala onde ficam guardadas no
psíquico as inúmeras lembranças de acontecimentos do cotidiano”, atribuição dada à memória
por ser responsável por armazenar informações. Para Santo Agostinho, imagens de todas as
espécies, introduzidas pelas percepções, são guardadas em vastas zonas de memória, nas
quais estão também depositados os produtos do nosso pensamento, e tudo o que não foi
apagado pelo esquecimento: “Percorro em todas as direções este mundo interior, vou de um
lado para outro, e nele me aprofundo o mais possível, sem encontrar-lhe os limites, tão grande
é a vida que reside no homem mortal!” (SANTO AGOSTINHO, 2006, p. 227).
É nesses verdadeiros armazéns da memória que se depositam as lembranças, para
serem evocadas sempre que for preciso; depois de cada evocação elas voltam a seus abrigos
secretos, onde permanecem guardadas para serem usadas quando a recordação precisar
resgatá-las:
Quando ali penetro, convoco todas as lembranças que quero. Algumas se apresentem de imediato, outras só após uma busca mais demorada, como se devessem ser extraídas de receptáculos mais recônditos. Outras irrompem em turbilhão e, quando se procura outra coisa, se interpõem como a dizer: “Não seremos nós que procuras?” Eu as afasto com a mão do espírito da frente da memória, até
21
que se esclareça o que quero, surgindo do esconderijo para a vista, (SANTO AGOSTINHO, 2006, p. 218).
Agostinho percorre campos, antros, inumeráveis cavernas, dando a entender a
memória como um espaço com capacidade de armazenar inúmeras recordações; digno de nota
é que, ao procurar Deus no fundo da memória, não o encontra em imagem alguma: com
Agostinho, como ensina Le Goff, a “memória penetra profundamente no homem interior, no
seio da dialética cristã do interior e do exterior, de onde saíram o exame de consciência, a
introspecção, e também a psicanálise” (2003, p. 441).
Vê-se, assim, que a tradição mnemônica da retórica baseia-se na capacidade (no
sentido etimológico do termo) em relação aos objetos ou signos a serem armazenados: uma
vez guardada a informação, “o ato de chamá-[la] não é nada além de uma conseqüência direta
que põe em ação mais a vontade do que competência do usuário” (COLOMBO, 1991, p. 33).
Conquanto Agostinho reconhecesse diversos graus de acessibilidade, segundo a memória
houvesse sido arquivada em “depósitos” mais ou menos secretos, ainda assim a evocação
dependia apenas de um comando para ser regatada.
Deixando à parte a evolução histórica da concepção de memória, interessam
particularmente a esta pesquisa os estudos desenvolvidos pelo sociólogo Maurice Halbwachs,
que contribuíram para a compreensão de como os grupos sociais influem na retenção da
lembrança, uma vez que, em Relato de um certo Oriente, é fundamental o compartilhamento
entre memória individual e memória coletiva para o resgate do passado da narradora.
Em Memória Coletiva e Memória Individual (1950), Maurice Halbwachs desenvolve
um conceito de memória que se desenvolve a partir do contato social. A memória coletiva,
adquirida no convívio com o grupo, se faz necessária para a memória individual, que não está
inteiramente isolada e fechada na consciência do indivíduo: esta se apóia naquela, e vice-
versa. Muitas vezes, para relembrar o passado, o indivíduo precisa recorrer às lembranças de
outras pessoas com quem compartilhou um acontecimento em um ambiente de convivência.
Assim, as memórias individuais se sustentam nas coletivas.
Como o sociólogo raciocina, as lembranças se organizam de duas maneiras: agrupam-
se em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de vista, mas também se
distribuem dentro de uma sociedade, seja ela grande ou pequena, da qual são imagens
parciais. Contudo, a distinção entre memórias individuais e memórias coletivas não é uma
delimitação rígida, uma vez que o indivíduo participa dos dois tipos de memórias. Por um
lado, as lembranças associam-se ao contexto da personalidade ou vida pessoal. Embora sendo
comuns a outros, são vistas pelo sujeito apenas sob o aspecto que o interessa enquanto se
22
distingue dos outros. Por outro lado, há momentos em que o indivíduo se comporta como
membro de um grupo, contribuindo para evocar e manter lembranças que o interessam
enquanto grupo.
Essas memórias se interpenetram continuamente, especialmente quando a memória
individual, para tornar as lembranças mais exatas ou para preencher algumas de suas lacunas,
apóia-se coletiva, podendo mesmo se deslocar ou confundir com ela em alguns momentos.
Semelhantemente, a memória coletiva, como o próprio nome já deixa entrever, contém as
memórias individuais, mas não se confunde com elas, porque evolui segundo leis próprias;
memórias individuais, quando consideradas sob a ótica coletiva, passam a integrar um
conjunto que já não mais corresponde a uma consciência individual.
Assim, a memória individual não está isolada e fechada em nós: para evocarmos as
nossas lembranças precisamos recorrer às lembranças de outras pessoas, e nos transportamos
a pontos de referência fora de nós mesmos. As ideias e falas que tomamos emprestadas dos
outros servem para nos auxiliar, facilitando as lembranças do que fizemos e sentimos em
determinado ambiente de convivência. Isso ressalta o fato de que a memória está intimamente
ligada ao espaço e ao tempo, pois lembramos o que vimos, fazemos, sentimos ou pensamos
não só com relação ao contexto físico como ao temporal. A memória coletiva funciona de
maneira similar, mas seus limites não são os mesmos: eles podem ser mais estreitos e também
mais distanciados, alargando-se para abranger inclusive o grupo nacional.
Faz-se, portanto, necessário distinguirmos entre duas memórias: a pessoal ou
autobiográfica, é interna; a outra, exterior, é a memória social ou histórica. A memória social
é mais extensa do que a memória pessoal, e representa para nós o passado de forma mais
resumida e esquemática, enquanto a memória pessoal se apresenta de forma contínua e densa.
Por outro lado, cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, e esse
ponto de vista muda conforme o lugar por nós ocupado no grupo e as relações mantidas
nesses ambientes. As sucessões de lembranças, mesmo as mais pessoais, explicam-se porque
acontecem em diversos ambientes coletivos, e pela transformação ocorrida nesses espaços.
Pensamos, por vezes, que ideias, reflexões e sentimentos se originam em nós mesmos
quando, na verdade, são inspirados pelo grupo ao qual pertencemos. O ponto de vista que
expressamos sobre determinados assuntos – uma notícia de jornal, a leitura de um livro ou
uma conversa – conquanto feito com convicção, parecendo pertencer a nós, pode ser que
apenas somos o eco daquilo com que tivemos contato. Isso se dá porque cada grupo social se
empenha em manter uma harmonia de maneira que seus integrantes vibram em uníssono e já
não distinguem o ponto de partida dessas reverberações, neles mesmos ou nos outros. Pode
23
também acontecer que venhamos a fazer parte, ao mesmo tempo, de mais de um grupo, e os
pensamentos de um e de outro se encontrem: nesse caso uma lembrança entra ao mesmo
tempo em dois contextos, mas cada um do ponto de vista do outro.
Muitas vezes as relações ou contatos inter-grupais são permanentes ou se repetem com
muita frequência, como se dá no caso das relações familiares. Tomemos o caso de uma
família que reside por muito tempo em uma mesma cidade e faz muitas amizades: amigos,
cidade e família formam sociedades complexas. Este é o caso, por exemplo, da ambiência
evocada em Relato de um certo Oriente, em que a rede de relações que se forma em torno de
Emilie envolve intrincadas associações entre quatro gerações de uma família, vizinhos,
amigos e agregados, e com pelo menos dois ambientes: o Líbano e a Amazônia. Em casos tais
como esse, podem surgir lembranças compartilhadas a partir de dois ou mais contextos.
Essas lembranças apoiadas na memória coletiva são as que mais facilmente podem ser
evocadas. No primeiro plano da memória de um grupo estão os eventos compartilhados pela
maioria de seus membros, os que resultam da vida grupal ou os relacionados a ligações com
grupos próximos. Passam a um segundo plano as memórias que dizem respeito a um pequeno
número ou a um único de seus membros. Afinal, como Halbwachs raciocina, “um objeto que
iluminamos dos dois lados e com duas luzes nos desvenda mais detalhes e se impõe mais à
nossa atenção” (2006, p. 49).
Considerando-se nossa capacidade de evocar eventos passados, podemos dividir os
acontecimentos em dois grandes grupos: os que podemos evocar quando desejamos e os que
não atendem ao nosso apelo. Como já resenhado, os fatos e ideias que mais facilmente
recordamos são os do terreno comum: é porque podemos nos apoiar na memória dos outros
que podemos recordá-los quando desejamos. Os segundos, que dizem respeito só a nós,
constituem um bem mais exclusivo. Contudo, as condições necessárias para que uns e outros
reapareçam não diferem senão em grau de complexidade. Os primeiros estão sempre a nosso
alcance, porque se conservam em grupos nos quais temos liberdade de entrar quando
quisermos, e nos pensamentos coletivos com os quais temos um relacionamento mais
próximo.
Mesmo quando sozinhos, recordamos fatos, pois não há a necessidade de voltarmos ao
grupo para que a lembrança reapareça: nossas lembranças permanecem coletivas e jamais
estamos sós. Poderemos estar sozinhos apenas na aparência, pois o espaço de convivência
dificilmente está sem a presença de outras pessoas. Quanto aos fatos que nos são menos
acessíveis, essa dificuldade é justificada porque pertencem a grupos que para nós estão mais
distantes, com os quais só estamos em contato de modo intermitente.
24
O pensamento de Halbwachs contrasta, nesse sentido, com o de Bergson, para quem o
passado permanece inteiro em nossa memória, como vivido por nós. Se não o recordamos é
porque podem ocorrer dificuldades, em especial o comportamento do nosso cérebro, que
impede a lembrança de evocar todas as partes. As imagens, porém, estariam, em sua
concepção, completas em nosso espírito, como páginas impressas de livros que poderíamos
abrir se desejássemos, mesmo que nunca tenhamos necessidade de abri-las.
Para Halbwachs, o que subsiste em algum lugar de nosso pensamento não são as
imagens prontas, mas as que construímos na convivência com o grupo. Assim, quando em
contato novamente com os que participaram dos mesmos acontecimentos, ou os
testemunharam ao mesmo tempo que nós, ou ainda quando alguém nos conta ou descobrimos
de algum outro modo o que em outros tempos acontecia em nossa volta, na verdade não
estaríamos preenchendo lacunas, mas zonas um tanto indecisas, das quais nossa pensamento
desviava porque aí encontrava poucos vestígios (HALBWACHS, 2006, p. 97-98).
Questionando a possibilidade da intuição sensível, i. e, um estado de consciência
puramente individual, distinto da percepção em que entram elementos do pensamento social,
Halbwachs é taxativo: “nossas impressões não se ligam a nenhuma base enquanto ainda não
nos tornamos um ser social” (2006, p. 43). Não é outro o motivo por que não nos recordamos
de nossa primeira infância.
O sociólogo distingue entre ideias ou reflexões, e percepções, que se limitam a
reproduzir os objetos exteriores: restringem-se a eles e não podem conduzir para além dos
mesmos. Em suma, servem unicamente para nos deixar em disposição favorável ao
reaparecimento da lembrança. Quando a intuição sensível se manifesta pela primeira vez,
ocorre em função do ambiente e do nosso contato com ele. Intuições sensíveis são, pois,
estados individuais, porque não estão ligados a um ambiente, e as relacionamos com nós
mesmos.
É quando a lembrança se destaca do ambiente que se transforma em imagem. Então,
subitamente, as intuições desvendam uma riqueza em nosso eu, representado uma corrente de
combinações ou associações originais, ocasionadas pelo encontro, em nós, de correntes de
uma realidade objetiva fora de nós (os objetos da natureza, como coisas materiais). Nesse
momento, a intuição sensível deixa de existir, mas quando ela reaparecer, será reconhecida,
porque em parte permanecemos em contato com as forças que a produziram.
A memória coletiva sempre acontece em um grupo e em um contexto espacial. Como
o espaço é uma realidade que dura, nossas impressões se sucedem umas às outras e nos
permitem retomar o passado, conservado no ambiente material que nos circunda. Nada
25
permaneceria em nosso espírito se não tivéssemos vivido em uma ambiente material. Como
Halbwachs enfatiza, é
ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que ocupamos, por onde passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça (HALBWACHS, 2006, p. 170).
Seria muito difícil evocarmos acontecimentos se não pensássemos no lugar onde
aconteceram os fatos. Essa relação que estabelecemos do espaço com os acontecimentos
garante a nossas lembranças uma certa eficiência ao serem evocadas, pois as imagens que
temos de espaços e objetos ajudam a fixar os fatos vividos. Sensações, percepções, reflexos e
quaisquer fatos devem ser associados à dimensão espacial; nossas lembranças permanecem
mais vivas em nossa mente quando os momentos vividos estão relacionados a imagens,
lugares, ou sensações de prazer ou desprazer. Isso é verdade a tal ponto que, quando tentados
retroceder a uma época na qual já não conseguimos imaginar os lugares, mesmo muito
imprecisamente, chegamos a regiões do passado que já não são atingidas por nossa memória.
É a imagem do espaço que, por causa de sua estabilidade, nos dá a ilusão de
imutabilidade. Mesmo que o espaço onde aconteceram os fatos mude, ajuda-nos a fixar
melhor as nossas lembranças: “Somente o espaço é estável o suficiente para durar sem
envelhecer e sem perder nenhuma de suas partes” (HALBWACHS, 2006, p. 189). Os objetos
materiais com que temos contato diariamente não mudam ou mudam pouco, e nos oferecem
uma imagem de permanência e estabilidade. São, pois, uma espécie de companhia silenciosa e
imóvel, dando-nos a sensação de ordem.
Esse objetos trazem, a um tempo, a nossa marca e a dos outros. A maneira como
arrumamos nossa casa e nossos móveis nos faz lembrar a família ou os amigos que
compartilham esse espaço. Móveis, enfeites, quadros, utensílios, circulam dentro do grupo e
nele são apreciados, comparados a cada instante, fazendo com que recordemos os costumes,
orientações de moda e de gosto, e diferenças sociais, porque cada objeto e o lugar que ele
ocupa no conjunto nos faz recordar a maneira de ser comum a muitas pessoas. Os objetos que
nos rodeiam têm significados que familiarmente deciframos. São imóveis apenas na
aparência: o lugar que é ocupado pelo grupo recebe a sua marca, que permanece associada a
ele. Tais associações e significações ajudam o processo de rememoração.
Podemos ainda afirmar que os costumes resistem às forças que tendem a transformá-
los e essa resistência permite-nos entender melhor com a memória coletiva se apóia nas
26
imagens espaciais. Se o grupo vive por muito tempo em um mesmo local, passa a adotar
hábitos e costume comuns; também os pensamentos vão sendo regulados pelas imagens
materiais dos objetos e o lugar ocupados por eles.
O lugar habitado por um grupo não pode ser comparado a um quadro, onde
escrevemos e apagamos quando não nos interessa mais o que foi escrito. Por exemplo, quando
habitantes de uma cidade ou de um bairro formam uma pequena comunidade, as convivências
compartilhadas ficarão gravadas para os integrantes que estiveram presentes em uma mesma
região do espaço: imagens espaciais desempenham papel na rememoração da memória
coletiva.
A nossa memória se renova a cada lembrança que temos. Se entrarmos em contato
com objetos ou lugares que já conhecíamos, mas que há muito tempo não víamos, temos a
impressão de que no presente enxergamos coisas não percebidas no passado, talvez porque
nos faltou atenção ao observar ou porque nossa convivência não foi vivida intensamente.
Para Halbwachs, o tempo é “uma coisa muito diferente de uma série de fatos
sucessivos ou uma soma de diferenças” (2006, p. 143). Tal como o espaço, tem uma
dimensão social, e é instrumental na recuperação da memória:
É no tempo, no tempo que é o de um determinado grupo que ele procura encontrar ou reconstruir a lembrança, e é no tempo que se apóia. O tempo e só o tempo tem o poder de desempenhar o papel à medida que nele pensamos como um meio contínuo que não mudou e que permaneceu como era ontem, de modo que podemos encontrar com ontem no hoje (HALBWACHS, p. 146).
Ainda de maneira similar com o que acontece com a concepção de espaço, o tempo
permanece de alguma forma imóvel durante um período bastante extenso, quando serve de
contexto ao pensamento de um grupo que, nesse período, conserva quase a mesma estrutura e
volta sua atenção para os mesmos objetos. Logicamente, esse tempo não se confunde com os
acontecimentos que nele sucederam, nem se reduz a um contexto homogêneo e inteiramente
vazio: nele se encontram vestígios de acontecimentos ou personalidades do passado que ainda
se acham ligados interesses ou preocupações do grupo.
Mesmo essa definição de grupo merece ser esclarecida; para Halbwachs, grupo não se
resume a um conjunto de indivíduos definidos, mas o que o constitui, em sua essência, é
um interesse, uma ordem de ideias e preocupações que se particularizam e em certa medida refletem as personalidades de seus membros, mas são bastante generalizadas e até impessoais para conservar seu sentido e sua importância para mim, e ao mesmo tempo essas personalidades se transformariam e seriam substituídas por outras, parecidas, é verdade, mas diferentes. É isso que representa o elemento estável e
27
permanente do grupo e, longe de encontrá-lo a partir de seus membros, é a partir desse elemento que reconstruo suas imagens (HALBWACHS, 2006, p. 147).
Os acontecimentos desagradáveis, como morte, desunião familiar ou fracasso
financeiro passam a modificar o comportamento do grupo e, consequentemente, sua relação
com o espaço de convivência. A partir desse momento, não será mais o mesmo, e as
influências sofridas por ele levam-nos lentamente à adaptação a um novo espaço. As
diferenças enfrentadas nesse novo grupo resultam da diversidade de funções e costumes
sociais que passam a existir. Aos pouco essa nova associação toma um outro aspecto,
modificando também a mente do indivíduo em relação a ela.
Assim como uma sociedade se compõe de uma multiplicidade de grupos, cada um
deles tem sua própria duração. Assim, não há um tempo universal e único:
Não há um tempo universal e único, mas a sociedade se decompõe em uma multiplicidade de grupos, cada um com sua própria duração. O que distingue os tempos coletivos não é que uns passam mais depressa do que outros. Não se pode nem dizer que esses tempos passem, pois cada consciência coletiva pode se lembrar, e a subsistência do tempo parece muito bem ser uma condição da memória (HALBWACHS, 2006, p. 153).
Por outro lado, como já comentado neste capítulo, Halbwachs não considera as
consciências individuais como isoladas umas das outras, individualmente encerradas em si
mesmas. Distingue a corrente de pensamento propriamente dita da memória: a primeira é
ligada ao corpo, individual, mas não abre perspectiva sobre o passado; a segunda tem sua
origem e curso no pensamento dos grupos a que nos ligamos. Assim, se compararmos
inúmeras consciências individuais, situaremos seus pensamentos ou acontecimentos em
muitos tempos comuns, porque a duração interior se decompõe em muitas correntes externas
à consciência individual, que têm sua origem nos grupos em si. Como Halbwachs resume, “a
consciência individual é apenas o lugar de passagem dessas correntes, o ponto de encontro
dos tempos coletivos” (2006, p. 154).
Quando ligadas a circunstâncias de lugar e tempo, nossas lembranças são melhor
assimiladas, e surgem com mais rapidez. Espaço e tempo servem como elementos fixadores
da memória, despertando em alguma parte do nosso pensamento recordações com mais
precisão.
Como Halbwachs, Pierre Nora pensa a memória a partir de uma perspectiva
sociológica. Concorda com Halbwachs quanto ao fato de que “a memória emerge de um
28
grupo que ela une [e de que] há tantas memórias quantos grupos existem [pois] é, por
natureza, múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada” (NORA, 1993, p. 9).
Interessam a Nora os “lugares onde a memória se cristaliza e se refugia” (1993, p. 7),
uma preocupação que se relaciona à consciência de uma memória esfacelada, mas ainda
suficiente para que se possa colocar o problema de sua recuperação. Assim, o sentimento de
continuidade torna-se residual aos locais: para esse teórico, há locais de memória porque já
não há meios de memória. O tempo dos lugares corresponde ao momento em que desaparece
o cabedal em que vivíamos na intimidade de uma memória. Não sendo vivida do interior,
“tem necessidade de suportes exteriores e de referencias tangíveis de uma existência que só
vive através delas” (NORA, 1993, p. 14).
Os lugares de memória são, antes de tudo, restos e nascem e vivem do sentimento de
que não há memória espontânea e que, portanto, há necessidade de se criar arquivos, redigir
atas, organizar celebrações, pronunciar discursos fúnebres para que os acontecimentos e fatos
envolvidos nesses registros não desapareçam. Como Nora descreve, a memória “não se
acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas,
globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensíveis a todas a todas as transferências,
cenas, censuras ou projeções” (NORA, 1993, p. 9).
Pierre Nora define os lugares de memória de acordo com os três sentidos da palavra:
material, funcional e simbólico. Um lugar de aparência material, como um depósito de
arquivos, passa a ser lugar de memória caso a imaginação investir em uma simbologia; o
funcional, um manual de aula, um testemunho, ou uma associação, só pertencerá a categoria
funcional se for objeto de um ritual. Um arquivo, por exemplo, é um lugar puramente
material, mas tomado como lugar de memória adquire uma conotação simbólica. Por outro
lado, um manual ou um testamento são objetos funcionais, mas serão lugares de memória se
investidos da função ritual. Uma significação simbólica, como um minuto de silêncio, é
também uma unidade temporal que serve para uma chamada concentrada da lembrança.
Em contraste com a relativa fixidez associada por Halbwachs ao espaço e ao tempo
quando pensados sob o olhar da memória, os lugares de memória de Nora vivem sob o signo
da metamorfose, incessantemente ressaltando novos significados e imprevisíveis
ramificações. São lugares “mistos, híbridos e mutantes, intimamente enlaçados de vida e de
morte, de tempo e de eternidade: num espiral do coletivo e do individual, do prosaico e do
sagrado, do móvel e do imóvel” (NORA, 1993, p. 22).
Havendo resenhado o que é e como opera a memória, especialmente através do viés
sociológico de Halbwachs e Nora, que nos parecem mais adequados para examinar a natureza
29
do tipo de resgate da memória levado a efeito em Relato de um certo Oriente,
acompanhamos, nos capítulos seguintes, a maneira como essa retomada se efetua no romance.
Inicialmente abordamos o papel da dimensão espacial (e do tempo ela associada) na
reconstrução desse oriente peculiar que se constrói em Manaus, e a forma como o resgate dos
espaços coopera para a recuperação da historia pessoal e familiar.
30
As lembranças de ter morado em tal casa de tal cidade ou de ter viajado a tal parte do mundo são particularmente eloqüentes e preciosas; elas tecem ao mesmo tempo uma memória íntima e uma memória compartilhada entre pessoas próximas: nessas lembranças tipos, o espaço corporal é de imediato vinculado ao espaço do ambiente, fragmento da terra habitável, com suas trilhas mais ou menos praticáveis, seus obstáculos variadamente transponíveis; é “árduo”, teriam dito os Medievais, nosso relacionamento com o espaço aberto à prática tanto quanto á percepção.
Paul Ricoeur
31
3 “A ESFERA DA INFÂNCIA”
O regresso a Manaus equivale, para a neta de Emilie, a um ingresso “no mar
tempestuoso da memória”. Sabe que o local onde passara a infância, as pessoas que conhecera
e ainda outras que haviam circulado ou ainda lá viviam poderiam ajudá-la a recuperar a figura
da avó, bem como a resgatar as lacunas de seu próprio passado. Sua primeira intenção não é
rever a cidade, mas a casa onde passou sua infância, bem como encontrar-se com Emilie, a
avó que a criou.
Ao se preparar para esse reencontro, traz consigo, entre outras coisas, um pequeno
álbum de fotos, todas feitas na casa de Emilie, a que se refere como “a esfera da infância”
(HATOUM, 2006, p. 163). Dado o intenso trânsito entre a casa de Emilie e a Parisiense, que
também lhe serve de residência por algum tempo, e dado o fato de que esses espaços estão
necessariamente encravados no espaço maior representado pela cidade de Manaus, a esfera da
infância estende-se também a essas ambiências. Assim, ao analisar o espaço no romance
Relato de um certo Oriente, queremos analisar dois espaços, o externo, que é a cidade de
Manaus, e o interno, representado especialmente pelas duas casas, a Parisiense e o Sobrado.
Uma vez que a neta de Emilie deseja, rever a casa onde passou a infância e a avó que
a criou, o regresso à “esfera da infância” implica a recuperação de um lugar e de um tempo a
ele associado. A mesma expressão que é usada no capítulo final para se referir ao espaço onde
passara os primeiros anos de vida é empregada, com pequena variação, ao fim do primeiro
capítulo para aludir ao memorável natal de 54 e ao lugar que abrigou o evento, que os
descreve como o “espaço da nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de
1954...” (HATOUM, 2006, p. 12).
Como Ricoeur comenta com relação as marcas exteriores adotadas com apoios e
escalas para o trabalho da memória, pode-se abordar o par espaço/tempo “pelo lado do
espaço” (RICOEUR, 2007, p. 156-57). Baseando-se no pensamento de E. Casey, no Merleau-
Ponty da Fenomenologia da percepção e em Bacherlard (Poética do espaço), Ricoeur
comenta as relações entre corpo e lugar: uma vez que lugar é “ali onde está meu corpo”, tanto
colocar-se como deslocar-se estão intimamente relacionados a lugar. O ato de habitar
constrói-se ente a alternância de repouso e movimento, e tem suas polaridades próprias:
residir e deslocar-se, entrar, abrigar-se e/ou sair. Sobre essas alterações se dá o ato de habitar,
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residir, deslocar-se e abrigar-se sob um teto, dessa forma, o espaço vivido é construído tendo
o corpo como referencial.
Os deslocamentos do corpo ou sua manutenção num lugar só podem ser ditos,
pensados ou experimentados com relação aos pontos, linhas, superfícies e volumes inscritos
no espaço destacado com referência ao seu aqui ou acolá. Entre o espaço vivido do próprio
corpo e do ambiente e o espaço público intercala-se o espaço geométrico. Este é concebido
como desprovido de lugares privilegiados: desvinculado de relação imediata a nosso corpo,
constitui-se em um “local qualquer”. Por outro lado, na fronteira entre a dimensão do local
vivido e do geométrico situa-se o espaço habitado.
O ato de habitar não se estabelece a não ser pelo ato de construir; a relação entre
habitar e construir forma o terceiro espaço, que pode ser interpretado como o local vivido (e,
portanto, um quadriculado geométrico), ou uma superposição de locais sobre a grade
indefinida possível. O espaço construído é também geométrico, mensurável e calculável, um
lugar no qual a qualificação como local de vida se sobrepôs às propriedades geométricas.
Ricoeur associa a transição da memória corporal para memória de lugares como baseada,
acima de tudo, no habitar. Como os lugares habitados são, por excelência, memoráveis, a
memória se compraz em evocá-los e descrevê-los (RICOEUR, 2007, p. 158-159; p. 59).
Em vão, ainda na clínica, a narradora havia arriscado viagens da memória. Sua
frustração em recuperar a história pessoal e familiar é, simbolicamente, representada pela
colagem que faz a partir de papel picado e lenços com bordados abstratos. A mistura do papel
com o tecido, o preto da tinta e o branco do papel resultam num “rosto informe ou
estilhaçado”. A neta imediatamente associa essa figura disforme ao que se lhe figura como
uma “busca impossível” que, no entanto, impulsiona seu desejo súbito de voltar a Manaus
após tantos anos (HATOUM, 2006, p. 163).
A recuperação do local da infância inscreve-se, assim, inicialmente, dentro daquela
categoria de memórias que resistem à nossa evocação. De acordo com a visão sociológica de
Halbwachs, embora tentemos evocar algo ou alguém, muitas vezes não o conseguimos porque
temos de esperar que circunstâncias, sobre as quais nossa vontade não tem muita influência,
as despertem e as representem para nós. Isso é também verdadeiro com respeito ao
reconhecimento de um lugar, quando este volta a se defrontar no campo de nossa percepção.
Evocar uma região, casa ou qualquer outro ambiente em seus detalhes não se faz
segundo nosso tempo interno e os momentos que a eles correspondem, mas segundo as
mesmas divisões que a realidade apresentava. Caso a intensidade de nosso olhar retrospectivo
o permitir, revemos em uma casa os seus quartos, e, nestes, seus móveis e os detalhes de cada
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um. Como o teórico explica: Divisões e ligações correspondem a uma espécie de lógica
espacial ou material, e é nesta lógica que se apóia a memória das percepções (HALBWACHS,
2006, p. 61). Por outro lado, existe uma lógica da percepção que é de natureza grupal, e que o
ajuda a compreender as noções que lhe vem do exterior.
Há, pois, uma lógica geográfica, topográfica, física, que corresponde à ordem
introduzida por um grupo social em sua representação das coisas do espaço. É isso que
explica o fato de que as nossas lembranças se desenrolam em nosso pensamento em uma
seqüência de associações, pois estando em contato material, encontramos no referencial do
pensamento coletivo os meios de evocar a seqüência dos acontecimentos.
Ao querermos evocar um local, pode ser que não mais tivéssemos voltado a pensar
nele, e que tenha nos sido impossível reconstituí-lo de memória. E, no entanto, como tão
poeticamente descreve o sociólogo francês, conservamos nossa capacidade de reconhecer esse
lugares pois
parece que a lembrança permaneceu, agarrada às fachadas daquelas casas, aguardando ao longo daquele vereda, na borda daquela enseada, nesse rochedo em forma de cadeira - e quando voltamos a passar por lá, damos uma paredinha e ela retoma em nossa memória um lugar que, sem isso, jamais ter sido ocupado (HALBWACHS, 2006, p. 53).
Como Halbwachs continua raciocinando, podemos dizer que jamais voltamos a
encontrar tais lembranças porque deixamos de voltar ao espaço ao qual elas estão atreladas.
Quando essas lembranças reaparecem, deve-se isso não a um conjunto de reflexões, mas a
percepções determinadas “pela ordem em que se apresentam determinados objetos sensíveis,
ordem essa resultante de sua posição no espaço” (HALBWACHS, 2006, p. 53). Por outro
lado, não é absolutamente necessário que voltemos à cena inicial para recuperar a memória
desses espaços, pois talvez não fosse a capacidade de voltar a evocá-los que nos faltasse, mas
a de pensar neles com intensidade suficiente para nos recordamos de todos os detalhes (id., p.
54).
Fosse pelo enfraquecimento dos laços relacionais, fosse pela incapacidade de voltar a
pensar neles com intensidade suficiente, ou talvez porque a falta do primeiro fator conduzisse
ao segundo, a neta de Emilie somente começa a juntar as peças de seu passado no momento
em que adentra em Manaus. Veja-se, por exemplo, a cena de sua chegada à casa de sua mãe
biológica, primeiro espaço que reencontra logo após seu desembarque no aeroporto de
Manaus.
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A narradora planeja chegar à noite, quando o escuro seria o seu aliado, impedindo-lhe
um rápido contato com o passado, o qual tantas vezes havia protelado. Quer evitar as
surpresas que a claridade revela; chegar durante a noite, no escuro, dá-lhe a possibilidade de
olhar sem ser olhada. Deseja sobrevoar a esfera da infância como pássaro que passa
despercebido aos olhos humanos. Ao amanhecer, a luz lhe traria imagens das quais não
poderia mais fugir.
Quando sobrevoa a selva, tudo está escuro. Nenhuma luz a ilumina; nenhum sinal de
vida parece surgir. Quando o avião se aproxima da pista de pouso, a escuridão bruscamente se
altera pela claridade dispersa, mas a visão inicial da cidade ainda é bastante indistinta, e não
consegue diferenciar o asfalto dos caminhos aquáticos da mata, faróis das embarcações e dos
carros, ou de outros pontos iluminados que poderiam ser uma rua, um porto, uma praça ou um
bairro que parece emergir da água.
É ainda noite quando chega à casa da mãe. Não querendo despertar ninguém, dirige-se
ao quintal depois de passar por um caramanchão, uma passagem entre o jardim no fundo da
casa. Nesse espaço, tudo permanece escuro; uma única luz clareia o jardim. A narradora
afasta-se do lugar, parece ainda não se sentir pronta para enfrentar a luz, reentrar na esfera da
infância.
Sob a proteção dos jambeiros e das palmeiras, mais altas que a casa, há cadeiras, mas
ela prefere deitar-se na grama. Adormece olhando de lado a casa quando ainda estava escuro.
Pela falta de luminosidade e pela posição em que está, não a visualiza com clareza, nem os
dois leões de pedra entre os pés de manga que ficam no outro lado da rua.
Ao clarear o dia, a despeito da atmosfera iluminada, a neta de Emilie continua
desconhecendo, pelo menos em parte, o que vê. Aparece em sua frente uma mulher que ela
tentar reconhecer, mas não encontra nada que possa relacionar com alguém que conheceu na
infância. Ao se apresentar para a narradora, a mulher, que se identifica como filha de
Anastácia, uma das afilhadas de Emilie, convida-a para entrar.
Dentro da casa, o aroma forte do café, já servido, faz com que ela reconheça a cor, a
consistência, a forma e o sabor das frutas que colhe, em sua infância, junto com o irmão e
Soraya Ângela, quando anda pelo pátio “da outra casa”, ou seja, da Parisiense. O episódio
relembra a famosa cena das madeleines de Em busca do tempo perdido, quando a personagem
de Proust toma chá com bolo e estremece, pois algo extraordinário se passa em si. O odor e o
sabor, permanecendo por muito tempo, fazem-no então lembrar o tempo de infância.
Não é essa a única ocasião em que a memória olfativa desperta lembranças em Relato
de um certo Oriente. Como Hakim relata mais tarde, também a ele o olfato evoca memórias.
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Lembra tanto os odores agradáveis, como os relacionados à comida, quanto os fétidos. Um
exemplo desses últimos é o odor de Hindié, que o marca mais do que o próprio rosto da
mulher: era capaz de lembrar seu cheiro e não sua fisionomia. A memória olfativa também o
recorda de lugares, o almíscar e o âmbar, pareciam-lhe formar uma espécie de caravana de
odores ao entrar na Parisiense nos sábados à tarde: Há ainda o cheiro das ervas aromáticas,
benjoim, canela e alfazema, com as quais Anastácia perfuma suas roupas, retribuindo-lhe o
gesto caridoso ao defendê-la perante Emilie quando surpreendida engolindo às pressas uma
tâmara ou mastigando um bombom de goma, reservados à família e seus visitantes.
Talvez porque o odor das frutas tenha despertado na neta-narradora as memórias da
infância, antes mesmo de entrar na copa resolve observar os aposentos do andar térreo.
Começa aí a emergir “um certo Oriente” no seio da Amazônia. As duas salas contíguas, que
ficam separadas do resto da casa, estão sombrias, mas cheias de móveis e poltronas,
decoradas com tapetes de Kasher e de Isfahan, elefante indianos e baús orientais com
desenhos em relevo de dragões nas cinco faces. Nas paredes da sala há reproduções de
ideogramas chineses e pagodes aquarelados. Em uma das paredes, a única que não tem
decoração, espelhos reproduzem todos os objetos, duplicando sua presença.
Nas janelas de vidro, cortinas de veludo vermelho impedem que a claridade entre nas
salas; apenas por uma pequena fresta de um vidro mal vedado pode-se ver um tímido raio de
luz. Num canto da parede, um pedaço de papel colorido, uma espécie de rabisco desenhado
por uma criança, se perde entre os vasos de cristal da Bohemia e consolos recapeados de ônix.
A imagem, desenhada em papel, parece duas manchas de cores formadas por estrias, que ela
imagina representar minúsculos afluentes de duas faixas de águas de cores diferentes; uma
figura franzina, definida por poucos traços, rema uma canoa, que não se percebe bem se está
fora ou dentro da água, parecendo estar sem rumo, sem direção.
O desenho desperta-lhe a atenção, pois não tem aparência decorativa adequada para
estar entre a decoração suntuosa que o cerca. A contemplação faz pulsar em sua memória
alguma coisa que a remete de volta à infância, sem contudo, poder precisar exatamente o quê.
A narradora tenta, aqui, efetuar um reconhecimento por imagem. O conceito, formulado por
Bergson, corresponde a ligar a imagem visualizada ou evocada por um objeto a outras
imagens já vistas antes. Esse objeto ou a imagem que visualizamos, nos faz relembrar, na
tentativa de reconhecer, algo correspondente a um fato que já ocorreu: é o que chamamos de
dejá vu.
Fiel a sua visão sociológica, Halbwachs prefere atribuir essa forma de reconhecimento
ao entrecruzamento de duas correntes de pensamento. Primeiro, quando entramos em um
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lugar em que já estivemos numa outra ocasião, em nosso espírito se recobrem duas imagens;
uma é o que temos diante dos olhos e a outra, o que vimos outrora. Essas duas correntes de
pensamento se cruzam em meu espírito, sem ter pensado no lugar. É preciso que voltássemos
ao lugar ou visualizássemos o objeto para que nossa lembrança reaparecesse (HALBWACHS,
2006, p. 56).
Face ao mutismo de sua interlocutora, que também ignora suas perguntas sobre a
criança que a ladeia e sobre a cidade, a narradora decide caminhar em direção à casa de
Emilie. Como lá tudo está em silêncio, lembra que a empregada havia falado que sua avó
costuma sair cedo para comprar peixes e verduras, e resolve andar pela cidade. Começa então
a recuperar a memória da cidade da sua infância. Vê na praça as construções antigas que
sobreviveram ao tempo: os leões de pedra, o javali e a Diana de bronze, que permanecem nos
mesmos lugares, entre as acácias e os bancos onde as pessoas sentam para contemplar as
telhas de vidro do coreto da praça e os répteis rumando à beira do lago. Um dos bancos fica a
meio caminho do coreto e entre duas gigantesca sentinelas de bronze; ali os irmãos sicilianos
costumavam conversar. Os monumentos ainda permanecem ali, porém o banco parece agora
uma lápide abandonada. Nas árvores, no lago, na ponte e nos caminhos não há a presença dos
animais e seu alarido.
Enquanto se afasta do bairro, a neta narradora percorre ruas desconhecidas, e sente um
cheiro forte, que vem acompanhado de cores espalhafatosas de fachadas de madeiras de onde
surgem rostos de curumins que a olham com estranheza, a tal ponto que sente-se como
estranha no lugar em que havia nascido e crescido. Caminha sem rumo por um lugar onde a
geometria é confusa. O rio de sempre é o ponto de referência, já que praça a torre de igreja ali
inexistiam. A neta passa a manhã toda andando por lugares que na infância eram-lhe
proibidos pelos pais por medo das histórias sobre duelos entre homens embriagados, mulheres
prostitutas e ladras, e da lâmina afiada que servia para esquartejar homens e animais.
Ao contrário do que imagina na infância, vê uma cidade antes pobre e suja do que
aterrorizante, uma Manaus recoberta de lodo, água parada, e com paredes de madeiras
tingidas com cores do arco-íris. Crianças nuas e sujas perambulam entre moscas e mulheres
que amamentam os filhos, enquanto preparam as brasas do carvão para fazer a comida; o odor
de peixe frito permeia a ambiência. Ao visualizar o local, percebe que a Manaus vista com os
olhos de criança não tinha o mesmo sentido ao olhos de alguém que, como ela, sai desse lugar
e regressa depois de vinte anos.
Volta para o centro por um caminho onde atravessa o igarapé de canoa, querendo ver
Manaus emergir do Negro, num desejo, talvez inconsciente, de recuperar a cena do quadro
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garatujado que está na parede da casa de sua mãe biológica. Ao atracar à beira do cais, abre os
olhos. Agora não a incomoda a luminosidade, mas o que ela revela: percebe que a vazante
havia afastado o porto do atracadouro; ao caminhar descortina, com horror, uma cidade que
desconhecia, e só então se dá conta dos vinte anos passados fora dali.
A praia por onde passa recobre-se de imundícias, restos de miséria humana e odor
fétido. Caminha sobre um mar de dejetos, cascas de frutas, latas de garrafas, carcaças
apodrecidas de canoas e esqueletos de animais. Sob um intenso calor, vê homens brigando
entre si, sons que imitam alguma frase em inglês, um alto-falante anunciando a partida,
origem e o destino dos barcos para cidades com nomes para ela totalmente desconhecidos.
Descreve o lugar como um espaço caótico:
um labirinto de madeira que se alastrava nas calçadas, nas ruas, na praça. Sobre caixas de papelão havia santinhos e escapulários, desenhos de um dragão verde lancetado pelo santo montado a cavalo, arraias e tucanos raiados pela textura de madeira, sucurijus em miniatura, tangas e pulseiras, colares e pingentes (HATOUM, 2006, p. 125).
Outro fator que lhe causa estranhamento é sua percepção de Manaus como um lugar
onde as pessoas permanecem indiferentes e alheias a tudo, não se importando nem mesmo
com as fotografias tiradas pelos turistas que procuram uma sombra para fotografá-las. Na
parte mais alta da praça em frente à igreja, os moradores e outras pessoas do lugar
permanecem tomados de torpor mesmo diante de uma cena no mínimo inusitada. Os turistas
fotografam o espetáculo do arbusto humano: um homem com aparência de fauno traz nos
braços esticados, no pescoço e no tórax uma jibóia enroscada; nos ombros, uma arara, e
sagüis atados nos punhos e tornozelos.
Toda a cena, com sua estranha mistura de excitação e indiferença, sentimento de
pertença e deslocamento, relembra a descrição de Ricoeur da cidade como espaço
heterogêneo e desafiador:
A cidade também suscita paixões mais complexas que a casa, na medida em que oferece um espaço de deslocamento, de aproximação e de distanciamento. É possível ali sentir-se extraviado, errante, perdido, enquanto que seus espaços públicos, suas praças, justamente denominadas, convidam às comemorações e às reuniões ritualizadas (RICOUER, 2007, p. 159).
Logo, a cena presenciada pela narradora muda: sob o sol escaldante, rajadas de vento e
poeira anunciam um temporal. O espaço se transforma bruscamente; tendas e barcos tentam
reagir à fúria do vento, enquanto um vaivém de pessoas busca escapar da chuva e do vento.
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Parece à narradora ter vivido essa cena em outros tempos, mas não recorda a época nem o
lugar.
A comoção que se arma no espaço exterior irá, em pouco, encontrar eco no espaço
interior, ao descobrir a morte de Emilie. Isso não se dá, porém, antes que experimente ainda
outro espaço da cidade, a igreja, onde se abriga do furor da chuva juntamente com Dorner,
que encontra causalmente. Novamente o ambiente é de escuridão: apenas clareia um pouco o
lugar a luz dos lustres e as dezenas de velas aos pés das estátuas dos santos. Em uma gruta à
direita da nave central, os dois sentam nos degraus de mármore encardido, iluminado por
chumaços de velas brancas por ser um lugar sagrado.
Despede-se de Dorner ao ouvir as badaladas que anunciam a primeira hora da tarde.
Então prossegue a caminhada, agora de volta ao Sobrado, percorrendo a lateral do cemitério.
Caminha apressada, tentando evadir as indagações curiosas sobre o paradeiro de seu irmão.
Chama-lhe atenção um quê de imobilidade na cidade: são os “mesmos vendedores de frutas,
amigos de infância” (HATOUM, 2006, p. 135). Dá uma volta pelas ruas do centro, evitando o
caminho que poderia diminuir a distância entre a igreja ao sobrado. Na entrada da casa, é
impedida por Hindié de entrar, e avisada de que Emilie havia morrido.
A (re) descoberta de Manaus pela narradora contrasta com descrição da cidade sob a
ótica do marido de Emilie. Antes de lá aportar, só sabia algumas histórias sobre o lugar
através das cartas de Hanna: nada fala sobre a geografia ou arquitetura do lugar, conta apenas
que todos se conhecem e que inimigos se esbarram às vezes, descrevendo Manaus como uma
cidade violenta e atacada por epidemias.
Depois de viajar quase três milhas pelas águas, ao se aproximar do porto, procura na
escuridão da noite visualizar um lugar onde pudesse ver terra. Enxerga, apenas, o escuro da
noite e o céu estrelado. Ao amanhecer, próximo da cidade, em poucos minutos a claridade
começa a surgir, revelando diversos matizes do vermelho, como se fosse um tapete no
horizonte de onde brotavam miríades de asas faiscantes. Imagina a cidade de acordo com sua
cultura natal, concebendo os raios solares como lâminas de pérolas e rubis; uma árvore
imensa reconforta-o, ao imaginar que poderia ser aquela a árvore do sétimo céu.
Finalmente, com a claridade do dia, vê o sol, que surge parecendo um olho solitário e
brilhante perdido em tão grande azul celeste; a cidade surge como uma mancha escura que
pode ser vista do barco, com vários casebres de madeiras. Naquele tempo, as construções de
pedra resumem-se à igreja e ao presídio, e pouco sobrados que ficam distantes do rio. Uma
vez que avalia o novo ambiente a partir dos referentes culturais trazidos do Líbano, ao
contrário da futura neta, não teme a claridade, mas a bendiz, e sente-se à vontade na
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Amazônia. Decide fixar morada ali, ao ver a cúpula do teatro, o qual o faz recordar uma
mesquita que nunca tinha visto, mas que conhece través de histórias que contadas nos livros
da infância e pelos hadji do Líbano. Como Chiarelli comenta,
Diante desse imaginário povoado de símbolos providos pelos livros, o pai da narradora ativa o repertório que lhe parece mais familiar, e assim vislumbra na cúpula do teatro, a mesquita, e na árvore amazônica, a árvore do sétimo céu, operando a leitura da realidade através da meditação imaginária da literatura (CHIARELLI, 2007, p. 86).
Não estranha que o futuro esposo de Emilie construa a cidade a partir do seu
imaginário libanês. Como diz Halbwachs, os “habitantes se parecem com o bairro ou a casa.
Em cada época há uma estreita relação entre as atitudes, o espírito de um grupo e o aspecto
dos lugares em que este vive” (HALBWACHS, 2006, p. 88).
Em contraste também com a maneira pela qual a neta vivenciaria a cidade em sua
infância, Manaus, não lhe oferece zonas interditas. O futuro marido de Emilie percorre já de
início a única rua da cidade até chegar à ponte de madeira. Cruza o igarapé, limite entre o
povoado e a floresta, e passa a morar ali, na pequena cidade que mais parece um povoado. Daí
talvez por que, quando quer se distanciar da família, volta à zona das palafitas, seu primeiro
lar na cidade. Logo aprende que naquele lugar a arte dos negócios não é só saber fazer contas,
mas exige malícia, destemor e descaso, o que para o novo morador é considerado como um
desrespeito às leis do Alcorão.
Com referência ao espaço externo, cabe ainda ressaltar que a Manaus conhecida pelo
marido de Emilie em sua juventude parece ser uma cidade onde há uma certa influência
francesa. Menciona-se o marselhês, primeiro dono da Parisiense, encantado com o papagaio
que emite algumas palavras em francês. Emir sabe algumas palavras nesse idioma.
Finalmente, o próprio nome da loja evoca a cidade-luz:
O nome da casa comercial indica natural de, proveniente de Paris, capital da França, símbolo de luxo e de riqueza, a cidade das luzes e da imprensa, da moda e do bem vestir de Chanel, a cidade da vida, do comércio, da troca, debruçada sobre o antigo leito abandonado do Rio Sena, acordada de dia e de noite, lugar do culto arte e à cultura, berço dos grandes escritores, filósofos e cientistas (FREITAS, 2001).
Dentro do espaço externo temos os espaços internos, onde se fixam as duas casas em
que a família de Emilie e os amigos convivem, a Parisiense e o Sobrado, espaços de interação
familiar, e também, no caso do primeiro, de relações comerciais estabelecidas entre o marido
de Emilie, e mais tarde Soraya, com os moradores da cidade.
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Se, por um lado, a neta tem de aceitar, resignada, a impossibilidade do encontro tão
sonhado com a avó, a viagem propicia-lhe o reingresso aos espaços compartilhados com os
demais narradores. Nota que, no Sobrado, os quartos, antes ocupados por aqueles que haviam
partido de Manaus, permanecem arrumados, as camas cobertas com colchas de renda, redes
penduradas dividindo os espaços dos aposentos. Os tapetes de Kasher e Isfahan enfeitam a
sala onde está o relógio negro.
O Sobrado é o primeiro lugar aonde a neta narradora chega depois de anos ausente,
mas é a Parisiense o primeiro lugar habitado pela família de Emilie, para quem serve de
moradia e loja. O local, um casarão rosa, é comprado na década de 1930, quando o marido de
Emilie entra em negociação de quatro meses com um marselhês. Por insistência e artes de
Emilie, a transação inclui um relógio, os espelhos e lustres vindos de Veneza, cadeiras art-
deco e talheres de prata com cabo de marfim.
Dublê de residência e ponto comercial, o sobrado da Parisiense
constitui um espaço no qual tanto existe a relação familiar quanto e de mercado, coexiste o trânsito do privado e do público, intercambia o sagrado e o profano e pode ser compreendido como metonímia de uma diáspora, de um lugar que não está aqui nem acolá e que, no entanto, constitui valores daqui e de lá (FREITAS, 2001).
Por anos, a Parisiense foi o único lugar de convivência, e as interações estabelecidas
entre as pessoas que freqüentavam a loja e a casa são registradas, ressaltando-se o caráter
híbrido peculiar daquela ambiência, em que se celebram festas de natal, mas cultuam-se duas
religiões, falam-se duas línguas, e cultivam-se costumes libaneses e brasileiros.
A língua árabe é falada quase sempre nas reuniões familiares, e o rádio Philco
holandês capta as ondas do ocidente e oriente, sintonizando estações do Cairo e de Beirute.
Costumes orientais manifestam-se nas horas de lazer, nas conversas animadas, no uso do
narguilé e do araque, aguardente típica dos orientais e no jogo de gamão.
Realizam-se confraternizações tanto no interior da Parisiense como no pátio. Nesses
dias de festa, a casa transforma-se num cenário colorido e movimentado. Bem relacionados,
Hindié e o marido recebem visitantes de várias nacionalidades, imigrantes que vivem em
Manaus, como a família do poveiro Américo, os Benemou, do Marrocos, ou ainda o alemão
Gustav Dorner. A convivência entre portugueses, libaneses, alemães, e ainda caboclos e
indígenas, como as duas empregadas da família, Anastácia e Hindié Conceição, demonstra
um ambiente verdadeiramente multicultural.
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As reuniões começam às sextas-feiras ao anoitecer, quando ainda os raios do sol
equatorial iluminam o pátio, e se estendem sábado a dentro, quando é realizado o ritual
sagrado dos libaneses, o sacrifício do carneiro, e se come o fígado cru fresco com pão,
despedaçado por dedos lambuzado pelo azeite e zátar, e passado de mão em mão, enquanto
alguém canta uma canção do Cairo ou recita um poema. Elogiam-se os temperos. Pratos
típicos da culinária libanesa misturam-se aos da culinária amazonense: sobre a mesa estão os
pães de massa folhada, uma cesta com figos da índia, genipapos, biribás, abacaxis e
melancias, os doces de semolina com nozes e mel e a compota de pétala de rosa, que todos
aspiravam demoradamente antes de provar.
Através do relacionamento com Anastácia e Hindié, Emilie aprende os costumes dos
nativos da região, e logo plantas (supostamente) medicinais, capazes de curar qualquer mal,
passam a integrar a geografia da casa. Como Hakim relata, sua mãe jamais vivera no interior
do Amazonas: seu mundo visível resumia-se a Manaus. Seduzida pelo mundo novo que se
descortina pela voz de Anastácia,
Emilie maravilhava-se com a descrição da trepadeira que espanta a inveja, das folhas malhadas de um tajá que reproduz a fortuna de um homem, das receitas dos curandeiros que vêem em certas ervas da floresta o enigma das doenças mais temíveis, como as infusões de coloração sanguínea aconselhadas para aliviar trinta e seis dores do corpo humano [...] Esse relato poderia ser de duvidosa veracidade para outras pessoas, não para Emilie. No jardim tu ainda encontras os tajás e as trepadeiras, separadas das plantas ornamentais. Emilie plantou as mudas naquele tempo e, aconselhada por Anastácia, preparou um adubo com esterco de galinha e carvão em pó para ser misturado à terra, de sete em sete dias durante sete meses (HATOUM, 2006, p. 91).
A festa de natal é um evento particularmente significativo para Emilie. Não por acaso
escrevemos aqui natal com “n” minúsculo: é assim que a palavra é grafada em todo o
romance. Supomos que isso aconteça por ser a festa natalina uma mistura de costumes que
sofrem a influência da religião do marido, não contemplando unicamente a religião católica,
seguida por Emilie. Na cultura árabe, acontecem também comemorações de natal, mas Jesus
não é reverenciado como figura principal, já que é considerado apenas um dos mais
importantes profetas: o verdadeiro profeta é Maomé.
Discórdias oriundas de motivos relacionados à fé cristã e muçulmana marcam o natal
de 54. Embora Emilie e seu marido concordem que aves sejam mortas para prover alimento
para festa, divergem na maneira como essa matança deve ser feita. Em obediência às ordens
do Profeta, o marido de Emilie torce o pescoço das aves e passa a lâmina para que o sangue
caia, enquanto que Hindié as embriaga. Quando bambas, as aves são enforcadas. Morrem
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lentamente, ébrias e com os olhos saltados, enquanto Hindié bate palmas e dá gargalhadas.
Naquele natal, sentindo o cheiro da cachaça dada por Hindié aos perus e as galinhas antes de
abatê-las, o marido de Emilie se revolta.
O episódio dá oportunidade para que se descortinem mais detalhes do Oriente
incrustado em Manaus. A casa está repleta de convidados. Servem-se bandejas de doce,
bombons, frutas secas e vários tipos de tortas da região amazonense; tal como a comida, a
decoração denuncia também influências culturais múltiplas:
O teto da sala estava coberto de balões furta-cores, e por toda a casa se espalhavam bolas de sumaúma enroladas em papel crepom, que encerravam caixinhas com caramelos e chocolates recheados de castanha. Eram tantos objetos coloridos que reluziam dentro e fora das vitrines que a festa de natal lembrava os preparativos carnavalescos; só faltavam as máscaras e fantasias para a ceia religiosa tornar-se uma festa pagã (HATOUM, 2006, p. 38).
A vingança do marido de Emilie, que aproveita o momento em que a casa está cheia
de visitantes, que ouvem música e degustam as iguarias preparadas por Emilie e suas serviçais
para quebrar os santos, deixa entrever detalhes sobre os santos cultuados pela mulher. À
medida que a descrição prossegue, narra-se como os santos de gesso e de madeira são
destruídos, a imagem da Nossa Senhora da Conceição espatifada e o Menino Jesus
destroçado. Escapam da fúria apenas as iluminuras, compradas na Península Ibérica, o
oratório de caobá e a Nossa Senhora do Líbano.
O local que o marido encontra para quebrar as imagens não é escolhido ao acaso. Ali
sobre o tapete, o lugar onde ergue suas preces, estão símbolos sagrados, com significações
que Emilie desconhece:
[...] tapete cujo desenho lembra o da Porta do Sepulcro, com suas rosáceas e hélices, com seus círculos, quadrados e triângulos, e um delicado motivo floral, geométrico, dentro de um hexágono inscrito num círculo. Elas não sabiam (talvez só meu pai soubesse) que naquele tapete onde catavam fragmentos de gesso e estilhaços de madeira para reconstruir as estatuías dos santos, a geometria dos desenhos simbolizava a criação, o sol e a luz, a progressão cósmica no tempo e no espaço, o ciclo das revoluções do tempo terrestre, e a eternidade. E que no centro do tapete, num meio círculo desbotado pelo contato assíduo de um corpo agachado para orar, havia uma caixa ou um cofre que encerra o Livro da Revelação, representado por um pequeno quadrado amarelo (HATOUM, 2006, p. 44).
Com a escolha de lugar, o marido simbolicamente coloca as duas religiões em um
campo de luta através de objetos sagrados. Seus costumes religiosos saem vencedores: as
imagens que são espatifadas em cima do tapete não representam mais nada, estão em cacos,
enquanto o tapete está intacto, e facilmente voltará a ser como era com uma limpeza,
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preservando todos os seus símbolos e significações. Já as imagens necessitaram ser
recompostas, e guardam para sempre marcas do estrago sofrido.
A recusa do esposo de Emilie em compartilhar as festividades em ambiente em que
suas crenças haviam sido desrespeitadas serve ainda para mostrar outro aspecto da ambiência
de Manaus, a Cidade Flutuante. Como escolhe dormir na casa de um compadre, o leitor é
apresentado a um tipo de habitação muito diferente da Parisiense ou do Sobrado, a palafita
pintada de rosa e verde, cercada de latas de querosene entulhadas de tajás, açucenas e flores
do mato.
Os desentendimentos vão além da noite fora de casa e das imagens quebradas. O
marido passa a esconder as imagens dos santos de Emilie; Hakim, que descobre o esconderijo,
na prateleira da Parisiense, entre grinaldas e vestidos de noiva, as devolve à mãe. Emilie
espera com paciência junho, mês do Ramadan, e esconde o Livro das Revelações, deixando o
marido transtornado, levando-o a fechar a loja. Não permite que ninguém entre, até encontrá-
lo.
A Parisiense é ainda o local cujos cômodos e objetos servem para introduzir Hakim à
língua dos pais. O menino espera com ansiedade para aprender essa língua, pois quando ouve
o pai falar a língua árabe, pensa ser falada somente por adultos. A fala do pai no dia em que
esbraveja fechado na Parisiense, pela falta do Livro das Revelações, e as misteriosas linhas
escritas pela mãe em um bilhete para avisar ao esposo onde o livro está, despertam em Hakim
uma curiosidade desmesurada por aprender a ler e o idioma.
A aprendizagem da língua dos pais é iniciada com a história, narrada por Emilie, da
bisavó Salma, que morre aos 105 anos, com quem ela havia aprendido a ler e escrever antes
de ir para a escola. Assim, a introdução à língua ancestral corresponde à imersão na história
familiar. Além disso,
o ato de ensinar ao primogênito a língua árabe revela o desejo da personagem de compartilhar a sedução das palavras, que passam de linhas indecifráveis a uma realidade sólida, sonora. Significa proferir uma linguagem cifrada, para poucos eleitos, uma vez que não seria compartilhada com nenhum membro da família (CHIARELLI, 2007, p. 83).
Por outro lado, as lições significam para Hakim, ainda, adentrar nos espaços da casa
antes reservados aos adultos. É através dos objetos em comum da família que aprende a falar
a língua materna, e as primeiras lições são na Parisiense. O exercício de nomear os objetos
que estão ali envolve peregrinar por quantos nunca dantes percorridos, entrar em cubículos
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iluminados parcialmente, e nomear os objetos que ali se encontram. Nenhum objeto quer
mercadoria, quer de uso pessoal, escapa a essa perquirição:
cadinhos de porcelana, almofadas bordadas com arabescos, pequenos recipientes de cristal contendo cânfora e benjoim, alcovas, lustres formados de esferas leitosas de vidros, leques da Espanha, tecidos, e uma coleção de frascos de perfume que do almíscar ao âmbar formavam uma caravana de odores de que eu aspirava enquanto repetia a palavra correta para nomeá-los (HATOUM, 2006, p. 51).
Para o menino Hakim, que sente medo dos lugares, e não entende “por que o contato
inicial com um idioma inaugurava-se com a visita a lugares recônditos”, os atos de percorrer e
nomear correspondem a apossar-se do espaço, e integrar-se na herança cultural familiar. Todo
o ritual é digno de nota; só depois da peregrinação entre os quartos da loja e as vitrines,
Hakim começava a escrever sentado a uma mesa da sala, preenchendo folhas e mais folhas de
almaço com palavras que eram levadas ao pai para que as corrigisse.
Os objetos apontados a Hakim por seu pai, pertencentes à cultura árabe, são usados
sem qualquer restrição; já os relacionados à história de vida de Emilie são guardados em
sigilo, sem que ninguém se aproxime deles. Ao contrário do marido, Emilie esconde os
objetos que pertencem a um passado que ela escolhe a quem revelar ou ocultar. Nas tardes em
que o esposo ensina Hakim a ler, Emilie desaparece, entrando no esconderijo onde guarda
seus segredos, espaço inviolável, que só vem à tona quando acontece a mudança para o
Sobrado:
Só quando mudamos para a casa nova (o sobrado), o santuário de segredo desmoronou. Mudar de casa traz revelações, deixa mistérios, e na passagem de um espaço a outro, algo se desvenda e até mesmo o conteúdo de um pergaminho secreto pode tornar-se público. Os objetos do esconderijo da Parisiense ela arrumou no baú lacrado que carregou sozinha, caminhando ao longo de dois quarteirões que separavam as duas casas (HATOUM, 2006, p. 52).
Os objetos cuidadosamente ocultos por Emilie constituem-se em verdadeiros lugares
de memória, suportes exteriores e tangíveis de uma existência que agora só vive através deles.
Entre estes, destaca-se o relógio preto, antes pendurado na parede da Parisiense, e que depois,
no Sobrado, rigorosamente oculto: uma peça falsa de cedro do Líbano sobre um console
oculta um par de chaves que dá acesso a um grande armário, dentro do qual estão luxuosas
indumentárias orientais, ousadas em sua mocidade, e um baú, dentro do qual jaz o relógio
deitado. Por sua vez, o relógio guarda pulseiras de ouro, argolas delgadas, entrelaçadas por
nós quase invisíveis, e cartas.
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É quando o pensamento de Hakim busca encontrar o de sua mãe em torno desses
objetos, resgatando sua intimidade, que eles passam a adquirir, para ele, nova significação. Só
então entende que as quatro argolas de ouro relacionam-se ao número de filhos de Emilie. Por
outro lado, vem a entender a relação entre o relógio e a fé católica da mãe somente depois que
Hindié lhe relata sobre o tempo passado pela mãe no convento.
Já para o marido de Emilie, que sempre amou o isolamento, o Livro Sagrado constitui-
se em rastro da pátria distante, e fonte de identificação com a cultura libanesa. Na loja atrás de
um balcão, olhar fixo nas páginas de um livro espesso, concentra-se em suas leituras, na
quietude da Parisiense:
[...] a loja A Parisiense aparece como esfera ligada ao pai. Espécie de concha protetora, fechado sobre si mesmo, o estabelecimento parece separado do mundo, lugar de absoluta introspecção. É na quietude do espaço recluso que o personagem se dedica à leitura do Corão, onde se refugia em momentos de conflito (CHIARELLI, 2007, p. 83).
Aos poucos as casas ficam desertas. Com a morte do pai, Samara, filha de Emilie
gerencia a Parisiense, fazendo dela mais do que um espaço de habitação. No Sobrado, Emilie
envelhece sozinha, acompanhada apenas pela fiel Hindié e outras servidoras. Os quartos
permanecem arrumados com colchas de rendas; redes dividem o espaço dos aposentos e os
tapetes de Kasher e Isfahan enobrecem a sala onde está o relógio negro. Emilie alimenta a
esperança do retorno de Hakim que fora morar para Espanha e de Samara que também partiu
sem dar explicação. Com os dois filhos inominados Emilie não tinha tanto apego, pois os
mesmo só visitavam quando precisavam de dinheiro.
Ao falar dos valores da intimidade do espaço, Bachelard comenta:
a casa é o nosso mundo, evidencia o nosso ponto de referência no mundo, como signo de habitação e proteção. Essa imagem da casa constitui-se um devaneio imemorial; promove a comunhão entre memória e imaginação, lembrança e imagem. É como se a memória da primeira moradia acompanhasse-nos durante toda a vida, todo sonho e devaneio, como se ela fosse indelével na nossa imaginação (BACHELARD, 1974, p. 358).
Unidas pelo contínuo vai e vem da família entre o espaço comercial e o residencial, as
duas casas permanecem associadas na memória daqueles que as frequentaram. Mesmo depois
de ter sido vendida, após Samara abandonar Manaus, e, portanto não mais fazer parte da
propriedade familiar, a Parisiense está ainda muito presente nas lembranças daqueles que lá
conviveram, pela força dos acontecimentos iniciais, que marcam a vida de pessoas. A
presença do Sobrado e da Parisiense é tão forte que é com surpresa que ao chegar ao fim do
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romance o leitor se dá conta de que a última já não mais existe, e que o movimentado mundo
erguido em torno da habitação de Emilie está já em grande parte acabado, e irá, em pouco
tempo, se desfazer com a morte da matriarca.
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– Sabes que nunca precisei deles, mas Emilie... como podia viver sem ela?
Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente Como o período em que estabelecem as bases de um novo grupo não estaria repleto de pensamentos intensos, destinados a durar? Assim sobrevive o espírito dos fundadores em mais de uma sociedade, por mais curto que tenha sido o tempo dedicado aos alicerces.
Maurice Halbwachs
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3 A “SOMBRA ESPESSA DE EMILIE”
O passado, “perseguidor invisível”, importuna a neta de Emilie, levando-a a vasculhar
épocas e lugares situados muito longe de sua breve permanência em Manaus. Esse desejo
torna-se ainda mais intenso quando, após o enterro da mãe adotiva, encontra-se com Hakim,
que é, dos tios, o único que pode considerar “uma fonte de segredos”: somente ele reúne o
conhecimento e a disponibilidade suficiente para falar acerca do passado. Nesse momento,
família e amigos relembram acontecimentos da vida da falecida. A conversa se estende noite
afora, pois todos têm algo a dizer ou recordar ao pé da mesa, onde são servidos bombons,
doces, café, suco e aguardente. Nisso também relembram Emilie, que sempre fora a
organizadora das festas de confraternização dos finais de semana e do natal. Como todos os
outros, a neta sente-se envolta “pela sombra espessa de Emilie” (HATOUM, 2006, p. 30), e
intensifica-se nela o desejo de conhecer a vida da avó numa época anterior a seu convívio
com ela.
Personalidade forte, Emilie influencia a vida dos familiares, amigos, conhecidos e até
desconhecidos que a procuram. É, de fato, a “mãe do mundo”, apelido que recebe daqueles a
quem arruma emprego, encaminha ao Doutor Héctor quando doente, liberta do presídio ou
ainda sacia a fome com uma refeição. Como Hakim resume, “ninguém poderia viver longe de
Emilie”.
Parece-nos que as personagens vêm surgindo à luz da matriarca, que vai trazendo à
tona os narradores, ligados a ela por laços familiares ou pela convivência: amigos e serviçais
que passam a fazer parte do seu cotidiano. A recuperação de sua vida pela neta acontece
através do entrecruzamento de relatos daqueles que convivem com ela: filhos, serviçais e
amigos, que narram os acontecimentos vivenciados, testemunhando a presença de Emilie
tanto no seio da família como na sociedade.
A recuperação do passado começa, para a neta de Emilie, já bem cedo na manhã
imediata à sua chegada a Manaus, horas antes de descobrir a morte da avó. Recém desperta,
ainda no pátio, onde resolve passar a noite, depara-se com uma mulher em quem não
consegue recordar nenhum traço familiar. Apresenta-se a ela, e indaga seu nome. Nesse
momento, inicia a juntar os elementos que farão ressurgir aos poucos a figura de sua avó. A
resposta da mulher, “Sou filha de Anastácia e uma das afilhadas de Emilie” (HATOUM,
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2006, p. 10), deixa entrever o fato de que Emilie tinha muitas afilhadas, e, portanto era uma
pessoa benquista, com amplos relacionamentos. Essa imagem e confirma no decorrer do
romance, em que, gradativamente, se apresenta a mãe, esposa, vizinha, amiga, benfeitora dos
agregados e até dos desconhecidos.
Das muitas empregadas que passam pela casa de Emilie, poucas ficam, já que os filhos
inominados as submetem a abusos sexuais. Descritos como filhos ferozes, esses rapazes, de
quem jamais se menciona o nome, distinguem-se dos demais membros familiares pelo
descaso e pouco afeto que demonstram para com familiares a quem julgam mais fracos, bem
como para com os serviçais. Perseguem a irmã, Samara, ao saber que engravida, tornando-se
mãe solteira; rejeitam a sobrinha, Soraya, e só não agem com maior perversidade por saber do
apreço dos pais pela neta, e temer que eles lhes neguem dinheiro caso radicalizem ainda mais
sua conduta para com a irmã e a sobrinha.
Dadas as circunstâncias familiares, não admira que, ao selecionar uma nova agregada,
a escolha de Emilie recaia sobre Anastácia Socorro, uma menina tão faminta e triste que havia
esquecido o nome, e que se comunicava por gestos e suspiros. Recolhe-a dentre as meninas da
Legião Brasileira de Assistência, e a traz para a casa, num gesto de caridade, talvez, mas que
bem poderia ter sido intencional, pois, pouco atraente, a menina poderia escapar aos ataques
dos filhos. Fosse qual fosse a intenção inicial quando do acolhimento da menina, o fato de que
a filha e a neta de Anastácia continuam no convívio de Emilie indica que um longo
relacionamento teve lugar entre elas.
O mutismo com que a filha de Anastácia reage aos múltiplos questionamentos de sua
interlocutora sobre os fatos passados tanto no seio familiar como sobre a vida na cidade
prolonga-se até a neta que informe que irá sair para visitar Emilie. Pela primeira vez a mulher
a contempla com o olhar sereno e demorado, e solicita-lhe que leve um pouco de mel a
Emilie, pois é a coisa de que ela mais gosta. Torna-se claro que essa agregada não somente
tem afeição por Emilie, preocupando-se com suas preferências alimentares, como sabe sua
rotina: seu pouco sono, a ida, cedo de manhã, ao mercado para comprar peixe, a conversa com
os animais na volta do mercado, e o sonho constante de reencontrar a neta e seu irmão.
A neta de Emilie intui, nas poucas palavras pronunciadas pela mulher, que ela conhece
muito de sua avó; nela há “uma parte da vida passada, um inferno de lembranças, um mundo
paralisado à espera de movimento (HATOUM, 2006, p. 11). É, porém, uma conversa com o
tio, Hakim, pouco depois do enterro da avó, que lhe propicia a “chave da memória” que
acionará os mecanismos que lhe permitirão recuperar esse passado. Como o tio lhe garante
quando ela pede que lhe esclareça fatos sobre o relógio negro e sobre outras coisas que a
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deixam intrigada, pode passar o resto da vida falando do passado”, e o prova. O encontro
inicia na noite de domingo, e prolonga-se até a manhã de segunda-feira. Hakim interrompe-se
apenas para tomar alento, e depois “retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de
cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória” (id, p. 32).
O relógio negro, que tanto intriga a sua sobrinha, também fora fonte de curiosidade
para Hakim desde a infância. Também o avô (o marido de Emilie) acha estranho o fascínio
pelo objeto da parte de alguém que não guia sua vida pelo horário imposto pelo relógio nem
em Trípoli nem em Manaus.
Já aos três anos, Hakim indaga à mãe sobre o relógio, recebendo apenas respostas
evasivas. É somente anos depois, quando arranca um relato de Hindié Conceição, que tem a
curiosidade sobre o objeto parcialmente saciada, e ganha acesso ao “passado obscuro” da
mãe. Através dessa conversação, o leitor ganha acesso à época mais distante da vida de Emilie
recuperada no livro: sua juventude no Líbano, e sua passagem pelo convento, sobre a qual
nada conta aos filhos.
O fato acontece quando seus pais, Fadel e Samira, os avôs da narradora, vêm ao
Brasil, deixando seus filhos na casa de parentes. Desesperada pela ausência dos pais, Emilie
desgarra-se dos irmãos e vai parar no convento, do qual sua mãe já havia lhe falado. Ao
chegar, entra na sala da Irmã Superiora ao meio dia, quando ouve as doze badaladas de um
relógio negro que enfeita a parede branca de sua sala. O som do relógio lhe parece algo
situado entre o céu e a terra, divino, e fica boquiaberta, extática.
Compara o som das batidas a mil vozes secretas, capazes de acalmar as noites de
agonia, conduzindo os fiéis para o altar para rezar, arrepender-se de seus erros e meditar em
silêncio. Talvez seja essa associação que a leva, já em Manaus, a suspender toda e qualquer
atividade em que esteja empenhada para ouvir o som quase imperceptível do sino da igreja
dos Remédios. Pára de trabalhar, interrompe sua ação de polir os anjos de pedra que estão no
pátio, não dá ordens a Anastácia e contempla o céu como se encontrasse entre as nuvens o
relógio. Hindié confidencia à neta que Emilie fecha os olhos quando lembra aqueles
momentos “diáfanos da vida”.
No convento, a jovem Emilie passa a ser responsável por tocar o sino no início e no
final das orações diárias, atribuição dada a ela pela irmã Verginie Boulad pelo fascínio que
tem pelo relógio. Essa rotina é interrompida pela intervenção de seu irmão Emir que, como os
demais familiares, procura pela desaparecida por duas semanas. Finalmente, quando chega ao
convento através de pistas dadas por pessoas que diziam que a filha de Fadel se abrigara entre
as freiras, Emir entra sem a menor reverência, gritando o nome da irmã e exigindo que ela se
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apresente. Ao vê-la toda vestida de branco, com o rosto delimitado por um plissado de
organdi, fica mais furioso ainda: a vestimenta causa mais ira do que a própria fuga. Saca uma
arma e ameaça suicidar-se, caso ela permaneça ali. Emilie ajoelha-se aos pés da Irmã
Superiora, suplicando a sua intercessão. É dispensada do convento, pois, como lhe diz a
superiora, pode servir a Deus em qualquer outro lugar, caso seja essa sua vocação.
Hakim lembra a mãe reconfortada, radiante de alegria, ao ver os filhos devorar
quantidades de alimentos, como se mastigar e ingerir fosse sinônimo de felicidade. Como
Boris Fausto reflete, a comida é a materialização de um elo afetivo poderoso para as gerações
de imigrantes, sobretudo ao ser perpetuada por mãos femininas e se afigurar como elo com o
tempo sem retorno da infância na casa materna (FAUSTO, apud CHIARELLI, 1998, p. 56).
O cheiro das frutas leva Emilie a recordar as lembranças da terra onde viveu em sua
infância. De acordo com o próprio testemunho de Emilie, o aroma do cupuaçu e da graviola,
frutas amazônicas que exalam um cheiro durante o dia e outro à noite, serve mais para saciá-la
através do olfato do que para matar a fome, uma vez que esse perfume a faz lembrar os figos
de sua terra natal: “Só os figos da minha terra me deixam estonteada desse jeito”, diz
(HATOUM, 2006, p. 89). Levada por esse aroma, Emilie é capaz de evocar passeios entre as
ruínas romanas, os templos religiosos, as brincadeiras no lombo dos animais, as caminhadas
pelas cavernas que atravessam as montanhas de neve até alcançar os conventos pendurados
sobre abismos.
Parece que a vocação religiosa de Emilie é bem anterior ao momento em que,
aproveitando a viagem dos pais, se enclausura. Em suas memórias, relembra caminhos
alternativos para chegar aos conventos e as paisagens que então descortina. Além da
passagem pelas cavernas, pode chegar aos conventos através da escada construída pela ação
do tempo, com pedras arredondadas pela neve, ao longo das montanhas. Do alto avista a terra,
o rio e o mar. Muros circundam os edifícios suntuosos e solenes, e uma outra paisagem surge
como um milagre: córregos em meio de um bosque com videiras, oliveiras e figueiras que se
alastram perto da igreja e das celas onde os solitários nutrem sua fé.
Essas memórias transportam Emilie a um passado e local distantes de uma maneira tão
profunda que Hakim lembra como, às vezes, ao ser interrogada por Anastácia, que quer saber
como era o mar, as ruínas, ou Balbek, deixa escapar frases inteiras em árabe. Dá a entender
que, nesse momento, em pensamento, Emilie está em sua terra natal, muito longe de
Anastácia e do Sobrado.
Para Emilie, Manaus se resume apenas à cidade. Assim, quando Anastácia fala de
assuntos misteriosos sobre a mata, fica hipnotizada, por saber que existe um outro lado com
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plantas que curam doenças, e ervas que não curam nada, mas assanham a mente. Hakim
lembra que Emilie, a mando de Anastácia, prepara um adubo com esterco de galinha e carvão
para colocar nas plantas do jardim de sete em sete dias. Como resultado, a vegetação verde se
espalha e passa a ser morada de cobras, que começam a exterminar a criação de galinhas.
Emilie, supersticiosa, diz: “Prefiro conviver com as cobras a ter que suportar uma ponta de
inveja desse ou daquele” (HATOUM, 2006, p. 91).
Como Hindié recorda, é ainda através da convivência com Anastácia que Emilie adota
a cura natural, e aprende o uso dos remédios da natureza, usando os preparados
confeccionados por Lobato Naturidade a partir de ervas. Recomenda-os tanto a Esmeralda,
esposa do Dr. Rayol, para curar o marido que de diabetes, como aos pobres e desempregados.
Esse é apenas um aspecto das ações humanitárias de Emilie, que justificam seu apelido
de “mãe do mundo”. Empenha-se para não faltar nada aos moradores da Cidade Flutuante.
Desocupados e mesmo presos acham nela um ser sempre disponível a ajudá-los e defendê-los.
No dia de sua morte, após a missa rezada pelo arcebispo de Manaus, um séquito de afilhados
reúne-se ao cortejo. À frente vão os filhos com as esposas; três amigas alugam um carro para
levar os humildes admiradores de Emilie.
Anualmente, por ocasião do aniversário do falecimento do irmão, Emilie distribui
donativos aos pobres. A preparação começa cedo, na véspera, quando ampolas com néctar de
jenipapo são distribuídas nos galhos dos jambeiros para alimentar os beija-flores, e vasos e
canteiros de flores são regados. Os afilhados de Emilie, Hindié, Mentaha e Yasmine preparam
pratos da culinária oriental e amazônica. Os alimentos são depois distribuídos em cestas, que
cobrem o corredor da cozinha. A matriarca inspeciona tudo no final do dia, dá ordens aos
afilhados para que tirem as teias de aranha e casas de cupim, limpem as nódoas no tabuado e
o bolor das paredes.
Nesses dias, Hakim lembra, a mãe tem um rosto tão cansado que chega a aparentar
mais idade do que de fato tem. Mas na manhã seguinte, ela se ilumina, veste um tailleur negro
e um colar de pérolas. O rosto, liso como marfim, é emoldurado pelos cabelos pretos e
ondulados, e uma flor vermelha de jambo, presa atrás da orelha, combina com a cor dos
lábios. Ao avistá-la, o marido, que não aprova a festividade, estremece de ciúmes. Diz que
não pode descansar na hora da cesta, pela falta de sossego, e por essa reclamação Emilie se
vinga. Embrenha-se, com Hakim, no depósito da loja, e doa o fruto de seus saques, retalhos
de algodão e peças de chitão, aos necessitados. O dia festivo pode ser compreendido como
uma ocasião para amenizar a ausência de Emir, e também a culpa sentida por sua morte.
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Esses gestos caritativos de Emilie começam a rarear quando Soraya morre acidentada.
Naquela manhã, Emilie levara seu neto, irmão da narradora, ao mercado; os tios dormiam e
Samara Délia trabalhava com seu pai na Parisiense. A neta narradora, então uma criança,
brincava com Soraya no jardim com sua inseparável boneca de pano, confeccionada pela avó.
Descuidando-se por momentos da prima, a narradora ouve um baque surdo. Procura acreditar
na hipótese de que Soraya tivesse escondida no jardim, embora intuísse desde o início o que
tinha acontecido, como conta ao tio Hakim, que se precipita para a rua a tempo de retirar a
boneca das mãos das crianças. Em seguida, vê Emilie debruçada sobre um lençol manchado
de vermelho, suas compras esparramadas no chão, bem junto ao corpo da menina.
Abalada com o acidente de Soraya, Emilie compreende como um castigo a morte da
neta e a partir daí, passa a ter um certo desencanto pela vida. O trato de Emilie com Soraya é
um dos múltiplos exemplos de seus cuidados com os netos. Como a neta que volta a Manaus
recorda, em contraste com os demais membros da família, que hostilizam a filha de Samara,
que além de ilegítima é surda-muda, Emilie ama a neta e se orgulha dela. Confecciona para
ela boneca de pano em que mal se delineiam a boca e o ouvido: talvez quisesse dar à neta
brinquedo com que pudesse se identificar. Considera seu nome, rabiscado pela menina no
casco da tartaruga Sálua no natal de 54, como seu melhor presente naquele dia; e deleita-se
com a admiração provocada em toda a hoste de mulheres que a cerca o fato de que a menina
já seja “letrada”.
Como a neta ainda relembra, Soraya e seu irmão, então uma criança de dois anos, são,
em sua infância, seus companheiros de folguedos no pátio da Parisiense. Na carta que envia
ao irmão após a morte da avó, recorda, ainda, como Emilie o vestia com uma camisolinha de
cambraia de linho, em que borda duas cabeças de cavalo. O menino apresenta-se com
camisola até o joelho, botas de soldado e meias brancas de algodão com as iniciais do nome
bordados com letras gótica: Emilie o veste como um príncipe, e o coloca sentado em uma
cadeira bem alta. De seu trono, é contemplado pelas pessoas que passam próximo da parreira
do pátio, onde senta para se proteger do sol; as amigas da avó o arejam com leques, e Emilie
assiste, deliciada, a essas cenas de idolatria.
A cena que mais se entranha na mente da neta de Emilie, porém, é a do dia em que a
prima morre. Lembra-se de ter procurado o irmão que estava com Emilie; enxerga só a avó
debruçada sobre um volume coberto por um lençol manchado de vermelho. As compras
espalham-se pelo chão, e os soldados ameaçam com cacetete as crianças que tentam pegar os
peixes, legumes e frutas espalhados sobre as pedras cinzentas. Esse é, para a narradora, um
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momento-chave, pois, como lhe observa o irmão, “a vida começa verdadeiramente com a
memória” (HATOUM, 2006, p. 22).
O relato da matriarca é dado por inteiro, não apenas as virtudes, como as fraquezas, os
privilégios concedidos a alguns, e as discriminações em relação a outros. Quando descobre
que Anastácia é sobrinha de Lobato, coloca-a para fazer as refeições à mesa com a família,
usando talheres e pratos, degustando de igual a igual com a família as delícias preparadas por
ela: os pastéis de picadinho de carneiro, os folhados de nata com tâmara, e o arroz com
amêndoas. Dado, porém, o odor repugnante de seu do corpo, é banida da mesa a pedido dos
filhos de Emilie.
Tal como Hakim, Hindié é descrita como alguém que tem imensa necessidade de
relatar as vivências do passado. Como ele, precisa apenas de um estímulo que ponha em
movimento seu “inferno de lembranças”. Ao narrar a Hakim a vida passada de Emilie, Hindié
só pára de falar para tomar fôlego e enxugar o suor; Hakim acompanha os gestos com que
Hindié pontua a conversa sem pestanejar e sem se intrometer: só ela faz uso da palavra. Por
ser confidente de Emilie e ter participado dos acontecimentos vividos na Parisiense, é capaz
de contar, também, o fato ocorrido no natal de 1954.
Quando a casa fervilha de gente, a saída intempestiva do marido de Emilie faz gelar os
ânimos. Faz-se silêncio profundo. Emilie mostra sua presença de espírito: aumenta o som da
vitrola, começa a bater palmas e conversar, e tira Hakim, então um menino, para dançar.
Depois, convida a todos a jantar, insiste que fiquem. Coloca o filho na cabeceira, no lugar do
esposo. Apesar de tentar demonstrar naturalidade e alegria, não consegue disfarçar
completamente a tristeza que sente. Sai, dizendo que iria trocar de blusa, estava empapada de
suor. Volta logo, mas o rosto já não tem com o mesmo brilho.
Outra recordação que mostra como Emilie finge ser forte, mesmo quando triste, é o
relato de Samara, que lembra que a mãe vai até a Parisiense, e entra no quarto para chorar.
Nunca declara o motivo do choro, mas a filha deduz ser a ausência de Hakim, a morte do
irmão Emir e de Soraya, ou a idiotice dos filhos inominados e ferozes.
É quando a família se muda da Parisiense para o Sobrado que Hakim observa a mãe
carregar sozinha um baú lacrado por quase dois quarteirões até chegar ao Sobrado.
Acompanha o trajeto da mãe, escondendo-se atrás do tronco das mangueiras para não ser
visto por ela; não consegue, porém, segui-la dentro da casa, de forma que não sabe onde
guarda o baú. Já então tem quase vinte anos, e sua curiosidade é ainda maior que em criança.
A busca estende-se por semanas, mas é recompensado: encontra o local de acesso a enorme
armário e, dentro dele um baú forrado de veludo preto. Nele encontra o relógio negro, e o
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hábito usado no convento, já salpicado de bolor, com manchas amareladas pelo tempo, e a
auréola plissada sobre o hábito. Há também uma roupa luxuosa, costurada com brocados
magníficos, usada por ela ainda quando estava em Trípoli. O relógio contém em seu interior
cartas datadas de 1898 a 1924, assinadas por V. B., e jóias: duas pulseiras de ouro e argolas
delgadas entrelaçadas por nós quase invisíveis.
Esses achados são relevantes porque dão acesso a Hakim, pela primeira vez, ao
“mundo íntimo de Emilie” (HATOUM, 2006, p. 53). Ao contemplar a roupa da mãe, imagina
como ela seria vestida com aquela roupa quando adolescente; a pulseira o faz relembrar o
bracelete com quatro argolas enroscado no antebraço de Emilie, como uma tatuagem dourada.
Alguns segredos permanecem, porém tais, como a origem de um segundo bracelete que
passou a pertencer a Emilie quando o irmão caçula nasceu.
As cartas revelam os laços de amizade que Emilie e a irmã Verginie Boulad mantém
depois da vinda de Emilie para Manaus; um caderno de anotação onde estão registrados os
encontros de sábado. São escritas em árabe clássico, e enviadas por muitos anos. Mesmo aí,
há lacunas a preencher, seja pela descontinuidade da correspondência, seja pelas frases, com
escrita já embaçada, ou pela dificuldade oferecida pelo idioma. As passagens mais difíceis são
decifradas por Hakim através da intuição.
A leitura faz Hakim lembrar a mãe entoando cânticos, com a palma das mãos
repousada no peito e os olhos andando de uma Bíblia a outra. Ler salmos em duas Bíblias,
uma em francês e a outra em português, a ajuda a aprender os dois idiomas. O processo é
penoso: Hakim recorda Emilie contraindo o rosto ao pronunciar palavras em português, que
soam meio estranhas. A aprendizagem é efetiva, porém: mais tarde, quando seu filho visita o
túmulo de Emir, vê as letras gravadas na lápide nos dois idiomas.
A família é fonte de grande alegria para Emilie, e suas tristezas estão ligadas à morte
de familiares e à saída dos filhos de seu entorno. Hakim recorda seu sofrimento,
inconformada com a morte de Emir, e o dia em que ele próprio decide anunciar sua partida.
Emilie, com um gesto agressivo, exclui seus dois irmãos, enviando-os ao pátio, para ficar
sozinha ao despedir-se do filho.
Após o enterro, Hakim lembra a mãe e seus gestos de carinho então: se afasta do filho,
sem desviar dele o olhar. À tarde de confidência é acompanhada de carinho e risos. A
atmosfera é impregnada por um odor de almíscar, suco de frutas, pistache, amêndoas,
gergelim e figos que ela traz em bandeja e oferece ao filho, com os olhos vermelhos e a voz
embaraçada pela emoção. Emilie serve ainda de mediadora para que o pai pague os estudos
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para Hakim em outro país. Ele lembra a última frase que ouve da mãe naquela despedida:
“Guardo dentro de mim teus olhos” (HATOUM, 2006, p. 104).
Vem depois a morte do marido. Por temer a agressividade dos filhos, Emilie
confidencia o segredo do cofre e seus conteúdos a Hindié ao perceber que o marido está para
morrer: “Ali, de cócoras, Emilie continuava a mostrar os objetos envelhecidos, e eu já estava
agoniada porque teu avô gemia sozinho no quarto e já não reconhecia mais ninguém” (id, p.
147). Depois da morte do pai, Samara administra a loja com competência e responsabilidade.
Anos depois, ocorreria a separação de Samara. Como Hindié relata à neta de Emilie,
naquela manhã Samara, vestida com elegância, deixa a mãe boquiaberta e também orgulhosa.
A filha de Emilie, usualmente de poucas palavras e avessa ao convívio social, conversa com
desenvoltura sobre diversos assuntos e pergunta sobre os conhecidos. Ao sair, entrega uma
sacola para Emilie; no mesmo instante os sinos da igreja dão dez horas. A estratégia funciona:
Emilie, pensando que a filha pudesse perder a missa, não acha justo fazer o relatório das
vendas da loja naquele momento, e assim não se dá conta do conteúdo da sacola, o que a
poderia ter levado a impedir a filha de partir. Mais tarde, porém, encontra na sacola, além do
dinheiro, um livro grosso encadernado em couro, uma carta, e outras coisas não reveladas.
Num gesto simbólico, Samara ajuda Emilie a libertar os pássaros. Hindié recorda
aquele domingo de manhã, quando sua amiga decide abrir as gaiolas dos pássaros,
declarando: “De agora em diante só quero animais livres nesta casa”. Alguns não voam, e
Emilie se refere a eles como pássaros que fazem parte da sua vida. Samara ajuda a mãe por os
pássaros em liberdade, limpar as gaiolas e alimentar os animais, talvez já antecipando que,
como eles, alçaria em breve vôo, rumo à liberdade. Porém, como Adeítalo M. Pinho observa,
“há aqueles que não sabem mais voar ou não desejam ir embora. Esta é a missão de Emilie:
cuidar deles” (2009). Tal é o caso, por exemplo, dos filhos inominados, que dependem de
Emilie para sobreviver, e permaneceram ali vivendo às custas da mãe até o dia de sua morte.
Hindié é cativa de Emilie por laços de amizade; ao seu redor aninham-se ainda serviçais e
afilhados, além dos pedintes que esperam receber alimentos a cada ano, quando Emilie
reverencia a memória do irmão.
Tal como os pássaros, a tartaruga Sálua é usada para prover metáfora sobre a vida de
Emilie. Colisões sofridas pelas brincadeiras perversas dos filhos e afilhados da matriarca
furam-lhe o casco, que ela conserta, tapando os buracos com cera de abelha. Como Hindié
recorda, a amiga considera a tartaruga seu “espelho vivo”.
Emilie desespera-se ao perceber que mais um filho a abandona. Hindié, que ouve seus
lamentos, corre ao alpendre da casa para saber o que havia acontecido, e vê Emilie sentada na
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borda da concha de pedra, triste, com uma das mãos sobre a perna de um anjo de pedra.
Afaga, coma a outra, a cabeça de um carneiro. Não demonstra nenhum interesse em procurar
a filha, lembrando a desgraça que aconteceu por ter impedido Emir de permanecer em
Marselha.
A Parisiense é alugada, e a mercadoria vendida ao inquilino. Emilie tira apenas alguns
objetos de valor sentimental, peças de tecido, e duas ou três grinaldas e véus de noiva, leques
pintados à mão por artistas espanhóis iguaizinhos aos que o marido lhe presenteara na noite
do noivado, lugares de memória, enfim. Nunca mais passa na frente da loja.
Os últimos anos de sua vida são acompanhados por Hindié, sua amiga e confidente, já
que desde a saída de Samara passa a morar sozinha. Mesmo Anastácia vai morar no interior,
mas nas festas natalinas volta para participar do almoço que reúne a família. Ainda então, e a
despeito da idade avançada, Emilie parece não viver amargurada. Costuma dizer a Hindié que
“a solidão e a velhice se amparam mutuamente antes do fim, e que um velho solitário refugia-
se no passado, que é vasto e não poucas vezes gratificante” (HATOUM, 2006, p. 137).
Enquanto a matriarca espera o regresso dos filhos, ocupa o tempo conversando com os
animais na língua árabe. Nessa época, parece voltar à cena da infância e adolescência. Como
Emílio informa a Hakim, ela já está meio surda, e só entende algumas poucas pessoas, com as
quais conversa em árabe. Em muitas madrugadas, quando despertava, abre os janelões do
Sobrado para visualizar um horizonte distante de seus olhos, mas que permanece vivo em sua
mente: imagina ver as aldeias incrustadas nas montanhas da terra natal. A saudade da pátria é
recompensada por uma mesa repleta de iguarias. Uma ocasião, Hindié pensa se tratar de uma
festa para os filhos e netos, mas Emilie a informa que a mesa farta é para homenagear os
parentes que ficaram na terra natal, dos quais se lembra pela ação do odor do mar e dos figos.
Na tentativa de esquecer as mortes, separações e sofrimentos, Emilie reforma a casa,
capina o quintal, poda as parreira e as árvores, e lustra os espelhos e vidros dos aposentos.
Parte do tempo é ocupada em reviver o passado através dos objetos guardados, todos de
grande valor sentimental para ela. Os presentes ganhos em recompensa de benefícios
realizados estão catalogados e guardados em aposentos no Sobrado. Quando desejosa de
reviver algo, solicita a ajuda de Expedito, e os dois passam o inteiro espanando objetos, que
ela acaricia, enquanto Expedito lê seu nome de quem os tinha ofertado.
Na fase final da vida, concentra seus esforços na volta de Samara. Acredita que a volta
da filha depende do perdão dos dois irmãos que sempre a discriminaram, e quer que eles
declarem publicamente uma reconciliação com a irmã. Em seus últimos dias de vida, remexe
fotografias, cartas e objetos; recorda o nome das plantas e seus doadores. Contempla as fotos
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que recebeu de Hakim e a de Emir, comparando-as a pérolas de um mesmo colar. Tal como o
marido ao chegar a Manaus, Emilie define agora o que vê de acordo com valores trazidos da
cultura natal, como os colares com que tanto apreciara se enfeitar em outros tempos. Emilie
sonha com Emir e Hakim; segundo relata a Hindié, a saudade do irmão morto e do filho
ausente é amenizada com a leitura das cartas que a amiga lê para ela em voz alta, por sua
solicitação, enquanto ela contempla o álbum aberto, que repousa sobre seu colo.
Escondida entre as folhagens do quintal, Hindié torna-se testemunha da conversa de
Emilie com seus filhos, uma semana antes de sua morte. Fazem pouco do pedido de
reconciliação que lhes faz a mãe, e ainda a agridem moralmente, pois um deles lança-lhe em
rosto: “A senhora deu a luz à uma mulher da vida; a senhora deveria se odiar, e mais do que
ninguém entender o ódio” (HATOUM, 2006, p. 153). Emilie, assentada de costas para o
relógio da parede, olha para o filho sem reagir verbalmente: seu olhar fala o que não pode ou
não quer dizer. Quando Hindié retorna para a sala, ela tem um olhar perdido.
É na sexta-feira seguinte, quando Hindié realiza mais uma de suas visitas diárias à
Emilie, que estranha a quietude da casa e dos animais. As portas estão trancadas, mas não
para Hindié, que tem a chave do Sobrado. Entra na casa e chama por Emilie; nota rastros de
sangue e logo encontra a amiga quase sem vida na guarita do telefone. Hindié desespera-se,
grita, abre as portas dos aposentos onde não há ninguém.
Num último esforço para salvar a amiga, Hindié pede ajuda ao médico e a Emilio em
árabe. É, porém, tarde para salvar Emilie. É também tarde para os filhos inominados, sempre
tardios em demonstrar afeto. Hindié pensa ver indiferença em seus rostos, mas agora se
achegam ao corpo da mãe, que não perdia a paciência com eles, tolerava suas diabruras
quando pequenos, e sempre os proteja. De agora em diante, somente a sombra espessa de
Emilie pairaria sobre todos os com que convivera, e que, agora, se ocupam em resgatar a
memória da mãe, irmã, amiga e benfeitora.
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A fotografia [...] revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo, assim, guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.
Jacques Le Goff
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5 UM “ACERVO DE SURPRESAS DA VIDA”
Hakim rememora uma cena que se repetia em sua infância: noite de sexta-feira. Um
certo Oriente emerge na Parisiense. Na mesa posta, os pães de massa folheada e os figos da
Índia avizinham com os bem brasileiros jenipapos, biribás, abacaxis e melancias. No centro
de um pátio onde ainda brilha o sol, homens e mulheres repetem o hábito milenar de comer
fígado cru de carneiro com as mãos. Fala-se exclusivamente em árabe, exceção feita a um ou
outro vizinho, alguns deles estrangeiros, como a família do poveiro Américo, os Benemou, do
Marrocos, ou ainda Gustav Dorner, de Hamburgo. Este último, Hakim frisa, além de amigo se
tornou seu confidente. Descreve o alemão primeiro como bibliógrafo, aquele através de quem
conheceu pela primeira vez uma biblioteca. A relação entre Dorner, colecionador de livros, e
o Dorner fotógrafo surge mais tarde, à medida que evoca a figura do alemão, colecionador de
um “acervo de surpresas da vida”: retratos de um solitário, de um mendigo, de um pescador,
de índios que moravam perto daqui, de pássaros, flores e multidões” (HATOUM, 2007, p.
59). Este capítulo objetiva examinar as possibilidades da rememoração através de tal acervo e,
mais especificamente, como essas possibilidades se exercem através das fotos e do ato de
fotografar em Relato de um certo oriente. Para tanto resenhamos estudos desenvolvidos por
Walter Benjamim, Roland Barthes, Jacques Le Goff e Pierre Bourdieu acerca da fotografia
como forma de embasar a análise textual propriamente dita.
Como elemento de comprovação e de permanência das experiências de vida, a
fotografia é um dos meios de registro que nos parece, hoje, indispensáveis. A foto é vista
como um objeto fascinante para o ser humano: somos atraídos por imagens, que dificilmente
deixamos passarem despercebidas. A possibilidade de conservar, e, portanto, tornar
permanente os acontecimentos registrados, parece subjazer à necessidade de um fotógrafo em
todo evento social, de forma que acontecimentos familiares, como aniversário, batizado ou
casamento, ou outros eventos em outros grupos sociais de que participamos, possam ser
evocados sempre que surgir a necessidade de rememorá-los, seja com o intuito de evocar,
comprovar, justificar e/ou analisar algo do passado.
Hoje, quando sofisticados recursos fotográficos estão à disposição mesmo do amador,
e a arte de fotografar está amplamente popularizada, é difícil imaginar quão revolucionários
foram os clichês de Daguerre - placas de prata, isoladas e expostas na câmara obscura, que
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precisavam ser manipuladas em vários sentidos, até que se pudesse reconhecer, sob uma luz
favorável, uma imagem cinza-pálida. Walter Benjamin dimensiona o impacto da influência
exercida pelo daguerreótipo na época de sua descoberta ao registrar o abalo sofrido não só
pela pintura paisagística como, especialmente, pelo retrato em miniatura, praticado pelos
pintores.
No momento em que são fixadas as imagens da câmara obscura, os técnicos
substituíram os pintores: por volta de 1840 a maioria dos pintores de miniatura se transforma
em fotógrafos. Uma geração mais tarde, quando os técnicos propriamente ditos assumem a
função de fotógrafos, começam a surgir os álbuns fotográficos, que se encontram por toda a
parte nas casas.
Imagens humanas anônimas foram úteis para que fosse introduzida a técnica de
Daguerre. A pintura já conhecia há muitos rostos desse tipo. Os quadros permaneciam no
patrimônio da família, e havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado; quando os
familiares do rosto retratado morriam, contudo, o quadro permanecia mais como testemunho
do talento artístico do pintor.
Na fotografia, porém, surge algo de estranho e novo: preserva-se algo que não se reduz
ao gênio do fotógrafo, algo que não quer se extinguir na “arte”. Apesar de toda a perícia do
fotógrafo, e de tudo o que existe de planejado em seu comportamento, o espectador procura
na imagem a pequena centelha do aqui e do agora de um momento já extinto, mas que agora
pode ser redescoberto: aspectos fisionômicos, mundos de imagens ocultos, mas que se tornam
grandes e formuláveis através da mediação da câmara, que é capaz de fixar o que escapa ao
olho humano. Assim, atitudes capturadas na exata fração de segundo em que ocorrem
despercebidas ao mero observador, mostram-se ao observador da fotografia, especialmente
através dos seus recursos auxiliares (da câmara lenta, ampliação). Como Barthes comenta, a
foto revela um inconsciente ótico, da mesma forma como a psicanálise revela o inconsciente
pulsional. Assim, a “natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra,
especialmente porque substitui a um espaço trabalhando conscientemente pelo homem, um
espaço que ele percorre inconscientemente” (BARTHES, 1984, p. 93-94).
Roland Barthes estuda a fotografia movido por um desejo ontológico, i. e., quer
desvendar o traço essencial que a distingue da comunidade das imagens. Registra,
inicialmente, que a foto reproduz ao infinito o que só ocorre uma vez: nela o objeto ou fato
retratado é reduzido sempre ao corpus, ao corpo que vemos. Jamais se distingue do seu
referente, ambos atingidos pela mesma imobilidade no âmago de um mundo que está sempre
62
em movimento. Seja o que for o que se enxerga na foto, esta será sempre invisível: ela não é
aquilo que vemos, mas o referente que a ela adere.
O pensador francês distingue três práticas/emoções/-e ou intenções que podem ser
objeto da foto: fazer, suportar e olhar. A primeira está associada ao operator, ou o fotógrafo;
o spectator é aquele que contempla o resultado do trabalho do operator, em livros, álbuns,
arquivos ou coleções de fotos. O fotografado, ou referente, é o alvo, o spectrum da fotografia,
palavra que evoca tanto a relação com o espetáculo, quanto o “retorno do morto”, o instante
fugidio capturado pela foto.
Ao decidir tomar como guia de sua análise a atração que sente por algumas fotos,
Barthes percebe que tal preferência se baseia no princípio da aventura: as fotos que gosta lhe
advém, o animam, um efeito que se parece fundamentar em dois elementos co-presentes nas
fotos. O primeiro é o studium, uma vastidão ou extensão que remete a uma informação
clássica, ou tema, e aos seus signos correspondentes. À insurreição ou Nicarágua,
corresponderiam, por exemplo, combatentes pobres, ruas em ruínas, mortos, dores, sol, os
pesados olhos índios. Nesse contexto, designa por studium o gosto, uma espécie de
investimento geral, ardoroso, mas sem acuidade particular. O segundo elemento quebra o
studium. Não é buscado pelo spectator, mas parte da cena como uma flecha e o transpassa.
Por esse motivo, Barthes escolhe uma palavra latina que designa ferida, picada, ou marca feita
por instrumento pontudo, punctum, para designar aquilo que, numa foto, nos punge, mortifica,
fere. As fotos que simplesmente agradam ou desagradam, sem pungir, estão investidas
somente do studium, que se associa meramente ao gostar ou não gostar de algo, mas jamais
será gozo ou dor.
Barthes concebe o gesto essencial do operator como sendo o de surpreender alguma
coisa ou alguém através do orifício de sua câmara, sem que ele saiba da ação empreendida.
Desse gesto derivam todas as fotos com intenção de chocar o spectator, mas de forma
diferenciada do punctum: o choque fotográfico consiste menos em traumatizar do que revelar
o que está tão escondido que o próprio ator dele estava ignorante ou inconsciente. Já o
punctum é um suplemento: acrescentamos à foto o que todavia já está nela. Criamos um
campo cego, um extracampo sutil, como se a imagem lançasse algo para além daquilo que ela
dá a ver.
As duas primeiras instâncias de fotos aludidas em Relato de um certo Oriente são a
foto duplicada de Arminda e a foto oval de Emir pendurada na parede, mencionadas na
ocasião em que Hakim relembra o natal em que seu pai sai de casa em meio à festa. Sua mãe,
como se nada houvesse acontecido, continua animadamente a conversação com os convivas, e
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indaga-lhes se já sabem que Dorner está de volta à cidade. Aos que desconhecem o nome,
Emilie esclarece que o alemão tinha morado em Manaus há coisa de seis ou sete anos, e, após,
havia feito longa viagem pela selva e andado pelo sul, para rever uns parentes. É quando a
anfitriã acrescenta que Dorner havia conhecido seu marido e era “amigo do Emirzinho” que
todos os olhares se voltam para uma moldura oval, que enquadra a foto de um jovem de olhar
arregalado e sem rumo. A impressão desse olhar é tal que obriga o observador a seguir o rumo
apontado por ele, procurando em vão outro objeto fixado na parede da sala. A essa foto
retomaremos mais tarde, estudando-a com base no conjunto de todos os detalhes que são
progressivamente dados sobre ela.
Tendo contemplado a foto da moldura oval, os convivas passam a falar sobre seu
autor, Dorner. Tal como Hakim o faria mais tarde ao descrever o amigo, Arminda refere-se a
ele como um colecionador (“colecionava tudo”), acrescentando que adora fazer surpresas.
Embora não se refira às suas fotos como surpresas de vida, deixa a ideia implícita ao, em
seguida, remexer a bolsa e retirar uma foto sua, feita por Dorner, em que se vê um “rosto
sorridente, pálido e meio assustado no vão da janela, entre vasos de hortênsias”,
acrescentando que o fotógrafo a pegara de sopetão. Mal termina de falar, Dorner entra na sala,
e vendo-a com a foto na mão, intui que a sobreposição do rosto natural ao já fotografado é um
“achado” que não pode perder. Rapidamente, coloca junto ao rosto de Arminda a foto que ela
ainda segura, e “com um gesto felino” retira o flash da câmera, e a fotografa. Como resultado,
quando, na semana seguinte, mostra “o rosto da mulher ao lado da fotografia do rosto da
mulher [...] dissipamos uma antiga dúvida: a de que aquele sorriso não era um sorriso e sim
um cacoete adquirido na infância, como revelara nossa vizinha Esmeralda à Hindié
Conceição” (HATOUM, 2007, p. 42).
A percepção diante de uma foto é vista com certa diferença entre spectator e
fotógrafo. Dorner, que exerce a profissão de fotógrafo, ganhando a vida com uma Hasselblad,
é capaz de intuir desempenhos a ser obtidos pelo ato de fotografar que serão percebidos como
surpresas pelo spectator.
Descrevendo as possíveis “surpresas” a serem obtidas pelo fotógrafo, Barthes lista, em
primeiro lugar, o “raro”, que se refere ao caráter de raridade do referente, e, em seguida, a
foto que imobiliza uma cena rápida em seu momento decisivo, como uma mulher no ato de
pular uma janela. Uma terceira surpresa constitui-se na “proeza”, que acontece quando o ato
fotográfico for inusitado, como fotografar em um milésimo de segundo o cair de uma gota de
leite. Outra surpresa é a que o fotógrafo espera obter ao usar a técnica: sobreimpressões,
anamorfose (deformação de imagem), exploração voluntária de certos defeitos, desfocamento
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ou perturbação da perspectiva. O quinto e último tipo de surpresa é o “achado”, uma cena que
pode ser arranjada pelo fotógrafo, mas que no mundo dos media ilustrados apresenta-se como
uma cena natural que o gênio do repórter teve a capacidade de captar.
As surpresas obedecem a um princípio de desafio, pois o fotógrafo deve tornar aquilo
que é provável, possível ou interessante em surpreendente. Nesse contexto, notável refere-se
não ao “não importa o quê” capturado pela foto, mas ao desempenho do fotógrafo, que faz
com que a fotografia seja notável, e que se torna o valor mais sofisticado (BARTHES, 1984,
p. 56-57).
No caso das fotos de Arminda, percebe-se que, pega de surpresa pelo operator, deixa-
se apanhar na espontaneidade de seu comportamento. Dorner intui o inusitado da duplicação
das faces, uma surpresa que acaba resultando na revelação de um comportamento
inconsciente de Arminda. Nessa pose, capturada em imobilidade diante do olhar de Dorner,
revela-se o esgar constante que todos tomavam como um sorriso.
Ambas as fotos de Arminda, tomadas sem que ela tivesse o tempo para assumir uma
postura ante a câmera, podem ser classificadas como sendo o que Bourdieu chama de
“instantâneo”, ou foto “tirada ao vivo”, às quais ele contrapõe ao que chama “fotografia em
pose”. Este último é o caso, por exemplo, da foto dos Ahler, feita imediatamente antes do
fotógrafo encontrar o amigo Emir no dia de sua morte. Como descrito pelo próprio Dorner, a
“família Ahler passava pelo visor da câmera, todos se abraçavam em volta de uma estátua
encardida”.
A importância da postura diante das câmaras de um fotógrafo expressa o valor de cada
indivíduo. Quando a foto é individual, o referente apresenta-se quase sempre em postura
elegante, no centro e de corpo inteiro, demonstrando respeito e seriedade ao momento.
Quando fotografados em grupo, as pessoas ficam perto umas das outras, muitas vezes
abraçadas - há uma preocupação com a pose. Em uma solenidade onde o indivíduo se deixa
fotografar em uma postura relaxada, o objeto é algo de reprovação, e suas atitudes
consideradas um desrespeito à ocasião, pois a posição digna consiste em posicionar-se diante
da câmara com o corpo e expressão do olhar à altura da solenidade.
Essa busca pela frontalidade espontânea está ligada aos valores culturais mais
enraizados de uma sociedade: os sentimentos de honra, dignidade e de responsabilidade. É
importante apresentar-se ao olhar do outro demonstrando boa aparência: assumir uma postura
correta é uma forma de respeito de nós mesmos. Por outro lado, obedecer ao princípio da
frontalidade é assumir o controle da nossa própria imagem: ao olharmos e sermos olhados por
quem nos fotografa, preparamos a nossa pose, expondo-nos para sermos vistos com
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queremos, oferecendo nossa própria imagem para ser olhada. Como Bourdieu conclui, a
solenização, a hierarquia e a eternização são inseparáveis em uma foto (BOURDIEU, 2006).
Transformamo-nos através de “poses”, o que nos metamorfoseia antecipadamente em
imagem, uma transformação ativa em que a fotografia cria nosso corpo ou o mortifica. Ao
posicionarmo-nos diante de uma câmara arriscamo-nos, pois sabemos que uma imagem vai
nascer. A fotografia “é o advento de mim como outro: uma dissociação astuciosa da
consciência de identidade” (BARTHES, 1984, p. 25). Daí por que, conscientes da imagem
que vai se perpetuar, os Ahler escolhem um local que lhes parece bonito ou importante - a
estátua - e uma pose que pensam exprimir o amor de uns pelos outros: perfilam-se em abraço
fraternal frente à câmera. Como o fotógrafo Dorner conta à neta de Emilie, trata-se de uma
época em que
Muitas pessoas queriam ser fotografadas, como se o tempo, suspenso, tivesse criado um pequeno mundo de fantasmagoria, um mundo de imagens, desencantando, abrigando famílias inteiras que passavam diante da câmara, reunidas nos jardins dos casarões ou no convés dos transatlânticos que atracavam no porto de Manaus (HATOUM, 2007, p. 61).
A linguagem usada para descrever o desejo de ser fotografado ecoa a de Barthes ao
aludir ao referente como o spectrum, ou aquilo que promove o “retorno do morto” através do
instante fugidio capturado pela foto. Como Barthes ainda raciocina, a foto-retrato constitui-se
em campo fechado de forças que se cruzam, se afrontam e se deformam. Quando estamos
diante de uma câmara, somos ao mesmo tempo aquele que julgamos ser, aquele que
gostaríamos de ser, aquele que o fotógrafo nos julga e aquele que ele usa para mostrar sua
arte. Imaginariamente, a fotografia representa o momento sutil em que não somos nem sujeito
nem objeto, mas um sujeito que se torna um objeto para o fotógrafo (BARTHES, 1984, p. 27-
28).
A descrição dos habitantes de Manaus, desejosos de serem fotografados, estabelece,
ainda, um contraste entre o tempo e o lugar a partir no qual Dorner exerce a profissão de
fotógrafo e a época, relatada por Pierre Bourdieu a partir do testemunho de J-P A, nascido em
1885, quando a fotografia era totalmente desconhecida dos camponeses, e os fotógrafos
necessitavam se apresentar às famílias em dia de festa e oferecer seus serviços. Depois, era
ainda preciso oferecer as fotos, para ver quem as queria. Recolhiam os nomes, recebiam o
pagamento adiantado, e mais tarde enviavam as fotos (BOURDIEU, 2006).
É quando Dorner caminha para a casa dos Ahler, para fazer um álbum da família, que
vê Emir vestido de branco, com uma flor na mão, perambulando pelo coreto da praça.
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Convida-o para almoçar em um restaurante francês, mas com a voz apagada, quase
incompreensível, Emir recusa o convite, demonstrando o desejo de se desvencilhar dele.
Naquele instante, o que chama a atenção do fotografo é a orquídea de um vermelho excessivo,
arroxeado, quase violáceo. Observa-a com tanta atenção que deixa escapar a expressão
estranha de Emir, um olhar de quem não conhece mais ninguém. Nesse momento, age como
operator, preocupado apenas em registrar o raro da situação. Primeiramente os dois
referentes, Emir e a orquídea são apreendidos por Dorner, vistos com o olhar de um técnico.
A imagem da orquídea o fascina, e prende seu olhar. É o momento do studium, quando o
fotógrafo surpreende o referente, ignorando inconscientemente sua aparência, que só mais
tarde vai lhe chamar a atenção, após saber de sua morte.
Só mais tarde, ao ver a foto revelada por ele mesmo, quando se coloca na qualidade de
spectator, Dorner sente-se pungido ao visualizar a imagem de Emir. Como referente, Emir
torna-se spectrum não somente por oferecer ao spectator o espetáculo do homem que carrega
a rara flor, mas também por, literalmente, promover o retorno no morto: não somente do
momento para sempre imobilizado, mas do homem ali capturado, que agora já não vive.
Como Halbwachs raciocina, a morte põe fim à vida fisiológica, mas não apaga os
pensamentos e as lembranças que temos das pessoas que são próximas de nós, como nossos
amigos ou parentes que faleceram que permanecem em nossa lembrança por um longo
período de tempo, como se estivessem vivos. Após a morte de Emir, sua imagem torna-se
crescentemente mais viva na imaginação de seus familiares e amigos, e muito especialmente
na de Dorner e Emilie. Essa mudança ocorre porque lembranças vão se juntando a outras
lembranças; mudamos, e o nosso ponto de vista se desloca para ocupar um lugar diferente. A
morte, que põe fim á vida fisiológica, não detém bruscamente a corrente de pensamento dos
que conviveram com quem desaparece. Por mais tempo ainda os representamos como se
estivessem vivos, pois permanecem misturados a nossa vida cotidiana. No dia seguinte à
morte, a atenção dos seus se fixa com mais força nas lembranças da pessoa morta. Nesse
momento sua imagem está menos definida, e se transforma incessantemente, conforme as
lembranças evocadas de sua vida. Na realidade, a imagem de um desaparecido jamais se
imobiliza (HALBWACHS, 2006, p. 94).
Antes mesmo de saber do afogamento do amigo, Dorner pressente uma tragédia;
depois do evento confirmado, preocupa-se em achar a câmera, à profissão de fotógrafo.
Incapaz de ver a ampliação do rosto do amigo emergir lentamente da química pede a outro
fotógrafo, amigo seu, que execute o trabalho. Ao ver a foto, a imagem o atinge, passa a lhe
pungir. Seu interesse desloca-se da orquídea para a expressão facial, e é transpassado pelo
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“desespero marcado pelo olhar e pelos sulcos cinzentos que lhe riscavam a testa” (HATOUM,
2007, p. 78).
Quanto à Emilie, nega-se a acreditar no falecimento do irmão, mesmo depois do
aparecimento de seu corpo, dias depois do afogamento. Encomenda fotos de Emir, Ordena,
uma de corpo inteiro, e treze ampliações do rosto, em tamanho natural, uma das quais viria a
ser colocada na moldura oval de mármore lapidado que Emílio manda buscar de Trieste,
recoberta pelo cristal ligeiramente côncavo importado da Itália, com o fim de proteger a foto
das intempéries, assegurando-lhe a longevidade. Talvez Emilie ordene treze ampliações
devido a sua devoção a Santo Antônio, cuja data é celebrada a 13 de junho. Segundo a Igreja
Católica, o santo auxilia as pessoas a recuperar coisas perdidas. Em honra ao irmão, todos os
anos, depois de rezar os responsos de Santo Antônio, Emilie vai até o cais e lança um vaso de
flor e uma das fotos nas águas que tragaram Emir.
Tal como Dorner, Emilie é tocada pelo rosto do irmão, detendo o olhar sobre as fotos
que lhe definem os contornos. Permanece alguns minutos silenciosa e serena, observando o
olhar, o rosto contraído, o jogo de luz e sombra dando aparência de um rosto febril. Passa as
mãos nos olhos de Emir, ou encobre-lhe parte do rosto, como se quisesses mirá-lo por partes
para desvendar alguma coisa que escapa ao fitar o todo (HATOUM, 2007, p. 79).
Barthes percebe uma grande aproximação entre a foto e o teatro, através da Morte:
como sabemos, os primeiros atores destacam-se da comunidade ao desempenharem o papel
dos Mortos. Caracterizar-se correspondia, para eles, a designar-se como um corpo ao mesmo
tempo vivo ou morto. É essa relação que podemos encontrar na foto: por mais viva que
possamos concebê-la, temos o desejo de “dar vida” ao objeto fotografado, pois a foto, como o
teatro primitivo, é a figuração da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos
(BARTHES, 2008, p. 53-54). Não admira, pois, que a foto dos mortos - Emir, Soraya Ângela
e Emilie - seja um dos elementos através dos quais se resgatam e perenizam os que já
partiram no romance Relato de um certo Oriente.
A foto de Soraya Ângela é apreendida por Hakim. Esse operator amador a fotografa
uma única vez, depois de dias de observação, em que contempla a menina no jardim da casa,
esquecida de tudo e de todos, deitada sobre o solo de ardósia, mirando detidamente uma
estátua dos anjos de pedra. A ação intencional do fotógrafo é surpreender a menina a uma
certa distância: não quer assustá-la, já que é esquiva, pelo fato de ter tido pouco contatos com
as pessoas, pois tanto o nascimento fora do casamento como a surdez afastam-na do convívio
dos demais membros da família e da sociedade.
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Ao fotografá-la, Hakim faz uma imagem de um rosto de perfil, que contrasta com o
rosto da estátua de pedra ao lado da qual Soraya repousa. A apreensão da imagem é feita de
longe, com câmara doméstica, e é, portanto, pouco nítida; após a sua ampliação de oito por
doze, a nitidez do rosto de Soraya Ângela é ainda mais diminuída. Contudo, Sâmara, que não
tem mais a filha junto a ela, atribui-lhe alto valor.
Solenizando e eternizando momentos intensos, a foto assume uma função memorial,
assumindo papel testemunhal. Esse papel autenticador da foto, que tem a função de tanto
mostrar o real como ser suporte de rememoração, é explicado por Barthes como causado por
uma confusão entre dois conceitos: o Real e o Vivo. Quando a foto nos atesta que um objeto
foi real, nos leva a acreditar que está vivo, pois nos leva a dar ao real um valor eterno.
Contudo, ao deportar esse real para o passado (“isso foi”), ela sugere que está morto. Assim,
podemos dizer que o traço inimitável da fotografia é que alguém viu um referente em carne e
osso, ou em pessoa.
A função da fotografia não é atestar o que foi extinto, mas o de testemunhar que o que
vemos realmente existiu. Toda a fotografia é um certificado de presença; contudo, a força
constativa da foto incide não sobre o objeto, mas sobre o tempo: seu poder de autenticação se
sobrepõe ao de representação. A foto é a própria autenticação dos fatos, porquanto não
inventa; não rememora o passado, nem produz em nós o efeito de restituir o abolido, mas de
atestar que o que vemos de fato existiu. Não fala do que não é mais, mas com certeza daquilo
que foi: não a nostalgia da lembrança, mas via da certeza (BARTHES, 1984, p. 124-125).
Tocando-nos “como os raios retardados de uma estrela”, a foto é uma emanação do referente:
de um corpo que existe (ou existiu), que estava lá, partiram radiações que nos atingem
(BARTHES, 1984, p. 122). Através da fotografia, Soraya atinge ainda Sâmara, que, não tendo
mais a presença “real” da filha, ameniza a saudade olhando para sua fotografia.
Outro momento de rememoração através da foto acontece quando Emilie, já velha e
saudosa, recorda o irmão morto e o filho distante através das fotos. Ao olhar as fotografias de
Hakim e Emir, compara um ao outro, tecendo comentários sobre os dois. Observa as fotos de
Emir e de Hakim. O irmão jovem parece muito com Hakim, e a semelhança era tanta que
parecem sorrir o mesmo sorriso. Ao olhar as fotos de ambos, Emilie lembra sonhos em que os
três se encontravam descendo em um barco ao encontro do mar. Mesmo que um deles já não
exista mais, não os imagina como um referente vivo e outro morto; antes, vê na foto um
certificado de presença.
Como bem exemplificado em Relato de um certo Oriente, o exercício de contar algo
através da fotografia contribui para que a história pessoal, familiar e social permaneça viva.
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As fotografias feitas na casa de Emilie quando os filhos eram crianças permanecem guardadas
em um baú, junto com outros objetos estimados por Emilie. Em sua velhice, passa horas
observando e arrumando essas fotos; em seus últimos dias de vida, fica com o álbum de
fotografia ao colo.
Famílias guardam fotografia de seus antepassados para poderem contar sua história às
futuras gerações, de forma que filhos e netos conheçam seus antepassados, dando
prosseguimento à história familiar. Como Licthwark observa, “nenhuma obra de arte é
contemplada tão atentamente em nosso tempo como a imagem fotográfica de nós mesmos, de
nossos parentes próximos, de nossos seres amados” (apud BENJAMIN, p. 103).
Pensando a fotografia a partir de um viés sociológico, Bourdieu observa que um álbum
de família é um lugar habitado por muitas memórias:
A galeria de retratos democratizou-se e cada família tem, na pessoa do seu chefe, o seu retratista. Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo da sua infância e preparar-lhes, como um legado, a imagem do que foram. O álbum de família exprime a verdade da recordação social. Nada se parece menos com a busca artística do tempo perdido que estas apresentações comentadas das fotografias de família, ritos de integração a que a família sujeita os seus novos membros. As imagens do passado dispostas em ordem cronológica, “ordem das estações” da memória social, evocam e transmitem recordação dos acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade presente. É por isso que não há nada mais edificante que um álbum de família: todas as aventuras singulares que a recordação individual encerra na particularidade de um segredo são banidas, e o passado comum ou, se se quiser, o menor denominador comum do passado, tem a nitidez quase coquetista de um monumento funerário freqüentado assiduamente As imagens do passado dispostas em ordem cronológicas (apud LE GOFF, 2003, p. 460).
Por outro lado, a foto também tem função social. Com a divisão do trabalho entre
ambos os sexos, atribui-se à mulher, em sociedades como a retratada por Bourdieu em seu
estudo sobre o camponês e a fotografia, a tarefa de manter relações sociais com os membros
do grupo que se encontram longe, começando pela família. Visitar os parentes ou mandar
notícias através de cartas passa a ser sua função, o que a torna mais autônoma para realizar
atividades sociais, sem ter a necessidade da presença do marido. À medida que a sociedade
dedica mais atenção às crianças, e, portanto, às mulheres enquanto mães, o hábito de tirar
fotos de crianças aumenta. Assim como as cartas, e bem melhor que elas, a fotografia assume
um papel importante na atualização contínua de conhecimento mútuo. Em Relato de um certo
Oriente, a tarefa de manter a família unida recai, largamente, sobre uma mulher, Emilie, e esta
o faz, em parte, através da remessa de fotos.
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Durante quase vinte e cinco anos, Emilie e Hakim se correspondem por meio de
fotografias. Emilie nunca escreve uma carta para Hakim durante o tempo em que o filho
permanece na Espanha, mas as fotos que envia o mantém ligado afetivamente a ela. É através
das imagens recebidas que Hakim decifra os enigmas e as apreensões de sua vida, e
acompanha as mudanças que o tempo traz ao corpo da mãe. Sabe da morte do meu pai ao
receber uma fotografia onde Emilie, como de costume, está sentada na cadeira de balanço ao
lado da poltrona coberta por um lençol branco, mas agora com os dois anéis de ouro na mão
esquerda e, o véu preto de tule lhe encobre o rosto. Como Hakim relata, ao visualizar as fotos,
Era impossível não ouvir a voz de Emilie e não materializar seu corpo no centro do pátio, diante da fonte, onde os fios de água cristalina esguicham da boca dos quatro anjos de pedra, como as arestas líquidas de uma pirâmide invisível, oca e aérea. Se eu não tivesse olhado para aquela fotografia, poderia abstrair todas as outras, fechar os olhos a todos os retratos enviados para mim ao longo de tantos anos, ou simplesmente recordar através das imagens algo fugidio, que escapa da realidade e contraria uma verdade, uma evidência. Por que era a revelação de um momento real e de uma situação palpável o que mais me impressionava na fotografia (HATOUM, 2006, p. 105).
Duas fotos, enviadas por Emilie a Hakim depois da morte de seu pai, o atingem
especialmente. Ambas são remetidas em um mesmo envelope. Em uma delas, Emilie ainda
não tem rugas, e seu rosto está suavemente maquilado. Tem uma expressão serena e a postura
soberana dos rostos esculturais das santas. É a única foto colorida que lhe manda, emoldurada
em papel Schoeller, de textura marmórea, com marca do laboratório. A outra foto, tirada
quando Emilie está no centro do pátio, cercada por um jardim de Delicias, remete à tarde em
que Hakim anuncia a sua partida, causando-lhe grande desgosto. Nessa imagem de Emilie,
Hakim entrevê um mundo de desilusões. O rosto sombrio se cobre com um véu espesso,
anunciando uma morte que já se iniciara, face às decepções, os tropeços e sofrimento de uma
vida inteira. A foto do rosto cansado e envelhecido de Emilie punge seu filho.
Tal como sua avó, a narradora usa a fotografia em sua correspondência. Diferente
dela, porém, as cartas não se resumem as fotos, mas as complementam. As fotos que a
narradora tem em seu poder foram tiradas na casa de Emilie, onde ela e o irmão passaram à
infância. Essas fotos têm a função de organizar as lembranças da narradora, e também servem
para que as compare com a ambiência que se prepara para encontrar em Manaus, e a
reconheça, bem como as pessoas que estão nas fotos.
Como Bourdieu resume, ao comentar o papel social da foto, enviar “uma fotografia
tem a mesma função: através da imagem, apresenta-se o novo descendente a todo o grupo que
deve “reconhecê-lo” (BOURDIEU, 2006). Dentro dessa perspectiva, as fotos não são
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consideradas por si mesmas em termos de suas qualidades técnicas e/ou estéticas, mas, antes,
devem ser objeto de uma leitura sociológica. Basta ao fotógrafo fazer uma representação
suficientemente crível e precisa para garantir o reconhecimento, pois “o que é fotografado, e
apreendido pelo leitor da fotografia, não são propriamente indivíduos na sua particularidade
singular, mas sim papéis sociais - o marido, o rapaz na primeira comunhão, o militar - ou
relações sociais - o tio da América ou a tia de Sauvagnon” (BOURDIEU, 2006, grifo do
autor). Enquanto nas casas camponesas, assim compreendidas, as fotografias são mantidas
ocultas, “fechadas” numa caixa, com exceção da de casamento e de certos retratos, nas casas
da pequena burguesia, adquirem valor decorativo ou afetivo. Ampliadas e enquadradas,
decoram a casa, assumindo um valor ostentatório.
As fotos enviadas por Hanna aos parentes no Líbano servem a dupla finalidade de
manter os laços familiares e apresentar um descendente para que possa ser reconhecido.
Depois de morar em Manaus por onze anos, Hanna envia três fotos: duas, formando a frente e
o verso de um invólucro que deve permanecer lacrado até que um parentes libanês chegue a
Manaus. Quando seu sobrinho, que mais tarde torna-se marido de Emilie, viaja para o Brasil,
as fotografias enviadas pelo tio orientam sua chegada em terra estranha. No momento em que
desembarca no cais, seu olhar se volta para um homem encostado na parede de uma casa perto
do porto. Compara-o com as fotos. Vira várias vezes o cartão, comparando os dois retratos.
Só então percebe que não eram exatamente iguais, e parecem não pertencer realmente à
mesma pessoa. Sente-se então autorizado a violar o lacre, e verificar o retrato entre as duas
folhas de cartão. A foto de Hanna ainda jovem, tirada antes de partir para Manaus, é
extremamente semelhante a do homem que o espera: assim reconhece no estranho seu primo,
o filho de Hanna.
A função da fotografia no Relato de um certo Oriente tem grande importância quanto
à conservação da memória. Através dela, oportunizam-se momentos de rememoração, como
no caso de Emilie que, não tendo mais a presença real dos netos e dos filhos, ameniza a
saudade olhando para suas imagens impressas. Por outro lado, atualizam-se os laços
familiares e mantêm-se as relações sociais com os membros do grupo que se encontram
longe, como nos casos das fotografias enviadas por carta, ou as fotos que Hanna envia aos
parentes no Líbano. Como certificado de presença, a foto, evocando a memória do referente,
contribui para que a história pessoal, familiar e social permaneça viva.
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6 ESCALA FINAL
Iniciamos esta dissertação considerando o trabalho recuperativo da memória sob a
ótica da viagem. Enfocamos a metáfora “viagens da memória” tanto em relação ao seu uso no
romance como ao emprego de expressão e prática similar por parte de seu autor, que se refere
a uma “dupla viagem” para dar conta dos percursos imaginativos e físicos que alimentaram
sua memória.
A metáfora da viagem continua ressoando neste capítulo final. Pensamos estas
reflexões como uma escala, parada que necessariamente reflete o resultado de um
determinado itinerário. Assim, esta é a escala final do presente curso de estudos; outros
itinerários resultarão em outros olhares.
Uma escala caracteriza-se pela entrada e saída de viajantes; um outro passageiro,
tomando contato com este roteiro, poderá prosseguir rumo a novos vôos e outras paisagens.
Este roteiro, como já afirmado, privilegia as encruzilhadas que levam ao cruzamento da
memória para a recuperação do passado pessoal e familiar.
Em Relato de um certo Oriente a própria estrutura da narrativa envolve o entrecruzar
de relatos baseados na memória daqueles que cercaram Emilie. Opera, assim, não só o resgate
da história de sua vida como o da história daqueles que mais intimamente a cercaram.
Afirmamos, no capítulo inicial, que interessam particularmente a esta pesquisa os
estudos desenvolvidos pelo sociólogo Maurice Halbwachs, que contribuíram para a
compreensão de como os grupos sociais influem na retenção da lembrança. Essa afirmação se
sustenta no decorrer da pesquisa, uma vez que fica muito palpável o modo como essas
relações influem na retenção da lembrança.
Tomemos como exemplo o caso do neto de Emilie, incapaz de lembrar a morte de
Soraya, ainda que tentasse, pois o fato ocorre quando ainda é muito criança. Ocorre que as
lembranças que temos quando em criança são superficiais, porque nossas sensações são
apenas reflexos de objetos exteriores. Não lembramos da infância porque ainda a nossa
impressão não se liga a nenhuma base, visto ainda não termos nos tornados seres sociais:
ainda que participemos do grupo familiar a interação social ainda é restrita. Assim, o neto de
Emilie depende da irmã para resgatar lembranças da infância e da casa em que habitara então.
É ela que o ajuda a recordar os detalhes do dia em que Soraya se acidentou, e lhe conta como
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eles costumavam brincar juntos e a falta que sentiu da pequena prima. Por sua vez, para ser
capaz de narrar esses fatos ao irmão, a moça depende do testemunho de outras pessoas que
compartilharam o fato, e que lhe avivam a memória. Assim, mesmo recorrendo a um
testemunho que está em sua lembrança, necessita do grupo para atualizá-lo.
A ambiência da casa de Emilie, em que sempre circulam muitas pessoas, torna-se
particularmente propícia para esse tipo de recuperação do passado através da interação com o
grupo social. Confirma-se aí a teoria de Halbwachs de que a recordação será maior se for
vivida por um maior número de pessoas: quando evocamos juntos certos acontecimentos
pertencentes ao grupo, conseguimos recordar os fatos passados com mais intensidade porque
não estamos mais só.
Lembranças de eventos se fixam na memória de cada integrante do grupo social ou
família, como no caso da família de Emilie. É assim que o natal de 1954 é recordado pela
visão de Hakim e de Hindié. Recordações da vida de Emilie, quando ainda estava no Líbano,
são compartilhadas com Hindié, que mais tarde as relata para Hakim, e este as conta para a
neta, que por sua vez as transmite ao irmão. Outro exemplo, ainda, são as lembranças que
Hakim tem da mãe e que são divididas com a narradora-neta.
Diz Halbwachs que, quando relações ou contatos inter-grupais são permanentes ou se
repetem com muita freqüência, podem surgir lembranças compartilhadas a partir de dois ou
mais contextos. Isso acontece em Relato de um certo Oriente, em que a generosidade de
Emilie, sua popularidade, facilidade de fazer amigos, e gosto por festas levam
automaticamente ao fato de que as relações inter-grupais se dão tanto entre pessoas do círculo
familiar, como com os vizinhos, amigos e até desconhecidos, como os desabrigados a quem
assiste e que depois se sentem tão intimamente relacionados a ela que se fazem presentes, em
grande número, a seu enterro.
Um típico exemplo desse entrecruzamento de contextos é a festa anual que reverencia
a memória de Emir. Nessa ocasião, Emilie envolve filhos e empregados nos preparativos; o
marido também não fica indiferente: contrariado, protesta, mas em vão. A celebração estende-
se para além da esfera familiar, pois atinge as pessoas que vêm até a casa dela para pedir
donativos e trazer presentes. Por sua bondade, a imagem da “mãe do mundo” e de seu círculo
familiar se inscreve na mente dos assistidos; por outro lado, os presentes que Emilie recebe
deles são guardados, e a ajudam a evocar a memória daqueles que a presenteiam. Tais objetos
vêm a constituir-se, assim, em lugares de memória, tão verdadeiramente como os objetos
trazidos por Emilie do Líbano, que lhe evocam tempos e lugares longínquos, dos quais se
tornam vestígios.
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Constatamos, ainda, que o espaço é importante referencial na recuperação da memória
de eventos passados. Quando vivemos em lugar e depois nos ausentamos, ao voltarmos a esse
lugar percebemos coisas que não havíamos percebido anteriormente. É o que acontece com a
narradora ao entrar em contato com o desenho na parede na casa de sua mãe biológica. O
desenho, que antes talvez não significasse muito, agora lhe chama a atenção, como se através
dele se lhe oferecesse a oportunidade de resgatar algo de seu passado. Talvez o desenho
contasse o que sentia em pequena, pois quase sempre a criança retrata através de desenhos o
momento que vive em casa, a família, algo que faça parte de sua vida, pois não desenha nada
abstrato-tudo tem uma relação consigo e com os que a rodeiam.
O espaço geométrico onde aconteceram os fatos é a Parisiense, e o pátio da casa e o
Sobrado, o cais do porto, a igreja onde Emilie reza, as ruas de Manaus e o seu rio. O espaço
habitado inclui primeiramente a Parisiense, onde há a presença da família, dos amigos e
clientes: ali se vive, se festeja e se comercializa. O primeiro espaço vivido é a casa onde
moram Emilie, o marido, os dois netos adotivos, Samara, Hakim e os outros dois filhos
inominados. Compreende a sala onde acontecem as festas comemorativas e iniciam as
reuniões de sexta-feira, o quarto dos segredos, onde Emilie guardava seus objetos e o quarto
onde o pai rezava em cima do tapete, e o pátio da casa.
Quanto ao tempo abrangido, tem-se referência no romance ao natal de 54, quando os
netos eram ainda crianças. Familiares abandonam a esfera da infância; ouros morrem. Embora
não se dimensione exatamente o tempo decorrido, percebe-se que Emilie, antes tão cheia de
vida, envelhece. Hakim comenta o fato de que a mãe, já surda, tem dificuldade de se
comunicar à distância. Integram esse espaço-tempo ainda objetos que auxiliam na
recuperação do passado de muitos narradores: tapetes, vasos, lustres, jóias, etc. Dois objetos,
porém, que merecem destaque no romance: o relógio e o tapete. Simbolizam duas religiões: o
relógio é estimado por relembrar a vida de Emilie no convento; o tapete é o lugar sagrado
onde o marido faz as orações com o corpo voltado pra Meca.
Percebemos, ainda, que também a fotografia se constitui em prática através da qual se
resgatam e perenizam os que já partiram no romance Relato de um certo Oriente. Solenizando
e eternizando momentos intensos, assume uma função memorial, assumindo papel
testemunhal. Esse papel autenticador da foto tem a função de tanto mostrar o real como ser
suporte de rememoração, como acontece principalmente com as fotos de Emir e Soraya, mas
também com todas as outras enviadas aos parentes distantes por meio de cartas. Dessa forma,
fotografias contribuem para que a história pessoal, familiar e social permaneça viva,
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cumprindo também o papel de manter relações sociais com os membros do grupo que se
encontram longe, através da atualização contínua do conhecimento mútuo.
É, assim, tanto por meio das recordações de vivências familiares e grupais, quanto a
partir de suportes materiais, como a fotografia e/ou casas, ou ainda outros referentes espaciais
e temporais que as lembranças se reavivam. O ambiente o ambiente da casa, da loja, da
cidade, os objetos da infância, o aroma das frutas, os cheiros, são tão essenciais ao processo
de recuperação da memória quanto a convivência com o outro, pois a partir deles esta última é
evocada.
Há narradores, como Hakim, considerado a fonte de muitos segredos, que por ter tido
maior e mais prolongado trânsito no ambiente familiar em Manaus, tornam-se peças-chave
para a reconstituição do passado pela neta de Emilie. Hakim reúne não só um repertorio de
experiências efetivamente vivenciadas, como a trajetória de Samara e a fúria dos irmãos
inominados, quanto sabe fatos que lhe foram contados, como a passagem de Emilie pelo
convento, narrada a ele por Hindié. Por outro lado, é a partir do momento em que ele próprio
visualiza os objetos pessoais de Emilie que passa a entender melhor os fatos que lhe são
contados por sua amiga, sendo capaz de tecer relações entre eles e comportamentos
observados em sua mãe.
Quanto mais reavivadas forem nossas recordações familiares e sociais, mais vivas
permanecem em nossa memória. Ademais, móveis, objetos, festas, o lugar onde brincamos
e/ou, confraternizamos, fotografias e cartas, provendo um contexto material, ajudam a
consolidar e resgatar o passado pessoal e familiar. Esses fatos reforçam a tese de que a
memória se constrói no e através do grupo, e se mantém caso o grupo não perca o contato
com seus integrantes.
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