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1 UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO EVOCAÇÃO POÉTICA O velar e o desvelar da obra pictórica ‘Menino morto’ de Cândido Portinari à luz das concepções de Paul Tillich e de Martin Heidegger sobre as artes Antonio Almeida Rodrigues da Silva São Bernardo do Campo Março/2008

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

EVOCAÇÃO POÉTICA

O velar e o desvelar da obra pictórica ‘Menino morto’ de Cândido

Portinari à luz das concepções de Paul Tillich e de Martin Heidegger

sobre as artes

Antonio Almeida Rodrigues da Silva

São Bernardo do Campo Março/2008

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

EVOCAÇÃO POÉTICA

O velar e o desvelar da obra pictórica ‘Menino morto’ de Cândido

Portinari à luz das concepções de Paul Tillich e de Martin Heidegger

sobre as artes

Antonio Almeida Rodrigues da Silva

Orientador:

Dr. Etienne Higuet

Dissertação apresentada em cumprimento às exigências do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de mestre.

São Bernardo do Campo Março/2008

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MENINO MORTO - 1944

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Para Cris... “Ignoramos o que é contemplar um dia, somente um dia... O espaço puro, onde, sem cessar, as flores desabrocham”.

R. M. Rilke

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AGRADECIMENTOS Ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), por ter apoiado esta pesquisa com uma bolsa de estudos durante os dois anos de mestrado. Ao Prof. Dr. Etienne Higuet, pelas importantes sugestões na elaboração deste trabalho, bem como pela extrema competência acadêmica e, sobretudo pela pessoa admirável e humana que demonstrou ser. Ao Prof. Dr. Antônio Carlos de Melo Magalhães pelo caminho que abriu, possibilitando minha chegada até aqui... Ao Prof. Dr. Rui Josgrilberg pelo interesse evidenciado por minha pesquisa, bem como pelas indicações de livros, teses, revistas..., que foram de grande importância para a concretização desta dissertação. Ao Pedro e a Kenia, pela companhia sempre agradável e pelos brilhantes amigos que são. À Casa Prócoro Velasques, pelos momentos belos proporcionados e pelos amigos e amigas que conheci aqui. À Márcia e ao Thiago, pela profundidade da amizade que construímos, mesmo diante de um tempo fugidio. Ao meu pai (Antonio Góes), pela sua simplicidade e, acima de tudo, pelo brilhante amigo que sempre foi. À minha mãe (Norma Almeida), para quem todas as palavras seriam vazias, porquanto não são suficientes para expressar o que ela verdadeiramente é. Aos meus irmãos (Ezaú, Eliomar, Elcinei e Ezequias), sem os quais nada seria possível, nem mesmo a minha existência. As minhas cunhadas (Ivana, Rosenira, Tatiane e Melissa), por deixarem a minha família mais bela – mais colorida. Aos meus sobrinhos (Erick, Yukari e Edon), não só pelas risadas que proporcionam, mas por serem indícios de que a Família ALMEIDA RODRIGUES nunca terá fim...

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O filho menor está morrendo As filhas maiores soluçam forte Caem lágrimas de pedra. Mãe querendo Levar menino morto: feio de sofrer, cara da morte Desolação. Silêncio apavorando Solo sem fim pegando fogo. Não há direção. O sol queimando Embrutece. Cabeça vazia de bobo Há quanto tempo? Famintos e sem sorte A água pouca, ninguém pede nem faz menção Água, água, se acabar, vem a morte. Estão irrigando a terra? É barulho de água? Alucinação Que Santo nos poderia livrar? Reza de velho louco Deus pode a todos castigar. Que é que esse menino tem? Está morto.

C. Portinari – “Respirar”

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SILVA, Antonio Almeida Rodrigues da. Evocação poética: o velar e o desvelar da obra pictórica ‘Menino morto’ de Cândido Portinari à luz das concepções de Paul Tillich e de Martin Heidegger sobre as artes. Dissertação de mestrado. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2008.

RESUMO

A arte sempre esteve presente entre os humanos como um grande mistério. Sua característica polissêmica nos desafia a pensá-la como algo sempre aberto. Isto é, livre para que os indivíduos a experimentem de formas diversas. Nossa intenção, ao escolher a tela “Menino morto” do pintor Cândido Portinari, é mostrar que o encontro com uma obra de arte é forçosamente atual, vivo, surpreendente, extraordinário... Não apenas como um mero “objeto” de prazer, mas, sobretudo, como possibilidades de desvelar experiências originárias, abrindo gamas de sentidos que ajudam os seres humanos a significar a própria existência. Para seguir na investigação, privilegiam-se, nesta dissertação, os estudos sobre as artes do teólogo Paul Tillich e do filósofo Martin Heidegger. Para Tillich, numa obra de arte deve-se buscar o que se esconde no inaparente, pois é aí que reside a sua substância. Assim, na arte, como em qualquer manifestação cultural, por mais secular que aparente ser, se expressa sempre uma preocupação última. Para Heidegger, a arte é fonte de revelação da verdade. Todavia, essa revelação traz em si o ocultamento da mesma verdade, posto que a verdade e a não-verdade acontecem simultaneamente na obra de arte. Portanto, à luz dos estudos feitos por esses dois autores, tentamos captar o desnudar de “Menino morto”.

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SILVA, Antonio Almeida Rodrigues da. Poetic evocation: the veiling and unveiling of the paint ‘Dead boy’ by Cândido Portinari in the light of Paul Tillich and Martin Heidegger’s conceptions on art. Master thesis. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2008.

ABSTRACT

Art has been always a great mystery to human beings. Its polissemic characteristic challenges us to think it as something always opened. That’s to say, as something that allows people to experience art in diverse manners. By choosing de paint of Cândido Portinari, titled “Menino morto” (Dead boy), we pretend to show that the meeting with a work of art is forcefully actual, alive, surprising and extraordinary… Rather than a mere “object” of pleasure, it helps human beings to unveil original experiences by opening an array of meanings so that they could fine significance to their own being. In order to go on with this investigation, this thesis focuses on studies done by the theologian Paul Tillich and the philosofer Martin Heidegger regarding to art. According to Tillich, in a work of art, we must seek what is hidden by the unapparent, because is there that its substance lies. Thus, in art, as in any cultural expression, no matter how secular it could seems, an ultimate concern is always expressed. According to Heidegger, art is a source through which truth is revealed. However, this revelation bears itself the concealment of its same truth, for both, truth and non-truth simultaneously take place in Art. Therefore, in the light of the studies done by these two authors, we attempt to undress the “Dead boy”.

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Sumário

Introdução.................................................................................................

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Capítulo 1 – Evocação do poético enquanto desvelamento........... 17 1.1. Experiência estética........................................................................................

17

1.2. Experiência estética versus experiência religiosa....................................... 25

1.3. Breve cronobiografia de Cândido Portinari...............................................

1.4. Portinari na fase dos retirantes.............................................................

20 39

Capítulo 2 – Obras de artes e a irrupção do Incondicionado.......

50

2.1. Considerações sobre a Teologia da Cultura .................................................. 51

2.2. Heterononia, autonomia e teonomia .............................................................. 52

2.3. Um encontro revelatório ................................................................................ 59

2.4. Razão e revelação........................................................................................... 62

2.5. Relação entre religião e arte........................................................................... 67 2.5.1. Estilo não-religioso, conteúdo não-religioso............................................... 68

2.5.2. Estilo religioso, conteúdo não-religioso – o nível existencialista............... 69

2.5.3. Estilo não-religioso, conteúdo religioso ..................................................... 72

2.5.4. Estilo religioso, conteúdo religioso ............................................................ 73

2.6. Relevância estilística...................................................................................... 75

2.7. Arte e símbolo ............................................................................................... 81

2.8. Esteticismo e arte...........................................................................................

84

Capítulo 3 – O desnudar de uma obra de arte ...................................

88

3.1. Relação da “coisa” com a obra de arte........................................................... 89

3.2. A obra de arte e a manifestação de seu caráter coisal: considerações sobre

a fenomenologia ...................................................................................................

96

3.3. Um par de sapatos.......................................................................................... 100

3.4. Sobre a essência da verdade........................................................................... 103

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3.5. Arte e metafísica........................................................................................... 107

3.6. A relação Mundo-Terra.................................................................................. 112

3.7. A obra de arte como Poesia............................................................................

121

Considerações Finais.....................................................................................

126

Referências Bibliográficas........................................................................... 133

Obras inseridas no texto.......................................................................148

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INTRODUÇÃO

Indubitavelmente, obras de arte caracterizam-se por serem enigmáticas. Por

isso, diversas explicações, no transcurso da história, já foram elaboradas, objetivando uma

compreensão do que uma obra de arte é capaz de apresentar aos seres humanos, quando

entram em contato com uma. Coube à fenomenologia – corrente filosófica de suma

importância na atualidade, originada a partir das investigações de Edmund Husserl (1859 –

1938) – o papel de introduzir na estética o critério de que devemos recorrer, antes de

qualquer pressuposição acerca da natureza do belo ou da arte, à intuição dos fenômenos

que se nos apresentam de modo imediato, na experiência estética.

Objetiva-se levar um pouco mais adiante esta problemática, tendo a obra

Menino morto de Cândido Portinari, de 1944, como objeto desta reflexão.

O interesse pela obra Menino morto surgiu a partir de uma visita ao Museu

de Arte de São Paulo (MASP). Na ocasião, entrei em contato com uma série de quadros de

Portinari. Ali, algo inusitado aconteceu quando tive o primeiro contato com a obra Menino

morto. Durante alguns minutos fiquei petrificado diante de um mundo paradoxal, estranho,

triste e grandioso que se abria diante de mim. Seres marcados pela dor. Um grito não

particular dos retirantes, mas um grito universal da humanidade. De imediato surgiu o

seguinte questionamento: como é que se dá a relação de Menino morto com a realidade?

Como esta tela se apresenta enquanto leitura da realidade, isto é, enquanto leitura crítica?

Uma experiência estética pode dar acesso a um sentido mais profundo, manifestando o

sagrado? A arte possibilita um retorno a experiências humanas mais fundamentais? É bem

verdade que já tinha visto essa obra em alguns livros de literatura. Mas o contato direto

com a obra-mesma abalou-me de uma forma estranha. Ora, diante dessa experiência surgiu

o interesse de estudar mais a fundo a obra, bem como entender a experiência que tive.

Haidi Drebes afirma que:

A fruição de uma obra de arte nos desafia e, ao contemplá -la, muitas vezes olhamos para nós mesmos. A fruição de uma obra de arte, o deixar-se “tocar” por ela, permitindo que sejam evocadas memórias e provocadas

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reflexões e estabelecendo-se uma relação existencial e transcendental, é perceber e viver espiritualidade 1.

No encontro com uma obra de arte pode haver em nós reações de

ressignificação, pois suscita reflexões existenciais e interpretativas, como bem observa

Benedito Nunes: “o objeto estético possui, para quem sabe contemplá- lo, uma

inesgotabilidade, uma estranha presença, palpável e fugidia, próxima e distante, que se

impõe a cada ato de contemplação dirigido para o objeto estético, singular e único”2. Este

guarda uma essência só dele possuída e que só nele pode ser captada.

É bastante evidente que esta proposta se insere no campo da subjetividade.

Seria esse um grande perigo? De acordo com Carlos Calvani, há duas formas de encarar

essa questão: a primeira tenta eliminar do exercício analítico qualquer traço de emoção,

sentimento ou gosto, transformando a análise de obras de arte em mera discussão sobre

seus aspectos. A segunda forma de tratar a subjetividade é não encará- la como “problema”,

reconhecendo sua função em qualquer exercício hermenêutico3.

Com efeito, para prosseguir a investigação, entendi que a teologia da

cultura de Paul Tillich e, mais exclusivamente, sua teologia das artes plásticas poderiam

me ajudar nesse objetivo. Pois uma das funções da arte, na concepção tillichiana, é a

expressão dos dramas do mundo em que vivemos. Consoante a isso, a obra portinariana

está profundamente conectada à existência humana. Neste ponto, encontrei no pensamento

tillichiano sobre a cultura o fundamento teológico para interpretar a obra de Portinari. A

teologia, longe de estar presa à esfera da Igreja, pode muito bem visitar diversos pontos de

referência da cultura para desenvolver seu discurso.

A experiência estética, para o teólogo alemão, tem a capacidade de levar as

pessoas a níveis últimos de experiências. Isto é, pode levar a uma experiência com o

transcendente. Tillich sabia que as artes têm o poder de estimular os seres humanos a

ficarem mais sensíveis a novos ângulos da existência.

1 DREBES, H. A expressão da espiritualidade na obra pictórica de Frida Kahlo no horizonte da teologia da cultura de Paul Tillich, p. 16. 2 NUNES, B. Introdução à filosofia da arte, p. 115-6. 3 CALVANI, C. Teologia e MPB, p. 4.

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À luz da Teologia da Cultura há uma diversidade de possibilidades de

experiências com a Realidade Última4. Dentro do contexto cultural, entretanto,

privilegiarei as artes plásticas, em virtude de delimitação e, sobretudo, de afinidade.

Evidencia-se nos estudos de Tillich que quase todos os tipos de realidade chegam a ser, em

um momento ou outro, um meio de revelação. Assim, a revelação do mistério não é uma

característica exclusiva das artes. As coisas, os eventos e os âmbitos seculares também

podem se converter em questões de preocupação última. Ou seja, podem ser portadoras do

mistério do ser e entrar numa correlação revelatória, já que, segundo Tillich, em princípio,

nada está excluído da revelação, porque nada está incluído nela em virtude de qualidades

especiais5. A teologia de Tillich elaborou-se, como destaca Etienne Higuet, como um

constante diálogo e confronto com os movimentos sociais, políticos, filosóficos, científicos

e artísticos do século XX, no afinco de descobrir sua dimensão religiosa suprema, suas

chances e seus desvios, suas exigências e seus apelos6. O olhar que Tillich dirige às obras

de arte é, antes de tudo, orientado por um interesse teológico. O que as criações artísticas

expressam do fundamento do ser.

Numa tentativa de evitar interpretações unívocas, porquanto qualquer obra

de arte se caracteriza pela diversidade de interpretações, encontrei no pensamento do

filósofo Martin Heidegger, a partir do contato com o seu ensaio A origem da obra de arte,

o descortinar de uma outra possibilidade de leitura da tela Menino morto, já que, segundo

Heidegger, a arte é verdadeira no sentido de revelação. Ela nos contrasta, colocando em

suspensão um mundo dado, e desvela outras possibilidades de compreensão do mundo. A

obra como “realização da verdade” exerce sobre o observador um efeito que Heidegger

define com o termo Stoss, choque.

De acordo com Hans-Georg Gadamer, Heidegger mostra que o conceito

grego de desproteção, desvelamento é apenas um lado da experiência fundamental do ser

humano. Ao lado do desvelamento, e inseparável dele, está justamente o velar e o encobrir

que fazem parte da finitude do ser humano 7. Essa visão filosófica que põe limites ao

idealismo de uma pura integração de sentido, inclui que na obra de arte existe ainda algo

4 Realidade última em Tillich é um termo qualitativo. Não se trata de “um ser”, mas de uma qualidade; o mesmo é dito sobre o “último”. Não se trata simplesmente do objeto que estaria no fim de uma sucessão de objetos preliminares, mas do “último” qualitativo, o mais profundo e substancial (CALVANI, 1998, p. 53). 5 TILLICH, P. Teologia sistemática, p. 30. 6 HIGUET, E. Atualidade da teologia da cultura de Paul Tillich. In: Revista eclesiástica brasileira, p. 50. 7 GADAMER, H, G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 54.

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mais que apenas uma significação experienciável, de modo incerto como sentido. Gadamer

acredita que embora Heidegger aborde o fenômeno artístico, não o faz com o intuito de

construir uma teoria estética, mas sim com o de investigar este acontecer do ser que estaria

em jogo em toda obra de arte, seja escrita, esculpida ou pintada8. É a questão ontológica,

por trás da possibilidade de ser da arte, que interessa a Heidegger.

O filósofo alemão, como nos diz Saturnino Ramón, assume, a partir da

década de 30, uma atitude poética aberta ao “mistério do Ser”, de natureza “mí (s) tica” e

cósmica, pronta a receber a dádiva da palavra do Ser, a partir de como este se revelará em

seu aspecto mais íntimo9.

O método heideggeriano vai constituir-se, então, como uma fenomenologia

que não caminha num sentido idêntico ao de Husserl, pois, na elaboração de seu método,

Heidegger desvia seu olhar dos propósitos epistemológicos da fenomenologia husserliana,

voltando-se para aquela que ele compreendia ser a fenomenologia mesma: uma

fenomenologia não fundada na epistemologia, mas, na ontologia, visando assim atingir seu

âmago e levá- la a alcançar suas possibilidades mais genuínas. Para ele, isso só seria

possível no âmbito de uma fenomenologia que estivesse fundada não mais na consciência,

mas no Dasein mesmo, enraizada na questão do ser. O fenômeno não é mais

compreendido como uma idealidade. É o elemento, o meio, a base privilegiada de toda e

qualquer manifestação daquilo que tende a velar-se, mas que pode vir a mostrar-se, a

desvelar-se. Toda experiência enquanto vivência pode ser recolhida enquanto fenômeno,

ou seja, considerando-a de acordo com o sentido originário do que é experimentado.

Busca-se precisar, como assinala Jorge Machado, três coisas. 1) o acordo com o sentido

originário do conteúdo (Gehalt); 2) o originário como experiência de ser no sentido

relacional (Bezug) e; 3) o modo como esse sentido relacional se atualiza (Vollzug)10. Para

Heidegger, a verdade originária ocorre na dimensão do velar e do desvelar

fenomenológico.

Tillich e Heidegger conviveram juntos, quando ambos lecionaram em

Marburgo, na década de 20. Tillich chega a fazer algumas referências a Heidegger em

alguns textos, mas Heidegger, em seus textos, pelo menos os quais tive acesso, não faz

8 Idem. Verdade e método, p. 7-8. 9 RAMÓN, S. Joan Miró: una lectura filosófica a partir de “la masia”, p. 229. 10 MACHADO, J. Os indícios de Deus no homem: uma abordagem a partir do método fenomenológico de Martin Heidegger, pp. 38-9.

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alusão ao teólogo. Para Calvani, à luz de Heidegger, diríamos que Tillich “entifica” o ser,

dá-lhe fundamentação teológica, transformando-o em algo diferente: Deus 11. O Ser, como

idéia mais abstrata possível ao pensamento humano, para Heidegger, é indefinível. Tentar

fazer isso implicaria transformá-lo num ente.

Apesar de fazer algumas aproximações entre Heidegger e Tillich na

conclusão desta dissertação, esse não é meu objetivo maior. O fato de apresentar dois

pensadores se justifica pelo interesse de perceber a obra de arte em duas perspectivas que,

por sinal, são muito interessantes. As diferenças, neste caso, não se isolam, mas são muito

produtivas para a leitura do quadro. Meu intuito não é instrumentalizar a obra Menino

morto, inserindo-a dentro de teorias, mas explorar possibilidades de leituras. Esta pesquisa

é um processo contínuo de reconstrução e reorganização possibilitado pela experiência

com a linguagem pictórica e os escritos de Heidegger e Tillich. A verdade desvelada, no

entanto, deve ser entendida como criação de sentido. De qualquer maneira, não tenho a

intenção de resolver o enigma da arte, mas de ver o enigma e perceber qual “verdade” ele

desvela.

Esta dissertação está repartida em três capítulos. O primeiro divide-se em

três momentos. O primeiro refere-se à tentativa de discutir uma possível relação existente

entre experiência estética e experiência religiosa. O segundo momento levanta uma

cronobiografia do pintor brasileiro Cândido Portinari, no intuito de perceber a sua evolução

como artista. O terceiro e último momento deste capítulo tem como escopo levantar

algumas considerações feitas por alguns críticos de arte, no que se refere à fase em que

Portinari pintou a série Retirantes.

O segundo capítulo se concentrará nos estudos feitos por Paul Tillich no que

tange as obras de arte. Aqui, de forma sucinta, serão enfatizados alguns pontos essenciais

de sua Teologia da Cultura para, então, me concentrar na relação que ele faz entre religião

e arte. Simultaneamente, no decorrer deste capítulo farei a análise da tela Menino morto.

O terceiro e último capitulo tratará dos estudos elaborados por Martin

Heidegger no que diz respeito às artes. Semelhantemente ao segundo capitulo, a aplicação

desse estudo se fará de maneira simultânea à obra Menino morto.

11 CALVANI, C. Op. cit., p. 32.

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Por fim, a conclusão apontará algumas convergências entre os dois

pensadores. As verdades da pesquisa, com efeito, estarão sempre sendo interrogadas,

mesmo porque, elas não serão verdades absolutas. Haverá, então, verdades múltiplas, que

são as possibilidades do fenômeno mostrar-se no seu estado perspectival, e é na

intersubjetividade que se obtém uma reflexão mais precisa sobre o fenômeno 12. Por isso

mesmo, não há preocupação em concluir o assunto, uma vez que o fenômeno estará sempre

se desvelando e se ocultando, numa visão dialética, posto que suscita interrogações que nos

fazem caminhar em torno dela, buscando sempre novas possibilidades e novos sentidos.

Acredito, então, que todas as artes inscrevem-se em um “projeto poético”. Por isso, pensei

numa evocação poética, quando surgem “mundos” de sentidos, ao me deparar

sensorialmente com a obra Menino morto de Portinari, pois, como bem observou Michel

Haar,

A obra está presente, mesmo que seu mundo tenha desaparecido, mesmo que as forças, os interesses, os gostos e as crenças que um dia ela fez vir à presença estejam mortos. O encontro com ela é forçosamente atual, vivo e surpreendente, de uma novidade e de uma juventude que contradizem a cronologia e anulam a distância [...] O terrestre e o carnal da obra não envelhecem [...] Que crítico de arte pode explicar a fascinação sempre nova exercida por tal ou qual obra, ouvida ou vista por nós dezenas de vezes? Ele renunciaria seu ofício, pois teria compreendido porque a obra de arte ultrapassa de pronto todas as interpretações que dela se venha a dar. Felizmente ninguém dirá o porquê deste fascinante enigma 13.

12 FERRAZ, C. et al. A fenomenologia como alternativa metodológica para pesquisa: algumas considerações, p. 41-2. 13 HAAR, M. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras, p. 119-20.

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CAPÍTULO 1

EVOCAÇÃO DO POÉTICO ENQUANTO DESVELAMENTO

Essência e existência, imaginário e real, visível e invisível, a pintura confunde todas as nossas categorias ao desdobrar seu universo onírico de essências carnais, de semelhanças eficazes, de significações mudas. M. Ponty - O olho e o espírito

Antes de nos concentramos, propriamente, nas análises da tela Criança

morta da série Retirantes, à luz dos estudos heideggerianos e tillichianos, cabe-nos levantar

uma breve discussão sobre a relação entre Experiência Religiosa e Experiência Estética,

para verificarmos até que ponto existe relação entre as duas. Sendo assim, tal discussão nos

remeterá ao cerne da nossa pesquisa, já que abrange, desde o início, tal problemática.

1.1. Experiência estética

De acordo com Harold Osborne, dois sucessos revolucionários se

verificaram na primeira metade do século XX e, graças a eles, inclinamo-nos a dizer que

uma nova concepção de arte e uma nova concepção de valor estético surgiram em nosso

tempo14. O primeiro, para esse autor, relaciona-se com a presunção de que as obras de arte

constituem criações novas, com critérios autônomos de valor, que lhes são específicos.

Com isso, ele quer dizer que já não estamos presos ao interesse anedótico dos quadros,

nem à sua capacidade de elevar, edificar ou divertir. A segunda mudança revolucionária,

segundo o autor, é a crença, tácita ou afirmada, de que o gozo da experiência estética, a

cultivação da sensibilidade estética e o treinamento da capacidade de apreciar belas obras

de arte são alguns dos valores fundamentais da vida humana, valiosos por si mesmos, e que

14 OSBORNE, H. Estética e teoria da arte, p. 266.

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dispensam a justificação de quaisquer benefícios intrínsecos que possam conferir. Por isso

mesmo, para Osborne, o valor imputado à experiência estética tornou-se origem e fonte

dos chamados valores “estéticos”.

Atualmente, admite-se entre os estudiosos, que beleza é um conceito

eminentemente histórico e subjetivo. Isto é, cada cultura, cada sociedade, em cada época,

tem seu próprio conceito de beleza e, consequentemente, seu próprio paradigma de gosto.

Em conseqüência disso, hoje, dentro de uma visão fenomenológica, podemos afirmar que

beleza também, é um conceito relativo, ou seja, o belo não está nem no objeto, nem no

sujeito, mas surge da relação entre os dois15. Isso significa que o sentido de beleza é

percebido e não racionalizado, através da experiência estética. Para Maria Campos, “toda

experiência artística de transcendência não evidencia um subjetivismo ingênuo, mas antes

afirma o resgate fenomenológico da própria subjetividade, ou sua libertação de uma

objetividade ditada por leis mecânicas”16. Ora, nesta perspectiva, beleza é experiência

sentida em cada indivíduo, em cada contexto. Ela é um estado emocional, não uma

realidade ou verdade racional. Vale destacar que, apesar de a beleza ser sentida

individualmente, isso não significa que no âmbito sócio-cultural não se possa manipular a

experiência da beleza, através da imposição de paradigmas de gosto, ou seja, da

massificação de um determinado objeto, para que o mesmo possa despertar, por suas meras

propriedades, o gosto e o prazer em um número maior de indivíduos.

Na concepção de Gadamer, o fato de sentirmos a verdade numa obra de arte,

o que não seria alcançável por nenhum outro meio, é o que dá importância filosófica à arte,

que se afirma contra todo e qualquer raciocínio. Assim, ao lado da experiência da filosofia,

a experiência da arte é a mais peremptória advertência à consciência científica, no sentido

de reconhecer seus limites17. Gadamer tenta defender a experiência da verdade que nos é

proporcionada pela obra de arte contra a teoria estética que se deixa limitar pelo conceito

de verdade da ciência.

15 “Embora sem igualar a importância da fenomenologia no panorama da filosofia contemporânea, a estética fenomenológica é, hoje, uma das correntes de maior consistência no âmbito da estética. Sua história é recente. O ponto de partida, obviamente, deve ser procurado na obra de Edmund Husserl. Apesar de Husserl não ter escrito uma estética, sua vasta obra contém elementos suficientes para propiciar o surgimento de uma estética fenomenológica” (FIGURELLI, 1998, p. 7). 16 CAMPOS, M. Arte e verdade, p. 107. 17 GADAMER, H, G. Verdade e método, p. 33.

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Por isso, na vivência da arte, de acordo com Gadamer, há presente uma

pletora de significados que não somente pertence a este conteúdo específico ou a esse

objeto, mas que, antes, representa o todo do sentido da vida. Ou seja, uma vivência estética

contém sempre a experiência de um todo infinito. E seu significado é infinito justamente

porque, ao se conectar com outras coisas para a unidade de um processo aberto de

experiência, representa o todo imediatamente. Na medida em que a vivência estética

representa exemplarmente o conteúdo do conceito da vivência, é compreensível que o

conceito desta seja determinante para a fundamentação do ponto de vista da arte. Por isso,

a obra de arte é compreendida como a consumação da representação simbólica da vida, a

caminho da qual já se encontra igualmente toda a vivência. É por isso que ela mesma é

caracterizada como objeto da vivência estética. Consequentemente, a chamada arte

vivencial aparece como verdadeira arte18. Com efeito, só quando “reconhecemos” o que

está representado, podemos “ler” uma pintura. Só assim ela passa, de fato, a ser uma

pintura. Ler significa subdividir desmembrando. De forma extraordinária, o conteúdo de

verdade que há em toda experiência da arte é trazido ao reconhecimento e, ao mesmo

tempo, transmitido como consciência histórica. “Todo encontro com a linguagem da arte é

um encontro com um acontecimento não acabado e, ela mesma, uma parte desse

acontecimento”19. É isso que se tem de pôr em relevo contra a consciência estética e contra

a sua neutralização em relação à questão da verdade.

A experiência da arte confessa, de si mesma, que não consegue apreender num conhecimento definitivo a verdade consumada daquilo que experimenta. Aqui não existe por assim dizer, nenhum progresso de per si, e nenhum esgotamento definitivo daquilo que se encontra numa obra de arte [...] Vemos na experiência da arte uma genuína experiência em obra, que não deixa inalterado aquele que a faz, e dirigimos nossa indagação ao modo de ser daquilo que é experimentado assim20.

Nesta perspectiva, a obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser. O fato de

que cada obra de arte tenha seu mundo não significa que, uma vez que seu mundo original

tenha mudado, já não possa mais ter realidade a não ser numa consciência alienada e

estética. A experiência artística, devidamente compreendida e vivida, apresenta um

extraordinário poder formativo, tornando-se de grande valor na esfera da vivência humana.

18 Ibid., p. 131. 19 Ibid., p. 171. 20 Ibid., p. 172.

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Para Ernst Fischer, a arte é necessária para que o ser humano se torne capaz

de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é necessária em virtude da magia que

lhe é inerente21. É possível concluir que o atributo transformador da arte está em sua

cumplicidade com o exercício da criatividade, com a busca do novo e com a expressão de

sentimentos. Já a magia é a própria beleza, sua simbologia e a transmutação do real. Talvez

essa seja a grande justificativa para que os conceitos de estética e arte sempre apareçam

imbricados. A experiência da beleza se manifesta na intensidade da fruição, do deleite e do

gozo sentido pelo sujeito, independentemente da racionalidade do fenômeno ou do objeto

causador desse estado emocional. Para este trabalho, é importante frisar que o que nos

interessa nesta abordagem é a experiência estética causada pela obra de arte. Uma obra de

arte nunca é uma coisa em si, fora da realidade humana; ela sempre requer uma interação

com um espectador. Descobrimos o significado de uma obra de arte, mas também lhe

doamos um significado.

O nosso “Eu” limitado sofre uma ampliação maravilhosa pela experiência de uma obra de arte. Realiza-se dentro de nós um processo de identificação, de modo que podemos sentir, quase sem esforço, que não somos meras testemunhas da criação, que somos um pouco, também, criadores daquelas obras que estendem os nosso horizontes e nos elevam acima da superfície a que estamos pegados 22.

Roberto Figurelli destaca que “o homem é um ser-no-mundo. E estar no

mundo leva o homem a buscar o fundamento que consiste no acordo do homem com o

mundo. Daí a importância da experiência estética. Ela reconcilia o homem consigo

mesmo”23. Não cabe à Estética estabelecer comparações entre o valor intrínseco da

experiência estética e outros valores fundamentais, como o da moral, da bondade, do

conhecimento pelo conhecimento, da afeição humana ou das satisfações sensuais. Na

mesma linha, Mikel Dufrenne assinala que a necessidade do belo é reflexo da necessidade

que o ser humano tem de sentir-se no mundo, de maneira que a experiência estética,

mesmo que não revele sua vocação, significa a experiência de sua relação profunda com o

mundo. “Estar no mundo não é ser uma coisa entre as coisas, é sentir-se em casa entre as

coisas”24. Dufrenne fala da experiência estética como o momento de libertação do

pensamento para além do intelecto, para encontrar a figura em contemplação. Neste

21 FISCHER, E. A necessidade da arte, p. 20. 22 Ibid., p. 253. 23 FIGURELLI, R. Prefácio. In: Estética e filosofia, p. 13. 24 DUFRENNE, M. Estética e filosofia, p. 25.

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momento, a imaginação está fora do controle do intelecto, mas a percepção estética solicita

as potências reflexivas da consciência. “A percepção estética procura a verdade do objeto,

assim como ela é dada imediatamente no sensível”25. O sentido que o objeto estético revela

não apela para o exercício da inteligência, como visto, mas é um sentido totalmente

“imanente ao sensível” que, experimentado no nível da sensibilidade, acaba por unificar e

esclarecer. Difere-se assim do sentido imanente que se impõe às perspectivas analíticas. O

sentido é não mais que a organização do sensível.

Na verdade, por trás dessa artisticidade das atividades humanas encontramos

algo ainda mais básico: o jogo como fonte de sentido. Não apenas o jogo com os objetos

materiais, mas o jogo simbólico, o jogo dialógico e todas as práticas da cultura. Em seu

livro A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, Gadamer assinala que a

primeira coisa que precisamos levar em conta quando falamos de jogo é que o jogo é uma

função elementar da vida dos seres humanos, de tal sorte que a cultura humana, sem um

elemento de jogo, é impensável; este, implicitamente, é, de início, o ir e vir de um

movimento que se repete constantemente. Assim, de acordo com Gadamer, cada obra

deixa como que para cada um que a assimila um espaço de jogo que ele tem que preencher 26. A tarefa de construção do jogo reflexivo está como exigência na obra como tal. Isso

quer mostrar, segundo Gadamer, que em princípio não existe separação entre o todo da

obra propriamente e aquilo a partir de que esta obra é vivenciada.

A arte aparece, então, como jogo criativo que atualiza a condição existencial

de abertura a possibilidades. Com sua capacidade de plasmar âmbitos de significação, a

arte fornece ao ser humano o modelo de seu meio ambiente autêntico, constituído, não por

coisas, mas por campos de possibilidade. De acordo com Campos, toda arte é um jogo e,

em si mesmo, o gesto lúdico simboliza o contato originário entre o homem e a realidade.

Na trama infinita e gratuita dos possíveis, emoção e forma respondem pelo todo

significativo e verdadeiro que a lúcida mentira da arte possibilita27. Para essa autora, toda

arte é uma seleção da verdade que está na própria realidade, ou melhor, é uma des-

construção do “real” para elevar o “irreal” a um poder afirmativo mais alto. Plasmando

âmbitos de realidade, instaurando mundos possíveis, a obra de arte restitui aquela unidade

originária do existir, aquela contínua intimidade com o múltiplo que caracteriza a

25 Ibid., p. 80. 26 GADAMER, H.G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 43. 27 CAMPOS, M. Op. cit., pp. 98-9.

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experiência de estar vivo. Mas, se “o jogo é gerador de sentido”, é porque ele, longe de ser

apenas um movimento contínuo, conhece ciclos e obedece a condições recorrentes, as

quais impõem regras mais ou menos estritas.

John Dewey assinala que a condição para que uma obra possa resultar

expressiva a quem a percebe, é dada pela existência de significados e valores extraídos de

precedentes experiências e enraizados de tal modo que se fundem com as qualidades

apresentadas diretamente na obra de arte28. Assim, a experiência estética é em si mesma

uma experiência crítica que proporciona a consideração de seu objeto enquanto algo

autônomo. Quem vive a experiência estética não é um sujeito que capta e conceitua objetos

distantes de si, mas é ser que se mistura às coisas e, da experiência delas, faz traduções que

se compõem de algo além do conceito.

A vivência estética, conseqüentemente, é o estado da existência humana

onde a fluidez do fenômeno perceptivo se revela. Para Andréia Marin e Luiz Oliveira é

nessa dimensão que se torna clara a riqueza e a completude do percebido, amplidão por

vezes ofuscada na sistematização conceitual. O Homo aestheticus é alguém que “sente com

os sentidos”, que está emaranhado nas teias do mundo que percebe, e que com ele se

relaciona de múltiplas formas, marcadas pela afetividade, pela emoção, pela memória e,

enfim, por todas as capacidades e dimensões que o constroem além da racionalidade. Não

objetifica o mundo, mas o percebe poeticamente. E a poesia que permeia sua percepção

deriva justamente de sua imersão no mundo29.

Na obra de arte não apenas se remete algo, mas que nela está propriamente aquilo a que se remete. Em outras palavras: a obra de arte significa um acréscimo de ser. Isso a distingue de todas as realizações produtivas da humanidade, no trabalho manual e na técnica, nos quais foram desenvolvidos os aparelhos e os instrumentos de nossa vida prático-financeira30.

Por conseguinte, o trato com as obras-de-arte sempre se defronta com duas

teses fundamentais; em ambas a arte encontra um significado inesperado. Uma tese,

segundo Ernesto Grassi, afirma que o artista é capaz de quebrar a crosta das verificações

28 DEWEY, J. apud ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas, p. 71. 29 MARIN, A.; OLIVEIRA, L. A experiência estética em Dufrenne e Quintás e a percepção de natureza: para uma educação ambiental com bases fenomenológicas. Rev. eletrônica Mestr. Educ. Ambient. V. 15, julho a dezembro de 2005. Disponível em: http://www.remea.furg.br. Acessado em 23/02/2007. 30 GADAMER, H, G. A atualidade do belo: a arte como jogo símbolo e festa, p. 55.

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empíricas, “ir além” delas e assim alcançar as formas originárias da realidade humana 31. A

segunda tese, para o mesmo autor, afirma ser impossível o acesso à obra-de-arte baseado

em discussões lógicas e verificações empíricas. Aqui, se defrontam “logos” e fantasia. À

primeira vista, esta tese parece abrir caminho a qualquer arbitrariedade na interpretação da

obra-de-arte e ameaça tornar impossível qualquer ciência literária ou artística no sentido

tradicional. Assim, procura-se, em vista do significado da arte, seu papel na revelação da

realidade originária que se supõe existir atrás do mundo cotidiano.

A arte é o projeto de uma moldura “possível” e não verdadeira, para a realização de uma tensão que produz diversos sinais alusivos ao comportamento, a perguntas, a pensamento. Ela aparece como mundo de fábula, de mitos, como pura significação possível da realidade que ultrapassa qualquer mundo empírico, pragmático e cotidiano, e dele se liberta32.

Como assinala Grassi, a verdadeira arte nunca pode ser um jogo estetizante

ou um processo individual e isolado; ela pertence à essência do ser humano e cumpre uma

tarefa necessária. Em outras palavras, a obra de arte evoca uma situação fundamental na

qual símbolos esclerosados e tornados inofensivos pela existência cotidiana revelam o seu

significado originário, provocam estados de espírito que fazem com que as pessoas

experimentem suas paixões fundamentais33. Se uma obra de arte conduz os indivíduos de

volta às possíveis formas originárias, em cujos sinais ele se encontra, não há necessidade

de esclarecimentos racionais, científicos ou eruditos. É quando a obra, no seu todo, agrada

a todos. A arte, como destaca esse autor, dissolve a realidade empírica. Isso se dá através

de manifestações sensoriais, de “sinais” de todos os tipos (cores, sons, formas, movimentos

etc.) ela se esforça por tornar significados “possíveis”, visíveis ou audíveis. O projeto

imaginário não faz reivindicações ao saber. É função da arte tornar visível e atestar a

condição estável do ser humano.

O originário se manifesta na nossa necessidade de encontrar o caminho no mundo e leva-nos, passo a passo, a conhecimentos que terminam na “visão”. É sempre o originário, aquilo que diz respeito ao homem, o referente, que confere um significado a todas as coisas, o alusivo que precisamos reconhecer como uma realidade concreta da mais alta ordem. Nunca devemos degradá-lo ao nível do meramente “pensado”, a um objeto abstrato de especulação intelectual, porque então estaríamos encobrindo o seu caráter perigoso, assombroso34.

31 GRASSI, E. Poder da imagem, impotência da palavra racional: em defesa da retórica, p. 21. 32 Ibid., p. 27. 33 Ibid., p. 35. 34 Ibid., p. 77.

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Ora, fica evidente que as obras de arte, por integrar os modos de

realidade, têm um longo alcance. Elas não se reduzem a uma bela superfície agradável para

a sensibilidade. Destaca-se, assim, o forte poder que as obras de arte exercem sobre os

indivíduos, já que as imagens que formam nosso mundo, como sugere Alberto Manguel,

são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que

completamos com o nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer que

seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos35. Com

o decorrer do tempo, para Manguel, podemos ver mais ou menos coisas em uma imagem,

sondar mais fundo, descobrir mais detalhes, associar e combinar outras imagens e,

emprestar- lhe palavras para contar o que vemos. Mas, em si mesma, uma imagem existe no

espaço que ocupa, independentemente do tempo que reservamos para contemplá- la. O que

vemos, assina la Manguel, não é nem a pintura em seu estado fixo, nem uma obra de arte

aprisionada nas coordenadas estabelecidas pelo museu para nos guiar. O que vemos é a

pintura traduzida nos termos da nossa experiência. Conferimos à imagem imutável uma

vida infinita e inesgotável. Sendo assim,

A experiência estética é uma experiência de revelação e conhecimento. Quando tentamos ler uma pintura, ela pode nos parecer perdida em um abismo de incompreensão ou, se preferirmos, em um vasto abismo que é uma terra de ninguém, feito de interpretações múltiplas. Toda imagem é um mundo36.

A experiência estética, naturalmente, é altamente subjetiva e torna a

realidade mais leve, dá novo sentido às coisas, podendo nos mostrar perspectivas diferentes

acerca da própria realidade. Apropriando-se do pensamento de Marcuse, Herbert Read

assinala que a arte não está interessada na luta pela existência no sentido econômico da

frase, porém, mais propriamente, no mistério da existência no sentido humano e

metafísico. “Está é a razão básica porque nenhuma sociedade futura imaginável, por mais

livre que esteja da necessidade material, jamais poderá prescindir da arte”37. Por isso, para

Read, a luta pela “existência” está dentro da mente dos seres humanos; em sua mais alta

intensidade, a arte está interessada não na existência, mas na essência. Para ele, até agora a

tecnologia não conseguiu dissipar o sentido trágico da vida, e podemos suspeitar que essa

realização está além dos seus poderes. É a arte, não a ciência, que dá significado à vida,

não apenas no sentido de superar a alienação (da natureza, da sociedade, do eu), mas no de

35 MANGUEL, A. Lendo imagens: uma história de amor e ódio, p. 25. 36 Ibid., p. 29. 37 MARCUSE apud READ, H. Arte e alienação: o papel do artista na sociedade, p. 43.

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reconciliar o homem com seu destino, que é a morte. Não apenas a morte no sentido físico,

como nos diz Read, mas aquela forma de morte que é indiferença, Acídia espiritual.

Neste sentido, a arte está comprometida com uma ilusão, e a maior ilusão é

a exigência de razão e clareza, de uma resolução no mito ontológico do paradoxo da

existência38. Para Read, as experiências humanas só existem para nossa consideração e

prazer, na medida em que são projetadas da mente para alguma figura material. Essas

concretizações da experiência só sobrevivem quando têm as características especificas de

uma obra de arte. Essas características podem ser belas ou vitais, e são mais eficazes e

permanentes quando essas duas qualidades se combinam numa obra de arte, posto que a

essência de qualquer obra de arte não está na síntese e exposição, nem mesmo na análise e

descoberta, mas na realização e manifestação. Ninguém nega que as obras de arte podem

legitimamente, refletir, de maneira mais ou menos ilusionista, uma realidade alheia a elas

mesmas, ou que podem concretizar e promulgar eficazmente valores sociais, religiosos ou

outros.

Em se tratando de valores religiosos, a referência das religiões ao sagrado

apresenta uma impressionante variedade de concretizações e mediações. De Acordo com

Edênio Valle, não existe nenhum acontecimento natural ou vital que não tenha sido ou

possa ser revestido de caráter sagrado por alguma cultura39. Assim, para Valle, qualquer

experiência, fato, fenômeno ou objeto pode ser hierofânico, ou seja, qualquer objeto pode

ser “revelador do divino”. Isto surge naturalmente, da necessidade do ser humano de

buscar transcendência. No entanto, o mistério do divino nunca se revela totalmente; nele

está inserido um lado oculto. Em seu nível mais profundo, a “experiência religiosa”

levanta necessariamente a difícil questão de sua dimensão inconsciente40.

1.2. Experiência estética versus experiência religiosa

No artigo Experiência religiosa e experiência estética em artistas plásticos:

perspectivas da psicologia da religião, os autores afirmam que experiência religiosa e

experiência estética são complexos processos psicológicos que envolvem os sentidos, a

cognição e o afeto, e dizem respeito à imediata apreensão respectivamente do objeto

38 READ, H. Arte e alienação: o papel do artista na sociedade, p. 43. 39 VALLE, E.Psicologia e experiência religiosa,p. 17. 40 Ibid., p. 41.

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religioso e do objeto belo, em particular na obra de arte41. Tem-se discutido se,

especialmente entre as pessoas cultas, a experiência religiosa pode ser substituída pela

experiência estética.

Segundo os autores, a produção e recepção da obra de arte pode envolver,

embora passageiramente, a pessoa inteira: sentidos, cognições, emoções; é capaz de

arrebatá-la, colocá- la em êxtase, isto é, fora de si, menos possuidora da obra do que

possuída por ela, tal como se diz da experiência religiosa intensa. Pode-se perguntar se a

experiência da arte pode fazer as vezes da experiência religiosa. Uma posição mista é

apresentada pelo pesquisador de psicologia da arte Rudolf Arnheim. Discutindo a

experiência estética e a experiência religiosa, Arnheim insiste na importância da primeira

para a segunda, enquanto o conteúdo espiritual da religião é corporificado, ou seja, trazido

à condição da existência física, pela arte42. Mas, afinal, experiência estética e experiência

religiosa são diferentes? Arnheim responde que há muito de semelhante entre ambas, pois

a religião leva à veneração “da natureza do mundo no qual se nasceu” e à conformidade de

vida com as exigências reveladas por aquela experiência. Coisa parecida, segundo esse

autor, acontece com a arte: a criação artística é a maneira de o artista colocar o trabalho de

uma vida no contexto do mundo de que tem experiência.

No artigo citado acima, os autores objetivam explorar a questão da

substituição da experiência religiosa pela experiência estética por meio de uma pesquisa

empírica com artistas plásticos, discutida no âmbito conceitual e epistemológico. A partir

dessas distinções, levantam as hipóteses de que a experiência estética pode substituir a

experiência religiosa no sentido funcional, mas não no sentido substantivo, e de que a

experiência estética pode ser uma experiência do sagrado. Participaram da pesquisa 8

destacados artistas plásticos, desenhistas, pintores e/ou escultores, 6 homens e 2 mulheres,

com idade variando de 46 a 70 anos, escolhidos, aleatoriamente, de uma relação fornecida

pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Nenhum dos artistas

pôde ser considerado praticante regular de uma religião organizada.

Para essa pesquisa, os autores utilizaram o método oral que compreendia

dois tópicos, desdobrados em dois itens principais. O primeiro girava em torno da seguinte

41 BARBOSA, R. et al. Experiência religiosa e experiência estética em artistas plásticos: perspectivas da psicologia da religião. In: Psicologia: reflexão e crítica. Vol. 17. n. 2. Porto Alegre, 2004. Disponível em: http://www.redalyc.uaemex.mx. Acessado em 04/07/2007. 42 AMHEIM, R. apud BARBOSA, R. et al. Op. cit., s/n.

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pergunta: qual o lugar da arte na vida pessoal do entrevistado (o artista como criador e

como apreciador de arte; identificação com algum artista). O segundo item era: qual a

relação percebida pelo entrevistado de sua atividade artística e da arte com o religioso, o

sagrado, o espiritual em sua vida (algum deus presente/ausente na obra de arte do

entrevistado; alguma relação - diferença, continuidade, substituição - percebida entre arte e

religião; o tema da 'desmaterialização' da obra de arte e imaterialidade, espiritualidade,

sagrado, religioso). Os artistas se dividem quanto à questão se a experiência religiosa pode

ser substituída pela experiência estética.

Várias são as afirmações de diferença entre religião e arte, como: a religião

‘estabelece parâmetros de vida’, enquanto a arte não o faz; a religião ‘impõe limites’, ao

passo que a arte ‘abre horizontes’; a religião coloca distância e a arte aproxima do

respectivo objeto; ‘a arte não ensina que devemos amar o próximo, mas através da arte

podemos amar o próximo’. Além disso, a criação artística ‘é emoção pura: não tem a ver

com religiosidade’. ‘O artista não se preocupa com o espiritual’. Talvez essas diferenças

expliquem, ‘por que a população miserável procura refúgio na religião e não, infelizmente,

na arte’ e, de outro lado, porque a arte pode servir de ‘meio de clareza de viver’ para

pessoas com problemas.

Há também continuidades e analogias entre arte e religião. Tanto uma como

outra buscam algo de ‘mais absoluto’ e de ‘menos material’. Há certa proporcionalidade

entre ambas, que permite imaginar que ‘o artista se coloca diante da arte como talvez as

pessoas se colocam diante da religião’. ‘Arte e religião passam pela abstração’,

abandonando o concreto imediato. Mais: ‘existe uma identidade de disposição das pessoas

com relação à arte e à religião’. O artista tem, em relação ao objeto de arte ‘reverência

religiosa’ e ‘distanciamento’. O objeto de arte ‘é sacralizado’ porque tem valor como

‘portador de uma verdade religiosa e sagrada’, a ‘verdade daquele artista’. Mas a verdade

da arte não exige da sociedade distância e reverência, como a religião: ‘a arte tem de fazer

parte do mundo’.

A relação entre arte e religião é negada por todos, por várias razões. O

máximo que admitem é uma eventual presença inconsciente de Deus, que não é excluída,

tanto porque sabem que há mais na motivação humana que os motivos conscientes, quanto

porque existem regiões de fronteira, de vida e de morte, onde as referências religiosas da

infância, da família ou, em geral, da cultura reaparecem num horizonte provável.

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De acordo com Arnheim, não é necessário o comprometimento religioso

para se lidar com símbolos religiosos que também são grandes temas humanos: caberá ao

espectador interpretá-los religiosamente, experimentá- los estética e religiosamente,

trazendo para isso a palavra de algum credo religioso43. O entendimento de Arnheim é de

que a obra de arte é uma obra aberta e que o sentido religioso é acrescentado à obra pelo

esclarecimento de uma palavra. Sem essa palavra, a obra é arte é humana e é emocionante,

mas não tem nada a ver com religiosidade. A experiênc ia estética pode ensejar a

experiência religiosa, mas não é necessário que o faça. Para que a sugestão conotativa de

religiosidade se defina, parece necessária a indicação denotativa da palavra.

Para os autores, entendida funcionalmente, isto é, segundo as funções que se

crêem por ela asseguradas na vida individual e social, a religião equivale à realidade

fundamental que confere sentido às grandes interrogações da existência, e pode identificar-

se com a ciência, o empenho político, o prazer, o esporte. Funcionalmente, há reconhecido

paralelismo entre arte e religião. Ambas estão em busca de algo menos palpável, o

absoluto; ambas provocam reverência; o produto da arte ‘é portador de uma verdade

religiosa e sagrada, a verdade do artista’; ‘os atributos tradicionais de Deus se encontram

no artista e na obra’. Paralelismo não implica, de imediato, substituição funcional44. Dito

de outro modo, entre os entrevistados encontraram-se todas as posições concernentes à

relação entre experiência estética e experiência religiosa: arte como realização menor da

prática religiosa; arte e religião como conceitos e práticas incompatíveis; arte como

substituindo a religião na busca do sentido e no encaminhamento das ações mundanas e

sociais; arte revestida da densidade do sagrado. Ao mesmo tempo que se verifica uma

distinção nítida entre religião e arte tomadas substantivamente na linguagem denotativa,

verifica-se a transição do sentido conotativo da arte funcional para o da arte como sagrado.

A arte adquire a função da religião principalmente para aqueles que a elevam ao âmbito do

sagrado.

Pensamos, destarte, a experiência estética como uma experiência que

envolve criação de sentidos. Tais sentidos abrangem um universo bastante amplo,

encontrando-se aberta para potencialidades que surgem espontaneamente do mundo,

43 Ibid. 44 BARBOSA, R. et al. Op. cit, s/n.

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inclusive com uma abertura para uma Realidade Última, exercendo um caráter

transcendental. Como diz Umberto Eco,

Nenhuma obra de arte é realmente “fechada”, pois cada uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma infinidade de “leituras” possíveis [...] É típico da obra de arte o pôr-se como nascente inexaurida de experiências que, colocando-a em foco, dela fazem emergir aspectos sempre novos45.

A arte, então, funda novos valores. Quem vivencia o fenômeno da

experiência estética tem diante de si um mundo muito mais amplo e flexível que aquele

desenhado pelas sociedades de consumo. “Ora, a experiência da arte, como destaca

Campos, é uma experiência privilegiada dessas projeções de possíveis, o que aí se

interpreta é antes de tudo uma abertura para realidades novas”46. Realmente a arte é um

elemento cultural privilegiado na experiência estética. Isso ocorre em decorrência de sua

cumplicidade, não mais com a idéia de beleza, mas pelo sentido de expressão da beleza

que emana de sua própria existência, promovendo uma espécie de exercício da

sensibilidade humana, através da percepção de suas diversas formas e expressões.

Ademais,

A arte excede, de muito, os limites das avaliações estéticas. Modo de ação produtiva do homem, ela é fenômeno social e parte da cultura. Está relacionada com a totalidade da existência humana, mantém íntimas conexões com o processo histórico e possuí sua própria história, dirigida que é por tendências que nascem, desenvolvem-se e morrem, e às quais correspondem estilos e formas definidos. Foco de convergência de valores religiosos, éticos, sociais e políticos, a arte vincula -se à religião, à moral e à sociedade, como um todo, suscitando problemas de valor (axiológicos), tanto no âmbito da vida coletiva como no da existência individual, seja esta a do artista que cria a obra de arte, seja a do contemplador que sente os seus efeitos47.

1.3. Breve cronobiografia de Cândido Portinari

Cândido Portinari nasceu em 30 de dezembro de 1903, em uma fazenda de

café perto da cidade de Brodósqui, estado de São Paulo, na época um pequeno vilarejo

45 ECO, U. Obra aberta: forma e indeterminações nas poéticas contemporâneas, pp. 67-8. 46 CAMPOS, M. Op. cit., p. 83. 47 NUNES, B. Op. cit., p. 15.

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com 700 habitantes. Era o segundo dos doze filhos de Baptista Portinari e Dominga

Torquato, ambos italianos da região do Vêneto. As famílias Portinari e Torquato fixaram-

se no Brasil durante a grande imigração italiana, ocorrida no final do século XIX, quando

Brodósqui era apenas uma parada para os trens apanharem o café produzido na região,

ponto de passagem de retirantes em busca de trabalho; famílias inteiras em estado de

grande pobreza, o que marcou de maneira acentuada a vida de Portinari.

Aos 10 anos de idade, Portinari fez o retrato do compositor Carlos Gomes,

seu primeiro desenho conhecido. Poucos anos depois, em 1918, passou pelo vilarejo um

grupo itinerante de pintores e escultores italianos, que viviam de decorar igrejas das

pequenas cidades do interior. Portinari foi chamado como ajudante, cabendo- lhe pintar as

estrelas no teto da igreja. No ano seguinte, decidido a ser pintor, ele parte para o Rio de

Janeiro, onde se matricula como aluno livre na Escola Nacional de Belas Artes.

Com vinte e um anos, numa entrevista, publicada no Jornal do Brasil, em

06 de maio de 1925, intitulada: Palavras de um jovem retratista patrício, eis o que ele diz:

“o alvo da minha pintura é o sentimento. Para mim, a técnica é meramente um meio.

Porém um meio indispensável”48. Percebe-se nesta declaração, o forte interesse de

Portinari na busca por uma pintura que expressasse o lado emocional do ser humano.

Sua primeira exposição individual acontece em maio de 1929, no Palace

Hotel do Rio de Janeiro, por iniciativa da Associação dos Artistas Brasileiros, dirigida por

Celso Kelly. Portinari apresenta 25 retratos. Um mês depois, embarca para Paris, depois de

ganhar uma bolsa de estudo, após pintar o retrato do poeta Olegário Mariano.

Longe de sua pátria, decide voltar ao Brasil no início de 1931, objetivando

retratar em suas telas o povo brasileiro, superando aos poucos sua formação acadêmica e

fundindo-a à ciência ant iga da pintura; uma personalidade moderna e experimentalista.

Portinari esboça a seguinte declaração: “aí no Brasil eu nunca pensei no Palaninho [...]

Daqui fiquei vendo melhor a minha terra - fiquei vendo Brodósqui como ela é. Aqui não

tenho vontade de fazer nada. Vou pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela

roupa e com aquela cor”49.

48 PORTINARI, C. Palavras de um jovem retratista. In: Projeto Portinari. Disponível em: http://www.portinari.org.br. Acessado em 21/02/2007. 49 Idem. Carta / 12 de julho, 1930. Paris / para / Rosalita Mendes de Almeida, Rio de janeiro (CO-4545).

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Em janeiro, de 1931, Portinari regressa ao Brasil com Maria Victoria –

jovem uruguaia de 19 anos, radicada com a família em Paris. Logo recomeça a pintar

intensamente, sobretudo retratos, para garantir a sobrevivência do casal. Graças à ajuda dos

amigos, obtém sempre encomendas. No seu retorno, Portinari encontra uma nova

ambiência artística no Rio de Janeiro, já que a Revolução de 1930 repercutira em todos os

setores da vida nacional. O Presidente Getúlio Vargas cria o Ministério da Educação e

Saúde e inicia a renovação das instituições artísticas e culturais do país, a partir do Instituto

de Música, da Biblioteca Nacional, do Museu Histórico e da Escola Nacional de Belas

Artes. Em sua primeira exposição individual depois de voltar de Paris, Portinari apresenta

pela primeira vez ao público telas de temática brasileira: cenas de infância, o circo,

cirandas - obras impregnadas de ingenuidade e lirismo. Em 1934, Portinari pinta

Despejados50, sua primeira obra com temática social.

Vale salientar, segundo Mario Pedrosa, que Portinari tende a buscar, e

buscará sempre, constantemente, uma síntese fugidia dramática na sua precariedade, entre

o plástico e o abstrato, entre o puro pictórico e a vida51. O dualismo é o que caracteriza a

sua obra em todos os tempos; bem presente em toda obra portinariana.

Em julho de 1935 Portinari é contratado para lecionar pintura mural e de

cavalete na recém-fundada Universidade do Distrito Federal, na cidade do Rio de Janeiro,

então capital federal. Outro fato importante da vida de Portinari, neste mesmo ano, foi sua

estréia nos Estados Unidos. O Instituto Carnegie, de Pittsburgh, comemorando o centenário

50 Idem. Os despejados, 1934, pintura a óleo/tela. Coleção particular, Ceará. 51 PEDROSA, M. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília, p. 6.

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do nascimento de seu fundador Andrew Carnegie, enviara convite ao Brasil para participar

de sua exposição internacional de pintura. É a primeira vez, desde a instituição do Prêmio

Carnegie, que são chamados a participar artistas sul-americanos: da Argentina, Brasil e

Chile.

A exposição reúne obras de 21 países. Oito artistas brasileiros são

selecionados, entre eles Portinari, que envia a tela Café, obtendo a segunda Menção

Honrosa na exposição internacional do Instituto Carnegie de Pittsburgh, Estados Unidos. A

tela Café52 foi adquirida pelo Ministro da Educação, Gustavo Capanema, para o Museu

Nacional de Belas Artes.

Nessa época, a pintura de Portinari também é intensamente criticada por

suas deformações expressionistas. O tema sentimental, conforme Mario Pedrosa, foi o

primeiro que apareceu sob sua palheta. É desta época a chamada série marrom ou

brodosquiana. As suas telas de então se caracterizavam por uma vasta superfície marrom

dominante, salpicada de acidentes de luz, representação de suas figuras temáticas, pelo

jogo e direção uniforme do claro-escuro, pela pastosidade satisfeita das tintas, as

transparências de tons53. O sentimento poético, segundo pedrosa, que ressalta, é dado não

só pelo constaste do claro-escuro como pelos elementos de atmosfera ou cósmico que

lembram os grandes paisagistas holandeses. Assim, certas cores: o marrom, a terra roxa de 52 PORTINARI, C. Café , 1935, 130x195 cm, pintura a óleo/tela. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. 53 PEDROSA, M. Op. cit., p. 10.

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Brodósqui, tem o seu quê de simbólico. É uma espécie de libertação do passado. Essa fase

marrom, de acordo com Pedrosa, vai de 1933 a 1934.

O vigor que Portinari emprega às figuras, a proporção gigantesca que

melhor exprimem a força do trabalhador já é bem perceptível em sua tela Café. A mão

como símbolo da força do trabalhador, o pé solidamente plantado no chão, marcando a

forte ligação do trabalhador como o solo. Na tela Café, Portinari usa francamente a

deformação expressiva. A partir de então, o humano, compreendido em termos sociais e

históricos, torna-se a tônica da arte portinariana, voltada para a captação da realidade

natural e psicológica, para uma expressividade, ora serena e grave, ora desesperada e

excessiva.

As pinturas de Portinari, desta forma, são caracterizadas por uma instintiva

humanidade, que não lhe permite se perder no estéril de qualquer virtuosismo gratuito ou

diletante. Temos que observar, segundo Mário de Andrade, que cada nova experiência

técnica de Portinari e, a cada fase nova que nasce oriunda de novos desafios e problemas

estéticos a resolver, ele tem a capacidade de ajuntar um sentido poético muito intenso, que

é evocado de sua lúcida compreensão da vida e, principalmente do seu nacionalismo54. Em

Retalhos de minha vida de infância, Portinari assinala que os pés dos trabalhadores das

fazendas de café o impressionavam sobremaneira.

Pés disformes. Pés que podem contar uma história. Confundiam-se com as pedras e os espinhos. Pés semelhantes aos mapas: com montes e vales, vincos como rios. Quantas vezes nas festas e bailes, no terreiro, que era oitenta centímetros mais alto que o chão, os pés ficavam expostos, e era divertimento de muitos apagar a brasa do cigarro nas brechas dos calcanhares sem que a pessoa sentisse. Pés sofridos com muitos e muitos quilômetros de marcha. Pés que só os santos têm. Sobre a terra, difícil era distingui-los. Os pés e a terra tinham a mesma moldagem variada. Raros tinham dez dedos, pelo menos dez unhas. Pés que inspiravam piedade e respeito. Agarrados ao solo, eram como os alicerces, muitas vezes suportavam apenas um corpo franzino e doente. Pés cheios de nós que expressavam alguma coisa de força, terríveis e pacientes55.

O Brasil, sem dúvida, irrompe na obra de Portinari, demonstrando em que

grau o pintor está impregnado da coisa nacional. Vale destacar que não foi intencionado a

fazer nacionalismo que ele se aplicou aos seus temas favoritos. Em Lavrador de café56,

54 ANDRADE, M. O baile das quatro artes, p. 131. 55 PORTINARI, C. Retalhos da minha infância. In: Projeto Portinari. Disponível em: http://www.portinari.org.br. Acessado em 21/02/2007. 56 Idem. Lavrador de café, 1934, 100x81 cm, pintura a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo.

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observamos claramente, não apenas as deformações que ele emprega em suas

composições, mas também o Brasil aparecendo de uma forma plástica e bela. Esses

assuntos nascem apenas de uma constância imperiosa da sua própria personalidade. Então,

ele deforma esses assuntos e, acima de tudo, os sintetiza, sem a menor preocupação

documental.

Neste sentido, a obra de Portinari, para Andrade, é uma lição genial do

destino “poético” da arte. “Na sua procura incessante de beleza plástica, ele mantém aquele

valor antigo de definição profética de uma vida melhor, com que a arte nasceu dos

primeiros ritos místicos, dos primeiros amores, dos primeiros sofrimentos do homem sobre

a terra”57. Com efeito, essa qualidade poética é no sentido de profecia definidora e não

conformista de aspectos da vida ou do ser.

E essa qualidade poética de Cândido Portinari é tão irreprimível nele, que mesmo nas realizações, aparentemente de exclusiva pesquisa plástica, em cada vereda estética que o artista penetra e em que ele não raro genialmente se despenha nas combinações de cores, volumes ritmos, composições mais audazes com fúria bacântica despedaçando, devorando

57 ANDRADE, M. Op. cit., p. 132.

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leis, regras, tradições, na volúpia de plasmar apaixonadamente a cor, Cândido Portinari se vê reconduzido sempre ao rincão pátrio. 58

Andrade afirma que Portinari foi um experimentador infatigável. Para tal

comprovação, basta seguir suas obras em seus diversos estágios e manifestações

transitórias para perceber que esse experimentalismo “ansioso de verdades é o traço

psicológico mais significativo do artista”59. Por isso, é difícil enquadrá- lo dentro de uma

corrente estilística; levado pelo seu temperamento de experimentador, não consegue

resistir à tentação de incorporar à sua bagagem artística novos estilos. Definir o estilo de

Portinari não é uma das tarefas mais fáceis. Pois passa abruptamente de uma expressão a

outra e, não raro, faz coincidir no mesmo período várias expressões. Sua obra, entretanto,

com observa Annateresa Fabris, apresenta uma unidade subjacente – uma marcada

tendência expressionista. Para essa autora, se Portinari usou recursos expressivos

estrangeiros, soube revê- los, reelaborá- los, adaptá-los à peculiaridade do país. Enveredou-se pelo Expressionismo, presente até mesmo em suas composições “clássicas” e “cubistas”, é porque, através dele, pôde plasmar uma visão peculiar do homem e da terra brasileiros. E sua visão do Expressionismo é própria: é uma profissão de fé nas potencialidades do homem [...] Portinari contribuiu para a plasmação de uma estética brasileira porque soube ver o Brasil e traduzi-lo plasticamente60.

O problema da pintura, segundo uma pesquisa de Commune, na França,

mencionada por Aníbal Machado, reside em duas possibilidades: “ela ou se refugia em si

mesma, para morrer de esterilidade, ou se enquadra dialeticamente na época, formando ao

lado das forças que ajudam à transformação universal”61. Nesta última, para Aracy Amaral,

se pode mencionar Portinari, porquanto há uma inclinação do artista para esta vertente. O

dado popular, por suas raízes interioranas às quais sempre foi fiel, freqüentemente

compareceu em suas telas mais conhecidas desde os anos trinta. A sua origem humilde e a

sua identificação com as camadas populares, o tornou extremamente sensível às mudanças

que ocorriam no país62.

Segundo Angela Luz, Portinari não quis mostrar gente rica ou bonita, quis,

isso sim, mostrar com grande precisão o sofrimento e a dor causados pelas longas jornadas

de trabalho, o peso carregado que provoca deformação nos membros dos plantadores e dos 58 Ibid., p. 133. 59 Ibid., p. 124. 60 FABRIS, A. Portinari, pintor social, p. 40. 61 MACHADO, A. apud AMARAL, A. A Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira 1930-1970, p. 51. 62 AMARAL, A. A arte para que? : a preocupação social na arte brasileira 1930-1960, p. 60.

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retirantes63. Assim, a vida dos trabalhadores rurais e urbanos sempre foi sua fonte de

inspiração. É necessário mostrar a realidade, o lado social, e a figura humana foi a melhor

forma que ele encontrou para mostrar o que desejava.

Em contrapartida, podemos distinguir duas grandes linhas na crítica

portinariana. A primeira considera Portinari como o pintor do regime e simplifica a obra do

artista, vendo-a em função da “produção oficial”. Essa visão “oficial” de Portinari, de

acordo com Fabris, não é apenas apanágio da crítica. É verdade que certos setores da

crítica perpetuam essa cristalização da figura de Portinari, sem detectar quais foram as

relações do artista com o modelo getulista e qual a visão do Brasil que pode ser extraída de

sua obra64. A segunda, baseada apenas em valores e conteúdos, vê toda a sua arte em

termos humanos, em outras palavras, humanista-sentimentais. Fabris acentua que é

necessário abrir novas possibilidades ao “fenômeno Portinari”, para que sua obra seja

devidamente julgada e, acima de tudo, apreciada. Romper, de um lado, com a cristalização

oficialista, que escamoteia datas e dados. Romper, de outro, com o conteudismo

sentimental, que chega às raias do ridículo com sua falaciosa sobreposição da arte sobre a

vida.

Ora, aos poucos, a inclinação muralista revela-se com vigor nas telas de

Portinari, principalmente nos painéis executados para o Monumento Rodoviário, na Via

Presidente Dutra, em 1936, e nos afrescos do recém construído edifício do Ministério da

Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, realizados entre 1936 e 1944. Estes trabalhos, como

conjunto e como concepção artística, representam um marco na evolução da arte de

Portinari, afirmando a opção pela temática social, que será o fio condutor de toda a sua

obra a partir de então. Companheiro de poetas, escritores, jornalistas, diplomatas, Portinari

participa de uma notável mudança na atitude estética e na cultura do país. No final da

década de trinta, consolida-se a projeção de Portinari nos Estados Unidos.

Em 1939, executa três grandes painéis para o Pavilhão do Brasil na Feira

Mundial de Nova Iorque, e o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque adquire sua tela

Morro. Em 1940, participa de uma mostra de arte latino-americana no Riverside Museum

de Nova Iorque e expõe individualmente no Instituto de Artes de Detroit e no Museu de

Arte Moderna, com grande sucesso de crítica, venda e público. Em dezembro desse ano, a

63 LUZ, A. A fabulacão trágica de Portinari na fase dos retirantes, p. 70. 64 FABRIS, A. Op. cit., p. 35.

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Universidade de Chicago publica o primeiro livro sobre o pintor: Portinari, His Life and

Art com introdução de Rockwell Kent e inúmeras reproduções de suas obras.

Em 1941 executa quatro grandes murais na Fundação Hispânica da

Biblioteca do Congresso, em Washington, com temas referentes à história latino-

americana. De volta ao Brasil, realiza, em 1943, oito painéis conhecidos como Série

Bíblica, fortemente influenciados pela visão picassiana de Guernica e sob o impacto da

Segunda Guerra Mundial.

Cândido Portinari sempre se mostrou muito preocupado com as questões

sociais que caracterizam o país, filiando-se em 1945, ao Partido Comunista Brasileiro

(PCB), vendo neste, a única organização, mesmo que clandestina, com possibilidade de

lutar contra a ditadura e a favor da anistia e das eleições. Apesar do ingresso na vida

política, não foi bem sucedido.

Em 1946, Portinari volta a Paris para realizar, na Galeria Charpentier, a

primeira exposição em solo europeu. Foi grande a repercussão, tendo sido, com justiça,

agraciado pelo governo francês, com a Legião de Honra. Em 1948, Portinari se auto-exila

no Uruguai, por motivos políticos. Em 1949, executa o grande painel Tiradentes, narrando

episódios do julgamento e execução do herói brasileiro, que lutou contra o domínio

colonial português. Por este trabalho, Portinari recebeu, em 1950, a Medalha de Ouro

concedida pelo júri do Prêmio Internacional da Paz, reunido em Varsóvia.

Em 1954, Portinari realiza, para o Banco Português do Brasil, o painel

Descobrimento do Brasil. Neste mesmo ano, tem os primeiros sintomas de intoxicação das

tintas, que lhe será fatal. Em 1955 recebe a Medalha de Ouro, concedida pelo International

Fine Arts Council de Nova Iorque, como o melhor pintor do ano. Em 1956 concluí os

painéis Guerra e Paz, oferecidos pelo governo brasileiro à nova sede da Organização das

Nações Unidas.

Portinari, como assinala Fabris, pode, por seus trabalhos, certamente ser

considerado hoje, não só como o artista que mostrou o pobre, o desamparado e o

trabalhador braçal, mas como o homem que elevou a imagem do Brasil – e da arte

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brasileira – ao mundo e o fez conhecido65. Ele não foi apenas o representante do povo

brasileiro, foi o representante de um mundo de idéias, capaz de fazer voltar o pensamento à

verdadeira situação do país. “Portinari compreende a arte como uma coisa séria e dura, e

não como brinquedo [...] ele nunca se deixou levar por entusiasmos passageiros ou por

influências de moda”66, mas estava preocupado com uma arte que celebrasse a vida, a

dignidade humana e os direitos de cidadania.

Em 1961 o pintor tem diversas recaídas da doença que o atacara em 1954,

falecendo no dia 6 de fevereiro de 1962, vítima de intoxicação pelas tintas que utilizava. A

obra de Portinari, como destaca Tadeu Chiarelli dialogou com inúmeras tradições visuais

da arte européia, desde aquelas do Primeiro Renascimento, até a obra de seu

contemporâneo Pablo Picasso. Através de sua espantosa capacidade em absorver as mais

diversas maneiras, Portinari trafegou com indisfarçável facilidade por esquemas formais

criados por Botticelli, Picasso, Pisanello, De Chirico, Holbein, Paul Delvaux67. Portinari

produziu suas obras experimentando procedimentos pictóricos de artistas antigos e

contemporâneos, sempre acrescentando a cada um desses ‘experimentos’ soluções de forte

cunho pessoal, que ainda aguardam um entendimento mais profundo. Em suma, podemos

sintetizar, nas palavras de Assis Chateaubriand, quem foi esse grande pintor brasileiro,

Grandezas e misérias do Brasil, sua sensibilidade, suas tragédias secretas, a contra-revolta obscura das suas classes desafortunadas, o frenesi dos sambas, dos batuques, o desengonço do frevo, a melancolia, sem azedume, dos negros e dos mulatos, que a escravidão policiou, o cavalo-marinho e o africano, o enterro dos simples e dos humildes, o tocador de flauta e o malandro dos morros, em toda essa comédia humana a palheta de Portinari deita cores imortais. Portinari é o maior e mais fantástico pintor de negros que ainda viu a espécie humana. Ele sente a África com sua magia, os seus mistérios, a sua volúpia, como nenhum outro artista do pincel [...] Mas não foi só o negro e o mulato que ele viu. Viu também o jangadeiro e viu o gaúcho, isto é, viu o norte e o sul do Brasil, na serena unidade dos materiais que lhe alimentam a força com as suas peculiaridades e o seu rutilante colorido humano68.

1.4. Portinari na fase dos retirantes

65 Idem. O engajamento social em Cândido Portinari visto através da análise iconográfica da série de trabalhadores urbanos. Disponível em: http://www.propp.ufu.br. Acessado em 23/04/2007. 66 PEDROSA, M. Op. cit., pp. 8-9. 67 CHIARELLI, T. Sobre os retratos de Cândido Portinari. In: Arte internacional brasileira, pp. 175-81. 68 CHATEAUBRIAND, A. Discurso. In Projeto Portinari. Disponível em: http://www.portinari.org.br. Acessado em 21/02/2007.

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Após ver uma exposição de Pablo Picasso no Museu de Arte Moderna de

Nova Iorque, em 1939, Portinari é fortemente influenciado por sua pintura. As exigências

da plástica passam a absorvê- lo cada vez mais. “À cata da densidade dos corpos e dos

objetos, o pintor passa a tratar a tinta não mais como na era brodosquiana, como um meio

do efeito exterior sensorial, em busca de representação de estados de alma, convencionais

ou não”69. O modelo toma então uma concretização brutal, e a as sua figuras ganham uma

força monumental de estatuária. O que ele visa, de acordo com Pedrosa, é a integração da

composição e da massa, coisa que até então ainda não havia conseguido na sua evolução

antiacadêmica.

A partir de então, ele altera profundamente seu desenho, bem como a sua

paleta na década de 40, transparecendo, segundo Amaral, em particular, em sua série

dramática dos Retirantes de 1944. Tal influência, não descaracteriza de forma alguma sua

peculiaridade como artista. No grito de dor de Picasso, segundo Fabris, a emoção é contida

pelo racionalismo da composição cubista. O grito de dor de Portinari parece não ter

limites: o pintor deforma, desarticula suas figuras, transforma-as em gigantescos seres

emblemáticos de gestos amplos e poderosos70. Ao ser humano, impotente diante da dor,

restam as lágrimas. Lágrimas petrificadas e mãos levantadas num gesto de súplica ou

maldição, mostrando tristezas, prantos, misérias, dramas, tragédias..., em obras numerosas.

Portinari se utilizou, principalmente, da deformação plástica, maciça do modelo picassiano.

As cores utilizadas fazem parte integrante das características do artista, assumindo sempre

a preferência pelos tons terrosos.

Quanto às pinturas sobre os retirantes, podemos distinguir três momentos

estilísticos. O primeiro são as composições da década de 30, clássicas e equilibradas. O

segundo refere-se às composições da década de 40, produzidas sob o impacto de Guernica

de Picasso. O terceiro vincula-se às composições da década de 50, caracterizadas pelo

cromatismo vibrante que a paleta do pintor adquire após a viagem a Israel. Nosso interesse

vincula-se às telas da década de quarenta. Nessas telas, segundo Luz, Portinari conseguiu a

grandeza exata. Princípio, meio e fim da tragédia podem ser visíveis nas suas telas.

A seca sempre representada pela terra morta, pelas ossadas, pelos urubus determinam uma área de apoio para suas figuras e marcam, plasticamente,

69 PEDROSA, M. Op. cit., p. 11. 70 FABRIS, A. Portinari, pintor social, p. 58.

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o princípio. O êxodo representado pelas próprias figuras humanas, presas à terra por pés ciclópicos, envergadas pela dor do filho morto ou erectas com enormes olhos vazios, deixando a terra enquanto determinam o meio da tragédia. Ainda nelas se configura o fim, que, neste passo, trata-se da vida. As frágeis figuras carregam a vida consigo num contexto onde a evidência é a morte 71.

Estas personagens, mulheres, velhos e crianças são os heróis, famintos e

sem sorte, que, Portinari fixa, não somente em suas telas, mas também em suas poesias. Na

poesia, Deus de violência, o artista esboça:

Os retirantes vêm vindo com trouxas e embrulhos Vêm das terras secas e escuras; pedregulhos Doloridos como fagulhas de carvão aceso Corpos disformes, uns panos sujos, Rasgados e sem cor, dependurados Homens de enorme ventre bojudo Mulheres com trouxas caídas para o lado Pançudas, carregando ao colo um garoto Choramingando, remelento Mocinhas de peito duro e vestido roto Velhas trôpegas marcadas pelo tempo Olhos de catarata e pés informes Aos velhos cegos agarradas Pés inchados enormes Levantando o pó da cor de suas vestes rasgadas No rumor monótono das alparcatas Há uma pausa, cai no pó

A mulher que carrega uma lata De água! Só há umas gotas — Dá uma só.

Não vai arribar. É melhor o marido E os filhos ficarem. Nós vamos andando Temos muito que andar neste chão batido As secas vão a morte semeando72.

Em seu livro, Portinari, pintor social, Annateresa Fabris faz uma belíssima

análise das quatro telas da série Retirantes, a saber: 71 Ibid., p. 97. 72 PORTINARI, C. Deus de violência. In: Poemas de Cândido Portinari, pp. 77-8.

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Em Criança morta73, a tragédia está explicita não só nos rostos dos

retirantes, mas é acentuado pelo próprio tratamento formal da tela, em que uma pincelada

densa e vigorosa aproxima a textura pictórica da escultura.

A figura central, que segura a criança morta, tem, segundo Fabris, algo de

religioso: o desespero do homem, mais que um drama humano, parece evocar a dor de

Maria diante do corpo inerte de Cristo74. A deformação expressiva atinge nessa obra

dimensões monumentais. Mãos e pés vigorosos, rostos deformados pela dor, criam um

contraste emotivo com a serenidade do pequeno morto, cujo rosto informe, mais que a

perda da vida, de acordo com Fabris, lembra a vida ainda em embrião, que não chegou a

vingar.

Na tela retirantes75, para Fabris, a natureza é um elemento ativo. As

carcaças, os cáctus, os urubus em revoada, as covas que quebram o achatamento do solo,

73 Idem. Criança morta, 1944, 179x150 cm, pintura a óleo/tela. Fonds National D’arte Contemporaini, França. 74 FABRIS, A. Portinari pintor social, p. 112. 75 PORTINARI,C. Retirantes, 1944, 190x180 cm, painel a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo.

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são o dramático cenário no qual se situam figuras de diferentes consistências e

expressividade.

Portinari, aqui, dá vida a um olhar significativo, que pode ser considerado

uma troca simbólica entre o recém-nascido, massa informe, cuja cabeça dá a impressão de

ter sido aposta, e a criança esquelética, cujo corpo é reduzido quase a uma radiografia 76.

Em contrapartida, para Fabris, o menino à direita pode ser visto como uma espécie de

síntese do retirante, quer por sua característica física, quer pela expressividade psicológica

(olhos arregalados, boca distorcida, interrogação atônita).

O rosto vincado de rugas do velho é uma trágica máscara à qual se opõe o rosto de espantalho do homem com suas órbitas vazias, o nariz triangular, a boca informe. O pathos diferente, expresso pelos dois rostos, é mediado pelas figuras atônitas das mulheres e das crianças77.

Em Enterro na rede 78, à geometria abstrata do fundo opõe-se um desenho

incisivo e sintético, feito de massas compactas, realçada por um dinamismo barroco, que

dá vida a dois grupos expressivos: a dor muda dos homens e a gestualidade patética das

76 FABRIS, A. Portinari, pintor social, p. 113. 77 Ibid., p. 112. 78 PORTINARI, C. Enterro na rede, 1944, 180x220 cm, painel a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo.

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figuras femininas. Nessa tela, a dramaticidade é dada mais pelos meios intrinsecamente

plásticos que pela máscara trágica das figuras79.

Os rostos dos homens, de acordo com essa autora, são apenas esboçados,

e as figuras femininas são pura gestualidade, a dor é mais pungente por não ter lágrimas ou

espanto. O interessante é que ao tratar novamente da morte, Portinari impregna a

composição de uma atmosfera de religiosidade. A rede evoca o lençol no qual o corpo de

Cristo foi levado à sepultura, o pathos da gestualidade feminina e a muda resignação dos

homens lembram as mulheres e os apóstolos em sua triste caminhada para o sepulcro. O

Cristo é anônimo como são anônimos todos os retirantes que sulcam o sertão de cruzes80.

Por fim, Menino morto81 – Objeto central de nosso estudo – de acordo com

Fabris, é carregada, semelhantemente a tela Criança morta, de um caráter religioso. “A

Pietá central, que segura o pequeno cadáver já transformado em esqueleto, é ladeada por

79 FABRIS, A. Portinari, pintor social, p. 113. 80 Ibid., pp. 113-116. 81 PORTINARI, C. Menino morto, 1944, 180x190 cm, painel a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo.

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dois grupos, cuja dor é expressa pelas lágrimas de pedra das figuras femininas e pelo olhar

perdido do menino”82.

O corpo ressequido, a cabeça transformada em caveira, os braços quase em forma de cruz revelam o intenso sofrimento do pequeno morto. Os elementos expressivos do rosto, aliás, fazem pensar muito mais numa representação simbólica do que numa fisionomia individualizada, pois lembram a iconografia medieval da máscara da Morte. O quadro revela uma tensão expressiva entre a Vida e a Morte. Uma pobre vida, em que já se pressente a presença da morte – os corpos transformam-se em esqueletos -, uma morte que parece não ter apagado os sofrimentos da vida83.

Há, de acordo com Fabris, uma correspondência psicológica entre os dois

grupos de figuras: a mulher de marrom pode ser vista como um primeiro momento da mãe 82 FABRIS, A. Portinari, pintor social, p. 113. 83 Ibid., p. 113.

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desolada; a menina, que segura ternamente a cabeça do pequeno morto, parece projetar seu

futuro na mulher à direita, que traz pela mão uma informe esperança de vida84. A

composição é notável pelo agrupamento compacto que cria a série de correspondências

psicológicas, pela unidade cromática, baseada apenas em poucos tons, mas de seguro efeito

expressivo, pela redução da cena a seus elementos essenciais, reservando-se à natureza, ao

contrário da tela anterior, o simples papel de pano de fundo.

É sabido que a figura do retirante representa para Portinari uma

reminiscência dos tempos da infância. Estes buscavam socorro e melhorias em São Paulo,

passando por Brodósqui. Portinari, conjuntamente com seus irmãos, frequentemente

visitava os locais em que se encontravam os flagelados da seca. Essas figuras sempre

estiveram bem presentes na trajetória do artista e, por conseguinte, são retratados de forma

bastante dramática nas telas de 1944. Para Antonio Bento, quando Portinari começou a

abordar a temática, não havia ainda preocupações sociais marcantes em sua obra.

Aparecem apenas famílias acampadas nos arredores de seu povoado85. Somente mais tarde,

a série dos Retirantes assumiria uma feição acentuadamente social na carreira do pintor

brasileiro. Os primeiros quadros com essa temática datam de 1935/1936 e nos mostram

uma visão otimista do pintor. Na tela Retirantes – 1944 – vêem-se urubus e morcegos

voando na perseguição do grupo de flagelados, não havendo, consequentemente, qualquer

fantasia nesses pormenores. Nesta composição de Portinari está uma das obras de maior

dramaticidade da arte brasileira, pelo grupo de pessoas miseráveis que apresenta, entre as

quais, crianças doentes86. É uma visão de pesadelo, tal como aparecem em suas telas tantas

figuras fantasmagóricas, de rostos e corpos impregnados de imagináveis sinais de miséria e

de dor.

Há, segundo Angela Luz, uma apresentação romanesca da realidade nesta

fase da obra de Portinari. A autora acredita que estas imagens, que viriam a se constituir no

corpo maior da dramaticidade brasileira, estariam próximas de obter o equilíbrio entre

razão e sentimento87. A obra de Portinari, nesta fase, conclui Luz, apresenta-se com um

vigor tal que é sem dúvida animado por certo antagonismo: de um lado a mensagem

expressa através da própria fase dos Retirantes. De outro lado a composição plástica

84 Ibid., p. 113. 85 BENTO, A. Portinari, p. 173. 86 Ibid., p. 176. 87 LUZ, A. Op. cit., p. 9.

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marcada por um profundo senso tectônico, em que o artista faz apoiar suas esquálidas

figuras numa terra ressequida, valorizada pelos tons ocres e laranjas que utiliza.

Em Portinari, destarte, residem todos os requisitos que o tornam o grande

trágico da pintura brasileira. Fato que leva o crítico francês Paul Guth a confessar ter sido

atraído por “alucinantes presenças” e esboça: “durante alguns minutos fiquei sozinho com

um mundo grandioso [...] É uma arte trágica e aterradora”88. Guth, declara Luz, percebeu

em Portinari não apenas um pintor envolvido com a temática social, mas sentiu a presença

de um artista trágico da pintura, que possuía uma capacidade de fabulação incessante,

sabendo explorar a verdade como fundamento mítico para construir a fábula trágica, sendo

os Retirantes foram as suas mais insignes obras trágicas.

Portinari, como assinala Bento, foi um verdadeiro intérprete do drama dos

retirantes, não somente pela força e pelas características de sua arte, mas também pelo fato

de ter nascido numa região paulista por onde passavam tais indivíduos. Não só por isso,

como também pelo caráter social da sua pintura. Isso fica bastante evidente na tela Menino

morto, em que uma mãe nordestina, que mal consegue se manter em pé, carrega nos braços

descarnados seu menino morto. Em uma de suas declarações, Portinari diz: “todas as

coisas / Frágeis e pobres / Se parecem comigo”89. Na realidade, como destaca Bento,

Portinari parecia então uma de suas próprias criações trágicas, ou seja, um de seus

retirantes.

Podemos ver na série Retirantes, como acentua Fabris, um “projeto

utópico”, na medida em que o artista parece apontar para uma realidade em que o

trabalhador seja livre90. Em que a morte seja não uma fatalidade, mas o cumprimento final

da trajetória do ser humano na terra.

Aos críticos que o acusam de contradizer-se com sua pintura sacra, Portinari

responde: “Pinto a dor, a alegria, o trabalho, a miséria, o meu povo, enfim. Eu não poderia,

sem fugir à realidade, deixar de fazer quadros de fundo religioso”91. Vale ressaltar que,

como pintor religioso, Portinari não apresenta um desenvolvimento unitário. Isso, para

Fabris, deve-se essencialmente a dois fatores, a saber: a pintura religiosa aparece ao longo

88 GUTH, P. apud LUZ, A. Op. cit., p. 43. 89 PORTINARI, C. apud BENTO, A. Op. cit., p. 282. 90 FABRIS, A. Portinari, pintor social, p. 139. 91 ONAGA, Hideo. Da pampulha às 14 telas da Igreja Matriz de Batatais. In: Folha da manha. São Paulo, 22 de março, 1993.

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de sua trajetória artística, traduzindo as diversas fases expressivas do pintor; Portinari dá às

suas imagens religiosas uma fisionomia diferente conforme a sua destinação. O pintor

aparece mais à vontade quando dá à pintura religiosa uma dimensão intensamente

expressionista como acontece em Pampulha. Destaco duas dessas composições. A

primeira: Jesus é despojado de suas vestes92. A segunda: Jesus é descido da cruz93.

92 PORTINARI, C. Jesus é despojado de suas vestes, passo X da Via Sacra, 1945, pintura a têmpera/madeira. Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, Belo Horizonte. 93 Idem. Jesus é descido da cruz, passo XIII da Via Sacra, 1945, pintura a têmpera/madeira. Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, Belo Horizonte.

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Nessas composições, Portinari não se preocupa tanto com o religioso quanto

em relação ao humano94. A religiosidade parece interessá- lo não tanto como manifestação

de uma fé particular, mas como mais um capítulo do drama humano sobre a terra. Por isso,

como afirma Fabris, sua melhor expressão religiosa é o Cristo alquebrado, macilento de

Pampulha, que não aparece como filho de Deus, mas é o irmão sofrido dos Retirantes.

Portinari grita apaixonadamente contra a miséria. O retirante torna-se um símbolo

universal do ser humano, vítima da guerra e de tantas misérias. “Uma vítima que, no

entanto, não perdeu sua grandeza, pois sua força está ainda concentrada nas mãos

espalmadas, nos punhos cerrados”95. A deformação é franca, corrosiva: a figura parece

desarticular-se, o rosto transforma-se numa máscara, como se algo o corroesse por dentro.

Em nenhum momento, como observa Fabris, a arte de Portinari se torna satírica, mórbida,

opressiva. Não é guiada por preocupações de caráter psicológico, introspectivo, não faz

especulações místicas, metafísicas, não envereda pela busca arquetípica de essências

eternas96.

94 FABRIS, A. Portinari, pintor social., p. 68. 95 Ibid., p. 70. 96 Ibid., p. 70.

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Sua arte, desta forma, pode resumir-se, para Fabris, numa única

preocupação: o ser humano. Não o ser humano como entidade abstrata, mas o ser humano

histórico, o ser humano que vive o devir, a contingência da condição humana. Por isso,

Portinari faz de Cristo um homem que se identifica, de fato, com as pessoas, tornando-o

um irmão dos retirantes, dos trabalhadores, dos que sofrem. É perceptível a semelhança

dessas telas com as da série Retirantes.

Ressaltadas as relações entre experiência estética e experiência religiosa,

bem como uma introdução a Cândido Portinari, de agora em diante, num primeiro

momento, nos deteremos nos estudos tillichianos sobre as artes, utilizando esses estudos

numa tentativa de interpretar Menino morto. Num segundo momento, nos concentraremos

nos estudos heideggerianos, objetivando atingir a mesma finalidade destacada no primeiro

momento.

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CAPÍTULO 2

OBRAS DE ARTES E A IRRUPÇÃO DO INCONDICIONADO

Toda interpretação possui sua posição prévia, visão prévia e concepção prévia. M. Heidegger – Ser e tempo

Em grande medida, os seres humanos estão mais acostumados com a

superfície das coisas. Para Paul Tillich, quando a superfície é quebrada, coisas novas,

outrora desconhecidas, surgem. A superfície, assim, pode levar os indivíduos a

conhecerem o que existe por debaixo dela 97.

No escopo da concepção tillichiana, fica explícita a noção da existência de

“coisas” novas, na medida em que transcendemos o aparente. Nesse mergulhar e,

consequentemente, no quebrar da superfície, o ser humano acaba, como assinala Tillich,

perguntando por uma Realidade Última. A superfície, então, é aquilo que está mais

aparente e, em se tratando de uma criação cultural, o tema e a forma compõem-na. A

substância, em contrapartida, é compreendida como o sentido, isto é, a substancialidade

espiritual que dá sentido à forma. Perguntamos, com efeito, se é possível através da obra

Menino morto – na quebra de sua superfície – atingir um nível tão profundo no qual a

pergunta pelo incondicionado seja inevitável. Consoante a isso, para o teólogo alemão,

sempre que uma obra de arte é contemplada, deve-se buscar aquilo que se esconde no

inaparente, ou seja, para além do plano existe uma profundidade; aí mora a substância da

obra de arte98. No intuito de chegarmos a essa esfera de profundidade da obra Menino

97 TILLICH, P. On art and architecture, p. 140. 98 Tillich tinha uma forte admiração e dependência, sobretudo em relação a sua segunda fase, por Schelling. É sabido que Schelling foi um dos grandes nomes do idealismo e o maior expoente filosófico do idealismo. Tillich, mergulhado nesta herança romântica alemã, sempre esteve com o olhar voltado para a Grécia e dependente do pensamento de Platão. Para ele, quando se contempla uma obra de arte, faz-se necessário

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morto, faremos, a seguir, algumas considerações sobre a Teologia da Cultura, porquanto

acreditamos que ela é uma chave muito importante na leitura da obra estudada.

2.1. Considerações sobre a Teologia da Cultura O tema da religião e da cultura ocupou sempre um lugar central no

pensamento de Tillich. Ele próprio chega a afirmar que a maioria de seus escritos –

inclusive os volumes de sua Teologia sistemática – tenta definir o vínculo existente entre o

cristianismo e a cultura secular99. Para ele, em cada criação cultural – um quadro, um

sistema, uma lei, um movimento político... – por mais secular que possa parecer, se

expressa sempre uma preocupação última, e é possível reconhecer o seu caráter teológico

inconsciente. Dentro dessa construção, Tillich tenta quebrar a dicotomia entre o sacro e o

secular, causadora de enormes controvérsias na história da Igreja. Se a religião é um estado

de achar-se dominado por uma preocupação última, esse estado não pode restringir-se a um

domínio especial.

Tal construção abre possibilidades para pensarmos a obra Menino morto

dotada de uma abertura para uma “Realidade Última”, visto que o nível religioso está

presente em toda produção humana nascida de preocupações intensas para com a questão

do mistério e sentido da vida. Menino morto traz essa característica de forma bastante

latente, mesmo sendo uma pintura secular. É de se considerar a afirmação de Tillich,

quando diz que os domínios religioso e secular não estão separados, mas estão incluídos

um dentro do outro, ou seja, nem o religioso deve ser absorvido pelo secular, segundo

pretende o secularismo, nem o secular deve ser absorvido pelo religioso, como o

imperialismo eclesiástico anela, mostrando que mesmo nas manifestações culturais não

associadas diretamente ao que se convencionou chamar “religião” não está ausente uma

“preocupação última”.

É bem verdade que, na virada do século, havia uma tendência derivada do

idealismo, a qual tentava dissolver a religião na cultura. Com efeito, a religião ficava

inevitavelmente domesticada, tornando-se uma arma contra as outras culturas diferentes,

ou seja, os valores religiosos se confundiam com os interesses da burguesia vigente.

Inconformado com tal visão, Tillich tenta mostrar, simultaneamente, a especificidade da

procurar o que esta por detrás dela, ou seja, sua profundidade que é a substância. É a vida própria da obra que se manifesta (cf. MARASCHIN, J. 2004). 99 TILLICH, P. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 11.

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religião e a autonomia da cultura. Ele se propôs a corrigir uma tendência proveniente do

Idealismo alemão que objetivava dissolver a religião na cultura. Cultura (Kultur), para os

alemães, “transformou-se num substituto da religião para as elites: trazia satisfação

estética, tinha seus templos e ritos próprios e era repositório das realizações mais nobres e

dos valores mais elevados do espírito humano”100. Indo de encontro à visão idealista,

Tillich elabora a sua teologia, não entendendo a religião como um setor exclusivo de uma

cultura, ou seja, a teologia enquanto ciência própria da religião deve ter como campo de

estudo a cultura como um todo. Desse modo, ele tentou salvaguardar tanto a religião, com

suas especificidades, quanto a autonomia da cultura.

Desta forma, a teologia da cultura consiste em penetrar nas mais diversas

expressões culturais, à medida que estas estão aptas à revelação. Isto é, ela se encontra

mais livre, porquanto está ligada ao movimento vivo da cultura – lugar onde os seres

humanos se movem de forma mais ampla – estando aberta à diversidade de expressões

culturais que surgem com a história contínua dos humanos. A despeito disso, Tillich parece

querer encontrar nesta relação de cultura e religião um saber acerca de ambas, de algum

modo reconciliador. E é justamente nesta interface entre teologia e filosofia que ele

concebe o que denominou “teologia da cultura”, cujo conceito denota, não meramente uma

teologia aplicada à cultura, mas sim, uma teologia contextual. O caminho,

conseqüentemente, para uma relação conciliadora tem de dar conta da natureza da cisão e

mesmo do profundo abismo colocado entre cultura e religião na história do pensamento

ocidental.

2.2. Heteronomia, autonomia e teonomia

Dentro do edifício teológico construído por Tillich, os conceitos de

heteronomia, autonomia e teonomia são de extrema relevância. Tais conceitos respondem à

questão do nomos, ou lei da vida, de três maneiras diferentes. A heteronomia caracteriza-se

pelo uso da força, ou seja, ela vê o ser humano como sendo incapaz de viver segundo a

razão universal. Por isso, os indivíduos devem ser submetidos a leis que são superiores a

eles mesmos101. Na autonomia, o ser humano tem a sua própria lei, porque traz em si

mesmo a razão universal. A autonomia não representa o abandono do Incondicionado, haja

visto que, segundo Tillich, ela é o princípio dinâmico da história. A autonomia só consegue

100 CALVANI, C. Teologia e MPB, p. 44. 101 TILLICH, P. A era protestante , p. 85.

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sobreviver na medida em que se alimenta da tradição religiosa do passado e dos restos de

uma teonomia perdida102. Em contrapartida, “a teonomia afirma que a lei superior é, ao

mesmo tempo, a lei inerente ao ser humano, mas baseada no fundamento divino que é o

próprio fundamento do homem: a lei da vida transcende o ser humano, embora seja, ao

mesmo tempo, a sua própria lei”103.

Doravante, Tillich aplica essas categorias à relação entre religião e cultura.

Para tanto, ele chama de autônoma a cultura empenhada em criar formas de vida pessoal e

social sem qualquer referência a algo supremo e incondicional. Por sua vez, a cultura

heterônoma submete as formas e as leis do pensamento e da ação ao critério das

autoridades eclesiásticas, mesmo ao preço de quase destruir a racionalidade das pessoas.

Assim, a heteronomia é a tentativa religiosa de dominação da criatividade cultural

autônoma, a partir de fora, impondo à mente humana leis religiosas ou seculares alienadas,

uma vez que é simbolizada no “terror” exercido por igrejas e estados totalitários. Por fim,

teônoma é a cultura que expressa nas suas criações a preocupação suprema e o sentido

transcendente como seu próprio fundamento transcendental, de tal modo que, ao mesmo

tempo em que impulsiona a autonomia da cultura, dá transparência à sua profundidade. A

teonomia é a cultura, na qual o supremo sentido da existência flameja por meio de todas as

formas finitas, tanto de pensamento como da própria ação. Uma cultura verdadeiramente

teônoma não se opõe à autonomia nem a anula, porquanto a autonomia é lei que está

atrelada aos seres humanos. Porém esta lei está baseada no fundamento divino.

Tais conceitos constituem instrumentos para uma “análise religiosa da

cultura”. A unidade da religião e da cultura, como unidade da substância significativa

incondicionada e da forma significativa condicionada, é a relação adequada entre as duas.

Tillich denomina “teonomia” a esta unidade, e entende por tal palavra a realização de todas

as formas culturais com a substancialidade do Incondicionado. Isto é, a religião resgata o

seu sentido mais fundamental de “profundidade da cultura”, enquanto resposta onipresente

à exigência do próprio espírito humano de instituir esta totalidade una e complexa que é a

cultura numa relação de mútua dependência e referência. Temos na teonomia, uma síntese

de cultura e religião, como duas faces de um mesmo fenômeno, a saber, a consciência de

sentido.

102 Ibid., p. 76. 103 Ibid., p. 85.

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É justamente nesta perspectiva que ele elabora a sua celebre frase: “a

religião é a substância da cultura e a cultura, a forma da religião”104. A cultura está

relacionada à forma e a religião está relacionada ao conteúdo. Forma é todo objeto passível

de investigação racional e crítica. Ela constitui o objeto imediato das diferentes atividades

culturais autônomas. O conteúdo é visto mais de maneira espiritual. Ele não é alcançado

por meio da visão objetiva racional, mas pela intuição. O conteúdo é objeto da experiência,

da participação existencial em sua realidade de envolvimento. Além disso, a experiência do

conteúdo é imediata. O ser humano não necessita de uma reflexão específica para discernir

o absoluto do sentido. O conteúdo se revela ele mesmo. É o sentido profundo que emana

de todo ser, de tudo o que é. Concomitante, as formas, quase sempre, querem ter por

escopo a absolutização de suas características, esquecendo, com isso, o princípio básico de

que em toda e qualquer cultura reside algo de incondicionado.

Para Tillich, a religião dá sentido e seriedade à cultura105. Isto é, a religião,

como preocupação última, é a substância que confere sentido à cultura e a cultura é a

totalidade das formas em que se expressa a preocupação fundamental. É isso o que

constitui a religião. A religião é a orientação do espír ito para o sentido incondicionado. A

cultura é a orientação do espírito em direção às formas condicionadas. Ambas se

encontram em sua orientação para a unidade completada das formas do significado.

Contrastando a postura heterônoma, Tillich, em sua Teologia Sistemática,

estabelece alguns princípios referentes à relação entre religião e cultura. O primeiro é

encontrado na liberdade do Espírito. Nesta construção, o Espírito Divino não está preso à

religião, exercendo um impacto sobre a cultura. Aliás, “este ‘erro’ é, na verdade, a

identificação demoníaca das igrejas com a Comunidade Espiritual, e é uma tentativa de

limitar a liberdade do Espírito pela reivindicação absoluta de um grupo religioso”106. O

segundo princípio é o que Tillich vai chamar de “convergência do sagrado e do secular”. A

preocupação última está presente mesmo em meio às inquietações triviais da vida das

pessoas, visto que não existe uma dicotomia. O mundo religioso e o mundo secular são

incluídos um dentro do outro. “O secular é levado à união com o sagrado, uma união que

na verdade é uma reunião, porque o sagrado e o secular se pertencem mutuamente”107. Ou

104 Idem. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 45. 105 Idem. A era protestante, p. 87. 106 Idem. Teologia sistemática, p. 573. 107 Ibid., pp. 573-574.

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seja, é impossível a existência do sagrado sem o secular. A religião precisa,

necessariamente, dessa categoria para existir. O terceiro e último princípio, Tillich vai

denominar de “pertinência essencial mútua de religião e cultura”. Aqui, religião não pode

se expressar, nem mesmo num silêncio significativo, sem a cultura, da qual ela assume

todas as formas de expressão. Por conseguinte, a cultura perde sua profundidade sem a

ultimacidade daquele que é último.

Destarte, a autonomia, segundo Tillich, é sempre, e ao mesmo tempo,

obediente e rebelde ao incondicionado. É obediente enquanto se submete à exigência

incondicionada de significado; e rebelde enquanto nega o significado incondicionado em

si. Em decorrência disso, tanto a autonomia quanto a heteronomia são tensões dentro da

teonomia, que podem conduzir à separação, à catástrofe do espírito. Isso porque a relação

essencial entre a cultura e a religião é teonômica108; a cultura está sob o impacto do

incondicionado. Por isso, há harmonia entre forma e conteúdo, num momento sublime e

singular.

A teonomia, que em sua expressão ideal, ao menos, vê o santo em todas as formas [...] As coisas, portanto, não possuem em si mesmas o fundamento de sua sacralidade. Não são santas em si mesmas, entretanto, há coisas e pessoas, formas e acontecimentos, que possuem um poder simbólico superior, cuja realização significativa é chegar a converter-se em coisas sagradas.109

Numa relação de mútua dependência e referência, é perceptível na teonomia

uma síntese de cultura e religião. Esta relação se manifesta como duas faces do mesmo

fenômeno: a “consciência de sentido”. Aqui, Tillich aborda a questão do sentido a partir de

uma perspectiva fenomenológica, pressupondo que toda a atividade criadora dos seres

humanos visa um sentido. Na profundidade da cultura está a religião, pois o fundamento do

sentido tem que ser religioso. Assim como a religião, enquanto profundidade de sentido,

uma vez manifesta, é cultura. A cultura é a orientação em direção às formas condicionadas

do significado e sua realização. Nesta definição, não se indica uma separação entre a

cultura e a religião, porque a realização de todas as formas no significado repousa sobre o

significado incondicionado110. Tillich aponta elementos pelos quais se manifesta a

consciência de sentido na linguagem, distinguindo três noções111.

108 Idem. Filosofía de la religión , p. 64. 109 Ibid., p. 72. 110 Ibid., p. 63. 111 Ibid., p. 44.

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A primeira noção é a de que temos consciência de uma inter-relação entre os

diferentes sentidos particulares, na qual cada sentido separado subsiste e sem a qual não

seria sentido. A segunda mostra que essa inter-relação é cultivada em cada ação criativa.

Não se trata de um sentido em si, mas assinala para aquilo que Tillich chama de

“substância de sentido”, qualidade presente em todo e qualquer sentido particular, na inter-

relação desses sentidos e, ao mesmo tempo, transcendendo a ambos; por ser

Incondicionado não se esgota numa contingência histórica. A terceira noção destaca que a

consciência de sentido implica na noção de que cada sentido particular subsiste,

paradoxalmente, na exigência de realizar a incondicionalidade de sentido para dentro de

uma situação particular.

Por sua vez, os conceitos de forma, substância e conteúdo derivam destas

noções pelas quais se manifesta a consciência de sentido. O sentido incondicionado é

colocado sob a categoria de “substância do sentido”, que outorga a cada sentido particular

sua realidade, sua significação, sua essencialidade. “Se a consciência se dirige para as

formas particulares do sentido e sua unidade, estamos frente à cultura; se está dirigida para

o sentido incondicional, para a substância do sentido, estamos frente à religião”112. O

conteúdo do sentido, por sua vez, resulta deste encontro entre religião e cultura. A

substância ou significação se capta mediante uma forma e se expressa mediante um

conteúdo. O conteúdo é acidental, a substância é essencial e a forma é o elemento

mediador.

Sobre o conteúdo se dá, então, o embate entre duas exigências; por um lado, a exigência da forma, de condicionar o sentido para determinada situação cultural, tornando-se um conteúdo historicamente relevante; por outro lado, a exigência da substância, de que este conteúdo ofereça a essa situação concreta um sentido último e incondicional. Em decorrência disso o conteúdo do sentido se vê diante do paradoxo do incondicional: ele é seu fundamento criativo e fonte infinita de significatividade e, ao mesmo tempo, o abismo, que põe termo a qualquer pretensão de concretizar o sentido incondicional. 113

Logo, de acordo com Tillich, há um limite entre religião e cultura. A

religião não pode renunciar o absoluto, o idioma universal expressado na idéia de Deus,

não devendo permitir-se chegar a ser um domínio especial dentro da cultura ou ocupar uma

112 Ibid., p. 46. 113 SANTOS, J. A teologia da cultura. In: Fronteiras e interfaces: o pensamento de Paul Tillich em perspectiva interdisciplinar, pp. 127-8.

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posição adjacente a esta; e a cultura não pode permitir que se sacrifique a verdade e a

justiça em nome do absoluto religioso114. Com esta diferença, a intencionalidade da

religião se dirige à essência, à fonte incondicionada e ao abismo do sentido, e as formas

culturais servem como símbolos dessa essência. Porém, o ideal da cultura teônoma jamais

se realizará plenamente na terra, devido ao estado de alienação do ser humano, presente na

história, podendo, como sugere Carl Braaten, haver somente realizações parciais115.

Ademais, a teologia da cultura se interessa pela qualidade reveladora da

cultura. Tal concepção mostra que Deus não está preso às religiões para se manifestar aos

seres humanos, mas isso pode acontecer de maneiras extremamente diversificadas. “A

religião não é uma função especial da vida espiritual do homem, porém há dimensão de

profundidade em todas as suas funções”116; não há criação cultural sem que se expresse

uma preocupação última. Isto é, em cada uma das funções da criatividade cultural do ser

humano palpita uma preocupação última. Sua expressão imediata é o estilo de uma

cultura. Quando religião e cultura se opõem, se destrói a unidade do significado, e se

condena ao absurdo, ora na religião, ora na cultura117.

A tarefa da teologia da cultura, segundo Tillich, é produzir uma análise

religiosa geral de todas as criações culturais. Para isso, oferece uma classificação histórico-

filosófica e tipológica das grandes criações culturais segundo a substância religiosa que se

realiza nelas; e produz, a partir de seu ponto de vista, particularmente religioso, o esquema

ideal de uma cultura impregnada na religião118. Aqui, cabe-nos destacar uma crítica feita

por Calvani à teologia da Cultura de Tillich, a saber, a tendência a privilegiar as

manifestações artísticas mais relacionadas à elite e menos as nascidas ou reproduzidas em

ambientes populares119. Nesse ponto, é necessário, como nos alerta Calvani, desenvolver

uma hermenêutica da suspeita no próprio método Tillichiano. Isso não nos impede de

analisarmos uma obra de arte a partir de seus estudos, já que estes se constituem numa

ferramenta muito útil para tal finalidade, apesar, naturalmente, de suas limitações, já que a

Teologia da Cultura é um campo muito vasto que precisa ser explorado, dado o enorme

dinamismo da produção cultural humana.

114 TILLICH, P. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 255. 115 BRAATEN, C. Paul Tillich e a tradição cristã clássica. In: Perspectiva da teologia protestante nos séculos XIX e XX, p. 26. 116 TILLICH, P. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 15. 117 Idem. Filosofía de la religión, p. 48. 118 Ibid., p. 166. 119 Idem. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 69.

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Salienta-se, aqui, a diferença, bem como a relação existente entre a religião

estrita e religião ampla no pensamento tillichiano para podermos entender melhor a relação

existente entre religião e arte. Religião significa ser preocupado ao extremo, fazendo a

pergunta do “ser ou não ser” com respeito ao significado da existência de uma pessoa, e ter

símbolos nos quais esta pergunta é respondida. Este é o conceito maior e ma is básico da

concepção religiosa, ou seja, ser extremamente preocupado com o próprio ser de uma

pessoa, com a própria pessoa, com o seu mundo, com relação ao seu significado, sua

alienação e sua finitude120. Ser religioso significa, então, perguntar com paixão pelo

significação da nossa existência e estar disposto a conhecer a resposta, mesmo que esta

seja desagradável. Tal idéia da religião torna a idéia universalmente humana, mas não há

dúvida que diverge daquilo a que comumente se chama religião. “Não descreve a religião

como crença na existência de deuses ou de Deus, e como conjunto de atividades e

instituições destinadas a ligar cada pessoa a esses seres, pelo pensamento, pela devoção e

pela obediência”121. É esta constatação que nos força a distinguir o sentido de religião viva,

na dimensão da profundidade, de expressões particulares da preocupação fundamental com

os símbolos e instituições duma religião concreta. A religião, em um sentido mais estreito,

é identificada como crença na existência de um deus, ligada, neste caso, a atividades

práticas e intelectuais que partem desta crença. São perceptíveis, nesse tipo de religião,

declarações simbólicas sobre atividades do deus ou dos deuses cultuados. Ninguém pode

negar que as religiões que apareceram na história obedecem a esse critério.

Quando falamos sobre as relações entre religião e arte, devemos abordar

ambos os conceitos.

2.3. Um encontro revelatório Sabe-se que Tillich participou da Primeira Guerra Mundial como capelão, e

em meio aos horrores da guerra foi induzido a estudar a história da arte, muito embora,

bem antes disso, já ter grande interesse pelo assunto. Ainda no campo de batalha, ele

analisou, na medida do possível, as reproduções baratas de obras de arte. No entanto, foi a

partir de uma visita ao Museu Kaiser-Friedrich, de Berlim, que Tillich teve uma

experiência que mudou totalmente a sua visão de uma obra de arte, descobrindo a

possibilidade de, através de uma obra de arte, os seres humanos serem conduzidos a níveis

120 Idem. Existenlialist aspects of modern art, p. 271. 121 Idem. A dimensão perdida da religião. In: Aventuras do espírito, p. 73.

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últimos da realidade. Isso se deu através do seu contato com uma das Madonnas -

Madonna and Child with singing angels122 - pintada por Sandro Botticelli. Esse encontro,

para o teólogo, foi um momento de êxtase, no qual teve a oportunidade de contemplar, no

encanto da pintura, a beleza em-si (Beauty itself). Tal experiência, Tillich chamou de

“Êxtase Revelatório”123, não tendo um nome maior para descrevê- la. A partir de então,

segundo ele, o nível da realidade foi aberto, algo que estava encoberto até o momento

apareceu.

Comentando o assunto, Calvani observa que aquele foi verdadeiramente um

momento de revelação: um aspecto do fundamento divino de todas as coisas lhe apareceu.

Em sua interpretação, aquela foi uma experiência religiosa, uma experiência do sagrado

que vai além da experiência de qualquer realidade cotidiana.

Essa experiência lhe devolveu a alegria da vida e lhe forneceu as chaves da interpretação da existência humana. A partir de então, tornou-se clara a analogia entre experiências religiosas de cunho revelatório e as experiências estéticas. Ambas remetem o sujeito da experiência às profundezas da realidade 124.

122 BOTTICELLI, S. Madonna and Child with singing angels, 1477, Berlin -Dahlem Museum, Berlin. 123 O termo “êxtase”, no pensamento tillichiano, aponta para um estado de espírito que é extraordinário no sentido de que a mente transcende sua situação habitual. O êxtase, desta feita, não é uma negação da razão, mas é um estado mental em que a razão está além de si mesma, isto é, além da estrutura sujeito-objeto. O êxtase só pode ocorrer se a mente se sentir possuída pelo mistério – pelo fundamento do ser e do sentido. Não há, portanto, revelação sem êxtase. O estado extático em que ocorre a revelação não destrói a estrutura racional da mente (TILLICH, P. 2005, pp. 124-26). 124 CALVANI, C. Op. cit., p. 76.

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Desta feita, as artes plásticas o tornaram consciente de que o ser humano

tem a capacidade de romper a superfície das formas e penetrar, ainda que

fragmentariamente, em seu conteúdo, isto é, no poder espiritual que pulsa nelas. Como

resultado de suas observações, Tillich alcança a concepção de que a história da arte, desde

o começo do nosso século, tem que ser entendida à luz da tentativa desesperada do homem

de voltar a si mesmo. O que vem a ser uma experiência estética? Tillich observa que

experiência estética é o choque provocado por uma obra de arte no sujeito que se depara

sensorialmente com ela. Sendo assim, quando fala em experiência, segundo Calvani, tem

sempre em mente um elemento de abalo, de choque, recebido de “fora” do sujeito. Essa

idéia de choque corresponde à irrupção da revelação, causando inquietação no sujeito que

o vivencia por estar diante de algo “belo”, “trágico”, “misterioso”, pleno de sentido ou

significado.

Na mesma esfera, as artes, na concepção tillichiana, são jogos, até o ponto

em que transcendem a aparência e as estruturas da realidade. Contudo, esses jogos não

estão na superfície da arbitrariedade; eles expressam coisas que ficam num nível que só

podem ser descobertos através da liberdade humana daquilo que é dado. Isto implica dizer

que, a arte é tanto criação como descoberta. Do mesmo modo, para o teólogo, nas artes

alguma coisa que é embasada no modo de ser é descoberta. Isso pressupõe, naturalmente, a

liberdade do ser humano e seu poder de introduzir o descoberto no âmbito do que é dado

em formas que transcendem o que é dado.

Se Menino morto descobre e mostra o âmbito da realidade em formas que

são tiradas da realidade ordinária, mas que simultaneamente apontam para além delas,

então, podemos afirmar que estamos diante de um símbolo. Isso é fundamentado na idéia

de que o caráter da superfície de qualquer coisa pode nos conduzir a conhecer o que está

por baixo dela. Quando isso acontece, o indivíduo procura ir mais fundo em busca de mais

significado.

O material da pergunta existencial é tomado da totalidade da experiência humana e de suas múltiplas formas de expressão. Refere-se ao passado e ao presente, à linguagem popular e à linguagem literária, à arte e à filosofia, à ciência e à psicologia [...] Enquanto o material da pergunta existencial é a própria expressão da condição humana, a forma da pergunta é determinada pela totalidade do sistema e pelas respostas dadas nele125.

125 TILLICH, P. Teologia sistemática, p. 310.

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Desta maneira, para Tillich, em toda conformação estética, supostamente, se

dá expressão de uma substância essencial (Wesens-gehalt). Isso não tem nada a ver com a

validez lógica, porquanto não expressam apreensões do ser senão daquilo que é

significante. Porém toda coisa e todo processo possui significado (Be-deutung) mediante

sua relação com o fundamento incondicional do sentido. O significado do real, tal como se

apreende no sentimento estético, nunca permanece relacionado com uma significação

particular e nunca se apreende mediante estados emocionais empíricos. O sentido

incondicionado está presente e vivo através de cada experiência estética. Por conseguinte,

todo sentimento estético é um sentimento transcendente, por assim dizer, é um sentimento

no qual a agitação emocional empírica inclui um núcleo experencial que sinala em direção

ao incondicional126. A orientação para a substância incondicionada universal do significado

é a religião. Sendo assim, a substância incondicionada do significado vive na intuição

estética de qualquer significação particular. Nessa experiência intuitiva, há também um

elemento crítico. É ele que permite diferenciar um quadro carregado de dor ou de

agressividade como expressivo do poder do ser, e outros quadros como superficiais e

banais.

A obra de arte, enquanto revelação pode ser manifestada a partir de uma

experiência estética. A experiência se dá no encontro do espectador com uma obra de arte.

Aí pode acontecer a manifestação do sagrado. Tillich procura um sentido profundo que

pode se manifestar a partir de uma experiência estética. Assim, tanto a experiência

religiosa quanto a experiência estética remetem as pessoas que sentem esse impacto a

níveis profundos da realidade. Isso busca provar que Deus não apenas pode se manifestar

nas obras de arte, como de fato se manifesta nelas e por meio delas. Para Tillich, toda ação

cultural contém o significado incondicionado, baseia-se no fundamento do significado e,

na medida em que é uma ação significativa, é, substancialmente, religiosa. Desde o ponto

de vista de sua forma, toda ação religiosa é uma ação cultural; se dirige em direção à

totalidade do sentido127. Porém, não é cultural por intenção; porque não se propõe a

totalidade do sentido, mas antes à sua substância.

126 Idem. Filosofía de la religión, p. 54. 127 Ibid., p. 46.

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2.4. Razão e Revelação Em sua Teologia Sistemática, Tillich, de forma precisa, aponta algumas

questões interessantes para uma melhor compreensão dos conceitos de “razão ontológica”,

“razão técnica” e “revelação”. Com esses conceitos, ficará mais explícita a inteligibilidade

da relação que existe entre a arte e a religião nos seus estudos.

Tillich distingue entre um conceito ontológico e um conceito técnico de

razão. O primeiro é predominante na tradição clássica, desde Parmênides até Hegel. O

segundo – embora sempre tenha estado presente no pensamento pré-filosófico e filosófico

– tornou-se predominante desde o colapso do idealismo alemão clássico e com o

surgimento do empirismo. Conforme a tradição filosófica clássica, segundo Tillich, a razão

é a estrutura da mente que capacita a apreender e transformar a realidade. Ela é efetiva nas

funções cognitiva, estética, prática e técnica da mente humana 128. A razão clássica é logos,

Seja ela entendida de forma mais intuitiva ou mais crítica. Sua natureza cognitiva é um elemento entre outros, pois ela é cognitiva e estética, teórica e prática, distanciada e apaixonada subjetiva e objetiva. A negação da razão no sentido clássico é anti-humana, porque é antidivina 129.

O conceito ontológico de razão sempre é acompanhado, e às vezes

substituído, pelo conceito técnico de razão. Esta, por mais sutil que possa ser em seus

aspectos lógicos e metodológicos, desumaniza o ser humano, uma vez que está separada da

razão ontológica. A razão técnica só é adequada na medida em que se torna expressão da

razão ontológica e como sua companheira. “A questão tradicional envolvendo a relação

entre razão e revelação não deveria ser discutida em nível de razão técnica [...] mas sim em

nível de razão ontológica, de razão no sentido de logos”130. A razão ontológica, então, é

definida por Tillich, como a estrutura da mente que a capacita a compreender e configurar

a realidade. No âmbito estético, a profundidade da razão é, segundo Tillich, sua qualidade

de apontar para a “beleza-em-si”. Esta qualidade de apontar está direcionada a um sentido

infinito e um significado último, através das criações em todos os campos da intuição

estética.

No que se refere à revelação, Tillich assinala que esta sempre é expressa

numa situação concreta, ou seja, ela acontece na realidade histórica. Isto porque a negação

128 Idem. Teologia sistemática, p. 86. 129 Ibid., p. 86. 130 Ibid., p. 88.

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da contemporaneidade põe em perigo o elemento transcendente da revelação. Isto é,

quando a revelação não se faz contemporânea do ser humano concreto, ela passa a ser

dependente dele. Ora, essa concepção faz com que o indivíduo seja o meio de atingi- la,

contudo essa não é uma tarefa humana. A revelação é a manifestação do fundamento e do

sentido incondicional da existência humana. “É uma questão de ultimate concern que

envolve a personalidade total e efetiva-se através de um jogo de símbolos. Mas só

podemos falar nela se ela tornou-se revelação para nós, se a experimentamos

existencialmente”131.

A revelação, entretanto, sempre terá um caráter misterioso, devido à

impossibilidade do ser humano em alcançar a sua compreensão plena. Ela sempre revelará

algo, ocultando características que não podem ser apreendidas pelo espírito humano. Desta

maneira, “a revelação é uma manifestação especial e extraordinária, com possibilidades de

remover o véu de algo oculto de forma especial e extraordinária”132. O mistério permanece

sempre enigmático, posto que haveria um estrago da sua própria natureza se ele perdesse

seu caráter misterioso. Um mistério genuíno, contudo, é experimentado em uma postura

que contradiz a atitude da cognição comum. Porquanto o mistério caracteriza, para Tillich,

uma dimensão que “precede” a relação sujeito-objeto, sendo, desta forma, impossível

expressar a experiência do mistério em linguagem comum, porque esta linguagem nasceu

do esquema sujeito-objeto e está presa a ele 133. No escopo dessa concepção, tudo aquilo

que é essencialmente misterioso não pode perder seu caráter de mistério, mesmo quando é

revelado.

A revelação daquilo que é essencial e necessariamente misterioso significa a manifestação, no contexto da experiência comum, de algo que transcende o contexto habitual da experiência [...] Em primeiro lugar, sua realidade se tornou uma questão de experiência. Em segundo lugar, nossa relação com o mistério também se tornou uma questão de experiência. Ambos os elementos são elementos cognitivos. Mas a revelação não dissolve o mistério em conhecimento134.

Por outro lado, Tillich percebe o “lado negativo” do mistério. Este está

presente em todas as funções da razão. “O estigma da finitude”, que aparece em todas as

coisas, e o “choque” que se apodera da mente quando se encontra com a ameaça do não-ser 131 HIGUET, E. O método da teologia sistemática de Paul Tillich: A relação da razão e da revelação. In: Estudos de religião, p. 45. 132 TILLICH, P. Teologia sistemática, p. 97. 133 Ibid., p. 121. 134 Ibid., p. 122.

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revelam, por sua vez, o elemento abismal no fundamento do ser. O estigma da finitude

aparece em Menino morto, não só através da morte da criança, causadora de desespero para

os participantes da cena, externado com lágrimas petrificadas, mas evoca uma angústia

diante da nossa própria finitude ao nos depararmos com a tela. É a ameaça do não-ser que

se desvela para nós. Tillich afirma que a coragem é auto-afirmação “a despeito de”, isto é,

a despeito daquilo que tende a impedir o eu de se afirmar. “O não-ser ameaça a auto-

afirmação ‘ôntica’ do homem. De modo relativo, em termos de destino, e de modo

absoluto, em termos de morte”135.

Em Menino morto existe um forte engajamento com a vida. A esperança de

uma vida melhor parte de uma preocupação fundamental que desemboca em uma decisão

de partir para o desconhecido, mesmo que esse desconhecido seja pior que o conhecido,

mesmo que a morte esteja sempre presente em suas caminhadas. Esses seres cadavéricos

carregam o peso do destino. Aqui, a questão do destino e da sua relação com a liberdade

tem de ser levada em consideração, posto que a plena limitação da liberdade é explicitada

quando percebemos a nossa falta de autonomia diante de várias situações da nossa

existência. Por isso mesmo, a idéia de que o ser humano tem de lutar pela liberdade

absoluta, tendo a autonomia para ser e fazer o que bem entender se choca com a idéia de

destino. Isto porque é impossível concebermos um conceito de liberdade sem relacioná- lo

com o destino.

Por isso, Tillich assinala que “a liberdade, em polaridade com o destino,

constitui o elemento estrutural que torna possível a existência, porque transcende a

necessidade essencial do ser sem destruí- la”136. A visão tillichiana de destino aponta para

a situação em que o ser humano se encontra, isto é, a circunstância de se defrontar com o

mundo, de pertencer ao mundo. Essa pertença não é a liberdade de uma função (a

“vontade”), mas do ser humano, ou seja, daquele ser que não é uma coisa, mas um eu

completo e uma pessoa racional. A vontade não pode ser considerada como a estrutura

que representa plenamente o ser humano, porquanto ela não abarca a totalidade do eu.

Por isso, para Tillich, a liberdade do ser humano pressupõe que cada função que o

135 Idem. A coragem de ser, p. 32. 136 Idem. Teologia sistemática, p. 191.

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constitui como um eu pessoal participa de sua liberdade137. A liberdade, assim, é

experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade.

1. Deliberação aponta para o ato de pesar (librare) argumentos e motivos. A

pessoa que os pesa está acima dos motivos; enquanto os pesa, não se

identifica com nenhum dos motivos, mas está livre de todos. A pessoa, através

de seu centro pessoal, reage como um todo frente à luta desses motivos;

2. A decisão é a reação do ser humano. Uma decisão corta possibilidades, caso

contrário, nenhum corte teria sido necessário. A pessoa que “corta” deve estar

para além daquilo que ela exclui. É por isso que seu centro pessoal tem

possibilidades, mas não é idêntica a nenhuma delas;

3. Responsabilidade designa a obrigação, da pessoa com liberdade, de responder

se lhe perguntam sobre as suas decisões. A pessoa, nessa perspectiva, é

responsável por suas escolhas. Seus atos não são determinados por algo fora

dela nem por uma parte dela, mas por sua totalidade centrada no eu. Cada

indivíduo é responsável por aquilo que aconteceu por ação do centro de seu

eu, sede e órgão de sua liberdade.138

Destino é

Aquilo do qual surgem nossas decisões. É a base indefinidamente ampla de nosso eu centrado; é a concretude de nosso ser que torna todas as nossas decisões [...] O destino não é um poder estranho que determina aquilo que me irá acontecer. É minha própria pessoa, tal como dada, formada pela natureza, pela história e por mim mesmo. Meu destino é a base de minha liberdade; minha liberdade participa na configuração de meu destino. 139

De acordo com Tillich, só quem tem liberdade tem um destino, todavia, o

ser humano tem a liberdade de aceitar ou de se rebelar contra o seu próprio destino. “E ter

esta alternativa significa ser livre”140. Como podemos ver esta questão em Menino morto?

Parece-nos que as pessoas da tela estão lutando contra os seus próprios destinos. Algo é

revelado aqui: a saber, o ato de sair da terra de origem à procura de outra paragem que

ofereça condição de vida, que ponha fim aos seus “destinos errantes”. Abismo do futuro

incerto e ilusório. Destino e morte são os meios pelos quais nossa auto-afirmação ‘ôntica’ é

137 Ibid.,p. 193. 138 Ibid., p. 193. 139 Ibid., pp. 193-4. 140 Ibid., p. 194.

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ameaçada pelo não-ser. A angústia da morte é o horizonte permanente dentro do qual a

ansiedade do destino trabalha. “O destino não produziria ansiedade inevitável se não

tivesse a morte por trás de si. E a morte está por trás do destino e suas contingências, não

só no ultimo momento, quando se é expulso da existência, mas em cada momento dentro

da existência”141.

Porém, como nos diz Tillich, o lado negativo do mistério é um elemento

necessário da revelação; sem ele o mistério não seria mistério. Porém, “o verdadeiro

mistério aparece quando a razão é conduzida para além de si mesma, a seu ‘fundamento e

abismo’, àquilo que ‘precede’ a razão, ao fato de que ‘o ser é e o não-ser não é’, ao fato

original (Ur-Tatsache) de que há algo e não nada”142. Por outro lado, o aspecto positivo do

mistério – que inclui o lado negativo – manifesta-se, para Tillich, na revelação efetiva.

Aqui, o mistério se apresenta como fundamento e não como abismo, aparecendo como

poder de ser, ou seja, ele vence o não-ser143. Aparece como nossa preocupação última e se

expressa em símbolos e mitos que apontam para a profundidade da razão e seu mistério.

Sendo assim, revelação é a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última. O

mistério revelado é nossa preocupação última, porque é o fundamento de nosso ser.

2.5. Relação entre religião e arte

De acordo com Tillich existem três maneiras na qual o ser humano

experimenta e expressa a Realidade Última, a saber, a religião de forma direta; a arte e a

filosofia de forma indireta144. Na religião, a Realidade Última se manifesta através de

experiências extáticas, ou de um caráter revelatório concreto, expressando-se através de

símbolos e mitos. Os mitos são, para Tillich, as mais antigas e fundamentais expressões da

Realidade Última. A arte e a filosofia pegam deles seus caminhos e sua abundância. Neles,

a intenção imediata é expressar a Realidade Última em conceitos cognitivos e em imagens

141 Idem. A Coragem de ser, p. 35. 142 Idem. Teologia sistemática, p. 122. 143 Ibid., p. 123. 144 Conforme Maraschin, neste ponto, Tillich torna-se seletivo e tendencioso, pois muitos dos antigos filósofos gregos reconheciam a ocorrência de experiência de êxtase a partir de uma contemplação das idéias puras. O mesmo se poderia dizer a respeito de certas experiências de natureza estética. Será possível e suficiente dizer que as experiências filosóficas e artísticas limitam-se apenas a experiências indiretas do sagrado? (2004, p. 147).

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estéticas. Embora esta não seja esta a intenção da filosofia e da arte, elas acabam

expressando essa Realidade.

A percepção de que as artes invariavelmente se tornam espaços alternativos

de manifestação de preocupação religiosa e mesmo de ligação com o transcendente, para

Tillich, evoca uma das principais características do Incondicionado: o Incondicionado não

tem sua ação limitada às esferas especificamente religiosas. Desta maneira, a criação

artística tem por mérito a penetração na qualidade oculta das coisas.

A arte nos faz conscientes de algo que, de outro modo, não atingiríamos. Ela é, portanto, uma das formas pelas quais o ser humano é capaz de transcender sua finitude [...] Por meio dela, aquilo que está enraizado no fundamento do ser é descoberto. Esse é o grande milagre da arte 145.

O grande valor da arte, conseqüentemente, é a sua capacidade de expressar a

relação que determinada época, cultura ou movimento tem com o Incondicionado. A

substância incondicionada do sentido vive na intuição estética de qualquer significação

particular, individualmente. Aí reside a autenticidade da arte. Isto é, em sua habilidade de

expressar qualidades do ser que só podem ser captadas pela criatividade artística. Por trás

de cada autêntica criação há revelação; porque toda criação vive da significação, já que a

preocupação última está relacionada com a preocupação humana em relação à sua

existência. A dimensão religiosa não é uma realidade simples. Tillich percebeu que, de

algum modo, as ambigüidades da existência, percebidas na produção cultural humana e na

arte, se encontram presentes na dimensão religiosa e teriam suas raízes, em última

instância, no próprio incondicionado. Isto é, num nível profundo. A metáfora profundidade

significa que o aspecto religioso aponta em direção àquilo que, na vida espiritual do ser

humano, é último, infinito e incondicional. Essa preocupação, última, se manifesta em

absolutamente todas as funções criativas do espírito humano 146. “Tudo o que determina o

seu destino último, o infinito, o seu verdadeiro ser e a totalidade universal da qual faz

parte, são motivos de preocupação última”147.

Por conseguinte, o significado do real, tal como se apreende no sentimento

estético, nunca permanece relacionado com uma significação particular e nunca se

apreende mediante estados emocionais empíricos. Assim, de acordo com Tillich, quando

nós ouvimos a expressão “arte religiosa”, geralmente acreditamos que uma pessoa refere-

145 CALVANI, C. Op. cit., p. 80. 146 TILLICH, P. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 17. 147 DREBES, H. Op. cit., p. 52.

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se aos símbolos religiosos particulares como pinturas de Cristo, pinturas da Virgem Santa,

pinturas dos santos e suas histórias e muitos outros símbolos. Ora, este é um significado da

arte religiosa, mas há um outro seguindo a concepção maior da religião, a saber, arte como

uma manifestação de uma preocupação última. Naturalmente, será uma expressão estética,

uma expressão artística, mas será uma aparição da preocupação última. E se nós

distinguirmos essas duas concepções, nas quais a arte pode expressar a religião, e a religião

pode aparecer na arte, talvez seja oportuno distinguir quatro níveis da relação entre religião

e arte. Para tanto, em cada nível apresentado, selecionamos um quadro, exemplificado por

Tillich.

2.5.1. Estilo não-religioso, conteúdo não-religioso: Nesse estilo, a preocupação última

não está diretamente, mas indiretamente, expressa. É o que nós geralmente chamamos de

arte secular, e que não tem nenhum conteúdo religioso. Não lida com os símbolos

religiosos e ritos de nenhuma religião especial. Esse primeiro nível mexe com paisagens,

com cenas humanas, com retratos, com eventos, com todos os tipos de coisas no nível da

existência humana secular. Um exemplo desse estilo, apontado por Tillich, é o quadro The

Dancing couple148 de Jan Steen.

Nele, são retratados jogos, danças, bebidas, amores, cenas do cotidiano. Mas

mesmo assim, Tillich acentua que tais pinturas também expressam o poder de ser em

termos de uma vitalidade irrestrita, na qual a auto-afirmação da vida torna-se mais

148 STEEN, J. The dancing couple, 1663, The national gallery of art, Washington, D.C. The Widener Collection.

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extasiada149. Tillich percebe uma ligação dessa pintura com a religião, mas de forma

indireta. Isso o leva à afirmação de que não há nenhum estilo religioso e, por conseguinte,

nenhum estilo completamente secular, chamando isso de Princípio Protestante. Isto é, Deus

está presente tanto na existência sagrada, quando na existência secular. Este, para Tillich, é

o primeiro nível da relação entre religião e arte. Esta é necessária, pois revela níveis da

realidade, mesmo em tais objetos seculares, os quais não são, nem em estilo, nem em

conteúdo, religiosos. Como já ficou explicitado anteriormente, religião, para Tillich, não se

insere apenas no âmbito de uma instituição organizada em torno de ritos, símbolos. Porém,

religião, no sentido amplo, é ser envolvido por uma preocupação suprema, que abala o ser

humano, bem como a sua cultura. 2.5.2. Estilo religioso, conteúdo não-religioso - o nível existencialista: Nesse estilo, não

há nenhuma cena sacra, mas o estilo está impregnado de poder religioso. Ora, a

característica desse estilo é que há sempre alguma coisa se desprendendo das profundezas

para a superfície. Tillich apresenta Picasso, com o seu quadro Guernica150, referindo-se ao

estilo mencionado.

Ora, Picasso pintou esse imenso horror – os pedaços da realidade, homens e

animais e porções inorgânicas de casas – de uma forma, na qual a porção característica da

nossa realidade está bastante latente. Realidade que talvez esteja mais horrivelmente

visível em relação a qualquer outra pintura moderna. Essa pintura, de acordo com Tillich,

149 TILLICH, P. Existentialist aspects of modern art, p. 273. 150 PICASSO, P. Guernica, 1937. Museu do Prado, Madrid. Guernica, lugar no norte da Espanha, onde os paises fascistas, Alemanha e Itália, ajudaram os espanhóis fascistas a derrubar o governo realista, o governo oficial, porque era esquerdista. Este lugar, Guernica, uma pequena cidade do país de Bascos, foi completamente destruída, por um ataque aéreo, combinado pelos italianos e alemães. Foi o primeiro exercício do que é chamado, “bombardeio de saturação”, uma palavra terrível. Significa bombardear de tal forma que não sobre nada.

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mostra a situação humana sem cobrir absolutamente nada. Para ele, se o Protestantismo

significa isso, primeiramente, nós não temos que encobrir nada, mas temos que olhar a

situação humana em suas profundezas de alienação e desespero, fato que faz com que

Tillich considere Guernica uma das pinturas religiosas mais poderosas. Embora não tenha

nenhum conteúdo religioso, ela possui estilo religioso em um sentido muito profundo e

intenso151. E porque é um estilo religioso? Porque coloca a questão religiosa radicalmente,

e tem o poder e a coragem para encarar a situação da qual emerge a questão da condição

humana. Em nossa concepção, Menino morto se encaixa perfeitamente nesse estilo. A

tela apresenta a situação humana de maneira bastante real. Nela é perceptível a experiência

de vazio e a falta de sentido, revelando a alienação do ser humano. Em sua Teologia

sistemática, Tillich diz que o estado da existência é o estado de alienação. O ser humano se

acha alienado do fundamento de seu ser, dos outros seres e de si mesmo.

A alienação é uma qualidade da estrutura da existência, mas a forma predominante como a alienação se manifesta depende da situação histórica. Sempre existem estruturas de destruição na história, mas elas só são possíveis porque existem estruturas da finitude que podem ser transformadas em estruturas de alienação152.

De semelhante modo, o desespero alcançado pelas figuras da tela

caracteriza, desde sempre, o existir dos mortais. No desespero, o ser humano chega ao fim

de suas possibilidades. A própria palavra, como destaca Tillich, significa “sem esperança”,

e expressa o sentimento diante de uma situação para a qual não existe “saída”. “A dor do

desespero é a agonia de sentir-se responsável pela perda do sentido da própria existência e

de ser incapaz de recuperar esse sentido”153. O desespero é um conflito inevitável ao nos

deparamos sensorialmente com os seis seres pintados por Portinari. Neles, desvela-se uma

preocupação última, uma vez que a preocupação última está relacionada com a

preocupação humana em relação à sua existência. É uma revelação da situação humana

sem encobrir absolutamente nada.

Como o próprio Portinari diz: “fiz nesta composição a minha mais

verdadeira Piedade. Pintei uma mãe desesperada, curvada à dor, em sua marcha

151 TILLICH, P. Existenlialist aspects of modern art, p. 274. 152 Idem. Teologia sistemática, p. 367. 153 Ibid., p. 368.

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indescritível de retirante, trazendo no colo o filinho prematuramente vitima pela fome”154.

Para Bento, esta é realmente, sob todos os ângulos da pintura social e religiosa, a autêntica

Mater Dolorosa. Representa a mais cruciante entre as dores humanas. As lágrimas que

saem dos olhos das figuras são de pedras, simbolizando o pranto mortificante dos antigos

flagelados das secas do Nordeste.

O que Portinari quis de fato representar com aquelas lágrimas foi uma tragédia brasileira. E uma tragédia, para um pintor de sua força, não se faz ou não se configura através de lágrimas comuns, embelezadas por alguns efeitos de luz. Para expressar sentimentos de compaixão diante das cenas superdramáticas que via naqueles grupos de seres famintos e errantes, o autor tinha de recorrer a outros meios ou imagens fora do comum155.

Portinari, segundo Bento, quis deliberadamente dar um sentido figurado,

uma nova acepção visual às lágrimas. Não as figurou por intermédio de sua representação

líquida. Transformou aquela água amarga em pedras que tombam dos olhos. Portinari quis,

assim, mostrar que aquelas não eram lágrimas comuns ou triviais. Vinham de prantos

inenarráveis, que não podiam ser expressos de forma naturalista; as lágrimas dos retirantes

eram eternas156. Deviam mesmo, com efeito, tornar-se pétreas, de forma que por nenhum

modo fossem secadas, mas ficassem tombadas pesadamente das vítimas da seca, tornando-

se com isso um grito universal de toda a humanidade em relação a sua existencialidade.

2.5.3. Estilo não-religioso, conteúdo religioso: É o nível de formas seculares. O qual, lida

com o conteúdo religioso. São pinturas de Cristo, pinturas de santo, da virgem santa e do

menino santo. Quando refletimos neste terceiro aspecto, segundo Tillich, imediatamente

pensamos na arte da Alta Renascença. É um estilo não religioso com conteúdo religioso. A

Madonna and child157, pintada por Jean Fouquet expressa bem esse nível. A Madonna é

uma dama da corte de uma reputação não tão boa, ainda assim, ela é representada como

uma Madonna.

154 PORTINARI, C. apud BENTO, A. Op. cit., p. 180. 155 BENTO, A. Op. cit., p. 180. 156 Ibid., p. 180. 157 FOUQUET, J. Madonna and child, 1450, Koninklijk Museum voor Schone Kunsten, Antwerp, Bergium.

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Isso mostra que aqui o símbolo religioso na Madonna e na criança não

combina com o estilo religioso, mas é reduzida à relação mãe-criança de uma grande dama

da corte da França. Isso é suficiente para mostrar que o conteúdo religioso, em si mesmo,

não dá uma pintura religiosa. Essa pintura tem conteúdo religioso, mas não tem estilo

religioso. Nessa perspectiva, como nos alerta Tillich, muitas dessas pinturas que

encontramos em revistas de igreja, em pequenos boletins dominicais, ou até pior, em salas

de reuniões das igrejas ou escritórios dos ministros, são deste mesmo caráter. Elas têm

conteúdo religioso, mas não têm estilo religioso. Nesse sentido, elas são perigosamente

irreligiosas, e elas são algo contra o que todos aqueles que entendem a situação do nosso

tempo tem de lutar 158. 2.5.4. Estilo religioso, conteúdo religioso: Nesse nível, o estilo religioso e o conteúdo

religioso são unidos. Esta é uma arte que, no sentido mais concreto, pode ser chamada de

arte religiosa, porquanto estilo e conteúdo concordam. Esta forma é geralmente chamada

expressionista, porque esta é uma configuração em que a superfície é rompida para

expressar algo. Tillich acredita que uma pintura, até mesmo anterior, do final do Período

Gótico, a famosa The Crucifixion159 do pintor renascentista Mathias Grunewald, no altar de

Isenheim, seja a maior pintura alemã já feita. Esta é, segundo ele, uma das raras pinturas

que é protestante em espírito e, ao mesmo tempo, uma grande obra de arte. Com essa

pintura, Tillich tenta mostrar que o Expressionismo não é, de maneira nenhuma, uma

158 TILLICH, P. Existenlialist aspects of modern art, p. 277. 159 GRÜNEWALD, M. The Crucifixion, 1515. The Isenheim Altarpiece. Musée d’Unterlinden, Colmar.

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invenção moderna, mas esteve predominantemente presente na maior parte dos períodos da

história.

Por outro lado, se a arte é compreendida como expressão e revelação, faz

necessário, então, dar uma relevância aos seus temas de angústia, de agressividade, de

desespero. Em sua conferência The demonic in art, Tillich mostra que a angústia

existencial (Angst) é uma consciência da aproximação do demônico; mas na arte, ela se

torna uma forma de revelação da dimensão de profundidade da crise espiritual que o

indivíduo e a sociedade experimentam. Essa revelação pode acompanhar o desdobramento

dos fatos160. Obras de arte seculares em seu conteúdo, e esteticamente repulsivas, podem

trazer em si um profundo significado religioso, visto que toda manifestação cultural

expressa, não somente a si mesma, mas algo além dela própria, um posicionamento diante

do Incondicionado. Esse posicionamento tem diversas facetas, isto é, ele pode ser de

acolhida e comunhão ou de indiferença ou rebeldia161. Nesse víeis, Tillich acentua seu

interesse em uma das gravuras de Goya, Nohubo remedio162da série Os caprichos.

160 CARVALHO, G. “A ‘Antecipação Ansiosa do Demônico’ em Edvard Munch: Uma interpretação a partir da Teologia da Arte de Paul Tillich”. Revista Eletrônica Correlatio (www.metodista/br/correlatio) n. 8 (outubro de 2006). 161 CALVANI, C. Op. cit., p. 76. 162 GOYA, F. Los caprichos, Plate 24: Nohubo remedio, 1796-1798. The national Gallery of art, Washington, D.C. The Rosenwald Collection.

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Nesta, Goya mostra uma mulher na multidão, sendo acusada e condenada

como possuída – como bruxa ou como herética. Aqui, ambos os predicados são

classificados como possuídos pelo demônio. Essa característica é capaz de produzir tanto

medo quanto ansiedade nas pessoas que a condenaram e, por consecutivo, a acompanham

para a morte. Isto é conhecido na história como tribunais das bruxas e tribunais da

inquisição. “Olhe para os rostos da polícia, dos juizes, da multidão, todos estão possuídos

pela angústia; pelo mesmo poder demoníaco que eles perseguem na mulher”163. Isso

significa, para Tillich, que a condição de angústia produz um estado de agressão. Este grau

de agressão faz com que os que perseguem sejam mais possuídos pelo demônio do que

aqueles a quem perseguem. Goya, como assinala Tillich, é quase um realista expressionista, isto é, um

realista com um ponto de vista muito radical sem se tornar naturalista. Seu trabalho é de

um tipo no qual a perturbação da realidade é desvelada através dos meios comuns de seu

tempo, mas de modo tão superior que não se trata de uma repetição. Tais pinturas mostram

a antecipação do demônico, que tem uma característica profética em Goya. O demônico é

uma estrutura da vida; a angústia é um elemento dessa estrutura, mas há muitos outros

163 TILLICH, P. On art and architecture, p. 108.

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elementos, a saber: hostilidade, crueldade, agressividade e etc. Em contrapartida, existe a

angústia que não tem a estrutura do demônico, pois todo o ser humano se angustia sem,

necessariamente, ser portador do demônico164. Assim, Tillich não identifica a angústia,

necessariamente, com o demônico.

2.6. Relevância estilística

De acordo com Read, o estilo é um dos conceitos mais indefiníveis da

história da cultura. A derivação da palavra latina stilus indica que originalmente a

conotação era pessoal: significa as peculiaridades das marcas feitas por um indivíduo

usando um stilus ou pena 165. Às vezes voltamos a este significado quando falamos do estilo

como o traço de um pintor.

Tillich afirma que toda obra de arte possui três elementos: tema, forma e

estilo. 1) O tema é virtualmente idêntico a tudo que pode receber a mente humana em

imagens sensoriais. Não está restringido de nenhuma maneira por outras qualidades, como

bem e mal, belo e feio, total e parcial, humano e inumano, divino e demoníaco. 2) A forma

corresponde aos elementos estruturais do Ser em si e somente pode entender-se como

aquilo em virtude do qual algo é o que é. Dá a coisa seu caráter único e universal, seu lugar

especial, dentro da totalidade do Ser, sua força expressiva. A criação artística está

determinada pela forma que utiliza elementos particulares, como sons, palavras, pedras,

cores, e os leva a constituir algo que se sustenta por si mesmo. Por isso, a forma é o

elemento ontologicamente decisivo em toda criação artística. Porém, a forma em si

permanece modificada pelo terceiro elemento, o estilo. 3) O estilo matiza de um

determinado e único modo as variadas criações de um período166. Isto é, o estilo é a forma

geral, no qual, as formas particulares de todo artista particular e de toda a escola particular,

ainda são visíveis como a forma geral; e esta forma geral é a expressão daquilo que

inconscientemente está presente neste período como sua auto- interpretação, com a resposta

à pergunta do significado último da sua existência. Estilo, com efeito, assinala uma

interpretação própria do ser humano e, como tal, uma apreciação sobre o significado

último da vida. Apesar de o termo estilo ser procedente do campo das artes, é possível

aplicá- lo a todos os domínios da cultura.

164 Ibid., p. p. 113. 165 READ, H. Arte e alienação: o papel do artista na sociedade, p. 66. 166 TILLICH, P Teología de la cultura y otros ensayos, p. 67.

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Quanto ao referencial temático de uma obra de arte, para Tillich, é

importante, no entanto, não é determinante para atestar a relevância religiosa de uma obra,

porquanto o que deve ser levado em máxima consideração é o seu estilo. O que dá validade

religiosa a uma pintura, escultura, poesia, música..., não é, necessariamente, o seu tema,

mas o seu estilo. Estabelece-se assim, um gradiente segundo o qual as obras mais

completas, por assim dizer, seriam as que manifestam conjuntamente tema e estilo

religiosos167.

Concomitantemente, qualquer que seja o tema que utilizado por um artista,

qualquer que seja a forma, vigorosa ou débil, que utilize, não fará menos que expressar

com um estilo sua preocupação última, que será também, em parte ao menos, a de sua

época e seu grupo. Ela não pode escapar da religião, embora a rejeite, porque ela é o estado

de preocupação pelo sentido mesmo da vida. Tillich pergunta se uns estilos são mais aptos

para expressar o tema religioso que outros e ainda se há estilos essencialmente religiosos e

outros essencialmente seculares. Diante dessas indagações, ele diz que não há estilo que

exclua a expressão artística da preocupação última do homem, porque ela não está ligada a

nenhuma outra forma especial de experiência ou coisa. Está presente e pode estar ausente

em qualquer situação168.

O estilo na obra de arte é o referencial para se perceber a proximidade ou a

distância da forma em relação à substância do ser essencial, isto é, ele é a forma comum

que parcialmente determina a forma especial de um trabalho. No seu estilo artístico, uma

sociedade, mais do que em qualquer outro lugar, para Tillich, traz a sua própria

preocupação última. Por conseguinte, no ensaio Arte e Realidade última, a partir de uma

interpretação metalógica169, Tillich mostra como determinados tipos de encontro com a

Realidade Última determinam estilos de pintura. Ele sugere cinco formas possíveis de

experiência religiosa com o Incondicionado, a saber; o sacramental, o místico, o profético,

o idealista e o extático-espiritual.

O primeiro tipo de experiência religiosa e, segundo Tillich, o mais universal

é o sacramental. Aqui, a Realidade Última aparece como o Santo, o qual está presente em

167 CALVANI, C. “Momento de beleza”. Revista Eletrônica Correlatio (www.metodista/br/correlatio) n. 8 (outubro de 2006). 168 TILLICH, P. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 69. 169 A metalogia quer ir além (meta) da lógica (logia). Não se trata de negar a lógica ou suprimi-la, mas transcendê-la. Por isso o pensamento lógico e racional é suficiente para dar conta apenas das conotações da forma, mas não é capaz de participar plenamente no significado do conteúdo, uma vez que esse tem aspectos “irracionais” ou “i-lógicos”, incapazes de ser totalmente dissecados pela lógica (CALVANI, C. 1998, p. 56).

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todas as coisas, pessoas e eventos. Na história da religião, quase todas as coisas no seu

encontro com o mundo converteram-se em importadoras do Santo, isto é, numa realidade

sacramental170. O perigo religioso de toda realidade sacramental é a idolatria, ou seja, a

tentativa de fazer de uma realidade consagrada sacramentalmente uma realidade divina,

propriamente dita. Para Tillich, o estilo que mais se aproxima desse tipo de vivência é o

realismo mágico, o que ele prefere chamar de “realismo numinoso” – termo extraído de

Rudolf Otto. São apresentadas nesse estilo coisas cotidianas, pessoas comuns..., mas isto

de uma maneira que os faz estranhos, misteriosos e com um poder ambíguo. O perigo

artístico aparece quando as coisas são usadas meramente como símbolos perdidos sem

poder de expressão. O segundo tipo de experiência religiosa é o místico. Neste, a

Realidade Última é buscada sem a mediação de objetos particulares, considerados, para

Tilich, obstáculos à comunhão divina. Os estilos artísticos mais próximos desse tipo de

religiosidade são aqueles em que se privilegia a abstração. O terceiro tipo de experiência

religiosa é o que Tillich chama de profético, sugerindo que a história toma o lugar da

natureza como o lugar da manifestação da Realidade última. O estilo artístico

correspondente é o realismo, mas não o numinoso. Aqui, a natureza perde completamente

seu caráter sacramental. “O realismo crít ico apela diretamente ao ser humano enquanto

agente histórico e, ao mesmo tempo em que julga suas realizações, valoriza suas

possibilidades de reverter os acontecimentos”171. O quarto tipo de experiência religiosa é o

idealista. Tudo que é aguardado pela esperança profética, isto no sentido de redenção da

história, já é visto como realizado. O estilo destacado por Tillich, o qual se assemelha a

esse tipo de religiosidade, é com tendências naturalistas. Por fim, o quinto e último tipo de

experiência religiosa destacada por Tilich é o extático-espiritual, tendo seu correlato no

expressionismo. Esse tipo de religiosidade é, segundo Tillich, ao mesmo tempo realista,

mística e de cunho profético.

A história mostra, como sugere Tillich, que os estilos em que predominam

as qualidades expressionistas se prestam com mais facilidade a uma manifestação artística

da presença espiritual172. Este é o motivo por que não se criaram grandes obras de arte

religiosa nos períodos em que esses estilos foram perdidos. Para Tillich, a religião não

pode impor qualquer estilo ao desenvolvimento autônomo das artes. Isso contradiria o

princípio da honestidade artística. 170 TILLICH, P. On art and architecture, p. 143. 171 CALVANI, C. Teologia e MPB, p. 78. 172 TILLICH, P. Teologia sistemática, p.647.

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Porém, de qualquer forma, Tillich acredita que o Expressionismo se

relaciona especialmente com a religião, isto é, o estilo expressivo compartilha a

significação religiosa geral de todos os elementos estilísticos. Enquanto os demais,

somente indiretamente representam à problemática da preocupação última, o

expressionismo se ocupa diretamente dela. Porém, em si, é essencialmente adequado para

expressar em formas diretas o sentido religioso, tanto por meio da temática secular quanto

por meio da temática religiosa tradicional. O elemento expressivo de um estilo implica

numa transformação radical da realidade – do ordinário – usando elementos de um modo

que não se dá na realidade encontrada; a expressão rompe a aparência natural das coisas173.

O artista real, então, expressa o que ele encontra nas dimensões da realidade que não

podem ser notificadas de nenhuma outra maneira. Ele dá expressão simbólica à dimensão

artística da realidade.

Dentro desta perspectiva, Portinari, através de Menino morto não apenas vê

a insignificação da nossa existência, mas participa de seu desespero. Portinari enfrenta e

assume essa realidade, tendo a coragem de mostrar todo o horror dessa insignificação em

sua obra. Ele parece ter experimentado a gama mais variada de sentimentos: das lágrimas

de pedra aos rostos atônitos e resignados, da dor gritada à dor surda expressa pelo olhar e

pelo gesto vigoroso desses retirantes. Ao lidar com problemas tão sérios, de interesse

último, com tamanha densidade e profundidade, Portinari mostra a inegável preocupação

existencial que caracteriza qualquer ser humano.

Cores terrosas utilizadas nos corpos, onde raras pinceladas de laranja aquecem alguns pontos. Além disso, os tons frios dos azuis e verdes, empregados com parcimônia, se alternam e se misturam em áreas menores. O chão ocre, marcado por sombras se harmoniza com o colorido dos corpos dos retirantes. Os fundos se apresentam com céus azuis sombrios, entardecidos e horizontes mais claros174.

Portinari tenta entrar nos níveis mais profundos das pessoas a quem retrata.

Ele só poderia fazer isso, na concepção tillichiana, mediante sua profunda participação na

realidade e no sentido da pessoa a quem retrata. Só assim, ele estaria em condições de

pintar esses seres humanos, de tal forma que seus traços superficiais não sejam

reproduzidos como em uma fotografia, nem idealizados segundo o ideal de beleza do

173 Idem. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 70. 174 LUZ, A. Op. cit., p. 94.

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pintor, mas sejam usados para expressar aquilo que o pintor experimentou graças à sua

participação no ser da pessoa retratada.

O predomínio do estilo expressivo, como assinala Tillich, na arte

contemporânea, é uma possibilidade para o renascimento da arte religiosa. Nem todas as

suas variedades são adequadas para expressar os símbolos religiosos. Porém, a grande

maioria o é decisivamente. Segundo o teólogo alemão, nos estilos em que predominam os

elementos não expressivos, a arte religiosa se mostrou deteriorada e o tema secular

subjetivo ocultou sua base religiosa ao extremo de tornar-se irreconhecível. O

redescobrimento dos elementos expressivos na arte desde 1900 foi um feito decisivo para a

relação da religião e das artes visuais 175. Esse feito possibilitou novamente a arte religiosa.

Como é sabido, o Expressionismo foi um movimento de vanguarda entre os

anos 1910 e 1927, surgindo como uma reação à Escola de Paris e ao “Impressionismo”.

Seu objetivo principal era uma renovação na pintura, absorvendo, diversas tendências das

artes plásticas. O Expressionismo caracterizava-se em exibir nas pinturas cores fortes, e

expressava fórmulas faciais carregadas de angústia e desespero.

A categoria de substância está perdida: objetos sólidos são torcidos como cordas; a interdependência casual das coisas é desrespeitada: coisas aparecem em contingência completa [...] As dimensões espaciais são reduzidas ou dissolvidas dentro de uma infinidade horrificante176.

Contudo, a verdadeira essência do Expressionismo não era a simples

distorção em si mesma, mas a expressão do modo pelo qual a insatisfação humana com o

estado da sociedade vinha à tona. Neste estilo, a realidade encontrada é usada como

material para simbolizar uma preocupação última.

O Expressionismo vinha criticar a própria arte religiosa da sociedade capitalista, que reduz os símbolos religiosos tradicionais ao nível da moralidade da classe média e os esvazia de seu caráter transcendente e sacramental. O Expressionismo, portanto, apesar de sua aparente profanidade, tinha um caráter religioso, místico. 177

Para Tillich, as artes expressam uma preocupação última através de seu

estilo. Isso significa que toda preocupação artística é religiosa no sentido mais amplo de

religião, já que nenhuma expressão artística pode fugir do fato de que ela expressa as

qualidades da Realidade Última nas formas que têm. Para exemplificar, ele toma uma

175 TILLICH, P. Teología de la cultura y otros ensayos, P. 71. 176 Idem. A coragem de ser, p. 114. 177 CALVANI, C. Teologia e MPB, p. 91.

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pintura de Toulouse-Lautrec, A corner of the Moulin de la Gallette178, uma cena do

Moulin-Rouge.

A pintura do ambiente festivo e de perversão no Moulin-Rouge expressa

alguma coisa do poder do ser da Realidade Última. Isto é, essa pintura tem uma luz eterna

e aponta para a natureza do solo divino de onde fora criada. A pintura de Toulouse-Lautrec

é inteiramente secular e não tem nenhum relacionamento com a religião no sentido mais

estrito da palavra, mas ela expressa o poder do ser. E tudo o que expressa o poder do ser é

indiretamente religioso.

Tillich indica que o estilo expressionista, em algumas de suas formas, é a

expressão de uma sociedade que ainda vive de uma substância religiosa, e que a arte revela

o símbolo dessa substância179. Para entendermos melhor essas considerações, é importante

destacarmos a conceituação que Tillich dá aos símbolos. O Expressionismo foi o estilo

que, na visão de Tillich, melhor realizou essas funções da arte, tornando-se o movimento

de maior caráter revelatório no início do século XX; ele se afasta do simples movimento

horizontal e mostra a Presença Espiritual em símbolos da finitude rompida, sendo, para o

teólogo, o genuíno elemento teônomo.

Por fim, em A dimensão perdida da religião, Tillich, a fim de descrever a

atitude contemporânea relativa à religião, assinala que devemos verificar em primeiro lugar

sob que formas a consciência da condição do ser humano ocidental no nosso tempo se acha 178 TOULOUSE-LAUTREC, H. A corner of the Moulin de la Gallette, (1892. The National gallery of art, Washington, D.C. The Chester Dale Collection. 179 TILLICH, P. On art and architecture, p. 34.

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mais vivamente expressa. São elas, a arte superior, a literatura e, pelo menos em parte, a

filosofia do nosso tempo. Para o teólogo, é tanto pelos temas como pelo estilo que estas

criações revelam a luta apaixonada e muitas vezes trágica sobre o sentido da vida.

Esta arte, esta literatura e esta filosofia não são religiosas no sentido estreito da palavra, mas põe o problema religioso mais radicalmente e mais profundamente do que as expressões contemporâneas de caráter propriamente religioso [...] É o problema religioso levantado pelo pintor que desfaz em pedaços a superfície visível, para depois os reunir num grande quadro que pouca semelhança tem com o mundo que normalmente contemplamos, mas que exprime a nossa ansiedade e a nossa coragem em fazer frente à realidade 180.

2.7. Arte e símbolo

O olhar teológico sobre a cultura deverá ser um olhar sensível aos símbolos

pelos quais esta cultura comunica aquilo que a toca incondicionalmente. Assim, quanto

mais compreendemos o sentido dos símbolos, tanto mais nos convencemos de que a arte

descobre níveis da realidade que não se poderia descobrir de outro modo. Se esta é a

função da arte, certamente as criações artísticas em poesia, artes visuais e música têm

caráter simbólico181. O “descobrimento” é uma função ambivalente: revela os níveis mais

profundos da realidade e certos níveis especiais da alma humana.

É notório que, ao longo da história, os símbolos já foram compreendidos de

diversas maneiras e, mormente, tomaram inúmeras vezes características de realidade

última. De acordo com Tillich, “os símbolos se dirigem ao infinito que simbolizam e ao

finito através do qual simbolizam-no. Eles forçam o infinito a descer à finitude, e o finito a

subir até à infinitude”182. Conseqüentemente, os símbolos são categorias condicionadas que

apontam para realidades incondicionadas. A veracidade do símbolo está em sua

participação no poder do divino para o qual aponta, mas qualquer afirmação concreta sobre

qualquer divindade deve ser entendida simbolicamente, pois toda asseveração sólida

pressupõe o uso de um segmento da experiência finita para dizer algo sobre ele. O símbolo

tem o poder de nos levar a níveis da realidade que, não fosse ele, nos permaneceriam

180 Idem. A dimensão perdida da religião. In: Aventuras do espírito, p. 78. 181 Idem. Teología de la cultura y otros ensayos, p. 57. 182 Idem. Teologia sistemática, p. 203.

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inacessíveis. Aquilo que “toca o homem incondicionalmente só pode ser expresso

simbolicamente”183. Para Rui Josgrilberg,

Quando Tillich afirma que o símbolo participa da realidade significada, ele se refere a um laço ontológico de sentido. Esse laço ontológico de sentido é que permite a interpretação “para algo além” do sentido. Na relação ontológica de sentido, o símbolo pode ser interpretado como modo de ser de algo em relação ao sentido do ser mesmo. O símbolo é parte da força originária de dar sentido o que justifica a interpretação ontológica do símbolo ser parte necessária da angústia essencial que move o ser humano184.

Isso é necessário, contudo, porque os símbolos são modos nos quais

podemos acessar o sentido do religioso e sem eles podemos apenas distorcer a religião.

Eles revelam o sentido de algo que não pode ser abordado de nenhuma outra forma.

Símbolos com essas características têm uma função dupla. A primeira função é de abrir-se

para revelar algo que de outra forma não entra em nossa consciência. O outro lado é de

usar alguns aspectos da realidade, a fim de fornecer material para a simbolização daquilo

que transcende tudo o que é finito. Ao fazer isso, símbolos, ao mesmo tempo, aproximam o

campo de onde foram retirados ao campo do incondicional que eles simbolizam.

Assim sendo, para Tillich, existem dois níveis principais do simbolismo

religioso. O primeiro é o nível transcendente de simbolismo; os atributos divinos e as

realidades divinas conectadas com eles. O segundo é o nível imanente do simbolismo; as

realidades sacramentais, o sagrado, as histórias, as pessoas185. O artista pode retratar Deus,

o pai, a ascensão da virgem, a ascensão de Jesus, a coroação de Maria..., mas devemos

lembrar que essas pinturas só são possíveis na medida em que seus sentidos literais não são

questionados. A partir do momento em que esses sentidos se tornam motivos de dúvidas,

tais pinturas transformam-se em perigos, passando a suportar um tipo de primitivismo

sofisticado, um entendimento limitado dos símbolos religiosos.

Não obstante, Tillich se refere a dois tipos de expressionismo, a saber, o

crítico, ou negativo, e o afirmativo. O expressionismo negativo, representado por alguns

pintores que mostram a negatividade absoluta do ser humano, é explicitado, geralmente,

numa forma simbólica, apontando para o Cristo, o homem que sofre, ou ao tentarem

183 Idem. Dinâmica da fé, p. 32. 184 JOSGRILBERG, R. A concepção de símbolo e religião em Freud, Cassirer e Tilich, In: forma da religião: leituras de Paul Tillich no Brasil, p. 24. 185 TILLICH, P. On art and architecture, p. 8.

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alcançar o divino em uma forma maneirista-extática, como Emil Nolde faz186. Porém, para

Tillich, quando Nolde tentou pintar assuntos religiosos, ele poderia fazê- lo apenas em uma

forma que deve ser chamada de “maneirista-extática”. Isso fica bastante evidente em seu

The Pentecost187.

Em contrapartida, o expressionismo afirmativo baseia-se na idéia de que é

possível criar uma obra de arte com elementos de substância religiosa, podendo, neste

caso, os símbolos religiosos tradicionais serem, validamente, usados com propriedade. Isso

só pode ser concretizado se tais símbolos estiverem arraigados no ser humano. Por isso,

não se produz substância religiosa pintando religiosamente motivos religiosos. Esse estilo,

então, identifica, nos símbolos religiosos, não formas belas ou idealizadas, mas aponta para

as formas negativas.

Concomitante, Tillich fala sobre os símbolos representativos. Nestes, se

incluem os símbolos artísticos, conjuntamente com os símbolos históricos e religiosos. Os

símbolos representativos são por si mesmos símbolos genuínos, isto é, participam no poder

daquilo que eles representam e nascem de um encontro especial com a realidade188. Eles

abrem, por conseguinte, dimensões da realidade que não podem ser apreendidas de

nenhuma outra maneira. Cada nível é aberto por uma “pegada espiritual” através de

símbolos artísticos.

Num seminário sobre religião e arte, Tillich atrevidamente sugere que as

formas de arte mais expressivas na atualidade em conexão com a religião devem ser de

186 Ibid., p. 39. 187 NOLDE, E. The Pentecost, 1909. Stiftung Seebüll Ada und Emil Nold, Neukirchen. 188 TILLICH, P. On art and architecture , p. 133.

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vazio sagrado; um vazio que não finge ter em sua disposição símbolos que ele na verdade

não tem. Em todos os campos da vida atual precisamos ter algum vazio. Pode se tornar um

vazio desesperado, ou pode se tornar um vazio sagrado. Na base de um vazio sagrado algo

pode desenvolver-se189. Talvez, segundo Tillich, a cultura religiosa possa retornar e tentar

trazer essas formas simbólicas, porquanto ainda são expressivas, porque ainda não

morreram para nós. Elas podem parecer muito seculares; podem ser apenas formas, como

são os vitrais nas igrejas modernas, onde não há nenhuma figura, mas se isso for feito pode

surgir uma nova expressão artística de símbolos religiosos, posto que, o poder simbólico

genuíno numa obra de arte abre-nos suas próprias trilhas. 2.8. Esteticismo e arte

No Renascimento se deu a união teórica do belo com a arte. A natureza,

então, passou a ter lugar privilegiado na esfera da beleza, ou seja, a natureza passou a ser a

fonte do belo e esta tinha que ser revelada pelo pintor com as suas produções. A Arte se

sujeitou a uma beleza natural, evocando apenas aquilo que estava dentro de certos limites.

Já no século XVIII, admitiu-se “que essa beleza natural está esparsa nas coisas, onde se

oferece ao deleite do espírito por intermédio da vista e do ouvido. As obras de arte também

proporcionam o mesmo deleite àqueles que sabem encontrar nelas as marcas universais do

belo”190. Foi nesse século que surgiu uma nova disciplina filosófica, com o objetivo de

estudar o belo e suas manifestações na arte. Seu fundador, Alexander Gottlieb Baumgarten

(1714 – 1762) conceituou essa disciplina como ciência do belo e da arte.

A reflexão filosófica em torno da arte derivou, assim, para uma ciência que fez da apreciação da beleza o seu tema fundamental. [...] A nova ciência concebeu a arte como aquele produto da atividade humana que, obedecendo a determinados princípios, tem por fim produzir artificialmente os múltiplos aspectos de uma só beleza universal, apanágio das coisas naturais191.

Tillich critica a concepção de que a arte deve criar a beleza, valorizando o

belo como critério para esse fim. Se o belo significa uma criação cujas formas produzem

prazer imediato, apenas poucos e questionáveis estilos artísticos referem-se ao belo. Se o

belo significa o poder de mediar um âmbito especial de sentidos, pela transformação da

realidade, a arte deve ser bela. Comumente, o termo é usado no primeiro sentido. É a arte

pela arte, que não leva em conta o conteúdo e o sentido das criações artísticas em função

189 Ibid., p. 40. 190 NUNES, B. Op. cit., p. 10. 191 Ibid., p. 10.

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de sua forma, privando a arte de seu caráter existencia l192. Mas a transformação e a beleza

podem significar algo bastante diferente. Elas podem significar que o dado é transformado

de tal forma que se torna um símbolo do que transcende o dado.

Nenhuma expressão artística é possível sem a forma racional criativa, mas a forma, mesmo em seu maior refinamento, é vazia se não expressa uma substância espiritual. Inclusive a criação artística mais rica e profunda pode ser destrutiva para a vida espiritual se for recebida em termos de formalismo e esteticismo. As reações emocionais da maioria das pessoas contra o esteticismo são erradas em seu juízo estético, mas acertadas em sua intenção fundamental193.

De acordo com Tillich, a arte faz três coisas: expressa, trans forma, e

antecipa. Ela expressa o temor humano da realidade que ele descobre. Ela transforma a

realidade comum a fim de dar a ela o poder de expressar alguma coisa que não é ela

mesma. Ela antecipa as possibilidades de ser que transcendem as possibilidades dadas.

“Expressão” é a categoria universal que se refere a tudo o que é. Pode-se e deve-se ser

entendida filosoficamente. Mas, no campo do ser, à medida que as potencialidades se

tornam verdadeiras no mundo da aparência, o termo expressão pressupõe a distinção

daquilo que é expresso e em que é expresso. Objetivando uma melhor clareza desses

aspectos, Tillich distingue entre dois níveis da expressão artística. O primeiro refere-se à

expressão como característica geral da arte, à medida que expressa a qualidade da realidade

que transcende a mera objetividade e a mera subjetividade194. Isto é, a arte expressa um

nível da realidade e ao fazê- lo preenche nosso desejo de nos reunirmos com o sentido da

totalidade. O segundo nível em que o significado da expressão aparece é – já vimos

anteriormente – a forma expressionista de arte. Ela não apenas se expressa, mas também

mostra que é expressiva. A segunda característica da criatividade artística, Tillich chama de

“transformação”. Aqui, a arte precisa transformar a realidade dada em uma forma que

expresse a dimensão da realidade. Esta transformação é determinada por regras artísticas

que tem um lado universal e outro particular. Em muitos casos é duvidoso se uma forma de

transformação nega a arte como arte, ou apenas como um estilo especial da arte195.

Algumas pessoas dizem que o critério apropriado é que a realidade não é transformada,

mas imitada. Ainda assim, para o teólogo, não há nenhuma imitação que não seja

192 TILLICH, P. On art and architecture, p. 21. 193 Idem. Teologia sistemática , p. 103. 194 Idem. On art and architecture, p. 19. 195 Ibid., p. 9.

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transformação. Isto é, um espaço infinito separa as formas de arte mais imitativa da

realidade. As formas artísticas e as formas naturais nunca são as mesmas. Isso pode

introduzir um elemento de risco nas transformações artísticas. Mas, como assinala Tillich,

deve-se assumir o risco em todos os aspectos da vida.

A terceira característica é o que Tillich chama de “antecipação”. O que é a

antecipação? Para Tillich é a coragem de tirar a própria angústia, finitude, falta de

significado, e expressar a coragem em forma artística. Este é o elemento de antecipação,

até mesmo nas formas de artes mais distorcidas.

Diante desses elementos apresentados por Tillich, fica explicito que a arte

não somente caracteriza-se por produzir prazer, mas possibilita a abertura de esferas que

transcendem a realidade dada. Em sua Teologia Sistemática, Tillich assinala que a intenção

principal da função estética é expressar qualidades do ser que podem ser captadas somente

pela criatividade artística. Em outras palavras, uma obra de arte é autêntica, se expressa o

encontro entre a mente e o mundo, em que uma qualidade de outra forma de uma porção

do universo se une ao poder receptivo, de outro modo oculto, da mente.

No encontro estético se chega a uma união real entre o eu e o mundo. Existem graus de profundidade e autenticidade nesta união [...] Uma obra de arte é uma união entre o eu e o mundo dentro de limitações, tanto da parte do eu quanto da parte do mundo. A limitação da parte do mundo é que, embora se alcance, na função estética como tal, uma qualidade de outra forma oculta do universo, a realidade última, que transcende todas as qualidades, não é alcançada; a limitação da parte do eu consiste no fato de que, na função estética, o eu capta a realidade em imagens e não com a totalidade de seu ser. O efeito desta dupla limitação na função estética vai fazer com que a unidade de sujeito e objeto tenha um elemento de irrealidade. Ela é “aparente”; antecipa algo que ainda não existe196.

A ambigüidade da função estética é sua oscilação entre realidade e

irrealidade. A função estética não se restringe à criatividade artística, assim como a função

cognitiva não se limita à criatividade científica. Como nos propõe Tillich, o esteticismo

priva a arte de seu caráter existencial, substituindo a união emocional por julgamentos

imparciais de gosto e sutileza do crítico.

Ademais, como destaca Antonio Magalhães, a arte é a asseveração de algo

que de mais intenso pode ser experimentado na existência humana. “Benção porque se

revolta contra as atrocidades que se desenvolvem contra a vida. Deificação porque eleva 196 Idem. Teologia sistemática, p. 525.

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esse sentido mais profundo ao sentido último, a um telos da existência”197. Características

bem visíveis em Menino morto.

197 MAGALHÃES, A. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo, p. 56.

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CAPÍTULO 3

O DESNUDAR DE UMA OBRA DE ARTE

Pois que é o Belo senão o grau do Terrível que ainda suportamos e que admiramos porque, impassível, desdenha destruir-nos?

R. M. Rilke – I Elegia de Duíno

Sabe-se que a arte tornou-se, a partir de 1934, a fonte essencial do

pensamento heideggeriano, levando-o a entendê- la como fonte de revelação da verdade.

Contudo essa revelação traz em seu bojo, necessariamente, o ocultamento da mesma

verdade, posto que a verdade e a não-verdade acontecem juntas na obra de arte. Trava-se

aí, então, um embate entre ocultamento e revelação, em que no seio da arte advém um

lugar aberto, já que todo ente que vem ao nosso encontro e nos acompanha, mantém a

estranha posição da presença, na medida em que sempre está se retendo numa permanente

ocultação. Logo, na obra, o acontecimento da verdade está em obra. Ora, diante disso

perguntamos: qual a verdade que está posta em obra em Menino morto? É possível trazer a

linguagem esta verdade?

O objetivo de Heidegger é ter acesso à essencialidade da mensagem contida

na obra de arte. É de se considerar que a arte poderia ser refletida somente ontologicamente

por Heidegger, porquanto o sentido do Ser é a preocupação única e constante de seu

pensar. O sentido do Ser tem sua habitação na arte. Neste ponto, para a Estética, a arte é a

expressão do belo, entendido como aquilo que agrada por dar prazer. Para o filósofo

alemão, a arte é a abertura do ser do ente. Então devemos dar um novo conteúdo à palavra

“arte” e àquilo que ela significa198. Um novo conteúdo a partir de uma posição

fundamental para com o Ser, readquirida originalmente, pois, com tanta estética, já não

preservamos a vigência da arte.

198 HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica, p. 156.

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Talvez, como assinala Ernildo Stein, a influência do filósofo não tenha sido

tão grande no que se refere aos seus estudos sobre a arte, porque, no seu ensaio A origem

da obra de arte, ele fala somente da grande arte. Todavia, o que podemos entender por

grande arte lemos nas suas lições sobre a obra de Nietzsche:

A grande arte e suas obras são grandes em sua manifestação histórica e seu ser porque realizam, em meio à existência histórica do homem uma tarefa decisiva, a saber, tornar manifesto no modo de ser da arte o que é o ente em sua totalidade e o tornar manifesto como medida e guia e guardar a abertura na obra199.

Neste ponto, temos que considerar a obra Menino morto como uma grande

arte. Fazer uma leitura, desta obra, numa perspectiva heideggeriana, não se julga uma

tarefa fácil. Mas no intuito de captarmos “as verdades” que estão postas em obra na tela,

nos inserimos nesta tarefa, acreditando que no seu desvelamento mundos de sentidos são

instalados, naturalmente, na nossa relação com a pintura. Procuramos encontrar a essência

da mensagem contida nela. Vale lembrar que nunca alcançaremos a completa compreensão

da obra estudada, mesmo que empreguemos todo o nosso esforço para isso, já que, como

nos diz Heidegger, a obra é o lugar de luta entre o mundo e a terra. Assim, nessa dinâmica

de velamento e desvelamento tentaremos captar as verdades que são desnudadas a nós;

sempre tendo em vista que estamos diante de um fascinante enigma.

3.1. Relação da “coisa” com a obra de arte

Se quisermos definir o ponto de partida das reflexões heideggerianas sobre a

essência da obra de arte, temos que ter presente, segundo Gadamer, que havia um tempo

em que a filosofia do neokantismo tinha negligenciado a estética idealista. Esta, por sua

vez, marcara um sentido relevante à obra de arte; fruto de uma compreensão não conceitual

da verdade absoluta200. Esse movimento filosófico renovara a fundamentação kantiana do

conhecimento científico sem recuperar o horizonte metafísico de uma ordem teleológica do

ente, tal como estava contemplada na descrição da faculdade do juízo estético. Por isso, o

pensamento do neokantismo estava carregado de prejuízos peculiares com respeito aos

problemas estéticos. Isso se refletia claramente na exposição do tema tratado por

199 HEIDEGGER, M . apud STEIN, Ernildo. A caminho de uma fundamentação pós-metafísica, pp. 73-4. 200 GADAMER, H. G. La verdad de la obra de arte. In: Los caminos de Heidegger. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar. Acessado em 24/11/2006.

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Heidegger, começando com a pergunta pela limitação da obra de arte a respeito da coisa.

Fato que exige algumas considerações.

O ser humano dificilmente pergunta pela coisa em si e, para o filósofo

alemão, somente depois de pensar a coisa como coisa, é que se pode chegar à coisa em si

mesma. O conhecimento da ciência, para Heidegger, já anulou as coisas como coisas, ou

seja, tornou a coisa como nada. Na verdade, a coisa, como coisa, continua vedada e

proibida, continua reduzida a nada e, neste sentido, anulada. É o que aconteceu, e acontece,

de modo tão essencial, que não somente já não se permite nem se aceita que as coisas

sejam, como também que jamais tenham podido aparecer como coisas201.

Mas o que na verdade é uma coisa? Quando assim perguntamos, segundo

Heidegger, “queremos conhecer o ser-coisa (Dingsein), a coisidade da coisa (Dingheit).

Importa experienciar o caráter coisal (das Dinghaft) da coisa”202. Em sua conferência A

coisa (Das Ding), Heidegger usa como exemplo uma jarra para mostrar a união da terra, do

céu, dos mortais e dos deuses num quádruplo único. A jarra é uma coisa à medida e

enquanto coisifica, no sentido de reunir e recolher, numa unidade, as diferenças. Aqui,

Heidegger procura uma definição não-metafísica para as coisas existentes. A terra é o

sustentáculo da construção, a fecundidade na aproximação. O céu é o caminho do sol, o

curso da lua, o brilho das constelações, as estações do ano, a escuridão e densidade da

noite. Os imortais são acenos dos mensageiros da divindade. Por outro lado, é na regência

encoberta da divindade que Deus aparece, em sua vigência essencial. Os mortais são os

seres humanos. São assim chamados porque podem morrer. Morrer significa, para o

filósofo, saber a morte como morte e, somente o ser humano pode saber isso. Por isso, o

animal não morre, mas simplesmente finda, uma vez que não tem a morte nem diante de si,

nem atrás de si.

Isso fica bem evidente quando nos deparamos com a obra Menino morto203.

Nela aparece de forma bastante explicita essa característica mortal dos seres humanos. A

criança morta evoca um choro mórbido e petrificado num gesto de dor, em vista do fim

eminente. Trata-se da morte, destino comum de todos os seres humanos. Sendo assim, já

201 HEIDEGGER, M. A coisa. In: Ensaios e conferências, p. 148. 202 Idem. A origem da obra de arte, p. 14. 203 PORTINARI, C. Menino morto. Desenho a óleo/papel. Coleção particular, Rio de Janeiro.

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não estamos diante da morte do filho da mãe nordestina, mas sim diante da nossa própria

morte.

O desespero da figura transforma-se em nosso próprio desespero. Por isso,

concordo com Luz, quando afirma: o espectador, fruidor da obra de arte, sente a tensão

dionisíaca ao contemplar essa figura e se sente ligado ao destino daqueles personagens204.

Não importando se este sentimento seja por identificação ou desejo de ruptura.

Este estado de íntima ligação entre fruidor e herói é que promove esta atmosfera. Ela é suscitada pelo espectador no instante em que ele se associa ao destino do herói. O clímax desta tensão culmina com os sentimentos de terror e piedade. Terror pelo destino, piedade pelo herói, e isto só é possível quando o fruidor participa daquele destino, apiedando-se de si próprio205.

Em Ser e tempo, Heidegger destaca que a morte dos outros se torna algo

bastante penetrante; o findar da presença é “objetivamente” acessível. “Sendo

essencialmente ser com os outros, a pre-sença pode obter uma experiência da morte”206.

Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fenômeno ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser da pre-sença (a vida) para o modo de não-ser-mais-pre-sente [...] A morte se desentranha como perda e, mais do que isso, como aquela perda experimentada pelos que ficam207.

Na tela, não só a criança está morta, mas a terra também. Não existe

possibilidade de vida, seja de qualquer natureza. Tudo está ressequido. Tudo cheira a

204 LUZ, A. Op. cit., p. 99. 205 Ibid., p. 14. 206 HEIDEGGER, M. Ser e tempo – parte II, p. 17. 207 Ibid., pp. 18-19.

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morte. Não há nenhum significante de vida, manifestando-se apenas o significado da

morte. Só existe vida nos cinco corpos que se arrastam.

Semelhantemente, como assinala Heidegger, unindo-se por si mesmo uns

com os outros, céu e terra, mortais e imortais pertencem, em conjunto, à simplicidade da

quadratura de reunião208. A coisa, conseqüentemente, reúne em si mesma os símbolos

humanos e sagrados, cada um refletindo ao seu modo o ser dos outros. De acordo com

James Perotti, isso só pode ser entendido como narração mítico-poética para mostrar o

mundo primitivo. Isto é, Heidegger retoma essas experiências primitivas para nos dizer,

neste caso, como a coisa pode ser entendida enquanto lugar onde o logos se recolhe em vez

de ser simplesmente o objeto metafísico, a res, retornando assim aos modos pré-

metafísicos do pensamento. Ele procura recuperar as experiências primordiais do mundo,

da abertura do ser209. Ora, pensar a coisa, como coisa, no pensamento heideggeriano,

significa deixar a coisa vigorar e acontecer em sua coisificação, a partir da mundanização

de um mundo. Essa mundanidade “pode ser também entendida como a fala do logos.

Nossa resposta poria em palavras de que maneira tudo é um”210, isto é, o modo em que a

terra e o céu, os mortais e os imortais habitam juntos. Para Heidegger, logos significa

primordialmente tornar patente ou manifesto (offenbar machen) aquilo de que se fala no

discurso (in der Rede). É só porque mostra as coisas que o discurso pode ser verdadeiro ou

falso.

A coisa, dentro dessa perspectiva, não está “na” proximidade, como se esta

fosse um continente. Proximidade só se dá e acontece na aproximação cumprida pela

coisificação da coisa. Com efeito, na coisificação da coisa, perduram terra e céu, mortais e

imortais. Isso, para Heidegger, faz com que na distância própria de cada um aconteça uma

proximidade recíproca de união. Essa proximidade do distante não descaracteriza os

participantes dessa união, mas acontece uma preservação da própria distância.

No ano de 1930, Heidegger desenvolve uma visão mais complexa da coisa

(Ding), distinguindo três sentidos da palavra: o primeiro é o ser-simplesmente-dado: pedra,

um pedaço de madeira, alicates, relógios etc. O segundo tem um sentido mais extenso que

208 Idem. A coisa. In: Ensaios e conferências, p. 156. 209 PEROTTI, J. Logos, mundo, coisa. in: Heidegger on the divine. Publicado em 1974 pela Ohio University Press. Tradução provisória de Jaci Maraschin, s/n. 210 Ibid.

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inclui pedra etc, mas também acontecimentos: planos, resoluções, pensamentos,

temperamentos, feitos, o histórico. O terceiro tem um sentido mais extenso ainda,

incluindo um e dois, mas também qualquer coisa que seja um algo, que não seja nada: o

número cinco, sorte, coragem.

Por conseguinte, a obra Menino morto, assemelhando-se a todas as obras de

arte, tem um caráter de coisa, porquanto é justamente o seu caráter de coisa que se torna

manifesto para nós. Assim, a cor cinza, a cor azulada, a cor avermelhada, minúsculas

pedras soltas no chão..., demonstram a inexistência da obra sem esses elementos,

porquanto eles estão inseridos nela e são esses elementos que a fazem uma obra de arte,

havendo a sua própria inexistência sem eles. Todavia apesar de ter esse caráter de coisa, a

tela nos insere num mundo de significados e nos leva a uma dimensão de abertura que está

para além de uma mera compreensão de sua composição. Ela nos apresenta algo de

desconhecido. Algo que perpassa o próprio caráter coisal. Para Heidegger é justamente

essa capacidade de apresentar um “desconhecido”, que constitui o artístico.

Destarte, apesar da obra de arte ser fabricada pelo ser humano – diferente do

apetrecho que é fabricado expressamente para ser utilizado e usado – ela tem uma auto-

suficiência própria. Por isso, a alegoria e o símbolo “fornecem o enquadramento em cuja

perspectiva se move desde há muito a caracterização da obra de arte”211. Em conformidade

com Thais Beaini, unindo alegoria e símbolo, Heidegger restaura a unidade da obra de arte.

O símbolo é sinal de abertura, considerando-se que evoca algo abstrato, ausente. Nele, o

significado a ser revelado surge espontaneamente, reunindo a coisa àquilo que ela substitui.

O símbolo, retratado por Heidegger, visa a harmonia e a totalidade, “contudo, como o

sentido somente tem significado no âmbito da ausência, do velamento, da terra – que não

podem ser menosprezados – a obra de arte requer a alegoria. Assegura-se, assim, o acesso

à verdade do ser”212. Por causa disso, para Beaini, a arte, resgatando a dimensão simbólico-

sacramental das coisas, é a passagem do fechamento – da subjetividade da terra – ao

encontro com o mundo. A obra de arte não é obra por ser confeccionada, mas devido à

possibilidade de operar o Ser em um ente. “Operar significa aqui pôr em obra, na qual,

como no que aparece, chega a brilhar a physis, o brotar imperante, que vigora”213. A obra

211 HEIDEGGER, M. A origem da obra e arte, p. 13. 212 BEAINI, T. Heidegger: arte como cultivo do inaparente, p. 114. 213 HEIDEGGER, M. Introdução à metafísica, p. 182.

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de arte é alegoria mediante concepções epocais que postularam a finitude humana e a

corrupção das coisas da natureza.

Cabe lembrar que, etimologicamente a palavra símbolo provém do grego

sym-ballo, o sym-ballo significa juntar duas coisas. Segundo José Croatto: “era um

costume grego, que ao se fazer um contrato, fosse quebrado em duas partes um objeto de

cerâmica, então cada pessoa levava um dos pedaços. Uma reclamação posterior era

legitimada pela reconstrução (pôr junto = symballo) da cerâmica destruída”214. Símbolo,

nesse caso, denota uma união de partes. Esta união, para os gregos, permitia reconhecer

que a amizade permanecia intacta. Este algo especial representa-se como um pedaço do ser

que promete completar o algo a ele correspondente, a fim de sanar os efeitos da quebra. No

que se refere à arte, essa “significação” não é parecida com a da religião formativa da

burguesia tardia, presa a condições sociais, especiais, mas parece, segundo Gadamer, que a

experiência do belo e em especial do belo no sentido da arte, é a evocação de uma possível

ordem sadia, onde quer que ela esteja215. A essência do simbólico não consiste num alvo

significativo que se possa atingir intelectualmente, mas contém a sua significação em si

mesma.

Se o símbolo só tem significado no âmbito da ausência, o que está ausente

em Menino morto? O mundo dos retirantes? Como a tela mostra a abertura para essa

realidade? É claro, dentro de uma perspectiva heideggeriana, podemos aceder ao mundo

das figuras destacadas na tela com mais clareza se dele fizéssemos parte, e alcançar,

naturalmente, seu universo se estivéssemos dentro dele, como se a obra de arte erigisse

uma nova dimensão da abertura, por meio da qual o Ser é alcançado originariamente. A

obra Menino morto é capaz de abrir para nós, ainda hoje, a verdade deste povo que a

construiu. A partir dela podemos vislumbrar seu mundo, a própria medida de sua

habitação, o modo como ele vinha a conhecer e a constituir a sua existência sobre a terra.

Já que a arte erige e faz aparecer, num sentido acentuado, o Ser, como ente,

na obra, a arte vale como o poder-pôr em obra, simplesmente dito, com techne216. O saber

214 CROATTO, J. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia da religião, p. 85. 215 GADAMER, H,G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 51. 216 Heidegger traduz techne por “saber”, mas esse saber é precisamente um ver, ultrapassando o que é dado de modo objetivo e assim se torna princípio e origem de permanência e consistência. Por conseguinte, techne não significa nem arte, nem habilidade, nem técnica no sentido moderno.

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consiste nesse abrir e manter aberto reflexivo e operante. Devido ser um tal saber é que a

arte é techne, e não por pertencer, à sua efetivação, habilidades técnicas, instrumentos e

materiais de obras. “A técnica não apenas coloca todos os entes como algo elaborável no

processo de produção, como também distribui os produtos da produção através do

mercado”217. A técnica destitui a obra de arte de seu caráter simbólico, pois visa apenas o

consumo. É necessário, para o filósofo alemão, romper com essas concepções e retornar ao

originário. Isto significa buscar o Ser enquanto Ser. Deixar o Ser dar-se configura-se a

tarefa da arte. Por isso, Heidegger retorna ao pensamento “pré-socrático”, especialmente

Parmênides e Heráclito218, caracterizado pela vinculação essencial entre o Ser e a arte que

o manifesta. É a experiência do Ser enquanto tal que propicia a consonância aos entes, bem

como a sua harmonia com os seres humanos. Salienta-se, assim, a importância da alétheia,

da physis, do logos. A arte corresponde à physis, mesmo assim, não é produção nem

imagem do já presente, mas physis e techne se copertencem de uma forma misteriosa.

No começo do destino ocidental na Grécia, de acordo com Heidegger, as

artes ascenderam às alturas mais elevadas do desencobrimento concedido. “Elas faziam

resplandecer a presença dos deuses e o encontro entre o destino de deuses e homens. A arte

chamava-se apenas techne. Era um des-encobrir-se único numa multiplicidade de

desdobramentos. Techne é produção enquanto desvelamento, criação, como poiesis. A arte

era piedade, integrada na regência e preservação da verdade”219. As artes não provinham

do artístico, tampouco provocavam prazer estético, elas não eram setor de uma atividade

cultural. É que também se pode representar a arte como um setor da atividade cultural.

Neste caso, nada se percebe de sua essência.

Encarada em sua essência, a arte é uma sagração e um refúgio em que, cada vez de maneira nova, o real presenteia o homem com o esplendor, até então, encoberto de seu brilho a fim de que, nesta claridade, possa ver, com mais pureza, e escutar, com maior transparência, o apelo de sua essência” 220.

3.2. A obra de arte e a manifestação de seu caráter coisal: considerações sobre a fenomenologia

217 HEIDEGGER, M. Para que poetas, p. 336. 218 Tanto Parmênides quanto Heráclito consideraram a questão do Ser e da união de todas as coisas no Ser. 219 HEIDEGGER, M. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências, p. 36. 220 Idem. Ciência e pensamento do sentido. In: Ensaios e conferências, p. 40.

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Como uma obra de arte pode manifestar o seu caráter coisal? Heidegger

responde à questão dizendo que é preciso que tudo o que se queira entrepor entre nós e a

coisa deve ser afastado. Neste ponto de vista – considerando a obra de arte como uma coisa

é preciso deixá- la livre, em seu estar-em-si. Somente quando uma coisa está livre, ela tem a

possibilidade de manifestar diretamente o seu caráter coisal, isto é, na medida em que ela

está livre de agressões nas quais perde suas características, passando a ser aquilo que o

indivíduo quer que ela seja. Por isso, Heidegger frisa a necessidade de a obra de arte ser

vista como ela é, a saber, como o lugar da luta entre a revelação e o ocultamento da

verdade. “Devemos voltar-nos para o ente, pensá-lo em si mesmo, no seu ser, mas, ao

mesmo tempo, deixá- lo repousar em si mesmo, na sua essência”221. Sendo assim, para

Heidegger, a coisidade na obra nunca poderá ser encontrada, enquanto o puro estar-em-si

mesma (reine Insichstehen) da obra não se tiver claramente manifestado222, já que a

acessibilidade da obra só é possível quando ela é retirada de todas as relações com aquilo

que é outro e não ela. Isso a faz repousar por si própria. Há uma liberdade para o puro

estar-em-si-mesma.

Grande é a dívida de Heidegger para com Edmund Husserl. Neste não

encontrou somente a fenomenologia, enquanto uma abertura à compreensão pré-conceptual

dos fenômenos, mas também, um instrumento metodológico capaz de exibir os processos

do ser na existência humana, de tal modo que esta, e não a ideologia de cada um, pudesse

tornar-se patente223. O próprio Heidegger chega a afirmar, em sua conferência La pregunta

fundamental por el ser mismo, que só através do seu encontro com Husserl, cujos escritos

já conhecia, de antes, pode lograr uma relação mais viva e frutífera com a ação efetiva da

pergunta e o descrever fenomenológico224. Entre os dois existem pontos de divergência; se

para Husserl o objetivo era tornar visíveis as operações da consciência humana, a ela

remetendo todos os fenômenos (subjetividade transcendental), Heidegger percebe nesta

compreensão pré-conceitual o meio vital do ser-no-mundo-do-homem, alcançando na

história e na temporalidade as pistas indicativas da sua natureza, defendendo a facticidade

como um problema essencial, que não poderia resumir-se num problema de conhecimento

ou num dado de consciência. Entenda-se facticidade como a maneira pela qual os seres e

221 Idem. A origem da obra de arte, p. 23. 222 Ibid., p. 31. 223 ESPÓSITO, V. Hermenêutica: estudo introdutório. In: Cadernos da sociedade de estudos e pesquisa qualitativos, p. 92. 224 HEIDEGGER, M. La pregunta fundamental por el ser mismo. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar. Acessado em 24/11/2006.

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os entes estão no mundo. Neste ínterim, Heidegger alia-se ao pensamento grego antigo,

principalmente ao do filósofo Aristóteles, interpretando a descrição fenomenológica

enquanto intuição das essências como logos. Heidegger tenta revelar, a partir da

fenomenologia, o significado originário do fenômeno.

Deve-se manter como significado da expressão “fenômeno” o que se revela

e o que se mostra em si mesmo. Os “fenômenos” constituem a totalidade do que está à luz

do dia ou se pode pôr à luz. Ora, o ente pode-se mostrar por si mesmo de várias maneiras,

segundo sua via e modo de acesso, existindo até a possibilidade de o ente se mostrar como

aquilo que, em si mesmo, ele não é. A fenomenologia diz, então: deixar e fazer ver por si

mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. O mostrar-se não é

um mostrar-se qualquer e, muito menos, uma manifestação.

O ser dos entes nunca pode ser uma coisa “atrás” da qual esteja outra coisa “que não se manifesta” [...] “Atrás” dos fenômenos da fenomenologia não há absolutamente nada, o que acontece é que aquilo que deve tornar-se fenômeno pode velar. A fenomenologia é necessária justamente porque, de início e na maioria das vezes, os fenômenos não se dão. O conceito oposto de “fenômeno” é o conceito de encobrimento225.

Deixar-ser, para Heidegger, significa o entregar-se ao ente. Por sua vez, isso

não deve ser compreendido apenas como simples ocupação, proteção, cuidado ou

planejamento de cada ente que se encontra ou que se procurou. Deixar-ser significa

entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece226. O deixar-ser

– a liberdade – é, em si mesmo, exposição ao ente, isto é, ek-sistente. A essência da

liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como exposição ao ente

enquanto ele tem o caráter de desvelado. Ainda incompreendida, a ek-sistência do homem

historial começa naquele momento em que o primeiro pensador é tocado pelo

desvelamento do ente e se pergunta o que é o ente. Nesta pergunta, para Heidegger, o ente

é pela primeira vez experimentado em seu desvelamento. O ente, em sua totalidade se

revela como physis, “natureza”, que aqui não aponta um domínio específico do ente, mas o

ente enquanto tal em sua totalidade, percebido sob a forma de uma presença que eclode227.

Este é o deixar-ser ek-sistente que desvela o ente, acontecendo quando a essência da

verdade se desvelou como liberdade.

225 HEIDEGGER, M. Ser e tempo, p. 66. 226 Idem. A essência da verdade, p. 32. 227 Ibid., p. 37.

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De acordo com Stein, a fenomenologia hermenêutica e a ontologia

fenomenológica de Heidegger foram resultados de uma manobra de superação da

metafísica que produziu o “encurtamento hermenêutico”228. A analítica existencial, então,

pretende descrever os três modos fundamentais do estar-aí, enquanto ser-no-mundo: a

representação do ente puramente subsistente (Vorhandenes), o lidar com o ente disponível

(Zuhandenes) e o compreender-se em direção da existência229. Heidegger pretende

“fundamentar” descrevendo (fenomenologia) a questão da racionalidade. Esta, em

conseqüência do “encurtamento hermenêutico”, não se pode produzir a partir do espaço

metafísico (mundo natural e teologia natural). É esse espaço metafísico que Heidegger visa

desmascarar com sua “destruição da metafísica”.

Heidegger mostra os diferentes modos possíveis de encobrimento dos

fenômenos, a saber, um fenômeno pode-se manter encoberto por nunca ter sido descoberto.

Dele não há nem conhecimento nem desconhecimento. Um fenômeno pode estar

entulhado. Isto significa: antes tinha sido descoberto, mas depois, voltou a encobrir-se.

Este encobrimento pode ser total ou, como geralmente acontece, o que antes se descobriu

ainda se mantém visível, embora como aparência. Há tanta aparência quanto “ser”. Este

encobrimento na forma de “desfiguração” é o mais freqüente e o mais perigoso; as

possibilidades de engano e desorientação são particularmente severas e persistentes.

Benedito Nunes afirma que os significados de logos, alétheia e

phainómenon forneceram a Heidegger as três intuições decisivas para a questão do Ser e

para o vínculo ontológico da ontologia com o pensamento grego. É que as significações

interpenetrantes dessas palavras foram, com a dimensão de um arcabouço ontológico da

língua, prévio à reflexão, o travejamento das acepções do ser distinguidas por Aristóteles,

sobre que se firmou o estatuto primordial da categoria de substância, da ousía, na

investigação metafísica do ente enquanto ente230. Os fenômenos incluem a “totalidade do

que está ou pode pôr-se à luz, o que os gregos identificaram às vezes simplesmente como

tà ónta (os entes)” – em outras palavras, a totalidade do que se dá a ver, seja a inspeção

ocular, sejam os olhos do espírito 231. A forma preliminar de verdade de desocultamento

228 Stein entende por essa expressão a inauguração de um novo paradigma na filosofia, que se determina basicamente por uma delimitação de um conhecimento possível na filosofia, implicando na exclusão de um discurso sobre o mundo natural e sobre a teologia natural e que passa a constituir o “mundo hermenêutico”. 229 STEIN. E. Prefácio. In: Heidegger: a arte como cultivo do inaparente, p. 12. 230 NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger, p. 59. 231 Ibid., p. 59.

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(Entborgenheit) dos entes, seria a aísthesis, a simples percepção. O movimento interno do

método fenomenológico, enfim, pressupõe uma experiência de desvelamento ou de

desocultação do ser. Para Nunes, não há para a fenomenologia outro tema senão o

ontológico. A fenomenologia é ontologia, e como ontologia, uma Hermenêutica

fenomenológica. Porquanto em sua nova possibilidade, a descritividade do método terá o

alcance de um trabalho de interpretação, de acesso ao sentido.

Descrever o fenômeno, o ser dado nas vivências, consiste em explicar o sentido que nelas se encobre, assim como se explica, por meio de uma interpretação, o significado original de um texto, de uma obra de arte ou de um produto histórico, em geral encoberto nas significações, e que o esforço hermenêutico desembaraça ou restitui232.

Então, retraduzida em grego, de acordo com a orientação do pensamento

ontológico que forma o seu veio histórico, a fenomenologia é, reiterando, um légein

(apophaínesthai) tà phainómena, um permitir ver o que se mostra, tal como se mostra

efetivamente por si mesmo. Destarte, o mostrar fenomenológico que somente pode ocorrer

por si mesmo como o liberar de um fundo que mostra esse fundo, nunca é estranho ao

Dasein. O que é o Dasein? “Dasein” é uma palavra-chave do meu pensar, diz Heidegger,

“por isso ela é causa de graves erros de interpretação. ‘Dasein’ não significa para mim

exatamente ‘eis-me’, mas, se é que me posso exprimir num francês sem dúvida impossível:

ser-o-aí e o-lá significa exatamente alétheia, desvelamento-abertura”233. Em suma,

Heidegger distingue três modos de conceber a coisa desenvolvida pela tradição: Ela é

portadora de propriedades; ela é unidade de uma multiplicidade de sensações; ela é matéria

formada.

3.3. Um par de sapatos

Para mostrar a obra como abertura para a realidade, Heidegger se utiliza de

um quadro de Van Gogh, Um par de sapatos234, que permite ver os sapatos de uma

camponesa. Mas o que há de especial para se ver num par de sapatos? Um apetrecho com

essas características serve para calçar os pés. “Consoante a serventia, se para o trabalho no

232 Ibid., p. 60. 233 HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo , p. 48. 234 GOGH, V. Um par de sapatos, 1888, Arles.

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campo, ou para dançar, assim diferem matéria e forma”235. O ser-apetrecho do apetrecho,

então, repousa em sua serventia. Só assim, eles são o que são, e tanto mais autenticamente

o são, quando a camponesa, durante a lida, pensa neles, “ou olha para eles ou até mesmo os

sente. Ela está de pé e anda com eles. Neste processo de uso do apetrecho, o caráter

instrumental de apetrecho deve realmente vir ao nosso encontro”236.

Aqui, é apenas visível um par de sapatos e nada mais. Não obstante a esse

fato, Heidegger faz uma interpretação muito peculiar desse par de sapatos, apresentada a

seguir.

Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço dos passos do trabalhador. Na gravidade rude e sólida dos sapatos está retida a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro está a humildade e a fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela noite que cai. No apetrecho para calçar impera o apelo calado da terra, a sua muda oferta do trigo que amadurece e a sua inexplicável recusa na desolada improdutividade do campo no inverno. Por este apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia no nascimento iminente e o tremor ante a ameaça da morte. Este apetrecho pertence à terra e está abrigado no mundo da camponesa. É a partir desta

235 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 25. 236 Ibid., p. 25.

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abrigada pertença que o próprio produto surge para o seu repousar-em-si-mesmo237.

O quadro de Van Gogh ao mostrar os sapatos da camponesa, torna visível o

mundo dela. Pelo quadro que exibe apenas um par de sapatos velhos faz-se conhecer todo

o mundo ao qual ele pertence.

De semelhante modo, as riquezas das metáforas da tela Menino morto, suas

translações plásticas apontam para o ser humano preocupado com a sua existência. Seus

conflitos e dramas. Seus sonhos e desesperanças. Suas necessidades e suas tristezas não só

diante da morte, como também diante de um futuro incerto. A tela joga-nos diante de um

mundo completamente complexo. Seus pés descalços e doloridos deixam para trás as terras

secas, os urubus famintos, as ossadas brancas do gado; mortos antes do tempo. “Caminham

vacilantes como que, se por algum paradoxo, pudessem marchar parados. Vão enquanto

buscam permanecer. Morrem enquanto ficam para viver”238. Impõe-se assim o dualismo

que, plasticamente, pode ser reconhecido por alguns aspectos, como: o vazio dos olhos

buscando divisar novos espaços, os corpos encurvados; tudo isto nos indica o símbolo das

retiradas, da evasão daquela gente. Já os pés amplamente apoiados demonstram a enorme

vontade de ficar. Chega-se a um resultado catártico de afastamento e aproximação que se

manifesta neste dualismo. Todos em busca de uma “terra prometida”, mas ao mesmo

tempo extremamente tristes por deixar suas terras.

As lágrimas petrificadas na tela representam simbolicamente o existir

humano marcado pelo sofrimento. Lágrimas que parecem ser pedaços do corpo que são

lançados para fora, como símbolo de um protesto. Os braços cadavéricos da moça pegando

na cabeça do pequeno morto, como um sinal de despedida por alguém que não resistiu a

tanta dor. Corpos ressequidos, massacrados pelo tempo.

Roupas velhas, símbolo de um trabalho sem descanso e um estilo de vida de

parcos recursos. Aqui, esses apetrechos, que servem somente para a serventia, nos revelam

um mundo, realidade velada na cotidianidade. Essa abertura para a realidade ausente se faz

presente ao contemplarmos essa tela, já que o caráter de obra de Menino morto existe

enquanto abertura para além do instrumento.

237 Ibid., p. 16. 238 LUZ, A. Op. cit., pp. 91-92.

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De acordo com Heidegger, a obra constitui-se como abertura para o ente,

como janela que deixa ver o que na cotidianidade se vela. Assim, os apetrechos contidos na

tela Menino morto tornam patentes o lugar de onde ele recebe sua existência, e esse lugar

só é visível pela obra. Se os apetrechos se referirem apenas a um objeto individual, se eles

aparecerem somente como algo dado, então, o quadro abandonará o seu caráter de obra,

pois não abrirá para nada além do instrumento. O quadro só se constitui enquanto obra pelo

abrir-se da essência do ser-apetrecho, que remete ao mundo dos retirantes. Essa abertura

que a obra propicia é o lugar próprio da revelação do ente. Os apetrechos, como já foi

destacado acima, só valem na sua proficuidade, ou seja, na sua serventia. Mas esta repousa

na plenitude de um ser essencial do apetrecho. Heidegger denomina isso de solidez

(Verlässlichkeit). Voltamos aqui, à interpretação que Heidegger faz do quadro de Van

Gogh. Para ele, é graças à solidez que a camponesa é confiada ao apelo calado da terra,

graças à solidez do apetrecho a camponesa está certa do seu mundo239. Ademais,

Na obra de arte, põe-se em obra a verdade do ente. “Pôr” significa aqui erigir. Um ente, um par de sapatos de camponês, acede na obra ao estar na clareira do seu ser. O ser do ente acede à permanência do seu brilho. A essência da arte seria então o pôr-se-em-obra da verdade do ente (das Sich-ins-Werk-Setzen der Wahrheit des Seienden)240.

Assim sendo, para o filósofo alemão, o que está em obra na obra é a

abertura do ente no seu ser – o acontecimento da verdade. Por outro lado, o apetrecho tem

certa afinidade com a obra de arte, já que ambos são criados pelas mãos dos seres

humanos. Mas a obra de arte tem a sua peculiaridade e caracteriza-se pela sua auto-

suficiência, assemelhando-se a mera coisa. O “mero” significa o despojamento do caráter

da serventia e da fabricação, como apetrecho. O apetrecho tem simultaneamente uma

posição intermediária peculiar entre a coisa e a obra. Na obra de arte, reiterando o que

Heidegger disse, o acontecimento da verdade está em obra. A referência feita por

Heidegger ao quadro de Van Gogh tem como foco principal nomear este acontecimento:

todo o mundo da vida campesina, conseqüentemente, está nestes sapatos. Esta é a

realização da arte que faz aparecer aqui a verdade do ente. Realidade que podemos

perceber claramente na tela de Cândido Portinari, em que o amor à terra é captado pelas

pessoas todas presas ao chão. “Ilustram esse não caminhar. Trazem o gosto da terra

239 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 26. 240 Ibid., p. 27.

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guardado em cada um, como prova do amor desmedido que os levaria à auto destruição,

caso resolvessem permanecer”241. O mundo dos retirantes é desvelado.

3.4. Sobre a essência da verdade

A discussão sobre o conceito de verdade tem uma longa trajetória,

extraordinariamente em sua expressão ocidental. Heidegger, em grande medida, vinculado

a essa tradição, dá um grande valor a essa discussão, ocupando-se contundentemente na

abordagem sobre a verdade.

Sabe-se que o filósofo Platão (427 – 374 a.C.), discípulo de Sócrates,

suscitou, no seu diálogo A República, um confronto que se tornou decisivo, pelas

implicações filosóficas que encerra, entre arte e realidade. Levando em conta o caráter

representativo da pintura e da escultura, o filósofo conclui, nesse diálogo, não só que essas

artes estão muito abaixo da verdadeira beleza que a inteligência humana se destina a

conhecer, como também que, em comparação com os objetivos da ciência é supérflua a

atividade daqueles que pintam e esculpem. “Portanto, a arte de imitar está bem longe da

verdade, e, se executa tudo, ao que parece, é pelo fato de atingir apenas uma pequena

porção de cada coisa, que não passa de uma aparição”242. Deste modo, a pintura não é a

imitação da realidade, mas uma imitação da aparência. Platão dá aos poetas uma posição

privilegiada, separando-os dos artífices, tanto os artesãos, propriamente ditos, quanto os

pintores e escultores, que trabalham com as mãos, usando a matéria. De todas as artes, a

poesia é a que maior afinidade tem com a inteligência e a que mais se aproxima do objeto

da atividade teórica do espírito.

A arte, nesta estrutura de pensamento, é vista como a imagem de uma

imagem. Ela transmite apenas impressões, não conduzindo mais ao verdadeiro. Fato que o

leva a separar tais atividades da própria poesia, já que, segundo Platão, a poesia toma uma

forma privilegiada, se situando no domínio das revelações místicas e filosóficas. Pintura e

escultura, por outro lado, seduzem os indivíduos pela sua falsa beleza, desviando-os da

contemplação intelectual do verdadeiro e do bem. Nunes assinala que Platão suscitou três

ordens de problemas acerca das artes em geral. A primeira abrange a questão da essência

das obras pictóricas e escultóricas, comparadas com a própria realidade; a segunda, a

241 LUZ, A. Op. cit., p. 99. 242 PLATÃO. A república, p. 296.

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relação entre elas e a beleza; e a terceira, finalmente, diz respeito aos efeitos morais e

psicológicos da música e da poesia243. Dentro de tal contexto, para Nunes, a atividade

artística não fica isolada do problema mais geral da realidade e do conhecimento, isto é, do

sentido da beleza e da vida psicológica e moral. Vale explicitar a importância de Platão,

posto que teve o mérito de transformar em problema filosófico a existência e a finalidade

das artes. Com efeito, já não bastava mais a simples fruição da pintura, da escultura e da

poesia. Agora, elas também passam a construir o objeto de investigação teórica. É o

pensamento racional que as interpela sobre o seu valor, sua razão de ser e o seu lugar na

existência humana. “A forma como a estética considera antecipadamente a obra de arte

está sob o domínio da interpretação tradicional de todo o ente enquanto tal”244. Os ilusórios

conceitos habituais devem ser postos de lado.

A verdade, para Platão, é concebida como adequação do enunciado à coisa,

materializando, desta maneira, a teoria da verdade como correspondência. Esta é a

conceituação tradicional da verdade. Tal maneira de entender a verdade é determinada pela

proximidade com o objeto a que o ser humano se refere e ao qual ele pensa. Heidegger

tenta superar essa visão, mostrando que só é possível a aplicação do sentido de adequação

do enunciado à coisa, quando a coisa já se desvelou para nós. A verdade não é algo do qual

o indivíduo pode estar certo num sentido cartesiano; a verdade válida para todos os tempos

e lugares. O Cogito, então, como certeza se aplica para todos os lugares e todos os tempos.

Dizia René Descartes: “todo o meu intuito tendia, ao contrário, a me certificar, a afastar a

terra movediça e a areia, para descobrir a rocha e a argila”245. Assim, depois de passar por

todo um processo de dúvida, Descartes chega ao Cogito como fundamento de tudo: penso,

logo existo. Esse é o ponto principal para as suas construções e a base para se fazer ciência.

Em Ser e tempo (Sein und Zeit), Heidegger sintetiza o conceito tradicional

da essência da verdade, a saber: 1 - o “lugar” da verdade é a proposição (o juízo); 2 - a

essência da verdade reside na “concordância” entre o juízo e seu objeto e; 3 - Aristóteles, o

pai da lógica, não só indicou o juízo como o lugar originário da verdade, como também

colocou em voga a definição da verdade como concordância. Para o filósofo, a proposição

é verdadeira quando descobre o ente em si mesmo, ou seja, quando “deixa ver” o ente em

seu ser ao estar descoberto. A verdade não possui a estrutura de uma concordância entre

243 NUNES, B. Introdução à filosofia da arte, p. 8. 244 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 30. 245 DESCARTES, R. Discurso do método, p. 39.

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conhecimento e objeto, no sentido de uma adequação entre um ente (sujeito) e um outro

ente (objeto)246. Heidegger propõe, por conseguinte, a volta à tradição mais antiga do

pensamento grego de alétheia – desocultação. Com efeito, a verdade, para Heidegger, não

se mostra no juízo, mas no Seinlassen des Seienden – no “deixar-ser” do ente.

Assim, o verdadeiro, seja uma coisa verdadeira ou uma proposição

verdadeira, é aquilo que está de acordo, que concorda. Se verdadeiro e verdade significam,

aqui, estar de acordo, podemos pensar nesta dinâmica de duas maneiras. De um lado, a

concordância entre uma coisa e o que dela previamente se presume, e de outro lado, a

conformidade entre o que é significado pela enunciação e a coisa. Este duplo caráter da

concordância traz à luz a definição tradicional da essência da verdade, Veritas est

adaequatio rei et intellectus. Isto pode significar: verdade é a adequação da coisa com o

conhecimento. Mas pode se entender também assim: verdade é a adequação do

conhecimento com a coisa. Ordinariamente, a mencionada definição é apenas apresentada

pela fórmula: veritas est adaequatio intellectus ad rem247. Contudo a verdade assim

entendida, a verdade da proposição, somente é possível quando fundada na verdade da

coisa, a adaequatio rei ad intellectum. Estas duas concepções da essência da veritas

significam um conformar-se com, ou seja, a verdade é pensada como conformidade.

Este tratamento do termo, como assinala Heidegger, incorre num duplo erro.

Primeiro, que o sujeito, enquanto condicionado historicamente e encoberto pela história da

compreensão do ser na tradição filosófica, não pode se estabelecer como medida da

verdade. O segundo erro da compreensão de verdade vigente na metafísica tradicional

reside no fato de que ela ignora a ocultação como sendo essência da verdade. Para

Heidegger, a verdade não deve ser discutida nem concebida apenas como qualidade de

proposições verdadeiras ou falsas, enunciadas pelo sujeito sobre o objeto, mas numa

perspectiva muito mais ampla, como condição de possibilidade de tais proposições, como

“verdade originaria”248. A essência da verdade, concebida nesta construção, é

antepredicativa, antecedendo e possibilitando enunciados falsos e verdadeiros. A busca

pela verdade, para Heidegger, “não é uma busca pela certeza sobre aquilo que já sabemos

246 HEIDEGGER, M. Ser e tempo, p. 287. 247 Idem. Sobre a essência da verdade, p. 22. 248 Cf. STEIN, Ernildo. Seminário sobre a verdade: lições preliminares sobre o parágrafo 44 de Sein und Zeit. pp, 20-9.

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ou cremos, mas uma busca pela descoberta de âmbitos ainda desconhecidos”249. O que

designamos por verdadeiro é apenas um ponto de vista parcial sobre a ve rdade. Não há

verdade imutável, há somente verdades temporais que se nos constituem e que

descobrimos na história.

Neste aspecto, verdade já não contrasta com falsidade, uma vez que

proposições podem ser verdadeiras ou falsas. Todavia, as proposições consideradas falsas

trazem em si um âmbito de verdade aberto, tanto quanto as proposições verdadeiras. Por

isso, “verdade deve pensar-se no sentido da essência do verdadeiro. Pensamo-la, diz

Heidegger, a partir da evocação da palavra dos gregos alétheia , que quer dizer a

desocultação (Unverborgenheit)”250. Fica claro, neste ponto, que ‘verdade’ não é uma

característica de uma proposição, conforme enunciada por um ‘sujeito’ relativamente a um

‘objeto’ e que, então, ‘vale’ não se sabe em que âmbito: a verdade é o desvelamento do

ente graças ao qual se realiza uma abertura. Por outro lado, a não-verdade é o velamento do

ente. A não-verdade parte da mesma essência da verdade, já que o desvelar traz em seu

bojo a dissimulação. Se o ente não fosse dissimulado, não erraríamos na visão das coisas e

na nossa ação sobre elas. “Desvelamento do ser é o que primeiramente possibilita o grau

de revelação do ser. Este desvelamento como verdade sobre é chamada verdade

ontológica”251. Sob o império da evidência deste conceito de essência de verdade, mal

meditada em seus fundamentos essenciais, admite-se como igualmente evidente que a

verdade tem um contrário e que há a não-verdade.

A não-verdade da proposição (não-conformidade) é a não-concordância da enunciação com a coisa (inautenticidade) significa o desacordo de um ente com sua essência. A não-verdade pode ser compreendida cada vez como não estar de acordo. Isto significa estar excluído da essência da verdade. É por isso, que a não-verdade, enquanto pensada como parte contrária da verdade, pode ser negligenciada quando se trata de apreender a pura essência da verdade 252.

Logo, para Heidegger, a não-verdade deve, antes pelo contrário, derivar da

essência da verdade. É pelo fato de a verdade e a não-verdade não serem indiferentes uma

à outra em suas essências, mas copertencerem, que, no fundo, uma proposição verdadeira

249 INWOOD, M. Dicionário Heidegger, p. 197. 250 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 40. 251 Idem. Sobre a essência do fundamento; a determinação do ser do ente segundo Leibniz; Hegel e os gregos, p. 37. 252 Idem. Sobre a essência da verdade, p. 25

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pode se encontrar em extrema oposição com a correlativa proposição não-verdadeira253.

Por isso, a questão da essência da verdade atinge, somente, o domínio original do que

realmente é perguntado, quando à vista prévia da plena essência da verdade permite

englobar também a reflexão sobre a não-verdade no desvelamento da essência da verdade.

Vale salientar que, para Heidegger, só há verdade até onde e enquanto o Dasein existe – do

mesmo modo que só há ser havendo Dasein. pode-se interpretar essa correlação no sentido

de que o ser humano, como sujeito, cria e constitui o verdadeiro. Onde a arte se encaixa

nesta teoria? De acordo com Heidegger, a arte é verdadeira no sentido de revelação. Ela

nos contrasta, colocando em suspensão um mundo dado e desvela outras possibilidades de

compreensão do mundo. Segundo Gianni Vattimo,

É necessário substituir a noção de verdade como conformidade da proposição à coisa por uma noção mais abrangente, que se funda no conceito de Erfahrung, de experiência como modificação que o sujeito sofre quando encontra algo que tem de fato relevância para si. Pode-se dizer que a arte é experiência de verdade se é experiência autêntica, isto é, se o encontro com a obra modifica realmente o observador254.

Neste aspecto, a experiência estética é só um efeito derivado da verdade da

obra que os seres humanos participam, já que ela força-os a ver o mundo através do que ela

abre.

3.5. Arte e metafísica

Aristóteles, dando continuidade às idéias platônicas, se torna um marco,

definindo o Ser como ente subordinado ao conhecimento humano. “A noção aristotélica de

ente serve de base e fundamento para a arte concebida metafisicamente, isto é, para a

Estética, em um ambiente de ruptura com o Ser e com a Verdade”255. Heidegger procura

livrar-se das limitações da compreensão e da linguagem metafísicas tradicionais nas quais

a estética havia se aprisionado. Tal pensamento baseia-se na idéia de que esses

procedimentos tradicionais da apreciação da arte são limitados para se ver e dizer o que

acontece na obra de arte. O nome “metafísica” vem do grego: tà metà physiká. Esta

expressão foi mais tarde interpretada como caracterização da interrogação que vai meta –

253 Ibid., p. 36. 254 VATTIMO. G. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna, p. 122. 255 BEAINI, T. Heidegger: A arte como cultivo do inaparente, p. 54.

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trans “além” do ente enquanto tal256. “Metafísica é o perguntar além do ente para recuperá-

lo, enquanto tal e em sua totalidade, para a compreensão”257. Dentro desta concepção, a

metafísica pensa o ente somente enquanto ente. Ou seja, ao se perguntar o que é o ente,

tem-se em mira o ente enquanto tal. A representação metafísica deve esta visão à luz do

Ser. Assim, o Ser fica isento de sua essência desveladora, não sendo pensado em sua

verdade. Para o filósofo alemão, a metafísica fala da inadvertida revelação do Ser quando

responde as suas perguntas pelo ente enquanto tal. A verdade do Ser pode chamar-se, por

isso, o chão no qual a metafísica se apóia e do qual retira seu alimento. “Pelo fato de a

metafísica interrogar o ente, enquanto ente, permanece ela junto ao ente e não se volta para

o ser enquanto ser”258. Ao representar o ente enquanto ente, a metafísica não pensa o

próprio Ser.

O ser dos entes propõe-se, assim, como a causa sui. Causa sui é o nome

metafísico de Deus. A este Deus, comenta Heidegger, na conferência Identidade e

diferença, não pode o ser humano nem rezar, nem sacrificar. Diante da causa sui, não pode

o ser humano nem cair de joelhos por temor, nem pode, diante deste Deus, tocar música e

dançar. Levando isso em consideração, de acordo com Heidegger, o pensamento a-teu, que

se sente impelido a abandonar o Deus da filosofia, o Deus como causa sui, está talvez mais

próximo do Deus divino, isto é, este pensamento está mais livre para ele do que a onto-teo-

lógica queria reconhecer259. Isso sugere diversas respostas ao encontro com o divino muito

mais espontâneo do que a teologia sugere. Para Johan Huizinga, a prestação de honra ao

divino, própria das tradições antigas por meio de jogos, festividades, cantos, rituais não é

metafísica. Tais celebrações terrenas nada têm dos discursos eruditos nem da resposta

intelectual do animal rationale – animal metaphysicum260. A estrutura onto-teo- lógica da

metafísica procede da diferença que distingue e une ser pensado como fundamento e ente

pensado como fundado-fundamentante. Todavia, o que é o Ser?

Ser é o que é mesmo [...] Não é Deus, nem um fundamento do mundo. O ser é mais longínquo que qualquer ente e está mais próximo do homem que qualquer ente [...] O sagrado, porém, que é apenas o espaço essencial para a deidade, manifesta-se somente, então, em seu brilho, quando antes e

256 Para Heidegger “Ente” é a multidão e o acotovelar-se dos homens numa rua movimentada. Entes somos nós mesmos. Entes, os japoneses. Entes, as fugas de Bach. Ente, a catedral de Estrasburgo. Entes são os hinos de Hoelderlin. Entes, os criminosos. Entes, os loucos de um manicômio (1968, p. 104). 257 HEIDEGGER, M. Que é metafísica. In: Conferências e escritos filosóficos, p. 61. 258 Ibid., p. 78. 259 Idem. Identidade e diferença, p. 75. 260 HUIZINGA, J. apud PEROTTI. J. Op. cit, s/n.

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após longa preparação, o próprio Ser se iluminou e foi experimentado em sua verdade261.

Assim, quando o ser humano ousar morar na vizinhança do Ser, descobrirá

que em toda a parte habita Deus. Este fato mostra claramente que no pensamento

heideggeriano não se pode confundir Ser com Deus; estes são diferentes. Heidegger

acentua a sua crítica à metafísica afirmando que esta não permite que o Ser mesmo fale,

porque não o considera em sua verdade. Isso acontece devido à essência da verdade

sempre aparecer à metafísica apenas na forma derivada da verdade do conhecimento e da

enunciação262. Ela suscita a aparência de que a questão do Ser sempre foi levantada e

respondida por ela; na verdade, segundo o filósofo, a metafísica não responde, em nenhum

lugar, à questão da verdade do Ser, porque não a suscita como questão; há uma troca do

ente pelo Ser em todo o seu desenvolvimento. Heidegger assinala que a metafísica

representa a entidade do ente de duas mane iras: A primeira considera a totalidade do ente

enquanto tal, no sentido dos traços mais gerais (òn Kathólou, Koinón). A segunda pondera

sobre a totalidade do ente enquanto tal, no sentido do ente supremo e, por isso, divino (òn

Kathólou, akrótaton, theion). Pelo fato de representar o ente, enquanto ente é a metafísica

em si a unidade destas duas concepções da verdade do ente, no sentido do geral e do

supremo. De acordo com a sua essência ela é, simultaneamente, ontologia, no sentido mais

restrito e teologia. “Enquanto metafísica ela está excluída pela sua própria essência da

experiência do Ser, uma vez que representa o ente (ón) constantemente apenas naquilo que

a partir dele se mostrou enquanto ente (he ón)”263. A teologia, para Heidegger, tornou-se

metafísica quando seu encontro com Deus foi objetivado por meio da verbalização de

acordo com as regras lógicas. O Ser não é uma qualidade ôntica do ente, visto que não se

deixa representar e nem se produzir objetivamente à semelhança do ente. A angústia, neste

caso, dá-nos uma experiência de ser como o outro em relação a todo ente. A disposição

para a angústia é o sim à insistência para realizar o supremo apelo, o único que atinge a

essência do homem.

Somente o homem, em meio a todos os entes, experimenta, chamado pela voz do ser, a maravilha de todas as maravilhas: que o ente é. Aquele que assim é chamado em sua essência para a verdade do ser está, por isso, continuamente envolvido, de maneira fundamental, na disposição de

261 HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo , pp. 16-23. 262 Idem. Que e metafísica, p. 80. 263 Ibid., p. 86.

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humor. A clara coragem para a angústia essencial garante a misteriosa possibilidade da experiência do ser 264.

Com a obra de arte, então, se introduz algo de novo na existência do estar-

aí, ela é um acontecimento em que se articula a quaternidade: a terra e os céus, os mortais e

os deuses. O mundo, do mesmo modo, designa também a quaternidade. Isto é, a união

essencial e mística do estar-aí com os deuses, o Ser e o Sagrado. É por meio desta união

que o homem e as coisas atingem seu sentido, aparecem tal como são, preservando

paralelamente o Ser enquanto tal265. O Deus de Heidegger, que supera a subjetividade, está

assim, em referência direta com o Ser, mas, ambos não se identificam. Somente a partir da

verdade do ser se deixa pensar a essência do sagrado. E somente a partir da essência do

sagrado deve ser pensada a essência da divindade. E, finalmente, somente à luz da essência

da divindade, pode ser pensado e dito o que deve nomear a palavra “Deus”266. O Deus a ser

buscado, na concepção heideggeriana, é o Deus divino, o que ele chama também de o

último Deus. Este deve ser refletido apenas a partir do desvelamento do Ser. Heidegger

fala do último Deus como de um novo início, pelo qual haveria uma relação essencial entre

o último Deus e a verdade do Ser em nível autêntico. Na conferência El último Dios,

Heidegger assinala que há uma impossibilidade de qualquer saber acerca do último Deus.

Este possui a sua singularidade e está fora de qualquer determinação calculadora que

comunicam o monoteísmo, o panteísmo e o ateísmo. O “monoteísmo” e todos os tipos de

“teísmo” existem a partir da “apologética” judaico-cristã, que tem a metafísica como

pressuposto especulativo. Com a morte desses deuses caem todos os teísmos. A

multiplicidade dos deuses não está submetida a nenhum número, senão à riqueza interna

dos fundamentos e abismos nos lugares no instante do resplandecer e do ocultar do fazer

sinal do último Deus 267. Ele é totalmente outro frente aos que existiam, especialmente

frente ao Deus do cristianismo. Heidegger percebe a necessidade de superar as diversas

figuras metafísicas de Deus.

Heidegger propôs pensar, então, o “fim da metafísica” a partir da

“hermenêutica da facticidade”, refletindo a partir da contingência, isto é, a partir de algo

que não cessa de inscrever-se. “Por que existe o ente e não antes o nada?”. É a questão

264 Ibid., p. 69. 265 BEAINI, T. Op. cit., p. 37. 266 HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo, p. 34. 267 Idem. El último dios. In: Revista de Filosofía. Cordoba. Año VI. N° 8-9, nov. 96. Tipeó e indexó Di biase, Nicolas. Disponível em http://www.heideggeriana.com.ar. Acessado em 20/01/2007.

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Leibniziana à qual Heidegger vai retornar, não mais no paradigma da metafísica da

subjetividade, mas a partir da analítica existencial. Importava- lhe superar, pela

“hermenêutica da facticidade”, o dualismo metafísico que separa entre mundo inteligível e

mundo sensível, através do modelo da relação sujeito-objeto. Com efeito, Heidegger

afirma de forma incisiva que toda metafísica fala a linguagem de Platão. “A palavra

fundamental de seu pensamento, isto é, a exposição do ser do ente é eídos, idéa: a

aparência na qual se mostra o ente como tal. A aparência, porém, é um modo de presença.

Nenhuma aparência sem luz – Platão já o reconhecera”268. Ser, para o escritor de Ser e

tempo, nunca é diretamente acessível, já que não pode ser objetivado. Ele só se dá

obliquamente numa dialética de retraimento, mas nesse processo, ilumina o ente, segundo

determinada figura de sua verdade.

Em contrapartida, a questão do estético recebeu, no paradigma inaugurado

por Ser e Tempo, um espaço totalmente novo. Entre outros, a superação da racionalidade

ontológica, da coisa como único caminho, de acesso aos entes; a superação do dualismo

entre inteligibilidade e sensibilidade; a crítica ao modelo da relação sujeito-objeto. É um

dos pontos mais difíceis, como destaca Stein, para a metafísica, a questão da arte, na qual

podemos observar as modificações que a obra de Heidegger introduziu. Na medida em que

o princípio epocal representa, em sua vigência, a fonte de compreensão e racionalidade de

qualquer manifestação no universo histórico, também a interpretação do belo, da obra de

arte, recebe seu impulso desta racionalidade, para se inserir, ao lado do conceito de

realidade e de verdade, numa ordem sistemática269. Não há dúvida de que todo dualismo

metafísico sofre particular constrangimento nesta esfera ôntica particular, em face do

abismo que separa o inteligível do sensível. Assombro aos olhos da tradição do

pensamento metafísico da arte, a obra é uma ocorrência da verdade. Por conseguinte, a distinção entre matéria e forma, e decerto, nas mais

diferentes variedades, é o esquema conceptual por excelência para toda a estética e teoria

da arte. Este fato inegável não prova nem que a distinção matéria e forma esteja

suficientemente fundada, nem que pertença originariamente ao âmbito da arte270. Forma,

para Heidegger, quer dizer aqui a repartição e a ordenação das partes de matéria nos

lugares do espaço, a qual tem como conseqüência um determinado contorno, a saber, o de 268 Idem. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e escritos filosóficos, p 104. 269 STEIN, E. Prefácio. In: Heidegger: A arte como cultivo do inaparente, p. 17. 270 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 20.

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um bloco; uma matéria que está numa forma. Comentando o assunto, Nunes afirma que

nem a noção de coisa, enquanto matéria sujeita à forma ou como suporte de propriedades,

nem a noção de produto, ‘acrescido de um valor estético’, podem aplicar-se à obra de arte.

Isso porque tais conceitos não se enquadram na categoria do ente-à-vista, e muito menos

na do ente-à-mão271. Ela é, antes, um fulcro da abertura pensada sob o enfoque da

essencialização do ser. A obra de arte, então, tem a ver com a verdade e, não apenas com a

estética, o belo. Ela abre, a sua maneira, o ser do ente, ela desoculta a verdade do ente. A

história da metafísica é segundo Heidegger, a história do esquecimento do Ser e a era da

técnica, o desenvolvimento próprio e contemporâneo desta história. A forma, por

conseguinte, no campo da estética, tem um valor muito maior do que a própria matéria. É

fruto da dominação de um sujeito, em relação à arte, esta vinculada essencialmente à

inspiração do artista, destinada a um fim qualquer. A grande conquista de Heidegger é restituir o simbólico à arte. A metafísica

parte do esquecimento do Ser. A superação da metafísica significa a superação desse

esquecimento.

3.6. A relação Mundo-Terra

A reflexão de Heidegger sobre a obra de arte vai abrir passagem para o

conceito fundamental com que ele revoluciona o assunto da arte: a questão do mundo. Isto

é, a obra de arte abre seu próprio mundo, instala-o. Para o filósofo, a obra de arte, apesar

de ser construída por uma artista, tem a sua independência, porquanto o artista permanece

algo de indiferente em relação à obra. Ele é caracterizado quase como um acesso para o

surgimento da obra. Esse acesso torna-se nulo na criação. Mundo, para Heidegger, é

sempre o inobjectal a que estamos submetidos enquanto caminhos do nascimento e da

morte. O mundo é o lugar em que se jogam as decisões essenciais da nossa história, aí o

mundo mundifica. “A relação com o mundo é um engajamento pré-reflexivo, que se

cumpre independentemente do sujeito por um liame mais primitivo e fundamental do que o

nexo entre sujeito e objeto admitido pela teoria do conhecimento”272. Só no mundo, os

entes se tornam acessíveis, inclusive o Dasein, que não está dentro do mundo. Há uma

abertura de espaços. Esse abrir espaço, para o escritor de Ser e tempo, quer dizer aqui ao

mesmo tempo: libertar o livre do aberto e instruir este livre no seu conjunto de traços. A

271 NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger, p 254. 272 Idem. Heidegger e ser e tempo. p, 35.

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obra mantém aberto o aberto do mundo. A instalação de um mundo pela obra de arte

fornece a condição que possibilita ao Dasein reconhecer-se neste mundo, estabelecendo a

clareira a partir da qual torna-se possível relacionar-se; somente os seres humanos têm um

mundo.

O conceito de mundo, certamente, havia sido desde sempre um dos

conceitos fundamentais no pensamento de Heidegger. O mundo como conjunto de

referências do projeto da existência constituía o horizonte que precedia a todos os projetos

do cuidar humano e da existência. A caracterização da obra de arte, por sua consistência

própria e por sua possibilidade de abertura de um mundo, evita conscientemente qualquer

recurso ao conceito de gênio da estética clássica. Mundo, dentro dos estudos

heideggerianos sobre a obra de arte, agora tem um conceito contrário; a terra. Assim, além

da instalação de um mundo existe um outro traço essencial do ser obra; a produção. “Tudo

isso na medida em que a obra se retira na massa e no peso da pedra, na dureza e na

flexibilidade da madeira, na dureza e no brilho do metal, no esplendor e na obscuridade da

cor, na ressonância dos sons e no poder nomeador da palavra”273. Esse retirar-se da obra,

Heidegger chama de terra (Erde). Ela é o que ressai e o que dá guarida (das

Hervorkommend-Bergende).

A terra é o infatigável e o incansável que está aí para nada. Na e sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo. Na medida em que a obra instala um mundo, produz a terra [...] A obra move a própria terra para o aberto de um mundo e nele a mantém. A obra deixa que a terra seja terra 274.

Destarte, na medida em que a obra instala um mundo, produz ao mesmo

tempo a terra. Porquanto na e sobre a terra o ser humano histórico funda o seu habitar no

mundo. É dessa forma que a obra deixa que a terra seja terra. A terra é um verdadeiro

mistério e, ao mesmo tempo em que se revela, na mesma proporção se esconde. Mas este

revelar-se só acontece na proporção em que ela permanece oculta, impossibilitando, assim,

qualquer tentativa de conhecimento. A terra faz despedaçar em si a tentativa de intromissão

nela. É em sua essência, o que se fecha em si (Sich-Verschliessende). O erigir da arte se dá

no recuo da obra a um fundo, onde ela se fundamenta.

Pro-duzir (her-stellen) a terra significa: trazê-la ao aberto como o que em si se fecha. Esta produção (Herstellung) da terra realiza a obra, na medida

273 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 36. 274 Ibid., p. 36.

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em que se retira na terra. Todavia, este fechar-se da terra não é um manter-se fechado, uniforme e rígido, mas antes revela -se numa plenitude inesgotável de modos e formas simples [...] Sem dúvida , o pintor utiliza a tinta, mas de tal modo que a cor não se gasta, mas passa sim a ganhar luz275.

A obra de arte, enquanto tal, possibilita diversas relações que constituirão o

mundo de um determinado povo histórico, inaugurando, com isso, no sentido de trazer à

luz, o mundo no qual os indivíduos tomarão suas decisões simples e complexas e, desta

forma, fundarão a sua história.

Menino morto trata do problema vivido pelos retirantes quando, “obrigados”

a abandonar a terra de origem partem em busca da própria vida num outro lugar. “Gênese

prodigiosa de onde emergiram os homens e mulheres esquálidos e enfermos que se foram e

se vão, eternamente sedentos à procura das terras do sul nas telas de Portinari”276. A

verdade, aqui, é plenamente histórica: “não é um universal que flutua no ar: ela é sempre

singular. Como ela assume essa singularidade? Encontrando lugar, tendo lugar. Ter- lugar é

configurar, em um ente, a abertura, de onde ela possa ser sustentada”277.

No entanto, é basicamente a intrínseca relação entre o ser-obra da obra de

arte e o mundo, incluindo a relação com a terra, que determinará o ser-obra da obra de arte

e lançará luz sobre o acontecimento da verdade na obra de arte. Ora, a produção da terra e

a instituição de um mundo constituem dois traços essenciais no ser-obra da obra. Desta

forma, o mundo funda-se na terra e a terra irrompe através do mundo. Aqui, há um

confronto de mundo e terra, caracterizando um combate. Neste combate, a terra e o mundo

elevam-se um ao outro à auto-afirmação das suas essências. O ser-obra da obra consiste no

disputar do combate entre mundo e terra e, na intimidade desse combate é que a quietação

da obra, em si mesma repousando, tem a sua essência. Esta repousa em si mesma.

Contudo, não se trata de uma situação estática. Porém, ao invés disso, este repousar

constitui-se numa “suprema mobilidade”, gerada pelo combate entre terra e mundo que,

por sua vez, determina o ser-obra da obra.

No referido combate entre mundo e terra, repousa a essência da obra de arte,

porque na proporção em que a obra institui um mundo e produz a terra, é a instigação deste

combate. “Na intimidade do combate é que a quietação da obra, em si mesma repousando,

275 Ibid., p. p. 37. 276 LUZ, A. Op. cit., p. 6. 277 DUBOIS, C. Heidegger: introdução a uma leitura, p. 173.

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tem a sua essência. Só a partir do repousar da obra é que podemos entrever o que na obra

está em obra”278. A unidade da obra acontece na disputa desse combate. A verdade insere-

se na obra, advindo como o combate entre clareira e ocultação. No combate conquista-se a

unidade entre mundo e terra. A essência da terra, como aquilo que se fecha, só se desvela

na emergência num mundo, na reciprocidade antagônica de ambos. O mundo quer que

tudo seja signo e significante enquanto a terra exige o obscurecimento das formas; o

nascimento dos símbolos. Mesmo quando a terra é a base não revelada, ela não se

identifica com o que não pode ser revelado. Há também do lado do mundo, “a todo o

momento, em cada época, uma dimensão inacessível, um recolhimento. O que o mundo

nos dissimula, justamente sob suas evidências mais constritivas, faz parte da verdade em

seu recolhimento e, portanto, do que a arte pode tornar manifesto”279.

Vale salientar, como assinala Gianni Vattimo, que os eventos inaugurais que

a obra de arte instaura são eventos de linguagem, visto que é, antes de qualquer coisa, na

linguagem que de desenrola a familiaridade original com o mundo. A exposição de um

mundo, dessa forma, é o significado de abertura histórica que a obra tem: pode-se ler essa

função “abridora” da obra, seja num sentido utópico, seja num sentido transcendental,

como a capacidade de a obra apresentar possibilidades alternativas de existência como

puras possibilidades280. A terra é, decerto, de acordo com Vattimo, o hic et nunc da obra a

que toda nova interpretação sempre retorna e que sempre suscita novas leituras, novos

“mundos” possíveis. O significado que daí se extrai é que a terra é a dimensão que, na

obra, liga o mundo como sistema de significados desdobrados e articulados àquele seu

“outro” que é a physis. Aquela que, com seus ritmos, põe em movimento as estruturas

tendencialmente imóveis dos mundos histórico-sociais281. No ensaio A origem da obra de

arte, aquele que em Ser e Tempo era o mundo se torna um mundo, o que indica que a

abertura da verdade não pode ser pensada como uma estrutura estável, mas sempre como

[um] evento282. Este aparente pequeno detalhe possui uma vital importância para a

discussão sobre a obra de arte.

Como deve ser entendida essa mudança? Heidegger não chega a contradizer

ou desmentir o que já havia afirmado em Ser e Tempo, ou seja, mundo continua sendo 278 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 39. 279 HAAR, M. A obra de arte: ensaio sobre a ontologia das obras, p. 88. 280 VATTIMO, G. Op. cit., p. 124. 281 Ibid., p. 54. 282 Ibid., p. 60.

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entendido como a abertura de sentido em que o Dasein habita. O espaço aberto da clareira

do mundo aparece explicitado na obra de arte. A análise desenvolvida em Ser e Tempo

revela o acesso imediato entre Dasein e a abertura do mundo. Heidegger fala em “um

mundo”, no sentido de serem várias as possibilidades históricas e existenciais através das

quais os seres humanos concebem sua vida, seus valores, dão significado à sua existência

ou se colocam diante do mistério, ao longo do tempo. Toda e qualquer possibilidade de

“mundo” é essencialmente histórica, no sentido de ser um modo possível de desvelamento

do Ser, ocorrente no tempo, que traz em si sedimentações específicas de sistemas de

referências e significados distintos. De nenhum modo a arte conduz à certeza do mundo

como algo já dado e sempre disponível à mão. Antes, nos lembra, a cada e toda vez, do

abissal que existe por trás do mundo, do inominável, para além dos nomes e linhas do

mundo. Há um aprofundamento do conceito de mundo, ao que de concreto, empresta a

todas as manifestações humanas um estilo e sentidos próprios.

A hermenêutica heideggeriana vincula teoria e práxis, analisa a arte a partir

da situação concreta do estar-aí que existe no mundo e se relaciona com o Ser. O mundo

exposto pela obra é o sistema de significados que ela inaugura; a terra é produzida pela

obra quando é apresentada, mostrada como o fim obscuro, nunca totalmente consumável

em enunciados explícitos, sobra a qual o mundo da obra se radica.

A desocultação do ente nunca é um estado que está aí, mas sempre um

acontecimento. A proposição: a essência da verdade é não-verdade, não deve, para o

filósofo, querer dizer que a verdade seja no fundo falsidade. O enunciado também não quer

dizer que a verdade nunca é ela mesma, mas que é, sim, representada, dialeticamente,

sempre também o seu contrário283. Reiterando o que Heidegger disse, a essência da

verdade é em si mesma o combate originário em que se conquista o meio aberto. No qual o

ente advém e a partir do qual se retira. Ao aberto pertencem o mundo e a terra. Por isso,

um dos raros modos como a verdade passa a acontecer é o ser-obra da obra. Isto é, ao

instituir um mundo e ao produzir a terra, a obra é o travar desse combate no qual se disputa

a desocultação do ente na sua totalidade, a verdade284. Assim, o ser que se oculta clareia-

283 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 43. 284 Usa-se ler essa concepção da verdade de Heidegger como uma tese que refuta a idéia metafísica da verdade como uma estrutura estável (o ontos on eterno e imutável de Platão) e que tende, em vez disso, a verdade como evento. Mas o fato de a verdade, a abertura dentro do qual o mundo se dá cada vez à humanidade histórica, ser evento e não estrutura estável modifica profundamente a (da verdade) essência. A obra de arte pode ser “pôr-em-obra” da verdade, porque a verdade não é estrutura metafisicamente estável,

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se, posto que “o clareado desta natureza na obra é o belo. A beleza é um modo como a

verdade enquanto desocultação advém. O clareado que tem esta natureza dispõe o seu

esplendor na obra. O resplandecer disposto na obra é o belo”285. Aqui, o que interessa na

obra de arte não é a beleza, mas a “autenticidade” ou “inautenticidade” da forma

expressiva. O que Heidegger quer dizer, pelo menos quanto à obra, que esta não tem em

princípio relação com a beleza de uma estética, mas com a verdade de uma história: “o que

não significa a exclusão da beleza para abordar e pensar a obra, mas no mínimo a tarefa de

pensar a beleza de outro modo que não a partir do prazer estético do sujeito do gosto”286. A

verdade é a verdade do Ser. A beleza não ocorre ao lado desta verdade, mas é o aparecer,

enquanto ser da verdade na obra e como obra, que constitui a beleza.

É óbvio, naturalmente, que a contemplação de uma obra de arte não isola o

indivíduo de seus sentimentos. Seria um erro grosseiro pensar assim, mas a contemplação

dirigi-o para o pertencer da verdade que acontece na obra.

É perceptível que a tese norteadora do pensamento heideggeriano sobre a

estética é: a obra de arte nos revela, de maneira particular, a verdade do ente e, por

conseguinte, não há arte sem obra de arte. O debate da revelação do ente e, com isso, do

próprio Ser na obra, que, já em si mesmo, se processa e ocorre, como um constante

combate, é sempre um embate contra a velação. Isto é, o encobrimento, contra a

aparência 287. O ente está no ser. Através do Ser perpassa uma fatalidade velada, suspensa

entre o divino e o antidivino. O Ser humano impotente para dominar uma larga parte do

que há no Ser, conhecendo-o pouco. O conhecido permanece algo de aproximado, o

dominado, algo de incerto. O que nos chama atenção e isso já ficou explicito neste

trabalho, é o caráter “coisal” da obra, ou seja, a obra de arte traz em si cor, som, espaço etc.

Isso faz-nos pensar sobre a essência da criação a partir do seu lado de manufatura, já que,

para Heidegger, o caráter-de-obra da obra consiste no seu ser-criada (Geschaffensein) pelo

artista. A obra de arte não existe sem o ser humano que a salvaguarda, tendo um vínculo

inseparável com este. É justamente por isso, que, para Heidegger, o ser-criado da obra só

se deixa manifestamente compreender à luz do processo da criação, uma vez que a

mas evento; contudo, precisamente enquanto evento, a verdade só pode acontecer naquela quebra da palavra que é a monumentalidade, a fórmula, a meia luz da Lichtung (VATTIMO, G. 1996, pp. 69-70). 285 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 45. 286 DUBOIS, C. Op. Cit., p. 170, 287 HEIDEGGER, Martin. Introdução à metafísica, p. 210.

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tentativa de perceber o ser-obra da obra a partir dela mesma mostra-se impraticável. “A

verdade é o combate original no qual, de cada vez a seu modo, é conquistado o aberto, no

qual tudo assoma e a partir do qual se retrai tudo o que se mostra e se erige como ente”288.

A verdade só passa a acontecer quando ela própria se institui no combate e no espaço de

jogo que se abrem. A instituição da verdade na obra é o que Heidegger vai chamar de

produção (Hervorbringen). Produção de um ente que não era antes e que não voltará a ser

depois.

A produção (Hervorbringung) instala de tal maneira este ente no aberto que o que se intenta produzir clareia originalmente a abertura do aberto em que se ressai (hervorkommt). Onde a produção traz expressamente a abertura do ente, a verdade, aí o produzido é uma obra. Uma tal produção é o criar (Schaffen). Como tal trazer, ele é antes um receber e um tirar (Entnehmen) no interior da relação com a desocultação289.

Com efeito, “quanto mais essencialmente a obra se abre, tanto mais

plenamente brilha a singularidade do fato de que ela é, em vez de não ser. Quanto mais

essencialmente esse choque irrompe no aberto, tanto mais estranha e solitária se torna a

obra”290. O choque provocado não é mais de uma “experiência estética”, é o do advento da

verdade, do momento em que a história começa ou recomeça. O sentimento estético é,

então, apenas uma conseqüência da verdade histórica da arte. Uma experiência que

envolve criação de sentido e caracteriza-se por encontrar-se aberta para potencialidades

que surgem espontaneamente no mundo.

A experiência da arte é uma experiência privilegiada dessa projeção de

possíveis. “O que ai se interpreta é antes de tudo uma abertura para realidades novas.

Trata-se de uma experiência que por si mesma representa um problema hermenêutico:

Compreender a arte já faz parte do nosso próprio encontro com ela”291. Isto é, só

entendemos a arte, voltando-nos para o domínio aberto por ela. É nesse “círculo

hermenêutico” que Heidegger elabora as descrições fenomenológicas da obra de arte para

considerá- la como um topos do ser, um espaço em que se manifesta o jogo claro-escuro da

verdade. Nesse ver-compreender, segundo Campos, o indivíduo se perde na própria

compreensão, enquanto é ludicamente transformado pelo que a arte consagra em seu

288 Idem. A origem da obra de arte, p. 49 289 Ibid., p. 50. 290 Ibid., p. 53. 291 CAMPOS, M. Op. cit., p. 83.

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acontecimento singular292. Evidencia-se, desta forma, o seu espaço de jogo que pode

esclarecer a sua especificidade, o seu ser-obra original.

Ora, na produção (Hervorbringen) da obra reside esta apresentação do que

“ela é”. Aqui, Heidegger faz uma alusão ao saber que, enquanto querer, radica na verdade

da obra, e só assim permanece um saber. Desta forma, a obra não é arrancada do seu estar-

em-si, e não é arrastada para o âmbito da mera vivência e não a rebaixa ao papel de um

estimulante de vivências.

A salvaguarda da obra não isola os homens nas suas vivências, mas fá-los antes entrar na pertença à verdade que acontece na obra, e funda assim o ser-com-e-para-os-outros (das Für-und Miteinandersein), como exposição (Ausstehen) histórica do ser-aí a partir da sua relação com a desocultação. Em absoluto, o saber no modo da salvaguarda nada tem a ver com aquele conhecimento do erudito que saboreia o aspecto formal da obra, as suas qualidades e encantos. Saber, enquanto ter-visto, é um ser-decidido; é instância no combate que a obra dispôs no rasgão293.

Nesta perspectiva, a realidade mais autêntica da obra só vem à luz onde a

obra está salvaguardada da verdade que através dela mesma acontece. Destarte, cabe

salientar que, para Heidegger, o artista é a origem da obra e a obra é a origem do artista.

Ou seja, nenhum é sem o outro. Não obstante, artista e obra estão sujeitos a um terceiro e, é

através desse terceiro que acontece a reciprocidade. Mas esse terceiro é, na verdade, o

primeiro, a saber, a arte. Dessa forma, a origem do artista, bem como da obra é a própria

arte. A arte é então: “a salvaguarda criadora da verdade na obra. A arte é, pois, um devir e

um acontecer da verdade”294.

Vattimo comentando o assunto nos diz que a obra de arte é um pôr-em-obra

da verdade, porque expõe mundos históricos, inaugura ou antecipa, como evento

lingüístico original, possibilidades de existências históricas – mas tão-somente mostrando-

as sempre em referência à mortalidade. Na obra de arte, no nexo que ela constitui entre

mundo e terra, realiza-se aquela união de fundação e desfundamento que percorre toda a

ontologia heideggeriana 295. O elemento terrestre em Menino morto se mostra como o

aspecto de desarraigamento natural da obra de arte, que tem a ver com seu ser matéria, mas

292 Ibid., p. 83. 293 HEIDEGGER, A origem da obra de arte, pp. 54-55. 294 Ibid., p. 57. 295 VATTIMO, G. Op. cit., p. 126.

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matéria em que vive a physis, a qual é sempre pensada como maturação, Zeitigung,

crescimento de um organismo que nasceu e é destinado a morrer. Ao contrário dos

manufaturados úteis, a obra Menino morto exibe a sua terrestridade, a sua mortalidade, o

seu ser sujeito à ação do tempo, não como um limite, mas como um aspecto positivamente

constitutivo do seu significado. Presença da terrestridade enquanto temporalidade vivida,

nascimento, envelhecimento e morte.

Um grupo de retirantes não é simplesmente um conjunto de figuras morenas

ou negras, com tais ou quais traços fisionômicos, imersos nesta ou naquela luz. É algo mais

do que isso: é a miséria, a angústia. Uma infinidade de sentimentos, de fatos impalpáveis,

mas que o pintor tem que transformar em cores, em ritmos. É a outra realidade, a realidade

vista pelo olho do espírito. Voltamos, aqui, a certos temas heideggerianos, como o da

angústia, sentimento originário do ser humano em presença do nada. O não-ser. O nada

não é uma “falta” e poderia ser definido, numa proposição ontológica, como elemento

integrador da própria verdade do Ser. Diante de Menino morto, semelhantemente ao que

Dufrenne falou de o Enforcado de Rouault, “experimentamos a angústia ou o medo que, no

mundo real produziria uma ação enganadora para escapar dessa miséria”296. A angústia é

um fenômeno originário na medida em que põe a nu as raízes mesmas do ser do Dasein,

isto é, ela faz com que achemos tudo “esquisito”, como se estivéssemos fora do próprio

mundo. Comentado o assunto, Machado afirma que, para Heidegger, é apenas por causa da

angústia como modo fundamental da afecção que nós descobrimos o mundo enquanto

mundo: “a angústia-para” (Angst um)297. A angústia teria o poder de reconduzir-me a mim

mesmo, ou seja, um ser finito em um mundo determinado pela faticidade. Os retirantes deixam a terra e saem para o desconhecido. Isso não se dá por

falta ou erro dos personagens, mas por algo que, independendo deles paira sobre eles.

Gênese prodigiosa de onde surgiram os homens esquálidos e enfermos que se foram e se

vão, eternamente sedentos à procura de melhorias, mostrando o que existe no mundo. O

desgaste dos corpos, sobre os quais o tempo marcou sua passagem. Menino morto desvela

um contra-senso rico de sentido. Ao mostrar a terra: a pedra, a cor, etc, Menino morto não

296 DUFRENNE, M. apud CAMPOS, M. Arte e verdade, p. 99. 297 MACHADO, J. Op. cit., p. 169. Para Machado, Angst um significa a angústia do ser-no-mundo. O ser-no-mundo não significa um ambiente, mesmo nas atividades cotidianas, mas uma singularização em que o próprio Dasein se encontra.

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explora a terra como uma matéria submetida a uma forma. A arte em sua vontade criadora

tem o poder de revelar, sem agressões, a intimidade da matéria.

3.7. A obra de arte como Poesia

Após percorrermos alguns traços do pensamento Heideggeriano sobre o

papel da obra de arte, bem como o seu velamento e desvelamento da verdade, chegamos ao

ápice dos seus estudos sobre arte. Para ele, a verdade como clareira e ocultação do ente,

acontece na medida em que se poetiza. É na linguagem poética que “se desenham as

coordenadas fundamentais de qualquer possível experiência no mundo [...] Toda arte,

enquanto deixar acontecer da adveniência da verdade do ente como tal, é na sua essência

Poesia”298. A essência da arte, na qual repousam simultaneamente a obra de arte e o artista,

é o pôr-em-obra-da-verdade. A partir da essência poetante da arte ela erige no meio do ente

um espaço aberto, em cuja abertura tudo se mostra de outro modo que não o habitual299. A

visão poética realiza uma transformação: o que até agora era ordinário, cotidiano,

“normal”, começa a ser extraordinário, excepcional, insólito. A palavra “poesia” aqui, não

se limita à arte de fazer versos. Por isso, ela está em todos os gêneros artísticos e até

mesmo na poesia. No primeiro caso, a palavra que Heidegger usa é Poesie. No segundo

caso, die Dichtung. Quer dizer, a expressão do Ser na visão. Trata-se do “dito do ser” (die

Sage des Seins). Para esclarecer o sentido de poesia, ele insiste dizendo que a linguagem

não é apenas – e não é em primeiro lugar – uma expressão oral e escrita do que importa

comunicar. A poesia é a fábula da desocultação do ente.

A essência da arte é poesia porque toda experiência do Dasein é

determinada pela pré-compreensão. Essa pré-compreensão se concretiza numa linguagem,

já que é somente na linguagem que pode ocorrer verdadeira inovação ontológica. A

linguagem não é um instrumento à nossa disposição, mas é um evento que dispõe de

suprema possibilidade de ser do homem. Todavia “o homem se comporta como se fosse o

criador e o soberano da linguagem. A linguagem permanece a soberana do homem”300. O

jogo verbal da poesia “desinstrumentaliza as palavras; numa conduta que não é a de trato,

cuida da linguagem se dela dispor, e, a ela nos tornando disponíveis, cria, numa obra, o

298 VATTIMO, G. A sociedade transparente, p. 51. 299 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p 58. 300 Idem. “...Poeticamente o homem habita...” In: Ensaios e conferências, p. 167.

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domínio do revelado – da exposição do homem a si mesmo e ao ser”301. Desta forma, para

Heidegger, o ser humano fala apenas e somente à medida que co-responde à linguagem, à

medida que escuta e pertence ao apelo da linguagem. Por conseguinte, a linguagem é o

grito mais elevado e, sobretudo, o apelo mais elevado e, por toda parte, o apelo primordial.

É a linguagem que abarca em primeira e última instância, a essência de uma coisa.

Logo, somente na linguagem as coisas têm a possibilidade de aparecer. Por

meio da poesia pode-se partir do dizível para o indizível. Isto é, parte-se da abertura que já

foi revelada para àquilo que permanece velado. Assim, fica notório o valor que Heidegger

dá à linguagem, contrariando, com isso, o conceito de linguagem na concepção metafísica

que a via pura e simplesmente como um meio utilizado para a comunicação.

Quando Heidegger afirma que toda arte é, na sua essência, poesia, ele não

remete todas as obras de arte, como a arquitetura, a pintura, a música etc., a uma submissão

à poesia. Isso, para ele, é uma arbitrariedade. Ora, essas artes mencionadas, de modo

algum, são variantes da arte da palavra, mas a poesia é apenas um modo do projeto

clarificador da verdade, isto é, do poetar neste sentido lato. Todavia, a obra da linguagem,

a poesia em sentido estrito, tem um lugar eminente no conjunto das artes. “A poesia é o

limiar da experiência artística em geral por ser, antes de tudo, o limiar da experiência

pensante: um poieín, como um producere, ponto de irrupção do ser na linguagem, que

acede à palavra também de interseção da linguagem com o pensamento” 302. É deste

ângulo que Heidegger afirma a precedência da poesia sobre qualquer outra arte. A despeito

de que todas sejam originariamente poéticas, arquitetura, escultura, música e pintura só se

produzem quando já se produziu a clareira pela ‘poesia primordial’ (Urpoesie) da

linguagem. A linguagem guarda a essência original da Poesia. Pintar, esculpir, construir...,

acontecem sempre e só no aberto do dito e do nomear. São em cada caso um modo próprio

de poetar dentro da clareira do ente que já aconteceu na linguagem.

O tema da arte não é para Heidegger uma questão acessória, tampouco um

encontro com a poesia de Hölderlin, que é o seu ápice orientador. Aqui, o que deve ser

levado em máxima consideração é a própria história como história do Ser, de uma

possibilidade essencial dessa história como acontecimento histórico da verdade (do Ser),

301 DUBOIS, C. Op. cit., p. 198. 302 NUNES, B. Passagem para o poético: filosofia e poesia em Heidegger, p. 261.

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de um mundo e de uma terra por vir. “A questão da arte é histórica. Mas não se trata de

história da arte. Ao contrário, trata-se da potência histórica da própria arte e, em primeiro

lugar, da poesia no sentido de que a arte funda a história, abre um mundo, e, assim, realiza

um acontecer da própria verdade”303. Para o filósofo, não é apenas a criação da obra que é

poética, mas também é poética a salvaguarda da obra. Isto, evidentemente, a sua própria

maneira. A essência da arte é a Poesia. Mas a essência da Poesia é a instauração da

verdade.

Heidegger entende este instaurar em um sentido triplo de oferta, fundação e

princípio. Como instauração a arte é essencialmente histórica. Ora, isso não se resume em

pensar que a arte possui uma história junto com outros fenômenos, mas também a arte é

histórica, no sentido essencial de que funda a História. A história – como advento no

aberto, como irrupção no Ser – é, assim, o acontecer artístico de um povo epocalmente

vinculado à destinação do Ser que se dá no limite espaço-temporal que a arte, em sua

originalidade, transcende. A instauração só se torna real na salvaguarda, correspondendo,

assim, a cada modo de instaurar um modo de salvaguardar. A obra só é fundação enquanto

produz um contínuo efeito de desenraizamento, nunca recomponível numa Geborgenheit

final304. A obra de arte nunca é tranqüilizante, “bela” no sentido da perfeita conciliação de

interior e exterior, essência e existência, etc. Assim, ela funda o mundo enquanto exibe sua

falta de fundamento, tornando visível o inaparente.

Mas o ponto fundamental é que, o poemático da verdade, que se constitui

como forma na obra, nunca se realiza na direção de algo vazio, pelo contrário, a obra

projeta-se na obra para aqueles que, no futuro, hão de salvaguardá-la. “O projeto

verdadeiramente poemático é a abertura daquilo em que o ser-aí, como histórico, já está

lançado. Isto é, a terra, e para um povo histórico, a sua terra”305. Mas, a arte só atinge a sua

essência histórica como instauração, quando o ente na totalidade exige a fundamentação na

abertura. Heidegger diz:

O pôr-em-obra-da-verdade faz irromper o abismo intranquilizante, e subverte o familiar e o que se tem como tal. A verdade, que se abre na obra, nunca é atestável nem deduzível a partir do que até então havia. Pelo contrário, o que até então havia é que é refutado pela obra, na sua realidade exclusiva. O que a arte instaura nunca pode, por isso, ser contrabalançado,

303 DUBOIS, C. Op. cit., p. 166. 304 VATTIMO, G. A sociedade transparente, p. 59. 305 HEIDEGGER, M. A origem da obra de arte, p. 60.

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nem compensado pelo que simplesmente é e pelo disponível. A instauração é um excesso, uma oferta306.

A verdade é ao mesmo tempo sujeito e objeto do pôr (Setzen), entretanto, o

projeto poemático apesar de nunca provir do nada, já que nunca aceita a sua oferta a partir

do habitual e do que até então havia, ele também, para o escritor de Ser e tempo, nunca

vem do nada, na medida em que o que por ele é lançado é só a determinação retida do

próprio ser-aí histórico. Beaini, comentando o assunto, assinala que “a arte, enquanto

Poema, habita o equilíbrio do mundo, tendo a ver com a arché e a physis, a meta da arte é

tornar visível o que surge espontaneamente”307. Deixar o Ser dar-se é a tarefa da arte

enquanto arquitetura, linguagem, poesia, pintura, escultura. Para essa autora, a Poiesis é

abertura que acolhe a a-létheia. Acolher significa esperar atenta e serenamente, expondo o

que se clareia através da obra de arte. Neste contexto, é no aconchego da arte que a

verdade enviada pelo Ser se perpetua. Arte, Ser e Verdade são, assim, indissociáveis.

Ascendemos ao caráter poético da arte, mediante o qual o Ser, instaurado com verdadeiro,

fulgura como belo 308. A arte é um saber poético no interior do qual se libera a manifestação

do Ser. Esta é a medida na qual repousa a arte enquanto fazer significativo que descerra o

momento da irrupção.

Em Menino morto, o sonho, a fantasia, o desespero..., apresentam-se como

refúgios para onde se evadem estes “evasivos escapistas”. Uma verdadeira experiência

mística, ou nas palavras de Heidegger, uma descoberta do significado poético desvelado e

vivido que escondem e revelam todos os seres que povoam o espaço terrestre. A obra vem

carregada de um conteúdo simbólico trágico. Os retirantes continuam vivos... Sobre eles, o

flagelo da seca... O princípio das dores, no início da existência terrenal. Uma verdadeira

evocação poética.

306 Ibid., p. 60. 307 BEAINI, T. Op. cit., p. 22. 308 Ibid., p. 35.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Quanto mais nos deixamos entrar na obra, tanto mais expressiva, tanto

mais rica ela nos aparece. A essência da experiência do tempo da arte é que aprendemos a

deter-nos. Esta é talvez a correspondência finita, à nossa medida, do que se chama de

eternidade”309. Esta concepção, talvez, defina da melhor maneira a função da arte em uma

época marcada pela tecnologia, em que obras de arte apenas “servem”, em grande medida,

para a contemplação prazerosa do espectador. Mergulhamos numa discussão sobre

possíveis aberturas, interpretações e experiências que um indivíduo pode ter quando está

diante de uma obra de arte. Entenda-se experiência, aqui, como um acontecimento ou um

conjunto de acontecimentos que nos modifica e, por conseguinte, muda a nossa maneira de

agir, de conviver com os outros e de ser no mundo. Há dificuldades para expressá- la em

palavras, mas sabemos que aconteceu. Obviamente que a arte não é o único meio de se

alcançar a “verdade”, pois existem outros elementos na criatividade cultural que desvelam

possibilidades diversas. Porém privilegiamos, nesta dissertação, a arte. Nela, a experiência

da verdade acontece de modo imediato, diferenciando-se da teoria estética que se deixa

limitar por um conceito, ou uma verdade mais racional, prejudicando, com isso, a verdade

que acontece a partir da subjetividade humana.

A arte, neste mundo paradoxal, à sua maneira, tem a capacidade de

reencantar o mundo. Muitas pessoas experimentam comunhão com o transcendente na

medida em que se deixam contaminar, contagiar, por uma pintura, uma poesia, uma

música, uma escultura... Experiências autênticas que mudam realmente o espectador. Ao

contrário do que a religião institucionalizada se viciou a afirmar, no tocante à manifestação

do divino, a arte, como atividade de uma cultura pode manifestar o sagrado, mesmo não

sendo uma arte sacra, criada com símbolos, muitas vezes, ultrapassados, que contemplam

apenas os dogmas, as doutrinas, os sistemas de condutas de uma religião institucionalizada,

mas que está longe de contemplar o ser humano com seus desencantos, tristezas,

desesperanças, dores..., como faz Portinari, de forma brilhante, em sua tela Menino morto.

309 GADAMER, H, G. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa, p. 69.

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A religiosidade parece interessar o pintor brasileiro, não tanto como manifestação de uma

fé particular, mas como mais um capítulo do drama humano sobre a terra.

Com a sua arte, Portinari pode mostrar o homem e a mulher brasileiros,

vivenciando seus dramas e participando deles. Por isso, vale a pena reiterar o que ele disse:

“Todas as coisas / Frágeis e pobres / Se parecem comigo”.

Portinari não só vê o Brasil, como também contribui para a plasmação de

uma estética brasileira, pois soube traduzir o nosso país plasticamente. Menino morto deixa

de ser um mero drama do Brasil para transformar-se num grito de dor mais universal: o

grito da humanidade dilacerada, marcada pela alienação, pela angústia e pela morte.

Aqui, cabem algumas considerações no que tange a (in)possíveis

aproximações entre Heidegger e Tillich.

Tanto Tillich quanto Heidegger criticam a visão, baseada na teoria estética,

de que a arte deve criar a beleza. O belo, para o teólogo, significa o poder de mediar um

âmbito especial de sentido. Se a arte em sua revelação de sentido transforma a realidade,

então ela pode ser considerada como bela; coisa que o esteticismo não faz, uma vez que

priva a arte de seu caráter existencial. Vemos que Tillich dá um acentuado valor ao caráter

existencial, pois é através de uma preocupação preliminar (existencial) que se atinge a

Realidade Última. Para Heidegger, a beleza é um modo pelo qual a verdade, enquanto

desocultação, advém. Com isso, ele não despreza a beleza, mas simplesmente aponta uma

outra maneira dos seres humanos se relacionarem com obras de arte. Aqui, o que interessa

na obra de arte não é a beleza, mas a “autenticidade” ou “inautenticidade” da forma

expressiva. Já Tillich acredita que a autenticidade da arte está em sua habilidade de

expressar qualidades do ser que só podem ser captadas pela criatividade artística.

A essência da verdade, concebida nesta construção, é antepredicativa,

antecedendo enunciados falsos e verdadeiros, isto é, precede a adequação de um objeto a

um sujeito, ou vice-versa. A mesma postura tem Tillich, quando fala sobre o mistério. Este,

quando é um mistério genuíno, é experimentado em uma postura que contradiz a atitude da

cognição comum, porquanto o mistério caracteriza, para Tillich, uma dimensão que

“precede” a relação sujeito-objeto, sendo, desta forma, impossível expressar a experiência

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do mistério em linguagem comum, porque esta linguagem nasceu do esquema sujeito-

objeto e está presa a ele.

Tillich acredita que o Incondicionado pode se manifestar através de uma

obra de arte. Nesta perspectiva, suspeitamos que exista certa semelhança do conceito

tillichiano sobre o Incondicionado com a verdade que se desvela numa obra de arte nos

estudos heideggerianos. Tal consideração é embasada na afirmação de Heidegger de que a

arte nos apresenta algo de desconhecido. Os dois acreditam que o ser humano está preso à

linguagem. A linguagem a partir dos símbolos poderia evocar o incondicionado?

Parece-me que o resgate do simbólico, que Heidegger dá à arte, sabendo que

o símbolo evoca algo abstrato, ausente, pode ser uma abertura, dentro de seus estudos, para

falarmos de uma Realidade Última, já que, como ele mesmo disse, a experiência com uma

obra de arte é uma experiência que envolve criação de sentido e caracteriza-se por

encontrar-se aberta para potencialidades que surgem espontaneamente no mundo. A

experiência da arte é uma experiência privilegiada dessa projeção de possíveis. O mais

curioso e instigante nisso é a semelhança de Tillich sobre a religião ampla e o habitar

sagrado com a “metafísica” heideggeriana sobre o habitar poético. Parece-me que tanto um

como o outro dizem a mesma coisa por ângulos diferentes. Tillich por um ângulo religioso

e Heidegger por um ângulo epistemológico racional. Para Heidegger, graças ao nomear

poético, o ser humano consegue estar na presença dos deuses e, com efeito, ser tocado pela

proximidade essencial das coisas. Em contrapartida, segundo Ramón, sua ontologia

fundamental e, consequentemente, sua analítica existencial não são mais que teoria e um

caminho para matar esta radical sede ontológica do ser humano 310.

A verdade que a arte desvela, para Heidegger, é uma criação de sentido.

Mas que sentido é esse? Será que esse sentido não aponta para uma Realidade Última? O

resgate do caráter mito-poético da arte não evocaria uma abertura para falarmos de Deus

não apenas no pensamento de Tillich, mas também no pensamento de Heidegger? Longe,

de um Deus objetivado, um Deus calculado por postulados e por doutrinas, mas um Deus

que escapa a conceitos, um Deus divino que está acima do Deus do teísmo.

Não obstante, em sua Carta sobre o humanismo, Heidegger deixa uma pista

para acreditarmos que no seu pensamento existe uma “brecha” para falarmos de

310 RAMÓN, S. Op. cit., 341.

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transcendência. Não em relação a uma Realidade Última, pois este conceito não existe nos

seus escritos, mas no tocante ao Ser. Ele diz: “Ser é absolutamente transcendente”311. A

mesma coisa ele já havia afirmado em Ser e tempo: “A ‘universalidade’ do ser

‘transcende’ toda universalidade genérica”312. É bem verdade que no fundo da ontologia

heideggeriana está inserido o conceito místico do Ser. Para Jorge Machado conceitos como

“mundo”, “existência”, “culpa”, “decadência” e tantos outros trabalhados por Heidegger,

surgem sentido originário de caráter transcendental-constitutivo 313 Para esse autor, em

várias obras, Heidegger fala de Deus e de deuses que apontam sempre para o coração da

vida humana.

Heidegger, com isso, provoca uma desconstrução do sentido originário do sagrado na existência humana. Assim, seu trabalho não pode ser visto como uma teologia natural, teodicéia, mas como expressão fortemente antropológica de uma condição existencial da realidade humana314

Em seu ensaio Para que poetas, Heidegger assinala que a noite do mundo

estende a sua escuridão. Esta era do mundo caracteriza-se pela ausência de Deus. Essa

“falta de Deus” significa que já não existe um Deus capaz de reunir em si, as pessoas e as

coisas. Mas essa falta de Deus, de acordo com Heidegger, anuncia algo de muito pior.

“Não só se foram os deuses e Deus, como também se apagou na história do mundo o fulgor

da divindade. O tempo da noite no mundo é o tempo indigente, porque se tornará cada vez

mais indigente”315. Esse mundo, para o filósofo alemão, tornou-se tão indigente que já nem

é capaz de notar que a falta de Deus é uma falta. Com esta falta, entretanto, fica fora do

mundo tanto o fundo como aquilo que o fundamenta.

Heidegger pensa num possível retorno de Deus; o Deus divino. Um Deus

tal que diante dele o ser humano possa “tocar música e dançar”, estando fora de qualquer 311 HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo , p. 60. Heidegger, segundo Inwood, distingue quatro sentidos de transcendência. 1) A transcendência ôntica: um outro ente transcendeu os entes; no cristianismo, Deus, o criador, transcendeu os entes criados. 2) A transcendência ontológica que se encontra no Koinon (“comum” em grego) enquanto tal, o ser como conceito geral. Esta é a abordagem de Aristóteles e seus seguidores medievais, que examinaram o ser como um transcendens, deixando obscura a diferença entre ser e entes. 3)A transcendência “fundamental-ontológica” esta retorna para o sentido original de transcendência, superação, sendo concebida como um aspecto distintivo de Dasein e indicando que ele “sempre já se encontra no aberto dos entes”. Transcendência significa, portanto, “estar na verdade do ser”, o que não implica um explícito conhecimento do ser. Essa transcendência assegura a liberdade do ser humano. É neste aspecto que Heidegger usa o termo “Transcendência em Ser e tempo. 4) A transcendência “epistemológica” ou cartesiana: um sujeito supera a fronteira entre si mesmo e o seu objeto, entre o seu espaço interno e o mundo externo (1994, p. 190-191). 312 Idem. Ser e tempo, p. 28. 313 MACHADO, J. Op.cit., p. 13. 314 Ibid, p. 78. 315 HEIDEGGER, M. Para que poetas, p. 309.

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determinação calculadora. Ele é totalmente outro frente aos que existiam, especialmente

frente ao Deus do cristianismo. Heidegger vê, nesta construção, a necessidade de superar

as diversas figuras metafísicas de Deus. O pensamento ateu está, talvez, mais próximo do

Deus divino do que a onto-teo-lógica queria reconhecer.

O pensamento ateu, destacado por Heidegger, se assemelha muito ao

conceito de religião ampla nos estudos tillichianos, em que se baseia numa preocupação

incondicional, se diferenciando da religião estrita, vinculada a dogmas, doutrinas... Em seu

livro A coragem de ser, Tillich afirma que a dúvida sobre Deus transcende a idéia teística

de Deus, não podendo ele ser transformado num mero objeto de absoluto conhecimento e

absoluto controle, pois não pode ser descrito. Tal Deus desapareceu no abismo da

insignificação com todo outro valor e significação. O “Deus acima do Deus do teísmo está

presente, embora oculto, em todo encontro divino humano”316.

A preocupação última, no pensamento tillichiano, está relacionada à

preocupação humana em relação à sua existência. Assim, a revelação é a manifestação do

fundamento e do sentido incondicional da existência humana. Semelhantemente ao

conceito de terra em Heidegger, que sempre está numa permanente ocultação, a revelação,

para Tilich, sempre terá um caráter misterioso, haja visto a impossibilidade do ser humano

alcançar a sua compreensão plena. Deste modo, ela sempre revelará algo. Todavia ocultará

características que não podem ser apreendidas pelo espírito humano.

De acordo com Tillich, a arte faz três coisas: expressa, transforma, e

antecipa. A obra Menino morto faz isso perfeitamente. Ela expressa o temor humano da

realidade que ela descobre. Ela transforma a realidade comum a fim de dar a ela o poder de

expressar alguma coisa que não é ela mesma. Ela antecipa as possibilidades de ser que

transcendem as possibilidades dadas. Em Menino morto, encontramos a coragem de

Portinari de tirar a própria angústia, finitude, falta de significado, e expressar a coragem

em forma artística. Este é o elemento de antecipação, até mesmo nas formas de artes mais

distorcidas.

Menino morto, de Portinari, não se relaciona com a religião no sentido

estreito da palavra, mas expressa o poder do ser. E tudo que expressa o poder do ser, para

Tillich, é indiretamente religioso. Dificilmente poderíamos classificar esta tela como “arte

316 TILLICH, P. A Coragem de ser, p. 144.

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sacra”, mas, para Tillich, a cultura é religiosa ali onde a existência humana está submetida

a interrogações últimas, e desse modo transcendida; e ali onde um sentido incondicionado

se torna visível em obras que possuem somente um sentido condicionado em si mesmas.

Na tela Menino morto palpita uma preocupação última e, sem dúvida, é de um poder

revelatório fascinante.

Portinari, ao lidar com problemas tão sérios, de interesse último, com

tamanha densidade e profundidade, põe de forma clarividente e profética a situação

angustiada e desesperada em que se encontra o ser humano de nosso tempo, mostrando a

inegável preocupação existencial que os caracteriza. Se considerarmos Menino morto de

Portinari como um exemplo de uma expressão artística da condição humana de nossa

época, seu caráter protestante negativo é óbvio. O problema do ser humano em um mundo

de culpa, ansiedade..., mostram-se com tremendo vigor.

Em suma, Menino morto desvela, para nós, o segredo de nossa própria

existência. O ser humano aparecendo como verdadeiramente é..., representado através das

contorções e distorções da forma. Podemos perceber isso nas mãos e pés ciclópicos que as

figuras da tela recebem. Tal é o caso da figura central de Menino morto. A mãe que segura

a criança apresenta pés e mãos desmesurados. A obra expõe e expressa seus mundos. Por

isso, acreditamos em uma verdadeira evocação poética que originalmente é o lugar de

combate entre velamento e desvelamento, a criação que origina e mantém a união essencial

e mística do estar-aí com os deuses, o Ser e o Sagrado. Pois, para Heidegger, com a obra de

arte, se introduz algo de novo na existência do estar-aí. Ela é um acontecimento em que se

articula a quaternidade: a terra e os céus, os mortais e os deuses.

Menino morto mostra o ser humano que vive o devir, a contingência da

condição humana. Torna-se de extrema importância, não apenas por trazer prazer aos

espectadores, como a teoria estética almeja, mas através desta tela os humanos podem não

só conhecer, como também mudar uma realidade. Ultimate concern – é uma preocupação

suprema, a mais inquietante, a maior de todas, aquela que, comparada a todas as demais, as

torna preliminares.

Temos ciência que, como ficou explicitado no primeiro capítulo dessa

dissertação, com o correr do tempo, poderemos ver mais ou menos coisas na tela em que

focalizamos o nosso estudo; sondar mais fundo e descobrir mais detalhes, associar e

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combinar outras imagens, emprestar- lhe palavras para contar o que vemos, mas, em si

mesma, uma imagem existe no espaço que ocupa, independentemente do tempo que

reservamos para contemplá- la.

Por fim, acreditamos que, ainda hoje, na eclosão de uma nova dimensão

tecnológica que marca o nosso mundo, pode acontecer um resgate do caráter mítico-

poético da arte, considerando-a necessária, como sempre foi, na busca de verdades que

trarão mais sentido à existência humana. Talvez, como nos diz Jaci Maraschin, estejamos

entronizando a arte como a rainha das possibilidades. E, talvez, ela seja o mais promissor

caminho deixado no deserto para a expressão do sagrado317. Que nela seja manifesto o

encontro ent re o destino de deuses e homens, em que, como assinala Campos, o ser

humano encontrará abrigo naquele espaço onde o real e o irreal ainda coexistem, onde a

natureza não é reduzida a fim de ser dominada, pois,

A obra de arte sempre nos agride e nos impele a decisões e escolhas. Sobretudo nos possibilita não desistir da esperança. A arte nos permite incorporar a sua mentira ao mundo que habitamos, à Terra que pisamos, quase sempre sem saber do solo... Então esquecemos aquele gesto insólito, aquela palavra oca, pois, de algum lugar, a-létheia nos espreita e nos redime. E nesse momento vivemos o nosso próprio “paradoxo”: em meio à angústia cotidiana, nossa condição originária, resgatamos a nossa vontade de pensar do fundo da desesperança e nos arriscamos para além do transitório e secundário 318.

317 MARASCHIN, J. A (im) possibiliodade da expressão do sagrado, 156. 318 CAMPOS, M. Op. cit., p. 90.

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OBRAS INSERIDAS NO TEXTO

Capítulo 1 P. 29: PORTINARI, C. Os despejados, 1934, pintura a óleo/tela. Coleção particular, Ceará. P. 30: PORTINARI, C. Café, 1935, 130x195 cm, pintura a óleo/tela. Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. P. 32: PORTINARI, C. Lavrador de café, 1934, 100x81 cm, pintura a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo. P. 39: PORTINARI, C. Criança morta, 1944, 179x150 cm, pintura a óleo/tela. Fonds National D’arte Contemporaini, França. P. 40: PORTINARI,C. Retirantes, 1944, 190x180 cm, painel a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo. P. 41: PORTINARI, C. Enterro na rede, 1944, 180x220 cm, painel a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo. P. 42: PORTINARI, C. Menino morto, 1944, 180x190 cm, painel a óleo/tela. Museu de Arte de São Paulo. P. 45: PORTINARI, C. Jesus é despojado de suas vestes, passo X da Via Sacra, 1945, pintura a têmpera/madeira. Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, Belo Horizonte, MG. P. 46: PORTINARI, C. Jesus é descido da cruz, passo XIII da Via Sacra, 1945, pintura a têmpera/madeira. Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha, Belo Horizonte. MG.

Capítulo 2

P. 57: BOTTICELLI, S. Madonna and Child with singing angels, 1477, Berlin-Dahlem Museum, Berlin. P. 67: STEEN, J. The dancing couple, 1663, The national gallery of art, Washington, D.C. The Widener Collection. P. 68: PICASSO, P. Guernica, 1937. Museu do Prado, Madrid. P. 70: FOUQUET, J. Madonna and child, 1450, Koninklijk Museum voor Schone Kunsten, Antwerp, Bergium.

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P. 71: GRÜNEWALD, M. The Crucifixion, 1515. The Isenheim Altarpiece. Musée d’Unterlinden, Colmar. P. 72: GOYA, F. Los caprichos, Plate 24: Nohubo remedio, 1796-1798. The national Gallery of art, Washington, D.C. The Rosenwald Collection. P. 78: TOULOUSE-LAUTREC, H. A corner of the Moulin de la Gallette, (1892. The National gallery of art, Washington, D.C. The Chester Dale Collection. P. 81: NOLDE, E. The Pentecost, 1909. Stiftung Seebüll Ada und Emil Nold, Neukirchen.

Capítulo 3

P. 89: PORTINARI, C. Menino morto. Desenho a óleo/papel. Coleção particular, Rio de Janeiro.

P. 98: GOGH, V. Um par de sapatos, 1888, Arles.