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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – ICHF PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA – PPGA NASCER SORRINDO”: Reflexões acerca da gravidez enquanto rito de passagem e os modelos de assistência ao parto no Brasil Stephania Gonçalves Klujsza Niterói Maio de 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE – UFF

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA – ICHF

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA – PPGA

“NASCER SORRINDO”:

Reflexões acerca da gravidez enquanto rito de passagem e os modelos de assistência ao

parto no Brasil

Stephania Gonçalves Klujsza

Niterói

Maio de 2014

II

“NASCER SORRINDO”:

Reflexões acerca da gravidez enquanto rito de passagem e os modelos de assistência ao

parto no Brasil

Stephania Gonçalves Klujsza

Dissertação de Mestrado submetida por Stephania Gonçalves Klujsza

ao Corpo Docente do Programa de Pós-Graduação em Antropologia

(PPGA), do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF) da

Universidade Federal Fluminense (UFF) como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia.

Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello.

Niterói

Maio de 2014

III

“NASCER SORRINDO”:

Reflexões acerca da gravidez enquanto rito de passagem e os modelos de assistência ao

parto no Brasil

Stephania Gonçalves Klujsza

Dissertação de Mestrado submetida por Stephania Gonçalves Klujsza ao Corpo Docente

do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), do Instituto de Ciências Humanas e

Filosofia (ICHF) da Universidade Federal Fluminense (UFF) como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do grau de Mestre em Antropologia.

Banca examinadora:

Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello – PPGA/ICHF – UFF (Orientador)

Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga – PPGA/ICHF – UFF (Co-Orientador)

Profª. Drª. Neiva Vieira da Cunha – PPGECC/FEBF – UERJ

Profª. Drª. Letícia de Luna Freire – PPGA/ICHF – UFF

Prof. Dr. Carlos Abraão Moura Valpassos – IUPERJ – UCAM

Niterói

Maio de 2014

IV

V

Ao Martim, com amor.

VI

AGRADECIMENTOS

Primeiramente gostaria de agradecer ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia

PPGA – UFF, por ter possibilitado o encontro com tantos professores e pesquisadores incríveis.

A experiência do mestrado me foi inspiradora. E também a CAPES pela bolsa concedida, que

viabilizou a minha dedicação exclusiva a pesquisa.

Ao meu orientador Marco Antonio da Silva Mello, por ter sido tão companheiro e

generoso em todos os momentos. Por ter me acolhido como sua orientanda com tanto carinho e

paciência, e também, pelos ensinamentos que trago comigo com entusiasmo.

Ao meu co-orientador Felipe Berocan Veiga, primeiro, por ter acreditado no meu trabalho

e por estar firme ao meu lado desde os tempos da graduação. E também por sua dedicação,

paciência, carinho e disponibilidade constantes que foram essenciais para a conclusão de mais

essa etapa.

Aos membros da banca examinadora, Neiva Vieira da Cunha, Letícia de Luna Freire e

Carlos Abraão Moura Valpassos pela avaliação precisa e pela generosidade com que aceitaram

ler este trabalho.

Aos professores que contribuíram para a minha formação, em especial a Edson Borges,

Moema de Castro Guedes, Hélio R. S. Silva e Simoni Lahud Guedes. Levo seus exemplos com

muito entusiasmo e admiração.

Ao meu filho Martim, por uma experiência que ainda não sou capaz de descrever. E,

também, por transformar deliciosamente a minha vida com tanto amor.

Ao meu marido, Bruno, por sonhar junto comigo – e por me trazer de volta à realidade

quando vou longe demais. Pelo apoio, cuidados e afagos que me trazem conforto cotidianamente.

Ao meu pai, Marcelo, pelo amor e por ser o meu maior exemplo. Sua dedicação ao

trabalho, a mim e ao Martim me inspira todos os dias.

À minha mãe, Andréa, pelo amor e por me motivar em todos os momentos,

principalmente os mais difíceis. E também pela estrutura que me deu para que eu pudesse

escrever e cuidar do Martim.

Aos meus avós Paulo (In memoriam), Francisco, Lúcia e Marisia pelo amor e incentivo.

À minha Tia Stella por ser uma grande companheira em todos os momentos. À família Ventura

pelo carinho, parceria e cuidado constante.

VII

Às queridas amigas Tatiana Sartori, Maria Clara Moreira, Lia Alencar, Marina Piquet,

Laura Valadares, Thalita Sauwen, Luísa Côrtes, Olívia de Castro Guedes, Lígia Modena, Natalia

Klussmann e Carol Althaller pelas trocas, palavras de incentivo, amor e companheirismo.

À querida amiga Lídia Orphão, que tanto contribuiu para o meu texto, mas, sobretudo,

pela amizade e companheirismo nos momentos finais da dissertação.

Às minhas informantes e suas crias, pela disponibilidade, e por compartilharem comigo

detalhes tão íntimos de suas vidas. Sem elas esse trabalho não teria como existir – a vocês, meus

eternos carinho e gratidão.

VIII

RESUMO

A gravidez pode ser compreendida como um ritual de passagem, em que a mulher é preparada

para assumir um novo papel a partir de mudanças na estrutura social. Durante esse período a

grávida apreende os conhecimentos necessários para desempenhar a sua função e está envolvida

em uma série de questões relativas ao seu estado liminar, tais como a magia que a envolve nesse

momento especial, uma série de símbolos que giram em torno dela e do feto e a coerção social

que experimenta. O processo ritual é finalizado com os ritos de parto, que com o nascimento do

bebê, reintegram a mulher à estrutura com um novo status. Durante a etnografia realizada, o parto

se apresentou como um processo de grande importância para o neófito e ficou claro que as

mulheres passam por essa etapa de maneiras diferentes. Assim, a questão da humanização do

parto é abordada para pensar, comparativamente, o tipo de assistência ao parto no Brasil. Durante

o ano de 2012, o tema ganhou destaque na grande mídia e passou a ser abordado por diversos

vieses, sempre dialogando com os problemas enxergados pelo grupo de humanização ao parto no

modelo obstétrico vigente em nossa sociedade e propondo outra possibilidade de assistência ao

parto, focada no respeito à parturiente e a seu bebê, já que muitos são os relatos de pessoas que se

entendem vítimas da violência obstétrica.

Palavras-chave: 1. Gravidez. 2. Rito de Passagem. 3. Coerção Social. 4. Parto Humanizado. 5.

Violência Obstétrica.

IX

ABSTRACT

Pregnancy can be perceived as a rite of passage process, in which the woman is prepared to take

on a new role from the changes in her social structure. During this time, the pregnant woman

grasps the necessary knowledge to play her role and becomes involved in a number of issues

related to her transient state, such as the magic involving this special moment, the various

symbols surrounding her and the fetus, and the social coercion she experiences. The rite process

ends with the rites of delivery, which, after the baby’s birth, reintegrate women to the social

structure with a new status. The ethnographic study conducted showed that the process of

delivery is of great important for the neophyte, and it became clear that women experience that

stage in different ways. Therefore, humanized birth is addressed to comparatively consider the

type of childbirth care in Brazil. In 2012, this topic was extensively explored by the media and

approached in different ways, constantly dealing with the problems observed by the humanized

birth group in the current obstetric model of our society and proposing a different possibility of

childbirth care, focusing on the respect to the mother and the baby, and taking into consideration

the large number of reports of women victims of obstetric abuse.

Key-words: 1. Pregnancy. 2. Rite of passage. 3. Social Coercion. 4. Humanized birth.

5. Obstetric abuse.

X

LISTA DE FIGURAS

Capítulo 3: Tensões entre os modelos de assistência ao parto no Brasil.

Diagrama 1 – Hierarquização dos tipos de parto pela lógica dos ativistas

do “parto humanizado”. 78

Diagrama 2 – Lógica da segurança no parto mais difundida em nossa

sociedade, oposta à idéia de “humanização do parto”. 79

Doc. 1 - Cartaz de divulgação do evento criado pela organização da Marcha

do Parto em Casa. O cartaz critica o posicionamento do CREMERJ contra

o médico obstetra Dr. Jorge Kuhn. 83

Foto 3.1 – Mulher grávida carregando cartaz na Marcha do Parto em Casa.

No cartaz a crítica da gestante pela falta de atendimento “humanizado” no

SUS, tendo em vista que a grande parte dos médicos que realiza esse tipo

de atendimento é particular e os preços são altos. 84

Foto 3.2 – Cartazes dos manifestantes na Marcha do Parto em Casa em

apoio ao médico obstetra Dr. Jorge Kuhn e pela liberdade de escolha do

tipo de parto. 85

Foto 3.3 – Manifestantes com seus filhos na Marcha do Parto em Casa.

Detalhe para Michel Odent, de camiseta laranja, as parteiras Heloísa Lessa

e Claudia Orthof e a doula Fadynha. 86

Foto 3.4 – Criança na manifestação vestindo a camiseta do evento a favor

do parto em casa. 87

Foto 3.5 – Cartazes reivindicando o direito pela escolha do local de parto.

No fundo, o cartaz vermelho traz os dados da pesquisa sobre a violência

obstétrica realizada pela Fundação Perseu Abramo, 2011. Criança que

nasceu em casa na manifestação. 87

Foto 3.6 – Mulheres ativistas que pariram em casa na Marcha do Parto

em Casa. 88

Foto 3.7 – Mulher na Marcha do Parto em Casa carregando cartaz

que critica o posicionamento do CREMERJ contra o parto domiciliar. 89

XI

Doc. 2 – Cartaz de divulgação produzido pela organização da Marcha

pela Humanização do Parto. 93

Foto 3.8 – Projeto Fotográfico 1:4 – Retratos da Violência Obstétrica,

parte de uma série de fotografias com as histórias de mulheres que

sofreram violência obstétrica. 95

Doc. 3 – Alguns dos cartazes que foram disponibilizados pela organização

do evento para impressão. 96

Doc. 4 – Cartaz oficial do filme “O Renascimento do Parto”. 98

Doc. 5 – Um dos cartazes que faz parte de uma série disponibilizada pela

produção do filme. Com a crítica às espisiotomias realizadas

sem necessidade. 99

Doc. 6 – Um dos cartazes que faz parte de uma série disponibilizada pela

produção do filme. “Mitos que sustentam o sistema” diz respeito às falsas

indicações de cesárea. 100

Doc. 7 – Cartaz disponibilizado pela produção do filme, citando o médico

francês Michel Odent sobre a qualidade dos nascimentos. 104

Foto 3.9 – Michel Odent sendo entrevistado pela emissora Band na Marcha

do Parto em Casa. Em sua camiseta está escrito: “Eu nasci em casa”.

Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012. 105

Doc. 8 – Pesquisa sobre Violência obstétrica. Sobre o local de parto. 107

Doc. 9 – Pesquisa sobre Violência Obstétrica. Sobre o atendimento ao parto. 107

Doc. 10 – Pesquisa sobre Violência Obstétrica. Relatos sobre o atendimento

ao parto. 108

XII

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

1. “MULHER BARRIGUDA QUE VAI TER MENINO”:

DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA 17

1.1. A radiologista grávida 19

1.2. O quarto vazio 23

1.3. O parto domiciliar 27

1.4. A “mulher vômito” 35

1.5. A grávida que se esquecia das coisas 39

1.6. O “parto humanizado” 43

2. REFLEXÕES ACERCA DE UM RITUAL DE PASSAGEM 51

2.1. A gravidez como ritual de passagem 51

2.2. Espaços de socialização masculina no evento do nascimento 58

2.3. A barriga pública 61

2.4. Magia 63

2.5. A construção de gênero do feto 65

2.6. O parto 68

3. TENSÕES ENTRE OS MODELOS DE ASSISTÊNCIA AO

PARTO NO BRASIL 71

3.1. Os modelos de assistência ao parto no Brasil 72

3.2. A marcha do parto em casa 81

3.3. A criminalização do parto domiciliar 89

3.4. A marcha pela humanização do parto e a violência obstétrica 92

XIII

3.5. O Documentário o renascimento do parto 98

3.6. Michel Odent e uma outra maneira de compreender o parto 104

3.7. “Violência obstétrica é violência contra a mulher” 105

CONCLUSÃO 112

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 117

REFERÊNCIAS VIRTUAIS 120

REFERÊNCIAS DA IMPRENSA 121

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS 122

ANEXOS 124

1. GLOSSÁRIO DE CAMPO 124

2. PETIÇÃO PÚBLICA CONTRA A DENÚNCIA

DO CREMERJ 129

3. RELEASE DA MARCHA DO PARTO EM CASA 131

4. RESOLUÇÕES 265/12 E 266/12 DO CREMERJ 132

5. DECISÃO PROFERIDA PELO MM JUIZ

FEDERAL GUSTAVO ARRUMA MACEDO. 02ª VARA

FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 136

14

INTRODUÇÃO

A pesquisa apresentada nesta dissertação de mestrado teve início no ano de 2009, quando,

ainda na graduação, eu estava cursando uma disciplina que dava conta dos rituais de passagem.

Como trabalho final da disciplina, os alunos deveriam realizar uma pequena pesquisa de campo,

acerca de um ritual de passagem de sua escolha. Veio-me a vontade de trabalhar com a gravidez

enquanto rito de passagem e iniciei então meu trabalho de campo. No ano seguinte, deveria

entregar a monografia a ser apresentada como um dos requisitos básicos para a conclusão da

graduação em Ciências Sociais, no Instituto de Humanidades (IH), da Universidade Candido

Mendes (UCAM), e optei por dar continuidade às pesquisas sobre o rito de passagem da gravidez.

Na monografia foquei na compreensão do processo ritual e em seus desdobramentos. Para

tanto, entrevistei cinco mulheres a respeito da primeira gestação, frequentei semanalmente uma

loja de roupas infantis situada no bairro da Tijuca, onde estava o meu lócus etnográfico, e

acompanhei duas listas de discussão na internet sobre gravidez e parto, com o intuito de

compreender melhor o universo que me propunha a estudar.

Além disso, nessa etapa da minha vida acadêmica, tratei da relação do pesquisador e seu

objeto de pesquisa. Essa questão me causava muito incômodo, já que minhas informantes

acreditavam que a pesquisa era apenas um pretexto, e que eu desejava na verdade, segundo elas,

apreender os conhecimentos necessários para o meu próprio ritual de passagem, supondo em mim

um desejo pela maternidade. Assim, eu era alvo constante de orientações e palavras de incentivo

– elas diziam que apesar das dificuldades valia muito a pena ter um filho.

Ao iniciar o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), pelo

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia (ICHF), da Universidade Federal Fluminense (UFF),

tive a oportunidade de dar continuidade às pesquisas sobre os rituais de passagem. A essa altura,

o campo tinha apresentado para mim novos questionamentos, e eu desejei abordar o tema de uma

maneira um pouco diferente. Continuava julgando importante a análise do processo ritual da

gravidez e seus desdobramentos para a mulher grávida, e passei a explorar outros aspectos desse

momento.

O parto apareceu durante o trabalho de campo como uma etapa importante do rito de

passagem e assim, voltei meu olhar de forma mais atenta a ele. Isso aconteceu a partir do

momento em que eu entrevistei mais duas mulheres e que passei a acompanhar duas novas listas

15

de discussão na internet, que estavam focadas na questão do parto natural – falarei sobre as

categorias mais adiante, a fim de me informar sobre o assunto, já que eu não tinha nenhuma

experiência ou conhecimento nesse sentido.

A partir do discurso de duas das minhas informantes que optaram por um parto natural,

livre de intervenções médicas, e o acompanhamento quase que diário às listas, surgiu a questão

dos modelos de assistência ao parto no Brasil, e junto a ele as noções de “parto humanizado”,

“violência obstétrica” e os altos índices de cirurgias cesariana ocorridas no país. Somado a isso,

percebi que era um bom momento para explorar o tema, já que foi a partir de 2012, mesmo ano

em que ingressei no Mestrado, que a questão ganhou espaço na grande mídia e muitos debates

passaram a ocorrer em torno do parto.

A presente dissertação tem o título inspirado na obra do médico obstetra francês Frédérick

Leboyer, intitulada Nascer sorrindo (1996). O obstetra ficou conhecido pela maneira que propõe

em abordar o parto, focada na experiência do nascimento a partir da perspectiva do bebê. Leboyer

compreende o nascimento como uma experiência difícil para o bebê, em que ocorre uma ruptura

drástica quando ele sai de dentro de sua mãe e enfrenta o novo ambiente dependendo unicamente

do seu próprio corpo. Dessa forma, Leboyer propõe outra abordagem para o evento do

nascimento e afirma que deve ocorrer uma melhoria no acolhimento ao recém-nascido, trazendo

conforto e segurança para ele. O obstetra foi o primeiro médico a criticar o modelo de assistência

ao recém-nascido e hoje, é reconhecido como um dos pioneiros da humanização do parto, tema

que também é trabalhado nessa dissertação. Após algum tempo de experiência, Leboyer

constatou que os bebês que tinham outro tipo de acompanhamento durante o parto nasciam

sorrindo.

Para a estrutura da dissertação, trabalhei com três capítulos: o primeiro capítulo consiste

na descrição etnográfica, no qual exponho o relato das mulheres que entrevistei, contando suas

histórias e experiências e como vivenciaram o início dessa nova etapa da vida social.

No segundo capítulo, busco analisar, pautada na teoria antropológica, o ritual de

passagem da gravidez. E, enquanto um ritual de passagem, quais são os seus desdobramentos

para aquela mulher e sua família, suas experiências a respeito do parto e como elas percebem esse

momento.

Por fim, no terceiro e último capítulo, busco compreender o cenário atual de assistência

ao parto no país, de que forma ele vem se desenvolvendo e o porquê de ser criticado pelo grupo

16

que pesquisei – o grupo dos ativistas do “parto humanizado”. Nesse sentido, exponho quais são

os desdobramentos desse modelo para as mulheres e para o recém-nascido, as críticas aos altos

índices de cesáreas realizadas e consequentemente a grande quantidade de bebês prematuros, o

reconhecimento da noção de violência obstétrica e as propostas de outra forma de atendimento no

parto.

A presente dissertação, além de ser um dos requisitos básicos para a obtenção do grau de

mestre em Antropologia, tenta colaborar com as discussões sobre o atendimento oferecido à

parturiente no Brasil e, também, a respeito da violência obstétrica, assunto que ganhou destaque

no momento e que ainda conta com muito pouco material de pesquisa e explanação.

17

1. “MULHER BARRIGUDA QUE VAI TER MENINO”: DESCRIÇÃO ETNOGRÁFICA

Quando, em meados de 2009, fui a campo para pesquisar sobre a gravidez enquanto rito

de passagem, tema da minha monografia de conclusão da graduação em Ciências Sociais, no

Instituto de Humanidades da Universidade Candido Mendes (UCAM), entrevistei cinco mulheres

acerca da gravidez do primeiro filho. Naquele momento, acreditava que era importante que as

informantes pertencessem a estratos médios da população carioca, e tivessem engravidado entre

os 18 e 30 anos de idade, pois não desejava entrar na questão de uma gravidez na adolescência e,

tampouco, no que toca a questão da expectativa da gravidez, tendo em vista fatores relacionados

à idade biológica do corpo feminino.

Além disso, desejava ouvir os relatos de mulheres que deram à luz de maneiras diferentes

e que tinham optado por acompanhamentos variados. Nesse sentido, busquei pessoas que

tivessem passado pelo pré-natal e pelo parto, acompanhadas por médicos credenciados aos seus

planos de saúde, mulheres que utilizaram o sistema público de saúde por opção ou não, e também

quem tivesse custeado com recursos próprios o acompanhamento.

No momento em que optei pelo tema havia pouquíssima informação sobre os assuntos

que desejava pesquisar. Alguns anos antes, eu havia sido presenteada por uma parteira – mãe de

uma amiga de escola – com o livro O Renascimento do Parto de Michel Odent, médico francês

sobre quem falarei no Capítulo 3, e não sabia muito bem o que faria com aquele material. Após

lê-lo atentamente, imaginei que ele permaneceria guardado por alguns anos na estante. E, de fato,

esse livro mudou a minha percepção sobre a forma de nascer, já que eu olhava para as fotos feitas

pelo meu pai no meu nascimento e enxergava outra realidade.

Nasci através de uma cesárea agendada com 41 semanas e 3 dias de gestação. Minha mãe

queria esperar mais, pois acreditava que eu nasceria em 18 de março, dia do seu aniversário,

entretanto, o obstetra que a acompanhava disse que se a cirurgia não fosse realizada ainda

naquele dia, ele não se responsabilizaria mais por nós duas. Prestes a completar 22 anos, minha

mãe teve medo, já que além dos trinta quilos a mais que ganhara na gravidez, sua pressão estava

alta e, por isso, eu nasci no dia 14 de março de 1988. Nos registros feitos pelo meu pai, via minha

mãe anestesiada e um pouco grogue, e, quando nasci, pequena e magra, me puseram de cabeça

para baixo, abriram as minhas pernas e, segundo relatos, disseram: “É rachada!”, já que não havia

certeza se seria Stephania ou Vitor.

18

Dessa maneira, tive acesso a outro tipo de assistência a gestação e ao nascimento.

Desejava saber como as mulheres de classe média compreendiam esse momento importante da

vida sexual feminina. Sentia necessidade de compreender melhor o meu campo e ter mais

informações para pontuar as entrevistas e questionar minhas informantes. Assim, passei a

participar de listas de discussão na internet sobre gravidez e parto. Nesse momento da pesquisa,

eu acompanhava assiduamente duas listas de discussão – uma sobre maternidade e outra sobre

parto natural.

As listas de discussão sobre gravidez e parto têm muitas mulheres grávidas, puérperas e,

também, mulheres com filhos mais velhos, e é um espaço onde elas trocam informações, relatam

experiências e encontram apoio emocional nos momentos de crise.

Ainda durante a monografia, frequentei uma loja de roupas infantis situada em uma

pequena galeria, que conta com 17 lojas e uma lanchonete, no bairro da Tijuca. Apesar daquela

galeria não ser muito movimentada no bairro, a loja “Roupitchas” tinha uma clientela assídua.

Entrei na loja pela primeira vez para comprar um presente para uma prima recém-nascida e

conheci a dona da loja. Ao observar o movimento, muitas grávidas e mães de bebês pequenos,

passei a frequentar a loja. A dona da loja acabou tornando-se minha amiga e frequentemente

almoçávamos juntas na lanchonete da galeria. Assim surgiu o meu lócus etnográfico. O material

produzido lá estará relatado no capitulo dois desta dissertação.

Quando surgiu a possibilidade de aprofundar o tema como dissertação de mestrado,

realizei mais duas entrevistas e entrei em duas novas listas de discussão sobre parto, sendo que o

espaço em que uma delas acontece é a rede social Facebook.

Passei a ficar mais atenta à questão do parto nas entrevistas e busquei informantes com

experiências diferentes das que eu já tinha reunido. Quanto à questão do recorte de idade,

considerei não ser mais tão importante, tendo em vista que havia dado espaço na monografia para

duas informantes que haviam engravidado após os trinta anos de idade. Assim, seguia interessada

nas mulheres de classe média do Rio de Janeiro. E optei por conduzir as entrevistas sem um

questionário pronto, dando mais espaço para as informantes se expressarem a partir daquilo que

julgavam mais importante.

A questão da violência obstétrica estava mais evidente para mim no momento em que

buscava mais mulheres para entrevistar. Entretanto, por ser um tema pouco discutido e

desconhecido por muita gente, não consegui estabelecer contato com nenhuma mulher que

19

compreendia ter sido vítima desse tipo de violência ou que estivesse disposta a falar sobre o

assunto.

Durante o processo de escrita da dissertação, ao voltar para as entrevistas realizadas

anteriormente, retirei a descrição de uma das entrevistas, pois julguei que essa informante, a dona

da loja de roupas infantis “Roupitchas”, trazia uma história muito semelhante à de duas outras

informantes. Desse modo, optei por utilizar suas falas apenas com o intuito de enriquecer o

capitulo de análise teórica, e não tornar o presente capítulo demasiado extenso e repetitivo.

1.1. A radiologista grávida

Daniela1 tem 41 anos, é mestre em Radiologia e mãe de dois filhos. Moradora de Icaraí,

Niterói, vive em um apartamento próprio de dois quartos, num prédio grande com dois blocos.

Engravidou do primeiro filho aos 32 anos – na época da pesquisa, Joaquim tinha nove anos – em

uma gestação não planejada e enquanto ainda namorava seu parceiro. Daniela foi a minha

primeira informante, quando comecei a pesquisar o tema, ainda em 2009. Naquela época éramos

amigas próximas e o convite para entrevistá-la foi aceito com entusiasmo. Hoje, entendo que sua

entrevista poderia ter sido melhor conduzida e diversos pontos poderiam ter sido explorados com

mais cuidado. Entretanto, naquele momento, enquanto pesquisadora iniciante, logo no início da

nossa conversa, fui surpreendida pela notícia de que Daniela tinha tido uma gravidez muito

conturbada, e ela estava visivelmente desconfortável em falar sobre o assunto. Porém, apesar

disso, considero que sua fala tenha muito a contribuir para o trabalho.

Quando começamos a entrevista, a informante me comunicou que havia tido sérios

problemas durante a gestação, mas acreditava que a nossa conversa a ajudaria, afinal, seria bom

falar sobre o assunto já que ela não tinha com quem conversar sobre aquele momento. Segundo a

informante:

Quando eu vejo uma grávida, eu sinto pena!

O que tornou a gravidez de Daniela um momento mais conturbado do que o próprio

processo ritual de passagem foi uma deficiência hepática. Ela procurou ajuda médica e ninguém

sabia ao certo o que causava as coceiras que tinha pelo corpo todo, a disfunção hepática que se 1 No texto, todos os nomes das informantes e de seus filhos foram trocados por nomes fictícios com o intuito de preservar as identidades.

20

apresentou nos exames de sangue e as sérias dores nas articulações. Após procurar uma série de

especialidades médicas e não obter respostas conclusivas foi sugerido à Daniela que fizesse uma

biópsia do fígado ainda durante a gestação. Apesar de todo o sofrimento que vivia, ela se recusou

a fazer o exame, optou por cuidar dela e do bebê, afinal ela enquanto médica, sabia que os

colegas de profissão acreditavam que ela tinha algum tipo de doença incurável e que a deixaria

debilitada prematuramente.

E então, seu filho nasceu e somente um ano e meio após o parto Daniela encontrou um

médico que conseguiu fechar um diagnóstico. O que ela teve foi um problema hepático, uma

complicação rara na gestação, mas que não traria nenhum risco à sua saúde. Ela, inclusive,

desenvolveu a mesma doença na segunda gestação. Entretanto, depois de sentir tanta angústia

sobre o diagnóstico em aberto, isso não foi suficiente para trazer tranquilidade para Daniela, e ela

já havia desenvolvido depressão pós-parto e precisou buscar ajuda terapêutica durante esse

processo.

Quando engravidou, Daniela tinha uma vida estabilizada: vivia sozinha, já possuía o grau

de mestre, e era financeiramente independente. Natural de uma cidade do interior do estado do

Rio, foi para Niterói estudar e trabalhar. A informante descobriu a gestação com cinco semanas e

disse que não pensava em se casar e ter filhos, mas encarou a notícia com tranquilidade. Em

relação ao pai do bebê, Daniela disse:

Ele levou muito bem, sentou no chão, tirou um cigarro, e como é que ele falou?

Ah... ele é tão legal nessas horas, sabe? Ele disse: “Ah, eu acho que vai dar tudo

certo!”. Ele é muito maneiro.

Daniela fez pequenas alterações na sua rotina por causa da gestação: trabalhou

normalmente durante todo o período e apenas pediu afastamento do plantão médico em que

trabalhava porque operava com Raio-X, o que poderia causar danos ao feto. Ao final da gestação,

entrou de licença na clínica que trabalhava em São Gonçalo, pois já estava com a barriga muito

grande e o tempo de deslocamento a deixava cansada.

Além disso, diz ter mudado a alimentação, por medo de doenças. Segundo ela, sempre

teve uma alimentação saudável, mas durante a gravidez tinha medo de comer alimentos crus,

acreditando que poderia ter toxoplasmose. Outra modificação que Daniela fez durante a gestação

21

foi em relação à atividades físicas. Antes da gravidez, fazia a natação frequentemente, entretanto,

quando engravidou, sentiu muito enjoo, o que a atrapalhava na atividade física.

Segundo a informante, ela parou de fazer coisas que pudessem comprometer a saúde do

bebê. Ela alega que por ser médica, sabia das doenças que poderiam ocorrer e, como radiologista

grávida, fazia exames em outras mães de bebês com problemas sérios. Parou, inclusive, de fumar

maconha.

Daniela é uma mulher de personalidade forte e nunca deu muito espaço para as opiniões

alheias ou para que as pessoas a ajudassem de alguma maneira durante aquele processo. Como

sempre, foi muito independente. Daniela se recusou a depender dos outros só porque estava

grávida. Entretanto, ela diz que sentiu falta de apoio maior da família:

Eu acho que quando a gente gosta muito de uma pessoa e tal, mesmo que você

note que ela é super descolada, que resolve tudo, acho que não custa você dar o

seu apoio. E a minha família não é assim comigo, entendeu? E eu, pelo contrário,

dizia: ‘Olha, eu sou médica, já tenho 30 e poucos, mas se você (sua mãe) chegar

aqui em casa e vir alguma coisa que não tá legal, quiser me dar algum conselho,

fala! Pode falar!’. Ninguém fala nada, lava as mãos. Então, nada mudou, ninguém

me protegia, tinha mais cuidado, porcaria nenhuma, nem carregar peso, nada!

Daniela sentiu falta também de uma intervenção mais firme do parceiro, relacionada ao

problema de saúde que desenvolveu. O marido só tomou uma posição quanto ao diagnóstico em

um estágio muito avançado da gravidez. Ele até chegou a dizer: “Daniela, olha pra você! Você

está bem!”. Porém, segundo ela, o marido disse isso quando já não mais fazia efeito, o sofrimento

já vinha se estendendo por vários meses, e ela não deu ouvidos, afinal: “O que ele sabia? Nem

médico era!”.

Devido a essa angústia causada pela possível morte de Daniela, a informante narrou uma

situação em que estava com o parceiro, em um shopping da Zona Oeste da cidade do Rio de

Janeiro. Ao chegarem à praça de alimentação, se sentaram. Na mesa ao lado havia um grupo de

crianças comemorando o aniversário de um coleguinha. Segundo Daniela, diante daquela cena

ela sentiu um nó na garganta muito forte; afinal, não sabia se iria sobreviver para vivenciar aquele

momento com o filho.

22

Daniela reclamou que durante a gestação a sociedade quer sempre passar a mão na barriga

da mulher grávida. Segundo ela:

Isso é desagradável. Todo mundo passa a mão, gente que você nunca viu na vida

passa a mão na sua barriga. Eu não gostava disso, é muito esquisito.

O filho de Daniela nasceu com 37 semanas de gestação, em um hospital particular de

Niterói, por meio de uma cesariana, devido à doença hepática que desenvolveu. O parto não foi

pra ela uma experiência marcante. A informante afirma que sua vida mudou a partir daquele

momento:

Aí você quer abraçar o mundo, né? Você acha que tudo é lindo. Eu lembro que eu

escutava aquela música do Secos e Molhados: “Mulher barriguda que vai ter

menino / O que será ele quando crescer / Haverá guerra ainda? / Tomara que não /

Mulher barriguda / Tomara que não”. Aí você quer que o mundo esteja em paz!

Mas é isso mesmo, quando você tem filho, você quer que toda a humanidade viva

bem, porque o seu filho tá vendo. É muito louco, é muito louco.

Quatro dias após o nascimento de Joaquim, ainda com os pontos da operação, a

informante já estava na rua para fazer compras e foi repreendida pelas pessoas do supermercado,

que já a conheciam. Essa independência da informante trouxe alguns incômodos também à sua

família. Com muita naturalidade, Daniela dispensou a ajuda da mãe no nascimento do seu filho.

A avó não gostou nem um pouco de sua atitude, porém, não expressou sua indignação, e Daniela

só foi saber tempos depois:

Depois que eu soube, minha mãe ficou desapontada, porque o primeiro banho no

Joaquim quem deu fui eu. Nos filhos da minha irmã, o primeiro banho quem deu

foi ela, porque a minha irmã ia pra casa dela e ficava lá durante um mês, entendeu?

Eu não. É meu filho, eu que vou dar o banho nele.

Como mãe de primeira viagem, ela passava os dias vigiando o seu filho para saber se ele

estava bem. E ao final, me relatou que com o nascimento de seu segundo bebê essas “paranoias”

23

desapareceram e ela curtiu muito mais. Mesmo desenvolvendo a mesma doença, viveu o processo

com mais tranquilidade. Sua preocupação naquele momento era a de não estar se preocupando

tanto com a segunda criança, de deixar sua filha “largada” demais, como ela própria definiu.

1.2. O quarto vazio

Quando entrevistei Antônia, ela tinha 25 anos, um filho de 7 meses e fazia o curso de

pedagogia à distância. Conhecemos-nos na graduação, eu cursava Ciências Sociais e ela Letras.

Nunca fomos próximas, nos esbarrávamos ocasionalmente no diretório acadêmico da faculdade e

tínhamos alguns amigos em comum. Em um determinado semestre ela saiu da faculdade e nosso

raro contato passou a acontecer através de uma rede social. Fiquei sabendo de sua gravidez a

partir de fotos que nossos amigos em comum compartilharam de Antonia e seu filho. Quando

surgiu a pesquisa, entrei em contato com ela pela rede social e Antonia prontamente aceitou o

convite de ser entrevistada.

Ela me recebeu na casa de seus pais, onde estava morando provisoriamente com seu

marido, filho e cachorro, um amplo apartamento antigo em Copacabana. Antonia vinha de um

período de mudanças e estavam na casa de seus pais até encontrarem o apartamento ideal para

acomodar a família.

Quando engravidou, Antônia já estava casada com o pai de seu filho e afirma que a

gravidez foi planejada, já que não fazia uso de nenhum método contraceptivo há mais de 6 meses,

apesar de não estarem tentando engravidar. Quando se casou, a informante foi morar num

apartamento de dois quartos em Copacabana, entretanto o quarto vazio a incomodava:

Eu tava sentindo que tava faltando alguma coisa, era muito engraçado, porque eu

tinha 23 anos e teoricamente não estava faltando nada. Pelo contrário, tava

sobrando. Eu sentia que tava faltando alguma coisa e aquele segundo quarto me

incomodava brutalmente. Eu acho que aquilo ali era um espaço vazio que poderia

estar sendo ocupado por outra pessoa. Então, eu vivia tentando colocar gente ali

dentro, chamei uma amiga pra morar lá, dei não sei quantas festinhas e mais

festinhas pra casa ficar cheia, comprei um cachorro, mas o raio do quarto

continuava lá, vazio. Ai eu entulhei de cacareco, até que finalmente, eu fiquei

grávida e o quarto foi ocupado.

24

Ao descobrir a gestação com seis semanas, Antônia tentou “mudar de vida”. Segundo ela,

sempre desenvolveu distúrbios alimentares e fazia muitas “loucuras” para controlar o peso, e ao

engravidar tentou levar uma vida mais saudável, fazendo exercícios diários e se alimentando

melhor. O que foi inviável, afinal, Antônia enjoou os nove meses de gestação. E assim, ela se

colocou de repouso.

Antes de engravidar a informante trancou a faculdade por questões financeiras e essa viria

a ser mais uma atividade inacabada de sua vida, o que a rendia muitas criticas dos seus familiares.

Por isso a gravidez foi encarada pelos membros de sua família como a “salvação” de Antônia,

afinal, com um filho ela teria que ter mais responsabilidade. Segundo ela, um filho é o que a

sociedade espera de um novo casal que se forma; e quando você corresponde a essa expectativa,

você “está bem”, pois cumpriu o seu papel. E, em seu caso específico, seria algo que, de fato, foi

realizado dentre tantas coisas inacabadas.

Quando engravidou, sua família ficou muito entusiasmada com a notícia e ela percebeu

que passou a ser tratada de maneira diferente. Seus parentes deixaram de enxergá-la como uma

“menininha louca” – segundo sua própria definição –, e passaram a encará-la com um pouco mais

de respeito: como a “menininha que tem um filho”.

A partir daí iniciou-se um processo ambíguo para Antônia, pois sua família passou a dizer

como seriam as coisas, apontaram o que ela teria que mudar, o que deveria saber para cuidar de

um filho, e Antônia não ficou satisfeita com aquele controle. Então, sua família passou a evitar

dar opiniões nas escolhas da informante. Por outro lado, ela sentiu falta da presença da mãe

naquele momento, já que por já ter passado pelo processo, era quem deveria “cuidar daquela

situação”, explicando como as coisas seriam e fornecendo as informações necessárias relativas à

gravidez, parto e cuidados com o bebê. Antônia se sentia sozinha e acreditava que a família teria

um papel fundamental naquele momento, mas, segundo a informante, eles não estavam lá.

Eu senti falta de uma pessoa que ficasse lá cuidando da situação mesmo: “Ah, filha!

Você tá grávida, tá precisando de alguma coisa? Vamos dar uma volta!”. Ou então,

sentar pra conversar, porque tudo na mulher fica pesado (...). Eu senti falta de uma

pessoa, acho que principalmente da minha mãe, que já tinha passado por isso, para

poder me dar um auxílio: “Olha, como é que vai ser, como é que não vai ser”, para

poder me preparar. Só para você ter uma ideia, eu não sabia trocar uma fralda. Então,

25

quando você tem que fazer tudo sozinha, é muito mais penoso, muito mais difícil. Eu

senti falta. Acho que todo mundo tem que ter uma pessoa do lado, senão a pessoa cai e

fica muito mal.

Para a informante, a gestante tem a “autoestima muito complicada”, e com a frustração

em relação à expectativa do apoio familiar, Antônia sentiu falta de ser “mimada”. Segundo ela,

por ser um processo difícil para a mulher, a decisão de ter um filho deve ser tomada junto à

família estendida:

Realmente, eu acho que a gestação tem que ser uma coisa planejada, tanto

financeiramente quanto afetivamente, entre você e seu parceiro. Acho que com a família

também. Tipo: “Vamos conversar! Se preparem, vocês vão poder me ajudar? Em quê

vocês vão poder me ajudar? Vocês não vão me ajudar? Como é que vai ser o seu

papel?”. Porque depois que eu tive o Daniel, eu comecei a achar que cada um precisa ter

o seu papel. Não especificamente para ajudar, mas para ter uma finalidade, fazer parte

daquilo ali, sabe?

A informante, por não ter quem a orientasse, procurou conversar com mulheres mais

velhas, que já haviam parido, com o intuito de saber se o que ela estava passando era normal.

Eu conversei com muitas pessoas mais velhas, e todas tinham um relato totalmente

diferente do que estava acontecendo comigo. Então, eu ficava me achando um E.T.

enjoado, sabe? Porque eu ficava assim: “Meu Deus! Como é que pode? Não tem uma

pessoa que diga que enjoou”. Todo mundo teve uma gravidez ótima. Eu tava lá

conversando com a pessoa e: “Nossa, foi maravilhoso!”, e eu lá, vomitando.

Para a informante, a gravidez foi um processo traumático, ela acreditava que seria mais

fácil de lidar com o período gestacional, mas conforme os meses foram passando, começou a ter

dificuldade para dormir, falta de ar, diversas crises alérgicas e pressão alta. Além dos 25 quilos a

mais, muitas transformações corporais ocorreram, como inchaço nos pés e enjoos infindáveis.

Para a informante a gravidez é um processo muito difícil para a mulher:

Enquanto tá nascendo uma coisa, você tá morrendo.

26

Em relação ao contato com outras grávidas, Antônia contou que existem competições

entre elas e sentiu que algumas mulheres que desejavam ter filho do sexo masculino mas que

estavam grávidas de menina, quando a questionavam a respeito do sexo do seu bebê,

demonstravam inveja no momento em que ela respondia que gestava um menino. Outro ponto

interessante é que quando grávidas se encontram, competem em pequenas coisas, como, por

exemplo, se a barriga está maior que a da outra, o pé que está mais inchado do que o da amiga,

que uma está mais “acabada” do que a outra, etc. Curiosamente, Antônia compreendeu que as

competições que se criam em torno das grávidas estão sempre ligadas aos fatos mais

desagradáveis da gestação, como uma forma de competição de quem sofre mais durante o

período.

Às 39 semanas de gestação, em março de 2009, sob o calor opressor do verão carioca,

Daniel nasceu em um hospital particular da Zona Sul do Rio. Antônia já estava muito cansada,

com muito calor, muito irritada, com uma agonia que não passava, e o bebê não nascia. Assim,

diz ter optado por marcar uma tentativa de indução do parto por medo de desenvolver eclampsia.

Já havia esperado cinco horas em trabalho de parto e havia tido pouquíssima dilatação, e nesse

momento ela e seu médico optaram por uma cesárea. O enjoo a seguiu até a mesa de parto, e

quando questionada a respeito do que sentiu quando seu filho nasceu, a informante disse:

Eu vou te falar sinceramente, tá? Eu tive enjoo os nove meses. Quando o Daniel

saiu, o enjoo parou. Então, foi um alívio, mas um alívio que você não tem noção.

Foi um alívio. Por isso que eu falo, de tudo, mais do que a emoção de ver ele, foi

o alívio. Foi o alívio de: “Caramba! Não está mais comigo, agora pertence a

todos”, sabe?

Sobre o parto, Antônia afirma que desejou ter um parto normal, apesar de sentir muito

medo das dores, e que tentou mesmo assim, mas não foi possível e que a cesárea foi um processo

muito tranquilo.

Em relação ao filho, as expectativas foram atendidas e seu relacionamento com Daniel é

muito forte. Segundo ela:

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Eu acho que passar por tudo isso realmente faz você ficar muito ligada ao bebê. É

como se fosse todo um trabalho mesmo: “Ó, você vai ficar nove meses cultivando

uma coisa, depois quando chegar você vai estar plenamente ciente do que está

chegando e você vai conseguir cuidar”. Porque é isso, minhas expectativas em

relação à família foram frustradas, mas em relação ao bebê, não. Não dá pra se

frustrar com o bebê, né?

O que Antônia não contava é que a sociedade esperaria atitudes dela como mãe, e faria

cobranças. Principalmente as mulheres, que estão sempre a postos para fazer críticas às escolhas

das mães, e tudo é motivo para descontentamento e julgamento: se o bebê está sem sapato, se está

com pouca roupa, muita roupa, se está passeando à noite, etc.

Segundo a informante, a família também quer controlar. Ela percebe que no caso de sua

irmã, que já está na segunda gestação, e como todos já sabem que ela é capaz de cuidar de um

bebê, está muito mais livre. Faz o que quer e está livre de julgamento. O ambiente de sua casa

proporcionou-lhe mais liberdade, afinal lá ela não está sendo supervisionada pelas demais

mulheres.

1.3. O parto domiciliar

Conheci Inês através de uma lista de discussão sobre parto natural na internet. Percebi que

ela era muito ativa nas postagens, sempre iniciava boas discussões e mantinha um blog

interessante no qual tratava de assuntos como gestação, parto, criação dos filhos, consumismo

infantil, entre outros. Inês é ativista dedicada à causa do “parto humanizado” e movimenta muita

discussão em relação a isso. Sabendo que seus dois filhos nasceram em casa com ajuda de

parteira, resolvi então enviar uma mensagem privada para ela explicando o tema da pesquisa e

convidando-a para ser minha informante. Ela respondeu imediatamente aceitando o convite.

A entrevista aconteceu em sua residência no bairro do Rio Comprido. Inês morava em um

apartamento de dois quartos em um grande condomínio composto por três blocos, com muitos

andares e muitos apartamentos por andar. A casa da informante era uma casa simples, mas que

retratava bem o que ela e o marido acreditavam ser a melhor maneira de educar os filhos. A sala

não tinha mesa de jantar, o sofá era um colchão no chão com diversas almofadas coloridas, eles

não tinham aparelho de TV em nenhum dos cômodos e o quarto das crianças era todo colorido.

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Quando a entrevistei, Inês tinha 35 anos, segundo grau completo e dois filhos – Bernardo,

de 2 anos e Valentina de um mês. Natural de Curitiba, a informante já morava há muitos anos no

Rio de Janeiro. Quando engravidou pela primeira vez, tinha 33 anos, e ela e o parceiro estavam se

programando para ter um filho no ano seguinte. Para tanto, ambos fizeram uma série de exames e

Inês descobriu um cisto no ovário, por isso, fez um tratamento de três meses e no mês seguinte já

estava grávida.

Um dia ela desconfiou que poderia estar grávida e resolveram fazer o teste de gravidez de

farmácia. Compraram e foram para um restaurante, e quando souberam do resultado, ambos

choraram de alegria. Segundo a informante, foi uma experiência muito forte para o casal e as

modificações que a gravidez acarreta foram bem marcadas. Primeiramente, o cotidiano de Inês

mudou radicalmente, e ela, que é atriz e sempre trabalhou muito, na gravidez reduziu o ritmo e

descobriu uma nova atividade junto às crianças: a de contadora de histórias. No entanto, esse foi

um momento, como Inês definiu, de “crise” – afinal, foi durante esse período que ela perdeu

várias oportunidades de trabalho, por causa da barriga, que cresceu rápido. Por já ter uma idade

“avançada” para o mercado de trabalho no qual estava inserida, ela sentia que ficaria pra trás.

Acompanhando essa “crise existencial”, vieram as questões financeiras, pois já que havia

perdido muitas oportunidades, a renda do marido se tornou a principal do domicílio. E foi difícil

para Inês, pois, enfim, ela estava tão feliz que não compreendia porque não poderia trabalhar com

eventos e como atriz:

A gravidez gera muito incômodo nas pessoas. Pra mim, a gravidez era uma

dádiva, e como gera incômodo nas pessoas!

Inês viveu intensamente a gravidez e era muito ativa, passou a contar histórias, mudou

radicalmente a alimentação, frequentou rodas de conversas entre mães e praticou exercícios de

ioga.

Tempos antes de engravidar, leu uma matéria no jornal sobre parteiras e se aliviou ao

saber que elas existiam. Quando se descobriu grávida, saiu em busca de sua parteira, pois queria

um parto domiciliar e não imaginou em momento algum as barreiras que encontraria para realizar

essa vontade.

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Tendo optado por um parto domiciliar, natural e com parteira, Inês buscou o pré-natal no

SUS (Sistema Único de Saúde), por orientação da parteira, já que com a crise financeira pela qual

passava essa era a opção mais barata. Levando-se em conta que o sistema público de saúde faz

apenas o necessário, ela teve um pré-natal com pouca intervenção médica e fez apenas três

ultrassonografias. Inês foi muito pressionada devido à sua escolha referente ao tipo de parto,

tanto pelas famílias, como pelos demais. A informante não contou para sua mãe sua escolha de

parto. A mãe um dia descobriu e ficou a gestação inteira sem falar com a filha. Já a sogra não

gostou da ideia mas não se posicionou, pois acreditava que a escolha era do casal – fato que Inês

só soube depois – e a sogra acrescentou que essa escolha em relação ao parto deixa todos muito

tensos.

De um modo geral, as famílias achavam as escolhas do casal muito “exóticas”, a maneira

de parir, educar e se alimentar causavam estranhamento. Assim, eles contaram com pouca

intervenção familiar, o que não os livrou das críticas às suas escolhas. Quase no final da gestação,

Inês recebeu uma ligação de sua tia, que se dizia muito preocupada e com medo de que algo

desse errado durante o parto. No entanto, não houve muito espaço para orientações.

Para o casal, a opção pelo parto domiciliar foi uma escolha política, uma crítica aos

padrões reproduzidos pelas famílias de origem. Segundo ela:

É dizer pra nossa família que: “Olha, vocês fizeram tudo errado!”. Não é errado,

mas: “Vocês pariram de forma errada, escolheram escolas erradas, vocês

alimentaram seus filhos de forma errada, vocês deram brinquedos errados e

roupas erradas”. É uma escolha política e isso é duro para as pessoas. Não é que

esteja errado, mas é uma escolha nossa e a gente tá dizendo isso pra eles. A

família se sente afrontada.

Inês não tinha acesso à internet em casa e por isso ficou “isolada” com suas escolhas e

reflexões. Como a opção pelo parto era totalmente normal, a seu ver, Inês se assustou com a

atitude das pessoas que a recriminavam:

Então, eu tava isolada do mundo real e virtual e achava que estava fazendo a coisa

mais normal do mundo. Quando eu ia pro mundo real e falava que o meu parto ia

ser em casa e as pessoas ficavam chocadas, eu não compreendia.

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A mãe de Inês teve três partos complicados. O primeiro deles teve eclampsia, o que levou

à morte do bebê. O segundo foi o de Inês, que passou muito tempo na incubadora devido a uma

segunda eclampsia desenvolvida pela mãe. E na última gravidez, a mãe foi vítima de um erro

médico, o que causou muito sofrimento para a família e nove cirurgias para sua mãe. A

informante nunca teve uma relação muito próxima com a mãe, pois ambas partilham ideais muito

distintos. Quando questionada pelo motivo da escolha do parto, Inês diz que é fácil encontrar a

resposta:

Escolher o parto natural foi uma maneira que eu encontrei de expurgar todos os

partos traumáticos da minha família. Era uma maneira de mostrar pra mim mesma

que aquilo não era para mim. Eu podia fazer diferente, fiz e ponto. Ninguém vai

tirar de mim e isso me deu uma força interna muito grande. Antes eu era uma

pessoa extremamente insegura. (Caderno de campo)

Como a mãe de Inês não estava presente neste período, ela buscou algumas dicas com

amigas que já haviam parido, mas foi a parteira quem teve um papel mais presente e orientou a

informante com as dúvidas em relação aos cuidados com o corpo, às modificações causadas pela

gestação, e a alimentação necessária para cada período de desenvolvimento do feto. Desta forma,

Inês não precisou tomar nenhuma vitamina sintética, controlava todas as necessidades apenas

com a alimentação, e ela, que é vegetariana, afirma que com a gravidez se tornou mais rígida com

seus horários e ao se alimentar.

A informante percebeu que a sociedade, de uma maneira geral, quer participar do

momento da gestante.

A gestante mobiliza muito as pessoas. Quando veem uma grávida já vêm logo

contar uma experiência traumática, e como todas são experiências traumáticas, é

desesperador. Ninguém vem falar: “Nossa! Você tá uma grávida ótima!”. As

pessoas vêm falar “mas a minha filha quando ela foi ter neném aconteceu isso,

aconteceu aquilo”. Eu ficava passada. As pessoas falam muita desgraça para a

grávida. Chegou um momento em que isso foi ficando muito forte, vai chegando

perto do parto, as pessoas despejam ainda mais. Aí eu comecei a cortar.

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Ao mesmo tempo, Inês ficou uma grávida muito bonita. Segundo ela, sentia-se a

“própria divindade na terra”, e desconhecidos ficavam impressionados com sua exuberância

gestacional. Ela acredita que isso se deu devido à relação que estabeleceu com a gravidez:

Eu tinha tanta luz! Eu hoje vejo as fotos e parece que eu tava louca de droga! Era

uma euforia, uma felicidade irradiante. Era muito bom! Eu passava na rua e as

pessoas mexiam comigo: “Nossa! Que grávida linda!”, de tão maravilhada que eu

tava com aquele estado.

O pai do bebê se fez muito presente durante toda a gestação, fazia questão de acompanhá-

la a todas as consultas e exames, mas Inês sentiu falta de uma relação dele maior com a barriga.

Foi só na segunda gestação que ela pôde perceber que é difícil para o marido se relacionar com a

barriga, e como não é o pai que sente o bebê dentro de si, a relação se torna um pouco

“imaginária”, como definiu a informante. Segundo ela, o nascimento do filho trouxe consigo

outro tipo de participação paterna muito mais ativa e “maravilhada”. Na gestação, o desejo sexual

de Inês aumentou muito, mas ela não teve um retorno do parceiro diante de sua necessidade;

segundo ela, a sexualidade fica para um terceiro plano:

Eu virei a Virgem Maria, Amém! E isso foi difícil pra mim, porque eu tinha um

tesão absurdo e o meu marido me endeusava. Aí acabou que eu guardei aquilo.

Durante a gestação, Inês ganhou doze quilos, desenvolveu depressão pré-parto e optou

por não querer saber o sexo do bebê. Isso causou muito desconforto para os amigos e parentes. A

informante relatou que antes do chá de bebê, recebeu um e-mail dizendo que um dos convidados

não estaria presente, pois como não se sabia o sexo do filho de Inês, ela não saberia o que

comprar e avisou que quando ele nascesse levaria algo. Segundo ela, as pessoas ficam

“embrulhadas” com a dúvida do sexo do bebê.

Inês percebeu que, durante a gestação, os conhecidos ficam mais solícitos, mas quando a

grávida está nos espaços coletivos não há sempre essa atenção. Segundo ela, algumas mulheres,

mulheres com crianças e algumas pessoas mais velhas sempre queriam ceder o lugar para ela,

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mas, que quando achava descabido, não aceitava, e que não recebia esse cuidado dos homens em

geral.

No entanto, ela não ficava satisfeita com o comportamento das pessoas com relação à

barriga da grávida:

É um absurdo isso! Ninguém passa a mão na sua barriga antes, daí de repente...

até o motorista do ônibus quer pegar na sua barriga! Que invasão! Ninguém

pergunta, põe a mão. Várias clientes da minha parteira são europeias e elas

comentam como no Brasil as pessoas pegam na gente. Muito surreal.

Às 39 semanas de gestação, para matar a curiosidade de todos, nasceu o pequeno

Bernardo. Foi um parto domiciliar assistido por parteira, com duração de dezesseis horas, sendo

seis horas de trabalho franco.

Durante o parto Inês sentiu muita dor:

Eu sentia a dor mais alucinante do mundo e eu queria bater na cara da parteira,

porque ela não me avisou daquela dor simbólica. Simbólica porque você dizer pra

uma grávida que ela vai sentir dor é a mesma coisa que você dizer: “Minha filha,

dorme agora, porque depois você não vai conseguir”. É absurdo, avisar como...

(...) a dor era tão absurda que eu brigava com a barriga: “Nasce logo! O que você

tá esperando? Eu não estou agüentando mais!”. E começava a xingar o bebê.

Falava altos palavrões. Aquela dor me contrariou demais, porque eu imaginava

que ia cair pétalas do céu porque eu estava parindo! E, de repente, aquela dor

cachorra! Então, eu tinha muita raiva, batia na parede, gritava, fiquei sem voz até

dois dias depois do parto.

Segundo a informante, o parto está na cabeça da mulher, mas naquele momento ela sentia

tanta dor que pediu para a parteira empurrar o bebê e ela disse que não adiantaria eles irem para a

maternidade, pois o trabalho de parto estava bom. No momento em que ouviu a fala da parteira,

Inês não entendeu porque ela disse aquilo, e só depois na gestação de seu segundo bebê, a

33

informante descobriu o que ela tinha dito. Isso se dá, na visão de Inês, ao fato de que a realidade

fica suspensa durante o parto. E ela relata que teve visões:

No parto, eu entrei na linha do inconsciente. Então, eu tinha visões, cheguei a ver

minha mãe, umas caras recriminando a minha escolha. Eu cheguei a ver uma cena

de aborto, foi muito forte. De repente, no mesmo lugar onde eu estava na sala,

não era eu, eu estava do outro lado da sala, observando uma equipe médica

fazendo um aborto em uma moça. Todo mundo de preto. E a moça lá em trabalho

de parto, mas eu sabia que eles iam matar o bebê depois e eu falava assim para

uma pessoa que tava do meu lado: “Como é que pode? Entrar em trabalho de

parto, passar por tudo isso, para matar o bebê?!”. Eram visões, mas era a coisa

mais real do mundo. Aí, alguém da equipe médica de lá, do lado negro, virou pra

mim e falou: “Esse aborto é seu”, eu falei: “Não! Eu tô parindo! Eu tô dando à

luz!”. Nesse exato momento, eu fui puxada pela contração. Depois, no pós-parto

também. Eu tinha lembranças vívidas da minha infância, na hora da amamentação,

foi muito forte essa experiência.

Os hormônios do parto deixam a realidade da parturiente suspensa. Inês não se lembrava

muito bem do que sentiu quando seu filho nasceu, sabia apenas que estava em “transe”. Quando

questionada a respeito do que sentiu ao ver Bernardo pela primeira vez, a informante diz:

Nada. (risos) Absolutamente nada e isso foi assustador pra mim porque foi um

vazio completo, inclusive de pensamento. Foi um vazio. Eu olhava pro Bernardo

e olhava à minha volta e não tinha sensação, não tinha nada. Foi muito forte isso.

Foi um momento búdico (...). Eu achava que eu não tinha dito nada pra ele, mas

eu vi esses dias a filmagem logo após o nascimento dele e eu dizia: “Seja bem-

vindo, seja bem-vindo!” . Só que eu não sabia ainda que era menino. Ele já tava

no meu colo há um tempão e o meu marido perguntou: “E aí? É o quê?”. E eu: “É

mesmo!”. Aí a gente abriu o edredom e viu que era menino, porque não era

importante. E eu: “Seja bem-vindo! Nós nascemos! Nós nascemos! Nós

conseguimos! Parabéns”, eu dizia pra ele.

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O pós-parto foi marcado por mais transformações na vida de Inês. E foi neste momento

que o parceiro pôde demonstrar seu sofrimento. No terceiro dia de vida de Bernardo, o pai

delirou de febre e foi apenas um tempo depois que a informante percebeu que, naquele momento,

ele estava sofrendo de depressão pós-parto paterna. Ele sentiu toda a pressão que um filho pode

gerar apenas depois do nascimento, enquanto Inês desenvolveu depressão pré-parto. Ele ficou

muito triste por não ter acompanhado mais de perto o nascimento do filho, já que a parteira o

botou pra trabalhar muito durante o trabalho de parto – esquentando água, fazendo comida,

limpando a casa – porém só expressou o seu descontentamento durante o pré-natal de seu

segundo bebê.

No pós-parto, Inês desenvolveu psoríase. Além disso, teve sua rotina com os amigos

modificada, pois o casal não gostava de expor a criança a situações de muito barulho ou de

grande deslocamento, e isso não foi bem aceito pelos amigos, tampouco pela família. No entanto,

ela contou neste período com a ajuda da sogra, que passou dez dias com eles, após o nascimento,

para ajudar os novos pais.

Com a rotina transformada, Inês se irritou ao perceber que a sociedade não fala sobre

certos assuntos:

Teve uma época em que eu soltava os cachorros nas mães. Elas diziam: “Ah, é

ótimo nessa fase”. Ótimo o cacete, por que ninguém fala que é cão o trabalho?

Por que fica essa coisa velada? É velado o parto, é um segredo quase de Estado,

sabe? Mesmo as mulheres que tiveram partos bons, é um segredo de Estado! É

um segredo essa demanda que é. Porque é uma escolha o tempo todo. E qualquer

escolha pode ser fatal. O cara tá com febre, você tem que escolher o que vai dar!

Isso gera um estresse.

Ao final da entrevista, quando questionada se tinha alguma consideração a fazer, Inês me

disse que a maternidade, na verdade, é mais fácil do que parece e é a sociedade que a complica. E

acrescentou:

Pra mim, parir foi “o” rito de passagem, sabe? Mudei completamente. Até o

objetivo da vida, o objetivo de tudo, do trabalho...

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1.4. A “mulher vômito”

Regina é psicóloga, mas sempre trabalhou no comércio. Tem 28 anos e uma filha, Elisa

de 6 anos. Mora no bairro da Tijuca com a filha, os pais e dois dos seus três irmãos. Conheci

Regina através da informante Pilar, elas eram amigas e trabalhavam em locais próximos. A

entrevista ocorreu na loja em que Regina trabalhava, uma loja de roupas e artigos femininos,

também na Tijuca.

A informante era casada e se separou, por isso, foi morar na casa dos seus pais. Sete dias

após se separar, ela encontrou com um antigo namorado de escola, eles tinham namorado sete

anos antes do reencontro, que aconteceu no dia 27 de agosto. Então, resolveram se casar e

engravidar, segundo ela, a filha foi concebida no dia do aniversário deles em 30 de setembro – os

dois faziam aniversário no mesmo dia. Quando descobriu que estava grávida, marcaram a data do

casamento.

A gente planejou a gravidez. Eu queria casar grávida. Só que quando eu engravidei da

Elisa, eu tive pavor dele. Cancelei o casamento e não casei com ele. Eu sentia enjoo de

tudo. O cheiro dele me enjoava, o “bom dia” me enjoava, tudo me enjoava.

Regina descobriu a gravidez com quatro semanas e até então ela frequentava a academia

de ginástica e trabalhava em uma loja no shopping. Nesse período, Regina estava com a

faculdade trancada. Até os dois meses de gestação ela manteve todas as suas atividades, porque

segundo ela, por não ter barriga aparente, ela não acreditava estar grávida. Mas aos dois meses de

gestação, quando percebeu que estava enjoada do pai de sua filha, ela percebeu que algo estava

errado.

Ela vomitou todos os dias até o nascimento de sua filha, e não conseguia comer ou beber

água.

Eu era a “mulher vômito”!

A família e os amigos ficaram muito felizes com a gestação de Regina, segundo ela, por

ser independente, ninguém “se metia” na sua vida, e ela estava morando com os pais porque

havia se separado do marido e estava planejando o casamento com o pai de sua filha.

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Para Regina, a maior transformação que a gravidez trouxe foi que os enjoos a deixaram

muito limitada. Ela parou de malhar, foi transferida da loja em que trabalhava para o escritório da

empresa, e parou de comer porque vomitava tudo o que ingeria. Por conta disso, o médico do pré-

natal percebeu que, inicialmente, o bebê estava abaixo do peso e a mãe fortemente anêmica, e por

isso, receitou uma série de complementos vitamínicos para Regina.

Ela passou a trabalhar então na Barra da Tijuca e no caminho para o trabalho sempre

descia do ônibus para vomitar. Chegava a pegar quatro ônibus para chegar ao trabalho, pois as

curvas do Alto da Boa Vista a faziam vomitar. Até que um dia, sua chefe passou a buscá-la no

meio do caminho para ajudá-la.

A informante separou-se do pai de sua filha aos 5 meses de gestação uma semana antes do

casamento na igreja, que ocorreria no dia 27 de março. Regina não conseguia sentir o cheiro do

parceiro, mesmo ele tendo parado de usar perfume, loção pós-barba, desodorante sem cheiro, etc.

Segundo ela, o que a enjoava era o cheiro da pele dele. O pai de sua filha entrou em desespero.

Ele é policial e depois disso ficou preso no quartel por 30 dias, porque eu cancelei o

casamento no domingo e na segunda-feira ele tava de plantão do batalhão e fugiu.

Ficava andando no shopping onde eu trabalhava com as alianças na mão, igual a um

doido, fardado. Ele ficou preso trinta dias.

Mesmo com o casamento cancelado, o pai se manteve presente em todas as consultas e

exames pré-natais. E sofreu com o processo de separação, perdendo muito peso. Regina diz que

nunca sentiu pena dele, pois a situação se tornou insustentável para ela. No entanto, foi muito

criticada pelos familiares pela decisão de cancelar o casamento.

Regina não recebeu orientação das pessoas quanto à gravidez. Em primeiro lugar, porque

é uma pessoa muito fechada e não conversava com as pessoas sobre a gravidez, assim, nunca deu

espaço e as pessoas próximas a ela sabiam que se falassem algo que a informante não gostasse,

levariam uma “patada”. E, também, porque Regina sentia-se muito mal, e estava passando por

um período muito difícil: chorava de fome mas vomitava quando comia, por isso, as pessoas

acabavam sendo mais compreensivas. A mãe de Regina era a única a ser procurada para tirar

dúvidas e a ajudou a montar o enxoval.

Regina queria ter um filho homem, pois acreditava que não seria uma boa mãe de menina,

e achava menino mais “prático”. Passou toda a gestação acreditando que esperava um menino,

37

mas não havia tido nenhuma confirmação nos exames de ultrassom, pois o bebê estava sempre de

perna fechada e só doze dias antes do nascimento que descobriu gestar uma menina. Estava tudo

preparado para receber um menino, pois Regina acreditava que o bebê seria do sexo masculino.

O quarto já estava pintado de azul, as roupas para um menino já estavam lavadas e passadas.

Quando descobriu que era uma menina, Regina entrou em choque. Chorou muito porque não

queria ter uma filha mulher e também porque já estava com tudo pronto para receber um menino.

Quando se conformou, tentou trocar as roupas para “tornar o enxoval mais feminino”.

Regina queria um parto normal, pois tinha medo da cirurgia cesariana e o obstetra

incentivou a opção dela:

Queria um parto normal, não queria fazer cesariana de jeito nenhum. Uma amiga minha

fez cesárea, antes da Elisa nascer, e eu que fiquei com ela. Os pontos abriram todos, a

garota não conseguia nem andar. Eu falei: “No dia em que eu tiver filho não quero fazer

esse troço (cesárea), não! Quero, não! Ficar toda costurada, eu tô fora”.

A informante sentia muito sono durante a gravidez. Quando foi transferida da loja do

shopping para o escritório, sua chefe conseguiu disponibilizar uma maca em uma sala para que

ela pudesse dormir na hora do almoço. E aos oito meses de gestação, Regina entrou de licença.

Durante a gravidez parou de dirigir porque não tinha reflexo e ficava desatenta ao trânsito,

e passou a sentir medo de causar um acidente.

Eu grávida não conseguia dirigir, não tinha reflexo nenhum. Na primeira vez que eu fui

dirigindo pro trabalho, subi numa bifurcação, eu não vi aquilo. Parei o carro e fiquei

chorando. “Eu não posso dirigir porque eu não consigo enxergar”. Não tinha reflexo

nenhum. Quando tinha um carro do meu lado eu não via e enfiava o carro em cima dele.

Ou então quando o sinal fechava lá na frente, eu parava aqui porque achava que não ia

dar tempo de parar. Eu parei de dirigir porque falei: “Eu vou morrer desse jeito”.

Ainda que a informante tivesse terminado o relacionamento e cancelado o casamento com

o pai de sua filha aos cinco meses de gravidez, ele se fazia muito presente, pois queria

acompanhar o crescimento do seu filho. Assim, estavam sempre juntos, mesmo que isso fizesse

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Regina vomitar mais ainda. Apesar disso, eles fizeram sexo regularmente durante os nove meses

de gestação.

Às quarenta semanas de gestação, Regina percebeu que perdeu o tampão mucoso de

madrugada. Quis voltar a dormir, mas não conseguiu e tentou acordar o pai de sua filha, que

naquela noite estava dormindo em sua casa. Ele não acreditou e ela pediu que seu pai a levasse ao

hospital para uma avaliação. Chegando lá, a médica disse que ela ainda estava com a bolsa

íntegra e com apenas 3 centímetros de dilatação, e orientou que ela voltasse pra casa e esperasse

o trabalho de parto evoluir.

Durante o dia as contrações foram aumentando e quando estavam com um período curto

entre elas, Regina voltou para o hospital. O médico que a acompanhou durante o pré-natal não

estava de plantão naquele dia mas indicou uma outra médica que estava de plantão. Embora o

trabalho de parto estivesse evoluindo, a bolsa ainda não tinha rompido e por isso, a médica fez

uma intervenção para romper a bolsa, mas não obteve sucesso.

Fui pra sala de pré-parto e botaram o soro (ocitocina sintética) em mim, eu arranquei o

soro e fui pro chuveiro. Aí disseram que eu tinha que escolher alguém pra ficar comigo,

eu escolhi a minha mãe, não queria o pai dela de jeito nenhum porque ele é mais

estressado do que eu. Em vez de ficar deitada de barriga pra cima, porque eu sentia dor,

fiquei deitada de lado e toda vez que eu sentia uma contração eu fazia força. Eu sei que

eu fui fazendo força, fazendo força e teve uma hora que falei pra minha mãe: “Mãe, a

bebê tá nascendo”. E ela disse: “Só fala besteira, até parece”. Eu falei: “Mãe, eu tô

sentindo”. Na hora que ela deu a volta pra olhar falou: “Regina, não faz força, porque

essa garota vai cair no chão”. Ela abriu a porta e chamou a médica. Quando a médica

viu disse: “Regina, a última força e ela sai”. Aí eu fiz força e ela saiu. E eu nem tomei

ponto. Senti mais nada, nunca mais vomitei!

Segundo a informante, ela teve um parto natural por acaso, já que se recusou a receber o

soro com ocitocina sintética para intensificar as contrações e porque não houve tempo de fazer

anestesia. Ela acreditava que sofreria uma episiotomia, já que para ela era normal ser realizado

durante o parto, mas não houve necessidade e ela não sofreu nenhuma laceração. E apesar dos

enjoos, sua filha nasceu com 4,950 quilos.

39

Após o parto, a primeira coisa que sentiu quando olhou para Elisa foi o alívio de não

vomitar mais, e o enjoo pelo pai de sua filha passou. Ainda no hospital, quando Regina viu que o

pai de sua filha ficou muito feliz, segundo ela, “parecia que tinha tudo voltado ao normal”.

Quando Regina deixou o hospital, ela conversou com o pai de sua filha, pediu desculpas e disse

que gostaria de reatar o relacionamento com ele. Eles ainda ficaram juntos por mais um ano.

1.5. A grávida que se esquecia das coisas

Maria foi minha amiga de escola e minha primeira amiga a engravidar. Presenciei de

perto todos os momentos de sua gestação e quando sua filha Marcela já tinha dez meses me veio

a ideia de entrevistá-la. Então, a convidei e marcamos um encontro em sua residência.

Moradora do Jardim Botânico, Rio de Janeiro, Maria vivia em um apartamento de dois

quartos, com o marido e a filha. A informante descobriu a gravidez no início do ano de 2011, aos

22 anos, quando já vivia com o pai de sua filha e estava com casamento marcado para abril do

mesmo ano. Nascida em Recife, veio morar no Rio ainda criança. Quando engravidou estava

concluindo sua faculdade de Arquitetura e era estagiária de um grande escritório da área.

A informante e o marido estavam planejando a gestação para aquele ano, ela já havia

parado com o método contraceptivo ao fim do ano anterior, mas por ter a síndrome dos ovários

policísticos, Maria não imaginava que engravidaria tão rápido.

Com o resultado positivo toda a família ficou muito feliz com a novidade e sua sogra, que

estava em viagem aos Estados Unidos, prometeu que traria um exame de urina que diria o sexo

do bebê. O resultado foi que Maria esperava um menino. Somente um dia antes do seu casamento,

e por pressão da família, foi realizado um exame de ultrassom e descobriu-se que o bebê era

menina.

A programação era intensa – Maria se casaria em abril, concluiria a graduação em julho e

sua filha nasceria no final de agosto.

Eu gostei muito de estar grávida. Por exemplo, tinha a mulher de um cara lá do

escritório que tava grávida, ela adiantou a cesárea porque não aguentava mais. Eu não

conseguia imaginar isso, porque eu gostei muito de estar grávida. Tem gente que enjoa

muito, tem gente que fica passando muito mal e não sei o quê. Mas a minha gravidez foi

muito confortável, eu não engordei tanto, eu não inchei tanto, não enjoei tanto, então eu

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tava confortável com o meu corpo. Eu dormia bem, fazia tudo bem. Então, como eu

tinha muito isso de querer estar grávida um dia e tal, por mim eu teria ficado mais um

ano grávida, fácil. Eu tava amando estar grávida. E a merda foi que eu tinha muita

vontade de ficar grávida, sempre quis e deu tudo certinho, tudo certinho, mas eu

precisava me formar e não podia parar de trabalhar, então eu tinha muita vontade assim

de ter desfilado mais meu barrigão, sabe? Ir à praia... Eu fui à praia grávida uma vez. Eu

me formei em julho e Marcela nasceu em agosto, eu não tive tempo. Eu passava os

finais de semana todos fazendo o meu trabalho final, no computador, direto, sabe? Isso

foi meio caído. Também não vou ter um monte de gravidezes, então foi uma das minhas

duas ou três no máximo, e eu não pude curtir tanto. Isso eu fiquei um pouco chateada.

Mas foi o jeito que foi, teve que ser assim. Mas foi a única coisa que eu lamentei.

Maria afirma que apesar de tantas novidades, ela se sentia muito segura e tranquila. E

conta que o marido a ajudou muito durante esse período, cuidando da casa e tentando dar suporte

de todas as maneiras, ainda que estivesse preocupado com o futuro financeiro da família.

Em relação aos cuidados que a grávida recebe, Maria conta que ficava frequentemente

constrangida porque a sua gravidez mobilizou demais as pessoas, os amigos, os parentes, os

colegas de trabalho, e até as pessoas na rua eram todas muito atenciosas com ela.

No trabalho, umas vinte mulheres na sala: “Desliga o ar ou não? A Maria decide porque

ela tá grávida!”. E eu: “Não, gente! Tanto faz!”. Eu ficava constrangida, sabe? Eu

chegava em algum lugar e o assunto das pessoas morria pra sempre, passavam a noite

inteira falando de gravidez, de filho, criança, de mim, da minha gravidez.

Durante a gravidez, Maria relata que todos queriam “dar pitaco” sobre a gestação. A

família, os amigos e as pessoas na rua.

Teve uma vez que eu tava indo pro trabalho no ônibus e sentei perto de um senhor. Ele

se virou pra mim e disse: “Minha filha, eu falei muito isso pra minha filha: grávida não

pode assistir a filme violento, não pode ler livro triste ou ver tragédias na TV, porque

passa pro bebê”. E o engraçado é que eu nunca tinha construído esse pensamento. Mas

de fato eu parei de ver coisas que me deixassem triste durante a gravidez. Mas fora isso,

eu nunca prestei muito atenção no que as pessoas diziam, eu nem me lembro.

41

Em relação à sua mãe, Maria procurou ajuda dela em diversas situações, mas afirma que a

mãe foi muito respeitosa com o seu momento:

A minha mãe é meio psicóloga (a ãe de Maria é pedagoga). Então, ela se policiou muito

pra não fazer essas coisas. Ela sabia o tanto que isso podia atrapalhar. Ela dizia: “É

outra época, você tem que descobrir a sua maneira de fazer as coisas”. Ela foi super

correta nesse sentido. Ela insistiu um pouco pra que quando eu saísse da maternidade,

fosse pra casa dela. Mas eu quis vir pra casa. Falei: “Mãe, a insegurança vai me dar

quando eu chegar em casa com ela sozinha, seja direto da maternidade, seja um mês

depois, entendeu? Não vai me adiantar”. Mas eu quis vir pra casa, quis dar o primeiro

banho, quis fazer tudo. Porque minha mãe foi pra casa da minha vó quando ela me teve,

pra ela foi muito bom e aí ela insistiu pra eu ficar lá, mas eu não quis e ela aceitou bem.

O que ela bateu mais o pé, assim, foi porque ela é meio perua, então foram coisas mais

materiais. Eu queria comprar tudo de segunda mão, não precisa de lembrancinha (de

maternidade) etc., e ela foi mais chata com isso. Ela dizia: “Não, eu pago”. E fez

questão de fazer as lembrancinhas, foi pra Miami escondido de mim e voltou com uma

mala cheia de coisa pra Marcela, que eu não teria comprado nunca.

Quando Maria viu os gastos que teria ficou insegura e se questionou se engravidar

naquele momento não teria sido irresponsabilidade de sua parte, mas afirmou que isso foi apenas

uma fase e que passou. Além disso, durante a gravidez ela sentia muito medo de Marcela nascer

com algum tipo de problema.

Maria se sentia muito bem com a sua barriga, se achava linda e estava muito tranquila

com todas as transformações que vinham acontecendo, nada a incomodava muito. Mas segundo

ela, só depois do parto, quando o corpo passa por muitas modificações, que ela acredita que possa

ser um momento mais difícil para as mulheres.

Achava lindo eu estar grávida. Mas eu não achava que eu tava gorda, eu achava que eu

tava linda. Depois que você tem o bebê, você não está mais linda, realmente você está

gorda. Depois você fica com aqueles quilinhos a mais, o peito... O peito aumenta de

tamanho umas... mais do que a barriga, o peito estica. Eu sou boa, não sou fácil de ter

estrias, mas é porque... a minha barriga deve ter aumentado sei lá, oito vezes. O meu

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peito aumentou umas dezoito vezes, no final, assim que ele encheu, cara... Aí a pele

chega e fica uma textura assim de que esgarçou e é muito estranho. E umas coisas que

ninguém avisa: fiquei com o sovaco mais escuro, fiquei com uma mancha mais escura

no buço, o cabelo cai muito na amamentação, então agora tá todo nascendo. Tipo, dá

uma mexida, pra quem é muito vaidosa deve pegar, assim, um pouco, porque é muita

coisa. Além da cicatriz, né... A minha cicatriz ficou bem baixinha, bem pequenininha,

não me incomoda, mas tem gente que pega uns cirurgiões meio açougueiros e que ficam

com cicatrizes muito feias, cara...

Durante a gestação, Maria procurou um exercício com acompanhamento especializado

para gestantes, mas o marido e sua mãe tentavam de todas as maneiras restringir seus esforços

físicos. Além disso, ela tentou manter um equilíbrio na alimentação. Se por um lado, sua sogra e

avó insistiam na ideia de que a grávida precisava comer coisas bem calóricas e de que devia se

alimentar “por dois”, por outro, o médico reforçava a cada consulta do pré-natal de que ela não

poderia ganhar muito peso.

Quando ao parto, isso não era uma coisa importante, mas Maria desejava ter um parto

normal. Tinha medo das dores, entretanto, também tinha medo da cesariana.

E uma coisa que eu acho que foi muito importante pra mim, foi que até os momentos

finais eu ficava falando: “Quero parto normal, quero parto normal, quero parto normal”.

Acho que o médico foi percebendo que eu tava um pouco assim, meio assustada com

essa história, né? Aí, ele falou: “Cara, ó, se tiver tudo certinho a gente vai tentar parto

normal, mas se a qualquer momento você me disser que não dá pra você...”, porque é

isso, quem se coloca muito essa expectativa... acho que eu teria medo de não conseguir.

Aí ele me disse isso e eu: “Ah, então demorou! Vou tentar, vou tentar muito, mas se eu

achar que tá difícil eu tenho essa possibilidade de pedir um arrego”. Então isso me

tranquilizou!

Quando entregou seu trabalho de conclusão de curso e se formou, Maria acreditou que

passaria os dois últimos meses de sua gravidez curtindo muito o seu “barrigão”. No entanto, foi

nesse momento em que ela começou a sentir muitas contrações e teve um pequeno deslocamento

de placenta. Por isso, precisou ficar de repouso absoluto, sem fazer qualquer tipo de esforço.

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Assim, ficou um período na casa de sua mãe, passou a trabalhar de casa e foi medicada para que

as contrações parassem.

Depois de algumas semanas, as contrações diminuíram e quando ela passou a poder se

movimentar mais, percebeu que alguma coisa estava errada, então foi para o hospital para fazer

uma avaliação, mas, segundo ela, não era nada.

Chegando lá, Maria descobriu que a bolsa havia rompido e que por ela não estar em

trabalho de parto, precisaria fazer uma cesárea de emergência. Marcela nasceu com 37 semanas

de gestação, nos primeiros dias do mês de agosto, em uma maternidade particular na Zona Sul da

cidade. Maria não pôde ficar muito tempo com ela logo após o nascimento porque ela estava com

dificuldades respiratórias e precisava de cuidados. Após algumas horas na incubadora, Marcela já

estava bem.

A recuperação da cirurgia foi muito rápida para Maria e foi a partir no nascimento de

Marcela que a nova mãe pôde perceber que o tratamento com ela foi modificado, e, segundo ela,

subiu um “patamar” na hierarquia, e passou a sofrer com as orientações das pessoas. Sua família

teve dificuldade em compreender algumas das escolhas para a criação da sua filha.

Até sua avó perguntou se ela não faria uma tatuagem com o nome da filha, já que estava

na moda e todas as famosas estavam fazendo o mesmo.

Ao final da entrevista a informante pediu desculpas por dizer que não se lembrava de

muita coisa, mas afirmou que achava que essa havia sido a maneira que ela havia encontrado para

conseguir lidar com tantas novidades de uma maneira tranquila.

1.6. O “parto humanizado”

Conheci Ligia em uma festa. Uma amiga em comum, sempre quis nos apresentar por

achar que teríamos muito assunto juntas, já que Ligia era ativista do parto humanizado e eu

estava pesquisando sobre gravidez e parto. Por acaso, naquele dia que Ligia estava contando para

os amigos de sua gravidez – ela estava com quatro meses de gestação e naquele mesmo momento

convidei-a para ser minha informante. Ela aceitou, e afirmou que por amar falar sobre o tema,

seria um prazer ser entrevistada. Devido às nossas agendas, só consegui entrevistá-la quando ela

já estava com 39 semanas de gestação e o nosso encontro aconteceu em sua residência, no bairro

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de Botafogo, no Rio. Optei por fazer a entrevista em duas etapas, antes e depois do parto. A

segunda entrevista ocorreu algum tempo depois do nascimento de seu filho.

A informante tinha 29 anos, já era mestre, casada e trabalhava como assistente editorial

em uma editora. Ligia se casou em maio de 2011, após sete anos de namoro. Depois de muita

conversa, ela e o marido acharam que aquele seria o momento propício para formar uma família,

e que já tinham uma estrutura que comportaria um bebê. Resolveram, então, que tentariam

engravidar a partir de agosto daquele ano, sabendo que a gravidez poderia demorar pra acontecer,

já que a informante tinha Síndrome dos Ovários Policísticos. Os ovários policísticos impediam a

sua ovulação, e, assim, ela vinha de uma longa fase sem menstruar. Por causa disso, Ligia

acreditava que eles teriam de esperar em torno de três anos para viver a experiência da gestação.

Entretanto, no mês seguinte, ela percebeu que estava ovulando e ela e o marido resolveram tentar

engravidar.

Poucas semanas depois, Ligia sentiu um gosto de metal na boca e disse: “ih, eu estou

grávida!”. Fez o primeiro exame e o resultado deu “indefinido”. Precisou esperar alguns dias,

refez o exame e confirmou a gravidez.

O início da gravidez foi um início muito impactante pra mim. Porque como eu tenho os

ovários policísticos e engravidei muito rápido, e era uma coisa que sempre quis muito,

eu fiquei com muito medo de perder (o bebê). Então, eu conversei com meu marido e

expliquei pra ele que era muito importante a gente não revelar pras pessoas que eu tava

grávida, de jeito nenhum. Eu falei: “Olha, eu só quero mesmo quando tudo estiver

pronto, quando os riscos de aborto tiverem realmente minimizados e as coisas estiverem

mais estabilizadas e aí eu conto pras pessoas. Todas as pessoas, até o terceiro mês”. Eu

senti que eu tinha uma coisa muito legal, que eu queria muito, uma coisa muito positiva,

muito feliz e eu fiquei realmente com muito medo de perder.

A opção de só contar para as pessoas a partir das 12 semanas de gestação era baseada no

medo que Ligia sentia de que se viesse a perder o bebê, as pessoas a tratariam de maneira

diferente. Ela, por sua vez, não queria ser compreendida como uma “aberração”, tampouco “ser

digna de pena”, como a mesma definiu.

No trabalho, ela sabia que a gravidez não seria “muito mal vista” e optou por contar ao

seu chefe logo aos dois meses de gestação, pois devido a algumas alterações que a empresa vinha

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vivenciando, Ligia acreditou que seria importante. Já para os amigos e familiares, ela esperou até

o terceiro mês de gestação. O casal, apesar de estar planejando a gestação, acabou dizendo para

os parentes e amigos que a gravidez havia sido uma grande surpresa por se sentirem pressionados.

A informante contou que, de fato, eles foram surpreendidos porque ela não esperava engravidar

tão rápido.

O início da gravidez foi marcado por fortes enjoos, que a acompanharam até o quarto mês

de gestação. Ligia relata que por isso todos faziam recomendações para tentar ajudá-la e ela

tentou todas as alternativas.

Nada adiantava e eu continuava enjoada, e aí eu entendi que eu conseguia administrar o

meu enjoo, entendi que: “Ok, estou bem enjoada. Acho que a coisa tá mal, mas eu sei

que se eu continuar com esse tipo de enjoo, eu não vou vomitar”. Então, eu ficava

calma: “Eu só tenho que entender que eu sou assim agora, tô nessa condição e vai ser

assim”.

Após os enjoos, Ligia passou dois meses sem grandes incômodos, e foi nessa época que

ela se dedicou assiduamente às atividades físicas, entretanto, depois começou a sentir falta de ar,

o que a fazia desmaiar na rua, e então, por orientação médica, parou de praticar exercícios.

Para a informante, a grávida mobiliza uma parte das pessoas nos espaços públicos, e Ligia

percebeu que os homens e as mulheres mais velhas sempre ofereciam ajuda à ela, mas que

normalmente as mulheres jovens não demonstravam esse tipo de cuidado.

Ligia é ativista da humanização do parto desde os 19 anos, por isso, teve acesso a muita

informação sobre o tema e diz que não vivenciou nada que ela não soubesse ser possível de

acontecer. E que por isso, não sofreu grandes interferências da família nesse processo.

Acho que as pessoas não vêm me tutelar muito sobre a gravidez porque eu já tenho a

coisa do parto humanizado, já há muito tempo. Então eu já sou militante da

humanização do parto há bastante tempo e fico lendo sobre o tema e pesquisando, então

eu acho que as pessoas ficam mais... não sei se com medo ou se respeitam mais...

Sobre o relacionamento com a sua mãe – e ela ressalta que também fala da sogra nesse

momento – durante a gestação, Ligia afirma que tem restrições às orientações delas por desejar

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fazer as coisas a seu modo, e, assim, aprender como lidar com a situação, fazendo suas próprias

escolhas.

A minha mãe teve uma cesárea. Então, acho que isso define bem como é a minha

relação com a minha mãe, em relação a essa criança. Ela é uma pessoa que acredita

muito nos médicos, que tem uma dor de cabeça toma um remédio. E eu sou o oposto,

sou toda natural. Ela me respeita, sabe? Ela fala: “Ah, eu acho que você tá certa, que o

parto natural é um parto melhor mesmo, é um parto mais bacana, mas não funciona pra

mim”. Então, se por um lado as pessoas que me conhecem não vieram me doutrinar, por

outro lado, a minha mãe e a mãe do meu marido têm uma coisa de tentar ensinar alguma

coisa. Não é que elas digam: “Tem que fazer isso, ou tem que fazer aquilo”. Mas a

minha mãe me pergunta, por exemplo, se está tudo bem com os meus exames de sangue.

E eu me sinto muito cobrada, entende? Pô, claro que tá tudo bem! A minha mãe acha

que porque eu não gosto de intervenções eu não vou fazer exame? Vou surtar e voltar

aos tempos das cavernas? Não é isso! As pessoas confundem muito o processo

fisiológico do parto versus o processo patológico do parto e gravidez, e elas acham que

quando você tira a patologia da coisa e você vê só que a natureza está seguindo o seu

curso, você está voltando aos tempos das cavernas e você não tá fazendo nada, não é

assim. A minha médica é uma profissional, extremamente competente, em quem eu

confio, e ela vai ver se realmente está seguindo aquela fisiologia, e se tiver alguma coisa

que não esteja seguindo aquilo que é esperado, ela vai intervir, sim! Claro! Porque nem

eu, nem ela somos malucas. A gente quer acima de tudo saúde. (...) E eu não quero que

ninguém me ensine a ser mãe, porque eu realmente acredito que ser mãe é instintivo,

que tá ali para as mulheres que estão abertas a isso.

Quando questionada se a opção pelo parto humanizado causava algum tipo de

preocupação nas pessoas ela diz nunca ter sido questionada quanto a isso, e que isso se deve ao

pouco espaço que ela dá e a sua postura:

Acho que a minha postura é de que o errado é a cesariana, entendeu? O ponto fora da

curva é a cesariana. E deixar isso bem claro pras pessoas o tempo todo desde sempre,

desde que as pessoas me conhecem, acho que de alguma maneira eu coloco o assunto.

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Ligia optou por fazer o pré-natal com uma médica obstetra particular muito ativa na

questão da humanização do parto. Segundo ela:

Eu realmente acredito que para atender uma mulher nessa condição especial, só uma

outra mulher, eu não gosto de ginecologistas homens, não por pudor, ou por vergonha,

nada disso, mas eu sempre me senti muito mais confiante e mais compreendida por uma

mulher. Então, eu acho que se você vira pra um homem e diz: “Estou tendo uma cólica

todo mês”, ele vai ter outra compreensão dessa cólica, ele vai saber tecnicamente o que

isso significa. Uma mulher vai saber fisicamente aonde fica o seu útero, seus ovários,

ela sabe o que está acontecendo de fato no seu corpo. Isso pra mim faz diferença,

porque eu quero alguém que me compreenda. Porque como eu entendo o parto como

um processo fisiológico, um processo natural, um processo que precisa de muita

intuição, de muita sutileza, muita delicadeza no trato da coisa. É um momento muito

íntimo, pra mim, é o ápice da vida sexual da mulher, o parto. Então, eu acho que esse

negócio de você ter uma mulher, ela vai saber coisas que não precisam ser ditas, sabe?

Ela vai saber. Como ela tem o corpo feminino, como ela tem a mente feminina, ela vai

ter outra compreensão.

Ela contou também com o acompanhamento de uma enfermeira obstétrica, que foi

indicada pela obstetra. O trabalho com a enfermeira obstétrica começou assim que a barriga de

Lígia apareceu. Nos encontros, elas trabalhavam as questões das modificações corporais da

gestação e conversavam sobre o trabalho de parto e o parto. Ligia encontrou em sua enfermeira

obstétrica uma segurança durante todo o processo.

Segundo a informante me relatou antes do parto, ela entendia que a dor do parto era uma

dor fisiológica mas também simbólica:

Eu acho que a sociedade contemporânea tá muito mal preparada pra dor. Acho que a

gente tá cada vez mais se esquivando da dor e eu não acho que a dor seja uma coisa

necessariamente ruim. Acho que a dor é um sinal muito importante que o seu corpo te

dá pra te conduzir a fazer a coisa certa. Então eu acho que a dor do parto

especificamente, é uma dor muito boa, no sentido de que ela está trazendo uma vida.

Mas eu acho que as pessoas encaram essa dor de uma maneira muito estigmatizada,

desde da Bíblia: “Parirás com dor”, essas coisas até a frase clássica do nosso sistema de

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saúde: “Na hora de fazer foi gostoso, agora sofre”. Essa coisa meio sádica. A minha

expectativa é que seja um outro processamento da dor. Que seja um processamento que

eu consiga descobrir nessa dor mais uma maneira de me relacionar comigo mesma, de

me conhecer e mais, acho que é uma maneira de eu conseguir me relacionar, num

primeiro momento, com o meu filho.

Com 41 semanas de gestação, no mesmo dia em que acontecia a marcha do parto em casa

no Rio de Janeiro, Ligia entrou em trabalho de parto às duas horas da manhã. A princípio não

quis acordar ninguém, nem o marido, acreditava que todos precisariam estar bem descansados

para o processo. Às seis horas da manhã, Ligia já não conseguia mais cronometrar as contrações

e resolveu que era hora de pedir ajuda ao marido. Apesar das contrações estarem ritmadas, a

informante esperou para comunicar à sua equipe. A enfermeira obstétrica foi para sua casa e

realizou um exame de toque, mas Ligia não queria saber com quantos centímetros de dilatação

estava. Elas fizeram alguns exercícios e usaram bolsa de água quente para aliviar as dores,

respeitando todos os limites da parturiente.

Quando a enfermeira obstétrica realizou o segundo exame de toque viu que Ligia já

estava com nove centímetros de dilatação, entrou em contato com a obstetra e eles foram para a

maternidade. Ligia diz que passou a gravidez inteira dizendo que não queria sair para a

maternidade ao meio-dia por não querer se expor, entretanto, foi exatamente o que aconteceu. Ao

meio-dia ela estava saindo de casa. – Por sorte era domingo e não havia trânsito na Zona Sul da

cidade.

O processo foi rápido, ela chegou à maternidade e logo foi para a sala de parto, onde sua

obstetra já estava a esperando. Em um determinado momento, sua médica informou que ela já

estava com a dilatação total, e que quando sentisse vontade já podia fazer força para ajudar o

bebê nascer.

Na hora eu pensei: “Nossa, essa mulher tá maluca! Que fazer força, eu tô morrendo de

dor, quero mais é ficar quietinha aqui”. Duas contrações depois eu comecei a sentir

vontade de fazer força e eu pensei: “Foda-se, eu não aguento mais, eu quero é que essa

criança saia de dentro de mim”. Aí eu comecei a fazer força e foi nessa hora que a minha

mente meio que travou. Porque eu acredito piamente que o trabalho de parto de uma

mulher é um momento em que ela enfrenta os seus medos. E os meus medos são

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diferentes dos seus medos, por exemplo. Então tem gente que trava logo na primeira

contração (...). Eu passei relativamente muito bem pelas fases do trabalho de parto, por

todas as contrações, tanto que eu dilatei com uma certa facilidade, sobretudo para uma

primípara. Mas quando chegou na hora do expulsivo foi apavorante pra mim. Eu fiz a

primeira força e eu lembro até hoje como foi essa força, porque foi uma força que

começou no topo da minha barriga e ela terminava no meu períneo, e era uma força que

ia descendo da boca do meu estômago até lá embaixo, e ela era muito forte, uma força

que eu nunca tinha sentido antes em termos de intensidade e era uma força que eu não

controlava. Eu começava a força e ela se completava sozinha, não era uma coisa

intencional. E isso foi apavorante pra mim porque eu tenho muito medo do incontrolável,

eu sou muito controladora.

O bebê de Ligia só encaixou durante o trabalho de parto e o período do expulsivo não

demorou mais do que vinte minutos. Apesar da dificuldade que Ligia tem de organizar a ordem

dos fatos ocorridos no seu trabalho de parto, ela tem a percepção clara de que o expulsivo em

especial foi rápido.

Após onze horas de trabalho de parto o filho de Ligia nasceu em uma maternidade

particular na Zona Sul da cidade.

Eu fiz uma força e senti o círculo de fogo2 (...), aí eu falei: “Cara, tá nascendo”. Aí eu fiz

mais uma força e senti o bebê saindo e eu lembro que pensei assim: “Ai, vou ter

laceração, mas que se dane, porque eu só quero que esse menino saia daqui! Eu quero

que essas dores parem agora, eu não aguento mais”. É, eu sei que na hora não foi muito

romântico, muito maternal, mas eu queria que as dores passassem, que o parto acabasse,

eu queria terminar o processo. Aí o meu filho corou3, e começou a chorar, com o corpo

dentro de mim e cabeça do lado de fora, e na próxima contração ele nasceu, à meia luz, e

a obstetra segurou ele, porque eu estava de cócoras no chão. E ela segurou e falou:

“Ligia, segura o seu filho!”. Eu peguei ele e fiquei olhando e lembro de pensar: “Cara, o

que está acontecendo? O que é isso?”. Eu tentava processar as emoções e processar o

momento, porque eu esperava que eu fosse chorar, que eu fosse rir, que eu fizesse

qualquer coisa, mas eu não fiz. Eu fiquei mongol, essa foi a verdade, aparvalhada,

2 Círculo de fogo é o nome que se dá para quando a cabeça do bebê está se aproximando da saída do canal vaginal da mulher. 3 Coroar é quando a cabeça do bebê está saindo da vagina da mãe.

50

olhando e pensando um monte de coisa. A verdade é que aquele primeiro momento foi

muito meu, depois eu procurei o meu marido porque eu achava que deveria partilhar

esse momento com ele. Aí ele veio e a gente se beijou, beijamos o nosso filho.

A experiência do parto foi realizadora para Ligia, ela gostou muito de parir e se sentiu

muito respeitada e acolhida em todos os momentos. Apesar de ter sido muito diferente do que ela

imaginou, ela conta ter ficado muito satisfeita, orgulhosa consigo mesma e feliz por ter

conseguido um acompanhamento humanizado e por ter proporcionado para o filho uma maneira

respeitosa de nascer.

51

2. REFLEXÕES ACERCA DE UM RITUAL DE PASSAGEM

A partir dos dados etnográficos apresentados no capítulo anterior, viso aqui analisar de

que maneira a experiência de gravidez e de parto transforma a vida das mulheres, quais as tensões

negociadas com a sociedade e a noção de ritual de passagem.

Primeiramente, é necessário explicar que a gravidez e o parto podem ser compreendidos

como um rito de passagem com etapas bem definidas na sequência cerimonial. Nos rituais de

passagem, os neófitos possuem uma posição específica em relação ao seu estado de iniciantes e

passam por esse momento para apreender os conhecimentos necessários para desempenhar sua

nova função. Com a mulher grávida esse aprendizado ganha outra proporção com a ideia de

coerção social, já que ela é alvo de orientações constantes.

Além disso, a gravidez traz outros aspectos que também serão abordados aqui, tais como,

a maneira como o pai do bebê se comporta ao longo do processo ritual, a questão mágica que

envolve a mulher grávida, as questões relativas à necessidade da construção de uma identidade

para o feto e aspectos relacionados ao parto.

Foi a partir das ideias contidas nesse capítulo que compreendi que a gravidez e o parto são

processos que transformam a vida das mulheres e que essa discussão é fundamental para que

possamos refletir sobre o tema proposto no seguinte capítulo.

2.1. A gravidez como ritual de passagem

A vida dos indivíduos em sociedade é marcada pelos rituais de passagem. Realizamos

durante toda a vida uma sucessão de ritos conforme ultrapassamos as etapas da vida social. Ritos

de passagem são executados para formalizar a passagem de um “status” determinado na estrutura,

para outro igualmente determinado.

Os estudos referentes aos ritos de passagem ganharam destaque principalmente com a

obra de Van Gennep, em Os ritos de passagem (1978), onde o autor busca compreender os mais

diferentes rituais. Segundo Van Gennep, a vida dos indivíduos pode ser comparada a uma casa,

na qual as portas que ligam os cômodos são os rituais que fazem a passagem de um lugar para o

outro.

52

O autor propõe a perspectiva de que os ritos de passagem são divididos em três fases ou

etapas, relativas à sequência cerimonial: separação, margem e agregação. Os ritos de separação

ocorrem quando o sujeito que iniciou seu processo ritual é retirado da sociedade e tem seu status

suspenso temporariamente; os ritos realizados no período de margem marcam o momento em que

o neófito apreende o conhecimento necessário para desempenhar a sua futura função; por fim, os

ritos de agregação, quando, após ser preparado, o indivíduo retorna à estrutura social pronto para

desempenhar seu novo status.

Os ritos que ocorrem no período de margem ou liminaridade são considerados por Van

Gennep como momentos importantes do processo ritual. Segundo ele, esses ritos marcam a saída

do mundo anterior para a entrada em uma nova realidade; assim, ele retrata o processo como o de

atravessar a soleira de uma porta para se entrar em um novo mundo. A soleira é o que divide

estes mundos. Os ritos realizados na soleira são os ritos de margem.

O ritual que viso discutir na presente dissertação gira em torno da primeira gestação.

Nesse caso, a divisão do processo ritual se dá da seguinte forma: primeiro, ocorrem os ritos de

separação, quando a grávida é retirada da estrutura e o seu status torna-se suspenso, e a situação

ambígua em que se encontra uma vez que ela não é uma mulher sem filhos mas também não é

mãe; depois, temos os ritos de liminaridade, em que se dão os ritos de gravidez – o momento em

que ao longo dos nove meses de gestação a mulher é preparada para desempenhar o seu futuro

status; e, por fim, os ritos de parto, que realizam a reintegração da mulher na sociedade, agora já

em seu novo papel.

Van Gennep cita as sequências dos ritos de gravidez e parto entre os Toda da Índia:

(...) 1º) uma mulher grávida não deve penetrar nas aldeias nem nos lugares sagrados; 2º)

no quinto mês realiza-se a cerimônia chamada “abandonamos a aldeia” : a mulher deve

viver em uma cabana especial, sendo ritualmente separada da leiteira, indústria sagrada

que é o centro da vida social dos Toda; 3º) ela invoca duas divindades, Pirn e Piri; 4º)

queima cada uma das mãos em dois lugares; 5º) cerimônia da saída da cabana; a mulher

bebe o leite sagrado; 6º) volta a viver em seu domicílio até o sétimo mês; 7º) no sétimo

mês, “cerimônia do arco e da flecha” , que assegura um pai social para o futuro filho,

uma vez que os Toda praticam a poliandria; 8º) a mulher volta para a sua casa. Estas

duas cerimônias só se realizam por ocasião da primeira gravidez, ou se a mulher casou-

se com um novo marido ou se quer para seus filhos futuros um outro pai, diferente

53

daquele que tinha escolhido anteriormente; 9º) a mulher dá à luz em sua casa, na

presença de qualquer pessoa e sem cerimônias especiais; 10º) dois ou três dias após a

mãe e a criança vão viver em uma cabana especial, sendo os ritos de partida da casa,

partida da cabana e de volta à casa os mesmos que nas duas cerimônias acima; 11º)

chegados a cabana, a mulher, o marido e a criança passam a ser manchados com a

impureza chamada “ichchil”; 12º) as outras cerimônias protegem contra o mau espírito

“keirt” ; o retorno à vida comum é feito bebendo o leite sagrado. (VAN GENNEP,

Arnold. 1978:53).

Esta passagem de Os ritos de passagem (1978), nos permite perceber que as diferentes

culturas ritualizam os processos de maneiras distintas, porém, o que não é modificado é a

densidade emocional que o neófito enfrenta durante o período da liminaridade.

Victor Turner trabalhou sobre a liminaridade nos ritos de passagem, em seus livros O

processo ritual: estrutura e antiestrutura (1974) e Floresta de símbolos: aspectos do ritual

Ndembu (2005). Segundo Turner, os períodos de separação e de agregação, que indicam estágios

da cultura, fazem parte da estrutura; já o período de margem é a antiestrutura, em que as

diferenças sociais estão temporariamente suspensas, o que justifica o fato de os ritos não poderem

durar a vida inteira, tendo em vista que não há como se viver em sociedade sem papéis e funções

que realizam o pertencimento do ser social.

A antiestrutura uniformiza os neófitos e se caracteriza por um período de grande

transformação, já que é aqui que a marca do novo status será “inscrito” no corpo do sujeito

liminar. Segundo ele, o neófito pode ser comparado a uma tabula rasa, que ao não dominar o

conhecimento necessário relativo ao seu novo estado 4 , precisa de alguém que o oriente: o

iniciador, que é alguém que já passou pelo ritual.

No rito de passagem da gravidez, fica evidente a importância da presença de alguém que

seja o iniciador do processo ritual da mulher. Pode ser a mãe da primigesta, uma amiga que já

tenha tido filhos, a doula, a parteira ou alguma mulher mais velha da família – em todos os casos

deve ser alguém que já passou pelo processo ritual e tem condições de fornecer as orientações

necessárias.

No caso da informante Antônia, quando percebeu que sua mãe, que era quem ela julgava

ser a pessoa ideal para “cuidar daquela situação” não estava presente, afirmou:

4 Turner opta pela utilização do termo “estado”, pois, segundo ele, é mais do que “status” ou “função”.

54

Eu senti falta de uma pessoa que ficasse lá meio que cuidando daquela situação: “Ah,

filha, você está grávida, tá precisando de alguma coisa?” ou “Vamos dar uma volta”.

Não sei, sentar pra conversar porque a mulher fica muito pesada... Tudo na mulher fica

pesado. Senti falta de uma pessoa, principalmente da minha mãe. (Antônia)

Normalmente, as mulheres buscam pessoas quando não há a presença da mãe, para

orientação em relação às modificações corporais e emocionais causadas pela gestação, sobre as

dificuldades encontradas no período, questões relativas ao parto, pós-parto e cuidados com o bebê.

Antigamente, a gravidez e o parto eram assuntos só para as mulheres. Formava-se uma

rede de apoio em torno da grávida durante a gestação, que se estendia ao parto e ao período

puerperal. A partir dos relatos das informantes podemos perceber que a falta desse apoio é

sentida pelas mulheres, entretanto, as informantes insistiram muito na questão do respeito à

individualidade delas, às suas escolhas e ao direito de recusar ajuda.

Sobre a ideia de que o iniciado precisa de uma figura que transmita o conhecimento para

ele, temos como exemplo a pesquisa realizada por Laraia e Mello (1980) sobre o evento do chá

de panela em diferentes estratos sociais da população de Brasília – DF. A análise de um rito

social diz respeito a umas das etapas do processo ritual de modificação do status da mulher na

estrutura. Segundo os autores, o chá de panela teria sido um evento promovido para que a noiva

recebesse suas amigas, sem a presença masculina, para um lanche com chá e sem bebidas

alcoólicas. Ela exibia as peças do enxoval feitas por ela e, dessa forma, seus dotes domésticos

eram afirmados para a sociedade, e ela também era presenteada com itens para compô-lo. Com o

passar dos anos a ideia do chá de panela foi sendo modificada, em vez de presentes para o

enxoval a noiva passou a receber itens de cozinha de pequeno valor que não eram considerados

adequados como presentes de casamento, tais como pano de prato, colher de pau, escumadeira,

vassoura etc. Foram inseridas as brincadeiras, com o intuito de macular a noiva e deixá-la numa

situação constrangedora, com grande apelo sexual e com as bebidas alcoólicas.

As brincadeiras realizadas com o intuito de fazer a noiva passar por momentos

desagradáveis foram associadas pelos autores como uma forma de iniciação sexual da mulher, em

que a figura fálica e as analogias ao ato sexual estão constantemente presentes e são as

representações ritualizadas do sexo. A questão da virgindade da noiva é sempre colocada em

55

questão e enfatizada no evento do chá, na visão dos autores, é por isso que ao se tratar de uma

noiva grávida a situação pode ser compreendida pelas convidadas de outra maneira.

Segundo Laraia e Mello, o chá de panela é uma das etapas do processo de iniciação – o

processo ritual é paralelamente realizado a partir da educação, ou seja, a ideologia referente ao

novo papel a ser desempenhado pelo neófito e do procedimento que diz respeito aos ritos

realizados de cada etapa.

Diante da teoria apresentada por Van Gennep, os autores visam compreender o ritual do

chá de panela em termos de um processo ritual de passagem, em que suas etapas de separação,

liminaridade e agregação são claramente demarcadas. Primeiramente a noiva é separada dos

demais convidados no momento das brincadeiras. Essa separação é demarcada espacialmente: as

convidadas ficam de um lado e a noiva do outro, e é comum que a pintem, tirem partes de sua

roupa como forma de pagar as prendas das brincadeiras, ou a vistam de maneira grosseira, a fim

de diferenciá-la mais ainda das demais e a ideia é de que seja violado o seu papel de virgem.

A ambiguidade do neófito durante a liminaridade do processo ritual fica clara na

passagem a seguir:

Embora seja de início considerada, por definição, virgem e inocente, sendo manifesta a

função do ritual em “esclarecê-la” sobre o matrimônio, ela sofre um processo de

“maculação” através de atos tais como sujar seu rosto e cabelos, dúvidas sobre a sua

virgindade, do oferecimento de uma representação do órgão masculino, além da

situação de extremo constrangimento provocada pela sua nudez, etc. (LARAIA E

BARROS, 1980).

É no momento do chá em que as mulheres pretendem passar o conhecimento necessário

sobre o casamento para a noiva, no entanto, é comum encontrar entre as convidadas presentes

uma série de amigas que ainda não passaram pelo seu processo ritual e por isso não poderiam ser

as iniciadoras daquela noiva.

O ritual se inicia com a mulher sendo despida pelas amigas e recebendo o conhecimento

necessário para o desempenho de seu novo papel e é concluído com o evento contrário, quando as

mulheres vestem a noiva no dia do seu casamento.

A compreensão do momento do chá de panela enquanto parte de um ritual de passagem,

está alinhada com a ideia de que a gravidez é também um dos momentos que compõem esse

56

longo processo ritual das vidas das mulheres. Já no momento do chá há o espaço reservado para a

discussão da chegada dos filhos e a mulher já começa a ser preparada para o rito de gravidez.

Durante o processo ritual as mulheres percebem suas realidades totalmente modificadas e

segundo os relatos obtidos na etnografia, as mulheres sentem uma mudança no propósito da vida,

assim como em suas prioridades e maneiras de pensá-la.

Durkheim e Mauss (1978) ao trabalharem com as formas de classificação, afirmam que o

sujeito que não conclui o seu ritual torna-se um paradoxo classificatório. A não concretização do

ritual faz com que o neófito permaneça na liminaridade.

A gestação não é um período complexo apenas para a mulher, o pai do bebê também

apresenta suas dificuldades. Em algumas regiões da América do Sul e da África, os pais passam

por um período de resguardo até que o cordão umbilical do filho caia. Na etnografia, foram

produzidos vários relatos sobre como os pais enfrentam a gestação e a chegada do filho: desde o

pai que engordou a mesma quantidade de quilos que sua mulher durante a gestação; aquele que

desenvolveu depressão pós-parto paterna e teve uma febre tão alta que chegou a delirar; ao pai

que emagreceu muito e aquele que tinha constantes crises de choro, com medo de não conseguir

sustentar a família.

Em todos os relatos, a presença do pai do bebê no pré-natal, exames e no parto foi

considerada como fundamental para as informantes. A informante Maria relata que em uma das

ultrassonografias precisou ir sozinha, pois seu marido tinha um compromisso de trabalho e não

poderia estar presente:

Eu senti tanto medo, porque quando cheguei lá e médica foi falando as coisas que

estava vendo... Estava tudo direitinho, mas eu fiquei pensando que tinha tanta coisa que

poderia estar errada, sabe? Eu me sentia mais segura com a presença dele. (Maria)

No caso da informante Pilar, quando seu filho nasceu, sua mãe veio de outro país para

ajudá-la nos cuidados com o recém-nascido. É comum que as avós se ofereçam para passar um

tempo na casa dos novos pais, entretanto, alguns pais não gostam da presença constante da mãe

de sua mulher, no pós-parto. Nesse período, a tríade pai/mãe/filho cede lugar para um novo

arranjo formado por mãe/avó/filho (SALEM, 2007), e o ideário de conjugalidade cai por terra.

57

Por casal igualitário, entende-se, segundo Salem (ibidem), a concepção de um projeto do

casal em que ambos estão voltados para a unidade da família que cuida do filho – o pai é

percebido como um elemento chave e a experiência da gestação é vivida por ambos. A noção do

casal igualitário está ligada à escolha do parto natural e também por escolhas focadas em uma

assistência menos intervencionista. Como casal, a unidade é composta por dois indivíduos. Com

a chegada do bebê, a unidade passa a ser composta por três. Todo esse ideário se perde no

momento em que ocorre a crise do pós-parto e a presença da avó faz-se necessária; então, a tríade

é desconstruída, para desgosto do pai da criança.

Barros (1987) aponta que o ideal de família moderna – pai, mãe e filhos – entra em crise

com a presença da parentela, que antes desempenhava um papel secundário, e nesse momento

tornam-se figuras expressivas. Uma parte das informantes não contou com a ajuda da família

estendida e sentiu falta, em particular no caso de Antônia, que sofreu muito por não ter recebido

nenhum suporte, principalmente da mãe, no momento do pós-parto. No caso de Pilar, por

exemplo, quem acordava para amamentar o bebê era a avó, já que ela optava por dar mamadeira

durante a noite para que pudesse descansar. E Maria, apesar da insistência de sua mãe, não quis

passar uma temporada com ela, entretanto, tinha ajudas sistemáticas – uma tia veio de outro

estado para ajudá-la durante o dia. A informante Inês contou com o apoio da mãe de seu marido,

que passou um período de dez dias ao lado dos novos pais.

O que me chamou muita atenção durante a pesquisa de campo foi a questão do resguardo.

Este período é um tabu para as mulheres, algumas afirmam ser um momento em que não se pode

ter relações sexuais porque o útero ainda está se “recompondo” do parto ou porque a mulher

corre o risco de engravidar novamente. Outras afirmam que é um momento no qual se deve

controlar os esforços, como forma de a mulher manter a saúde. Para aquelas que fizeram partos

cirúrgicos, o resguardo envolve a proibição do labor doméstico, devido aos pontos da cesárea.

Por fim, algumas mulheres encontram a resposta no fato deste ser um longo período menstrual,

que chega à duração de quarenta dias, podendo vir acompanhado de um odor desagradável.

Muitas respostas foram dadas a esse questionamento durante o trabalho de campo. Desta maneira,

pudemos concluir que o período do resguardo é mais um tabu que envolve a mulher parida – um

tabu que talvez tenha se perdido, ou pela ascensão do parto cirúrgico nos últimos trinta anos, ou

por fazer parte do que Durkheim (1989) denominou como “Os sacra”.

58

Os sacra são compostos por três aspectos: (i) exibições – o que se mostra; (ii) ações – o

que se faz; (iii) instruções – o que se diz. Eles fazem parte das orientações recebidas pelo neófito

no seu processo ritual. É como se diz entre o povo Bemba, na ocasião dos ritos de puberdade de

uma menina: “criar uma menina” (DURKEHIM, 1989). Quando se cria um novo status no

indivíduo, dá-se a ele instruções a partir de revelações reais e secretas, que devem ser mantidas

em segredo. É aqui que se forma o ponto crucial do neófito, em que ele deverá compreender suas

obrigações éticas e sociais, e, dessa forma, adequar-se ao seu estado futuro. Ao “se criar uma

mãe”, dá-se a ela novos atributos e, assim, uma nova posição hierárquica na sociedade.

Voltando a Turner, o autor trata ainda da importância dos símbolos nos processos rituais.

“Símbolo” quer dizer significados distintos que são lançados ao mesmo tempo. Todo rito de

passagem tem um símbolo central, que é fácil de compreender – no caso da gravidez, o símbolo é

a barriga. Os símbolos possuem a capacidade de unir significados, ao mesmo tempo em que

representam significados díspares em uma mesma cultura. A barriga da grávida pode significar

vida, morte, perpetuação, cuidado, o novo, o sagrado e o profano, sorte, exótico, sexo, entre

muitos outros.

2.2 Espaços de socialização masculina no evento do nascimento

Ainda sobre a questão dos símbolos proposta por Turner, uma informante, durante a

entrevista, me contou que quando seu filho nasceu ela presenteou as pessoas que foram visitá-los

na maternidade com charutos de chocolate. Eu a questionei o porquê da escolha pelos charutos e

ela me explicou ser uma “tradição” os homens fumarem charutos como forma de comemoração

do nascimento de um filho.

Os charutos são oferecidos pelo novo pai aos amigos do sexo masculino presentes na

maternidade, e este é compreendido como um símbolo fálico, que mostra aos presentes a

virilidade daquele homem.

O ritual se dá apenas na presença de homens – pai, amigos e familiares –, não sendo

comum ver mulheres fumando charutos nessa ocasião específica, podendo ocorrer em um bar

próximo ou mesmo em frente à maternidade, com todos os participantes em pé, de maneira

informal. Nesse sentido, o ritual de fumar charutos no nascimento de um filho se dá em um

espaço de sociabilidade masculina, ainda que não ocorra em um lugar fixo.

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Em A confraria da esquina: o que os homens de verdade falam em torno de uma carne

queimando (2011), de Rolf Ribeiro de Souza, temos uma etnografia realizada em um bairro do

subúrbio carioca, em que os “homens de verdade”, na faixa etária entre 30 a 45 anos, se reúnem

aos sábados em uma esquina, após a partida de futebol para a confraternização em torno de um

churrasco, ritual compreendido pelo autor como uma maneira de celebrar a masculinidade dos

homens presentes. O local escolhido é uma esquina do bairro onde se encontra um bar, que

durante os outros dias da semana é transitado livremente pelos outros moradores daquele lugar.

No entanto, aos sábados, o local é limpo pelos homens de verdade e “montado” para a realização

da confraternização, como um ritual a fim de preparar o espaço que, a partir daquele momento,

passa a ser de acesso restrito, e outros homens, mulheres e crianças evitam transitar nas fronteiras

invisíveis do churrasco.

A masculinidade é uma experiência socialmente construída por homens e mulheres, e

esta construção tem de ser validada por ambos. Homens e mulheres têm papéis

diferentes, mas igualmente importantes na construção social da masculinidade (...). Ser

homem no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro tem significado diferente de, por

exemplo, ser homem em São Paulo, Minas Gerais, ou mesmo na Zona Sul do Rio de

Janeiro. (SOUZA, 2011)

Na esquina, os homens, além de exaltarem a lealdade masculina, estão em constante

negociação ao que se refere à própria masculinidade, dessa maneira, os feitos de cada um e o

status que possuem gera o reconhecimento pelo resto do grupo. A masculinidade é

constantemente (re)construída, reforçada e celebrada pelos homens de verdade, é naquele

ambiente em que fica claro que o ser social só pode existir com relação ao seu semelhante e,

assim, aqueles homens estão em constante tensão uns em relação aos outros, avaliam e são

avaliados, e postos a prova à todo instante.

No livro Quando a Rua Vira Casa (1980) de Marco Antônio da Silva Mello, Arno Vogel

e Carlos Nelson Ferreira dos Santos, encontramos um relato etnográfico que diz respeito aos

espaços de sociabilidade masculina. Em pesquisa realizada na década de 1980, no bairro do

Catumbi, no Rio de Janeiro, encomendada pelo FINEP/IBAM, foi encontrado “o armazém da

esquina”, localizado na Rua Emília Guimarães. No local coexistiam um bar e um armazém,

separados por um balcão em L. O bar era um local dos homens, onde bebiam, fumavam e

60

conversavam sobre mulheres, trabalho, jogos, política etc. Já o armazém era um espaço feminino,

onde as mulheres entravam apenas para comprar utensílios para o lar e conversar umas com as

outras. O balcão em L reservava uma pequena parte intermediária, que se encontrava nos limites

dos espaços masculino/bar e feminino/armazém, que era onde se comprava o pão e onde as

crianças compravam doces. Em ambos os casos a atividade realizada ali era rápida, sem que

houvesse a possibilidade de permanecer ali por muito tempo.

A composição dos grupos também variava de acordo com o horário do dia, e cada grupo

tinha sua rotina. Os grupos eram compostos por moradores do Catumbi de diferentes idades,

trabalhadores da região. No caso das mulheres, as compras eram feitas em diversos horários do

dia, sem haver uma rotina. Aos sábados, os autores constataram que os homens frequentavam o

armazém para beber junto às suas mulheres, porém, migravam para a parte feminina do local,

tendo em vista que o bar não era um local permitido para as mulheres.

Simoni Lahud Guedes, em Jogo de Corpo (1997) nos apresenta como se dá a

sociabilidade masculina em torno de um campo de futebol do Unidos Futebol Clube, em Nova

Iguaçu, na Baixada Fluminense. Reservado às interações masculinas, o espaço era separado,

demarcando os limites entre os espaços masculinos e femininos, cercado por bares, no qual além

do futebol praticavam-se jogos de mesa e sinuca, vistos, pela autora, como jogos de virilidade. Os

espaços compostos pelo clube de futebol e pelos bares são compreendidos como espaços de

exibição e negociação da masculinidade. Os bares são espaços demarcados não apenas para as

mulheres, mas também para os mais jovens, já que eles devem seguir a regra de se posicionarem

do lado de fora. Além disso, só se encontra a presença de homens e mulheres no mesmo espaço

aos fins de semana à noite – durante o dia a presença é unicamente masculina.

O bar é um local onde os homens passam muito tempo do seu dia ou dos fins de semana,

ele é compreendido como uma segunda casa e lá os assuntos giram em torno do futebol e do sexo.

Os gestos são característicos desses espaços masculinos, fazendo referência à masculinidade e à

sexualidade, e palavrões são constantemente utilizados.

Dessa forma, apesar de que o ritual de fumar charutos no nascimento de um filho não se

dê em um local fixo, onde os homens têm o costume de se reunirem para rituais de interação e de

virilidade, e já que este é um rito pontual, específico daquele momento, a situação que se forma

diante da chegada de um filho pode ser considerada como contendo aspectos dos espaços

masculinos de sociabilidade. Na ocasião, o grupo de homens se reúne, seja em um bar nas

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proximidades do hospital ou mesmo na porta da maternidade, para que o pai reforce a sua

masculinidade diante dos presentes. Ele é o provedor dos charutos e a sua virilidade está a todo o

momento em destaque e exaltação, já que o filho é a prova concreta da sua potência sexual. Ali o

novo pai reforça a sua sexualidade e tem esta reforçada pelos outros homens presentes.

Curiosamente, o ato de fumar charutos também é usado quando os homens fecham bons negócios,

num ritual de comemoração, que está igualmente ligado à exaltação da masculinidade daquele ser.

Atualmente, a lembrança oferecida aos que vão visitar o bebê na maternidade está no topo

da lista das prioridades para uma parte das mulheres. Como nos apontou a informante Pilar, uma

derivação da tradição de se fumar charutos no nascimento de um filho são os charutos de

chocolate como lembrança. No mesmo formato, com embalagens e papelaria que imitam

fielmente os originais, nesse caso, o ritual passa a não mais ser restrito aos homens, tendo em

vista que as mulheres também serão presenteadas com charutos de chocolate, para assim, juntos,

comemorarem a chegada do novo filho e a virilidade do novo pai.

2.3. A barriga pública

Durante o período da liminaridade do processo ritual, o neófito tem uma condição estável,

com direitos e deveres, e espera-se dele um comportamento determinado. A partir do trabalho de

campo ficou claro que a sociedade quer controlar a mulher grávida em diversos aspectos, como,

por exemplo, a forma de alimentar-se, a forma de comportar-se, o que está proibida de fazer,

atitudes que ela deve ter enquanto futura mãe etc.

Desta forma, tanto a família quanto a sociedade no geral exercem um papel coercitivo

sobre a grávida, que é alvo constante de orientações. Émile Durkheim, em As formas elementares

da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália, apresenta, a partir de sua análise sobre a

religião que a sociedade exerce força moral sobre os indivíduos e estes devem submeter-se às

ordens, por respeito.

Ora, a sociedade também alimenta em nós a sensação de contínua dependência. Como

tem natureza que lhe é própria, diferente da nossa natureza de indivíduo, ela visa a fins

que lhe são igualmente especiais: mas, como só pode atingi-los por nosso intermédio,

reclama imperiosamente nosso concurso. Ela exige que, esquecidos de nossos interesses,

nos tornemos seus servidores e nos impõe toda espécie de incômodos, de privações e de

62

sacrifícios sem os quais a vida social seria impossível. É por isso que a cada instante

somos obrigados a nos submeter a regras de comportamento e de pensamento que não

fizemos nem quisemos, e que às vezes são até contrárias às nossas tendências e aos

nossos instintos fundamentais (DURKHEIM, Émile.1989:161).

Surge, então, a ideia da barriga pública, que diz respeito a dois aspectos de coerção social.

A barriga pública está relacionada com o controle que a mulher grávida sofre da sociedade. E

também com o momento em que a coerção social e a magia se misturam para também controlar a

grávida.

A gravidez mobiliza as pessoas, e a sociedade quer participar desse momento com a

mulher. Dessa forma, a coerção social, por meio da barriga pública se dá quando a sociedade – e

a família – busca ditar regras para a mulher que está grávida. Nos relatos das informantes

aparecem tanto a família querendo orientá-las, quanto a sociedade no geral. As pessoas na rua,

em espaços públicos, têm outro olhar para a grávida e, também, para a nova mãe. Como sinalizou

Antônia, a postura da mulher grávida precisa ser aprovada pelo resto da sociedade, ela precisa

mostrar para todos que é capaz de cuidar de seu filho.

Sempre há alguém com uma história triste sobre um parto complicado para contar, uma

dica para dar, orientações e também recriminações quanto às suas escolhas. No caso de Regina,

que teve uma gestação marcada por muitos enjoos e vômitos, ela relata que ao passar mal na rua,

as pessoas se aproximavam dizendo o que ela deveria fazer:

O povo queria dar palpite, sempre tem. Eu passava mal pra cacete, né? Eu tava

vomitando na rua e: “Você tá passando mal? Toma não sei o quê”. Eu dizia: “Você não

tá entendendo, eu tô grávida”, aí me mandavam fazer um monte de coisa e diziam que

eu precisava ir no médico, e eu lá vomitando. (Regina)

Segundo os relatos das informantes, tudo é motivo para dar orientações, as grávidas

normalmente não gostam de tamanho controle e quando há a não obediência, a sociedade reage.

“A própria violência com que a sociedade reage, através de repreensão ou então de

repressão física, contra as tentativas de dissidência, manifestando com clareza o ardor

63

da convicção comum, contribui para reforçar o domínio” (DURKHEIM, Émile.

1989:162).

Essa passagem pode ser ilustrada pelo que ocorreu com a informante Inês, ao optar pelo

parto domiciliar assistido por parteira. A sociedade a recriminou veementemente, diziam que

coisas ruins poderiam acontecer, e inclusive sua mãe, que teve três partos complicados, deixou de

falar com ela durante toda a gestação.

A coerção social também pode se expressar através da magia que envolve a grávida e seu

bebê. Os ditados populares são inúmeros no que diz respeito à gravidez e eles surgem no sentido

de tentar controlar as gestantes. Trataremos deles a seguir.

2.4. Magia

Na pesquisa de campo a questão da magia apareceu de forma evidente, já que a grávida e

seu bebê são envolvidos por uma série de atributos mágicos. Todas as informantes relataram que

durante a gravidez vivenciaram de alguma maneira a magia que envolve esse processo. Algumas

executaram ritos mágicos e outras foram apenas alvos de orientações baseadas neles.

Dentre uma grande lista de crenças relacionadas à grávida, produzida em campo, destaco:

a mulher que tem muita azia ou vomita muito é porque o bebê vai nascer cabeludo; a mulher que

coloca chaves entre os seios, durante a gestação, tem filho com lábio leporino; terçol é sinal de

que a pessoa negou um desejo a uma mulher grávida; mulher que está amamentando não pode

comer couve, pois estraga o leite; para engrossar o leite, deve-se comer canjica e tomar cerveja

preta; mulher grávida não pode usar perfume para que o bebê não fique estéril, etc.

Além disso, foram relatadas uma série de crenças relacionadas ao bebê. Destaco: dá azar

montar o berço antes de o bebê nascer; para evitar quebranto, o bebê deve andar com uma figa

presa à roupa ou em um cordão no pescoço; o bebê não pode sair de casa no 7º dia de vida, para

não pegar o “mal dos sete dias”; o bebê deve ser apresentado para a lua, na primeira lua cheia

após o nascimento; se as pessoas disserem que o bebê é muito bonito, deve-se benzê-lo; quando o

bebê aparecer com cobreiro, brotoeja ou alguma alergia, deve ser rezado, pois alguém “jogou”

energias ruins nele; quando o bebê fica enjoado, não come direito, chora muito sem motivo, é

porque colocaram “olho gordo” nele etc.

64

A partir da análise de Radcliffe-Brown (1973), vemos que tanto a barriga quanto o bebê

possuem valor ritual, pois ambos são tabus. O tabu se dá, nos casos aqui estudados, quando o

indivíduo, não tendo como controlar que tudo saia de forma positiva, vê nas crenças a segurança

de que precisa para tranquilizar-se. Por isso, em alguns casos, mesmo não acreditando nessas

crenças, a mulher e sua família, quando se veem na qualidade de protetores da criança, realizam

ritos mágicos, a fim de preservar a saúde e a vida dele, e quando é algo exterior às possibilidades

deles (LÉVI-STRAUSS, 1970).

Quando meu filho tinha sete dias de vida, eu botei um sapatinho vermelho nele e levei

até o altar do meu santo, e apresentei ele pra Ogum. Pedi proteção. (Inês)

Segundo Lévi-Strauss, a ação eficaz da magia está na crença, como vemos na passagem

de Radcliffe-Brown:

“(...) um aviador levando consigo no avião um mascote que acredita protegê-lo de

acidente e deste modo executar o seu voo confiantemente”. (RADCLIFFE-BROWN,

1973:185)

Sendo o tabu o que indica o valor ritual, ele é também uma forma reguladora da sociedade.

Assim, os ritos mágicos são, também, produtores do fenômeno da barriga pública, quando a

sociedade, por meio de crenças, exerce a coerção social na vida da mulher grávida ou de seu bebê.

Quanto aos ritos negativos, relacionados com algum mal que o bebê sofreu por meio de

“forças” externas, como inveja e mau-olhado, revelam que qualquer reação diferente que o bebê

possa vir a ter, é fruto de algo externo a ele. Os pais encontram a resposta em fenômenos mágicos

e buscam soluções igualmente mágicas. As crenças giram em torno das tentativas de proteger o

bebê. Fato que também se dá no caso da mulher grávida, em que há a ideia altamente difundida

de que ela é alvo de energias negativas. Se uma grávida se sente mal por algum motivo, é devido

ao fato de que alguém sentiu inveja dela ou “pegou” alguma energia ruim.

Os Azande, povo estudado por Evans-Pritchard (1978), possuem uma noção fluida de

bruxaria, por acreditarem em sua existência, e por ser algo que está inserido no cotidiano desse

povo, entretanto, não são capazes de explicá-la. Segundo eles, quando alguém é vítima de um

infortúnio, vai sempre achar que foi alvo de bruxaria, mas os demais membros da sociedade não

65

pensarão assim. Algumas grávidas e mães de bebês pequenos temem que seus filhos sejam alvo

de inveja e maldade alheias. De maneira geral, a sociedade sabe que esses são sentimentos que

não têm o poder de deixar um bebê em situação de risco ou de fazer uma grávida perder o filho;

entretanto, como é algo difundido no universo das mães, que quando não têm como controlar a

saúde de seus filhos, agarram-se à ideia de magia como forma de proteção ou de explicação de

infortúnios.

2.5. A construção de gênero do feto

Durante a etnografia, pude perceber que saber o sexo do bebê era um momento aguardado

com ansiedade pela família e pelos amigos. “Saber quem está ali dentro”, como definiu a

informante Maria, passa a ser um objetivo para muitas grávidas. E, assim, elas relatam que

faziam exames de ultrassonografia com frequência para descobrir o sexo do bebê, e, também

buscavam médicos famosos por acertar o sexo do feto com doze semanas de gestação. Mas

mesmo antes de ser possível visualizar o órgão reprodutor, a grande corrida gira em torno de

captar sinais que indiquem o sexo.

Nesse sentido, destaco alguns dos critérios utilizados para adivinhar se a mulher espera

um menino ou uma menina: quando a barriga da grávida é pontuda, é menino. Se for redonda, é

menina; mulher que durante a gravidez fica com o nariz inchado está grávida de um bebê do sexo

feminino – diz-se que na gestação de um bebê do sexo feminino a mãe fica mais “acabada”; se a

grávida tem enjoo com salgado, é menino, com doce, é menina; mulher grávida que mostra a mão

com a palma virada para cima, espera uma menina; e para baixo, está grávida de um menino;

quando o umbigo da mulher fica para fora durante a gestação, significa que ela está grávida de

menina; grávida que tem a “linha negra” na barriga (faixa escura que cruza a barriga, devido

concentração de pigmentação na gestação, e que leva, também, ao escurecimento de outras partes

do corpo, como axilas, virilha, seios) está gestando um bebê do sexo masculino; mulher que sente

desejo de comer pimenta está grávida de menina; grávidas de menino são mais calmas, já a

gravidez de menina deixa a mulher mais desgastada; quando a mãe enjoa é porque está grávida

de uma menina, e o bebê está roubando a beleza da mãe.

Em Profetamento dos Bichos, Veiga (2006) nos apresenta a maneira que um sertanejo de

Goiás encontrou para compreender os sinais que a natureza nos oferece. Assim, os bichos

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anunciam quando a chuva está vindo ou se vai fazer calor, se é o final da época de chuvas, se o

tempo vai ficar frio etc. São maneiras com as quais o povo de Goiás interpreta o comportamento

dos bichos, assim como a sociedade faz com as grávidas, quando analisa aspectos corporais,

alimentares e de comportamento, visando adivinhar o sexo do bebê. E ainda afirmam que estes

argumentos nunca falham, quando na verdade tudo não passa de uma grande disputa para saber

quem foi o sagaz “adivinhador” que apontou o sexo do bebê.

Segundo Pilar, a dona da loja de roupas infantis “Roupitchas”, a partir de sua experiência

no ramo, ela afirma que a mulher só fica tranquila quando descobre o sexo do seu filho, pois a

partir desse momento, pode montar o enxoval certo.

Durante o período do mestrado, uma conhecida minha engravidou. Ainda que nunca tenha

tido o interesse em acrescentar na dissertação fatos ocorridos entre pessoas que não fossem

minhas informantes, acredito que o acontecido veio em um momento em que eu estava

totalmente mergulhada na dissertação e, inevitavelmente, a partir dele, eu passei a refletir sobre a

questão de gênero. Assim, optei por, pontualmente, abrir uma exceção.

Desse modo, estive em contato com minha amiga ao longo de toda sua gestação. Ela me

convidava para acompanhá-la em compras de enxoval, almoçamos juntas por duas vezes e ela me

enviava infinitos e-mails com as mais diferentes dúvidas, já que ela engravidou no mês em que

meu filho nasceu, e ela queria saber de todos os detalhes da minha experiência – ainda que eu

tivesse mais dúvidas do que ela. Dessa forma, acompanhei de perto a jornada para a descoberta

do sexo. Certo dia, ela me comunicou que estava grávida de uma menina:

E aí eu cheguei a fazer ultra toda semana pra descobrir o sexo. E o bebê sempre de

perna cruzada. Chegou uma hora em que eu resolvi pra mim mesma que era uma

menina que estava aqui dentro. E pronto, era a Ana. E eu passei a dizer pras pessoas que

é uma menina. Mas a gente ainda não tem confirmação, mas só você sabe disso. Mas

sabe, eu me senti muito mais conectada com ela, parece que agora eu tenho mais noção,

é mais real. E agora é montar o quartinho dela.

Algum tempo depois, recebi um e-mail de uma pessoa desconhecida e apaguei sem dar

muita atenção. Mas alguma coisa me incomodou e resolvi abrir a mensagem. Por fim, eu estava

sendo convidada pelo feto – já que havia sido criada uma conta de e-mail em seu nome – a

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comparecer ao seu chá de bebê. O convite, nas cores roxo e verde, era um quadrinho da super-

heroína Ana, uma menina que não gostava de rosa e tinha super poderes.

Assim, me voltei para as minhas informantes para tentar compreender qual era a

influência que a determinação do sexo do bebê trazia para a mãe e para a família. A necessidade

de “saber quem está aqui dentro”, traz consigo questões que envolvem a construção de uma

identidade para o feto. Em primeiro lugar porque define o tipo de representação que a mãe tem do

seu bebê, já que o sexo tende a aprisionar o indivíduo e cria expectativas quanto àquele ser. Além

disso, faz parte do processo dar nome ao feto com o intuito de criar uma representação daquele

indivíduo.

No momento em que as representações são criadas em relação à criança que vai nascer,

temos uma série de características, traços de personalidade que os pais e os familiares tentam

atribuir a ela. Fora isso, quando se fala em representações do feto, é inevitável trabalhar com a

noção da expectativa quanto aos papéis que aquele indivíduo irá desempenhar ao longo da vida.

Nesse sentido, retomo a fala da informante Regina, que acreditava estar grávida de um

bebê do sexo masculino até doze dias antes do bebê nascer. Na sua última ultrassonografia, a

informante descobriu que era uma menina e se desesperou, chorou muito. Já estava tudo

comprado para um menino, o enxoval havia sido montado pensando em um menino, o quarto era

azul e Regina queria um menino. Segundo ela:

Eu queria um menino porque sempre achei que não seria uma boa mãe de menina.

Menino é muito mais prático, você bota uma camisa e um short e pronto. Agora, menina

não... (Regina)

Na etnografia, apenas uma informante não desejava saber o sexo do bebê que gestava.

Inês causou muito tumulto por causa disso. Segundo ela, a sociedade não entende e fica

“embrulhada” quando se depara com essa indefinição de quem é o feto. Conforme contei no

capítulo 1, em seu chá de bebê, ela recebeu um e-mail de um dos convidados dizendo que não

estaria presente no evento já que, por não saber o sexo, não saberia que cor de presente comprar e

que, por isso, desejava presentear o bebê quando ele nascesse.

Nesse sentido, percebe-se que não há espaços para uma escolha diferente dos demais, pois

conforme apareceu na pesquisa de campo, não querer saber o sexo do bebê é um retrocesso aos

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tempos em que não existia o ultrassom ou quando as imagens do exame eram de baixa qualidade.

As cores que serão utilizadas para compor o quarto e os acessórios do bebê, as roupinhas, os tipos

de brinquedos etc., são maneiras de reforçar essa relação dual entre homens e mulheres.

2.6. O parto

O período de margem finaliza com os ritos de parto, para então a mulher ser reinserida na

sociedade desempenhando o seu novo papel. Durante a pesquisa de campo ficou claro que o parto

é vivenciado de maneiras diferentes. Se, por um lado, uma parte das mulheres entende o parto

apenas como uma etapa do processo e não possui expectativas quanto a ele, a outra parte das

pessoas o entende como a maior experiência da vida sexual da mulher, e desejam vivenciá-lo da

maneira mais ativa possível.

Dentre as informantes apenas uma tinha sua cirurgia cesariana já marcada previamente,

devido ao problema de saúde que desenvolveu durante a gestação, e seu filho, inclusive, nasceu

prematuro, antes das 38 semanas de gestação. Todas as outras mulheres que entrevistei

desejavam um parto normal, e quando não foi possível a cirurgia foi realizada, e duas delas

queriam um parto natural, com o mínimo de intervenções possíveis.

Quando questionada a respeito do que o parto mudou em sua vida, a informante que optou

por um parto domiciliar, acompanhado por parteira, afirmou:

Depois eu me resolvi sexualmente e com o corpo. Eu me sinto infinitamente mais sexy,

mais bonita e infinitamente mais sexualizada depois do parto. A minha relação com o

sexo foi uma liberação. (Inês)

No caso das informantes que optaram por um parto natural e se autointitulavam como

ativistas do “parto humanizado”, a escolha por outro tipo de assistência ao parto era

compreendida como uma escolha política, no sentido de recusar o que o sistema de saúde oferece

às mulheres no âmbito da assistência ao nascimento. Além, disso ambas informantes ressaltavam

o desejo por uma experiência respeitosa em que tivessem o controle, em que sentissem todas as

contrações e os efeitos dos hormônios produzidos pelo trabalho de parto, em que estivessem

conectadas com o bebê e em que seus corpos as mostrassem que eram “perfeitos” para o evento

fisiológico do parto, indo contra a ideia de que em tempos de sociedade contemporânea, segundo

69

as informantes, as mulheres não sabem mais parir ou que os corpos femininos são defeituosos

para o parto natural. A conquista pelo parto que desejavam a deixaram satisfeitas e orgulhosas.

As três informantes que tiveram seus filhos por cesárea, ainda que tivessem tentando um

parto normal, não enxergam o fato com frustração.

No caso de Maria, sua bolsa rompeu fora do trabalho de parto – a chamada bolsa rota – e

seu médico obstetra não desejava correr o risco de ela apresentar uma infecção, já que muitas

horas de bolsa rota podem desencadear um processo infeccioso, sendo assim, o obstetra não abriu

a possibilidade para uma tentativa de indução ao parto. Além disso, ela estava com 37 semanas

de gestação, e, sua filha foi considerada prematura. Maria sentia medo do parto normal e da

cirurgia cesariana, e analisa a escolha de seu obstetra, como sendo a melhor opção para o bebê.

Já Antônia, estava muito cansada com o mal-estar que a gravidez a causava e não quis

esperar mais, e acabou optando por marcar uma tentativa de indução ao parto. Seu trabalho de

parto durou cinco horas e o obstetra julgou que sua dilatação estava muito lenta para o ritmo das

contrações. Antônia não ficou satisfeita com a decisão, porém, queria que o filho nascesse o mais

rápido possível. Ela carrega a marca da cesárea com restrições, já que ao ter o corpo

completamente transformado, a cicatriz é mais uma novidade para ela.

O filho de Pilar já estava com 41 semanas de gestação e não dava sinais de que iria nascer.

O médico não quis esperar mais, Pilar escolheu o dia e o horário, estrategicamente, para não

receber nenhuma visita naquele dia, e ele marcou a cirurgia. Pilar afirma que gostaria de ter um

parto normal, mas tinha muito medo de que o parto trouxesse sequelas irreversíveis para o seu

filho.

Outro fato importante de ressaltar é como se desenvolveu o parto de Regina. Antes do

parto ela acreditava que teria um parto normal e passaria por uma série de intervenções de rotina,

normais na sua visão:

Eu achava que ia entrar em trabalho de parto em casa e ficar lá por um tempo. Depois

eu ia pro hospital, ia sentir as dores, ela ia nascer e pronto. Aí eles iam costurar tudo lá e

a vida que segue. (Regina)

No parto, ela estava sentindo muito calor, por isso se incomodou e tirou o acesso do soro

com ocitocina sintética, e se recusou a ficar deitada na posição ginecológica – de barriga para

70

cima, com as pernas apoiadas – ao contrário disso, ficou muito tempo no chuveiro e pariu sua

filha deitada de lado. Não houve tempo para nenhum tipo de anestesia ou episiotomia. Apesar de

um bebê de quase cinco quilos, a informante não sofreu nenhuma laceração no períneo. Ela conta

que nem sabia o que era parto natural, achava que só existia o parto normal.

Enquanto estava em campo, entrevistando as mulheres, eu acompanhava as listas de

discussão e o grupo fechado no Facebook sobre parto. Nesses espaços de troca de informação

muitas decisões e posturas médicas são questionadas, e a partir da experiência com as minhas

informantes passei a refletir sobre os relatos que elas me traziam, no que toca a assistência ao

parto, as indicações de cesáreas que receberam, os procedimentos que vivenciaram no trabalho de

parto e no parto e na forma como foram tratadas.

Além das indicações de cirurgia já citadas, e os procedimentos que por acaso não

aconteceram com a informante Regina, a informante Pilar não ficou satisfeita com o atendimento

que recebeu durante a cesárea.

Na hora que o José tava nascendo, eu lá toda aberta, e os médicos conversando sobre

coisas aleatórias. Se não me engano eles falavam sobre os últimos filmes que tinham

assistido no cinema. Eu achei aquilo um absurdo, um descaso! Meu filho tava nascendo,

pô! Eles fazem aquilo todos os dias, mas eu não tô parindo todo dia! Eu fiquei muito

chateada com isso. (Pilar)

E a informante Maria ficou muito assustada quando não a deixaram pegar sua filha após o

nascimento.

A enfermeira pegou ela, chegou perto de mim e disse: “Olha sua filha!”. Mas teve que

levá-la embora logo, disse que ela precisava de cuidados e eu fiquei super nervosa,

querendo saber como ela estava e não me diziam nada. (Maria, Caderno de campo)

Ainda que não se declarem insatisfeitas com o parto, algumas informantes não se sentiram

respeitadas durante o processo. Em contraponto, tinha os relatos tão diferentes das informantes

que optaram por um “parto humanizado”, que senti necessidade de ir em busca de mais

informações sobre os tipos de assistência ao parto no Brasil, suas tensões e limites. Tratarei dessa

questão no capítulo seguinte.

71

3. TENSÕES ENTRE OS MODELOS DE ASSISTÊNCIA AO PARTO NO BRASIL

“Debaixo d’água tudo era mais bonito

Mais azul, mais colorido

Só faltava respirar

Mas tinha que respirar”.

(“Debaixo d’água”, Arnaldo Antunes)

Quando o campo me fez questionar sobre a forma como os bebês nascem, que tipo de

atendimento suas mães recebem, como esse recém-nascido é acolhido e, sobretudo, por que parte

daquelas mulheres que entrevistei, que desejavam um parto normal, não o conseguiram, senti a

necessidade de buscar informações sobre o parto.

Deparei-me com uma realidade que mobiliza um grupo de pessoas e com muitos

questionamentos acerca dos modelos de assistência ao parto no Brasil e no exterior. Até então,

acreditava que o que diferenciava os tipos de parto se resumia ao local de saída do bebê, ou por

via vaginal, ou por extração em uma cirurgia cesariana. Ainda que já tivesse acesso à ideia de

“parto humanizado”, a partir da perspectiva de Odent (2002), eu não poderia imaginar que quem

escolhesse parir dessa maneira encontrasse tanta dificuldade.

Curiosamente foi naquele momento, em que eu estava cheia de questionamentos, que o

“parto humanizado” ganhou destaque na grande mídia. A partir de fevereiro de 2012, após uma

matéria apresentada por um programa de televisão, que rendeu a indicação de denúncia por parte

do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ) ao conselho de São

Paulo contra o médico obstetra que se posicionou a favor do parto domiciliar, a questão do tipo

de parto ganhou grandes proporções.

O tipo de assistência ao parto, os procedimentos de rotina realizados, o expressivo número

de cesáreas e a também expressiva quantidade de internações em unidades de tratamentos

intensivos neonatais são discutidos há muito tempo, entretanto, foi apenas nesse momento que o

debate foi estendido para o resto da sociedade e passou a ser compreendido como um problema

público.

A agenda foi marcada por grandes acontecimentos que visavam questionar o nosso

modelo obstétrico de assistência ao parto. Ocorreram marchas reivindicando os direitos das

72

mulheres de parirem no ambiente em que se sentissem mais seguras; os direitos das mulheres no

parto e um atendimento mais respeitoso.

Além disso, várias pesquisas sobre o tema aconteceram e a internet fervilhou de

informações e relatos de pessoas que não se sentiam confortáveis com o tipo de atendimento

recebido durante o parto. Nesse sentido, a ideia de violência obstétrica ganhou visibilidade – ela

que diz respeito aos abusos de qualquer ordem, sejam eles físicos ou emocionais, contra a mulher

em trabalho de parto ou parto. Ainda que muitas pessoas, inicialmente, não se declarassem

vítimas da violência obstétrica e não se sentissem confortáveis para falar sobre o assunto, muitas

ações foram lançadas na internet, a fim de explicar o que era a violência obstétrica e encorajar as

mulheres a se posicionarem sobre o assunto. Muitas dessas mulheres não se sentiam no direito de

expressar seu descontentamento com relação ao parto, pois acreditavam que a única coisa que, de

fato, que importava naquele momento, era que seus filhos tivessem nascido com saúde. Elas não

se achavam no direito de sentirem frustração e tristeza com o que havia acontecido naquele

momento tão significativo de suas vidas.

Ao mesmo tempo em que o governo desenvolvia uma grande pesquisa sobre a qualidade

do nascimento nos hospitais e maternidades do país, intitulada “Nascer no Brasil”, era filmado

um documentário sobre a realidade obstétrica brasileira e o “parto humanizado”. O Renascimento

do Parto foi o ponto alto da tentativa de conscientização sobre o nascimento por parte do grupo

de ativistas a favor da humanização do parto.

Do início de 2012 até agora, muita coisa aconteceu e segue em movimento. No presente

capítulo viso expor os modelos de assistência ao parto no Brasil, dando especial atenção para o

posicionamento do grupo de ativistas do “parto humanizado”, retratando como se desenvolveram

as marchas que reivindicavam o acesso a outra forma de atendimento ao parto, a tentativa de

criminalização do parto e, por fim, trabalho a questão da violência obstétrica.

3.1. Os modelos de assistência ao parto no Brasil

Atualmente, como os bebês nascem no Brasil? Os nascimentos podem ocorrer através de

uma cirurgia, a cesariana, ou por via vaginal. No caso da cesárea, elas podem ser “intraparto”, ou

seja, durante o trabalho de parto, ou “eletiva”, cirurgias marcadas fora do trabalho de parto, com

73

ou sem indicação médica. Já nos casos dos partos ocorridos por via vaginal eles podem ser: parto

normal, parto natural ou “parto humanizado”.

Antes de dar continuidade à descrição dos tipos de parto, destaco a questão das categorias

nativas. Desde a formação da Antropologia enquanto disciplina científica os pesquisadores se

deparam com categorias produzidas pelos grupos que se propuseram estudar. Ao estudar as

categorias do pensamento humano, a Antropologia entende que as categorias nativas possuem um

papel fundamental nas estruturas sociais, e trabalha com elas no sentindo em que as categorias do

pesquisador e dos nativos estão em constante negociação, levando, nesse processo, à relativização

das categorias do próprio pesquisador.

Nesse sentido passei por esse processo ao me deparar com as categorias nativas do grupo

que estava estudando, já que as categorias compartilhadas entre eles eram completamente fora da

minha realidade, como, por exemplo, a “desnecesárea” – termo utilizado para designar as

cirurgias cesarianas feitas sem indicação real –, o parto “Frank” – alusão ao personagem

Frankenstein, para designar um parto normal com intervenções de rotina e desnecessárias –,

“G&O fofinho” – Ginecologista e Obstetra que afirma que fará um parto normal, mas que nas

últimas semanas de gestação passa a conduzir a gestante para uma cesárea –, “cesárea eletiva” –

cirurgia marcada fora do trabalho de parto –, entre outros. Além disso, a existência de uma

infinidade de siglas para designar tudo o que diz respeito à gravidez e ao parto, tais como: UM

(última menstruação), IG (idade gestacional), PNAC (parto normal após cesárea), DPP (data

prevista para o parto), TP (trabalho de parto), PN (parto normal), PNH (parto natural

humanizado), PD (parto domiciliar), e assim segue.

Por parto normal compreende-se, no Brasil de hoje, um parto por via vaginal em ambiente

hospitalar com uso de anestesia e algumas intervenções que são feitas rotineiramente. O termo

normal está associado a uma norma, por isso, o parto normal é estabelecido atualmente no Brasil

nos termos citados acima. Entretanto, tendo em vista que o conceito de normalidade é relativo,

encontramos em outros países modelos distintos de partos normais. Na Holanda, por exemplo, o

parto domiciliar é compreendido como o “parto normal” e os índices de cirurgias cesarianas são

inferiores a 10%5.

5 Fonte: http://www.amigasdoparto.com.br/poutras5.html

74

O parto “natural” é aquele que ocorre naturalmente, sem a utilização de drogas sintéticas

– uma vez que o parto por si só já libera uma série de drogas naturais que são importantes para o

evento fisiológico e para a saúde da mãe e do feto.

O parto “humanizado” é uma expressão muito utilizada na América Latina e

compreendida por uma parcela da sociedade como um tipo de atendimento a parturiente. O termo

“humanizado” está relacionado ao fato de ser um modelo obstétrico que respeita a mulher, o que

significa dizer que se respeita o processo fisiológico do parto, sem intervenções desnecessárias,

permitindo que a mulher se movimente livremente, que tenha ao seu lado um acompanhante

escolhido por ela, em um ambiente aconchegante, entre outros aspectos.

Além disso, a ideia de “parto humanizado” também diz respeito à qualidade do

acolhimento do bebê ao nascer. São questionadas pelo grupo intervenções desnecessárias

realizadas com o bebê, tais como usar o colírio de nitrato de prata, separar mãe e bebê após o

nascimento, deixar o bebê na incubadora, fazer aspiração nasal, retirar o bebê de perto da mãe

para fazer os primeiros exames, dar banho imediatamente após o parto e, em alguns casos,

questiona-se inclusive a necessidade de dar ao recém-nascido a injeção de vitamina K, que

previne hemorragias cutâneas e do trato digestivo. O “parto humanizado” incentiva as iniciativas

de cuidados com os recém-nascidos que estimulem a amamentação na primeira hora de vida pelo

tempo desejado que favoreçam o vínculo entre mãe e bebê, com a utilização de pouca luz e um

ambiente com temperatura mais elevada. Acredita-se que desse modo os recém-nascidos são

recebidos de uma maneira melhor e mais favorável para a sua adaptação ao novo ambiente.

O parto natural e o “parto humanizado” podem ocorrer em ambiente hospitalar, em casas

de parto ou no domicílio. As casas de parto foram criadas pelo Ministério da Saúde em 1998 e se

propõem a oferecer um atendimento “humanizado” para a parturiente de baixo risco. Gestantes

com alguma patologia, gravidez de gêmeos, trabalho de parto antes da 37ª semana de gestação e

mulheres com uma cesárea anterior não podem optar pelas casas de parto. Normalmente, não há

médicos obstetras nesses locais e os atendimentos são feitos por enfermeiras obstetras, que apesar

de não poderem realizar alguns procedimentos, têm toda a formação para o socorro imediato de

mãe e bebê. Casos em que intervenções se fazem necessárias são encaminhados para hospitais.

Atualmente, existem 14 casas de parto espalhadas pelo país, públicas e privadas, e apesar do

pequeno número, a alternativa vem ganhando visibilidade e sendo utilizada, por exemplo, por

parturientes de classe média.

75

O parto domiciliar é normalmente assistido por parteiras, enfermeiras obstétricas –

enfermeiras com capacitação em obstetrícia – ou obstetrizes6. A equipe que atende aos partos em

casa pode variar quanto a sua composição de profissionais de saúde ali presentes. Elas podem ser

compostas por médicos obstetras, parteiras, fisioterapeutas obstétricas, enfermeiras obstétricas –

as parteiras “profissionais” –, obstetrizes, doulas e pediatras.

Desse grupo de profissionais, destaco a figura da doula por ser ainda muito pouco

conhecida. A palavra “doula” vem do grego, com o significado de “mulher que serve”.

Antigamente, as parturientes eram acompanhadas por outras mulheres que já tinham passado pelo

processo do parto e, por isso, eram mais experientes. Essas mulheres, além de ajudarem na hora

do parto, também davam suporte para a mãe nas primeiras semanas de vida do bebê. Atualmente,

a doula é a mulher que acompanha a parturiente em trabalho de parto massageando-a para aliviar

as dores, dando carinho para criar uma atmosfera de conforto e segurança, propondo exercícios

para ajudar o trabalho de parto evoluir, alimentando-a e dando-lhe água, orientando-a quanto às

posições mais favoráveis para o alívio da dor, apoiando-a emocionalmente, e estimulando o

vínculo entre a mulher e seu companheiro ou companheira com o bebê que vai nascer. Ela

também faz o acompanhamento no período puerperal.

A doula não está apta a realizar qualquer tipo de intervenção médica, como, por exemplo,

o exame de toque, que avalia a dilatação do colo do útero da mulher, e também não tem formação

para cuidar da saúde do recém-nascido. Dizia-se que qualquer mulher que já passou pela

experiência do parto poderia atuar como doula, entretanto, já existem vários cursos de

capacitação de doulas. Os cursos são oferecidos com mais frequência e têm maior visibilidade

nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina e Distrito Federal. O trabalho da doula

não é reconhecido como profissão e, por isso, não há um sindicato que regule a atividade. O

curso de capacitação de doulas dura em média cinco dias e, atualmente, custa algo em torno de

R$ 800,00. É importante ressaltar que o “doular” – exercer a função de doula – é um trabalho

maciçamente feminino, ainda que encontremos alguns homens que atuam como “doulos”. O

valor recebido pela doula pelo acompanhamento do trabalho de parto varia entre R$ 200 e R$ 2

mil. A escolha por esse acompanhamento durante o parto, seja em hospitais públicos ou privados,

6 Pessoa com formação em Obstetrícia. Curso de graduação (Bacharelado) oferecido pela USP Leste com duração de 3 anos.

76

não tira o direito da mulher, segundo a Lei do Acompanhante7, de ter ao seu lado, além da doula,

o acompanhante que ela desejar. Os partos domiciliares podem contar com a presença de mais de

uma doula.

O parto em casa não é algo tão desconhecido pela nossa sociedade, ainda que cause tanto

estranhamento nos dias de hoje, e não é preciso ir muito longe no tempo para encontrarmos

pessoas próximas que nasceram em casa. Em uma palestra assistida em junho de 2012, o obstetra

gaúcho Ricardo Herbert Jones, que na ocasião estava lançando seu livro intitulado Entre orelhas:

histórias de parto, apresentou uma linha do tempo que contemplava o processo histórico que

levou o parto do ambiente domiciliar e restrito às mulheres, para os hospitais. Segundo o obstetra,

a partir de 1920 houve a “medicalização da vida e do parto/nascimento”, no momento em que o

componente masculino entra em cena e o parto deixa de ser assunto das mulheres. Na década de

1930, há o processo de hospitalização, e a partir de 1940, inicia-se a utilização de ferramentas

médicas para interferir no processo natural e fisiológico do nascimento. Com o tempo os partos

passaram a ocorrer em ambiente hospitalar e por diversos motivos a opção pelo parto cesárea

ganhou maior visibilidade. Atualmente, no Brasil temos uma taxa de 52% de cesáreas8, contra os

15% que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda e prevê que serão necessários. No

Rio de Janeiro, nas maternidades particulares a taxa de partos cirúrgicos já alcança 90%.

Os partos domiciliares nunca deixaram de acontecer. Atualmente, não foram encontrados

dados oficiais quanto às porcentagens de bebês nascidos em domicílio. Entretanto, segundo a

enfermeira obstétrica Heloísa Lessa, em entrevista ao programa Sem Censura do dia 28 de junho

de 20129, a taxa das ocorrências de partos domiciliares na cidade do Rio de Janeiro seria residual,

algo em torno de 0,34%.

O chamado “parto humanizado” mobiliza um grupo de pessoas formado por grávidas,

mulheres que já pariram, profissionais da saúde e pessoas interessadas no tema, que se auto-

intitulam como “ativistas do parto humanizado”. Este grupo forma diversas redes de

comunicação e troca, por listas de discussão, grupos fechados em redes sociais, blogs, instituições

focadas em atendimento “humanizado” para gestantes, rodas de barrigas – encontros de casais

grávidos para troca de experiências – etc.

7 Lei Federal 11.108, vigente desde 2005, assegura à parturiente o direito de indicar uma pessoa de sua escolha para acompanhá-la durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato (até 10 dias) em qualquer hospital ou maternidade, seja ele da rede pública ou privada. 8 Dados do Ministério da Saúde em 2010. 9 Link: http://www.youtube.com/watch?v=pR0r0fbU93A

77

Os militantes em favor do “parto humanizado” se compreendem como um movimento

contracultural, que visa questionar a “norma obstétrica do país”, entendida por eles como sendo a

cesárea eletiva e as intervenções sem indicação. Em todos esses ambientes onde o “parto

humanizado” é abordado há sempre uma vasta discussão de como conseguir um parto respeitoso

que, segundo o grupo, devolva o “protagonismo” para a mulher, já que, ainda segundo os

ativistas, com o processo de medicalização do nascimento, a mulher passou a ser compreendida

como “subproduto” do evento parto. De uma maneira geral as mulheres que desejam ter um

“parto humanizado” são orientadas a buscarem médicos obstetras fora dos planos de saúde, pois

segundo as militantes que “organizam” o movimento, não há possibilidade de parto normal com

médicos dos convênios – mais à frente serão tratadas as problemáticas que envolvem essa

questão. Então, é comum que se peçam doações e se vendam rifas para que, aquelas que não

podem arcar com os altos valores do “parto humanizado”, consigam acumular, pelo menos, uma

parte do montante.

Nesses ambientes, quando uma mulher fala sobre o seu parto, especificamente nos casos

de cesárea, ela é questionada quanto à validade das justificativas dadas a ela. O que se percebe é

que numa escala de valor a cirurgia cesariana se encontra no mais baixo nível e o parto domiciliar

ocupa o lugar mais alto. Ainda sim, são “aceitas” com mais simpatia as cesáreas que realmente

foram necessárias para preservar a saúde da mãe e seu bebê.

O termo “humanizado”, utilizado para indicar um tipo de conduta médica durante o parto,

se opõe à ideia de “parto desumano” para muita gente. Ainda que o grupo se posicione contra um

tipo de conduta médica que não valorize e respeite a mulher, a palavra “humanizado” não está

associada, nesse caso, à ideia de um parto que não seja de humanos. O termo empregado é

utilizado com o intuito de classificar o tipo de assistência recebida no parto, já que nesses

ambientes não há espaços para maus tratos de gestantes e parturientes. Foi considerado que o

emprego do termo vem carregado de significado para um grupo que se entende militante da causa

e, obviamente, é um termo que desvaloriza e deslegitima qualquer outro tipo de atendimento ao

parto.

Assim, podemos afirmar que, para os militantes do “parto humanizado”, há uma

hierarquização entre os tipos de parto (ver diagrama 1), em que o parto domiciliar ocupa o nível

de maior “prestígio”, seguido pelo “parto humanizado”. Logo depois vem o parto normal, aquele

em que ocorre uma série de intervenções – necessárias ou não –, e, finalmente, a cesárea, que

78

ocupa a posição de menor “valor” e na qual temos a subdivisão do grupo entre cesáreas

“necessárias”, ou seja com indicação “real” para salvar a vida de mãe e bebê, e as ditas “eletivas”

ou “agendadas”. As cesáreas intraparto são mais bem vistas pela lógica do grupo, pois ocorrem

durante o trabalho de parto e são compreendidas como se “o feto tivesse sinalizado que estaria

pronto para nascer”. Para esse grupo a hierarquização dos tipos de parto está ligada à questão da

segurança e saúde no parto.

(Diagrama 1 – Hierarquização dos tipos de parto pela lógica dos ativistas do “parto humanizado”).

Essa lógica se estabelece contrariando a ideia, amplamente difundida na nossa sociedade,

de que a cirurgia cesariana é a maneira mais segura de nascer (ver diagrama 2), em que o controle

médico é maior e os riscos são menores. A partir dessa visão, podemos perceber que a cesárea

ocupa o nível mais “elevado” da pirâmide, seguido pelo parto normal e, finalmente, pelo parto

domiciliar, como sendo a maneira mais “arriscada” de parir.

79

(Diagrama 2 – Lógica da segurança no parto mais difundida em nossa sociedade, oposta à ideia de

“humanização do parto”).

Assim, fica claro que temos duas lógicas distintas, nas quais as relações estão permeadas

por diversas tensões, como veremos mais adiante. Os tipos de parto compõem uma lógica

dualista – parto normal versus cesárea. Nos dois casos analisados – tanto do ponto de vista do

grupo a favor da “humanização do parto”, quanto pela lógica mais difundida em nossa sociedade

–, fica evidente que essas classificações são maneiras de hierarquização e atribuição de valor.

(DURKHEIM & MAUSS, 1978).

O que nos importa nesse momento é compreender especificamente a lógica do grupo do

“parto humanizado”. Dessa forma, podemos perceber que existem duas variáveis que se opõem,

pois, em primeiro lugar, o grupo critica o poder dos médicos e a forma como eles “conduzem” a

gestante durante o pré-natal para que seja feita uma cesárea e, também, as intervenções

desnecessárias e, por vezes, violentas, que ocorrem nos partos normais. Em um segundo

momento, esse grupo ocupa o lugar de “legitimar” ou não uma cesárea, se foi feita a partir de

“evidências científicas sólidas” ou se as intervenções sofridas pela mulher eram realmente

necessárias.

Em Homo hierarchicus: o sistema de castas e suas implicações, Louis Dumont trabalha a

questão da hierarquia a partir do exemplo da Índia. O autor propõe buscar as categorias de

80

classificação do outro, compreendendo que não devemos justapor o que conhecemos ao que

queremos conhecer. Assim, a escolha pelo sistema de castas da Índia é justificada, na visão de

Dumont, por ser o que mais se aproxima da ideia de holismo, que tem como princípio

estruturante a noção de hierarquia, para assim compreender o que ele acreditava ser o que mais se

aproxima da ideia de individualismo, com a igualdade como princípio estrutural das sociedades

ocidentais.

Nas sociedades ocidentais a noção de hierarquia é vista como “desigualdade”, já que o

indivíduo se supõe autônomo e absoluto. Nesse sentido, Dumont vai contribuir para a ideia de

que na sociedade de castas podemos encontrar as noções de igualdade e individualismo, e, assim

como na sociedade ocidental, encontramos o princípio da hierarquia pautada na lógica da

igualdade.

A perspectiva de Dumont é interessante para que possamos nos questionar a respeito da

hierarquização dos tipos de parto, pois se por um lado o grupo em questão luta pela liberdade de

escolha do parto e pelo direito de um parto vaginal num universo quase que maciçamente de

cirurgias cesarianas, por outro, a própria noção de “parto humanizado” desqualifica qualquer

outro tipo de parto. Assim, o discurso compreendido como igualitário, acaba sendo baseado em

um discurso hierárquico em ambos os casos.

Muitas mulheres que participam desses grupos de apoio ao “parto humanizado” não

conseguem, por diversas razões, parir os seus filhos por meio de um parto vaginal, o que acaba

resultando em uma cesárea de emergência. Isso causa um grande desconforto para estas mães e,

por vezes, fica claro o sentimento de não pertencer mais àquele grupo, e muitas não voltam para

contar suas experiências ou acabam procurando apoio em outros ambientes.

Ao longo do ano de 2013, acompanhei diariamente um grupo fechado em uma rede social

que, até março de 2014, contava com 9188 membros. O grupo se propõe, segundo palavras do

próprio grupo, a “empoderar” as mulheres. Por “empoderamento” os militantes do “parto

humanizado” entendem como dar informações para que as grávidas e parturientes possam

questionar as indicações de cesáreas, eletivas ou não, contestar procedimentos desnecessários

durante o parto, compreender as fases de trabalho de parto e todo o tipo de informação médica. O

grupo é mantido por onze mulheres, que são as administradoras da página. São mulheres de áreas

de conhecimento distintas, como Medicina, Enfermagem, Informática, Geografia e Artes, que em

algum momento focaram sua trajetória em prol do “parto humanizado” e passaram a atuar como

81

obstetras, enfermeiras obstétricas, obstetrizes, doulas e educadoras perinatais, e a maior parte

vive e atua no eixo Rio-São Paulo.

Classifiquei as postagens do grupo em seis tipos: i) mulheres grávidas que recebem

orientações médicas dos mais diferentes tipos e levam as questões para o grupo a fim de obter

mais informações – como também saber se o médico está alinhado com a conduta “humanizada”

– já que as administradoras têm a “função” de “derrubar mitos” com o respaldo de evidências

científicas; ii) grávidas que se deparam com situações inesperadas e, antes mesmo de buscar

ajuda médica, procuram orientação no grupo; iii) mulheres que já pariram e contam suas histórias

visando saber se sofreram uma cesárea desnecessária ou se algum procedimento poderia ter sido

evitado; iv) informações sobre médicos e maternidades que possibilitam o “parto humanizado”; v)

postagens feitas pelas administradoras do grupo com temas específicos para reunir todo o tipo de

informação sobre aquele tema, por exemplo, um espaço destinado só para reunir os

conhecimentos sobre o VBAC (Vaginal Birth After Cesarean) ou PNAC (Parto Normal Após

Cesárea), além de outro exclusivo sobre o “mito” da circular de cordão, etc. e vi) Relatos de

partos, muitas vezes com vídeos e fotos do processo. Vale ressaltar que os casos de “partos

naturais humanizados” e partos domiciliares são recebidos com mais entusiasmo pelo grupo,

assim como o parto normal de gêmeos e bebês que se encontravam pélvicos 10 na hora no

nascimento.

Nesses ambientes é comum e esperado que as mulheres que pariram voltem para falar de

suas experiências de parto. Além disso, cria-se expectativa para o relato de parto, fotos e/ou

vídeos do nascimento, que sempre têm grande repercussão.

3.2. A marcha do parto em casa

Entretanto, em fevereiro de 2012, um vídeo em especial movimentaria muita coisa

naquele ano. Foi o vídeo do nascimento de Lucas, que chegou em novembro de 2011, por meio

de um parto domiciliar com a presença do pai e assistido por uma obstetriz, duas doulas e uma

pediatra. Ao som de “debaixo d’água”, na voz de Maria Bethânia, o vídeo mostra o trabalho de

10 Bebê “pélvico” é como se chama quando, na hora do nascimento, o bebê está na posição “sentada”. Muitos obstetras não realizam partos normais de bebês “pélvicos”, pois afirmam que é arriscado para a saúde da mãe e do feto. A posição ideal e esperada para o bebê nascer de parto normal é quando ele se encontra “cefálico”, ou seja, de cabeça para baixo na região do púbis da mãe. Ativistas do “parto humanizado” questionam essas “verdades”.

82

parto de Sabrina, que teve duração de nove horas e até março de 2014 foi visualizado por mais de

sete milhões de pessoas11.

Em 10 de junho de 2012, o programa de televisão Fantástico, exibido pela Rede Globo,

tratou do tema do parto domiciliar a partir do vídeo do nascimento de Lucas, devido ao grande

número de acessos que o vídeo alcançou rapidamente. A matéria contou com as entrevistas de

Sabrina e Fernando, mãe e pai de Lucas, Lara Gordon – uma das doulas presentes do parto de

Sabrina –, a obstetriz Ana Cristina Duarte – também presente no nascimento de Lucas –, o

obstetra e professor da UNIFESP Jorge Kuhn, Vera Fonseca, diretora da Federação Brasileira de

Ginecologia e Obstetrícia, e Helvécio Magalhães, secretário do Ministério da Saúde.

A matéria12 questiona: “é seguro ter um bebê fora do hospital?” e após breve explanação

sobre o que seria o termo “parto humanizado” são indicadas as posições do Conselho Federal de

Enfermagem – que afirma que um enfermeiro obstétrico pode realizar um parto em casa, desde

que o ambiente apresente condições mínimas de higiene; o Conselho Federal de Medicina –

indica que os partos ocorram em ambiente hospitalar, tendo em vista que em caso de

complicações o hospital possui mais recursos para salvar a vida de mãe e do recém-nascido; as

Associações Brasileiras de Ginecologia e Obstetrícia – que são contra o parto em casa e lembram

que em caso de insucesso o médico responsável terá que responder a processo junto ao seu

conselho federal. Já o obstetra paulista Dr. Jorge Kuhn, se posicionou a favor do parto domiciliar.

Segundo ele, o parto não é um ato cirúrgico e pode acontecer em casa, desde que a gestação seja

de baixo risco13.

Logo após a matéria ser exibida, o CREMERJ (Conselho Regional de Medicina do Estado

do Rio de Janeiro) divulgou uma nota indicando que encaminharia ao CREMESP (Conselho

Regional de Medicina do Estado de São Paulo) uma denúncia contra o obstetra Dr. Jorge Kuhn,

que se posicionou a favor do parto domiciliar. No site do CREMERJ não foi encontrada a nota,

tampouco nenhuma informação com relação ao obstetra.

Prontamente, uma longa rede de apoio se formou em torno do Dr. Jorge Kuhn e do parto

domiciliar. Ativistas do “parto humanizado” se uniram e organizaram, via internet, uma

11 Link: http://www.youtube.com/watch?v=qiof5vYkPws 12 Link: http://fantastico.globo.com/Jornalismo/FANT/0,,MUL1680907-15605,00-PARTO+HUMANIZADO+DOMICILIAR+DIVIDE+PROFISSIONAIS+DA+AREA+DE+SAUDE.html 13 Por parto de gestação de baixo risco, entende-se que a parturiente tem grandes chances de não apresentar nenhum tipo de problema durante o parto. Considera-se baixo risco, as gravidezes que não apresentam nenhum tipo de complicações durante o pré-natal.

83

mobilização contra a atitude do CREMERJ (Anexo 2). Nos dias 16 e 17 de junho – ou seja,

apenas uma semana após o programa ter sido exibido – 31 cidades do Brasil foram às ruas

protestar através da “marcha do parto em casa” contra o processo aberto contra o médico; o

número excessivo de cesáreas no país; contra a violência obstétrica (Anexo 3); e em prol do

direito das mulheres de parirem aonde se sentirem mais seguras..

(Doc.1 – Cartaz de divulgação do evento criado pela organização da marcha do parto em casa. O

cartaz critica o posicionamento do CREMERJ contra o médico obstetra Dr. Jorge Kuhn. Fonte:

https://www.facebook.com/MarchaDoPartoEmCasa?fref=ts)

No Rio de Janeiro, a marcha do parto em casa ocorreu no dia 17 de junho de 2012. Os

manifestantes se encontraram na praia de Botafogo e marcharam até a sede do CREMERJ,

próximo a Rua Farani, no mesmo bairro. O evento reuniu aproximadamente 200 pessoas,

segundo as organizadoras do evento. Mulheres, homens, grávidas, crianças, bebês, além dos

profissionais que atendem aos partos (obstetras, parteiras, doulas, etc.), carregavam cartazes,

bandeiras e muitos apresentavam roupas e os corpos pintados.

84

(Foto 3.1 – Mulher grávida carregando cartaz na marcha do parto em casa. No cartaz, podemos

ver a crítica da gestante pela falta de atendimento “humanizado” no SUS, tendo em vista que a grande

parte dos médicos que realiza esse tipo de atendimento é particular e os preços são altos. Créditos: Eloá

Chaignet. Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012.)

As bandeiras maiores eram de instituições que trabalham com a ideia de “parto

humanizado” e do COREN RJ (Conselho Regional de Enfermagem), se posicionando a favor do

parto em casa. Os cartazes eram erguidos pelos profissionais da saúde, mulheres – grávidas ou

não e também por seus companheiros. Eles diziam: “Sabemos parir”, “Parto em casa é seguro”,

“CREMERJ, eu não preciso do seu conselho”, “Contra a violência obstétrica”, “Meu corpo, meu

85

parto, minhas escolhas”, “Cesárea pra quem precisa”, “Violência no parto NÃO”, “Quem disse

que não gritei pra fazer?”14, “CRM, cuida das tuas cesáreas eletivas! Elas sim levam nossos

bebês para a UTI”, entre muitos outros.

(Foto 3.2 – Cartazes dos manifestantes na Marcha do Parto em Casa em apoio ao médico obstetra

Dr. Jorge Kuhn e pela liberdade de escolha do tipo de parto. Créditos: Eloá Chaignet. Rio de Janeiro, 17

de junho de 2012.)

14 O cartaz critica um dos tipos de violência obstétrica mais relatados por parturientes no SUS, em que as enfermeiras e médicos mandam a mulher parar de gritar e justificam: “Na hora de fazer não gritou!”.

86

(Foto 3.3 – Manifestantes com seus filhos na marcha do parto em casa. Detalhe para Michel

Odent, de camiseta laranja, as parteiras Heloísa Lessa e Claudia Orthof e a doula Fadynha. Créditos: Eloá

Chaignet. Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012.)

As mulheres grávidas exibiam suas barrigas com pinturas dizendo: “Eu vou nascer em

casa”, ou apenas com desenhos do tipo “ultrassom natural”15, e por vezes o bebê era desenhado

dentro de uma casa. As crianças e bebês marcharam usando camisas desenhadas que diziam: “Eu

nasci em casa”, “Eu não nasci em casa mas a minha irmãzinha vai nascer”, entre outros, além de

carregarem cartazes com dizeres semelhantes, como por exemplo: “Eu quero assistir o meu

irmão nascer”.

15 O “ultrassom natural” é uma técnica de pintura na barriga que vem sendo muito utilizada atualmente e tem como intuito aproximar a mulher e a família do feto. A ideia é desenhar o bebê exatamente na posição em que ele se encontra naquele momento, já que é uma simulação de um exame de ultrassonografia.

87

(Foto 3.4 – Criança na marcha vestindo a camiseta do evento a favor do parto em casa. Créditos:

Eloá Chaignet. Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012.)

(Foto 3.5 – Cartazes reivindicando o direito pela escolha do local de parto. No fundo, o cartaz

vermelho traz os dados da pesquisa sobre a violência obstétrica realizada pela Fundação Perseu Abramo,

2011. Criança que nasceu em casa na marcha. Créditos: Eloá Chaignet. Rio de Janeiro, 17 de junho de

2012.)

88

Como palavras de ordem o grupo dizia: “Ei, você aí! Eu não preciso do seu conselho pra

parir”, fazendo referência à nota divulgada pelo CREMERJ, na qual o conselho indicava que os

partos deveriam ocorrer em ambiente hospitalar. Os manifestantes cantavam e dançavam juntos

em forma de ciranda: “Minha vó pariu minha mãe. Minha mãe pariu a mim. Todas pariram em

casa e eu também quero parir”.

(Foto 3.6 – Mulheres ativistas que pariram em casa na Marcha do Parto em Casa. Créditos: Eloá

Chaignet. Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012.)

89

(Foto 3.7 – Mulher na marcha do parto em casa carregando cartaz que critica o posicionamento do

CREMERJ contra o parto domiciliar. Créditos: Eloá Chaignet. Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012.)

Como dito antes, trinta e uma cidades participaram da mobilização em repúdio à atitude

do CREMERJ e tiveram repercussão na grande mídia.

3.3. A criminalização do parto domiciliar

No dia 19 de julho, ou seja, quase um mês após a marcha do parto em casa, o CREMERJ

publicou no Diário Oficial duas resoluções (265/12 e 266/12) que proíbem a participação de

90

médicos em partos domiciliares (Anexo 4). A resolução 265 proíbe a participação de médicos em

partos domiciliares e também a participação dos mesmos no suporte aos partos em casa16, além

de tornar obrigatória a notificação junto ao órgão em caso de emergência obstétrica, incluindo

quando a parturiente é encaminhada através de uma casa de parto para o hospital. Ou seja, o

CREMERJ não reconhece as casas de parto como ambientes seguros para o parto, contrariando o

sistema de saúde, que estimula essa escolha.

(...) Art. 1º É vedada a participação do médico nas chamadas ações

domiciliares relacionadas ao parto e assistência perinatal.

Art. 2º É vedado ao medico participar de equipe de suporte e

sobreaviso, previamente, acordadas, a partos domiciliares (...).CREMERJ,

Resolução 265/12

Já a resolução 266/12 dá conta da proibição da participação de doulas, parteiras e

obstetrizes em partos hospitalares, afirmando que apenas as enfermeiras obstetras estão aptas a

participar, tendo em vista que são legalmente reconhecidas como profissionais de saúde.

Após o COREN-RJ (Conselho Regional de Enfermagem) entrar com uma ação civil

contra as resoluções do CREMERJ, o presidente do conselho de enfermagem, Pedro de Jesus,

afirmou:

As resoluções do CREMERJ inibem o direito da mulher de decidir onde e por quem

será acompanhada no seu parto, praticamente a obrigando a dar à luz no hospital. O

CREMERJ desrespeita os preceitos dos manuais do SUS sobre os direitos sexuais e

reprodutivos, além dos decretos do Ministério da Saúde referentes à humanização do

parto. (FONTE: Jornal Online Folha de São Paulo, publicado em 23/07/2012)

Por decisão do Juiz Federal substituto Gustavo Arruda Macedo, da 2ª Vara Federal, as

resoluções foram derrubadas (Anexo 5), pois foram consideradas incompatíveis às normas

federais. Em sua sentença o juiz declarou:

16 É comum que a parturiente que escolha ter um parto em casa, acorde previamente com uma equipe médica em caso de haver necessidade e/ou remoção para o ambiente hospitalar. É o que o grupo chama de equipe de backup.

91

A vedação à participação de médicos em partos domiciliares, ao que tudo indica, trará

consideráveis repercussões ao direito fundamental à saúde, dever do Estado,

porquanto a falta de hospitais fora dos grandes centros urbanos, muitas vezes suprida

por procedimentos domiciliares, nos quais é indispensável a possibilidade de

participação do profissional de Medicina, sem que sobre ele recaia a pecha de infrator

da ética médica. (FONTE: Jornal Online O Globo publicado em 31/07/2012)

Fica claro, portanto, que há uma tentativa de criminalizar o parto domiciliar, já que o

CREMERJ, por ser um órgão que regulariza e fiscaliza a profissão, afirma que médicos obstetras

não podem atuar em partos domiciliares, sob pena de processo junto ao CRM.

Ao proibir que os médicos atuem nesses casos, o conselho deslegitima a atuação dos

médicos em locais onde os hospitais são distantes e o acesso à saúde é difícil, e locais onde as

populações são mais carentes.

A partir do posicionamento do CREMERJ, podemos refletir a partir da noção de drama

social, proposto por Victor Turner (2008). Inspirado nas Tragédias Gregas, o autor elabora a ideia

de drama social, definida como unidades de processo desarmônico que aparecem a partir do

conflito.

Assim, Turner divide o drama social em quatro fases. No primeiro momento, ocorre a

ruptura das relações sociais formais que são compartilhadas por um grupo de indivíduos e

regidas por uma norma. Essa ruptura marca o rompimento com uma norma crucial que regule as

relações. E, segundo o autor, isto não é um crime – é o que abre a possibilidade para o confronto

entre as partes.

O segundo momento é a fase de crise, que com sua característica crescente ganha

proporções maiores, e gera uma clivagem nas relações sociais. Aqui se fala em “escalada do

problema”, já que são momentos drásticos para a sociedade, quando se revela o verdadeiro estado

das coisas e, segundo Turner: “quando é menos fácil vestir máscaras ou fingir que não há algo

podre na aldeia” (2008: 34).

A ação corretiva é a terceira fase e caracteriza-se por uma tentativa de conter a crise:

No intuito de limitar a difusão da crise, certos “mecanismos” de ajuste e regeneração,

informais ou formais, institucionalizados ou ad hoc, são rapidamente operacionalizados

por membros de liderança ou estruturalmente representativos do sistema social

92

perturbado. Os tipos e a complexidade de tais mecanismos variam de acordo com

fatores como a profundidade e importância social compartilhada da ruptura, a

inclusividade da crise, a natureza do grupo social no qual ocorreu a ruptura e o grau de

sua autonomia no que se refere a sistemas de relações sociais mais amplos ou externos.

(TURNER, 2008: 34)

Por fim, a última fase, que consiste na reintegração do grupo social perturbado ou na

legitimação do cisma ocorrido entre as partes conflitantes.

Assim, a partir da ideia de drama social, podemos refletir a respeito do processo de

tentativa de criminalização do parto domiciliar que vem ocorrendo. Em um primeiro momento, o

grupo de mulheres que optam por um parto domiciliar rompe com uma norma vigente em nossa

sociedade, de que o local mais seguro para a realização de um parto é o hospital. O estopim

simbólico desse confronto foi a matéria transmitida pela Rede Globo de Televisão, em que

nasceu Lucas, em um parto domiciliar. Essa violação dramática é feita por mulheres que

acreditam que o parto deve ser compreendido de outra maneira, o que para elas é uma escolha

política.

No segundo momento, temos a escalada do problema, pois a partir da ocasião em que o

CREMERJ declarou que indicaria uma denúncia ao médico obstetra Jorge Kuhn, por ter se

posicionado a favor do parto domiciliar em rede nacional, o grupo de ativistas pela humanização

do parto se mobilizou e passou a questionar não só o direito das mulheres em escolherem o local

em que se sintam mais seguras para parir, mas também as intervenções de rotina sem indicação

médica, a falta de um acompanhamento respeitoso e baseado em evidências científicas, a

violência obstétrica, o grande número de cesáreas e de bebês prematuros, entre outras questões.

A tentativa de ação corretiva ocorreu justamente no momento em que o CREMERJ

publicou no diário oficial duas resoluções que proibiam os médicos de participarem das ditas

ações domiciliares. Esse mecanismo não foi capaz de conter a crise, e teve sua ação

deslegitimada pelo poder judiciário e só gerou uma maior mobilização por parte dos ativistas.

No caso aqui analisado, ainda não é possível se falar em reintegração, visto que,

atualmente, ainda há muitos conflitos relacionados ao tema.

3.4. A marcha pela humanização do parto e a violência obstétrica

93

Com a publicação das resoluções do CREMERJ, mais uma marcha foi organizada, como

nos moldes da marcha do parto em casa. Em mais de trinta cidades, das cinco regiões do país, no

dia 5 de agosto de 2012, ocorreu a marcha pela humanização do parto, que reivindicava entre

outras coisas, o direito da mulher de parir no local e com quem se sentisse segura – com a

assistência de médicos obstetras, parteiras e doulas em casa, casas de parto ou no hospital e,

portanto, se posicionavam contra a proibição estabelecida pelo CREMERJ. Além disso, as

manifestantes questionavam o alto índice de cesáreas eletivas no país, o modelo obstétrico, ou

seja, o atendimento vivenciado hoje pelas parturientes e denunciaram a violência obstétrica.

(Doc. 2 – Cartaz de divulgação produzido pela organização da marcha pela humanização do parto.

FONTE: https://www.facebook.com/marchapartohumanizado)

No Rio de Janeiro, segundo a organização do evento ocorrido na orla da praia de Ipanema,

cerca de 200 pessoas estiveram presentes. Entre elas mulheres grávidas, profissionais de saúde e

pessoas que apoiam a causa. Mais uma vez as grávidas tinham suas barrigas pintadas, levavam

94

grandes faixas e cartazes dos mais variados tamanhos, muitas pessoas vestiam a camisa com a

logo do evento, além da participação das crianças e bebês.

O tema que foi amplamente exposto pelo grupo de ativistas do “parto humanizado” foi a

questão da violência obstétrica. Para esse grupo de pessoas, o termo violência obstétrica diz

respeito à conduta desrespeitosa dos profissionais de saúde no cuidado com as parturientes.

Segundo a obstetriz de São Paulo, Ana Cristina Duarte, são consideradas formas de violência

obstétrica: o não cumprimento do direito da parturiente de estar acompanhada por uma pessoa de

sua escolha; tratar a mulher de maneira grosseira, agressiva, que cause algum tipo de

constrangimento; tratá-la de maneira inferior, como incapaz; submetê-la a procedimentos

desnecessários – tais como raspagem dos pelos pubianos, lavagem intestinal; discriminá-la ou

expô-la a qualquer tipo de constrangimento por causa de suas características físicas; recriminar

choros e gritos; realizar qualquer procedimento sem a autorização da parturiente; fazer

episiotomia (corte no períneo) sem necessidade; realizar manobra de Kristeller – subir na barriga

da mulher para empurrar o bebê; submeter a parturiente a uma cesariana desnecessária; separar

mãe e bebê saudável após o nascimento, entre outros. Além da negligência na assistência para

mães e bebês, abuso sexual e morte materna e/ou neonatal.

Dentre as formas de violência obstétrica acredito ser interessante destacar a episiotomia

como “cirurgia sexual”. A falsa ideia de que o parto vaginal deixa a mulher “larga”, “flácida”,

“frouxa”, ou seja, que sua vagina fica aumentada, diminuindo o prazer do parceiro na hora do

sexo, é altamente difundida. Por isso, a episiotomia é realizada com o pretexto de que no

momento de realizar a sutura é possível deixá-la mais “apertada” para o marido17, o que na

realidade, traz prejuízos para a vida sexual dessas mulheres.

17 Conhecido pelo “Ponto do Marido”.

95

(Foto 3.8 – Projeto Fotográfico 1:4 – Retratos da Violência Obstétrica, parte de uma série de fotografias

com as histórias de mulheres que sofreram violência obstétrica. Créditos: Carla Raiter)

A marcha pela humanização do parto visou fornecer informações para as pessoas sobre o

nascimento no Brasil de hoje. Na página do evento na rede social Facebook, cada matéria

publicada na grande mídia era comemorada pela organização do evento, pois eles acreditam que

assim mais pessoas têm acesso ao tema e, talvez, essas pessoas se questionem quanto ao modelo

obstétrico atual e repensem qual o tipo de assistência tiveram e qual gostariam de ter

experimentado. Abaixo alguns dos cartazes produzidos pela organização da marcha de 5 de

agosto de 2012:

96

(Doc. 3 – Alguns dos cartazes que foram disponibilizados pela organização do evento para impressão.

FONTE: https://www.facebook.com/marchapartohumanizado)

Apesar de não ser tipificada como uma forma de violência contra a mulher pela

Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito de violência obstétrica vem sendo

amplamente estudado e utilizado por diversos setores da sociedade. Atualmente, está em fase de

conclusão a pesquisa “Nascer no Brasil”, por iniciativa da FIOCRUZ, que visa compreender

como nascem as crianças em nossos estados, o crescente número de cirurgias cesarianas e o

impacto delas em puérperas e recém-nascidos, a motivação para a escolha do tipo de parto, em

que condições de saúde os bebês nascem, as complicações no pós-parto, assim como a questão da

violência obstétrica também. Além disso, está disponível uma grande quantidade de trabalhos

acadêmicos sobre o tema, que são abordados por pesquisadores da área do Direito, Enfermagem,

Antropologia, Ciência Política, Medicina, Psicologia, Fisioterapia, entre outras.

A violência vivida nas instituições de saúde por mulheres em trabalho de parto, parto e

pós-parto imediato é compreendida como um processo de dominação que através de formas

simbólicas oprime as gestantes, parturientes e puérperas, no qual quem violenta, muitas vezes,

não enxerga a sua conduta como tal, pois são profissionais que encaram os procedimentos como

normais e as práticas como rotineiras. Uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto

todos os dias no Brasil (dados da Fundação Perseu Abramo, 2010), é o que nos afirma o

97

documentário Além da dor do parto18 apresentado na Universidade Católica de Brasília, como

trabalho de conclusão de curso de Direito. O documentário realizado pelas alunas Letícia Campos

Guedes, Amanda Rizério, Nathália Machado Couto e Raísa Cruz teve grande repercussão nos

ambientes virtuais de discussão sobre o “parto humanizado”. Ele traz informações importantes

através de cinco profissionais de áreas distintas e cinco depoimentos de mulheres que sofreram

violência obstétrica de maneiras diferentes. Segundo uma das mulheres entrevistadas:

(...) e daí eu resolvi que eu queria fazer cesariana pra não sentir nenhuma dor. Eu não

sei por que o médico tentou me dar anestesia três vezes. Aí quando ele fez o primeiro

corte eu realmente não senti, mas quando ele foi fazendo os cortes mais profundos, eu

comecei a gritar e falei pra ele que eu tava sentindo muita dor, que eu tava sentindo tudo.

Aí ele falou assim: “Mas agora eu não posso mais parar de fazer o parto pra poder te

anestesiar de novo porque, senão, o bebê pode morrer”. E aí ele fez o meu parto em

cinco minutos, eu gritando desesperada, sentindo tudo, morrendo de dor. E quando ele

tirou a Laura, ele me deu uma anestesia lá, um “cheirinho”, uma anestesia geral, não

sei... pra poder fazer a sutura, que demora muito tempo. E quando eu acordei, eu já

acordei lá no quarto. Então, eu nem cheguei a ver minha filha. (Documentário A dor

além do parto, grifos meus).

Muitas das condutas que atualmente são compreendidas como violência obstétrica foram

vistas ao longo de anos como algo normal, inevitável e inerente ao nascimento de um bebê.

Assim, a ideia de “humanização do parto” vai de encontro à noção da violência sofrida pelas

mulheres no parto, já que a ideia é que os profissionais de saúde se baseiem em evidências

científicas para a utilização ou não dos procedimentos. Entrevistado no documentário, o promotor

de justiça do Distrito Federal, Dr. Diaulas Ribeiro afirma:

A obstetrícia é mundialmente a especialidade médica com maior número de ocorrências

de infrações, quer na lesão corporal, quer nas mortes. Ou seja, 70% de tudo de que o

Ministério Público processa em matéria dos chamados erros médicos, estão

especificamente nesta especialidade que é a obstetrícia. (Documentário A dor além do

parto, grifos meus).

18 Link: http://www.youtube.com/watch?v=cIrIgx3TPWs

98

3.5. O Documentário O renascimento do parto

Ainda em 2012 foi editado o documentário O renascimento do parto19 (2013). Um filme

de autoria de Érica de Paula e Eduardo Chauvet, que trata da questão do atual modelo de

assistência ao parto prestado no Brasil. No elenco nomes como a obstetriz Ana Cristina Duarte, o

ator Márcio Garcia e sua esposa, Andréa Santa Rosa Garcia, a enfermeira obstétrica Heloísa

Lessa, a obstetra e gestora do Ministério da Saúde, a Dra. Esther Vilela, Ricardo Jones, médico

obstetra, o pediatra Ricardo Chaves, a antropóloga Robbie Davis-Floyd, o médico francês Michel

Odent, entre outras figuras importantes do universo do “parto humanizado”.

(Doc. 4 – Cartaz oficial do filme O renascimento do parto. Fonte:

http://www.orenascimentodoparto.com.br/)

19 Ficha técnica: Direção, montagem e produção executiva: Eduardo Chauvet Roteiro, pesquisa e produção: Érica de Paula Direção de Fotografia e som direto: Rafael Morbeck Trilha sonora original: Charles Tôrres e Marcello Dalla Desenho de Som: Marcello Dalla Edição de som: Vagner Oliveira

99

O filme retrata a realidade obstétrica mundial, em especial o caso brasileiro, trazendo uma

grande crítica ao expressivo número de cesáreas realizadas no país ou de partos vaginais com

intervenções traumáticas e desnecessárias.

(Doc. 5 - Um dos cartazes que faz parte de uma série disponibilizada pela produção do filme. Com a

crítica às espisiotomias realizadas sem necessidade. Fonte: http://www.orenascimentodoparto.com.br/)

A causa que movimenta os ativistas do “parto humanizado” e justifica o documentário

está pautada na ideia de que o Brasil tem um número excessivo de cirurgias cesarianas e que elas

trazem consequências para mãe e para o bebê, apesar de se saber que a maior parte das mulheres

durante a gestação deseja ter um parto normal. Porém, segundo o documentário, o que inviabiliza

esses partos normais é o sistema médico e financeiro que rege os nascimentos no país. Além

100

disso, o parto está envolvido por “mitos que regem o sistema” e por intervenções desnecessárias,

muitas vezes violentas.

(Doc. 6 – Um dos cartazes que faz parte de uma série disponibilizada pela produção do filme. Mitos que

sustentam o sistema dizem respeito às falsas indicações de cesárea. Fonte:

http://www.orenascimentodoparto.com.br/)

Para a produção do documentário, Érica de Paula e Eduardo Chauvet trabalharam alguns

anos com recursos próprios, até o momento em que era impossível levar o longa-metragem aos

cinemas. Assim, surgiu via Facebook uma mobilização de pessoas que estavam dispostas a ajudar

a fazer o filme ganhar visibilidade e que, no final das contas, tornaram-no um recorde brasileiro

de financiamento coletivo. Ao todo, 1228 pessoas apoiaram o filme, doando valores entre

101

R$ 30,00 e R$ 10.000,00. O objetivo era conseguir R$ 65.000,00 para que fosse possível levar o

filme aos cinemas, porém, foram arrecadados R$ 141.091,00.

E em agosto de 2013, O renascimento do parto chegou ao grande público e já foi indicado

para uma série de festivais de cinema pelo mundo. O roteiro é organizado a partir de subtemas,

que são colocados em questão para discutir a assistência ao parto recebida pelas mulheres

atualmente, tendo em vista que, segundo o documentário, o parto passou a ser compreendido

como um ato cirúrgico ao invés de um evento fisiológico.

O primeiro grande tema abordado é a respeito da “Indústria do nascimento”, em que são

apresentadas as questões financeiras que envolvem o parto e que incluem médicos e hospitais.

Para um parto normal acontecer de maneira natural e sem intervenções, são necessárias várias

horas até que o corpo esteja preparado para o momento do expulsivo, o que significa que é um

processo longo e que demanda um acompanhamento médico atento. Assim, os médicos devem

estar à disposição das parturientes, o que hoje em dia não é vantajoso para os profissionais, afinal,

o valor pago pelo plano de saúde por um parto não compensa o valor perdido pelo obstetra ao se

ausentar durante uma tarde de seu consultório. O documentário teve a participação de mulheres

que contaram a suas experiências, e uma delas afirmou:

Faltavam três semanas pro meu bebê nascer e aí ele (o médico) disse que apesar dela ter

virado, ter encaixado, ela tava grande demais, aí ele pediu para que eu fizesse um

ultrassom e indicou um médico. Nós vimos o meu bebê se mexer, tava tudo bem.

Depois a gente viu uma imagem congelada de um bebê com 3 circulares (de cordão) no

pescoço, e logo a gente percebeu que não era a nossa filha. E a gente comentou

qualquer coisa com o médico, né? Mostrando desconfiança! E aí, ele desconversou e

dali fomos a uma outra clínica, fazer com um médico que a gente tinha confiança, que

acompanhou a minha primeira gestação. Aí eu fiz o ultrassom lá, meia hora depois e

não tinha circular no pescoço. Naquele dia eu retornei ao consultório do meu médico e

mostrei pra ele o segundo ultrassom, sem a circular no pescoço. Aí ele falou: “Ah, você

não foi fazer no médico que eu te indiquei?”, eu falei assim: “Não, eu fui nesse porque

eu prefiro fazer nesse, que é da minha confiança”. Aí ele disse: “É... só que o bebê tá

grande, eu não posso fazer normal em você, vai ter que ser cesárea”. Eu falei assim:

“Doutor, não posso nem esperar ter as contrações, ter um indício de que o bebê tá

pronto pra nascer?”. Ele falou: “Não, a gente pode marcar. Eu tenho quarta-feira que

102

vem, se você quiser marcar a cesárea, eu faço pra você. Se não, você pode procurar

outro médico”. (Depoimento, O renascimento do parto).

Além disso, conforme questionado pelo documentário, um parto normal não é tampouco

interessante para o hospital, afinal o valor cobrado ao plano é o mesmo que no caso de uma

cesariana agendada, o que diferencia é que aquela sala no centro cirúrgico ficará ocupada por um

longo tempo à espera do nascimento daquele bebê.

Sendo assim, os médicos que deram seus depoimentos no documentário lembram que a

obstetrícia é uma função de grande responsabilidade e criticam os baixos valores recebidos dos

planos de saúde e o posicionamento dos médicos.

A gente tem muito mais internações em UTIs nas vésperas de grandes feriados,

porque nas vésperas de grandes feriados as cesáreas ocorrem muito mais. Por que,

evidentemente, querem passar o feriado sem o susto de terem que sair de casa

para atender um parto, mas isso faz parte da nossa escolha, a gente escolheu essa

especialidade. (Dr. Ricardo Chaves, O renascimento do parto)

Outro ponto ressaltado pelo documentário são os mitos que envolvem o parto, em que a

gestante recebe uma série de informações sobre como ter um parto normal envolve mais riscos do

que a opção pela cesárea agendada. E também que as mulheres recebem uma série de

justificativas que as “induzem” a uma cesárea eletiva, nas quais as mais citadas pelo filme são:

“circular de cordão”, quando há a ideia de que o bebê com circular de cordão no pescoço pode se

enforcar durante o expulsivo; “mulher que não entrou em trabalho de parto”, já que uma gravidez

saudável pode chegar até as 42 semanas de gestação, se houver interrupção da gravidez antes

disso a mulher não tem como entrar em trabalho de parto; e “falta de dilatação”, que pode

acontecer, porém apenas um número muito reduzidos de mulheres apresenta de fato esse

problema, e no mais é compreendido que a “falta de dilatação” está associada a um atendimento

que não deixa a parturiente segura e/ou que ainda não chegou a seu estágio final de trabalho de

parto.

Também são trazidas pelo documentário informações a respeito da cesariana, que

contrariando o senso comum, trata-se de uma cirurgia complexa com riscos para a mãe e para o

feto. A ideia é a de que a cesárea é a maneira mais segura de nascer, no entanto, ela proporciona

103

uma série de riscos a curto e a longo prazo para a mãe e o maior risco para o bebê é das

consequências de uma prematuridade.

Segundo a médica epidemiologista e PhD, Daphne Rattner, as ultrassonografias são úteis

para definir a idade gestacional até as 13 semanas de gestação, depois disso, estudos apontam que

elas apresentam uma margem de erro de até duas semanas, para mais ou para menos, e que na

maior parte dos casos, essa variação é para menos. O que significa dizer que uma mulher que tem

a sua cesárea marcada às 38 semanas de gestação, pode ter um feto com idade gestacional de 36

semanas. A prematuridade traz uma série de problemas respiratórios para o bebê, aumenta os

índices de internações em unidade de tratamento intensivo e também as mortes neonatais.

Para a coordenadora do Núcleo de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, Esther Vilela,

o que vivemos hoje pode ser considerado como uma “epidemia oculta”, que ocorre em classes

sociais mais elevadas, em que as cesáreas sem indicações são compreendidas como “normais”, o

que eleva os nossos índices de bebê prematuros.

O documentário chama atenção para o fato de que a Medicina passou a compreender que

as mulheres são incompetentes para dar à luz aos seus filhos, que os corpos delas são defeituosos

e que sempre serão necessárias as intervenções médicas para salvar a vida da mãe e do bebê.

Além desses temas citados, outras questões foram abordadas, como a noção de dor no

parto, as intervenções médicas, a medicina baseada em evidências científicas, o parto, o “parto

humanizado” e o parto domiciliar.

O título do documentário é inspirado na obra de mesmo nome, do médico francês Michel

Odent, que revolucionou as formas de assistência obstétrica e é ainda hoje é a maior referência

para o grupo de ativistas do “parto humanizado”.

104

(Doc. 7 – Cartaz disponibilizado pela produção do filme, citando o médico francês Michel Odent sobre a

qualidade dos nascimentos. Fonte: http://www.orenascimentodoparto.com.br/)

3.6. Michel Odent e outra maneira de compreender o parto

Michel Odent, médico francês, é um dos nomes mais importantes na questão da

“humanização” do parto e nascimento. Foi a partir de suas experiências como chefe de cirurgia

geral do hospital de Pithiviers que ele se deparou com uma forma simples de assistência ao parto,

que resultou num número quase nulo de intervenções cirúrgicas. Em 1962, quando assumiu o

comando do hospital local da cidade, que fica a 100 km de Paris, Odent também passou a

trabalhar na maternidade quando havia necessidade de uma cirurgia cesariana ou um parto com

uso de fórceps. Com o tempo ele se interessou pela maneira como as obstetrizes do hospital

assistiam ao parto, passou a viver mais intensamente a rotina da maternidade e a se questionar a

respeito de uma série de protocolos realizados com mulheres em trabalho de parto e seus bebês.

O momento era de novas propostas e descobertas sobre o parto e nascimento, e a equipe

em Pithiviers passou a estudar formas para melhorar as condições de assistência à parturiente,

focando na privacidade e no apoio psicológico, para assim diminuir as intervenções. Aos poucos

105

foram abandonando “dogmas” e realizando pequenas modificações, e Odent propôs que a

maternidade abrigasse a salle sauvage, um local que priorizava a privacidade, conforto e a

liberdade dos movimentos da parturiente. Pintada em tons fortes, foi mobiliada para favorecer

que a mulher em trabalho de parto se movimentasse livremente, com cadeira para parto e

banheira, totalmente oposta aos ambientes hospitalares tradicionais. A ideia da equipe era de que

“(...) o lugar de se dar à luz deve ser semelhante ao de se fazer amor” (Odent, 2002).

A partir de sua experiência em Pithiviers, as propostas de Odent ganharam o mundo.

Desta maneira, foi difundida a atenção que o médico dá para a descoberta cientifica de que os

hormônios liberados durante o ato sexual são os mesmos produzidos no trabalho de parto.

Segundo ele: “Para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar a forma de nascer.”

(Foto 3.9 – Michel Odent sendo entrevistado pela emissora Band na marcha do parto em casa. Em

sua camiseta está escrito: “Eu nasci em casa”. Rio de Janeiro, 17 de junho de 2012. Créditos: Eloá

Chaignet)

3.7. “Violência obstétrica é violência contra a mulher”

106

Outro documentário que também aborda a questão da violência obstétrica,ganhou

visibilidade em novembro de 2012. O documentário Violência obstétrica: a voz das

brasileiras”20, foi produzido a partir dos relatos de mulheres que sofreram violência no parto. As

colaboradoras enviaram gravações feitas de forma caseira com webcam, câmera de celular e

máquina digital para um grupo de pessoas formado por ativistas do “parto humanizado”. Eles se

organizaram através da internet e ganharam grande repercussão.

Uma das ativistas produziu também uma ação virtual contra a violência obstétrica. Autora

do blog “Cientista que Virou Mãe”, muito conhecido nos espaços de “maternagem”21, é Ph.D em

Farmacologia e abandonou a área após o nascimento da filha. Moradora de Florianópolis, ela

regressou à universidade para fazer um novo doutorado em Saúde Coletiva e trabalha a questão

da “violência obstétrica”.

A ativista propôs um questionário online sobre o tipo de atendimento recebido pela

parturiente nos hospitais e maternidades brasileiras. Na pesquisa, 1966 mulheres responderam,

anonimamente, ao questionário que era composto por seis questões que visavam traçar o perfil

sociodemográfico das mulheres e mais sete questões sobre a conduta dos profissionais, cuidado,

desejo e satisfação no parto. Na pesquisa, 82% das mulheres responderam o teste a respeito do

nascimento do primeiro filho: 52% foram cesáreas e 48% partos normais – resultado que está de

acordo com as informações do DataSUS de 2011. Dessas mulheres, 84% não tiveram

acompanhamento de doula durante o trabalho de parto e 74% se declararam brancas.

20 Link: http://www.youtube.com/watch?v=eg0uvonF25M 21 Maternagem é um conceito compreendido como exercer a maternidade e a relação de cuidado da mãe com o seu bebê.

107

(Doc. 8 – Pesquisa sobre Violência Obstétrica. Sobre o local de parto.

FONTE: Blog Cientista que virou mãe)

(Doc. 9 – Pesquisa sobre Violência Obstétrica. Sobre o atendimento ao parto.

FONTE: Blog Cientista que virou mãe)

108

(Doc. 10 – Pesquisa sobre Violência Obstétrica. Relatos sobre o atendimento ao parto.

FONTE: Blog Cientista que virou mãe)22

A partir dessa pequena parte dos dados produzidos pelo teste online é possível perceber

que, em primeiro lugar, apenas 75 mulheres declararam que tiveram partos domiciliares, o que

reforça a ideia de que esta opção ainda é feita por um grupo muito restrito, como nos indicou a

parteira Heloísa Lessa, e que mais da metade desse grupo pariu em hospital particular com

convênio médico. Seguido pela porcentagem de 26% de partos em hospitais do SUS. O que não

significa dizer que essas 510 mulheres não têm planos de saúde, já que através da minha

participação nos grupos de discussão sobre parto, ficou claro que muitas mulheres, consumidoras

de planos de saúde, optavam por hospitais públicos na hora do parto visando evitar uma cesárea

desnecessária, ou como o jargão do grupo, a “desnecesárea”. Mais abaixo os 12% de partos em

hospitais particulares custeados por recursos próprios das parturientes, nos mostra que um parto

particular é caro e restrito a uma pequena parcela da sociedade, sendo que praticamente todos os

obstetras que se autointitulam “humanistas” – ou seja, que realizam “partos humanizados” – não

atendem, ou não fazem partos pelos planos de saúde. Se por um lado, aparentemente, os dados

22 Pesquisa na íntegra em: http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2012/05/teste-da-violencia-obstetrica.html

109

dessa pesquisa nos mostram que essas mulheres podem pertencer a estratos mais abastados da

sociedade, por outro, quando questionadas se foram acompanhadas por doulas, 84% das mulheres

afirmaram que não tiveram acesso a esse tipo de profissional durante o parto. Por não haver no

questionário perguntas sobre renda familiar, não é possível saber ao certo se essas mulheres não

foram acompanhadas por doulas pelo fato de ser um serviço caro e, por isso, inacessível a boa

parte das parturientes, por desconhecerem esse tipo de trabalho, por não ser permitido o

acompanhamento com doula no hospital/maternidade de escolha, ou, simplesmente, por não

desejarem.

A questão da violência obstétrica se torna evidente na pesquisa quando 53% das mulheres

que responderam ao questionário julgam que foram atendidas de maneira “respeitosa”. Nesta

questão as mulheres poderiam marcar mais de uma opção, dessa maneira, houve 2014 respostas

que afirmam ter sofrido algum tipo de maus tratos, como vista acima (Doc. 9). As opções de

violência obstétrica foram: ter sido ameaçada durante o trabalho de parto, coagida a não gritar,

repreendida com gritos, criticada por suas reações, exposta a comentários depreciativos e tratada

como inferior ou incapaz.

Comparativamente, se colocarmos de um lado a porcentagem de cesáreas (52%) e, do

outro, a fatia de partos feitos pelo convênio médico (56%), podemos nos questionar a respeito da

possível quantidade de cesáreas eletivas em hospitais da rede privada. Deixar que uma gestante

entre em trabalho de parto naturalmente, significa dizer que o médico pode ser acionado no meio

da madrugada, nos finais de semana e feriados, nos dias de festas dos filhos, dos parentes, dos

amigos. Além disso, para o parto de uma primípara – mulher que pare pela primeira vez – a

expectativa é de que o trabalho de parto dure em torno de 12 horas, ou seja, o médico obstetra irá

acompanhar aquela parturiente por todo processo. Segundo a organização da marcha pela

humanização do parto, o maior plano de saúde do Rio de Janeiro paga para os seus médicos o

valor de R$ 367,20 pelo acompanhamento de um parto normal. E R$ 345,60 por uma cesariana.

Baseado nesses dados e numa tentativa de compensar os baixos valores recebidos dos

planos de saúde, em janeiro de 2013, o Conselho Regional de Medicina liberou os obstetras a

cobrarem honorários pelo acompanhamento do trabalho de parto. Mesmo a mulher que tem o

plano de saúde, se optar por fazer o parto com o obstetra que a atendeu durante o pré-natal

poderá ser cobrada da taxa extra.

110

Em um primeiro momento, a ANS (Agência Nacional de Saúde) legitimou a orientação

do conselho, porém, após o PROCON-SP se posicionar contrário à decisão, por entender que as

operadoras devem garantir o atendimento e que a cobrança da taxa extra prejudica a consumidora

na relação entre médicos e planos de saúde, a ANS voltou atrás. E em menos de uma semana

depois da declaração, o órgão disse que os médicos não podem cobrar a taxa extra devido a

questões contratuais que preveem que o plano deve pagar o parto integralmente. Porém, os

médicos não foram proibidos de cobrarem a taxa extra e, após entrar em contato com alguns

médicos, descobri que uma parte deles realmente está fazendo a cobrança, em que o valor

cobrado chega a 5 mil reais.

Os ativistas do “parto humanizado” alegam que a ideia passada pelos médicos obstetras

de que a cesariana é uma cirurgia simples e tão ou mais segura para mãe e bebês do que um parto

vaginal é questionável. Segundo eles, a cesárea é uma cirurgia de grande porte com todos os

riscos que uma cirurgia complexa envolve. São cortadas sete camadas, entre peles, tecidos,

músculos e útero para a retirada do feto, tornando elevado o risco de infecção. A cirurgia com

indicação médica é compreendida pelo grupo como sendo capaz de salvar a vida a mãe e do bebê

e, por isso, de grande valia, entretanto, o que é amplamente contestado são as intervenções

cirúrgicas desnecessárias.

Um dos blogs23 mais “famosos” entre os ativistas do “parto humanizado” é escrito pela

médica obstetra que se dedica fortemente à questão, Melania Amorim24. Entre as postagens mais

difundidas do blog está a grande lista de indicações reais e fictícias para a realização de uma

cesárea25. Isso porque, segundo o grupo, faz parte da realidade obstétrica do Brasil as “falsas”

indicações para a realização de uma cesárea, que geralmente ocorrem fora do trabalho de parto e

muito têm a dizer sobre os índices de prematuridade em recém-nascidos no país. As “falsas”

indicações que são mais relatadas pelas mulheres são: bacia estreita, gestante idosa (com idade

superior a 35 anos), apresentação de pouco líquido amniótico, apresentação de muito líquido

amniótico, circular de cordão, cesárea anterior, bebê grande demais, bebê “alto” (que ainda não

está encaixado para o nascimento), gestação de mais de 39 semanas, bolsa rota (rompimento da

bolsa das águas onde fica o bebê no útero), entre outras.

23 Link: http://estudamelania.blogspot.com.br/ 24 Médica obstetra da Paraíba, PhD em Tocoginecologia pela Unicamp e em Saúde Reprodutiva pela OMS. 25 Link: http://estudamelania.blogspot.com.br/2012/08/indicacoes-reais-e-ficticias-de.html

111

Segundo a parteira Ana Cristina Duarte e a médica Simone Diniz (2004) uma cesárea por

indicação médica inadequada coloca em risco a vida da mãe e do feto, podendo causar, além do

risco de morte materna de 3 a 8 vezes maior em comparação com um parto vaginal, riscos

imediatos ou a curto prazo, riscos a longo prazo e para as futuras gravidezes. Em princípio os

riscos são de hemorragia, infecção pélvica, pneumonia, necessidade de uma nova operação e

septicemia. Pode causar febre, hematoma, infecção no trato urinário, do útero ou da ferida

cirúrgica, paralisia do intestino ou da bexiga. Pode também ocorrer queda na fertilidade, dor na

relação sexual, risco quatro vezes maior de descolamento de placenta numa gravidez futura –

quando a placenta se descola do ponto onde está fixada antes do parto, entre outros. Para o bebê o

maior problema de uma cesárea eletiva é o risco da prematuridade, na qual o bebê é retirado antes

de estar totalmente pronto para nascer. Isso acarreta bebês de baixo peso, hipertensão pulmonar,

desconforto respiratório podendo haver necessidade de cuidados intensivos ou semi-intensivos

com esses bebês.

O que desencadeia o trabalho de parto ainda é um mistério para os médicos, mas segundo

o obstetra Michel Odent, os bebês que passam pelo trabalho de parto recebem estímulos físicos e

hormonais que são fundamentais para amadurecer os sistemas respiratório, imunológico e

nervoso, e assim, nascem mais fortes para suportar a mudança de ambiente.

112

CONCLUSÃO

Ao final dessa dissertação de mestrado, mais um fato movimentou o grupo de ativistas do

“parto humanizado” e ganhou amplo destaque na mídia. Na madrugada do dia 1º de abril de 2014,

Adelir Carmen Lemos de Góes, grávida, 29 anos, dona de casa, moradora da cidade de Torres, no

Rio Grande do Sul, já era mãe de dois filhos nascidos por meio de uma cesariana, desejava um

parto normal como desfecho dessa gestação, viu seus planos serem modificados.

Com 40 semanas de gestação, na tarde do dia 30 de março, acompanhada pelo marido e

por uma doula e já sentindo as primeiras contrações do parto, Adelir foi a um hospital público

para fazer uma avaliação, já que se queixava de dores lombares. Durante o atendimento, a médica

obstetra que a atendeu, realizou uma série de exames que constataram que a mãe e o bebê

estavam bem. A médica argumentou que seria necessária uma cesárea pois o bebê estava pélvico

e pelo fato da parturiente já ter realizado duas cesáreas anteriores, o que, segundo afirma o grupo

a favor da humanização, são ambas indicações irreais de cesárea. Adelir recusou a internação e

assinou um termo de compromisso, pois desejava voltar para casa e esperar o trabalho de parto

evoluir.

No entanto, na madrugada do dia 1º de abril, a parturiente estava em casa, já em franco

trabalho de parto, e apenas esperando o momento certo para ir para o hospital, quando um grupo

de policiais bateram à porta de sua casa e comunicaram que ela deveria ser levada imediatamente

para o hospital. Com uma ambulância a postos, eles tinham em mãos uma ordem judicial, que

obrigava Adelir a ir, com escolta policial, imediatamente para o hospital para que fosse realizada

uma cirurgia cesariana de emergência, com o intuito de “proteger a vida do nascituro”, ainda que

ferisse os diretos da mãe.

O marido da parturiente foi ameaçado de prisão na frente dos filhos mais velhos e a

parturiente aceitou ir para o hospital, entretanto, questionou se não poderia ir a outro hospital,

pois sentiu medo de passar por maus-tratos devido a toda aquela situação, e teve seu pedido

recusado. Então, a cesárea foi realizada, Adelir não teve direito a acompanhante do parto, e,

assim, o hospital infringiu a lei federal 11.108/2005.

Segundo as ativistas do “parto humanizado”, no Brasil, o direito do feto se sobrepõe ao da

mãe, no entanto, nem por isso, as cesáreas eletivas deixam de ser realizadas sem indicações reais,

113

ainda que os níveis de prematuridade sejam alarmantes e levem todos os dias muitos recém-

nascidos para unidades de tratamento intensivo neonatal.

Diante disso, os ativistas a favor da humanização do nascimento organizaram um ato

nacional contra a violência obstétrica, divulgado como “Somos todas Adelir”. Assim, 32 cidades

realizaram simultaneamente uma vigília que teria início no dia 11 de abril de 2014 e se estenderia

até a noite.

A partir do fato ocorrido com Adelir, o Ministério Público abriu um inquérito para apurar

o acontecido. Se no capítulo anterior, questionei uma possível criminalização do parto domiciliar,

o caso da mulher que foi obrigada pela justiça a realizar uma cirurgia cesariana contra a sua

vontade, pode nos apontar que, na realidade, está ocorrendo um processo de criminalização do

parto normal.

Dessa forma, para esse momento de considerações finais, gostaria de destacar três

aspectos que envolvem a questão dos modelos de assistência obstétrica e o movimento de

humanização do parto.

Em primeiro lugar, que a questão da violência obstétrica e a forma como os partos são

assistidos atualmente no Brasil, passaram a fazer parte da ordem do dia. Isso ocorreu após o

processo desencadeado pela reportagem exibida no programa Fantástico, que fez com que os

ativistas do “parto humanizado” saíssem em defesa do obstetra Jorge Kuhn diante da denúncia

feita pelo CREMERJ e repassada ao órgão de São Paulo, área de atuação do obstetra, e, ainda,

reivindicassem o direito de escolha do local de parto. Um mês após a marcha do parto em casa, o

CREMERJ voltou a se posicionar, e dessa vez, publicou resoluções que impossibilitavam os

médicos a atuarem em partos domiciliares e que não reconheciam o trabalho das doulas. Assim,

outra marcha foi organizada, dessa vez a favor da “humanização” do nascimento. Foi nessa

mobilização que as pessoas passaram a se apropriar mais frequentemente da expressão “violência

obstétrica”. E assim, iniciou-se uma série de debates e mobilizações acerca do tema e em torno da

ideia de “parto humanizado”.

Com isso, a questão dos modelos de assistência ao parto no Brasil e, consequentemente, o

grande número de cesáreas realizadas no país, passou a ser tratada com mais frequência pela

grande mídia. Depois de vir à tona, a questão acabou transformando-se em um problema público

que vem mobilizando o poder judiciário, profissionais da saúde, pesquisadores, e instituições que

se dedicam aos cuidados com as mulheres, assim como as próprias pacientes.

114

Ao mesmo tempo em que há a tentativa de conscientização pela escolha de um modelo

obstétrico mais respeitoso para a parturiente, por parte dos ativistas a favor da humanização do

parto e, também, de instituições, sejam elas públicas ou privadas, o “parto humanizado” não é de

fácil acesso para toda a sociedade. Em primeiro lugar, porque os médicos que realizam esse tipo

de atendimento, em sua grande maioria, não são credenciados a planos de saúde, por isso, as

consultas pré-natais e o parto são pagos de forma particular, com os próprios recursos da mulher.

As parteiras, enfermeiras obstétricas e doulas não são profissionais a que o plano de saúde dá

cobertura, ou seja, elas também são pagas de maneira particular. E mesmo as casas de parto, que

apesar de termos acesso a um considerável número de unidades públicas, existem também em sua

forma privada, o que, por sua vez, também não é custeado pelo plano de saúde. Além disso,

temos poucos hospitais na rede pública que possuem como missão a assistência “humanizada” ao

parto. São referências a maternidade do Hospital Sofia Feldman, de Belo Horizonte, e no Rio, a

Maternidade Maria Amélia Buarque de Holanda, ainda que esta estejam em processo de

“humanização”, no qual nem todos os médicos são a favor da humanização do nascimento.

Ou seja, ter acesso a uma assistência “humanizada” ao parto não é tão simples e não está

disponível para as mulheres de todos os estratos da sociedade. A partir do trabalho de campo não

foi possível delimitar quem são essas mulheres que optam por um “parto humanizado”, já que os

relatos são de mulheres de todas as camadas sociais que para conquistar o parto que acreditavam

ser o mais alinhado com as suas crenças, pagavam pelo acompanhamento, e, fica claro, que

mesmo as que não dispunham do montante cobrado, foram em busca de maneiras para arrecadar

o valor. Nesse sentido, é comum nesses espaços, como dito anteriormente, que as mulheres façam

rifas, peçam doações, entre outras alternativas.

Por fim, atualmente, o grande número de cesáreas eletivas no país caracteriza um

problema ainda maior quando olhamos para os índices de bebês nascidos prematuramente nas

maternidades do Brasil. O grande problema da prematuridade é compreendido pelo fato de que

quando se agenda a data de uma cirurgia cesariana antes do trabalho de parto, o bebê não está

pronto para nascer, e por não passar pelo processo do trabalho de parto, que, como vimos

anteriormente, é entendido como fundamental para a maturação de alguns órgãos do feto,

enfrenta, com muito mais dificuldade, as adaptações ao novo ambiente.

Assim, segundo os ativistas a favor da humanização do parto, o grande número de

cesáreas realizadas e os altos índices de internações em UTIs neonatal são fatos para serem

115

refletivos pelo modelo obstétrico vigente em nossa sociedade. Além disso, o grupo atenta para o

fato de que cultivou-se a ideia de que a cirurgia cesariana é a forma de nascer mais segura, porém,

na visão dos ativistas, não é o que as estatísticas demonstram – o risco de morte materna é, para

alguns pesquisadores, seis vezes maior, se comparado ao parto normal.

Aqui, ressalto, finalmente, a ideia de que o processo de humanização do parto se constitui

como um problema público, já que ele envolve uma série de emoções, situações sociais, opiniões

públicas, entre outros aspectos. No livro Arenas públicas: por uma etnografia da vida associativa

(2011), os autores buscam tratar da questão das associações a partir de uma etnografia. A respeito

da constituição de um problema social, afirmam:

A emergência de um problema público não é simplesmente cognitiva. Ela envolve

afetividades, sensibilidades e moralidades coletivas; envolve experimentações de

sentimentos de amor, do ódio, de medo, de injustiça, de esperança, de fatalidade, de

entusiasmo e de transtorno, que já são formas de definição de situações sociais e que já

tocam o senso comum. Ela movimenta as referências sensíveis através das quais as

informações são filtradas e ordenadas, não em quadros racionais ou intelectuais, mas

nos quadros da percepção imediata ou da inferência prática. Ela induz paisagens

normativas, articuladas em torno de categorias morais, onde o conflito de interesse é

apagado pelas questões de decência e de respeito, de humilhação e de reconhecimento,

de desprezo e de honra, de liberdade e de justiça. Estes diferentes elementos são

constitutivos do que chamamos “opiniões públicas”. As associações são caixas de

ressonância desse processo. Mobilizando-se, elas engendram novos personagens (...) e

um conjunto de histórias, de racionalização e de argumentos que estão relacionados

com esses novos cenários e atores. Elas difundem formas de compaixão e de indignação,

de desconfiança política ou de crença ideológica e desenham de novo o mapa das

condutas boas e más, toleráveis e inaceitáveis. A partir dessas novas gramáticas, são

relançados outros fluxos de protesto que exprimem sentimentos de escândalo e de

reprovação, formulam demandas de reparações e de desculpas. (VEIGA, MOTA &

CEFAÏ, 2011: 20-21).

Dessa maneira, podemos pensar sobre como o movimento de humanização do parto

propõe a emergência de problema público ao colocar em questão os modelos de assistência ao

parto, até então nunca questionados. Nesse sentido, conforme a passagem acima, podemos

116

perceber que para o grupo em questão o problema do modelo obstétrico dominante envolve

emoções e moralidades compartilhadas entre aquelas pessoas. Os ativistas compreendem as

situações sociais como injustiça e transtorno, afinal como nos lembra a informante Ligia, “a

cesárea é o ponto fora da curva”. E, assim, o grupo produz categorias morais e classifica as

condutas obstétricas como boas, aceitáveis ou más, e as entendem como violência obstétrica.

Nesse sentido, considero que a discussão levantada na presente dissertação de mestrado

tem como intuito contribuir para as discussões sobre a maneira como o país está conduzindo o

nascimento da população e suas consequências para a sociedade. São pequenas partes de uma

mesma questão que envolve muito mais do que apenas a mulher e seu filho, mas que dizem

respeito a aspectos caros para a população.

117

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________. “Conselho Federal discutirá medida do Cremerj de proibir médicos em partos

residenciais. Também foi proibida a ação de parteiras em ambientes hospitalares” em

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proibir-medicos-em-partos-residenciais-55627488

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________. “Conselho de Enfermagem fará reunião para debater proibição de médicos em

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reuniao-para-debater-proibicao-de-medicos-em-partos-domiciliares-558616222

________. “Cremerj vai recorrer de decisão que permite parto domiciliar. Para a Justiça, não

cabe ao Cremerj impedir que parteiras exerçam suas atividades” em 31/07/2012:

http://oglobo.globo.com/rio/cremerj-vai-recorrer-de-decisao-que-permite-parto-domiciliar-

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________. “ANS diz que médico não pode cobrar adicional por partos” em 17/01/2013:

http://oglobo.globo.com/economia/ans-diz-que-medico-nao-pode-cobrar-adicional-por-partos-

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________. “Planos de saúde: cobrança de adicional para parto só com alteração de contrato,

diz ANS. CFM liberou obstetras para cobrarem honorários por esse procedimento” em

21/01/2013: http://oglobo.globo.com/defesa-do-consumidor/planos-de-saude-cobranca-de-

adicional-para-parto-so-com-alteracao-de-contrato-diz-ans-735204999

________. “Procon-SP: cobrança de honorários para acompanhamento de trabalho de parto é

‘questionável’. Comunicado diz consumidora não pode ser prejudicada na relação entre médicos

e operadoras de saúde” em 21/01/2013: http://oglobo.globo.com/defesa-do-consumidor/procon-

sp-cobranca-de-honorarios-para-acompanhamento-de-trabalho-de-parto-questionavel-73527633

REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS

“O Renascimento do Parto” (Brasil, 2013, cor, 90 min.). Filme dirigido por Eduardo Chauvet.

Roteiro: Érica de Paula. Produção: Érica de Paula. Com Michel Odent, Melania Amorim,

Heloísa Lessa, Ana Cristina Duarte, Márcio Garcia, Esther Vilela, Ricardo Jones, Ricardo

Chaves, Robbie Davis-Floyd.

123

“A Dor Além do Parto” (Brasil, 2013, cor, 20 min.). Documentário produzido por Letícia

Campos Guedes, Amanda Rizério, Nathália Machado Couto e Raísa Cruz. Documentário

em vídeo realizado como Trabalho de Conclusão de Curso da Universidade Católica de

Brasília. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cIrIgx3TPWs

“Violência Obstétrica – A Voz das Brasileiras” (Brasil, 2012, cor, 51 min.). Documentário

produzido por Bianca Zorzam, Ligia Moreiras Sena, Ana Carolina Franzo, Kalu Brum e

Armando Rapchan. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eg0uvonF25M

124

ANEXOS

1. Glossário de campo

Analgesia: qualquer recurso medicamentoso para diminuição da dor.

Anestesia: utilização de drogas para tirar a sensibilidade à dor.

Apgar: avaliação da vitalidade do bebê ao nascer. O teste é realizado no primeiro e no quinto

minuto de vida e avalia cinco aspectos: tônus muscular, cor, respiração, frequência cardíaca e

irritabilidade reflexa ao cateter nasal – quando há necessidade de aspiração. A nota vai de 0 a 10.

Aspiração: quando se introduz uma sonda nas narinas do recém-nascido para sugar o conteúdo

dos pulmões.

Baixo risco (gestante de, parto de): grávidas ou parturientes que não apresentam fatores de

risco como hipertensão, eclampsia, diabetes, parto prematuro, gravidez de gêmeos, entre outros

aspectos.

Bolsa rota: quando a bolsa se rompe antes do trabalho de parto.

Canal de parto: caminho que o bebê percorre do útero até a vulva.

Casas de parto: locais onde se realizam partos normais com baixos índices de intervenções, já

que não se podem realizar procedimentos invasivos fora do centro cirúrgico. Os partos são

acompanhados por enfermeiras obstétricas.

Cesárea: cirurgia para a retirada do bebê do útero da mãe.

Cesárea eletiva: cirurgia realizada antes do trabalho de parto.

Circular de cordão: quando o cordão umbilical faz uma ou mais voltas ao redor do pescoço do

bebê. Pode ocorrer circular de cordão em outras partes do corpo do feto, como nos pés e no tórax.

Colo do útero: parte que separa a vagina do útero e que durante o trabalho de parto deverá

atingir a dilatação de 10 centímetros para a passagem do bebê. A medição é realizada a partir da

introdução de dois dedos na vagina da mulher.

Contrações uterinas: contrações dos músculos do útero que fazem o bebê nascer.

COREN: Conselho Regional de Enfermagem.

CREMERJ: Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro.

CREMESP: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

CRM: Conselho Regional de Medicina.

125

Descolamento de placenta: quando a placenta se descola do ponto em que estava fixa à parede

do útero.

“Desnecesárea”: categoria utilizada pelo grupo de ativistas do “parto humanizado” para

denominar as cirurgias cesarianas realizadas sem necessidade ou por indicação médica.

Desproporção céfalo-pélvica: quando a cabeça do bebê é maior do que o espaço para a

passagem pela pélvis da mãe.

Dilatação: abertura gradativa do colo do útero durante o trabalho de parto para o nascimento do

bebê.

Doula: pessoa que acompanha a mulher em trabalho de parto, dando apoio emocional à mulher.

Educadora perinatal: é quem atua orientando os casais grávidos sobre a gravidez, o parto e o

pós-parto. A educadora perinatal também auxilia a mulher nos cuidados com o bebê e na

amamentação.

Enema: lavagem intestinal realizada para que a mulher não evacue durante o trabalho de parto. A

lavagem é feita com a aplicação de uma solução que faz com que o conteúdo do intestino seja

liberado.

Enfermeira obstétrica: enfermeiras com capacitação em obstetrícia, conhecidas como “parteiras

profissionais”.

Episiotomia: corte feito na vagina da mulher para facilitar o momento do expulsivo.

Equipe de backup: para os partos domiciliares é comum que a gestante tenha articulado uma

equipe que a receba no hospital, caso algum tipo de intervenção seja necessária.

Expulsivo é o momento em que o bebê passa pela vagina da mãe e nasce.

Fórceps: ferramenta médica para extrair o bebê de dentro da mãe nos partos normais.

Atualmente, seu uso é aconselhado apenas como forma de alívio, quando o bebê já está próximo

ao final do canal de parto.

Indução: uma gestação saudável pode durar entre 38 e 42 semanas de gestação, quando ainda

sim a mulher não entra em trabalho de parto, os médicos realizam uma tentativa de dar início ao

processo. Além das drogas sintéticas – como, por exemplo, a medicação Cytotec, também

utilizada para provocar o aborto – que desencadeiam o trabalho de parto, alguns médicos utilizam

também a acupuntura como forma de estimular o início do processo.

Intervenções de rotina: nome utilizado para designar os procedimentos realizados sem

necessidade, que são feitos por “costume” mas sem indicação de necessidade real.

126

Intraparto: o que ocorre durante o trabalho de parto e parto.

Laceração vaginal: cortes que ocorrem naturalmente durante o expulsivo do bebê. A diferença

entre a laceração vaginal e a episiotomia é, que, por ocorrer naturalmente, a laceração “rasga”

apenas os tecidos mais superficiais do períneo, o que facilita a recuperação da mãe. As lacerações

podem ocorrer em diversos graus e, nos casos mais graves, a episiotomia é um recurso para

proteger o períneo.

Lei do acompanhante: Lei federal que assegura à parturiente o direito de ser acompanhada

durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, por uma pessoa de sua escolha.

Líquido amniótico: líquido que preenche o saco amniótico e protege o bebê durante toda a

gestação.

Manobra de Kristeller: manobra obstétrica realizada com o intuito de auxiliar o nascimento do

bebê. Na manobra de Kristeller, é necessária a ajuda de uma pessoa que se posiciona em cima da

parturiente e empurra sua barriga. Essa manobra, além de oferecer risco de ruptura uterina e

laceração vaginal em alto grau, pode provocar sofrimento fetal, diminuição da oxigenação do

bebê e até a quebra de ossos do nascituro.

Maternagem: cuidados que a mãe tem com o seu bebê.

Mecônio: é o primeiro conteúdo do intestino do bebê. Esse conteúdo não é considerado como

fezes, é denso como uma graxa e tem coloração verde escura. Em alguns casos o feto libera o

mecônio ainda dentro da barriga, considerado como um risco para a maioria dos médicos.

Medicina baseada em evidências científicas: é o termo utilizado para designar a prática de uma

medicina focada no indivíduo e não em “consensos”. Ou seja, a escolha por tratamentos,

intervenções e até mesmo exames, que sejam necessários para o caso de cada um.

Neonatal: diz respeito aos 28 primeiros dias de vida do bebê.

Nitrato de prata: solução pingada nos olhos do recém nascido, que provoca uma conjuntivite

química resultando em um processo inflamatório com efeito antibiótico secundário. O nitrato de

prata é usado para prevenir o contato ocasionado pelo canal de parto com a bactéria que causa a

gonorreia, caso a mãe esteja infectada – entretanto, seu uso é realizado rotineiramente. Nos bebês

do sexo feminino, essa mesma solução é pingada na vagina.

Obstetrícia: especialidade médica que cuida da gravidez, parto e pós-parto.

Obstetriz: pessoa com capacitação em obstetrícia, um curso de formação que tem duração de 3

anos e é oferecido pela USP. Algumas pessoas entendem as obstetrizes como parteiras.

127

Ocitocina: hormônio que provoca as contrações uterinas e é conhecido como “o hormônio do

amor”. Há também a ocitocina sintética que é utilizada para provocar ou intensificar as

contrações uterinas em mulheres em trabalho de parto.

Parteira: mulher que acompanha o trabalho de parto. Apesar de ser um termo utilizado também

para designar as enfermeiras obstétricas, a figura da parteira ainda é vinculada à “parteira

tradicional”. Que é quem realiza os partos em ambientes rurais, interior dos estados e locais onde

os hospitais são de difícil acesso.

Parto domiciliar: parto que acontece em casa.

Parto humanizado: é uma forma de assistência ao parto, focada na saúde da mãe e do bebê. No

parto humanizado não são realizadas intervenções médicas sem indicação e a mulher recebe todo

o apoio para que seja a protagonista do processo, que ocorre da maneira mais natural possível.

Parto operatório: parto com utilização de fórceps ou vácuo-extrator.

Parto vaginal: o mesmo que parto normal.

Pélvico (bebê, parto): bebê pélvico é aquele que se encontra “sentado” no útero. O contrário de

pélvico é cefálico, quando o bebê está de cabeça para baixo. Alguns médicos não realizam partos

de bebês pélvicos e outros utilizam o recurso da versão fetal por manobra externa.

Perinatal: período que antecede o parto e vai até o 6º dia de vida do bebê.

Períneo: músculo localizado entre a vagina e o ânus.

Placenta: órgão que oferece o suprimento de nutrientes, oxigênio e sangue para desenvolvimento

do bebê.

PNAC: Parto Normal Após Cesárea.

Ponto do marido: na sutura da episiotomia, o último ponto é chamado de ponto do marido, pois

é realizado para apertar a entrada da vagina.

Prematuridade: bebê que nasce com menos de 37 semanas de gestação. O contrário de

prematuro é “a termo”, que são os bebês que nascem com idade gestacional entre 38 e 42

semanas.

Primigesta: mulher grávida de seu primeiro filho.

Prolapso de cordão: quando, durante o trabalho de parto, o cordão umbilical aparece antes da

cabeça do bebê, causando grande risco de morte para o feto.

Puerpério ou pós-parto: consiste no período de 40 dias após o nascimento do bebê.

128

Relato de parto: é o relato da experiência da mulher durante o trabalho de parto e parto, muito

comum nos ambientes do “parto humanizado”.

Rodas de barrigas: encontros de casais grávidos para troca de experiências.

Ruptura da bolsa: quando a bolsa que envolve o bebê e carrega o líquido amniótico se rompe.

Pode ocorrer naturalmente ou artificialmente – na tentativa de acelerar o trabalho de parto.

Ruptura uterina: quando o útero se rompe durante a gravidez ou parto.

Septicemia: infecção generalizada.

Sofrimento fetal: quando o suprimento de oxigênio do bebê é comprometido, podendo ser

parcial, total ou definitivo.

Toque vaginal: exame realizado para medir a dilatação e o posicionamento do útero e do bebê.

Tricotomia: raspagem dos pelos pubianos.

Vácuo-extrator: instrumento médico utilizado para puxar o bebê no canal de parto. Consiste em

uma ventosa que é posicionada na cabeça do bebê e uma bomba a vácuo que faz a pressão para

ajudá-lo a sair.

VBAC: Vaginal Birth After Cesarean, o mesmo que PNAC

Versão fetal por manobra externa: manobra utilizada para mudar a posição em que o bebê se

encontra. No caso do bebê que está sentado, ela é utilizada para torná-lo cefálico para o parto.

Alguns profissionais realizam a versão durante o trabalho de parto, se a bolsa estiver íntegra, ou

seja, não estiver rompida.

Violência obstétrica: apesar de não ser reconhecida como violência contra a mulher pela ONU,

uma em cada quatro mulheres sofre violência obstétrica durante o parto. São compreendidas

como formas de violência obstétrica procedimentos invasivos desnecessários, o que inclui a

cesariana, tratamento hostil com a parturiente, proibição de consumo de água, alimentação,

movimentação livre durante o parto, do acompanhamento de uma pessoa de sua escolha ou da

busca de posições mais confortáveis para o alívio da dor, entre outras possibilidades.

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2. Petição pública contra a denúncia do CREMERJ

“Nós, médicos humanistas, enfermeiras-obstetras e obstetrizes, todos os profissionais,

entidades civis, movimentos sociais e usuárias envolvidos com a Humanização da Assistência ao

Parto e Nascimento no Brasil, vimos através desta presente Carta manifestar o nosso repúdio à

arbitrária decisão do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMERJ) de

encaminhar denúncia contra o médico e professor da Universidade Federal de São Paulo

(UNIFESP) Jorge Kuhn, por ter se pronunciado favoravelmente em relação ao parto domiciliar

em recente reportagem divulgada pelo Programa Fantástico, da TV Globo. Acreditamos estar

vivenciando um momento em que nós todos, que atendemos partos e/ou que defendemos o

atendimento ao parto dentro de um paradigma centrado na pessoa, na defesa dos direitos

humanos da parturiente e com embasamento científico, estamos provocando a reação violenta

dos setores mais conservadores da Medicina. Pior, uma parcela da corporação médica está

mostrando sua face mais autoritária e violenta, ao atacar um dos direitos mais fundamentais do

cidadão: o direito de livre expressão.Esse cerceamento da liberdade remete aos sombrios tempos

da ditadura militar e não pode ser admitido na atual sociedade democrática. Médicos (como no

recente caso no Espírito Santo) podem ir aos jornais bradar abertamente sua escolha pela

cesariana, cirurgia da qual nos envergonhamos de ser os campeões mundiais e que

comprovadamente produz malefícios para o binômio mãe bebê em curto, médio e longo prazo.

No entanto, não há nenhuma palavra de censura contra médicos que ESCOLHEM colocar suas

pacientes em risco deliberado através de uma grande cirurgia desprovida de justificativas

clínicas. Bastou, porém, que um médico de reconhecida qualidade profissional se manifestasse

sobre um procedimento que a Medicina Baseada em Evidências COMPROVA ser seguro para

que o lado mais sombrio da corporação médica se evidenciasse. Não é possível admitir o

arbítrio e calar-se diante de tamanha ofensa ao direito individual. Não é admissível que uma

corporação persiga profissionais por se manifestarem abertamente sobre um procedimento que é

realizado no mundo inteiro e com resultados excelentes. A sociedade civil precisa reagir contra

os interesses obscuros que motivam tais iniciativas. Calar a boca das mulheres, impedindo que

elas escolham o lugar onde terão seus filhos é uma atitude inaceitável e fere os princípios

básicos de autonomia. Neste momento em que o Brasil ultrapassa inaceitáveis 50% de

cesarianas, sendo mais de 80% no setor privado, em que a violência institucional leva à

130

agressão de mais de 25% das mulheres durante o parto, em vez de se posicionar veementemente

contrários a essas taxas absurdas, conselhos e sociedades continuam fingindo que as ignoram,

ou pior, as acobertam e defendem esse modelo violento e autoritário que resulta no chamado

"Paradoxo Perinatal Brasileiro". O uso abusivo da tecnologia é acompanhado por taxas

gritantemente elevadas de mortalidade materna e perinatal, isso em um País onde 98% dos

partos são hospitalares!

Escolher o local de parto é um DIREITO humano reprodutivo e sexual, defendido pelas grandes

democracias do planeta. Agredir os médicos que se posicionam a favor da liberdade de escolha é

violar os mais sagrados preceitos do estado de direito e da democracia. Em vez de atacar e

agredir, os conselhos de medicina deveriam estar ao lado dos profissionais que defendem essa

liberdade, vez que é função da boa Medicina o estímulo a uma "saúde social", onde a

democracia e a liberdade sejam os únicos padrões aceitáveis de bem estar. Não podemos nos

omitir e nos tornar cúmplices dessa situação. É hora de rever conceitos, de reagir contra o

cerceamento e a perseguição que vêm sofrendo os profissionais humanistas. Se o CREMERJ

insiste em manter essa postura autoritária e persecutória, esperamos que pelo menos o Conselho

Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP) possa responder com dignidade, resgatando

sua função maior, que é o compromisso com a saúde da população.

Não aceitaremos que o nosso colega Jorge Kuhn seja constrangido, ameaçado ou punido. Ao

mesmo tempo em que redigimos esta Carta aberta, aproveitamos para encaminhar ao CREMERJ,

ao CREMESP e ao Conselho Federal de Medicina (CFM) nossa Petição Pública em prol de um

debate cientificamente fundamentado sobre o local do parto. Esse manifesto, assinado por

milhares de pessoas, dentre os quais médicos e professores de renome nacional e internacional,

deve ser levado ao conhecimento dos senhores Conselheiros e da sociedade. Todos têm o direito

de conhecer quais evidências apoiariam as escolhas do parto domiciliar ou as afirmações de que

esse é arriscado - se é que as há”.

Fonte: Carta divulgada através da página pessoal da rede social Facebook do médico obstetra

Ricardo Herbert Jones

131

3. Release da marcha do parto em casa

“Nos dias 16 e 17 de junho, mulheres ocuparão as ruas de várias cidades brasileiras em defesa

dos seus direitos sexuais e reprodutivos, entre eles a escolha pelo local de parto. No último

domingo, dia 10 de junho, o Fantástico veiculou matéria sobre o parto domiciliar, o que causou

bastante repercussão. O médico-obstetra e professor da UNIFESP, Jorge Kuhn, foi entrevistado e

defendeu o domicílio como um local seguro para o nascimento de bebês de mulheres saudáveis

com gravidezes de baixo risco, segundo preconiza a própria Organização Mundial de Saúde. No

dia 11/06, dia seguinte à matéria, o CREMERJ publicou nota divulgando que fará denúncia ao

CREMESP para punir o médico-obstetra Jorge Kuhn por ter se posicionado favorável ao parto

domiciliar nas condições acima detalhadas. O estudo mais recente publicado no British Journal of

Obstetrics and Gynecology (2009) analisou a morbimortalidade perinatal em uma impressionante

coorte de 529.688 partos domiciliares ou hospitalares planejados em gestantes de baixo-risco:

Perinatal mortality and morbidity in a nationwide cohort of 529,688 low-risk planned home and

hospital births. Nesse estudo, mais de 300.000 mulheres planejaram dar à luz em casa enquanto

pouco mais de 160.000 tinham a intenção de dar à luz em hospital. Não houve diferenças

significativas entre partos domiciliares e hospitalares planejados em relação ao risco de morte

intraparto (0,69% VS. 1,37%), morte neonatal precoce (0,78% vs. 1,27% e admissão em unidade

de cuidados intensivos (0,86% VS. 1,16%). O estudo concluiu que um parto domiciliar planejado

não aumenta os riscos de mortalidade perinatal e morbidade perinatal grave entre mulheres de

baixo-risco, desde que o sistema de saúde facilite esta opção através da disponibilidade de

parteiras treinadas e um bom sistema de referência e transporte. Em repúdio à decisão arbitrária

dos Conselhos de Medicina em punir profissionais que compreendem como sendo da mulher a

decisão sobre o local do parto foi idealizada a MARCHA DO PARTO EM CASA. Entre as

reivindicações, além da defesa pelo direito à liberdade de escolha, pela humanização do parto e

nascimento e pela melhoria das condições da assistência obstétrica e neonatal no país, também

está a denúncia às altas taxas de cesarianas que posicionam o Brasil entre os primeiros colocados

do ranking mundial”.

Fonte: Release recebido via e-mail do grupo de discussão “PartoNatural”.

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4. Resoluções 265/12 e 266//12 do CREMERJ

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136

5. Decisão Proferida Pelo MM Juiz Federal Gustavo Arruma Macedo. 02ª Vara

Federal do Rio de Janeiro

Processo n° 0041307-42.2012.4.02.5101 (2012.51.01.041307-8)

Trata-se de ação civil púbica proposta pelo Conselho Regional de Enfermagem do Rio de Janeiro

COREN/RJ em face do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro CREMERJ pleiteando,

em sede liminar, a suspensão dos efeitos das Resoluções CREMERJ nº 265 e nº 266, de 2012,

que proibiram a participação de médicos nas chamadas ações domiciliares relacionadas ao parto e

assistência perinatal, em equipes de suporte e sobreaviso, previamente acordadas, em partos

domiciliares, assim como a participação de pessoas não habilitadas e/ou profissões não

reconhecidas na área de saúde (entre elas, doulas, obstetrizes e parteiras) durante e após a

realização do parto, em ambiente hospitalar, ressalvados os acompanhantes legais. Sustenta como

fundamento do pedido, em suma, ofensa a diversos dispositivos constitucionais, legais e

infralegais arrolados no bojo da exordial, que garantem à mulher o direito ao parto domiciliar,

assim como ao acompanhamento, em ambiente hospitalar, de pessoa de sua livre escolha.

Inicialmente, afigura-se incontestável a legitimidade do Conselho Regional de Enfermagem na

propositura da presente ação civil pública, porquanto disciplinar e fiscalizar o exercício

profissional, bem como zelar pelo bom conceito da profissão e dos que a exerçam, encontram-se

entre suas atribuições legais (art. 15, II e VIII, da Lei nº. 5.905/73), sendo certo que a harmônica

interação entre os profissionais envolvidos no trabalho de parto, seja domiciliar ou em ambiente

hospitalar, revela-se essencial para o efetivo e satisfatório desempenho da profissão submetida à

fiscalização da autarquia. Em outras palavras, é inegável que as proibições emanadas do diploma

normativo ora guerreado trarão enormes repercussões ao cotidiano exercício da profissão de

enfermeira (Lei nº 7.496/86), cuja proteção encontra-se entre as atribuições do COREN/RJ. Por

outro lado, a Lei nº 7.347/85 expressamente atribui às autarquias a legitimidade para propor ações

civis públicas (art. 5º., IV).

Como notório, a decisão liminar antecipatória dos efeitos da tutela se caracteriza pela

superficialidade da cognição exercida pelo magistrado, que se limita a analisar a existência da

verossimilhança das alegações e do perigo inerente à espera pelo provimento judicial definitivo

sobre a matéria em debate.

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No caso ora analisado, verifico presentes os requisitos autorizadores da medida, pelas razões que

passo a expor: Inicialmente, salta aos olhos a incompatibilidade entre as Resoluções CREMERJ

nº 265 e nº 266 e o tratamento dado à matéria pelos diplomas normativos federais. Em termos

práticos, as resoluções terminam por dificultar, senão inviabilizar, o exercício da atividade de

parteiras, porquanto ao mesmo tempo em que proíbem a atuação de médicos em partos

domiciliares, com exceção das situações de emergência, também vedam a participação das

aludidas profissionais em partos hospitalares. Entretanto, a Lei nº. 7.498/86 define que: Art. 9º

São Parteiras:

I - a titular do certificado previsto no art. 1º do Decreto-lei nº 8.778, de 22 de janeiro de 1946,

observado o disposto na Lei nº 3.640, de 10 de outubro de 1959;

II - a titular do diploma ou certificado de Parteira, ou equivalente, conferido por escola ou curso

estrangeiro, segundo as leis do país, registrado em virtude de intercâmbio cultural ou revalidado

no Brasil, até 2 (dois) anos após a publicação desta lei, como certificado de Parteira.

Nessa senda, aparentam conflitar com diploma normativo hierarquicamente superior as

resoluções da Autarquia Estadual que praticamente inviabilizam o exercício de profissão

regulamentada por lei federal especial válida e vigente.

Destaque-se, ainda, que a proibição inserta no art. 1º, parágrafo único, da Resolução CREMERJ

nº 266/12 estende-se às obstetrizes, indo de encontro ao previsto no Decreto Federal nº. 4.406/87,

regulamento da lei supra mencionada, que dispõe:

Art. 9º Às profissionais titulares de diploma ou certificados de Obstetriz ou de Enfermeira

Obstétrica, além das atividades de que trata o artigo precedente, incumbe:

I - prestação de assistência à parturiente e ao parto normal;

II - identificação das distocias obstétricas e tomada de providência até a chegada do médico;

III - realização de episiotomia e episiorrafia, com aplicação de anestesia local, quando necessária.

Sob uma ótica constitucional, destarte, na qual se prestigia o livre exercício de qualquer trabalho,

ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, não cabe ao

CREMERJ impedir que as parteiras e obstetrizes exerçam seu mister que, além de contar com

muitos anos de existência, é regulamentado por lei e decreto federais (art. 5º, XIII, da Carta

Magna).

Obstar sua participação nesse procedimento ainda conflita, na perspectiva da mulher em trabalho

de parto, com a mens legis subjacente à previsão contida no §1º, da Lei nº 8.080/90:

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Art. 19-J. Os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde - SUS, da rede própria ou conveniada,

ficam obrigados a permitir a presença, junto à parturiente, de 1 (um) acompanhante durante todo

o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. (Incluído pela Lei nº 11.108, de 2005)

§ 1o O acompanhante de que trata o caput deste artigo será indicado pela parturiente. (Incluído

pela Lei nº 11.108, de 2005)

Noutro giro, ainda naquela ótica, a República Federativa do Brasil se fundamenta, entre outras

axiomas, na dignidade da pessoa humana (art 1º, III). Do ponto de vista da parturiente, as

limitações impostas pelo CREMERJ parecem ignorar ou, ao menos, desconsiderar o inegável

suporte emocional, psicológico e físico dado por parteiras, doulas, obstetrizes e etc., no parto

hospitalar ou domiciliar. Ressalte-se que, malgrado a controvérsia atinente aos perigos inerentes

ao parto domiciliar, matéria a ser pormenorizadamente debatida por ocasião da prolação da

sentença de mérito, a escolha deve ser, em princípio, da mulher gestante. E as resoluções do

CREMERJ, ao vedarem a participação de médicos no parto domicilar, acabam por impossibilitar

essa escolha. Nesse diapasão, os estudos anexados à prefacial atribuem densidade suficiente aos

argumentos do autor na defesa da segurança e benefícios do parto domiciliar, aptos a

consubstanciar o fumus boni iuris.

É de se considerar, ainda, que a vedação à participação de médicos em partos domiciliares, ao

que tudo indica, trará consideráveis repercussões ao direito fundamental à saúde, dever do Estado,

porquanto a falta de hospitais fora dos grandes centros urbanos é muitas vezes suprida por

procedimentos domicilares, nos quais é indispensável a possibilidade de participação do

profissional da Medicina, sem que sobre ele recaia a pecha de infrator da ética médica.

O periculum in mora decorre das graves conseqüências que as resoluções atacadas podem trazer

ao, destaque-se, antiquíssimo e tradicional exercício das profissões de parteira, doulas,

obstetrícias e etc., que restou sobremaneira tolhido com a norma e, ainda, ao direito à saúde

constitucionalmente assegurado.

Por todo o exposto, DEFIRO A LIMINAR para suspender os efeitos das Resoluções CREMERJ

nº 265 e nº 266, de 2012, até ulterior decisão deste juízo ou até que o E. Tribunal Regional

Federal da 2ª Região e instâncias superiores se manifestem em sentido contrário.

Intime-se, com urgência.

Sem prejuízo, cite-se. P.R.I.(iyv)

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2012.

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GUSTAVO ARRUDA MACEDO

Juiz Federal Substituto no Exercício da Titularidade