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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL BÁRBARA DA ROCHA FIGUEIREDO CHAGAS "COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ SE PRECISO FOSSE": PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA CATEGORIA 30 ANOS DEPOIS NATAL/RN 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL

CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

BÁRBARA DA ROCHA FIGUEIREDO CHAGAS

"COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ SE PRECISO FOSSE":

PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA CATEGORIA 30 ANOS DEPOIS

NATAL/RN

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL

CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

BÁRBARA DA ROCHA FIGUEIREDO CHAGAS

"COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ SE PRECISO FOSSE":

PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA CATEGORIA 30 ANOS DEPOIS

Monografia apresentada como parte

dos requisitos exigidos para fins de

obtenção do Título de Bacharel em

Serviço Social do Centro de Ciências

Sociais Aplicadas da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, sob a

orientação da Professora Doutora

Silvana Mara de Morais dos Santos.

NATAL/RN

2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

DEPARTAMENTO DE SERVIÇO SOCIAL

CURSO DE GRADUAÇÃO EM SERVIÇO SOCIAL

FICHA CATALOGRÁFICA

Catalogação da Publicação na Fonte UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

RN/BS/CCSA

NATAL/RN

2012

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II

BÁRBARA DA ROCHA FIGUEIREDO CHAGAS

"COMEÇARIA TUDO OUTRA VEZ SE PRECISO FOSSE":

PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL E

ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA CATEGORIA 30 ANOS DEPOIS

Monografia apresentada junto ao Curso

de graduação em Serviço Social da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como requisito exigido à obtenção

do título de Bacharel.

COMISSÃO EXAMINADORA

Profª. Dr.ª Silvana Mara de Morais dos Santos

Departamento de Serviço Social - UFRN

Orientadora

Profª. Dr.ª Andréa Lima da Silva

Departamento de Serviço Social - UFRN

Avaliadora 01

Profª. Dr.ª Maria Regina de Ávila Moreira

Departamento de Serviço Social - UFRN

Avaliadora 02

Natal/RN, 25 de junho de 2012.

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III

A todos aqueles que resistem na defesa de um

projeto profissional orientado pela necessidade

estratégica da superação de toda exploração e

opressão. A todos aqueles que lutam, mesmo

quando é mais fácil ceder.

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IV

AGRADECIMENTOS

Estes agradecimentos, difíceis de fazer, se referem não apenas àqueles que

me ajudaram – direta ou indiretamente – na construção deste trabalho, mas àqueles

que fizeram parte desse processo intenso, transformador e apaixonante de tornar-

me assistente social.

Em primeiro lugar, quase como clichê, agradeço à minha mãe. Creio não ser

necessário explicar muito, apenas agradecer pelo maior amor do mundo. Amor que

nos transformou em melhores amigas, cúmplices, parceiras, mãe e filha uma da

outra, para sempre. Amo-te todos os dias, nos bons e nos ruins. Agradeço, também

a você, por ter nos dado uma família cheia de amor, com dois irmãos que amo

muitíssimo.

Agradeço e dedico este trabalho, também, ao meu companheiro, no sentido

mais terno e apaixonante da palavra. Juary, que esteve e está comigo sempre, que

me ama mais quando eu menos mereço e que me apóia em todas as minhas

loucuras. Alguém com quem dividi as melhores reflexões sobre a vida e as lutas e

que sempre me ajudou e me incentivou nos estudos. O melhor par que a vida

poderia me dar.

Às (poucas) amigas ‘pra’ vida toda: Eliane, que mesmo de longe, sempre estará

perto; Luana, por ser tão companheira e generosa e Micaela, por trazer sempre

tanta paz para o meu coração.

Aos companheiros da luta de cada dia – tão queridos – que enchem meu peito

de alegria sempre, com quem me sinto bem. Agradeço por todas as gargalhadas,

por todas as discussões, troca de opiniões, pela tolerância, respeito, solidariedade e

amizade, pela convivência de domingo a domingo e por como temos feito tudo isso

valer a pena: Rosália, Alann, Jéssica, Alexandra, Marceli, Géssica, Vitor, Emy,

Marquidones e Dayane.

A todos os camaradas do PSTU, alguns que mesmo nunca tendo tido contato

com o Serviço Social, me ensinaram muito sobre ele e deram mais sentido ainda à

minha formação. Agradeço pelo exemplo de dedicação a um projeto tão nobre,

construído por todos nós com toda razão e paixão que ele possa conter, e por todo

carinho e respeito que conservamos uns pelos outros.

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V

Às companheiras do movimento estudantil de Serviço Social, tão importantes

nessa jornada, com quem compartilhei as infinitas reuniões do CASS, as cansativas

viagens e campanhas financeiras, as dificuldades de conciliar as tarefas acadêmicas

com as tarefas militantes, mas também a compreensão do sentido desta profissão e

a construção de um movimento de resistência nessa Universidade que é orgulho

para nós. Com todo afeto: Renata, Raquel, Sâmya, Lili, Carol e Analice. Agradeço,

também, à Gabi, com quem compartilhei calorosos debates sobre a profissão e o

movimento estudantil, sempre inflamados, pela paixão que temos por este curso e

pelas lutas, e que muito me ensinaram.

E, por fim, mas não menos importante, às mestras, com carinho: Any Kadidja,

pela paciência na supervisão de estágio, por ter estado lado-a-lado comigo neste

importante momento da minha formação e por ter desculpado meus erros; Silvana

Mara, pela supervisão de estágio (também), por ter acreditado na minha capacidade

de escrever sobre um tema tão importante para nós e pela amizade, tão importante

para mim; Andréa Lima, pela professora maravilhosa que é, por ter me dado a

oportunidade de convivermos e por esta convivência ter sido tão feliz para mim e

Regina Ávila, por ser tão boa professora, pelos frutíferos debates que tivemos, por

ser uma inspiração, pela paciência, pelas cobranças e por acreditar e se dedicar

tanto a essa profissão, obrigada!

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VI

'Não se desespere, nem pare de sonhar

Nunca se entregue, nasça sempre com as manhãs

Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar

Fé na vida, fé no homem, fé no que virá

Nós podemos tudo, nós podemos mais

Vamos lá fazer o que será'

(Sementes do amanhã - Gonzaguinha)

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VII

RESUMO

Os anos finais do regime militar brasileiro foram marcados por inúmeras lutas em

todo o país. A classe trabalhadora entrou em cena, por direitos econômicos e

políticos, e protagonizou a formação de uma nova conjuntura social. É nesse

período que o Serviço Social gesta um projeto profissional conectado com os

interesses estratégicos da classe a que pertence. A construção desse projeto

articulou sujeitos organizados da categoria com demais lutas e movimentos sociais,

demonstrando a necessidade da organização coletiva. Passados mais de trinta

anos, com todos os desafios atuais, permanecem como necessária a defesa do

projeto profissional e da organização da categoria e da classe trabalhadora. Este

trabalho busca entender historicamente o sentido da organização política dos

assistentes sociais, a partir de uma visão crítica da sociedade capitalista,

entendendo os assistentes sociais como partícipes da luta concreta pela construção

de uma sociedade sem exploração e opressão, sobretudo em tempos de

aprofundamento da barbárie social.

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VIII

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .......................................................................................... 1

1 SERVIÇO SOCIAL: TRABALHO, LUTAS, ORGANIZAÇÃO COLETIVA E

PROJETO ÉTICO-POLÍTICO

1.1 TRABALHO E ALIENAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE AÇÃO HUMANA E

LUTA DE CLASSES ....................................................................................... 3

1.2 AS CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS E A GÊNESE DO PROJETO

ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO

SOCIAL............................................................................................................ 7

1.3 O SERVIÇO SOCIAL EM UMA NOVA CONJUNTURA: A RUPTURA

COM O CONSERVADORISMO HEGEMÔNICO NA

PROFISSÃO.................................................................................................... 11

1.4 ANOS 1980/1990: CONSOLIDAÇÃO DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO

DO SERVIÇO SOCIAL 19

2 PROJETO ÉTICO-POLÍTICO E ORGANIZAÇÃO DA CATEGORIA NA

CONTEMPORANEIDADE: O PROTAGONISMO DO CFESS

2.1 CONJUNTURA E PROJETO ÉTICO-POLÍTICO: CONSOLIDAÇÃO E

DESAFIOS....................................................................................................... 25

2.2 PROJETO ÉTICO-POLÍTICO E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DA

PROFISSÃO NA

CONTEMPORANEIDADE............................................................................... 35

CONCLUSÃO ................................................................................................ 43

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 44

ANEXOS......................................................................................................... 47

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APRESENTAÇÃO

O trabalho aqui apresentado é fruto de intensos debates que permearam toda

a minha formação profissional.

Seria injusto dizer que foi apenas na sala de aula que aprendi as relevantes

coisas ditas aqui. Na verdade, o encanto por esta profissão surgiu ao perceber que a

paixão pelas lutas sociais só ganhava sentido na sala de aula. Que uma coisa não

excluía a outra.

Portanto, este trabalho, que trata da organização política da categoria e sua

relação com a construção e manutenção da hegemonia1 do projeto ético-político na

profissão, foi feito com o objetivo de reforçar a necessidade de nossa categoria –

assim como nossa classe – se organizar para resistir às investidas do capital. E este

trabalho só foi possível porque, ao longo dos quatro anos de graduação, convivi com

a crítica permanente à sociedade capitalista e a defesa dos interesses da classe

trabalhadora no seio dessa profissão.

São várias as razões do meu interesse por este tema. A minha relação

permanente com o estudo sobre o projeto ético-político, através de mais de dois

anos sendo monitora em uma disciplina que trata sobre o tema; a minha inserção no

Centro Acadêmico de Serviço Social, que me permitiu, coletivamente, entender

melhor as leituras e debates da sala de aula, dando mais sentido ainda a eles;

minha inserção em um partido político socialista, que em muitos momentos,

complementou a discussão feita na academia e me convenceu, sempre e cada vez

mais, da necessidade de superação da sociedade capitalista.

Outras vivências, ao longo da minha graduação, me fizeram entender melhor

a importância de conhecer a história dessa profissão. A participação do Seminário

de comemoração dos 30 anos do Congresso da Virada demonstrou, e ao mesmo

tempo surpreendeu, que essa categoria, apesar de todas as adversidades, resiste.

E foi no estágio, acompanhando de perto o exercício profissional que

consegui visualizar, de forma mais clara ainda, todas as contradições e tensões que

perpassam a prática profissional, o espaço sócio-ocupacional e a realidade dos

usuários do Serviço Social.

1 Entende-se hegemonia, conceito gramsciano, como prevalência de uma vontade coletiva, não como supremacia ou maioria.

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A disputa consciente com o conservadorismo predominante na sociedade,

também no âmbito da profissão, é cada dia mais necessária.

É nesse sentido que apresento este trabalho.

Nele, partimos de uma compreensão inicial sobre trabalho e alienação, para

entendermos porque, mesmo sendo explorados e oprimidos, os trabalhadores ainda

não se rebelaram definitivamente contra esse sistema. É sempre necessário

rebuscar no marxismo a compreensão da origem da alienação e sua relação com a

luta de classes, sobretudo se buscamos a ruptura com essa alienação e a

construção coletiva e consciente de outra forma de organização social.

Fazemos, também, uma análise das lutas sociais que marcaram o fim da

ditadura militar e que foram o solo no qual se construiu o projeto ético-político da

profissão. É feita a análise do período histórico que foi marcado por grandes lutas

sociais – anos 1970 e 1980 – pois esse período histórico demonstra a importância

das lutas sociais nos marcos da ruptura com a sociedade capitalista e foi, além

disso, um período fundamental para a história recente da lutas sociais brasileiras –

pela fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) – e para a construção de um

projeto crítico na profissão, tendo como marco o Congresso da Virada, de 1979.

A partir de uma análise sobre a recente história da organização política da

categoria, chegamos aos dias de hoje. Diante do aprofundamento da exploração e

em uma conjuntura de cooptação dos movimentos sociais pelo Governo, analisamos

como se encontra a organização política da categoria.

Para isso, fazemos uma análise sobre as recentes iniciativas do Conselho

Federal de Serviço Social, sua importância e seus significados.

Espero deixar, com este trabalho, uma humilde contribuição para a profissão,

na perspectiva de continuar a tão difícil disputa com os setores conservadores da

sociedade.

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CAPÍTULO 01

Serviço Social: trabalho, lutas, organização coletiva e projeto ético-político

1.1. Trabalho e alienação: a relação entre ação humana e luta de classes

Toda a ação humana2 é movida por intenção. Tudo o que homens e mulheres

fazem é resultado, e ao mesmo tempo é produto, de um raciocínio que, de alguma

forma, é capaz de antecipar os objetivos da ação e criar as expectativas de seu

resultado.

Isso significa que o indivíduo, homem e mulher, possuem uma capacidade

que o diferencia de todos os outros seres vivos, a capacidade teleológica3. De

realizar – antes em sua mente – o que se pretende tornar real. Isso o distingue

essencialmente dos outros animais, que embora executem ações na realidade, o

fazem por instinto. Soma-se a isso a capacidade humana de falar, escrever e,

portanto, acumular e transmitir conhecimentos, tornando possível o permanente

desenvolvimento da capacidade humana de se relacionar com a natureza, coisa que

os demais animais não são capazes. Marx, em O Capital, ilustra de forma magnífica

o que queremos dizer:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha

supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue

o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção

antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho

aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação

do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera;

ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o

qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de

subordinar sua vontade. [grifo nosso] (Marx, 2001, pg. 202)

Afastando-nos de qualquer relação com o idealismo hegeliano4, é importante

explicitar como compreendemos a relação entre real e material. Não se estabelece

um processo de criação humana que surge do ideal para se materializar. Partimos

2 Referente ao trabalho, à transformação da natureza. Não necessariamente em relação à satisfação das necessidades naturais, tais como comer, beber e dormir. 3 Para ler mais sobre teleologia, ler Lukács: “As bases Ontológicas da Atividade Humana” (1978). 4 Teoria defendida por Hegel, de que o pensamento é o que determina o movimento da realidade.

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4

da relação que pressupõe que a consciência e todas as suas formas – a moral, a

religião, as leis, a política, etc. – são produtos do real e estabelecem, com ele,

relação dialética, movimento contínuo. Esse é um dos pressupostos do materialismo

histórico dialético, que compreende que “não é a consciência que determina a vida,

mas sim a vida que determina a consciência” (Marx; Engels, 1989, pg. 20).

Assim, embora o indivíduo tenha a capacidade de formular objetivos e metas

no ideal, antes de sua ação no real, estas idéias, ou ideologias, são formuladas a

partir do que existe na realidade, do que a consciência humana é capaz de absorver,

posto que o homem só modifica o que existe na realidade.

Disto, poderíamos fazer uma série de análises sobre as ações humanas, sua

relação com a natureza, com a estrutura social, etc. Não o faremos, posto que o que

nos interessa, nessa discussão, é a relação entre a capacidade teleológica humana

e os projetos coletivos e societários implícitos ou explícitos em suas ações.

A capacidade humana de construir suas ações a partir de metas previamente

pensadas – inclusive optando pelos melhores caminhos para se chegar a

determinado objetivo –, se expressa também no plano dos interesses coletivos.

Posto que a vida em sociedade gera diversas inflexões sobre a ação humana, não

podemos buscar entender esta, senão demarcando em que lugar, tempo e

sociedade o indivíduo vive.

Assim, da análise feita, precisamos delimitar dois aspectos que incidem sobre

a forma como o indivíduo exerce sua capacidade de racionalizar suas ações: a

existência de classes sociais em permanente disputa de interesses e a alienação do

trabalho, própria da sociedade capitalista.

A sociedade capitalista manteve e acirrou a luta de classes. Como Marx e

Engels resgatam na obra Manifesto do Partido Comunista:

A sociedade burguesa moderna que surgiu das ruínas da sociedade feudal

não aboliu os antagonismos de classes. Ela só fez estabelecer novas

classes, novas condições de opressão, novas formas de luta no lugar das

antigas. Nossa época, a época da burguesia, possui, contudo, essa

característica diferente: ela simplificou os antagonismos de classe. A

sociedade como um todo está cada vez mais se dividindo em dois grandes

campos hostis, em duas grandes classes que se enfrentam diretamente

uma contra a outra: a burguesia e o proletariado. (Marx; Engels, 2007, pg.

54-55)

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5

Dessa forma, quando falamos do ser humano, nos referimos a um indivíduo

que pertence a uma classe social e carrega consigo, ainda que não possua a exata

consciência disso, os interesses desta classe. Faremos referência, mais

especificamente, sobre o indivíduo que pertence à classe trabalhadora, ou seja, o/a

trabalhador/a.

O elemento principal que caracteriza a divisão de classes no capitalismo é a

propriedade dos meios de produção. A classe trabalhadora, na sociedade burguesa,

não é dona dos meios de produção e, portanto, vê-se obrigada a vender sua força

de trabalho, ou capacidade de trabalho, para a burguesia.

Esta relação põe sob determinadas condições objetivas e subjetivas a

libertadora capacidade teleológica, pois, ao passo que essa capacidade permite ao

indivíduo imprimir sobre a realidade sua marca, através de uma ação planejada e

consciente, ele não apenas transforma a natureza – no caso do trabalho – como a si

mesmo. Mas, é necessário enfatizar que o trabalho se realiza numa dada sociedade

sob determinadas relações sociais. O trabalho não se constitui apenas uma maneira

de criar na natureza as condições para a existência humana. O ser humano, no

exercício do trabalho, igualmente se modifica, realizando-se e objetivando-se como

sujeito na medida em que cria, com o produto do seu trabalho, a via para sua

liberdade, sua emancipação. Este trabalho, abstraído da sociedade de classes, é o

que possibilita, portanto, a verdadeira e real atividade livre do ser humano; de

caráter plenamente emancipatório.

Entretanto, na sociedade capitalista o trabalhador, por não ser proprietário

dos meios de produção passa a não comandar e dirigir o processo de trabalho, já

que para Marx os elementos constitutivos do processo de trabalho são a força de

trabalho e os meios de produção. Dessa forma, ao vender sua força de trabalho ao

burguês, o trabalhador submete-se à sua vontade. Pertence ao burguês o processo

de trabalho e o produto do trabalho.

O trabalhador trabalha sob o controle do capitalista, a quem pertence seu

trabalho. O capitalista cuida em que o trabalho se realize de maneira

apropriada e em que se apliquem adequadamente os meios de produção,

não se desperdiçando matéria-prima e poupando-se o instrumental de

trabalho, de modo que só se gaste deles o que for imprescindível à

execução do trabalho. Além disso, o produto é propriedade do capitalista,

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6

não do produtor imediato, o trabalhador. O capitalista paga, por exemplo, o

valor diário da força de trabalho. Sua utilização, como a de qualquer outra

mercadoria, por exemplo, a de um cavalo que alugou por um dia, pertence-

lhe durante o dia. Ao comprador pertence o uso da mercadoria, e o

possuidor da força de trabalho apenas cede realmente o valor-de-uso que

vendeu, ao ceder seu trabalho. Ao penetrar o trabalhador na oficina do

capitalista, pertence a este o valor-de-uso de sua força de trabalho, sua

utilização, o trabalho. O capitalista compra a força de trabalho e incorpora o

trabalho, fermento vivo, aos elementos mortos constitutivos do produto, os

quais também lhe pertencem. Do seu ponto de vista, o processo de trabalho

é apenas o consumo da mercadoria que comprou, a força de trabalho, que

só pode consumir adicionando-lhe meios de produção. O processo de

trabalho é um processo que ocorre entre coisas que o capitalista comprou,

entre coisas que lhe pertencem. O produto desse processo pertence-lhe do

mesmo modo que o produto do processo de fermentação em sua adega.

(Marx, 2001, pg. 209-210)

O trabalhador já não se reconhece como sujeito criador, capaz de criar as

condições materiais para a existência humana. Tudo o que é mercadoria, parece-lhe

ter vida própria, como se surgisse de um mundo que não é o seu, e que o

trabalhador não é capaz de compreender. Esse processo se torna ainda mais

acentuado na medida em que se acentua a divisão social do trabalho. O trabalhador,

que é parte da produção de tecnologias fabulosas, não identifica essas mesmas

tecnologias como fruto de seu trabalho, posto que o mesmo desconhece o processo

de trabalho de que faz parte, o produto de seu trabalho não tem qualquer relação

consigo e há a divisão entre trabalho intelectual e manual: no trabalho, no

capitalismo, sua capacidade teleológica encontra-se limitada. Não domina

conscientemente seu processo de trabalho, mas executa. O trabalho perde o caráter

emancipador, tornando-se, ao contrário, mortificador.

Assim, o homem não reconhece suas atividades e o produto delas. O trabalho

afasta-se de sua real finalidade. A relação que o homem estabelece com o processo

e o produto de seu trabalho se reflete em sua existência de diversas formas. O

homem aliena-se da sua condição de ser humano, de ser genérico5. Na medida em

que ele aliena-se de sua própria condição intelectiva ele passa a ser um ser

estranho apartado de suas potencialidades humanas. E, da mesma forma como se

5 Ser genérico ou ente espécie significa, em Marx, que o ser humano possui capacidades criadoras conscientes, que o distinguem dos demais animais e que o caracteriza como ser humano, por ser uma capacidade humana.

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percebe, percebe aos demais seres humanos. O homem aliena-se dos outros

homens, já que é o trabalho a atividade que estabelece o intercâmbio entre os seres

humanos e a natureza.

Deriva-se ainda, por um processo complexo de mediações da alienação do

trabalho, a alienação política, fundamental para o objeto de nosso trabalho. Torna-se

relevante entender a forma como o homem racionaliza sua relação com as

estruturas de poder político da sociedade, em meio à análise da alienação a que

está submetido.

Partimos do entendimento que o homem, no capitalismo, se relaciona com a

superestrutura política da sociedade, da mesma forma com que se relaciona com o

produto de seu trabalho: como algo estranho a ele e à espécie humana. Não o vê

como constructo social – e, portanto, passível de modificações pelos próprios

homens. Aparece para ele – o Estado, as classes sociais – como uma construção

inata, mistificada, universal abstrata, autônoma em relação ao conjunto da

sociedade.

Nesse sentido, estabelecem-se desafios. Ao percebermos o funcionamento

da realidade de tal forma, qual a possibilidade de o trabalhador agir criticamente ao

funcionamento da sociedade em seu trabalho, se o seu processo de trabalho não

pertence a si, mas aos segmentos e classes dominantes ou ao Estado? Como é

possível uma profissão, enquanto categoria, estabelecer um projeto antagônico ao

funcionamento alienante da sociedade capitalista? Mais que isso: de onde parte este

projeto?

1.2. As condições sócio-históricas e a gênese do projeto ético-político do

Serviço Social

Partimos da compreensão de que o Serviço Social se caracteriza como

“especialização do trabalho da sociedade, inscrita na divisão social e técnica do

trabalho social” (Iamamoto, 2009, pg. 26). Caracterizamos o assistente social como

trabalhador, a partir do pressuposto de que este, como os demais trabalhadores,

vende sua força de trabalho – ao Estado ou à burguesia. Tal como reforça Marx: “A

utilização da força de trabalho é o próprio trabalho. O comprador da força de

trabalho consome-a, fazendo o vendedor dela trabalhar”. (Marx, 1999, pg. 201)

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Desse modo, como trabalhador, o assistente social enfrenta o mesmo

processo de alienação que as demais categorias da classe trabalhadora. E os

mesmos desafios para sua superação.

É preciso dizer que o processo de alienação, embora parta da atividade do

trabalho, conta com diversos elementos para sua complexificação. No contexto

sócio-histórico atual, por exemplo, não podemos descartar o papel que a mídia –

quase que completamente sobre o controle da burguesia – exerce para afastar ainda

mais o trabalhador da compreensão do funcionamento político e econômico da

sociedade. Existem ainda outros elementos importantes, tais como a família, as

escolas e a religião que tendem predominantemente para a reprodução dos valores

e do ethos burguês, embora apresentem, também, contradições, que fazem com

que, em determinadas situações e contextos históricos, estas instituições possam

contribuir no desvendamento das relações sociais próprias da sociedade capitalista

na perspectiva da construção de um novo modo de organização e estruturação da

vida social.

Por isso, é importante ressaltar: a mesma realidade que aliena o trabalhador é

a que fornece as contradições necessárias para uma possível compreensão crítica

da realidade. Para a abertura de um processo de ruptura com essa sociedade. Por

isso, é importante buscarmos entender de que forma o trabalhador segue rumo à

superação de uma visão distorcida da realidade, tal como a alienação o faz ver,

percebendo-se, inclusive, como sujeito alienado.

A experiência histórica demonstra que nos momentos de acirramento de

interesses entre as classes sociais, quando a luta de classes se acentua, o

verdadeiro funcionamento da sociedade capitalista fica mais visível. Nos momentos

de crise do capital, por exemplo, sacrificam-se os empregos mediante mudanças no

processo produtivo. É sempre necessário lembrar que a crise do capital se efetiva

quando se efetivam tendências na queda da taxa de lucro. O capital no

enfrentamento da sua própria crise determina processos de reestruturação produtiva

que incidem na dinâmica de toda a sociedade. O desemprego estrutural, produto

desse processo de reestruturação capitalista na contemporaneidade, coloca grandes

contingentes de trabalhadores no universo do desemprego – e, diga-se de

passagem, a inserção no trabalho é a única forma legítima de garantir sua

subsistência – para manterem-se os lucros em detrimento do atendimento das

necessidades da maioria da população, as classes trabalhadoras.

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Esses fatos, extremamente recorrentes sob o capitalismo contemporâneo,

podem gerar indignação no trabalhador e levá-lo a lutar por seus direitos mais

imediatos. E quando um trabalhador entra em conflito com os interesses da classe

dominante abre-se a possibilidade de se desenvolver, aos poucos, a formação da

sua consciência, que é um processo complexo e contraditório, levando-o ao

entendimento das relações sociais e, assim, torna-se mais visível a divisão entre

classes na sociedade.

1.2.1. Crise econômica, ditadura militar e lutas no Brasil

Não é por acaso que o período histórico brasileiro de meados do final de 1970

à meados dos anos 1980 – período de crise do petróleo e da ditadura militar

brasileira –, foi um período de intensas lutas no Brasil, e, foi justamente nesse

período histórico, que surgiram ou ressurgiram as grandes organizações sindicais,

estudantis e partidárias com clara identidade classista.

Embora a ditadura militar brasileira tenha se utilizado do discurso do

crescimento econômico acelerado, conhecido como “milagre econômico”, para

convencer a sociedade brasileira do progresso que vivia o Brasil, as contradições do

período logo se mostraram. Faleiros (2009, pg. 44) lembra que apesar dos altos

índices de crescimento da economia, a qualidade de vida das camadas mais

pauperizadas da população não melhorou nesse período. Pelo contrário, parte do

crescimento econômico sustentou-se em um profundo arrocho salarial já que “o

custo de vida, de 1962 a 1969 teve um índice de aumento de 100 para 1492, e o

salário real passou de 100 para 122” (SINGER, 1985:57, apud Faleiros: 44), e

“segundo a Fundação Getúlio Vargas a taxa anual de inflação foi 19,3% em 1970 e

de 77,2% em 1979” (Faleiros, pg. 44).

Todo esse processo de desgaste dos direitos trabalhistas e das condições de

vida da população, aliado à repressão política a toda oposição ao Governo militar

brasileiro, abriu um processo de esgotamento que culminou com um intenso

processo de organização das lutas na sociedade brasileira. Entra em cena a classe

trabalhadora brasileira, num momento em que “a orientação dada às políticas sociais

pelos governos da ditadura” gerava “grandes [...] dificuldades de inserção no

mercado de trabalho, além de uma queda geral nos salários praticados pela

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indústria e pelo comércio, sobretudo nos setores de média e baixa qualificação.”

(Martinelli, 2009, pg. 97)

A conjuntura brasileira se redesenha, partindo de um período de profunda

repressão aos trabalhadores e desarticulação dos movimentos sociais para um

patamar de polarização entre os setores de esquerda e direita no país, tendo em

vista que

Os movimentos sociais irrompem a realidade do país e se inserem na luta

política de enfrentamento à ditadura militar e à sua política de arrocho

salarial, responsável por uma profunda deterioração das condições de vida

e de trabalho da população. É um período de amplas mobilizações do

movimento de massas, com grandes greves operárias de solidariedade de

classe entre os trabalhadores. Configura-se a reorganização do movimento

sindical e popular em um novo patamar da luta de classes sob a direção da

classe operária, a partir de 1977. (Abramides; Cabral, 2009, pg. 56)

Os movimentos sociais efervescessem e se constrói, aos poucos, uma

alternativa ideológica, sustentada por amplas massas de trabalhadores que saíam

para o enfrentamento direto às condições econômicas e políticas do país: “[...] entre

1978 e 1981, 5.300.000 trabalhadores utilizaram-se da greve como forma de luta

para encaminhar reivindicações [...]” (Faleiros, 2009, pg. 45) num período, ainda, de

ditadura militar.

É também nesse período, e sob influência desta conjuntura, que se fortalece

dentro do Serviço Social uma vertente crítica6. Embora ainda persistisse a existência

do conservadorismo na profissão, é nessa conjuntura que amadurece no Serviço

Social “um processo organizativo de luta social, combativa, ao lado dos movimentos

6 A história do Serviço Social brasileiro conserva vários processos de tentativas de superação do conservadorismo originário da profissão. Essas tentativas foram marcadas por diversas contradições, inclusive da própria conjuntura. Por isso considera-se que a história da profissão é uma história de idas e vindas, de tensões, e não um processo linear de avanço: do conservador ao crítico. Mesmo em uma conjuntura de lutas sociais, como a dos anos 1980, conservou-se no interior da profissão consideráveis segmentos conservadores. É esse período, no entanto, que favorece ao amadurecimento e crescimento das vertentes críticas da profissão, que tem como uma de suas expressões a vertente de intenção de ruptura. É importante demarcar que a história do Serviço Social brasileiro não se inicia com esta vertente. Pelo contrário, as correntes e vertentes profissionais que existiram anteriormente foram, sem dúvidas, fundamentais para que fosse possível romper, depois, com o conservadorismo hegemônico na profissão até então. Por não ser o foco de nosso trabalho, nesse momento, não abordaremos toda a história da profissão e suas vertentes. Estudaremos a história mais recente. Recomenda-se, entretanto, a leitura de duas importantes obras da categoria que tratam de forma aprofundada do tema. São elas: Ditadura e Serviço Social: uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64 (2005), de José Paulo Netto e Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica (1986), de Marilda Iamamoto e Raul Carvalho.

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sociais de base que se processavam na sociedade brasileira.” (Martinelli, 2009, pg.

98)

Data-se de meados de 1977 o período de reorganização sindical e política

dos assistentes sociais. Este período de reorganização esteve profundamente ligado

à conjuntura de lutas da classe trabalhadora em geral, na medida em que se

vinculou diretamente à corrente denominada novo sindicalismo, que se contrapunha

ao sindicalismo predominante no período, de conciliação de classes e

completamente “estatizado”.

O novo sindicalismo surge como uma alternativa para a organização sindical

dos trabalhadores na medida em que se apresentava como classista, de massas,

com autonomia e independência dos governos, dos partidos e do patronato

(Abramides; Cabral, 2009, pg. 56) e partia da análise crítica da realidade,

sustentando-se na indignação dos trabalhadores perante suas condições concretas

de vida.

O processo de ruptura com o conservadorismo na profissão se gesta e se

constrói em meio à reorganização política e sindical de toda a classe trabalhadora e

tem estreito laço com essa conjuntura e com os demais sujeitos políticos da classe

trabalhadora no período.

Entretanto, é importante demarcar que este não foi um processo harmônico e

homogêneo, mas um processo aberto de disputa pela hegemonia do projeto

profissional de nossa categoria, que prescindiu de importantes sujeitos individuais e

coletivos.

1.3. O Serviço Social em uma nova conjuntura: a ruptura com o

conservadorismo hegemônico na profissão

Para nós, “debater a virada do Serviço Social Brasileiro, nos marcos da

ruptura com o conservadorismo, passa por compreender o significado e o papel

político das organizações sindicais da categoria a partir de 1977[...].” (Abramides;

Cabral, 2009, pg. 56).

É importante analisar todo o trabalho político feito de forma consciente e

militante por parte de diversos assistentes sociais e parceiros na luta política contra

as ofensivas do capital e da ditadura política do período. Temos o entendimento de

que não fosse a organização político-sindical de nossas entidades – impulsionada

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pela conjuntura de lutas –, não teria sido possível construir o emblemático

Congresso da Virada.

A Virada que aconteceu neste Congresso, que foi um marco no processo de

ruptura com o projeto profissional conservador hegemônico até então, foi fruto,

também, de um intenso processo de organização dos setores da profissão ligados

às lutas sociais daquele período.

Todavia, antes de analisarmos o protagonismo das entidades no processo de

disputa de hegemonia na profissão, cabe esclarecer um pouco mais sobre o que

entendemos por disputa de projetos profissionais.

O Serviço Social, enquanto profissão, constitui em seus objetivos profissionais

um projeto profissional. Este projeto se expressa desde suas diretrizes para

formação profissional à regulamentação de seu exercício profissional. Os projetos

profissionais estão no marco dos projetos coletivos existentes na sociedade e

expressam a forma como determinada profissão analisa a sociedade e o papel desta

profissão perante a mesma. Expressa, também, a forma como a profissão pretende

ser vista pela sociedade, pois implica na relação que o profissional terá com as

outras profissões e com os usuários dos serviços prestados por este profissional.

Segundo Netto

Os projetos profissionais apresentam a auto-imagem de uma profissão,

elegem os valores que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus

objetivos e funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e

institucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o

comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das suas

relações com os usuários de seus serviços, com as outras profissões e

com as organizações e instituições sociais privadas e públicas (inclusive o

Estado, a que cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais).

(Netto, 2006, pg. 04)

Como para existir, uma profissão precisa ser legitimada socialmente, e, ao

existir, existe em sociedade, as profissões e, portanto, os projetos profissionais

apresentam “inelimináveis dimensões políticas, seja no sentido amplo (referido às

suas relações com os projetos societários), seja em sentido estrito (referido às

perspectivas particulares da profissão)” (Netto, 2006, pg. 05).

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Ou seja, as profissões apresentam, para além dos exclusivos interesses

profissionais, um interesse coletivo que ultrapassa o limite da profissão, abraçando

toda a estrutura da sociedade.

Nos marcos de uma sociedade de classes, em que as classes fundamentais

carregam interesses diametralmente antagônicos, os projetos societários são,

necessária e simultaneamente, projetos de classe (Netto, 2006, pg. 2). Isto é,

apresentam um projeto de sociedade que, em primeira ou em última instância, irá

atender aos interesses fundamentais de uma ou outra classe social.

Isto acontece embora, nem sempre, ou quase nunca, essa dimensão política

dos projetos profissionais apareça de forma aberta, sobretudo quando se trata da

defesa de projetos conservadores. Isto porque não é útil para os projetos

conservadores – que, diga-se de passagem, são aqueles que pretendem conservar

a sociedade como está, em nosso caso, manter a burguesia enquanto classe

dominante – estabelecer de forma clara a disputa de projetos societários, posto que

este projeto é hegemônico na sociedade e sua base de sustentação é, também, a

alienação dos oprimidos e explorados, que não se identificam como tal.

É por este motivo, que como ilustra Netto

Um dos traços mais característicos do conservadorismo consiste na

negação das dimensões políticas e ideológicas. Não é por acaso que o

conhecido pensador lusitano Antônio Sérgio, numa passagem notável,

tenha observado que “aquele que diz não gostar de política, adora

praticar política conservadora”. [grifo nosso] (Netto, 2006, pg. 05)

Mas, mesmo que não se expresse claramente, a disputa de projetos

profissionais – e societários – acontece. Nesse caso, no âmbito das profissões e,

mais especificamente, em nossa profissão.

Dessa forma, para nosso objeto de estudo, cabe relembrar as disputas de

projeto no âmbito do Serviço Social brasileiro que no significativo processo de

ruptura, culminou com o emblemático Congresso da Virada. Isto para que, de forma

alguma, este pareça que se deu de forma espontânea ou natural, sem esforço

político por parte dos sujeitos organizados da esquerda profissional.

1.3.1. A CENEAS e o Congresso da Virada

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A organização política da categoria, até 1977, se dava quase que

exclusivamente pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS), hoje

Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e pelos Conselhos Regionais de

Assistentes Sociais (CRAS), hoje Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS).

O Conjunto CFAS/CRAS era, à época, o espaço de organização das

vertentes modernizadoras7 e de reatualização do conservadorismo8, e, portanto,

expressavam a defesa de um projeto conservador de profissão e de sociedade.

Estas entidades eram as responsáveis por organizar os Congressos

Brasileiros de Assistentes Sociais (CBAS) e, por isso, os dois primeiros CBAS – que

antecederam o Congresso da Virada e que aconteceram, respectivamente, em 1974

e 1977 – expressaram o conservadorismo político destas entidades, contando, em

plena ditadura militar, com a presença dos oficiais do regime ditatorial.

Deste ponto de vista, não havia nada de novo na organização do III CBAS,

que continua expressando “[...] uma visão formalista, endógena, modernizadora e

conservadora da profissão [...]” (Abramides; Cabral, 2009, pg. 61). Na verdade, a

mudança que houve entre o II e III CBAS foi justamente uma mudança na correlação

de forças entre as forças conservadoras e as forças progressistas no interior da

profissão. Pois, foi justamente após o II CBAS, em 1977, que se iniciou o processo

de reorganização sindical do Serviço Social. Esse processo contou com força ativa

da Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de Assistentes Sociais

(CENEAS).

Àquele período, 1977, não havia sindicatos ou associações de assistentes

sociais em quantidade expressiva. Tanto é que, em 1978, no I Encontro Nacional

das Entidades Sindicais dos Assistentes Sociais, havia presentes apenas 04

sindicatos e associações, de todo o Brasil. A partir deste primeiro Encontro tirou-se a

tática de mobilizar e organizar sindicalmente os assistentes sociais em todo o Brasil,

sob a direção da CENEAS e com a perspectiva do sindicalismo classista, ligado ao

novo sindicalismo que emergiu das lutas históricas da classe trabalhadora no

7 A perspectiva modernizadora apresentava a proposta de adequação do Serviço Social ao novo contexto sócio-político, mas sem se posicionar ou se contrapor a estrutura de desigualdade social ou aos antagonismos de classe, principais razões das expressões da questão social. Essa perspectiva não apresentou uma nova concepção de profissão, tendo em vista que esta defendia uma postura moralista de ajustamento dos sujeitos à sua família e à sociedade e baseava-se no estrutural-funcionalismo. 8 A reatualização do conservadorismo propunha resgatar as bases cristãs da profissão e aliá-las à modernidade. Baseava-se na fenomenologia, com tendências psicologizantes. Nesta vertente também não há ruptura com tradicional, a profissão continua com uma atuação conservadora e sem se posicionar com relação à estrutura social.

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processo de luta pela retomada do Estado de direito e vigência da democracia no

país. Processo este que resultou na criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e na

criação da Central única dos trabalhadores (CUT) que desempenharam papéis

importantes na mobilização e retomada da participação sindical crítica naquele

momento histórico.

Alguns instrumentos de mobilização da categoria nesse período foram

fundamentais. O primeiro, que se estendeu durante vários anos, foi a permanente

interlocução com as demais correntes críticas que se consolidavam na América

Latina. Essa interlocução se expressou na aproximação da vertente intenção de

ruptura ao organismo acadêmico denominado Centro Latino Americano de Trabalho

Social (CELATS). Este Centro foi o financiador dos três primeiros Encontros

Nacionais das Entidades Sindicais dos Assistentes Sociais, e, a partir de um

convênio com o Sindicato dos Assistentes Sociais de Minas Gerais, financiou a

pesquisa sobre Condições de Trabalho, Carga Horária, Salário e Área de Atuação

dos Assistentes Sociais em todo o país (Abramides; Cabral, 2009, pg. 63). Esta

pesquisa foi o solo no qual se assentou a organização sindical dos assistentes

sociais no período de 1978 a 1979 e materializou que

A gênese da concepção do projeto de profissão de intenção de ruptura com

o conservadorismo tem raízes na reconceituação latino-americana, com

experiências profissionais no Chile e na Argentina, que se espraiam por

outros países da América Latina e Caribe; com forte oposição às ditaduras

militares do continente, e formulação de novas bases conceituais para uma

ação profissional crítica. (Abramides; Cabral, 2009, pg. 60)

O resultado dessa articulação, bem como a articulação com os demais

movimentos sociais brasileiros, levou a realização do III Encontro Nacional de

Entidades Sindicais dos Assistentes Sociais com a presença de 18 entidades

sindicais. Esse Encontro foi expressão da organização da vertente profissional

crítica, que já iria para o III CBAS em condições de disputar a hegemonia do

Congresso com os setores conservadores que o organizavam.

Expressão dessa organização consciente para a disputa com o

conservadorismo no III CBAS foi o fato de que o III Encontro Nacional, a que nos

referimos anteriormente, realizou-se praticamente em paralelo ao III CBAS. O

Encontro aconteceu nesse período justamente para preparar uma intervenção crítica

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no Congresso, tendo em vista que o acirramento da luta de classes, a reorganização

sindical e política da classe trabalhadora e a decadência cada vez maior do regime

ditatorial não significaram uma mudança no caráter do III CBAS, em relação ao II

CBAS, por parte de sua comissão organizadora.

Aliado ao processo de organização sindical da categoria esteve o processo de

articulação da esquerda no campo da formação profissional, da organização

estudantil e de disputa dos Conselhos de Assistentes Sociais.

No campo da formação profissional destaca-se a experiência do Método de

BH9, a forte contribuição teórica da Pós-Graduação em Serviço Social, que

aproximou a formação profissional de forma cada vez mais qualificada às teorias

marxianas e marxistas e a indispensável contribuição da Associação Brasileira de

Escolas de Serviço Social (ABESS)10, sobretudo com o processo que resultou no

novo currículo para o Serviço Social, implementado em 1982.

Do ponto de vista da organização estudantil, construiu-se uma aliança com os

discentes de Serviço Social no sentido da construção conjunta de lutas sociais e de

disputa da hegemonia política da categoria.

A tática implementada a partir dos sindicatos de impulsionar, montar e apoiar

chapas de esquerda para os CRAS e o CFAS, com o objetivo de disputar a

hegemonia do conservadorismo na direção das entidades da profissão, teve bons

resultados na medida em que, mais tarde, os Conselhos da categoria teriam papel

fundamental na transição ético-política da profissão.

Contudo, embora no processo de ruptura com o conservadorismo tenha se

estabelecido um processo de articulação entre “[...] o âmbito sindical, da formação,

do exercício profissional e estudantil” (Abramides; Cabral, 2009, pg. 59), é fato que

“a organização político-sindical dos assistentes sociais teve um papel dirigente, de

centralidade, nos anos 1980, por estar colada ao sindicalismo classista num

momento de assenso das lutas sociais” (Abramides; Cabral, 2009, pg. 60).

A reorganização sindical no Serviço Social está, também, diretamente ligada

ao processo de reorganização sindical da classe trabalhadora brasileira, já no

período de “abertura” da ditadura militar brasileira. As lutas salariais e contra a

9 Experiência desenvolvida na Universidade Católica de Minas Gerais de aproximação do Serviço Social com as teorias sociais críticas – como o marxismo – e as lutas sociais. Incorreu em diversos equívocos teórico-metodológicos, mas teve importância na história da profissão. 10 Hoje Associação de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS).

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ditadura, demonstram um movimento ascendente que, se inicia abertamente em

1975, e tem seu ápice no ano de 1979.

Este movimento tem seu início com o movimento estudantil que após as

mortes de Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho (mortos em 1976 por torturas nas

dependências do Exército Brasileiro) iniciaram manifestações, em um primeiro

momento de forma mais discreta, até a sua saída às ruas em 1977, após a prisão e

tortura de operários do ABC paulista que entregavam panfletos sobre o 1º de maio.

A insatisfação com o regime tinha base material no declínio do poder de

compra dos trabalhadores no período, fruto de um forte arrocho salarial. Os anos

finais da ditadura, já como conseqüência da crise mundial do petróleo, foram os

anos que proporcionaram uma das maiores acumulação de renda no país. “Em 60,

por exemplo, os 10% mais ricos da população tinham uma participação no PIB

correspondente a 39,66%, percentual que se elevou de maneira extraordinária para

46,8% em 84.” Ao mesmo tempo em que os 1% mais ricos do país tinham uma

concentração de renda superior aos 50% mais pobres da população (Welmovicki,

2004, pg. 48).

A insatisfação já era tão forte que, num movimento de contenção das lutas, o

Governo Geisel propõe “abertura controlada” do regime, com aumento progressivo

do poder de eleição direta pelo povo dos governantes. Esse movimento por parte

dos governos ditatoriais, entretanto, não foi capaz de conter o ascenso do

movimento operário, pois “o acúmulo das tensões sociais durante a ditadura gerou

um fenômeno explosivo, mas de classe, de identificação política ampla dos

trabalhadores e que o sucesso das primeiras greves tornou estendido em escala

nacional” (Welmovicki, 2004, pg. 51).

Dessa forma, as 270 greves, com adesão de 140.000 trabalhadores em 1978,

são superadas por cerca de 1.400.000 grevistas em 1979, onde se destacam as

lutas dos metalúrgicos de São Paulo, de onde surgiram as principais lideranças

sindicais e políticas da classe trabalhadora e que sustentaram, posteriormente, o

impulso para criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Nesse período, destaca-se

como liderança dos metalúrgicos do ABC paulista, Luís Inácio da Silva, o Lula.

Havia também, nesse período, um forte movimento pelas Diretas já (luta por

direito às eleições diretas pela população dos parlamentares do legislativo e

executivo), que aglutinava estudantes, trabalhadores – operários e servidores

públicos – artistas e demais movimentos sociais.

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É em meio a esse cenário econômico, social e político que acontece o

Congresso da Virada. Assim, vale demarcar que a Virada no Serviço Social ocorre

quando a luta de classes está em pleno vapor em nosso país e, portanto, é parte

desse processo.

A inserção das entidades sindicais da categoria, nessa concepção e prática

sindical classista, a partir de 1977, é constitutivamente determinante na

construção do projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro,

assim denominado nos anos 90, que se consolida nesse processo de

ruptura com o conservadorismo. [...] A vinculação das entidades sindicais

ao movimento sindical e popular combativo, em um massivo e vigoroso

assenso da luta de classes, se constitui no solo histórico que possibilitou as

condições objetivas para o Congresso da Virada. (Abramides; Cabral,

2009, pg. 56-59)

Muitos assistentes sociais presentes eram influenciados por esta conjuntura

e, mais que isso, muitos deles “vinham de vivências políticas de duro enfrentamento

com a ditadura militar e seu aparelho repressivo” (Abramides; Cabral, 2009, pg. 62).

Dessa forma, o Congresso expressava uma divisão política da categoria em, por um

lado, uma força conservadora e modernizadora, que o organizava; e, por outro, uma

força progressista de esquerda, ligada ao movimento sindical classista, com

intervenções profissionais críticas.

Estavam dadas as condições para uma disputa de hegemonia política no

interior da categoria, fruto da organização prévia das entidades sindicais, pelo III

Encontro Nacional. “Configura-se, portanto, uma massa crítica presente ao

Congresso que se constituiu, no setor que de imediato deu sustentação política à

direção da CENEAS/Sindicatos e APAS aos rumos do CBAS” (Abramides; Cabral,

2009, pg.62)

Vários elementos no Congresso foram alvo de críticas por parte da categoria.

Entre eles o tema, a metodologia, a comissão de honra e o conteúdo dos debates.

Assim, estabeleceu-se, através de convocação da CENEAS, assembléias gerais dos

assistentes sociais e estudantes presentes, para discutir e deliberar sobre o

Congresso. A primeira assembléia, no segundo dia de CBAS, contou com a

participação de 500 assistentes sociais e foi ampliando a participação e adesão dos

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congressistas, até que as posições da CENEAS tornaram-se as posições do

Congresso, com hegemonia entre os 2.500 participantes.

As assembléias diárias discutiam e deliberavam sobre a programação do

Congresso. Foi através das assembléias gerais que se mudaram os eixos dos

painéis de debate, proporcionando um debate mais macroscópico, alterando o tema

para um debate global sobre políticas sociais e exercício profissional, ao invés de

debates setoriais; destitui-se a comissão de honra do Congresso, substituindo

representantes da Ditadura, como o Presidente General Figueiredo e ministros, por

uma comissão de honra que expressasse o sentido político que estava sendo dado

ao Congresso, com sindicalistas e figuras da luta democrática brasileira, tais como

Maria Augusta Capistrano – representante do Comitê Brasileiro pela Anistia, e Lula,

dos metalúrgicos do ABC; suspenderam-se as visitas às instituições, previstas na

programação, que custariam muito dinheiro ao Congresso, e optou-se por enviar

este dinheiro ao fundo de greve dos operários do ABC; encaminhou-se que a

coordenação da organização dos próximos Congressos seria responsabilidade da

CENEAS, por a reconhecerem como a entidade com legitimidade para tal; e, entre

outras coisas, encaminhou um Manifesto com estes e outros posicionamentos, que é

parte das resoluções do Congresso, e fruto do debate durante o mesmo.

Nesse sentido, “o debate político travado, as posições públicas assumidas

coletivamente, pela categoria, na defesa dos interesses imediatos e históricos dos

trabalhadores [...] estabelecem as bases que demarcam a inflexão do projeto de

intenção de ruptura no Congresso da Virada.” (Abramides; Cabral, 2009 pg. 59).

Por todos os elementos citados, e, mais que isso, pelos frutos que nascerão

pós III CBAS, que analisaremos mais a frente, é que este Congresso passou a ser

chamado Congresso da Virada. É considerado “como solo fecundo, onde foram

lançadas as raízes de um projeto ético-político profissional comprometido com a

classe trabalhadora e com a construção de uma nova ordem societária” (Martinelli,

2009, pg. 101), um “divisor de águas na trajetória histórica dos congressos e da

própria profissão” (Abramides; Cabral, 2009, pg. 59).

1.4. Anos 1980/1990: consolidação do Projeto Ético-Político do Serviço Social

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É nos marcos da conjuntura de que falamos anteriormente que se gesta um

projeto profissional do Serviço Social vinculado, claramente, aos interesses

imediatos e históricos da classe trabalhadora.

O que se convencionou chamar de projeto ético-político do Serviço Social

compreende uma síntese de elementos que formam “uma imagem ideal da

profissão, os valores que a legitimam, sua função social e seus objetivos,

conhecimentos teóricos, saberes interventivos, normas, práticas, etc.” (Netto, 2006,

p. 07).

Essa imagem ideal da profissão se expressa desde a formação, à

regulamentação do exercício profissional, passando pela forma como a categoria se

organiza.

Se expressa, portanto, nas legislações da formação profissional e da

profissão: em seu currículo mínimo, atualmente diretrizes curriculares – com sua

matriz teórico-metodológica, seu Código de Ética, a Lei que regulamenta a profissão

e outros normativos nacionalmente instituídos pelo Conselho Federal de Serviço

Social.

Se expressa, também, na forma como esta profissão se relaciona com seus

usuários, demais profissionais, com a classe trabalhadora e seus movimentos

sociais, com a sociedade; seja através das posturas e posicionamentos individuais,

no dia-a-dia do exercício da profissão, seja nas posturas coletivas que aparecem

para a sociedade através de nossas entidades.

Compreendemos, portanto, uma síntese de elementos que buscam levar à

existência concreta da profissão, o sentido de seu projeto. Ou seja, buscam

materializar o projeto profissional dando sentido às ações dos membros desta

categoria profissional.

É importante destacar que

O sujeito coletivo que constrói o projeto profissional constitui um universo

heterogêneo: os membros do corpo (categoria) profissional são

necessariamente indivíduos diferentes – têm origens, situações, posições e

expectativas sociais diversas, condições intelectuais distintas,

comportamentos e preferências teóricas, ideológicas e políticas variadas

etc. O corpo profissional é uma unidade não-homogênea, uma unidade de

diversos; nele estão presentes projetos individuais e societários diversos e,

portanto, configura um espaço plural do qual podem surgir projetos

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profissionais diferentes. [...] Mais exatamente, todo corpo profissional é um

campo de tensões e de lutas. (Netto, 2006, pg. 05)

Portanto, quando damos ênfase à que a normatização, leis, organização,

posicionamentos e formação do Serviço Social buscam garantir um sentido

profissional que alcance determinado projeto ético-político e societário na realidade,

estamos dizendo que este “resultado” não é absoluto e automático. Isto porque se

garante a liberdade democrática do debate e o direito ao pluralismo no interior da

profissão – item fundamental, que é parte da gestação deste projeto, que nasce,

justamente, nas lutas contra o cerceamento de diferentes opiniões e oposições pela

ditadura militar. Mas também entendemos que o projeto conservador, de

conservação da sociedade, o projeto da burguesia, disputa as mentes e corações

das pessoas com o projeto de transformação social de forma desigual, por ser o

projeto da classe dominante, possuidora dos principais meios de comunicação e

formação de consciência.

Dessa forma a profissão, ao longo da construção de seu projeto profissional,

se depara com gigantescos desafios, que será fruto de análise posterior nesse

trabalho.

O que nos importa, neste momento, é demarcar a consciência de que esta

categoria, hegemonicamente, construiu um projeto crítico da profissão, e elaborou

mecanismos que marcham no sentido de tornar possível tal projeto, considerando,

no entanto, que se trata de um processo histórico que não depende exclusivamente

da vontade dos sujeitos profissionais. Mas, todo este processo, é permeado por

contradições, já, que “a afirmação e consolidação de um projeto profissional em seu

próprio interior não suprimem as divergências e contradições” (Netto, 2006, pg. 05).

1.4.1. Os elementos constitutivos do PEPSS: materialização de sua hegemonia

Os anos que seguem ao Congresso da Virada significam anos de avanços

político-profissionais no interior da profissão. Os Congressos posteriores, já

organizados de forma amplamente democrática, com consulta prévia à categoria

sobre as temáticas centrais do congresso e com o envolvimento de diversos setores

da categoria e estudantes, proporcionaram a maturação da organização política do

Serviço Social.

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22

O projeto ético-político vai ganhando corpo e forma na categoria. É por isso

que se considera que este “projeto avançou nos anos 1980, consolidou-se nos 1990

e está em construção [...]” (Braz; Teixeira, 2009, pg.14). Os anos 1980 significam,

portanto, os anos de crescimento da participação política da categoria nas lutas

gerais e nos espaços da profissão, de crescimento da produção intelectual, por meio

da criação dos cursos de pós-graduação e maior incentivo à realização de

pesquisas, – com o estreitamento da profissão com a teoria social crítica de Marx – e

com os avanços na organização político-profissional, que tem sua materialização

mais visível nos anos 1990.

Configuram-se, então, com o passar dos anos, o que se chama de elementos

ou componentes que materializam o Projeto ético-político (Braz; Teixeira, 2009, pg.

05), que se convencionou separar em três esferas centrais:

a) A esfera da produção de conhecimento, quem tem ligação direta

com a pesquisa e a pós-graduação – embora, de forma nenhuma, se

limite a ela –, por se tratarem da maneira através da qual melhor se

investiga a realidade, suas contradições, os desafios existentes ao

exercício profissional, pressuposta a investigação crítica da

realidade através da teoria social marxista à qual o Serviço Social se

filiou ao longo de sua trajetória de rupturas. A produção de

conhecimentos em nossa categoria envolve desde a prática

profissional, à economia, à política, aos movimentos sociais,

passando por micro e macro questões, que têm relação direta entre

elas e com a profissão e sua função social; entendendo a profissão

na complexa relação entre Estado e Sociedade no movimento das

classes sociais.

b) A esfera político-organizativa, que diz respeito a todos os espaços

coletivos e representativos de discussão, consulta e deliberação da

categoria e dos estudantes. São estes os instrumentos fundamentais

de direção ético-política da categoria, onde se destaca,

historicamente, o Conjunto CFESS/CRESS; a ABEPSS e o

movimento estudantil, através do Centros/Diretórios Acadêmicos e a

Executiva Nacional de Estudantes de Serviço Social (ENESSO) e

sua articulação, pois,

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23

[...] somos a única profissão que tem um coletivo institucional que articula

entidades da formação (ABEPSS e ENESSO) e do exercício profissional

(Conjunto CFESS/CRESS), o que nos possibilitou construir um projeto

ético-político e profissional com princípios e diretrizes consoantes nas

diretrizes curriculares, na lei de regulamentação profissional e no código de

ética profissional. (Boschetti, 2009, pg. 146)

c) A esfera jurídica-política “na qual se constitui o arcabouço legal e

institucional da profissão, que envolve um conjunto de leis e

resoluções, documentos e textos políticos consagrados no seio da

profissão” (Braz, 2009, pg. 06). Nessa esfera ganham destaque as

principais normativas da categoria: o Código de Ética Profissional, a

Lei de Regulamentação da profissão (Lei 8662/93), e as Diretrizes

Curriculares dos Cursos de Serviço Social. Tem grande importância,

ainda, as diversas resoluções do Conjunto CFESS/CRESS, que

cumprem importante papel na materialização do projeto profissional.

Aqui, ressalta-se o caráter extremamente interdependente constituinte dessas

três esferas, pois: a elaboração dessas normativas pressupõe acúmulo e debate

teórico, vivência prática, organização política e conhecimento profissional.

Esses elementos, coletivamente construídos, democraticamente aprovados e

arduamente implementados, são frutos do processo de construção de uma direção

política crítica na profissão, pois refletem o entendimento do funcionamento da

sociedade, da dinâmica das classes sociais e o papel do Serviço Social.

Enfrentam, ainda, grandes desafios, sobretudo tratando-se de sua

implementação no cotidiano profissional, na execução, pelo assistente social, de

atendimentos, visitas, estudos, elaboração de laudos, relatórios e pareceres. E é

“nas diversas e variadas ações que efetuamos [...], das ações mais simples às

intervenções mais complexas do cotidiano profissional, nelas mesmas, embutimos

determinada direção social entrelaçada por uma valoração ética específica” (Braz;

Teixeira, 2009, pg. 6). A realidade, por ser extremamente contraditória, apresenta

diversas complexidades que exigem reflexão e conhecimento para seu

desvendamento.

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É óbvio que não estamos dizendo que, com uma ação profissional voltada

para os princípios e objetivos do projeto ético-político do Serviço Social, por si só,

conquiste, por ela mesma, a possibilidade de realização das grandes

transformações almejadas por nosso projeto.

Considerando que o “cerne do projeto ético-político profissional: a luta por

uma sociedade emancipada, livre de todas as formas de exploração e opressão

humana” (Boschetti, 2009, pg. 147) se trata da tarefa histórica de toda uma classe

social – a qual pertence o assistente social. Torna-se messiânico acreditar que

apenas essa categoria, sobretudo em sua atividade profissional, possa promover tal

mudança.

É importante lembrar que, conforme formula Marx, o processo de trabalho, no

capitalismo é dirigido pelas classes dominantes que contam com o papel ativo do

Estado em sua função hegemônica de atuar em defesa e proteção dos interesses do

capital e, portanto, é uma atividade permeada por intensos processos de exploração

e por práticas não criativas, degradantes e alienantes. Dessa forma, a atividade

profissional pode ser importante em diversos aspectos, embora não seja o elemento

potencialmente transformador da sociedade.

Cabem às lutas sociais as grandes transformações. Lutas que pautem

organicamente os interesses de classe e que sejam capazes de aglutiná-la

consciente e democraticamente. Cabe ao assistente social identificado com este

projeto de transformação profunda da sociabilidade capitalista, ligar-se a estas lutas.

Portanto,

O Serviço Social, ao se constituir como uma profissão que atua,

predominantemente, na formulação, planejamento e execução de políticas

públicas como educação, saúde, previdência, assistência social, transporte

e habitação, tem o imenso desafio de se posicionar criticamente diante da

barbárie que reitera a desigualdade social, e se articular aos movimentos

organizados em defesa dos direitos da classe trabalhadora e de uma

sociedade livre e emancipada, de modo a repensar os projetos

profissionais nessa direção. (Boschetti, 2009, pg. 154)

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Capítulo 02

Projeto Ético-Político e organização da categoria na contemporaneidade: o

protagonismo do CFESS

2.1. Conjuntura e projeto ético-político: consolidação e desafios

Como observamos no capítulo anterior, a gênese do projeto ético-político do

Serviço Social esteve diretamente determinada por uma conjuntura social,

econômica e política que permitiu a conformação de grandes movimentos sociais de

esquerda no Brasil, através da organização e luta da classe trabalhadora por seus

interesses imediatos e históricos. Em suma, a conformação de uma vertente crítica

consolidada na profissão, que levou à ruptura com o conservadorismo hegemônico

na profissão até então, por um arco profundo de mediações, efetivou-se no contexto

de uma efervescência política que mobilizou parcela significativa da classe

trabalhadora brasileira, como já assinalamos anteriormente.

No entanto, a conjuntura na qual se conformou o projeto ético-político do

Serviço Social não permaneceu estática. Várias mudanças ocorreram na sociedade

brasileira e estas tiveram seus impactos no curso que vivia a profissão.

Dentre as mudanças na conjuntura que têm implicância na profissão,

destacamos dois pontos: a contra-ofensiva do capital às conquistas dos

trabalhadores no período de lutas, que corresponde de meados da década de 1970

a meados da década de 1990, com o advento do neoliberalismo brasileiro; e a

chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Governo Federal e todas as suas

repercussões na relação do Estado com os movimentos sociais.

Essas duas grandes mudanças no plano econômico e político trouxeram

importantes conseqüências para o processo de consolidação que vivia o Serviço

Social brasileiro, como veremos.

2.1.1. Os desafios postos pela conjuntura ao projeto ético-político profissional

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Apesar de os anos 1990 já apresentarem fortes sinais da política neoliberal,

através do Governo Collor11 e, sobretudo de Fernando Henrique Cardoso12, parte

desta década ainda é marcada por repercussões das lutas democráticas que

envolveram os trabalhadores brasileiros nas duas décadas anteriores e, também,

por uma significativa resistência dos movimentos sociais às políticas do Governo

FHC.

Por isso,

Ao longo dos anos 90, período em que as contradições da sociedade se

acirram, marcadas pela crise de acumulação e pelo processo de

restauração capitalista (Braga, 1996), sob os influxos do Consenso de

Washington e, no caso do Brasil, pelo privatista e neoliberal Governo FHC,

o projeto profissional, enquanto expressão da cultura profissional do

Serviço Social brasileiro, se fortalece. (Mota; Amaral, 2009, pg. 50)

É nesse contexto que diversos elementos que constituem o arcabouço legal

da profissão e que foram e são instrumentos importantes na defesa de uma direção

crítica para a categoria – tais como o Código de Ética de 1993, e a Lei 8.662/93 – se

materializaram. São frutos do processo de lutas e reflexões teórico-metodológicas e

ético-políticas que envolveram a profissão durante todo o período que gestou o

projeto ético-político do Serviço Social.

Esta conjuntura, de ataques aos direitos sociais e trabalhistas, iniciada no

Governo FHC, embora antagônica ao projeto profissional, encontrou resistência no

seio da classe trabalhadora e, portanto, significou, ainda, um processo de lutas

importante que encontrou eco na profissão.

É, no entanto, durante a primeira década do século XXI que assume maior

visibilidade social no debate da profissão as contradições postas na conjuntura. O

que significa para a profissão, afinal, a realidade que vivemos, desde – mais

precisamente – 2003, com a eleição de Lula e do Partido dos Trabalhadores ao

Governo Federal?

Entre os intelectuais da categoria, muitos elementos são analisados.

Gostaríamos de evocar algumas análises conjunturais de importantes autores da

categoria, por entendermos que todos levantam pertinentes pontos, com os quais

11 1990-1992 12 1995-2002

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compartilhamos semelhante compreensão, embora saibamos que as conclusões

que os mesmos tiram da realidade sejam, em alguns casos, bastante desiguais

entre si.

Assim, o período vivido desde o ano de 2003 traz consigo, além do

aprofundamento das políticas neoliberais, um completo revisionismo político por

parte de segmentos importantes da esquerda e dos movimentos sociais.

Mota e Amaral resumem bem o significado da ascensão do PT ao Governo

central, afirmando que este governo

[...] redefine necessidades, estratégias e iniciativas das classes dominantes

ao legitimar práticas que ampliam o fosso entre acumulação de riqueza e

crescimento do pauperismo, instaurando medidas econômicas e políticas

que operam regressões profundas no campo dos direitos, das políticas

sociais de proteção social, elegendo como estratégia de enfrentamento da

pobreza a expansão da política de assistência social. Sob a tática da

“estatização” dos movimentos de resistência, o governo desqualifica e

despreza 30 anos de luta e resistência dos trabalhadores, subtraindo da

cena brasileira o protagonismo intelectual das esquerdas na sua tardia e

despolitizadora social-democracia para os pobres. (Mota; Amaral, 2009, pg.

51)

Ou seja, se por um lado o Governo de Lula intensificou a política de redução

dos direitos da classe trabalhadora, já em curso desde o Governo FHC, por outro,

também, cooptou parte significativa dos movimentos sociais, o que se demonstrou

como um grande diferencial deste Governo pró-capital.

Do ponto de vista do trato do Governo com as políticas sociais, destacamos

duas dimensões da gestão deste Governo que têm relação direta com o assunto em

questão. A primeira é sobre a política de assistência social, com reflexões muito bem

feitas por Ana Elizabete Mota13. A segunda sobre a política de educação, sobretudo

a educação superior, com análises fartas na categoria14.

No campo da assistência social a marca deste governo foi (e ainda é, partindo

do entendimento que o atual governo, o de Dilma Rousseff, nada mais é que uma

13 Um bom trabalho sobre o tema é “O mito da assistência social: Ensaios sobre Estado, Política e Sociedade”, organizado por Mota e que conta com importantes artigos de diversos autores. A autora apresenta artigos conectados com a crítica à forma como tem sido implementada a política de assistência social no Brasil. 14 Entre os autores destacamos as análises feitas por Kátia Lima e Larrisa Dahmer. Alguns trabalhos destas autoras, e outros, podem ser encontrados na Revista Temporális n. 15 (ABEPSS, 2008): “Estado e Educação Superior – Questões e impactos no Serviço Social.

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continuação de seu antecessor) a implementação de programas e políticas

assistencialistas e focalizadas, com destaque para o famigerado Programa Bolsa

Família15. A assistência social se viu reduzida a uma política de compensação da

pobreza, com programas de transferência de renda que em nada promovem à

autonomia dos sujeitos (referente à promoção da própria renda). Pelo contrário,

promovem a dependência, tão necessária aos Governos, que a transformam em

moeda de troca no período eleitoral, sustentando-se na necessidade material

absoluta e na ignorância política que fazem questão de preservar nos setores mais

pauperizados da classe trabalhadora.

Estes programas, além do que já foi mencionado, buscam, também, mascarar

o caráter de classe deste Governo, na medida em que constroem a aparência de

Governo dos trabalhadores e escondem o dado de que “a cada dólar recebido pelos

10% mais pobres dos brasileiros, os 10% mais ricos recebem 65,8% - 66 mais

vezes” (Castro, 2005, pg. 02). Ou seja, a política macroeconômica continuou a

favorecer as classes sociais dominantes deste país, já que dados mostram que o

aumento do lucro dos banqueiros foi de 550% no período de 2003 a 201016.

Foi o investimento do Governo neste programa – que, aliás, garantiu

popularidade recorde17 e a reeleição de Lula – que fez com que houvesse uma

expansão da demanda por mão-de-obra no campo da assistência social.

Essa expansão no campo da assistência social, através de programas

específicos de combate à pobreza, segundo Netto (2009, pg. 38-39) “opera a efetiva

redução do Serviço Social à profissão da assistência”, o que se torna ameaçador ao

projeto profissional crítico já que muitos setores da categoria absorvem a

perspectiva das classes dominantes sobre a assistência social como solução para

combater a pobreza.

Dito isto, é importante evidenciar que esta análise não se constitui argumento

contrário à assistência social enquanto política pública e à ampliação de direitos.

Absolutamente não. Compreendemos toda a importância da assistência social como

política que integra a Seguridade Social. “O que está em discussão é o estatuto que

ela assume nessa conjuntura” (Mota, 2010, pg. 141), visto que ao passo que a

15 Programa de transferência de renda do Governo Federal a famílias com renda per capita de até R$140,00. 16 Fonte: O Globo, edição online de 26.02.2011. Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/02/26/na-era-lula-lucro-recorde-dos-bancos-199-bilhoes-365833.asp. Acesso em: 25/06/2012. 17 A aprovação do Governo chegou aos 83% em 2010, recorde histórico, segundo o Instituto de Pesquisa Datafolha.

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assistência social cresce, cresce também a mercantilização e privatização da Saúde

e da Previdência, desfigurando-se a assistência social e a transformando no

principal mecanismo de proteção social do país (MOTA, 2010, pg.134).

Assim, nessa conjuntura, os programas sociais “compensatórios” do Governo

Federal e o massivo apelo à assistência social fetichiza esta política, como principal

meio de enfrentamento da pobreza e da desigualdade social, que são reduzidas à

retórica da “inclusão social” e produz efeito pacificador entre as classes já que

Sob esta perspectiva, aloja-se a despolitização das lutas e do caráter

classistas das desigualdades sociais, que passam a ser entendidas ora

como exclusão, ora como evidência da desfiliação em relação à proteção

estatal, ambas confluindo na defesa de estratégias inclusão e inserção,

sem a referência do trabalho. (Mota, 2010, pg. 142)

A investida governamental sobre esta ideologia, obviamente, produz

resultados não apenas na consciência dos usuários dessa política, como também

nos que trabalham com ela.

Outro fator importante é que com a descentralização das políticas sociais no

Brasil e a transferência da execução da política de assistência social para a esfera

dos Governos Municipais, a mão-de-obra do assistente social passa a ser, ainda

mais, em maioria, absorvida pela esfera municipal. Dados não tão recentes, mas

importantes, da pesquisa do CFESS sobre o perfil dos assistentes sociais18,

mostram que 40,97% dos assistentes sociais trabalham na esfera pública municipal

(quase o dobro do segundo lugar, a esfera pública estadual, com 24%). Se

cruzarmos este dado com a jornada de trabalho média da categoria, identificaremos

que a carga horária de 40 horas semanais é19 mais incidente na esfera pública

municipal. Outra pesquisa, um pouco mais recente20, mostra que dos assistentes

sociais que trabalham na assistência social (especialmente nos Centros de

Referência de Assistência Social - CRAS) nos municípios do Estado de São Paulo, a

faixa salarial com maior incidência (43,4% dos entrevistados) é a segunda pior

18 Referimo-nos à pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Serviço Social em convênio com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), em 2004, intitulada “Assistentes sociais no Brasil: elementos para o estudo do perfil profissional”. Disponível em: http://www.cfess.org.br%2Fpdf%2Fperfilas_edicaovirtual2006.pdf. Acesso em: 25/06/2012. 19 Quando a pesquisa foi realizada ainda não era lei a jornada semanal de 30 horas para assistentes sociais. 20 Referimo-nos à pesquisa realizada pelo Conselho Regional de Serviço Social do Estado de São Paulo, em 2009, publicada no ‘Cadernos CRESS/SP’, edição n. 4, de 2009.

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registrada pela categoria, que oscila de R$1.000,00 à R$1.800,00. Esse dado

coincide com outro dado da pesquisa do CFESS que revela que em 2004, 45,19%

dos assistentes sociais no Brasil recebiam entre quatro e seis salários mínimos

(R$240,00 à época), ou seja, de R$ 960,00 a R$ 1.440,00, que também era a

segunda pior faixa salarial da categoria à época.

Todos esses elementos nos levam a crer que a esfera pública municipal,

principal responsável pela execução da política de assistência social, incluindo-se o

Programa Bolsa Família, tende a ser a esfera em que vigora uma das maiores

jornadas de trabalho e uma das piores faixas salariais. Ou seja, não oferece boas

condições de trabalho e remuneração ao profissional.

Não afirmamos que as outras esferas de absorção de mão-de-obra sejam

satisfatórias, ou ainda, que este seja um mal que afeta apenas aos assistentes

sociais. Em uma conjuntura de regressão dos direitos, inclusive trabalhistas, no

marco da reestruturação produtiva – que afeta não apenas, como muitos podem

pensar, o trabalhador fabril da esfera da produção de mercadorias, mas toda a

classe trabalhadora – é óbvio que a tendência geral de é de precarização das

condições de trabalho e vida da classe trabalhadora.

Afirmamos, entretanto, que a precarização das condições de trabalho, num

contexto de esfacelamento das próprias condições de organização política coletiva

dos trabalhadores, somada, nesse caso, ao trabalho direto com programas sociais

de combate à pobreza, que buscam cooptar segmentos importantes da classe

trabalhadora para a ideologia burguesa, geram um resultado no mínimo preocupante

sobre a consciência de parte21 da categoria de assistentes sociais.

Pois de forma antagônica ao Projeto ético-político do Serviço Social,

assentado em um projeto societário diametralmente oposto ao da ordem vigente, o

capitalismo apresenta-se num esforço para manter-se como modo hegemônico de

organização econômica, política e social (Behring, 2008, pg. 65), apresentando

novas investidas que

Para os trabalhadores, além dos impactos objetivos da crise,

especialmente em função do desemprego, da precarização do trabalho,

dos salários e dos sistemas de proteção social, observa-se a construção de

21 Não se caracteriza uma adesão passiva da categoria a essa forma de pensar, visto que o que se refere ao CFESS e aos teóricos da profissão prevalece a crítica a este modo de tratar e ao lugar atribuído a política de assistência social no Brasil.

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outras formas de sociabilidade marcadas por iniciativas pragmáticas de

enfrentamento da crise, fraturando suas formas históricas de organização e

esgarçando uma cultura política que comporta alternativas à ordem do

capital. (Mota e Amaral, 2009, pg. 08)

No mesmo rumo segue a política de educação superior brasileira. A política

de educação superior foi uma das que mais claramente tiveram o viés da

privatização. Foram diversos projetos criados que incentivaram – como nunca – a

expansão do ensino superior privado.

Além do Projeto de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

(REUNI), que precarizou as Universidades públicas através do aumento

indiscriminado de vagas sem nenhum investimento proporcional – seja na infra-

estrutura, na assistência estudantil ou nos recursos humanos, com a contratação de

mais docentes e técnico-administrativos – projetos como Universidade Para Todos

(PROUNI) deram o tom da política de educação deste Governo.

O PROUNI, por exemplo, carro chefe na política de educação superior, por,

supostamente, garantir ao aluno carente que não consegue entrar na Universidade

pública, uma vaga na Universidade ou Faculdade particular, foi o responsável pelo

salvamento de diversas instituições privadas de Ensino que beiravam a falência no

período anterior ao governo Lula. Este programa, que garante vagas ociosas nas

Instituições privadas a estudantes carentes através da isenção de impostos a essas

empresas de ensino, é, sem dúvida, um dos principais responsáveis pelo fato de que

hoje, os poucos jovens brasileiros que acessam o ensino superior no Brasil, o fazem

através da rede privada.

Mas, para o tema em questão, sem dúvidas, o elemento mais preocupante se

passa no campo da completa desregulamentação e flexibilização das práticas de

ensino. A pseudo-regulamentação22 pelo Ministério da Educação abriu as portas

para um vasto campo de exploração pelo mercado de uma educação

completamente empobrecida de qualidade.

Baseada na substituição do docente pelas tecnologias, a Educação à

Distância tem sido a expressão da mais perversa transformação de um direito em

um serviço, que para custar pouco, tem de ter pouca qualidade. Alvo de diversos

escândalos no país, as empresas que oferecem esse serviço utilizam-se de qualquer 22 Não se pode afirmar que a fiscalização do Ministério da Educação realiza-se efetivamente, pois são várias as denúncias de instituições de ensino funcionando completamente fora da legislação.

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espaço físico – existem denúncias que apontam o funcionamento dos pólos de EAD

em cima de borracharias, ou por trás de padarias – e de muita propaganda, com

incentivos governamentais, para vender um produto que, infelizmente, tem sido

bastante adquirido, obviamente, por falta de alternativas.

Essa modalidade de ensino, que subtrai qualquer possibilidade da riqueza do

debate coletivo cotidiano no processo de formação, que anula qualquer possibilidade

da vivência – tão importante – do movimento estudantil durante a formação

profissional, que dissolve o fundamental tripé ensino-pesquisa-extensão, além de

outras iniciativas que obstaculizam a efetivação das diretrizes curriculares tem

significado uma forma improvisada de aumentar os vergonhosos números de acesso

à educação no país, ao mesmo tempo em que tem significado uma forma bem

estável de sustentar os lucros de uma camada vasta de grandes empresários da

educação. A expansão desse setor é abusiva e assustadora, ocupando hoje

responsabilidade por expressiva parcela dos formandos no Brasil.

As conseqüências para a construção de um projeto profissional crítico, são

quase óbvias. O não cumprimento ou o cumprimento formal e real do projeto

profissional das diretrizes curriculares do Serviço Social, além dos aspectos já

citados, tornam ainda mais um grande desafio a formação de assistentes sociais na

perspectiva do projeto ético-político, pressupondo este, como fruto de

amadurecimento teórico e vivência política, não oferecida por esta modalidade, e

que, também

[...] esse mesmo perfil – produzido por uma formação profissional pouco

qualificada, em ambientes nada acadêmicos, despolitizados, que não

propiciam uma necessária vivência universitária aos estudantes [...] tende a

dificultar a formação de novos teóricos e políticos para o projeto

profissional. (Braz, 2007, pg. 09)

Somado a essa conjuntura, e, em minha opinião, o aspecto mais importante

dela, se dá no âmbito da organização política da classe trabalhadora e da esquerda

brasileira, pós PT no Governo. Concordo com Ramos (2009, pg. 45), quando diz que

do ponto de vista da política educacional – e complemento, de todas as outras

também – nosso projeto profissional nunca esteve em sintonia com os dos Governos

de plantão.

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Sendo assim, a mudança cabal na conjuntura, que tem peso importante

contra o projeto ético-político da profissão, é justamente a mudança da realidade na

qual se assentou a construção deste projeto: a conjuntura de lutas, que

impulsionava e era impulsionada pela organização coletiva.

Do ponto de vista da organização da classe trabalhadora e dos movimentos

sociais, a ascensão de Lula e do PT ao Governo Federal representou um verdadeiro

maremoto.

Isso porque a trajetória de lutas recentes neste país, a derrubada da ditadura

militar e todos os grandes movimentos populares que seguiram esse período têm

ligação direta com a gestação do partido, que não a toa se chamava dos

trabalhadores, era resultado da luta pelos interesses desta classe. E não por

coincidência sua personalidade mais conhecida era um operário fabril que dirigiu

grandes e importantes greves desde os anos de ditadura militar.

A história do PT, em um determinado período histórico, é a história das lutas

da classe trabalhadora brasileira. O Partido dos Trabalhadores surge de idéia à

realidade, entre 1979 e 1980. A conjuntura desse período, já abordada

anteriormente, foi o que impulsionou a criação de um partido capaz de aglutinar

amplos setores de explorados e oprimidos pela sociedade capitalista.

Em praticamente apenas uma década de história, com o discurso da

esquerda e financiado apenas por contribuições voluntárias, o PT ganhou adesão

capaz de, em 1988, já governar a principal cidade do país, São Paulo e, em 1989,

protagonizar uma disputa presidencial acirrada, com a direita brasileira,

representada pelo então candidato, Fernando Collor.

Após a derrota eleitoral para Collor em 1989, e as derrotas eleitorais para os

governos estaduais, em 1990, o PT abre um ciclo de mudanças que, inicialmente

discretas, culminam com a completa perda dos princípios que o fundou.

Pressionado pela queda do muro de Berlim, que foi utilizada pela burguesia

como símbolo da vitória final do capitalismo contra qualquer alternativa a ele, e que

dizimou diversas organizações de esquerda com referencial socialista por todo o

mundo, o PT dos anos 1990 já não era mais o mesmo.

Hesitou diante dos ataques do Governo Collor e foi contra o movimento Fora

Collor até o final de 1992, quando este movimento ganhou força social. Também

hesitou durante o Governo FHC e embora mantivesse ligação com os movimentos

sociais, já não se dispunha a mobilizá-los amplamente para repetir, por exemplo, um

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movimento político amplo no país contra FHC, como foi com Collor, embora a

conjuntura tenha oferecido algumas oportunidades. A direção do PT, na verdade,

impôs um veto à campanha Fora FHC que a CUT e o MST vinham construindo com

o apoio da esquerda interna e externa ao PT (Arcary, 2011, pg. 66)

Isso tudo aconteceu, na verdade, porque o PT dos anos 1990 já era um

partido completamente adaptado à sociedade capitalista. Se é verdade que o PT

nunca foi um partido revolucionário, também é verdade que no período de fundação

deste partido havia um claro sentimento classista, que, em última instância,

conservava o objetivo de atender aos interesses da classe trabalhadora de forma

independente da burguesia.

Um símbolo de demonstração clara da mudança interna do PT se deu nas

eleições presidenciais de 2002, na qual Lula se elegeu. A Carta ao povo brasileiro,

como foi denominado o Manifesto da direção do PT à sociedade, lançado em julho

de 2002, demonstrava os interesses eleitorais do PT, que buscava, com essa carta,

acalmar parte da burguesia que ainda não estava ao seu lado – financiando sua

campanha, ou construindo a candidatura presidencial, já que seu vice à época, José

de Alencar, era um dos maiores empresários do setor têxtil do Brasil, um burguês –

comprometendo-se, entre outras coisas, a honrar o pagamento das dívidas externas

e internas.

A partir daí aconteceu o que era previsível, o PT passou a gerir o Estado

visando construir o consenso entre as classes sociais. Não foi casual que o Partido,

outrora dos trabalhadores, passasse a escrever cartas ao povo brasileiro, ou a ter o

slogan de Governo “Brasil, um país de todos”. A perda da identidade de classe pelo

PT se expressou, também, na busca por tentar diluir as classes sociais, com

interesses historicamente avessos, em um genérico “povo”, “todos” ou “brasileiros”.

E essa postura do PT e de Lula, trouxeram profundas conseqüências para a

organização dos movimentos sociais brasileiros.

Em primeiro lugar, evidentemente, porque o PT era, e continua sendo, um

partido extremamente numeroso com grande inserção e influência nos movimentos

sindicais, estudantis e populares. E isso fez com o PT pudesse não apenas manter,

como aprofundar, a desmobilização das lutas gerais, inclusive e principalmente

contra o Governo Federal. O que houve, na verdade, foi uma completa

domesticação dos movimentos sociais brasileiros, que passaram a funcionar

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segundo os interesses deste partido de se manter no poder, e, para isso, atender

aos interesses, também, da classe dominante brasileira.

E, em segundo lugar, a confusão ideológica causada na esquerda,

mundialmente, pela queda do muro de Berlim, repetiu-se no Brasil, agora – senão

por convencimento de amplos setores da esquerda, pelo PT, de que a saída para a

classe trabalhadora seria a conciliação de classes – pela decepção que levou

gerações a desacreditarem da política, dos partidos e da possibilidade de uma

transformação social radical.

Como resume Netto

[...] o primeiro governo de Lula aprofundou o contra-reformismo orgânico da

coalizão do Partido da Social-Democracia Brasileira com o Partido da

Frente Liberal – e o segundo mandato de Lula apenas vem reafirmando a

sua incorporação das diretrizes macro-econômicas e sociais que outrora,

nos idos de oitenta e noventa, combatia. Esta nova conjuntura não se

distingue da anterior tão somente pela assimilação da antiga oposição à

ideologia e à prática dos governos Fernando Henrique, nem pela inteira

residualidade da resistência à cultura neoliberal no plano parlamentar-

institucional; distingui-se, sobretudo, pela maciça cooptação de entidades e

organizações que tinham peso sobre significativos movimentos sociais

(aqui, emblemática é a “funcionalidade” agora assumida, por exemplo, pela

CUT e pela UNE). (2007, pg. 38)

Essa nova conjuntura, de crise da esquerda brasileira, afeta gravemente o

projeto profissional do Serviço Social, já que este “não é endógeno à profissão e se

formou num contexto de variadas influências do pensamento crítico e da esquerda”

(Ramos, 2009, pg. 43).

Todas as problemáticas levantadas até agora fluem contra o projeto

defendido pela profissão e, por isso, aumentam a necessidade de organização da

profissão e da resistência, cada vez mais difícil, a todas as investidas do capital e de

seus governos de plantão.

2.2. Projeto ético-político e organização política da profissão na

contemporaneidade

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É fato que a precarização da formação – seu aligeiramento, sua

superficialidade, a cisão da indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão, o

baixo envolvimento da maioria dos discentes com o movimento estudantil e demais

movimentos sociais, sem falar no ensino à distância –; a precarização das condições

de trabalho do docente e dos assistentes sociais – que, muitas vezes, distância o

profissional de qualquer possibilidade de, em seu exercício profissional, materializar

direitos básicos da classe trabalhadora e tende a forçar sua compreensão de direitos

ao possibilismo das políticas sociais compensatórias; assim como a falência do

Partido dos Trabalhadores como alternativa de organização da esquerda brasileira e

a cooptação de grande parte dos movimentos sociais por este, representam desafios

para a defesa do projeto profissional.

Entretanto, os setores organizados da profissão têm resistido de forma

louvável. As elaborações teóricas e posicionamentos políticos, desde o início da ‘era

Lula’, têm representado que estes setores profissionais não sucumbiram ao ‘lulismo’,

que dizimou parte importante dos movimentos de esquerda.

É claro que este posicionamento não é unânime na profissão. Como nenhum

outro nunca foi. Mesmo nos anos 1980, com uma conjuntura política favorável a

defesa dos interesses da classe trabalhadora, sempre houve debates e divergências

sobre os posicionamentos hegemônicos e/ou manifestados pelas entidades da

categoria.

O Serviço Social, enquanto categoria profissional que existe no seio da

sociedade, e, portanto, no mundo real, sofre influência das contradições que existem

na realidade. E, nesse sentido, não é possível dizer que a influência e a aprovação

do governo Lula, não seja reflexo, também, da aprovação do seu governo por parte

dos assistentes sociais, embora seu governo tenha sido, na maioria das vezes,

avesso aos princípios ético-políticos defendidos pela profissão.

Isso acontece porque o debate democrático na profissão conserva o

pluralismo como princípio ético, regulamentado pelo Código de Ética Profissional,

que preza pelo respeito às diversas correntes profissionais e seus posicionamentos

teóricos. Assim, a hegemonia de um determinado projeto profissional, não significa a

supressão dos projetos diversos que possam existir no seio da categoria.

Acreditamos ser difícil, sem um estudo extremamente aprofundado – que

ainda não existe – mensurar em que medida o projeto ético-político é defendido pela

base da categoria. Isso porque, mesmo que fosse possível fazer uma pesquisa

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dessa natureza entre os assistentes sociais sobre o projeto ético-político, como

marxistas, sabemos que muitas vezes há dicotomias entre o discurso e a prática.

Além disso, a defesa do projeto ético-político, pode se expressar, algumas vezes, na

defesa de alguns de seus aspectos e – não necessariamente – de forma integral.

Sabemos, também, que tanto a formação quanto o exercício profissional é síntese

de tensões e contradições.

O fato, entretanto, é que, por outro lado, as entidades representativas da

profissão – como o Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), democraticamente

eleito pela categoria – seguem sendo dirigidas por grupos profissionais orgânicos à

manutenção da defesa, pela profissão, dos princípios que fundaram o projeto ético-

político profissional nos anos 1980, apesar das adversidades. É fato também que se

tem resistido na manutenção das diretrizes curriculares voltadas para a formação de

assistentes sociais críticos e antenados com a defesa dos interesses da classe

trabalhadora.

Assim, apesar de todas as adversidades, é na organização coletiva da

profissão – nas entidades da categoria e demais movimentos sociais – que tem se

expressado a possibilidade e a necessidade de resistir ao aprofundamento da

barbárie sob a sociedade do capital.

Neste sentido, não há como afirmar que o projeto ético-político não tenha

adesão no seio da categoria e vale destacar que a presença de assistentes sociais

em inúmeras lutas estratégicas em defesa de direitos evidencia que se por um lado,

cresce a precarização da formação e do exercício, prejudicando intensamente a

disseminação do projeto profissional, por outro lado, não podemos desconsiderar o

papel de parte da categoria no cotidiano, quebrando o silêncio, realizando a crítica e

buscando articulações para dar visibilidade ao estado de violação de direitos em que

vivem parte significativa dos usuários do Serviço Social nos mais diferentes espaços

profissionais.

2.2.1. Da CENEAS ao CFESS: o papel das entidades da categoria na conquista de

hegemonia do projeto crítico da profissão

A história da profissão demonstra que a organização sindical da categoria

cumpriu papel decisivo na ruptura com o conservadorismo hegemônico na profissão

até o final da década de 1970.

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O papel da Comissão Executiva Nacional de Entidades Sindicais de

Assistentes Sociais (CENEAS), com toda a organização e trabalho político feito, foi

decisivo para a virada do III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, em 1979.

A fundação da Associação Nacional de Assistentes Sociais (ANAS), em 1983,

representou a continuação do projeto construído pela CENEAS, mas em um

patamar superior. A ANAS significou o produto do trabalho político feito pelos

assistentes sociais da época, que possibilitou a fundação de uma federação nacional

de assistentes sociais, que congregava sindicatos e associações da profissão e

rompia com as amarras da CLT.

Como entidade livre e autônoma do Estado, a ANAS foi a entidade dirigente

das lutas sindicais e políticas da categoria até 1992, quando houve sua dissolução.

A ANAS deixou o legado de uma entidade combativa, de luta, classista,

extremamente democrática que expressou “o avanço organizativo e da consciência

política dos assistentes sociais que aderiram a essa vertente na profissão e que

conquistou a hegemonia do projeto profissional nos últimos trinta anos” (Abramides;

Cabral, 2009, pg. 69)

A ANAS segue como entidade dirigente da categoria até idos de 1989,

quando, a partir da decisão democrática da categoria, é extinta. Isso acontece como

conseqüência do debate que envolveu todas as categorias profissionais nesse

período e que teve o entendimento hegemônico que

[...] a organização por ramo de atividade econômica é a que possibilita que

o conjunto dos trabalhadores, de um determinado ramo estabeleça suas

pautas de reivindicações, mediante ações unificadas frente ao mesmo

empregador (patronato ou Estado). (Abramides; Cabral, 2009, pg. 74)

Assim a organização sindical dos assistentes sociais passou a se dar, em

maioria23, nos sindicatos por ramo de atividade e sua organização política passou a

se dar no conjunto CFESS/CRESS.

2.2.2. A resistência organizada ao possibilismo e o protagonismo do CFESS

23 Alguns poucos sindicatos se assistentes sociais não respeitaram a deliberação nacional e se mantiveram.

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Como já foi dito, partimos do pressuposto que a organização coletiva da

profissão, através de suas entidades, tem sido um dos poucos pólos de resistência

ao vendaval causado pelo ‘lulismo’ da classe trabalhadora brasileira.

Mas, como tem se expressado a defesa do projeto ético-político profissional

pelo CFESS?

Para analisar o direcionamento político manifestado pelo Conselho Federal de

Serviço Social, optamos por analisar as principais atividades desenvolvidas e

posicionamentos públicos feitos pela gestão eleita para essa entidade, a gestão

2008/2011: “Atitude crítica para avançar na luta” que antecedeu a gestão atual

(2011/2014): “Tempo de luta e resistência”.

Esta análise baseia-se no Relatório final da gestão, que constitui uma

publicação com a síntese o de todas as atividades desenvolvidas pela entidade

durante o período da gestão.

2.2.2.1. A Gestão “Atitude crítica para avançar na luta”, 2008/2011

Na contra-mão das reformas neoliberais e do conservadorismo político na

sociedade, o CFESS tem aprofundado a defesa de direitos sociais, trabalhistas e

humanos.

Seguindo na defesa do projeto ético-político profissional o CFESS, em

parceria com outras entidades da categoria, organizou, em 2009, um Seminário

Nacional em comemoração aos 30 anos do Congresso da Virada. Esse emblemático

Seminário é significativo na defesa do projeto crítico da profissão não apenas por

não deixar passar em branco essa importante data, mas pelo formato dado ao

Seminário, que teve em todos os seus debates um viés crítico sobre a conjuntura e,

diferente do Congresso de 1979, não contou com a participação de Lula, então

representante dos operários em greve. Isso demonstra a compreensão das

mudanças de postura da antiga esquerda brasileira, que foi substituída pelos

movimentos sociais que assim como o Serviço Social, resistem ao revisionismo.

Também coube a essa gestão do CFESS a organização do XIII CBAS,

democraticamente organizado com as demais entidades da categoria, que teve

como tema “Lutas sociais e exercício profissional no contexto da crise do capital:

mediações e a consolidação do projeto ético-político do Serviço Social” e contou

com a participação de mais de 2.500 participantes. O tema do Congresso expressou

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a preocupação desta entidade em relacionar a conjuntura de crise do capital com a

profissional, reafirmando a defesa do projeto-ético político profissional, mesmo – e

principalmente – nos momentos de crise dessa sociabilidade.

Na busca do envolvimento com a base da categoria, foram organizados três

Encontros Nacionais CFESS/CRESS, que contaram, ao todo, com a participação de

216 delegados assistentes sociais eleitos pela base da categoria em assembléias

por regional, que, somando-se com os demais assistentes sociais participantes

totalizou 761 assistentes sociais envolvidos com o principal fórum de organização e

deliberação da categoria.

Houve ainda diversas manifestações públicas da entidade sobre temas como

ética, direitos humanos, lutas sociais, exercício profissional, políticas sociais e

outros. Todos expressos através do CFESS Manifesta, principal instrumento de

divulgação de opinião da entidade, que foi publicado 63 vezes durante essa gestão.

Ao final da gestão em maio de 2011 foi elaborado um livro contendo todas as

edições do CFESS MANIFESTA durante a gestão. Este livro foi divulgado para

todos os conselhos regionais e encontra-se disponível na página do CFESS24.

Mas, entre todas as ações do Conselho Federal nesse período, duas

merecem amplo destaque.

A primeira trata-se da postura empreendida por esta entidade a um dos

principais desafios postos pela política neoliberal de educação neste país: o ensino à

distância. Tendo clareza dos prejuízos da precariedade na formação profissional à

formação e ao exercício profissional crítico, ligados à defesa do projeto profissional,

o CFESS

[...] investiu fortemente na socialização dos argumentos que sustentam o

posicionamento das entidades nacionais e do Conjunto CFESS-CRESS

contrário à graduação à distância, o que se deu pela divulgação de três

notas conjuntas assinadas pelo CFESS, ABEPSS e ENESSO, sendo uma

especialmente dirigida aos/às estudantes e trabalhadores/as de instituições

de educação à distância (2009); elaboração e lançamento, em maio de

2011, de Campanha Nacional Contra Graduação à Distância em Serviço

Social, com publicação de cartazes, adesivos, marcador de livro, cartão

postal, criação de site específico, vídeo e spot de rádio. (CFESS, 2011, pg.

26)

24 www.cfess.org.br

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Reafirmando a defesa da educação de qualidade como direito de todos e

dever do Estado, o CFESS esteve firme na campanha que enfrentou os empresários

da educação e o governo federal, até que a justiça determinou a proibição da

campanha em razão da ação judicial promovida pela Associação Nacional dos

Tutores de Ensino à Distância (ANATED), alegando que a campanha tinha conteúdo

‘pejorativo’.

Esta campanha tinha como objetivo socializar entre a juventude e demais

segmentos da sociedade a opção do governo Federal em atender as exigências dos

organismos internacionais que apontavam criticamente a baixa inserção da

juventude no ensino superior e indicavam como meta aumentar tal inserção, com

ampliação precária e sem qualidade. Para o governo o que se tornou relevante é a

estatística de que os jovens estão entrando na universidade. Para o CFESS, bem

como para a ABEPSS e também para a Executiva Nacional de Estudantes de

Serviço Social (ENESSO), a questão é bem mais profunda. A luta pela expansão do

ensino, notadamente o ensino público, sempre foi uma reivindicação de luta dos

movimentos sociais que atuam na defesa e luta da educação. No entanto, o CFESS

entende que a qualidade social tem que ser assegurada. As críticas realizadas à

modalidade do ensino à distância não são meramente ideológicas. Os conselhos

regionais por meio da política de fiscalização, identificaram inúmeras irregularidades

que contrariam os instrumentos normativos da profissão como o Código de Ética e a

Lei de regulamentação profissional, além da política de estágio.

A proibição da campanha é um demonstrativo dos limites da democracia

nesta sociabilidade. Afinal, as empresas podem fornecer uma formação acadêmica à

juventude com a criação de cursos precários e o CFESS não pode, como entidade

responsável em zelar pelo exercício profissional, denunciar e exigir que a formação

profissional do assistente social respeite o projeto de formação contido nas diretrizes

curriculares, como exigência do mesmo Estado que institui e aprova cursos sem

qualidade adequada? Esta é uma luta complexa porque atinge interesses dos

segmentos dominantes que atuam na educação.

Por último, em uma conjuntura de perda de direitos trabalhistas, de crise do

capital e intensificação da exploração do trabalho e de desafios à mobilização dos

trabalhadores para irem à luta, o CFESS protagonizou o que foi a maior conquista

da categoria dos últimos anos e também uma das maiores conquistas de toda a

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classe trabalhadora. Enquanto diversas outras categorias têm lutado há anos pela

mesma bandeira, sem sucesso, o CFESS, em parceria com demais entidades da

categoria, demonstrou sua capacidade de organização e mobilização para pressão e

conquistou, em agosto de 2010, a aprovação do projeto de lei 152/2008, que previa

a jornada de 30 horas semanais para assistentes sociais sem redução salarial, que

foi resultado de quase três anos de articulação e de pressão em um ato público que

reuniu cerca de 3 mil profissionais e estudantes em Brasília. E que foi antecedido da

realização de várias estratégias como audiências públicas, notas e promoção de

debates, além de reuniões em praticamente todos os ministérios para dar

visibilidade às razões pelas quais a lei deveria ser aprovada.

A luta que seguiu foi pela sanção pelo Presidente Lula da lei, e pela sua

implementação pelos empregadores, que segue sob fiscalização da entidade até os

dias atuais.

As ações empreendidas pelo Conselho Federal, analisadas aqui, e também

as não comentadas, demonstram que a organização dessa categoria segue firme na

compreensão da sociedade capitalista como incapaz de atender às necessidades

humanas e de sua superação como único norte possível para a classe trabalhadora.

Sustentando-se em uma visão crítica da sociedade e conectado com os

demais setores da classe trabalhadora e da esquerda brasileira, os desafios da

conjuntura permanecem grandiosos, mas os setores organizados da profissão

parecem ter consciência dos desafios e a clareza dos objetivos:

Preservar, fortalecer, conquistar a adesão de novos sujeitos e consolidar

nosso Projeto Ético-Político Profissional é um desafio e ação política

estratégica de todos/as. Exige uma postura profissional que articule a

radicalização da democracia com o fortalecimento das lutas sociais, na

perspectiva da resistência coletiva. Exige a ruptura com o conformismo,

com o conservadorismo e com perspectivas endógenas que sombreiam a

profissão. Fortalecer as lutas sociais para romper com a desigualdade

significa contribuir para que mulheres e homens, explorados/as e

oprimidos/as pelo capital, se reconheçam e se constituam como sujeitos

políticos e coletivos, que lutam aguerrida e cotidianamente em busca de

liberdade e de emancipação humana. (CFESS, 2011, pg. 24)

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CONCLUSÃO

Esta breve análise sobre a recente história da organização política da

categoria serve para demonstrar a atualidade da organização coletiva como saída

para os problemas aparentemente individuais.

Em momentos de crise do capital, em que a classe trabalhadora e a juventude

protagonizam diversas insurreições anticapitalistas pelo mundo, o projeto ético-

político, com todos os desafios, ganha ainda mais relevância.

Infelizmente não foi possível, neste trabalho, dar conta de todas as dimensões

dessa discussão. Não foi feita uma análise sobre toda a história da profissão, com

suas diversas vertentes e seus diversos momentos; uma análise sobre a

reorganização dos movimentos sociais após a cooptação das entidades históricas

da classe trabalhadora brasileira; bem como um estudo mais detalhado sobre as

outras diversas inserções do CFESS, como por exemplo, na defesa da seguridade

social pública, da ética e direitos humanos, na política de fiscalização do exercício

profissional e a relação da defesa do projeto ético-político com a perspectiva de

contribuir para a melhoria das condições de vida e de trabalho dos usuários da

profissão que são brutalmente atingidos pela precarização das políticas sociais e por

este tempo de barbárie.

Pretende-se, entretanto, em outro momento, dar continuidade a este debate,

aprofundando-o, por entendermos que ele se apresenta como extremamente

importante para a formação das atuais e futuras gerações de assistentes sociais,

que precisam constantemente resgatar o sentido do projeto ético-político dessa

profissão.

Apesar das limitações, a relevância desta análise permanece. É parte do

processo de reafirmação da completa atualidade da crítica à sociabilidade do capital

e da defesa intransigente organização coletiva para a superação desta sociedade.

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ANEXOS

ANEXO I

CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL

Gestão 2008 – 2011

“Atitude crítica para avançar na luta”

Presidente: Ivanete Salete Boschetti

Vice-presidente: Sâmbara Paula Francelino Ribeiro

1ª. Secretária: Tânia Maria Ramos de Godoi Diniz

2ª. Secretária: Neile d’Oran Pinheiro

1ª. Tesoureira: Rosa Helena Stein

2ª. Tesoureira: Telma Ferraz da Silva

Conselho Fiscal

Silvana Mara de Morais dos Santos

Pedro Alves Fernandes

Katia Regina Madeira

Suplentes

Edval Bernardino Campos

Rodriane de Oliveira Souza

Marinete Cordeiro Moreira

Kênia Augusta Figueiredo

Marcelo Sitcovsky Santos Pereira

Maria Elisa dos Santos Braga

Maria Bernadette de Moraes Medeiros

Marylúcia Palmeira Mesquita

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