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UNIVERSIDADE GAMA FILHO CURSO DE HISTÓRIA FAZENDO MÚSICA, JOGANDO BOLA NO CANTINHO DO VOVÔ: A COMUNIDADE ALTERNATIVA DOS NOVOS BAIANOS EM JACAREPAGUÁ (1971-1976)

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UNIVERSIDADE GAMA FILHO

CURSO DE HISTÓRIA

FAZENDO MÚSICA, JOGANDO BOLA NO CANTINHO DO VOVÔ: A

COMUNIDADE ALTERNATIVA DOS NOVOS BAIANOS EM

JACAREPAGUÁ (1971-1976)

Rio de Janeiro

2004.1

UNIVERSIDADE GAMA FILHO

CURSO DE HISTÓRIA

FAZENDO MÚSICA, JOGANDO BOLA NO CANTINHO DO VOVÔ: A

COMUNIDADE ALTERNATIVA DOS NOVOS BAIANOS EM JACAREPAGUÁ

(1971-1976)

Trabalho de conclusão de curso, apresentado ao

Departamento de História da UGF para obtenção do Grau

de Bacharel.

ULISSES GRANATER AZEREDO MARTINS

PROFESSOR ORIENTADOR

Profª. Ms.Christina Vital

Rio de Janeiro

Julho 2004

PARECER DA BANCA EXAMINADORA

Grau: ____________ (______________________)

________________________________________________

PROFESSOR ORIENTADOR

_______________________________________________

_______________________________________________

FICHA CATALOGRÁFICA

MARTINS, Ulisses Granater Azeredo. Fazendo música, jogando bola no Cantinho do Vovô: a comunidade alternativa dos Novos Baianos em Jacarepaguá (1971-1976). Monografia de Conclusão do Curso de Bacharel em História, RJ, Universidade Gama Filho, 2004.1.

1. História; 2. Brasil; 3. Contemporânea.

RESUMO

Em 1964, um golpe depôs o governo brasileiro exercido por João Goulart. Tem início o período denominado Ditadura Militar Brasileira, onde as liberdades individuais e institucionais sofreram um recrudescimento. Com a sucessão dos governos militares o controle se torna mais rígido, impedindo manifestações populares e artísticas, principalmente contrárias ao regime.

Nesse contexto surge na Bahia um grupo musical chamado “Novos Baianos”. Esse grupo tem papel marcante na música brasileira resgatando ritmos típicos do cancioneiro nacional como o chorinho, samba e bossa nova, mesclando-os ao rock influenciado pelas guitarras americanas.

Neste trabalho é apresentada a conjuntura social brasileira na época e percorre-se a trajetória do grupo desde sua formação até seu desmanche . É dado especial destaque à vida na comunidade naturalista, fundada em um sítio em Jacarepaguá, o Cantinho do Vovô, durante o período de 1971 a 1976. Mostra-se o cotidiano no sítio e fatores que levavam a um grande interesse pelo modo de vida praticado por seus moradores.

Busca-se compreender os motivos que levaram essa comunidade a se tornar um grande ponto de encontro de artistas e anônimos e como seu modo de vida influenciou a sociedade da época. Mostra-se ainda a influência cultural dos Novos Baianos na música brasileira, observada até os dias atuais.

ABSTRACT

In 1964, a blow put down the Brazilian government exerted by Goulart João. Brazilian Military dictatorship has beginning the called period, where the individual and institutional freedoms had suffered a new outbreak. With the succession of the military governments the control became more rigid, hindering popular and artistic manifestations, mainly contrary to the regime.

In this context a musical group called "Novos Baianos " appears in Bahia. This group has significant role in Brazilian music rescuing typical rhythms of the national music as chorinho, new samba and bossa, mixing them with the rock influenced from the American guitars.

In this work the Brazilian social conjuncture is presented at the time and is covered it trajectory of the group since its formation until it’s disarranges. The life in the naturalistic community is highlighted, establishing in a small farm in Jacarepaguá, the “Cantinho do Vovô”, during the period of 1971 the 1976. The daily life at the small farm is shown and the factors that led to a great interest for the way of life practiced for its inhabitants.

One searches to understand the reasons that had taken this community to become a great point of meeting of anonymous artists and how its way of life have influenced the society of the time. The cultural influence of the “Novos Baianos” in Brazilian music still reveals, observed until the current days.

Agradeço primeiramente à força superior

transcendental, seja ela qual ou quem for: Deus,

Buda, Alá, etc.

Agradeço também a todos que direta ou

indiretamente contribuíram para a realização

desse trabalho, em especial aos colaboradores

Pepeu Gomes e Charles Negrita.

Agradeço ainda à minha família, de

sangue e de escolha e a todos em geral, pelas

constantes mudanças de humor nos momentos

mais inesperados para eles.

Dedicado a meus pais, Guilherme e Ana,

pela confiança que sempre depositaram em mim e

por nunca perderem a esperança, mesmo em

momentos críticos e difíceis.

Dedico a Marcia, por ter me dado um

objetivo pelo qual continuar a caminhada, por mais

árdua que possa ser, o seu amor.

E dedico ainda à Luciana, grande amiga

que se foi cedo, deixando uma lacuna impossível de

ser preenchida.

Fazendo Música, Jogando Bola

(Pepeu Gomes/Baby Consuelo)

Foi vivendo dessa maneira,

Fazendo música, jogando bola

Que aprendi a brincadeira,

Fazendo música, jogando bola,

Como todas as crianças,

Que nada sabem, e sabem tudo

Que aprendi a brincadeira,

Fazendo música, jogando bola

Só queria alegria

Era de noite, era de dia

Foi brincar de aprendiz,

Saquei a vida e sou feliz

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 9

Capítulo 1 – A SOCIEDADE BRASILEIRA NA DITADURA MILITAR .......................... 19

Capítulo 2 – A TRAJETÓRIA DOS NOVOS BAIANOS ..................................................... 32

Capítulo 3 – O CANTINHO DO VOVÔ ................................................................................ 43

CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 53

ANEXOS ................................................................................................................................ 55

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 64

INTRODUÇÃO

Nessa monografia de conclusão da graduação em História nos propomos a estudar a

estrutura e organização, enfim, o modo de vida na comunidade alternativa dos Novos Baianos

em Jacarepaguá, o Cantinho do Vovô, durante o período em que viveram nela, de 1971 a

1976 e as repercussões culturais e políticas dessa alternativa.

Durante a década de 1970 o Brasil viveu um momento muito conturbado de sua

história: vigorava a ditadura militar. Os militares cada vez mais fechavam os espaços para as

manifestações políticas através de Atos Institucionais que regulamentavam a censura e outros

instrumentos de repressão. Nesse contexto surgem os Novos Baianos e ninguém melhor para

defini-los do que Luiz Galvão, um de seus integrantes e fundadores, no livro “Anos 70: novos

e baianos” de 1997:

“um grupo musical que escreveu, compôs, cantou e, aqui no Brasil, deu o toque de

movimento que faltava no palco do show business. Além de ter vivido na prática suas

canções e textos, assumiu uma posição dificílima, com postura, discurso, mística,

experiências zen e alquimias, tudo com um tom anárquico. Enfrentou o tempo Médici como

numa partida de futebol, dando sangue, suor, inteligência, calma, juventude, alma e todas

as virtudes para vencer e, na pior das hipóteses, empatar, porque derrotas tivemos, mas as

transformamos em vitórias; não podíamos perder, representávamos a vitória, o sol, a

alegria, a irreverência, a criatividade, o sonho e a paz. Éramos meninos com casa,

deixamos o ninho paterno e nos estabelecemos em vôo. Acreditávamos ter essa missão.”1

Muito se fala sobre Novos Baianos, principalmente sobre sua vida em comunidade,

mas é preciso estudá-la por sua representatividade cultural na década de 1970 e que se estende

até hoje. Sob o governo Médici, com toda repressão e censura, a comunidade representava um

espaço livre, de troca de idéias e experimentações para a sociedade da época, principalmente

a classe artística. Nessa ótica se faz necessário o estudo para se avaliar o alcance dessa

influência na classe artística e intelectual, já que representantes dos mais variados estilos

freqüentaram a comunidade como Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João

Gilberto, Evandro Mesquita, Roberto Frejat e Cazuza. Essa comunidade se forma em um sítio

1 GALVÃO, Luiz. Anos 70: novos e baianos. São Paulo. Ed. 34. 1997. p. 11.

no Rio de Janeiro – no bairro de Vargem Grande – em 1971 e se prolonga com todas as suas

histórias até 1976, três anos antes do término do grupo2.

Poderia-se analisar um sem número de representantes da classe artística de destaque

durante o regime militar, mas a Comunidade foi escolhida justamente por sua iniciativa

anárquica, inovadora e diferenciada para os padrões sociais da época.

Entendemos que o caráter original deste trabalho é oriundo de sua abordagem já que

autores como Luiz Galvão tratam desse tema mas não enfatizam a comunidade alternativa em

si.

Inicialmente minha proposta seria analisar a produção musical durante todo o período

ditatorial, tendo em vista que seria demasiado complicado abranger de forma satisfatória toda

a quantidade de fontes disponíveis, optei por escolher um único grupo e mais especificamente

um período mais significativo dele, para demonstrar os mesmos valores e as mesmas idéias

que predominaram por todo o regime militar.

Busca-se delinear o trabalho em três objetivos a serem trabalhados. Primeiro, analisar

a conjuntura do período ditatorial, desde o golpe em 1964 até 1971, ano da mudança do grupo

para o sítio, as medidas governamentais e seus reflexos sócio-culturais. O segundo será

apresentar a trajetória do grupo desde sua formação até, mais uma vez, sua mudança para o

Cantinho do Vovô, mostrando o alcance obtido pelos Novos Baianos na cultura brasileira. Por

último, analisar o modo de vida na comunidade alternativa, que foi o lugar onde o grupo

viveu seu estilo de vida mais intensamente.

Buscarei juntar aos objetivos, a problemática da pesquisa, ou seja, a questão que vai

dar prosseguimento ao trabalho: como uma comunidade alternativa consegue servir de centro

de difusão cultural da intelectualidade da época? Devendo-se analisar o contexto histórico e

toda a conjuntura do período pesquisado, buscando elementos que levam a uma compreensão

sobre o modo de vida de uma comunidade que até hoje influencia a cultura brasileira,

2 Pepeu Gomes (4/06/2004).

especialmente a música, com seus valores e experimentações que só poderiam ter acontecido

num ambiente como aquele.

Para que se possa atender à problemática, três hipóteses serão levantadas. Primeira, no

final da década de 1960 e início da de 1970, a sociedade brasileira encontrava-se sob o regime

militar, tolhindo a liberdade de expressão, gerando um ambiente onde afloravam idéias

libertárias e filosofias espiritualistas se tornando propício para o surgimento da comunidade

alternativa. Segunda, a formação dos Novos Baianos nasce da necessidade de um grupo de

jovens em fugir de um ambiente repressor imposto pela ditadura, para que pudessem por em

prática suas idéias. Por último, a comunidade alternativa em questão correspondia às

necessidades de pessoas “comuns” e da classe artística brasileira em exercer sua liberdade,

uma vez que se encontrava afastada do centro urbano dificultando a ação da repressão.

O objetivo do estudo da história é buscar transformações que ocorrem nas sociedades,

mudanças estas que são diversas e atingem todos os níveis da vida humana. Cabe ao

historiador perceber o papel dessas mudanças a partir da investigação científica. Com a

pesquisa histórica pode-se percorrer o caminho dos dados que apurados darão origem ao fato

histórico, cabendo à pesquisa científica transformar dados empíricos em fatos de base

científica.

“A transformação é a essência da história; quem olhar para trás na história e na sua

própria vida, compreenderá isso facilmente. Nós mudamos constantemente; isso é válido

para o indivíduo e também válido para a sociedade. Nada permanece igual, é através do

tempo que se percebem as mudanças”.3

O objeto de pesquisa se encontra no domínio da História Cultural, uma vez que se trata

de uma análise de relações humanas e sua produção artística, preocupando-se com a

influência que o objeto exerceu sobre a sociedade brasileira de então. Para cumprir com meu

objetivo, utilizarei a história oral como método de pesquisa, observando que as fontes sobre o

assunto são escassas e as principais personagens envolvidas estão vivas, por se tratar de uma

história contemporânea.

3 BORGES, Vavy Pacheco. O que é História? São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 50.

A primeira geração dos Annales, encabeçada por Bloch e Febvre, criticava a história

de fins do século XIX e início do século XX, pois esta preocupava-se somente com fatos de

natureza política, diplomática e militar. Combatiam uma história que não dialogava com as

demais ciências humanas (antropologia, psicologia, lingüística, geografia, economia e

principalmente a sociologia), contra esta “história”, Bloch e Febvre, propuseram uma história

nova, comprometida com o social, com as massas anônimas, ou seja, uma história preocupada

com a sociedade global, e que fosse interdisciplinar.

A preocupação para se estudar as “mentalidades” surge desde cedo nos Annales,

Bloch foi precursor da “História das Mentalidades”. Este, junto com Febvre, inaugurou esta

forma de estudar, fazendo da “História das Mentalidades” um legítimo objeto de investigação

histórica, mas eles não foram os primeiros a escrever crenças e costumes, já havia obras desde

o século XIX e início do XX sobre tais temas.

Depois de décadas de ostracismo, durante a segunda geração dos Annales com

Fernand Braudel, a história das mentalidades tenta se firmar durante a terceira geração com

Robert Mandrou, discípulo de Febvre, mas só passa a reinar na historiografia francesa no final

dos anos 60, sendo caracterizada pelos seus temas ligados ao cotidiano, ao amor, à morte, a

homossexualidade, ao corpo, etc.

A partir do momento que passam a respeitar as minorias que fazem parte das

superestruturas surge então uma nova história, que foi consolidada principalmente, porque se

passou a respeitar as particularidades, sendo assim, a descontinuidade e a subjetividade

passam a ser itens que contrapõem o conceito de história totalizante, tão combatida pela

primeira geração dos Annales.

Uma forte influência da vinda das representações coletivas norteava toda uma

representação do mundo social, passa-se a respeitar os valores individuais na sociedade. O

surgimento de vozes, grupos, classes sociais, antes silenciados, deram um novo caminho à

pesquisa histórica e articulavam-se entre a micro e a macro história.

Segundo Roger Chartier não é possível entender uma história cultural desconectada de

uma história social, visto que suas representações são produzidas através de papéis. Ele afirma

seu entendimento de que não há oposição entre o mundo real e o mundo imaginário. O

discurso e a imagem, mais do que meros reflexos estáticos da realidade social, podem vir a ser

instrumentos de constituição de poder e transformação da realidade. Desta forma, a

representação do real, o imaginário é, em si, um elemento de transformação do real e de

atribuição de sentido ao mundo.

As representações coletivas são consideradas ao mesmo tempo matriz e efeito das

práticas construtoras do mundo social. O imaginário tido como um sistema de idéias, é

considerado o outro lado do real. Pode-se perceber que em praticamente todas as formas de

abordagem da questão das representações está o fato de que a linguagem, a palavra é a

principal portadora dos conteúdos representacionais.

Nesse sentido ganha relevo, na pesquisa sobre representações, os testemunhos, os

registros escritos institucionais, a imprensa, entre outros suportes materiais da palavra e das

idéias.

As pesquisas no campo das mentalidades ganham espaço em vários países, mas a

disciplina ou o próprio conceito de mentalidades, sofreu um desgaste devido a inúmeras

críticas, tanto internas quanto externas.

Stuart Clark critica dizendo que as regras de cada comunidade ou cultura são auto-

explicativas, cabendo ao investigador tão somente descobri-las e descrevê-las. Esta crítica

leva autores, como Hyden White, a afirmarem que a história não passa de um gênero e

narrativa, embora diferente da ficção. A própria história abriu espaço para essas críticas por

priorizar a necessidade de uma investigação histórica interdisciplinar e a inserção da história

no pleno domínio das ciências sociais.

A partir da década de 1980 há o surgimento de vários novos campos, esboços de

disciplinas que, em maior ou menor grau, herdam os temas e problemáticas das mentalidades.

A história da vida privada, história do gênero, história da sexualidade, foram alguns abrigos

das mentalidades com as críticas. Outro refúgio é a micro-história, que se firmou nos anos 80,

podendo ser considerada uma das manifestações da história das mentalidades, que parece ter

triunfado em toda parte, favorecida pela aceitação do público não especializado. Mais um

grande refúgio da história das mentalidades foi a história cultural, que procurou difundir a

legitimidade do estudo do “mental” sem abrir mão da própria história como disciplina,

buscando corrigir as imperfeições teóricas que marcaram a corrente das mentalidades.

“Cabe então ao historiador não ignorar que o campo cultural não lhe pertence com

exclusividade e que tampouco é possível considerá-lo como território situado fora da

sociedade como um todo. Existe, ou pelo menos é possível uma abordagem historiográfica

desse campo, mas não é nem poderá jamais ser a única. Daí a importância crucial que

possui a perspectiva interdisciplinar para o conhecimento do cultural”.4

A história cultural é uma história plural: apresenta caminhos alternativos para a

investigação histórica. O reconhecimento dessa pluralidade da Nova História Cultural deve

ser articulado com outras três características: a recusa do conceito vago de mentalidade; a

preocupação com o popular e a valorização das estratificações e dos conflitos socioculturais

como objeto de investigação. Sendo assim, é possível selecionar três maneiras diferentes de se

tratar a história cultural:

1. A história da cultura praticada por Carlo Ginsburg com suas noções de cultura

popular e de circularidade cultural.

Ginsburg abandonou o conceito de mentalidade e adotou o de cultura popular,

definindo-a como “o conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprio das

classes subalternas num certo período histórico”.

A cultura popular define-se por sua oposição à cultura letrada ou oficial das classes

dominantes. Mas por outro lado, define-se também pelas relações que mantém com a cultura

dominante, filtrada pelas classes subalternas de acordo com seus valores. É a propósito dessa

dinâmica, já que a cultura letrada também filtra a cultura popular de acordo com seus valores,

que Ginsburg propõe o conceito de circularidade cultural.4 FALCON, Francisco José Calazans. História cultural: uma visão sobre a sociedade e a cultura.Rio de Janeiro. Ed. Campus, 2002. p. 64.

2. A história cultural de Roger Chartier e os conceitos de representação e de

apropriação.

Chartier se afasta de Ginsburg ao rejeitar a relação entre cultura popular e cultura

letrada em favor de uma noção abrangente, mas não homogênea de cultura. Valoriza o

dimensionamento da cultura em termos de classes sociais, mas desde que não se procure

delimitar as classes em qualquer âmbito externo ao da produção e consumo culturais. Para dar

conta de sua proposta, propõe um conceito de cultura como prática, e sugere para o seu estudo

as categorias de representação e apropriação.

Representação é conceito superior ao de mentalidade que permite articular três

modalidades de relação com o mundo social: o trabalho de delimitação das múltiplas

configurações intelectuais; as práticas que visam a fazer reconhecer uma identidade social e as

formas institucionalizadas e objetivadas.

O objetivo da apropriação é uma história social das interpretações remetidas para as

suas determinações fundamentais, que são sociais, institucionais, culturais.

Este modelo tem o mérito de tentar tirar a história cultural de toda e qualquer

conceituação esquemática, e isto sem cair na indeterminação interclassista das mentalidades.

3. A história da cultura produzida por Edward Thompson.

Edward Thompson possui a formação de um historiador marxista, incluindo uma fase

de militância partidária, o que faz de seu modelo uma espécie de “versão marxista” da história

cultural. Valoriza, portanto, a resistência social e a luta de classes em conexão com as

tradições, ritos e cotidianos das classes populares num contexto histórico de transformação.

Thompson se aproxima de Ginsburg por admitir uma relação entre as culturas das

classes subalternas e a das classes dominantes. Mas também afasta-se por razões genealógicas

e diferença de problemáticas.

Já as diferenças entre Thompson e Chartier são muito grandes. Thompson usa como

pano de fundo histórico e teórico o processo de industrialização e Chartier considera que o

social só faz sentido no mundo das representações práticas e apropriações culturais.

Temos, então, três modelos possíveis de história cultural, os quais, embora diferentes,

reabilitam a importância dos contrastes e conflitos sociais no plano cultural, evitando as

ambigüidades de algumas versões da história das mentalidades. Esse trabalho, por sua

proposta, se aproxima mais da história cultural praticada por Carlo Ginsburg, principalmente

no que diz respeito ao conceito de cultura popular.

“A História Cultural, em resumo, não é nenhuma das seguintes coisas: 1ª uma entre

as diversas disciplinas históricas especializadas e definidas; 2ª apenas uma certa forma de

abordagem e equivalente às várias outras (...). E 3ª a história que tem como seu objeto algo

assim como uma certa dimensão ou “nível” do real. Nem disciplina, nem um tipo de

abordagem, nem tampouco história de uma região em nível específico, a História Cultural

sublinha de fato a ubiqüidade do cultural e aponta na direção das relações deste com o

social”.5

O método de investigação utilizado no trabalho é a história oral. Existem três

possibilidades para se explicar a fundamentação documental da história oral: 1) quando não

existem documentos; 2) quando existem versões diferentes da história oficial; e 3) quando se

elabora uma “outra história”. No nosso caso trata-se da segunda possibilidade.

“História Oral é um recurso moderno usado para elaboração de documentos,

arquivamento e estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. Ela é sempre

uma história do tempo presente e também reconhecida como história viva”.6

Como método, a história oral se ergue segundo alternativas que privilegiam os

depoimentos como atenção central dos estudos. Trata-se de focalizar as entrevistas como

ponto central das análises. Para valorizá-las metodologicamente, os oralistas centram sua

atenção, desde o estabelecimento do projeto, nos critérios de recolhimento das entrevistas, em

seu processamento, na passagem do oral para o escrito e nos resultados.7

5 FALCON, Francisco José Calazans. Op. cit. Contra-capa.6 MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. p. 13.7 MEIHY, José Carlos. Op. Cit. p. 44.

Para realizar as entrevistas foram escolhidos os principais representantes dos Novos

Baianos, Pepeu Gomes, Moraes Moreira, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor e Baby do

Brasil. Luiz Galvão e Paulinho Boca de Cantor residem atualmente em Salvador, na Bahia,

impossibilitando a realização das entrevistas. Baby do Brasil não foi encontrada. Moraes

Moreira não teve espaço em sua agenda para colaborar, pois está em fase de gravação de um

DVD. Em situação semelhante se encontrava Pepeu Gomes, mas esse conseguiu ceder tempo

e contribuir com a monografia. Como uma entrevista apenas foi julgada insuficiente, outros

integrantes foram procurados, surgindo a possibilidade de entrevistar Charles Negrita,

percussionista do grupo, que embora ocupado se mostrou muito receptivo à entrevista.

Esses dois artistas me receberam muito bem, adiando por algum tempo seus

compromissos. Pepeu, por exemplo, atrasou o início de um ensaio para a realização da

entrevista. Já Charles Negrita, por falta de tempo, concedeu-me sua colaboração andando

pelas ruas de Niterói, no Rio de Janeiro. Com Moraes Moreira foi diferente, tentamos agendar

um espaço em sua agenda, mas foi realmente muito difícil, mas mantivemos contatos bem

cordiais para um provável prosseguimento do tema no futuro. O encontro com essas

personalidades da música significou uma grande alegria para mim que sou apreciador de seus

trabalhos, tanto em relação aos Novos Baianos quanto à suas carreiras individuais.

Em posse da colaboração desses dois artistas, e de declarações veiculadas junto à

mídia, foi possível verificar que as entrevistas vieram a corroborar muitas informações

contidas no livro de Galvão e acrescentaram inúmeras outras, bem como declarações de

Moraes Moreira em jornais e programas de televisão, formando um conjunto satisfatório de

fontes (as entrevistas, as declarações na televisão e os jornais e revistas) para a realização da

monografia.

Capítulo 1

A SOCIEDADE BRASILEIRA NA DITADURA MILITAR

O dia 31 de março de 1964 entrou para a história do Brasil como o dia do Golpe

Militar de 64, inaugurando o período conhecido como Ditadura Militar Brasileira, que só se

encerraria 21 anos mais tarde, quando em 1985 era eleito, indiretamente, para o cargo de

presidente da república Tancredo Neves. Este faleceu antes de assumir o poder deixando a

tarefa da redemocratização para seu vice José Sarney.

Esse capítulo tem como objetivo retratar a conjuntura social, política, econômica e

cultural brasileira durante os três primeiros governos militares: Castelo Branco, Costa e Silva

e Médici, para que possamos compreender sob que condições ocorreram a formação da

comunidade alternativa dos Novos Baianos, o Cantinho do Vovô.

O Brasil vivia um período político muito conturbado com o governo de João Goulart,

o Jango. Seus opositores se aproveitaram da visita oficial que fizera à China comunista como

uma das justificativas para a incerteza de sua ascenção à presidência. Contudo, só é possível

entender tal valorização política e estratégica pelos opositores de Jango se considerarmos o

cenário de guerra fria que dividia o mundo entre amigos do capitalismo e amigos do

comunismo. E ainda que se tratando de uma visita oficial, foi utilizada como pretexto pela

oposição e deflagrou uma crise em torno da posse ou não de Jango, que culminaria no Golpe

Militar de 1964.

Embora o motivo oficial que justificava o Golpe fosse o espectro do comunismo, o

que se viu no Brasil , da posse de Jango à sua queda (setembro de 1961 a março de 1964), foi

o choque entre duas distintas vertentes políticas e, principalmente econômicas. De um lado as

“reformas de base” propostas por Jango, de outro a “segurança e desenvolvimento” dos

teóricos da Escola Superior de Guerra (ESG). No lugar da “república sindicalista”, a

concentração de renda, o arrocho salarial e o alinhamento subserviente ao grande capital

internacional. Nesse confronto ideológico predominou a “modernização conservadora”

proposta pela ESG. Para sacramentá-la foi preciso romper o jogo democrático e promover o

fechamento político, o Golpe, ou como os militares decidiram chamar “a Revolução”.8

O golpe inaugurou um dos períodos mais sombrios da história republicana brasileira,

com medidas arbitrárias e violentas que objetivavam a manutenção do poder da burguesia

nacional e internacional, daí a participação dos Estados Unidos cedendo apoio logístico aos 8 BUENO, Eduardo. História do Brasil. Empresa Folha da Manhã e Zero Hora/RBS jornal. 2ª edição. 1997, p. 249.

militares brasileiros no que ficou conhecido como Operação Brother Sam.9 Situação essa que

se repetiu por toda América Latina, onde cresciam movimentos sociais mesmo que de caráter

nacional-reformista.

Nos primeiros dias após o golpe assumiu o poder uma Junta Militar auto-intitulada

“Supremo Comando da Revolução”. Essa junta buscava, através de importantes articulações

políticas, criar uma base institucional e dar uma aparência de legitimidade ao novo regime.

Ao mesmo tempo iniciava-se o processo de perseguição política aos “ameaçadores e

perigosos comunistas”, o que se evidenciou quando, no dia 9 de abril, o Ato Institucional nº 1,

o AI-1, que cassava os direitos políticos de 102 brasileiros em seu artigo 10, foi editado.10

“Art 10 - No interesse da paz e da honra nacional, e sem as limitações previstas na

Constituição, os Comandantes-em-Chefe, que editam o presente Ato, poderão suspender os

direitos políticos pelo prazo de 10 (dez) anos e cassar mandatos legislativos federais,

estaduais e municipais, excluída a apreciação judicial desses atos.

Parágrafo único - Empossado o Presidente da República, este, por indicação do Conselho

de Segurança Nacional, dentro de 60 (sessenta) dias, poderá praticar os atos previstos neste

artigo”.11

Construída a “legalidade” do golpe, o Congresso Nacional, sem os políticos cassados,

elegeu como novo presidente da República o Marechal Humberto Castelo Branco, que ocupou

o cargo de 1964 a 1967. Seu governo foi marcado pela institucionalização do golpe, usando

de mais três Atos Institucionais.

Entre as primeiras medidas de seu governo estão a intervenção nos sindicatos e nas

entidades estudantis, proibição de greves, instauração da censura, criação do Serviço Nacional

de Informações (SNI), implementou o arrocho salarial, garantiu os mecanismos financeiros

que favoreceriam as grandes empresas e centralizou o poder e as decisões no executivo,

governando através dos Atos Institucionais. Suspendeu as eleições diretas para governadores

e presidente e instaurou o bipartidarismo com a Aliança Renovadora Nacional (Arena),

9 A Operação Brother Sam consistia no envio de tropas americanas armadas ao país para apoiar os militares rasileiros em caso de resistência do governo. Não saiu do papel por não haver a resistência esperada.10 NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964-1985. São Paulo: Contexto, 2001 (Repensando a História). p. 14.11 Ato Institucional Nº 1, 09/04/1964.

representante do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), representando a

oposição, conforme podemos observar nos artigos 9º e 18 do AI-2 e no artigo 1º do AI-3

decretados, respectivamente, em 1965 e 1966.

“Art 9º - A eleição do Presidente e do Vice-Presidente da República será realizada

pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão pública e votação

nominal.”.12

“Art 18 - Ficam extintos os atuais Partidos Políticos e cancelados os respectivos

registros.

Parágrafo único - Para a organização dos novos Partidos são mantidas as exigências da

Lei nº 4.740, de 15 de julho de 1965, e suas modificações”.13

“Art 1º - A eleição de Governador e Vice-Governador dos Estados far-se-á pela

maioria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa, em sessão pública e votação

nominal”.14

No campo econômico as previsões não se mostravam muito animadoras para os

trabalhadores, principalmente após a declaração de Roberto Campos, ministro do

Planejamento e Coordenação Econômica: “O processo costumeiro de revisão salarial, em

proporção superior ou igual ao aumento do custo de vida, é incompatível com o objetivo de

desinflação com desenvolvimento”.15 Ou seja, o trabalhador estava fadado a pagar a conta do

golpe. Começou então uma política social compensatória, com a criação do Banco Nacional

de Desenvolvimento (BNH) e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), para que a

conta não fosse tão pesada, ou para que assim não parecesse.

Assim, embora o governo de Castelo Branco tenha passado para a história como um

período liberal do regime militar, montou a base dos governos militares subseqüentes

aprofundando a institucionalização autoritária e a sistematização legal da Doutrina de

Segurança Nacional (DSN)16, limitando cada vez mais a ação de opositores à nova ordem,

12 Ato Institucional Nº 2, 27/10/1965.13 Idem.14 Ato Institucional Nº 3, 05/02/1966.15 Apud. IANNI, O. p. 199. Citado em NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 17.16 Doutrina de Segurança Nacional: corpo de idéias formuladas na ESG, baseadas nas concepções geopolíticas e anticomunistas da guerra fria. Tomou forma mais acabada após 1964, quando o binômio “Segurança e Desenvolvimento” tornou-se lema dos governos militares.

reduzindo a pó a constituição de 1946 e revelando o desejo crescente dos militares de

perpetuação no poder. Transformou o golpe em uma ditadura militar de fato.

Até o momento o governo conseguira manter a oposição quase nula, pois ainda

contava com o apoio de setores civis da sociedade, mas com a edição do Ato Institucional nº 4

(AI-4) em dezembro de 1966, a situação começou a sofrer uma mudança com a oposição

ganhando mais força, principalmente no campo estudantil. O AI-4 convocou o Congresso

Nacional extraordinariamente para aprovar a nova Constituição Federal, que aumentava o

poder Executivo em detrimento dos demais poderes constitucionais, irritando inclusive esses

setores civis que antes apoiavam o golpe, engrossando a oposição.

“Art 1º - É convocado o Congresso Nacional para se reunir extraordinariamente, de

12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967”.17

Outra medida do governo que causaria inquietação na sociedade foi a Lei de Imprensa

de 1967, que mesmo sendo modificada para atender aos interesses desta, não conseguiu

apagar o mal-estar gerado pela imposição da lei. A imprensa não era tão radical como a

classe estudantil, mas passou a dar maior espaço para as manifestações críticas contrárias ao

governo e ao regime após a instauração de tal lei.

Diante dessa situação entrou em cena um importante setor da sociedade que

engrossaria de forma categórica a oposição ao regime, o setor artístico. O teatro, a música, o

cinema, cada vez mais os artistas se engajavam nos assuntos políticos. Seu público era

composto essencialmente de jovens e estudantes ativistas, o que permitia que esses artistas

incluíssem temas políticos nos seus shows em cartaz.

No teatro, o show Opinião reforçou a aliança das classes derrotadas. Na música, os

Festivais da Canção promovidos pelas TVs Excelsior, Record e Globo, que se tornaram

centros de debate políticos através das músicas politizadas com críticas ao regime. No cinema,

Glauber Rocha expôs as lutas populares e as contradições políticas. Na literatura, Antônio

Callado com seu Quarup, mostrou o processo de conscientização política de um padre ao

viajar pelo interior do país.17 Ato Institucional Nº 4, 07/12/1966.

É nesse clima de crescente insatisfação contra o regime que assumiu o governo, em 15

de março de 1967, o segundo presidente militar, o general Artur da Costa e Silva. Seu

governo iniciou um período de recrudescimento das liberdades individuais, de combate aos

grupos de oposição mais radicais que começaram a se organizar na luta armada tornando-se

cada vez mais ativos, além de suprimir qualquer manifestação contrária ao regime, desde as

artísticas até as populares. Apesar de permanecer apenas dois anos no cargo, esse foi o

período mais conturbado até então.

Costa e Silva assumiu com planos de redemocratização e, por ser menos alinhado à

política externa norte-americana, chegou a gerar alguma expectativa positiva em torno de seu

governo por parte de setores da oposição. Mas ao escolher Delfim Netto para ministro da

fazenda se tornou um inimigo da chamada “linha dura” ultranacionalista do exército.

Existiam pelo menos 4 grupos cercando o Marechal Costa e Silva: os “castelistas”,

ligados à ESG; a “linha dura”, que reunia alguns generais comandantes de tropas; uma

tendência mais nacionalista, liderada pelo General Albuquerque Lima e o “grupo palaciano”,

diretamente ligado ao exercício do Poder Executivo, representados pelos ministros Mário

Andreazza, Emílio Garrastazu Médici e Jarbas Passarinho.18 A “linha dura” recebia essa

denominação por desejar a militarização completa do Estado e o controle repressivo

permanente sobre a sociedade.

Delfim Netto reorganizou a política econômica brasileira para tentar reconquistar

apoio de setores burgueses. Essa nova tendência abandonava a política recessiva do governo

Castelo Branco baseada na estabilização e contenção de gastos públicos, direcionando-se para

o desenvolvimento econômico. Assim, o Brasil entrou na fase do “Milagre Econômico”.

O “Milagre Econômico” foi o nome dado por capitalistas estrangeiros para se

referirem ao período de crescimento da economia brasileira na ordem de 10% ao ano - uma

das maiores taxas já vistas na história do capitalismo até então19 -, onde se construiu a idéia de

18 NAPOLITANO, Marcos. Op. cit. p. 26.19 HABERT, Nadine. A década de 70: apogeu e crise da ditadura militar brasileira. São Paulo. Ed. Ática. 3ª edição, 2001. p. 40.

que o Brasil se tornaria uma grande potência até o ano 2000. Esse otimismo teria um preço

muito alto a ser pago, pois o dinheiro para o investimento das obras públicas viria do arrocho

salarial (boa parte do pleno emprego foi financiada direta ou indiretamente pelo Estado ao

aumentar sua máquina), da exploração dos trabalhadores e de empréstimos estrangeiros, o que

elevou drasticamente a dívida externa. Voltaremos a essa questão mais tarde ao falarmos do

governo Médici, que usou à exaustão essa idéia do “Milagre Econômico” e do “Brasil

Grande”.

O ano de 1968 assistiu à eclosão de um amplo movimento social de protesto e de

oposição à ditadura, com destaque para o movimento estudantil e para a retomada do

movimento operário com as greves de Osasco (SP) e Contagem (MG). No caso do

movimento estudantil, o mundo todo assistiu nesse ano um crescimento da participação

política dos estudantes, com protestos de massa extremamente radicalizados contra a ordem

dominante. Ficaram famosos os protestos em outros países além do Brasil, como na França,

México, Estados Unidos e Alemanha, entre outros.

No Brasil, o ponto de partida para a explosão estudantil foi o evento do fechamento do

Calabouço. O Calabouço era um restaurante no Rio de Janeiro freqüentado por estudantes e

havia sido citado pelo Coronel Meira Matos como ponto de encontro e organização de

subversivos em um relatório no final de 1967. Em março de 1968, perto de ser fechado, o

restaurante foi ocupado por estudantes que protestavam contra tal medida. No confronto entre

policiais e estudantes o secundarista Edson Luis Lima Souto foi baleado e morreu. A morte do

estudante chocou a nação, causando enorme comoção e ampliando ainda mais o movimento.

Outro acontecimento mobilizou ainda mais a sociedade, a chamada “sexta-feira sangrenta”.

No dia 21 de junho, em conflitos nas ruas do Rio de Janeiro, 4 manifestantes morreram e

outros 20 ficaram feridos à bala. O impacto sobre a opinião pública foi ainda maior que o da

morte de Edson e a resposta foi quase que imediata. Cinco dias após o ocorrido, com a

presença de artistas, intelectuais, trabalhadores e uma grande massa de estudantes, a sociedade

civil realizou uma das mais espetaculares manifestações do período, a “Passeata dos Cem

Mil”.

Outros dois acontecimentos ainda abalaram o movimento estudantil. Nos dias 2 e 3 de

outubro do mesmo ano um confronto entre estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e

Letras de Universidade de São Paulo (USP) – identificados com a esquerda – e da Faculdade

Mackenzie – sede do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – resultou na ocupação

policial e destruição do prédio da USP, com um estudante secundarista morto e dezenas de

feridos. E no dia 12 de outubro de 1968 a polícia invadiu um sítio em Ibiúna (SP) e prendeu

aproximadamente 700 estudantes que participavam do XXX Congresso da UNE, buscando

enfraquecer o movimento estudantil. Em função disso, muitos estudantes procuraram a luta

armada clandestina.

O que se viu ao longo dos anos de 1967 a 1969 foi a radicalização dos protestos

estudantis e o início da organização da luta armada contra o governo. Esse período marcou a

ruptura de algumas organizações de esquerda no país, como o PCB de Luis Carlos Prestes, de

onde sairia a Aliança Libertadora Nacional (ALN) fundada por Carlos Marighela, que se

tornou uma importante personagem no combate armado contra o regime militar. Além da

ALN, outras organizações de luta armada ao regime surgiram como o Partido Comunista

Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) e a

Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), essa última contava com o Capitão Carlos

Lamarca como membro mais conhecido. Lamarca desertou do quartel de Quitaúna, em

Osasco (SP) com um caminhão cheio de armamentos em 1969.

Entre várias ações que essas organizações realizavam os assaltos a bancos eram

centrais, pois financiavam seus objetivos que, em geral, eram criar focos de guerrilha rural.

Mas as ações que se tornaram mais famosas e surpreendentes foram os seqüestros de

diplomatas de várias nacionalidades, cujas liberdades estavam condicionadas à soltura de

presos políticos do Regime Militar. Essa era uma estratégia para resgatar e livrar os

companheiros dos “porões da ditadura” e de reorganizar os quadros das organizações. O

primeiro seqüestro foi o de Charles Burke Elbrick20 (embaixador dos Estados Unidos), no dia

4 de setembro de 1969, numa ação conjunta do MR-8 e da ALN. Elbrick foi trocado por 15

prisioneiros políticos que foram enviados para o México em 6 de setembro. Essa troca, como

previam os militares da linha dura, abriu precedente para outros seqüestros, realizados em

série. Em março de 1970 foi a vez de Nobuo Okuchi, cônsul do Japão, seqüestrado pela VPR

20 O seqüestro de Elbrick tornou-se o mais conhecido, por ser o primeiro e por estar descrito com detalhes no livro de Fernando Gabeira, O que é isso Compnaheiro? (1979). Gabeira participou do seqüestro. Outro livro que também descreve em detalhes um seqüestro, mas o do embaixador alemão é Os Carbonários (1980), de Alfredo Sirkis, que também participou desse seqüestro.

e trocado por 11 presos políticos. Em junho a VPR e a ALN seqüestraram o embaixador da

Alemanha, Ehrenfried von Holleben, trocando-o por 40 presos políticos. E em dezembro o

seqüestrado foi Giovanni Bucher, embaixador da Suíça, que foi trocado por impressionantes

70 presos políticos. A partir de 1971 os seqüestros foram arrefecendo.21

Diante do quadro de crescente crise e instabilidade o governo precisava reagir para

retomar o controle da situação. A oportunidade apareceu quando do discurso do deputado

Márcio Moreira Alves na Câmara responsabilizando o governo pela violência contra os

estudantes. O governo, ao pedir licença ao Congresso para processar Márcio, teve seu pedido

recusado na sessão de 12 de dezembro de 1968 e usou isso como pretexto para editar o mais

radical dos Atos Institucionais: o AI-5.22

Entre os poderes ilimitados que outorgou ao Executivo estava o direito de fechar o

Congresso por tempo indeterminado, continuar a cassar mandatos, suspender os direitos

políticos de qualquer cidadão por 10 anos, demitir ou aposentar qualquer funcionário público

civil ou militar, estender a censura prévia à imprensa e aos meios de comunicação. Com o AI-

5 a ditadura militar completou o fechamento político em meio a um rastro de violências,

prisões, torturas e mortes.23 Entre os principais artigos desse Ato Institucional encontram-se

os citados abaixo:

“Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso

Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato

Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando

convocados pelo Presidente da República.

Art 4º - No interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido

o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá

suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar

mandatos eletivos federais, estaduais e municipais.

Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa,

simultaneamente, em:

I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função;

21 Números tirados de BUENO, Eduardo. Op. cit. p. 261.22 Pode-se encontrar maiores informações sobre o ano de 1968 no livro do próprio Márcio Moreira Alves, “68 mudou o mundo”, de 1993.23 HABERT, Nadine. Op. cit . p. 10.

II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais;

III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política;

IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança:

a) liberdade vigiada;

b) proibição de freqüentar determinados lugares;

c) domicílio determinado.

Art 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus , nos casos de crimes políticos,

contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular”.24

A partir desse momento, o Gabinete Militar da Presidência passou a coordenar

diretamente a repressão, o que significava maior poder dentro do aparelho militar. O Conselho

de Segurança Nacional também teve seu poder político ampliado, tornando-se praticamente o

centro das decisões até meados de 1969.

Ainda nesse ano o presidente Costa e Silva sofreu um derrame. Em agosto, seu

afastamento gerou uma crise no governo que ficou conhecida como “o golpe dentro do

golpe”. A constituição determinava que o vice Pedro Aleixo, um civil, assumisse o cargo, mas

apesar de ter sido promulgada pelo próprio regime a constituição foi deliberadamente

ignorada. Uma Junta Militar assumiu o controle da nação e baixou novos atos institucionais

dos quais destacam-se o AI-13 e o AI-14.

“Art 1º - O Poder Executivo poderá, mediante proposta dos Ministros de Estado da

Justiça, da Marinha de Guerra, do Exército ou da Aeronáutica Militar, banir do território

nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à

segurança nacional”.25

Ao mesmo tempo em que endurecia as regras políticas, a Junta Militar

institucionalizava a tortura, que se tornou prática comum nos “porões da ditadura”. Mas

a“linha dura”, em nome da “segurança nacional”, contestava essas decisões, principalmente

após o seqüestro do embaixador dos Estados Unidos e a troca por presos políticos. No dia 14

de outubro, por pressões lideradas pelo SNI, a Junta, convencida de que Costa e Silva não se

24 Ato Institucional Nº 5, 13/12/1968.25 Ato Institucional Nº 13, 05/09/1969.

recuperaria, decretou o AI-16, declarando vagos os cargos de presidente e vice, iniciando a

luta pela sucessão.

“Art 1º - É declarada a vacância do cargo de Presidente da República, visto que o

seu titular, Marechal Arthur da Costa e Silva, está inabilitado para exercê-lo, em razão da

enfermidade que o acometeu.

Art 2º - É declarado vago, também, o cargo de Vice-Presidente da República,

ficando suspensa, até a eleição e posse do novo Presidente e Vice-Presidente, a vigência do

art. 80 da Constituição federal de 24 de janeiro de 1967”.26

O General Emílio Garrastazu Médici (ex-chefe do SNI) venceu a disputa presidencial

com certa facilidade, 240 generais o aprovaram, e Médici, como era chamado, assumiu a

presidência no dia 30 de outubro de 1969. Em 17 de dezembro de 1969, Costa e Silva morreu

e o poder passou às mãos dos mais radicais. Era o início dos “Anos de Chumbo”, quando a

repressão se tornou mais forte do que nunca e o “Milagre Econômico” de então formou uma

base de apoio popular em contrapartida ao período de imposição da ordem militar.

O “Milagre Econômico” resumiu-se a um plano econômico elaborado por Delfim

Neto, e tinha três pontos base: o aprofundamento da exploração da classe trabalhadora

submetida ao arrocho salarial, às mais duras condições de trabalho e à repressão política; a

ação do Estado garantindo a expansão capitalista e a consolidação do grande capital nacional

e internacional; e a entrada maciça de capitais estrangeiros na forma de investimentos e

empréstimos.

O governo reajustava os salários de acordo com os índices da inflação do ano anterior,

com isso os salários ficavam abaixo da inflação e da produtividade reais. O controle sobre as

informações por parte do Estado permitia que o governo anunciasse índices de inflação

incorretos para rebaixar ainda mais os reajustes salariais. Outro elemento que contribuiu para

o rebaixamento salarial foi a criação do FGTS, pois acabava com a estabilidade no emprego e

facilitava a demissão, aumentando a rotatividade e a insegurança dos trabalhadores. Esses

aspectos não vinham à tona em função do silêncio imposto pelo aparelho de Estado.

26 Ato Institucional Nº 16, 14/10/1969.

Para que esse mecanismo funcionasse bem era necessário que houvesse investimentos,

então o governo tratou de retirar todo o entrave à entrada de capitais internacionais e à

remessa de lucros. Isso fazia com que a dívida externa brasileira aumentasse de tal forma que

entre 1969 e 1973 ela pulou de 4 a 12 bilhões de dólares e continuou crescendo cada vez mais.

No final da década estava em torno de 60 bilhões de dólares, saltando para 100 bilhões em

1984, uma das maiores dívidas externas do mundo.27

Por trás desse quadro, um grande esquema de propaganda foi montado tendo como

principal lema o slogan “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Além disso a expansão da TV ajudaria o

governo a disseminar a idéia de otimismo no Brasil, veiculando a imagem do “Brasil

Grande”, supondo a promoção do país à condição de potência até o ano 2000. É durante esse

período que são realizadas as grandes obras, chamadas de faraônicas, como a Rodovia

Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói.

Após a decretação do AI-5, a censura impedia que qualquer crítica ao governo fosse

veiculada pelos meios de comunicação e só circulavam aquelas que conseguiam driblar a

censura. Isso impedia que a grande massa da população percebesse a real situação do país e

mergulhasse no clima de otimismo do “Brasil Grande”. Enquanto a economia aumentava sua

produtividade, a diferença entre os mais ricos e os mais pobres, gerada pela concentração de

renda, aumentava de forma acelerada. Isso motivava ainda mais o surgimento de movimentos

de oposição e a intensidade da guerrilha, tanto urbana quanto rural.

Foi durante o governo de Médici que a repressão mostrou sua face mais determinada e

atroz, através de decretos-leis, apoiando-se no Conselho Nacional de Segurança (CNS),

cercado e protegido pelos muros do AI-5, da Lei de Segurança Nacional, da censura e do

fortíssimo aparato militar. Qualquer cidadão poderia ser acusado de subversivo, o que

implicaria, em muitos casos, na sua prisão, tortura e morte, baseado numa simples suspeita.

Os mais perseguidos eram as pessoas ligadas a qualquer atividade de pensamento como

professores, jornalistas, artistas, estudantes. Líderes sindicais e comunitários também eram

incansavelmente vigiados. Mas a repressão reservou a maior parte de sua ira aos guerrilheiros

27 HABERT, Nadine. Op. cit. p. 17.

esquerdistas. Em pouco mais de três anos o governo militar venceu a guerra revolucionária e

fechou o cerco sobre toda a sociedade organizada.

Vista como ameaça ao regime, a criação artística e intelectual ficou na mira da

“segurança nacional”. Dezenas e dezenas de peças de teatro, filmes, músicas, livros foram

proibidos, mutilados integral ou parcialmente. Inúmeros autores, artistas e professores

sofreram toda sorte de pressões, incluindo prisões e processos. Diretamente perseguidos ou

sem clima para produzir, renomados artistas e intelectuais brasileiros partiram

temporariamente em exílio forçado ou voluntário: compositores como Caetano Veloso,

Gilberto Gil, Chico Buarque de Holanda, Geraldo Vandré; autores e diretores de teatro como

José Celso e Augusto Boal; poetas como Ferreira Gullar; cineastas como Glauber Rocha;

professores e cientistas como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Mário

Schemberg, entre tantos outros.28

Foi nesse clima de recrudescimento da atividade intelectual e artística que surgiram os

Novos Baianos, com a “missão” de continuar a produção cultural e o legado dos que foram.

Enfim, continuar a luta. Como diria Luiz Galvão, poeta e um dos criadores do conjunto:“Os Novos Baianos enfrentaram o tempo Médici como numa partida de futebol,

dando sangue, suor, inteligência, calma, juventude, alma e todas as virtudes para vencer e,

na pior das hipóteses, empatar, porque derrotas tivemos, mas as transformamos em

vitórias; não podíamos perder, representávamos a vitória, o sol, a alegria, a irreverência, a

criatividade, o sonho e a paz. Éramos meninos com casa, deixamos o ninho paterno e nos

estabelecemos em vôo. Acreditávamos ter essa missão”.29

E nesse contexto os Novos Baianos aparecem no show business com toda a sua

irreverência e atitude, que se refletiram na vida em comunidade. É a trajetória do grupo até a

sua transferência da comunidade para o sítio, o Cantinho do Vovô, que veremos a seguir.

28 HABERT, Nadine. Op. cit. p. 30.29 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 11.

Capítulo 2

A TRAJETÓRIA DOS NOVOS BAIANOS

Os Novos Baianos foram um grupo musical pautado na base cultural brasileira, mas

com toda uma preocupação de ter um som com elementos universais. Ativo entre os anos de

1969 e 1979, o grupo lançou oito trabalhos que viraram marcos no contexto da música

popular brasileira e até do rock brasileiro dos anos setenta. Tornaram-se emblemáticos dentro

da indústria cultural brasileira pela constante referência às matrizes musicais nordestinas

incorporando também tangos, sambas e boleros, operando a clássica infusão tropicalista,

divulgada alguns anos antes pelos seus conterrâneos tropicalistas Caetano Veloso, Gal Costa,

Gilberto Gil e Tom Zé.

Os Novos Baianos nas palavras de um de seus membros fundadores, Luiz Galvão:

“No início de 1967, na pensão de Dona Maritó, Rua Democrata, 17, Salvador, nascia Novos

Baianos, um grupo musical que escreveu, compôs, cantou e, aqui no Brasil, deu o toque de

movimento que faltava no palco do show business. Além de ter vivido na prática suas canções

e textos, assumiu uma posição dificílima, com postura, discurso, mística, experiências zen e

alquimias, tudo com um tom anárquico”. 30

Os Novos Baianos: Galvão, Paulinho, Moraes, Pepeu e Baby.

O cantor Tom Zé é um dos grandes responsáveis pela formação do conjunto. Foi ele

quem apresentou o agrônomo Luiz Galvão a Moraes Moreira, então funcionário do Banco

Nacional. O interesse de ambos pela música motivou Tom Zé que não imaginava estar dando

início a um dos mais irreverentes e inovadores grupos musicais da MPB. Ele é considerado

um líder e orientador do início de carreira dos Novos Baianos. Foi decisivo na permanência

de Paulinho Boca de Cantor ao lado dos outros dois. Havia uma pressão externa para o

desligamento de Paulinho Boca da dupla, mas Tom Zé profetizou:

“A voz de Paulinho é muito bonita e a desinibição dele vai ser muito importante no

palco. Façam um grupo, que é melhor para vencer as barreiras que vocês vão encontrar”.31

O trio se encontrava diariamente e procurava um grupo de rock para participar de seu

primeiro show, o Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal (que “os críticos da

Bahia sentiram vergonha de comentar, com elogios ou críticas”,32 tamanha a inovação e

originalidade do grupo), que apresentaram no Teatro Vila Velha em 1969. Foi quando, ao

participarem do programa Poder Jovem da TV Itapoan descobriram o Leif’s, banda da qual

faziam parte os irmãos Pepeu e Jorginho Gomes. Essa banda, antes de tocar com os Novos

Baianos, participou do show de despedida de Gilberto Gil e Caetano Veloso antes de serem 30 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 11.31 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 19.32 Jornal da Bahia. 14 e 15/09/1969.

exilados, o Barra 69. Isso porque Gil havia visto o programa da TV no mesmo dia e achara o

guitarrista maravilhoso. Com isso o show dos Novos Baianos foi adiado.

No mesmo dia, ao sair da TV Itapoan, por uma incrível força do destino, o trio

encontrou-se com uma amiga, Ediane, que estava acompanhada de outra menina, então com

16 anos, que trajava um modelo muito original, com calça rasgada no joelho, propositalmente

e trazia à testa um espelhinho. Era Bernadete, que ficaria conhecida como Baby Consuelo e

mais tarde Baby do Brasil. Mas Baby não se incorporou ao conjunto ainda, pois participava

de um faroeste italiano rodado na Bahia. Seu ingresso no grupo aconteceu no ensaio geral do

primeiro show. A atriz que participaria dizendo a maior parte das falas dormiu após fumar

maconha e Baby apareceu na hora certa, para alívio de Galvão, diretor do show.

“É melhor os baianos ouvirem Moraes e Galvão, agora, com calma, porque quando

eles chegarem no sul, não vai ser mole”.33

“Só sabem que o sol é astro rei e mais nada. O sucesso, por certo virá, mas eles não o

prevêem nem se espantarão com isso”.34

Assim o grupo estava formado e continuaram o trabalho iniciado por Caetano Veloso

e Gilberto Gil na Tropicália, adicionando uma irreverência toda própria que pode ser vista

durante os preparativos para o primeiro show. Sem lugar para ensaiar, Galvão deu a idéia de

ensaiarem no Clube dos Subtenentes e Sargentos, que concordaram e não deram tanta

importância aos “cabeludos”, a ponto de poderem descontrair usando drogas, principalmente

maconha, no banheiro do ginásio e disfarçando o cheiro com desodorante, tudo com o apoio

providencial do vigia do ginásio.

O conjunto já estava formado, porém não tinham um nome. O nome do grupo surgiu

no último festival de música da Record, em 1969. A música De Vera estava classificada e

pouco antes de ser defendida no palco um dos diretores da Record, Marcos Rizzo, perguntou

o nome do grupo. Nelson Motta havia sugerido Baianovos, mas soava carioca demais. Marcos

Rizzo propôs então Novos Baianos, que foi aceito prontamente pelos integrantes.33 Comentário de Tom Zé para o Jornal da Bahia. 14 e 15/09/1969.34 Crítica do show Desembarque dos Bichos depois do Dilúvio Universal, publicada no Jornal da Bahia. 14 e 15/09/1969.

Após o sucesso do primeiro show, Galvão, Paulinho, Moraes e Baby se mudaram para

um apartamento de cobertura na rua Maria Angélica, no Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Em

seguida, partiram para São Paulo, levados por João Araújo (pai de Cazuza), que dirigia a

gravadora RGE Fermata e os havia contratado para gravar o primeiro LP. João Araújo é

considerado o descobridor dos Novos Baianos e é tratado com muito carinho até hoje por eles.“(...) o pai do Cazuza foi o descobridor dos Novos Baianos. Isso é muito bacana, é

uma pessoa por quem a gente tem o maior carinho e o maior amor”.Pepeu (2004).

A música dos Novos Baianos atingiu um público variado. Foram convidados para

programas de TV, desde os mais populares como o da Hebe Camargo e Chacrinha, até os

mais elitistas como o de Fernando Faro na TV Tupi.35

Em São Paulo os Novos Baianos foram contratados por Marcos Lázaro, empresário da

gravadora Rhodia, com isso passaram a morar no Hotel Danúbio na avenida Brigadeiro Luís

Antônio, onde se hospedavam os artistas do “primeiro time” da gravadora. Através de Marcos

Lázaro, que já fazia esse trabalho com os Tropicalistas, passaram a se apresentar em grandes

clubes das capitais e a ter bastante lucro. Desde então chama a atenção a forma de lidar com o

dinheiro desenvolvida pelo grupo, mas esse é um assunto que será abordado no próximo

capítulo.

Os Novos Baianos decidiram deixar de promover shows em clubes, pois acreditavam

que esse público não estava atento para as músicas que cantavam. Assim, rompem o contrato

com a gravadora Rhodia.

“Buscávamos somente dar vazão à criatividade e, ao mesmo tempo, nos

apresentarmos para um público específico, preparado para tal”.36

Tal posicionamento criou atritos entre os Novos Baianos e Marcos Lázaro. Numa

visita a Lívio Rangan, diretor da Rhodia, descobriram que recebiam um cachê menor que o de

outros artistas da gravadora. Enquanto Lázaro lhes pagava quinhentos cruzeiros, a Rhodia

desembolsava dois mil e quinhentos para outros artistas, o que gerou revolta e deu início a um

período conflituoso para o conjunto, não por causa do dinheiro em si, mas pela distinção feita 35 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 36.36 GALVÃO, Luiz. Op. cit, p. 45.

entre eles e ouros artistas. De acordo com o contrato eles não podiam acertar shows com

outros empresários até o fim de vigência deste, o que só aconteceria em dois meses. Durante

esse tempo Lázaro continuou pagando o hotel para o grupo, cumprindo o contrato, mas não

arcava mais com sua alimentação, que contava com as amizades feitas com os funcionários do

Hotel Danúbio, que não deixavam faltar comida para os artistas, chegando a desviar bandejas

destinadas a eventos que ocorriam no hotel para o quarto dos baianos. Com o ocorrido os

Novos Baianos voltam a gravar um disco com a RGE Fermata em 1970.

Faltando uma semana para o término do contrato com Marcos Lázaro, no início de

1970, o grupo teve que se mudar, uma vez que não contariam mais com a hospedagem do

Hotel Danúbio paga pelo contrato. Luiz Galvão consegue então quinze mil cruzeiros

emprestados por seu irmão, que são utilizados para o pagamento do aluguel da Casa do

Imirim pelo período de um ano, embora só permanecessem por oito meses.

A Casa do Imirim era uma mansão no bairro de mesmo nome em São Paulo. Alugar

essa casa foi como uma mágica para os Novos Baianos e só foi possível por uma conjunção

de fatores. O terreno da casa tinha um declive acentuado e ocupava uma área que ia de uma

rua a outra e ficava em frente ao cemitério do bairro, afastado do centro. Além disso, os

interessados eram artistas e faziam Dona Ágata, a proprietária, se lembrar de seu finado

marido que também era artista37. A temporada nessa casa foi marcante para o grupo.

O grupo criou polêmica por seu vestuário irreverente, por suas atitudes revolucionárias

e por sua relação com as drogas. As reações eram diversas: espanto e admiração, criando

seguidores e também perseguidores. Certa vez, ainda no Imirim, os Novos Baianos sentiram o

peso do descontentamento. A polícia chegou à casa deles com um mandado judicial. Um

homem com sotaque americano chamado Henry Miller, chefiou a operação que, segundo Luiz

Galvão, usou de toda a arrogância e prepotência para cumprir a ordem: provar que os Novos

Baianos eram traficantes. Henry Miller ordenou que batessem em Boiadeiro para que ele

confirmasse que as drogas, que realmente estavam sendo usadas na casa, eram dos artistas,

mas esse não cedeu à pressão. Ao final da operação foram presos Moraes, Paulinho,

37 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 53.

Cantinflas e Boiadeiro38. Baby estava viajando, bem como Galvão, e isso os livrou da prisão.

Mas graças à boa relação entre um amigo do grupo e o delegado, foram soltos no mesmo dia.

Descobriram depois que bandidos usavam o quintal da casa para se drogarem

utilizando seringas e deixando-as lá para incriminá-los, acabavam recebendo os bandidos com

brigas. Pensando a respeito perceberam que poderiam sofrer uma revanche que seria muito

prejudicial para o grupo. Decidiram então voltar para a Bahia na mesma hora. Tiveram

contratempos na viagem, a Kombi apresentou problemas e tiveram que parar em Medina

(MG), uma cidade pequena, onde conheceram Jaiminho – um fazendeiro chamado Jaime

Barros – que os acolheu e arcou com os reparos da Kombi dizendo que o grupo havia mudado

a sua vida e que nunca poderia pagar.

“Vocês me deram muita vida nesses dias e todos os ensaios aqui na fazenda foram

para mim shows particulares e gratuitos, por isso já paguei o reparo do carro, tome aqui

‘tanto’ para a viagem, e ainda devo a vocês o que nunca vou poder pagar. Vocês mudaram

minha vida”.39

Seguiram viagem rumo à Bahia, enfrentando problemas com a Kombi e, já na sua

chegada, tiveram problemas com a polícia por serem “cabeludos”. Hospedaram-se no Hotel

Miramar e numa tarde tocaram em frente a ele acompanhados de uma platéia de “cabeludos”,

o que incomodou Seu Didi, dono do hotel. Este estabeleceu um prazo de vinte e quatro horas

para que saíssem de lá. Os Novos Baianos responderam negativamente e a polícia foi

chamada. Foram levados presos por ordem de Gutemberg40. Passaram maus momentos na

prisão, sofrendo inclusive ameaças de tortura. Foram liberados vinte e quatro horas depois,

mas antes, Galvão e Pepeu, tiveram seus cabelos cortados. Como desabafo os artistas

ameaçaram deixar o país em denúncia feita no Jornal da Bahia.

“‘Mão alguma pode fazer nada comigo, porque Deus não usou mãos para me fazer.

Usou homem, mulher e mistério. Vou pra não voltar. Nunca pensei que isto dissesse alguma

coisa. Não seremos objeto de ninguém. Nós sabemos. O mundo tem muito chão. Fazemos 38 Cantinflas era o motorista dos Novos Baianos, tinha esse nome pois o achavam parecido com o ator mexicano. Já Boiadeiro era amigo dos integrantes do grupo, era quem fornecia a droga para eles, dizia que eles não podiam se expor indo aos pontos de venda, então ele ia e trazia a droga para todos, principalmente maconha.39 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 76.40 Gutemberg era um delegado baiano conhecido pelo caráter autoritário e petulante, sendo tido também como torturador.

terra’. Este é um trecho da carta de despedida que os Novos Baianos deixam para Bahia,

decididos que estão a abandonar o Brasil. Vão para a Europa, talvez para Londres,

ignorando as privações que por lá passarão. ‘Lá nós teremos a concorrência dos bons,

enquanto aqui a concorrência é também com os maus’ – diz Galvão – para quem ‘pior é

passar 24 horas numa prisão imunda, apenas por ter cabelos grandes’”.41

Após este incidente, o conjunto viajou para Arembepe, na Bahia, a fim de comemorar

a “libertação”. Decidiram se separar temporariamente para alugar uma residência para o

grupo. Reencontram-se no Rio de Janeiro em 1971.

O endereço escolhido foi a Rua Visconde de Irajá, em Botafogo. Era um apartamento

de cobertura que entrou para a história do grupo como a fase mais importante, onde fizeram

contato com vários outros artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Glauber

Rocha e João Gilberto, que chegaram a mudar o estilo musical dos Novos Baianos. O

apartamento virou um ponto de encontro de artistas onde podiam se expressar livremente.

“Isso (a mudança para o apartamento) ocorreu precisamente em inícios de 71,

paralelamente à explosão da juventude ocupando a rua em busca de liberdade. Tudo isso no

ápice da linha dura do período ditatorial militar. Para quem viveu ou assistiu a época, fica

óbvio dizer que o nosso apê era o quartel-general e a sede, ou o aparelho central daquela

movimentação”.42

Passaram por tempos difíceis, pois não conseguiam trabalho. Com isso, os moradores

do apartamento, principalmente Galvão, Pepeu e Baby aprofundaram-se nos estudos sobre o

transcendente, com leituras e acaloradas discussões sobre a Bíblia, e nesse período também se

aprofundaram no uso das drogas, segundo eles a fim de achar respostas para o preconceito das

pessoas em relação ao grupo.

“A situação em que a vida nos colocou naquele momento nos expôs a um inevitável

confronto pelo fato de estarmos empolgados com as drogas, que serviram de instrumentos

eficientes na vitória sobre os preconceitos de que estavam impregnados nossos

pensamentos”.43

41 Trecho da denúncia feita ao Jornal da Bahia do dia 13/11/1970, contendo passagens da carta despedida redigida por Luiz Galvão.42 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 87.43 GALVÃO, Luiz.Op cit, p. 93.

Muitos fatos marcantes para os Novos Baianos se passaram nesse apartamento em

Botafogo, como o nascimento da filha de Marilinha e Paulinho Boca de Cantor realizado na

maternidade do hospital Samaritano pelo Dr. Paulo, que não cobrou, pois era fã do grupo.

Mas o fato que seria mais importante para a carreira do grupo e que mudou os rumos

da música praticada por eles foi a presença e as visitas de João Gilberto ao apartamento,

outros artistas da música também freqüentaram a casa, mas foi João quem mais marcou,

apresentando músicos e músicas brasileiras para o grupo, apontando o rumo que eles

deveriam seguir, que era de voltar suas músicas para as raízes brasileiras como o samba, baião

e outros ritmos nacionais. Foi isso que o grupo fez, misturou os ritmos brasileiros e os aliou

ao seu estilo rock n’roll praticado então, o chamado “chiclete com banana”. É possível

observar a influência de João Gilberto em músicas como Acabou Chorare.44

A importância de João Gilberto é reconhecida tanto por Moraes quanto por Galvão,

que o consideram o guru dos Novos Baianos. Galvão o descreve como mestre em várias

passagens de seu livro e Moraes já afirmou que:

“A presença de João Gilberto na minha vida e na vida de todos os Novos Baianos, no

apartamento, foi essencial. (...) A gente pôde captar a energia do canto de João Gilberto, da

sua música, ele é o nosso guru musical, o guru dos Novos Baianos”.45

Houve uma noite em que os Novos Baianos reuniram a nata artística e sua cobertura se

transformou numa espécie de festival musical, pois em um quarto cantava Caetano Veloso,

em outro se revezavam Gal Costa, Moraes Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Baby. Mais

tarde João Gilberto chegou e ficou cantando na sala. Não demorou muito para a sala ficar

lotada, todos cantaram, mas na maior parte do tempo o show foi de João. Essa passagem

retirada do livro de Galvão demonstra que o apartamento era mesmo um quartel-general da

cultura e da liberdade da época, um espaço onde os artistas podiam se encontrar sem a

preocupação da repressão policial acabar com o encontro a qualquer momento.

44 O próprio Galvão conta sobre essa influência em seu livro. Fala como João Gilberto participou da letra e ritmo da música influenciando-os com sua Bossa Nova.45 Extraído do programa Acústico MTV – Moraes Moreira, gravado em 1995. Grifo meu.

Outro personagem importante no cenário cultural que freqüentou a comunidade foi o

cineasta Glauber Rocha, que se não foi de tamanha importância para todas as pessoas no

apartamento, certamente influenciou Galvão em seus filmes e transmitiu uma boa mensagem

a todos por sua experiência.

Foi durante esse período na cobertura da Visconde de Irajá que o grupo alimentou de

forma mais consistente o modelo de vida em comunidade. Já haviam feito a experiência na

casa do Imirim, em São Paulo, mas foi em Botafogo que a comunidade ganhou corpo e

começou a se formar. Eram várias pessoas morando juntas e dormiam em barracas espalhadas

pelo apartamento, sendo a sala o espaço comum, onde, por muitas vezes os rapazes jogavam

bola. Esse sentimento de comunidade ficava mais evidente pelo clima lisérgico em que vivia o

grupo, acompanhe a descrição do apartamento:

“Moraes e Marília, a sua companheira, viviam em um quarto carruagem. Eu

coloquei uma cobertura de pano por baixo do teto do quarto, o que dava a idéia de um

circo, e, também, por eu dormir dentro de um guarda-roupa embutido, num colchão de

tatame e que tinha uma cortina de veludo, aquilo fechava no estilo teatro. (...) Baby e Pepeu

moravam numa cama aérea, pendurada no teto da varanda. Grandhi armou sua casa num

canto da varanda. A sala era chamada de praça, porque ali nos encontrávamos para bater

papo”.46

Esse estilo de vida agradava muito a João Gilberto, que dizia que seu sonho sempre foi

morar como eles. Mas o sonho de João era uma realidade para o grupo, que levava a

comunidade a sério, tanto que o número de moradores foi crescendo e a comunidade logo não

cabia mais na cobertura. Foram despejados do apartamento e a saída encontrada foi mudarem-

se para um sítio no povoado Boca do Mato, em Vargem Grande, Jacarepaguá.

Essa mudança marcou o início de outro período importante na vida da comunidade

naturalista onde continuariam a receber artistas e intelectuais e onde outros fatos importantes

ocorreram como a procura de liberdade religiosa, artística, humana.

46 GALVÃO, Luiz. Op. cit. p. 112.

“A música acontecia assim: eu com um violão, daqui a pouco chegava o Pepeu com

outro violão, Jorginho com o cavaquinho e de repente estávamos tocando e compondo, era

uma maneira completamente livre de fazer música”.47

A vida em Jacarepaguá foi marcada por bons e maus momentos e preparou alguns

Novos Baianos para o devir. Com certeza foi o período mais espiritualista do grupo, onde

dedicaram muito tempo ao estudo da religião, aprofundaram a compreensão de vida em

comunidade, desenvolveram uma relação diferente com o dinheiro, e claro, jogaram muita

bola, ou baba, como chamam os integrantes do grupo, fundando os Novos Baianos Futebol

Clube.

O Novos Baianos Futebol Clube no campo da comunidade.

A comunidade em Jacarepaguá, denominada de Cantinho do Vovô, viu o grupo se

interessar e ingressar no carnaval da Bahia, sendo o primeiro grupo a cantar em cima de um

trio elétrico, mas também assistiu ao início do fim dos Novos Baianos com a saída de Moraes

Moreira e, conseqüentemente, dos outros integrantes, terminando com a comunidade e com o

grupo, fazendo com que seus componentes buscassem sucesso em carreiras individuais.

O próximo capítulo é dedicado ao estudo dessa fase dos Novos Baianos, na sua vida

no Cantinho do Vovô, e na influência que a comunidade teve durante esse período para a

música e sociedade brasileira.

47 Extraído do programa Acústico MTV – Moraes Moreira, gravado em 1995. Grifo meu.

Capítulo 3

O CANTINHO DO VOVÔ

Nesse capítulo abordaremos a vida na comunidade alternativa dos Novos Baianos. Sua

organização, administração, conduta de seus membros e seu cotidiano. Destacaremos os

pontos principais que fazem dela o objeto de estudo dessa monografia.

Em 1971 os Novos Baianos foram despejados da cobertura de Botafogo por falta de

pagamento e tiveram que procurar um novo lugar para morarem. É nesse ano que se dá a

mudança do grupo para o sítio em Jacarepaguá, o Cantinho do Vovô. Além da falta de

dinheiro, a principal razão, a mudança foi motivada, como diz Galvão em seu livro foi a

procura de mais espaço e privacidade.

“defendemos, para nós mesmos, direitos humanos, ao alcançarmos mais um pouco

de espaço e conquistarmos um mínimo de privacidade”.48

“Éramos conscientes do que fazíamos. A gente queria uma nova família, maior do

que a determinada pelos laços de sangue, e morávamos todos juntos, criando os filhos, que

hoje são amigos, juntos”.49

48 Galvão, Luiz. Op. cit. p. 139.49 Entrevista de Moraes Moreira para o Estado de São Paulo (16/04/1997).

“Não...não, saímos de lá porque fomos despejados mesmo. A gente sempre era

despejado, a gente não tinha dinheiro. (...) a gente morou em 27 na cobertura e trinta e

poucos no sítio”.50

“Porque protestar contra a sociedade que consome nossas músicas? Seria um contra-

senso, uma incoerência. O sítio substituiu o apartamento de Botafogo porque é mais

espaçoso”.51

A porteira de entrada do sítio tinha a forma e o desenho da bandeira brasileira, com a

diferença que na faixa branca no lugar de Ordem e Progresso estava escrito Cantinho do

Vovô. Na primeira casa moravam Paulinho Boca de Cantor, sua esposa Marilinha e seus

filhos Maria e Gil. Quase em frente, na parte térrea ficavam Moraes Moreira e Marília, sua

companheira, com seus filhos Ciça e Davi. No primeiro andar, a maioria dos solteiros se

instalavam com casas-cabanas de pano, como no apartamento de Botafogo, e ainda sobrava

uma grande área formando uma sala grande onde, geralmente, se reuniam para conversarem e

tocarem músicas com participação coletiva, era um espaço de socialização. Baby residia na

última casa do lado direito, próxima ao pomar. Na última casa do lado esquerdo, em um

cômodo de dois metros por dois metros, com as paredes revestidas de esteiras morava Luiz

Galvão. Nesse mesmo lado, na esquina, morava o pessoal da percussão: Bola, Jorginho e

Charles Negrita. O primeiro andar funcionava como quarto de hóspedes. Havia ainda dois

campos de futebol gramados. O pequeno, do tamanho de uma quadra de futsal, ficava na

entrada do sítio. O outro, com dimensões oficiais da FIFA, pertencia ao Guanabara Esporte

Clube de Jacarepaguá e era alugado constantemente para partidas e torneios de futebol

promovidos pelo grupo.

50 Entrevista cedida por Pepeu Gomes (04/06/2004).51 Declaração de Luz Galvão ao ser indagado sobre a mudança para o sítio. Revista Realidade. p. 97.

Alguns moradores do sítio em momento de alegria e descontração.

O dia começava com o café da manhã no quintal, atividade que realizavam juntos, à

tarde aconteciam os ensaios e por volta das 16 horas o tempo era reservado para os jogos de

futebol, ou na gíria baiana, o “baba”. Também havia sempre visitas de pessoas querendo

conhecer o sítio.

“Acordava de manhã, dez horas, onze horas mais ou menos. Eu saía com Paulinho

Boca de Cantor e ia comprar o jornal, comprar frutas. A gente pegava o carro, a gente ia

até Vargem Grande e quando voltava o pessoal já tava todo acordando. Então o pessoal

tomava café e quando dava meio-dia mais ou menos começavam os ensaios, que a gente

preparava ensaios que iam até umas quatro horas da tarde. Quando acabavam os ensaios

sempre ia gente nos visitar, o sítio estava sempre com gente e aí começava a ter futebol. A

gente tinha um campo dentro de casa e esse campo era como se fosse o alçapão dos Novos

Baianos, ali era difícil ganhar da gente entendeu, era difícil mesmo!” Negrita (2004).

No início da comunidade as coisas aconteciam sem muito planejamento e o grupo

chegou a passar fome, mas com a chegada das crianças essa situação teve que mudar. Para

administrar esse cotidiano foi preciso dividir tarefas entre as pessoas da comunidade, que não

tinha líder, elas ficavam responsáveis pelas áreas onde tinham maior conhecimento. Paulinho

Boca de Cantor e Marilinha foram escolhidos como administradores do sítio na área dos

assuntos gerais, que fugiam do plano das individualidades. A despensa e a cozinha

funcionavam na sua casa, servindo a toda comunidade. Com o tempo uma tendência à

descentralização foi ganhando corpo, tanto administrativamente quanto em relação ao

dinheiro. A reserva para solucionar imprevistos relacionados com as crianças ficava a cargo

das mulheres, já o destinado ao futebol ficava com Zé Baxinho, e o referente a cordas e

instrumentos musicais era da responsabilidade de Moraes e Pepeu. Não existia o líder dos

Novos Baianos, mas todos eram responsáveis por todos.

“Sei que não é pejorativo me apontarem com líder dos Novos Baianos. É charme,

bobeira dos jornais. Mas não concordo. A Ma (Marília, a do Paulinho) conduz as coisas

com segurança dentro da casa, arruma tudo. No som, Pepeu e Moraes é que dão as ordens.

Não vou ser ridículo dando palpites”.52

Dessa descentralização o que mais chama a atenção é o tratamento dispensado na relação

com o dinheiro. Em razão do pensamento filosófico que adotavam, não depositavam dinheiro

em banco e, conseqüentemente, tinham que guardar sobras para atender ao orçamento. Esse

dinheiro era guardado atrás das esteiras que forravam as paredes do quarto de Luiz Galvão,

mas somente as grandes quantias de dinheiro tinham esse destino, quantias menores eram de

uso de todos. Uma certa quantia de dinheiro, não muito alta ficava depositada dentro de um

saco que ficava pendurado na maçaneta da porta da cozinha. O saco era chamado de Mocó.“Com relação ao dinheiro. A gente arrecadava dinheiro, quem ganhava direitos

autorais, de show, essas coisas e colocava dentro do Mocó. O Mocó ficava dependurado, aí

você precisava comprar uma camisa, um sapato, um tênis, você ia lá pegava o dinheiro,

comprava e botava o troco ali. Então você não tinha aquela ambição por dinheiro, porque

um tem que ter mais do que o outro. Os Novos Baianos não tinham cachê, a gente subia no

palco, fazia o show e o dinheiro ficava dentro do Mocó. Não era dividido. O Galvão,

Moraes, Paulinho Boca, que eram pessoas de frente, poderiam até ganhar mais, mas não

tinha isso, porque a gente dividia. Era uma coisa muito importante pra gente.” Negrita

(2004)

“O dinheiro, não tinha divisão, ela ficava dentro de um saco preso à maçaneta atrás

da porta, quem queria dinheiro ia lá e pegava, fazia, comprava o que quisesse, quando

voltava pegava o troco e botava no saco de novo. Roupas, a gente não comprava roupas, se

eu chegasse com uma camisa nova e Galvão dissesse: que camisa legal, eu dava pra ele na

hora, então era o ensaio de um desprendimento material muito forte. Isso a gente tinha

mesmo, de verdade, em tudo, em comida, com roupa, com carro, com dinheiro.

Tinha trimestre que a gente recebia 30, 40 mil cruzeiros, o sítio custava 10, ninguém

lembrou de tirar 10 e comprar o sítio. Então realmente era uma coisa muito diferente.”

Pepeu (2004)

52 Luiz Galvão para a Revista Realidade. Ano IX. Nº 101. Agosto 1974. Ed. Abril. p. 96.

Esse tipo de comportamento acabava atraindo a atenção de muita gente. Aguçava a

curiosidade das pessoas. O estilo de vida dos Novos Baianos era assunto desde documentários

estrangeiros até matéria de prova de escolas do Rio de Janeiro. As pessoas tentavam entender

como eles conseguiam viver da maneira que viviam, sem preocupações materiais. Os Novos

Baianos tiveram grande aparição na mídia.

“A gente teve lá televisão do mundo inteiro, pra perguntar pra gente porque a

gente estava vivendo todo mundo junto, como é que duas pessoas que são casadas a coisa

mais difícil e viver junto, como é que vinte e tantas pessoas conseguiam. As televisões iam lá

perguntar isso. A gente não sabe a resposta, e gente apenas se ama. A gente ama todo

mundo, a gente ajuda um ao outro, entendeu?! Eu acho que essa coisa do Paz e Amor, é um

símbolo que se dá muito bem com a história dos Novos Baianos, porque a gente era muito

isso entendeu?!”Pepeu (2004).

“E as pessoas se perguntavam mesmo, era até prova de colégio. Muitas vezes a gente

estava dentro do sítio e chegava um ônibus, porque a prova do colégio era a vida dos Novos

Baianos. E eles começavam a fazer as perguntas, porque a gente era um grupo livre

achavam que a gente era hippie. Porque no Brasil a sociedade estava reprimida, mas a

gente não entregava o ouro, um confiava no outro.” Negrita (2004).

Esse tipo de comportamento atraía também a atenção de pessoas do meio artístico.

Muitas delas visitavam a comunidade como Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gal Costa,

Gilberto Gil, Evandro Mesquita, Roberto Frejat, Cazuza e até Chacrinha e Elke Maravilha

foram à comunidade no aniversário de dez anos dos Novos Baianos. Os Novos Baianos eram

uma grande festa, a comunidade vivia em clima de alegria, de amor e de compreensão, o que

levava as pessoas a irem conhecê-la. Como dizia Baby: “Todo mundo aqui está a fim de festa.

Somos gente crescida brincando de casinha de verdade. A gente foi se encontrando e

descobriu que alguma coisa diferente estava nascendo”.53

A comunidade era um grande ponto de encontro de pessoas, famosas ou não que

queriam experimentar um pouco mais de liberdade e de desprendimento das coisas materiais.

Jogadores de futebol eram freqüentadores da comunidade como Afonsinho, ex-jogador do

Flamengo. Até bandidos recém saídos da cadeia eram recebidos pelos Novos Baianos.

53 Baby do Brasil para a Revista Realidade, p. 97.

“A gente sempre passava pras pessoas, que existia um lado no ser humano que era

esquecido, que era o lado da bondade, da solidariedade. Não é à toa que a gente hospedou

desde artista até marginal. O nome da gente corria até na prisão! Teve um cara que foi lá e

disse: ‘olha aqui, eu saí de cana, eu cumpri pena e me falaram na prisão que existia um

grupo, aqui em Jacarepaguá, que era muito humano, que ajudava as pessoas e eu vim aqui

ficar uns dias com vocês porque eu não tenho onde dormir’”. Pepeu (2004).

“Que eu me lembre o Evandro Mesquita mesmo era muito ligado na gente, Frejat,

Cazuza, essas pessoas todas que eram jovens. Porque os jovens, principalmente os que

moravam em Leblon, Ipanema, gostavam da gente, porque a gente dava alegria, tava

sempre fazendo festa. Era um grupo grande, e quase todo mês tinha um aniversário pra

gente fazer, então tudo isso era festa e a gente nunca perdeu esse equilíbrio entre nós, uma

coisa muito legal mesmo!” Negrita (2004).

Além de tudo havia um grande clima de harmonia, de paz e amor entre as pessoas que

ali se encontravam. A natureza contribuía para isso, e justo num tempo onde as liberdades não

podiam ser exercidas em sua plenitude. A comunidade era uma alternativa para as pessoas que

queriam experimentar esse clima dos Novos Baianos.

“A gente tocava no galinheiro... debaixo da árvore, a gente achava que a árvore

falava com a gente... isso não tem a ver com drogas não, isso tem a ver com feeling mesmo.

A gente batia na árvore pra testar se tinha som, a gente via a natureza como uma forma de

letras, de notas musicais. Então eram coisas que não dá pra explicar muito mas dá pra

entender, você entendeu?!” Pepeu (2004).

Moraes e Paulinho sob a sombra das árvores.

Além de terem sido importantes para a sociedade brasileira, nesse sentido de

proporcionar uma liberdade maior em sua comunidade, a música dos Novos Baianos também

foi de fundamental importância e influencia gerações de músicos até hoje. Em 1972 foi

lançado o LP Acabou Chorare, o mais significativo da carreira do grupo. Esse disco traz

inúmeros sucessos como a regravação de “Brasil Pandeiro”, de Assis Valente, “Besta é tu”,

“Tinido, trincando”, “A menina dança” e “Preta Pretinha”, que está registrada para a

posteridade no Museu da Imagem e do Som como uma das dez músicas mais populares do

Brasil. Além disso, na edição de 25 de agosto de 1997 do Jornal da Tarde, vários críticos de

música votaram nos dez melhores discos da MPB. Acabou Chorare foi o segundo mais

votado, ficando atrás apenas de Tropicália (1969). Em setembro de 1976, o Jornal de Música

e Som publica reportagem sobre o grupo e destaca: “A condição de sambistas que os Novos

Baianos assumiram com o LP Acabou Chorare provocou uma revalorização tanto do

chorinho como de instrumentos do choro, como o bandolim e o cavaquinho”.

“No Acabou Chorare, que é considerado um dos melhores discos dos últimos 100

anos, foi eleito o melhor disco de rock do Brasil em todos os tempos. Preta Pretinha é uma

das 10 canções mais conhecidas do Brasil. Eu sei disso porque eu vi a pesquisa. E o Acabou

Chorare é considerado um disco antológico, ele fez 30 anos agora, se você ouvir hoje ele é

atual, se você ouvir daqui a 30 anos ele vai continuar atual. Gravado em 4 canais, com

todas as dificuldades”.

Pepeu (2004).

Outro elemento da cultura popular brasileira enriquecido pelos Novos Baianos foi o

Carnaval. O grupo contribuiu para a consolidação dos trios elétricos nos carnavais da Bahia.

O trio elétrico Novos Baianos veio pela admiração que o grupo tinha pelo trio Dodô e Osmar,

criadores do trio elétrico.

O trio elétrico dos Novos Baianos

A história dos Novos Baianos com o trio elétrico começou em 1975, quando Moraes

Moreira subiu no trio de Dodô e Osmar e começou a cantar. Até aquele momento ninguém

havia cantado em cima de um trio elétrico. Os trios elétricos eram apenas musicais, o máximo

que havia era um pequeno discurso e as músicas tocavam, mas sem voz. Além disso o grupo

foi o primeiro a instalar, adaptar aparelhagem de som em cima do trio, que era feito apenas

com cornetas, como explica Charles Negrita:

“O carnaval de Salvador sempre foi feito com as cornetas e os Novos Baianos fizeram

um show em São Paulo e pegamos essa grana e alugamos um som e fomos o primeiro

grupo a implementar mudanças eletrônicas no carnaval da Bahia. Quando chegamos o

povo ficou impressionado com a gente, com aquilo que estava vendo. Chamavam a gente de

Morcego Negro, porque amarramos as caixas no caminhão deixando tudo preto. Mudamos

isso na Bahia e isso não é falado em Salvador hoje em dia, além de botar o cantor em cima

do Trio elétrico, que foi Moraes Moreira, pois antes os trios elétricos eram apenas

musicais, instrumentais.”

Negrita (2004).

Mais momentos dos Novos Baianos em seu trio elétrico animando o carnaval de Salvador.

Em 1975 os Novos Baianos encaram a saída de Moraes Moreira, que inicia carreira

solo e em 1976 o grupo se despede do Cantinho do Vovô e parte para São Paulo, no

Pacaembu, onde moram até 1979, quando o grupo se desfaz.

“Nós ficamos de 1971 a 1976, porque depois nós fomos pra São Paulo, no Pacaembu.

Com o grupo completo, e moramos em São Paulo até 1979. Aí é que o grupo se desfez.”

Negrita (2004).

Após a separação do grupo, grande parte dos músicos passa a acompanhar Pepeu e

Baby em sua carreira juntos.

“Gilberto Gil tinha uma força muito grande na Warner ele fez um convite pra Baby e

pra Pepeu, e como o grupo tinha acabado eles foram pra Warner. Foi quando Caetano fez

Menino do Rio pra Baby Consuelo e Gilberto Gil fez um reggae que Pepeu gravou. Pepeu

como tinha uma grande força dentro do grupo, quando Moraes saiu ele ficou de maestro da

gente, ele assumiu a responsabilidade de conduzir a banda, então ele convidou a gente pra

ir fazer esse trabalho com ele. Jorginho foi o baterista, Baxinho o baixista e eu fui pra

percussão e o Bola que no princípio foi convidado mas depois saiu do grupo de Pepeu. Isso

na carreira de Pepeu e Baby.”Negrita (2004).

Além de tudo o que foi dito até agora os Novos Baianos são vistos por seus integrantes

como tendo um papel importante para a sociedade da época, como contestadores alegres, pois

como diz Moraes Moreira:

“(...) os grupos de resistência política tiveram importância fundamental, mas houve

um momento em que baixou a depressão, o que a gente fez foi dizer que dava pra ser alegre,

que havia outro Brasil a valorizar. Nossa idéia era mostrar que Assis Valente era legal, que

tocar cavaquinho era legal, que cantar frevo e samba era legal, e era mesmo”.54

Em 1997 o grupo se reencontrou para uma apresentação na 4ª edição do Heineken

Concerts. Na 3ª noite de festival Moraes Moreira recebeu como convidados: Baby do Brasil,

Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, Jorginho Gomes, Dadi e ainda Marisa Monte.

Mantiveram sua irreverência intacta e foram elogiados pela mídia: “o reencontro dos Novos

Baianos, depois de mais de vinte anos, rendeu um espetáculo vibrante, irresistível, sem tons

nostálgicos. A irreverência de cada um continua intacta e juntos eles ainda são únicos”.55

Marisa Monte, Moraes e Baby na apresentação do 4º Heineken Concert.

Para Moraes Moreira os Novos Baianos ainda não foram completamente entendidos.

“A inteligência da época negou nossa importância. Simplificava-se: ‘são um bando de

malucos’ e todos se esquivavam de entender”. Vai mais longe: “nós éramos a resistência

54 Entrevista de Moraes Moreira para o Estado de São Paulo (16/04/1997).55 Estado de São Paulo (16/04/1997).

da verdade, contra o poder militar e contra a tristeza que vinha da esquerda e contaminava

toda a música”.56

Os anos 70 passaram. Os anos 70 voltaram em comemoração e fazendo justiça à

história e à arte vivida. Os casamentos se transformaram. Os personagens continuam felizes e

atuantes. Todos antenados e atentos. Os anos 70 têm um final feliz.

CONCLUSÃO

No dia 31 de março de 1964, através de um golpe que depõe do governo o então

presidente João Goulart, o país passa a ser governado por uma junta militar que, mais tarde,

passa o governo para o Marechal Humberto Castelo Branco, dando início ao período

conhecido como Ditadura Militar Brasileira. Esse período se estende até 1985, quando foi

eleito, indiretamente, para o cargo de presidente da república Tancredo Neves, que falece

antes de assumir, herdando o cargo seu vice José Sarney.

Esse período ditatorial é considerado um dos períodos mais sombrios da história

republicana brasileira, pois o governo, objetivando a manutenção do poder da burguesia

nacional e internacional, utilizava-se de medidas arbitrárias e violentas. Os atos institucionais

tornavam o clima cada vez mais tenso na sociedade e, em 1967, com a publicação da Lei de

56 Estado de São Paulo (16/04/1997).

Imprensa, o setor artístico acompanhado pelo estudantil começou a se manifestar

contrariamente ao governo. Foi nesse clima de crescente insatisfação contra o governo que

assumiu a presidência o General Artur da Costa e Silva. Seu governo ficou marcado pelo

recrudescimento das liberdades individuais, pelo combate aos grupos de oposição mais

radicais e por suprimir qualquer manifestação contrária ao regime, desde as artísticas até as

populares.

Quando o General Emílio Garrastazu Médici (ex-chefe do SNI) assume o governo em

1969, tiveram início os “Anos de Chumbo”, período em que a repressão tornou-se mais forte

do que nunca. Vista como ameaça ao regime, a criação artística e intelectual ficou na mira da

“segurança nacional”. Dezenas e dezenas de peças de teatro, filmes, músicas, livros foram

proibidos, mutilados integral ou parcialmente. Inúmeros autores, artistas e professores

sofreram toda sorte de pressões, incluindo prisões e processos. Diretamente perseguidos ou

sem clima para produzir, renomados artistas e intelectuais brasileiros partiram

temporariamente em exílio forçado ou voluntário. Foi nesse clima de recrudescimento da

atividade intelectual e artística que surgiram os Novos Baianos, com a “missão” de continuar

a produção cultural e o legado dos que foram.

Na Bahia em 1969, um grupo de jovens músicos criou os Novos Baianos. Desde o

princípio a proposta era consistente e os Novos inovavam sem ser ingênuos. No início dos

anos 70, passaram pela “migração musical” a que todos os artistas nordestinos daquela época

eram levados, indo para o Rio de Janeiro. Em seus primeiros momentos no Rio, no

apartamento em Botafogo, os baianos eram visitados constantemente por João Gilberto, o que

influenciou bastante o grupo.

Em 1971 o grupo muda-se de Botafogo para Jacarepaguá e inicia sua vida na

comunidade alternativa, o Cantinho do Vovô. Com a conjuntura social da época e o

afastamento do centro urbano, o sítio funcionava como um grande ponto de encontro de

artistas e anônimos, que procuravam abrigo e experimentação da filosofia “Paz e Amor” dos

Novos Baianos.

As pessoas eram movidas pela curiosidade a respeito do modo de vida do grupo e pelo

clima de alegria que proporcionava. Os artistas viam no sítio a possibilidade de exercer uma

liberdade negada nos centros urbanos devido ao controle exercido pelo governo. Esses

atrativos, aliados à troca cultural que ocorria na comunidade a tornavam o “quartel general”

da cultura e da liberdade, num ambiente onde não havia distinções e todos eram bem-vindos.

Os Novos Baianos contribuem de forma significativa para a música brasileira

resgatando ritmos como o choro, o samba, a bossa nova e inovando ao aliá-los ao rock de

influência americana. Outra contribuição importante do grupo foi a modernização do carnaval

baiano. Foram eles que eletrificaram o som dos trios elétricos com grandes aparelhagens e

Moraes Moreira foi a primeira pessoa a cantar em um trio elétrico. Os Novos Baianos

animavam o carnaval da Bahia na segunda metade da década de 1970.

Por essa razão o Cantinho do Vovô tem nesse trabalho, o resgate de sua história, uma

análise de sua relevância sócio-cultural na história brasileira e a oportunidade de discutir

sobre a cultura recente do país.

ANEXOS

ANEXO I

Entrevista com Pepeu Gomes (4/06/2004) – No estúdio Floresta, Cosme Velho – RJ

UM - Eu queria saber como é que eles viram você?...o grupo viu vocês tocando né, no Leif’s, na televisão, parece que eles foram num programa de TV.PG – Na verdade o Leif’s acompanharam Gil e Caetano no Barra 69, quando a gente saiu do Barra 69, que o Gil e Caetano foram para Londres, nós fizemos os Novos Baianos, fizemos o grupo Novos Baianos. E chamava-se Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal, aí já era os Novos Baianos já só que a gente permaneceu como os Leif’s ainda, um pouco. Depois desse show, na nossa ida pra São Paulo o Leif’s já se desfez, porque eu fui sozinho pra São Paulo, entendeu?! Em São Paulo nós já estávamos juntos já.

UM – Vocês começaram a viver em comunidade, na verdade, ainda em Botafogo né?PG – É, Botafogo foi antes do sítio, ficamos quatro anos em Botafogo, na cobertura.

UM – Você lembra de quando até quando?PG – Não lembro, não lembro. Ah, talvez eu lembre porque como o Gil foi pra Londres em 69, Botafogo deve ter sido 71, eu acho que em 74 a gente já tava no sítio. Acho que é mais ou menos isso, porque eu me lembro que a Gal precisou de um guitarrista, e eu recebi um recado

do Gil, de Londres, em Botafogo. Quer dizer, uma indicação do Gil para a Gal do Pepeu, aí eu fui tocar com a Gal, Fazer o Gal a Todo Vapor.

UM – Vocês saíram de lá porque ficou pequeno não é isso?PG – Não...não, saímos de lá porque fomos despejados mesmo. A gente sempre era despejado, a gente não tinha dinheiro. Tamanho para os Novos Baianos nunca foi problema, a gente morou em 27 na cobertura e trinta e poucos no sítio, não tínhamos essa diferença não.

UM – Uma coisa que me intriga no sítio é como vocês se comportavam? Havia alguma regra de conduta? Ou era uma coisa mais implícita, de vocês se respeitarem mesmo?PG – Na verdade era um ensaio de como a gente não ficar preso às coisas materiais, era uma coisa muito mais espiritual do que material, porque...por exemplo o dinheiro, não tinha divisão, ela ficava dentro de um saco preso à maçaneta atrás da porta, quem queria dinheiro ia lá e pegava, fazia, comprava o que quisesse, quando voltava pegava o troco e botava no saco de novo. Roupas... a gente não comprava roupas, se eu chegasse com uma camisa nova e Galvão dissesse que camisa legal, eu dava pra ele na hora, então era o ensaio de um desprendimento material muito forte. Isso a gente tinha mesmo, de verdade, em tudo, em comida, com roupa, com carro, com dinheiro. Então, era uma relação muito mais espiritual, entendeu?! E isso atraiu também as pessoas do meio artístico, porque as pessoas na época eram muito ligadas às coisas materiais, entendeu?! E chegava nos Novos Baianos, qualquer um que chegasse, ficava pra almoçar, pra jantar e mesmo dormia um dia. Não tinha uma regra, não tinha nada.

A gente sempre passava pras pessoas, que existia um lado no ser humano que era esquecido, que era o lado da bondade, da solidariedade. Não é à toa que a gente hospedou desde artista até marginal. O nome da gente corria até na prisão! Teve um cara que foi lá e disse: “olha aqui, eu saí de cana, eu cumpri pena e me falaram na prisão que existia um grupo, aqui em Jacarepaguá, que era muito humano, que ajudava as pessoas e eu vim aqui ficar uns dias com vocês porque eu não tenho onde dormir”. Ta legal cara, pega aquele canto ali e varre. Teve um cara que foi lá pra ficar 3 dias ficou 2 anos! Um cara que chegou pra fazer artesanato, ficou o tempo todo no sítio. Era uma outra onda cara, Não tinha nada parecido com o que tem hoje. E a gente sempre foi assim, não foi em Jacarepaguá não, em Botafogo também e em São Paulo também. A gente já tinha essa mentalidade, a gente aprendeu a dividir tudo, a gente pegou o dinheiro que a gente ganhou no teatro, no show em Salvador, pegamos o dinheiro e mudamos pra São Paulo, com o dinheiro. A gente nunca dividiu o dinheiro, Não tinha divisão. Tinha um cara, o Felipão, como ele era formado, era engenheiro em alguma coisa que eu não me lembro, e ele tinha essa noção de administração melhor do que a gente que trabalhávamos com música, mas mesmo assim, agente tinha trimestre que a gente recebia 30, 40 mil cruzeiros, o sítio custava 10, ninguém lembrou de tirar 10 e comprar o sítio. Então realmente era uma coisa muito diferente.

UM – Como vocês acharam o sítio? Foi uma pergunta que me ocorreu agora?PG – Foi de cagada mesmo, foi andando, indo jogar uma partida de futebol e a gente viu aluga-se, e alugamos.

UM – Essa semana ainda eu fui pesquisar na Biblioteca Nacional e vi uma reportagem da Revista Realidade sobre um dia na comunidade dos Novos Baianos. E uma coisa que eu achei legal é que a reportagem colocava ele como líder, e ele dizia, “não tem líder”.

PG – Na verdade a mídia colocava o Galvão como um mentor, porque o Galvão escrevia as letras, as letras eram só do Galvão, então na verdade esses poemas dos Novos Baianos eram muito mais os pensamentos dos Novos Baianos. Galvão conseguia, por exemplo, colocar nas letras o que todo mundo pensava, entendeu?! O que a gente achava...a gente conversava muito, o tempo todo a gente conversava, como as pessoas são? Como a gente gostaria que elas fossem, e isso se transformava em poesia. O Galvão como era um dos caras mais cultos dentro do grupo, ele tinha esse dom da palavra, ele tinha essa facilidade de transcrever os pensamentos da gente, das conversas pra poesia.

UM – O que me passa pela cabeça é que vocês saíam noticiados na mídia, e todo mundo tem necessidade disso né?! De encontrar em todo lugar alguém que seja o ponto de referência, isso não atrapalhava vocês não?! De alguma forma?PG – A gente sempre cagou pra mídia, nós ficamos 2 anos sem botar o pé na Globo. Eles passaram 5 anos marcando um Fantástico, no dia que eles marcaram, que eles foram gravar, o time do Botafogo chegou lá, aí nós saímos com o time do Botafogo pra jogar bola e eles ficaram esperando o dia inteiro e a gente não voltou mais e ficamos mais dois anos sem gravar o Fantástico. Então na verdade a gente sempre cagou pra mídia.

UM- O que eu quero dizer é que com a atenção da mídia havia uma curiosidade das pessoas a respeito de vocês, isso não chegou a atrapalhar o dia-dia de vocês lá no sítio?PG – Não...não. O mundo ali do sítio era completamente à parte do mundo do lado de fora. A gente sabia que ali dentro era o nosso mundo e que dali do portão pra fora existia uma outra realidade. Tanto é que a gente só ficava no sítio, ninguém saía do sítio. A gente só saía dali pro Maracanã, pra ver Vasco e Flamengo ou dali pro Guanabara pra jogar bola, ou então pra ir de manhã na padaria pra comprar o pão...botar gasolina, as coisas básicas e pra ir fazer o show, só! A gente não ficava na rua, a gente não ficava em bar, a gente não ficava em nada. A gente tinha um mundo nosso, a gente achava maravilhoso, tanto é que ao invés de a gente sair pra procurar as pessoas elas é que vinham nos procurar.Tanto é que muita gente importante foi no sítio!

UM – Você não quer me dizer alguns nomes, eu sei que o Paulinho da Viola foi, porque diz meu pai que marcou ele quando foi jogar lá!PG – De artistas foi um monte, esses artistas que estão aí, na maioria, com seus 30, trinta e poucos, 40 anos foram todos. Desde Evandro, Frejat, Cazuza, um monte cara, um monte de gente. Iam pessoas que a gente só ia descobrir que era artista depois, iam no sítio como pessoas anônimas, depois que a gente ia descobrir: “pô aquela cara era artista!”.

UM – Vocês inclusive tiveram um negócio com o pai do Cazuza né?!PG – Não...o pai do Cazuza foi o descobridor dos Novos Baianos. Isso é muito bacana, é uma pessoa por quem a gente tem o maior carinho e o maior amor. Inclusive eu to indo agora, com meu DVD, eu to voltando pra Som Livre por causa dele também. Do João Araújo, que é uma pessoa assim...!

UM – O Tom Zé também tem uma importância muito grande pra vocês né?!PG – Tem...tem. O Tom Zé ensinou violão pro Moraes! Tem, além da história musical, o Tom Zé sempre nos defendeu. O Tom Zé, o João Gilberto. O João Araújo foi o cara que acreditou na gente né?! Quando a gente saiu do Ferro na Boneca, o primeiro disco, pela RGE, as pessoas passavam pela gente pensando que a gente era índio, e o João falou “vou botar esses

caras no estúdio”, botou e a gente fez Preta Pretinha. No Acabou Chorare, que é considerado um dos melhores discos dos últimos 100 anos, foi eleito o melhor disco de rock do Brasil em todos os tempos. Preta Pretinha é uma das 10 canções mais conhecidas do Brasil. Eu sei disso porque eu vi a pesquisa. E o Acabou Chorare é considerado um disco antológico, ele fez 30 anos agora, se você ouvir hoje ele é atual, se você ouvir daqui a 30 anos ele vai continuar atual. Gravado em 4 canais, com todas as dificuldades.

UM – Vocês ficaram de 74 até quando no sítio?PG – Até 78, aí eu saí pra gravar o Geração do Som. Ainda dentro dos Novos Baianos e em 79 nós abrimos. Aí já não tinha mais condição, muito filho. Começou um outro tipo de situação a se apresentar pra gente, que era a realidade dos filhos. Enquanto a gente tava ali, todo mundo solteiro, a gente se defendia. Mas quando criança começou a raspar a colher na parede, sentir vontade de ir pra escola, pegar um papel e não entender porque que não sabia ler, entendeu?! Aí gente começou a ver um outro lado e começou a haver uma conscientização, começou a passar esse momento das drogas, entendeu?! E foi tudo legal cara, tudo na hora certa.

UM – Como você vê a importância daquela comunidade para a sociedade brasileira?PG – A meu ver os Novos Baianos foi a única comunidade que teve. Se a gente for traduzir a palavra comunidade o que é, é uma comunhão de pessoas, vivendo no mesmo pensamento. Eu acho que os Novos Baianos foi a única. Até acho que num segmento posterior com o Chico Science, mas foi só um ensaio. Não estou falando musicalmente, eu to falando socialmente, politicamente, com uma postura.

UM – O tempo era outro também né?! Eu acho que vocês viverem em comunidade naquele momento era muito bacana porque vocês se afastavam um pouco do centro e eu acho que isso atraía as pessoas pra lá, para exercer uma liberdade maior não?!PG – A gente teve lá televisão do mundo inteiro, pra perguntar pra gente porque a gente estava vivendo todo mundo junto, como é que duas pessoas que são casadas a coisa mais difícil e viver junto, como é que vinte e tantas pessoas conseguiam. As televisões iam lá perguntar isso. A gente não sabe a resposta, e gente apenas se ama. A gente ama todo mundo, a gente ajuda um ao outro, entendeu?! Eu acho que essa coisa do Paz e Amor, é um símbolo que se dá muito bem com a história dos Novos Baianos, porque a gente era muito isso entendeu?! A gente tocava no galinheiro... debaixo da árvore, a gente achava que a árvore falava com a gente... isso não tem a ver com drogas não, isso tem a ver com feeling mesmo. A gente batia na árvore pra testar se tinha som, a gente via a natureza como uma forma de letras, de notas musicais...Então eram coisas que não dá pra explicar muito mas dá pra entender, você entendeu?!

UM – Então eu acho que basicamente é isso. Eu não vou tomar muito o seu tempo não. O que eu queria saber era isso, qual você acha que é a importância da comunidade.PG – Teve uma importância tremenda. A minha formação como gente, como ser humano, que eu sou uma pessoa que graças a Deus.... Eu venho de uma família muito humilde, muito pobre, e os Novos Baianos me conscientizou muito disso. A humildade é uma coisa que o ser humano pode perder tudo na vida, menos a humildade, porque a humildade é uma coisa divina, coisa de Deus. Primeiro que se a sua posição é de humildade você já é candidato ao reino dos Céus. A gente andava com a Bíblia debaixo do braço, na verdade nós sempre fomos muito cristãos, muito espiritualistas. A gente acredita que Jesus foi o cara mais do caralho

que existiu, o cara mais legal, a gente acredita até hoje. A gente não é daquelas pessoas que diz “ah, naquela época eu acreditava”, não... Jesus não era, ele era e é...e hoje a gente tem mais consciência disso. Nós fizemos um show onde o nosso cenário foi tirado da Bíblia, cada um dos Novos Baianos era um apóstolo de Cristo, Moraes era o Jesus, no Casa Grande, acabou nós fomos todos presos. Então, quer dizer, tinha um lado assim marginal de Jesus que a galera não curtia muito não. A gente ali representando a Bíblia e acabou o show nós fomos presos, claro que tinha uma outra história por trás, mas o fato da gente procurar isso, talvez até inconscientemente criou pra gente assim, uma proteção de anjos, um campo magnético muito forte. É porque não existia maldade cara! Hoje a maldade é muito maior, hoje eu tenho muito mais maldade do que naquele tempo, no bom sentido entendeu?! Hoje eu posso parar no sinal e pensar alguma coisa daquele cara tipo, acho que aquele cara é marginal, eu já to julgando o cara, e naquele tempo não existia isso. A gente não julgava ninguém, qualquer um que chegasse: “bicho vem cá, que maravilha. O que você sabe fazer, feijão, faça um feijão aí pra gente, vamos comer juntos!” Então era bíblico pra cacete. Os Novos Baianos, na verdade, era muito isso cara. Tem um livro dos Novos Baianos que eu acho que tem uma foto desse show, que o Moraes tá de fralda branca. Não sei se tem no livro dele não, mas tem um livro que tem. Eu vestido de Pedro, eu já sou Pedro.

UM – Por falar nisso você pode me dizer o seu nome todo por favor?PG – Pedro Aníbal de Oliveira Gomes, eu nasci em 7/02/1952, sou músico.

ANEXO II

Entrevista com Charles Negrita (06/06/2004) – Pelas ruas de Niterói – RJ

UM – Gostaria que o senhor me dissesse seu nome e a sua função no Grupo.CN – Eu sou Carlos Alberto de Oliveira, Charles Negrita. Eu sou do grupo Novos Baianos. Eu entre no grupo através do conhecimento do Gato Félix que era um dançarino. Nós nos conhecemos no Campo Grande, onde tem uma praça lá em Salvador, e ele gostou de mim e eu gostei dele. Ele me disse: “rapaz, eu vou no teatro Vila Velha agora à noite.” E eu disse: “então vamos!”. Eu vou lá porque vai ter um grupo de chorinho lá e você me encontra lá. Daí nos encontramos. Ele começou a falar na vida dos Novos Baianos e eu me interessei muito pelo grupo. Dessa época em Salvador, Galvão, Paulinho Boca, Pepeu, já conhecia mais ou menos. Aí entrei no grupo como cozinheiro! A minha primeira profissão no grupo foi de cozinheiro. Aí desse tempo em diante passei a observar o pessoal. Eu sempre tive noção de música, interesse, mas não sabia como conseguir aquilo. Mas de tanto observar o grupo eu pensava: “esse grupo é diferente”!

UM – E aí você foi para o Rio com eles, para Botafogo.CN – Não...não... eu não fui pra Botafogo, eu fui pra Jacarepaguá! Em 1971 eles estavam acabando de gravar Acabou Chorare e eles estavam fazendo a capa, mas eu não podia nem aparecer na capa, porque eu não era do grupo ainda, eu estava entrando no grupo. Quando eu

cheguei no Rio, lá no sítio e eles estavam fazendo essa capa. Aí comecei a ver as coisas de forma bem diferente e comecei a gostar do grupo.

UM – Como é que era a vida lá na comunidade. Como você vê essa experiência não só para você como para todo mundo lá?CN – Foi uma experiência muito boa porque a gente tinha uma união muito grande, a gente confiava mesmo. A verdade é muito importante na vida da gente. Naquela época a gente estava muito junto, muito carinho um pelo outro, a gente se sentia responsável um pelo outro. Eu me lembro de estar na cozinho e de repente entrava Baby, Paulinho Boca, Marilinha, que era mulher de Paulinho, e cada um pegava uma coisa pra fazer, enquanto um cortava uma coisa outro cortava outra. E ficava aquela união mesmo. A gente não perdia aquela coisa de ficar todo mundo junto.

A gente tinha o maior respeito um pelo outro. As pessoas pensavam que a gente morava junto e por isso era qualquer coisa, até de sexo. Mas a gente se respeitava muito. Baby, por exemplo, era casada com Pepeu e a gente nunca se atreveu a ter intimidades com ela, sempre respeitando a maneira como ela era e como cada um era. Isso era uma coisa muito forte que uniu muita gente. E as pessoas se perguntavam mesmo, era até prova de colégio. Muitas vezes a gente estava dentro do sítio e chegava um ônibus, porque a prova do colégio era a vida dos Novos Baianos. E eles começavam a fazer as perguntas, porque a gente era um grupo livre achavam que a gente era hippie. Porque no Brasil a sociedade estava reprimida, mas a gente não entregava o ouro, um confiava no outro.

Eu tava explicado pra meu filho aqui esse negócio dos Novos Baianos. Com relação ao dinheiro. A gente arrecadava dinheiro, quem ganhava direitos autorais, de show, essas coisas e colocava dentro do Mocó. O Mocó ficava dependurado, aí você precisava comprar uma camisa, um sapato, um tênis, você ia lá pegava o dinheiro, comprava e botava o troco ali. Então você não tinha aquela ambição por dinheiro, porque um tem que ter mais do que o outro. Os Novos Baianos não tinham cachê, a gente subia no palco, fazia o show e o dinheiro ficava dentro do Mocó. Não era dividido. O Galvão, Moraes, Paulinho Boca, que eram pessoas de frente poderiam até ganhar mais, mas não tinha isso, porque a gente dividia. Era uma coisa muito importante pra gente.

UM – Porque você acha que iam tantos artistas lá. Porque eles gostavam tanto de ficar mais próximos a vocês?CN – Ia bastante gente lá, jogador de futebol de seleção brasileira, Nei Conceição ficou lá. Os Novos Baianos quando fez 10 anos, nós fizemos lá né?! Então a Baby fez um bolo de chocolate e nós colocamos 10 velinhas no bolo. Quando deu mais ou menos uma hora d manhã chegou Chacrinha e Elke Maravilha, que a gente nunca esperava né?! E vários cantores iam lá.

UM – Você poderia dizer o nome de algumas pessoas que iam lá, para deixar registrado aqui?CN – Que eu me lembre o Evandro Mesquita mesmo era muito ligado na gente, Frejat, Cazuza, essas pessoas todas que eram jovens. Porque os jovens, principalmente os que moravam em Leblon, Ipanema, gostavam da gente, porque a gente dava alegria, tava sempre fazendo festa. Era um grupo grande, e quase todo mês tinha um aniversário pra gente fazer, então tudo isso era festa e a gente nunca perdeu esse equilíbrio entre nós, uma coisa muito legal mesmo!

UM- Como você via a importância da comunidade para a sociedade da época que via vocês lá e para você individualmente?CN – Eu vejo tudo isso como um grande equilíbrio, porque a juventude tava mais ligada na gente porque a gente tinha uma força e transmitia essa força com o poder musical. De tarde mesmo, a gente ensaiava. Acordava de manhã, dez horas, onze horas mais ou menos. Eu saía com Paulinho Boca de Cantor e ia comprar o jornal, comprar frutas, gente pegava o carro, a gente ia até Vargem Grande e quando voltava o pessoal já tava todo acordando. Então o pessoal tomava café e quando dava meio-dia mais ou menos começavam os ensaios, que a gente preparava ensaios que iam até umas quatro horas da tarde. Quando acabavam os ensaios sempre ia gente nos visitar, o sítio estava sempre com gente e aí começava a ter futebol. A gente tinha um campo dentro de casa e esse campo era como se fosse o alçapão dos Novos Baianos, ali era difícil ganhar da gente entendeu, era difícil mesmo! E a gente conseguia com isso mudar um pouco.

Hoje em dia a música pra mim não tem mudança, ela só tem grandeza. A gente quando começou a fazer sucesso não pensava em estrelismo, em ser uma grande estrela, por isso que hoje em dia a gente tá separado, tá dividido, mas a gente tem uma fortaleza muito grande porque se nós pensássemos em estrelismo, não seríamos tudo o que somos hoje. E não pensamos em ter uma soberania melhor do que o outro, a gente confiava no nosso talento. A gente era um grupo diferente porque a gente mudava, a gente morava junto e mudava muita coisa nas pessoas, porque você morar junto e ter o sentimento de firmeza e não entrar um desequilíbrio, é muito difícil, a gente tinha a confiança de que amanhã seria melhor.

Eu não era músico, eu sempre tive a noção de ser um músico, mas não sabia como eu faria pra ser músico, até que eu conheci o pessoal. Hoje se eu tenho alguma coisa na vida em relação ao meu trabalho, eu tenho um agradecimento a todos, porque foi a partir daí que eu consegui ser a pessoa que eu sou hoje.

UM – Vocês ficaram quanto tempo no sítio?CN – Nós ficamos de 1971 a 1976, porque depois nós fomos pra São Paulo, no Pacaembu. Com o grupo completo, e moramos em São Paulo até 1979. Aí é que o grupo se desfez.

Gilberto Gil tinha uma força muito grande na Warner ele fez um convite pra Baby e pra Pepeu, e como o grupo tinha acabado eles foram pra Warner. Foi quando Caetano fez Menino do Rio pra Baby Consuelo e Gilberto Gil fez um reggae que Pepeu gravou. Pepeu como tinha uma grande força dentro do grupo, quando Moraes saiu ele ficou de maestro da gente, ele assumiu a responsabilidade de conduzir a banda, então ele convidou a gente pra ir fazer esse trabalho com ele. Jorginho foi o baterista, Baxinho o baixista e eu fui pra percussão e o Bola que no princípio foi convidado mas depois saiu do grupo de Pepeu. Isso na carreira de Pepeu e Baby.

A Cor do Som já foi outra coisa. Foi o Dadi, que foi baixista dos Novos Baianos antes de Didi. Didi entrou no grupo com 14 anos. O Dadi não foi a um show que nós fizemos então o Didi foi convidado, como tinha 14 anos teve que ser feita uma procuração, que foi assinada por Paulinho Boca, que ficou responsável por Didi.

A chamada do Pepeu para irmos para a Warner foi muito boa porque modificou muitas coisas, ele já ficou com seu trabalho independente, nós fomos tocar no Festival de Montreux logo no primeiro ano de contrato, e aquilo foi um presente de trabalho porque, pelo tempo que a gente tinha vivido junto. Eu achei muito bom. Eu achei que foi uma coisa que evoluiu muito entre a gente, porque a gente cresceu muito, a gente começou a conhecer gente diferente, talentos. O Al Jarreau mesmo, nós fizemos um show com ele. Coisas muito bonitas que aconteceram na vida da gente.

UM – Não tinha uma regra de conduta lá dentro da comunidade nem um perfil pra fazer parte né?! As pessoas que chegavam iam ficando e vocês se respeitavam muito não é isso?!CN – Eu fui o último dos Novos Baianos. Dos músicos eu fui o último a chegar no grupo. Como a gente era conhecido, naquele tempo a vida tava mais ligada ao jovem, ele tava mais aberto, viajava, ia pra todos os lugares, e as pessoas chegavam na casa da gente com as mochilas e a gente tinha umas esteiras e dava pras pessoas e elas moravam lá! Ficava um mês, se alimentava olhava a vida dos Novos baianos via como era, acompanhava a gente nos shows, mas não eram integrados ao grupo, e a gente não mandava ninguém embora.A gente aceitava as pessoas. Podia até ir assaltante, malandros que a gente não conhecia e lá nos respeitavam, gostavam da gente. A gente não tinha aquele lance de cortar as pessoas, a gente aproveitava as pessoas, dava oportunidades às pessoas. Procurava saber quem eram as pessoas, porque a gente tomava informação também, não era qualquer pessoa que entrava lá e a gente aceitava não! A gente sabia quem era a pessoa.

Uma vez mesmo, tinha um colombiano, que se você olhar a capa do Acabou Chorare ele está na foto com a camisa do Brasil. Ele teve uma gravação um dia e Pepeu precisava de uma pessoa que ficasse com ele na gravação, eu não ia gravar mas fui com ele. Fomos eu, Pepeu e esse colombiano, aí quando chegou na estrada de Jacarepaguá o carro virou, deus umas 3 viradas. Eu não tive nada, Pepeu não teve nada, foi uma salvação, mas o colombiano se quebrou todo. Quebrou as costelas, teve problema na clavícula. Mandei Pepeu ir para o estúdio e fui levar o colombiano para o hospital. No hospital enfaixaram ele todo. No 2º dia aquilo começou a incomodar e coçar nele. Nós morávamos num sítio onde de casados só Paulinho, Moraes e Pepeu. Nós morávamos no 1º andar, com um espelho e um tv grande, que nós compramos pra copa de 74. Mas aquilo começou a coçar e ele foi tirano as gazes do corpo e no outro dia ele amanheceu todo quebrado. E eu voltei o hospital com ele. Quando chegou em Vargem Grande tinha uma blitz da polícia mandando todos descerem do carro, quando o policial botou a cara dentro do carro, o colombiano cuspiu na cara do polícia que começou a quebrar ele com o cacetete, mesmo com os apelos que fiz para que parassem. Eu sei que a polícia pegou ele todo quebrado novamente e levou ele para o hospital. Então você vê aí o que era...a gente tinha uma ligação muito forte um com o outro que mesmo ele não sendo músico ele acompanhava a gente. Uma pessoa que a gente não sabia de onde era, quem era a família dele. A gente sempre dava atenção às pessoas, não deixava que se perdesse o melhor, que era o fato de a pessoa ser legal e achar que ali era vida dela. Tinha uma fortaleza muito grande entre nós e um cofiava no outro. Eu sou muito agradecido a esse tempo!!

UM – A história de vocês com o carnaval baiano também é fantástica né?!CN – O carnaval de Salvador sempre foi feito com as cornetas e os Novos Baianos fizeram um show em São Paulo e pegamos essa grana e alugamos um som e fomos o 1º grupo a implementar mudanças eletrônicas no carnaval da Bahia. Quando chegamos o povo ficou impressionado com a gente com aquilo que estava vendo. Chamavam a gente de Morcego Negro, porque amarramos as caixas no caminhão deixando tudo preto. Mudamos isso na Bahia e isso não é falado em Salvador hoje em dia, além de botar o cantor em cima do Trio elétrico, que foi Moraes Moreira, pois antes os trios elétricos eram apenas musicais, instrumentais.

FONTES

Orais:

Entrevista cedida por Pedro Aníbal de Oliveira Gomes (Pepeu Gomes) em 04/06/2004.

Entrevista cedida por Carlos Alberto de Oliveira (Charles Negrita) em 06/06/2004.

Impressas:

Jornal da Bahia. Edição dos dias 14; 15/09/1969.

Jornal de Música e Som. Edição de setembro de 1976.

Jornal O Estado de São Paulo. Edições dos dias 16; 21/04/1997.

Jornal O Globo. Edições dos dias 06; 20 e 21/05/1997.

Revista Realidade. Ano IX. Nº 101. Agosto 1974. Ed. Abril.

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BIBIOGRAFIA RECOMENDADA

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