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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE ARTES LICENCIATURA EM TEATRO NADJA ROSSANA LOPES DE SOUSA O LABIRINTO: OS CAMINHOS DE DENTRO DA CRIAÇÃO CÊNICA - A BUSCA DOS ESTADOS D’ALMA NATAL/ RN 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE ARTES

LICENCIATURA EM TEATRO

NADJA ROSSANA LOPES DE SOUSA

O LABIRINTO: OS CAMINHOS DE DENTRO DA CRIAÇÃO CÊNICA - A BUSCA DOS ESTADOS D’ALMA

NATAL/ RN

2017

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NADJA ROSSANA LOPES DE SOUSA

O LABIRINTO: OS CAMINHOS DE DENTRO DA CRIAÇÃO CÊNICA - A BUSCA DOS ESTADOS D’ALMA

Monografia apresentada como parte das

exigências para conclusão do curso de

Licenciatura em Teatro pela Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos

Haderchpek.

NATAL/ RN

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2017

Nadja Rossana Lopes de Sousa

O LABIRINTO: OS CAMINHOS DE DENTRO DA CRIAÇÃO CÊNICA - A BUSCA DOS ESTADOS D’ALMA

Monografia apresentada como parte das

exigências para conclusão do curso de

Licenciatura em Teatro pela Universidade

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

Orientador

_______________________________________________ Profª. Dra. Lara Rodrigues Machado

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

_______________________________________________ Prof. Ms. Makarios Maia Barbosa

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

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Dedico às estrelas, aos sóis e às luas

A beleza e perfume da vida que irei descobrir

Aos amigos que meus olhos não vem, mas meu coração sente

Ao universo e força da vida que em nós habita.

Dedico aos céus!

Dedico ao amor!

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Agradecimentos

No decorrer dos muitos caminhos para chegar até aqui conheci, compartilhei,

aprendi, vivi muitas experiências com pessoas especiais que fazem parte do que hoje eu

sou e que de alguma maneira estão presentes nesse trabalho.

Começo agradecer a minha terra natal, Alexandria, uma pequena cidade no

interior do estado do RN, acredito que foi lá ao olhar as estrelas que plantei muitos

sonhos nos ares e sentia em meu corpo de menina que conseguiria realizar muitos

desses sonhos.

Cheguei até lá através de Maria de Lourdes de Sousa, minha mãe e Ademir

Freire de Sousa, meu pai que amorosamente me dedicaram seus melhores sorrisos e o

amor que hoje transborda em meu peito, pude compartilhar esse amor com meus irmãos

Hennedy Lopes de Sousa e Robson Charles Lopes de Sousa. Foi na vivência com essas

quatro pessoas maravilhosas que pude aprender um pouco sobre me relacionar, aceitar,

aprender com as diferenças, dizer sim e dizer não, cuidar, amar incondicionalmente.

Caio Felipe Nobre de Sousa, meu sobrinho, meu amigo, meu amor.

Os muitos caminhos me trouxeram a Natal, capital do estado do RN, que me

acolheu generosamente, e aqui pude reforçar e criar novos laços de amizades. Na maior

parte da minha estadia nessas terras me recordo das vivências com Kilvia Kaline

Fernandes Barbosa, Tázia Maria da Costa Albuquerque, Jussara Leida Nobre, Jane

Regia de Morais Oliveira, amigas sempre presentes com as quais conversei muito sobre

como vemos a vida e como podemos transformá-la. Assim como Jaciara Nobre, Karla

Nathaly Lacerda, Virna Lize de Oliveira e Ceiça Nobre Cardins, porém as escolhas do

dia a dia nos colocam um pouco distantes. Com todas sinto uma ligação genuína que

independe de tempo e espaço.

À Lia Hollanda, que viveu comigo meu primeiro contato com o teatro, foi um

momento singular, que sonhamos juntas, mesmo eu não sabendo nada, ela com sua

força, coragem me estimulou muito em querer tentar trilhar o caminho da arte. Contudo,

me desencontrei ao mesmo tempo em que reencontrei em outra estrada com Lidiane

Patrícia Bezerra, Fernanda Mariano e Michelle Vieira de Lima, sonhamos e desejamos,

e em alguns momentos divergimos, uma muito diferente da outra, mas que me

ensinaram na sutileza de um sorriso, na generosidade e na turbulência.

Comecei aos poucos a perceber meus próprios ciclos de mudança e Waldemar

Matoso foi um dos responsáveis por isso, me ensinou com palavras, mas principalmente

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com exemplo. Muitas vezes ele repetiu “ombro a ombro, lado a lado”, dedico meu amor

a esse grande Ser. Nessa etapa de minha vida, gratidão a Anna Neta, Cida Silva, pérolas

que me ajudaram e me ensinaram em seus tempos, sua dedicação e amizade. A

Alexandra Rosa, que abriu meus olhos para tantas coisas e penso que ela me ajudou a

perceber algumas das necessidades de minha alma, e me estimulou a buscar respostas

para minhas inquietações. Indiretamente ao meu regresso a arte, ao teatro.

A Jefferson Honorato, hoje meu grande amigo, foi meu companheiro durante

essa trajetória e com seu apoio direto me permiti seguir meu próprio coração, ao seu

lado ganhei uma outra família: Aldivan Honorato, Liberalina Bezerra Honorato, Fred

Honorato, Paola Honorato, João Batista e André Gurgell.

Ao primeiro professor de teatro que tive contato, Makários Barbosa, um homem

que merece ser olhado com delicadeza para ver a pureza de sua alma. Identifiquei em

Robson Haderchpek alguns valores e maneiras de pensar que já me eram cultivados na

vida e que foram aprimorados dentro de uma forma de fazer teatro. Isso me atraiu muito

e desejei vivenciar essa experiência. Ambos os professores contribuíram imensamente

para meu aprendizado durante esse tempo, e acredito que houve a quebra de barreiras

entre aluna e professores, pois os considero como amigos e desejo sempre carregá-los

em mim. São apaixonantes.

Na graduação estive ao lado de pessoas maravilhosas, sinto-me agraciada em

compartilhar quatro anos e meio com a turma de teatro 2013.1, foi rica a troca, os jogos,

as conversas, os encontros. À Naara Martins, Pablo Vieira e todos os outros e outras que

cativaram meu coração.

Na graduação encontrei também com Franco Fonseca e Mariclécia Araújo –

pensamos, somos diferentes, mas com leveza nos entendemos, pessoas que aprendi a

amar e querer estar sempre perto, essas relações foram reforçadas com a vivência no

Arkhétypos Grupo de Teatro. O Processo Ar me presenteou com o convívio e amizade

de Maria Flor, Francismar Silva, Allan Phyllipe, Ananda Krisna, Adriel Bezerra, Leka

Besi, Sebastião Silva, Thulho Cezar, Vanessa Souza, Cecília Moreno, Pierry Keyth,

Elizabeth Araújo, Laura Figueiredo. Rocio Tisnado e Igor Barboá foram grandes

companheiros de jornada também no Amareelos e na vida, cada qual detentor de uma

beleza sem igual que ajudou a me compreender em relação a eles. Cada laboratório um

encontro, uma descoberta, uma dor, um amor.

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O Mestre Delicado reforçou o meu olhar no trato com a amabilidade ao mesmo

tempo em que o guiou para a forma de conduzir o coletivo, sua dedicação e doação de

amor ao Grupo Nagôas. Isso me faz sempre pensar antes de propor um trabalho.

Todas as pessoas citadas – e mais tantas outras que tem seus nomes invisíveis

agora – fazem parte um pouco de mim, eu as amo. Aprendi, vivi, me descobri através

de seus olhos, sou agradecida a todos que me ajudaram a ser quem eu sou. Esse trabalho

é um reflexo disso. Agradeço ao planeta terra, ao universo, a consciência que a tudo

liga, a Deus.

Gratidão pela vida!

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RESUMO

Neste trabalho abordo e aproximo os termos que dão referência ou que introduzem o

estado de transe, bem dizer os estados alterados de consciência no processo criativo, a

partir da experiência que tive nos processos de criação dos espetáculos Revoada,

Amareelos e no Gosto de Flor, todos do Arkhétypos Grupo de Teatro, em perceptivas

distintas (atriz, diretora e espectadora). Partindo do entendimento do Ser humano

integrado em suas potências de corpo-mente-alma, que segundo o físico Amit Goswami

(2008a; 2008b) é conectado com tudo e todos através da consciência. Este trabalho

surgiu de questionamentos e inquietações de como se dava a imersão e o como poderia

potencializá-la ou negá-la se assim fosse minha vontade. Deste modo, comecei então a

buscar respostas no mapear dos caminhos de dentro e percebi como eles perpassavam e

se complementavam de formas distintas, contudo, sempre partiam da escolha do/a

artista em canalizar sua atenção e concentração no processo, ou seja, do quanto o/a

artista se coloca disponível para a criação, para a entrega. Trata-se, portanto, de uma

pesquisa qualitativa, que fez uso dos meus diários de bordo, assim como das memórias

das experiências vividas, estando em constante diálogo com autores como: Jerzy

Grotowski (1971; 2010), Carl Gustav Jung (1962; 2001), Yoshi Oida (2012), Antonin

Artaud (1987; 2004), Johan Huizinga (2012), Gaston Bachelard (2013), Peter Brook

(1999), Joseph Campbell (1990), Victor Turner (apud HADERCHEPEK, 2016), Joice

Aglae Brondani (2015) e Paul Brunton (1962). Este trabalho trata de uma caminhada,

que propõe em uma linguagem simples, tocar nos muitos nomes dados aos mais

variados níveis de transe dentro do processo criativo. A imersão, o transe, a vivência de

outras realidades possibilita tanto a criação cênica como o desenvolvimento da

espiritualidade do participante, e ambos só são possíveis dentro dos processos citados se

essa for uma escolha da/o artista, de doar-se por completo para a experiência na busca

dos estados d’alma.

Palavras-chave: Processo criativo, Imersão, Consciência, Transe, Estados Alterados de

Consciência, Espiritualidade.

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RESUMEN

En este trabajo abordo y aproximo los términos que dan referencia o que introducen el

estado de trance, los estados alterados de consciencia en el proceso creativo, a partir de

la experiencia que tuve en los procesos de creación de los espectáculos Revoada,

Amareelos y en Gosto de Flor, todos de Arkhétypos Grupo de Teatro, en perceptivas

distintas (actriz, directora y espectadora). Partiendo del entendimiento del Ser humano

integrado en sus potencias de cuerpo-mente-alma, que según el físico Amit Goswami

(2008a; 2008b) es conectado con todo y todos a través de la consciencia. Este trabajo

surgió de cuestionamientos e inquietudes en cómo ocurría la inmersión y el cómo podría

potenciarla o negarla si así fuera mi decisión. De este modo, comencé entonces a buscar

respuestas mapeando los caminos de dentro y percibí como ellos transitaban y se

complementaban de formas distintas, sin embargo, siempre partían de la decisión del/de

la artista en canalizar su atención y concentración en el proceso, o sea, de cuánto el/la

artista se coloca disponible para la creación, para la entrega. Se trata, por lo tanto, de

una investigación cualitativa, que hizo uso de mis diarios, así como de las memorias de

las experiencias vividas, estando en constante diálogo con los autores como: Jerzy

Grotowski (1971; 2010), Carl Gustav Jung (1962; 2001), Yoshi Oida (2012), Antonin Artaud

(1987; 2004), Johan Huizinga (2012), Gaston Bachelard (2013), Peter Brook (1999), Joseph

Campbell (1990), Victor Turner (apud HADERCHEPEK, 2016), Joice Aglae Brondani (2015) e

Paul Brunton (1962). Este trabajo trata de una caminada que propone en un lenguaje simple,

tocar en los muchos nombres dados a los más variados niveles de trance dentro del proceso

creativo. La inmersión, el trance y la vivencia de otras realidades posibilita tanto la creación

escénica como el desarrollo de la espiritualidad del participante, y ambos solamente son

posibles dentro de los procesos citados si esa fuera una decisión del/de la artista, de donarse por

completo para la experiencia en la búsqueda de los estados del alma.

Palabras clave: Proceso creativo, Inmersión, Consciencia, Trance, Estados Alterados de

Consciencia, Espiritualidad.

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LISTA DE IMAGENS

Figura 1 - Espetáculo Santa Cruz do Não Sei, 2013. Foto: Thiago Lima. ............................... 23

Figura 2 - Espetáculo Aboiá, 2013. Foto: Sandro Furtado. ...................................................... 24

Figura 3 - Espetáculo Revoada, 2014. Foto Diego Marcel. ..................................................... 24

Figura 4 - Espetáculo Fogo de Monturo, 2015. Foto: José Barbosa. ....................................... 25

Figura 5 - Espetáculo Éter, 2016. Foto: Bruna Justa e Álvaro Miranda. ................................. 26

Figura 6 - Espetáculo Amareelos, fevereiro de 2017. Foto: Wallace Yuri. .............................. 26

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SUMÁRIO

DESCOBRINDO CAMINHOS ............................................................................................. 13

1. CAPÍTULO 1: A ENTRADA DO LABIRINTO ............................................................. 16

2. CAPÍTULO 2: O PERCURSO – CAMINHOS DE DENTRO ...................................... 30

3 CAPÍTULO 3: TOCAR NO HORIZONTE - O CENTRO DO LABIRINTO

SEMPRE DISTANTE ............................................................................................................ 47

O LABIRINTO, O GRANDE MISTÉRIO, A SAÍDA SEM A CHEGADA ..................... 57

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 60

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DESCOBRINDO CAMINHOS

Fechei os olhos... 1, 2, 3...

Estou ao pé do cajueiro, olho o sol entre as folhagens. Um dos raios se sobressai e leva

o meu olhar para o outro lado, aonde vejo distante uma entrada. O meu corpo, minha mente e

minha alma estão dilatadas, desejo ver aonde o sol vai me levar. Estaria eu em um transe?

Joice Brondani (2015, p. 60) diz que: “É preciso, antes de tudo, compreender que o transe é

um fenômeno comum da experiência humana e uma forma particular de consciência

alterada”.

Neste trabalho abordo e aproximo os termos que dão referência ou que introduzem o

estado de transe, bem dizer os estados alterados de consciência no processo criativo, a partir

da experiência que tive nos processos de criação dos espetáculos Revoada, Amareelos e no

Gosto de Flor, todos do Arkhétypos Grupo de Teatro, em perceptivas distintas. Considero um

desafio abordar essa temática devido à carga simbólica a qual está submetida no cotidiano, ao

mesmo tempo tenho tranquilidade, tendo em vista que a ponte de partida é a minha própria

experiência – como senti, percebi e entendi esse estado em meu Ser.

Um dos fios condutores desta pesquisa é o entendimento da integralidade de corpo-

mente-alma, apresentando a consciência como fonte de ligação entre tudo e todos, como foi

pesquisado pelo físico Amit Goswami (2008a). Dar atenção, se envolver, afetar, ter o corpo

sensível, o corpo-vida, jogar, dar saltos – em espaços quânticos ou liminares, viver o

devaneio, o transe, o estado de “transiluminação” (GROTOWSKI, 2010) no jogo ritual,

dentro da prática corporal em laboratórios de criação. Trabalho aqui a perspectiva de jogo

segundo o professor e historiador Johan Huizinga (2012), em seu livro Homo ludens, em que

faz reflexões, lança conceitos, definições e possibilidades sobre o mesmo, e diz que o jogo:

[...] se baseia na manipulação de certas imagens, numa certa “imaginação”

da realidade (ou seja, a transformação desta em imagens), nossa preocupação

fundamental será, então, captar o valor e o significado dessas imagens e

dessa “imaginação”. (Idem, p. 7).

A travessia nesses muitos estados te transporta para outras realidades além da

cotidiana, e diante disso a minha pesquisa se baseou em alguns questionamentos: esses jogos

que manipulam certas “imaginações” da realidade podem te levar a ter experiências de

estados d’alma? E essas experiências laboratoriais podem possibilitar a esse/a artista, além de

um fragmento ou espetáculo cênico, um processo de desenvolvimento da espiritualidade?

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Penso e utilizo o termo “estados d’alma” por acreditar que durante o processo de

criação nós perpassamos por muitos estados que estão interligados com questões muito

íntimas do/a artista, que pode ter percebido isso ou não. Contudo, para entrar na fissura que

abre na realidade cotidiana é preciso se fazer a escolha de estar presente, dar a atenção e se

dispor a doar-se. E essa escolha nos coloca em um processo de desnudar a si mesmo, torna-se

um processo de desnude do outro, que também pode ser o espectador. E é nesse processo de

desnudamento que sugiro que aconteça o desenvolvimento da espiritualidade.

Com isso, me proponho a dar exemplos de alguns processos criativos que experienciei,

para assim fazer uma analogia dos muitos estados que se relacionam ao transe, e a partir disso

poder compreender suas aproximações e complementaridades. Portanto, a relevância dessa

pesquisa no campo acadêmico, bem como no artístico, está na naturalização do termo

“transe”. E será através de exemplos como esse que nós poderemos nos aproximar na prática

à semântica desses muitos nomes, que em alguns casos são colocados como complementares.

Ao longo deste trabalho faço uso de uma linguagem “acessível”, que também se faz

necessária dentro da academia, afinando e abrindo o discurso para que esse fique mais

compreensível e palpável a todos. Por isso proponho e faço uso de termos nessa nossa

conversa que são de fácil entendimento, ao mesmo tempo em que são usuais em nossa

sociedade.

Para isso brinco com o texto, transformo-o em metáforas e sugiro devaneios alinhados

à direita em itálico. Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo, onde faço uso de

fragmentos e análises dos diários de bordo dos processos criativos mencionados.

Alguns autores foram de suma importância para o desenvolvimento dessa pesquisa,

como Amit Goswami (2008a; 2008b), Jerzy Grotowski (1971; 2010), Carl Gustav Jung

(1962; 2001), Yoshi Oida (2012), Antonin Artaud (1987; 2004), Johan Huizinga (2012),

Gaston Bachelard (2013), Peter Brook (1999), Joseph Campbell (1990), Victor Turner (apud

HADERCHEPEK, 2016), Joice Aglae Brondani (2015) e Paul Brunton (1962). Proponho um

diálogo com esses autores, e estendo esse convite diretamente a você, leitor. Convido-a/o para

caminharmos juntos nessas estradas aonde cheguei.

Vamos percorrer o meu labirinto em três etapas, a primeira etapa (ou primeiro

capítulo) é o início dessa jornada, intitulada de A entrada do labirinto, onde situo o nosso

ponto de partida. Aqui você entenderá um pouco de onde viajo e como eu percebi em meu Ser

o início, a “atenção”, que se desdobra na concentração como chave de acesso no processo de

imersão das experiências vividas em outras realidades nos processos criativos no Arkhétypos

Grupo de Teatro. Nesse capítulo também apresento o grupo e as metodologias desenvolvidas

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durante os processos de criação, a partir do olhar de quem viveu os laboratórios de criação,

permeados pela Dramaturgia dos Encontros e A Poética dos Elementos dentro do Jogo

Ritual. A dramaturgia dos encontros parte da premissa de encontros consigo, com o outro e

com o público, já a poética dos elementos usa como inspiração os elementos da natureza (ar,

terra, fogo e água) e o jogo ritual. Ambos têm como base os encontros consigo e com o outro,

não fazendo distinção de ator, atriz e o público, e abordam o desvelar de si através do jogo.

A segunda etapa foi denominada de O percurso – Caminhos de dentro. Esse segundo

capítulo evidencia inicialmente que é preciso fazer escolhas para conseguir realizar a

caminhada dentro do labirinto. Nele nós passamos por muitos nomes (concentração,

concentração desfragmentada, imaginação, salto quântico, espaço quântico, liminaridade,

corpo sensível, corpo-vida) dados aos estados que a/o artista e o espectador têm acesso

durante o processo de criação. Nele também é discutida a vivência das variadas realidades que

acessa o arquétipo identificado pelo mito presente no inconsciente coletivo (JUNG, 1962).

Nesse capítulo a caminhada é longa, com muitos obstáculos, e é por esse motivo que

precisamos escolher e nos entregar à imersão para poder entender como acontecem esses

estados, é a integração de corpo, mente e alma que se dá através da doação de si ao processo

para poder ter acesso às muitas realidades criadas pela ação, imaginação e impulsos.

E a terceira parte é o Tocar no horizonte, o centro do labirinto sempre distante, onde

falo de termos que normalmente são usados para a definição de estados como o transe, o

devaneio, os estados alterados de consciência, assim também como o termo

“transiluminação”, pesquisado por Jerzy Grotowski. São os muitos caminhos do labirinto que

me possibilitam perceber a consciência presente e as oportunidades de desenvolvimento da

espiritualidade.

E nas considerações finais, intitulada de O labirinto, o grande mistério, a saída sem a

chegada, proponho pensar que o labirinto que vamos juntos percorrer são os caminhos de

dentro, a imersão que vivi nessas experiências. Que me provocaram e provocam a pensar em

um fazer teatral integrativo, onde o Ser humano possa ser visto na sua integralidade e

complexidade, onde suas inquietações mais íntimas possam ecoar verdades universais, e que o

encontro consigo, com o outro e com o espectador possa ser transcendente, ilumine e

multiplique a importância do Ser em movimento, assim como desvendar os mistérios dos

caminhos de dentro.

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1. CAPÍTULO 1: A ENTRADA DO LABIRINTO

Olhar o céu, as plantas, o mar, a natureza, o ser humano muitas vezes causa em mim

um efeito contemplativo, uma imersão, um sentir pro-fundo...

Vejo o sol através do cajueiro, é tão forte e brilhante,

entre tantas folhagens, frutos e a distância que nos separa,

ele ainda me encandeia...

Sua luz me encandeia, fecho os olhos,

seus raios que antes estavam fora, agora estão dentro de mim

provocam sorrisos e lágrimas

uma explosão de raios começam sair pela minha pele.

Sinto e escuto minha respiração,

energias, movimentos, imagens, ações,

cores, formas sem formas

ritmos, sons e silêncios desnudam a vida.

Músicas e um pulsar ecoam no corpo

A mente está livre, então ela brinca, só brinca

Tempo e espaço ganham novos ângulos e contornos

Histórias são vividas e compartilhadas.

...no decorrer de minha vida percebi que outros estímulos me levam para esse estado1, tendo

eu a escolha de me permitir um aprofundamento ou não nessa outra realidade, nesse labirinto.

Os primeiros labirintos são datados a mais de 4.000 anos, esculpidos nas paredes, e

outros tantos em grandes espaços em várias partes do mundo. Como exemplo, posso citar o

labirinto encontrado nas Linhas de Nazca, localizado no Peru, que acreditam ter sido

construído em 200 a.C.; entre 500 d.C, o Labirinto de Dédalo, em Cnossos, na ilha de Creta,

localizada na Grécia e que especulam que a sua construção tenha sido em 2000 a.C.

Labirintos são constituídos de vários caminhos imbricados, que tencionam para chegar

no ponto central, mas para isso é preciso escolher qual caminho seguir, podendo deixar a

trajetória mais longa ou curta, com mais ou menos perigos, aventuras e desafios. Quem faz o

seu caminho é você! O que aparenta ser um Caos nos vários caminhos do labirinto são apenas

possibilidades que geram a Ordem, caminhos de dentro que te levam ao centro.

Convido-te a entrar no labirinto que percorri, que agora, após a experiência como atriz

no espetáculo Revoada, na condução do Amareelos e ao assistir os laboratórios de criação do

espetáculo Gosto de Flor, busco identificar como se deu minha imersão dentro dos caminhos

1 O termo “estado” que faço uso no decorrer do texto privilegia seu entendimento a partir de sua origem do latim

status, us: modo de estar, situação, condição.

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pelos quais andei nos processos criativos do Arkhétypos Grupo de Teatro, que mais adiante

apresentarei.

Os labirintos aqui são nesse caso os “caminhos de dentro”, os caminhos percorridos

individualmente, porém compartilhados e complementares, vivenciados com os demais

participantes dos processos criativos no Teatro Ritual2.

Na tentativa de entender o percurso da imersão, comecei a ver um pequeno mapa

esculpido na entrada do labirinto, que se assemelhava com a estrutura do ser humano. Percebi

a sua imensidão, o quanto seria difícil o percurso, contudo, não era possível ver detalhes, ou

dicas para levar na caminhada, a única certeza era: é preciso entrar e estar em “estado de

atenção”, com o olhar físico e/ou metafórico debruçado no percurso, mesmo que

gradativamente houvesse alternâncias de intensidade e fluxo energético, fazendo-se

necessário dar outros nomes a esse estado. A atenção pode ser interna ou externa, a que

estamos analisando aqui inicialmente é a atenção interna. Sobre esse tema, a “Coaching”

Aline Caldas3 trabalha com o termo de atenção plena que é o estado de atenção em que

estamos com plena consciência do momento presente. A mesma apresenta algumas

características que são muito importantes para os processos criativos que cito neste trabalho,

que são: ser você mesmo; aceitar e valorizar o que o momento oferece; ser paciente consigo e

com os outros; confiar em si e em seus sentimentos; e permitir que as coisas sejam como são.

É a atenção que vai permitir que a/o artista percorra o seu próprio labirinto. A atenção

foi um elemento de fundamental importância para todo o processo, a chave disparadora das

experiências vividas e que agora compartilho com você. O estado de atenção se refere a

estarmos integramente (físico e emocional) envolvidos com o que fazemos e o quanto estamos

motivados para fazê-lo.

Quando meu colega Huichol quis explicar aos europeus como comportar-

se... Utilizou a palavra “concentração”, disse precisamente qual posição

associar com qual movimento, mostrou isso tudo e disse: “Vocês estão

concentrados”. “Ah” – eu disse a mim mesmo – “é uma palavra que não é do

seu vocabulário”. E lhe disse: “Escute, o que quer dizer ‘concentração’”? E

ele respondeu: “Atenção”. “Isso – disse a mim mesmo – “é muito mais

próximo ao seu vocabulário, mas ainda não é preciso”. E disse: “Mas o que

significa ‘ter atenção’?” e ele deu a melhor definição que eu jamais ouvi, a

melhor subjetivamente, para mim. Disse: “Os pés estão bem apoiados sobre

a terra; você olha e vê não olha somente, você vê; você escuta e sente

(entends) e não escuta somente, você sente”. Sim, é exatamente isso: ter os

pés bem apoiados sobre o chão; ver e sentir: é atenção. [...] A atenção, a

2 O Teatro Ritual, de acordo com Mariz (2008), atribui estruturas ritualísticas à cena, capazes de levar o

espectador a atravessar através da pulsação do corpo do ator, uma capacidade penetrante e espontânea de ser. 3 Disponível em: <www.alinecaldas.com/voce-sabe-o-que-e-estado-de-atencao/>. Acesso em: 12 de maio de

2017.

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podemos dirigir com ênfase sobre o mundo, como dizemos, externo, mas é

também possível dirigi-la para o mundo interno. (GROTOWSKI apud

BRONDANI, 2015, p. 128).

O estado de atenção apontado por Danielle Kriszanovski4 é quando estamos

conectados com nosso corpo, mente e emoções, em qualquer momento do dia, estamos

despertos e conscientes. O estado de atenção possui variações, desde uma atenção leve a um

processo mais profundo, e estas são variações nomeadas distintamente por muitos

pesquisadores. Palavras que possuem o sentido parecido e ao mesmo tempo se diferenciam,

em nossa visão em alguns momentos se encontram em convergência dando continuidade uma

à outra.

Olhos de águia

Um ponto no horizonte

O voo em sua direção

O que antes era um ponto

Começa a ganhar forma

Começa a ganhar cores

Entra em outras dimensões de vida

Durante a caminhada quero conversar com você leitor/a, sobre algumas dessas

nomeações, formando uma linha de pensamentos. Não há o que se provar, sigo apenas um

desejo de tocar nessas intensidades energéticas5 que dão sentido às palavras e como elas são

necessárias nessa trajetória.

Então adentramos em estado de atenção no labirinto, e observando o que tinha

disposto na estrada, percebemos que ao darmos atenção a algo ou alguém, damos também um

grau de importância, e aqui não pretendemos colocar um juízo de valor de bom e ruim, bem e

mal, apenas direcionamos nosso olhar e a nossa atenção através de critérios individuais e

relativos, algo que nos atrai ou repele, que de alguma maneira se comunica com a pessoa que

somos, ou poderíamos dizer: a pessoa que estamos sendo naquele instante, considerando que

4 Disponível em:<http://www.daniellekrizanovski.com.br/2016/07/29/infografico-sobre-a-meditacao-atencao-

plena/>. Acesso em: 12 de maio de 2017.

5 Termo normalmente utilizado na física. “Intensidade” no dicionário Aurélio diz respeito a ser intenso e possuir

variações; Já para o nome energia tem algumas explicações de sua origem, as que apresento aqui, ambas vem do

gregoέν, "dentro", e εργον, "trabalho, obra”), ou seja, "dentro do trabalho"; a outra “energueia”, “forças em

ação”. Damos importância às duas traduções. Quando usarmos o termo intensidades energéticas estaremos

direcionando nosso olhar para as variações (baixa a elevada, primária a complexa, parcial a plena) de

intensidades das forças intrínsecas. Já em relação ao conceito de energia: ela não tem peso e só pode ser medida

quando está sendo transformada, ou ao ser liberada ou absorvida. Por isso, a energia não possui unidades físicas

próprias, sendo expressa em termos das unidades do trabalho que realiza. Em outras palavras, energia é a

capacidade de realizar trabalho. Disponível em:

<http://www.fisica.net/mecanicaclassica/materia_e_energia.php>.Acesso em: 12 de maio de 2017.

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o ser humano está sempre em transformação. Um ser em movimento. Segundo o psicólogo e

filósofo William James (1890, s.p.)6, a atenção:

[...] é a tomada de posse pela mente, de forma clara e vívida, de um entre

diversos objetos ou esquemas de pensamento simultaneamente possíveis.

O foco e a concentração da consciência são sua essência. Implica na

retirada de algumas coisas com a finalidade de lidar efetivamente com

outras. (grifo do autor).

Entendo que o ato de dar atenção passa por um processo de escolha na consciência do

indivíduo, mesmo que não seja percebido, trazemos um exemplo prático: quando dirigimos

um automóvel, a todo instante precisamos estar atentos e tomar decisões, viramos à direita ou

à esquerda, seguimos adiante, freamos, voltamos, paramos. Algumas dessas escolhas sabemos

imediatamente o porquê, já outras não, tornam-se “automáticas”, “não pensamos na hora”,

apenas realizamos. Apertando na embreagem, passando uma marcha, fazemos uma mudança

de rota, ações algumas vezes “invisíveis”. Se prestarmos atenção ao nosso corpo, pensamento,

escolhas e aos motivos que nos levam a fazer cada ação, trazemos luz para muitas das

decisões que são tomadas que parecem automatizadas, ou que nosso corpo já conhece o

caminho, já outras vão requerer de um aprofundamento maior para que compreendamos suas

razões. Peter Brook (1999, p. 57-58) fala que: “Não podemos ignorar que expressamos

incessantemente milhares de coisas com todas as partes de nosso corpo. Não temos

consciência disso na maior parte do tempo, o que leva o ator a uma atitude corporal difusa,

incapaz de magnetizar a plateia”.

Um bom caminho é desenvolver a consciência sobre si, e pode-se começar pela parte

mais tátil que é seu corpo físico. É importante conhecer cada parte do corpo, cada cicatriz, a

textura da pele, o cheiro, o sabor do suor, a respiração, assim como se dão os movimentos

internos e externamente, as reações e respostas aos vários tipos de estímulos, quais são os

limites impostos por você mesmo e como ultrapassá-los se assim desejar, como o seu

organismo recebe o contato energético, verbal, tátil, paladar, auditivo, visual, olfativo. Essas

questões servem para os outros compostos corporais mais complexos que colocamos aqui

como a mente e a alma. Todos integrados num contato sinestésico. Nesse sentido, Mariana

Garcia Marques (2009, p. 01) no artigo que discute sobre consciência corporal, usa a citação

de Therese Bertherat:

Nosso corpo somos nós. É a nossa única realidade perceptível. Não opõe à

nossa inteligência, sentimento, alma. Ele inclui e dá-lhe abrigo. Por isso,

6 Disponível em: <http://psicoativo.com/2015/12/atencao-psicologia-cognitiva-tipos-atencao.html>. Acesso em:

20 de maio de 2017.

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tomar consciência do próprio corpo é ter acesso ao ser inteiro... Pois, corpo,

espírito, psíquico e físico e até a força e fraqueza, representam não a

dualidade do ser mais sua unidade. (BERTHERAT apud MARQUES 2009,

p. 01).

Os sentidos do ser humano são portas de acesso para desenvolver o conhecimento

sobre si, assim como também para a entrada e saída da imersão nos estados de atenção que

proponho no labirinto. Não se limita aos cinco sentidos (visão, audição, paladar, olfato e tato),

em meu entendimento, tem o sentir da unidade corpo-mente-alma, da energia que pulsa

individual e coletiva, da intuição, da percepção que integra todo o Ser e nos permite conhecer

e reconhecer os mais variados estímulos e quais deles atraem nossa atenção e potencializam

nossa compreensão sobre o Ser em movimento que somos. É através dos múltiplos sentidos

que o Ser se percebe conectado com o todo e principalmente consigo mesmo.

Pensando na integralidade do Ser em movimento, creio que nós, seres humanos somos

formados de matérias vibracionais7 densas e sutis, assim como a constituição de todo o

universo. Na física quântica a abordagem parte da compreensão de algo comum que liga a

tudo e a todos e antecede a matéria, toda matéria tem consciência, porém, nem toda

consciência tem matéria, ou seja, o que nos conecta é a consciência, e isso cria uma

divergência com a física clássica que afirma que tudo é parte da matéria. Amit Goswami em

sua perspectiva, diz que é a consciência e não a matéria a base de toda existência; penso

então: não seria a consciência um tipo de energia mais sutil?

Partículas e ondas integradas são denominadas de “ondícula”8. Novos conceitos

surgem e com eles muitos questionamentos que colocam o entendimento do mundo material

que conhecemos em cheque; a partir daí ampliam-se as possibilidades e integram-se os

conhecimentos que socialmente não são considerados ciência, como os de cunho artístico,

filosófico, religioso, popular e ancestral. A longo prazo muitos desses conhecimentos

passarão a ser valorizados em seus campos de ação e integrados a outros. Nesse processo de

inclusão, muitos conhecimentos que ainda se encontram sob o véu do desconhecido irão

7A matéria inclui os materiais que formam o Universo: as rochas, a água, o ar e a multiplicidade de coisas vivas.

Tudo que é sólido líquido ou gasoso é uma forma de matéria. Vibração é um movimento periódico tal como a

oscilação de uma partícula, sistema de partículas ou de um corpo rígido em torno de uma posição de equilíbrio.

Faço uso do termo “matérias vibracionais” a partir do conceito de Goswami de partícula e onda = ondícula.

Fazemos uma associação livre: partícula (matéria densa – corpo físico) e onda (matéria sutis – corpo mental e

espiritual), assim colocamos esses corpos complementares que constituem o Ser humano como matérias

vibracionais. 8 Segundo Goswami (2008, p. 64): “[...] As naturezas de onda e partícula do elétron não são dualísticas, nem

simplemente polaridades opostas, disse Bohr. São propriedades complementares, que nos são reveladas em

experimentos complementares. [...] Os életrons não são ondas nem partículas. Poderíamos chamá-los de

“ondículas”, porquanto sua verdadeira natureza transcende ambas as descrições. Este é o principio da

complementariedade”.

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emergir em direção ao sol, assim favorecendo ao surgimento de muitas pesquisas sobre esse

novo olhar. Tudo que existe tem a mesma origem energética e tudo que surge é um

desdobramento dessa energia, sendo assim, o Ser humano e todo o universo possuem a

mesma potencialidade, porém é necessário conhecer, reconhecer e desenvolver. Fred Alan

Wolf ressalta na introdução do livro de Goswami (2008, p. 14) que:

[...] o universo é “autoconsciente” e que é a própria consciência que

cria o universo físico. [...] Nos seus termos, consciência é algo

transcendental – fora do espaço-tempo, não local, e que está em tudo.

Embora seja a única realidade, só podemos vislumbrá-la pela ação que

cria os aspectos material e mental de nossos processos de observação.

A atenção de um observador em seus múltiplos estados faz parte do caminho do

vislumbre dessas realidades e é determinante para que os experimentos se validem. O

resultado vai depender de muitas variáveis condicionadas à perspectiva do observador na

física quântica, assim colocamos que também acontece no processo de criação teatral, é

necessário o olhar atento do observador para si, percebendo como se dá o experimento, para

posteriormente analisar os resultados da mudança da frequência energética que se deu em seus

corpos (corpo/mente/alma) - o Ser integrado, aquecido, excitado passando a ter acesso à

vivência em outras realidades, o salto quântico.

O físico Amit Goswami, em seu livro Criatividade Quântica: como despertar o nosso

potencial criativo (2008, p. 62) explica nas páginas 44 a 68 como se dá fisicamente o salto

quântico. Posso exemplificar como o autor entende o que acontece durante o salto quântico

com a seguinte citação: “Observar elétrons, disse o físico-filosofo Henry Marguenau, é como

observar vaga-lumes em uma noite de verão. Podemos ver um lampejo aqui e um piscar de

luz ali, mas não temos ideia de onde o vaga-lume está entre as observações. Não podemos

com qualquer confiança, definir uma trajetória para ele”. Coloco aqui o momento que o

lampejo da luz se apaga como o salto de acesso e quando ele retoma sua claridade, que

permite que o observador veja e viva essas outras realidades.

Antes de seguir o voo

Meus olhos vão te guiar

Te mostrar onde estou

Quem eu sou

Você pode estar se perguntando o que isso tem a ver com o labirinto e com o processo

criativo? Te responderei. Tudo.

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O mesmo se deu no processo de criação teatral que retrato a experiência, quando o/a

ator/atriz consegue dar os saltos quânticos não sabe em qual realidade ele se encontrará

antecipadamente, quais as histórias que vai acessar e desenvolver. Existe o espaço para o

novo, ao criar não partimos do nada, contudo é possível criar significados a partir de uma

perceptiva específica e é isso que torna uma criação nova e única.

O percurso do labirinto se traduz nas imersões dos laboratórios – assim chamados os

momentos de reunião para a realização das vivências práticas do processo criativo – e tem

relação com a forma com que vemos, sentimos e vivemos o mundo, principalmente quando

falamos do ponto de vista do Teatro Ritual, criado com base no Teatro Laboratório:

Em princípio era um teatro. Depois um laboratório. Agora é um lugar em

que tenho a esperança de ser fiel a mim mesmo. É um lugar em que espero

que cada um dos meus companheiros possa ser fiel a si mesmo. É um lugar

em que o ato, os testemunhos dados pelo ser humano serão concretos e

corpóreos. [...] Onde se quer ser descoberto, desvelado, nu; sincero com o

corpo e com o sangue, com a inteira natureza do homem, com tudo aquilo

que podem chamar como quiserem: intelecto, alma, psique, memória e

coisas semelhantes. Mas sempre tangivelmente, por isso digo: de maneira

corpórea, porque tangível. É o encontro, ir ao encontro, ser desarmado, não

ter medo um do outro, em nada. Eis o que eu gostaria que fosse o Teatro

Laboratório. E não é essencial que se chame de Laboratório, não é essencial

se em geral for chamado de teatro. Um tal lugar é necessário. Se o teatro não

existisse, encontraríamos um outro pretexto. (GROTOWSKI, 2010, p. 210).

Esse é um trecho apresentado por Grotowski para o Teatro Laboratório, e é nessa

vertente que entendo e que entendemos (enquanto coletivo também) os laboratórios do

processo de criação, um espaço onde o ser humano encontra-se livre. São dadas as condições

e estímulos onde possa acontecer gradativamente essa conexão consigo e com o outro. É

nesse desnudar que temos a oportunidade de nos conhecer melhor, de estarmos mais próximo,

conectados, e ao mesmo tempo nos deixar conhecer. É nesse lugar que nos desfazemos das

máscaras sociais, que nos permitimos ser quem somos, sem medo e sem julgamento,

simplesmente um ser humano.

Para continuar a caminhada acredito que seja importante você conhecer onde e como

eu estava quando resolvi entrar no labirinto. Aluna do segundo semestre do curso de

Licenciatura em Teatro da UFRN, o ano era o de 2013, estava com 30 anos nesse período,

possuía uma formação em Administração com habilitação em Marketing, que obtive no ano

de 2008. Era Produtora de Marketing e Eventos, trabalhava há mais de dez anos de forma

direta e indireta com tomadas de decisões rápidas, pensamentos estratégicos em uma

perspectiva voltada para ações mercadológicas dentro do sistema de geração de valor

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empresarial. Ao mesmo tempo acreditava na transformação humana e nas múltiplas

possibilidades de se viver com simplicidade e harmonia consigo e com o outro; aqueles

instantes eram de muitos questionamentos sobre como aliar o que acreditava com o meu

modo de vida. Eram questionamentos em que eu precisaria de tempo, de maturação e que só

vivendo dia após dia poderia chegar às respostas para minhas indagações.

Fui convidada a participar do Arkhétypos Grupo de Teatro, para o até então chamado

de Processo AR. O grupo já contava com uma trajetória, que se iniciou no ano de 2010 a

partir de um projeto de Extensão da UFRN, coordenado pelo Prof. Dr. Robson Haderchpek.

Esse trabalho ocorreu em conjunto com alunos que participavam de uma investigação teatral,

em que inicialmente pesquisaram sobre a temática/elemento água. Eles investigavam as

histórias de pescadores da Vila de Ponta Negra, localizada na cidade de Natal / RN, a qual deu

origem ao primeiro espetáculo do grupo, intitulado de Santa Cruz do Não Sei. No ano de 2012

houve a entrada e saída de alunos e pessoas da comunidade, renovando assim o quadro de

integrantes para uma nova investigação, desta vez sobre o sertão do RN, com o tema ligado à

terra, dando origem ao segundo espetáculo do grupo, Aboiá.

Figura 1- Espetáculo Santa Cruz do Não Sei, 2013. Foto: Thiago Lima.

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Figura 2 - Espetáculo Aboiá, 2013. Foto: Sandro Furtado.

No segundo semestre de 2013 se inicia a investigação a qual adentro no grupo, e que

partiu do conto persa A conferência dos Pássaros, do autor Farid Ud-Din Attar. Todo elenco

foi alterado e a referência elementar para esse processo foi o ar, o que resultou no espetáculo

Revoada, que estreou em agosto de 2014. Em paralelo estava sendo desenvolvida a pesquisa

com o elemento fogo com alguns dos membros do grupo que participaram dos espetáculos

anteriores, nesse processo abordaram o “aspecto feminino” durante a ditadura militar, o que

deu origem ao espetáculo Fogo de Monturo, que teve estreia em 2015.

Figura 3 - Espetáculo Revoada, 2014. Foto Diego Marcel.

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Figura 4 - Espetáculo Fogo de Monturo, 2015. Foto: José Barbosa.

Em 2016 teve início a pesquisa sobre o elemento éter, o homônimo espetáculo propõe

o viver essa fissura no espaço em celebração do cosmo para libertar a alma humana, sua

estreia ocorreu no primeiro semestre de 2017. Nesse mesmo período acontecia a investigação

objeto de pesquisa de mestrado de Rocio Tisnado9, que partiu da figura mítica de

Quetzalcoatl10, em relação a alguns aspectos da cultura brasileira (como os índios e a

capoeira). Esse processo, mesmo se tratando de uma pesquisa voltada para pós-graduação,

também contou com a participação de algumas pessoas que participaram de outros

espetáculos do grupo, e que contribuíram para o nascimento do espetáculo Amareelos, que

também estreou no ano de 2017. Nesse mesmo ano se iniciou a pesquisa sobre o amor, onde

buscava trabalhar as nuances desse sentimento na perspectiva do olhar masculino e como ele

se dá entre suas muitas relações, a pesquisa está em andamento e tem estreia marcada para

junho, trata-se do espetáculo Gosto de Flor.

9Atriz do Arkhétypos Grupo de Teatro. 10Quetzalcoatl é uma divindade das culturas mesoamericanas, cultuada especialmente pelos astecas e pelos

toltecas, e identificada por alguns pesquisadores como a principal deidade do panteão centro-mexicano pré-

colombiano. Seu nome significa “serpente emplumada”.

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Figura 5 – Espetáculo Éter, 2016. Foto: Bruna Justa e Álvaro Miranda.

Figura 6 – Espetáculo Amareelos, fevereiro de 2017. Foto: Wallace Yuri.

Os espetáculos Santa Cruz do Não Sei, Aboiá, Revoada e Éter foram dirigidos por

Robson Haderchpek, e o espetáculo Fogo de Monturo teve a direção de Luciana Lyra, que a

nosso entender fecham o ciclo Elementais. O espetáculo Amareelos teve a minha condução, e

o Gosto de Flor está sendo conduzido por Lara Machado, que abre um novo ciclo de

processos criativos, que acreditamos que só será possível nomear na maturação desse novo

tempo que se apresenta.

Robson Haderchpek, Luciana Lyra e Lara Machado possuem metodologias próprias, e

eu faço uso das metodologias desenvolvidas por Haderchpek, apesar de saber que já não é a

mesma coisa, pois meu corpo (corpo/mente/alma) tem impulsos diferentes. Citarei neste

trabalho exemplos do meu olhar enquanto pesquisadora em perspectivas diferenciadas, pois

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no espetáculo Revoada colocarei a minha perspectiva enquanto atriz, já no Amareelos, trata-se

de uma perspectiva voltada para a condução. E no Gosto de Flor participo como olhar de fora,

assistindo aos laboratórios. Deste modo pude dar a devida importância aos vários estados de

imersão pelos quais passa o artista no processo de criação.

O mar se abriu,

Sua ÁGUA dá espaço para TERRA

a estrada para o novo mundo

pessoas que carregavam suas tochas de FOGO

tentam ver onde vão

dar luz para suas vistas

o tempo passa tempo

e o vento com suas rajadas de AR

anuncia a chegada do novo dia

o dia da ETERnidade

onde tudo nasce em AMAREELOS

na ponte do AMOR.

O Arkhétypos vem adotando A Dramaturgia dos Encontros e A Poética dos Elementos

dentro do Jogo Ritual como metodologias de criação que foram e continuam sendo desveladas

pelo diretor Robson Haderchpek ao logo dos anos e em cada processo criativo. Cada grupo de

atores respondiam aos estímulos propostos de maneira singular, criando relações que

germinavam as cenas, porém, muitas vezes as escolhas das relações não se davam de maneira

inteligível no primeiro momento, o corpo dotado dessa atenção dava luz ao caminho que seria

gradativamente construído em cada encontro laboratorial de criação.

Vou explicar um pouco sobre como funcionam essas metodologias, porém será a partir

do que senti na vivência, para só depois entendê-las. Sugiro não tentar entender com a cabeça.

Leia, só leia! Logo em seguida busque ter essa experiência e sentir como ela se dá em você,

acredito que só assim, através da vivência, a compreensão se concretize em você

(corpo/mente/alma) por ter percorrido os seus caminhos de dentro. A Dramaturgia dos

Encontros partiu do entendimento que Haderchpek teve da proposição de Grotowski (1971, p.

41), que afirma:

A essência do teatro é um encontro. O homem que realiza um ato de auto-

revelação é, por assim dizer, o que estabelece contato consigo mesmo. Quer

dizer, um externo confronto, sincero, disciplinado, preciso e total - não

apenas um confronto com seus pensamentos, mas um encontro que envolve

todo ser, desde os seus instintos e seu inconsciente até o seu estado mais

lúcido.

Haderchpek propôs um desdobramento dessa compreensão, que trata das relações

criadas durante a concepção do espetáculo nas vivências laboratoriais, em que o ator se

desnuda, se doa e se revela para si e para o outro, assim como também na apresentação para o

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espectador. Essas relações são compostas por três momentos: o encontro consigo mesmo, o

encontro com o outro e o encontro com o participante/espectador, daí deriva o nome

dramaturgia dos encontros.

A Poética dos Elementos tem a ver com os estímulos propostos durante o processo de

criação enquanto imagens, pulso, ritmo, fluxos energéticos pensados a partir dos elementos da

natureza: água, fogo, terra e ar, o como essas energias enquanto matérias vibracionais densas

e sutis repercutem no Ser em sua integralidade - corpo/mente/alma. Gaston Bachelard (2013,

p.3-4) coloca que é “[...] possível estabelecer, no reino da imaginação, uma lei dos quatro

elementos, que classifica as diversas imaginações materiais conforme elas se associem ao

fogo, ao ar, à água ou à terra”. Cada elemento com sua característica, cada pessoa com sua

personalidade composta pela junção de todos os elementos, com intensidades e percentagens

diversas de cada elemento, que trazem impulsos e ações distintas na vida e também nos

processos criativos. É tal como explica Yoshi Oida:

Primeiro, vocês são a água, depois a água junta pouco a pouco suas forças e

se torna onda, que se transforma logo em seguida em tempestade e,

finalmente, em furação. Após o que, tronam-se um ser humano que foi

tragado pelo furação. Estão totalmente esgotados, de modo que se contentam

tão-somente em boiar na superfície da água. [...] Primeiro vocês são o vento,

depois o vento fica mais forte e se transforma em fogo. O fogo destrói tudo e

se torna terra firme. (OIDA, 2012, p. 20).

A relação com cada elemento vai de acordo com a necessidade do ator, que pode ter

uma relação superficial ou se aprofundar no elemento com o qual tem maior afinidade no

momento. A dramaturgia dos encontros e os estímulos elementais formam imagens e

histórias que são integradas umas nas outras pelo fluxo da ação corporal, ação imagética e

ação energética criadas na atmosfera do laboratório, que ligam os impulsos individuais aos

coletivos. Esses procedimentos acontecem ao mesmo tempo dentro do Jogo Ritual:

O “jogo ritual” (GROTOWSKI, 2007) situa-se entre o “jogo dramático”

(LOPES, 1989) e o “jogo teatral” (JAPIASSU, 2001), pois ele trabalha numa

perspectiva de jogo que parte do encontro do ator consigo mesmo, com seu

universo interior, e o coloca numa dimensão liminar, que será compartilhada

posteriormente com o público. No “jogo ritual”, não há uma separação entre

atores e espectadores, todos fazem parte de uma comuna, porém, quem está

no foco da ação o faz para ser visto e para envolver quem vê numa atmosfera

lúdica e liminar. (HADERCHPEK, 2017, p. 2651).

A atmosfera do jogo ritual se instaura a partir do impulso corpóreo energético sentido

pelo indivíduo, colocando em evidência suas inquietações. Esse impulso tem a ver com sua

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experiência de vida, assim como também com o ciclo que vive no tempo presente, sendo

colocado em fricção com o coletivo. É no jogo ritual que a Dramaturgia dos Encontros e A

Poética dos Elementos se fundem em um só fluxo, gerando uma imersão e um sentir “pró-

fundo”, a entrega total: “[...] a autopenetração, a revelação - exige uma mobilização de todas

as forças físicas e espirituais [...]” (GROTOWSKI, 1971, p. 22) do ator no jogo ritual.

É durante o jogo ritual que as imagens corporais dos personagens começam a ser

formadas com toda a sua força histórica e potência de vida, isto é, são acionados os arquétipos

da humanidade que estão presentes no inconsciente coletivo, que segundo Carl Gustav Jung

traduz-se como (2001, p. 86), “[...] uma figuração do mundo, representando a um só tempo a

sedimentação multimilenar da experiência”. Compreendo que só é possível acessar as

imagens arquetípicas quando de alguma forma ou intensidade a/o artista tenha em sua

constituição íntima ligação com a energia geradora do determinado arquétipo. Adiante

entraremos um pouco na significação dessas imagens arquetípicas.

As histórias vão se fazendo presentes, criando células de cenas que são desenvolvidas

no decorrer dos laboratórios, não há uma sequência de ordem para elas aparecerem, “as

imagens da poesia no teatro são uma força espiritual que começa sua trajetória no sensível

[...]” (ARTAUD, 1987, p. 37), muitas vezes é o embrião a ser desenvolvido. O olhar sensível

do diretor é fundamental na condução, no desemaranhar e na costura das histórias que se

revelam.

Antes de chegar à criação dos personagens, o artista vive estados corporais, mentais e

energéticos, que são intensificados durante o jogo, e então retomamos aqui o nosso foco que é

a investigação desses estados que perpassam o/a artista durante o processo de criação dentro

dos laboratórios.

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2. CAPÍTULO 2: O PERCURSO – CAMINHOS DE DENTRO

Após um tempo de caminhada no labirinto, passamos por muitas curvas, ladeiras e

obstáculos, porém é a primeira vez que nos deparamos com uma bifurcação, é hora de

escolher. Qual caminho seguir? Talvez você opte pelo caminho contrário do meu, mas

independente do percurso escolhido é necessário saber que é fundamental escolher e isso

poderá te colocar dentro ou fora do labirinto, que é a imersão nos processos criativos. A

escolha também se faz necessária em todos os momentos da vida, mesmo que essa não seja

compreendida inicialmente ou que pareça automática.

Coloco aqui que a escolha é uma ação compreendida ou não. Distancio o ato de

escolher da obrigatoriedade de estar ciente, de perceber. Entendo que a escolha permeia o

consciente e o inconsciente. Associo que ela está ligada à consciência que inicialmente Amit

Goswami (2008, p. 21) propôs em seu livro (tendo a posteriori outros desdobramentos):

“suponhamos que definimos consciência como agente que afeta objetos quânticos para tornar

o comportamento apreensível pelos sentidos”. Sendo assim, a escolha é ligada à consciência,

que por sua vez afeta o indivíduo em seu comportamento. A escolha tem relação com os

nossos sentidos, se conecta como um impulso íntimo do Ser e não com um ato propriamente

dito automatizado (quando a escolha se dá sem termos percebido).

As escolhas são pistas dadas, algumas nítidas (consciente) e outras turvas

(inconsciente) que o olhar aguçado do observador pode enxergar como uma pequena semente,

regar, cultivar, para vê-la brotar, crescer, florescer e talvez dê frutos e sombra.

O inconsciente é aquilo para o qual há consciência, mas não percepção. Note

que não há aqui um paradoxo porque, na filosofia do idealismo, a

consciência é o fundamento do ser. Ela é onipresente, mesmo quando nos

encontramos em estado inconsciente. (GOSWAMI, 2008, p. 135).

Cada escolha se dá também de acordo com o conhecimento de mundo e como o

mundo é sentido por cada indivíduo. Escolhemos em ficar ou não, escolhemos ao que ou

quem dar nossa atenção, porém, muitas vezes isso não é evidente, mesmo que pareça muito

simples, mas não é. Uma escolha é uma tomada de decisão e sempre que escolhemos algo

temos que abrir mão de uma ou mais coisas quando não são sintonia, ou podemos agregar, é

importante perceber que independente do resultado escolhas acontecem. A escolha se faz

presente em todas as etapas da vida do Ser humano, faz parte de sua natureza, por isso torna-

se imprescindível escolhermos, e sendo assim fazer essas escolhas com clareza contribui para

obtermos melhores resultados. Eu escolhi o caminho que me permitiu continuar no labirinto e

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que demandava uma maior atenção, e manter a atenção com mais afinco coloca o indivíduo

no caminho da concentração. Entendo que a concentração é a derivação da atenção, seria,

portanto, uma ação voluntária de colocar a atenção sobre algo ou uma atividade (ação física

ou mental) que está sendo realizada. Quando isso acontece deixamos de lado outras coisas que

estão ao nosso redor e mesmo assim, o que não é o foco da nossa atenção pode interferir

diretamente no que está sendo realizado. Peter Brook (1999, p.56) diz que existe uma “relação

entre concentração, atenção, capacidade de escutar e a liberdade individual”.

A concentração potencializa a percepção do observador em relação ao que ou a quem

é observado. No caso dos laboratórios de criação que vivenciei no Arkhétypos, o diretor

guiava os participantes incitando que os mesmos se percebessem enquanto indivíduos.

Algumas vezes, no início, foi proposto que fechássemos os olhos, para que com isso

inibíssemos o estímulo visual externo que favorece no processo de concentração, essa ação

estimulava a nossa percepção do fluxo da respiração e cada parte do próprio corpo, seu

funcionamento, as sensações, sua vibração, seu ritmo, posso dizer que seria como encontrar o

seu próprio fluxo energético, e para isso é necessário aguçar a percepção sobre si. O autor e

psicanalista Anthony Storr (1995, p.74) diz que: “A percepção é a função pela qual os homens

dão-se conta de que uma coisa existe”, e reforça citando Jung, que diz que: “A percepção diz-

me que algo é; não me diz o que é e não me diz outras coisas sobre esse algo; unicamente me

diz que algo é” (Idem).

Gradativamente orientações são dadas nos laboratórios para potencializar essa relação

consigo mesmo, perceber-se enquanto Ser em movimento, que está em constante circulação e

o que muda é o referencial. Exemplo: Você pode estar deitado e perceber a movimentação

interna dos seus órgãos, como pode estar em pé atento aos movimentos de suas mãos e pés, ou

então, saber que enquanto está “parado” o planeta gira. Cada pessoa responde às orientações

de maneira diferente, criando conexão consigo mesmo em movimento, pensamento e energia

criadora.

Essa concentração em si mesmo nos leva a “viver o momento presente” e isso nos

transporta para outra dimensão da realidade, uma dimensão extracotidiana, onde temos uma

visão expedida de nós mesmos e do mundo à nossa volta, onde uma pequena ação tem uma

intencionalidade que amplia o sentido. Recordo aqui de um exemplo que Yoshi Oida (2001)

dá em seu livro O Ator Invisível, quando fala do simples gesto de apontar o dedo indicador

para cima com total intenção de mostrar a lua e fazê-la materializar-se aos olhos do público.

Ao apontar para a lua a/o atriz/ator faz o gesto, deposita sua intenção na ação, há um

direcionamento proposital na sua realização.

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32

Entrar nessa outra dimensão é se permitir viver realidades paralelas que potencializam

a criação teatral, na doação integral do/a ator/atriz para seu oficio, para si, para seus

companheiros de cena e para o público. Grotowski (1999, p. 210) diz que:

A concentração existe quando não a procuramos, quando nos devora algo

que devemos fazer. [...] É preciso se dar inteiramente, superando as

fronteiras da cotidianidade, de modo tangível, de verdade. Então existe a

concentração. Quando existe a doação, existe concentração.

Parece contraditório, mas em nossa leitura compreendemos que é complementar. Você

faz uma escolha e simplesmente se dá. É dentro desses processos que essa concentração se

desfragmenta, pois a nossa mente está livre e esvaziada das cadeias de pensamentos que

aprisionam nosso corpo cotidianamente. O corpo/mente/alma - um ser integral, um ser em

movimento e conectado, está livre para criação nessa outra dimensão da realidade. Parece

então que essa desfragmentação faz a concentração ganhar caráter de “distração/

desconcentração”, onde deixa fora o cotidiano e passa a viver o momento presente do

processo criativo. Franklin Leopoldo e Silva (in BRODANI, 2015, p. 18) diz que: “O que para

nós aparece como criação é fruto dessa desconcentração, dessa distração pela qual o espírito

se distende [...]”.

Mara Lucia Leal, uma das autoras do livro Grotowski – Estados alterados de

consciência (2015) complementa dizendo: “É nesses momentos de “distração” que fazemos

inúmeras relações imprevistas, que conseguimos romper com o pensar e agir apenas utilitário

e que se alarga o conhecimento” (BRONDANI, 2015, p. 18).

Compartilho aqui também a citação de Goswami (2008a, p.158), pois, acredito que ele

corrobora com o entendimento dessa desfragmentação da concentração, quando cita que: “A

descontinuidade, o salto quântico, é o componente essencial da criatividade. E é precisamente

o salto para fora do sistema que se torna necessário para que a consciência veja a si mesma,

como em auto-referência”.

Esse estado de concentração desfragmentado dá aos participantes a liberdade de

transitar entre realidades paralelas com bastante fluidez, onde uma coisa leva a outra e juntas

se potencializam. O que não significa que seja fácil, pois se trata de algo complexo, já que

estamos trabalhando com matérias vibracionais densas e sutis, principalmente as sutis, que

são as não vistas cotidianamente e que se concretizam no corpo, na mente e na alma de cada

indivíduo no laboratório.

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Brook repetia-nos constantemente: “Estejam abertos, sejam livres. Não se

deixem distrair, nem se perturbar com as coisas”. Liberdade muito difícil de

atingir, disso não se tenha dúvida. Nenhuma ideia, nenhuma situação deve

bloquear a concentração do ator, impedi-lo de expandir-se. Quando a

concentração se mantém fixa, com rigidez, num único ponto, todas as outras

possibilidades morrem antes de nascer. O ator deve ter uma concentração

ampla e fluida: esta é a chave da verdadeira disponibilidade. (OIDA, 2012,

p. 43).

Quando estamos imersos nessas outras realidades acontece um relaxamento, e o estado

de atenção e concentração começa parecer uma “distração”. Ao mesmo tempo em que há um

comprometimento com o jogo ritual, seja ele individual ou coletivo, há uma intensificação na

percepção, pois o indivíduo aguça a sensibilidade para a compreensão das ações do momento

presente.

Assim, o jogo acontece e é aberta uma fissura na realidade cotidiana. O tempo passa

em outro ritmo, mais rápido ou lento, o ar ganha leveza ou pesos distintos, as dimensões e

tamanhos também se alteram podendo ser maiores ou menores, ganham formas e cores,

quando mudamos a maneira de olhar o mundo, então ele (o mundo) se apresenta

diferentemente. A/O artista quando entra nesse espaço-tempo percebe o presente dessa

realidade com maior intensidade, e acontece ao mesmo tempo um fluxo imagético, físico

corpóreo e energético que concretiza essa realidade.

Nesse instante não se sabe se é o corpo que alimenta a imaginação, ou se é a alma que

alimenta o corpo, ou se ambos são alimentados pela imaginação. Essas relações não são

evidentes, e optei por acreditar que isso acontece concomitantemente em todas as esferas que

constituem o Ser. Um fluxo energético de retroalimentação se instaura. Esse procedimento

acontece no indivíduo, mas também no coletivo, todos alimentam a si mesmos e todos

alimentam uns aos outros.

As imagens são captadas, combinadas, realocadas e transformadas independentemente

da realidade acessada. É possível a aplicação de ações comuns ou inéditas das imagens, elas

ganham força e vivacidade na imaginação. Para o filósofo e poeta Gaston Bachelard (2013, p.

17-18):

A imaginação não é, como sugere a etimologia, a faculdade de formar

imagens da realidade, é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a

realidade que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade.

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Um homem é um homem11 na proporção em que é um super-humano. Deve-

se definir um homem pelo conjunto das tendências que o impelem a

ultrapassar a humana condição.

Essa citação nos remete à superação da realidade cotidiana, quando se permite viver

experiências geradas em outras realidades, rompendo-se barreiras que estão presentes no seu

“Eu” mais íntimo. A imaginação desenha os caminhos de cada indivíduo, com suas escolhas e

a sua disponibilidade em vivenciar as múltiplas realidades que fazem parte do seu processo

criativo no fazer teatral e também na vida.

O termo criação traz consigo, na sua semântica, o entendimento de criar algo, coisas

novas: “Talvez não haja nada novo, materialmente falando, mas se um novo significado na

consciência surgir desses atos, então existe criatividade” (GOSWAMI, 2008b, p. 51). O

entendimento do novo e da criatividade dentro da concepção disposta comunga com o

meu/nosso entendimento dos processos criativos: a busca de um sentido singular em cada

indivíduo, que juntos desenvolvem suas criatividades. Ainda segundo Goswami, existem dois

tipos de criatividade: descobertas externas (públicas) e internas (individual). Nosso processo

criativo tem duas vertentes manifestas, uma é a estética (externo), que é desenvolvida após a

prática dos laboratórios e a outra é o desenvolvimento do indivíduo (interno), que diz respeito

à descoberta de si e às transformações que se dão a partir delas. Atravessamos, portanto,

ambas as descobertas.

Você pode mostrar o produto

de sua criatividade exterior

como um botão iluminado pelo sol na roseira.

O seu perfume você compartilha com outros.

Mas você é o botão

que se abre a partir da criatividade interior.

Você meditou,

aceitou o convite interno?

Siga a trilhar da transformação.

Somente depois, ó criativo, você compartilha o seu ser.

(GOSWAMI, 2008b, p.76).

A criatividade é intrínseca ao processo criativo, e para demonstrar isso coloco aqui

como exemplo um fragmento de um laboratório do Processo Ar: O laboratório se inicia na

sala 18 (hoje a 22 do DEART - UFRN), chamada por alguns integrantes do grupo Arkhétypos

de “Portal” – esse nome se dá porque entendemos que ultrapassamos esse portal para a

criação. Começamos todos na sala, normalmente há uma preparação dos participantes que se

11 Na citação traz também o termo “homem”, nós entendemos que se refere ao Ser humano, contudo, reforçamos

que é natural do Ser humano a imaginação e não tem relação alguma com seu gênero.

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dá de maneira variada, algumas vezes passava pelo alongamento, aquecimento e/ou percepção

do corpo a partir da respiração. Alguns movimentos e estímulos que associavam a imaginação

ao movimento em uma crescente eram dados pelo diretor Robson Haderchpek. E pouco

tempo depois éramos transportados a outra realidade, e compreendo que isso é uma evidência

da entrega e envolvimento presentes em todo o grupo, caso contrário, nada aconteceria.

Surge então um grande vale, muitos pássaros de espécies e cores diferentes estavam na

parte baixa desse. Eu estava sobrevoando-o e nesse momento sentia que estava voando ao

redor de todos eles. O vento, a altura, era início do dia e a temperatura ainda estava amena,

com um brilho suave do sol, em alguns momentos parava no topo da montanha mais alta

quando queria observar com precisão algum dos pássaros, todos os detalhes, cores, emoções

me permitiam sentir na pele essa realidade, assim também como o entrelaçar da história que

eu criava que se relacionava com outras. Me recordo que naquele momento a sala 18 já não

mais existia, o grande vale e sua extensão era o lugar onde muitas histórias eram vividas.

Quero voar

Com medo do que vou deixar

E quando voltar não me encontrar

Oh vida! Preciso de voos

Precisos e indecisos

Quero Sentir o vento

Que se confunde com o que vem de fora e com o que está dentro

Dentro de mim um vendaval

Voando, voando até me encontrar no espaço universal

Quero sentir a vibração

O tesão, A tensão, A libertação

Rir e chorar sem motivo aparente

Sentir no estado presente.12

Na tentativa de descrever a experiência me dou conta da pobreza da comunicação

verbal e escrita, então proponho novamente que o/a leitor/a viva a experiência de entrar em

seu próprio labirinto, faça suas escolhas, sinta e perceba como e quando essa fissura se abre

na realidade cotidiana, tomando consciência de que você também pode viver essas outras

dimensões da realidade. “Mas devemos sempre lembrar que o que é luminoso dentro de nós

contém uma parte de escuridão, que podemos penetrar, mas nunca aniquilar” (GROTOWSKI,

1971, p. 34). Em outras palavras, é importante mergulhar, se d(o)ar a essa vivência com

humildade, respeito e boa vontade para poder saber lidar com o que poderá descobrir dentro

de você durante os laboratórios. Essa prática teatral é reveladora de si em função da doação

para o outro.

12 Trecho retirado do meu diário de bordo (Processo Ar), escrito em março de 2014.

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No Processo Ar, a minha percepção da entrega e do envolvimento do diretor Robson

Haderchpek veio muito nos detalhes, na proposição das músicas, nos comandos, algumas

vezes a sua presença energética era tão forte que dava para sentir seu corpo em ação, seu

pássaro, sua história, mas principalmente, sentia sua doação no final dos laboratórios com o

retorno sobre o que viu e viveu com as cenas. Eu não tinha me dado conta de como era

profunda a doação do diretor, e foi através da condução do Amareelos que pude sentir e

refletir sobre isso e o quanto é difícil esse “orquestramento”.

Posteriormente tive a oportunidade de acompanhar o processo de criação laboratorial

do Amor (Gosto de Flor), nele observei a entrega dos atuadores, mas também a entrega, a

imersão, o caminho de dentro da diretora Lara Machado, o seu olhar atento na descoberta dos

corpos (mente-corpo-alma), sua condução para impulsionar o jogo e o desvendar de novos

mistérios presentes nesses corpos. As conduções de Haderchpek e de Machado são diferentes

no seu trajeto, principalmente nas suas escolhas estéticas, ao mesmo tempo em que se

assemelham na generosidade, que contribui para as descobertas do que há de mais íntimo no/a

ator/atriz, este tipo de condução é de uma sensibilidade que transmite liberdade, mas que

provoca no ator-atriz/criador/a uma responsabilidade maior sobre o processo.

A partir da minha experiência percebi que o diretor e a diretora também vivem essas

imersões em outras realidades, com intensidades distintas em cada laboratório. Sendo assim,

entendo que os estados de “atenção” permeiam tanto o/a ator/atriz quanto o/a diretor/a, e

talvez a sua maior distinção seja na velocidade que entra e sai desse estado. Sou grata aos dois

pelas oportunidades de aprender com eles, entendo que a doação perpassa também suas

conduções. Doam de si, doam amor ao mesmo tempo em que compartilham seus

conhecimentos e impulsionamos atores e atrizes a viver essas outras realidades.

O ator só pode ser orientado e inspirado por alguém que se entrega de todo

coração à sua atividade criativa. O diretor, enquanto orienta a inspiração do

ator, deve ao mesmo tempo permitir ser orientado e inspirado por ele. Trata-

se de um problema de liberdade, companheirismo, e isto não implica em

falta de disciplina, mas num respeito pela autonomia dos outros. O respeito

pela autonomia do ator não significa ausência de lei, falta de exigências,

discussões intermináveis, e a substituição da ação por contínuas correntes de

palavras. Ao contrário, o respeito pela autonomia significa enormes

exigências, a expectativa de um máximo de esforço criativo e de um máximo

de revelação pessoal. Compreendida dessa forma, a solicitude pela liberdade

do ato só pode ser gerada da plenitude da liderança, e não da sua falta de

plenitude. (GROTOWSKI, 1971, p. 200-201).

Fazemos uma associação de entrar nessa realidade denominada por espaço quântico

através do salto quântico, abordado por Goswami, e uma vez que o indivíduo encontra-se

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nessa outra realidade, os anseios individuais e coletivos são potencializados e cada um

trabalha com o que tem de mais íntimo. Segundo Jung (1962, p. 63-64), “[...] quando a gente

deixa falar o inconsciente, este se estende sempre sobre as coisas mais íntimas”13. Na medida

em que o atuante se doa a uma prática laboratorial, ele entra em contato com os arquétipos,

que no meu entendimento se tratam de energias universais que ganham formas ancestrais de

representação, a exemplo posso citar o arquétipo da mãe, do guerreiro, da criança. Eles

possuem algumas características e se expressam através dos mitos da humanidade, porém o

conteúdo é dado pelo atuante a partir das inquietações íntimas despertadas do inconsciente

para a consciência.

Para entender melhor os arquétipos, Jung (1942, p. 109) diz:

Os arquétipos não são apenas impregnações de experiências típicas,

incessantemente repetidas, mas também se comportam empiricamente como

forças ou tendências à repetição das mesmas experiências. Cada vez que um

arquétipo aparece em sonho, na fantasia ou na vida, ele traz consigo uma

“influência” específica ou uma força que lhe confere um efeito luminoso e

fascinante ou impele à ação.

Nos laboratórios do Processo Ar, aos poucos me foi revelado o arquétipo da Grande-

Mãe. O processo foi gradativo, era como montar um grande quebra-cabeça. Existia a

necessidade de acolher, proteger, sentia-me responsável por todos os pássaros, um amor

sensível que compreendia a individualidade e necessidade de cada um, era como se com meu

amor pudesse sanar as dores que cada um deles levava em suas almas, porém, sentia um peso

que carregava de todos. Possuía relações amorosas e distintas com cada um dos pássaros, mas

com um em específico, acredito que por sua intensidade, sentia essa relação mais fortemente,

e por isso experimento relatar aqui para você, leitor/a.

Em muitos laboratórios observava de longe a dor do pássaro de Franco Fonseca14,

mesmo à distância, no topo da montanha, enquanto ele tinha os embates com os outros

pássaros, abria meus braços e mandava para ele rajadas de vento-luz na tentativa que ele

recebesse – e algumas vezes ele recebia, outras vezes não. Teve um dia em que esse Pássaro,

corroído pela dor e pela ausência, estava em uma luta de vida e morte com outro Pássaro, e

nesse instante voei, voei desejando que outros pássaros fossem separá-los antes de ser tarde

demais, antes que ele permitisse que a escuridão se apossasse de sua alma ao matar.

13 “Cuandola gente dejahablar a su inconsciente, este se extiende siempre sobre las cosas más íntimas”. 14 Ator do Grupo Arkhétypos de Teatro.

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Cheguei tarde, foi a dor que matava de dor. Fiquei num impasse, não sabia se me

sensibilizava com a morte das asas de um pássaro que tinha condições de se refazer com ajuda

das cinzas do fogo sagrado, ou da morte da alma de um pássaro que precisaria de muito mais

esforço e ajuda para reconstituir sua essência. Voei, voei e tinha certeza que em algum

momento encontraria o pássaro que teve sua alma dilacerada pela dor. Ele era um dos meus

filhos, o único que desejava estar no topo da montanha mais alta a qual eu sempre ficava.

Percebia correr nele a raiva e sabia que ele era o que mais precisava do meu amor naquele

instante. Entre tantos voos e sofrimento houve a explosão em um abraço entre nós, cada

lágrima uma cicatriz. Como trazer a vida a uma alma? Não sabia como, só apenas o que:

Amor. Era isso, nesse encontro nos abraçamos fraternalmente, meu desejo era embalá-lo em

meus braços, amparar seu choro, encaracolar seus cabelos, ninar, acolhê-lo com o mais puro

amor e assim se fez.

O laboratório terminou, era hora de voltarmos para a realidade cotidiana, meu

companheiro e eu tivemos grande dificuldade de nos afastarmos, carregando em nossos

corpos fortes emoções vividas. Ambos vinham da descoberta de seus arquétipos – “A energia

do arquétipo só se comunica com o ‘eu’ humano, caso este último seja influenciado ou

afetado por uma ação autônoma do arquétipo”15 (JUNG, 1942, p. 90-91). Os arquétipos

carregam em si uma grande carga simbólica e aparecem diferentemente em todos os povos da

humanidade, estando sempre presentes em todos os lugares, e ao mesmo tempo são

inabaláveis, pois ganham formas distintas de acordo com a cultura em que aparecem.

O conceito da Grande Mãe provém da História das Religiões e abrange as

mais variadas manifestações do tipo de uma Deusa-Mãe. No início esse

conceito não diz respeito à psicologia, na medida em que a imagem de uma

"Grande Mãe" aparece nessa forma muito raramente. (JUNG, 2002, p.87).

Ao falar dos arquétipos acredito ser importante trazer o conceito de mito, com o intuito

de clarear as relações entre eles. São termos distintos que se relacionam e se potencializam

dentro do processo criativo.

Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os

mesmos poderes que animam nossa vida animam a vida do mundo. Mas há

também mitos e deuses que têm a ver com sociedades específicas ou com

deidades tutelares da sociedade. Em outras palavras, há duas espécies

totalmente diferentes de mitologia. Há a mitologia que relaciona você com

sua própria natureza e com o mundo natural, de que você é parte. E há a

15“La energia del arquétipo solo se comunica al yo humano em el caso de que este ultimo sea influído o afectado

por uma accion autônoma del arquétipo”.

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mitologia estritamente sociológica, que liga você a uma sociedade em

particular. Você não é apenas um homem natural, é membro de um grupo

particular. (CAMPBELL, 1993, p. 24).

O mito é a forma com que se apresentam os arquétipos nessas outras realidades

presentes no inconsciente coletivo. Os mitos, segundo Joseph Campbell, possuem quatro

funções: a mística, a cosmológica, a sociológica e a pedagógica, e todas fazem parte dos

pilares que constituem a vida. Sendo assim elas são de grande importância e contribuem com

muitos ensinamentos na vida do Ser humano, enquanto indivíduo e/ou coletivo. É íntima a

relação que existe entre os conceitos de arquétipo e do mito, de certa forma um está contido

no outro e fazem parte da consciência que a todos constitui e perpassa.

Essa viagem a outra realidade pode se dar individualmente, mesmo que no laboratório

de criação tenham outros artistas, ou coletivamente; não é necessário que tenha que envolver

todos os participantes ao mesmo tempo. Cada pessoa contribui com sua entrega e impulso no

jogo ritual para a construção da atmosfera que dará o ritmo e a energia suficientes para a

materialização dos personagens. Essas energias poderão ser captadas diferentemente pelos

participantes, o que define isso é a frequência em que cada um se encontra no jogo ritual. Uso

a analogia de um rádio: mesmo não vendo as ondas energéticas que o alimentam, podemos

escolher a emissora que queremos escutar; é a busca do seu ritmo interno, encontrando a

sintonia entre a música tocada e o seu desejo de dançar, e mesmo não sendo harmônica, a

dança, a atração e a convergência naturalmente acontecem.

Enquanto Goswami fala da existência desse espaço quântico que se chega pelo salto

quântico (insight), essa outra realidade também é colocada por Victor Turner com o termo de

“Liminaridade”, que sugere a existência de um espaço-tempo, o lugar do “entre”, um espaço

em que a/o atriz/ator se doa integralmente a si e ao outro no processo criativo. Associamos

este conceito ao momento em que o/a artista penetra no lugar do “entre”, e está no limite que

divide o cotidiano e o extracotidiano, o sagrado e o profano. Em outras palavras, seria

transitar em experiências que diferem do seu cotidiano em lugar indefinido, e as entendemos

como linhas possíveis da realidade, ou simplesmente outra realidade.

Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares são

necessariamente ambíguos, uma vez que esta condição e estas pessoas

furtam-se ou escapam à rede de classificações que normalmente determinam

a localização de estados e posições num espaço cultural. As entidades

liminares não se situam aqui nem lá; estão no meio e entre as posições

atribuídas e ordenadas pela lei, pelos costumes, convenções e cerimonial.

Seus atributos ambíguos e indeterminados exprimem-se por uma rica

variedade de símbolos, naquelas várias sociedades que ritualizam as

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transições sociais e culturais. (TURNER apud HADERCHPEK, 2016, p.

45).

No processo de criação Amareelos pude viver a experiência do estado de imersão por

outro ângulo, a condução era um lugar que não havia experimentado ainda, então como fazê-

lo?

Fiz algumas pesquisas, separei algumas músicas, imaginei muitas possibilidades, mas

no dia ainda não sabia bem por onde começar. Sugeri que a atriz deitasse um pouco, percebi

que meu corpo necessitava de movimento, e enquanto lhe dava indicações comecei a

caminhar pelo espaço. Nesse dia tinha levado chá de hibisco, caminhava embalada pela

música, levei toda minha concentração para aquele momento e intuitivamente consumia o

chá, senti que em pouco tempo meu Ser estava pronto. Não pelo chá, mas pela entrega que me

propunha a viver naquele instante. Criamos uma atmosfera juntas, sentia que o que eu falava a

tocava e o seu movimento me preenchia, percebi que pouco a pouco outro tipo de jogo

começava a acontecer. A fissura, ou melhor, as portas se abriram e fomos arremessadas em

uma grande bússola com os quatro pontos cardinais. Nós estávamos caminhando na direção

do sul. Ao longo dos laboratórios descobrimos que cada ponto tinha sua energia e poderia nos

presentear com suas histórias. Hoje, depois da experiência, me parece que era como dançar no

escuro, sentindo com intensidade a energia uma da outra, como se meus olhos não vissem o

corpo da atriz Rocio Tisnado, mas sim meu corpo sentisse sua vibração e respondesse à

energia emitida. Uma troca, uma criação, uma conexão entre a atriz e a diretora, verdades

sendo ditas e escutadas por ambas. Um mistério que desejava se revelar em uma dança, no seu

ritmo, a favor da criação e doação:

Cada um de nós é em certa medida um mistério. Em teatro pode acontecer

algo criativo- entre o diretor e o ator – justamente quando ocorre o contato

entre dois mistérios. [...] Conhecendo o mistério do outro, conhece-se o

próprio. E ao contrário: conhecendo o próprio, conhece-se o do outro. Isso

não é possível com qualquer um. Assim dizendo não pretendo julgar o valor

dos outros. Simplesmente, a vida nos fez tais que podemos nos encontrar:

você e eu. (GROTOWSKI, 2010, p. 181).

Na citação acima, Grotowski coloca que não é para qualquer um, ou seja, diante da

leitura que faço entendo que esses encontros só são possíveis a alguém quando há uma

entrega verdadeira de si para o outro, quebrando os melindres sociais impostos em um pleno

ato de doação de si. Reforço aqui que entendo todo o funcionamento mente-corpo-alma como

um sistema integrado, um só sistema em que seus pedaços fazem parte do todo, e o nosso

processo criativo parte dessa interação, unificação desse todo.

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Em dado momento, em um dos laboratórios, depois de um grande conflito, se

apresenta a face sem olhos, olhos nas mãos a mostrar o caminho, espelho adiante e a negação

de si ver, o arquétipo que a atriz tem a desvendar... Rompe um choro de dor e uma certa

confusão de não querer ver ou de não aceitar o que vê. Como continuar com medo do que vê e

sente? Como vencer o medo que está dentro de nós? Existe um tempo pedido pelo próprio

processo, um tempo de maturação para que cada coisa aconteça; um tempo para o atuante dar

vazão a si mesmo. Esse tipo de processo exige o desnudamento e um esforço muito grande de

todos os participantes. Ao mesmo tempo pede-se muito cuidado, respeito e amor entre todos.

É fundamental compreender que o tempo de cada um dos participantes é diferente e é preciso

dar tempo para que a confiança se instaure.

“Se as múltiplas voltas da Serpente Quetzalcoalt são harmoniosas é porque expressam

o equilíbrio e os desvios de uma força adormecida” (ARTAUD, 1987, p. 19). É o tempo

individual de descobrir seus próprios mistérios para poder compartilhar com o outro.

Já que o medo é inevitável, o primeiro passo é criar confiança. E como o que

mais apavora as pessoas atualmente é falar, não se deve começar com

palavras nem com ideias, mas com o corpo. É no corpo livre que tudo vive

ou morre. Vamos por logo isso em prática, começando pela noção de que

tudo – quase tudo – que faz nossa energia fluir deve ser útil. (BROOK,1999,

p. 54).

Precisamos parar um pouco e respirar, essa etapa da caminhada foi longa e

acreditamos também que um pouco mais complexa. Chegamos até aqui. Ao mesmo tempo

que o labirinto tem muitas possibilidades de caminho, tem horas que ele impõe uma

continuidade. Vamos juntos/as respirar fundo e imaginar nossa trajetória, é preciso trazer à

consciência nossa experiência, só assim poderemos aprender com elas e seguir em frente.

Vamos pensar por onde andamos até agora nesse labirinto da imersão no processo de

criação – damos atenção, escolhemos nos aprofundar, nos concentramos em viver o momento

presente e percebemos que há uma desfragmentação da concentração. A fissura do tempo se

abre, damos um salto quântico e somos transportados/as para outra realidade que transfigura a

realidade cotidiana, espaço quântico ou limiar, espaço, tempo onde a matéria vibracional sutil

ganha visibilidade através dos corpos, a criatividade se instaura. Poderia dizer que a lei da

atração16 se fez presente em todo o processo. Encontramos arquétipos, mitos e o inconsciente

coletivo, que estão ligados à consciência que interliga a todos nós e nos possibilita a viver o

16 Lei da atração – o pensamento tem uma energia que atrai forças semelhantes.

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que tem dentro para deixar que se faça presente na matéria densa aquilo que vemos com

nossos olhos físicos.

Segundo Michael Loiser (2007, p. 13): “A Lei da Atração pode ser definida da

seguinte maneira: Atraio para a minha vida qualquer coisa à qual dedico atenção, energia e

concentração, seja ela positiva ou negativa”. Na citação peço que se retire qualquer associação

de bom ou ruim quando falamos de positiva ou negativa, são apenas possibilidades de

experiências que geram aprendizados diversos. E, situando isso dentro do processo criativo,

podemos falar das possibilidades de vivência do/a ator/atriz, onde o/a mesmo/a extrai de si

para possibilitar o surgimento de cenas, que abordam assuntos e intenções diversas e que

serão compartilhadas posteriormente com o espectador. A lei da atração se dá na

harmonização das energias vibradas e consequentemente emitidas por cada ator ou atriz em

cena.

Os caminhos de dentro se apresentam como morada do grande mistério, que são

formados por muitas camadas. Acredito que não poderemos desvendar o grande mistério, mas

tenho esperança que pouco a pouco cada um de nós poderá penetrar nas suas camadas

superficiais, que para nós já parecerão profundas através da vivência desses estados.

Escuto o vento,

suas ondas fazem minha alma nadar

suas curvas...

vento um mAR de vida e possibilidades.

Nessa etapa do labirinto nossos corpos já estão vivendo um estado elevado de

alteração de consciência, poderia chamar de embriaguez, torpor ou excitação, que contribuem

para a criação de um corpo sensível, que segundo Allan Araújo (2016, p. 11): “[...] é este: um

corpo que se sente tão sensível que a abertura para a troca com o outro se torna plena”, a

matéria vibracional sutil ganha densidade e é exteriorizada no corpo físico.

Para alcançar esses estados do processo de criação são muitas coisas envolvidas, entre

elas é preciso conhecer, aceitar e confiar no próprio corpo, em relação a isso muitos autores

propõem exercícios que permitam “[...] liberar o corpo, não simplesmente treinar certas zonas.

Mas dar ao corpo uma possibilidade. Dar-lhe a possibilidade de viver e de ser irradiante, de

ser pessoal” (GROTOWSKI, 2010, p. 170). Superar a nós mesmos, nos colocar em risco,

quebrar limitações sociais e mentais sobre o nosso corpo, fazer coisas que antes você

considerava impossível, é um processo gradativo, mas fundamental para a conquista da

confiança em nós mesmo.

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Quero compartilhar com você um exemplo tirado da capoeira17, com a qual já comecei

algumas vezes a treinar, porém não houve ainda dedicação suficiente. Essa última tentativa foi

junto ao Mestre Delicado18 do Grupo Nagôas19 de Capoeira Tradicional, um homem dotado

de uma sabedoria especial, que compartilha seus conhecimentos valorizando a tradição e

honrando seus antepassados. Com largo conhecimento sobre a história, cultura, técnica e os

caminhos que a capoeira percorreu ao longo dos anos, sua maneira de ensinar faz com que

movimentos complexos pareçam simples, mas só parecem.

Em uma das quartas-feiras (na areia da praia de Pium20- RN) nós estávamos treinando

saltos, mas eu nunca tinha feito, existia um medo, um sentimento de não conseguir, ao mesmo

tempo sentia como um desafio, um frio no estômago. Eu pensava: “não tenho corpo flexível,

já passei dos trinta anos, não tenho prática de atividades físicas” – e muitos outros

pensamentos “limitantes”. Todos os participantes do treino foram, chegou a minha vez,

respirei fundo e quis fazer logo, queria conseguir, o mestre e um dos meus colegas colocaram

uma corda para me auxiliar no giro das pernas, flexionei meus joelhos para conseguir um

impulso maior, levantei meus braços e olhando para trás (para o mar) pulei com o objetivo de

tocar minhas mãos no chão e girar meu corpo, senti o auxílio da corda em dar impulso às

minhas pernas, quando eu pensei que iria demorar, pronto! Consegui, percebi que na hora do

giro só vi o mar e senti o vento e uma sensação de liberdade. Sim, eu consegui. O mestre

disse: “para eu não achar que foi sorte vamos fazer novamente”, então tentamos, dessa vez,

me sentia pronta, mas no último instante depois que dei o pulo, achei que não conseguiria, no

mesmo instante cai com o rosto na areia, o mestre Delicado me ajudou a levantar querendo

saber como eu estava. Eu estava bem corporalmente, mas eu sabia que no momento crucial eu

não confiei em mim mesma e a queda foi só um reflexo disso.

Percebi na hora do giro que só olhei o mar e deixei o meu corpo livre, existia nele uma

memória que não se relacionou com a minha mente, por isso ele encontrou o ritmo, foi leve, e

entrou em harmonia. Teve o seu próprio tempo de fazer o movimento. O mesmo acontece nos

laboratórios durante a preparação (aquecimento, alongamento, harmonização), em que

17Capoeira ou capoeiragem é uma expressão cultural brasileira que mistura arte marcial, esporte, cultura popular

e música. Desenvolvida no Brasil principalmente por descendentes de escravos africanos, é caracterizada por

golpes e movimentos ágeis e complexos, utilizando primariamente chutes e rasteiras, além de cabeçadas,

joelhadas, cotoveladas, acrobacias em solo ou aéreas. 18 Mestre Delicado teve sua base de ensinamentos com o Mestre Dunga, que por sua vez aprendeu com Livino

Malvadeza, que foi aluno de Cândido Pequeno, que fora um escravo cativo. 19A Associação Nagôas de Capoeira Tradicional foi fundada pelo Mestre Delicado e seus alunos em 15 de Maio

de 1989 em Belo Horizonte –MG. Nos seus 10 primeiros anos de fundação o Nagôas se espalhou pelo RJ, GO e

SP e 11 países na Europa, mais o Canadá. Em 2015, sua expansão chega no RN, onde o Mestre Delicado junto

aos seus alunos inauguram em 04 de março de 2017 em Pium. 20 Praia localizada no município de Parnamirim - RN.

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realizamos exercícios diversos (danças populares, artes marciais, danças circulares, yoga,

biomecânica etc.). Mas ao mesmo tempo em que coloco o corpo no exercício, também o

coloco como improvisação, pois há uma base, porém não é fixa; temos a liberdade de escutar

nossos corpos e as relações com os outros, somos corpo-vida.

Se o corpo-vida deseja nos guiar em uma outra direção, podemos ser o

espaço, os seres, a paisagem que reside dentro de nós, o sol, a luz, a ausência

de luz, o espaço aberto ou fechado; sem algum cálculo. Tudo começa a ser

corpo-vida. (GROTOWKSI, 2010, p. 177).

Quero destacar aqui que não pretendo dar fórmulas de fazer, só estamos relatando o

sentir de algumas experiências, e não há uma ordem para a realização específica, cada

processo ou grupo dita as suas necessidades, o como fazer. Cada pessoa tem sua forma de

entrar no processo de imersão, alguns necessitam de atividades/exercícios em que o corpo

físico ganha vivacidade, outras pessoas necessitam de movimentos lentos (ambos podem levar

a exaustão). Há pessoas que se conectam através da repetição da palavra com o movimento,

através da repetição do movimento, da yoga, meditação, artes marciais, danças populares. Ou

seja, são esses e muitos outros os caminhos trilhados para o corpo ser fluído e não cotidiano,

onde abandonamos alguns vícios que o liberaram. Ao mesmo tempo a mente encontra-se em

um fluxo de esvaziamento. Ter a sensibilidade em perceber a real necessidade dos indivíduos

que formam o coletivo potencializa o processo, dando-lhes mais fluidez e verdade, corpo-

mente-alma integrados. Contudo, nada disso acontece se a/o artista não se permitir a essa

vivencia, fazer essa escolha consciente ou inconscientemente.

O ato do corpo-vida implica na presença de um outro ser humano, a

comunhão das pessoas. Mas então até mesmo as nossas recordações são

essenciais, quando se ligam a um outro ser humano, quando evocam aqueles

momentos em que vivemos intensamente com os outros. Esses outros estão

inscritos no corpo-vida, pertencem-lhe por natureza. E se vocês evocam o

com o corpo-vida o instante no qual vocês tiverem tocado alguém, aquele

alguém se mostrará naquilo que vocês fazem. E Talvez ao mesmo tempo

estará presente aquele que é o seu partner, aqui e agora, e quem esteve na

nossa vida e quem vai chegar: e Ele será uno. Eis porque aquilo contrasta

com o aprofundar-se em si mesmo, com o concentrar-se em si.

(GROTOWSKI, 1999, p. 206).

O termo corpo-vida reforça o entendimento que damos à unidade corpo-mente-alma

do Ser. O corpo sensível, que atrai, repele, absorve, se envolve. Quero aproveitar para dar o

exemplo de um dos laboratórios do Gosto de Flor. O encontro do personagem de Allan

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Araújo21 com o de Robson Haderchpek, os corpos vivos, intensos em plena busca de si,

ambos falam de saudade, de dor, corpos entregues na imersão laboratorial.

A diretora escuta a latência dos corpos dos atores, orienta e estimula para que

ultrapassem os limites das ações cotidianas, é como se enxergasse a profundidade desses

Seres e ao mesmo tempo percebesse que eles ainda estavam na superfície. Essa maneira de

fazer teatro “[...] convida o espírito para um delírio que exalta suas energias; [...] levando os

homens a se verem como são, faz cair a máscara, põe a descoberto a mentira, [...] a ação do

teatro sacode a inércia asfixiante da matéria que atinge até os dados mais claros dos sentidos”

(ARTAUD,1987, p. 44, 45).

Os atores se entregam gradativamente, cada gesto denunciava suas dores e suas lutas

consigo mesmos, suas formas de olhar para o amor, para a vida. Um dos personagens que se

revela olha o amor como dor, o seu corpo se debate, se machuca, se estranha, o outro

personagem olha o amor como possibilidades, mesmo que doa, se arrisca, deseja e vive as

experiências. Dois amores, duas saudades do que já viveu e do que ainda há para viver.

Corpos que se procuram, se espelham e se acham, “imãs que se repelem”, histórias que se

cruzam. Tempos diferentes: o passado e o futuro. Dois amores que caminham na direção do

presente, de se libertar de si, aceitar a ferida e a dor que carregam sabendo que ela é

passageira, para depois transformá-la em cicatrizes ou em cinzas. Corpos, dores, amores e

cicatrizes expostas ao espectador, a entrega de si ao outro. O despetalar de uma flor. O gosto

de flor.

Se permitirem que o seu corpo procure o que é íntimo, o que fez, faz, deseja

fazer na intimidade (em vez de realizar a imagem da recordação evocada

anteriormente nos pensamentos), ele procura: toco alguém, seguro a

respiração, algo se detém dentro de mim, sim, sim, nisso há sempre o

encontro, sempre o Outro... e então aparece aquilo que chamamos de

impulso. Não é possível sequer formulá-lo com palavras. E quando digo

corpo, digo vida, digo eu mesmo, você, você inteiro, digo. [...] é essencial o

encontro aqui e agora com o outro, em grupo, essa presença viva: e a volta

ao corpo-vida exigirá o desarmamento, a nudez extrema, total, quase

inverossímil, impossível na sua inteireza. (GROTOWSKI, 1999, p. 206).

Corpos, suores, uma inspiração profunda, olhos e veias dilatadas, por um minuto fecho

os meus olhos e escuto as batidas do coração e um grito ecoa: Olhe pra mim! A verdade

impressa nessa voz fez com que eu (espectador) congelasse e sentisse a dor desse homem.

Aponto outro momento na relação criada pelos dois atores, um sentado no chão e o outro

querendo a todo custo a atenção, o segundo importuna até tirar a paciência do outro,

21Ator do Grupo Arkhétypos.

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começando uma voraz briga que termina em um abraço arrependido. Amores que se

confundem com ódio e que voltam a ser amor. A imersão do Ser desperta questões profundas

de cada ator e ao mesmo tempo traz a verdade que contagia o espectador.

Até agora não demos ênfase aos procedimentos específicos corporais, mas

deixamos claro que todo o procedimento acontece em todas as instâncias do

indivíduo, “É necessário dar-se conta de que o nosso corpo é a nossa vida.

No nosso corpo, inteiro, são inscritas todas as experiências. São inscritas

sobre a pele e sob a pele, da infância até a idade presente e talvez também

antes da infância, mas também antes do nascimento da nossa geração.

(GROTOWSKI, 1999, p. 205).

Na trajetória do nosso labirinto, não colocamos em destaque a mente, o corpo ou a

alma, mas sim um trabalho de interação entre a mente, corpo e alma. Estes correspondem a

um desnudamento por completo que se inicia dentro dos nossos mistérios. Somos um

completo, um ser em movimento, um ser constituído de matérias vibracionais densas e sutis,

um ser interligado à consciência que a tudo integra.

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3. CAPÍTULO 3: TOCAR NO HORIZONTE - O CENTRO DO LABIRINTO SEMPRE

DISTANTE

A caminhada é longa! Percorremos muitos caminhos, contudo, percebemos que por

mais que andemos, o centro do labirinto se coloca ainda mais distante, é como navegar em

direção ao horizonte. A estrada tem mais mistérios do que poderíamos imaginar e nos fez

compreender que o mais importante é o percurso, do que chegarmos propriamente no centro.

Dilatamos nossa consciência de muitas formas, “[...] e é justamente nesse momento de

dilatação que aconteceria o encontro entre experiência, memória e arte” (BRONDANI, 2015,

p.18).

O momento de dilatação está relacionado aos estados de atenção que sinalizei no texto,

e isso se dá de maneira intencional ou por uma necessidade do indivíduo. Em nosso caso

especificamente, nós trabalhamos com a intencionalidade. Entramos nos laboratórios de

criação e nos preparamos para esse mergulho, mesmo que não saibamos a profundidade ou

em quais águas iremos mergulhar, quais as histórias serão relevadas no processo criativo.

Segundo Goswami (2008a, p.196): “Se nos concentramos no conteúdo do pensamento,

perdemos de vista a direção para onde ele se dirige. Se nos concentramos na direção,

perdemos nitidez de conteúdo”, e com essa citação sugiro que você experimente observar

como se dá o fluxo dos seus pensamentos agora. Siga-os por um instante.

Percebeu que uma coisa te leva a outra coisa sem você saber onde vai chegar? Então,

vamos seguir nas estradas do labirinto e recomendo que nesse momento nosso foco seja no

conteúdo do pensamento, viver o momento presente e depois nos situamos em que ponto da

estrada estamos. É um perder-se, para encontrar-se.

Esse espaço que estamos chamando de outra realidade recebe o Ser que está com sua

visão (corpo, mente, alma) de mundo dilatada, ampliada; um Ser que está vivendo aquilo que

está em seu interior naquele instante, para poder com a matéria-prima interna criar o fora, o

externo. Antonin Artaud (1987) diz que essa outra realidade não é humana, é como se ficasse

apenas a cabeça, porém ela é desnuda, maleável e orgânica. Uma realidade que quebra as

ilusões que construímos na vida cotidiana. Uma realidade que é apartada por uma linha tênue

do cotidiano, essa linha que se inicia na escolha de viver a experiência, na atenção e

concentração dedicada ao momento. Percebo que essas são as primeiras chaves que ajudam a

me transportar, dar o salto quântico para essas outras realidades.

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Cléo Araújo22 após um dos laboratórios do Processo Ar me disse que ali vivíamos um

delírio, o que desencadeou em mim raciocinar sobre muitos nomes como: devaneio, estado de

transe, estado de jogo, imaginação, estados alterados de consciência. Pus-me a pensar sobre as

relações que são formadas pelos muitos nomes que são dados a essa experiência, ao que até

agora estamos chamando dos mais variados estados que se derivam da atenção. Brondani

(2015, p.83) vê:

[...] o transe, portanto, como o estado alterado de consciência caracterizado

por uma transformação na cognição, das percepções e das sensações que tem

uma base fisiológica. Essa transformação se manifesta, de fato, com aspectos

diversos, em todas as formas de alterações de consciência e inclui elementos

inconscientes e conscientes.

São muitos nomes que se complementam em seus significados. Guiliano

Campo23desenvolveu em sua pesquisa quatorze níveis diferentes de alterações dos estados de

consciência, existe uma ideia de progressão entre os níveis propostos, dentro de um processo

que a meu entender é integrativo do Ser. Acredito que seja necessário citar alguns trechos

desses níveis por identificá-los no percurso do meu labirinto, os caminhos de dentro do meu

processo criativo.

3. Transe mínimo de terceiro nível - O sujeito ainda está imóvel e sua

atenção é guiada por um médium, mas a sua condição não é total

passividade... 4. É, na realidade, uma variante do transe mínimo de terceiro

nível –[...] Se o sujeito operar técnicas orgânicas de hiperventilação e não

esteja imóvel e guiado externamente em um percurso de imagens mentais ou

de sensações ou de memória emotiva, pode produzir-se livremente junto ao

movimento físico. [...] 8. Transe avançado - ... um evidente aquecimento

corporal, devido à circulação da energia interna, ligada às ações físicas e à

respiração controlada. 9. Transe avançado de segundo tipo – O sujeito é

ativo, se torna atuante e é dirigido por um guia que o conduz a um estado de

transe físico e, ao mesmo tempo, mental, gradualmente. [...] 12. Transe de

ritual de possessão – É um estado avançado, estável, que envolve, em

diversos planos, todos os participantes do ritual. (CAMPO in BRONDANI,

2015, p. 85-89)

Ao falar que o ator e a atriz, assim como a pessoa que conduz o processo criativo

vivem um processo de transe, recordo-me de um laboratório do espetáculo Amareelos em que

a atriz e eu estávamos em Teotihuacon24, caminhávamos na direção da pirâmide de

Quetzalcoatl, conversávamos quando escutei o som do vento, naquele instante pareceu-me

que escutava uma música, a convidei a fazer uma laboratório depois que visitássemos a

22Atriz do Arkhétypos Grupo de Teatro. 23 Um dos autores do livro Grotowski – Estados Alterados de Consciência – Teatro-Máscara-Ritual. 24Teotihuacon - foi um centro urbano da Mesoamérica pré-colombiana, localizada na Bacia do México, próxima

a atual Cidade do México, e que hoje é conhecida como o local de muitas das pirâmides.

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pirâmide. Subi até o topo da pirâmide concentrada, lá de cima já visualizei o local que iríamos

trabalhar, em meus olhos cada imagem ganhava força, escutava cantos ancestrais, o sol

apontava o destino. Artaud (2004, p. 179) diz que: “Os ritos começam sempre com a

circunscrição de um espaço, um ‘campo ritual’. De forma circular ou semicircular, esse

campo destaca-se do espaço cotidiano como lugar em que se dará a intensificação da

experiência com o sagrado”. Descemos em silêncio, em nosso íntimo sabíamos que

viveríamos uma grande experiência ali. Fomos até o local escolhido, a atriz fechou os olhos,

nós duas já estávamos prontas para o trabalho. Com a minha voz e meu corpo buscava dar

estímulos que conversavam com a necessidade que percebia que vinha do seu corpo, surge

uma dança, a dança sobre as águas que se rompe no som que ecoou em nossos ouvidos.

Nossos corações entraram em sintonia com aquele lugar mágico, sentíamos que suas histórias

queriam ser contadas em nossos corpos, em nossos corações. Nossos olhos se cruzam e ela

me perguntou: “Você escuta?”. Respondi que sim. Via em seus olhos a dúvida de continuar

ou parar. Continuamos. Precisávamos entender os sons que ecoavam. Eram mensagens soltas

no vento, precisamos escutar e desvendar as vozes que estão dentro de nós, vozes que nos

transformam, vozes que repercutem em nossos corpos, em nosso inconsciente para levarmos

para a torná-las conscientes. O sol nos apontou o destino e o sol nos disse a hora de parar.

O rito é “uma dança apertada entre dois sóis”: o “sol que desce” e “o sol que

sobe”. Crepúsculo e aurora, oeste e leste, são os pontos cardeais que definem

as áreas e momentos cruciais, do início e o fim da ação. E se o sol é uma

referência central, é de seu desaparecimento que o rito tratará. [...] esse

mergulho no escuro se dará inicialmente pelo lado do mal e da doença: “pois

essa penetração na doença é uma viagem, uma descida para retornar à vida”.

(ARTAUD, 2004, p. 179)

Terminamos, fiquei um bom tempo surpresa com a força e a delicadeza dessa

experiência que deu origem a uma das cenas que considero muito significativas no espetáculo.

Se desnudar para viver essas muitas realidades nos dá presentes, nutre-nos ao mesmo tempo

em que faz com que nos aprofundemos em nós mesmos/as. É um momento que vivemos a

morte da pessoa que éramos para dar vida à pessoa que passamos a ser, transcendemos. E isso

só passa a ser claro depois de um tempo, e é dele que necessitamos para compreender que

deixamos algo para trás e que agora temos novas descobertas a fazer sobre as muitas camadas

de mistérios que nos habitam.

O cotidiano nos apresenta realidades enquadradas no formato social, o que me leva a

pensar que talvez isso que parece realidade palpável seja apenas uma ilusão criada para nos

ter, enquanto sociedade, sob o controle. Nossos pensamentos, atitudes e escolhas são

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enclausuradas de tal forma que muitas vezes nem percebemos, só reproduzimos. Inclusive em

nossa área, que normalmente pensamos que está isenta desse germe, aqui também é exigido

um “padrão” que é camuflado pelo “certo” e “errado”.

Isso me traz à lembrança alguns questionamentos que conversam diretamente com a

temática desse texto: estados alterados de consciência na arte são possíveis? Muitos dos

comentários cheios de preconceitos são por causa da falta de conhecimento ou afinidade com

o tema? Não sei a resposta. Mesmo assim, apresento alguns outros exemplos de comentários

frequentes: “análise desse tipo não cabe a nós, o que precisamos é fazer arte”; “Não fazemos

terapia, fazemos arte”; “Isso não é da nossa área de conhecimento”; “Teatro não é feito dessa

forma”. Pergunto, então: Quem é melhor para falar sobre algo, não seria quem o viveu? Será

prejudicial a interdisciplinaridade dos conhecimentos? Será que ao refletirmos sobre isso não

aproximamos mais a arte do ser humano? Afinal, estamos falando sobre faculdades humanas

e o instrumento de trabalho e pesquisa do/a artista é fundamentalmente o Ser humano. A

reflexão sobre os estados alterados de consciência não minimiza a meu ver o fazer artístico,

pelo contrário, ela amplia as possibilidades de estudo, permite que a/o artista compreenda

melhor o que se passa dentro do seu processo criativo. O trabalho dele/a torna-se ainda mais

minucioso, pois, o permite conhecer um pouco de sua essência, a/o potencializa enquanto Ser

e artista.

Não sei quantas almas tenho.

Cada momento mudei.

Continuamente me estranho.

Nunca me vi nem achei.

De tanto ser, só tenho alma.

Quem tem alma não tem calma.

Quem vê é só o que vê,

Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,

Torno-me eles e não eu.

Cada meu sonho ou desejo

É do que nasce e não meu.

Sou minha própria paisagem,

Assisto à minha passagem,

Diverso, móbil e só,

Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo

Como páginas, meu ser

O que segue não prevendo,

O que passou a esquecer.

Noto à margem do que li

O que julguei que senti.

Releio e digo: «Fui eu?»

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Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa

Sinto-me livre ao analisar os estados alterados de consciência: “o transe propriamente

dito, no sentido de sua função de elevação espiritual” (BRONDANI, 2015, p. 91). A meu

entender, a filosofia apresenta uma forma mais poética de se pensar sobre o assunto quando

Bachelard fala sobre o devaneio no livro A Poética do Devaneio (2009), que seria uma fuga

do que socialmente é chamado de realidade, onde a consciência diminui, se desdobra, se

espalha e se perde no escuro. Caminhar por onde não se vê, caminhar na estrada dos sentidos,

sensações e percepções, permitir-se, dar-se no viver dessa rica experiência que é o processo

criativo, é tocar no invisível.

Essa adesão ao invisível, eis a poesia primordial, eis a poesia que nos

permite tomar gosto por nosso destino íntimo. Ela nos dá uma impressão de

juventude ou de rejuvenescimento ao nos restituir ininterruptamente a

faculdade de nos maravilharmos. A verdadeira poesia é uma função de

despertar. (BACHELARD, 2013, p. 18).

Grotowski (2010) nomeia este estado de modo diferente, trata-se de um transe que se

situa entre a consciência e o inconsciente, um momento de viver o “entre”, onde a mente e as

ações (mente-corpo-alma), se fundem em um só fluxo energético. A esse fluxo Grotowski

chama de transiluminação, que é uma espécie de transe que promove a integração total da

mente da/o atriz/ator com seus atributos corporais. Essa integração emerge das camadas mais

íntimas do Ser, o instinto, o impulso.

Ao usar os pensamentos poéticos para falar do viver dessa outra realidade, gera-se

uma aceitação maior, contudo, desejo destacar aqui que a meu ver, o transe, o devaneio, a

transiluminação, assim como os muitos nomes que citamos ao longo deste texto têm relações

intrínsecas, respiram o mesmo ar, caminham na mesma estrada dos labirintos dos processos

criativos. Todos estes termos são derivados do estado de atenção que citamos inicialmente e

não sabemos de fato aonde eles se diferenciam na prática. Ao colocar esses termos juntos,

vemo-los dançar, são complementares no conhecimento sobre si no processo criativo, assim

como também são na vida. É tal como explica Bachelard:

O devaneio que queremos estudar é o devaneio poético, um devaneio que a

poesia coloca na boa inclinação, aquela que uma consciência em crescimento

pode seguir. Esse devaneio é um devaneio que se escreve ou que, pelo

menos, se promete escrever. Ele já está diante desse grande universo que é a

página em branco. Então as imagens se compõem e se ordenam. O sonhador

escuta já os sons da palavra escrita. Um autor, não lembro quem, dizia que o

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bico da pena era um órgão do cérebro. Tenho certeza disto: quando minha

pena borra, estou pensando atravessado. (BACHELARD, 1996, p. 6).

Como escrever na folha em branco sua história sem conhecê-la? Gerações que

crescem acreditando demasiadamente na materialidade bruta da vida, enquanto a sutileza, o

invisível e íntimo são desvalorizados. Como se conhecer sem olhar para dentro? Como doar

ao público verdades que não conhece? É preciso sim falar, pesquisar e refletir sobre as outras

formas de realidade. É preciso aproximar esse entendimento de mundo do cotidiano,

introduzir esse outro pensamento, essa outra ação e poderíamos até dizer, esse outro estilo de

vida. Devemos pensar na capacidade de transformação humana e social que o teatro tem, ele

nos permite sonhar para poder realizar essa troca de experiências e aprendizados que poderão

ser levados por toda uma vida.

Horas há em que o sonho do poeta criador é tão profundo, tão natural que ele

reencontra, sem perceber, as imagens de sua carne infantil. Os poemas cuja

raiz é tão profunda têm quase sempre um poder singular. Uma forma os

atravessa, e o leitor, sem pensar nisso, participa dessa forma original. Ele já

não vê sua origem. (BACHELARD, 2013, p. 10).

Neste trecho Bachelard fala da escrita de um poema para o leitor, e nós levamos esta

escrita para o corpo da/o atriz/ator que se debruça sobre si para se doar para o espectador.

Coloco-me novamente na posição de espectadora no laboratório do Gosto de Flor, em que

Machado trabalhou com Tházio Menezes25o texto da cena que foi criado após um dos

laboratórios. As verdades eram sentidas pelo ator criador, mas inicialmente meu olhar se

voltava para perceber como a diretora alimentava o processo de criação dele, quais estímulos

potencializavam o que ele desejava dizer, que estímulos o guiavam, davam impulsão. Chegou

um momento que meus olhos não saiam do ator, via-o sentindo cada palavra, mergulhado

corpo-mente-alma na cena que se desenhava, andando em círculos dentro do jogo. Ali estava

eu vivendo e sentindo a dor do ator, dentro dos meus próprios mistérios, suas lágrimas

também faziam parte das minhas, sentia na minha pele uma forte sensação, o coração

acelerado e compadecido.

Essa experiência me fez lembrar as incertezas e potências que se abrem no jogo e

também em todas as fases da vida. “Aparentes” tríades corpo-mente-alma, arte-jogo-vida,

teatro-dança-música, artista-obra-espectador, cabelos entrançados que dão forma, criam e

recriam a integralidade das coisas. Sobre isto Huizinga (2012, p.24) diz:

25Ator do Arkhétypos Grupo de Teatro.

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O jogo autêntico e espontâneo também pode ser profundamente sério. O

jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de trata-se

“apenas” de um jogo pode passar para segundo plano. A alegria que está

indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se, não só em tensão,

mas também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois pólos

que limitam o âmbito do jogo.

A entrega do artista e do espectador em viver o momento presente no jogo, no

devaneio, na vida, nas incertezas e nos encontros, gera possibilidades de criação.

Descrevo aqui a cena final de uma das apresentações do espetáculo Amareelos, quando

a atriz Rocio Tisnado dedicou cada palavra da música Mandei caiá meu sobrado26aos

espectadores, eu assistia ali uma entrega, uma doação que ela fazia, o compartilhar do amor.

Enquanto cantava se direcionava a algumas pessoas que a recebiam com um toque, um olhar

ou um abraço que se desdobrava em lágrimas, e eu, mesmo conhecendo todo o espetáculo,

assistia como se fosse a primeira vez, vivendo com todos essa entrega.

O espectador também vive os estados alterados de consciência, porém muitas vezes

não se percebe assim. O espectador, o ator, a atriz e a pessoa que realiza a condução do

espetáculo vivem o transe, a transiluminação, as outras realidades de formas e intensidades

diferentes. Você poderia agora pensar nas experiências que teve nessas outras realidades? Se

sim, como foi? Se não, insisto para que você faça sua própria imersão, experimente

perspectivas distintas, faça seu percurso no processo de criação, se permita viver o “ato total”,

a “iluminar”, e “por meio da técnica pessoal, torne-se uma fonte de ‘luz espiritual’”, como diz

Grotowski (2010, p.109), faça seu ato um ato total:

[...] É algo muito mais difícil de definir, embora seja bastante tangível do

ponto de vista do trabalho. É o ato de desnudar-se, de rasgar a máscara

diária, da exteriorização do eu. É um ato de revelação, sério e solene. O ator

deve estar preparado para ser absolutamente sincero. É como um degrau para

o ápice do organismo do ator, no qual a consciência e o instinto estejam

unidos. (Idem, 1971, p. 165).

Anseio que um novo tempo chegue, mas tenho percebido que ele não chegará por si

só, ele precisa ser construído. Eu e você leitor/a somos responsáveis por esse novo tempo, um

tempo que inclui, multiplica, desperta saberes que estão em nossas almas, saberes primordiais

que nos levam além da matéria ou “realidade” propriamente dita, nos levam nos recôncavos

mais profundos de nós mesmos, no lugar onde se guardam os mistérios da vida. Mesmo que

26 Música de Capoeira, de autor/a desconhecido/a: “Mandei caiá meu sobrado. Mandei, mandei, mandei. Mandei

caiá de amarelo.Caiei, caiei, caiei”.

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não tenhamos o acesso ao grande mistério, as pequenas camadas a que chagarmos já

provocará muita diferença na nossa maneira de fazer arte e de viver a vida. Há um despertar!

A semente do mistério está na água turva.

De que modo posso perceber esse mistério?

A água torna-se parada com a imobilidade.

Como é que posso tornar-me imóvel?

Fluindo com a corrente.

(GOSWAMI, 2008a, p. 290)

Consciência que a tudo perpassa, conecta e potencializa. A arte que parte da premissa

de que tudo é energia. Ondas vibratórias para a condensação energética que formam as

matérias densas que são as que vemos e conhecemos; e as matérias sutis que a limitação do

olhar humano na vida cotidiana na maioria das vezes não se permite ver. Todavia, o nosso

corpo muitas vezes percebe, e isso vai depender do quanto cada pessoa se coloca disponível e

sensível para viver a arte do encontro.

Nessa fase percebi que não estava só no labirinto e muitas coisas acontecem em

paralelo. Escutei a conversa de um velho monge citado por Goswami (2015, p. 192-193):

Mas que agitação é aquela perto da fonte, lá na frente? Você não espera que

um monge budista da índia, no alto de uma carruagem, discuta com alguém

que só pode ser um rei – Trono, coroa, todos os badulaques. Para seu

espanto, o monge começa a desmontar a carruagem. Em primeiro lugar,

retira os cavalos e pergunta:

-Estes cavalos são a carruagem, é nobre rei?

O rei responde:

-Claro que não.

O monge tira em seguida as rodas e pergunta:

- Estas rodas são a carruagem, ó nobre rei?

Recebendo a mesma resposta, o monge continua o processo, até tirar todas

as partes destacáveis da carruagem. Em seguida, apontando para o chassi,

pergunta pela última vez:

-Isso aqui é a carruagem, ó nobre rei?

Você nota irritação no rosto do rei. Mas, claro, para você o monge passou

um argumento. Onde está a carruagem?

[...] – Está vendo? Eu lhe disse: Não há carruagem sem partes redutivas. As

partes são o todo. Qualquer conceito de carruagem sem levar em conta as

partes, é só o fantasma da máquina.

A consciência é colocada nessa citação como o todo. E os caminhos que já

percorremos têm muitos nomes, estados diferentes, obstáculos, encruzilhadas... Ponho-me a

pensar que viver dessas experiências me possibilitou um conhecimento maior sobre mim. Isso

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me permitiu chegar em uma palavra que ainda não foi tocada: Espiritualidade27. Compreendo

que desenvolver a espiritualidade seria o processo de conhecer a si mesmo, assim como a

transformação individual que acontece a partir das descobertas. Vejo a espiritualidade como

uma experiência corporal e mental, um processo onde nos desnudamos para nós mesmos e

para o outro, uma experiência de transcendência. É salutar fazermos uma separação do

entendimento religioso da palavra espiritualidade e a aproximo da natureza humana. Falo da

espiritualidade no entendimento do descobrir de si mesmo, se reconhecer, se aceitar e buscar

transformações que partem de dentro para fora. Falo desta vivência que leva à iluminação de

si e ilumina o outro, e faço a ligação dela com o teatro que transcende:

[...] parecia-se que o verdadeiro teatro só existe quando toca em determinada

energia universal, através da qual transcende a existência cotidiana,

atingindo certo grau de espiritualidade. Para chegar a uma produção que

respeitasse essas condições, seria preciso que os atores estivessem um pouco

familiarizados com essa espiritualidade. Era necessário ao mesmo que

acreditassem na existência, no interior de cada um de nós, de uma energia

invisível, que fosse ao mesmo tempo reflexo e parte integrante da energia

universal que a englobava. Em suma, atores que não vissem o homem como

um simples produto de sua existência cotidiana. (OIDA, 2012, p. 132).

Pare! Escute! O som ecoa por todos os caminhos do labirinto. É um som uníssono. O

Som, a vibração criada pelo corpo, a mente e a alma resultam no como estamos, pois

compreendemos o Ser humano em contínua transformação. Somos formados de matérias

vibracionais diferentes e integradas, que constituem uma unidade. E é compreendendo essa

unidade que me propus em trabalhar e viver o teatro, é no descobrir dos mistérios presentes

em cada um de nós que podemos resgatar a força do grito que ecoou e ecoa nas almas; são

verdades individuais que tocam a coletividade, pois quando falamos de um falamos do outro.

Isso não quer dizer que não sejamos diferentes, mas que temos mais coisas em comum do que

imaginamos. Precisamos colocar essas múltiplas verdades em contato com o espectador em

um ato de comunhão, de compartilhamento e entrega mútua. Um ato de doação do ator, da

atriz, do condutor, condutora e do espectador. Trata-se de um ato biológico como também

espiritual.

O sol seria a consciência?

27 Espiritualidade vem da palavra espírito e é definida como a parte imaterial, intelectual ou moral do ser

humano, assim a espiritualidade está ligada ao conhecimento da alma humana. O termo espiritualidade envolve

questões quanto ao significado da vida e a razão de viver, não limitado a tipos de crenças ou práticas. Disponível

em: <http://etologia-no-dia-a-dia.blogspot.com.br/2012/10/a-origem-da-espiritualidade.html>. Acesso em: 21 de

maio de 2017.

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Ou o inconsciente?

Ou consciência em relação ao todo?

Ou inconsciência em relação ao ser humano?

Tudo parece possível

Tudo parece ser tão a mesma coisa

Seria então o sol a consciência do inconsciente?

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O LABIRINTO, O GRANDE MISTÉRIO, A SAÍDA SEM A CHEGADA

Vejo longe uma sombra no chão do labirinto. Precisamos continuar, espero que você

não esteja cansada/o. Essa sombra é uma esperança de chegar no grande mistério, no centro

do nosso labirinto. Vamos continuar, trago comigo as experiências que tive nesses processos,

creio que existe uma “chave” que pode ligar e desligar esses estados, mas para isso é

importante que nos conheçamos bem, para entender como isso se dá no funcionamento do

próprio corpo. O Ser precisa investigar qual o seu tempo e estímulos para que essa chave

comece a girar. Cada pessoa é diferente e singular dentro de suas necessidades.

Vimos muitos nomes de significações que se comunicam e se complementam. Não

seriam todos esses estados alterados estados d’alma28? Percebo que saio dessa investigação

com mais perguntas do que respostas. Sei que não saberei dessas respostas rapidamente,

necessito viver novas experiências, sentir na minha mente, no meu corpo, na minha alma, ou

seja, viver em meu Ser. Reforço que o convite está posto, descubra como percorrer o seu

labirinto, seus caminhos de dentro, descubra camadas dos seus mistérios.

Todos os processos de imersão que citei durante o percurso do labirinto partem da

matéria-prima, da essência do ser humano e da sua complexidade. Pude perceber que, assim

como eu, todos/as que participaram dessas experiências não são mais os mesmos, afinal

somos Seres em movimento, e acredito que a imersão que vivemos nos provocou a aceleração

desse processo.

O mundo necessita cada vez mais de pessoas que se reconheçam e que reconheçam o/a

outro/a, que sejam capazes de se colocar diante das dificuldades e contribuir para a redução

das diferenças sociais que tanto assolam o nosso mundo e que são motivos de guerras,

massacres, da indiferença, de dor. Pessoas que “se entrem” e se permitam afetar pelo outro.

O triste em tudo isso – [...] é que se as pessoas comuns realmente soubessem

que a consciência, e não a matéria, é o elo que nos liga uns aos outros e ao

mundo, as opiniões delas sobre guerra e paz, poluição ambiental, justiça

social, valores religiosos e todas as demais atividades humanas mudariam

radicalmente. (GOSWAMI, 2008, p. 25).

A empatia, ou seja, o poder de se colocar no lugar do outro é essencial nas relações

humanas. Não seria função de todas as profissões e áreas de conhecimentos darem melhores

condições de vida ao Ser humano? Não seria isso que estamos nos propondo a fazer com o

grande potencial que o teatro e a arte tem em uma sociedade? Os processos que se dão na

28 Procuro palavras que possam dar sentido aos muitos estados alterados de consciência e sugeri o termo

“d’alma” levando em consideração que essas imersões tocam no mais íntimo do ser.

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criação teatral sobre os quais estamos refletindo não seriam uma proposta de integração entre

questões sociais, políticas e humanas que transcendem o Ser?

O mundo precisa de mais arte, cor e magia. A esperança nos dias que seguem é

fundamental. O que falamos aqui não é novo, na realidade é muito mais antigo, é ancestral, e

encontra-se adormecido e/ou sufocado por um sistema brutal de controle e poder sobre a

sociedade. Precisamos do estímulo, da liberdade de fazer arte tendo o conhecimento, a

responsabilidade de se fazer parte do todo; e todos somos ligados pela consciência, ampliando

outras formas de fazer arte e gerando um novo olhar para a vida. Essa postura favorece a

criação de trabalhos cada vez mais genuínos, autorais e potentes, capazes de provocar a

transcendência dos Seres humanos. Barchelard (1996, p. 13) diz que: “O devaneio é um

fenômeno espiritual demasiado natural. O devaneio poético nos dá o mundo dos mundos. O

devaneio poético é um devaneio cósmico”.

Fazer arte e ao mesmo tempo desenvolver a espiritualidade, tendo o entendimento de

que se trata de ter um conhecimento maior sobre si, mas também do outro Ser humano, é

quando encontramos entre nós as diferenças e os pontos de ligação. É como olhar para dentro

de mim e ver um céu estrelado, olhar o micro e enxergar o macro, é se desnudar para si, para

o outro e para o público. Se permitir viver a experiência de outras realidades no jogo ritual, ter

múltiplos encontros, criar a partir dos impulsos mais íntimos de seu Ser. Impulso este que ao

mesmo tempo faz parte do inconsciente coletivo, que contam histórias que comunicam à toda

humanidade.

Volto aqui aos questionamentos29que eu tinha no início da minha trajetória sobre como

aliar o que acreditava com o meu modo de vida, e após quatro anos ainda não tenho uma

resposta, mas pistas se mostraram no decorrer das estradas percorridas. Talvez seja tornar o

que se acredita na maneira de viver a vida, nesse caso não seria aliar e sim desenvolver uma

forma de vida integrativa de todas as áreas, fazer do próprio trabalho um estilo de vida, mudar

a forma de olhar e agir no mundo...

A fé num Poder Superior, a crença na existência das forças sobrenaturais e

no processo espiritual da humanidade, tudo isso é inato em mim, [...]. Não

posso destruir essas ideias mesmo querendo e, nos conflitos que surgem

entre a fé e a razão, é sempre a razão que sucumbe. Assim embora respeite

os princípios e métodos da ciência moderna, que outra resposta lhe posso dar

senão esta: eu creio! (BRUNTON, 1962, p. 26).

29 Questionamento na página 9, 1° parágrafo, 6ª linha.

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...Viver estados d’alma e descobrir como se dá o desenvolvimento da espiritualidade

nas práticas laboratoriais são questões que desejo investigar. Fazer teatro! Arte integrativa do

Ser.

Chegamos à sombra no labirinto, parece mais com uma passagem secreta, você pode

entrar comigo? Seguro na tua mão.

Feche os olhos.

Conte: 1, 2, 3...

(OBS: Parabéns querida, vamos ver agora o que esta passagem secrete lhe revelará no

mestrado!)

“Onde quer que sóis brilhem, há vida”.

(DANIKEN, 1973, p.72).

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