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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS, FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA PLURALIDADE. NATAL/RN 2013

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR

LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS,

FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA

PLURALIDADE.

NATAL/RN

2013

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR

LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS,

FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA

PLURALIDADE.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito – PPGD do Centro de

Ciências Sociais Aplicadas da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre em

Direito.

Orientador: Profº Doutor Leonardo Martins

NATAL/RN

2013

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ANA CLÁUDIA DA COSTA AGUIAR

LIBERDADE DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA: CONCEPÇÕES FILOSÓFICAS,

FUNDAMENTALIDADE CONSTITUCIONAL E POLÍTICA DA

PLURALIDADE.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Direito – PPGD do Centro de

Ciências Sociais Aplicadas da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, como requisito

parcial para obtenção do título de Mestre em

Direito.

Orientador: Profº Doutor Leonardo Martins

Aprovado em ______/______/ 2013:

Profº Doutor Leonardo Martins – Orientador

UFRN

Profa.º Doutora Luciana Gross Siqueira Cunha – Externo

FGV

Profaº Doutora Yara Maria Pereira Gurgel - Interno

UFRN

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DEDICATÓRIA

À João Batista e à Cândida, meus pais, por tornarem a vontade possível.

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AGRADECIMENTOS

No início do ano passado me constataram a seguinte verdade: não sabemos

viver, ninguém nos ensina a viver, na vida nós improvisamos, enquanto que para

trabalhar ou produzir, todo estudo e dedicação podem ser pouco, somos criados para

fazer coisas. É isso. Quando nos ensinaram sobre a amizade? Descobrimos na escola a

distinguir sentimentos? Qual(is) o(os) significado(os) da nossa existência? Da justiça?

Do bem? Ou da beleza? Não nos orientaram sobre essas questões porque “isso se

aprende na vida, vivendo”.

Eu tenho esperança que um dia isso mude. Acredito, sem estremecer, que

seremos educados para o verdadeiro conhecimento que nos fará mais humanizados,

quando iremos cuidar mais do outro (seja ele quem for), confio e faz sentido, já que eu

convivo com essas pessoas, elas existem e elas me ajudam a aprender vivendo, todos os

dias, incansavelmente, são elas:

Adriana Aguiar e João Cláudio Aguiar, meus irmãos mais velhos, os admiro e

sinto um conforto seguro em saber que vocês sempre estarão por perto e, saibam que eu

sempre estarei por vocês; Lucas e Cecília, meus sobrinhos, os responsáveis pelos

sorrisos mais fáceis e pelo carinho mais gratuito. Muito obrigada.

Suzy Alves, Felipe Fonseca, Mônica Cabral, Stenio Aladim, Thiago César,

Lívia Rebelato, André Maia, Elaine Maciel, Rochester Araújo, Fernando Mosca,

Miqueias Platinni e Pedro Henrique Motta, meus amigos de amor incondicional, a

amizade que temos não está sujeita a nenhum princípio do tempo ou espaço. Tem valor

em si e para si. Muito obrigada.

Aos meus mestres, pessoas que em algum momento, cada um ao seu modo,

mudaram radicalmente minha posição perante a vida: Edeilson Matias, meu diretor de

dança, quem me ensinou muito sobre arte, mas sobre justiça, liderança e disciplina

também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou

olhe; e Leonardo Martins, meu orientador, por ter me apoiado durantes os anos de

graduação e pós-graduação com seu intelecto brilhante e com sua aguçada ética e moral.

Muito obrigada.

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“Certifica-te que és um elemento de soma na

vida das pessoas de quem participa” (Cícero).

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RESUMO

O direito à expressão artística, liberdade consagrada no constitucionalismo democrático

ocidental, é um direito fundamental que conjunturalmente, em relação aos outros

direitos conexos da expressão, vem sendo olvidado, disposto em posição de irrelevância

jurídico-dogmática. A primeira razão apontada para esse comportamento que desestima

a liberdade artística é a valorização do racionalismo e do cientificismo na sociedade

moderna, subordinando as pesquisas acadêmicas ao utilitarismo, relegando o papel dos

sentimentos e da espiritualidade na elocução do homem, portanto, investigamos,

amparados pela filosofia, a atribuição da arte na formação humana, devido a sua

capacidade em harmonizar razão e emoção. Em seguida, afirmamos a autonomia do

direito fundamental à expressão artística na ordem constitucional vigente de 1988, após

um quadro expositivo da liberdade tema nas Leis Fundamentais dos Estados Unidos,

Portugal, Espanha e Alemanha; e a construção histórico-constitucional do mesmo

direito nas Constituições brasileiras. Nesse desiderato, o marco teórico escolhido é a

Teoria Liberal dos direitos fundamentais, orientando o exame pelas dimensões

jusfundamentais jurídico-subjetiva e jurídico-objetiva. Enquanto a primeira, função

clássica de resistência, delimita a área de proteção do direito à expressão artística a

partir do seu conteúdo específico, sua titularidade e seus limites constitucionais e

infraconstitucionais, aquela lhe estabelece como bem cultural da Ordem Social,

definindo ao Estado deveres prestacionais na proteção, formação e promoção cultural. À

comunicação artística, prescrita sem reserva legal, não admitimos a transposição de

restrições que são próprias de outros direitos fundamentais e, quando o seu exercício

colide com outro direito fundamental ou bem jurídico constitucional, a justificação para

uma possível intervenção estatal que tangencie sua área de proteção passa,

necessariamente, pela perquirição do animus do artista, do meio utilizado, das várias

interpretações viáveis e, por fim, pela correta aplicação do critério da proporcionalidade.

A análise da política pública cultural, por sua vez, observa o princípio do pluralismo de

substrato democrático, fomentador do diálogo cultural e avesso aos padrões

determinados pela indústria cultural de massa. Todos os poderes estão vinculados, no

âmbito de suas atribuições típicas, a concretizarem políticas públicas que possuam

como fim o bem cultural artístico, devido ao mandamento constante no §1 do art. 5º,

CF. No entanto, o acesso e as leis de incentivo à cultura devem ser constantemente

fiscalizados pelo parâmetro constitucional do direito fundamental à igualdade.

Palavras-chave: Arte. Direito fundamental à expressão artística. Pluralismo cultural.

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ABSTRACT

The right to artistic expression, freedom granted in the western democratic

constitutionalism, is a fundamental right that cyclically, compared to other cohesive

rights of expression, has been forgotten and put in an irrelevant juridical-dogmatic

position. The first reason for this behaviour that disesteems artistic freedom is the

valorisation of rationalism and scientificism in the modern society, subordinating

academic researches to utilitarianism, relegating the purpose of feelings and spirituality

on men’s elocution, therefore, we investigate, guided by philosophy, the attribution of

art on human formation, due to its capacity in harmonising reason and emotion. After

that, we affirm the fundamental right to artistic expression’s autonomy in the 1988 valid

constitutional order, after a comparative explanation of freedom in the Fundamental

Laws of United States, Portugal, Spain and Germany; and the construction historic-

constitutional of the same right in the Brazilian Constitutions. In this desiderate, the

theoric mark chosen is the Liberal Theory of the fundamental rights, guiding the exam

through jusfundamental dimensions: juridical-subjective and juridical-objective. Whilst

the first, classical function of resistance, delimitates the protection area of the artistic

expression right from its specific content, titularity and its constitutional and

subconstitutional limits, the other one establishes it as cultural good of the Social Order,

defining to the State its rendering duties of protection, formation and cultural

promotion. We do not admit artistic communication, granted without legal reserve, to be

transposed of restrictions that belong to other fundamental rights and, when its exercise

collides with another fundamental right or juridical-constitutional good, the justification

to a possible state intervention that tangentiates its protection area goes, necessarily,

through the perquisition of the artist’s animus, the used method, the many viable

interpretations and, at last, the correct application of the proportionality criteria. The

cultural public politics’ analysis, nevertheless, observes the pluralism principle of

democratic substratum, developer of the cultural dialogue and opposed to patterns

determined by the mass cultural industry. All powers are attached, on the scope of its

typical attributions, to materialise public politics that have the cultural artistic good as

its aim, due to the constant rule contained in §1, art. 5º of the Federal Constitution.

However, the access and the incentive laws to culture must be constantly supervised by

the constitutional parameter of fundamental right to equality.

Keywords: Art. Fundamental right to artistic expression. Cultural pluralism.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 CONCEPÇÕES DA ARTE 15

2.1 RACIONALIDADE E CIENTIFICISMO 15

2.2 A ARTE DO PONTO DE VISTA FILOSÓFICO 17

2.2.1 As ideias sobre a natureza da arte 17

2.2.2 O artista e a obra de arte 19

2.2.3 O objeto da arte e o interesse desinteressado 21

2.2.4 Crítica e o conhecimento dos especialistas 23

2.2.5 A finalidade da arte 26

2.2.5.1 A ação suavizante da arte 27

2.3 PAPEL DA PERSPECTIVA FILOSÓFICA 28

3 DIREITO CONSTITUCIONAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA 30

3.1 DIREITO ESTRANGEIRO 30

3.1.1 Estados Unidos, Constituição de 1787 30

3.1.2 Portugal, Constituição de 1976 (arte e cultura) 34

3.1.3 Espanha, Constituição de 1978 36

3.1.4 Alemanha, Constituição de 1949 39

3.1.4.1 Definição material e formal da arte 40

3.1.4.2 Conceito aberto 42

3.2 DIREITO FUNDAMENTAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA NA CF (art. 5º, IX) 44

3.2.1 Histórico constitucional 44

3.2.2 Da autonomia do direito à expressão artística na CF 49

3.2.3 Liberdade artística: conteúdo da área de proteção (objetiva e subjetiva) e

alcance

56

3.2.3.1 Área de proteção da liberdade artística (alcance e titularidade) 57

3.2.3.1.1 Conceito de arte aplicado 58

3.2.3.1.2 Proibição de definição do Estado e aspecto negativo da liberdade artística 59

3.2.3.1.3 Área de criação/produção e área de efeito/divulgação 61

3.2.3.1.4 Titularidade 67

4 INTERVENÇÕES ESTATAIS NA LIBERDADE ARTÍSTICA E

JUSTIFICAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL

73

4.1 LIMITES AO DIREITO DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA 74

4.1.1 Comportamento que não se situa na área de proteção da liberdade artística 74

4.1.2 Concretização e reserva legal dos direitos fundamentais derivados 75

4.1.2.1 Diversões e espetáculos públicos 76

4.1.2.2 Faixas etárias (classificação indicativa) 78

4.1.3 Direito à expressão artística e direito constitucional de colisão 79

4.1.3.1 Vedação ao anonimato, direito de resposta e indenização por danos materiais

e morais

80

4.1.3.2 Direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem 84

4.1.4 Censura e licença (limite dos limites) 90

4.2 CONFLITOS ENTRE LIBERDADE ARTÍSTICA E OUTROS BENS

JURÍDICOS

93

4.2.1 Obras artísticas obscenas e pornográficas 94

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4.2.2 Obras de arte em propriedade pública e privada (arte urbana) 99

4.2.3 O corpo como objeto da arte (body art) 105

4.2.4 Obras artísticas e o discurso do ódio 111

5 POLÍTICA PÚBLICA CONSTITUCIONAL DA ARTE 121

5.1 CULTURA, DEMOCRACIA E PLURALISMO 123

5.1.1 Uma política de proteção artística 126

5.1.2 Uma política de formação artística 130

5.1.3 Uma política de promoção artística 133

5.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO PARÂMETRO CONSTITUCIONAL

ÀS POLÍTICAS CULTURAIS

136

6 CONCLUSÃO 142

REFERÊNCIAS 145

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1 INTRODUÇÃO

Das formas de expressão que o ser humano tem a sua disposição para

compartilhar com os demais aquilo que o movimenta entre ideias, opiniões, crenças,

descobertas científicas, informações etc., só a arte, como disse Arthur Schopenhauer em

sua Metafísica do Belo, tem como fim supremo a manifestação da essência do que há de

mais belo: o homem.

“Há quem passe por uma floresta e só veja lenha para a sua fogueira”. Esta frase

atribuída ao escritor russo Leon Tolstói representa o sentido utilitarista que a nossa

sociedade elegeu, majoritariamente, para ser o protótipo de suas relações interpessoais e

intersociais, marcadas pelo egoísmo, por sujeitos do querer, pelo desconhecimento das

coisas como são em elevação a como elas podem nos servir.

A valorização do princípio da realidade alienou do mundo tudo aquilo que fala

sobre a emoção humana, a palavra “fantasia”, por exemplo, relacionada diretamente

com as expressões artísticas, é tida como qualificadora de algo inútil, irracional, indigno

de seriedade. O espaço da vivência artística individual e coletiva é irrisório, o que

necessariamente nos faz constatar que o conhecimento da essência do homem está se

perdendo.

Da mesma forma, se a ciência moderna vive dias de império do formalismo,

consequentemente, ela vem afugentando as convicções que envolvem o processo

criativo artístico, não sendo por acaso que encontramos diversos trabalhos acadêmicos

que falam sobre a liberdade de expressão em seu aspecto intelectual, científico,

comunicacional e opinativo, porém, poucas são as pesquisas jurídico-dogmáticas que

falam sobre o direito fundamental de expressão da arte.

Por reconhecermos às obras de arte uma função especial na formação humana, a

partir do pensamento de Hegel, pois a arte elimina arbitrariedades e harmoniza a vida

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humana, transbordando-a de sentido, iniciamos o estudo, no 2° Capítulo, tratando das

concepções da arte, o lugar que ocupa entre os movimentos do racionalismo e do

cientificismo e as investigações sobre a filosofia da arte (estética), até o ponto em que

ela nos auxilie a compreender satisfatoriamente o lugar de sua existência na ordem

constitucional democrática como um direito fundamental.

Em um segundo momento (tópico 3.1), analisaremos o direito à expressão

artística nas Leis Fundamentais de quatro países estrangeiros, apontando alguns

conceitos importantes que serão desenvolvidos nas proposições do porvir, os Estados

nacionais utilizados como parâmetro comparativo são Estados Unidos, Portugal,

Espanha e Alemanha. Logo em seguida, no tópico 3.2.1, traçaremos uma retrospectiva

histórica sobre o mesmo direito no constitucionalismo brasileiro, que quantifica seis

Cartas Magnas até chegar à vigente Constituição Federal de1988.

Vencidas essas fases entraremos especificamente na CF (3.2.2), em primeiro

lugar, afirmando a autonomia do direito à expressão artística, para depois examiná-lo de

acordo com os fundamentos da Teoria Liberal dos direitos fundamentais, dividindo a

apreciação nos dois ramos de dimensão jusfundamental: a jurídico-subjetiva (função

clássica) e a jurídico-objetiva.

Na dimensão jurídico-subjetiva iremos delimitar a área de proteção da liberdade

artística, tornando preciso o alcance do seu conteúdo e sua titularidade, entretanto, como

essa averiguação só se torna plena pelo enfretamento dos limites constitucionais ao

exercício da liberdade tema, passaremos para os critérios que possibilitam intervenções

estatais na área de proteção do direito à expressão artística e as que constituem

violações, portanto, inconstitucionalidades em face do parâmetro.

Nessa fase, ainda, traremos casos conflituosos entre a liberdade artística e outros

bens jurídicos, destacando: obras artísticas obscenas e pornográficas; a arte que se

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manifesta em propriedades privadas e públicas; o corpo como objeto da arte; e, por fim,

as obras artísticas depositárias de “discursos do ódio”. A resolução desses potenciais

conflitos se dará em consonância com uso do princípio da proporcionalidade, que afasta

construções ponderativas.

Na última fase da abordagem (tópico 4.), na dimensão jurídico-objetiva, a

análise segue o foco das políticas públicas que devem proteger, formar e incentivar a

arte, sendo esta entendida como um bem cultural da ordem constitucional. Os

argumentos enfatizam a necessidade de políticas que sejam eficazes em promover a

pluralidade na nossa sociedade, como um princípio que se associa naturalmente à

democracia.

Às políticas públicas artísticas, como deveres prestacionais do Estado e

concretizações da própria liberdade artística do inc. IX, do art. 5º, da CF, caberá uma

observação cuidadosa do direito fundamental à igualdade, que funcionará como

instrumento de controle dos indivíduos e dos órgãos competentes pela fiscalização

constitucional sobre qualquer ato normativo que enseje promover arte, mas que possa

estar fadado a violações a outros direitos de liberdade nesse intuito.

A metodologia utilizada será o método hipotético-dedutivo que se insere na

possibilidade de arguição a partir das premissas normativas constitucionais e filosóficas.

Faremos os exames necessários dos dispositivos legais infraconstitucionais que se

orientem por uma ingerência, em concreto, com a liberdade artística.

Ainda, por intermédio da bibliografia acadêmica nacional e internacional, assim

como pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, da Suprema Corte norte-

americana, do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e do Tribunal

Constitucional Espanhol, examinaremos e apresentaremos atributos por

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posicionamentos que sejam alargadores da expressão artística em nossa ordem jurídico-

constitucional.

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2 CONCEPÇÕES DA ARTE

2.1 RACIONALIDADE E CIENTIFICISMO

As bases do pensamento moderno ocidental foram forjadas pela valorização do

logos em detrimento ao eros1, e o desenvolvimento dessa razão vem servindo à

instrumentalidade, à técnica, ao método. O que não pode ser comprovado mediante

esquematizações formuladas pela modernidade está fadado à irracionalidade, despido de

seriedade, “[...] a fonte de todo o saber é sempre fundada na plataforma de pesquisa do

próprio racionalismo.”2.

A hipertrofia da cientificidade reduziu o homem a um de seus aspectos, negando

a possibilidade de outros elementos essenciais de sua existência serem reconhecidos

como determinações reais, ficando à margem da razão moderna ocidental o afeto, a

fantasia, a crença, a beleza, as sensações3. Estas, como potencialidades humanas,

menosprezadas pela autoridade do racionalismo, estão cada vez mais anestesiadas no

indivíduo e nos arranjos sociais.

Não se trata aqui da inversão de hierarquização, isto é, promover a emoção em

relação à razão, apenas o reconhecimento que ambas são indispensáveis na formação de

qualquer sociedade que cultive verdadeiramente valores como liberdade, justiça e

igualdade 4. A valorização do espírito e da sensibilidade tem a ver com a apreciação da

arte, da criação e expressão estética, das representações humanas e do onírico.

1 MARCUSE, Herbert. Eros e a Civilização: uma interpretação filosófica do pensamento de Freud. São

Paulo: LTC, 1999, p. 196-197. 2 BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,

2009, p. 402. 3 Essa carência pode ser averiguada pelos diversos movimentos sociais como o “Free Hugs”, campanha

que nasceu na Austrália em 2004 e ganhou proporções mundiais; e, no Brasil, as performances

conhecidas como “Terrorismo Poético” (2007) são exemplos dessa necessidade em afastar a apatia e

alienação. 4 Sobre essa posição: “Quando razão e sensibilidade se encontram o direito opera justiça. As

oportunidades para uma sociedade mais justa deriva da possibilidade de aplicar-se uma nova forma de

enxergar as práticas do direito na base de um aumento de convergências entre a experiência que deriva da

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O princípio da razão é dominado pelas variantes do tempo, espaço e

causalidade5, no entanto, isoladamente, não servirá para nos informar sobre a apreciação

da arte que aqui iremos considerar, uma vez que o conhecimento estético não é

concebido in abstracto, mas apenas intuitivamente, ou melhor, intuições sem conceitos

são cegas, e conceitos sem intuição são vazios6, a arte não é “[...] uma ciência

experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa em busca de

significações.”7.

No que tange à ciência estética, Nietzsche, na oposição entre o princípio do

apolíneo e do dionisíaco8, constata que o desenvolvimento da arte é uma certeza que

está ligada à duplicidade, à contraposição dos dois impulsos que são metaforicamente

representados pelos dois deuses gregos; a figura de Apolo que encarna o “sonho”, “a

ordem” e “as formas e os limites”, à medida que Dionísio revela a “embriaguez”, “a

desmedida” e “a ausência de formas ou limites”.

Na perpétua luta entre o apolíneo e o dionisíaco (entre razão e emoção) a arte se

lançará como uma ponte, visto que dessa aparente contrariedade nutre-se o saber que

tudo é uno, isto é, Apolo integra Dionísio, Dionísio integra Apolo e dessa relação surge

à criação estética, as novas produções, a partir da convergência entre o Apolíneo e o

Dionisíaco.

Uma vez assegurado à insuficiência do princípio da razão na criação artística, já

somos capazes de asseverar uma diferença importante para essa pesquisa, a arte separa-

se do ponto de vista teórico da inteligência científica por visar à existência individual do

objeto sem procurar transformá-lo em ideia universal e conceito.

razão sensível e a que deriva da sensibilidade racionada.” BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-

modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 426. 5 SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 31.

6 Confira a respeito do tema “direito” em diversos tipos de obras de arte: RADBRUCH, Gustav.

Introdução à Filosofia do Direito. São Paulo: Armênio Armado, 1979, p. 73-82. 7 GEERTZ, Cliford. La Interpetación de las Culturas. Barcelona: Editorial Gedisa, 1990, p. 20-27.

8 NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo:

Companhia das Letras, 1992, p. 27-32.

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À arte, como captação do invisível, tornando-o visível e sensível, exigimos que

participe da vida, que não seja dominada por abstrações como a lei, o direito, a máxima,

que a generalidade que exprima não seja estranha ao coração e ao sentimento9. Às obras

de arte daremos essa missão hodierna: o reequilíbrio entre razão e emoção e, por

conseguinte, a harmonização do homem.

2.2 A ARTE DO PONTO DE VISTA FILOSÓFICO

Sem a pretensão de esgotarmos o que foi dito na literatura sobre o que é a arte,

nem cobiçando decorrer todos os pensadores da estética, iremos apreciar algumas

investigações sobre a sua natureza, o artista, a obra de arte, seu objeto, a crítica, os

especialistas e sua finalidade, até chegarmos a uma concepção adequada ao nosso

objetivo dentro dessa pesquisa, ou seja, uma que nos dê suporte para o estudo do direito

fundamental à expressão artística.

2.2.1 As ideias sobre a natureza da arte

Aristóteles10

e Hegel11

reconheceram cada um em seu tempo, que a arte é uma

necessidade primitiva do homem. Enquanto o primeiro diz que é por meio da imitação

da natureza (mimesis) que o homem desenvolve os seus primeiros conhecimentos, o

segundo faz essa correspondência da necessidade como exteriorização e concretização

das representações e das ideias nascidas no espírito.

Na percepção aristotélica o homem, o animal mais imitativo de todos, seria um

reprodutor de modelos externos, da natura naturata, e as distinções que servem de base

à imitação são os meios, os objetos e os modos, é igualmente também por intermédio

9 HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 19. 10

ARISTOTELES. A Poética. São Paulo: Edipro, 2011, p. 44. 11

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes,

1997, p. 29.

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dessa imitação que todos os homens experimentam o prazer. “Os artistas imitam os

caracteres das pessoas, assim como do que elas sofrem e fazem.”12

.

Dialogaremos, todavia, com a perspectiva hegeliana13

, na qual a arte não se

limita à imitação daquilo que está na natureza, pois se assim nos posicionarmos

estaremos condenando a arte a permanecer inferior à natureza, como um verme que quer

se igualar a um elefante. A repetição de imagens sobre paisagens, animais, fenômenos

naturais e acontecimentos humanos serão sempre inúteis com relação aos resultados que

a própria natureza nos oferece.

No entanto, incontestável é a afirmação de que a arte utilizará as formas da

natureza, visto que a obra de arte só em formas sensíveis pode ser representada, porém,

o seu conteúdo é de caráter espiritual14

, mostrando o homem maior habilidade em

criações provenientes do espírito do que das imitadas da natureza. À vista disso, a arte

que só imita tem como base de criação artística a lembrança, esvaziando sua liberdade,

privando-lhe de exprimir sua intuição.

De tal modo, a obra de arte tem um conteúdo que é produto da representação

humana, o que significa, v.g., que uma pintura que deseje retratar uma paisagem natural,

como o mar, se considerarmos a forma, provavelmente não veremos muita diferença

entre o mar e a imagem que o está reproduzindo. Contudo, a obra de arte diz mais,

“mostra-nos que a forma existira antes de tudo na representação, que brotou do espírito

humano e da sua atividade produtiva, de sorte que temos diante de nós não mais a

12

ARISTOTELES. A Poética. São Paulo: Edipro, 2011, p. 40. 13

Para uma posição contrária cf. ADORNO, Theodor. W. Teoría Estética. Madrid: Ediciones Akal S.A.,

2004. 14

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 31.

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19

representação de um objeto (mar), mas a representação de uma representação humana.”

15.

2.2.2 O artista e a obra de arte

Ao assentarmos que a arte é uma criação do espírito humano precisamos, ainda,

investigar como esse humano possui a qualidade de artista (a despeito de outras

características que iremos considerar sobre a titularidade do direto à expressão artística

em momento oportuno).

O artista poderia ser conceituado como um fornecedor de uma prestação

original16

, na medida em que ele é único e a sua interpretação importa na manifestação

artística ou em sua criação. Na criação, o artista é aquele que apreende a Ideia, “[...] nos

deixando olhar com seus olhos para a realidade, e assim tornamo-nos participantes, por

sua intermediação, do conhecimento das Ideias.”17

.

Sendo dotado de um espírito transbordante, o artista projeta-se para fora de si,

dando configuração na realidade àquilo que é transcendente; o que interpreta (como um

músico, um bailarino, um ator), por sua vez, projeta o seu espírito e comunica-se com a

obra de arte em execução, a sua operação significa, sendo diferente de outras execuções,

e, caso seja substituído por outro artista intérprete, à obra de arte podemos imprimir

outros sentidos.

O artista possui uma habilidade na execução artística que chamamos de dom,

este, por sua vez, é adquirido com o uso do instrumento técnica da arte18

, não devendo

haver confusão entre essa técnica e um suposto imperativo de regras à produção de

15

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o sistema das artes. São Paulo: Martins Fontes,

1997, p. 29. 16

SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores LTDA.,

2001, p. 30. 17

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 85. 18

Ibid., p. 85.

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20

obras de arte. Isso porque, os trabalhos subordinados às regras só alcançam resultados

formais; por seu turno, a obra de arte é uma atividade do espírito.

A técnica da arte, apesar de representar o caráter racional de qualquer artista,

porquanto, ao exteriorizar-se buscará sempre a melhor forma (a partir de

aprimoramentos, repetições, procedimentos e técnicas) de exprimir a consciência que

tem de si e de todo o saber, nem por isso, poderá se esquivar da importância do talento e

da inspiração na consecução da criação estética.

Quanto à obra de arte, seguindo as ideias até aqui construídas, podemos apontar

alguns truísmos, quais sejam: as obras de arte não são produtos naturais, mas humanos;

são as obras criadas para o homem, e, embora recorram ao mundo sensível (tátil),

dirigem-se à sensibilidade do homem19

; e, não há apreciação da obra de arte “de

segunda mão”, isto é, a obra de arte necessita de uma apreciação direta20

.

Ao ligar a realidade finita com a liberdade infinita do pensamento compreensivo,

a obra de arte atua como um medium facilitador21

, no qual repousa o prazer da

representação estética. Esse anel intermédio possui de um lado um conteúdo interno e

do outro deve representá-lo (pela forma).

Com relação à obra de arte, ainda, diz-se que ela é um nunca-acabar, estando

sempre inacabada. Quanto à forma, em verdade, dependendo da produção artística, a

obra poderá estar finalizada, mas no que tange a sua interpretação será uma experiência

que sempre se refaz, se recria, perene, na medida em que o espectador projeta-se, pelos

sentidos, a contemplá-la.

A obra de arte como criação do espírito só com ele se comunica, por isso, aquele

que admira a representação que ao espírito pertence com ela se harmoniza, restando

19

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo, Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 45. 20

Confira: SCRUTON, Roger. Beauty: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2011. 21

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 84.

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21

impossibilitada uma compreensão artística indireta. A mais detalhada descrição sobre

uma expressão artística será fracassada no seu objeto de transmitir Ideias sobre as

representações humanas.

A atemporalidade de uma criação artística não responde a nenhum juízo de

utilidade22

, sua grandiosidade se impõe independentemente de sua aplicação prática. Em

si e por si está à consignação da Ideia, portanto, sua forma pode conhecer termo, mas

sua espiritualidade não. Estará, pois, isenta de perder valor pelo transcorrer do tempo.

2.2.3 O objeto da arte e o interesse desinteressado

Ao definirmos o caráter contínuo da obra de arte não investigamos a sua razão

de ser, isso porque, a perpetuidade está atrelada ao objeto da arte que é a apreensão de

Ideias23

. Schopenhauer, revisitando a teoria platônica do “Mundo das Ideias”, analisa o

mundo como mera representação e vontade24

, sendo o seu correspondente as Ideias,

como um modelo que possui suas cópias, como as coisas que possuem as sombras. O

que está manifestado seriam essas sombras e cópias, enquanto os modelos e as coisas

em-si estão em outra dimensão. As Ideias são formas imutáveis e imperecíveis, que

constituem o em-si do mundo25

.

Pela contemplação estética o olhar artístico será responsável por esse alcance das

Ideias. Aplicando a teoria, poderíamos dizer que a arquitetura, v.g., como expressão

22

“Toda arte é completamente inútil”, famosa e má compreendida frase do escritor Oscar Wilde que

corrobora com o que estamos a afirmar, a arte é inútil devido ao seu valor está desconectado ao princípio

do utilitarismo. Ainda sobre o utilitarismo, Rawls, citando a doutrina de Sidgwick afirma que no

utilitarismo “Uma pessoa age de um modo muito apropriado [...], com o intuito de conseguir a

maximização de seu bem-estar, ao promover seus objetivos racionais o máximo possível. [...] O

utilitarismo não leva a sério a diferença entre as pessoas”: RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São

Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 24-30. 23

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 23. 24

A vontade é corpo e sentimento, é ela que nos faz alcançar o sentido das coisas, a representação é a

objetivação da vontade: SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como Vontade e Representação. São

Paulo: Contraponto Editora, 2001. 25

A posição majoritária dos filósofos reconhece em Platão um desestimulador da arte como caminho da

verdade, por ela representar a imitação da cópia, um simulacro, embora Schopenhauer discorde dessa

posição, entendendo que tanto a filosofia (esta com mais potencial) como a arte são trajetórias legítimas

no alcance das Ideias.

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artística que é, apreende uma Ideia, que pode ser manifestada pela rigidez, coesão,

reação contra a luz, desafios à gravidade etc.. Da mesma forma, a poesia trágica, expõe

a Ideia da humanidade em seu lado cru, terrível e pavoroso; já a dança, por sua vez,

exibirá leveza, precisão, ritmicidade etc.. Identifica-se, de tal modo, no dizer dos

neoplatônicos, diversos arquétipos da Ideia, a partir de diferentes formas de expressões

artísticas, qualidades essas que causam o prazer que sentimos perante uma obra de arte.

Aqui, precisamos perquirir que prazer é esse que se origina da fruição artística.

Isso porque na nossa cultura entendemos como prazeroso aquilo que, não importando

em que se baseia o objeto, consiste nas satisfações da vontade do indivíduo. Um prazer

vivenciado a partir de conceitos como agradável e útil (Chaq’un a son goût)26

, pois o

objeto de prazer guarda relação direta com o sujeito, “gosto mais dessa cor, sabor,

melodia”, enquanto que para outra pessoa “aquilo é mais útil, aquilo lhe agrada mais”.

O regozijo com o artístico não possui ligação com o interesse pessoal, ele

repousa no mero entendimento, de tal modo, os objetos do saber (as obras de arte) não

possuem nenhuma vinculação com fins pessoais, o objeto possui um fim em si,

tornando o prazer desinteressado.

Essa cosmovisão aponta que as Ideias só são conhecidas pelo sujeito “graças à

supressão da individualidade no sujeito que conhece”27. Quando na consideração do

objeto belo (artístico) não estamos mais conscientes de nós mesmos como indivíduos,

“mas como puro sujeito do conhecer destituído de vontade, assim, conhecemos não a

coisa isolada, mas uma Ideia”28

. Schopenhauer chama esse sujeito de gênio, o que vê

através do véu de Maia, e que irá se reportar para os espectadores a fim de que esses

possam fruir dessa capacidade por intermédio das obras de arte, porém, estes o fazem

em um grau inferior ou diferenciado.

26

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p. 24. 27

Ibid., p. 30. 28

Ibid., p. 120.

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23

O chamado “interesse desinteressado” foi esboçado por Kant29

, seu substrato nos

diz que o juízo do gosto que se ocupa de uma obra de arte, concedido por nós, terá mais

chances de ser um “veredito necessário” quanto maior for a capacidade desse sujeito em

penetrar no objeto, sem querer trazê-lo para si, sem nenhum egoísmo. O gosto para o

belo artístico será um julgamento de satisfação ou insatisfação, porém sem nenhum

interesse fundante na realização de desejos pessoais.

Uma conclusão importante que aqui chegamos (retomaremos detalhadamente na

seção da “Titularidade”) é que o desejo artístico diferencia-se do desejo de outras

coisas, pois este se sacia com qualquer coisa, qualquer coisa serve, enquanto aquele é

específico e não se esgota. Dessa maneira, as obras de arte não se consomem do ponto

de vista de uma relação de consumo, “o interesse pela arte não é ditado pelo desejo, pois

não se fixa no sensível concreto”30

.

2.2.4 Crítica e o conhecimento dos especialistas

A filosofia se ocupa do conhecimento devido à necessidade e não pelo que ele

pode nos servir (utilitarismo)31

, todavia, o refinamento do “veredito necessário”

kantiano provoca-nos uma sensação de incongruência, por não estarmos convencidos

dessa capacidade (do interesse desinteressado) tanto em nós como no outro. De fato, a

realidade nos mostra que esse sentido não é inerente ao homem, “como qualquer coisa

29

KANT, Emmanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995,

p. 47-48; 55-56. 30

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 56. 31

A expressão mais eloquente do utilitarismo como movimento estético foi o “Construtivismo Russo”,

inserido historicamente na Revolução de 1919. A arte passa a ter uma função social de caráter político,

seus teóricos negavam a “arte pura” como fruto da criação humana, por considerá-la meramente

decorativa; a arte precisa organizar a vida. Sobre o movimento estético-político: ALBERA, François.

Eisenstein e o Construtivismo Russo. São Paulo: Cosac Naify, 2002

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24

que lhe fosse inseparável por natureza adquirida com o nascimento, como, por exemplo,

os órgãos ou os olhos”32

.

Não se constitui como tarefa fácil abandonarmos os apegos de nossa

personalidade e nos lançarmos de forma desinteressada para realizar uma contemplação

artística. Por isso, parece-nos que esse sentido deve ser formado e, cada homem, dentro

de si, precisa burilá-lo e conservá-lo, não importando muito saber se o perdemos em

alguma etapa de nossa evolução ou se nunca o tivemos, o fato é que devemos trabalhar

para tê-lo, ou melhor, sê-lo.

Não obstante, como vivemos no tempo em que todos têm uma opinião e as

informações são repetidas com um invólucro de verdade irrefutável, tudo vai perdendo

autenticidade e as significações cada vez mais desconectadas de profundidade.

Formando-se o seguinte paradoxo: não cultivamos (nem aprendemos) um real

sentido/intuição para apreciar o belo artístico, mas somos estimulados a opinar sobre

tudo, a criticar33

.

E é assim que vamos fazendo leituras artísticas, a partir da referência de juízos

rasos, em sua maioria o que a obra de arte em nós suscita é, além do direto aprazimento,

“um juízo sobre o seu conteúdo e sobre os meios de expressão e ainda sobre o grau de

adequação da expressão ao conteúdo”34

. Esse tipo de gosto se atém ao detalhe, ao

acessório, ao secundário, e a profundidade das grandes paixões que os artistas

descrevem são repelidas.

32

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 53. 33

“Respeitamos, admiramos a arte; mas acontece que já não vemos nela qualquer coisa que não possa ser

ultrapassada, a manifestação íntima do Absoluto, e submetemo-la à análise do pensamento, não com o

intuito de provocar novas obras de arte, mas antes com o fim de reconhecer a função e o lugar da arte no

conjunto da nossa vida.” Ibid., p. 25. 34

Ibid., p. 25-26.

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25

Nesse mundo das opiniões, o homem do gosto vem cedendo lugar para o

especialista35

. O especialismo supõe, ao menos, certos conhecimentos que abrangem o

conjunto da obra, além de trabalhar a reflexão sobre ela. O especialista domina com

mais precisão a obra de arte sobre os seguintes aspectos: o significado histórico; os

materiais de que foi feita; as múltiplas condições em que foi produzida; a personalidade

do artista etc..

A indústria cultural, geradora da cultura de massa36

, irá repercutir

inevitavelmente no diálogo artístico, fruto dos modos de produção que a nossa demanda

populacional traduz, nesse contexto, da mesma maneira como em outras áreas do

conhecimento, o especialista em artes será valorizado e convocado em seu mister para

diversas análises.

Teria o especialista certo grau de formação técnica e, pela dedicação que

emprega ao belo artístico, poderíamos dizer que ele está mais perto de ter um juízo

estético que se aproxime ao “veredito necessário”, contudo, na realidade, como ele não

está desconexo dos demais homens da sociedade que são de seu tempo, precisamos ficar

atentos à possibilidade de os especialistas formarem uma “ditadura da minoria” sobre o

que deve ser valorizado em matéria artística.

2.2.5 A finalidade da arte

Qual seria o fim último da arte? Teria a arte um objetivo a ser concretizado?

Uma função a realizar? O alcance desse escopo seria individual ou poderia, outrossim,

ser coletivo? Para responder a essas questões iremos partir do seguinte ponto, a arte

35

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2. ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 54. 36

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 175.

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26

possui a faculdade de nos transportar para situações que normalmente a nossa existência

pessoal não proporcionaria, e mesmo quando a experiência representada já foi

vivenciada, a posição de espectador possibilita uma autorreflexão objetivada. São

efeitos poderosos.

A finalidade da arte, dizem-nos, seria o “despertar da alma”, pois ela tem o

efeito que consiste em revelar à alma tudo o que alma contém de essencial, ficamos

mais aptos a sentir, em pôr ao alcance da intuição, o que existe no espírito do homem, a

verdade que o homem guarda no seu espírito, o que revolve o peito e agita o espírito

humano37

.

2.2.5.1 A ação suavizante da arte

Conhecida pelos franceses como l’adoucissement de la barbárie38

, a ação de

suavização do homem pela arte, reconhece, aprioristicamente, que os homens são

dominados por suas paixões, permanecendo muitas vezes subjugados em suas ações

pela força selvagem de seus instintos, estes, por sua vez, são incontroláveis e

incompreensíveis por ele.

A arte vai mostrar para o homem as suas próprias paixões, podendo lisonjeá-las,

compará-las, identificá-las etc., sabemos que na representação artística não existe

imparcialidade, ao contrário, temos uma produção unilateral que se direciona aos nossos

sentidos, toda exposição artística (por todos os meios existentes e os que virão a existir),

consiste em um convite para que o homem conheça mais sobre o seu espírito.

Quando o homem/espectador admira uma obra de arte ele se coloca numa

posição de saber quem ele é, pois a arte lhe dá a consciência de o ser. A demonstração

desses instintos de uma perspectiva exterior, ou melhor, da expectativa daquele que

37

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2.ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 32. 38

Ibid., p. 35-36.

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olha, propicia-lhe um afastamento razoável do sentimento em tema, esse distanciamento

confere ao sujeito certa liberdade.

A liberdade de que falamos é a de poder “manusear” o sentimento e, enfim,

entendê-lo melhor, nesse ponto, a ação de suavização do homem já começou a operar,

posto que, assim que identificou o sentimento objetivamente, essa primeira descoberta

possui um sentido aliviador, como as lágrimas que no pranto aliviam a dor pelo simples

chorar.

As paixões perdem a sua intensidade quando às assistimos como simples objetos

de representações artísticas, essa mitigação ocorre, precisamente, porque “os

sentimentos saem do estado de concentração em que se encontram dentro de nós e

entregam-se ao nosso livre-arbítrio”39

.

Destarte, munido do livre-arbítrio em relação às suas emoções, o homem possui

uma chance de desenvolver sua personalidade de forma única, as escolhas que irá tomar

no processo de autodeterminação deixarão de ser “tiros no escuro”, passando a traduzir

escolhas conscientes de um ser que não só se conhece, mas sobretudo conhece o

humano. Estamos esboçando, nesse momento da pesquisa, a perspectiva de uma

“educação pela arte”40

, pela faculdade que a arte tem em cultivar o humano no homem

e, nessa empreitada, usaremos a fundamentalidade do princípio Nihil humani a me

alienum puto41

, que do latim significa “nada do que é humano me é estranho”.

A educação pela arte (desenvolvida no tópico 4.1.2 em outros aspectos) tornaria

os homens mais preparados para todas as experiências da vida, fazendo com que as

39

HEGEL, Gerog Wilhelm Friedrich. Curso de Estética: o belo na arte. 2.ed. São Paulo: Editora WMF

Martins Fontes, 2009, p. 35-36. 40

Nesse sentido, cf.: SCHILLER, Friedrich. Cultura, Estética e Liberdade. São Paulo: Hedra, 2009. 41

HEGEL, op. cit., p. 33.

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adversidades de uma vida comum não nos apanhem insensíveis e que nossa

sensibilidade permaneça aberta a tudo quanto ocorre fora de nós, tornando-nos cidadãos

cada vez mais tolerantes.

Em síntese, a arte tem como fim o despertar de nossas almas para aquilo que é

próprio do espírito humano, quando os homens abrem os olhos – tornam-se

espectadores - para o conteúdo artístico eles passam pela ação suavizante da arte,

responsável, no primeiro momento, em torná-lo mais estruturado com relação às suas

próprias paixões e, dessa forma, terem maior autonomia para escolherem livremente

seus destinos; no segundo momento, a educação artística é um beneplácito para toda a

sociedade, uma vez que prepara todos os homens para um convívio mais

condescendente.

2.3 PAPEL DA PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Apesar de resumido, o exame que realizamos sobre a arte em considerações

filosóficas é o alicerce de diversas questões que serão enfrentadas nos capítulos a seguir,

ou seja, compreende em grande parte as nossas premissas maiores, típicas do método

dedutivo aplicado.

Estaremos desenvolvendo o mote da liberdade artística a partir das três

perspectivas que já estão fixadas no tema, no entanto, apesar de seguirmos as etapas que

na ordem fora estabelecida, os temas são conexos e referenciam-se, consequentemente,

teremos o tripé “concepções filosóficas, fundamentalidade constitucional e política da

pluralidade” presente em algum grau em todos os capítulos.

De fato, já inauguramos o estudo desse tripé na perspectiva filosófica, com uma

ênfase mais acentuada na elocução humana, ou seja, o estudo da arte (objeto) com

referência ao ser humano (sujeito), sendo delineados os primeiros substratos dessa

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complexa relação, destacando a importância da arte na formação do ser humano

individualmente e coletivamente concebido.

A seguir, iremos investigar a fundamentalidade constitucional da expressão

artística. Primeiro, trazendo elucidações do direito constitucional estrangeiro. Depois,

delimitaremos o direito fundamental à expressão artística na Constituição Federal

Brasileira e as implicações provenientes da dimensão jurídico-subjetiva (função

clássica)42

, principalmente como parâmetro no controle de constitucionalidade.

Em seguida, enfrentaremos questões polêmicas que circundam as criações

artísticas em nosso tempo, como as questões violadoras a igualdade de gênero, o

racismo, o discurso do ódio, agressões à integridade física (automutilações ou contra

terceiros) no contexto de uma obra de arte, a pornografia, o desrespeito aos valores e

bons costumes, entre outras.

Por fim, iremos explorar o direito à expressão artística a partir da dimensão

jurídico-objetiva43

(status positivus), suas determinações aos poderes constituídos,

necessidade de proteção, fomento, formação, promoção e financiamento público das

atividades artísticas, à luz dos comandos axiológicos da Constituição, em especial ao

princípio da igualdade, como critério interpretativo e parâmetro constitucional em face

das políticas culturais.

42

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 110-111. 43

Ibid., p. 111-114.

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30

3 DIREITO CONSTITUCIONAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA

3.1 DIREITO ESTRANGEIRO

O estudo do direito estrangeiro é substancial nas pesquisas desenvolvidas dentro

do ambiente acadêmico, pois, a partir dele, entendemos um fluxo material e histórico na

formação das Cartas constitucionais. No que diz respeito à materialidade podemos

traçar a semelhança entre os dispositivos normativos pelas prioridades nas agendas

políticas, assim como apontar o que se formatou como antípodas entre os Estados

nacionais.

Selecionamos quatro ordenamentos jurídicos alienígenas, o português, o

espanhol, o americano e o alemão, tendo como fundamento comum suas posições de

Estados Democráticos de Direito e, designadamente, no tocante aos dois primeiros, a

estreita relação histórica que naturalmente motivou o direito no Brasil; à medida que os

dois últimos, por obra da presença da Teoria Liberal (política e jurídico-dogmática)

tanto na doutrina como nas construções jurisprudenciais daqueles países.

Para tanto, investigaremos como as Constituições desses Estados protegem o

direito à expressão artística, para em seguida nos posicionarmos com relação ao

ordenamento jurídico brasileiro, aproveitando diversos conceitos a que chegaremos ou

por sínteses esclarecidas ou por termos simplesmente colhido-os da experiência

estrangeira delimitada.

3.1.1 Estados Unidos, Constituição de 1787

O direito fundamental à expressão artística não é um direito constitucional

autônomo no ordenamento jurídico norte-americano, ou seja, não existe previsão

explícita no rol das garantias fundamentais individuais. Historicamente, estes direitos

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31

individuais, fruto do constitucionalismo44

(como movimento típico dos Estados

Modernos ocidentais), apresentaram, na maioria de suas experiências, sua inserção no

texto constitucional através de uma declaração de direitos do teor de status negativus45

.

Os direitos de status negativus são aqueles que permitem ao sujeito, titular do

direito constitucional, resistir a qualquer tipo de interferência do Estado na esfera de

liberdade negativa garantida pela Constituição. Correlatamente, teremos uma obrigação

de abstenção do Estado, um deixar de fazer algo, para que assim não incorra em

violação ao direito de resistência.

Os direitos fundamentais nos Estados Unidos foram sendo inseridos por

intermédio de emendas (amendments) ao texto de 1787, o conjunto delas – as dez

primeiras emendas – são conhecidas como a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos

Estados Unidos (Bill of Rights). Na primeira emenda reconhecemos o direito que seria o

gênero da liberdade artística, a liberdade de expressão (freedom of speech)46

.

A liberdade de expressão desempenha um papel de destaque nos Estados

Unidos, pois representa não somente a liberdade em exprimir ideias e opiniões, mas,

como tal, elemento estruturante da democracia. Nesse sistema, a expressão mostra-se

como uma “liberdade instrumental”47

, meio capaz de assegurar o regime democrático e

a pluralidade política.

Dessa forma, primeiro, a doutrina norte-americana negava a possibilidade das

manifestações artísticas estarem protegidas pela liberdade de expressão, pois esta era

44

Para o estudo de um recorte histórico onde se examina o constitucionalismo a partir das teorias

daqueles que pensaram as Constituições do Estado Moderno: GODOY, Miguel Gualano de.

Constitucionalismo e Democracia: uma leitura a partir de Carlos Santiago Nino e Roberto Gargarella.

São Paulo: Saraiva, 2012, p. 31-66; e FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito

Constitucional. 38. ed. São Paulo: Saraiva: 2012, p. 30-67. 45

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 49-51. 46

ESTADOS UNIDOS, Constituição (1787). Disponível em <http://constitutionus.com/>. Acesso em: 10

jan. 2013. 47

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 132.

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32

uma liberdade política, isto é, a posição política estava em seu desiderato, todavia, esse

entendimento fora superado, tornando-se insuficiente o critério de que certas ideias

precisavam estar veiculadas nas manifestações para que essas pudessem gozar de arrimo

constitucional.

O novo e atual posicionamento é que a liberdade de expressão justifica qualquer

tipo de discurso, como a literatura, as artes ou a ciência, sendo essas outras

manifestações derivadas (espécie) da função principal, mas sem carregar esse ônus de

função política em seu conteúdo, que lhe denotaria uma posição preferencial48

.

A consequência dessa derivação, ou melhor, do englobamento da liberdade de

expressão artística ao freedom of speech, foi o acolhimento das prerrogativas que

orientam o direito de expressão em geral, como a existência de um “livre mercado de

ideias”49

responsável por garantir o máximo de liberdade possível e, destarte, todas as

ideias contrárias podem vir ao debate público na tentativa de convencer os demais

interlocutores, devendo o resultado desse livre debate ser o formador da opinião pública.

O que implica dizer que o Estado deve prescindir, como regra, na intervenção

ou na regulação de opiniões, visto que ao poder estatal é vigente o “princípio da

neutralidade de conteúdo”, não devendo tomar partido em discussões. Esse conjunto de

elementos abalizadores será de extrema importância para a resolução dos cases que

envolvem expressões artísticas carregadas, v.g., de racismo ou preconceito.

Ademais, a Carta norte-americana traz um mandamento positivo ao Congresso

que diz respeito “à promoção e ao progresso das ciências e das artes úteis”50

. O que

48

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.

São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 322. 49

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 132. 50

Seção 8: “Será da competência do Congresso: Promover o progresso da ciência e das artes úteis,

garantindo, por tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus escritos ou

descobertas;”. ESTADOS UNIDOS, Constituição (1787). Disponível em <http://constitutionus.com/>.

Acesso em: 10 jan. 2013.

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33

distingue esses direitos como de status positivus51

, deste modo, eles impõem ao Estado

um agir, uma prestação material que seja capaz de melhorar a condição de vida dos

titulares dos direitos por lhe suprir certos recursos, correspondentemente, os indivíduos

que têm o direito de receber algo podem exigir a prestação material ou imaterial do

Estado.

Reconheceu o constituinte norte-americano, na segunda parte do dispositivo, os

direitos de exclusividade, por tempo limitado, dos autores e inventores sobre os seus

escritos e descobertas, o que corresponderia, em nossa doutrina pátria, aos direitos de

autor, significando dizer que a liberdade de criação artística protege também o resultado

da criação, a obra de arte propriamente dita.

Não obstante, o dispositivo constitucional norte-americano é direcionado à

competência de legislar dos congressistas, deste modo, no que tange às matérias

patrimoniais do autor sua hierarquia nos Estados Unidos é de lei infraconstitucional, a

experiência brasileira, por sua vez, deu ao direito o status de direito fundamental

constitucional, no art. 5°, IX, da CF.

Quanto à qualificação das ciências e das artes sendo “úteis”, como objeto de leis

para promoção e progresso, fica estabelecido que deverão os legisladores

desenvolverem, ao turno de seu poder discricionário, qual critério de utilidade que

norteará as políticas públicas de fomento. Aqui não se trata em dar à manifestação

artística uma utilidade para que seja protegida constitucionalmente (já afastamos essa

possibilidade acima, no tópico 2.2.2), o utilitarismo aqui entendido será um método

procedimental para o incentivo artístico.

51

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 51-52.

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34

3.1.2 Portugal, Constituição de 1976 (arte e cultura)

O constituinte lusitano trajou a liberdade de expressão artística como direito de

criação cultural, o que influenciou toda a doutrina desse país que utiliza a cultura e a

arte como se fossem termos unívocos. O artigo 42º, caput, intitula-se como “Liberdade

de criação cultural”, estipulando no nº 1 que participam da liberdade cultural, como

liberdade individual que é, “a livre criação intelectual, artística e científica”; e, o nº 2 do

artigo em comento assegura os direitos do autor 52

.

A liberdade de criação cultural portuguesa é considerada como uma

manifestação do próprio desenvolvimento da personalidade53

, desse modo, caberá a

cada pessoa, autonomamente, a escolha do objeto, da forma, do tempo e do modo de

qualquer obra, sem interposição do domínio público ou privado.

O artigo 43º, nº 2 versa que “o Estado não pode programar a educação e a

cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou

religiosas”, isto é, ao que nos remete, ao Estado português fica proibido à oficialização

de uma corrente estética, o que em outro prisma representa o dever de neutralidade,

atribuindo o contraditório típico de uma sociedade livre.

Em que pese o entendimento dos doutrinadores portugueses, que inclusive

assentam no elemento cultural tudo aquilo que tem significado espiritual e adquire

relevância coletiva54

(o que representa a natureza da arte vista no tópico 2.2.1), a arte e a

cultura não se confundem, e, possivelmente, essa fusão das duas inteligências causará

uma proteção à liberdade artística aquém da ideal.

52

PORTUGAL, Constituição (1976). Disponível em

<http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx >. Acesso em: 10

jan. 2013. 53

MEDEIROS, Rui; MIRANDA, Jorge. Constituição Portuguesa Anotada - Tomo I. 2. ed. Coimbra:

Almedina, 2010, p. 452 et. seq. 54

MIRANDA, Jorge. Notas Sobre Cultura, Constituição e Direitos Culturais. Coimbra: Almedina,

2006, p. 764.

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35

É comum encontrarmos a utilização da arte e da cultura como se uma fosse

sinônima da outra, embora, do ponto de vista sociológico a cultura é mais abrangente

que a arte55

. Essa ciência entende que a cultura corresponde à totalidade de padrões

apreendidos e desenvolvidos pelo ser humano como membro de uma sociedade e, esse

complexo de significações, é responsável pela identidade desse povo.

O conhecimento, as leis, os costumes, as artes, as línguas, as crenças, ou seja,

tudo aquilo que o homem imagina, pensa ou inventa pertencem à cultura. “A cultura é

uma ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira

determinada suas relações com a natureza, entre si e com o poder”56

. A cultura é uma

criação coletiva que reforça o seu modo de ser, assim, diz-se que a cultura “cuida do

outro”, pois traça os elementos que dão conformidade ao povo.

A arte, como já vimos, transcende todo e qualquer fim que se proponha a ela,

visto que guarda fim em si. Já a cultura segue o princípio da utilidade, isso porque ela

instrumentaliza os indivíduos a viver em sociedade, sendo útil para que estes possam

estabelecer a comunicação. Quando essa verdade sobre a cultura se revela ela irá se

perpetuar por dois atributos: a tradição e a repetição57

.

Enquanto a arte é um universo tendo como abordagem a interpretação, a cultura

narra aquilo que é construído pela agregação do conhecido, por existir e ser preservado,

importa para os indivíduos saber como é feito o que sempre foi feito, portanto, a cultura

estabelece normas, hábitos e técnicas, seu discurso é convergente.

E essa tendência de unificar diversos produtos do homem em sociedade,

afetando-os, isto é, tornando-os reflexo desse povo, estabelecendo esse laço de

assimilação que cada homem reconhece em si e nos outros que também dividem a

55

Nesse sentido: SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros

Editores LTDA., 2001, p. 60. 56

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo:

Cortez, 2006, p. 55. 57

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 308-345.

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36

mesma cultura, faz surgir à identificação cultural, que deverá ser protegida pelos

ordenamentos jurídicos.

A cultura é resguardada em diversas Cartas constitucionais modernas58

, mas por

ela representar esse ponto de convergência entre distintas atividades humanas, suas

normas serão mais bem alocadas, dentro da técnica constitucional, entre os direitos de

status positivus, mais precisamente aqueles que prescrevem as políticas públicas ao

legislativo e ao executivo, pois esse é o regime do dever estatal com a cultura, o que

ordena a preservação, o incentivo, a valorização, a difusão etc.

Resta, isto posto, afastada a possibilidade de confundir arte e cultura, tanto no

sentido sociológico (visto que a arte pertence à cultura), como do ponto de vista

jurídico, pois a proteção da expressão artística livre só é plena quando autônoma,

quando compartilha toda a tutela jusfundamental, exaltando o seu caráter de resistência

com relação às violações dos poderes constituídos, por tudo que representa

individualmente (artista, obra de arte, espectador) e não somente por participar da

cultura de seu povo ou por ter relevância coletivamente (aspecto da dimensão jurídico-

objetiva).

3.1.3 Espanha, Constituição de 1978

A Constituição espanhola instituiu em seu art. 1º valores superiores do seu

ordenamento jurídico, que são a liberdade, a justiça, a igualdade e o pluralismo

político59

. A supremacia desses valores é verificada ao interpretar e aplicar qualquer

dispositivo constitucional ou infraconstitucional, pois sofrerão a influência que

58

É o caso da nossa Constituição Federal de 1988, que traz no Título VIII, Da Ordem Social, Seção II, Da

Cultura. BRASIL, Constituição (1988). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm >. Acesso em: 10 jan. 2013. 59

ESPANHA, Constituição (1978). Disponível em

<http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/titulos/articulos.jsp?ini=15&fin=29&tipo=2>. Acesso

em: 01 fev. 2013.

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corresponde à irradiação do sentido axiológico desses valores60

. Isso denota que a

liberdade artística nesse país será determinada pelos valores superiores, igualmente a

todos os outros direitos fundamentais.

A despeito da liberdade artística, encontra-se ela no art. 20.1, b, que reconhece e

protege os direitos de criação e produção literária, artística, científica e técnica. Já o art.

20.4 reconhece que esses direitos fundamentais não são absolutos, sendo limitados tanto

por leis que os desenvolvam, como, e especialmente, pelo direito à honra, à intimidade,

à própria imagem e na proteção da juventude e da infância.

A Constituição autoriza, ainda, o sequestro (art. 20.5) de publicações, gravações

e outros meios de informação por decisão judicial, ficando vedada a possibilidade de

sequestro por decisão administrativa. A jurisprudência do Tribunal Constitucional

Espanhol reconhece que os tratados internacionais também irão participar na formação

de um “perfil exato” na abrangência material que delimita os direitos fundamentais61

.

Fenômeno curioso que vem ocorrendo nesse país, fruto da jurisprudência do

Tribunal Constitucional, é a penalização daquele que, ao manifestar-se, nega a

existência de um crime relacionado com a ordem política e social. Esse dispositivo

penal resulta da adesão da Espanha ao Convênio Internacional de Prevenção e Sanção

ao Genocídio de 1948, desta maneira, a negação do Holocausto, por exemplo, vem

sendo interpretada pela Corte constitucional como crime.

Em um caso emblemático62

, os donos de uma Editora, chamada Editorial

Makoki S.A, foram condenados pela publicação de um álbum chamado “Hitler SS” da

autoria de dois franceses. As decisões dos tribunais das instâncias inferiores afirmavam

60

FALLA, Fernando Garrido. Comentarios a la Constituición. Madrid: Civitas, 1985, p. 29. 61

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 160. 62

STC 176/1995 em: Ibid., p.167.

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38

que o conteúdo do álbum era neonazista e revisionista dos comprovados fatos históricos

ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial.

O Tribunal, em grau de recurso, confirmou as decisões, admitindo que a

finalidade da obra literária não “é outra senão a de humilhar e ofender o povo judeu,

cabendo aos editores o dever de analisar o conteúdo do texto que deverá ser publicado,

antes de sua publicação”. Assim, condena aquele que, ao expressar seu pensamento,

nega a existência do genocídio como também aquele que, mesmo não sendo autor,

difunde as ideias.

A decisão da Corte fundamenta-se nas Convenções Internacionais e no

dispositivo penal que criminaliza a discriminação, o ódio, ou a violência contra grupos

ou associações por motivos racistas, antissemitas etc. A norma penal63

fora questionada

sobre sua constitucionalidade, por supostamente representar uma violação ao direito

fundamental da liberdade de expressão, mas o Tribunal Constitucional afastou esse

entendimento64

.

Ainda, segundo os argumentos da Corte, as dissidências ideológicas podem

acontecer, mas precisam ocorrer de forma pacífica e sem ofender a dignidade humana,

de sorte que o ato de “revisionismo histórico” é desrespeitoso às vítimas do Holocausto

e a violência a qual foram submetidas. Hoje, o Holocausto é um tabu no sistema

espanhol. Toda manifestação que questione os fatos advindos à época ou tente dar

legitimidade ao regime responsável pelo genocídio é penalizada.

63

Código Penal Espanhol, 1995, art. 510, item 1 e 2, que dispõe, “1. Os que provocarem a discriminação,

o ódio ou a violência contra grupos ou associações por motivos racistas, antissemitas ou outros referentes

à ideologia, religião ou crença, situação familiar a vinculação se seus membros a uma etnia ou raça, sua

origem nacional, seu sexo, orientação sexual, enfermidade ou deficiência, serão castigados com a pena de

prisão de um a três anos e multa de seis meses a doze meses; 2. Serão castigados com a mesma pena os

que, com conhecimento de sua falsidade ou temerário desprezo face a verdade, difundirem informações

injuriosas sobre grupos ou associações em relação a sua ideologia, religião ou crenças, a vinculação de

seus membros a uma etnia ou raça, sua origem nacional, seu sexo, orientação sexual, enfermidade ou

deficiência”. Em: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 161. 64

Nesse sentido: LAMBAS, Fernando Santamaría. El Processo de Secularización en la Protección

Penal de la Libertad de Consciência. Valladolid: Universidad de Valladolid, 2001, p. 293.

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39

Esse tipo de posicionamento, reiterado na jurisprudência, vem fulminando uma

possível neutralidade de conteúdo do Estado. Desse modo, não importa como se

manifesta (artisticamente ou com opiniões), se o conteúdo estiver relacionado ao

genocídio, por exemplo, essa manifestação tem a presunção de estar viciada pela

ilegalidade, esvaziando a definição da liberdade de expressão e desestimulando o

exercício desses direitos.

Ademais, o Estado entra em um contrassenso inquietante, pois, age no propósito

de proteger raças, etnias, grupos sociais etc., mas utiliza meios que são desmedidos,

quer afastar completamente a mácula dos governos fascistas e nazistas, respondendo a

uma manifestação literária com uma pena privativa de liberdade, dentro de um Estado

autointitulado como Democrático de Direito, deixando evidente que falta na

jurisprudência uma aplicação correta do critério da proporcionalidade65

.

3.1.4 Alemanha, Constituição de 1949

Coube à jurisprudência alemã protagonizar no âmbito da liberdade artística as

características estruturais que lhe concerne aplicação, limites e definições. No que diz

respeito à previsão constitucional, o art. 5 I da Grundgesetz trata de diferentes direitos

da liberdade de comunicação (individual e de massa), sendo todos autônomos. A

liberdade de expressão artística está prevista no art. 5 III 1 GG, afirmando o seu

dispositivo que “a arte e a ciência, o ensino e a pesquisa são livres”, após o art. 5 II GG

que trouxe os limites dos cinco direitos de comunicação previstos no suprarreferido art.

65

Critério que iremos trabalhar nessa exposição, em: MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado

Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos

fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 120 et seq.

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5 I GG66

. É desse dispositivo constitucional do art. 5 III 1 GG que o Tribunal

Constitucional Federal – TCF interpreta os conceitos de arte que iremos analisar.

O TCF respondeu o que é arte de um ponto de vista constitucional,

primeiramente com a paradigmática decisão “Mefisto” (Mephisto)67

de 1971 – definição

material – e, na década de 1980, completou o conceito de arte na decisão do “Comboio

Anacrônico” (Anachronistischer Zug)68

– conceito formal e aberto.

Na decisão “Mefisto” o Tribunal afirmou que a criação artística não é uma

comunicação, mas, antes uma expressão, portanto, a relação entre aquele que trabalha

no âmbito da arte e o Estado existe independentemente de haver recipientes às obras

artísticas, se estas foram ou não diretamente apreciadas por espectadores, subsistindo o

direito individual de liberdade.

Ainda, garantiu que liberdade de expressão artística abrange de igual modo todo

o âmbito da obra, assim como o âmbito do efeito da criação artística69

. O âmbito do

efeito seria aquele em que os recipientes têm acesso à obra, dessa forma, aqueles que

participam nas atividades que irão dar forma a esse âmbito também estarão protegidos

pelo direito fundamental, incluídos aí divulgadores, editores e quaisquer pessoas que

sejam intermediadoras entre os dois âmbitos. Outrossim, estabeleceu que os conflitos

entre a liberdade artística e os direitos da personalidade precisam ser resolvidos com a

consideração do princípio da dignidade humana.

3.1.4.1 Definição material e formal da arte

O TCF procurou investigar uma definição para arte no intuito de dar tratamento

jurídico à liberdade de expressão artística. No entanto, ficará vedada “a possibilidade de

66

MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional

Alemão. Berlin: Konrad-Adenauer-Stiftung E. V., 2005, p. 495. 67

BVerfGE 30, 173: Ibid., p. 495. 68

BVerfGE 67, 213: Ibid., p. 499. 69

Ibid., p. 498.

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todo órgão estatal, inclusive os titulares da função jurisdicional-constitucional do

Estado, de ser um árbitro de assuntos artístico-estéticos”70

. Do mesmo modo, a acepção

da arte deve buscar um sentido que seja desprendido, ao máximo, de um juízo

valorativo, seu objetivo é tornar o direito judicializável.

A “definição material” é aquela que reconhece na essencialidade da expressão

artística às características pessoais do artista, aquilo que brota da sua personalidade e,

deste modo, mostra, por um meio específico, tudo que lhe é íntimo, como suas

experiências, seus posicionamentos e seus juízos de valor. Assim, os recipientes das

obras artísticas observam, pela via da linguagem particular, o individualismo do artista.

Essa definição vai sobrelevar o subjetivismo criativo71

, porquanto o artista,

impulsionador do procedimento de criação, é o grande personagem do complexo

artístico, que, além de executá-la, aloca nele todo o conteúdo que deverá ser impresso a

obra de arte. O que demonstra um exagero à autorreferência, pois apesar de sabermos

que o traço das obras de arte é o caráter humano e para o homem, reconhecemos que o

artista vai mais além do que reproduzir anseios de sua personalidade na obra de arte

(tópico 2.2.3).

A definição material, logo, peca em reduzir a expressão artística àquilo que

provem da individualidade do artista. Visto que, existem outros elementos que são

importantes para a consecução de uma obra de arte, como o momento histórico, os

materiais que foram necessários na produção, às condições em que foi produzida (tópico

2.2.4), sendo a personalidade do artista mais um componente na formação dessa

unidade. Ostentando-se insuficiente a definição material.

70

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 71

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 196.

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42

A “definição formal” da arte, por sua vez, traduz a sua essencialidade na

possibilidade de se conseguir determinar qual tipo72

de arte se refere certa expressão

artística observada. Os tipos seriam a pintura, a escultura, o teatro, a dança, o cinema, a

música, a poesia, a prosa, as artes plásticas etc.73

. O interesse dessa definição está no

pragmatismo que ela oferece em razão das resoluções de casos concretos, dado que o

magistrado teria um critério objetivo para aplicar.

Mais uma vez, a definição parece-nos carente, justamente por estar ignorando o

desenvolvimento de outros meios de expressão artística, ou seja, a tentativa de

categorizar a arte fará que ela não acompanhe o progresso histórico de inúmeras

expressões que são concebidas a todo tempo, em todo o mundo, frutos de uma nova

necessidade de representação humana sobre os processos artísticos74

.

O rompimento com as formas mais tradicionais da arte é um comportamento

legítimo dentro da jusfundamentalidade do direito de expressão artística75

, destarte, o

critério falharia se por acaso ele fosse aplicado de forma excludente pela atividade

estatal, isto é, os poderes constituídos não reconheceriam como protegida pelo

ordenamento jurídico-constitucional uma manifestação artística inaugural,

completamente inédita. O que implica reconhecer que para o constante uso da definição

formal o rol de artes tradicionais constitui-se como exemplificativo e não taxativo.

3.1.4.2 Conceito aberto

72

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 196. 73

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 74

As artes urbanas são notórios exemplos de novas artes, caracterizam-se por utilizarem os espaços

públicos no seu desenvolvimento, são exemplos: grafite, performances, flash mob, stickers, instalações,

estátuas vivas etc.. 75

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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43

O “conceito aberto” de arte já corresponde à expressão artística o seu caráter

multifacetário, indicador de que a manifestação terá novos significados, passíveis de se

depreender por uma demanda interpretativa ininterrupta, que ocorre em diversos níveis,

ao proporcionar sempre uma narração sobre a pluralidade e a riqueza de significações

(analisamos essa questão no tópico 2.2.2)76

.

Esse conceito tenta definir a arte a partir da característica de seu conteúdo, que é

a possibilidade de releitura, de se refazer e de se recriar, tanto pelos diferentes

espectadores como pela própria passagem do tempo que arrasta conceitos e valores para

o esquecimento, enquanto elege novos que exaure os antigos, logo, mesmo a obra

artística que tenha o conteúdo mais claro possível, um sentido até mesmo declarado

pelo seu criador participa dessa versatilidade com relação aos significados, por ser o que

representaria a substância da arte.

O Tribunal Constitucional Federal, na decisão do “Comboio Anacrônico” ficou

mais próximo do conceito aberto de arte, passando a utilizá-lo em outras decisões

posteriormente, visto que o conceito aberto também justifica o fato da liberdade artística

não possuir nenhuma reserva legal, pois se a arte é suscetível de múltiplas

interpretações, então uma direção inequívoca de seu conteúdo só tenderia a lhe por em

conflito com outros direitos, bens e interesses77

.

Para que não haja dúvidas sobre a possibilidade das obras artísticas terem sua

natureza confundida com manifestações da opinião que possuem também certo caráter

ambíguo, importa destacar que a obra de arte tem um momento estético-sensorial78

, ou

76

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 77

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197. 78

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

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44

seja, elas ocorrem pelo medium que a representa ao mundo sensível e pela ideia que

carrega e quer transmitir.

De tal modo, liga-se esse conceito à mesma crítica feita as outras duas definições

que é a limitação interpretativa do que vem a ser arte para o direito constitucional, de

sorte que, parecem-nos que uma primeira resolução seria aplicar as três definições

conjuntamente79

, pois teríamos uma potencialização de abrangência na delimitação do

direito fundamental, assim como não olvidar dos elementos filosóficos que aqui por ora

já foram entendidos, como os demais atributos que iremos destrinchar sobre a liberdade

de expressão artística a seguir.

3.2 DIREITO FUNDAMENTAL À EXPRESSÃO ARTÍSTICA NA CF (art. 5º, IX)

3.2.1 Histórico constitucional

A perspectiva constitucional que traçaremos, resumidamente logo adiante, tem

como fim apontar como a liberdade artística, do ponto de vista da proteção

constitucional, evoluiu da Constituição do Império até a autonomia plena do direito à

expressão artística como norma jusfundamental, em 1988, na vigente CF. Quando

ingressarmos na ordem jurídico-constitucional hodierna, passaremos à análise completa

do direito à expressão artística pelos aspectos da doutrina e da jurisprudência, brasileira

e estrangeira, assim como pelas questões potencialmente conflituosas.

A primeira Carta Magna de nosso país era denominada de “Constituição Política

do Império do Brazil”, outorgada em 25 de março de 1824. A Constituição incluía um

título dedicado à “Garantia dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”, e,

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 79

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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45

especificamente o art. 179 afirmava a inviolabilidade desses direitos tendo por base “a

liberdade, a segurança individual e a propriedade”, dando início a um rol de direitos e

garantias80

.

A manifestação do pensamento era protegida no inc. IV do art. 179, versando

que “todos podem comunicar seus pensamentos”, independentemente de censura, no

entanto, o exercício desse direito, segundo o dispositivo, responsabiliza aquele que o

pratica a responder pelos abusos que porventura cometer de acordo (casos e formas)

com os termos que a lei fixar. O direito ao exercício de atividade artística não era

assegurado de forma expressa no texto, entretanto o inc. XXXIII, do mesmo artigo,

garantia a inviolabilidade dos colégios e universidades aonde são ensinadas as ciências,

as belas letras e as artes81

.

Em 1891, a Lei Maior inaugurou a forma de governo republicana e o regime

democrático no Brasil, promulgando em 24 de fevereiro, a partir do “Congresso

Constituinte” a “Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil”. A seção II

foi nomeada como “Declaração de Direitos” e o caput do art. 72 declarava que, aos

“brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil” (titularidade repetida em todas as

Constituições até 1988) será assegurado a inviolabilidade dos direitos concernentes “à

liberdade, à segurança individual e à propriedade”, em consonância com os termos que

se seguem82

.

A Constituição também não anuncia o direito à expressão artística, mas no §12

do art. 72 proclama que “em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento”,

80

BRASIL, Constituição (1824). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 mai.

2013. 81

“XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras,

e Artes.” BRASIL, Constituição (1824). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao24.htm>. Acesso em: 17 mai.

2013. 82

BRASIL, Constituição (1891). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 17 mai.

2013.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

46

mantendo a proibição da censura da ordem constitucional de 1824, acrescentando,

porém, a exceção de proteção no caso da manifestação ocorrer de forma anônima. O

§26, por sua vez, trouxe a garantia da exclusividade dos direitos de autores de obras

literárias e artísticas. O art. 35 que enumera as competências não privativas do

Congresso Nacional traz no n. 2º que o Congresso está incumbido de “animar no País o

desenvolvimento das letras, artes e ciências”, conformando uma prestação positiva do

Estado83

.

A nova ordem constitucional de 1934 manteve a forma e o regime de governo da

Constituição de 1981, sendo promulgada por Assembleia Nacional Constituinte em 16

de julho. Outrossim, não delimitou a autonomia do direito de atividade artística, sendo

ele englobado pela manifestação do pensamento, constante no capítulo dos direitos e

garantias individuais, art. 113, n. 9. O caput do artigo em comento repete a redação do

anterior adicionando, apenas, que está garantida a inviolabilidade ao direito de

subsistência.

A garantia da livre manifestação do pensamento excetua uma possibilidade de

censura nos casos de “espetáculos e diversões públicas”, cabendo à lei determinar as

restrições, destaca-se, ainda, por introduzir o direito de resposta. No entanto, a Lei

Maior trazia um cerceamento expresso com relação ao conteúdo de qualquer

manifestação, advertindo que “não será tolerada propaganda de guerra ou de processos

violentos, para subverter a ordem política ou social”84

.

83

“2º) animar no Pais o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura,

a indústria e comércio, sem privilégios que tolham a ação dos Governos locais;”: BRASIL, Constituição

(1891). Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao91.htm>.

Acesso em: 17 mai. 2013. 84

“9) Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo

quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e

pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A

publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada

propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social.”: BRASIL,

Constituição (1934). Disponível em

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

47

Os direitos de autor são preservados no n. 20 do art. 113, enquanto isso, a

Constituição inova com um capítulo referente à “Cultura e a Educação”, e, o art. 148

desse capítulo preconiza que a todos os entes federativos caberá “favorecer e animar o

desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral”.

A “Constituição dos Estados Unidos do Brasil”, outorgada pelo Presidente

Getúlio Vargas em 10 de novembro de 1937 ficou conhecida como Constituição Polaca,

implantando a chamada ditadura do “Estado Novo”, realmente, o texto constitucional

era eminentemente autoritário, tal como depreciador de diversas garantias e direitos

individuais.

A liberdade artística, repetindo a práxis anterior, não fora fixada no tópico dos

direitos e garantias individuais, contudo, pela primeira vez na história constitucional do

Brasil, a arte fora mencionada e qualificada como livre no tema intitulado “Da

Educação e da Cultura”, art. 128. O dispositivo proclamou ainda que “é dever do Estado

contribuir, direta e indiretamente, para o estímulo e desenvolvimento de umas e de outro

(artes, ciências e ensino), favorecendo ou fundando instituições artísticas, científicas e

de ensino”85

.

Todavia, o art. 122, que principia os direitos e garantias individuais, trouxe

diversas restrições à liberdade de arte. O n. 15, que estabelece a livre manifestação do

pensamento, decreta que a lei poderá prescrever, na alínea ‘a’ que: “com o fim de

garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro,

do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a

circulação, a difusão ou a representação”; e, na alínea ‘b’ que: “medidas para impedir as

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 17 mai.

2013. 85

BRASIL, Constituição (1937). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 17 mai.

2013.

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

48

manifestações contrárias à moralidade pública e aos bons costumes, assim como as

especialmente destinadas à proteção da infância e da juventude”86

.

A Constituição de 1946 restabeleceu a ordem democrática no país, tendo sido

promulgada por uma Assembleia Constituinte em 18 de setembro de 1946 e chamando a

Carta Maior de “Constituição dos Estados Unidos do Brasil”. Os direitos e garantias

individuais eram protegidos a partir do art. 141, assegurando o §5º a livre manifestação

do pensamento nos moldes da Constituição de 1937, recebendo um adendo em sua parte

final, quando descreve conteúdos não tolerados, ou seja, não protegidos pelo dispositivo

constitucional, não sendo admitido também posicionamentos que sejam “preconceitos

de raça ou de classe”87

.

Os direitos de autor são resguardados no §19, do art. 141 e, o constituinte

decidiu manter a consignação da Constituição do Estado Novo, rotulando as artes como

livres em capítulo reservado para a “Educação e Cultura”, juntamente com as ciências e

as letras, no art. 173. O parágrafo único do art. 174 ordena que o Estado, responsável

pelo amparo da cultura, promoverá a criação de institutos de pesquisa,

preferencialmente no ensino superior, destinados ao fomento cultural.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, trinta anos depois do

golpe do Estado Novo, buscou institucionalizar e legalizar o regime militar, o seu

conteúdo sofreu uma significativa mudança pelo advento da Emenda Constitucional n.º

1 de 17 de outubro de 1969. Os direitos e garantias individuais estavam elencados a

partir do art. 153, cabendo ao §8º proferir que a manifestação é livre, seguindo o mesmo

tratamento da Constituição de 1946. Embora, no fim do dispositivo, fora adicionados

86

BRASIL, Constituição (1937). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao37.htm>. Acesso em: 17 mai.

2013. 87

BRASIL, Constituição (1946). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em: 17 mai.

2012.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

49

novos termos de exceções ao conteúdo que possa vir a ser exprimido, não sendo

tolerados também “as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons

costumes”88

.

Enquanto, o §25 do art. 152 garante os direitos do autor, o título IV, nomeado

“Da família, da Educação e da Cultura”, dispõe no art. 179 que “as ciências, as letras e

as artes são livres”, mas submete essas liberdades, expressamente, ao que foi disposto

no §8º do art. 153.

3.2.2 Da autonomia do direito à expressão artística na CF

A ordem constitucional instituída em 1988 foi precisa ao expressar no inc. IX,

art. 5º, no título II dos direitos e das garantias fundamentais, capítulo I sobre os direitos

e deveres individuais e coletivos que “a expressão da atividade artística (assim como a

intelectual, científica e de comunicação) é livre”. A escolha do constituinte é

inequívoca, pelos meios formais da literalidade, sobre a autonomia do direito em

comento, quiçá quando aferimos sua importância na formação do homem e de uma

sociedade pluralista sob o princípio democrático.

Os direitos de autor estão dispostos nos incs. XXVII e XXVIII do art. 5º, e, por

mais que compreendam um sistema protetivo utilizado pelos artistas, a escolha do

constituinte reflete a natureza autônoma e fundamental das normas autorais, devendo ser

estudadas apartadamente para que a profundidade temática seja apanhada, motivo pelo

qual não abordaremos seu mérito em nossa análise.

Apesar da exatidão do inc. IX, art. 5º da CF, encontramos na doutrina89

brasileira um descaso, ou melhor, uma falta de concisão técnica no que diz respeito à

88

BRASIL, Constituição (1967). Disponível em

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm>. Acesso em: 17 mai. 2013.

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

50

natureza jurídico-constitucional da matéria, comportamento identificado entre

doutrinadores mais tradicionais até os mais modernos. O primeiro engano90

seria

confundir a liberdade de manifestação do pensamento com a liberdade de expressão

artística. Nesse sentido, José Afonso da Silva, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra

Martins, utilizam-se da mesma base teórica, Sampaio Dória, para afirmar que a

liberdade de manifestação do pensamento “é o direito de exprimir, por qualquer forma,

o que se pense sobre ciência, religião, arte, ou o que for”91

.

Ainda, assentam que a liberdade de manifestação artística é uma forma de

difusão da liberdade do pensamento, tomada esta como um conceito mais abrangente92

,

chegando também a afirmar que entre as liberdades protegidas no inc. IX, art. 5º, a

expressão intelectual é mais genérica só não atingindo uma “arte que seja primitiva e

ingênua por ser intuitiva e, certamente, não intelectual”93

.

Entendemos que a liberdade de manifestação do pensamento é, de fato, um juízo

de opinião sobre qualquer objeto94

, inclusive sobre a matéria artística, no entanto,

pensar sobre a arte de forma genérica e desejar exprimir ideias sobre a mesma, juízos

opinativos, nada têm a ver com o fazer arte, ser artista, criar artisticamente, e todas essas

nuances só podem ser concretizadas e tuteladas à luz do dispositivo constitucional que

possui autonomia jurídica.

89 Confira: GRÜNE, Carmela. Samba no Pé & Direito na Cabeça. São Paulo: Saraiva, 2012. Pela

ousadia de seu formato e, principalmente, pela inteligência propositiva em abordar temas do direito a

partir de canções do samba brasileiro. 90

Apesar de que existem autores que ao menos falam sobre a liberdade de expressão artística, como é o

caso de: FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 122-

123. 91

SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. Editora Malheiros: São Paulo,

2003, p. 240; e BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do

Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 43. 92

Curioso fato é que em obra do mesmo autor “SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da

Cultural. São Paulo: Malheiros Editores LTDA., 2001.” é admitido que o constitucionalismo brasileiro

evitou posicionar a liberdade de expressão cultural – aqui, de qualquer forma, uma confusão do autor que

usa os termos cultura e artes como sinônimos –, como simples forma da liberdade de manifestação do

pensamento, porém não atualizou esse pensamento no “Curso de Direito Constitucional”. 93

SILVA, op. cit., p. 252. 94

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 176.

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51

Equivoca-se, da mesma maneira, uma reflexão que afirme que arte “primitiva” e

“ingênua”, por ser fruto da intuição, não é intelectual. Antes de tudo, taxar artes como

“primitivas” e/ou “ingênuas” é atentatório ao “dever de neutralidade estética” imposto a

todos os operadores do direito, tal como ao Estado em si95

; em seguida, alegar que a arte

não faz parte do intelecto humano é um erro que fora questionado nessa pesquisa no

tópico 2.1, fruto de um descompasso entre razão e emoção em nosso tempo, o processo

artístico é completamente racional, pois o artista possui consciência daquilo que

exprime, a sua ideia é canalizada pela intuição e comunicada pela sensibilidade (isto é,

como já mencionamos, o princípio da razão participa da arte, mas não lhe é suficiente),

porém, alocar a arte fora do intelecto humano é compreendê-la de forma parcial – o que

podemos chamar de heresia da separatividade.

Os doutrinadores mais modernos, sem embaraço de não ampliarem a

especificidade do sistema normativo da expressão artística, todavia, ingressam o direito

dentro das liberdades de expressão, sendo mais coerente com a lógica constitucional.

Destarte, reconhece-se que existem diversas formas de expressões, cabendo ao cidadão

à faculdade de escolhê-las de acordo com sua necessidade de manifestação, podendo

“comunicar pensamentos, ideias, informações e expressões não verbais (estas são

aquelas comportamentais, musicais ou por imagem etc.)”96

.

No que tange às expressões não verbais reforça-se a sua proteção pela liberdade

constitucionalmente protegida, devido ao caráter amplo do art. 5º, inc. IX97

. Embora,

logo após declare-se que a “expressão corporal, com intuito de arte engajada, abarca

vasta gama de situações”, entretanto, outras “expressões simbólicas”, que não engajadas

95

Nesse sentido, “A proteção à liberdade artística, por exemplo, implica proibição de o Estado vir a

impor na atividade de criação os seus padrões estéticos.” CARBONELL, Miguel. La Libertad de

Expressión en la Constitución Mexicana. Anuário de Derecho Constitucional Latinoamericano.

Montevideo: Konrad Adenauer-Stiftung, 2004, t. II, p. 476. 96

Conforme Paulo Gustavo Gonet Branco: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio

Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010,

p. 450. 97

Ibid., p. 456.

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52

– em sua maioria de veia artística -, quando confrontadas com distintos valores

constitucionais, recebem uma ponderação menor, propendendo por ceder a estes com

maior frequência do que a verificada nos casos da expressão direta do pensamento98

.

Uma presunção totalmente desalinhada com o qualificativo da expressão

artística dada pelo próprio constituinte como “livre” e, portanto, não há de se falar em

conjectura de cedência in abstracto. O ora citado autor, ainda, valida a presunção de

cedência devido à existência de um “grau de tolerância” para as expressões simbólicas

que varia de “cultura para cultura, de país para país, de tempos em tempos numa mesma

localidade”, ignorando de forma categórica que a fundamentalidade constitucional de

arrimo à livre expressão artística não está à mercê de transformações valorativas sociais,

pois, estas, influenciam o conteúdo da liberdade artística e sua hermenêutica, nunca em

sua paridade de status com os demais direitos individuais99

.

Este é o prognóstico da liberdade artística na doutrina constitucional brasileira,

falta uma literatura empenhada em posicioná-la como direito fundamental

constitucional autônomo100

, visto que, as formas de artes se desenvolveram sempre no

sentido da inutilidade ou da não-participação no mundo das coisas, e, tal fato não se

deve a uma alienação individual do artista, mas sim a uma alienação social, que a

sociedade impõe à arte101

, contribuindo para essa alienação o próprio direito (que

esquece de apresentar a atividade artística até mesmo em um rol exemplificativo das

formas de expressão).

98

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso

de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 456. 99

Que é, inclusive, cláusula pétrea por força do mandamento do art. 60, §4º, inc. IV da CF. 100

Outro autor que confere tratamento à liberdade de expressão como gênero que contempla diversas

formas de direitos conexos é André Ramos Tavares, que ao mencioná-las, olvida de incluir a

manifestação artística, citando a “liberdade de manifestação do pensamento, de comunicação, de

informação, de acesso à informação, de opinião, de imprensa, de mídia, de divulgação e de radiodifusão.”

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 620-

621. 101

BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2009, p. 405.

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53

Destarte, precisamos tomar posições, e o faremos começando pelo entendimento

de que os direitos fundamentais costumam ser agrupados, histórica e materialmente,

segundo determinados âmbitos de proteção, como, v.g., afiançamentos de liberdade

política, social, econômica, espiritual102

(o direito de reunião, por exemplo,

eminentemente uma liberdade social e política) e, por mais que não possamos

sistematizá-los exatamente, porquanto consistiria em um risco à homogeneização dos

direitos fundamentais, reconhecemos que a expressão artística participa desse

afiançamento da liberdade espiritual, de âmbito da vida próprio e legalidade

autônoma103

.

Desse modo, a liberdade de manifestação do pensamento é primária e primeira,

respectivamente porque desponta cronologicamente e logicamente primeiro que as

outras liberdades de expressão, sendo estas um consectário104

. As liberdades de

expressão contidas no inc. IX são lex especialis em relação à manifestação de

pensamento, e, conquanto, todas elas são de natureza comunicativa, guardam entre si

outras peculiaridades que contornam suas temáticas de modo independente.

Deste modo, v.g., podemos afirmar que a liberdade de informação, contida na

comunicação social (prevista no art. 5º, inc. IX, c/c o art. 220, caput, §§1º e 2º), difere

da liberdade de expressão artística uma vez que aquela possui um atributo que a vincula,

pelo menos na parte relativa à afirmação de fatos, à veracidade, mas a criação artística

se desenvolve sem embaraços, a partir do dever de abstenção do Estado, mas devendo

respeitar os direitos de terceiros105

.

102

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio

Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 290. 103

Ibid., p. 310. 104

COLLIARD, Claude Albert apud BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à

Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 41. 105

Nesse sentido: CARVALHO, Luís Gustavo Grandinetti. Direito de Informação e Liberdade de

Expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

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54

A independência que o direito à expressão artística goza possui outro mote

respaldado no estabelecimento da autonomia dos cidadãos. Isso porque, pensar, criar e

formar uma opinião artística, exteriorizando-a, conduz à autodeterminação do indivíduo

(seja ele o artista ou o espectador), que é um fenômeno de formação do homem, quando

ele dá sentido à vida, por possuir esse arcabouço de informações e experiências que

completa a máxima de Protágoras de que o homem é a medida de todas as coisas.

Chamaremos essa nuance de “dimensão substancial”106

, que é típica em todos os

direitos de expressão.

Ao mesmo tempo, o homem ser social que é, não se contenta com o mero fato de

ter acesso a essas informações artísticas, sendo ele recipiente de uma obra de arte ou o

criador dela, certo é que os dois sujeitos, respeitando seus limites de atuação, procuram

convencer os demais, buscam compartilhar com seus semelhantes aquela mensagem à

qual atribuíram valor, fazem o proselitismo, como se fossem “escravos” de um princípio

de coerência, “se creem em certas ideias são levados a desejar o seu implemento”107

.

Essa é a “dimensão instrumental”108

, já que explana os diversos meios utilizados à

divulgação da expressão.

A inclusão das artes como parte das condições sociais decisivas nas instituições

democráticas e na liberdade pessoal, ainda encontra resistência mesmo naqueles que se

consideram bons democratas, pois recusam que a literatura, a música, a pintura, o teatro,

a arquitetura etc. são coisas cujo gozo todos devemos partilhar se a democracia é real,

considerando o fruto dessas artes como meros adornos da cultura109

. Ignoram que a

participação das artes na vivência de todos os cidadãos, como liberdade de expressão

106

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 621-

622. 107

BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 40. 108

TAVARES, op. cit., p. 621-622. 109

Confira: DEWEY, John. Liberalismo, Liberdade e Cultura. São Paulo: Nacional, 1970.

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55

que configura, contribui para o funcionamento e preservação do sistema democrático, já

que o pluralismo de opiniões contribui essencialmente para formação de uma vontade

livre110

.

A liberdade de expressão artística, como os demais direitos concretizadores da

expressão, possui o propósito, outrossim, de procurar a verdade, garantir um mercado

livre de ideias (como as diversas teorias estéticas), proteger a diversidade de opiniões

(ou criações artísticas), mantendo a estabilidade social, porque, as transformações da

sociedade que são contextualizadas na máxima liberdade de expressão individual

possível ocorrem de forma pacífica111

.

Alguns autores assinalam112

a existência do princípio da pluralidade de

expressão, influenciando na ontologia dos direitos à expressão, e, da mesma forma,

funcionando como direcionador nas tomadas de decisões do Estado; portanto, teremos

que as liberdades de expressões devem ser concretizadas em função de uma realização

de opiniões plurais, enquanto o Estado ao criar as possibilidades de desenvolvimento

comunicativo obedece, também, ao critério da pluralidade.

Isso porque, a escassez de diversidade quanto à difusão de ideias, informações e

criações, fatalmente empobrecerá ou dizimará uma cultura cívica113

, já a adoção do

princípio da pluralidade permite que o Estado oferte a real participação nos processos de

comunicação “que asseguram a circulação das opiniões, como emissores, transmissores

ou receptores”114

.

110

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso

de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 451. 111

MACHADO, Jonatas Eduardo Mendes. Liberdade de Expressão: dimensões constitucionais da

esfera pública do sistema social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 237. 112

Como: Ibid., p. 368; e FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação. São Paulo:

Editora Revista do Tribunais, 2004, p. 70. 113

Ibid.., p. 70. 114

MACHADO, op. cit., p. 238.

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56

3.2.3 Liberdade artística: conteúdo da área de proteção (objetiva e subjetiva) e

alcance

O direito à expressão artística, igualmente a múltiplos outros direitos do art. 5º

da CF, é fundamentador de status115

, os status designam a posição do particular (titular

do direito fundamental) perante o Estado. George Jellinek traçou distintos status que

correspondem às funções clássicas dos direitos fundamentais na relação entre o

particular e o Estado116

. Começamos por destacar o chamado status negativus, por ser

este consagrado pela dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, à qual pretendemos

desenvolver mais detidamente nesse momento.

No status negativus o particular tem a sua liberdade em face do Estado117

.

Denotando que, apesar da posição central que o Estado detém na formação da

sociedade, é assegurado, por via dos direitos fundamentais, certo âmbito de ação do

indivíduo, aonde ele resolve, regula e realiza sua convivência social sem o Estado118

. E

mais, por estabelecerem essa não interferência do poder estatal, esses direitos “protegem

contra violações ou fazem exigências sem as quais o Estado não pode limitar ou

restringir a posição jurídica do particular”119

.

Quando a nossa ordem liberal constitucional definiu a expressão da atividade

artística como “livre”, asseverou que qualquer atuação pelos poderes constituídos que

culmine em uma ingerência ou intervenção nessa liberdade, poderá suscitar uma defesa

do particular contra prejuízos não autorizados no seu status jurídico-constitucional,

sendo esse direito subjetivo de resistência (dimensão subjetiva) necessário à

democracia, já que essa é um “domínio de pessoas sobre pessoas, que está sujeito às

115

Nesse sentido: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da

Alemanha. Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 233. 116

JELLINEK, Georg apud PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito

estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 19-20. 117

Ibid., p. 20. 118

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 258. 119

PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 20.

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57

tentações do abuso de poder, e porque poderes estatais, também no estado de direito,

podem fazer injustiça”120

.

A resistência oferecida pelo indivíduo à intervenção estatal possui um

referencial filosófico-teórico que é a teoria liberal dos direitos fundamentais121

, que

certifica à relação jurídica de direito público existente entre o particular e o Estado pelo

exercício da liberdade negativa122

, quanto mais o Estado deixar de regular a vida do

indivíduo mais livre este será, portanto, diretamente proporcional é, ao exercício da

liberdade negativa, a falta de restrições.

3.2.3.1 Área de proteção da liberdade artística (alcance e titularidade)

Sabemos que o constituinte precisou destacar na Lei Fundamental algumas

situações da vida social, também chamadas de âmbitos da vida/proteção123

,

regulamentando-as. Com relação à livre expressão artística, coube ao legislador

originário reconhecer que ela, como tipo especial de comunicação humana, forma de

manifestação peculiar do espírito humano se desenvolverá sem nenhum embaraço

“independentemente de censura ou autorização”.

Por conseguinte, temos que averiguar qual o conceito de arte será por nós

utilizado como desígnio; quais são as abstenções necessárias ao Estado para que este

não incorra em violação ao exercício regular do direito; quando e quem são as pessoas

que exercem o direito à expressão artística e em que momento o fazem; e, no fim,

identificarmos as condutas que não serão protegidas pela expressão artística,

120

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio

Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 235. 121

Nesse sentido: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos

Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 110. E para mais informações: MARTINS, Leonardo.

Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da

teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 28 et. Seq. 122

Confira: BERLIN, Isaiah. Com Toda a Liberdade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996. 123

Opta por essa nomenclatura: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires;

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 375.

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58

principalmente porque, a partir de uma visão sistemática em conjunto com outros

direitos fundamentais e demais disposições constitucionais, podemos determinar a sua

área de proteção124

.

3.2.3.1.1 Conceito de arte aplicado

Consideramos como arte a manifestação que “desperta as nossas almas para

aquilo que é próprio do espírito humano” (tópico 2.2.5.1), por isso não há que se falar

em arte feita por animais ou como criação da natureza, ela é produto do homem e para o

homem se dirige - obra do intelecto humano, nasce da voluntariedade, nunca de um

acaso acidental – em um processo de comunicação estético-sensorial (tópico 3.1.4.2).

Essa comunicação ocorre de forma aberta125

, isto é, sua marca distintiva reside no fato

de ser possível, a partir de uma manifestação artística, extrair-se do que foi expresso,

por via de uma interpretação continuada, significados diversos que variam em maior ou

menor alcance, consistindo a transmissão da mensagem em inesgotável.

A amplitude do conceito escolhido não é por acaso, ao contrário, segue a lógica

do próprio legislador constituinte, que previu o direito de manifestação artística sem

nenhuma reserva legal, de tal modo, por justificação interna, não falaremos de um

conceito de arte que aponte um direcionamento inequívoco e hermético, por não refletir

a mens legislatoris e, se por acaso fosse tomada, colocaria a liberdade artística no alvo

de diversos conflitos com os demais direitos e bens constitucionais126

.

A doutrina especializada aponta que à definição de arte deve prestar auxílio

outro atributo: o “reconhecimento por terceiros”127

, quando uma terceira pessoa

competente em questões de arte emite um parecer sobre a natureza artística ou não do

124

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 71. 125

Ibid., p. 196. 126

Ibid., p. 197. 127

Ibid., p. 197.

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59

objeto em apreço. Estamos em acordo com essa assistência, principalmente diante da

complexidade social em que vivemos, orientada por uma indústria cultural de massa. Na

dúvida, tanto os órgãos administrativos quanto o judiciário deverão se socorrer da

opinião criteriosa do terceiro que é habilitado (pela academia ou pelo mercado

profissional) na área em destaque. Já promovemos, outrora, a defesa da consulta aos

especialistas, no tópico 2.2.4.

3.2.3.1.2 Proibição de definição do Estado e aspecto negativo da liberdade artística

Qualquer ato emanado da Administração, do Congresso ou do Judiciário que

tenha o condão de “impor ao processo comunicativo arte as suas concepções de arte,

como taxá-la de genuína, verdadeira e boa”128

, é entendido como uma violação em face

dos diversos conceitos de arte. É o que já repetimos posteriormente como “princípio da

neutralidade de conteúdo”, que retira dos órgãos estatais a possibilidade de oficializar

alguma corrente estética ou determinar que tal arte seja superior ou inferior a outra.

O princípio de neutralidade que prescreve um dever de omissão aos poderes

estatais está em sintonia com uma característica crucial da arte: a liberdade de

ofender129

. A essência da liberdade negativa está em assegurar expressões que possam

ser vistas pela maioria da sociedade e até mesmo pelo Estado como de mau gosto,

formas expressivas fora do comum e surpreendentes, até mesmo quando provocam uma

repulsa social, a priori, estão protegidas, não cabendo aos poderes constituídos,

mediante juízo do (bom/mau) gosto, as expulsar do alcance do amparo constitucional.

Como o titular da obra de arte está livre para escolher o conteúdo que irá abordar

em sua criação, pelo menos até o limite da legalidade (como iremos verificar), afasta-se

128

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p.197. 129

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.

São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 351.

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o privilégio de uma suposta “arte engajada”130

, que seria aquela arte cunhada de sentido

ideológico, debatedora de questões atuais e sócio-políticas, algumas delas denunciativas

e verdadeiros protestos reivindicativos por melhorias coletivas, sendo esse tipo de arte

equiparada a qualquer outra forma de arte, inclusive em relação àquelas hostis aos “bons

costumes”, como, por exemplo, obras de arte pornográficas.

Ademais, a conduta admitida àquele que se manifesta artisticamente não se dá

somente na ordem do criar e se expressar, ou seja, o de utilizar positivamente a

liberdade do inc. IX, art. 5º, contudo a Lei Fundamental também consagra a sua

alternativa de aspecto negativo131

, o de não criar artisticamente o de não manifestar-se

no âmbito da comunicação artística, não podendo o Estado impor obrigações aos

titulares de direitos fundamentais nesse sentido.

Se o particular não será compelido a manifestar-se artisticamente ou criar uma

obra de arte, também não poderá, no uso de seu aspecto positivo, o fazer mediante

conteúdos subliminares. As mensagens subliminares são aquelas que iludem a nossa

percepção, ou seja, a função cerebral não consegue atribuir significado aos estímulos

sensoriais, porém, elas são captadas de forma inconsciente nos influenciado em

pensamentos e atitudes132

.

130

Durante a Ditadura, mesmo com a censura, a cultura brasileira não deixou de criar e se espalhar pelo

país e a arte se tornou um instrumento de denúncia da situação da nação. Dos festivais de música

despontam compositores e intérpretes das chamadas canções de protesto, como Geraldo Vandré, Chico

Buarque de Holanda e Elis Regina. No cinema, os trabalhos de Cacá Diegues e Glauber Rocha levam

para as telas a história de um povo que perdeu seus direitos fundamentais. No teatro, grupos como o

“Oficina” e o “Arena” procuram dar ênfase aos autores nacionais e denunciar a situação do país naquele

período. 131

Nesse sentido: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da

Alemanha. Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 236. 132

“Essas mensagens que pouco a pouco levam à adesão, inconscientemente reforçando a cognição

consciente gerada pela mensagem (propaganda multimídia) cujos interesses velados são os explorar e

manipular o homem.” CALAZANS, Flávio. Propaganda Subliminar Multimídia. 7. ed. São Paulo:

Summus Editorial, 2006, p. 25.

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Alguns doutrinadores afirmam que o pensamento em seu foro íntimo não

interessa ao direito133

, o que não representa a situação aqui exposta, pois não diz

respeito ao direito do pensamento do homem que foi por ele elaborado, e, mantido preso

nos mais velados rincões de sua mente, falamos daquele que decorre de manipulação

exterior, ganhando relevância jurídica134

, deverá o Estado proteger os indivíduos, com

fundamento no direito à expressão artística, contra conteúdos subliminares que se

exibam em obras de arte.

3.2.3.1.3 Área de criação/produção e área de efeito/divulgação

Iremos separar a manifestação artística em duas áreas, a primeira delas –

cronologicamente também, seria a área de produção ou criação135

, já identificada como

“dimensão substancial” no que se refere à repercussão da criação no processo de

concepção da autonomia do homem, nesta ocasião, essa área engloba todos os atos de

planejamento da obra artística, qual conteúdo será abordado (a Ideia), quais materiais

são indispensáveis na comunicação do conteúdo, o número de pessoas envolvidas, os

ensaios que deverão ser executados para que se chegue à lapidação completa da obra

etc., todos os atos preparatórios que antecedem o momento da execução artística ou da

contemplação pelos recipientes.

A área de efeito, mencionada anteriormente como “dimensão instrumental” por

explanar como o homem deseja compartilhar com os demais aquilo que acredita ou

gosta, sinaliza a divulgação da criação artística, os meios e formas que o artista poderá 133

Nesse sentido: SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. Editora

Malheiros: São Paulo, 2003, p. 240; e BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à

Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 43, ambos

citando Pimenta Bueno e afirmando que “enquanto o homem não manifesta, não comunica, está fora de

todo poder social, até então é do domínio somente próprio, de sua inteligência e de Deus”. 134

Nesse sentido: TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 8. ed. São Paulo:

Saraiva, 2010, p. 623. Relatando, que um exemplo clássico de influência externa no foro íntimo do

indivíduo encontra-se presente, por exemplo, no livro 1984 de George Orwell, em que se tortura o

personagem com vistas a obter sua adesão a certa ideologia dominante. 135

MÜLLER, Friedrich apud PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito

estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197.

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se valer para que sua obra de arte tenha impacto e chegue ao seu espectador. Está

contida nessa área a reprodução da obra, os locais onde se realiza a sua exposição ou

que ocorre sua apresentação136

. A área de efeito não depende da quantidade de

recipientes que contemplam a obra de arte, se um artista expõe em uma galeria,

esculturas por ele produzidas, a área de efeito já alcançou sua integralidade, mesmo que

não haja nem uma pessoa137

como espectadora.

Ao apartamos essas duas áreas, chegando a afirmar que a criação/produção

ocorre cronologicamente primeiro que o efeito/divulgação da obra, não estamos

olvidando das expressões que se sucedem simultaneamente, ou seja, performances

tais138

em que o momento da criação (por ser basear no elemento da espontaneidade) é,

igualmente, o momento em que a obra está alcançando os seus efeitos públicos, mesmo

nesses exemplos, sempre existirá um momento anterior de preparação (quando o grupo

performático se comunica para decidir como se portarão, o que vão propor ou apenas o

local de execução da performance), até quando essa elaboração existe somente nas

intenções do artista, a área de criação já se fez presente nem que seja por segundos antes

da área de efeito.

Ainda com relação ao tempo em que se dá cada uma dessas áreas, notamos que

existem muitas áreas de efeito da obra que são “permanentes”139

, como a arquitetura, as

136

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 137

A necessidade de um polo passivo para que a comunicação seja perfeita é uma característica do âmbito

da vida do direito da comunicação social, mas, para os mais resistentes, poderíamos falar nesse caso

singular, em que ninguém foi prestigiar a exposição, que o próprio artista pode ser considerado o

recipiente. 138

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 139

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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63

composições musicais que são alvo da discografia140

, o livro que é publicado, a pintura

plástica em museus de exposição pública, o filme que foi gravado e reproduzido em

cópias etc., por mais que essas obras possam se perder, se extinguir ou se depreciar,

sabemos que elas surgem no intuito de durarem, em dissonância àquelas que são únicas,

vivem em um determinado momento (ou uma temporada), como a ópera, a apresentação

dramatúrgica ou o espetáculo de dança. A área de criação/produção não possui esse

elemento ad eternum.

As facetas nos âmbitos da criação e do efeito não podem gerar uma falsa noção

de que o processo artístico está esfacelado em duas partes, o exercício da liberdade

artística consiste em “unidade insolúvel”141

, isso pois, nas duas áreas nós encontraremos

o mesmo fim, o de realizar uma comunicação artística. A divisão proposta possui duas

funções: a de compreendermos a complexidade do direito em questão; e a de nos

fornecer, jurídico-dogmaticamente, uma estrutura para resolução de colisões entre a

liberdade artística e os outros direitos fundamentais e bens jurídico-constitucionais,

assumindo, já de agora, que as potenciais lesões (quantitativamente) se darão na área de

efeito.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF nos habilita com alusão a

afirmativa do excesso de violações na área do efeito. Das ações que estão em juízo, ou

que já foram julgadas pela Corte, entre recursos extraordinários, habeas corpus e ações

diretas de inconstitucionalidade - ADI, tendo como parâmetro, direta ou indiretamente,

140

Discografia é o alistamento das gravações sonoras. 141

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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o direito à expressão artística, todas142

elas demonstram que a zona de colisão entre a

liberdade “arte” e o outro direito ou bem relevante está no âmbito do efeito daquela.

No julgamento do habeas corpus - HC n.º 83.996/2004, Gerald Thomas Sievers,

diretor teatral, reagiu às vaias do público do Teatro Municipal do Rio que assistia a uma

montagem da ópera Tristão e Isolda, dirigida por ele, baixando as calças e mostrando as

nádegas para a plateia. No caso em tela, a colisão entre a liberdade de expressão

artística e a ofensa ao pudor público143

se desenrola justamente na área de efeito da obra

artística teatral, na ocasião de sua apresentação.

O STF decidiu, a nosso ver acertadamente, quando afastou o enquadramento

penal por reconhecer o contexto em que estava inserido a liberdade de expressão,

acrescentando que “a sociedade moderna possui mecanismos próprios e adequados,

como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando a tipificação de ato

obsceno”144

.

Na ADI n.º 4.815/2012145

a Associação Nacional de Editores de Livros – ANEL

propõe a declaração de inconstitucionalidade dos art. 20 e 21 do Código Civil de

2002146

. Esses dispositivos vêm sendo interpretados como legitimadores da necessidade

de autorização para fins de publicação ou divulgação de obras biográficas literárias ou

142

O recorte total de ações no STF, sendo algumas trabalhadas nos momentos oportunos, são oito:

RE 221.239/1997, RE 330.817/2002, HC 83.996/2004, RE 414.426/2004, ADI 3.758/2006,

ADI 3927/2007, ADI 4.451/2010, ADI 4.815/2012. 143

Art. 223 do Capítulo VI no Código Penal (Lei n.º 2.848/40): “Praticar ato obsceno em lugar público,

ou aberto ou exposto ao público: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa.”. 144

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas-corpus n.º 83.996/2004-RJ, segunda turma, 17 de agosto

de 2004. Disponível em

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2201403>. Acesso em: 10

mai. 2013. 145

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. ADI n.º 4.815/2012-DF. Disponível em

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4271057>. Acesso em: 10

mai. 2013. 146

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem

pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização

da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que

couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção

o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as

providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

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audiovisuais, temos a colisão da liberdade artística versus os direitos da personalidade,

entrando em embate, mais uma vez, no aspecto da área de efeito da expressão artística.

O STF ainda não se manifestou sobre a questão, no entanto, ao nosso entender, a

declaração de inconstitucionalidade é cabível com relação ao objeto, visto que o

constituinte foi contundente ao especificar que nem a censura e nem a licença147

(sinônimo da autorização, já que materialmente a sua diferença só é pertinente no

Direito Administrativo) constituirão entraves à livre manifestação da expressão artística.

Logo, a intervenção estatal que restringe o âmbito de efeito está eivada de ilicitude no

propósito perseguido “decorrente da literalidade e sistemática do texto

constitucional”148

, devido ao cerceamento provocado no exercício da liberdade artística.

Em tal situação, mesmo com a aparente claridade de ilicitude do propósito,

sabemos que os artigos da codificação civilista são concretizações legislativas do direito

fundamental da personalidade (inc. X, art. 5º), guarnecendo a norma infraconstitucional

de suporte constitucional. Constatamos a inconstitucionalidade, então, pelo exame dos

demais requisitos da proporcionalidade, resolutamente, ao aportarmos na necessidade149

enxergamos que o meio utilizado é o mais oneroso do que alternativas igualmente

adequadas ao seu propósito para a liberdade daquele que compõe uma obra artística

respaldada em dados biográficos.

Outros meios deverão ser testados, outros que não condicionem a divulgação da

obra a uma autorização, se não houver outros meios, que se apliquem as indenizações

previstas no inc. X, art. 5º e não proíbam a execução da obra de arte em sua plenitude

(inteirando o âmbito de efeito), muito menos pela exigência de uma autorização quando

147

“A licença deve ser entendida pela desnecessidade de autorização para publicação de jornais ou

periódicos.” BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:

promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 59. 148

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 189. 149

Ibid., p. 190.

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o inc. IX, art. 5º textualiza explicitamente o contrário, por consequência,

inconstitucional as normas do Código Civil por prescreverem meios desnecessários com

vistas ao parâmetro da liberdade artística.

As duas áreas (criação e efeito) formam um todo coeso resguardado pelo art. 5º,

inc. IX da CF, porém, o binômio guarda a seguinte inter-relação: só existe área de efeito

se existir área de criação, caso não haja área de efeito poderá haver área de criação. Isso

porque, o artista “não tem que publicar ou expor os seus produtos, nem tem de fazer

uma apresentação deles em público”150

, caso o particular queira fazer a exibição da obra

ao público espectador a área de efeito passa a ser protegida.

Dessa inter-relação não devemos constatar que a área de criação/produção

represente um limite dos limites151

, ou seja, que ingerências estatais em seu âmbito

sejam tão intensas que estejam ameaçando o próprio desaparecimento do direito por

constituir um “conteúdo essencial”152

, trata-se apenas de uma diferenciação estrutural, e

a doutrina alemã leciona que o “conteúdo essencial” somente para cada direito

fundamental em concreto pode ser determinado, pois, “se um particular já não pode

exercer os seus direitos fundamentais, não lhe aproveita que um outro possa ainda”153

.

Finalmente, acerca das áreas de efeito e criação, existem algumas atividades que

são executadas para que a comunicação artística esteja plenamente acabada,

denominadas pelo TCF alemão como “intermediações indispensáveis”, funções que são

desempenhadas entre o artista e o público154

. Parece-nos bastante delicado especificar

com precisão que funções serão protegidas pela liberdade artística e quais estarão de

150

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197. 151

MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma

complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 138. 152

PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 88-89. 153

Ibid., p. 89. 154

Ibid., p. 197.

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fora, por mais que a jurisprudência do TCF alemão tenha nos dado o critério da

“indispensabilidade”.

A publicidade é indispensável para a divulgação de obra artística? E o

figurinista, o iluminador, o aderecista, o cenógrafo? O que dizer daquelas pessoas que

são funcionárias de teatros, museus, galerias? Tentaremos responder esses

questionamentos no tópico da titularidade da liberdade artística a seguir.

3.2.3.1.4 Titularidade

Titulares do direito à expressão artística são aqueles expostos no caput do art. 5º,

CF, isto posto: os brasileiros e os residentes estrangeiros no país155

. No que tange às

pessoas jurídicas, quando o exercício do direito é compatível com as particularidades da

artificial ficção jurídica, podemos estender a proteção e as equipararmos. Em regra

geral, os direitos de resistência são suscetíveis a esse nivelamento156

.

De fato, as pessoas jurídicas desenvolvem arte no nosso país. São inúmeras as

companhias, os grupos ou as trupes que se enveredam nos campos da dança, da música,

do teatro etc., ainda, produtoras de filmes, gravadoras, editoras de obras literárias,

museus, galerias e centros culturais, sendo algumas destas pessoas de natureza pública,

constituídas pela ficção da pessoa jurídica devido a uma tendência empresarial de

organização trabalhista e tributária. Até mesmo as leis que subvencionam a produção

das artes no Brasil, especificam em suas normas que as pessoas jurídicas são

proponentes na atuação artística157

.

155

Sobre a interpretação da titularidade dos direitos fundamentais, vide: DIMOULIS, Dimitri;

MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 68-

77. 156

Nesse sentido: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar

Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 349; e DIMOULIS;

MARTINS, op. cit., p. 83. 157

“Art. 4o Para os efeitos deste Decreto, entende-se por: I - proponente: as pessoas físicas e as pessoas

jurídicas, públicas ou privadas, com atuação na área cultural, que proponham programas, projetos e

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Sem embargo, como deixamos assinalado no tópico anterior, há um designado

grupo de pessoas físicas e jurídicas, indicadas como “transmissores técnicos”158

, que

estariam desempenhando o seu mister numa área que permeia os dois âmbitos da

liberdade artística, fazendo uma ligação entre a criação e o efeito da obra, ou em tempo,

prestando serviços auxiliares específicos a cada uma das áreas.

Antes de enfrentarmos a polêmica é necessário que entendamos a seguinte

percepção: para ser artista, para criar artisticamente, “o particular não tem que ser

reconhecido como artista, não tem que exercer a arte como profissão”159

. O indivíduo

pode ser artista apenas em um único dia de sua vida. O direito à liberdade profissional,

de afiançamento jurídico-fundamental econômico, possui uma relação de lex

generalis160

à liberdade artística.

Ficou estabelecido no julgamento do Recurso Extraordinário – RE 414.426/SC,

em 01 de agosto de 2011161

, na ocasião em que o STF declarou em sessão plenária que

o exercício da profissão de músico não está condicionado ao prévio registro ou licença

em entidade de classe, o desprovimento do recurso de autoria do Conselho Regional da

Ordem dos Músicos do Brasil – OMB, o qual pleiteava o reconhecimento da

necessidade do registro nesta entidade como requisito para o desempenho profissional

na categoria.

ações culturais ao Ministério da Cultura;” Decreto n.º 5.761/2006 que regulamenta a Lei Rouanet – Lei

Federal de Incentivo à Cultura n.º 8.313/91. 158

ARNAULD, Andreas von apud MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística.

In: Mamede, Gladston; Franca Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da

Arte: Regime jurídico e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores,

galeristas, leioleiros, investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 159

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 197. 160

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 161

Em decisão análoga ao RE 511.961, em que os ministros do STF decidiram que o diploma de

graduação em “Jornalismo” era uma exigência inconstitucional para o exercício profissional na categoria,

para uma análise completa sobre o assunto: MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado Constitucional:

leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais.

São Paulo: Atlas, 2012, p. 278-308.

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69

As discussões que percorriam os ministros, no pronunciamento de seus votos,

enfatizavam que as restrições ao livre exercício profissional (art. 5º, XIII, CF) deveriam

ser regidas pelo “princípio da mínima intervenção”, justificadas, apenas, quando as

atividades representassem uma necessidade de proteção por interesse público, condigno

a um “conhecimento específico altamente técnico”, concluindo que no caso da música,

expressão artística que é, o que depende faticamente para atuação profissional é o

talento que se tem ou não162

.

No entanto, ao invés da Corte trabalhar com apenas um único parâmetro

constitucional (a liberdade artística), e satisfazer a questão da inconstitucionalidade por

intermédio da dogmática, afastando a liberdade profissional, uma vez que as duas

encenam um quadro de concorrência aparente163

, aonde a liberdade artística é lex

specialis, condicionando todo diagnóstico sobre a potencial inconstitucionalidade da

intervenção estatal em relação à sua área de proteção, limites, reservas legais, ordens

legislativas, até a aplicação correta do princípio da proporcionalidade; o STF prefere,

retoricamente, argumentar sobre o nexo de teor totalitário da medida que interfere na

“mais sublime de todas as artes”.

Perquirimos, desse modo, se profissionais de outras áreas consolidadas no

mercado de trabalho, possuindo nicho próprio e autônomo, poderão ser resguardados

pela liberdade artística quando prestam serviços ao fim de uma obra de arte. O TCF

alemão, em jurisprudência confusa, alarga essa proteção, por exemplo, à publicidade de

uma obra, e exclui, a contrario sensu, à realização de interesses comerciais por parte de

162

Disponível em

<http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoDeslocamento.asp?incidente=2194818>. Acesso em:

15 jun. 2013. 163

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 163-167.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE ... · também; Graziela Andrade, por ter me cercado de filosofia aonde quer que eu vá ou olhe; e Leonardo Martins, meu orientador,

70

uma empresa de suporte de áudio164

. Perguntamos: tanto as agências de publicidade

como as empresas de suporte de áudio não trabalham exclusivamente com fins

lucrativos? Com atuações próprias e serviços prestados a ramos diversos do mercado?

Qual o sentido da diferenciação?

A jurisprudência fala, no mais, em “função de intermediação indispensável”.

Existem algumas atividades em que claramente detectamos essa indispensabilidade, a

exemplo de um figurinista, que seu ofício é praticamente condicionado às expressões

artísticas, fabricando figurinos de época para uma personagem de um filme

renascentista, para o músico se apresentar em concertos, para uma trupe de teatro

mambembe, entre outros. Torna-se difícil imaginarmos situações em que o figurinista

ou aderecista cria fora do contorno artístico, o seu desempenho para o conjunto da obra

artística é essencial, a elaboração dos trajes compõe o personagem, responde quem ele

é, onde ele está e em que época, isto é, enxergamos a marca da indispensabilidade desse

profissional sem maiores dificuldades.

Contudo, retomando o entendimento do TCF alemão, tanto a publicidade de uma

obra de arte quanto a empresa que fornecerá o equipamento de áudio para a

apresentação, por exemplo, de peça teatral, podem ser consideradas indispensáveis

como atividades intermediárias entre o artista e o público. Parece-nos que o predicado

da indispensabilidade não é suficiente, as gradações intrínsecas ao conceito deixa uma

margem de dúvida extensa.

Essas funções intermediárias também não estarão fora do arrimo jurídico-

fundamental da liberdade artística devido ao seu caráter econômico, de fins lucrativos,

visto que não há empecilho para que as expressões artísticas sejam exploradas

economicamente, que o artista obtenha lucro, por conseguinte, sem cabimento exigir das

164

Discordando dessa opinião Friedrich Müller, em: PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos

Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 198.

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71

empresas que auxiliam a manifestação artística conduta adversa. Ao contrário, o simples

consumo de arte já não se encontra garantido165

, como já afirmado, filosoficamente, no

final do tópico 2.2.3. Como resolver, então?

A evolução histórica permite reconhecer que os direitos fundamentais são

direitos individuais, produzindo um compromisso no exercício do poder do Estado em

abster-se às ingerências na liberdade do particular166

, isto é, quando estamos diante de

um direito sem reserva legal, o caso da expressão artística, auferimos, mesmo em

abstrato, que o alcance da liberdade desse direito é maior que - para efeitos

comparativos – o da liberdade profissional que foi concebido pelo constituinte com uma

autorização expressa de restrição.

Portanto, pela lógica-sistemática de proteção dos direitos fundamentais, no caso

concreto dos “transmissores técnicos”, nunca afastando os preceitos da dogmática

jurídica para determinar com precisão as condutas factuais às normas jus-fundamentais,

devemos aplicar o direito que traga menos prejuízo à liberdade do particular167

, o que

não possui limites expressamente definidos, ou melhor, devemos estender a essas

funções, quando estão exercendo seus serviços em prol de uma obra de arte, a proteção

constitucional da liberdade artística.

Estamos afirmando que todas as atividades intermediárias entre o artista e o

público, aquelas que auxiliem os artistas em cada área da estrutura do direito à

expressão artística, quais sejam a criação e o efeito, quando estão servindo diretamente

ao propósito da comunicação artística estarão submetidas à proteção dessa liberdade,

165

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 198. 166

Ibid., p. 15. 167

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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72

isso porque, entendido este direito como aquele “mais forte”168

, quer dizer, que se

coaduna com o maior interesse do particular. Portanto, a liberdade profissional deverá

ser aplicada apenas subsidiariamente.

168

“Mais forte” por não ter reserva legal, consoante o entendimento de: MARTINS, Leonardo. Direito

Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues

Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico e questões do interesse de artistas,

colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros, investidores e museus. São Paulo: Atlas,

2013 (no prelo).

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73

4 INTERVENÇÕES ESTATAIS NA LIBERDADE ARTÍSTICA E

JUSTIFICAÇÃO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL

As ingerências ou intervenções na liberdade artística podem ter lugar, por meio

de proibições, sanções e medidas materiais (limitativas da área de proteção). As

afetações podem atingir tanto a criação/produção como a apresentação (área do efeito)

da arte169

. Depois de constatada uma intervenção estatal170

na área de proteção da

liberdade artística é preciso distinguir se existe permissão ou não para a restrição, pois

esta poderá ser justificada por um limite constitucional ao direito fundamental171

.

Definiremos a intervenção estatal, quando, por qualquer atuação (ação ou

omissão) do Estado, o indivíduo esteja total ou parcialmente impedido de agir de acordo

com uma conduta que está na área de proteção da expressão artística,

independentemente de se saber se esse efeito ocorre como “efeito final ou involuntário,

direta ou indiretamente, jurídica ou materialmente, com ou sem ordem e coação. No

entanto, a conduta precisa partir de um comportamento imputável ao Poder Público”172

.

A intervenção estatal no exercício da liberdade artística que não possa se

justificar trata-se de uma violação, ilicitude e, deste modo, a consequência jurídica, em

face de um parâmetro constitucional por excelência, é a declaração da

inconstitucionalidade pelo órgão competente pela fiscalização. De resto, partiremos do

princípio de que não se pode falar de uma afetação no caso de “meras bagatelas, de

incômodos do dia-a-dia e de suscetibilidades subjetivas”173

.

169

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 201. 170

A intervenção poderá ainda ser efetuada por terceiros, iremos apreciar esse ponto a partir da análise de

casos paradigmáticos que envolvem o exercício da liberdade artística. 171 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 141. 172 PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 73. 173 Ibid., p. 69.

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74

Quando o direito fundamental não possui nenhum tipo de reserva, como o direito

à expressão artística, toda ingerência é uma violação174

, exceto nos casos de: o

comportamento não se situar na área de proteção da liberdade artística; a intervenção

representar a concretização ou a conformação de um direito fundamental derivado e

colidente ou, da mesma forma, a reserva legal; e na colisão entre direitos fundamentais

ou um bem jurídico constitucional ou um princípio de interesse geral175

.

4.1 LIMITES AO DIREITO DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA

O direito à expressão artística, conforme perscrutado, não fora editado pelo

constituinte com ressalvas, ou melhor, com reserva legal176

. A Lei Fundamental por

intermédio das reservas legais permite ao legislador comum que introduza restrições na

área de proteção do direito fundamental, no caso de sua ausência estamos a admitir que:

por lei ou com base em lei o direito não sofrerá quaisquer limitações; e, deve ser

atribuído que os limites da garantia de liberdade artística só devem ser determinados

pela lógica-sistemática da própria Constituição177

.

Apesar dos esforços na delimitação de uma área de proteção material e subjetiva

com relação à liberdade artística, a falta de especificações limitativas faz com que o

comportamento individual e coletivo artístico seja impreciso previamente, à vista disso,

explorar os direitos, bens e princípios constitucionais que restringem a atuação artística

nos servirá de base para delineá-lo com maior apuro.

4.1.1 Comportamento que não se situa na área de proteção da liberdade artística

174 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 75. 175 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 142-143. 176 Poderão existir reservas ordinárias ou qualificadas: no primeiro caso a reserva de lei ordinária não faz

quaisquer exigências especiais à lei de ingerência, já no segundo é exigido que a lei se refira à

determinadas situações, sirva determinados fins ou utilize determinados meios. PIEROTH; SCHLINK,

op. cit., p. 76. 177 Ibid., p. 201.

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75

Alguns comportamentos individuais estão fora da área de proteção, e,

considerando, a atuação estatal prima vista restritiva do direito não o será, não sendo

possível verificar sua inconstitucionalidade em face do parâmetro constitucional em

pauta. O particular não poderá exercer o direito à expressão artística quando a conduta

não é permita, ou melhor, quando ilícita. Da mesma forma que a liberdade profissional

não protege uma conduta tipicamente proibida por ser exercida profissionalmente, uma

conduta enraizada de ilicitude não deixa de assim o ser por estar em um contexto

(momento estético-sensorial) artístico178

.

Do mesmo modo, o comportamento do titular da liberdade artística que age

violando arbitrariamente bens jurídicos alheios, não poderá está contido na área de

proteção do direito, excluídas estão, pois, a priori, violações arbitrárias e dolosas a

direitos de terceiros179

.

Que essa baliza não se confunda com um esvaziamento da liberdade artística, a

proteção não passa a ser superficial ou complementar das condutas que já são

permitidas, a expressão artística pode afrontar, causar desconfortos, inconveniências,

provocar certos sentimentos até desmoralizantes, no entanto, a conduta ilícita não pode

estar abarcada na proteção do direito. Discutiremos mais uma vez essa questão nos

tópicos sobre a colisão de direitos.

4.1.2 Concretização e reserva legal dos direitos fundamentais derivados

As concretizações ou as conformações constitucionais e mediante lei sobre

direitos fundamentais não representam propriamente limites, mas potencial intervenção

178 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 198. 179

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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76

estatal na área de proteção dos direitos180

. A conformação é técnica que possibilita

pretensões de condutas para que o particular possa fazer uso do direito fundamental,

pois há uma definição de conteúdo181

. Todavia, o legislador deve conformar o direito e

não dispor sobre ele, não devendo, em princípio, impor limites a sua área de proteção.

A relação entre as concretizações e as reservas legais (quando a Lei

Fundamental assente ao legislador comum a introdução de limitações na área de

proteção do direito) é muito complexa, não sendo possível traçar uma linha de

demarcação clara entre a concretização e a limitação mediante reserva legal182

,

principalmente quando se ocupa de um direito aberto, de descrição vaga sobre as

condutas imputadas aos titulares.

No caso da liberdade artística, como não existem concretizações que se associam

diretamente ao direito, precisamos investigar a conformação ou os casos de reservas que

ocorrem “como limite derivado do chamado direito constitucional de colisão”183

, desse

modo, quando conformações e reservas a outros direitos fundamentais acabem por

interferir na área de proteção da liberdade artística, limitando-a, a exemplo das reservas

explícitas no direito de comunicação social, como veremos a seguir.

4.1.2.1 Diversões e espetáculos públicos

O inc. I, §3º, art. 220, da CF, mediante uma reserva legal qualificada, versa que

competirá à lei federal regular “as ‘diversões e os espetáculos públicos’, cabendo ao

Poder Público informar sobre a sua ‘natureza’, as ‘faixas etárias’ a que não se

recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada.” O

constituinte fixou o meio (lei federal) pelo qual o seu propósito de proteção à infância e

180 DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 145. 181 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 65-66. 182 Ibid., p. 65-66. 183 DIMOULIS; MARTINS, op. cit., p. 143.

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77

a juventude (bem jurídico-constitucional, art. 227, CF), deve abarcar as situações

delimitadas acima.

O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, lei n.º 8.069/90, concretizou os

mandamentos constitucionais de restrição especial. Destarte, diversos dispositivos do

ECA, em abstrato, devem passar pelo crivo da constitucionalidade em face do

parâmetro da liberdade artística. Analisaremos algumas dessas limitações que são, ao

mesmo tempo, definições da área de proteção da manifestação artística.

Diversões e espetáculos públicos têm conceitos distintos. Os parques de

diversões, algumas casas de brinquedos eletrônicos fazem parte do que os franceses

chamam de diversões públicas, espetáculos de curiosidade, distrações de conteúdo não-

intelectual184

, isto posto, não artísticos. Já os espetáculos envolvem criações artísticas,

trata-se de representação teatral, exibição cinematográfica, rádio, televisão ou qualquer

outra demonstração pública de pessoa ou conjunto de pessoas.

O art. 74, parágrafo único, do ECA, determina que os “espetáculos públicos

deverão afixar, em lugar visível e de fácil acesso, à entrada do local de exibição,

informação destacada sobre a natureza do espetáculo”. Cuida-se de uma obrigação de

fazer para todos os artistas que, porventura, vão expor suas obras em espetáculos

públicos, qual seja, informar o conteúdo da sua manifestação, qual assunto será

abordado durante a apresentação.

A primeira vista, aparenta-nos que o dever é arbitrário, que não se conecta com a

qualidade de “livre” das expressões artísticas, e, em verdade, o dever se associa

diretamente à fixação da faixa etária do espetáculo (que veremos a seguir), contudo, o

próprio dispositivo constitucional também exige a fixação, em geral, da natureza do

184 SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores

LTDA., 2001, p. 63.

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78

espetáculo e, diante da unidade da Constituição185

, afastada a tese das normas

constitucionais inconstitucionais186

, a obrigação passa a fazer parte da área de proteção

da liberdade artística.

4.1.2.2 Faixas etárias (classificação indicativa)

A indicação por faixa etária foi mais uma cautela do legislador constitucional

que, conformada pelo legislativo, por intermédio do art. 75 e parágrafo único do ECA,

resguarda a infância e a juventude em face de conteúdos considerados impróprios ao

desenvolvimento de suas personalidades. O caput do art. 75 versa sobre a acessibilidade

de todas as crianças e os adolescentes as diversões e espetáculos públicos que sejam

“adequados à sua faixa etária”, mediante uma classificação. A classificação indicativa

está a cargo do Ministério da Justiça que a edita pelo ato normativo do tipo portaria187

.

A classificação indicativa consiste em um crivo prévio, uma análise feita pela

Administração “com base nos critérios de sexo e violência”188

. Não há margem para a

Administração intervir na programação como lhe cobrando cortes de conteúdo, os

órgãos administrativos não se imiscuem sobre se algo deve ou não vir a ser apresentado,

isto é, não se deve confundir o crivo prévio de legitimidade constitucional com a

censura prévia, proibida pelo ordenamento, a competência às autoridades

administrativas é somente na sugestão das idades adequadas189

.

185

“Por afastar a tese de hierarquia entre os dispositivos da Constituição, esse princípio impede a

declaração de inconstitucionalidade de uma norma constitucional originária.” NOVELINO,

Marcelo. Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Editora Método, 2009, p. 77. 186

Cf. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994. 187

A portaria em análise já foi alvo de quatro ADIs, na ordem cronológica de ajuizamento: ADI 392,

ADI 2398, ADI 3907 e ADI 3927. Todas elas foram arquivadas de acordo com o entendimento de que

portaria não é instrumento processual cabível e adequado ao controle abstrato. Portaria nº 1.220, de 11 de

julho de 2007. 188

Art. 17 (...) I – livre; II – não recomendada para menores de 10 (dez) anos; III – não recomendada para

menores de 12 (doze) anos; IV – não recomendada para menores de 14 (quatorze) anos; V – não

recomendada para menores de 16 (dezesseis) anos; e VI – não recomendada para menores de 18 (dezoito)

anos. Portaria nº 1.220, de 11 de julho de 2007. 189

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso

de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 458.

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Os limites impostos à expressão artística, tanto o dever de informar a natureza

do espetáculo público, quanto a obrigação de comunicação da faixa etária adequada ao

conteúdo e forma, se desobedecidos, tipificam-se em infrações administrativas previstas

no ECA190

, as penas variam de três a cem salários mínimos, duplicadas em caso de

reincidência dos responsáveis pelas diversões e espetáculos públicos.

4.1.3 Direito à expressão artística e direito constitucional de colisão

Da mesma forma que os homens são interdependentes e a atividade de nenhum

deles é completamente privada, que nunca venha a obstruir a vida dos outros191

, os

direitos fundamentais, ou melhor, o seu exercício, naturalmente fará nascer colisões

com outros direitos fundamentais ou com outros preceitos constitucionais (bens

jurídico-constitucionais)192

. Esses conflitos acontecem devido ao uso arbitrário das

liberdades de quem são titulares os indivíduos, desse modo, o legislador atenta em

conter os conflitos por intermédio das reservas legais incutidas nos direitos

fundamentais.

Não obstante, a liberdade artística por não estar sujeita à reserva legal, importa em

deduzir que falta ao legislador a liberdade para reduzir, in abstracto, as colisões que o

seu uso irá provocar, “mas com isto as colisões não desaparecem como perigos que

são”193

. Destarte, o direito sem reserva poderá ainda ser limitado “pelo chamado direito

constitucional de colisão ou colidente”194

.

Devemos recusar a seguinte proposição: na colisão com os direitos fundamentais

sem reserva, resolve-se o problema do conflito com a “transferência de limites de um

190

Art. 252-256, lei n.º 8.069/90. 191

BERLIN, Isaiah. Com Toda a Liberdade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996, p. 137. 192

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 162. 193

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 92. 194

DIMOULIS; MARTINS, op. cit., 156.

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80

direito fundamental para o outro”195

. A doutrina que se envereda pelo caminho da

transposição de limites desrespeita a escolha do legislador constituinte, o caráter

especial que ele quis imprimir à garantia fundamental sem reserva, agir de encontro é

abandonar o valor especial que a Lei Fundamental lhe reconhece.

Isto posto, quando o direito à expressão artística entrar em conflito com outro

direito fundamental, poderemos provar que a conduta artística não está inserida na área

de proteção, mostrando-se arbitrária, pela interpretação sistemática da Constituição196

.

Usando essa técnica, configuramos a área de proteção da liberdade artística, ou seja, a

área sofrerá restrições apenas até o ponto que permita, respectivamente, um equilíbrio

com outros direitos fundamentais colidentes e bens constitucionais197

.

Os conflitos, por fim, serão decididos pela interpretação conjunta de todas as

disposições relacionadas no caso concreto que nos faça entender os parâmetros que o

próprio constituinte estabeleceu e, nos casos em que as reservas legais dos direitos

constitucionais em colisão reduzem a área de proteção da liberdade artística, apesar de

formalmente autorizadas, é preciso, ainda, que passem pela correta aplicação do critério

da proporcionalidade198

.

4.1.3.1 Vedação ao anonimato, direito de resposta e indenização por danos materiais e

morais

A doutrina costuma justificar a vedação do anonimato como um instituto de

preservação da intimidade, da honra e da imagem das pessoas, uma vez que, as

violações aos direitos da personalidade precisam ser responsabilizadas a um indivíduo

(ou pessoa jurídica) que possa ser identificado. As obras apócrifas, como limite

195

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 92. 196

Ibid., p. 92. 197

Ibid., p. 93. 198

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 163.

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expresso ao direito de manifestação do pensamento (art. 5º, IV, CF), por conseguinte,

não estariam protegidas pela Constituição.

Ao manifestar suas opiniões, ideias e pensamentos os indivíduos poderão

insultar algo ou alguém, prejudicando a subjetividade de sua honra, da imagem e da

privacidade, causando danos a terceiros. Ao dano a outrem “é assegurado, o direito de

resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à

imagem” (art. 5º, V, CF). A expressão “é assegurado”, utilizada pelo constituinte, não

deixa dúvida199

, instituiu-se por ela uma reserva legal tácita ao inc. IV, devendo ser

fixado por lei200

todos os ajustes à concretização dos limites à manifestação do

pensamento.

Entretanto, os limites expostos acima não são manifestos a tangenciarem a área

de proteção da liberdade artística, ao contrário do que a doutrina dominante vem

estabelecendo201

. No que concerne à área de criação, importante é a existência de uma

obra de arte, caso a autoria seja indeterminada isso não irá influenciar no arrimo

jusfundamental202

. A área de efeito da obra de arte que não traz a subscrição do seu

criador pode representar um problema, pode importar em um dano a outros bens ou

direitos constitucionais, como, v.g., uma pintura que retrata várias personalidades da

política nacional, caricaturadas, nadando em um “mar de notas de dinheiro”, exposta em

uma galeria de artes plásticas.

199

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 200

Com a declaração da não recepção da Lei de Imprensa n.º 5.250/67 à ordem democrática de 1988, a

matéria encontra-se em vacatio legis. 201

Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro; Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editor, 2002,

p. 333; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira.

Curso de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 457. 202

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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82

Apesar disso, como já ratificamos (tópico 3.2.2), a liberdade artística é lex

especialis, não há de se pronunciar o legislador ou o magistrado pela transposição de

limites, a obra de arte que não possui determinação do seu artista criador poderá ser

livremente exposta, terá a plenitude de sua área de efeito protegida, as pessoas físicas e

jurídicas que são partícipes da comunicação artística203

(como o curador de um museu,

diretor de um teatro etc.) também se valerão da garantia fundamental.

Não estamos com esse posicionamento isentando os titulares do direito à

expressão artística dos danos que causem a terceiros (analisaremos em seguida o direito

colidente do inc. X), muito menos anuindo à não tipificação das condutas dos artistas,

presente o comportamento imputável à calúnia, difamação ou injúria204

, a intervenção

estatal que aplica a sanção será justificada, responsabilizados serão os titulares da

liberdade artística (no exemplo supra, um dos políticos poderia propor queixa crime por

difamação contra o diretor da galeria).

Quanto aos limites expressos no inc. V, reserva legal tácita da manifestação do

pensamento, quais sejam, o direito de resposta e as indenizações por danos morais e

materiais à imagem, antes de nos embrenharmos nas minúcias do direito de resposta,

alegamos, preliminar e reiteradamente, pela proibição da transposição de limites.

Em primeiro lugar, a indenização que será cabível ao exercício desmedido da

liberdade artística está contida no inc. X da CF, que veremos a seguir, à medida que, a

indenização do inc. V se refere ao agravo que provocou o direito de resposta, pois os

limites não são alternativos, caso haja um dano provindo de uma manifestação do

pensamento tanto o direito de resposta quanto à indenização poderão ser admitidas.

203

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 204

Arts. 138, 139 e 140, do Código Penal, Lei 2.848/40).

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83

Por segundo, não podemos falar em limites sobrepostos, as previsões de

indenizações materiais e morais à imagem são explícitas, repetidamente, em dois incisos

do art. 5º (V e X), logo, mais uma razão – efeito da interpretação sistemática –, para não

transferirmos os limites da manifestação do pensamento à aplicação da liberdade

artística.

O direito de resposta, assim como a vedação do anonimato, tem sido

compreendido pela doutrina como restrições estendíveis às liberdades de expressão205

,

já afastamos a possibilidade de forma jurídico-dogmática. Porém, restaria uma

indagação pertinente: ‘por que às formas de comunicação social, como a liberdade de

imprensa, a liberdade de informação e a liberdade jornalística admitem o direito de

resposta? Uma vez que a comunicação é uma forma de expressão constante no inc. IX,

no qual também encontramos a liberdade artística?’.

A liberdade de comunicação é garantida pela combinação de dois dispositivos

constitucionais o inc. IX, art. 5º e os §§1º e 2º, art. 220, da CF. O referido §1º versa que

as leis infraconstitucionais não poderão oferecer empecilhos “à plena liberdade de

informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observando o

disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV”, o legislador constitucional trouxe uma

limitação expressa à comunicação social, não falando nada sobre as expressões

intelectuais, artísticas e científicas, deixando fulgente que as restrições são aplicáveis

somente aos veículos da imprensa (analógica e digital).

205

“O direito de resposta e de retificação é um instrumento das pessoas contra qualquer opinião ou

imputação de caráter pessoal ofensiva e prejudicial.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA,

Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 236; “O

direito de resposta, na forma em que a Constituição o assegura, não está vinculado a lesões provenientes

apenas de determinados meios de comunicação. É inerente ao processo de informação e, portanto, deverá

ser assegurado em quaisquer das modalidades sob as quais esta se dá.” BASTOS, Celso Ribeiro;

MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.

São Paulo: Saraiva, 1989, p. 46; e “É assegurado o direito de resposta em todas as modalidades sob as

quais o processo de difusão de ideias e opiniões possa ocorrer.” MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro.

Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 85.

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84

Recai sobre a comunicação social, tanto a proibição do anonimato, quanto o

direito de resposta proporcional ao agravo, pois essa foi a vontade do constituinte

promulgada no art. 220, todavia, não serão cabíveis às outras forma de expressão os

limites do inc. IV e V, do art. 5º, pois, esses direitos guardam uma relação de lex

especialis ao direito de manifestação, e, primordialmente, não estão sujeitos a reservas,

assentir pela transferência de limites é uma clara subjugação da Lei Fundamental.

4.1.3.2 Direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem

O direito de personalidade em geral, assegurado no inc. X, art. 5º, CF

(igualmente certificado à indenização ao dano material ou moral), encena um quadro de

relevantes colisões com os direitos da expressão em geral. No entanto, não iremos

defini-los por um referencial único e próprio, dependente apenas da semântica e da

configuração dos seus termos jurídicos, mas, a partir de um diálogo com as condições

de comunicação206

é que se formará a área de proteção do direito à personalidade.

Na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão, os direitos da

personalidade se incrementam a partir dos modos que o sujeito se desenvolve,

aplicando-se a: autodeterminação, autopreservação e autoapresentação207

, no geral, essa

esfera concreta indica que o indivíduo possui o direito de dispor sobre as informações

de sua vida privada, discernindo quais destas devem chegar à esfera pública das que não

deverão ser compartilhadas.

A autodeterminação é o processo no qual o particular elege sua identidade, qual

será sua profissão, qual sua orientação sexual, quais são os seus hobbies, suas

convicções filosóficas, religiosas, políticas etc., tudo aquilo que lhe singulariza está

206

BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra: uma nova abordagem

no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010, p. 306. 207

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Univer

sidade Lusíada Editora, 2008, p. 112.

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85

associado à autodeterminação, logo, esse arcabouço de afirmações sobre si próprio não

deve ser onerado no processo de formação da identidade.

A autopreservação, que interage diretamente com o direito da personalidade ora

analisado, garante ao indivíduo o direito de se proteger, de manter informações de sua

personalidade nos recônditos do ponto de vista social (e até mesmo espacial), é o abrigo

de sua intimidade e privacidade (o inc. XII, art. 5º, CF consiste também em

concretização a autopreservação).

Por fim, a autoapresentação ou autoexposição assegura ao particular se defender

sobre o que publicamente lhe desprestigia. Aqui, cada um irá se expor da maneira que

lhe convier, destarte, nessa seara ocorre os desdobramentos do direito à imagem e o

direito à honra pessoal.

Os direitos da personalidade em um Estado Democrático de Direito implicam,

inevitavelmente, a necessidade de serem definidos, levando em consideração a

dogmática da liberdade de expressão208

, tamanha é a reciprocidade entre o exercício

desses direitos abalizadores da convivência e da formação humana. O primeiro passo da

análise da suposta obra artística lesiva aos direitos da personalidade é admitir que: os

direitos que se referem à autopreservação e à autoexposição não tenham o condão de

impor a terceiros que pensem ou que comentem ao nosso respeito apenas aquilo que

desejamos209

. Dessa maneira, o artista não está vinculado à honra subjetiva de cada um,

a eficácia horizontal dos direitos fundamentais é mediata210

.

A seguir, uma possível colisão entre os dois direitos fundamentais não ensejará

uma intervenção estatal na manifestação artística, quando podemos objetivá-la como

208

FARIAS, Edilsom. Colisão de Direitos. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1996, p. 109. 209

BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra: uma nova abordagem

no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010, p. 335. 210

“[...] Apesar do caráter direto da aplicação da norma constitucional, as relações entre particulares só

ficam submetidas aos direitos fundamentais mediante atuação (decisão) do Estado. [...] O efeito

horizontal dos direitos fundamentais é indireto, necessita da intermediação das cláusulas gerais do direito

infraconstitucional.” DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos

Fundamentais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 105.

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86

não arbitrária aos direitos da personalidade ao examinar se o artista fere o bem jurídico

de outrem, dolosamente, logo, é preciso investigar o animus211

do artista no seu

processo comunicativo.

A expressão artística que se configure como uma (seja na área de produção ou

do efeito) lesão ao direito alheio da personalidade, intencionalmente, para fins de

“desenvolvimento artístico” não fará parte da área de proteção desse direito. Do

contrário, quando o animus é negativo e o caráter ofensivo não é direcionado a um

indivíduo determinado ou determinável, teríamos a expressão artística, quiçá, como fato

antijurídico, mas não culpável, devido ao exercício regular do direito constitucional212

.

Finalmente, é preciso aprofundar o estudo do contexto que envolve a expressão

artística potencialmente restringível pelos direitos da personalidade, quais sejam: a

análise do destinatário; o meio utilizado; os recursos/modos como foi expresso; e das

possibilidades de interpretações oferecidas213

. Sobre este último vale um maior

detalhamento, analisaremos a decisão do TCF alemão (já citada no presente trabalho

acima, tópico 3.1.4) conhecida por “Comboio Anacrônico” (Anachronistischer Zug) e

como a expressão artística sugere uma pluralidade de interpretações.

O caso “Comboio Anacrônico”214

aborda uma atuação dramatúrgica de um

grupo de teatro de rua, ambulante, que realizava apresentações ao ar livre em várias

cidades alemãs (a peça era uma adaptação de um texto de Bertold Brecht), em que o

então Deputado Federal Franz Josef Strauss, candidato a chanceler, é mostrado ao lado

de figuras conhecidas do nazismo.

211

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 212

Trata-se da teoria causalista da ação, não sendo aplicado os tipos penais que protegem a honra pessoal.

BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Tomo IV. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1972, p. 270. 213

GRIMM, Dieter apud BORNHOLDT, Rodrigo Meyer. Liberdade de Expressão e Direito à Honra:

uma nova abordagem no direito brasileiro. Joinville: Bildung, 2010, p. 388. 214

Ibid., p. 386-389.

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87

Em certo momento, entretanto, a peça mostrava uma luta entre Strauss e os

nazistas. De acordo com TCF, o intérprete da peça poderia tirar inúmeras conclusões

dessa cena: a de que Strauss era um nazista, como as demais figuras que lhe rodeavam;

outra conclusão diria que Strauss efetivamente combatia o nazismo, ainda que sem

sucesso, por combater de forma superficial e mentirosa; e uma última interpretação,

feita com base nas intenções de Brecht, poderia sugerir que essa luta de fato existia,

sendo conveniente para o parlamentar de direita, Strauss, e que ao cabo lutaria pelo

triunfo das velhas ideias nacional-socialistas.

O TCF se questiona se o comprometimento da honra pessoal de Strauss é tão

grave que a liberdade artística precise ser afastada, emendando que, ‘poderá existir

alguma interpretação possível em que a ofensa à honra não tenha lugar?’. Vale dizer, na

motivação de uma decisão, os juízes devem procurar diversas interpretações possíveis,

escolhendo aquela que não se constitui uma agressão à liberdade de expressão,

afastando as demais215

.

A partir dessa decisão paradigmática foi que o TCF desenvolveu esse critério

que em conjugação com o conceito aberto de arte, em uma síntese conclusiva, diz que

liberdade artística significa, no sentido assinalado, “que se tome por base da apreciação

jurídica, entre várias interpretações possíveis de uma obra de arte, aquela em que a obra

de arte não lesa direitos alheios”216

.

Outro tema que já foi alvo da apreciação do TCF e da Suprema Corte norte-

americana, cotejando os direitos da personalidade, especificamente o direito à imagem,

215

“Esta interpretação conforme aos direitos fundamentais é um caso particular da chamada interpretação

conforme à Constituição, segundo a qual, entre várias interpretações possíveis merece a preferência

aquela que melhor corresponder à Constituição.” PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos

Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 58. 216

Ibid., p. 199.

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e a liberdade artística, foram às expressões em formas de caricatura e charge217

. São,

respectivamente, os julgados Strauß-Karikatur (BVerfGE 75, 369)218

e o case Falwell

vs. Hustler Magazine (1988)219

.

A jurisprudência do TCF alemão precisou avaliar se certa caricatura, envolvendo

desenho de agente político mantendo relações sexuais com animais, representava

violação ao direito à imagem do político, maculando também, e talvez com mais

precisão jurídica, a dignidade humana do caricaturado. O caricaturista trabalha com

elementos jocosos, que exageram, deformam e alienam o destinatário e o objeto

caricaturado220

. Todavia, até que ponto alguém pode ser instrumento do divertimento

alheio sem que isso desrespeite sua dignidade?

A estilística das expressões satíricas, imprescindivelmente, carrega essa forma

que é insultante aos direitos de terceiros, deste modo, o alicerce correto para que se

conjeture uma violação aos direitos da personalidade no caso das espécies satíricas, não

deve ser a roupagem da mensagem221

, mas o seu âmago, o núcleo da essência da

mensagem222

. O TCF decidiu pela interferência não justificada no núcleo da dignidade

217

A charge, a caricatura e a paródia são espécies do gênero artístico “sátira”. A técnica satírica é aquela

que ridiculariza determinado tema, tanto pelo humor como pelo trágico. A charge e a caricatura utilizam-

se do humor, mas o que as diferenciam é o elemento temporal, enquanto a charge é uma piada restringida

ao seu tempo, por exemplo, escândalos envolvendo os poderosos políticos são as vítimas, os assuntos

relacionados ao futebol ou a TV etc., a caricatura é o retrato distorcido e bem-humorado de um

personagem escolhido sem qualquer referência ao tempo. 218

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Univer

sidade Lusíada Editora, 2008, p. 199. 219

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso

de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 466. 220

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 221

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 222

Cf. pensamento diverso em: PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 199: “É errado distinguir, como fez o

TCF no julgado E 75, 369/377, no caso da sátira e da caricatura, entre o núcleo da mensagem e o núcleo

da sua expressão e submeter os dois aspectos a critérios diversos, o que quer que a arte possa ser, ela é,

em todo o caso, unidade de forma e conteúdo.”.

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humana do agente político, considerando a caricatura – o seu conteúdo – não coberta

pela liberdade artística.

Diferenciar o exterior da expressão artística do sentido artístico que carrega,

segundo Pieroth e Schlink, posicionar-nos-ia a aceitar que “um escultor que furta

mármore ou um músico que furta um instrumento, fazem isto apenas em conjugação

com sua atividade artística”223

, entretanto, discordamos dessa percepção, pois, o uso do

instrumento artístico deliberadamente (investigação do animus) intencionado, para

macular algo ou alguém não fará parte da área de proteção do direito fundamental. A

consecução de uma expressão artística não informa fins ilícitos. Separar a roupagem de

uma obra de arte de seu conteúdo substancial é plausível, pois surge com as novas

formas de expressão artísticas, que vão eclodindo de acordo com os novos valores que a

sociedade indica como importantes, como o conteúdo humorístico224

.

O caso Falwell vs. Hustler Magazine225

tinha como cerne o litígio entre a revista

Hustler, conhecida pelo seu humor escrachado, reconhecidamente bruto, e o

parlamentarista protestante Jerry Falwell. A charge/paródia apresentou um quadro

fictício em que Falwell era entrevistado, descrevendo que a sua primeira relação sexual

ocorreu com sua mãe. O anúncio, na parte inferior, continha um aviso de que “a paródia

não deveria ser levada a sério”.

A Suprema Corte foi acionada para apaziguar a contenda, na fundamentação da

decisão, recordou o precedente New York Times Co. vs. Sullivan (1964)226

, na ocasião

os juízes firmaram posicionamento segundo o discurso crítico sobre figuras públicas,

ponderando que as constantes exposições das celebridades e as pessoas que estão

223

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Univer

sidade Lusíada Editora, 2008, p. 200. 224

Cf. o acórdão do TJ-SP de 06/11/2012 nos autos da Apelação Cível n. 0201838-05.2011.8.26.0100,

sobretudo o voto vencido do Rel. original, Des. Roberto Maia. O caso polêmico que ficou famoso por

envolver a cantora Wanessa Camargo e o humorista-jornalista Rafinha Bastos, quando esse último

pronunciou na TV que “comeria ela e o seu bebê”. 225

485 U.S. 46 de 1988. 226

376 U.S 254 de 1964

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90

comprometidas com questões públicas importantes, as tornam mais tolerantes ao

assédio da imprensa e também há de se levar em consideração que existe um interesse

da sociedade em se obter informações sobre elas. Se as expressões não forem falsas ou

proferidas com ‘má-fé’ (actual malice), deve prevalecer o freedom of speach227

.

Na atualização, os magistrados concordaram que as charges ou caricaturas são

baseadas na exploração dos traços físicos infelizes ou eventos embaraçosos, não há

como a expressão não ferir os sentimentos do sujeito representado, e, caso essa seja a

interpretação fornecida, os artistas satíricos estariam submetidos a repetidas e vultosas

indenizações. Enveredou, dessa maneira, por desconsiderar que as expressões satíricas

pudessem ser ultrajantes ou desgastantes emocionalmente para as figuras públicas.

A demonstração nos faz inferir que: 1) Os titulares das expressões artísticas não

estão obrigados, diretamente, às subjetividades dos particulares no que concerne aos

direitos da personalidade; 2) É categórico investigar o animus do artista em sua

expressão, terminantemente será proibido utilizar a arte para fins que não sejam

estritamente artísticos (tópico 2.2.5) ou dispô-la como artifício para intencionalmente

lesar direitos de outrem; 3) Na análise de expressões artísticas com forma/roupagem

naturalmente ofensivas, devemos segregar sua forma de exteriorização do seu núcleo de

expressão; e 4) Algumas pessoas públicas (famosos ou agentes públicos) possuem uma

relação com os direitos da personalidade relativizada, já que é no espaço público que

exercem seus deveres ou profissões, cedendo, voluntariamente, a intimidade típica da

autoexposição e da autoapresentação.

4.1.4 Censura e licença (limite dos limites)

227

ROSENFELD, Michel. Hate Speech in Constitucional Law Jurisprudence: a comparative analysis.

Working Papers Series 41/11, 2001. Disponível em

<http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=265939>. Acesso em: 27 jun. 2013.

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O inc. IX, art. 5º, da CF, quando afirma que é livre a expressão artística, reforça

o sentido da liberdade, ratificando sua independência relativamente a censura e a

licença. O que significa para a ciência do direito censura e licença? Jurídico-

dogmaticamente os dois representam limites dos limites, isto é, limitações a que o

legislador estará submetido quando estabelece restrições ao pleno e ilimitado exercício

de direitos fundamentais228

.

A proibição de censura igualmente está prevista no direito da comunicação

social, art. 220, §2º, vetando qualquer “censura de natureza política, ideológica e

artística”, figurando um rol exemplificativo229

de conteúdos, os quais o Estado, por

convicções próprias, deve se eximir em valorizar com intuito de impedir as ações do

exercício do direito da comunicação social.

A “licença” significa uma autorização para uma manifestação230

, o que

subjugaria a expressão artística do particular a uma homologação concedida por

autoridade estatal ou até mesmo por um terceiro. Deste modo, está terminantemente

defeso que o legislador, em geral, crie situações em que a atividade artística esteja

submetida a uma aquiescência.

A interdição de licença não deve ser confundida com “a licença” 231

prevista na

lei que regula as obrigações e os direitos relativos à propriedade intelectual, vistos que,

o texto infraconstitucional se fundamenta em concretização do direito fundamental do

autor, expresso no art. 5º, inc. XXVII e XXVIII, da CF, a partir de suas respectivas

reservas legais.

228

Os limites de limites estão contidos nos próprios direitos fundamentais. PIEROTH, Bodo; SCHLINK,

Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p.

81. 229

“Inclusive moral, não apenas da censura de natureza política, ideológica e artística” SILVA, José

Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores LTDA., 2001, p. 64. 230

Nesse sentido: MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio.

São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 80; e BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives

Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo:

Saraiva, 1989, p. 59. 231 Lei n.º 9.279/96, Capítulo VIII – Das Licenças.

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Ao seu modo, a “censura” guarda uma definição diferenciada. A origem da

palavra permeia o cargo político da Roma Antiga, quando os “censores” eram

responsáveis pela fiscalização da conduta moral dos cidadãos. Por isso, sua acepção

moderna indica que o Estado, por meio da censura, impede ou controla certas

informações, opiniões e expressões. Todo procedimento do Poder Público que tenta

obstruir a livre comunicação devido ao estabelecimento de certos valores que devem ser

seguidos pela sociedade, retrata a censura.

A doutrina, no intuito de evitar posições arbitrárias e unilaterais baseadas em

juízos de conteúdos, reconhece o Princípio da Incensurabilidade232

, de procedência

norte-americana (non interference or no censorship principle). O princípio respalda-se

na antinomia ontológica que existe entre democracia e censura, ganhando relevo pela

observância que imprime não só ao Estado, mas também a toda e qualquer entidade ou

poder233

que esteja em condições de fazer uso da censura, na manutenção do regime

democrático.

Alguns juristas separam a censura em dois momentos distintos: a prévia e a

posteriori. Enquanto a prévia esteia-se no impedimento de uma exposição fotográfica,

exibição de um filme ou coíbe a publicação de um livro ou a apresentação de peça

teatral em virtude da sua temática; a segunda, por sua vez, extingue o efeito da obra

artística, embora a comunicação já tenha alcançado certos recipientes, quando se retira

uma obra de circulação, um filme de cartaz ou se cancela a apresentação de um

espetáculo234

.

232 Nesse sentido: FARIAS, Edilsom. Liberdade de Expressão e Comunicação. São Paulo: Editora

Revista do Tribunais, 2004, p. 77. 233

Igrejas, partidos, organizações profissionais etc.: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra.

Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989,

p. 60. 234 Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do

Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 59; e MEYER-PFLUG,

Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2009, p. 80.

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93

No entanto, desconsideramos a censura como uma proibição a posteriori ou

repressiva, absoluta somente será o veto à censura prévia. A sistemática da Lei

Fundamental prevê diversas medidas de controle e de repressão, como aquelas previstas

nos inc. V e X do art. 5º, CF (direito de resposta e direitos da personalidade,

respectivamente), ou seja, mediante concretização dos citados direitos fundamentais

tanto a sentença judicial como a lei ordinária poderão impor, fundamentadamente, a

repressão a manifestações que sejam incompatíveis com os direitos fundamentais

protegidos pelos incisos V e X235

.

O limite dos limites que representa a censura, como ordem prévia, significa a

inibição de uma expressão que o titular do direito pretenda divulgar, “a proibição de

censura não obsta, porém, que o indivíduo assuma as consequências, não só cíveis, mas

penais, do que expressou”236

.

4.2 CONFLITOS ENTRE LIBERDADE ARTÍSTICA E OUTROS BENS JURÍDICOS

De acordo com a exposição, vimos que somente o direito constitucional

colidente é o legítimo limite ao exercício do direito à expressão artística. Inúmeras são

as contingências em que os conflitos poderão se dar na práxis, em todas elas,

precisamos partir de um referencial teórico forte sobre a área de proteção do direito

constitucional, isso porque, existem condutas não tuteladas que podem ser excluídas

desde o início da investigação sobre a inconstitucionalidade de uma norma abstrata ou

de uma interpretação feita por órgãos estatais.

Para delimitar com mais precisão a área de proteção normativa da liberdade

artística, vamos analisar certos bens jurídicos constitucionais que se embatem

(recorrentemente, como um atributo até histórico) em concreto com a manifestação da

235 PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 192-193. 236 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; COELHO, Inocêncio Mártires; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso

de Direitos Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 452.

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94

liberdade artística. Nosso escopo é esgotar cada vez mais o exame da liberdade-

parâmetro, pela via do questionamento sobre a justificação da intervenção na área de

proteção do exercício artístico por um limite constitucional previsto para a liberdade,

que por sua vez deve ser contralimitado pelo critério da proporcionalidade, afastando-se

a ponderação.

A ponderação judicial precisa ser utilizada como exceção. O respeito à

dignidade da legislação não é nada mais do que o respeito ao próprio regime

democrático. “As ponderações já foram feitas, resultou delas a lei. Se há algum ator

principal desse Estado, ele se chama povo, por intermédio de seus representantes

eleitos”237

. Destarte, persistir na investigação jurídico-dogmática sobre as delimitações

da liberdade artística é necessário para que se possa obstar a inconstância e

inconsistência ponderativa238

.

4.2.1 Obras artísticas obscenas e pornográficas

Obsceno vem do vocábulo latino fora de cena (ob = fora, scena = cena), aquilo

que não deveria ser mencionado em público. Existem atos legítimos fora de cena, quer

dizer, em lugares privados, e que são proscritos em cena, vistos e ouvidos sem

hipocrisias, eufemismos ou pudores, são os atos obscenos. Quanto à pornografia,

expressão do grego pornographos, significa escrever sobre as rameiras, ou seja, a vida

237

TORRES, Ricardo Lobo apud SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição

Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 14. 238

Nesse sentido “Por isso, o controle da proporcionalidade em sentido restrito corre sempre o perigo de

fazer valer os juízos subjetivos e os pré-juízos daquele que controla, apesar de todos os esforços de

racionalidade. Não é justificável o fato de o Tribunal Constitucional Federal, que exerce o controle,

colocar os seus juízos subjetivos acima dos do legislador controlado. Pelo contrário, nos casos em que

apenas podem ser emitidos juízos meramente subjetivos, aí começam o âmbito e a legitimidade da

política. A proporcionalidade em sentido restrito tem um valor posicional totalmente diferente na

Administração e na jurisprudência que controla a Administração; o legislador é tão livre de autorizar a

Administração, apesar de todos os esforços de racionalidade, a uma pesagem e ponderação, em última

análise subjetiva, como a jurisprudência é livre para colocar o seu juízo subjetivo acima do da

Administração” PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II.

Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 110

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95

de sexualidade luxuriosa das prostitutas sendo retratada239

. A relação entre obscenidade

e pornografia se traduz em: a primeira é gênero, donde a segunda é uma de suas

espécies240

.

Fica evidenciado, literalmente, que aquilo que é obsceno está fora do contexto

das “regras sociais”, refletindo a ideia de uma moral coletiva. Quando nos deparamos

com uma obra artística obscena a julgamos da perspectiva massificadora de uma suposta

moralidade pública, mas como não esbarrar em um fanatismo moral ou puritanismo,

que consistem na realidade em autoritarismo abstrato?241

.

A Constituição assegura a moralidade individual, por meio do art. 5º, inc. X, que

estatuiu o dano moral, em contrapartida não se fala em proteção constitucional a moral

coletiva ou aos bons costumes242

. Ao contrário, a Lei Fundamental assegura o

pluralismo, seja ele político (art. 1º, V), quanto o pluralismo de ideias e de cultura (art.

206, III). Mesmo ao certificarmos que a moralidade individual é um reflexo de uma

hipotética moralidade pública, os valores são solidários243

, de sorte que, se um deles é

posto à margem, todos serão indiretamente atingidos.

Os produtos artísticos obscenos, quando estão envolvidos pelo momento

estético-sensorial devido, não ferem, nem violam nenhum bem jurídico-constitucional,

não devendo prevalecer soluções pela restrição artística, predominante é a liberdade de

expressão que só é limitada pelo direito constitucional colidente e não por uma fictícia

239

SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores

LTDA., 2001, p. 68. 240

Outra espécie é o ‘erotismo’ que se destaca pelo fato de não se vincular diretamente ao sexo, enquanto

que a pornografia encontra no sexo e na sexualidade seu espaço privilegiado. Dessa forma, o erotismo

estaria mais próximo do sexo implícito (portanto aceitável) e a pornografia do sexo obsceno, direto,

explícito e comercializável. Porém, distinções desta natureza podem nos conduzir a práticas

preconceituosas! Afinal de contas, erótico ou pornográfico, depende dos contextos histórico, cultural ou

moral onde esses fenômenos estão inseridos. 241

Ibid., p. 70. 242

A moral e os bons costumes expressos nas “cláusulas abertas” da legislação civilista em diversos

dispositivos, a exemplo dos arts. 13, 122, 187, 1.336, IV e 1.638, III, lei. n.º 10.406/2002, precisam ser

determinadas por uma interpretação conforme os direitos fundamentais. 243

Ibid., p. 70.

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moralidade pública. Além do mais, a interpretação sobre o que realmente é obsceno ou

pornográfico já sofreu, não raramente, mudanças substanciais na sociedade, vejamos

alguns exemplos.

Considerado o pai do simbolismo, Charles-Pierre Baudelaire em 1857 publicou

o poema ‘As flores do mal’244

, recolhido pouco tempo depois devido à acusação de ser

pernicioso e obsceno tendo em visto o parâmetro dos bons costumes. Baudelaire e seu

editor foram condenados a pagar multa por ofensa à moral pública, suprimindo seis

poemas de sua obra para que ela pudesse voltar a circular. ‘As flores do mal’, na sua

versão sem cortes, só fora restituída em 1868, numa edição póstuma.

Na década de 20, do século XX, o romance ‘Ulisses’ de James Joyce,

considerado contemporaneamente como um marco da literatura moderna, fora

censurado nos Estados Unidos (além de outros países de língua inglesa), e os seus

editores condenados por publicarem obscenidades. A lei de censura incidia, inclusive,

sobre a fiscalização de agências de correios que retinham os romances que entravam no

país, permanecendo na clandestinidade até 1933.

Naquele ano, o juiz distrital John M. Woolsey proferiu sentença que autorizava a

entrada de ‘Ulisses’ nos Estados Unidos, na sua fundamentação considerava o

magistrado que para se chegar a qualquer conclusão sobre uma obra literária é

necessário bastante tempo refletindo sobre o seu propósito e, depois de pontuar que

dedicara diversas semanas para refletir sobre ‘Ulisses’, após lê-lo na íntegra, chegava à

244

“Assim eu quisera uma noite, quando a hora da volúpia soa, às frondes de tua pessoa subir, tendo à

mão um açoite, punir-te a carne embevecida, magoar o teu peito perdoado e abrir em teu flanco assustado

uma larga e funda ferida, e, como êxtase supremo, por entre esses lábios frementes, mais deslumbrantes,

mais ridentes, infundir-te, irmã, meu veneno!” As três últimas estrofes de ‘A que está sempre alegre’,

poema censurado.

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conclusão que: “[...] em ‘Ulisses’, apesar da sua invulgar fraqueza, não vejo em parte

alguma a malícia da sensualidade. Considero, portanto, que ele não é pornográfico.”245

.

Nelson Rodrigues, dramaturgo brasileiro mais representado, autor da peça

‘Vestido de noiva’ (1946)246

, considerada marco inicial do teatro moderno brasileiro,

apesar de seu sucesso na crítica e na sociedade até a atualidade, teve diversas peças

censuradas, destacando-se, ‘Álbum de família’, ‘Anjo negro’, ‘Senhora dos afogados’ e

‘Boca de ouro’. As peças afrontavam a moral pelos conteúdos incestuosos, cenas

demasiadamente insinuadas de sexo e de perversões sexuais, traições, prostíbulos etc.

Outros artistas, editores e produtores foram censurados ou reprimidos pela

obscenidade que imprimiram as suas obras247

, segundo um ponto de vista

exclusivamente moral. Nunca será suficiente recordar que os regimes tirânicos se

apoiaram por muitos anos “na proteção de uma ordem e moral pública”, impondo

constantemente seus valores autoritários248

, razão pela qual o constituinte outorgou a

liberdade artística sem reserva legal, em virtude de sua fragilidade e, por conseguinte, a

cautela que o operador do direito deve apresentar, evitando a estipulação de “falsos”

limites.

245

Disponível em <http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2013/06/a-sentenca-que-liberou-ulisses-de-

joyce.html>. Acesso em: 15 jun. 2013. 246

OMS, Carolina. Nelson Rodrigues e Censura Teatral. Revista Anagrama. São Paulo, ano 2, p. 1-14,

fev. 2008. Disponível em <http://www.usp.br/anagrama/Oms_Rodrigues.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2013. 247

Como Ney Matogrosso, que teve o álbum ‘Calabar’ censurado em 1973; Márcia X que em 2006 teve

sua obra ‘Desenhando com terços’ retirada da exposição ‘Erótica – Os sentidos da arte’, promovida pelo

Centro Cultural Banco do Brasil; Larry Flynt, nos EUA, que participou de diversas batalhas judiciais,

tendo sido processado várias vezes pelo conteúdo pornográfico de seus vídeos e revistas, sua vida foi

retratada no filme ‘O Povo Contra Larry Flynt’; o pintor espanhol Pablo Picasso que no final de sua

carreira se tornou mais ousado, sua obra mais colorida e expressiva, e de 1968 a 1971, ele produziu uma

torrente de centenas de pinturas e gravuras de cobre. Ao mesmo tempo, estas obras foram rejeitadas pela

maioria como fantasias pornográficas de um homem impotente. Só mais tarde, depois da morte de

Picasso, quando o resto do mundo da arte mudou-se do expressionismo abstrato, a comunidade fez

críticas ao trabalho de Picasso e percebeu que ele já tinha descoberto o neo-expressionismo e esteve,

como tantas vezes antes, à frente de seu tempo; etc.. 248

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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98

É certo que diante do bem jurídico-constitucional “proteção da infância e

juventude”, as obras artísticas de conteúdo pornográfico sofrerão algumas restrições,

tanto na área de criação como na do efeito, isso porque, a pornografia é expressão que

estimula pensamentos e desejos sexuais, sendo a criança e o adolescente imaturos para

refletir e reagir sobre esses tipos de provocações.

O ECA (Lei federal n.º 8.069/90), nesse desiderato, dispõe em seus artigos,

obrigações para editores de revistas pornográficas envolverem as capas de seus

periódicos com embalagem opaca (art. 78) e, ainda, penas distintas para aqueles que

transmitirem, publicarem, distribuírem, divulgarem, venderem, adquirerem,

armazenarem e, por qualquer outro meio, registros que contenham cena de sexo

explícita ou pornográfica envolvendo criança e adolescente (arts. 241, 241-A, 241-B).

O ECA, como concretização da reserva legal contida no art. 220, §3º, da CF,

demanda intervenções estatais na liberdade artística, vistas supra. No que concerne, a

justificação da ingerência poderá ser auferida pelo critério da proporcionalidade (limite

dos limites), mediante o exame sucessivo e eliminatório, respectivamente, da análise do

emprego do meio para alcançar o fim – adequação; e do emprego do meio para atingir

ao fim que seja indispensável porquanto, na comparação com meios alternativos

igualmente adequados, implique a menor onerosidade ao direito fundamental atingido –

necessidade249

.

A pornografia, principalmente aquela voltada à comercialização do sexo, vem

dividindo feministas do mundo inteiro sobre o traço ofensivo, que em termos de bens

jurídicos poderíamos apontar a liberdade sexual e a igualdade de gênero, presentes no

seu conteúdo. Essa indústria pornográfica seria incentivadora de um tratamento da

mulher objeto e subordinada ao homem, fomentando sua humilhação, silenciando-as e

249

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 82.

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99

prejudicando a busca da igualdade entre os sexos (a própria origem etimológica da

palavra pornografia remete às prostitutas, como visto)250

.

Não negamos que os argumentos supra sejam procedentes, contributivos a

misoginia. No entanto, como acontece com todas as outras comodidades culturais que

desfrutamos, é preciso que reflitamos, incessantemente, sobre a pornografia que a

sociedade consome. Outras escritoras feministas251

vislumbraram na pornografia uma

forma de responder às imagens dominantes com imagens alternativas, criando sua

própria iconografia, rompendo com estereótipos de beleza e de classe sobre o sexo.

Por tudo isso, apesar da pornografia industrializada do sexo fazer uma leitura

ultrajante da mulher, não se vislumbra qualquer efeito para se levar a proibição da sua

divulgação, mesmo odiáveis e passíveis de repúdio por parte da sociedade as

manifestações têm tanto direito de proteção quanto qualquer outra forma de

expressão252

. Mesmo que as feministas conseguissem convencer certo número de

parlamentares a aprovarem um sistema político com leis restritivas à expressão artística,

incerta seria a passagem de tal norma limitadora pelo crivo constitucional

posteriormente.

4.2.2 Obras de arte em propriedade pública e privada (arte urbana)

A arte urbana surge a partir da cena underground253

, movimento que foge dos

modismos que se relacionam às produções culturais (ou à arte erudita). Como o nome

sugere, as manifestações artísticas são realizadas primordialmente no espaço público, o

250

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 251

Entre elas, Erika Lust, Tristan Taormino, Anais Nin, Hilda Hilst etc.. 252

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.

São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 351. 253

Cultura alternativa ou cultura marginal, focada principalmente nas transformações da consciência,

dos valores e do comportamento, na busca de outros espaços e novos canais de expressão para o

indivíduo nas pequenas realidades do cotidiano.

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100

que não impede que sejam desenvolvidas em ambientes privados, todavia, como

movimento, a arte urbana é ensejadora da transformação da paisagem pública, tornando-

a mais interessante, verdadeiro canal para a comunicação artística gratuita e

desembaraçada de meios intermediários entre a obra de arte e o recipiente.

Existem várias manifestações de street art, muito comuns em metrópoles,

incluindo, entre outras, as estátuas vivas, os músicos de rua, artistas circenses

(malabarista, palhaços etc.), intervenções performáticas, flash mob, cartazes lambe-

lambe e o grafite (graffiti). Todas as manifestações se destacam pela acessibilidade de

seu conteúdo, pela democratização da arte que é levada a todos os cidadãos

cotidianamente, proporcionando, em sua rotina mais hermética, a chance de se deparar

com umas dessas expressões, já que elas estão no ambiente público e comum.

Em virtude da realização das artes urbanas podemos vislumbrar algumas

colisões a bens jurídico-constitucionais, em primeiro lugar, avaliemos às artes de caráter

performático, ou seja, aquelas que ocorrem mediante artistas na rua. A arte ao ar livre,

nos espaços comuns, está dentro da área de proteção do direito a liberdade artística, não

havendo restrições constitucionais à manifestação com o uso de coisas públicas254

(excetuando o meio ambiente como bem jurídico-constitucional, como veremos a

seguir).

Conquanto, de acordo com o declarado sobre comportamentos de titulares da

expressão artística que, a priori, estão excluídos da área de proteção do direito, quando

a performance estiver deliberadamente (dolosamente), atingindo direito ou bem de

terceiro alheio, a manifestação não estará amparada constitucionalmente, é o caso de

254

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo).

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alguns happenings que podem ter o condão de violar o direito de locomoção dos

indivíduos ou até mesmo inviabilizar por completo o trânsito das ruas.

Nesses casos, a liberdade artística geralmente sofre cerceamento pelo poder de

polícia, que tenta estabelecer a “ordem pública”, ou melhor, a normalidade para o

trânsito de pessoas. No intuito de evitar esses embates, acatamos o que explana

Leonardo Martins255

, na medida em que remediá-los consistiria, caso não seja

absolutamente necessário para área de criação e efeito da obra artística, em avisar à

autoridade competente sobre a performance.

Não estamos realizando com essa medida de solicitação uma transposição de

limites, no caso importado o aviso prévio da liberdade de reunião (art. 5º, XVI, CF),

pois, o aviso que estamos cuidando não condiciona a expressão artística, não a torna

ilegal caso seja olvidado pelo artista, apenas tem a faculdade de protegê-lo,

salvaguardando o transcorrer sem embaraços de sua manifestação artística.

Sem esgotar o tema, temos outras formas conhecidas da arte urbana na

modalidade de grafismos, englobando o estêncil256

, o sticker257

e o grafite, esta última a

mais famosa e polêmica das urbanografias. O grafite, muito confundido com

pichação258

, é a inscrição de desenhos ou palavras em paredes públicas feitas com o

spray de aerossol, expressão artística da cultura hip-hop – fundamenta-se, esta, no rap

(música), no breakdance (dança) e no grafite (artes plásticas).

255

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 256

Estêncil é considerado uma forma do grafite por utilizar o spray de aerossol na sua técnica também, a

ilustração é feita primeiramente em uma prancha perfurada, onde a tinta irá preencher o desenho vazado

que ficará ilustrado na parede. 257

Stickers são etiquetas adesivas afixadas nas paredes, elas se distinguem dos cartazes lambe-lambe, por

que este utiliza colas caseiras ou comerciais mais difíceis de sair. 258

A pichação é a inscrição de palavras e desenhos em paredes públicas sem o lastro de conteúdo

artístico, utilizada muitas vezes para manifestação de insultos, denúncias político-sociais e marcação de

territórios de gangues.

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A cultura hip-hop, natural dos Estados Unidos, espalhou-se para todo o mundo, e

um de seus expoentes é a expressão artística refletida na realidade das ruas, há no Brasil

eminentes artistas do grafite259

. Mesmo com a identificação desse contexto, o graffiti já

foi considerado juntamente com a pichação, formas de conspurcação das edificações e

dos monumentos urbanos260

, sendo descriminalizado apenas no ano de 2011, com

advento da lei n.º 12.408/11.

O §2º, art. 65, da lei de crimes ambientais agora verseja que o grafite além de

não se constituir crime é uma manifestação artística que valoriza o patrimônio público

ou privado, desde que a inscrição do grafite seja consentida pelo proprietário do bem

privado e, no caso de bem público, mediante a autorização do órgão competente,

devendo ser observadas, ademais, os monumentos do patrimônio histórico e artístico

que não devem ser grafitados.

A lei de crimes ambientais possui lastro em bem jurídico-constitucional, qual

seja, o meio ambiente (art. 225, CF). O bem de uso comum do povo e essencial à

qualidade de vida abrange, necessariamente, o meio ambiente urbano, onde sabemos

que vive a maioria demográfica261

em nosso país. Portanto, a pichação é considerada

crime pelo dano que causa ao ordenamento urbano, diminuindo a qualidade de vida de

todos por conferir maior poluição visual aos centros urbanos.

No que tange, ao limite expresso à manifestação artística do tipo grafite,

prescrita no §2º, art. 65 da lei n.º 9.605/98, percebemos uma potencial

inconstitucionalidade do dispositivo: a norma infraconstitucional afirma que o grafite é

uma manifestação artística, de sorte que, contará com a proteção do direito fundamental

259

Entre eles, Marcelo Ment – pioneiro na cena carioca do grafite; Fabah Zadok – atua nas ruas de São

Paulo, resgatando a lembrança do trabalho e do sofrimento do povo africano; e Carlos Esquivel – ativista

da arte urbana, possui um traço mais comunitário e político-social. 260

Antiga redação do art. 65, da lei n.º 9.605/98, Lei dos crimes ambientais. 261

Fenômeno da urbanização que passa de 70% em todas as cinco regiões do Brasil, de acordo com o

Censo 2010. Disponível em <http://censo2010.ibge.gov.br/apps/atlas/>. Acesso em: 18 jun. 2013.

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inscrito no inc. IX, art. 5º da CF, este, conforme analisado, além de se desenvolver de

forma livre, será, independente de censura ou licença (autorização).

Ao contrário do que comanda a Lei Maior, a legislação ordinária condiciona o

grafite à autorização e ao consentimento. Este último deve ser dirigido ao particular,

nesse caso, proprietário de um bem privado que deve anuir, concordar, admitir que o

titular da liberdade artística possa produzir obra artística do tipo grafite na sua

propriedade. A aquiescência do proprietário vai se unir ao que expusemos,

anteriormente, sobre a impossibilidade de uma manifestação artística que lesa direito ou

bem jurídico alheio arbitrariamente262

.

Difícil se mostra a questão que concerne à autorização ao órgão competente, na

oportunidade da expressão grafite acontecer em bem público. Primeiro, o §2º tem o

fulcro de proteger os patrimônios históricos e culturais nacionais, bens de lastro

jurídico-constitucional, constantes em diversas normas da Constituição (art. 215 ss.

referentes à proteção da cultura em geral; art. 24 que fala da legislação concorrente

entre União e Estados para proteção do patrimônio cultural; e art. 30 que promove a

competência de legislação municipal no mesmo desiderato).

Apesar do lastro constitucional, intuitivamente263

o propósito do §2º, art. 65, lei

n.º 9.605/98, nos soa como ilícito, pois, a sua restrição é contrária ao direito

fundamental da liberdade artística, na literalidade, enquanto o inc. IX diz que não

haverá autorização para o exercício das artes, a contrario sensu o §2º afirma que o

grafite deverá ser autorizado para que possa se manifestar no espaço público.

262

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 263

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 190.

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104

A função legislativa, de não promulgar leis que sejam incompatíveis com o

direito fundamental da expressão artística, resta comprometido, o ato normativo é

violador da liberdade em tema, além disso, violador da supremacia constitucional264

. É

certo que, diante de uma norma infralegal eivada de inconstitucionalidade, a função

executiva deverá interpretar tal norma à luz da liberdade-parâmetro, isto é, do direito

fundamental da expressão artística, optando pela não aplicação do dispositivo que é

incompatível com a norma suprema265

.

Tanto as medidas administrativas como os atos normativos podem ser revistos,

por sua vez, na função judiciária, que possui o dever de interpretar às leis conforme a

norma constitucional, ou melhor, a interpretação será orientada pelo direito

fundamental266

, afastando sua aplicabilidade devido ao seu caráter violador da liberdade

fundamental. Ao STF competirá a declaração da inconstitucionalidade da lei

supramencionada, por intermédio do controle abstrato ou pelo recurso extraordinário267

.

Como anteriormente assinalado, há uma contradição entre o §2º do art. 65 da lei

n.º 9.605/98 e o art. 5º, IX, CF, caso a incumbência de resolução da questão chegasse ao

STF, como guardião da Constituição (art. 102, caput), como deveria a Corte se

posicionar no tocante a constitucionalidade da norma objeto? Entrementes, assinalamos

que há amparo de dignidade constitucional no §2º do art. 65, por isso, seguimos no

exame dos limites dos limites.

264

“A supremacia da Constituição revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do sistema, que se

estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o fundamento de validade de todas as demais

normas. Por força dessa supremacia, nenhuma lei ou ato normativo — na verdade, nenhum ato jurídico —

poderá subsistir validamente se estiver em desconformidade com a Constituição.” BARROSO, Luís

Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.

23-24. 265

“Os órgãos do Poder Executivo, como órgãos destinados a dar aplicação às leis, podem, no entanto,

ver-se diante da mesma situação que esteve na origem do surgimento do controle de constitucionalidade:

o dilema entre aplicar uma lei que considerem inconstitucional ou deixar de aplicá-la, em reverência à

supremacia da Constituição.” Ibid., p. 60. 266

“Essa decisão tem de fazer valer os direitos fundamentais e interpretar o direito ordinário de forma a

proteger os direitos fundamentais e a preservar e a promover a liberdade.” PIEROTH, Bodo; SCHLINK,

Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2008, p.

58. 267

BARROSO, op. cit., p. 50-51.

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Para uma decisão juridicamente correta a Corte deveria avançar no diagnóstico

da constitucionalidade, avaliando os subcritérios da proporcionalidade. A primeira

indagação é sobre a adequação do meio (a sanção), se ela se mostra eficaz na promoção

do fim (proteção do patrimônio artístico e cultural nacional), o que podemos responder

positivamente, de fato, a sanção é um instrumento que funcionar na coibição de

condutas indesejadas pelo Estado. Uma sanção que tem função de resguardar o

patrimônio artístico e cultural (bem constitucional) parece-nos plenamente eficaz.

Contudo, falta perquirir a necessidade do meio, será a sanção, prevista para as

expressões artísticas do tipo grafite que forem realizadas em bem público sem

autorização, o meio menos oneroso à liberdade artística? Nesse ponto sustentamos a

desnecessidade do meio, uma vez que, existem situações menos onerosas aos titulares

do direito fundamental à liberdade de expressão artística (o §2 poderia ter sido redigido,

por exemplo, apenas com a vedação do grafite ser praticado em patrimônio cultural,

mas ele acabou exigindo uma autorização em abstrato, para qualquer manifestação

artística em espaço público).

4.2.3 O corpo como objeto da arte (body art)

Quando o artista decide utilizar o seu corpo ou o de terceiros como suporte ativo

para a linguagem artística, na qual o corpo em si não é tão importante quanto aquilo que

é feito dele268

, algumas colisões podem aparecer com outros direitos fundamentais, tais

como: o direito fundamental à vida (art. 5º, caput, CF), à incolumidade física (derivado

do aspecto negativo do direito à saúde – arts. 6º e 196, CF) e ao princípio da dignidade

da pessoa humana (art. 1º, III, CF) 269

.

268

SANTANELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São

Paulo: Paulus, 2003, p. 261. 269

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

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106

Potencialmente violadoras de direitos fundamentais serão as obras artísticas em

que há suicídio, mutilações (a prática conhecida contemporaneamente como lifting ou

suspensão de corpos e escarificação270

), estupro etc.. Entendida a automutilação e o

suicídio como exercício negativo dos direitos à incolumidade física e à vida, nesse

mesmo sentido, o Código Penal, mediante adoção do princípio da alteridade271

, não

criminaliza as condutas cujo fundamento seja a autolesão, o que torna inconstitucional

uma restrição perpetrada pelo Estado a qualquer apresentação artística que exiba tais

atitudes, v.g, uma peça teatral em que representando um personagem cuja fé religiosa

comete os suplícios da carne, o ator verdadeiramente (para aumentar a dramaticidade

real) se chicoteia em cena aberta.

Seguindo o mesmo exemplo, se, ao invés de provocar autoflagelações durante a

dramaturgia o autor agisse agressivamente com relação a um terceiro? Se estuprasse um

ator/atriz com quem contracena? Se agredisse fisicamente um espectador da plateia (nas

técnicas de interação com os recipientes no processo criativo)? Em primeiro lugar,

algumas condutas deixam de ser penalmente sancionáveis quando o consentimento está

vinculado à ação, isto é, não se pode falar em estupro quando a mulher ou o homem

estão de acordo. Consequentemente, mesmo que os atores decidam por reproduzir o

sexo (a cena de estupro) com plena veracidade, violentamente, se os intérpretes

consentiram, afastado estará o tipo penal (as ações que fugirem da intensidade admitida

pelas partes poderão ser questionadas).

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 270

Esta técnica é realizada pela marcação do corpo com um material cortante, retirando uma camada da

pele, para quando houver a cicatrização a marca permaneça no corpo. Já foi utilizada para marcar

escravos e prisioneiros. 271

“Só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas em que não é

simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral [...] À conduta puramente interna, ou puramente

individual, falta a lesividade que pode legitimar a intervenção penal.” BATISTA, Nilo. Introdução

Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 91.

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107

Apesar disso, agressões dirigidas a um recipiente da obra artística, na sucessão

de improvisações com a participação do público ou com o próprio elenco da peça,

quando ensejam uma agressão física ou qualquer forma penalmente punida, mesmo se

efetuando em momento sensorial-estético, predispõe uma intervenção estatal justificada

ao direito de expressão artística.

Complexas serão as apreciações das obras artísticas que motivam ofensas à

dignidade da pessoa humana, como alguns extremistas representantes da body art272

.

Esse movimento, cujo ápice foi na década de 70, chegava a apresentar as simples

funções fisiológicas da respiração ou de excrementos humanos como obras de arte.

Algumas das performances eram perturbadoras como a de Vito Acconci, Seedbed,

quando o artista permanecia três dias por semana sob uma rampa da Sonnabend Gallery,

Nova Iorque, se masturbando enquanto os visitantes entravam no local, embora não

pudesse ser visto em seu ato, seus gemidos e seus sussurros eram amplificados273

.

Destacam-se como representantes do body art, o francês, Yves Klein, que

utilizava modelos nuas cobertas de tintas, movendo-se em telas grandes para formar

imagens com a impressão do próprio corpo, como pincéis vivos; e o italiano Piero

Manzoni que defecou em 90 latas, etiquetando-as com o título “Merda de Artista” e saiu

distribuindo-as em diversas galerias e coleções de arte.

O princípio da dignidade da pessoa humana está inscrito em nossa ordem-

constitucional entre os fundamentos da República Federativa do Brasil, o que já sustenta

a seguinte apreciação: a dignidade da pessoa humana não é um direito fundamental, mas

272

A exemplo dos “Ativistas de Viena” e o trabalho do austríaco Rudolf Schwarzkogler. 273

SANTANELLA, Lucia. Cultura e Artes do Pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São

Paulo: Paulus, 2003, p. 261.

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108

faz parte dos direitos fundamentais274

, como uma orientação jurídico-objetiva,

vinculando os poderes públicos a sua observação.

Basicamente, existem duas concepções sobre como poderíamos determinar a

área de proteção do princípio do art. 1º, inc. III, da CF275

: a que considera a dignidade

da pessoa humana um valor, intrínseco a natureza dos homens; e, a segunda, que deixa

claro que é por intermédio de suas realizações que o indivíduo determina o que constitui

a sua dignidade.

Immanuel Kant é o filósofo moderno que elaborou a acepção valorativa da

dignidade humana. De acordo com o seu pensamento, correspondia a uma imoralidade

tratar os homens como meios, ou seja, coisificar os seres humanos, visto que os

indivíduos, pela única razão (qualidade) de serem homens, não possuem preço, mas sim

dignidade, logo, devem ser sempre fins276

, nunca deverão ser meios para o uso arbitrário

desta ou daquela vontade277

.

Quanto ao aspecto das realizações, será decisivo para delimitar a dignidade da

pessoa humana sua conduta autônoma, em virtude daquilo que elege na formação da

identidade. Conquanto, insuficiente essa teoria se mostra ao tomarmos pessoas

incapazes de agir e querer em direção da realização e da formação de uma identidade,

nesses casos, a teoria valorativa pondera positivamente pelo respeito desses indivíduos

em particular278

.

A teoria kantiana foi aplicada diversas vezes pelo Tribunal Constitucional

Federal alemão, servindo-se da fórmula-objeto que apontava uma intervenção estatal na

274

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 104. 275

Ibid., p. 105. 276

Nesse mesmo sentido: “Tratar a humanidade como um fim em si implica do dever de favorecer, tanto

quanto possível, o fim de outrem. Pois, sendo o sujeito um fim em si mesmo, é preciso que os fins de

outrem sejam por mim considerados também como meus.” COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação

Histórica dos Direitos Humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 23. 277

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Lisboa: Edições 70, 2007, p. 67-

68. 278

PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 105.

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dignidade da pessoa humana todas as vezes que, determinado tratamento põe em dúvida

a qualidade de sujeito do homem, o cidadão seria transformado em simples objeto do

Estado, tamanho o desprezo arbitrário deferido279

.

O ensaio sobre a fórmula-objeto deixa uma questão pendente, visto que, somente

quando o Estado age arbitrariamente estará provocando violações à dignidade da pessoa

humana? E se ele não agir voluntariamente? A omissão do Estado também poderá

propiciar uma agressão à dignidade humana? É evidente que a atitude omissiva do

Estado também é nociva à dignidade. O poder estatal tem o dever de se abster em

possíveis ações e omissões violadoras da dignidade da pessoa humana e, ainda, proteger

a mesma dignidade perante agressões provenientes do exercício de direito fundamental,

destacando-se a liberdade artística.

Apesar da dificuldade de circunscrevermos quais são os comportamentos que

podem ser intitulados como “desprezíveis” ou “utilizadores do homem como meio”, a

garantia da dignidade da pessoa humana, possui uma função praticamente intuitiva que

é a de limite tabu, quando toda a sociedade sem saber como e os porquês exatos,

concorda com o fato de existir certas maneiras de lidar com os indivíduos que são

consideradas insuportáveis.

E no que tange a sua própria dignidade? Um artista poderá renunciá-la, a fim de

produzir uma expressão artística tal, que seja perceptivelmente violadora à dignidade? A

renúncia individual da dignidade inevitavelmente não compromete a dignidade de toda

espécie humana? Terá o Estado um papel de proteger o indivíduo contra si mesmo? Para

responder essas questões, primeiro, precisamos nos posicionar com relação à renúncia

de direitos fundamentais.

279

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 106.

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Falamos de renúncia a direitos fundamentais quando admitimos, legitimamente,

que o particular dispõe sobre a sua titularidade de direitos fundamentais ou, outrossim, a

permissibilidade que o indivíduo possui em admitir uma atuação estatal no âmbito de

proteção de seu direito fundamental280

. O entendimento da função clássica dos direitos

fundamentais nos habilita a presumir que, se o direito fundamental estiver associado ao

desenvolvimento pessoal do cidadão, sua renúncia é admissível281

; adversamente, como

princípio jurídico-objetivo, se o direito fundamental é imperioso no processo de

formação da vontade282

do Estado à presunção é pela inadmissibilidade da renúncia.

A dignidade da pessoa humana está configurada nesse último caso, obrigando,

irrestritamente, o Estado, seus dirigentes e todos os atores da cena política

governamental a respeitá-la283

, portanto, inaceitável sua renúncia, “incluindo o conteúdo

da dignidade da pessoa humana de outros direitos fundamentais”284

.

O valor da dignidade não pode ser encarado como uma vontade de realizar-se

libertariamente, mas “como um valor a ser preservado também no respeito de si

mesmo”285. Dessa construção extraímos a seguinte conclusão, caso o artista, em seu

livre exercício de criação, produza obra artística violadora de sua própria dignidade o

Estado poderá intervir justificadamente na atividade abusiva à dignidade da pessoa

humana.

A apresentação artística que acaba por transformar o corpo humano como um

simples objeto a favor da satisfação e do deleite estético, possivelmente será uma

expressão violadora do princípio-fundamento. Da relação sistêmica entre a dignidade da

280

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 71. 281

Ibid., p. 72. 282

Ibid., p. 72. 283

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 429. 284

PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 72. 285

MORAES, Maria Celina Bodin de. Dignidade humana e dano moral: duas faces de uma moeda.

In:___. Danos à Pessoa Humana: uma leitura civil constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro:

Renovar, 2003, p. 57-128.

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pessoa humana e os direitos da igualdade e da liberdade e, como cada sociedade possui

diferentes concepções e concretizações da dignidade da pessoa humana, as suas

violações serão consideradas a partir dos casos concretos286

.

No entanto, mesmo diante da objetivação do ser humano, é preciso que os outros

atributos que estamos reunindo nessa pesquisa sejam também estimados na justificação

de uma intervenção estatal que considere qualquer expressão artística agressora à

dignidade humana287

, tais como, o animus do artista-criador; a forma estética que é dada

a obra que, por seu turno, possui uma mensagem que é a sua razão de ser; e as múltiplas

interpretações que são extraídas do processo comunicativo arte. Ao passo que, mesmo

quando inequívoca a agressão da expressão artística à dignidade da pessoa humana, a

intervenção do executivo, judiciário ou legislativo se ocorrer de forma desproporcional,

será considerada um ataque doloso ao art. 5º, inc. IX da CF.

4.2.4 Obras artísticas e o discurso do ódio

O discurso do ódio (hate speech288

) representa a expressão de ideias,

posicionamentos, juízos de valores que incitam à discriminação sobre determinados

grupos sociais, instigando à violência e ao ódio contra as minorias, rejeitando a sua

286

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 104. 287

“Uma exposição itinerante intitulada Körperwelten causou bastante polêmica por onde passou.

Vislumbrou-se na exposição dos cadáveres sem pele uma violação da dignidade humana

independentemente da não identificação das respectivas pessoas mortas e até de sua prévia anuência. A

exposição como costuma acontecer junto a obras polêmicas dividiu os espíritos, tanto no quesito estético,

quanto no quesito jurídico-constitucional que aqui solitariamente interessa [...] Mas aqui, novamente, a

busca do núcleo da expressão e a rígida separação da roupagem estilística revelam o que basta para não se

poder verificar uma violação da dignidade humana. Como o título de outra exposição do cientista artista

revela, está nesse núcleo uma ode à Vergänglichkeit (passagem, precariedade) do corpo humano, i.e., à

condição humana por excelência, o que é totalmente compatível com o princípio constitucional da

dignidade humana. Que na roupagem estilística, o artista se valha de experimentos científicos e da

técnica, isso não retira o caráter de obra artística que, nesse caso intensamente, tem o condão de levar os

recipientes às mais diversas interpretações, com uma comunicação quase infindável de sentidos.”

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca Filho,

Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico e questões do

interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros, investidores e museus.

São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 288

Como o termo foi alcunhado e disseminado pela doutrina norte-americana.

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112

qualidade de sujeitos de direitos em uma sociedade na qual tais pessoas devem estar

subordinadas a um grupo dominante289

.

Para que possamos entender com detalhes o conceito enunciado supra, algumas

considerações são imperiosas. Discriminação é uma decorrência do preconceito de

grupo290

, preconceito per se é um juízo negativo que nasce da ignorância, da falta de

informação, da ideia equivocada e distorcida291

, percebendo, por assim dizer, que

determinado grupo social é inferior, rival e, consequentemente, deve se submeter a

outro grupo – o incitador das diferenças –, por este possuir as qualidades que as

minorias são desprovidas.

Apesar do termo “minorias” reportar-se a uma ordem numérica, as

discriminações poderão ocorrer a grupos quantitativamente mais expressivos, como no

caso do Brasil, em que a população negra e parda é maior292

que a branca, contudo,

quanto a distribuição de renda, educação e participação nos centros de poder aquela é

significativamente reduzida. Não há que se negar, outrossim, o fenômeno mundial do

“sexismo”293

, que vitimiza as mulheres até mesmo nos Estados em que são

numericamente superiores aos homens, posto que as questões históricas e culturais as

alijaram do processo decisório.

Ao balizarmos o discurso do ódio, tais as expressões que se dirigem as minorias,

estamos afirmando que esse é um insulto que não se confunde com a difamação

individual, o desprezo se conduz a sujeitos que são individualmente participantes de

grupos de pessoas com certas características, crenças ou qualidades, estão na mesma

289

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 97-98. 290

Existem os preconceitos individuais e os preconceitos de grupo, que seguem a natureza dos

individuais, mas são aplicados de um grupo social contra outro. Nesse sentido: BOBBIO, Norberto.

Elogio à Serenidade e Outros Escritos Morais. São Paulo: Unesp, 2002, p. 105. 291

Ibid., p. 105. 292

Dados do Censo 2010 do IBGE. Disponível em

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/caracteristi

cas_da_populacao_tab_pdf.shtm>. Acesso em: 02. jul. 2013. 293

BOBBIO, op. cit., p. 115.

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condição social, econômica, como, por exemplo, os índios, ciganos, judeus, nordestinos,

mulçumanos, negros, mulheres, homossexuais e muitos outros294

.

A perversidade que está infundida no discurso do ódio é a de desqualificar o

indivíduo – membro de certo grupo social – naquilo que justamente o harmoniza como

pertencente daquele grupo, como se para fugir dessa ofensa o sujeito tivesse que abdicar

de sua opção religiosa, de sua própria origem, de sua opção sexual, enfim de sua própria

identidade, prescrições que sabemos não ser desvencilháveis, diminuindo,

necessariamente, a autoestima dessas pessoas, já que suas opiniões não são

significativas e suas ações na sociedade civil não são eficazes295

.

Essas consequências foram intituladas na doutrina norte-americana como “efeito

silenciador”296

, quando certas manifestações expressivas intimidam outras pessoas de

maneira tão violenta que elas não conseguem falar nem serem ouvidas, o grupo atingido

não consegue vir a participar do debate, principalmente ao serem alvejadas pelas

chamadas fighting words, marcadas por exprimirem caracteres determinadores de perigo

claro e iminente297

, de ação concreta que venha a violar seus direitos fundamentais.

Obras artísticas que estejam a promover deliberadamente formas apologéticas ao

racismo, crime inafiançável e imprescritível, tal qual definido pelo inc. XLII, art. 5º, da

CF, ainda, os crimes que são cumprimento do mandamento legislativo-penal298

constante no inc. XLI, art. 5º, da CF, segundo o qual a “lei punirá qualquer

discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”, deverão ser

294

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 98. 295

Nesse sentido: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – um retrato sobre a banalidade do

mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.18. 296

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. A Leitura Moral da Constituição Norte-americana.

São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 356. 297

Ibid., p. 316. 298

Concretização a esse dispositivo constitucional é o art. 20 da Lei n.º 7.716/89: “Art. 20. Praticar,

induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa”.

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sancionadas, por estarem, a priori, restringidas pelos dispositivos constitucionais

aludidos.

Cediço, não obstante, que o produto legislativo-penal do cumprimento de

mandamento constitucional não se furta do controle de constitucionalidade tanto

abstrato quanto concreto, da mesma forma que o judiciário e executivo possuem o dever

de interpretar e aplicar o direito infraconstitucional em conformidade com o comando

axiológico supremo, isto é, consoante à liberdade de expressão artística299

.

Copiosas, igualmente, são as agressões que o discurso do ódio provoca, em

particular, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III, da CF) – sendo compreendida

em seu aspecto social –, pois contrárias à promoção “da participação ativa e

corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os

demais seres humanos”300

. Conquanto, apesar de não partirmos para a defesa do

discurso do ódio, não podemos nos esquivar de que a sua proibição em caráter geral traz

mais malefícios a uma democracia pluralista do que a sua permissão condicionada às

minúcias do caso concreto.

Uma expressão artística que esteja eivada de linguagem específica que pode ser

considerada odiosa a determinado grupo social, a exemplo de uma banda que traz em

diversas composições estereótipos da mulher como símbolo sexual, ainda assim, são

palavras que existem no mundo das ideias e nesse mesmo âmbito poderão ser

devidamente refutadas. O nosso sistema constitucional preza pela existência pacífica

entre ideologias – as mais repulsivas – e suas opiniões contrárias. Uma pretensa vontade

em eliminar certo componente de expressão é desafiar o sentido comum da liberdade de

299

MARTINS, Leonardo. Direito Constitucional à Expressão Artística. In: Mamede, Gladston; Franca

Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (org.). Direito da Arte: Regime jurídico

e questões do interesse de artistas, colecionadores, marchantes, curadores, galeristas, leioleiros,

investidores e museus. São Paulo: Atlas, 2013 (no prelo). 300

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 9. ed. Porto

Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 60.

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expressão301

, deixa em evidência tendências autoritárias que possuímos, a contragosto,

em cada um de nós.

Uma consequência direta das liberdades expressivas é o favorecimento à

tolerância e o incentivo ao pluralismo. Ao compelirmos certa opinião ao silêncio, é

possível que ela fosse verdadeira, se negamos isso, estamos negando nossa

infalibilidade, e, mesmo que a expressão posta em silêncio fosse um erro, ela poderia

conter, e muito comumente contem, uma parte de verdade302

. É certo dizer que, não

seria na existência de opiniões conflitantes o melhor caminho da busca da verdade? Ou

melhor, não seria esse o caminho mais acertado para desqualificar o discurso do ódio?

303.

É como se ficássemos presos no seguinte paradoxo: proibimos o discurso do

ódio por ser ele intolerante, entretanto, assim o fazemos com uma atitude

vocacionalmente intolerante, o que só pode gerar mais intolerância. Consideramos a

tolerância uma virtude que deve ser cultivada, desenvolvida pelos homens e fomentada

pelo Estado (expressamos essa ideia no tópico 2.2.5.1), apontamos que a educação pela

arte tem o potencial de aflorar esse mérito nos seres humanos. O que já demonstra que

considerar uma obra artística, em princípio, como um agravo ou uma difamação a

terceiros ou grupos sociais é um contrassenso.

Na jurisprudência do STF encontramos posicionamento sobre o assunto no HC

n.º 82.424/RS304

de 2003, conhecido como o “Caso Ellwanger”. O paciente, Siegried

Ellwanger foi denunciado pelo crime de racismo após ter publicado, como autor, a obra

literária “Holocausto, judeu ou alemão? – Nos bastidores da mentira do século”. O

301

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 140. 302

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010, p. 98. 303

MEYER-PFLUG, op. cit., p. 100. 304

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e Antissemitismo: um julgamento histórico

no STF – habeas corpus n. 82.424RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 9.

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Tribunal por maioria dos votos, restando vencidos três ministros, indeferiu o HC, com

base em três argumentações: 1) os judeus são uma raça; 2) o livro, a obra literária305

, é

um instrumento hábil a prática do racismo; e 3) como limite à liberdade de expressão

está à preservação da dignidade da pessoa humana, que não protege a intolerância racial

e a incitação à violência.

Asseverar os judeus como raça, parece-nos o único acerto do julgamento. O

conceito de raça contemporaneamente não segue, como outrora, atribuições biológicas,

o significado de raça é um conjunto de crenças e convicções sobre determinados

indivíduos em determinado grupo racial em particular306

. Raça é um conceito social,

cultural e ideológico 307

. A percepção da diferença entre os homens, apenas por atributos

fenótipos não é suficiente, a disparidade que leva ao racismo é um fato social,

econômico e cultural.

Após o julgamento do HC, no Brasil, a perseguição de qualquer grupo étnico,

religioso, cultural, social ou de gênero é considerada racista. O novo conteúdo de raça

que o precedente fixou é baseado na inteligência pela qual ao discernimos, no caso

concreto, um grupo social sofredor de preconceitos segregacionistas, então, ele irá

integrar o conceito de raça.

Adiante, pode um livro funcionar como meio para a incitação do racismo? Antes

de responder a esse questionamento, fica claro que o temor que é conferido às

expressões odiosas não é o seu simples poder de convencimento dos ouvintes, mas,

rigorosamente, a possibilidade dessas expressões virem a atingir ilicitamente as

minorias ou, como dito, que estas sejam rechaçadas a participar do debate público –

efeito silenciador.

305

Apesar do STF não fazer menção à liberdade artística, a literatura é umas das expressões simbólicas

inequívocas da arte. 306

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 114. 307

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das letras, 2006, p. 215.

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Por esse motivo, na doutrina norte-americana é necessário provar se as

expressões do ódio podem produzir ações eminentemente ilegais naqueles que as

recepcionam, é preciso demonstrar que em razão da expressão possa se resultar uma

ação concreta violenta e ilegal308

(clear and present danger). À evidência dessa índole

da manifestação, o impacto do discurso do ódio dependerá essencialmente do meio de

comunicação utilizado.

Alguns meios de comunicação devido ao seu alcance de irradiação,

primordialmente pelo número de indivíduos que atinge, serão difusores mais eficazes

que outros, são eles os veículos de massa, tais quais, televisão, internet, rádio, outdoors,

panfletagem etc.. A peculiaridade desses meios compreende uma disseminação do

conteúdo que se quer propagar em alta velocidade e, especialmente, sem que o

destinatário possa se manifestar no sentido de não querer ter acesso àquele conteúdo309

.

Os ministros que foram votos vencidos na decisão do HC310

defenderam que as

publicações de livros, mesmo os de caráter antissemitas ou revisionistas, não

caracterizam por si só incitação ao crime de racismo. Expuseram que a ideologia

contida no livro é amplamente protegida pela ordem constitucional e, na mesma Lei

Fundamental, estão prescritos os dispositivos a indenizações por danos materiais ou

morais às violações à intimidade, à honra, à imagem e à vida privada311

.

Todavia, os outros ministros pontuaram que, no caso em tela, a ilicitude não

estava na criação/edição do livro, posto que esta conduta estaria protegida pela

liberdade de expressão, embora a sua divulgação (área de efeito) visou a atingir

diretamente os judeus. A liberdade artística, conforme visto (tópico 3.2.3.1.3), é

308

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 141. 309

Ibid., p. 208. 310

Min. Rel. Moreira Alves, Min. Carlos Ayres Britto e Min. Marco Aurélio. 311

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Crime de Racismo e Antissemitismo: um julgamento histórico

no STF – habeas corpus n. 82.424RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 195.

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118

formada por duas facetas que conformam uma unidade indissolúvel, já que tanto na

produção como na divulgação o fim da comunicação artística é idêntico, precária e

dissonante seria o entendimento diverso que esfarela o direito fundamental de

resistência ao titular da expressão às respectivas áreas.

A publicação de livros (área de efeito/divulgação) é um ato que se encontra no

plano da reflexão, apresenta um pensamento, não sendo capaz de levar a efeito

agressões e práticas racistas, além do mais, não reúne o perfil dos meios de

comunicação em massa expostos acima, pois, não é transmitido independentemente da

vontade do recipiente, para se ter acesso a uma obra literária é necessário buscá-la,

presente se faz o ato voluntário do agente312

.

A obra literária e a maioria dos meios de comunicação artística313

proliferam-se

a partir do momento que uma comunidade possui um mínimo de tendência para aceitar

aquelas ideias, o pensamento é colocado em ampla liberdade para que o público tenha

tanto a escolha de ler o material como a possibilidade de tomada de uma posição que lhe

cabe ao término da leitura (pelos múltiplos processos interpretativos).

Se, no caso em comento, pudéssemos afirmar que a opinião do autor Ellwanger

não é apenas infundada, mas um equívoco completo, devendo ser afastada em razão da

afirmada incitação ao racismo que representa, a sociedade assimilaria essa proibição de

forma preconceituosa, “com pouca compreensão e com pouco sentimento das suas bases

racionais”314

, à medida que, mais profícuo para o declínio do discurso odioso seria a

desaprovação da ideia a partir de uma vigorosa e ardente contestação.

O livro em si não tem a aptidão de transformar toda uma sociedade, é legítimo

atestar que obras literárias mudaram a caminhada das sociedades em determinados

312

MEYER-PFLUG, Samantha Ribeiro. Liberdade de Expressão e Discurso do Ódio. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 208. 313

Entre as exceções, destacam-se as urban arts, formas artísticas já esboçadas. 314

MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010, p. 98.

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119

momentos históricos, por conterem ideologias que se julgavam apresentar soluções aos

enigmas do conhecimento, mas poucas delas granjearam suficiente proeminência para

perdurar à dura concorrência da persuasão racional315

.

O último passo da decisão da Corte fora a demarcação das restrições

constitucionais autênticas à liberdade de expressão, ocasião em que dois316

ministros

aplicaram o princípio da proporcionalidade para averiguar se a intervenção estatal

(decisão condenatória de reclusão do paciente) entre meios e propósitos é justificável,

tendo como parâmetro a área de proteção do direito fundamental.

As circunstâncias de exposição de ideias a respeito do holocausto, ao contrário

do que acontece em muitos países europeus como a Alemanha e a Espanha, não foram

criminalizadas em nosso país, a transmissão a terceiros de uma nova versão sobre o fato

histórico não significa que os leitores irão concordar e, ainda que concordem, não

denota que passarão a ser hostis com os judeus, passando a discriminá-los.

Ante a passagem do tempo, os envolvidos hoje são outras pessoas e, corolário do

conceito de raça hodierno o predicado histórico-cultural, sabemos que o Brasil muito

raramente317

tenha sido celeiro para práticas antissemitas, dessa maneira, o

comportamento do sujeito na criação de uma nova versão sobre fatos irrompidos à

Segunda Guerra Mundial encontra-se na área de proteção da liberdade de expressão.

Na análise do subprincípio da proporcionalidade chegamos à adequação, é dizer,

de acordo com o fim almejado pelo Estado, no combate a discriminação dos judeus

levada possivelmente a efeito caso a obra literária entrasse em circulação, a situação que

o Estado cria (condenação do autor) na intervenção é propícia, ou melhor, é eficaz para

315

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das letras, 2006, p. 189. 316

Min. Gilmar Mendes e Min. Marco Aurélio. 317

Não podemos esquecer da deportação de Olga Benário Prestes, judia, em 1936 para Alemanha, por

ordem do presidente Getúlio Vargas, após a Intentona Comunista (1935) encabeçada por ela e seu

cônjuge Luís Carlos Prestes. Olga fora exterminada em campo de concentração em 1942. Disponível em

<http://pt.wikipedia.org/wiki/Olga_Ben%C3%A1rio_Prestes>. Acesso em: 20 jun. 2013.

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120

promover esse fim? De acordo com nosso julgamento não318

. O meio não é favorável à

finalidade almejada porque ao invés de ser fomentador da tolerância lhe macula, ao

reverso de proporcionar um debate público, livre e plural que amadureça o convívio

pacífico inter-racial, sabota o diálogo.

O meio, utilizado pela autoridade judiciária, é ineficaz para o bem, pois estorva

o terreno para qualquer convicção efetiva e mais profunda319

, que são as que brotam da

razão e da experiência pessoal de cada um que se interessasse pela leitura da obra,

perde-se o efeito vital da liberdade de expressão como formador da autonomia dos

indivíduos pela instauração de um novo dogma: o de que as teses revisionistas são

banidas.

Em conclusão, o discurso do ódio como um fenômeno sociológico possui esse

espectro depreciador dos grupos sociais, entretanto, nos casos em que ele seja

consubstanciado no medium artístico é preciso esgotar todas as interpretações plausíveis

que não o designe aos tipos-penais, tanto porque a obra artística não é meio eficaz para

incitações violentas, como pela análise do caso em concreto que poderá evidenciar que

ao invés da proibição, as ideias repulsivas podem ser combatidas, até veementemente,

por uma política liberal permissiva de mais debates e, com isso, imprimindo mais

eficácia social às liberdades de expressão.

318

Essa análise simplificada do critério da proporcionalidade está sendo aplicada para o objeto constante

enfrentado pelo STF, no caso o writ, para que não haja prejuízo ao tema central da exposição, no entanto,

uma detalhada e profunda análise do dispositivo legislativo que configura o tipo penal responsável a

priori, pela decisão condenatória no tribunal a quo, consulte: MARTINS, Leonardo. Liberdade e Estado

Constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos

fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012, p. 211-238. 319

MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. São Paulo: Saraiva Editora de Bolso, 2010, p. 98.

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121

5 POLÍTICA PÚBLICA CONSTITUCIONAL DA ARTE

A despeito do título desse capítulo se reportar ao vocábulo “arte”, iremos

investigar o incentivo constitucional à arte como um “bem cultural”, partindo dos

dispositivos constitucionais que proclamam a arte como especialidade320

da cultura. O

que na dogmática jurídica descreve o direito fundamental de expressão artística em sua

dimensão jurídico-objetiva321

, constituidora das bases da ordem jurídica da coletividade,

formando uma relação de complemento e fortalecimento recíproco com a dimensão

jurídico-subjetiva322

.

Na dimensão jurídico-objetiva a percepção dos direitos fundamentais independe

de seus titulares323

, pois o constituinte cria tarefas que precisam ser concretizadas pela

Administração Pública e pelo legislador no intuito de proteger e fomentar o direito, são

elementos da ordem objetiva, determinante de status, limitadora de status e

asseguradora de status324

. Há, também, o aspecto da interpretação por irradiação

axiológica dos direitos fundamentais no exercício das atividades típicas do judiciário e

dos agentes da Administração.

Ao significado do direito à expressão artística como direito subjetivo é garantido

conjuntamente seu significado jurídico-objetivo, contendo diretrizes e critérios para que

os órgãos de formação da vontade política atuem na produção de alguns pressupostos

que devem ser atendidos, no escopo de configurar a liberdade artística na sua

320

WILLIAMS, Raymound. Cultura. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992, p. 10. 321

“Ao significado dos direitos fundamentais como direitos de defesa subjetivos do particular

corresponde seu significado jurídico-objetivo como determinações de competências para os poderes

estatais. Sem dúvida é sua função proteger os direitos fundamentais, podem eles ser obrigados a

concretizar direitos fundamentais, e podem eles ser autorizados a limitar direitos fundamentais (o

Estado).” HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha.

Sérgio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 239. 322

Ibid., p. 239. 323

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 111-112. 324

HESSE, op. cit., p. 239.

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122

completude em prol do particular325

. Por outro lado, essa planificação/pauta, como

dever estatal, fornece aos titulares de direitos fundamentais atributos para o controle da

mesma ação estatal (como pelo uso do parâmetro fundamental da igualdade, visto a

seguir).

A partir de que substrato se forma essa pauta? O que são políticas públicas? Os

direitos fundamentais (de status negativus e de status positivus) vinculam os “atos de

governo”326

, que são praticados pelo Executivo nas funções políticas e governamentais,

entendemos esses atos como políticas públicas, estas, são as ações voltadas à

concretização da Ordem Social327

, a partir de leis (lato sensu) desinentes dos

imperativos constitucionais.

Toda política pública será formada por uma questão valorativa328

, informando a

ação governamental de racionalidade, determinando os vetores que lhe animam,

enquanto a outra perspectiva está voltada a eficácia329

da ação governamental. A

questão valorativa não está à disposição da discricionariedade330

da Administração

Pública, por um motivo simples: a vinculação valorativa passa, necessariamente, pelos

direitos fundamentais, pela vontade do constituinte original.

A cultura é um valor da Ordem Social, fundamentador racional do quadro de

políticas públicas que devem ser concretizadas pelo Estado. Quando o constituinte lhe

instituiu prioridade – por intermédio do Título VIII, Capítulo III, Seção II, art. 215 da

325

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio

Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 240. 326

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed.

Coimbra: Almedina, 2004, p. 444. 327

FRISCHEISEN, Luiza Cristina Fonseca. Políticas Públicas. A Responsabilidade do Administrador

e do Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 80. 328

PANSIERI, Flávio. Eficácia e Vinculação dos Direitos Sociais: reflexões a partir do direito à

moradia. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 144. 329

A eficácia das políticas públicas representa um tema de grande complexidade, pois reúne conceitos

analíticos sobre mínimo existencial, reserva do possível, proibição do retrocesso, padrões de suficiência e

insuficiência etc., para um aprofundamento do tema: SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos

Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 362 et seq. 330

PANSIERI, op. cit., p. 144.

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123

CF –, o valor cultural precisa aparecer nos fins da ação governamental, em sua meta

pela coletividade. O valor cultural é formado por diversos bens, entre eles, destacamos o

bem cultural arte que tem amparo (conforme mencionamos) em direito fundamental

(art. 5º, IX, CF).

Por força do §1º do art. 5º, CF, que ordena aplicação imediata de todas as

normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, ficam vinculados à

concretização de políticas públicas os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. No

âmbito de suas funções típicas. Cada Poder obriga-se a cumprir os mandamentos

constitucionais que juntos dão forma às políticas públicas.

Ao judiciário, especialmente, além do poder-dever de não aplicar nenhum ato

normativo que esteja em desconformidade com os direitos fundamentais; e, de

interpretar às normas em consonância ao mesmo arcabouço axiológico (condizente com

o explorado no tópico 3.2.5.2), no tocante às políticas públicas, sua atividade vai além

da simples submissão destas aos direitos fundamentais, mas: 1) fazer o controle de

constitucionalidade de todos os atos provindos dos órgãos estatais – de modo especial,

os atos ofensivos aos direitos fundamentais; e 2) em sua atividade jurisprudencial

(Jurisdição Constitucional) definir o conteúdo e o sentido correto dos direitos

fundamentais331

.

5.1 CULTURA, DEMOCRACIA E PLURALISMO

A cultura é um elemento da política332

. E cultura será toda produção ou

manifestação voluntária, individual ou coletiva, que vise com sua comunicação à

ampliação do conhecimento racional ou sensível. Os bens de cultura interferem

331

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do

Advogado, 2004, p. 360. 332

FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política Cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983, p. 10.

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124

necessariamente na realidade dos homens que vivem em sociedade, que partilham desse

espaço comum.

Por partir de um ato da vontade, a produção cultural é sempre um momento de

liberdade, daí vem o reconhecimento histórico de que nenhum regime autoritário se

harmonizou com a cultura, posto que realizar cultura é, em si, um ato de libertação,

contrário às ditaduras que repousam seus temores na transformação social333

. Segundo a

relação política antagônica entre autoritarismo e regimes democráticos, conclui-se que,

nas democracias334

a cultura e seus inúmeros produtos (como o artístico) devem ser

incentivados, mais ainda: consistem em interesse político.

A política cultural é baseada em um tênue equilíbrio entre o papel do Poder

Público em favorecer a livre procura das manifestações culturais, criar condições de

acesso popular à cultura, prover meios para a difusão cultural e, ao mesmo tempo, não

impor uma cultura oficial335

. Democratização da cultura é o processo que faz convergir

o alargamento do público e a extensão do fenômeno de comunicação artística336

.

A opção de nosso constituinte por uma sociedade pluralista revela-se,

naturalmente, no pluralismo cultural. À primeira vista, pode parecer que os dois termos

possuem o mesmo significado, pois a própria noção de cultura é avessa à unificação,

mas a formação do binômio sociológico tem a função de enfatizar o significado de

cultura (como política pública) para uma democracia pluralista, que é aquela que sabe

administrar divisões irredutíveis e conciliar a sociabilidade com o particularismo337

.

Destarte, aspecto mais importante na prática da democratização da cultura é que

ela não parte do isolamento das culturas, mas exatamente do seu relacionamento. Mário

333

FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983, p. 8. 334

BIELSCHOWSKY, Raoni Macedo. Democracia Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 118. 335

SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores

LTDA., 2001, p. 209 336

Ibid., p. 209. 337

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo:

Cortez, 2006, p. 76.

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125

de Andrade338

valorizou um conceito que é entendido como a “cultura dos outros”, isto

é, minha identidade cultural não se anula na diferença, mas se fortalece, pois as coisas

não são estanques, acabadas, tudo está em evolução e em elaboração.

O pluralismo esclarece que o paradigma constitucional não se localiza na ideia

de uma unidade moral ou de valores entre os homens, mas na heterogeneidade cultural

que garante as condições para uma convivência pacífica, para tanto, exige-se

convenções legais sobre o que não é lícito e o que é necessário se fazer para proteger os

direitos de liberdade de todos339

.

Há quem diga – e com razão – que a democratização da cultura será uma

consequência lógica e natural da democratização social e econômica, a verdadeira

liberação dos criadores culturais é garantida desde que acompanhada por essa

concretização nas áreas acima advertidas340

, no entanto, o que vislumbramos é a política

cultural, juntamente com a política social, sendo empregadas pelo Estado

contemporâneo para garantir sua legitimação, isto é, para oferecer-se como um Estado

que vela por todos.

Os desafios que serão enfrentados na política pública da cultura precisam estar

em observância dos seguintes aspectos: não tolhimento da liberdade de criação,

expressão e acesso à cultura, por qualquer forma de constrangimento ou de restrição

oficial; contrariamente, criar condições para a efetivação dessa liberdade em um clima

de igualdade; e, por fim, favorecer o acesso à cultura e o gozo dos bens culturais à

massa da população excluída341

.

338

FEIJÓ, Martin Cezar. O Que é Política Cultural? São Paulo: Editora Brasiliense S.A, 1983, p. 71. 339

FERRAJOLI, Luigi. Universalismo de Los Derechos Fundamentales y Multiculturalismo. In:

INSTITUTO DE INVESTIGACIONES JURÍDICAS DE LA UNAM, 2007, Roma. Anais. Roma:

Universidad de Roma, 2007, p. 63. 340

FEIJÓ, op. cit., p. 59. 341

SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores

LTDA., 2001, p. 209.

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As intervenções dos poderes estatais na cultura, obrigados por uma competência

constitucional (dimensão jurídico-objetiva), justificam-se por duas razões: seu valor

simbólico que representa uma identidade coletiva e sua dimensão interativa que se

manifesta no seu poder de transformação social. Para tanto, dividiremos a política

pública cultural aplicada ao bem cultural “arte” em três áreas: a. Uma política de

proteção artística; b. Uma política de formação artística; e c. Uma política de promoção

artística342

.

5.1.1 Uma política de proteção artística

O enfoque da política de proteção engloba todos os mandamentos

constitucionais que obrigam o Estado a legislar ou a funcionalizar, dentro de sua

perspectiva administrativa, estruturas, procedimentos e sistemas que estejam afinados

entre si para preservar toda produção artística existente (patrimônio cultural) e aquelas

que virão a ser produzidas.

O art. 23 da CF traz a repartição das matérias de competência comum a todos os

entes federativos, distribuindo as atividades administrativas que poderão ser

preenchidas sem nenhum tipo de preponderância entre a União, os Estados, o Distrito

Federal e os Municípios. A atuação dos entes ocorre paralelamente em consonância com

o cooperativismo estatal, de forma cumulativa.

À Administração pública, em todas as suas esferas de poder, nos incs. III, IV e V

do referido artigo, é atribuído que atuem, em igualdade, para proteger “os documentos,

os bens e as obras de valor artístico”, “impedir a evasão, a destruição e a

descaracterização de obras de arte e outros bens de valor artístico” e “proporcionar os

meios de acesso à cultura”.

342

SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores

LTDA., 2001, p. 210.

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A proteção de documentos e outros bens de valor artístico são relativos aos

produtos de expressão da arte em todas as épocas, geralmente são resguardados em

bibliotecas, arquivos, museus e pinacotecas para que os particulares possam estudá-los,

conhecê-los e pesquisá-los. O impedimento da evasão, da destruição e da

descaracterização das obras de arte e outros bens, referem-se, respectivamente, a

repressão do empobrecimento da produção artístico-cultural que evade do nosso País,

causando grave violação à identidade do nosso povo; o decesso final das obras; e a

modificação ou degeneração dos traços que são originais das obras artísticas.

A atividade legislativa é prevista na ocasião de competência concorrente no art.

24 da CF, nessa oportunidade os atos normativos são editados pelos entes federais

respeitando um caráter suplementar, adota-se a predominância da União (art. 24, §2º)

para legislar sobre mesma matéria que os Estados e Distrito Federal (art. 24, §1º),

entretanto, estes, irão legiferar com perfil pormenorizado e detalhado.

A concorrência faz parte do modelo vertical de repartição de competências, que

realiza um condomínio legislativo343

, os incs. VII, VIII e IX ordenam que normas gerais

e normas que se afeiçoem às exigências estaduais deverão ser produzidas no intuito de

proteger “o patrimônio artístico, responsabilizar por danos os bens e direitos de valor

artístico”. Ainda, no art. 30, no modelo de competência autônoma, é instituído ao

Município, também em caráter suplementar à União e ao Estado (art. 24, inc. II),

“promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local” (art. 30, inc. IX).

O conceito de patrimônio cultural é oferecido pela sistemática constitucional do

art. 216, entendido pelos bens de natureza material e imaterial344

, tomados

individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à

343

HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 366. 344

O patrimônio imaterial é compreendido como conjunto das práticas, das representações, das

expressões, dos conhecimentos e das técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares

culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos

reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

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memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem

as expressões artísticas (inc. III)345

. A organização do patrimônio artístico está a cargo

do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan)346

.

O §1º do art. 216 determina que a proteção desse patrimônio cultural brasileiro é

uma tarefa que o Poder Público deve executar em colaboração com toda a comunidade,

mediante um regime de assistência mútua, descentralizado e participativo, segundo o

art. 216-A, caput, que estatui o Sistema Nacional de Cultura347

.

Incumbe-se o legislador ordinário em atuar na edição de normas que

concretizem (ordem legislativa do §4°, art. 216, da CF) a sustentação do patrimônio

cultural, exemplos são a Lei n.º 9.605/98, que na seção IV prescreve os crimes contra o

patrimônio cultural do art. 62 ao 65, apenando com reclusão, detenção e multa, condutas

que destruam, inutilizem ou deteriorem, alterem o aspecto ou estrutura do bem de valor

artístico, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida.

Outro mecanismo de proteção é constante na Lei n.º 10.257/01, o chamado Estatuto da

Cidade, registrando que a política urbana tem como objetivo (art. 2º) proteger, preservar

e recuperar o patrimônio cultural e artístico (inc. XII).

Outros marcos legais infraconstitucionais são: o Decreto-lei n.º 25 de 30 de

novembro de 1937, ainda vigente, organizando todo funcionamento do tombamento,

que é a forma mais utilizada de proteção ao patrimônio cultural brasileiro; o Decreto-lei

n.º 3.365 de 21 de junho de 1941, também vigorante, que dispõe sobre a desapropriação

para utilidade púbica, constante no rol do art. 5º entre os casos de utilidade pública, a

preservação e a conservação de monumentos, arquivos, documentos e outros bens

345

A CF estabeleceu o mecanismo da ação popular, no art. 5º, inc. LXXII, como garantia individual a

todos os cidadãos no desiderato de impedir ato lesivo ao patrimônio cultural. 346

Criado pela Lei n.º 378/37, organizado, posteriormente, pelo Decreto n.º 25/1937. 347

Artigo incluído pela Emenda Constitucional n.º 71 de 2012.

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móveis de valor artístico (alíneas ‘k’, ‘l’ e ‘o’); e a Lei 11.904/09 que institui o Estatuto

do Museu348

.

No art. 215, que inicia a discussão da cultura na ordem constitucional, o §1º dita

que as manifestações das “culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e dos outros

grupos participantes do processo civilizatório nacional” serão protegidas. A disposição

deôntica procura reforçar que os bens culturais que sejam frutos desses grupos

especiais, possuem arrimo constitucional, mas, por que o constituinte teve a necessidade

de exacerbar as expressões, os bens e os valores desses grupos?

A resposta não poderia ser outra senão a que admite que o legislador inaugural

reconheceu que esses grupos, em especial, são colocados à margem no processo de

produção cultural, por, ao mesmo tempo, certificar que existe uma cultura de elite. Essa

cultura elitista se opõe a todas as outras culturas de minorias, por ela definir e ser

definida pelo campo social-econômico, isto é, se a elite é representante da hegemonia

econômica, no plano cultural também ratificará sua posição hegemônica349

.

Portanto, a cultura do povo350

é escamoteada pela elite, que posiciona a sua

cultura como superior à cultura produzida pelo povo. Para prescindir a cultura feita pelo

povo (indígenas, afro-brasileiros e outros) a elite se utiliza da cultura de massa que

aliena e que permite que a cultura elitista domine a cultura do povo. Por via desses

meios de comunicação de massa os homens – e as minorias – vão sendo domesticados

em um processo de massificação e generalização351

.

348

Esses marcos legais não foram alvo de nenhum análise constitucional pelo Supremo Tribunal Federal

até o fechamento dessa pesquisa. 349

CHAUI, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11. ed. São Paulo:

Cortez, 2006, p. 49. 350

Apesar de o constituinte ter escolhido a nomenclatura “cultura popular” entendemos que ele quis

materialmente, segundo o conceito de Marilena Chauí dizer “cultura do povo”, a grande diferença,

segundo Chauí, é que quando se diz cultura popular, se quer dizer que tal cultura está no povo, mas não

foi necessariamente produzida pelo povo; e, quando se diz cultura do povo, se quer dizer que é do povo e

também foi produzida por ele. Ibid., p. 49. 351

FREIRE, Paulo. Projetos de Educação de Adultos: centros de cultura. Centro de Referência Paulo

Freire, 1990. Disponível em

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130

A cultura de massa desespiritualiza o homem, tornando-o acrítico e ingênuo,

quando a ordem jurídico-constitucional diz que a cultura dessas minorias também são

protegidas, estimula a pluralidade dos meios de produção artística e cultural, tenta

diminuir o abismo existente entre a cultura dominante e a cultura do povo (que vem se

anulando pelas formas de comportamento estandardizados). Veremos no tópico seguinte

a importância das ações afirmativas como um instrumento que vem impedir o

alastramento da cultura de massa.

5.1.2 Uma política de formação artística

A formação artística é o viés das políticas públicas culturais que se dedica a

transformação pessoal de um público espectador (e dos artistas também) que não pode

ser entendido como “passivo”, mas envolvido no fazer artístico. Essa alteração nada

mais é do que a educação pela arte ou cultura que contribui decisivamente na instrução

consciente de um homem crítico352

. Essas políticas dizem respeito aos meios de acesso

aos bens culturais.

O art. 215, da CF, garante a todos o acesso às “fontes de cultura nacional”. O

§3º do mencionado artigo, estabelece que a lei do Plano Nacional de Cultura (Lei n.º

12.343/10) deve conduzir a “democratização do acesso aos bens culturais” (inc. IV, §3º,

art. 215); e, no art. 216-A, §1º, sobre o Sistema Nacional de Cultura, inc. II, que o

acesso aos bens e serviços culturais devem ser universalizados.

Como a própria educação, bem jurídico-constitucional (art. 205, CF), por força

dos mandamentos da Lei Fundamental ordena que sua prestação seja um dever do

Estado e da família, o art. 227 da CF introduz, por intermédio da concepção de dever

<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/25/FPF_OPF_01_0014.pdf>. Acesso

em: 22 de jun. 2013. 352

FREIRE, Paulo. Projetos de Educação de Adultos: centros de cultura. Centro de Referência Paulo

Freire, 1990. Disponível em

<http://acervo.paulofreire.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/25/FPF_OPF_01_0014.pdf>. Acesso

em: 22 de jun. 2013.

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131

fundamental autônomo de natureza difusa353

, obrigações ao Estado, à sociedade e à

família na tutela das crianças e dos adolescentes, assegurando com absoluta prioridade o

direito que elas têm à cultura (entre outros bens jurídicos).

Enquanto, o art. 221, da CF, comanda aos produtores de emissoras de rádio e de

televisão (públicas e privadas) que deem preferência a fins artísticos e culturais na

composição de suas programações, promovendo a cultura e as artes nacionais e

regionais, essa norma é entendida como limite, prevista por diversas leis, como a Lei n.º

9.612/98 (radiodifusão comunitária) e a Lei 12.485/11 (audiovisual de acesso

condicionado).

Essas leis ratificam a indispensabilidade da educação pela arte, uma educação

que advirta para o seguinte perigo: a de que os meios modernos de comunicação mais

contribuem para a massificação do homem (provocando sua desumanização) do que

para sua evolução consciente.

O desenvolvimento das formas que promovem o acesso à cultura e aos seus bens

seguem as qualificações de democratizantes e universalizantes. Na democracia cultural,

pelo princípio da igualdade, todos precisam ter acesso ao gozo da cultura, é defeso a

política pública cultural perpetuar populações excluídas do ingresso artístico e, nesse

ponto nevrálgico, mais uma vez, ocorre uma imprecisão na direção de considerar cultura

de massa como acesso da massa do povo às fontes culturais354

.

A cultura de massa é um fenômeno que impõe uma mercantilização do

homem355

, que em oposição da convergência humana – característica das expressões

culturais – atomiza-o, colocando-lhe em uma posição individual, sempre desagregado

353

DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 4. ed. São

Paulo: Atlas, 2012, p. 63-64. 354

BOSI, Ecléa. Cultura de Massa e Cultura Popular, Leituras de Operários. 10. ed. Petrópolis:

Vozes, 2003, p. 53. 355

BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2009, p. 403.

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132

da totalidade, como se o homem não tivesse o que aprender com o outro, o que saber

sobre a natureza humana e sua complexidade existencial.

Essa ação de antidiálogo cultural356

possui um sustentáculo essencial “os

produtos culturais de massa” impostos, de cima para baixo, dos produtores para os

consumidores, infligindo uma visão de mundo unilateral por meio de uma indústria de

massa. Esse processo que segue o interesse de um dominador é inversamente

proporcional à promoção da igualdade entre os homens, maculando também a expansão

de sua criatividade e originalidade357

.

Como há ligação clara entre a massificação da cultural, o sistema capitalista e o

fenômeno da globalização, a maioria das Cartas Constitucionais do mundo ocidental

trazem normas que elegem ações culturais afirmativas, com o objetivo de tentar

converter a comunicação cultural em um diálogo, tão imprescindível à democratização e

a formação do homem358

, que tem sido alvo de uma produção artística cada vez mais

reducionista por se inspirar em um denominador médio, de nível e tipo de vida

médios359

.

A solução para mudar esse prognóstico de depreciação com a cultura do povo

passa, forçosamente, pela mencionada ação afirmativa. As ações afirmativas são

políticas de inclusão concebidas por entidades públicas e/ou privadas com vistas a

concretizar um objetivo constitucional360

, seu mecanismo se desenvolve a partir de uma

prescrição de combate a discriminação e efetivação da igualdade de oportunidades.

356

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 175. 357

CALABRE, Lia. Política Cultural no Brasil: um histórico. In: CALABRE, Lia (org.) Políticas

Culturais: diálogo indispensável. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2005, p.9-21. 358

SILVA, José Afonso. Ordenação Constitucional da Cultural. São Paulo: Malheiros Editores

LTDA., 2001, p. 71. 359

OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.

São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 57. 360

GOMES, Joaquim Barbosa. Ação Afirmativa (affirmative action) no Direito Norte-americano. São

Paulo: RT, 2001, p. 92.

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133

Toda ação afirmativa compele uma transformação cultural, pedagógica e

psicológica361

, enraizando a diversidade e a representatividade de grupos minoritários,

por isso, verdadeira ferramenta de auxilio para atenuar, ao menos, a degeneração dos

efeitos da cultura de massa. Ao sustentarmos políticas públicas focadas, estamos

admitindo que as políticas públicas universalistas não vêm logrando o êxito de reduzir

desigualdades e permitir o maior acesso possível aos bens culturais362

. E esse aceso não

se restringe apenas ao binômio inclusão/exclusão, mas a riqueza decorrente da

diversidade363

que ela provoca.

As medidas positivas não possuem formas predeterminadas, podendo ser

realizadas de diversas maneiras, portanto, por representarem decisões tipicamente

políticas, ao judiciário será permitida uma análise reduzida sobre os critérios eleitos

para dar forma às ações afirmativas.

5.1.3 Uma política de promoção artística

A política de incentivo artístico surge do reconhecimento de um projeto pós-

moderno que aceita tanto o discurso pluralista como as diversas manifestações culturais

existentes, simultaneamente, no interior da mesma sociedade. O Estado, nessa

reavaliação da importância ética do estar-em-comunidade364

, valoriza e apoia a cultura

sob o aspecto da igualdade, por intermédio de uma política pública que entende que

somente pelas leis do mercado a demanda de produções artísticas não é contemplada

suficientemente365

.

361

BAPTISTA, Lia Raquel Ventura. Ações afirmativas: ensino superior aos povo indígenas. In: NETO,

Antonio José de Mattos; NETO, Homero Lamarão; SANTANA, Raimundo Rodrigues (Orgs.). Direitos

Humanos e Democracia Inclusiva. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 322. 362

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 278. 363

Ibid., p. 279. 364

BITTAR, Eduardo C. B. O Direito na Pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 2009, p. 437. 365

Cf. posição diversa, consoante ao neoliberalismo e ao Estado mínimo em: COWEN, Tyler. In Praise

of Commercial Culture. Harvad: University Press, 2000, p. 36-40.

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134

As inúmeras expressões artísticas não são absorvidas pelo mercado como deseja

nos fazer crer o neoliberalismo, as empresas quando investem em projetos culturais

agem de acordo com uma estratégia empresarial, cuja regra se resume a produção do

lucro. Por tudo que já construímos filosoficamente sobre a arte, mostra-se integralmente

equivocada qualquer arte que não seja produzida tendo ela mesma como fim, do

contrário, estamos escolhendo um caminho que sufoca a estética e a inovação da arte366

.

A necessidade de cultura compeliu uma interferência estatal na regulamentação

das relações de cultura, na fundação de oportunidades culturais, quer como prestadora

de serviços culturais, quer como produtora das artes, com a construção dos espaços

culturais367

. Alguns teóricos advogam pela maior corrupção da arte desenvolvida

politicamente pelo Estado, do que pela facilitação em concreto que ela representa, por

observarem que governos, ainda que democráticos, tendem a manter o status quo, não

sendo verdadeiramente impulsionadores da construção e da difusão de um “novo”.

Embora a atuação do Estado tenha sempre uma correlação política, de orientação

político-partidária368

, a gestão da política cultural de característica invasiva é

estabelecida pelo uso de modelos de controle, realizado tanto pela sociedade civil, como

pelos órgãos oficiais de fiscalização, já as desigualdades provindas pelo livre mercado

não são suscetíveis de controle, ou melhor, quando o mercado sofre ingerências estatais,

as intervenções se dirigem a estimular os setores não financiados artisticamente.

O Estado deverá alternar três papéis para atingir os objetivos específicos da

política cultural que almeja alcançar, cumulativamente: o facilitador, o mecenas e o

366

OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.

São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 59. 367

Teatros públicos, a oferta de ensino oficial das artes, como os conservatórios musicais, as escolas de

balé, faculdades de comunicação e arte, manutenção de museus, disciplina da proteção do patrimônio

cultural. 368

Sem mencionar as ações de corrupção e de desvio de verbas na práxis da política brasileira.

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135

arquiteto369

. A atribuição do facilitador é o que permite aos governos, estaduais e

municipais, criarem leis de incentivos fiscais, pela política fiscal de benefícios no

recolhimento de impostos; a função do mecenas, a princípio, cria fundos de cultura que

devem ser utilizados nas produções artísticas (criação/divulgação); enquanto isso, o

arquiteto possui uma missão de apoio gerencial, controla diretamente as instituições

culturais.

Como os papéis de mecenas e arquitetos não se preocupam com o produto final

que estão incentivando370

, isso porque, diferentemente da função do facilitador que

envolve a participação de pessoas físicas ou jurídicas que estampam suas marcas nas

produções culturais, podendo ditar elementos da comunicação estética da qual suas

marcas estarão associadas, as criações artísticas que são viabilizadas somente pela

atuação do Estado tendem a ser mais diversificadas e originais, ensejam maior

resistência à ideologia do mercado de cultura de massa.

Os dispositivos constitucionais que falam sobre a promoção artística, são muitos,

diversas também são as ordens de fazer direcionadas ao legislador ordinário, o caput do

art. 215, da CF, condiciona o pleno exercício dos direitos culturais a garantia estatal de

apoio, incentivo, valorização e difusão das manifestações culturais. No art. 216, §3º, da

CF, encontramos a ordem de fazer qualificada em meios e propósitos, decretando que

“lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores

culturais”.

Entre as ordens de fazer podemos citar a Lei de Audiovisual n.º 8.685/93 e seu

Decreto regulamentar n.º 6.304 de 2007 e, mais famosa das concretizações legislativa

de lei de incentivo à cultura, a Lei Rouanet, lei n.º 8.313/91, regulamentada pelo

Decreto n.º 5.761 de 2006. A sua política, apesar de não ser exclusivamente do tipo

369

OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.

São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 58. 370

Ibid., p. 62.

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136

“facilitadora” (há a categoria mecenato pela disposição do Fundo Nacional de Cultura),

se destaca pelos incentivos fiscais capturados de pessoas físicas e jurídicas que, por sua

vez, recebem benefícios fiscais sobre o valor do incentivo.

As produções culturais beneficiadas com a Lei Rouanet precisam garantir a

circulação dos bem culturais resultantes. Ao mencionarmos a “circulação”, estamos

asseverando que ela precisa ser de exibição pública, não podendo estar restrita a

coleções particulares ou à fruição em circuitos exclusivos, para uso privativo de

determinado grupo social ou pelo proponente patrocinador371

.

O acesso aos bens culturais segue a lógica democratizante e universalizante,

quanto maior o número da população que seja recipiente da expressão artística

contemplada pela lei, maior será o significado de ser da própria política cultural, para

tanto, os ingressos poderão ser cobrados (ao contrário do que alguns podem pensar), o

acesso de aquisição do bem cultural envolve muito mais variantes do que apenas o valor

de sua comercialização (ao mesmo tempo, factualmente, seu valor geralmente ou é

módico ou as apresentações são gratuitas).

5.2 O PRINCÍPIO DA IGUALDADE COMO PARÂMETRO CONSTITUCIONAL ÀS

POLÍTICAS CULTURAIS

O poder-dever do Estado na realização de políticas públicas fomentadoras dos

bens culturais possui explícita normatização na CF, igualmente, como visto, pela

aplicação da dimensão jurídico-objetiva do direito fundamental à expressão artística

(art. 5º, inc. IX c/c os dispositivos que aparecem na Ordem Social) as políticas restam

justificadas. Todavia, conforme a teoria liberal e sua jusfundamentação, ao particular

não há o desaparecimento de seu direito de resistência frente às ingerências dos órgãos

371

OLIVIERI, Cristiane Garcia. Cultura Neoliberal: leis de incentivo como política pública de cultura.

São Paulo: Escrituras Editora, 2004, p. 91.

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137

de poder estatal (políticas culturais), mas uma mudança de parâmetro, quer dizer, às

interpretações e aplicações de leis incentivadoras da arte, caberá o dever de abstenção

do Estado com base no direito fundamental à igualdade.

A igualdade do art. 5º, caput da CF, estabelece duas acepções, a igualdade

perante a lei (igualdade formal) e a igualdade da lei (material)372

ou igualdade na

aplicação do direito e igualdade na criação do direito373

. Com fundamento na igualdade

formal prescreve-se que o direito, sem exceção, seja realizado sem nenhum tipo de

consideração pessoal, cada um é obrigado pelas normas que a todos são impostas, sendo

defeso ao Estado não aplicar o direito por favorecimentos pessoais; distintamente, a

igualdade material é a proibição de uma regulação desigual para fatos iguais374

.

A igualdade material revela dificuldades em precisar quais fatos são iguais e,

deste modo, não devem ser regulados desigualmente. A comprovação de fatos em iguais

ou desiguais dependerá do quanto essencial será a “característica” que se procura

comparar entre os fatos para admitir um tratamento desigual ou igual375

, por exemplo,

uma política fomentadora das artes cênicas (propósito essencial), em determinado

município, poderá deixar de fora as artes visuais (cinema, fotografia, pintura etc.), mas

não poderá olvidar do gênero circense, há tratamento desigual às artes visuais, mas não

poderá haver com relação ao circo, que participa do gênero das artes performáticas.

Para comparar pessoas, grupos de pessoas e situações utilizaremos um ponto de

referência (tertium comparationis)376

, sob a sua conceituação investigaremos se existe

alguma marca distintiva entre as pessoas, grupos e situações que sejam abalizadoras do

372

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São

Paulo: Malheiros, 2002, p. 10. 373

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 132. 374

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio

Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 330. 375

Ibid., p. 331. 376

PIEROTH; SCHLINK, op. cit., p. 133.

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138

tratamento desigual, o mandamento do princípio da igualdade é a proibição de tratar o

essencialmente igual desigualmente e o essencialmente desigual igualmente377

.

O que difere crucialmente os direitos da liberdade do direito à igualdade é que,

enquanto no primeiro, iremos destrinchar um comportamento no domínio da vida que

será resguardado pela área de proteção da liberdade considerada; o segundo é

caracterizado pela ausência de uma área de proteção, mas pela constatação de um

tratamento desigual e, em seguida, a justificação-constitucional para o tratamento

desigual378

.

Quais seriam as justificações-constitucionais do Estado, nomeadamente ao

legislador, para impor um tratamento desigual? Primeiro, verifica-se se o ponto de

referência utilizado pelo Estado passa por um controle de intensidade. No caso da

Constituição do Brasil (em analogia a doutrina e a Lei Fundamental Alemã379

), por

força do art. 3º, inc. IV, da CF, que fala da promoção dos objetivos fundamentais da

República, “o bem de todos” deverá ser perseguido “sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, os tratamentos desiguais

que se aproximem dos cinco critérios elencados constitucionalmente terão elevadas

intensidades, discriminações que se baseiam em origem, raça, sexo, cor e idade serão

aparentemente arbitrárias, devendo passar posteriormente pelo critério da

proporcionalidade.

Depois, a busca de um critério justo380

, que é a busca de um fim que equipare ou

diferencie no sentido clássico de justiça381

, por isso, legítimo. É válido ao legislador

377

HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Sérgio

Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1998, p. 335. 378

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 133. 379

Ibid., p. 136. 380

HESSE, op. cit., p. 335. 381

“A igualdade guarda uma relação de parte contida no todo que é a legitimidade. A justiça como virtude

humana perfeita recebe uma qualificação que é, a saber, ser manifestada para com os outros, isto é,

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139

criar desigualdades, só não poderá fazê-lo de forma arbitrária, sem nenhum fundamento

racional. É o caso, v.g, de uma ação afirmativa cultural em nosso país que almeje

financiar projetos de criação e circulação artística de grupos de dança afro-brasileira, há

uma desvantagem positiva para aquelas companhias que exercem as danças de matizes

africanas, no mesmo passo que a desvantagem seria negativa para os grupos que

praticam, por exemplo, a dança irlandesa; poderíamos citar os critérios de origem, cor e

raça na tomada de decisão do legislador, a discriminação é intensa!

Não obstante, o critério seria justo382

, possuiria fundamento racional, quando

pensamos na importância dos africanos no processo de civilização-histórica do Brasil,

população numericamente maior383

e desprivilegiada socialmente, como, outrossim, a

proteção especial que recebeu do constituinte, exposta no art. 215, §1º, da CF, sobre

todas as manifestações culturais afro-brasileiras.

Ao final, constatar-se-á se a medida discriminatória passa pelo critério da

proporcionalidade. No aferimento da adequação seguiremos os mesmos passos da

demonstração dos demais direitos fundamentais de liberdade, adequado será o meio que

ao infligir determinado tratamento desigual esteja granjeando eficazmente o fim

legítimo que se propõe.

Porém, a exigência da necessidade é vista de forma particular. Para fomentar

certa situação ou intervir em especificado grupo de pessoas, o legislador,

primordialmente, não precisará esgotar todas as possibilidades comprovadas pela

realidade sobre o meio ser o menos oneroso a outros cidadãos que se encontrem na

mesma relação. Isso porque, qualquer discriminação feita pelo Estado, sendo negativa

virtude social, conceder a cada um o seu.” KELSEN, Hans. O Que é a Justiça? A Justiça, o Direito e a

Política no Espelho da Ciência. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 125. 382

“E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua

universalidade”: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril, 1979, p. 27-28. 383

Dados do Censo 2010 do IBGE. Disponível em

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/caracteristicas_da_populacao/caracteristi

cas_da_populacao_tab_pdf.shtm>. Acesso em: 02. jul. 2013.

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ou positiva, sempre dará margem a muitos outros meios alternativos, desabonando a

prova que opta por medidas mais suaves e brandas384

.

O legislador, no curso de sua função típica, possui a liberdade ideal para

experimentar e fazer os prognósticos ponderativos para a escolha de suas políticas

públicas, suficiente há de ser uma tomada de decisão por meios que promovam o

tratamento desigual e, que não seja manifesta385

nenhuma alternativa claramente menos

onerosa ao Estado e aos direitos dos outros cidadãos – tanto o direito de igualdade

daqueles que não foram privilegiados, como os outros direitos de liberdade dos cidadãos

que geralmente são atingidos por força das políticas de discriminação –, prosseguindo

melhor o fim do fomento.

Hipoteticamente, consideremos a seguinte lei, no intuito de transpor barreiras

elitistas da cultura, incentivando o acesso da população desprovida financeiramente das

fontes de cultura nacional de certo Estado da Federação, um Deputado Estadual elabora

um projeto de lei que é aprovado por toda a Assembleia Legislativa, reservando certa

porcentagem de ingressos nos teatros e casas de espetáculos, públicas e privadas,

daquele Estado-membro, a serem distribuídos em pontos fixados por decreto

regulamentar.

Diversos conflitos sócio-políticos surgiriam devido ao ato normativo

fomentador. Além do tratamento desigual que desprestigia certo público espectador que

não é considerado “desprovido financeiramente”, há ingerência na liberdade empresarial

e profissional dos proprietários das casas de espetáculos privadas e, igualmente,

intervenção na área de proteção da liberdade artística, pois, o artista que paga a pauta de

um teatro para poder se apresentar e auferir o lucro da sua atividade artística, não

contará com todo o numérico da bilheteria da casa.

384

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 137. 385

Ibid., p. 137.

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141

Os argumentos para tentar anular tal ato normativo seriam vultosos, poderiam

conter análises detalhadas e diagnósticos elaborados com alternativas mais moderadas,

mesmo assim, com relação à atividade legislativa, como visto, a discricionariedade para

prossecução dos fins de fomento se faz presente. No que tange ao Judiciário, poderá este

Poder decretar que houve uma violação ao direito de igualdade dos demais cidadãos não

privilegiados pela quota de ingressos? Com a consequente declaração da

inconstitucionalidade do ato legislativo?

O Judiciário poderá cassar os efeitos da lei quando estiver comprovado, com a

aplicação do critério da proporcionalidade, que o ato legislativo não é adequado ou

necessário no que concerne aos direitos fundamentais de afiançamentos da liberdade,

como a livre iniciativa ou liberdade profissional; para efeitos do direito à igualdade, a

declaração de inconstitucionalidade será devida quando não houver perseguição de

propósitos legítimos ou sem lastros em bens constitucionais, nesses casos, o grupo

privilegiado poderá perder o tratamento exclusivo, passando a ser tratado como o grupo

excluído ou ambos podem ser tratados de uma terceira situação diversa386

.

Entretanto, quando se pensa em alargar o benefício dado pelo legislativo aos

outros cidadãos excetuados do privilégio, optamos pela impossibilidade, pois o

Judiciário não pode agir de forma conformadora em face do legislador387

, como se

tivesse preenchendo uma “lacuna da lei”.

386

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais: direito estadual II. Lisboa:

Universidade Lusíada Editora, 2008, p. 151. 387

Ibid., p. 152.

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142

6 CONCLUSÃO

Ao epílogo dessa exposição sistematizaremos as ideias que formam o eixo do

tripé anunciado no tema da pesquisa, as contribuições filosóficas, a aplicação da Teoria

Liberal dos direitos fundamentais e o fomento da política artística orientada pelo

princípio da pluralidade, todos funcionando pelo ideal da concretização jurídico-

dogmática do direito à expressão artística.

No prólogo da pesquisa apuramos que o desenvolvimento da razão moderna

apartou razão e emoção, conferindo a esta última um lugar de desprestígio acadêmico-

científico. No entanto, a negação da influência de eros gera uma prática reducionista da

essência do homem, e, quando o homem não está harmonizado as suas produções

perdem a profundidade de seus significados, os valores sociais (justiça, ética, liberdade,

igualdade etc.) não são vivenciados pela sociedade.

À arte atribuímos essa missão, a de reequilibrar o homem entre logos e eros,

primeiro porque o seu processo criativo funde os dois momentos, captações racionais de

Ideias, sendo transmitidas por intuição e pelas formas sensíveis; e pelo “efeito de

suavização do homem”, quando o despertar da alma (finalidade da arte) revela aos

espectadores de uma obra artística, tudo aquilo que existe de essencial nele e que lhe

aproxima de qualquer outro homem, pois nada que é humano a nós deve/pode ser

estranho.

Um dos passos necessários para que a arte possa participar de nossas vidas

ativamente, exercendo as funções que lhes são próprias, principalmente na elocução do

espírito do homem e na tolerância social, é preciso que a ciência do direito desenvolva o

direito fundamental à expressão artística com a autonomia que lhe foi dada pelo

constituinte originário, tirando-o da posição frágil que ocupa hoje, para catapultá-lo ao

direito fundamental sem reserva legal, portanto forte, que realmente é.

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Nesse desiderato, delimitamos a área de proteção do direito, identificando a

união indissolúvel de uma área de criação/produção e outra área de efeito/divulgação,

ambas protegidas pelo dispositivo constitucional, devido ao fato de que as duas

trabalham pelo mesmo fim da comunicação artística. A respeito dessa última,

caracterizamo-la como processo interpretativo multifacetário e continuado, donde

podemos extrair diversas mensagens em difusão inexaurível.

Quanto à titularidade do direito a expressão artística, assentamos, dentro dos

objetivos ontológicos da existência dos direitos fundamentais na proteção dos

indivíduos em face do Poder estatal, que todas as pessoas, físicas e jurídicas, que

participem do processo artístico contribuindo de forma decisiva na formação da obra de

arte, estarão protegidas pela liberdade, não cabendo aos órgãos do Judiciário ou da

Administração julgarem o que é dispensável ou não para formação do momento

estético-sensorial.

Ao enfrentarmos os limites constitucionais justificadores de intervenções estatais

na área de proteção da liberdade artística, partimos do pressuposto que pela ausência de

reserva legal o direito só poderá ser restringindo pela lógica-sistemática da própria

Constituição, não podendo haver transferência dos limites expressos de outros direitos

fundamentais para aquele, nesses casos, os limites previstos expressamente ao direito do

inc. IV, art. 5º, da CF, ao contrário do que afirma a doutrina majoritária, não devem ser

aplicados ao direito de expressão artística.

No que concerne aos casos difíceis, entre a liberdade artística e outros bens e

direitos constitucionais, construímos alguns atributos sobre a comunicação artística que

devem ser levados em consideração na tomada de resolução desses conflitos: (a) deve-

se investigar o animus do artista criador sobre a intencionalidade de qualquer ofensa que

lhe imputem; (b) sobre o meio utilizado, algumas expressões, a exemplo da caricatura,

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possuem roupagem essencialmente ofensiva, mas se o âmago da mensagem não

representa nenhum insulto, não existirá ultraje; (c) toda apreciação jurídica de obra

artística deverá, entre várias interpretações possíveis, escolher aquela em que a obra de

arte não lesa direitos alheios; e (d) a correta aplicação do princípio da

proporcionalidade, que se inicia pela averiguação da licitude dos meios e dos propósitos

e, posteriormente, se detém nos subcritérios da adequação e necessidade.

Finalmente, chegamos ao estudo das políticas públicas de proteção, formação e

promoção cultural e o seu papel na concretização qualificada do direito à expressão

artística. Identificamos que por força do §1º, art. 5º da CF, a aplicação imediata de todas

as normas definidoras de direitos fundamentais obrigam todos os poderes a atuarem,

dentro de suas atribuições próprias, no fito das políticas públicas culturais, uma vez que

essas guardam fundamento no próprio direito fundamental à expressão artística.

Analisamos que a influência de uma indústria cultural de massa, representa um

óbice ao acesso à cultura. A cultura do povo perde espaço para a cultura de elite e, para

tentar mudar o quadro perverso, o Estado precisa atuar em ações afirmativa, aquelas que

colocam pessoas ou grupos culturais marginalizados de volta aos centros de tomada do

poder, aumentando dentro da sociedade o diálogo cultural.

As leis de incentivo a produção e criação artísticas devem seguir o princípio do

pluralismo, posto que o próprio significado de cultura é avesso à unificação. No mais,

como as políticas são baseadas no agir positivamente do Estado é preciso que sejam

constantemente fiscalizadas pelo parâmetro constitucional do direito à igualdade.

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