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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Faculdade de Letras
Departamento de Ciência da Literatura Programa de pós-graduação em Ciência da Literatura
Doutorado em Teoria literária
Adriana de Fátima Barbosa Araujo
MIGRANTES NORDESTINOS NA LITERATURA BRASILEIRA
Rio de Janeiro 2006
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Adriana de Fátima Barbosa Araújo Migrantes nordestinos na literatura brasileira
Tese de Doutorado em Teoria Literária apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Dr. Eduardo de F. Coutinho Rio de Janeiro 2006
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FICHA CATALOGRÁFICA
ARAÚJO, Adriana de F. B. Migrantes nordestinos na literatura brasileira/Adriana de Fátima Barbosa
Araújo. Rio de Janeiro, 2006. 182f.
Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura, 2006. Orientador: Eduardo de F. Coutinho
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Adriana de Fátima Barbosa Araújo
Migrantes nordestinos na literatura brasileira Rio de Janeiro, 7 de agosto de 2006 _____________________________ Eduardo de Faria Coutinho, Doutor, UFRJ
____________________________________________ Elizabeth de Andrade Lima Hazin, Doutora, UnB ____________________________________________ Luiz Edmundo Bouças Coutinho, Doutor, UFRJ
____________________________________________ Rosa Maria de Carvalho Gens, Doutora, UFRJ
____________________________________________ Teresa Cristina Meireles de Oliveira, Doutora, UFRJ
____________________________________________
Eleonora Camenietski, Doutora, UFRJ (Suplente)
____________________________________________
Vera Lucia Teixeira Kauss, Doutora, UFRJ (Suplente)
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ao Alício, meu querido
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AGRADECIMENTOS
Ao meu orientador, professor Dr. Eduardo Coutinho, que, com sua sabedoria e paciência, soube tirar leite das pedras. Ao meu marido, Alício, que me deu forças para abandonar os piores desânimos e que também financiou esta pesquisa. À minha família que sempre soube reconhecer a importância desse estudo, e especialmente a minha avó, Clélia Barreto Alexandrino – Vó Rosa – e minha mãe, Maria Umbelina Alexandrino Lima, que o inspirou. A meus filhos, Gabriel, Luísa, José e Cecília.
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O que foi é o que será : o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: “Veja: isto é novo”, ela já existia nos tempos passados.
Eclesiastes
Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons...
Guimarães Rosa
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SINOPSE ARAÚJO, Adriana de Fátima Barbosa. Migrantes nordestinos na literatura brasileira. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. Esta pesquisa é sobre os migrantes nordestinos como protagonistas em obras de arte literárias canônicas brasileiras. A partir da revisão do movimento regionalista nas histórias literárias brasileiras, a pesquisa estuda os conceitos de “nação” e “região” em seus aspectos ideológicos. Mostra, ainda, como os migrantes passam de objeto a sujeito nos textos e considera a classe social e a relação entre a cultura letrada e a oralidade na abordagem que faz das seguintes obras: Vidas secas, de Graciliano Ramos; Morte e vida severina: auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto; Essa terra e O cachorro e o lobo, de Antônio Torres; A hora da estrela, de Clarice Lispector; As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto
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SUMÁRIO
Introdução, 10
1º Capítulo: Nação e Região, 17
2º Capítulo: A migração do ponto de vista da origem, 70
3º Capítulo: A migração do ponto de vista da cidade grande, 113
4º Capítulo: O efeito migração, 161
Considerações Finais, 171
Referências, 184
Resumo, 190
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INTRODUÇÃO
Sabemos dos desequilíbrios regionais da nossa nação que já no século XIX
sofre de uma política de preferências econômicas injusta. Antônio Jorge de
Siqueira, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no texto “Nação e região:
seus discursos fundadores” (2004) explica, do ponto de vista histórico, como no
momento de passagem do Império para a República, com o fim do escravismo, o
sistema republicano tentará neutralizar um imaginário do poder monárquico
personalista e paternalista em prol de uma representação mais democrática do
poder. É nesse momento que se desenvolvem os processos de regionalização e
nacionalização que estão imbricados no sistema de forças políticas e econômicas
do Brasil do século XIX.
Na explicação de Siqueira, o Nordeste está em desvantagem já na década
de 1880 devido ao longo processo de mudança do eixo econômico que já tinha
passado pelo ouro em Minas Gerais no século XVIII e que nesse momento
estava concentrado no café do Sudeste. A modernização que acontece no
Sudeste nesse período agrava as diferenciações internas no país no momento em
que a sociedade tende a se compreender como nação.
Para demonstrar essas diferenças internas e como elas manejam as idéias
de nação e região, Siqueira usa a opinião pública veiculada pelos jornais em
Pernambuco nos quais aparece nítido o mal estar da província frente à
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centralização do poder imperial. Do editorial do Diário de Pernambuco de 29 de
agosto de 1859, Siqueira copia:
E como poucas vezes sucede que as Províncias do Norte sejam representadas no gabinete por algum filho seu, os interesses, por mais que eles importem à prosperidade geral, raras vezes são atendidos devidamente. Ao passo que as Províncias do Sul são largamente dotadas de toda a sorte de melhoramentos, as do Norte só por um favor especial recebem de tempos em tempos um escasso subsídio, que por minguado deixa muitas vezes de lhes aproveitar. (SIQUEIRA, 2004, 5)
Segundo Siqueira, este é o olhar que a região, Pernambuco, tem frente à
nação. Como conseqüência, o pesquisador afirma como a nação, no momento
mesmo em que surge como uma idéia que une os brasileiros, já enfrenta
ressentimentos regionais. Na verdade, esse descompasso estrutural entre a nação,
identificada com o poder monárquico e depois com o poder republicano
concentrados no Rio de Janeiro, e a região já é motor de inúmeras insurreições
(Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Farrapos, Praieira) desde a Independência. Ao
fim do século XIX, em 1897, Canudos mostra mais uma vez a face dessa
diferenciação profunda entre região e nação. Já no século XX, a Questão do
Contestado e a Sedição de Juazeiro continuam as revoltas regionais contra a
República.
Muito embora as condições inferiores da região, no caso Pernambuco,
tenham servido de munição para discursos estratégicos, ideológicos e políticos
das elites conservadoras para proveito próprio, deve-se reter o fato de que os
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discursos hegemônicos do saber competente sempre estiveram centralizados no
pólo sudestino.
Euclides da Cunha, no texto “Um clima caluniado” do seu livro À margem
da história, escreve sobre o povoamento do Acre pelos retirantes nordestinos. Os
conceitos de “nação” e “região” conforme explicados por Siqueira aparecem no
dircurso de Euclides como idéias; não há a utilização direta das palavras. Mas a
idéia de que o Brasil, a nação, existia em oposição às populações do interior está
visível no discurso de Euclides. Numa passagem desse texto, em que Euclides
narra a política que o governo tinha para os nordestinos que fugiam das secas, é
interessante notar como ele próprio usa a palavra “Brasil”:
Quando as grandes secas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma população adventícia, de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas – a preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para a Amazônia – vastíssima, despovoada, quase ignota – o que equivalia a expatriá-los dentro da própria pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laços da família, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava mais dela. Cessava a intervenção governamental. Nunca, até os nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem... (Cunha, 1995: 276) A expressão “os moribundos que infestavam o Brasil” deixa clara a idéia
de que aqueles moribundos não eram o Brasil; eles infestavam o Brasil
correspondente da palavra “nação” fortemente ligada ao Rio de Janeiro. Esse
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descaso do poder público com os nordestinos é visto ainda pelo ângulo da falta
de alternativas para o desenvolvimento nordestino frente à decadência do açúcar,
enquanto que no Sul as políticas de captação de imigrantes para a substituição do
braço escravo eram patrocinadas pelo governo. Chegando ao limite de o
migrante italiano estar em melhor posição que o nordestino como mão-de-obra.
Sobre essa situação escreve Euclides no mesmo texto:
Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota fazenda de São Paulo, paternalmente assistido por nossos poderes públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para sempre insolvente. (Cunha, 1995: 278)
Nesse panorama político e social, está imerso o homem que com sua
família tem que fugir da seca e da pobreza para procurar uma vida melhor no sul.
Estamos acostumados a ver o/a nordestino/a como figura fadada a um destino
de migração. Dentro do pau de arara, ele mesmo um pau de arara, segue para o
sul como tantos outros antes e depois dele, expulso de suas origens. Está inscrito
na posição de vítima e também ocupa uma posição subalterna na nossa
hierarquia social.
Mas esta representação de nordestino vem se transformando lentamente.
Sabe-se lá que mudanças sofrerá com o fato de termos um migrante nordestino
como Presidente da República. Esse discurso de subalternidade nordestina e de
centralização do poder no pólo sudestino é uma realidade social e cultural que
está fortemente ligada à estrutura econômica brasileira.
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Esta pesquisa é sobre a trajetória da personagem migrante nordestina
como protagonista no cânone da literatura brasileira. O horizonte social é a
condição brasileira de nação periférica e dependente que ainda não concluiu seu
processo de modernização diversas vezes retomado. Sendo assim, estudar as
formas de inserção social na literatura constitui um ponto fundamental.
Devedora de Antonio Candido, Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, a
proposta de estudo e análise das obras nesta pesquisa, grosso modo, vê a
literatura como fatos associativos, ou seja, obras e atitudes que exprimem ou
escondem relações de sociabilidade. A obra é uma singularidade única e pessoal,
é uma confidência, um esforço de pensamento; a literatura, entretanto, é coletiva
e necessita da comercialização em um mercado (editoras, distribuidoras, livrarias)
e de uma instituição para ser validada como tal: universidades, academias
literárias, suplementos especializados dos jornais, além de um sistema que garanta
uma continuidade perfazendo uma herança e uma tradição.
Nesse sentido, o estudo da história literária na busca de como o cânone se
constituiu e que lugar deu a determinadas obras pode ser desenvolvido a partir da
leitura desses textos com os olhos de hoje. Assim, há uma tentativa de tornar a
leitura dos textos informada pelo estudo das condições de produção, recepção e
circulação das obras.
A análise literária será feita a partir da investigação dos elementos que
compõem o objeto ficcional: matéria sonora, ritmo, imagens, articulação interna
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do período, o trabalho estilístico das descrições, a técnica do diálogo, os planos
narrativos e discursivos, coerência dos personagens, a questão das convenções, a
fidelidade das reconstruções ambientais. A análise focaliza, ainda, as relações
entre o estilo de cada autor/a e a visão de mundo de uma classe ou período.
Além disso, como a meta principal da pesquisa é traçar a trajetória dos
protagonistas migrantes nordestinos/as no cânone da literatura brasileira, a
pesquisa procura identificar a focalização narrativa de cada texto no sentido de
definir a) quem fala b) com que autoridade fala c) que distância toma da matéria
narrada. E, ainda, num contexto analítico mais amplo procuram-se identificar as
condições de produção, circulação e recepção da obra para que seja possível uma
aproximação entre forma literária e processo social.
É importante frisar que mesmo sendo para este estudo importantes os
processos históricos relacionados com as políticas culturais e o lugar que nelas
ocupam a expressão literária nordestina, o principal foco deste trabalho é o
estudo literário das obras que em nenhum momento se confunde com uma
comparação delas com a realidade exterior.
Inicialmente, reúno da série literária brasileira do século XX os seguintes
textos: Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, da década de 1930, e Morte e vida
severina, de João Cabral de Melo Neto, da década de 1950. Da década de 1970,
destaco Antônio Torres e Clarice Lispector que recuperam o tema com Essa
Terra (1976) e A hora da estrela (1977), respectivamente. Da década de 1980,
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seleciono Marilene Felinto com As mulheres de Tijucopapo (1982) e, finalmente, da
década de 1990, pinço Antônio Torres que, vinte e um anos após a publicação de
Essa terra (1976), volta ao mesmo personagem em O cachorro e o lobo (1997).
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1º capítulo
Nação e região
Antecedentes da questão; Corpus da pesquisa; Regionalismo e dependência; O regionalismo nas histórias literárias; Regionalismo e Modernismo; Gilberto Freyre: O Livro do Nordeste e o Manifesto regionalista.
Antecedentes da questão
Os migrantes nordestinos entram na literatura brasileira como referência
superficial. Isso acontece em O cabeleira (1876), de Franklin Távora. Esse decênio
de 1870, segundo Antonio Candido, sacudiu o ideário brasileiro com a presença
marcante de dois elementos: a divulgação de novas correntes européias de
pensamento e a campanha abolicionista. (Candido, 1999: 48 e segs)
Em centros irradiadores como o Recife, o Ceará, e sobretudo o Rio de
Janeiro, desenvolveu-se intensa atividade crítica muito inspirada pelo Positivismo
de Augusto Comte e depois pelas diversas modalidades de evolucionismo, além
da repercussão das novas ciências como a Biologia, a Lingüística, a Etnografia, a
Antropologia e a Física.
O choque causado entre essas correntes científicas realistas e democráticas
e o ideário romântico aristocrático provoca um forte questionamento da
legitimidade das oligarquias e das hierarquias de privilégios. A luta contra o poder
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baseado no autoritarismo, no personalismo e no paternalismo ganha força com
instrumentos novos de argumentação.
Nesse cenário, Franklin Távora inicia com O cabeleira (1876) uma série de
publicações, que ficou conhecida como “Literatura do Norte”, que têm o
objetivo de resgatar as histórias do Nordeste e fazê-las visíveis para o povo do
sul, especialmente para o Rio de Janeiro, o grande centro intelectual do país.
Pouco antes, em 1875, Alencar havia lançado um romance que tratava das coisas
do sertão cearence, O sertanejo.
Alencar, em momentos iniciais da narrativa, confessa rememorar sua terra
natal: “Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há tantos
anos na aurora serena e feliz da minha infância?” (Alencar, 1991:11) Mas essa
informação que está lambuzada de comprovações biográficas não passa de um
subterfúgio do narrador – espécie de argumento de autoridade – para motivar
uma história. Essa técnica narrativa é das mais antigas e nada mais é que uma
variação daquela em que o narrador diz ter encontrado, de maneira inesperada,
certo manuscrito...
O passo sofisticado, porém, simples que o narrador dá quando faz a
passagem da sua própria história para a história do personagem é magnífico. Diz
que naquela época a pessoa tinha que andar muito dentro da natureza para avistar
gente, então, passando por entre esses campos, como fez quando era pequeno, vê
um viajante que ...
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O narrador de O sertanejo leva seu leitor pela mão, como um sereno e
astuto preceptor. E lança seu encanto sobre o leitor. As suas palavras são ditas
com olhos postos em um público leitor que Alencar conhecia bem: a elite carioca
da segunda metade do século XIX. O lugar que o romancista tem no século XIX,
especialmente quando se trata de José de Alencar, é muito estratégico, pois, são
eles que estão inventando uma nação que precisa ter identidade própria frente a
sua recente emancipação.
O sertanejo de Alencar, Arnaldo, é um homem em tudo superior, menos
em termos de classe social: ele tem todas as virtudes da terra e todos os dons da
natureza. Nascido sob o signo de um milagre, ele tem qualidades extraordinárias.
Para dar um exemplo da composição dessa personagem, cito a passagem em que
Arnaldo interage com uma onça. Nessa passagem também fica clara a visão de
mundo do narrador através da sua escolha vocabular. O narrador substitui a
palavra “onça” pela palavra “tigre”:
Arnaldo pôs a cabeça para fora da rede, e perscrutando a folhagem descobriu duas tochas acesas no meio das trevas, mas de uma luz baça e sulfúrea. Há um quer que seja de satânico na pupila da onça, .... Enquanto o tigre continuava a grunir o seu riso de fera com uns agachos de rarefeito, que lhe espreguiçavam o torso mosqueado. (Alencar, 1991:33)
Esse caso do tigre ensina uma coisa sobre o narrador e uma sobre a
personagem. Sobre Arnaldo, veremos, que ele não tem medo de onça, pelo
contrário conseguiu até ter uma como amiga. E, sobre o narrador, vamos
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entender como sua escolha vocabular constrói sua visão de mundo superior e
elitista.
O narrador usa a palavra tigre para substituir a palavra onça. Essa
substituição se dá em um momento inicial da narrativa quando o narrador está
espalhando pelo texto informações que estão construindo as identidades de cada
personagem, especialmente dos protagonistas. Neste trecho, vamos observar dois
processos: primeiro a constituição da identidade de Arnaldo e depois o efeito que
tem a substituição da palavra onça pela palavra tigre na designação do mesmo
animal.
Trata-se de uma passagem em que Arnaldo se prepara para dormir.
Arnaldo gosta de dormir ao relento, tendo na rede armada no alto da árvore seu
lugar preferido, sua residência errante. Longe dessa descrição está o pobre
miserável que vaga pelo sertão em busca de um meio de vida. É por aí que
entendemos a idealização do sertanejo, que aparece junto com os processos de
identificação de Arnaldo e de identificação da narrativa.
Entabulando conversa com a onça, e depois se defendendo de uma
investida, Arnaldo parece dominá-la. Enquanto ela tenta atacá-lo, ele repousa
friamente em sua rede, pois como conhece a árvore como a palma de sua mão,
percebe ser impossível para o bicho chegar até ele. Esse é um dos aspectos da
identidade de Arnaldo: seu admirável conhecimento da natureza. Nesse sentido,
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se pensarmos a dicotomia natureza e cultura, veremos que Arnaldo está próximo
da natureza e longe da cultura.
A substituição da palavra “onça” pela palavra “tigre” endereça o leitor para
as coisas exóticas do Oriente, encaradas do ponto de vista do europeu que tem o
Oriente como uma fonte de mistérios exóticos. Como a visão de mundo da elite
carioca estava profundamente marcada pela visão de mundo da elite francesa – o
teatro municipal do Rio é nossa pequena “ópera de Paris” –, ela tem essa imagem
do Oriente como exótico e misterioso. O uso da palavra “tigre” endereça esse
referencial “chic” europeu estabelecendo logo um diálogo com o imaginário da
elite carioca.
O romance que Távora faz publicar um ano depois de O sertanejo não é
menos idealizado, mas a escolha do tema do cangaço é inédita na literatura da
época, mais dada ao folhetim de romance de costumes. Inédito também é o
ponto de vista adotado por Távora.
No romance de Alencar, o ponto de vista é solidário da classe alta, da elite
urbana carioca. A escolha vocabular de Alencar quer dar a ver que é de
linguagem muito mais culta do que popular. A preferência pelo termo “tigre”
para designar aquilo que é um dos temas mais célebres da cultura popular oral
brasileira, a onça, torna distante toda e qualquer referência à cultura popular
brasileira. A onça de Alencar se insere no referencial europeu, está ligada ao
animal exótico e raro, o tigre.
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Ora, se Alencar torna seu enunciado informado por coisas da Europa,
entrando assim em consonância com a classe alta e culta carioca para a qual se
endereçava, Távora, com o cangaceiro, dá a ver um tipo específico de brasileiro.
Alencar chama a atenção para o sertão a partir de uma noção de exotismo.
Távora, também, mas a diferença é que ele endereça um exótico brasileiro. As
duas visões se complementam.
Mas, o ponto de vista que o narrador de O cabeleira busca descobrir é o do
cangaceiro, do pobre. Há na obra um narrador que funciona como um advogado
desse personagem. Há, por exemplo, um momento em que o narrador faz uma
grave crítica social ao considerar a pena de morte a que, por meio de processo
judicial, Cabeleira fora condenado:
Arrastam os delinqüentes à barra dos tribunais ou ao pé dos juízes para serem interrogados sobre as circunstâncias dos crimes que cometeram. Não devia ser assim. O interrogatório principal devia ter por objeto os precedentes do culpado, o grau da sua instrução literária, a sua educação, os seus teres. À pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve-se atribuir o maior número dos crimes que pune e dos erros e faltas que não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca foi nem jamais será um elemento de elevação; ela foi e sempre será um elemento de degradação social. (Távora, 1988: 135-36)
O narrador assume um tom de denúncia. Penso aqui que o contexto de
produção da imagem de sertanejo esteve em sua origem entre uma referência
idealizada, a de Alencar, e uma paternalista, a de Távora. De qualquer modo a
história literária brasileira deixa para Alencar um lugar de cunho nacional
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enquanto que a Távora designa-se um local compartimentado, oposto ao
nacional, o local, o regional.
Baliza para o regionalismo nordestino, O cabeleira, de Franklin Távora,
narra a trajetória de um fora-da-lei que se redimiu pelo amor de uma moça. As
proezas e as atrocidades do bando comandado pelo Cabeleira são entremeadas
por forte documentação histórica. Trata-se de duas instâncias nem sempre bem
harmonizadas no discurso do romance. O lado histórico parece oferecer um
atraso desagradável ao desenvolvimento clássico da história. A palavra “clássico”
aqui refere-se ao tipo de literatura a que a classe consumidora estava acostumada.
O romance de Távora marca uma diferença fundamental de ponto de vista. Vai
aparecer na literatura brasileira um outro ponto de vista, solidário com os pobres.
Távora investiu em um tipo de texto que pudesse unir ficção e realidade e
essa empresa é ao mesmo tempo seu trunfo e sua derrota. A pesquisa
documentária ganhou impulso entre nós nesse período, mais especificamente em
1878, quando à Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro junta-se o apoio
dos Anais da Biblioteca Nacional. Entretanto, a crítica literária viu no romance
imperícia literária pois, de acordo com a crítica, esse expediente entravava a
fluidez narrativa uma vez que fatos históricos e intriga aparecem no mais das
vezes justapostos de modo desconexo.
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No trecho citado anteriormente do romance de Alencar, é possível
perceber o tom de autoridade com que o narrador elabora sua matéria. E o ponto
de vista do narrador, superior e educado, está em profundo acordo com aquele
do possível leitor, sujeito da classe alta.
Já em O cabeleira, o narrador não está tão à vontade assim. Incomodado, ele
sente que sua narrativa vai ferir o gosto de seu leitor e por isso vez por outra
desculpa-se, como lemos no trecho abaixo:
Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha pena, molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve cenas de estranho canibalismo como as que nesta história se lêem. Aperta-se-me o coração sempre que me vejo obrigado a relatá-las. ... Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas pela minha fantasia. São fatos acontecidos há pouco mais de um século. ... Não estou imaginando, estou, sim, recordando... (Távora, 1988: 68)
O narrador assume um tom culpado porque sabe que desobedeceu à
convenção do gênero que corria no veio da época: o romance de costumes
carioca. Acho que esse ponto de vista subordinado que o narrador de O cabeleira
apresenta deve estar relacionado com o modo como o próprio Távora entendia
seu papel na cena carioca daquele período. O tom de serena autoridade do
narrador de Alencar e o tom de denúncia e de compromisso com a verdade do
narrador de Távora, afirmam os dois lados do tema “nação contra região” tão
discutido e presente nas discussões dos intelectuais da época.
Grosso modo, a comparação estabelecida entre Alencar e Távora dá a ver
uma diferença no tratamento do tema que parece repercutir a luta de classes.
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Alencar escreve da e para a elite e Távora apresenta, de modo subalterno, não
por acaso, os mais pobres. No primeiro, o ponto de vista é do alto, da elite; no
segundo, apresenta-se um ponto de vista de baixo, da classe pobre.
Os processos narrativos usados por ambos os autores são bem
semelhantes, já que eram contemporâneos. Tanto um como outro mantém certa
distância da matéria narrada. Os seus narradores de terceira pessoa contam a
história de um ponto de vista externo. Está clara a idéia de que a discussão que
desencadeiam está apenas no terreno do tema pois a forma dos dois é quase a
mesma. A questão do estilo é individual e leva em conta outros tópicos não
desenvolvidos nesta breve comparação.
Os migrantes aparecem em O cabeleira quando em determinado momento
um velho explica ao cangaceiro as causas de sua situação miserável: ele conta que
a pouca criação que tinha fora tomada pelos “magotes de gente, que vem aí em
retirada, caindo aqui, morrendo acolá de fome, só de fome” (Távora, 1988: 128).
Algo pouco diferente em termos de técnica vai aparecer quase trinta anos depois,
com a publicação de A bagaceira.
José Américo de Almeida, em A bagaceira (1928), já trabalha com os dois
pontos de vista – da elite e dos pobres – em uma mesma história. A tensão
presente neste clássico da literatura nordestina é enorme. À luta de classes soma-
se a luta de gerações. Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, dedica um capítulo,
“O pai e o filho”, a esta questão (Freyre, 2000). A grande diferença de visão de
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mundo entre o pai – patriarca tradicional rural –, e o filho – menino esclarecido
nos grandes centros, cheio de idéias revolucionárias do século XIX europeu – é
enorme.
Esse romance mostra o princípio do esgotamento do modo de produção
tradicional do açúcar, baseado apenas na enxada e na coivara (ferro e fogo) e o
surgimento da usina, que mais tarde também sofreria decadência.
O embate entre o patriarca, Dagoberto Marçau, senhor de engenho, e seu
filho, Lúcio, rapaz estudado, cheio de idéias para a implementação de técnicas
agrícolas modernas, será aumentado pela disputa do amor de uma bela jovem, a
retirante Soledade, filha do sertanejo Valentim Pedreira. Os salvados (da casa
grande) e os perdidos (pequenos sitiantes que perdem tudo na época da seca e
buscam abrigo na grande propriedade) formam outra oposição no romance.
A bagaceira tem uma recepção crítica muito boa que o eleva a marco da
literatura social nordestina, segundo Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura
Brasileira (Bosi, 1980: 443-444). Os rasgos de crítica social aproximam este
romance de O cabeleira. A narração é feita em terceira pessoa e o ponto de vista
também é externo à história e se solidariza ora com o ponto de vista do alto, ora
com o de baixo.
Em O quinze, de Rachael de Queiroz, os retirantes aparecem também
como pano de fundo, mas o tratamento do tema é totalmente diverso. O tom de
crítica social desaparece e a narrativa ganha leveza. A fatura técnica do romance é
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muito exaltada, principalmente no que diz respeito à simplificação estilística, que
torna a prosa de Rachael de Queiroz enxuta e viva. Não há mais o tom de
exotismo, nem o de denúncia, nem tampouco o de crítica social refinada: surge
um novo ponto de vista da questão, vindo de uma mulher incrivelmente jovem.
O quinze narra, do ponto de vista da personagem, Conceição, a terrível seca
de 1915. Conceição é moça estudada que, como Lúcio, vem passar as férias no
interior. Conceição é o ponto de cruzamento de duas linhas narrativas e de duas
classes sociais: as lidas e os sonhos de seu pretendente Vicente, seu primo, e a
saga da família de Chico Bento, um vaqueiro de uma fazenda vizinha à da avó de
Conceição.
Chico Bento é um dos muitos vaqueiros obrigados a deixar a terra por
causa da seca. A proprietária não tem mais recursos para manter sua família ali e
o dispensa. E assim como cresce a impossibilidade de realização do amor de
Conceição e Vicente, cresce a compreensão e a vontade de dever que ela sente
para com aquele mundo de gente em retirada, reunido em campos de
concentrações terríveis, explorado por governantes trambiqueiros que extraviam
os recursos que pleitearam com base na desgraça desses pobres. O tom que a
narradora apresenta está bem em conformidade com as leituras que Conceição
fazia: leituras socialistas.
Pois bem, Conceição e Vicente vivem um amor frustrado. E esse
sentimento cresce ao considerar-se todo o contexto: aquela situação de tanta
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gente pobre e desvalida e a quase impossibilidade de transformá-la que
Conceição vive. Está lá ela, forte e guerreira, professora de escola pública,
ensinando as crianças e em casa tomando conta de uma criancinha pobre, sua
afilhada. Ela faz apenas o que está ao seu alcance e encara os fatos e seus deveres
com mansidão.
Vicente, por seu lado, trabalha duro tentando salvar sua criação da seca, e
para isso luta incansavelmente. É por momentos raros de esgotamento que lhe
aparecem uns sonhos, umas vontades de emigrar dali para um lugar melhor, para
São Paulo, como podemos ler nos trechos copiados abaixo:
No entanto, agora, Conceição estava bem longe. Separava-os a agressiva miséria de um ano de seca; era preciso lutar tanto, e
tanto esperar para ter qualquer coisa de estável a lhe oferecer! Teve um súbito desejo de emigrar, de fugir, de viver numa terra melhor, onde a
vida fosse mais fácil e os desejos não custassem sangue. ... Quando, mais tarde Vicente dormia, teve um sonho esquisito: Conceição, caída por terra, se debatia gemendo. Ele tentava erguê-la, ..... E, largando-a subitamente: - É melhor deixar você aqui, porque eu tenho que ir-me embora para S.
Paulo... (Queiroz, 1970: 58-59)
O ponto de vista adotado na narração de O quinze é interno. Com uma
espécie de terceira pessoa levemente dramatizada, a narração escorrega para o
discurso indireto livre em determinados momentos de entrega ao personagem.
Como exemplo, há o trecho em que, por uma série de desenganos, Conceição
acredita ter Vicente andado de caso com outra moça (Zefina). É interessante
29
notar como no final do trecho a voz do narrador e a voz da personagem se
confundem. Conceição, olhando-o de frente insistiu:
- As filhas também são muito boas, não são? A Zefina mormente... Ele, com o mesmo gesto inocente, confirmou: - Muito boa rapariga. É quem cuida de minha roupa. - É!... – E Conceição, furiosa com a incompreensão verdadeira ou fingida, e
com o sossego dele, concentrou nesse “é” toda sua ironia despeitada. Mas não pôde ir mais longe por causa da presença da avó... Cínico! Cínico! (Queiroz, 1970:82)
Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, é o primeiro romance que coloca
na condição de protagonista o migrante nordestino e por isso ele é tão
revolucionário. A narração é feita em terceira pessoa e o narrador apresenta
momentos de aproximação e afastamento da matéria narrada.
Alfredo Bosi no ensaio “Céu, inferno” investiga minuciosamente a
distância e a aproximação que o narrador dessa obra estabelece das personagens,
especialmente de Fabiano (Bosi, 1988:10-32). Ele explica como na narrativa há
cortes nítidos entre o ponto de vista da personagem, que é aquele de um vaqueiro
pobre, muito desconfiado da palavra, e em especial da palavra escrita, e que segue
de modo quase natural para um destino onde pensa encontrar uma vida melhor,
e o do narrador, que olha de cima o destino do vaqueiro e dá o salto que ao outro
é impossível. O narrador enuncia os efeitos de uma realidade opressiva no dia-a-
dia da vida de cada um dos membros daquela família.
Bosi mostra ainda como nos momentos de aproximação entre narrador e
personagem, Graciliano marca com teor revolucionário sua realização. Como o
30
personagem, o narrador também desconfia do discurso “civilizado”. De um lado,
a voz do personagem iletrado é fragmentada e lacônica, mas, por outro lado, a
voz do letrado é considerada perigosa.
Corpus da pesquisa
Vidas secas constitui o primeiro romance do corpus dessa pesquisa. Esse
romance de Graciliano desafiou os críticos de sua época tanto no que diz
respeito à classificação do texto – que é curto para os padrões da época e
formado por episódios autônomos justapostos de modo descontínuo –, quanto
pelo discurso dos protagonistas, que não poderia ser descrito nem como
monólogo interior, nem como discurso indireto livre. A narração é feita com o
máximo de objetividade, em terceira pessoa.
Vidas secas, último romance de Graciliano Ramos, de 1938, causou grande
interesse na época pelo tom de denúncia, ou seja, por mostrar um Brasil que
estava invisível. Távora já no século XIX tentava fazer essa parte do país ser
vista, mas é só no decênio de 1930 que há condições favoráveis para que essa
visão prevaleça.
No decênio de 1930, segundo Antonio Candido, ocorre em toda a
América Latina uma alteração de perspectivas, já que a idéia de “país novo”, que
ainda não teve condições de cumprir suas grandes possibilidades de progresso e
futuro, é substituída pela noção de subdesenvolvimento que, ao invés da
31
grandeza, marca a falta e a atrofia presentes na vida do continente (Candido,
2000: 140-63).
A consciência amena do atraso, ligada à ideologia de “país novo”, dá lugar
à consciência catastrófica do atraso. E essa consciência, atravessada pela noção
de subdesenvolvimento, marca um momento no qual escritores e escritoras
encontram novas formas literárias de tratar o tema da vida rural, agora livre de
um tratamento exótico e pitoresco.
É o escavamento destas formas literárias, que surgem com essa mudança
de perspectiva no plano social, que este trabalho procura realizar, tentando
aproximar forma literária e processo social. Há, na proposta, a tentativa de
estabelecer a trajetória dessa figura migrante no cânone da literatura brasileira.
A hipótese é a de que a personagem migrante nordestina entra no cânone
da literatura brasileira na condição de tema, de objeto da narração, e pouco a
pouco conquista sua voz. Em Vidas secas, a voz do migrante está quase que
reduzida a sons e interjeições guturais que produzem uma linguagem
monossilábica e gaguejada. O discurso do narrador é seco e objetivo.
O segundo texto a ser analisado, Morte e vida severina: auto de natal de
Pernambuco (1956), resgata de um longo período de esquecimento o tema da
migração nordestina. Nesse caso, o gênero escolhido, o auto, por definição leva o
migrante a falar por si, fato ainda não realizado em obra romanesca. Infelizmente,
o auto não chega a atingir as classes pobres, como era desejo de seu autor, mas
32
cai no gosto de uma certa fatia de intelectuais de esquerda que ajudam na
divulgação do texto e na realização de montagens.
Na década de 1970, aparecem Essa terra (1976) de Antônio Torres e A hora
da estrela (1977), de Clarice Lispector, mais dois textos para o corpus da pesquisa.
Em Essa terra, o migrante aparece pela primeira vez na forma de um eu –
finalmente chega à primeira pessoa o migrante nordestino. O romance narra
como um jovem, Totonhim, a exemplo de seu irmão mais velho, vai deixar a
família em busca de uma vida melhor em São Paulo.
Mas como a conquista da voz da personagem migrante na literatura não é
uma linha evolutiva, aparece pouco depois o romance de Clarice Lispector, A
hora da estrela. Nesse romance, Macabéa, a nordestina, é atropelada pelas vozes da
autora e do narrador e finalmente pela grande cidade. Portanto, é apenas com
Essa terra e com A hora da estrela na década de 1970 que a personagem toma posse
de um “eu” ainda que não tão consolidado.
Vidas secas (1939), Morte e vida severina (1956) e Essa terra (1976), no escopo
das obras estudadas nesta pesquisa, retratam o problema da migração em sua
origem. A personagem é tratada como retirante e o ambiente é sempre o do
sertão. A partir de A hora da estrela (1977), o drama da personagem não está mais
focado no trânsito migratório, mas na adaptação da personagem à cidade para a
qual emigrou.
33
Macabéa anda pelas ruas do Rio de Janeiro. Nesse ponto ela não é mais
denominada como retirante a não ser com um sentido pejorativo ou agrassivo.
Isto é, no Nordeste a palavra “retirante” significa aquele que vai para o sul em
retirada. No sul, a palavra “retirante” adquire uma carga negativa e se transforma
quase que num xingamento.
O problema da identificação marca profundamente todos os romances que
tratam o tema de uma perspectiva externa em terceira pessoa. Especialmente em
Vidas secas e em A hora da estrela, a questão da não identificação entre narrador e
personagem gera saídas técnicas de expressão que põe à prova a genialidade
desses dois grandes autores: Graciliano e Clarice.
Em A hora da estrela, a autora não se identifica com a personagem e assim
passa a narração para um outro, propositalmente do sexo masculino, que vai
mediar autora e personagem de modo que os três, autora, narrador e
personagem, se engalfinham na narração. O problema do escritor que tenta dar
voz aos que não têm expressa bem a questão da autora, que passou boa parte da
infância em Recife, como se pode ler nos trechos abaixo citados em que o
narrador afirma:
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. (Lispector, 1995:26)
34
É parece que estou mudando de modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. (Lispector, 1995, 31)
Marilene Felinto, com As mulheres de Tijucopapo (1982), é a primeira a
explorar, em primeira pessoa, a condição de migrante nordestina em São Paulo.
E nesse cavoucar de sua história ela se depara com os fantasmas de sua infância,
com os maus-tratos da mãe e as traições do pai. Sua prosa é confessional e
estouvada, enfezada e poética. A invenção de uma origem digna, diferente
daquela terrível, é o motor de sua pungente narrativa.
Em 1997, Antônio Torres publica O cachorro e o lobo, romance que narra a
volta daquele personagem Totonhim que foi para São Paulo em 1976 em Essa
terra. Romance de primeira pessoa, de rememoração, de reconciliação, O cachorro e
o lobo mostra os efeitos das modernizações inconclusas no agreste. O ponto de
vista é de um eu maduro e conformado, mais compreensivo e observador do que
crítico.
Marilene Felinto e Antônio Torres são os escritores do migrante
nordestino em primeira pessoa. Torres ambienta seus dois romances, Essa terra
(1976) e O cachorro e o lobo (1997) em Junco, cidadezinha do interior bahiano. Em
As mulheres de Tijucopapo (1982), a ambientação está associada ao onírico, e seu
ponto de vista é construído a partir do presente da personagem, pessoa bem
sucedida, moradora de São Paulo.
35
Regionalismo e dependência
A partir do texto de Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”,
no qual é explorada a relação entre dependência e literatura na América Latina,
esta seção tem como objetivo encaminhar algumas das questões relacionadas ao
caso específico da literatura regionalista brasileira.
Neste texto, Candido opera com os conceitos de consciência amena do
atraso referente à noção de “país novo” e consciência catastrófica do atraso
correspondente à noção de subdesenvolvimento. A tônica do texto está numa
análise que leva em conta a condição da literatura num país de analfabetos como
é o nosso. Vale lembrar que mesmo em queda nossa taxa de analfabetismo é
superior a 11% conforme divulgou o IBGE pela pesquisa nacional de domicílios
1988/2003. A literatura é assim, considerando tudo, um produto de elite.
Aqui toca-se num dos problemas centrais desse trabalho: a relação entre
aqueles que não vão ler e os intelectuais que pretendem dar-lhes voz. No campo
do ficcional, a literatura dá uma solução imaginária para um problema real.
O momento que Candido relaciona a uma consciência amena do atraso
está ligado às promessas de esperança que o Brasil como um país novo inspirava.
Terra bela - pátria grande, essa era a idéia que estava associada à grandeza da
primeira e à futura pujança da segunda.
36
Nesse tempo, o escritor partilha da ideologia ilustrada que pensa a
instrução como humanização e progresso. Esses intelectuais flutuavam acima da
incultura geral e, desejosos de que ela desaparecesse a fim de que a pátria
encontrasse seu grandioso destino, eles sonhavam e ignoravam o atraso, que
achavam não poder alcançá-los. Dessa forma, sem uma cultura que lhes servisse
de base, voltavam-se para a Europa a partir da qual estabeleciam um ponto de
referência e uma escala de valores. Achavam-se semelhantes ao que havia de
melhor na Europa. Assim, os escritores formavam um grupo “aristocrático” em
relação ao homem inculto. Alencar e Távora são regidos por essa ideologia de
país novo.
Candido entra fundo na questão do atraso e da dependência cultural
quando analisa as influências estrangeiras. E cita como exemplo extremo desse
aristocratismo alienante o uso de línguas estrangeiras na redação das obras. Mas
lembra também que, entre os intelectuais, ainda existiam aqueles que, de maneira
até intransigente (Távora), lutavam pela independência cultural, de modo que o
cosmopolitismo e o regionalismo parecem ter suas raízes misturadas.
Mas, essas afirmações de nacionalismo e de independência cultural, explica
Candido, também são inspiradas em formulações européias. Ele lembra que a
ligação entre intelectuais brasileiros e latino-americanos é maior nas academias
européias e americanas onde recebe incentivo bem maior do que entre nós
mesmos.
37
De modo reduzido, Candido vê atraso e dependência na literatura
brasileira, especialmente nos movimentos de rejeição e cópia que movem nossos
intelectuais frente às inevitáveis influências externas. No mais das vezes, quando
os intelectuais se renderam às ilusões patrioteiras de um nacionalismo fervoroso
que parece afirmar nossa identidade própria, o que aconteceu foi uma produção
matizada por condescendência e exotismo que ofereceu à Europa exatamente o
que ela queria ver no Brasil. Essa é uma questão aguda de dependência na
independência. A cópia servil, do outro lado da ambivalência, seduz os escritores
e mostra tanto um caminho intelectual baseado em um argumento de autoridade,
quanto um caminho migratório que, no limite, isola e silencia.
Dentro desse contexto de ambivalência, Candido afirma que o romance de
1930 antecipou, na literatura, a consciência catastrófica do atraso que, segundo
ele, ocorreria nos contextos sociais e políticos apenas depois da Segunda Guerra
Mundial, portanto quase quinze anos depois.
A literatura de Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e Jorge Amado,
afirma o crítico, “desvendam a situação na sua complexidade, voltando-se contra
as classes dominantes e vendo na degradação do homem uma conseqüência da
espoliação econômica, não do seu destino individual” (grifo do autor) (Candido,
2000: 160)
38
O regionalismo nas histórias literárias
Falar de regionalismo causa sempre uma estranheza. Estranheza que vem
do fato de a palavra regionalismo estar investida de uma carga semântica que, no
mais das vezes, remete a nacionalismos baratos e tacanhos. É como se o
regionalismo fosse o par oposto de universalismo.
Um exemplo desse clima que ronda a palavra é a sua relação com
Guimarães Rosa. Estamos falando aqui de um dos maiores escritores brasileiros
do século XX. Rosa colocou um redemoinho no meio do regionalismo. Eduardo
Coutinho, na “Introdução” das Obras Completas de Rosa, explica como
regionalismo e universalismo não se excluem em Rosa (Rosa, 1994:11-26). E
Alfredo Bosi lança uma pergunta sobre o assunto que ainda paira no ar: o que
ficará em primeiro plano: a reprodução da vida e da mentalidade agreste, ou o
experimento estético? (Bosi, 1980: 487). Entre o transcendentismo formal e o
conteudismo bruto há matrizes críticas que ora investem no ponto de vista
técnico, ora no rico complexo de estilos de pensamento que serviram de
contexto para a ficção de Rosa para conseguir argumentos que expliquem seu
caráter universal.
Grosso modo, o regionalismo é a expressão literária que valoriza a força
que se dá a peculiaridades locais, tanto em suas formas particulares de dizer
quanto na exploração descritiva de seu lugar geográfico. Vejamos a seguir como
39
alguns críticos do passado e do presente como Afrânio Coutinho, Lucia Miguel-
Pereira, Alfredo Bosi, Antonio Candido, Antonio Dimas e José Maurício Gomes
de Almeida definiram e estudaram o regionalismo na literatura brasileira.
Afrânio Coutinho e Alfredo Bosi lançam um olhar mais amplo sobre o
termo. Afrânio Coutinho apresenta duas entradas para o temo. A primeira,
ampla, diz que toda obra de arte é regional quando apresenta como pano de
fundo um lugar ou quando parece brotar desse local particular. Mas, ele convém
que nessa situação uma obra poderia ser localizada numa região, mas tratar de
assunto universal de modo que essa particularidade local lhe seria apenas
incidental. (Coutinho, 1966)
A segunda entrada para o termo, aquela que A. Coutinho define como o
sentido do regionalismo autêntico, diz ser regional uma obra que não somente é
localizada numa região como também retira a sua “substância real” das
particularidades deste lugar. A. Coutinho define essa substância da seguinte
maneira:
Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural – clima, topografia, flora, fauna, etc. – como elementos que afetam a vida humana na região; e em segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra. (Coutinho, 1966: 202)
Desta maneira, fica entendido que a ficção regionalista coloca em primeiro
plano a presença tanto física da região, quanto dos costumes locais, concentrando
suas forças na exploração desse panorama. Essa visão crítica privilegia elementos
40
estéticos num plano que se concentra nos caracteres formais do texto literário. É
preciso observar que essa visão de A. Coutinho surgiu como uma reação à
posição de Sílvio Romero que em fins do século XIX abordava a obra literária
por uma perspectiva puramente extrínseca.
Para A. Coutinho os contextos histórico e biográfico são considerados
fatores externos à criação da obra de arte e como tal não ocupam lugar central na
compreensão da obra literária. Esses preceitos estão na base da “nova crítica”
preconizada por Coutinho nos anos de 1950. Essa proposta veio do New Criticism
e do Formalismo Russo e foi a base teórica para a empresa de Coutinho de
renovar a compreensão da literatura brasileira até então. O resultado desse
projeto foi a publicação dos seis volumes de A literatura no Brasil. Nesse conjunto,
Coutinho publicou monografias de autores e obras realizando uma profunda
revisão em termos estéticos da literatura brasileira.
Lúcia Miguel-Pereira elabora sua visão do regionalismo em contraponto
com o norte-americano através dos autores Bret Harte e Vernon Louis
Parrington. Para Lúcia o regionalismo se restringe “[às] obras cujo fim primordial
for a fixação de tipos, costumes e linguagem locais, cujo conteúdo perderia a
significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde
os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprime a civilização
niveladora” (Miguel-Pereira, 1973: 179). Neste trecho vemos como Miguel
Pereira entende a questão do nacional e do regional: é regional tudo o que se
41
diferencie da “civilização niveladora” e, neste caso, o conceito de civilização está
ligado ao de “nacional” que, por sua vez, se identifica com o Rio de Janeiro,
capital do país àquela altura dos acontecimentos.
Lucia Miguel Pereira pensa o regionalismo brasileiro em surtos e se refere
a cinco desses surtos no período de 1870 a 1920. O primeiro, que abarca o
decênio de 1870 e 1880, é marcado pelo regionalismo exótico e pitoresco, com
preferência pelo conto. Esse tipo de regionalismo põe em segundo lugar o
homem, valorizando fortemente as exterioridades das personagens e as
peculiaridades locais e, no limite, cai num artificialismo quase teatral. Lucia se
refere aos autores regionais desse momento como se fossem espíritos que sentem
a sedução de modos de vida rudimentares por conhecerem outros mais
complexos. O regionalismo é, então, para a autora, uma expressão que parece sair
de fora para dentro: daí seu aspecto artificial.
O segundo surto acontece no fim do século XIX, após o corte
fundamental na história brasileira que foi a abolição da escravatura. A abolição irá
fomentar o ingresso de imigrantes que vêm ocupar o lugar deixado pelos
escravos. Miguel-Pereira ressalta que no período havia o desejo dos autores de
explorar os modos de vida do brasileiro, livre de influências externas. Esses
fatores são, segundo ela, determinantes para o surgimento de um regionalismo
mais verdadeiro como o do paulista Valdomiro Silveira, do mineiro Afonso
Arinos e o do cearense Manuel de Oliveira Paiva. Renova-se o sertanismo sem
42
aquele predomínio da região pelo homem e o regionalismo se torna, então, um
laboratório para concepções mais universais da vida e do homem.
Lucia Miguel-Pereira relaciona como terceiro surto um momento posterior
no qual reúne os autores Simões Lopes Neto, Oliveira Paiva, Domingos Olímpio
e Lindolfo Rocha, dos quais ressalta como definitiva para o regionalismo a obra
do gaúcho Simões Lopes Neto. Nesse momento, a autora identifica um
regionalismo menos rígido e permeável a concepções mais gerais do homem.
Como quarto momento, Lúcia Miguel-Pereira destaca o filão Euclidiano,
formado por Alcides Maya, Roque Calage e Alberto Rangel, autores
profundamente tocados pelo grande marco da literatura brasileira do início do
século, Os sertões. Trata-se de narrativas mais literárias com uma linguagem menos
objetiva e mais interpretativa.
Os sertões (1902) reúne temas que serão desenvolvidos ao longo do século
XX. Walnice Galvão mostra como essas questões eram preocupações que
Euclides aprendeu na escola1 (Galvão, 1994: 615-33).
1 Euclides da Cunha ingressa na Escola Militar para cursar engenharia militar em 1886, aos vinte anos de idade. A Escola Mititar tinha características muito peculiares que a tornavam uma experiência única no país. Era uma escola híbrida pois, embora destinada a formar quadros militares, obedecia um regime de externato e aceitava paisanos. Corria paralela à não-militarização e à não-quartelização da escola, a característica de privilegiar a formação do oficialato e de engenheiros civis revelando o profundo desprezo pela profissão de soldado presente na sociedade da época. O currículo de seus alunos seguia o modelo da Escola Politécnica Francesa. Na verdade, a escola era um centro de altos estudos matemáticos e de ciências do país, talvez o único. Na época em que Enclides se torna aluno, a Escola já estava bastante aliciada para o republicanismo e o abolicionismo. Além de já estar vivendo a Questão Militar, por se tornarem difíceis as relações entre Exército e Monarquia. Por um típico gesto de aluno da escola, Euclides será expulso em novembro de 1888. Em formatura diante do Ministro da Guerra, planejada para impedir que os alunos fossem ao desembarque de um famoso republicano, Lopes Trovão, que voltava da Europa, Euclides em vez de levantar seu sabre em saudação à autoridade, joga-o no chão, gesto combinado com alguns colegas, mas executado apenas por ele. Euclides será reintegrado na Escola Superior de Gruerra em 1889, terminando seu curso, de modo apertado, um ano depois.
43
Ressalto de seu texto a afirmação de que “o modernismo vai dar
continuidade a algumas preocupações de Euclides com os interiores do país e
com a repulsa à macaqueação européia nos focos populacionais litorâneos”
(Galvão, 1994:618).
E, finalmente, terminando a linha de raciocínio de Lucia Miguel-Pereira,
surge em 1917, com Hugo Carvalho Ramos, uma nova fase com tônica não mais
no descritivismo, mas na denúncia. Para Lúcia, pouco depois, com Monteiro
Lobato, se dá a superação de uma vez do lado pitoresco e exótico da expressão
regional no estabelecimento da investigação humana.
Grosso modo, no pensamento de Lucia Miguel-Pereira a literatura
regionalista evoluiu sempre que investiu em concepções mais universais do
homem. Desse modo, para ela, a literatura regionalista cresceu quando abriu mão
do localismo em busca do cosmopolitismo.
José Maurício Gomes de Almeida, autor de um estudo instigante sobre a
tradição regionalista no romance brasileiro, orientado por A. Coutinho, parte da
nocão da região como “substância real” para eleger sua matéria de estudo
(Almeida, 1981). Em seu trabalho, que apresenta o recorte temporal de 1857-
1945, faz um esquema de análise, no qual divide seu corpus em regionalismo
romântico, regionalismo realista, e o romance de 1930, que já é por convenção
regional. Para cada fase, ele realiza uma contextualização histórica, depois
aprofunda as análises das obras individuais, sempre as relacionando com outras
44
produções do período, e por último faz uma reflexão sobre a dimensão
regionalista de cada uma das obras eleitas.
Na fase do regionalismo romântico, assinala dois movimentos
importantes. Ressalta o Indianismo de Alencar e o Sertanismo de Alencar e
Taunay. E opõe Alencar e Taunay à “literatura do norte” de Franklin Távora.
Lembramos que Távora vem sendo em maior ou menor grau considerado
inferior a Alencar e Taunay, seus contemporâneos. Continuando essa tradição,
José Maurício afirma que o projeto regionalista de Távora foi fracassado, pois
seus romances não estão de acordo com os padrões estéticos. Na visão dessa
linha crítica, Távora malogra ao fazer “opção pelo romance histórico, [pela]
preocupação documental e [pela] incapacidade de incorporação do material
pesquisado em uma estrutura ficcional coerente” (Almeida, 1981:24).
José Maurício recupera o romance de Manuel de Oliveira Paiva, Dona
Guidinha do poço, publicado em 1952, mas com data de elaboração provável de
1891, fazendo dele o marco inicial do regionalismo realista. Desse período analisa
também Luzia-homem, de Domingos Olímpio. Acaba sua análise com leituras
panorâmicas do romance de 1930 do qual considera uma síntese Fogo morto, de
José Lins do Rêgo. Dá relevo também a Jorge Amado e Graciliano Ramos.
José Maurício parte do princípio de A. Coutinho de que a obra regionalista
deve “haurir a sua matéria e a sua substância da própria realidade físico-cultural
da região, ainda que para transcendê-la” (Almeida, 1981:25). Dessa forma, ele
45
considera os romances regionalistas quando a realidade física é determinante para
a intriga. Exemplificando sua visão, recorto o momento em que ele reflete sobre
a questão regionalista em Dona Guidinha do poço e Luzia-homem:
A seca em Luzia-homem não constitui apenas um elemento adjetivo, de interesse documental, mas contribui de forma decisiva para definir o destino dos personagens – unidos pelo fado comum do êxodo e da miséria -, bem como para criar a atmosfera trágica em que se desenrola a ação. Como em Dona Guidinha do poço, o conflito dramático em si 2 não se define a partir de coordenadas regionalistas, mas Domingos Olímpio procura, como Oliveira Paiva, enraizá-lo na realidade física e social que envolve os personagens. (ALMEIDA, 1981: 160, grifo do autor)
José Maurício põe em ação as orientações conceituais de A. Coutinho.
Percebe como esses romances tiram suas linhas mestras do chão regional em que
estão assentadas, quer pela exploração da sua realidade física, quer pela ligação
dessa realidade à composição das personagens.
Mas não é apenas por esse fio conceitual que José Maurício arma sua
análise. No momento em que ele discute a questão em Jorge Amado e o compara
a José Lins do Rego, outra é a noção de regionalismo que surge:
o regionalismo de Terras do sem fim, como o de Fogo morto, não se resume à descrição de aspectos pitorescos da vida e da paisagem locais que possam servir de pano de fundo ou de condimento à narrativa, mas assimila-se à natureza mesma tanto da ação, como dos personagens nela envolvidos. (ALMEIDA, 1981: 237)
O que Almeida valoriza nesses autores é então o regionalismo como
“natureza mesma” da ação e dos personagens. Essa diferenciação conceitual é
própria de uma visão que respeita o romance como uma obra de arte
2 grifo do autor
46
individualizada e singular, revendo o conceito a partir da leitura de cada obra. É
exatamente essa notícia que o autor dá em suas considerações finais em que
chega à conclusão de que o romance regionalista brasileiro é de extração rural,
sendo bastante problemático, senão impossível, a existência de um regionalismo
urbano.
Para Antonio Candido, na literatura brasileira, o regionalismo surgiu junto
com a independência literária, pois foi o desejo de exprimir nosso nacionalismo
que levou escritores e escritoras a descobrirem o Brasil que estava encoberto pelo
domínio colonial (Candido, 2002). Na visão de Candido, o Romantismo
brasileiro foi, sobretudo no início, mas até o fim, nacionalismo. E nacionalismo,
segundo ele, significa escrever sobre coisas locais. No decênio de 1850, acontece
a consagração do Romantismo com sua manifestação mais nacional, o
Indianismo. A intenção era construir nossos aspectos mais originais, aqueles que
nos tornavam diferentes de Portugal, aqueles que forjavam nossa identidade
nacional.
Resumindo bastante o que Candido explica nas minúcias, como nossa
literatura não nasceu aqui, mas foi transposta no processo de colonização, houve
na nossa formação um contato trabalhoso entre as culturas primitivas locais e as
culturas maduras transplantadas para cá. A independência literária criava a
necessidade de que as formas importadas fossem guiadas pelos temas brasileiros
e, além disso, novas formas seriam necessárias para exprimir as realidades e os
47
sentimentos locais. Assim, regido por esses dois movimentos, nosso sistema
literário se desenvolveu por essa contradição de nascença: a convivência do
metropolitano com o rural, do grosseiro com o desenvolvido.
Candido mostra que, na década de 1870, os romancistas vindos de antes
produziram bastante, mas no cenário da literatura regional dois se destacam.
Visconde de Taunay com o bem realizado Inocência (1872) é o melhor produto do
Regionalismo literário da época, diferentemente de Franklin Távora que, na
opinião de Candido, é menor, pois, apela para uma prosa melodramática.
A obra ficcional de Távora caiu no esquecimento, mas sua importância
histórica é sempre ressaltada, pois é tida como um marco fundador do
Regionalismo nordestino. Para Candido, a expressão literária de Távora
“raramente chega a prender e sua escrita é banal”(Candido, 2002: 80). Candido
parece tecer essa crítica com base em valores estéticos, mas enseja também uma
ideologia, já que podemos afirmar, grosso modo, que não há sujeito sem
ideologia3. Ao lado dessa crítica dura em termos estéticos, ele alinha a questão da
decadência do Nordeste e da supremacia política do Sul. Vejamos a confirmação
dessa afirmação num trecho da seção “O regionalismo como programa e critério
estético” da Formação da Literatura Brasileira:
3 O conceito de ideologia usado nesta pesquisa está de acordo com aquele elaborado a partir das idéias do pensador francês, M. Pêcheux. A idéia é a de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua, daí, não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. É portanto no discurso que se pode observar essa relação língua e ideologia, compreendendo-se como são produzidos os sentidos por/para sujeitos.
48
As lacunas de Távora provêm, a meu ver, de imperícia e carência estética, não da matéria, nem do ponto de vista, coerentes, em seu tempo, com a concepção de romance. Nem tampouco da nítida intenção ideológica, do programa definido de demonstrar teses e sugerir modelos. ... A importância de Távora consiste, como disse, em ter percebido a valia de uma visão da realidade local, que era a sua. Ora, para ele, ..., a região não era motivo apenas de contemplação, orgulho ou enlevo, mas também complexo de problemas sociais, sobrelevando (não custa repisar) a perda de hegemonia político-econômica. (CANDIDO, 1997: 271)
Candido, no célebre texto, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, avança
um pouco mais, até 1920, na sua visão da expressão regional. O autor afirma que
no período de 1880 a 1920 se produz um Regionalismo pobre e romantizado, o
qual ele descreve assim:
O regionalismo, [que] desde o início do nosso romance constituiu uma das principais vias de autodefinição da consciência local, com José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay, transforma-se agora no "conto sertanejo", que alcança voga surpreendente. Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas. Forneceu-lho o "conto sertanejo", que tratou o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu respeito idéias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, estético. (Candido, 1967: 136) Note-se a diferença com que é tratado o mesmo período por Lúcia
Miguel-Pereira. A diferença entre os dois pensadores consiste na visada mais
genérica que Candido tem do período, considerando o período de 1880 a 1920
todo dominado por esse registro regional centrado numa visão condescentente
recheada de exotismo, ao passo que Lucia esmiuça o mesmo período em cinco
esteiras regionais diferentes.
O decênio de 1930, explica Cândido no texto “Literatura e cultura...”, vê
surgir uma geração de explicadores do Brasil, que tende para o ensaio, uma vez
49
que se tratava de "redefinir nossa cultura à luz de uma avaliação nova de seus
fatores" (Candido, 1967: 147). São estes, entre outros, Sérgio Buarque de
Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado e, um pouco mais tarde, Caio Prado Jr.
Em resumo, na prosa de 1930, o regionalismo é retomado sem o pitoresco
e numa perspectiva diferente. O homem pobre do campo passa a ser
problematizado. Candido, de modo ainda muito astuto, observa como o nome
regionalismo serviu para classificar obras produzidas fora do Rio de Janeiro. E,
de fato, não surgiu nada ainda denominado de regionalismo carioca. Nesse
sentido, Candido parece trabalhar com uma perpectiva dialética que tenta escapar
da dicotomia do nacional e do regional.
Alfredo Bosi, na sua História concisa da Literatura Brasileira, considera como
tipos de ficção romântica a passadista e colonial (O guarani e As minas de prata, de
Alencar, As mulheres de mantilha e O rio do quarto, de Macedo, Maurício e O bandido
do rio das mortes, de Bernardo Guimarães ...); a indianista (Iracema e Ubirajara, de
Alencar; O índio Afonso, de Bernardo Guimarães...); a sertaneja (O sertanejo e O
gaúcho, de Alencar, O garimpeiro, de Bernardo Guimarães, Inocência, de Taunay, O
cabeleira e O matuto, de Franklin Távora) ou o dia-a-dia das convenções centrado
nos costumes da burguesia de Memórias de um sargento de milícias. É como
sertanismo que Bosi apresenta a expressão regional do Romantismo. Vejamos o
trecho no qual ele caracteriza o termo:
50
As várias formas de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico e, até, modernista) que têm sulcado nossas letras desde os meados do século passado, nasceram do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural, provinciano e arcaico. Como o escritor não pode fazer folclore puro, limita-se a projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do campo. Do enxêrto resulta quase sempre uma prosa híbrida onde não alcançam o ponto de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos ideológicos e estéticos do prosador. (Bosi, 1980: 155)
O termo “sertanismo” parece ter sido aproveitado de Nelson Wernek
Sodré em sua História da Literatura Brasileira, de onde Bosi cita um longo trecho
no qual Sodré comenta o esforço malogrado e ingênuo da luta que travam
aqueles que desejam superar as condições que subordinam a literatura brasileira a
modelos estrangeiros.
Na explicação de Sodré, uma vez que se admite que o índio não era
suficiente para a expressão da identidade nacional, escolhe-se, então, o sertanejo
para ocupar este lugar: ele é o homem do Brasil interior e, portanto, teria o poder
de exprimir o que é nacional. A justificativa que se dá, segundo Sodré é
precisamente aquela dada por Távora no prefácio de O cabeleira, a de que “o norte
ainda não foi invadido como está sendo o sul de dia em dia pelo estrangeiro”
(apud Bosi, 1980: 156-57). Daí a oposição entre o urbano que copia o estrangeiro
e o quadro rural ainda intocado. Isto que é Brasil, escreve Sodré resumindo o
lema desses autores. E o crítico termina sua argumentação um tanto irônica com
a conclusão de que esses autores não são menos românticos do que aqueles que
criticam.
51
Bosi parte dessa visão para afirmar como o regionalismo é uma literatura
menor, que criou romances que nada acrescentam aos desejos do leitor médio.
Identificando como critério de ajuizamento das obras o nervo do tratamento
literário, Bosi salva dessa menoridade Inocência, de Taunay, e alguns romances de
segunda plana de Alencar como O sertanejo, O gaúcho e O guarani. Esses romances,
nas palavras do crítico, redimem-se “das concessões à peripécia e ao inverossímil
pelo fôlego descritivo e pelo êxito na construção de personagens-símbolo” (Bosi,
1980: 143).
Da citação anterior já vamos começar a reunir algumas das faltas estéticas
atribuídas à maioria dos regionalistas. A concessões a peripécias e ao inverossímil,
o crítico soma como cerne do problema estético a dificuldade “de superar em
termos artísticos o impasse crítico criado pelo encontro do homem culto,
portador de padrões psíquicos e respostas verbais peculiares ao seu meio, com
uma comunidade rústica, onde é infinitamente menor a distância entre o natural e
o cultural (Bosi, 1980: 158). Mas Bosi convém que nem toda literatura
regionalista se perdeu no banal e no precioso. O crítico, no trecho a seguir,
desenvolve o argumento de Sodré sobre o esforço dessa literatura regional em
afastar o expediente de importação e imitação de estéticas estrangeiras:
O projeto explícito dos regionalistas era a fidelidade ao meio a descrever: no que aprofundavam a linha realista estendendo-a para a compreensão de ambientes rurais ainda virgens para a nossa ficção. Voltando as costas para as modas que as elites urbanas importavam, tantas vezes por mero esnobismo, puseram-se a pesquisar o folclore e a linguagem do interior, alcançando em alguns momentos, efeitos estéticos
52
notáveis, que a cultura mais moderna e consciente de um Mário de Andrade e de um Guimarães Rosa não desdenharia. (Bosi, 1980: 232)
Bosi propõe duas alternativas extremas para a questão formal da oralidade:
o puro registro da fala regional (Taunay, Vadomiro Silveira, Simões Lopes Neto),
ou a pesquisa dos princípios e formas que regem a vida rústica para com eles
elaborar novos códigos de comunicação com o leitor culto (Guimarães Rosa).
Para o crítico, entre os dois, o regionalismo é uma literatura de segundo nível,
que subsiste pelas exigências da tradição escolar (Bosi, 1980: 156).
Em trabalho mais recente, de 2002, Bosi pensa a relação entre a escrita e
os excluídos e toca a questão da oralidade da expressão regional. Reconstituindo
as linhas gerais de seu raciocínio sobre esse tema, Bosi considera a questão de
duas maneiras. A primeira consiste em pensar o excluído como objeto da escrita
ou seja, ao nível dos temas, das personagens e das situações narrativas. A segunda
maneira toma o “homem sem letras” como sujeito do processo simbólico (Bosi,
2002).
Bosi afirma que esse olhar, que deslocou o marginalizado de objeto a
produtor, parece ser novo, como é o interesse pelos vencidos e pelas minorias
muito presente desde a década de 1970, mas essa visão, segundo ele, é de um
tempo bem anterior, do início do século XIX e tem raízes românticas. Ela data
de estudos eruditos que escavaram a memória cultural e a linguagem arcaico-
popular no séulo XIX. Bosi lembra que o termo folklore (sabedoria popular)
53
apareceu em meados do século XIX. Assim como os estudiosos do velho
mundo, os pensadores brasileiros também investiram nesse movimento de
reunião dessas manifestações simbólicas que exprimissem uma identidade
nacional diferente da forma culta estabelecida pela linguagem “alta” do poder
colonizador.
A entrada da oralidade na ficção brasileira, então, tem suas raízes no
Romantismo. A questão é que as primeiras realizações desse projeto,
especialmente se pensarmos em Alencar, se concretizam de forma que há uma
diferenciação bem nítida entre a voz culta e alta do narrador e a voz do índio, do
sertanejo ou do gaúcho. A voz da diferença é sempre bem marcada numa espécie
de parênteses e ocupa uma posição subalterna em relação à voz do narrador que
se utiliza de linguagem culta.
Bosi reúne os movimentos do Romantismo, do Indianismo, do Nativismo
e a paixão pela cultura popular como processos que duraram gerações com pico
no período das independências. Para o crítico, o regionalismo opera uma
valorização tanto estética quanto moral das tradições populares e faz crescer o
debate sobre as identidades regionais e finalmente sobre a identidade nacional.
Quanto ao uso ideológico desse panorama cultural, Bosi afirma que
dependerá do olhar conservador ou progressista do pesquisador e de seus
leitores. De toda forma, o autor conclui que a oralidade sempre esteve no íntimo
de toda expressão arcaico-regional tanto formalmente quanto como sistema de
54
comunicação. Eu diria que a oralidade está longe da língua padrão que é, quase
que por força, escrita. O Nordeste sempre foi a região do país com maior
número de crianças em fase escolar fora da escola. Então, não é à toa que sua
literatura seja mais apegada ao universo do oral.
Mas há ainda uma grande mudança no ponto de vista de Alfredo Bosi,
desde as críticas duras de História concisa da Literatura Brasileira até a valorização do
regionalismo como um local de revelação da tradição popular e de descoberta da
identidade própria em Literatura e resistência.
O texto de Antonio Dimas, “A encruzilhada do fim do século” (Dimas,
1994: 555-74), explica de maneira um pouco mais pegada ao momento sócio-
histórico a quantidade de veias literárias antagônicas e até contraditórias que
marcaram o fim dos oitocentos.
Dimas lança outra visada sobre o mesmo período analisado por Lúcia
Miguel-Pereira e Antonio Candido. Segundo sua explicação, o período romântico
viu surgir uma valorização do local e uma busca pelo nacional, mas o que veio
depois da liberação da tutela cultural portuguesa foi uma adesão quase que
unânime a outras fontes, especialmente a francesa.
Pouco a pouco as fórmulas importadas se esvaziaram em fôrmas e a
destreza no manejo delas era sinônimo de refinamento cultural, podendo até
servir de trampolim social. Os homens de letras foram quase que engolidos por
55
um estado de alienação e frivolidade guiado por um exibicionismo pessoal que
estava algumas vezes acima da dedicação artística.
Esse estado de coisas fez surgir um esforço para cobrir o homem de letras
de um mínimo de respeitabilidade burguesa antes que ele se afundasse de vez na
ilusão afrancesada de ser um boêmio literário movido por um desejo de
transgressão social e pelo sonho de morrer gloriosamente em Paris. Bosi, como já
vimos anteriormente, resume esse período no esnobismo das elites urbanas em
importar modas estrangeiras.
Acontece que a Abolição e a República transformaram a sociedade de tal
modo que o ingresso dessa geração de forma regular na sociedade foi guiando
esses boêmios para carreiras no jornalismo, na diplomacia ou na burocracia do
estado. Dessa geração, Dimas cita os nomes de Bilac, Coelho Neto, Aluísio
Azevedo e Raul Pompéia.
Surge desse jogo de incompatibilidades um momento de patriotismo que
tinha o desejo de enterrar essa literatura de floreio. Nesse sentido, na década de
1920, acontece um momento de revalorização do Regionalismo literário. Essa
revalorização segue o mesmo rumo do regionalismo romântico. Faz da região um
idílio e a representação do homem do campo atinge seu grau máximo de
idealização. Juca mulato (1917) de Menotti del Picchia, Alma cabocla (1920) de
Paulo Setúbal, Os caboclos (1920) de Valdomiro Silveira e os Ipês (1921) de Ricardo
56
Gonçalves são romances dessa fase, responsáveis pela construção de uma
imagem idealizada de homem do campo.
Monteiro Lobato em 1918, compra a Revista do Brasil para levar adiante seu
projeto de defesa dos postulados nacionalistas em todos os níveis. Mas, sabemos
que Lobato tem o seu momento de tornar o caboclo um estigmatizado, avesso ao
progresso, uma praga a exaurir a terra. Lembremos de seu Jeca e recortemos um
trecho do texto “Velha praga” de Urupês:
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se. .... Acampam. Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias. Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem (Lobato, 1983: 141-42).
Lobato é realmente uma figura contraditória como o seu tempo e sabemos
como mais tarde suas opiniões sobre o caboclo vão mudar a ponto de Lobato
trabalhar em benefício do caboclo em campanhas de saúde pública.
Euclides da Cunha, num trecho realmente célebre de Os sertões, elabora
uma visão do homem culto em relação ao sertanejo pobre oposta à de Lobato:
A lei do cão... Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa
todos os comentários. Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados... Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.
57
Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala. (Cunha, 2002: 320)
Parece que Dimas traz à tona um outro lado da questão regionalista: a luta
que essa expressão literária trava com esse lado da nossa identidade que a faz
subalterna. Essa luta na qual as influências estrangeiras são negadas sempre
existiu na nossa literatura com maior ou menor intensidade. Quando essas
influências são afastadas surge espaço para a observação e invenção de nossas
individualidades e é nesse momento que a “cor local” aparece junto com as
formas de viver e de falar de nossa gente.
Grosso modo, o regionalismo literário foi caracterizado neste estudo da
seguinte forma. O regionalismo, presente desde o início da nossa literatura, se
apresenta de modo mais evidente em três momentos. Primeiro, no início mesmo
do nosso romance, há a configuração de um regionalismo romântico com
Taunay, Távora, José de Alencar, Bernardo Guimarães entre outros.
Depois, de 1880 a 1922, numa fase de permanência, chamada também de
pós-romântica, surge o conto sertanejo como um gênero artificial e pretensioso.
Finalmente, será apenas com o romance de 1930 que o regionalismo abandona a
idealização pitoresca e inventa uma voz autêntica pela qual mostra vivamente os
dramas da região. Não há mais a apreciação amena e condescendente do tema.
Antes, encontra-se uma forma seca e dura, de fundo crítico, que mostra numa
58
união belíssima de forma e conteúdo os temas do Regionalismo Nordestino: a
seca, a fome e a migração.
Temos feito até agora um mapeamento das definições e fases do
regionalismo desde o que nos diz o senso comum até as elaborações mais
sofisticadas feitas por alguns de nossos principais críticos. Mas será que toda obra
que tematiza o Nordeste é regional? Será que o regionalismo ainda existe?
Com base no estudo que até agora fizemos, é possível chegar à conclusão
de que o regionalismo enquanto movimento literário chegou ao ápice e ao fim
com a obra genial de Guimarães Rosa. Já em 1970, momento em que foi
publicado o texto “Literatura e subdesenvolvimento”4, Antonio Candido afirma
que o regionalismo não se esgota pelo fato de ninguém mais o considerar uma
expressão privilegiada. É claro que do ponto de vista de Candido, porque se
olharmos pelo lado da produção, escritores continuam produzindo. A
repercussão dessa produção é que é diferente.
A literatura nordestina contemporânea está longe da temática
comprometida com a realidade sociológica ou de denúncia que marcou o
Romance de 1930. Flávio Moura, em artigo publicado recentemente, parte de um
4 Segundo informação nas notas do livro de Candido, A educação pela noite & outros ensaios (Candido, 1986), “Literatura e Subdesenvolvimento” apareceu em tradução para o franc~es de Claude Fell na revista Cahiers d’Histoire Mondiale, UNESCO, XII, 4, 1970, e a seguir em espanhol na obra coletiva a que se destinava, America Latina em su Literatura (Coordenação e Introdução de César Fernández Moreno), México, UNESCO, Siglo Veintiuno, 1972, editado em Português pela editora Perspectiva em 1979, em São Paulo. Antes, porém, já havia aparecido na revista Argumento, I, 1 de outubro de 1973.
59
texto de Ariano Suassuna para caracterizar a produção literária nordestina atual
como “expressão poética da realidade” (MOURA, 2005: 40).
Regionalismo e Modernismo
O Modernismo de São Paulo disputa com o Regionalismo nordestino a
hegemonia no campo literário das décadas de 1920 e 1930. Nessa disputa o
programa paulista apresenta grande força e facilmente ganha o poder de
infiltração nacional. O Brasil dos anos vinte estava dominado pelas idéias do
grupo paulista, embora de Recife surja a voz de Gilberto Freyre que,
contrariando as tendências que ditavam moda no momento, realiza estudos de
antropologia histórica e cultural moderníssimos.
Mary Del Priore, num texto brilhante intitulado “Entre tradição e
modernidade: o exemplo de Gilberto Freyre” incluído na obra coletiva
organizada por Fátima Quintas, Evocações e interpretações de Gilberto Freyre, questiona
a originalidade dos estudos de Gilberto Freyre a partir de um contexto de forte
crítica em relação à pressão da historiografia internacional que nos faz modernos,
mas também ignorantes da nossa própria tradição. Priore entra fundo na
discussão sobre a colonização do campo acadêmico brasileiro, sempre obrigado a
estar atualizado em relação aos estudos desenvolvidos nas universidades
americanas, no mais das vezes, ou européias, se fortes o suficiente para atingirem
o campo americano.
60
Para Priore, a originalidade de Freyre vem de sua capacidade de analisar a
sociedade brasileira a partir do privado. Isso nos anos de 1930. Geoges Duby e
outros intelectuais irão pelo mesmo caminho apenas nos anos de 1970. A
historiadora reafirma que a grande contribuição dos estudos de Freyre foi ter
baseado seu trabalho intelectual na noção de que é preciso estudar o Brasil
valorizando o regionalismo. Especialmente nos tempos de hoje, quando o ponto
de vista crítico elaborado a partir do regional se mostra cada vez mais produtivo.
Priore argumenta que:
Nesses tempos de multiculturalismo, a reflexão sobre as culturas locais é imperiosa. Sim, obrigatória porque ao desmembrarmos as rubricas que nos permitem estudar uma cultura (religião, mitos, crenças, técnicas, ..., enfim, as que foram visitadas, de forma inédita, nos anos 1930, por Freyre), percebemos a coerência interna de comunidades que seguimos desconhecendo. Desconhecemos a singularidade da maior parte dos nossos sistemas sociais. Sobretudo dos que estão nas margens, nas franjas do Sudeste. Nesse sentido, o compromisso que deveria ser firmado é com o regional. (Quintas, 2003, 138)
José Aderaldo Castello faz uma leitura conciliadora de Gilberto Freyre e de
José Lins do Rêgo que revela, para além dessa disputa superficial, o sentido do
modernismo profundo, que ambas as tendências gozam, uma vez que encenam
um
processo de revisão temática e renovação estilística, a partir de sugestões tomadas a escritores da era colonial, desde cronistas do século XVI, até a observação direta da linguagem oral contemporânea. (CASTELLO, 1961: 16)
Então, para Castello, o modernismo do sul e o movimento regionalista
nordestino grosso modo divergem apenas num momento inicial, devido ao forte
61
veio futurista de destruição do passado alardeado pelos paulistas e largamente
refutado pelos nordestinos. E o que seria uma discussão pontual cresce para uma
disputa calorosa que revolvia a superfície de um discurso comum voltado ao
mesmo tempo para a revisão temática e a renovação estilística.
Como já vimos anteriormente, a crítica paulista resolve a questão dessa
disputa a partir de uma explicação de base política e econômica resumida no
embate: a decadência do açúcar versus a expansão cafeeira. As argumentações de
Maria Arminda do Nascimento Arruda (Arruda, 1986: 87) e de Neroaldo Pontes
de Azevedo (Azevedo, 1984) na esteira de idéias de Antonio Candido se voltam
para o argumento de que o Regionalismo nordestino defende a tradição porque é
nela que está localizada sua hegemonia, naquele momento perdida para os
paulistas.
Então, como numa tentativa de resgate desse passado de glórias e por uma
necessidade de conservação, o grupo nordestino apela para o passado, ao passo
que o grupo modernista, num primeiro momento futurista, apresenta um caráter
destruidor de estéticas tradicionais. Azevedo cita uma frase de Prudente de
Moraes Neto que define bem as idéias paulistas nesse momento: “Basta não ser
tradicional para ser ótimo”. (Azevedo, 1984: 185)
Mário da Silva Brito, no primeiro tomo de sua História do Modernismo
brasileiro, mostra como a palavra futurista era usada pelo grupo paulista mais
como um rótulo de desafio que aborrece do que propriamente como um
62
programa, pois o que eles queriam marcar a todo custo era a sua reação à arte
acadêmica. (Brito, 1997: 157-247). Para colocar seu projeto de renovação em
prática e para dar visibilidade a ele, o grupo paulista dispunha de tudo, inclusive
da palavra “futurista”.
O que esses artistas liderados por Oswald de Andrade, Menotti del Piccia,
Mário de Andrade e Anita Malfati queriam mostrar, segundo Brito, era que a arte
tinha mudado porque a vida tinha mudado. Eles queriam alardear a vida nova de
São Paulo: as fábricas, os imigrantes, os comissionários, os burgueses. Nesse
sentido é que sua visão nacional é somente uma visão paulista:
O meio citadino sobrepunha-se ao campesino. A fábrica e a bolsa suplantavam a fazenda. O modernismo começa por ser um movimento de São Paulo não contra o Brasil, mas acima do Brasil. São Paulo, através de seus escritores, pretende alcançar a liderança cultural, reivindica para si a direção da inteligência brasileira. (BRITO, 1997: 174)
José Lins do Rêgo e Gilberto Freyre, por outro lado, lutam nos jornais
contra a propaganda modernista feita por Joaquim Inojosa, que foi o divulgador
das idéias paulistas em Pernambuco. Nessas disputas, muito bem contadas por
Neroaldo Pontes de Azevêdo, o grupo nordestino se apega ao conceito de
nacionalidade, pois, vê nos modernistas do sul um apego a idéias e valores
importados. Aprofunda-se, então, a disputa entre passadistas e futuristas:
Os escritores moços de São Paulo adotam atitudes de antagonismo ao passado, ao realismo, às escolas romântica, parnasiana e regionalista, e debatem, apoiados numa visão paulista da realidade brasileira, o tema da formação racial do país. De permeio à polêmica propriamente dita, cuidam ainda em divulgar os valores modernos, quer
63
nacionais, quer estrangeiros, oferecendo ao público o conhecimento direto do que seja a nova estética. (Brito, 1997: 211) Do trecho citado acima, podemos estabelecer a relação desses modernistas
do Sul com aqueles do Norte que também clamavam por uma renovação estética
ao passo que também discutiam a formação do Brasil.
Desde 1928 com a publicação de Macunaíma por Mário de Andrade e a de
Retrato do Brasil por Paulo Prado estava aberta um senda que motivaria inúmeras
interpretações do Brasil que buscavam estudar nosso passado em busca de um
conhecimento profundo do país despojado de qualquer resquício do ilusório
idealismo romântico. Paulo Prado vê na luxúria, na cobiça, na tristeza e no
romantismo os principais males deixados pela colonização portuguesa. Ele parte
da Carta de Caminha para iniciar uma argumentação que é toda construída a
partir de um rica pesquisa em documentos de viajantes, cartas, biografias e outras
fontes históricas. Discípulo do historiador cearence Capistrano de Abreu, Paulo
Prado realiza uma obra que representa um marco na mudança que Antonio
Candido registrou como o abandono de uma visão de país novo e grandioso para
uma de país atrasado.
Pouco tempo depois, em 1933, é publicado Casa-Grande e senzala de
Gilberto Freyre que iria, na esteira do livro de Paulo Prado, contribuir para o
conhecimento do Brasil patriarcal e rural. Freyre, dono de uma prosa suculenta e
recheada de detalhes, nos mostra um quadro vivo e colorido do que foi o
64
processo de formação do Brasil. Como bem aponta Darcy Ribeiro, na introdução
do livro, Freyre tem o olhar do fidalgo, que o impede de ver uma matriz do Brasil
que é formada pela não-família, “esta família matricêntrica de ontem e de hoje,
que é a mãe pobre, preta ou branca, parideira, que gerou e criou o Brasil-massa”
(Freyre, 2000: 29).
Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, publicado em 1936
continua esse esforço coletivo, cada qual como pode, de construir o
autoconhecimento nacional. Conhecimento esse que se voltou sempre para
nosso passado colonial e imperial. Isso em pleno momento modernista. Talvez
seja essa nossa característica mais marcante entre os modernismos ocidentais.
Gilberto Freyre: o Livro do Nordeste e o Manifesto
Regionalista
Gilberto Freyre volta de seus estudos nos Estados Unidos em 1923 e dois
anos depois já dirige um movimento no qual organizou uma publicação que
alcançaria um êxito ainda hoje inexplorado: o Livro do Nordeste. Para a realização
deste livro ele conseguiu a colaboração de artistas e escritores já consagrados de
formação intelectual heterogênea e de várias áreas do conhecimento, quando ele
próprio não passava de um jovem recém formado de vinte e cinco anos. Deste
modo, inicia-se sua carreira intelectual e inaugura-se uma nova forma de
65
compreensão e representação de uma região até então vista de modo pitoresco e
condescendente.
O Livro do Nordeste nasceu da idéia de comemorar os cem anos do Diário de
Pernambuco, mas Freyre levou o projeto para muito além de seus propósitos
iniciais. Preferiu investigar os limites da cultura regional neste período de tempo
numa cobertura multidisciplinar na qual harmonizam-se dados humanos e
estatísticos, além da defesa de uma atitude política clara de criar-se no Brasil um
órgão para a defesa dos valores históricos. Desta forma, a onda que se espalhava
a partir de Freyre não era concentrada na literatura como foi o Modernismo
Paulista: antes foi um movimento transdisciplinar com forte inclinação
sociológica e histórica.
A modernização do Rio de Janeiro era o exemplo que os recifenses não
queriam seguir. Seus objetivos incluíam inventariar, de forma orgânica, um legado
cultural que estava em vias de extinção porque atravancava o fluxo veloz da
modernidade. A arquitetura, a culinária, a pintura, a vida dos estudantes, a vida
econômica, a vida política, a moda, a literatura, esses eram alguns dos assuntos
sobre os quais versavam os textos publicados no Livro do Nordeste. A insistência
de Freyre consistia na idéia de que fossem abandonadas as convenções plásticas
européias para serem substituídas por temas locais.
A questão, segundo Neroaldo Pontes de Azevedo, é mais de
complementariadade e não de antagonização. Aquela contradição cultural que
66
Candido identifica na base de nossa formação cultural e literária apresenta-se
nesta riquíssima década de 1920 no diálogo tenso desses dois movimentos: o
Regionalismo e o Modernismo.
As bases do pensamento dos regionalistas nordestinos e a seu modo
modernistas são consolidadas nas páginas do Livro do Nordeste para pouco mais de
um ano depois desembocar no 1O Congresso Regionalista do Recife, onde foi
lido o Manifesto Regionalista.
Gilberto Freyre contribui no Livro do Nordeste com três artigos – “Vida
social no Nordeste. Aspectos de um século em transição”, “A pintura no
Nordeste” e “A cultura da cana no Nordeste. Aspectos do seu desenvolvimento
histórico” – que iriam mostrar suas linhas e formas de argumentação pouco
depois mais desenvolvidas no Manifesto Regionalista.
José Maurício Gomes de Almeida, em artigo no qual analisa a relação entre
o Modernismo e o Regionalismo na década de 1920 aponta uma relação muito
íntima entre a visão social que Freyre difundiu a partir de Recife e a produção
literária que daí a pouco surgiu no nordeste. Ele escreve:
Prova do acerto e oportunidade da luta então desenvolvida por Gilberto Freyre, além das realizações inspiradas diretamente no projeto regionalista (o “Centro Regionalista do Nordeste”, de 1925, e o “1º Congresso Regionalista do Nordeste”, realizado em 1926), foi toda uma literatura que despontou, tanto na poesia quanto no romance, a partir de fins da década de 1920, e que buscou no solo regional – na existência sofrida do povo, bem como nas contradições da realidade nordestina – a matéria mesma da criação literária. Partindo inicialmente de uma visão afetiva e nostálgica, a atitude regionalista encaminha-se finalmente para o questionamento crítico, em profundidade, das bases sociais e políticas da região. (Kosminsky, 2003: 324)
67
O Manifesto Regionalista chegou à publicação apenas em 1952 quando
Gilberto Freyre garantia que só então fora possível publicar o texto que já estava
pronto em 1926 quando foi lido no 1o. Congresso Regionalista do Recife. Em
1968, Joaquim Inojosa publicou farto material documental, em três volumes, –-
O movimento modernista em Pernambuco – com o objetivo de provar ser falsa essa
declaração de Freyre e chamar a atenção para o fato de que ele, Inojosa, é que era
real merecedor da glória de ter sido em 1923, com a publicação do primeiro
número de sua Mauricéia, revista na qual divulga as idéias futuristas do sul, o
primeiro a defender uma literatura renovada.
Inojosa sempre fora deslumbrado com as idéias da Semana de Arte
Modena e mostrou uma atitude subalterna em relação aos seus realizadores. Essa
atitude submissa de Inojosa era o que o grupo recifense menos queria naquele
momento porque o centro da questão era exatamente a auto-afirmação da cultura
local. O contexto no qual Inojosa questiona Freyre está marcado por vaidades
ofendidas e orgulho ferido.
Há um possível deslize de Freyre ao afirmar que o texto de 1952 é o
mesmo lido em 1926, mas, definitivamente, ele não é um produto de 1952. É
possível localizá-lo no âmago da discussão que levou à publicação do Livro do
Nordeste. O Manifesto é um documento de reafirmação de posições desde há
muito defendidas e expostas.
68
Logo nas primeiras linhas do Manifesto em sua Recife, “velha metrópole
regional” (Freyre, 1996: 47), Freyre caracteriza o Congresso Regionalista
brasileiro como primeiro do gênero e desenrola uma enorme lista de
participantes do movimento dando a cada um sua participação particular e a
todos:
o sentido de regionalidade acima do de pernambucanidade ... de cada um e esse sentido por assim dizer eterno em sua forma – o modo regional e não apenas provincial de ser alguém de sua terra – manifestado numa realidade ou expresso numa substância talvez mais histórica que geográfica e certamente mais social que política. (Freyre, 1996: 48)
Em prefácio da 6a. edição do Manifesto, publicado em 1976, Freyre faz um
balanço do movimento, do qual cito dois pontos importantes para este trabalho:
primeiro, a visão orgânica entre homem-natureza-cultura que o pensamento
regionalista defende e, segundo, a precipitação que o movimento ocasionou de
uma corrente de pensamento social que privilegia o miúdo: a casa e a comida,
ambos aspectos tão presentes nas pautas da contemporaneidade.
A doçaria das tradicionais senhoras de engenho e das negras de tabuleiro
foi registrada como fruto de pesquisa antropológica no livro Açúcar, de Gilberto
Freyre. A renda e a medicina popular também foram temas importantes de
estudo, dirigido por uma visão ecológica pioneira, se considerarmos a
importância que a ecologia tem hoje para a conservação da vida no planeta. Cito
a seguir um trecho desse texto de Freyre de 1976, intitulado, “O movimento
regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista do Recife”:
69
... Ao mesmo tempo que dava relevo a tais valores tradicionais (a cozinha e a doçaria), pioneiramente iniciava um movimento tão modernista quanto tradicionalista regionalista de revolução das normas de artes brasileiras: pintura, escultura, arquitetura (inclusive a paisagística), móvel, cerâmica e renda. Suscitava o primeiro estudo idôneo da arte da renda no Nordeste: o do alagoano Leite Oiticica. Pretendia influir sobre modas, isto é, vestido, sapato, adorno, jóias, perfumes e sobre a medicina. Medicina, através da defesa do uso de plantas tropicais e também da assimilação de conhecimentos paramédicos e higiênicos de ameríndios, africanos e de gente do povo. Note-se que do Recife surgiria uma ecológica Sociologia da Medicina: obra que traduzida ao italiano vem tendo repercussão européia. Pretendia-se que se dessem novas formas a essas tradições de cultura, assim como à música ... rompendo-se com as convenções e com a passiva subordinação absoluta a modelos estrangeiros e unindo-se a essas novas formas ... a reinterpretação, a interpretação e a utilização de motivações e motivos brasileiros, regionais, tropicais que dessem vigor ecológico e visão ecológica das relações do homem com o ambiente regional. (FREYRE, 1996: 238)
O caráter sociológico do movimento regionalista recifense é
preponderante e não seria de outro modo, uma vez que era a sociologia a
formação de seu pensador de ponta, Gilberto Freyre. Mas, não há prejuízo de
uma visão transdisciplinar e multidisciplinar como já dito anteriormente. Nesse
sentido, recorro à outra citação deste texto na qual Freyre explica e contextualiza
essa importância da sociologia:
Nos estudos propriamente antropológicos e sociológicos, pode-se dizer que Recife, como seu Regionalismo a um tempo tradicionalista e modernista e, em seguida, com a sua revolução nos estudos afro-brasileiros e com outros arrojos inovadores, que teriam tido seu começo no Movimento da década de 20, iniciou toda uma valorização de expressões de comportamento e cultura geralmente desprezadas. Daí sua “sociologia da rua”, sua “sociologia da casa”, sua “sociologia da cozinha” e não apenas da região, dentro do seu critério ecológico tão diferente do da “Escola de Chicago” ... Daí aquele emprego pioneiro, nos setores antropológico, sociológico, psicológico – depois estendido, por seguidores vários, aos setores médico, ao etnográfico, ao da história da arte não só dos anúncios de jornais como do uso sistemático de documentos íntimos, particulares, pessoais, como testamentos, – estes para efeitos principalmente históricos .. – cartas, receitas, médicas e de cozinhas, contas de armazéns, lojas, diários, álbuns de retratos, cartões postais, caricaturas. (FREYRE, 1996, 247)
70
2º capítulo
A migração do ponto de vista da origem
Vidas secas(1938), de Graciliano Ramos; Recepção crítica: Candido e Bosi; Os retirantes e a cultura; Morte e vida severina: auto de natal de Pernambuco(1956), de João Cabral de Melo Neto; A estrutura bipolar de Morte e vida severina; Impactos da modernização, reforma agrária e humor negro; A resposta de Seu José; O migrante escuta; Essa terra (1976), de Antônio Torres; Estrutura, discurso e tempo: amor e ódio; Modernização e traição: nem Lampião nem Antônio Conselheiro; Migrações frustradas.
Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos Recepção crítica: Candido e Bosi
Vidas secas (1938) passou por críticos que teimavam em afirmar que o texto
não era romance. Maravilhou o mundo literário da década de 1930 pela sua
estrutura discursiva. Espantou a intelectualidade pelo tratamento nada
condescendente e altamente crítico e ao mesmo tempo refinado dado ao tema da
seca e da migração. Vidas secas é sem dúvida nenhuma um clássico da literatura
brasileira.
Antonio Candido e Alfredo Bosi leram toda a obra de Graciliano com uma
profundidade e uma clareza de análise impressionantes e em especial Vidas secas.
71
Estas são as duas leituras nas quais vou me concentrar para apresentar um pouco
da fortuna crítica desse romance.
Quando se trata da leitura crítica de Graciliano, é impossível não
mencionar o livro de Candido, Ficção e confissão. Neste livro, Candido reúne quatro
ensaios escritos ao longo de mais de quarenta anos. O primeiro “Ficção e
confissão” é a soma de cinco rodapés publicados por Candido no jornal Diário de
São Paulo pela ocasião da publicação de Infância. Estes textos provocaram uma
carta “amável e desencantada” de Graciliano que também está publicada no livro
junto dos artigos.
A crítica que Candido faz a Vidas secas presente no texto “Ficção e
confissão” será retomada por ele e ligeiramente alterada no último ensaio do livro
“50 anos de Vidas secas”. Nesse texto, Candido refaz o percurso da recepção do
romance, começando pelas indagações de Lucia Miguel-Pereira na resenha do
Boletim de Ariel (1938) a respeito da sua classificação como romance.
Candido ressalta ainda que Lucia também chamou atenção para o fato de
Graciliano ter conseguido alcançar a humanidade de criaturas embrutecidas e de
um nível social e cultural muito humilde. Nesse sentido, a crítica é a primeira a
falar que Graciliano deu voz àqueles que estão à margem da sociedade. Além
disso, Lucia ainda resiste em receber o romance como empenhado ou proletário.
Para ela, Vidas secas é um romance no qual “palpita a vida .. que é a mesma em
todas as classes e todos os climas” (Candido, 1992: 15)
72
Para Candido, esses temas abordados por Lucia Miguel-Pereira resumem
os pontos centrais dessa obra de Graciliano Ramos: o problema da classificação,
a composição do mundo mental de personagens regidas pelo silêncio e pela
inabilidade verbal e a superação da literatura empenhada.
A forma descontínua de Vidas secas deu o que falar. O questionamento da
classificação de romance dada pelo autor foi um dos grandes motes da sua
recepção crítica. De fato alguns segmentos de Vidas secas foram publicados e
lidos como contos. No entanto, os segmentos que compõem a narrativa, mesmo
sendo autônomos e completos, são justapostos de modo que existe uma relação
de adição e de complementaridade entre eles. Não há, como bem aponta
Candido, os elementos de ligação normalmente presentes na narrativa tradicional,
mas nem por isso a narrativa deixa de compor um círculo sem saída no qual se
fecha a vida da família de retirantes.
Ainda sobre a questão da forma descontínua de Vidas secas, Candido
mostra como a forma segmentada de Graciliano nada tem a ver com a
descontinuidade que existe no plano composicional de Memórias sentimentais de João
Miramar, de Oswald de Andrade. Em Oswald, a descontinuidade está ligada à
técnica do fragmento e é dirigida por um discurso elíptico. Em Graciliano, a
organização discursiva é muito diversa; nele o discurso é cheio e contínuo.
Segundo Candido, para mostrar a riqueza interior de personagens
culturalmente pobres, Graciliano usou uma terceira pessoa na qual o narrador,
73
com uma objetividade de relator, consegue sugerir a identidade das personagens,
sem perder a própria. O resultado dessa técnica é a composição de uma realidade
honesta e possível que é, para Candido, a menos sentimental da ficção brasileira,
mesmo quando vêm à baila grandes nomes como o do próprio Oswald, Jorge
Amado ou Guimarães Rosa.
Talvez seja fruto da extrema objetividade do narrador o fato de a crítica,
desde Lucia Miguel Pereira, ter reconhecido em Vidas secas um outro patamar do
regionalismo. O romance de 1930, como já vimos no primeiro capítulo, encontra
uma forma para tratar os temas nordestinos – seca, miséria, migração – de modo
que passa longe tanto da condescendência com que esses temas eram tratados
anteriormente quanto do discurso que está claramente comprometido com
ideologias políticas, como o romance proletário muito em voga na época. Para o
crítico, Vidas secas mostrou um país que o Brasil não conhecia e de forma tão seca
e dura como a própria realidade que Graciliano recriava.
O estudo de Alfredo Bosi sobre Vidas secas, o ensaio “Céu, inferno”,
apareceu pela primeira vez em 1982 como “Sobre Vidas secas” na revista Novos
estudos Cebrap. No ano seguinte fez parte do grande livro organizado por Roberto
Schwarz, Os pobres na literatura brasileira (1983), e, em versão ampliada foi incluída
no livro de Bosi, Céu, Inferno: ensaios de crítica literária e ideológica (1988).
Bosi faz uma análise vertical de Vidas secas, investigando a fundo o
problema do ponto de vista da narrativa. Entra aí a questão já abordada por
74
Candido da não identificação do narrador com seus personagens. Bosi consegue
armar uma leitura que explica como, por um lado, existe uma aproximação de
foco narrativo em relação ao tema, mas, por outro lado, há uma distância do foco
narrativo em relação à consciência dos personagens. A visão do narrador
desencantada e altamente crítica vai se construindo nessa combinação de fatores.
Bosi aponta o que considera o passo revolucionário da visão crítica de
Graciliano, qual seja, o fato de o narrador estar despregado da matéria que narra,
não favorecendo nem a linguagem do dominado, que é descrita na sua
inabilidade, nem a linguagem dos dominantes, que é denunciada.
Para Bosi, Graciliano avança ainda mais na sua visão crítica quando mostra
desconfiança pela cultura formalizada. Fabiano não tem nenhuma esperança de
que sua situação mude com alguma formação: antes ele teme as palavras
compridas e difíceis que, além de bonitas, podem ser perigosas.
O distanciamento que o narrador toma de sua matéria, para Bosi, vem do
fato de que Graciliano conhece por dentro as necessidades a as dificuldades da
vida de seus personagens e sabe mostrar que as folgas simbólicas dos retirantes
não passam de ilusões consoladoras.
Os retirantes e a cultura
Vidas secas é uma narrativa de terceira pessoa na qual a relação entre o
narrador e a matéria narrada encontra momentos de aproximação e de
75
distanciamento. Os migrantes, chamados de retirantes na narrativa, pertencem a
ela na condição de tema, de matéria para a narração. Do narrador, pode-se dizer,
que se trata de pessoa da elite, embora profunda conhecedora do tema e de uma
visão social altamente crítica e desencantada.
A perspectiva do narrador poderia ser apenas ilustrada, como tantas que a
precederam, não fosse o salto crítico que Graciliano dá quando aproxima a visão
do narrador da de Fabiano no que diz respeito à cultura letrada, por ambos
considerada perigosa. Do ponto de vista de hoje, é curiosa esta afirmação, pois
assistimos a uma espécie de banalização da cultura letrada. Parece que também
ela virou mercadoria e sabemos que no mercado das instituições de nível superior
estão disponíveis cursos de licenciatura em apenas três anos, com mensalidades
baratas que abrangem todas as áreas do conhecimento.
Na década de 1930, no entanto, a situação era bem diversa, como mostra
Antonio Candido, no estudo “A revolução de 30 e a cultura”. O crítico lembra
que foi nesse período que surgiram as primeiras universidades, fator que alterou
o esquema tradicional das elites. O estudo no estrangeiro era muito valorizado,
principalmente no século XIX, mas ainda hoje, goza de prestígio. A alternativa
criada pelas elites, da qual fala Candido, era a de criação de faculdades isoladas,
especialmente voltadas para a formação dos quadros da vida política e
administrativa do país. Direito, medicina e engenharia eram as portas de entrada
num tipo de nobreza funcional muito característica do tipo de sociedade de
76
feição estamental como a nossa naquele período. Numa sociedade estamental,
além das classes sociais, existem grupos de status que entram nela pelo prestígio
de suas funções. Além daquelas citadas por Candido, pode-se acrescentar ainda
os militares e o clero.
Candido afirma neste texto, “A revolução de 30 e a cultura”, que em 1940
os índices mais altos de crianças em idade escolar que freqüentavam a escola
eram os de Santa Catarina e São Paulo com 42 e 40% respectivamente. Esses
números mostram quão precário era para a maioria da população o acesso à
cultura letrada. Foi apenas depois de 1930 que a cultura começou a ser vista, em
tese apenas, ressalta Candido, como um direito de todos. O que predominava
anteriormente era a visão aristocrática de que a alta cultura era um privilégio das
elites, como sugere o trecho em que Fabiano se irrita com o modo questionador
dos filhos: “E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem
com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.” (Ramos, 1992:
21)
Essa visão da cultura está bem marcada em Vidas secas pelas atitudes, no
plano do tema, dos retirantes em relação às letras, como também, já no plano da
estrutura narrativa, pela forma como o narrador caracteriza a fala dos retirantes.
Não são poucas as referências ao modo de dizer de Fabiano e sua gente. Um
índice forte dessa condição é que até o papagaio da família, que terminou
servindo de comida, era mudo. Falavam por meio de interjeições guturais uma
77
linguagem cantada e monossilábica. Nenhum diálogo acontece sem que se passe
por meio de frases soltas e espaçadas ou que termine subitamente por um ato de
violência. Reúno abaixo uma série de explicações que o narrador nos oferece em
relação à fala dos retirantes, a primeira com relação a Fabiano, a segunda a Sinhá
Vitória, e a terceira à família como um todo:
[Fabiano] Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 1992: 20) [Sinhá Vitória] – “Meu louro”. Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como baleia. (RAMOS, 1992: 43)
[A família perto do fogo da cozinha] Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção à linguagem do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de domá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto. .... Desse negrume saiu novamente a parolagem mastigada. (RAMOS, 1992: 63-4-5)
Da primeira citação, lemos o famoso trecho no qual o narrador por meio
de um ambíguo “mas sabia” conta como Fabiano desconfiava das palavras
“bonitas”. Na segunda citação, lemos um exemplo das várias vezes em que o
narrador aproxima o discurso das personagens ao som dos animais,
especialmente aos de Baleia. Candido, no texto “50 anos de Vidas secas”, afirma
que existe quase que uma humanização de Baleia pelo mesmo caminho que
ocorre uma animalização das personagens (Candido, 1992). E, finalmente, pela
78
terceira citação fica nítida a inabilidade oral dos retirantes até e principalmente na
sua intimidade.
Os meninos nutrem ainda ilusões em relação aos poderes da linguagem
diretamente proporcionais à inocência deles. O mais novo na sua imensa vontade
de crescer logo para ser como o pai acha que pode explicar-se por meio de uma
conversa, conversa esta que não acontece. E o mais velho decide aprender uma
palavra nova que ouvira na conversa de gente adulta, a palavra “inferno”, que ele
achava bonita e repetia para si mesmo. Mas quando vai perguntar o significado
da palavra à mãe, ela o repreende com um cascudo. Sobre essa passagem, Alfredo
Bosi, conclui que infernal é não poder perguntar o que é “inferno” (Bosi, 1988:
16). O trecho mostra também, e Bosi aponta esta problemática, a violência que
está prestes a explodir a qualquer momento entre o forte e o fraco, no caso o
adulto e a criança.
Fabiano não partilha da visão de que estudo traz melhoria de vida. A
forma como ele avalia a situação de Seu Tomás da Bolandeira é indicativa desta
sua falta de confiança na cultura letrada. E esta se agrava ainda por uma espécie
de crença de que as pessoas letradas são vistas como fracas para serviços pesados:
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porque? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes dissera; - “seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, e o pobre velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão puxado. (RAMOS, 1992: 22)
79
As contas do patrão são outra forma de Fabiano desconfiar da escrita.
Fabiano tem certeza de que é espoliado pelo patrão, e certa vez até o questionou
- “trabalhar como um negro e nunca arranjar carta de alforria!” (Ramos, 1992:
93)- ao que o patrão respondeu com a sua demissão. Sua reação, então,
transforma-se em pedido de desculpa. O patrão vinha sempre com a mesma
conversa. Conversa de juros e multas. Estas palavras eram os espinhos de
Fabiano. E Fabiano revidava apenas com desculpas pois não sabia como se
defender: “Ouvira falar em juros e prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante
penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía
logrado” (Ramos, 1992: 96)
Essa sua visão ainda era informada por uma certa noção de subalternidade
que Fabiano não questiona. Ele não se arvora a nada mais do que o cabra que
sabe que é. Sinhá Vitória tem seus desejos, quer uma cama como a de seu Tomás.
Fabiano acha que isso é doidice e pergunta de modo irônico, “cambembes
podiam ter luxo?”(Ramos, 1992: 23). No trecho a seguir lemos como Fabiano se
relaciona com o saber de Seu Tomás e como constrói a visão de si mesmo: “Em
horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando
tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um
sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.” (Ramos, 1992: 22)
Mas Fabiano tem seus sonhos. Sonhos que, concordando com Bosi, não
passam de ilusões consoladoras, porque são sempre arrematados pela noção de
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subalternidade limitadora de sua condição de sujeito. Ele se pergunta se é um
homem, mas sabe que é apenas um pau mandado:
Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomás da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se forte para brigar com ela e vencê-la. ... um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria um homem. ... Não, provavelmente não seria homem; seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.(RAMOS, 1992: 23-4)
Nesse trecho, aparece nítida a visão de subalternidade que informa a
subjetividade do retirante. Em termos de narratividade, vemos como o narrador
de terceira pessoa confere à personagem um tom de primeira pessoa, ainda que
fortemente arraigado na terceira. Nada mais longe dessa forma discursiva do que
o discurso indireto livre ou o monólogo interior. Diante da análise, apesar de
termos uma primeira impressão de que quem fala é Fabiano, sabemos que quem
fala é o narrador de terceira pessoa. A fala do narrador, de tão objetiva, quase que
exclui o sujeito do narrador, chamando toda a atenção apenas para o objeto da
narração, Fabiano.
Essa noção de subalternidade de Fabiano existe em relação aos brancos –
e como Fabiano não é negro, branco significa a posição superior – como também
em relação ao governo. Governo, para Fabiano é coisa distante, certa, não podia
ser o soldado amarelo que comete injustiça e violências. Mas Fabiano vai apenas
até onde pode. Ele se depara com as grades da cadeia da primeira vez que
encontra o soldado, e da segunda fica apenas no desejo de o matar, resignando-se
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com frases feitas do tipo: “quem é do chão não se estrepa” (Ramos, 1992: 92) e
“apanhar do governo não é desfeita” (Ramos, 1992: 105).
A condição do migrante-retirante na narrativa de Vidas secas é a de tema ou
seja, sua voz está submetida à voz de um outro – o narrador. Os retirantes
possuem fala desarticulada e inábil mais afeiçoada a sons animais do que
propriamente a uma linguagem popular. A visão de mundo dos personagens é
transmitida através do discurso do narrador. Este discurso se dá em terceira
pessoa e é objetivo ao máximo. Nem por isso deixa de ser requintado no que diz
respeito à técnica.
A objetividade dessa terceira pessoa é tão plena que provoca um efeito de
eliminação do foco narrativo. À primeira vista, tem-se a impressão de que a
história se narra a si própria. Mas é só perceber que, embora os personagens
pareçam falar por si, existe ali interposto um narrador que é, no limite, a única
voz do texto. O que não é fácil de especificar é até onde vai a personagem e onde
começa a crítica do narrador. O que se pode perceber mais facilmente em
algumas passagens é o momento em que a visão do narrador ora se aproxima ora
se distancia da personagem.
Esse é justamente o grande mérito do texto, reconhecido por todos os
críticos mencionados neste estudo: a capacidade de dar visibilidade, de modo
altamente crítico, a uma realidade que é limitada em todos os recursos. Os pobres
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estão retratados em Vidas secas de uma maneira na qual os modos literários fazem
no texto o que os modos políticos ainda não puderam.
Morte e vida severina: auto de natal pernambucano
(1956), de João Cabral de Melo Neto
A obra poética de João Cabral de Melo Neto possui uma bibliografia
crítica das mais extensas. Pela bibliografia levantada por Zila Mamede no livro
Civil geometria (Mamede, 1987), até 1982, já havia quase que 2000 títulos de
estudos dedicados ao poeta. Contando os mais de vinte anos que nos separam
dessa publicação, vemos que é obra hercúlea dar conta de sua fortuna crítica.
Portanto, reúno aqui uma breve discussão sobre Morte e vida severina que não tem
o objetivo de esgotar os pontos de vista sobre a produção poética de Cabral.
Benedito Nunes no livro que dedicou à poesia de João Cabral (Nunes,
1978) realiza, na nota bibliográfica, um histórico bem completo da vida e da obra
do autor, e é dessa fonte que recolhemos o pedaço do caminho que se refere a
Morte e vida severina. No momento em que Benedito escrevia, João Cabral ainda
estava vivo e já era reconhecido como um dos poetas mais populares do Brasil.
Enormes platéias do Brasil e do exterior já tinham aplaudido o auto de natal
pernambucano Morte e vida severina, que ampliou consideravelmente o espaço de
penetração da poesia de Cabral. Morte e vida foi escrito em 1955, a pedido de
Maria Clara Machado para seu teatro, o Tablado. Ao saber que sua peça não seria
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representada, João Cabral guardou o texto que foi publicado apenas em 1956 no
volume intitulado Duas águas, que reunia sua poesia completa até então.
Em 1958, o texto recebe sua primeira montagem realizada por um grupo
amador, o Norte Teatro Escola do Pará, que o levou a palcos do Recife por
ocasião do 1º Festival Nacional de Teatros dos Estudantes. A montagem valeu a
João Cabral o Prêmio de Melhor Autor Teatral daquele ano. Essa montagem teve
uma repercussão regionalizada, mas chamou a atenção da Companhia Cacilda
Becker que encenaria o texto anos depois. No entanto, foi só em 1966 que o
texto ganhou notoriedade, quando foi encenado no teatro da PUC-SP e do Rio
de Janeiro e posteriormente no Festival Universitário de Nancy (França), com
música de Chico Buarque de Holanda.
O grande sucesso internacional repercutiu no Brasil, garantindo ao
espetáculo uma longa estrada de apresentações, com casas lotadas, em quase
todas as capitais com a Companhia Paulo Autran. Junto com o sucesso de
público aumentavam as inúmeras tiragens do texto e posteriormente da primeira
edição das obras completas do autor. Benedito Nunes chama a atenção para o
fato de que com João Cabral acontece um fenômeno que não se repetia desde
1922, a consagração popular de um poeta. Cabral chegou também à Academia
Brasileira de Letras onde tomou posse em 1969.
Marly de Oliveira na “Introdução” que faz à edição da Obra completa do
autor (Melo Neto, 1994: 15-24), conta que por volta de 1949-50, João Cabral lê
84
por acaso no El Observador Económico que a expectativa de vida no Recife era
menor que a da Índia. Cabral produz então O cão sem plumas. E, não satisfeito,
volta ao mesmo tema, mas com uma mudança de perspectiva, produziu O rio ou
relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. Respectivamente
de 1950 e 1953, esses livros representam uma virada na poesia de João Cabral.
As interpretações geradas a partir da disposição do autor em dar a
denominação de “duas águas” à sua obra entram num debate interessante.
Alfredo Bosi (de forma sintética na História concisa) e Antonio Carlos Secchin (no
estudo aprofundado em A poesia do menos) avaliam as duas águas como uma
diferenciação entre uma poesia auto-referenciada, complexa e cerebral, e uma
participante, na qual aparece o tratamento natural e humano da região com raízes
populares, e um discurso mais fácil, dada a sua natureza dramática e o uso da
redondilha maior, respectivamente.
Haroldo de Campos, em estudo dedicado a Cabral (Campos, 1970: 67-78),
chama a atenção para textos do próprio Cabral para comprovar a mesma tese.
Haroldo mostra como Cabral estava preocupado com o problema da
comunicação. Do depoimento dado por Cabral sobre a “Geração de 45” ao
Diário Carioca em 21-12-52, Haroldo aponta os traços que Cabral critica nessa
geração de poetas. Primeiro, Cabral os considera idealistas na seleção e no
tratamento da linguagem, que valoriza o sublime em detrimento do prosaico e o
inefável em detrimento do tangível. A seguir, Cabral acrescenta que “trata-se de
85
uma poesia feita sobrerealidades, feita com zonas exclusivas do homem, e o fim
dela é comunicar traços sutilíssimos, a que só pode servir de instrumento a parte
mais leve e abstrata dos dicionários. O vocábulo prosaico está pesado de
realidade, sujo de realidades inferiores, as do mundo exterior, e em atmosferas
tão angélicas só pode servir de neutralizador” (Campos, 1970: 70).
Assim falando, Haroldo afirma que Cabral sustenta, até em favor próprio,
uma noção de que havia, nessa geração, poetas que preferiam os meios da prosa e
que portanto estariam bem longe dos processos usados pelos poetas do veio da
produção naquele período, e assim, a relação entre uns e outros era apenas
cronológica. Dessa citação de Cabral, Haroldo tira a diferença entre a poesia do
próprio Cabral, marcada pela propensão realista para o substantivo e o concreto,
e a poesia da “geração de 45” de forte pendor idealista para o imponderável.
Da questão da desalienação da linguagem, Haroldo de Campos chama a
atenção para o problema da participação tratada pelo poeta no texto de 1954,
“Da função moderna da poesia”. Nesse texto, Cabral atribui o divórcio entre a
poesia e o leitor à preferência dos poetas por temas intimistas e individualistas.
Cabral critica o poema moderno que, como uma caixa de depósito, é o simples
acúmulo de material poético escrito em primeira pessoa, rico, mas desprovido de
organização e construção. Assim, Haroldo comprova como no bojo da poesia de
Cabral existe um empenho pelo alargamento do auditório.
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Cão sem plumas (1950) é para Haroldo de Campos um poema que marca a
passagem entre as dicções do poeta, um momento de equilíbrio entre as
conquistas construtivas dos livros anteriores e a vontade de comunicação e de
abertura do ambiente temático do poema. Em O rio (1953), Haroldo afirma que
Cabral já faz prosa em poesia e explica “não prosa poética nem poema em prosa,
mas poesia que fica do lado da prosa pela importância primordial que confere à
informação semântica” (Campos, 1970: 72). Morte e vida é, para Haroldo, a obra
de Cabral menos consumada e mais diluída em termos da participação, embora
apresente boa fatura enquanto experiência de poesia dramática. Resumindo a
opinião de Haroldo de Campos sobre as duas águas, diz ele que a primeira água é
a poesia de concentração reflexiva e a segunda é aquela destinada a auditórios
mais largos, é a poesia crítica que põe seu instrumento a serviço da comunidade.
Já Benedito Nunes é de opinião que em ambas há o distanciamento da
individualidade, da voz pessoal e de seus sentimentos (Nunes, 1971). Como já
bem estabelecido criticamente, a poesia de Cabral é do domínio da poesia anti-
lírica, da poesia do não, da não musicalidade, não subjetividade, não
confessionalismo, poesia desemplumada, com base na palavra concreta e com
um sentido prosaico de ordenação sintática e semântica.
A diferença entre as duas águas, segundo Benedito Nunes, está no aspecto
e na forma de comunicação. Na segunda água, há um aumento de volume e uma
ampliação da comunicabilidade dos poemas. Para Benedito Nunes, ao invés de
87
dois tipos de poesia, há dois tipos de dicção que divergem pelo modo no qual o
texto chega ao seu destinatário: ora pela leitura individual e silenciosa, ora pela
comunicação oral que possibilita uma recepção coletiva.
Penso que as diferenças entre as duas águas, no entanto, não são tão
importantes, grosso modo, quanto a visão que se encerra nelas. Poeta do
concreto, Cabral escolheu a imagem da casa com suas duas caídas, mas ainda
uma coisa inteira e sólida.
Já foi dito que a poesia de Cabral obedece a um rigor sintático e semântico
de encadeamento de idéias e palavras muito cristalino. Críticos como João
Alexandre Barbosa e Mário Chamie chamam a atenção para o fato de que esse
expediente discursivo leva o poeta e a nós leitores pelo caminho de uma didática.
Há uma espécie de lição que o poeta dá ao leitor e a si mesmo que afasta os
limites e amplia a nossa educação.
No tríptico, O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina (há os que preferem
reunir esses poemas na chave “ciclo do rio”), é forte a influência narrativa e
dramática. Poema todo feito na base das símiles prosaicas, O cão sem plumas é
elaborado a partir da visão de um sujeito-observador. Em O rio, o sujeito é o
próprio rio que é também objeto da narração. Já em Morte e vida severina, agora na
forma dramática, a voz vem diretamente das personagens. Essas mudanças na
forma exprimem as aproximações tateantes de Cabral ao tema do
subdesenvolvimento e da miséria no sertão nordestino.
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Se pensarmos esses poemas em termos de evolução é curioso notar como
o poeta sai da observação (O cão sem plumas) para o estudo de um ser, o rio, em
todas as suas possibilidades econômicas e geográficas durante seu percurso de
misérias e grandezas, e mais adiante seu foco se volta para as pessoas (Morte e
vida). É a voz que determina o ponto de vista em cada poema. A voz faz o trajeto
que sai do poeta, enquanto observador, para, num momento intermediário, ser
do próprio rio e, finalmente, para ser daqueles que vivem a miséria da região.
Não há problema ou hesitação em relação à identificação, como estudado no
processo narrativo de Vidas secas.
Discordando de Haroldo, penso que é com Morte e vida severina que Cabral
chega no melhor da realização de sua intenção de diminuir a distância entre poeta
e público. A questão aqui se torna outra: o público que Cabral queria alcançar
não foi o público que o consumiu. Não foi possível naquele momento, embora
houvesse uma tentativa, levar a poesia para fora do círculo elitista que a consome.
Mas por outro lado, há a vitória de conseguir mostrar para essa elite algo que não
seja ela mesma. Nesse sentido, o alcance da realização se emparelha ao de Vidas
secas.
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A estrutura bipolar de Morte e vida severina
Morte e vida severina é uma homenagem às várias literaturas ibéricas. Marly
de Oliveira, na “Introdução” à Obra completa de Cabral (Melo Neto, 1994), faz um
estudo bem detalhado das influências catalã, galega, portuguesa, castelhana, do
folclore pernambucano, do Realismo, do Modernismo presentes no texto (Melo
Neto, 1994). No nível do tema, esse poema condensa uma série impressionante:
os impactos de uma modernização que nunca se completa e da qual resta apenas
penúria e indigência, a denúncia da luta desigual e violenta entre pequenos
sitiantes e grandes proprietários e os efeitos da migração que transforma
vaqueiros em sub-empregados.
A estrutura do texto é bivalente: há, como no poema anterior, O rio, o
episodismo da viagem que se realiza por etapas. Acompanhamos essa viagem por
quase dois terços do texto até quando o auto propriamente dito toma lugar.
Durante o trajeto até o Recife, primeira parte do texto, Severino se depara com as
várias caras da morte: irmãos das almas que levam numa rede um sitiante
assassinado por aumento de latifúndio; morte do próprio rio que seca no verão;
casa onde velam outro Severino; uma mulher da janela que vive apenas de
atividades ligadas à morte; enterro de um lavrador. E mesmo quando chega ao
Recife, ao descansar ao pé de um muro alto, o que escuta é a conversa cheia de
humor negro dos coveiros. Deles aprende as hierarquias do cemitério que são
90
como um espelho do que se passa no mundo dos vivos. Dividido pela classe
social, o cemitério dá lugar aos retirantes junto com os indigentes, dois grupos
que estão em último lugar na escala social.
Onde antes havia um lavrador, um vaqueiro, um trabalhador de engenho,
agora há um indigente. É uma pessoa que não tem outra alternativa senão viver
nas partes mais pobres da cidade, nas margens, exposto a todo tipo de violências,
e sem nenhum conhecimento válido para os trabalhos na cidade. O destino desse
homem é o subemprego na melhor das hipóteses.
Quando Severino, a um passo de se suicidar, é salvo pelo nascimento do
filho de Seu José, passamos para o outro lado do texto, para o momento de
valorização do pólo “vida”. Não há, entretanto, nenhuma poetização da vida. A
estrutura tradicional do auto é parodiada. As rezas típicas são introduzidas e
transtornadas em seus desenvolvimentos, onde de novo aparecem miséria e
morte. O rito passa da celebração para a descrição de uma visão desencantada e
cruel. Antonio Carlos Secchin escreve que Cabral passa da palavra florida à
palavra ferida (Secchin, 1985: 107-77).
A ambivalência do texto se apresenta de modo isomórfico. Da estrutura ao
tema, a exploração das possibilidades de morte e vida ocupa todos os lugares. Se
começarmos pela definição do tipo de texto, já encontramos ambivalências: este
texto se apresenta como auto de natal pernambucano, expressão que vem entre
parêntesis abaixo do título Morte e vida severina. Segundo o Dicionário de termos
91
literários, “o auto designa toda peça breve, de tema religioso ou profano, em
circulação durante a Idade Média” (Moisés, 1974: 49). Assim, é, por definição,
peça, drama, no entanto, o título da primeira seção do texto, “O retirante explica
ao leitor quem é e a que vai”, nos abre a porta da leitura, já que endereça o leitor,
nos remetendo diretamente para o texto narrativo. Casando os domínios do
drama, da narração e da poesia, Cabral, com sua didática, já nos havia dado a
chave no título de um livro em que reunia “poemas em voz alta” (Melo Neto,
1978).
O final dessa primeira seção, “passo a ser o Severino/que em vossa
presença emigra”, continua conduzindo a ambigüidade de classificação textual e,
além disso, o uso duplo da palavra “emigra”, que remete tanto a emigrar para
nossa presença quanto para o Recife, já antecipando o tema e uma grande parte
da ação do texto.
Esse auto despontará como auto propriamente dito somente a partir da
terça parte do texto. Até lá veremos morte e vida no tratamento do tema da
migração. Muito mais morte, é verdade, e de modo muito concreto na presença
constante de defuntos chamados Severino. No entanto, o pólo “vida” existe no
plano do sonho do migrante: “só a morte tem encontrado/quem pensava
encontrar vida,/ e o pouco que não foi morte/foi de vida severina/ (aquela vida
que é menos/ vivida que defendida,/ e é ainda mais severina/ para o homem que
retira).” (Melo Neto, 1994: 178)
92
A migração esconde muitas formas de morte e vida. Morre a vida que
antes se levava na cidade natal, e nunca haverá retorno a ela, porque quando o
migrante volta à terra natal, ele nunca a vê como antes via, tão transformado pela
experiência da vida que levou na cidade para a qual migrou, no mais das vezes
maior e mais desenvolvida. Assim, para sempre será, além de estrangeiro na terra
dos outros, estrangeiro na própria terra. O próprio João Cabral viveu essa
realidade, assim como Graciliano antes dele, para citar apenas dois nomes.
Benedito Nunes escreve sobre a “dialética do desterramento” como uma
força na poesia brasileira desde Gonçalves Dias, passando por Oswald de
Andrade, Sousândrade e Carlos Drummond. É interessante lembrar aqui também
de Gilberto Freyre, que influenciado pelo desterramento, criou sua obra e está lá
citado ironicamente por Cabral, na seção catorze, momento em que o menino é
louvado em sentido inverso ao religioso: “Todo o céu e a terra/ lhe cantam
louvor/e cada casa se torna/num mocambo sedutor./Cada casebre se torna/no
mocambo modelar/que tanto celebram os/sociólogos do lugar.” (Melo Neto,
1994: 196)
Benedito Nunes explica como o nome “Severino” passa de substantivo
próprio a comum sendo todos severinos os que a seca expulsa do sertão e o
latifúndio expulsa da terra. O nome passa à categoria de adjetivo quando marca
como severina a condição de penúria e indigência vivida pelos retirantes.
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Severino procura vida e só encontra a morte. Ele caminha para um destino
trágico, produto de condições climáticas, sociais e políticas, e é salvo pelo auto de
natal que interrompendo o seu caminho para fora da vida, lhe apresenta o salto
para dentro dela. O texto é dividido em dezoito cenas/episódios. Na décima
segunda acontece o ponto alto da ação quando Severino, após ter escutado a
conversa dos coveiros no momento em que chega a Recife, começa a perceber a
cruel realidade do que lhe aguarda ali. Na seção que antecede o encontro com
Seu José, Severino faz um balanço de seu trajeto e atesta:
- Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário ... ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: ... esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, meu aluguel com a vida. E chegando, aprendo que, Nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. (MELO NETO, 1994: 192)
Profundamente desencantado com suas perspectivas na cidade, ele pensa
em cometer suicídio. Neste momento, encontra Seu José, a quem pergunta se
não seria melhor saída saltar fora da ponte e da vida. Seu José argumenta com
esperança e fé na vida quando Severino acha que:
94
não é melhor se entregar? Severino, retirante, o mar da nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira. ... Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás (MELO NETO, 1994: 194)
A partir daí, Severino se retira da ação de que participa para assistir a outra:
o auto que será representado para ele. Benedito Nunes chama esse procedimento
de auto dentro do auto, que ao terminar cede lugar à continuação do diálogo
entre Severino e Seu José.
Impactos da modernização, reforma agrária e humor negro
Severino pertence a um modo de produção que está completamente
esgotado e decadente. O diálogo entre Severino e a mulher da janela prova como
as suas atividades econômicas do Nordeste – lavrar, cuidar do gado e trabalhar
no bangüê – estão em baixa. Quanto às roças, ela explica que “esses roçados o
banco/ já não quer financiar” (Melo Neto, 1994: 179), também ali não é lugar
para criação, e, finalmente, explica quanto aos bangüês que “com a vinda das
usinas/ há poucos engenhos já” (Melo Neto, 1994: 180). Em alta estão as
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profissões que tratam da morte e profissionais vêm da cidade, retirantes às
avessas, farmacêuticos, coveiros, doutores.
O impacto que a modernização das usinas trouxe é também tratado no
trecho em que Severino chega à zona da mata e não encontra gente trabalhando.
Observa apenas o engenho em ruínas e o bueiro da usina: “Mas não avisto
ninguém,/ só as folhas da cana fina;/ somente ali à distância/ aquele bueiro de
usina;/ somente naquela várzea/ um bangüê velho em ruína./ Por onde andará a
gente/ que tantas canas cultiva?” (Melo Neto, 1994: 180)
Como todos sabem, as usinas modernizaram a produção da cana,
diminuindo o número de trabalhadores efetivos necessários. Muitos eram
aproveitados no corte da cana, mas esta é uma atividade sazonal e, no mais das
vezes, sem registro em carteira de trabalho. Desprovidas de uma forte política de
sustentação e incentivo, as usinas ficaram à mercê das flutuações do mercado e
muitas fecharam devido à ausência de investimentos e de modernização em
termos de técnica. O fechamento das usinas foi ainda pior que a sua abertura. O
desemprego gerado foi maior ainda.
A reforma agrária anda a passos lentos e violentos. Na migração de
Severino, o primeiro encontro que ele tem é com os “irmãos das almas” que
carregam no fundo de uma rede um pequeno proprietário assassinado pela
voracidade do latifundiário. Em passagem mais adiante, Severino assiste ao
96
enterro de um lavrador que viveu sua vida toda trabalhando pelo sistema de
“meias”. De seus amigos, Severino escuta os famosos versos:
- Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida.
- É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio.
- Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. (MELO NETO, 1994: 183)
No diálogo que Severino entabula com os irmãos das almas há ainda um
toque de humor negro. Severino pergunta aos irmãos que acontecerá contra a
espingarda. O que se espera num caso como esses é a punição, a prisão por
homicídio, mas na resposta dos irmãos conhecemos a dura e irônica realidade:
mais liberdade é que o grande proprietário terá, “mais campo tem para soltar,
irmão das almas, tem mais onde fazer voar/ as filhas-bala” (Melo Neto, 1994:
183).
Em seguida, Severino pergunta aonde é que levam o corpo para ser
enterrado e se acaso não pode ajudar a levá-lo. Os irmãos aceitam a sua ajuda,
pois, assim, aquele que fez mais longo caminho pode voltar dali mesmo. Os dois
estavam tão cansados que afirmam: “mais sorte tem o defunto,/ irmão das
almas,/ pois já não fará na volta/ a caminhada.” (Melo Neto, 1994: 175). É
terrível a tirada que mais uma vez inverte a valorização dos pólos morte e vida.
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A inversão do sentido religioso do auto dentro do auto também apresenta
toques de humor negro. Quando os vizinhos oferecem seus presentes ao recém-
nascido, vemos a passagem da celebração para a descrição desencantada de uma
realidade de penúria e miséria. No trecho a seguir, pode-se perceber a inversão
do tom de sobrenatural do Natal para o tom da realidade concreta mais um toque
de humor negro:
- Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor: trago papel de jornal para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor. (MELO NETO, 1994: 197) O futuro do menino, no entanto, previsto pelas duas ciganas, é
desalentador. A primeira cigana faz uma previsão dentro da permanência do
modo de vida já conhecido por todos: “cedo aprenderá a caçar:/ primeiro, com
as galinhas,/ que é catando pelo chão/ tudo que cheira a comida” (Melo Neto,
1994: 198). Mais tarde, ela continua, será um pescador de mangue coberto de
lama ou fazendo iscas com os dedos para pescar camarões. A segunda cigana
completa a figura já na clave dos impactos da modernização. Ela vê o menino
todo negro não de lama, mas de graxa das máquinas da fábrica, emprego que o
levará longe. O longe do qual fala é um mangue mais distante.
Na penúltima seção, no entanto, o tom de humor negro cede lugar a uma
crescente valorização da vida, cujo ápice é o nascimento do filho de seu José,
com toda a aura de promessa e renovação que qualquer nascimento enseja:
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Sua formosura
deixai-me que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem já bate nele, incessante. ... - De sua formosura deixai-me que diga: é belo como o coqueiro que vence a areia marinha. ... é tão belo como um sim numa sala negativa. ... Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas. ... E belo porque com o novo todo o velho contagia. Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. Infecciona a miséria com vida nova e sadia. Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria. (MELO NETO, 1994: 200-1)
A resposta de Seu José
O retirante, que esteve de fora, volta agora à cena para ouvir de Seu José a
resposta da pergunta que havia feito: se não valia mais saltar para fora da vida. A
fala de Seu José arrepia até as pedras pelo profundo respeito, confiança e
esperança na vida. E como nas tragédias shakespearianas há lugar para o riso,
mesmo aquele sem graça, no auge do drama, assim como na oposição entre o
vilão e o herói, em que quanto pior for o vilão, maior será o herói. Em Morte e
vida severina, apesar da presença constante da morte, da desesperança e da
99
ausência de perspectivas, a renovação que o nascimento de uma vida faz
acontecer é suficiente para que Seu José dê a sua resposta. E sua resposta não é
pautada pelas idéias já que, como diz, “é muito difícil defender/ só com palavras
a vida”, mas o espetáculo de florescimento que é a própria vida fala por si só.
O migrante escuta
O rumo que Severino vai tomar depois de ouvir a resposta de Seu José
restou aberto. Parece que Seu José dá a ele uma lição. Uma lição de vida. Dentro
do cenário da obra poética de João Cabral esta é mais uma de suas lições dentro
de sua pedagogia da pedra.
Essa terra (1976), de Antônio Torres
Antonio Torres é um dos escritores mais reconhecidos da geração dos
anos de chumbo. Nascido no interior do sertão baiano, em Junco, hoje Sátiro
Dias, começou a publicar em 1972 com Um cão uivando para a lua. Também
jornalista e publicitário, hoje vive no Rio de Janeiro. Entre seus prêmios mais
importantes pode-se citar o Machado de Assis da ABL pelo conjunto da obra em
2000 e o Chevalier des Arts et des Lettres dado pelo governo francês em 1998 pelos
romances publicados lá, Essa terra e Um táxi para Viena d’Áustria.
100
Fortemente marcados pela autobiografia, a maioria dos romances de
Torres, em diferentes tonalidades, tem como centro irradiador a antiga Junco.
Um táxi para Viena d’Áustria sai dessa esfera e encena os limites da vida no caos
urbano de um engarrafamento em Ipanema. Outra parte da obra de Torres é
dedicada à crônica como Centro das nossas desatenções (1996), feito de encomenda
sobre o centro do Rio de Janeiro e os seguintes: O circo no Brasil (1998) e Meu
querido canibal (2000).
Essa terra, seu mais famoso romance, é publicado com uma primeira
tiragem de trinta mil exemplares, um fenômeno editorial, esgotado rapidamente e
seguido por uma longa série de reedições e traduções. Em 2001, a editora Record
lançou a décima quinta edição de Essa terra comemorando os vinte e cinco anos
de circulação da obra. Marco da literatura sobre a migração, o romance consta
também na bibliografia de concursos vestibulares, como, por exemplo, o da
Universidade de Brasília.
Aleilton Fonseca tem publicada no site do escritor uma interessante
resenha (Fonseca, 2005) sobre Essa terra, na qual defende seu caráter de grande
clássico. Não é para menos, pois Essa terra focaliza, na experiência de uma família
do sertão baiano, o drama da migração nordestina para São Paulo numa rica
variação de matizes sem perder nem a concisão nem o poder de exploração do
tema. O ponto de vista predominante é o de Totonhim, o irmão mais novo, mas
101
há momentos em que a primeira pessoa passa para outros personagens. O
resultado dessa técnica é a amplificação do horizonte de perspectivas e o
conseqüente aumento da compreensão das diferentes respostas à situação da
migração.
Nelo, o irmão quase vinte anos mais velho que Totonhin, é o migrante
que, ao deixar sua terra, sua família e sua identidade para trás, entrega-se à
metrópole paulistana e nela se perde, desenraiza-se e termina derrotado. Ao
retornar ao lar paterno, encontra-se doente, abandonado e desiludido. Não
suporta o peso da frustração, ao sentir que não contemplara as expectativas da
família, sobretudo de sua mãe, que o imaginava rico e vencedor. O suicídio de
Nelo é, portanto, o nó do enredo. É a primeira cena do livro e é dela que vão ser
puxados os fios que ficaram soltos nos vinte anos que separam a ida e a volta do
personagem Nelo.
Este drama pungente é testemunhado por Totonhim, o mais novo da
família, que nem conhecia o irmão mais velho. Com a ajuda em dinheiro que
Nelo mandava de São Paulo, a mãe decide botar os filhos para estudar em Feira
de Santana, mas Totonhin não agüenta viver numa casa muito pior que a da roça.
Volta sozinho para o Junco, arruma um trabalho na prefeitura e mora de graça na
casa que já tinha sido de sua família.
O pai da família, muito endividado, perde as terras para seu irmão. A mãe,
iludida pela civilização, realiza seu sonho de morar em Feira de Santana e ter os
102
filhos na escola. Acontece que em Feira se dá a perdição das meninas e a baixa na
qualidade de vida apenas reforça o ódio que o pai sente por ela, já que eles viviam
em constante desentendimento sobre os rumos da família. É nesse cenário que
Totonhim reencontra Nelo, que, pobre e perdido, é recebido com saudações
destinadas aos ricos.
O suicídio de Nelo parece matar também o sonho de toda a cidade: ir
enriquecer no sul. Sua morte pode ser vista ainda como uma trágica síntese do
enorme contraste entre os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à
própria sorte, em que a redenção do homem se reduzia ao horizonte das tristes
estradas. Mas o fim da narrativa mostra a surpreendente redenção desse sonho
com a decisão de Totonhim de seguir o exemplo do irmão. Dolorosamente
ambígua, a expressão de “seguir o exemplo” nesse caso sugere a força que o
sonho de melhorar de vida na cidade grande tem, mesmo quando a realidade
mostra as piores dificuldades para a sua realização.
Estrutura, discurso e tempo: amor e ódio
A narrativa está dividida em quatro grandes partes: “Essa terra me chama”,
“Essa terra me enxota”, “Essa terra me enlouquece” e “Essa terra me ama”.
Duas delas estão subdivididas em seções menores: “Essa terra me enlouquece”
tem sete seções e “Essa terra me chama”, a primeira parte, onze seções. Dez
103
delas são narradas a partir do ponto de vista de Totonhim e a décima primeira é
narrada a partir do ponto de vista de Nelo.
Nesta seção, é contado o episódio em que Nelo apanha de policiais perto
do rio Tietê por motivos pessoais: sua esposa havia fugido com um deles e a sova
era como que um aviso para que Nelo não os atrapalhasse mais. Enquanto
apanha, meio consciente, as lembranças de sua terra afloram e se misturam com
os fatos presentes: “O mijo escorre quente e fedido, é a chuva que Deus mandou
na hora certa, viram como foi bom a gente plantar no dia de São José?” (Torres,
1997 a: 46)
A parte “Essa terra me enxota” é narrada em terceira pessoa, por
Totonhim, a partir do ponto de vista do pai. Há um deslocamento interessante
nesta seção pois o óbvio seria que o capítulo intitulado dessa forma, que remete
diretamente à migração, fosse sobre a migração para São Paulo, mas, na verdade,
trata da migração que ocorre para os centros próximos aos pequenos povoados.
Pequenos centros. Nesse caso, falando a partir de Junco, temos Inhambupe e
depois Feira de Santana. A mãe era completamente seduzida pela civilização.
Nutria grandes ilusões em relação à vida do filho em São Paulo e chegava a
desprezar os outros por não terem a mesma “sorte”. O pai era contrário a isso e
comparava a situação a ter o filho perdido no mundo. A mudança para Feira de
Santana foi a derrota do pai, mas a mãe tinha ilusões de que os filhos iriam se
104
desenvolver com a educação formal. Contudo, o que houve na realidade foi uma
queda em todos os sentidos, desde o desmembramento da família, até a profunda
desilusão do pai e a forte baixa no padrão de vida da família.
A terceira parte, “Essa terra me enlouquece” é narrada por Totonhim e
reúne histórias sobre o doido Alcino, o bobo da cidade, o desnorteado Nelo e
uma grande parte é destinada à mãe enlouquecida frente à notícia da morte
trágica do filho. Totonhim teve que acompanhar a mãe que estava
completamente fora de si a uma casa de repouso na cidade vizinha. No trajeto a
mãe delira e fala com ele como se falasse com Nelo. Ela se recusa a acreditar na
morte do filho: não pode suportar o suicídio, pois aquilo matava também seus
sonhos e invalidava toda sua vida.
A última parte, “Essa terra me ama”, conta, a partir do ponto de vista de
Totonhim, a loucura da mãe e o sofrimento do narrador em passar por aquele
processo de internação da mãe. E, finalmente, chega a última conversa que ele
tem com seu pai. Depois de o pai reclamar que havia poucas pessoas no enterro
de Nelo, Totonhim pergunta que é que o pai irá fazer agora. O velho divaga e
não acha uma resposta certa. Depois de três vezes fazer a mesma pergunta,
Totonhim se sente perdido no meio daquela situação: “Foi então que comecei a
me sentir perdido, desamparado, sozinho. Tudo o que me restava era um imenso
105
absurdo. Mamãe Absurdo, Papai Absurdo. Eu Absurdo. “Vives por um fio de
puro acaso”. E te sentes filho deste acaso.” (Torres, 1997 a: 110)
No final desse diálogo, Totonhim comunica ao pai sua decisão de ir para
São Paulo. Contrariado, o pai responde: “- Você é igual aos outros. Não gosta
daqui – falou zangado, como se tivesse dado um pulo no tempo e de repente
tivesse voltado a ser o pai de outros tempos. – Ninguém gosta daqui. Ninguém
tem amor a esta terra” (Torres, 1997 a: 111).
O tempo em Essa terra não é linear. Longe disso, há no romance uma
simultaneidade de tempos. O tempo presente da narração está ancorado em vinte
anos depois que Nelo foi para São Paulo:
Vinte anos para frente, vinte anos para trás. E eu no meio, como dois ponteiros eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa – um velho relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas. Eis como me sinto e não apenas agora, agora que já sei como tudo terminou. (Torres, 1997 a: 18)
O tempo da narrativa é o pretérito imperfeito. Essa escolha técnica dá ao
texto um tom de memória:
Não custa a crer, diria eu. Nós íamos colados um no outro, a caminho da roça. Íamos para a casa onde havíamos nascido e que há muito já não nos pertencia. Nelo se derretia em suor, mas eu não podia tirar o braço dele do meu ombro. Ele estava caindo de bêbado. (Torres, 1997 a: 29)
O discurso da narrativa, com tom coloquial, leve e bem humorado, por
vezes inverte sentidos de expressões populares e de expressões literárias
106
conhecidas. As letras das orações e do hino nacional parecem ser constantemente
relembradas e transformadas:
- Hei de te amar até morrer.
Essa é a terra que me pariu.
... Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade. – Vão morrer no barricão, loucas e com o tabaréu ensebado, para pagar a língua, revidam os solteirões desenganados. Desengano é nome feio, treta do diabo. Como o pecado e os outros nomes feios: tabaco, chibiu, e a puta que as pariu. Vaca, bezerra, égua, jumenta também têm tabaco. Eles não morrerão ensebados. (Torres, 1997 a: 16)
Há uma forte interferência da oralidade no discurso de Torres como se
pode entrever no trecho acima. A coloquialidade dos termos e a leveza do
andamento dão um tom de conversa bem humorada à narrativa. Há ainda uma
discussão de expressões literárias conhecidas que dizem respeito ao tema como a
discussão da famosa passagem de Os sertões e uma referência ao Morte e vida severina
na figura do pai que é um carpinteiro. O narrador usa a mesma expressão que
Cabral, “mestre carpina”:
Sertanejo velho, não era um forte. Também não era um fraco. Ainda era homem capaz de pegar o tronco de uma sucupira e transformá-lo, em poucas horas, num eixo que podia durar uma vida inteira. E quando um carro de boi passava cantando pela estrada, ele sabia que em algum lugar alguém estava anunciando a sua fama de mestre carpina.
Sim, era um forte. (Torres, 1997 a: 53-3)
Esse pai era basicamente um lavrador que tinha na sua família os braços
para o eito. Ele se faz carpinteiro apenas em momento de morte quando se põe a
construir o caixão. De seu ponto de vista, economicamente, ele tem o perfeito
107
esquema de sobrevivência, pois com a família toda trabalhando não precisaria de
empréstimo do banco. Mas, do ponto de vista da mãe, os filhos tinham que ter
educação formal e daí vêm as contradições.
Há inversões de cantigas populares no texto como na seguinte referência à
mãe, “ela nunca teve o avental todo sujo de ovo, ela nunca teve um avental”
(Torres, 1997 a: 97).
Às ligações em termos discursivos que são feitas a Euclides e a Cabral,
juntam-se uma referência em nível temático a Graciliano, pois temos o Nelo
sofrendo na mão de um policial e ainda um tratamento histórico de fatos
relevantes sobre o Junco, que lembram Távora, mas que dele se afastam pela
leveza, e ainda lembram o Euclides da primeira parte de Os sertões, “A terra”,
quando o engenheiro nos mostra em detalhes o relevo, o clima e a vegetação
daquela parte da Bahia. Totonhim descreve sua terra:
Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já se teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte ... As primeiras chuvas de 33 prometiam a bonança, mas ficaram só na promessa. O que se viu mais tarde foi o dilúvio, o sezão e o impaludismo... (Torres, 1997 a: 16)
108
Modernização e traição: nem Lampião nem Antonio Conselheiro
O deputado sobe no palanque e comemora com o povo ter conseguido
emancipar o lugarejo. O povo se enche de orgulho por nada mais dever à cidade
vizinha. Mas os dias passam e o povo nota que nada mesmo mudou. Para o
deputado, aquilo ali era mais uma cidade para lhe dar votos. Para o povo aquilo
era mais uma oportunidade de melhorar a cidade. O povo tem esperança. O
discurso político inventa uma modernização que soa muito boa, mas que tem
resultados apenas em benefício de quem o emite. A educação vai avançar ali o
necessário apenas para que se saiba votar. O narrador reflete sobre esses
problemas no trecho a seguir:
... o velho mal sabia assinar o nome em dia de eleição, o que não era nenhuma vergonha, todos aqui são assim: desde que se aprenda a votar, não se precisa saber mais nada. Sua escrita era outra e essa ele tinha orgulho de fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia ... a melhor caneta do mundo é o cabo de uma enxada. (Torres, 1997 a: 49)
O modo como o banco chega na cidade completa o quadro da vida
política brasileira que no mais das vezes fala em nome de todos, mas age em
benefício próprio. O banco chega de jipe e se intromete no discurso do padre. A
palavra progresso enche as bocas, mas o final da história são papéis assinados e
prazos improrrogáveis que tiram das famílias as terras de seus antepassados:
Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse uma poucas braças de terra. Os homens do jipe foram diretamente para a Igreja e pediram ao padre para dizer quem eles eram, durante o sermão. O padre disse.
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Falou em progresso, falou no bem de todos. O banco tinha a garantia do presidente. (Torres, 1997 a: 18)
A modernização parece que está, tanto no caso do deputado quanto no
caso do banco, ligada a uma traição. As palavras “desenvolvimento”,
“modernização” e “progresso” seduzem o povo que cai como pato em ciladas
políticas e econômicas, sendo sempre enganado. A política corrupta é um
problema crônico no Brasil. Nós somos um povo que tem esperança, que tem
vontade de transformar, mas que fica sempre no ora veja. Torres mostra essa
realidade de modo magistral sem cair no tom de panfleto.
Para quebrar qualquer tom de crítica social ou política que venha a
enveredar para o lado da denúncia, o narrador diverte a atenção do leitor com
duas histórias engraçadas. Uma diz que Lampião não foi a Junco, que mandou
recado dizendo que ia, mas não apareceu, e o povo se consola pensando o que
ele iria fazer naquele fim de mundo. E a outra conta que Antonio Conselheiro
esteve próximo de Junco, na rival Inhambupe, mas lá foi apedrejado. E rogou
praga dizendo que a cidade cresceria como rabo de besta, que como todos os
rabos, cresce para baixo, mas o de besta o dono corta para dar mais valor ao
animal.
110
Migrações frustradas
A visão da migração ensejada pela leitura de Essa terra é desalentadora.
Tanto a migração que ocorre para um pequeno centro próximo quanto a
migração para o sul do país, ambas acalentadas por ilusões de riqueza e de
melhoria de vida pela educação formal, não vão ao encontro dessas expetativas.
Muito ao contrário, o que acontece, como vimos anteriormente, é o
desmembramento da família, o desmantelo da economia familiar e a perda da
propriedade rural, ou seja, para aquela família ter deixado a roça, que era de
propriedade deles e de onde tiravam o seu sustento, foi o pior negócio.
Para Feira de Santana, a migração resultou numa terrível piora na
qualidade de vida da família do protagonista, pois eles foram morar num bairro
de periferia no qual o dinheiro que tinham mal dava para as despesas da casa. A
mãe teve que adicionar ao trabalho rotineiro na casa o trabalho de costura para
completar a renda e as filhas se perderam no choque cultural que é sair da roça e
entrar na cidade.
A migração para o sul não foi diferente. Ali onde antes havia um
trabalhador rural, agora há um homem bêbado, doente e perdido. Ele também é
morador de periferia, no caso de São Paulo, e uma periferia muito mais difícil,
porque mais distante do centro e mais violenta. O sonho de ficar rico em São
111
Paulo se transforma em um pesadelo de misérias que não mata, no entanto, a
ilusão lá na cidade do interior. O lema dito aos meninos “cresce logo para ir par
São Paulo” (Torres, 1997 a: 47) continua sendo repetido e a grande virada do
romance é a decisão de Totonhim em seguir os passos do irmão, mesmo tendo
diante de si o fracasso como exemplo.
A voz de Totonhim é predominante na narrativa. Nelo narra apenas uma
seção da narrativa na qual é profundamente humilhado e espancado por policiais
`a beira do Tietê. São exatamente os dois migrantes que falam na narrativa. No
escopo dos romances que formam o corpus dessa pesquisa é apenas neste
romance que aparece a primeira voz de migrante a narrar sua história.
Para um tema que está no pano de fundo da literatura brasileira desde pelo
menos 1876, com O cabeleira, e que ganhou força na década de 1930, quando
foram renovadas as técnicas e assumidas atitudes de enfrentamento do tema, que
não fossem guiadas pela condescendência ou pelo apelo ao exótico, pode-se dizer
que foi longo o caminho da personagem migrante até a conquista de sua própria
voz. Cem anos separam O cabeleira (1876) de Essa terra (1976).
É possível que esteja associada a este fato uma mudança no lugar social
dos migrantes nordestinos no sul, já há um tempo moradores e trabalhadores na
cidade grande. A vida do próprio Antonio Torres traduz um pouco essa mudança
de perfil. Não é caso isolado, é uma legião, todos os que saíram do nordeste e
112
“venceram” na vida depois de terem migrado para o sul. Mas, como veremos a
seguir, com a leitura de A hora da estrela, essa conquista da voz não é algo tão
positivo. É um desenvolvimento que opera em idas e vindas.
113
3º capítulo
A migração do ponto de vista da cidade grande
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector; O prefácio; Os títulos; A estrutura narrativa; Clarice e Graciliano; Clarice-Euclides-Cabral; Classe social e pensamento; Nossa dor de dente; As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene Felinto; As mulheres de Tijucopapo e a crítica; Narrativa trajetória; Classe social e revolução; A voz da migrante.
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector
Quando Clarice publica aquele que seria seu último romance, A hora da
estrela, em 1977, ela tinha atrás de si uma obra literária já sedimentada no
panorama da literatura brasileira como uma das maiores. Tendo começado a
publicar muito jovem, na década de 1940 – Perto do coração selvagem, seu primeiro
romance, é de 1944 – Clarice, por mais de trinta anos de escritura, tinha
construído uma identidade literária que a afastava de engajamentos políticos e
sociais. Longe disso, sua obra estava profundamente comprometida com o
escavamento do ser humano numa literatura implicada com as questões de
existência, como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das
consciências e os limites do ser.
Em A hora da estrela, no entanto, Clarice provoca um grande deslocamento
dos alicerces sob os quais estava construída sua obra. Na narrativa de A hora da
114
estrela há uma preocupação incansável em discutir com o leitor os motivos dessa
mudança na forma de escrever. Clarice, que teve uma infância difícil no Recife,
parece acertar as contas com o sentimento de culpa que tem diante da nordestina
miserável que fracassa no Rio de Janeiro, aquela que poderia ter sido ela.
Clarice se propõe “contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade
toda feita contra ela” (Lispector, 1995: 29). Como existe aí um problema grave de
identificação entre a autora e a personagem, a questão da pessoa que fala na
narrativa é resolvida por meio da interposição de um narrador. Mas esse
expediente é mais um recurso pelo qual a autora justifica e comenta seu novo
modo de escrever, bem como sua nova personagem, tão diferente daquelas
mulheres profundas de seus romances anteriores. O fictício e o verdadeiro são
despidos e travestidos de forma desconcertante no prefácio. Senão, vejamos:
O prefácio
Intitulado “Dedicatória do autor” e seguido de um parêntesis no qual
lemos “Na verdade Clarice Lispector”, este prefácio nos encaminha para uma
autora verdadeira e para uma persona masculina e fictícia. A palavra de origem
grega persona representa muito bem o que aqui fez Clarice, já que remete
etimologicamente à máscara que os atores usavam no teatro e através da qual a
voz do ator passava; daí a idéia de soar através – per sona. Nesse sentido, é que
Clarice deixa clara sua persona ao explicitar que é sua a voz que sai da boca de
115
Rodrigo S. M. Nesse sentido, há ao mesmo tempo uma quebra da ilusão narrativa
e uma renegociação dessa ilusão.
Há ainda um certo distanciamento ou, no limite, talvez até um desprezo
pela obra que é definida como “esta coisa aí”. Esse distanciamento deve estar
ligado ao trabalho com o novo a que a autora se dedicou e que não ocorreu de
forma pacífica, como fica claro nas duas passagens que copio a seguir:
(Vai ser difícil escrever essa história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona) (LISPECTOR, 1995: 39)
(Como eu disse, essa não é uma história de pensamentos. Depois provavelmente voltarei para as inominadas sensações, até sensações de Deus. Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro) (LISPECTOR, 1995: 63)
Essas passagens mostram como a identificação com a personagem era
difícil, assim como também era difícil a nova modalidade de expressão que a
autora buscava para sua nova personagem. A vontade de escrever a história é
movida por uma necessidade inexplicável e superior que comanda a ação da
escritora, embora seu desejo parecesse ser outro. É como se ela se consolasse
dizendo para si mesma que depois voltará a seu lugar confortável, mas que antes
tem que fazer acontecer a Macabéa senão ela explode. Explodiria por quê? Por
culpa de não ser a nordestina, por ser uma nordestina que passou dificuldades na
infância, mas que sempre pertenceu a uma classe social superior?
116
A questão da identificação é muito penosa para ela, pois para ela o ato de
escrita é um ato de sentir também. Ela explicita como mesmo sem identificação
há ainda um doar-se ao personagem. Nesse mundo literário de Clarice, há algo
que remete de novo à persona no próprio ato de criação da personagem, ou seja,
por aquela personagem criada soa a voz que vem do interior de uma pessoa de
carne e osso, que é a escritora.
E o que Clarice deixa claro, de modo recorrente no discurso da narrativa é
que, apesar de difícil, de distante, de desinteressante, essa história deve ser
contada. É uma história que é óbvia, que está na cara de todo o mundo, mas que
ninguém quer ver, porque essa moça é invisível para a sociedade. Mas o que a
autora se propõe é lutar contra esse desejo de ignorar a moça, que também é dela,
e não apenas da classe à qual pertence (o que seria uma saída bem mais fácil,
porém hipócrita). Nesse sentido não há denúncia, como na literatura engajada
tradicional, pois ela parte de seus próprios preconceitos, ou melhor, ela luta
contra seus próprios preconceitos para dar visibilidade àquela moça, como lemos
no trecho a seguir:
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. (Lispector, 1995: 33)
117
É por meio de parêntesis que na maioria das vezes há intromissão do autor na
narrativa. Abre-se uma brecha no discurso da narrativa para que se comente o
próprio discurso. Esses comentários vão se tornando como que pedras seguras
por onde passa alguém que cruza um córrego lodoso. Pisando na pedra seca,
perde-se o medo de escorregar no lodo molhado e mais um pouco se pode
avançar. A narrativa está toda ponteada por essas pedras secas, ou seja, por esses
trechos que investigam o próprio ato de narrar. São como bolsões de ar nos quais
a autora respira e como que recompõe seu fôlego para o ato de narrar algo a que
não se está acostumado, algo que é desinteressante, algo que não se entende bem,
algo do qual ela queria distância:
(Estou passando por um pequeno inferno com esta história Queiram os deuses que eu nunca descreva o Lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.) (Lispector, 1995: 55) O uso dos parêntesis me parece uma forma de a autora se intrometer não
apenas na narrativa, mas no discurso de seu narrador. O trecho que diz
“(Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E
parece-me covarde fuga o fato de eu não a ser, sinto culpa como disse num dos
títulos)” (Lispector, 1995: 54) é muito emblemático desse jogo de espelhos entre
a autora e o narrador, pois os limites entre um e outro são postos á prova.
Pergunto: quem dá títulos à narrativa? Rodrigo S. M. é narrador de primeira
118
pessoa, personagem que se declara autor do relato, mas poderia ele dar título ao
texto? Ora, isso é função do autor real, daquela que mal se esconde entre os
parênteses quando se identificou por “(Na verdade Clarice Lispector)”. Então
quando ela diz “sinto culpa como disse num dos títulos” me parece que aí quem
fala é na verdade Clarice Lispector. Esse jogo de duplos entre o ficcional e o real
é o dado mais intrigante do prefácio e, sem dúvida nenhuma, prepara o leitor
para uma jornada na qual Clarice, sendo, não quer ser.
A dedicatória que a autora (ou o narrador) faz ao “antigo Schumann e sua
doce Clara” revela outra face dessa grande vontade de tomar distância do texto e
de apresentá-lo para seu público de uma forma irônica. É irônico por ser uma
dedicatória a mortos, a pessoas com as quais nunca se teve intimidade, já que é de
praxe nas dedicatórias o autor se lembrar dos seus entes mais queridos e íntimos.
Além de mortos, são todos músicos eruditos, mas a narrativa vai mostrar o
avesso desse gosto refinado.
Depois do momento da dedicatória, há um deslocamento de toda essa
linha de pensamento, pois acontece a passagem do dedicar para o “dedicar-me”.
E aí temos uma seqüência de elementos aos quais a autora dedica seu trabalho: a
seu vermelho sangue, a forças sobrenaturais como gnomos e anões, a sua antiga
pobreza, e finalmente a vários autores clássicos e especialmente àquilo que cada
um deles despertou nela. A sensibilidade musical faz pauta para o encontro das
fronteiras entre a concretude física, o sangue da vida e os ossos da morte com o
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imaginário, dos gnomos e anões. Tanto a interioridade física quanto o mundo
espiritual são atravessados pelas lembranças da pobreza e por um sentimento de
culpa que aparece logo no primeiro dos outros treze títulos da narrativa, “A culpa
é minha”.
Após o “dedicar-me”, surge um outro movimento, o de meditar, até
chegar o momento que é o de escrever. E o último parágrafo deste prefácio
remete a esse problema de identificação que chega também a ser um problema de
classe social que será profundamente investigado mais adiante. A autora diz que a
história acontece em estado de calamidade pública, mas em tecnicolor “para ter
algum luxo, por Deus, que eu também preciso” (Lispector, 1995: 22). A autoria,
que já de início se declara partida, está sob uma dupla pressão: de um choque de
identificação e de sua classe social no momento em que, mesmo sem se desvestir
dos luxos que vive e dos preconceitos que tem, tenta abrir espaço para a vida e a
história de uma singela, pobre e estúpida migrante nordestina.
Os títulos
Após A hora da estrela há uma lista de outros treze subtítulos entrecortados
pela conjunção “ou”. Após o quarto subtítulo, “Direito ao grito”, aparece o
nome da autora seguido pelo subtítulo, “Quanto ao futuro.”, que ironicamente
vem marcado por um ponto final. A maioria dos títulos de fato vai aparecer no
texto, eles tem um lugar na narrativa, de modo que, à medida que lemos o texto,
120
somos remetidos para cada um deles. “O direito ao grito”, por exemplo, está
referido no trecho que copio a seguir:
O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola. (LISPECTOR, 1995: 27)
A estrutura narrativa
O discurso da narrativa de A hora da estrela é construído em pelo menos
duas instâncias: uma auto-reflexiva que investiga como e por que escrever a
história de Macabéa e a outra que é a própria história de Macabéa. De modo que
a narrativa articula duas histórias: uma é a história de como o autor escreve e a
outra é a história que o autor escreve. A primeira especula a forma e a motivação
do texto, a construção e a identidade das personagens e as tramas do enredo; a
segunda relata a simples história de Macabéa que é entrevista como uma das
muitas nordestinas que andam por aí com a “doida” palavra “felicidade” na boca.
Nos momentos iniciais da narrativa há toda uma discussão sobre quem
está escrevendo e como está escrevendo e por que não começa logo a história.
Várias vezes reitera o autor seu propósito em escrever de modo simples. Penso
que pelo fato de a história ser simples, não deseja o autor que seu discurso seja
complexo. De modo irônico, há uma espécie de rejeição de uma possível crítica
rápida que leia o romance como “modernoso”.
121
Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. (LISPECTOR, 1995: 26-7) A questão da autoria dupla volta de novo à cena neste trecho acima, pois
aquele que se autodenomina “autor da narrativa” também é um de seus
personagens, uma vez que, mesmo em narrativas de primeira pessoa, a ilusão
narrativa nos ensina que o autor e seu herói são sempre uma espécie de si mesmo
como outro, pois o si mesmo é sempre, no limite, inefável. O autor discute essa
questão – “A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida
mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só
palavra que a signifique.” (Lispector, 1995: 25) – e a teoria narrativa nos explica
que mesmo em romances autobiográficos, o eu narrado e o eu narrador não
coincidem. Entre eles há o tempo e o vento.
Clarice e Graciliano
Há um necessário diálogo com Graciliano Ramos nesse ponto da não
identificação autor-personagem. Graciliano criou uma terceira pessoa tão objetiva
que até parece sumir da narrativa, criando um enorme dissenso na sua recepção
crítica, e já surgiram análises literárias que classificavam a sua narração de
“onisciência múltipla seletiva” na qual, a partir de noções de Norman Friedman,
não há narrador e a história vem diretamente da mente das personagens.
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Na leitura que fiz de Vidas secas, no capítulo anterior, discuto o problema
da narração no romance que acredito, junto com Alfredo Bosi, ser feita em
terceira pessoa. Trata-se de uma terceira pessoa objetiva ao extremo, mas ainda
assim passível de ser diferenciada dos personagens. Clarice, por sua vez, cria uma
terceira pessoa imaginária, Rodrigo S. M., que escreve em primeira pessoa. A
clareza e a objetividade que a narrativa de Graciliano tem parece vir do propósito
de equilibrar forma e conteúdo, e este propósito é também partilhado por Clarice
em seu desejo de mudar seu jeito de escrever para conseguir escrever simples:
Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí é que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. (LISPECTOR, 1995: 52) Um outro elemento de relação com Vidas secas está no fato de que
Macabéa não se expressa por si só. Ela fala, mas é muda. O narrador chama a
atenção para sua falta de habilidade lingüística: “O seu diálogo era sempre oco.
Dava-se conta longinquamente de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E
“amor” ela não chamava de amor, chamava de não-sei-o-quê.”(LISPECTOR,
1995: 71). Como os retirantes de Vidas secas, então, Macabéa, depende de uma
voz que a faça existir.
O narrador de Vidas secas não tem ilusões hipócritas de tentar resolver o
problema dos retirantes com a narrativa. Longe disso, ele não vê redenção na
cultura letrada da qual, como seu personagem, desconfia. Graciliano consegue,
com sua obra, mostrar o avesso da sociedade. Ele põe em primeiro plano aquilo
123
que estava escondido embaixo do tapete. Clarice faz o mesmo, especialmente
quando diz que quer “tornar nítido o que está quase apagado” (Lispector, 1995:
33). Não há em ambas as narrativas um sentimento de piedade pelos
personagens. Macabéa é alvo do amor e da raiva de Rodrigo. Como criação sua,
ele confessa ser o único a amá-la, mas por outro lado ele tem raiva da sua
incompetência para a vida, da sua falta de jeito em se arranjar, da sua falta de
energia para lutar, para gritar. A subalternidade de Macabéa dá nos nervos de
Rodrigo,
(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente.) (LISPECTOR, 1995: 41)
ao mesmo tempo em que ele a ama e a entende:
Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E só eu é que posso dizer assim: “que é que você me pede chorando que eu não lhe dê cantando”? Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. (LISPECTOR, 1995: 42)
Não é piedade o que Rodrigo sente por Macabéa. Ele a ama enquanto seu autor,
ele lhe dedica um carinho especial enquanto criação sua, mas ele sabe que o
destino dela não é bom. Justaponho um outro trecho no qual surge esse mesmo
tom irônico: “(O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano
alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro
124
esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta
se torne real.)” (Lispector, 1995: 45)
Como em Vidas secas, também em A hora da estrela há momentos em que o
narrador está mais próximo do horizonte da personagem e há momentos de
distanciamento. No entanto, está claro, há uma diferença fundamental nos dois
romances quando pensamos no modo como se dá esse movimento de
aproximação/afastamento entre narrador e personagem.
Em A hora da estrela, há momentos em que a fala simples de Macabéa se
intromete no discurso do narrador por meio do discurso indireto livre. Mas,
como ela não fala muito, a passagem para sua voz é bem curta e sem muita
elaboração, de modo que o discurso é rapidamente retomado pelo narrador. A
seguir copio dois trechos, nos quais surpreendemos a vozinha sumida de
Macabéa:
Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. (LISPECTOR, 1995: 58) E uma vez os dois [Macabéa e Olímpico] foram ao Jardim Zoológico, ela pagando a própria entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos. Tinha medo e não os entendia: por que viviam? Mas quando viu a massa compacta, grossa, preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara lenta, teve tanto medo que se mijou toda. O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus, que me perdoe por favor, sim? Mas não pensara em Deus nenhum, era apenas um modo de. (LISPECTOR, 1995: 71-2) Há ainda outro ponto de contato com Vidas secas que é a questão da
subalternidade. Macabéa age por meio de uma noção de inferioridade e
subalternidade interiorizada. E algo como uma estranha mansidão que faz com
125
que ela faça todas as interpretações contra si própria. Como vimos na citação
anterior, Olímpico não gastava dinheiro com Macabéa e, por ter medo do bicho,
ela urinou nas calças e pensou: “eu não mereço que ele me pague nada porque
me mijei” (Lispector, 1995: 72).
Essa sua subalternidade vinha desde menina quando apanhava da tia e não
perguntava o porquê: “a menina não perguntava porque era sempre castigada
mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida”
(Lispector, 1995: 92). Em outra parte da narrativa, quando está na casa da
Madama Carlota, Macabéa vê Madama devorar chocolates, mas “não cobiçou o
bombom pois aprendera que as coisas são dos outros” (Lispector, 1995: 92).
Essa subalternidade está internalizada em Macabéa como em Fabiano. Na
seção sobre Vidas secas usei uma expressão de José Américo de Almeida em A
bagaceira para definir a situação: servilismo hereditário. É mesmo sem refletir
sobre a ação que a personagem a executa. Está claro no modo como Macabéa
pede desculpas ao ser ofendida. Ficar com raiva, exercer seu direito ao grito, seria
o esperado numa situação de ofensa, mas Macabéa desculpa-se. Existe um
pressuposto básico de que a culpa é sua. E aqui estamos em pleno diálogo com o
subtítulo, “a culpa é minha”. Primeiro da lista, o subtítulo parece dar conta da
culpa que a autora sente e confessa quando diante da nordestina, mas pode-se
abrir espaço para a culpa destruidora da vontade de ação de Macabéa.
126
Clarice-Euclides-Cabral
Além do diálogo com Graciliano, há ainda uma referência a Euclides da
Cunha e alguns índices que remetem a João Cabral de Melo Neto. Uma passagem
da descrição da personalidade de Olímpico termina com a afirmativa que “o
sertanejo é antes de tudo um paciente” (Lispector, 1995: 83) remetendo
diretamente à famosa frase de Euclides. A troca de “forte” por “paciente”, no
entanto, merece um pouco mais de atenção.
Olímpico, ao contrário de Macabéa – e seu nome já indica seu caráter –
tem a força e vontade para subir na vida. Sendo um operário, se considera
metalúrgico, já matou, já roubou, está disposto a fazer tudo que o leve a subir na
escala social. E Olímpico vai um dia se tornar deputado e exigir que lhe chamem
de doutor. Ele troca Macabéa por Glória sem remorso algum. Glória, loira e
gorda, tinha pai açougueiro, o que já lhe dava alguma coisa na vida, além de
pertencer ao ambicionado sul do país, era carioca da gema:
No mundo de Glória por exemplo, ele ia se locupletar, o frágil machinho. Deixaria enfim de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo por vergonha de tal fraqueza: é que desde menino na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdôo. (LISPECTOR, 1995: 83)
O caráter de Olímpico tem uma força que sangra, uma vontade incrível de vencer
não importa como. Mas, paciência? Paciência, por não ter outro recurso senão o
de esperar chegar até onde querem seus necessariamente lentos passos. Talvez o
127
que esteja aí entendido é que, para o sertanejo, tudo é difícil e os benefícios, se
chegam, chegam muito lentamente.
Macabéa, ao contrário de Olímpico, não achava que precisava vencer na
vida. Ela aceitava o que lhe dizia a Rádio Relógio, que as pessoas tinham que ser
felizes, então ela era feliz. Enquanto Olímpico tinha certeza de que venceria na
vida, Macabéa não se preocupava com seu futuro: “ter futuro era um luxo.
Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se
sentia perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou:
havia sete bilhões de pessoas para ajudá-la.” (Lispector, 1995:75)
As referências a João Cabral estão mais ligadas à vontade que o narrador
exterioriza de querer o concreto e o simples, de querer os fatos, “fatos são pedras
duras” (Lispector, 1995: 30). Nesse sentido, há uma relação com a obra de Cabral
que é o coroamento da literatura como coisa concreta, desvestida de plumas e do
cavouco da interioridade. Mas esse caminho para o concreto em Clarice é um
caminho, é um processo que se pensa e pensamento que acompanhamos,
enquanto, em Cabral já é um ponto de partida. No trecho que copio a seguir, há
uma reflexão sobre a sedução que a forma concreta exerce sobre essa nova
maneira de escrever, que o narrador busca, comparada a seu modo antigo de
escrever. A metáfora usada é a do pintor que sai da abstração para o figurativo:
Pergunto-me também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos. É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. Também quero o figurativo assim como o pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o
128
fazia por gosto, e não por não saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo... Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem. (Lispector, 1995: 37)
Os índices da classe social à qual pertence o narrador dão a exata noção da
dificuldade de identificação e do esforço em alterar uma forma de escrever que
passava longe da simplicidade que desta vez se quer alcançar.
Classe social e pensamento
A investigação da classe social é um movimento presente na reflexão que o
narrador faz sobre seu processo de desenvolvimento do tema: a vida daquela
nordestina. A primeira reflexão identifica o seu próprio lugar social, o narrador
do romance:
E eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. (Lispector, 1995: 33)
O narrador declara ter dinheiro e, na citação anterior, já o vimos bebendo
vinho branco gelado com frutas. Sabemos também que não tem rotina de
assalariado, pois não trabalha. Está na posição de escritor que vive de seu ofício e
que poderíamos supor, de classe média. Mas ele afirma não ter classe social, pois
se sente marginalizado. Ora, o modo como ele se sente em relação a sua classe
129
social não o retira dela, está claro. Senão como explicar o tempo livre, o vinho e a
cozinheira que joga fora seus rascunhos? Há aí uma possível defesa em relação ao
velho perigo que o escritor enfrenta quando, a partir de uma classe social
superior, se coloca a escrever sobre os pobres, verdadeiramente marginalizados,
com a boa intenção de dar-lhes voz. O narrador foge desta visão. Assim como
foge do lugar de autor engajado: “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei
o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo. Escrevo
portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”,
como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”” (Lispector, 1995: 32).
Nem o tema, nem a denúncia – “há poucos fatos a narrar e eu mesmo não
sei ainda o que estou denunciando” (Lispector, 1995: 43) – são motivos da
escrita. A escrita está acima dos temas, digamos assim, a escrita na qual a forma
faz o conteúdo. Mas ainda no que diz respeito à classe social, vejamos que o
narrador identifica a classe social da personagem como sendo bem pobre pois, às
vezes, à noite, com fome, mastigava papel bem mastigadinho, mas ainda assim,
“a moça que pelo menos comida não mendigava, havia toda uma subclasse de
gente mais perdida e com fome” (Lispector, 1995: 45). Os piores que ela estão já
em subclasse, portanto é certo afirmar que esta nordestina está no último andar
da escala social.
Num dos “retratos” que o narrador tira de Macabéa, ele mostra como ela
por um instante se reconhece numa classe e como seu pensamento, guiado pela
130
subalternidade interiorizada, a leva ao pensamento apequenado da comodidade
da inércia:
Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? (Lispector, 1995: 56) O pensamento de Macabéa é no mais das vezes levado por duas
referências básicas: a “cultura” da Rádio Relógio e ditos populares ou frases
feitas, como vemos na citação anterior, “as coisas são assim mesmo”. As
informações que a Rádio dá e que Macabéa decora simplesmente não lhe servem,
pois não são processadas. Macabéa não entende o sentido de palavras
importantes como “cultura”, “eletrônico” e “álgebra”, esta última ela nem
pronunciava direito, dizia “élgebra”. A falta da educação formal lhe impede de
aprender o mundo.
Os ditos populares como “quem cai não passa do chão” (p. 48), “o que é
bom devia ser proibido” (p. 50), “quem espera sempre alcança” (p. 53) ponteiam
a forma de pensar de Macabéa, engendrando uma interpretação dos eventos que
é sempre contra ela ou que apenas cria uma ilusão consoladora.
Uma vez definidos os lugares sociais de narrador e personagem, o foco
agora recai sobre quem lê:
(Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si mesmo para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo
131
para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. (Lispector, 1995: 46)
E nesse ponto a visão que o narrador tem do leitor parece bem mais acurada do
que aquela que tem em relação a si mesmo, quando declara não ter classe social.
Nessa passagem, Rodrigo S. M. assume o papel de “válvula de escape” da
massacrada classe média. Há o pressuposto de que o leitor é da classe média
quando diz “vossa válvula de escape”, ao mesmo tempo que também se assume
como tal. Sabe que seu texto, embora trate do pobre, nunca será lido pelo pobre.
Talvez seja por isso que pensa ser visto como monstro pela classe alta, pois trata
de modo não condescendente o tema, e também, por isso, talvez incomode ou
desestabilize a classe média na medida em que a esclarece.
Nossa dor de dente
O narrador, mais uma voz que se identifica como na verdade Clarice
Lispector, e ainda, em parcas intromissões, Macabéa, se engalfinham na disputa
pela voz no discurso de A hora da estrela. Podemos afirmar que Rodrigo S. M.,
sem dúvida, domina a narração, mas não o faz de modo pacífico. As intromissões
constantes de uma voz que aparece, no mais das vezes, entre parêntesis e as
pequenas e escassas intromissões de Macabéa desestabilizam a constância da voz
de Rodrigo. Muito embora essa multiplicidade seja reconhecida pelo próprio
narrador, “a dor de dentes que perpassa essa história deu uma fisgada em plena
boca nossa” (Lispector: 1995: 25).
132
Clarice escreve A hora da Estrela já no fim da sua vida e como escritora
reconhecida como uma das maiores. Ela se propõe uma matéria com a qual não
tinha intimidade numa procura de um modo novo de escrever sobre um tema
que expressa um problema social e assim, ao longo do discurso da narrativa, ela
discute suas escolhas, sua produção, suas personagens e a classe social de todos
os envolvidos: autor, personagens e leitor.
Clarice sabe que a escolha do tema a leva para um terreno perigoso no qual
a mistura de política e crítica social à matéria do romance podem desvirtuar sua já
reconhecida dicção literária. No entanto, ela cria um discurso em que os deslizes
e os perigos são discutidos e ultrapassados. A autora nega a possibilidade de
rotularem seu texto como literatura engajada, embora saiba que realiza uma
denúncia, mas afirma que não sabe bem o que está denunciando nem sabe a
quem acusar. Além disso, não há, em sua obra, ilusões de transformação da
sociedade. Há inclusive um movimento de desprezo pelo que foi produzido e o
alcance que a denúncia poderia ter é tratado com ironias, como já vimos na
análise do prefácio.
A última palavra do texto é um “Sim” que nos remete invariavelmente
para o início quando lemos “Tudo no mundo começou com um sim”. Nessa
forma estamos dentro de um círculo vicioso que, de maneira isomórfica, nos
remete para o destino de milhares de nordestinos que migram para o sul do país
133
em modo contínuo como estratégia para melhorar a vida, e encontram ou a
morte, como Macabéa, ou a glória, como Olímpico.
As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene
Felinto
Ariano Suassuna, em relato sobre um encontro que teve com Raduan
Nassar e Marilene Felinto em sua casa em 2000, conta que de Marilene já havia
escutado numa feira do livro brasileiro, em Paris, “belas, preocupadas e
pungentes palavras” (Suassuna, 2000: A2). Marilene afirmava naquela
oportunidade que escritores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice
Lispector:
escreviam a partir da experiência vivida, com verdade e força dramática (...). Hoje, pelo contrário, os escritores parecem que flanam, bóiam numa onda de diletantismo que relega a literatura a um hobby das classes médias altas do país. É enquanto artistas que os escritores brasileiros pecam. Como a narrativa deles não expressa uma pessoa, não expressa, portanto, nenhuma paisagem humana. São sombras que escrevem sobre sombras para outras sombras. A literatura brasileira de hoje é a literatura da verborragia e do show – está atrelada à televisão, à música popular e à imprensa. É uma literatura sem leitor, sem público (...). É uma literatura sem crítica – a que existe se encolhe sobre si mesma nas universidades de elite, escreve sobre si mesma, revela total desinteresse pela realidade à sua volta. (Suassuna, 2000: A2)
Nesse trecho, bastante polêmico, como quase tudo que Marilene publicou até agora, há um caminho para pensarmos o modo como a própria autora localiza sua produção na série literária brasileira. Como a de Antonio Torres, a prosa de Marilene está profundamente comprometida com a autobiografia, especialmente pela questão da migração, da identidade partida entre a infância no nordeste e a luta para “vencer” no sul. Em outro texto intitulado “Geração de Lispector produz literatura
superficial”, Felinto faz uma leitura dura de obras de Lygia Fagundes Telles, Lya
134
Luft e Nélida Piñon (Felinto: 1997: 4-3). Para ela, a literatura dessas autoras é
rotineira, bem comportada e fácil de ler. Para ela, falta “vitalidade, perplexidade, a
reinvenção mais ou menos radical de técnicas ou recursos da ficção que
atribuíssem uma marca inconfundível ao estilo dessas escritoras ... A impressão
que se tem é que falta vida nesses textos, verdade, e não o realismo a que eles
pretendem se opor” (Felinto: 1997: 4-3). Essa análise feita pelo viés do que a
essas autoras falta parece apontar para o que há em sua literatura. Ela
possivelmente identifica, nesse artigo, o inverso de sua produção literária. De
onde se tira uma primeira idéia: a literatura de Felinto é segundo ela mesma uma
que guarda seu valor na vida, na experiência vivida e na reinvenção de técnicas
ficcionais.
O problema da oposição verdade-ficção, brevemente discutido acerca de
A hora da estrela, não está no âmbito da discussão de As mulheres de Tijucopapo:
limito-me, portanto, a anotar a questão como uma posição pessoal da autora.
Está claro que as opiniões do autor e a análise de sua obra são searas
completamente independentes.
A questão que paira sobre essa discussão é clássica na teoria da literatura:
questionar se textos de memória e autobiográficos são romance ou não. Sabemos
que a literatura não é a verdade, tampouco a não-verdade, a literatura é o espaço
no qual a verdade é posta em jogo. O enunciado fictício é recebido exatamente
pelo que é – nem realidade nem mentira – porque o escritor e o leitor juntos
135
combinam suspender as regras normais da comunicação. Quando lemos, somos
regidos pelo pacto ficcional. Entramos numa realidade paralela que existe ali no
ato da leitura.
O texto marcado pela memória coloca em xeque este pacto, pois se
apresenta com “pé” na realidade. Acontece que a História nova, especialmente na
segunda metade do século XX, já tornou bem aceita a idéia de que a história,
assim como o romance, é gerada a partir de um ponto de vista que recorta, junta
e organiza os eventos de acordo com uma lógica que rege a economia interna do
texto. O ponto de vista está sempre atrelado a uma visão de mundo que tem seus
comprometimentos sociais, econômicos e políticos.
Diante disso, se já é corrente a idéia de que a história não é mero retrato
objetivo da realidade – longe disso ela está profundamente marcada pela visão de
mundo de cada autor em cada texto – a autobiografia ou o texto, como o de
Marilene Felinto e Antonio Torres, fincado na memória apresenta uma variação e
não mais um problema para sua identificação como romance.
Marilene Felinto discute seu modo de produção literário pelo viés de sua
condição de produção. Nesse sentido, entra em jogo uma discussão mais
contemporânea que tenta pensar as relações entre a literatura e os modos de
comunicação de massa como a TV e a Internet.
136
Em um texto, publicado em 1993, “Esc transferir Salvar-Tudo”, Felinto já
endereça esse nosso pão-de-cada-dia, o computador. Ela escreve que TV,
computador e telefone eram atores de sua última influência literária:
... no meu quarto pequeno de noite ... meu computador ligado olhando para meu televisor ligado, um casualmente de frente para o outro, o televisor propositalmente estacionado na tela azul de um canal que não transmitisse imagens nem sons enquanto eu falava ao telefone ... (Felinto, 1993: 6-7)
A virtualidade era o local da comunicação. O isolamento e a relação com
máquinas apontam para esse caminho que Felinto defende como um retorno à
vida, às coisas simples da vida. Não é de se estranhar que cada vez mais as
pessoas utilizem a Internet como uma estratégia para escapar da solidão exibindo
sua vida pessoal, suas fotos, seus gostos. O Orkut e o Messenger, com todo o
potencial de invenção que a escrita permite, estão dentro desse movimento de
escape da solidão, ainda que um tipo novo de comunicação aconteça na Internet.
O orkut é um caso interessante porque naquele espaço as pessoas se
integram a comunidades virtuais que eventualmente podem fazer acontecer
amizades também virtuais. A circulação de fotoblogs também é outro índice
interessante dessa satisfação do desejo de pertencimento. Há toda uma estilística
para as fotos de apresentação pessoal, geralmente borradas ou privilegiando
partes do corpo; elas raramente são claras e óbvias. Fotos do dia-a-dia e de
eventos especiais como viagens e festas também circulam ad-nauseam por todos
137
esses ambientes virtuais. A Internet funciona como um meio de transformação
da vida cotidiana em espetáculo nessa sociedade de espetáculo que vivemos hoje.
Marilene Felinto deixa clara sua posição de incorformismo frente a essa
questão virtual. Diante de autoras recentes profundamente mergulhadas na
mudez dos ambientes virtuais (barulho de teclas), na surdez da música pancadona
trance, techno, etc, e na cegueira das vitrines dos shoppings como Clarah Averbuck
e Simone Campos, Marilene Felinto representa ainda uma força de combate à
aceitação do mundo virtual encaminhada por essas autoras. Veja-se como no
trecho abaixo o melhor momento não se dá frente à tela, mas depois de largar o
computador e, além disso, como sua literatura está profundamente marcada não
pela virtualidade, mas pela vida vivida:
O melhor lugar é ... quando já se terminou de escrever, quando se pode voltar ao mundo normal das coisas e suas formas, e suas pontas e suas entranhas e sua consistência viva, tão viva quanto as fibras de uma manga-espada que se tirou do pé, se amolengou, abriu e chupou fibra por fibra doce. A vida. Minha literatura é mais influenciada por coisas assim como uma manga-espada do que por toda a literatura francesa. (Felinto, 1993: 7) Marilene Felinto nasce em Recife em 1957 e com onze anos se muda com a família para São Paulo onde, mais tarde, cursa a graduação em Letras na USP. A mudança de Recife para São Paulo produz uma marca na sua visão de mundo e na língua, ou, como ela mesma acredita (Felinto, 2005), um trauma, que reverbera no contexto de sua produção literária: “Percebi que estava no meu país mas que não falava a mesma língua, e na escola eu e meus irmãos nos sentávamos num muro passando horas a treinar o sotaque de São Paulo até perdermos completamente o do nordeste” (Felinto, 2005). A diferenciação pela língua remete à condição do estrangeiro, forte marca
da literatura de Marilene. E é a partir do reconhecimento desta condição que
Marilene se identifica como escritora: “meu caminho ... é de solidão maior ainda
138
no continente deste país gigante, onde eu não sou nada além de uma eterna
imigrante em busca de uma língua própria” (Felinto, 2005).
Marilene Felinto é também tradutora e conhecedora de autores de
expressão inglesa importantes como Virginia Woolf, Edgar Allan Poe, Bernard
Shaw, Bukowski e conhecedora também da literatura russa. Note que as epígrafes
de As mulheres de Tijucopapo reúnem Walt Whitman e Graciliano Ramos. Na
década de 1980, começa a publicar ficção. As mulheres de Tijucopapo (1982),
traduzido para o inglês pela Editora da Universidade de Nebraska, é seu primeiro
romance, escrito com apenas 22 anos, ganhador do Prêmio da União Brasileira
dos Escritores e do Prêmio Jabuti. O lago encantado de Grogonzo sai em 1987. Em
1991, publica o livro de contos Postcard (1991). E, em 2002, Marilene publica
Obsceno abandono: amor e perda.
No início da década de 1990 foi convidada para escrever na Folha de São
Paulo, onde começou resenhando, para a Revista Folha, literatura brasileira e
estrangeira, e também fez crítica de cinema, teatro e televisão. Escreveu na
Folhinha textos destinados às crianças e sobre literatura infantil. Depois migrou
para o “Caderno Cotidiano” no qual escreveu diariamente até 2001 quando
passou a ser colaboradora para a revista Caros Amigos onde ainda escreve.
As crônicas no “Caderno Cotidiano” provocaram enorme rebuliço.
Algumas deram até em processo, mas grande parte da repercussão aprova sua
originalidade e coragem no trato com determinados temas espinhosos. Enfim,
139
Marilene escreve diferentes tipos de textos em diferentes tons sobre os mais
variados assuntos com um estilo e uma visão desestabilizadora, questionadora e
polêmica, numa voz dissonante e afiada.
Da leitura que fiz de muitos desses textos da FSP (reunidos no livro
publicado pela Record, em 2000, intitulado Jornalisticamente incorreto), o que mais
me impressionou foram os sentimentos fortes que ela despertava nos leitores. Na
seção “Opinião”, li louvações e xingamentos em sua detração e em sua defesa.
As mulheres de Tijucopapo e a crítica
E as mulheres guerreiras de Tejucopapo existiram. Em 1646, o arraial de
Tejucopapo, a 60 km do Recife, viveu a Batalha das Trincheiras ou o que hoje é
conhecido como “a epopéia das heroínas de Tejucopapo”. Movidos pela fome,
invasores holandeses tentaram se apoderar do arraial, mas foram duramente
combatidos por todos do lugarejo inclusive as mulheres, que utilizaram tudo o
que podiam na luta, até água fervente, na falta de maior número de armas de
fogo. Os holandeses estavam sofrendo de escorbuto e queriam os frutos dos
cajueiros, conhecidos como remédios para a doença. Não conseguiram o que
vieram pegar.
Em 2001, quando a população do lugar organizada em um Clube de mães
da vila de Tejucopapo encenava a epopéia das guerreiras já há oito anos, Marcílio
140
Brandão captou imagens que usou para compor um curta metragem sobre essas
mulheres.
É interessante notar que o romance As mulheres de Tijucopapo, de Marilene
Felinto, teve sua primeira publicação em 1982 com prefácio de Marilena Chauí.
Dez anos depois, foi publicada a segunda edição do livro e pouco menos de um
ano depois a montagem teatral, As heroínas de Tejucopapo, começa a ser anualmente
realizada em Goiana, antiga Tejucopapo.
A repercussão dessa obra de Marilene Felinto acontece de um modo muito
peculiar. Há uma recepção no âmbito dos cursos de pós-graduação que
privilegiam a relação Literatura e Mulher, e uma grande repercussão no meio
jornalístico no qual é conhecida por sua atuação como cronista. Há ainda uma
outra recepção no meio acadêmico americano que acontece a partir de 1994,
quando o romance é traduzido para o inglês e publicado pela Universidade do
Nebrasca.
Em 1995, João Camillo Penna estudou a obra de Marilene Felinto, a partir
da Universidade de Washington, publicando o ensaio “Marilene Felinto e a
diferença” na Revista de crítica literaria latinoamericana (Penna, 1995: 213-53). Num
texto vertical e erudito, Camillo apresenta a tese de que a obra de Marilene
Felinto surge na literatura brasileira como uma obra que detona por dentro o
processo de ocultação das diferenças produzido pelo sistema unificador que
configura uma literatura brasileira como múltipla, mas que tem suas diferenças
141
absorvidas e traídas nesse processo. Para Camillo, a obra de Marilene torna
inviável a formação de tendência conciliatória do sistema intelectual brasileiro.
Fazendo uma leitura interessada deste ensaio, chamo a atenção para o que
o autor afirma em relação à questão da inserção da obra de Marilene no veio
Regionalista. Camillo parte da idéia de que o romance regionalista expunha uma
contradição interna entre escritor e massa, contradição que não mais existe na
obra de Marilene, onde, segundo ele, a massa ocupa o lugar do sujeito.
Note-se como estamos longe da síntese representativa do romance do Norte, defendida como solução integrativa do problema social brasileiro. A diferença interna ao romance regionalista entre escritor e massa, torna-se aqui diferença interna ao próprio sujeito, ele próprio sendo escritor e massa, diferença, portanto, não integrada, não assimilada, não dialetizável em uma síntese qualquer. (Penna, 1995: 243)
Esse argumento usado por Camillo de que o romance regionalista expõe a
fratura entre escritor e massa tem a ver com a idéia já discutida nesta pesquisa de
que o escritor quer dar visibilidade a um tema que está aí, mas que ninguém quer
tocar, porque escritores são pessoas da elite e o tema da migração é um tema da
massa excluída. Isso vale especialmente para Vidas secas e A hora da estrela.
Nesse sentido, há uma discussão mais nomeada no romance de Clarice,
mas também presente no texto de Graciliano sobre a função social do escritor. A
posição de Graciliano parece ser a tentativa de se colocar ao lado dessa massa
excluída sem, no entanto, falar por ela, mas falando dela a partir de seu ponto de
vista informado pelo enfrentamento honesto dos pontos de contato e de
afastamento entre as duas diferentes visões de mundo. Clarice Lispector, por sua
142
vez, encena a luta pelo poder no espaço do discurso da narrativa dando voz e vez
a um narrador (para evitar choramingos feminos), a personagem e a si própria
como autora que reclama sua voz. Em determinados momentos é muito difícil
decidir até onde vai a autora e onde começa o narrador.
Nesse sentido, esses dois romances encenam a fratura elite-massa já que os
dois são narrativas de terceira pessoa que opõem o narrador (elite) ao
personagem (massa). O argumento que Camillo usa para entender As mulheres de
Tijucopapo pode ser estendido para os dois romances de Antonio Torres,
principalmente, Essa terra, pois nestes textos o narrador não é pessoa da elite, mas
da massa. Ou melhor, como diz Camillo, essa diferença se torna estrutural do
sujeito narrador, ao mesmo tempo elite e massa.
Em linha completamente diferente, Ana Cristina Cesar resenhou As
mulheres de Tijucopapo para o Jornal Leia Livros em setembro de 1982 (Cesar, 1999),
tocando na questão do excesso do feminino frente ao menos do masculino, a
partir da seguinte passagem do romance de Felinto: “as mulheres são um pouco
doidas e os homens um pouco menos” (Cesar, 1999: 250). Nessa breve resenha
intitulada “Excesso inquietante”, Ana C. identifica o texto como “livro de
mulher” que, em permanente estado de diálogo (falando sempre para alguém),
entra em contato com muito sentimento bruto. A luta, segundo Ana C, travada
no livro é contra esse “a-mais” feminino, esse excesso com que, com muita garra
143
Marilene se atraca tentando se desviar do turvo, da indefinição e da possibilidade
de não acabar-se, de não definir que esse “a-mais” a lança.
Ana C. copia do texto a seguinte frase “porque eu posso no máximo seguir
Lampião. Por uma causa justa” (Cesar, 1999: 250) e questiona essa que seria a
saída para a loucura feminina: fincar pé no masculino. Ana C. faz uma análise que
está profundamente marcada pelas discussões de gênero que fervilhavam no
momento de sua escrita. Naquele contexto combativo era impossível aceitar a
idéia de que a salvação estaria em seguir um homem, mesmo que por uma causa
justa.
Considerando a idéia, já tão sedimentada pela crítica feminista, de que a
construção social da mulher foi sempre subordinada ao homem, numa sociedade
patriarcal, e que seus papéis foram determinados a partir de uma diferenciação
biológica – a mãe que zela do lar e o pai que luta lá fora pelo sustento da família
– penso ser possível afirmar que, do ponto de vista de hoje, essa crítica feminista
já está ultrapassada.
O mundo de hoje é regido pela convivência das mais diversas matrizes
identitárias. Ainda existem muitas lutas para serem ganhas pelas minorias, mas
sua presença na sociedade já não é tão difícil como há vinte ou trinta anos atrás.
No caso de Marilene Felinto, a situação de migração de uma região menos
desenvolvida economicamente, como o Nordeste, para o “sul maravilha” causa
naturalmente um choque de cultura inquestionável. A convivência de modos de
144
vida antigos e novos é especialmente visível nesse contexto. E essa convivência
entre o antigo e o novo, esse choque entre um feminino tradicional e o feminino
que está lutando contra a tradição e avançando barreiras, está presente no texto
de Marilene.
A casa de paredes brancas é um elemento recorrente na narrativa. Essa
imagem da casinha branca está ligada à representação da família tradicional que
ora é rejeitada ora é almejada. Essa contradição em relação ao casamento está
ligada ao fato de Rísia ter sofrido muito com a forma do casamento de seus pais,
o que a leva a rejeitar a situação por não querer repetí-la, mas por outro lado ela
tem o sonho do marido e do filho na casinha branca:
Talvez esteja indo para me casar. Porque esse poder que tenho de matar me apavora. Só um homem, um filho e uma casinha branca poderão, senão extinguir, pelo menos domar esse poder em mim. .... Serei sempre uma voluntária à guerra até que se mate em mim esse poder meu para qualquer coisa do resto que não seja uma mulher casada numa casinha branca. (FELINTO, 1992: 16)
Essa citação sozinha já dá um bom sinal das contradições em que é lançado o
tema do casamento. Existe, por um lado, a idéia de que a situação do casamento
é capaz de pôr ordem onde não há, e, por outro, a idéia de que há uma tendência
poderosa (“poder meu”) da personagem para tudo o que esteja na margem do
casamento, espécie de liberdade perigosa.
A questão do feminino é toda perpassada por contradições. Um outro
problema é a questão da sedução. Quando já próximo do final da narrativa, Rísia
decide que precisa de um homem, ela usa a intrigante expressão, “mas hoje meu
145
corpo precisou de um homem. ... eu queria ser seduzida” (Felinto, 1992: 110). O
ponto de vista da narradora é a de que é o homem o sujeito no ato da sedução.
Eis aí uma visão, pode-se dizer sem susto, bem antiga e tradicional da conquista
amorosa. Ao mesmo tempo em que ela rejeita a possibilidade da casinha branca,
sonha com ela. Ao mesmo tempo em que afirma que o homem é sempre de
menos, é dele que depende para ser seduzida. E esse homem é Lampião.
Outro índice de visão do feminino tradicional é colocar o homem na
posição de comando. Porque, embora as mulheres de Tijucopapo tenham
começado a revolução, quem está na liderança é Lampião. E Rísia será a mulher
de Lampião.
As imagens do feminino em As mulheres de Tijucopapo são contraditórias. A
coexistência de uma visão mais tradicional e de uma mais questionadora do
feminino é o retrato perfeito da consciência de uma mulher educada
tradicionalmente, mas sensível aos seus desejos e ao seu tempo. Sabe-se lá até
que ponto é possível lutar contra a tradição sem esgarçar-se, sem perder o
sentimento do que é certo ou errado. Porque a mulher queimou o soutien, mas
não consta que o homem tenha queimado a cueca. Uma coisa é a coexistência
mais pacífica e socialmente aceita de várias posições identitárias, outra coisa é
levar a discussão para o limite no qual só o que antes era margem agora é o veio.
Lampião é um símbolo de luta contra as instituições opressoras. Penso que
a inserção de Lampião na revolução contra São Paulo tem a ver com essa
146
primeira idéia que vem à cabeça quando esse nome é pronunciado. É a revolta, a
luta armada contra instituições que não solucionam os problemas da exclusão
social
Mas uma questão forte no livro, como bem apontou Ana C., é o horror à
margem. E talvez seja por causa deste horror que a família tradicional aparece no
ambiente do sonho. E um sonho artificial, escolhido e inventado como uma idéia
capaz de consolar: “vou ter que sonhar agora. Aproxima-se o meio dia e vou
precisar sonhar para agüentar que não terei a voz-fala dos meus amigos” (Felinto,
1992: 104).
No sonho, Rísia cria um espaço a salvo do mundo cão, de safadezas e
traições, vivenciado por Rísia na sua família. No sonho, Jonas corta madeira para
o berço do filho deles. Há jambos no alguidar e rosas para agüar. Do jardim, os
jasmineiros e as outras flores perfumam todo o ambiente, as colinas são verde
escuras, a vegetação da mata é exuberante de cheiros e formas. Enfim, o sonho
reúne todos os símbolos da felicidade feminina ideal: o verdadeiro amor, uma
família, o filho.
O medo da margem a coloca voltada para o lado do tradicional, daquelas
condutas aceitas por todos, embora ela se sinta quebrada por essas cobranças que
ela mesma se impõe. Esse medo da margem leva a uma queda em preconceitos:
E (vou até falar baixo) esse é o mesmíssimo poder que me torna capaz de virar uma prostituta, uma homossexual, uma louca, uma bêbada, uma bandida, uma marginal. E,
147
não, eu não sou de agüentar a margem da vida. Na margem sou fio que se quebra. Na margem só ficam os fortes. Sou fraca, fina e frágil. (FELINTO, 1992: 16)
A personagem, que se identifica como neta de avó negra e avô índio, preta de
cabelo duro, tem medo da margem. Rísia discute a prostituição, a
homossexualidade e em outras repetidas vezes a classe social. É recorrente em
sua fala o ódio por ter sido pobre, gaga e quase muda.
Narrativa trajetória
Ana C. faz um resumo maravilhoso dos pontos fortes de As mulheres de
Tijucipapo no que se refere à técnica:
Tudo é turvo neste excesso, diz a autora. Com muita garra Marilene tem a coragem de escrever disto que é turvo. Mas sem hermetismo algum. O resultado é uma narrativa em ziguezague, construída toda em desníveis, numa dicção muito oral, atravessada de balbucios, repetições, interrupções, associações súbitas, falas de tonalidade infantil. (Cesar, 1999: 249)
Talvez a grande novidade da obra de Marilene Felinto seja sua incomum dicção.
Rísia, a protagonista, tem momentos de gagueira, de mudez, porque houve um
momento de sua vida em que lhe roubaram a própria fala – sua língua
pernambucana teve de ser suprimida por outra, a paulista. Essa supressão lhe
deixou fissuras que aparecem na sua forma de expressão lingüística, toda
atravessada, como bem marcou Ana C., de repetições e interrupções que são
balanceadas com momentos de desabafos irados e cheios de ressentimentos.
Esse isomorfismo entre as condições de vida da personagem e o modo de
construção do discurso na narrativa é muito bem elaborado.
148
A narrativa é em primeira pessoa e tem constantemente a perspectiva de
um diálogo, são falas reprimidas, falas que a personagem queria pronunciar ou
para a mãe, ou para Nema, ou para Luciana e assim vai. É o que ficou engasgado
e oprimido, que através da escrita ganha expressão. Sai do jeito que tem de sair:
com raiva, rancor e ódio.
A dicção da narradora é toda construída por uma forte oralidade que tem
muito a ver com essa questão lingüística que está mesmo no modo de construção
da narrativa. Já mencionamos o aspecto da gagueira que pode estar ligado aos
processos de repetições de trechos inteiros. A oralidade tem fundo no tom de
diálogo, na forma dessa prometida carta que nunca é escrita, mas que não sai do
horizonte de perspectiva da narradora:
Mas que eu odiei meu pai, odiei. Isso sim. Até o ponto de incorporar esse ódio todo que me atrapalha. Porque ódio, menino, ódio é fogo. (Felinto, 1992: 21) Acho que ainda posso amar. Ainda posso amar. Não quero morrer, Nema. Peiote, Nema. Nemaaaaaaaaaa... (Felinto, 1992: 49) Mamãe, eu só estava esperando chegar para passar a carta para o inglês e enviar. Mamãe, essa carta, uma carta para Luciana? Eu não me arrependi. (Felinto, 1992: 135)
149
Em As mulheres de Tijucopapo, a narrativa é uma trajetória, ou seria melhor
dizer que a trajetória é a narrativa. Isso porque há a busca da origem no barro, na
lama da lendária Tijucopapo, o lugar das mulheres que não eram sua mãe, e
também a invenção de uma origem que em tudo seja contrária àquela sua.
Rísia, a personagem principal, foge de São Paulo para buscar Tijucopapo, e
caminha sonhando pela mata, um caminho de pensamentos, um caminho que é a
escrita do romance (Felinto, 1992: 57). Rísia repete que tudo parece estar
acontecendo num intervalo de fantasia e sonho e, quanto à revolução, Rísia
sempre se refere a ela como pintada a giz de cera. Nas duas passagens, que
transcrevo abaixo, há fortes indícios daquilo que chamei de trajeto-narrativa:
Eu não tenho mais esse começo que acho que tenho. Meu começo se perdeu serras lá para trás, não vou iniciar ninguém em nada. Não sei iniciar. Só sei terminar. Mas é muito difícil chegar ao fim também. Sei que do começo não me resta mais nada e que devo prender todas as esperanças ao final. Seria fácil se eu não estivesse exatamente no meio, na metade. De que me adianta evitar? Isto é uma estrada de ninguém e por onde vou a 250 mil milhas. E estou aqui porque não mais pude telefonar. Porque não mais pude falar. (FELINTO, 1992: 57) Mas eu não tomei peiote. E hoje nem peiote nem salmo 91 nem porra nenhuma para acreditar, para não cair na ilusão de . Nada, a não ser uma paisagem que vou pintando a lápis de cera num papel em branco. Minha caixa de vinte e quatro lápis coloridos. Minha ilusão. Minha revolução de cera. (FELINTO, 1992: 77)
O “aqui” a que a personagem se refere está profundamente ligado ao espaço do
texto no qual o desabafo de ressentimentos está caminhando ao lado da tentativa
de criação de uma ilusão consoladora. Ou seja, o “aqui” é o texto que ela escreve.
Ela foge da realidade através e pela escrita da narrativa, ela foge de São Paulo
150
porque perdeu o amor de um homem, foge por um caminho de sonhos e para
uma origem encantada que a redima de sua difícil e entronizada infância e da dor
de ter perdido o grande amor. Em determinado momento Rísia se pergunta se
este expediente não será falso e covarde, ao que responde de imediato “não”, e
cai logo em seus ressentimentos e no desejo de consertá-los:
Em Tijucopapo, com o homem que eu encontrar, parece menos perigoso. Mas, será falso? Será covarde? Não. .... A palavra safadeza foi mamãe que inventou. Mas eu sucumbo e confesso que terei de me cercar de uma casa e paredes brancas para não voar de déu em déu como fiapo ou pena de pássaro. ... O que me dói nas safadezas, o porquê sofro ao encontrá-las., é porque venho de um mundo já tão safado de pai e mãe, de Lita, de tia... Que o meu mundo eu quero consertado. Que foi por descobrir e lidar muito cedo com a safadeza dos homens que perdi a confiança na dignidade deles. (Felinto, 1992: 80)
Classe social e revolução
Rísia é a migrante que venceu em São Paulo. Lá da sua pobreza, da sua
falta de carinho, dos seus vermes, das malvadezas que fizeram com ela e que ela
fez com os outros, lá de Recife, “a coitada”, enfim, de lá da sua origem, ela vem
para São Paulo, “a rica”, ainda criança com a família. Foram morar no fundo de
um hotel do Brás. O primeiro choque é o da queda na qualidade de vida. O preço
na maçã:
Nem mesmo a maçã. A maça que se dizia haver em São Paulo como só há no paraíso. Nem a maçã eu provaria. Em Recife não havia maçã para pobre. Só nas oferendas do Passarás que a gente brincava. Maça ou pêra? Nema... Recife, a das frutas duras. A das macaíbas e pitombas. Mas São Paulo jamais seria o paraíso dos panfletos que distribuíam sobre ela lá na coitada Recife. (Felinto, 1992: 73)
151
Depois de dois anos que estavam em São Paulo, o pai foi preso por
contrabando. A qualidade de vida cai de modo impressionante, como já vimos na
seção sobre Essa terra, as possibilidades de renda ou são muito baixas ou estão
ligadas a ilícitos. Mas Rísia, que cresceu em São Paulo, está em outro patamar de
migração. Ela pode desenvolver sua inteligência, era muito inteligente mesmo,
“só tirava cem” (Felinto, 1992: 26), e assim que começou a trabalhar já ganhava o
salário mais alto da casa. Mas mesmo assim se sente ainda muito diferente de
seus amigos:
Eu saí de São Paulo porque houve um homem que se morreu de mim e porque lá eu morava no subúrbio enquanto todos os meus amigos estavam bem estabelecidos no Higienópolis paulista. Então, muitas vezes o contato era impossível porque eu não tinha telefone. ... O Higienópolis paulista é onde se bebem guaranás inteiros. E onde estão as pessoas que já leram os livros que eu li. (Felinto, 1992: 91)
E nesse ponto de aguçada compreensão de sua classe social, a narradora discute a
questão da classe social dos leitores, dos consumidores de literatura, assim como
Rodrigo S. M. em A hora da estrela. A conclusão a que Rísia chega é a de que
quem lê pertence, no mínimo, à classe média:
E é isso que me dana. É saber que quem vai ler os livros que lerei não é Nema – Nema não fala Inglês – não é Isla, a empregada doméstica, não é sequer minha mãe, não é muito menos o esmoler na ponte. É essa gente que discutirá a goles de coca-cola inteira no Higienópolis paulista. (Felinto, 1992: 91)
Mas a situação financeira de Rísia melhora um pouco e todas essas anotações
estão postas sob a perspectiva de um momento presente, “hoje eu viajo nos
aviões da Varig” (Felinto, 1992: 34, 39 72), frase recorrente na narrativa. Nesse
152
sentido, Rísia se torna uma aspirante à classe média de São Paulo. E a revolução
que ela pinta é contra São Paulo. Mas antes ela sai de São Paulo, na frase,
também recorrente, “Vou-me embora”. E penso estar clara a relação com o
célebre poema de Bandeira “Vou-me embora pra Pasárgada”, só que a Pasárgada
de Rísia é Tijucopapo.
Os motivos para deixar São Paulo estão relacionados com um ódio ao
modo de vida de São Paulo (p. 47). Ou porque lá todo o mundo é sozinho e
todas as histórias estão perdidas (p. 66), ou porque “em São Paulo eu quase perdi
a fala” (p. 81) ou porque Rísia está cansada de gastar seu dinheiro com táxis para
o Higiénópilis (p. 91), ou porque eram ilusórias as telas de cinema nos fins-de-
semana (p. 93), ou “porque lá se eu quisesse eu não podia” (p. 99), ou porque
“no centro da cidade de São Paulo havia era concreto armado contra mim”
(p.100), ou “porque lá eu me achava uma apedrejada” (p. 101).
Outro motivo forte é a perda do amor. Daí parecer que todos os laços
afetivos estão rompidos e a personagem está literalmente solta no intervalo de
pensamentos, escolhendo sonhos para sonhar, pintando a revolução, indo
sozinha pela estrada exposta a todos os perigos: “Nema, é assim que faço agora,
aqui, para agüentar o meio-dia. Sabe quando foi que primeiro sonhei? Quando
era 1969 e eu pisei em São Paulo. Lá nessa cidade eu passei a inventar sonhos.
Passei a precisar que o mundo se acabasse.” (Felinto, 1992: 66)
153
Rísia precisa emendar os laços rompidos, precisa se recompor e daí ela vai
atrás das mulheres que não eram sua mãe, as mulheres de Tijucopapo. Vai ver
porque era pobre, porque o pai batia nela, enfim ela vai consertar seu mundo
num intervalo de fantasias. Quanto mais perto de Tijucopapo, mais onírico vai se
tornando o texto que ganha diálogos cinematográficos:
- Arreie, mocinha. Voltaram eles com as espingardas. - Eu tenho que ir... - Arreie. (Felinto, 1992: 119)
E já ouvindo os barulhos da revolução, quase chegando em Tijucopapo, a
narradora faz um balanço do que narra. Rísia joga suspeição em si mesma. E
além disso, hesita frente à revolução que ela mesma pintou. Penso que essa
hesitação vem do fato de estar o romance armado de contradições, especialmente
no que se refere ao feminino e à classe social. Já vimos que o ser mulher, para
Rísia, está em constante luta – há o choque da tradição na qual foi criada e o
questionamento dessa tradição que ronda seu espírito. Quanto à classe social,
vimos que Rísia subiu na escala social, mas não esqueceu seu passado pobre:
longe disso, está profundamente marcada por ele. Toda a força de ressentimento
e ódio que movem Rísia está ao lado de uma grande fragilidade:
Eu galopei sem olhar para trás. Não sei se acreditava. Não sei se acreditava que as coisas aconteciam num intervalo de fantasias. Eu continuava insolarada? Mas o ar cheirava a pólvora eu ouvia zunidos de bombas. Tudo acontecia mesmo num intervalo de pensamentos e sonhos. Eu sempre dissera que seria uma voluntária à guerra até que se matasse em mim esse poder meu para qualquer coisa do resto que não fosse uma mulher casada numa casinha branca. Mas daí até uma guerra.... Eu já me perdera completamente. Meu começo já ficara lá para trás serras e serras... Eu saíra de casa por
154
vários motivos, mas daí uma guerra? Uma guerra? Quem é que roubara meu plano? (Felinto, 1992, 116)
De repente, quando acorda de uma queda, Rísia já está em Tijucopapo.
Por um trajeto que lhe custou nove meses. Foi uma gestação da qual ela mesma
nasceu. Nasceu de nova origem. Nasceu das mentiras inventadas por ela para
salvar as mulheres traídas como sua mãe:
Eu mentindo assim descaradamente, eu criando meus sonhos para satisfazer aquelas mulheres traídas, perdidas, dadas, grávidas, adotadas, não verdadeiras, mulheres de mentira, prostitutas que, como minha mãe, dormiam com meu pai de noite tendo sido surradas por ele de manhã. Minha mãe era uma prostituta. Como Lita na goiabeira. Como tia, a bêbada derrotada. (Felinto, 1992: 129)
Além do símbolo da gestação, a narradora identifica o momento como
natal – e natal na narrativa é sempre um símbolo de mudança: no natal de 64 sua
mãe pariu Ismael morto, no natal de 69 ela foi para São Paulo – e agora neste
natal em Tijucopapo ela renasce, ela se reinventa, a partir das mulheres de
Tijucopapo:
Eram umas mulheres que eu vira nascer, só podia ser. Só podiam ser. Naquele meu livro, um livro de escola, um livro com uma figura vermelha a lápis de cera, era? Uma paisagem? Uma paisagem revolucionária de mulheres guerreiras. Eram mulheres que não eram minha mãe. Essas mulheres, que não eram minha mãe, tinham a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas defendendo-se não se sabe bem do quê, só se sabe que do amor. Só se sabe que do amor as fez sofrer. Só se sabe que do amor as fez traídas. Mulheres na defesa da causa justa. (Felinto, 1992: 131)
Natal e migração nos devolvem para Morte e vida severina, está claro.
Marilene é profunda admiradora da poesia de Cabral e as marcas dessa sua
155
admiração podem ser traçadas no texto. Não em termos de estilização, mas,
penso que na própria re-elaboração do tema.
Assim como o Vidas secas de Graciliano Ramos também está presente em
seu texto. Já da epígrafe somos lembrados de Graciliano, “a culpa foi minha, ou
antes, a culpa foi dessa vida agreste, que me deu uma alma agreste” (Felinto,
1992). Por aí começamos a leitura do romance já preparados para as durezas dos
sertões. Junto de Graciliano, a outra epígrafe traz um dos mais célebres versos de
toda a poesia americana, “I celebrate myself, and sing myself”. É o verso de
abertura do longo poema de Walt Whitman, Song of myself, que forma junto ao
recorte de Graciliano uma idéia de que veremos o sertão a partir de um olhar
pessoal.
E é esse mesmo o principal resultado de As mulheres de Tijucopapo: uma
visão original e pessoal de um tema que tem uma história na literatura brasileira,
mas que é tratado de modo quase que íntimo, ou seja, os problemas são
colocados a partir da experiência de vida e do ponto de vista da personagem
Rísia. Mas as discussões ultrapassam o plano do íntimo e entram em diálogo com
Vidas secas, Morte e vida severina e A hora da estrela de um modo que não é tanto
intertextual, mas de outra natureza mais difícil de ser identificada. É uma volta ao
tema, mas com desenvolvimentos radicalmente originais.
156
Por exemplo, quando a narradora se refere a policiais como macacos
estaria aí uma forte referência ao Vidas secas, e creio que há mesmo, mas a
referência é toda transformada em termos próprios:
Mas, macacos? Seriam macacos mesmo aqueles homens? Macacos eram os que eu inventava nas histórias a meus irmãos. Macacos bélicos que viviam em constantes batalhas contra as cobras da floresta. Meus macacos não eram bandidos. Minhas histórias eram de batalhas por uma causa justa. Meus macacos eram de brinquedo e invenção. (Felinto, 1992: 118)
Está claro que a ilusão que Rísia inventa é compensatória da dura análise de seus
pensamentos e da lembrança de todas as sensações desgostosas de miséria e
humilhação que ela já passou na vida, especialmente as da infância. Mas com a
criança que ela foi, sempre sentada num trono, não é a si mesma que ela culpa, os
culpados são papai e mamãe.
Mas em determinado momento de lucidez, ela ultrapassa seus sentimentos
de ódio aos pais para tentar compreendê-los a partir de uma análise mais ampla
da questão, na qual encontra a culpa na diferença de situação econômica entre
Recife, a coitada, e São Paulo, a rica:
A paisagem que eu trouxe pintada na folha em branco virou a de uma revolução. Vim fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão, mas os culpados por todo esse desamor que eu sofri e por toda a pobreza que vivi. Vou dizer aos miseráveis trabalhadores da usina que eles são uns desgraçados infelizes porque há festas de luzes acontecendo em São Paulo. E que, se eles quisessem, tomariam um guaraná inteiro porque lá em São Paulo a vida continua acontecendo aos goles, aos gotos e arrotos. E aos filhos dos trabalhadores eu vou dizer que os culpados de eles levarem pisas porque comem terra e cagam lombrigas não são seus pais não. Eu sei quem são. E às mulheres dos trabalhadores, vou dizer que, caso elas sejam traídas e os maridos dêem nelas, os culpados não são bem os maridos, eu sei quem são. É que lá em São Paulo, há mulheres cosméticas acontecendo pelas festas e usando óculos escuros na direção dos carros em largas avenidas iluminadas – as amantes. (Felinto, 1992: 106-7)
157
E aqui a questão individual é ultrapassada para um plano social no qual ela
identifica as diferenças brutais, grosso modo, entre o norte e o sul. E, como já
vimos na análise de Essa terra, também em As mulheres de Tijucopapo, a migração
em busca da melhora se reverte, ao contrário, em uma brutal queda na qualidade
de vida. Vimos que dois anos depois de Rísia ter se mudado para São Paulo, seu
pai é preso por contrabando. Então, de novo, onde havia um trabalhador de
usina, agora há um contrabandista. Mas, por outro lado, vimos que quanto mais
jovem é o migrante mais chances ele tem de se desenvolver. Não foi possível
para Nelo, nem para o pai de Rísia, mas Totonhim e Rísia são migrantes mais
bem sucedidos.
Rísia se remete à parte mais pobre do interior do Nordeste quando passa
por lá em sua trajetória, vê mocambos, vê a miséria:
Outra noite fiquei no mocambo duns xavantes que a toda hora me faziam lembrá-los, papai, mamãe e os meninos. Era uma longa família de muitos meninos pirralhos e buchudos de quilos de lombriga na barriga. Eram uns doze. O mocambo vinha bagaceira de porta a porta. Eram pobres pobres pobres e os filhos formavam uma longa fileira de efes: Francisco, Francischio, Francisca, Francisval, Fransérgio, Fátima, Fábio, Fransilvia, Fransonia, etc., etc. (FELINTO, 1992: 87)
De novo a palavra mocambo, que já havia sido usada por Cabral, numa
crítica a Gilberto Freyre, aparece expondo o cerne dessa crítica. Freyre, que a
crítica já cunhou de genial, de reacionário e de tradicionalista, é sem dúvida dono
de uma das visões mais interessantes da cultura brasileira. A visão romântica que
Freyre imprimiu em certas passagens do estudo, no entanto, geram as críticas
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mais ferrenhas a seu trabalho, como nesta passagem sobre os mocambos. Freyre
chega a fazer uma defesa dos mocambos como uma habitação mais adequada ao
nosso clima e de certa forma até melhor que a casa rica:
O contraste da habitação rica com a pobre no Brasil não se pode dizer que foi sempre absoluto, através do patriarcalismo e seu declínio, com toda a vantagem do lado do sobrado, e toda desvantagem do lado do mucambo ou palhoça. Pode-se até sustentar que o morador do mucambo construído em terreno seco, enxuto, a cobertura dupla protegendo-o bem da chuva, foi e é indivíduo mais higienicamente instalado no trópico que o burguês e sobretudo a burguesia do antigo sobrado. (Freyre, 2000: 212)
O que fica dessa polêmica dos mocambos é a condição de miséria de quem só
pode morar neles como mostram Felinto e Cabral.
Aquilo que estava desmantelado na vida é consertado pela narrativa através
da narração. Uma narração revoltada. Falando mesmo de sobrados e mocambos,
a revolução pela causa justa é pintada a giz de cera por Rísia. O alvo da revolução
é São Paulo, e no último capítulo do livro, de número 33 – referência à idade de
Cristo e de novo a um momento de mudança, um momento de ressurreição –
Rísia decide amar de novo, amar Lampião e segui-lo junto com as mulheres de
Tijucopapo pelo caminho da BR em direção a São Paulo para lutar por uma
causa justa. E essa decisão ela quer anunciada para mamãe, como um troco,
como um acerto de contas.
O romance é uma trajetória circular na qual o caminho de volta é todo
consertado. Há de novo o amor e a companhia das mulheres fortes e guerreiras.
É o final de filme de cinema que Rísia queria para sua vida, sua hora de estrela:
159
O que eu fiz foi um pensamento. As mulheres de Tijucopapo eram, enfim, como eu fazendo sombra no chão, meio dia de sol de fogo, caminho da BR. É isso mesmo mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo me termine bem. (Felinto, 1992: 137)
A voz da migrante
A voz da migrante ocupa o lugar de sujeito do discurso. Rísia toma para si
a palavra e abre o verbo contra tudo e todos que a fizeram assombrada por
lembranças de sofrimentos e dores. O discurso da narrativa, um trajeto de sonho,
de intervalo de pensamentos, é marcado pelo desabafo, pela externalização das
angústias, dos sentimentos de inferioridades e das falas que, como um troco, ela
queria dar para a mãe, a melhor amiga, a inimiga, mas nunca pôde.
A voz que fala no discurso da narrativa preenche todo o espaço do texto.
Os diálogos presentes no final da trama são feitos à moda dos filmes de cinema,
artificiais, saídos das mentiras e dos pensamentos da narradora que quer seu
mundo consertado. Nesse sentido o romance apresenta uma forma original. Traz
uma narradora-personagem original.
A discussão da pobreza e da hegemonia da língua paulista encabeçam os
nós da narrativa que ainda deslinda questões de gênero, sem nunca descambar
para o que se poderia chamar de literatura engajada, nem tampouco para a
literatura feminista. Todos os assuntos são discutidos de dentro para fora.
Nascem da interioridade da personagem que os fala, os expressa, a seu modo,
gaga ou aos berros e com xingamentos.
160
Rísia não sofre preconceito por ser negra. As referências à questão da cor
são muito sutis, ela lembra da brilhantina derretendo ao sol do meio-dia no seu
cabelo duro, mas não há um momento na narrativa em que ela expresse
claramente ter sofrido por ser negra. Sofreu porque era pobre e em São Paulo,
sofreu por ser também nordestina.
Migrante em São Paulo, ela migra de novo para a origem. Ela migra de São
Paulo. Não é apenas uma questão de inversão do pólo migratório. É uma
reinvenção da imagem de São Paulo. Tendo freqüentado a USP, através da
educação, portanto, Rísia melhora sua posição social ainda que muito
humildemente. Mas seu estar em São Paulo não é pacífico. Longe disso, ela
enumera, já nos referimos a isso anteriormente, ela enumera as dificuldades na
vida de São Paulo: a solidão, a grandeza, a dureza, os fins-de-semana iludidos
pelas telas de cinema...
Enfim, é muito nova a visão de São Paulo a partir da visão da migrante
que veio menina. A infância está num trono, o gosto perdido das frutas do
Recife, mas o tornar-se adulta aconteceu em São Paulo, de onde ela também
migra, mas para onde volta. Revoltada, mas volta.
161
4º Capítulo
O efeito migração
O cachorro e o lobo (1997), de Antônio Torres; Estrutura: o migrante adaptado; O velho e o novo; Cultura regional e letramento.
O cachorro e o lobo (1997), de Antônio Torres
Estrutura: o migrante adaptado
Depois de vinte anos da publicação de Essa terra, Torres volta a seu
personagem Totonhim e a sua terra. O cachorro e o lobo é um livro de recordações.
É uma narrativa que conta tudo aquilo que vem à lembrança de Totonhim
quando ele revê seu lugar de origem e se pergunta: “ainda terei um lugar aqui?”
(Torres, 1997 b: 83). Mas não só as memórias ocupam a narrativa: há também as
comparações entre a Junco da infância e uma Junco “modernizada”.
A narrativa é composta por cinco seções divididas em partes menores,
com exceção de “O telefonema” e “A despedida”, primeira e última,
respectivamente, que se ocupam do que seus títulos indicam. O telefonema que a
irmã, Noêmia, deu para São Paulo para avisar a Totonhim que seu pai havia feito
oitenta anos é o ponto de partida da história.
Mas aconteceu depois da festa acabada: Totonhim havia sido esquecido,
assim como também se esquecera da família nos vinte anos que passaram desde o
162
suicídio de Nelo – aquele de Essa terra. As outras três seções maiores, “Manhã”,
“Tarde” e “Noite”, ocupam o grosso da narrativa e cronologicamente nos guiam
por um dia num mundo de recordações acalentadas por uma trilha sonora toda
feita do cancioneiro popular.
A narrativa é de primeira pessoa e tem um tom de conversa gostosa, lenta.
Estamos diante de um contador de “causos”, dono de uma dicção jocosa e
divertida. Mas muito culta. A voz do narrador é construída a partir do efeito que
teve em sua vida viver os primeiros vinte anos no Junco, interior da Bahia, filho
de um pequeno sitiante, e mais outros vinte anos em São Paulo onde se tornou
uma pessoa de classe média, funcionário do Banco do Brasil.
O discurso desse narrador, ser híbrido, nordestino-paulista, é um
amálgama da cultura regional, fortemente marcada pela oralidade (as canções
ouvidas em casa e no auto-falante da praça, os hinos da igreja, o hino nacional, as
comidas, o vocabulário e expressões regionais), mais uma cultura de elite – a
literatura da qual mostra bastante conhecimentos. Totonhim é um bancário
muito afeito a leituras; cita Rousseau, Baudelaire, Rulfo, Fitzgerald, Hemingway,
Lorca, Alexandre O’Neill e os brasileiros, todos poetas, Augusto dos Anjos,
Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.
As referências literárias acompanham as histórias da juventude assim como
as canções. É como se o narrador deixasse livres os canais associativos e a cada
lembrança reunisse tudo o que vem junto delas. Passagens de livros, versos de
163
poemas e letras de canções vêem à tona no reencontro que o personagem tem
com sua terra.
O efeito da migração, nesse sentido, faz nascer uma voz que tem lá
escondida uma fonte de cultura popular, um sotaque que sabe carregar no
momento oportuno, um vocabulário regional que é resgatado, mas tudo isso
misturado a uma cultura, digamos assim, de elite, de uma cidade que é um dos
grandes centros culturais do Brasil contemporâneo.
Reúno abaixo duas passagens nas quais é possível verificar o tom jocoso
do narrador, na primeira, e seu outro lado mais elitista, na segunda:
Chegamos ao carro. Abro a porta para ele entrar. Quando me sento no banco do motorista, sinto as pernas pesadas, os músculos doloridos. Eis aí a P.V.C. Puta Velhice Chegando. O meu pai, porém, dobrou os joelhos sem se queixar de nada. Em sua homenagem, pego no porta-luvas uma fita que eu trouxe, com uma seleção de alguns clássicos do repertório de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. (Torres, 1997 b: 163) Ontem, à mesa, ao me sentar diante dela, eu me lembrei de um poema do português Alexandre O’Neill, que descobri há séculos numa antologia de poetas lusitanos, comprada num sebo em São Paulo – e já toda ensebada mesmo –, e que começava assim: “Nos teus olhos altamente perigosos/vigora ainda o mais rigoroso amor...”. Agora me lembro como termina: “Nesta curva tão terna e lancinante/ que vai ser que já é o teu desaparecimento/digo-te adeus/ e como um adolescente/tropeço de ternura/por ti.” O poema tem por título Um adeus português. (Torres, 1997 b: 210)
Na primeira passagem, é difícil segurar o riso. E isso não é difícil de acontecer em
outros trechos. O tom jocoso e leve perpassa todo o livro. Não há nada que pese,
ao contrário de Essa terra. Mas o interessante dessa passagem é mostrar a
interação cachorro/lobo. O lobo é o pai. A rocinha onde passa a maior parte do
tempo e onde todos pensam que irá morrer sozinho é chamada de toca do lobo.
164
O lobo é um animal selvagem, avesso à civilização, um ser digamos assim,
original do sertão, de músculos tonificados, forte. O narrador é o cachorro que
nunca deu notícia a seus parentes, em um sentido, mas em outro, também um
animal doméstico, sedentário, civilizado e amistoso. Aí temos a grande oposição
do romance: pai “selvagem” e filho “domesticado”. No segundo trecho, vemos
como o narrador mostra seus conhecimentos de literatura.
Vimos como nas narrativas de terceira pessoa há uma distinção entre
narrador e migrante; já aqui, como em As mulheres de Tijucopapo, o mesmo sujeito é
narrador e migrante, elite e massa.
O velho e o novo A oposição cachorro/lobo está também correlata a outra no sentido dos
impactos da modernização em, por exemplo, velho/novo, atrasado/moderno,
senhor/empregado. A evolução tecnológica é indicada sempre por um
diminutivo que esconde o sentido parco da modernização do Junco, “- O lugar
está uma gracinha. Dá gosto de ver. Tem luz elétrica noite e dia, água encanada,
televisão de montão, banca de jornais, dois ginásios, dois hospitais,
supermercado, carro a dar com pau, e pasme, até uma biblioteca pública!”
(Torres, 1997 b: 12)
Nesse processo que vivemos de uma modernização conservadora não há
propriamente uma radical transformação dos meios de vida, há sim uma espécie
de expansão de mercado, ou seja, a modernização aparece mais em termos de
165
mercadoria do que propriamente em termos de modo de produção. Há uma
expansão do capital, mas incompleta, que chega apenas pelo lado da compra,
nunca pelo da produção. Por isso mesmo é retrato de uma modernização
conservadora porque ela moderniza no sentido que expande seu mercado
consumidor, mas conserva os meios de produção.
O filho está no pólo novo, moderno, mas, como colaborador, digamos
assim, pois é empregado, pessoa que vive sob o constante medo de ser demitido
a qualquer momento e de não mais poder arcar com as despesas da família.
Embora sua vida tenha melhorado em termos de poder de compra – saiu de
ônibus e voltou de avião e carro alugado – o modo como ele vê a si mesmo é
totalmente diferente daquele como seu pai se identifica.
O pai, velho lobo, não é dominado por ninguém; ele é senhor de seu
destino. Contra a opinião de todos os que o amam, ele teima em morar como
quer, onde quer e fazendo o que gosta. Já Totonhim não. Ele se vê como uma
pessoa subalterna, que está com o destino na mão das forças do capital e que
toma atitudes segundo as convenções sociais:
Que lhe diria. Que de fato ando com medo de perder o emprego, já que o Banco do Brasil está reduzindo o quadro de funcionários à metade, trocando os antigos por estagiários que aceitam trabalhar até de graça, só para aproveitarem a oportunidade de entrar em algum lugar, na esperança de mais tarde virem a ganhar algum salário? (Torres, 1997 b: 149)
A atitude dos dois em relação ao prefeito “ladrão” tem a ver com essa questão do
cachorro e o lobo. O pai não quer nem saber do prefeito. Bêbado ou não, fala
166
tudo o que pensa do prefeito para o próprio e para os outros. Diante do convite
que o prefeito havia feito para o jantar, o pai simplesmente decide não ir, mas o
filho, conciliador, vai até a casa do prefeito passar uma desculpa esfarrapada. Da
porta mesmo, vê todos os índices do enriquecimento ilícito do prefeito. Num
lugar tão pobre, a casa do prefeito, antes humilde, está ricamente mobiliada e
equipada com utensílios eletrônicos que a grande maioria nem sabe que existe. É
assim que o pai explica a Totonhim o que é o prefeito:
...O prefeito não é um ladrão qualquer, um pé-de-chinelo que bate a sua carteira, rouba casas e galinhas. É um ladrão cheio de manhas, de lero-lero, que não furta ninguém em particular, mas rouba todos em geral. Um ladrão do povo Um imposto aqui, uma verba estadual dali, um adjutório federal de lá, obras contra a seca, campanhas contra a fome, e ele embolsando tudo. (Torres, 1997 b: 77-8)
A desilusão política é grande e nesse romance é tratada com mais dureza que em
Essa terra. No romance de 1976, o discurso crítico não era tão incisivo quanto o
que lemos em O cachorro e o lobo. No romance de 1997, parece que a situação já
está muito clara para o narrador que não toca apenas no assunto, mas analisa
com mais liberdade questão, o que provavelmente não seria possível naqueles
anos de 1970:
Agora, sim, o Junco está no mapa viário do mundo, pois teve os seus quarenta e dois quilômetros de terra e cascalho asfaltado às pressas na última campanha eleitoral. E como vou ouvir falar nisso, meu Deus. Com que alegria e orgulho dirão todos que o lugar finalmente atravessou o túnel do tempo e chegou ao futuro. A travessia, porém, já registra algumas baixas: os que já morreram acidentados. Na pressa das eleições, fizeram uma estrada estreita demais. Agora, salve-se quem puder. (Torres, 1997 b: 46)
O que o pai reclama na passagem acima – que todo o dinheiro público é usado
em benefício próprio – indica mesmo um modo muito típico da política. Ora,
167
não é por outro motivo que a mãe quer sair do Junco: ela quer dar educação aos
filhos e a si mesma. Ela não queria ser analfabeta para sempre: buscou
desenvolver-se e educar os filhos numa cidade maior, vizinha, que tinha ginásio.
Esse é o problema fundamental da cidade: a falta de escolas de ensino médio e
universidades. O acesso à educação em nível médio já está barrado, imagine-se ao
ensino superior.
Cultura regional e letramento
Em O cachorro e o lobo, a grande discórdia entre os pais de Totonhim é a
questão da educação formal. Para o pai, machista e tradicionalista, as mulheres
não tinham que estudar. A mãe, ao contrário, segue para um cidade melhor
buscando educação:
Perguntei porque haviam se separado. Foi então que ela me contou uma longa história, da sua luta para botar os meninos para estudar – “você se lembra, não se lembra?” E papai, a seu ver, naquele atraso de roceiro que só sabia arar a terra, plantar e colher, sempre dizendo que escola não enchia barriga de ninguém. Tinha sido aí que haviam começado os conflitos, os desentendimentos, as discussões, as brigas. “Mas, se não fosse isso, você hoje não era um homem instruído”, ela disse. E contou como aprendeu a ler e a escrever. (Torres, 1997 b: 59)
Nesse caso não é o escritor que dá voz a quem não tem. Longe disso, em O
cachorro e o lobo, o personagem conta sua própria história, nela enredada a história
de sua mãe, antes iletrada. Sim, porque não era outro o problema ideológico por
que passaram todos os escritores que, ou por denúncia social ou por sensação de
168
missão, se propuseram escrever sobre os pobres, iletrados. Daí, nasce a questão:
como, por meio da escrita, representar o iletrado?
No caso de O cachorro e o lobo, é a própria mãe do narrador a personagem
iletrada. Estamos longe de uma tentativa de um escritor de elite dar voz aos que
não têm. O caso aqui é de um menino que teve que sair de sua terra primeiro
para cursar ensino médio, e depois para arranjar um trabalho que lhe desse uma
condição de vida digna. Esse menino entra na engrenagem da máquina dos
grandes centros urbanos e lá consegue galgar degraus na escala social. Aumenta
sua cultura, melhora seu padrão de vida, e narra sua própria história, nela
encaixada a história dolorosa de sua mãe, mulher que sofreu as mais difíceis
conseqüências – desencaminhamento das filhas, desentendimento constante com
o marido, aumento do volume de trabalho – por ter tomado a atitude de mudar o
papel que já estava escrito para ela.
Aquilo a que chamamos de o efeito da migração se refere ao fato, já
comentado anteriormente, na seção sobre Morte e vida severina, de que o migrante
tem uma noção de pertencimento cindida. Nem ele pertence mais a sua terra
natal nem é nativo de onde está; portanto é sempre um estrangeiro onde quer
que esteja. Mas não há ressentimentos.
Em O cachorro e o lobo, esse efeito da migração aparece não como um
elemento que esgarça a subjetividade, mas como um fato já resolvido, como uma
discussão pacificada. Não há mais desconforto em relação a essa condição de
169
estrangeiro. Quando seu pai pede que ele fique e que traga sua família, Totonhim
argumenta com toda a serenidade que seu lugar não é ali:
- Telefone para São Paulo e mande eles virem para cá. - Não é assim tão fácil. - Como não? Hoje você não ligou pra lá na maior facilidade? - O que não é fácil é fazer com que eles troquem São Paulo por isso aqui. - E você, também gosta de lá? - Muito. Tem muita coisa ruim, mas também tem muita coisa boa. Já me acostumei
a viver numa cidade grande. E o que era que eu ia fazer aqui, papai? (Torres, 1997 b:192-3)
Embora haja uma hesitação entre pertencer ou não ao lugar de origem, já não há
problema em afirmar que pertence à cidade grande. Em relação ao pertencimento
ao lugar de origem, reúno duas citações: na primeira, Totonhim se questiona se
ainda tem lugar no Junco – “ainda terei um lugar aqui?” (Torres, 1997 b: 83) – e
na segunda, descobre que tem:
Sua benção, meu padrinho. Obrigado por ter existido. E por haver legado uma casa cheia de recordações de um tempo em que a vida parecia tão inocente quanto as letras dos boleros e das guarânias. E a velha casa revisitada só tem de luxo um chuveiro, debaixo do qual eu canto, com a alegria de quem descobre que ainda não perdeu todas as referências. (Torres, 1997 b: 120)
É com alegria que Totonhim descobre suas ligações com o lugar de
origem, ligações que julgava todas perdidas porque, de seu ponto de vista, ele já é
paulista. Sem dramas de consciência, sem a angústia da sensação de perda, o
narrador de O cachorro e o lobo é um personagem que ultrapassou os limites dos
conhecidos efeitos da migração.
170
O personagem está totalmente à vontade com a situação. Ela não o
diminui, nem o esgarça, nem o incomoda. O narrador de O cachorro e o lobo parece
que reencontra seu passado do modo mais sereno possível. Está de bem com sua
terra. Aqueles dramas todos vividos por Totonhim em Essa terra, dão lugar a um
delicioso acerto de contas com o passado. Espécie de libertação de demônios, O
cachorro e o lobo encena a reunião dos fios soltos na trama da vida de Totonhim.
Mas o ir e vir de São Paulo ainda continua. Quando pai e filho vão visitar
o Cruzeiro da Piedade, eles vêem um garoto sentado sozinho nos degraus ao pé
do cruzeiro. O garoto estava lá tentando ver a estrada que leva para fora. Estava
com saudade de seus pais que haviam ido trabalhar em São Paulo por um tempo.
E aí Totonhim diz reflexivo, “Ah, São Paulo: o ir e vir ainda não terminou. Olho
para o rosto tristinho do garoto, me perguntando: será que sabemos o que
dissemos quando falamos em solidão?” (Torres, 1997 b: 165)
171
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa estudou o processo de vocalização da personagem migrante
nordestina na literatura brasileira canônica. O conceito de canône foi usado para
limitar o corpus e o sentido atribuído ao conceito é o de repertório de obras
consagradas pela crítica acadêmica, de modo que já são amplamente conhecidas e
reconhecidas pelas instâncias do campo literário como universidades,
suplementos especializados, listas de obras indicadas em vestibulares e exames
nacionais de cursos do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEPE).
Concentrando a análise na voz que fala na narrativa e observando
minuciosamente o estatuto da narração, esse estudo mostrou a inserção de um
sujeito na literatura brasileira, uma vez que o migrante passou de tema, de objeto
da narração, a sujeito da enunciação.
A tese foi dividida em quatro capítulos mais as considerações finais. A
divisão dos capítulos de análise intitulados “A migração do ponto de vista da
origem”, “A migração do ponto de vista da cidade grande” e “O efeito migração”
dão a noção da trajetória periferia-centro por que passa não somente a
172
personagem, enquanto sujeito de um movimento migratório, mas também a
personagem enquanto sujeito que vai da interdição à dicção.
O primeiro capítulo tenta situar alguns pressupostos da análise.
Inicialmente mostra que a relação entre nação – literatura nacional e região – e
literatura regional foi determinante para a construção crítica do que ficou
conhecido como regionalismo nordestino e do qual é baliza Franklin Távora. O
migrante nordestino aparece como referência no romance O cabeleira (1876), de
Franklin Távora, que, com seu projeto “Literatura do Norte”, tentou construir
uma identidade um pouco diferente daquela que vinha sendo trabalhada por
Alencar no seu projeto de construção de uma identidade nacional através da
literatura.
Essa discussão é aprofundada com uma comparação entre as obras e a
recepção crítica de O sertanejo (1875), de Alencar, e o romance de Távora, em que
se mostra que ambos concentraram esforços para a representação do homem do
sertão nordestino. Alencar escreve da e para a elite num tom que busca adaptar o
tema ao gosto do público. Távora, de uma perspectiva quase que estrangeira,
submissa, desculpando-se, apresenta o tema com tom de denúncia e verdade e
tenta conferir ao relato ares de documento histórico.
Depois de Távora, há referências a outros autores nordestinos que foram
destaque nas histórias literárias, como José Américo de Almeida, com A bagaceira
(1928), romance que conta a história da decadência do engenho e das lutas entre
173
pai e filho, proprietários e retirantes, que é recebido pela crítica de modo mais
positivo que Távora, e O quinze (1930), de Raquel de Queiroz, que vai ser
saudado pela crítica e que de uma perspectiva interna vai aproximar a visão do
drama dos retirantes da seca. É uma brilhante narrativa que do ponto de vista da
casa-grande constrói uma situação de profunda empatia com o drama dos
retirantes.
A partir desse filão é feita uma apresentação preliminar do corpus da
pesquisa. Como seguimento, o primeiro capítulo, talvez de modo espasmódico,
continua a indicação dos pressupostas da pesquisa, dentre os quais destaco:
A relação entre regionalismo e dependência tomando por base a conceituação
de Antonio Candido, que mostra como na década de 1930 a noção de
subdesenvolvimento, presente em toda a América Latina, deu uma virada nas
perspectivas críticas, e que foi durante essa virada de pensamento que o romance
do nordeste foi melhor recebido pela crítica. Essa idéia não afasta o
reconhecimento de que essa virada de pensamento também influenciou os
escritores que inventaram novas formas de dizer as diferenças.
A insuficiência e a fragilidade dos argumentos, na verdade políticos, mas
cobertos por razões estéticas, com que o regionalismo foi estudado por algumas
de nossas principais histórias literárias e mais alguns críticos estudados. Os
pontos mais importantes dessa passagem são: a idéia de Candido de que o
conceito de regionalismo serviu para designar literaturas produzidas fora do Rio
174
de Janeiro, ele lembra que não há regionalismo carioca; a argumentação de Lucia
Miguel-Pereira sobre as fases do regionalismo, que defende que o regionalismo
era a literatura produzida com diferenças da “civilização niveladora” e que
melhora na medida em que se torna mais universal; e, por último, a radical
transformação do ponto de vista do Bosi da História Concisa, que afirma que o
regionalismo sobrevivia apenas por uma necessidade escolar, para o Bosi de
Literatura e resistência, que muda o foco da questão para as possibilidades de
representação dos excluídos, bem como a questão da oralidade, marca forte de
narrativas regionais.
O argumento de que a relação belicosa entre o modernismo paulista e o
regionalismo nordestino tinha um fundo mais político do que realmente de
programa, como demonstram as argumentações de Neroaldo Pontes de Azevedo
e Mario da Silva Brito mostraram.
E, finalmente, a contribuição que o Manifesto Regionalista e o Livro do
Nordeste de Gilberto Freyre deram para a ampliação do conceito de regionalismo
nordestino como relação orgânica entre homem-natureza-cultura, talvez válido
para qualquer literatura.
Uma vez contextualizado o corpus nesse campo de representações e sentidos,
seguiram-se os capítulos de análise. O primeiro capítulo reúne Vidas secas (1938),
Morte e Vida severina (1956) e Essa terra (1976), textos que se concentram no ponto
de vista da origem, na partida ou no trajeto da jornada. Vidas Secas, obra clássica
175
da literatura brasileira, é narrada em terceira pessoa e tem uma visão que ora se
identifica com a da personagem ora se afasta. A partir da leitura de Bosi, o estudo
da obra mostrou que o fato de o narrador estar despregado da matéria que narra,
não favorecendo nem a linguagem do dominado, que é descrita na sua debilidade,
nem a linguagem do dominante, que é denunciada, constrói uma narrativa na
qual há a problematização de sujeito e objeto. O narrador não pode ser
simplesmente descrito como pessoa ilustrada que representa a condição
subalterna.
O narrador e o subalterno se aproximam e se afastam. A aproximação se dá
em momentos de desconfiança da cultura letrada como instrumento de
dominação – lembre-se do capítulo “Contas”, ou da relação de Fabiano com Seu
Tomás da Bolandeira. O afastamento acontece quando a visão desiludida e
desencantada do narrador ultrapassa as ilusões consoladoras de Fabiano, como
no último momento da narrativa em que Fabiano sonha com a vida no sul
enquanto o narrador diz que caminham para uma terra desconhecida e civilizada
onde ficariam presos.
Destaco ainda da análise o modo como Fabiano se constitui como sujeito
subalterno quando se consola com frases feitas do tipo “apanhar do governo não
é vergonha” ou “quem é do chão não se estrepa”.
O primeiro texto a apresentar o migrante com fala própria, e curiosamente
corpo, é Morte e vida severina. Sucesso de público, tendo percorrido grande parte
176
das capitais do Brasil e tendo ganhado vários prêmios, Morte e vida fez com que a
poesia de Cabral fosse conhecida do grande público. Mescla de prosa, poesia e
drama, o texto mostra o trajeto que Severino percorre para a capital.
Embora só encontre morte, seja o assassinato de pequeno sitiante pela fome
do latifúndio, seja pela morte das usinas e roças por falta de incentivos de
produção, a perspectiva do protagonista é otimista – a vontade de encontrar
melhores condições de vida só acaba quando escuta a conversa dos coveiros ao
chegar em Recife. Uma vez tendo percebido que seu sonho não passava de uma
ilusão, ele pensa em se matar, mas o auto de natal que é encenado para ele e a
lição de fé na vida que Seu José lhe dá, mostram uma alternativa. Mas aí o texto
acaba. O destino de Severino resta aberto.
Essa terra é o primeiro romance que apresenta um narrador migrante
nordestino em primeira pessoa propriamente dita. (Curiosamente houve um
percurso de exatos 100 anos desde a publicação de O cabeleira (1876) até Essa terra
(1976)). O romance é construído pelo espelhamento entre dois irmãos. O mais
velho, Nelo, volta depois de 20 anos de SP e, sem ter forças para frustrar as
expectativas da família, principalmente as da mãe, se suicida. Acontece que o
suicídio de Nelo não mata o sonho da cidade de ir para São Paulo. Totonhim é o
outro irmão, que lida primeiro com Nelo, depois com seu suicídio, depois com a
loucura da mãe, e decide, passado o drama da primeira hora, ir também para São
Paulo. Os títulos das partes nas quais a narrativa se divide já dão noção das
177
matizes do drama da migração para o sul: “Essa terra me chama”, “Essa terra me
enxota”, “Essa terra me enlouquece”, “Essa terra me ama”. Lançando mão de
um diálogo com textos já tradicionais sobre o tema como Os sertões, de Euclides
da Cunha, e Morte e vida Severina, de Cabral, o texto, que teve uma tiragem inicial
de 30.000 exemplares, um fenômeno editorial, e esgotou edições posteriores,
promove uma inserção de um sujeito subalterno na literatura e elimina a distância
sujeito intelectual – objeto subalterno, uma vez que institui um sujeito que fala a
partir de sua condição subalterna.
No terceiro capítulo, segundo da análise, reuni dois textos: A hora da estrela
(1977), de Clarice Lispector, e As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene
Felinto. Nessas duas obras a migração é abordada já do ponto de vista da cidade
grande.
A hora da estrela apresenta um prefácio que já problematiza a autoria da obra
quando aparece na Dedicatória do autor, entre parênteses, a expressão “Na
verdade, Clarice Lispector” que traz para dentro do texto uma entidade que
rivaliza com o narrador. É uma narrativa de primeira pessoa, mas que tem um
narrador construído como uma terceira pessoa e que, nessa condição, medeia a
interação entre a autora, que custa e se esconder nos parênteses, e a personagem,
que é descrita na sua inabilidade de se expressar.
Espelho dessa condição dupla de narração, o texto é construído a partir de
duas instâncias discursivas – a da narrativa – na qual o narrador conta a história
178
de Macabéa, e a da narração – na qual o narrador se debate numa reflexão sobre
o processo de escrita que está desenvolvendo e sobre o qual lança constantes
dúvidas e suspeições. O principal problema da narrativa é a identificação: como
narrar a história de uma personagem com a qual o narrador não se identifica.
A saída de interposição de um narrador, Rodrigo S. M., não é suficiente, e por
isso há a constante re-discussão e interferência do e no processo. O narrador
quer a todo custo afastar a idéia de que o texto seja um romance engajado. A
ausência de pretensões nessa direção, a recusa de arvorar-se a uma possível
tentativa de resolução do problema, faz com que a primeira frase da narrativa já
apresente o tom de menosprezo pelo texto, que é denominado como “esta coisa
aí”.
O texto apresenta ainda um diálogo com os já clássicos Euclides, Graciliano e
Cabral, e dentro desse contexto de interrelações nota-se como Macabéa
interpreta sua vida a partir de frases feitas (quem cai não passa do chão, quem
espera sempre alcança), achando aí um tipo de consolação, como também fazia
Fabiano. A pertinente exploração da classe social do leitor, de si mesmo e da
personagem, que o narrador empreende, o faz concluir que, ao escrever aquela
história – que está ao alcance de todos, mas que é de difícil elaboração e que
possui tema extremamente desinteressante e importuno, desinteressando e
importunando o narrador –, ele opera como se fosse uma válvula de escape da
179
classe média, ou seja, como se construísse uma ilusão consoladora para o
problema real.
As mulheres de Tijucopapo apresenta a primeira narradora migrante nordestina. A
dicção da protagonista, Rísia, é marcada pela violência da raiva, pelos sentimentos
brutos que são exteriorizados e por uma oralidade construída pelo viés do
diálogo que a narrativa institui. A narrativa é o espaço onde é possível que a
narradora construa suas ilusões consoladoras. É pela narração que acontece a
vocalização de falas que a narradora gostaria de dizer à mãe, à amiga Nema
(principal interlocutora no texto) ou à inimiga dos tempos de infância, Luciana.
O modo de construção do texto, feito todo em zigue-zague, com repetições
de partes inteiras, funciona como um correlato objetivo da situação de opressão,
mudez e gagueira pela qual viveu a personagem e da qual se livra na busca das
mulheres guerreiras de Tijucopapo. A narradora vai em busca de uma origem
inventada para nela se redimir de seus males e raivas. Seu discurso opera uma re-
inserção no mundo, consertando sua vida marcada pela miséria e traição.
No sonho que toma lugar na narrativa, Rísia é uma migrante às avessas. Ela
deixa São Paulo, “a rica”, na direção de Recife, “a coitada”, de onde saiu ainda
criança. A verdadeira Tejucopapo, hoje Goiana, fica a 60 km de Recife e sediou o
que hoje é encenado pelo Clube de mães da vila de Tejucopapo como a Epopéia
das heroínas de Tejucopapo que, em 1646, defenderam a vila da invasão de
holandeses. Rísia pinta a giz de cera a revolução que parte de Tejucopapo com
180
Lampião como líder a pé pela BR contra São Paulo. Tudo se dá num intervalo de
fantasia e sonho, no qual as visões contraditórias de feminilidade que Rísia vive
são harmonizadas e ultrapassadas.
A reflexão constante sobre a classe social e a riqueza de São Paulo informam a
revolução que tem muito mais peso na narrativa que as sutis referências a sua
condição de negra. Ela se refere à brilhantina derretendo no cabelo ao sol de
meio-dia, mas o forte de sua revolta não vem da condição de ser negra, mas da
condição de migrante pobre nordestina.
O último capítulo de análise mostra como no romance O cachorro e o lobo,
de Antônio Torres, o personagem Totonhim, de Essa terra, volta a pisar em sua
terra agora de modo a tornar possível a harmonização de seu passado do interior
sertanejo com a vida já assentada de classe média de São Paulo. O efeito
migração aponta nesse sentido para essa adaptação do migrante, que constrói um
discurso que reflete essa mescla.
O discurso no romance é construído a partir do amálgama da cultura
regional, marcada pela oralidade, e da cultura letrada, do fundo da qual cita uma
longa lista de autores nacionais e estrangeiros. O contato com sua terra natal,
especialmente com seu pai, dispara um processo de identificação, que chega ao
ponto máximo quando Totonhim diz ao pai que não pode ficar ali porque já está
acostumado com a vida de São Paulo e que ali não há nada para ele. A
181
vocalização dessa conclusão mostra a terrível estagnação daquele interior que
quase permaneceu inalterado no decorrer do tempo.
A crítica da modernização como uma traição é um dos pontos mais fortes
da narrativa, que mostra como as armadilhas políticas e econômicas iludem e
empobrecem o povo, favorecendo apenas a uns poucos. A alternativa da cidade
ainda é a mesma, as tristes estradas. Estrada para a qual um menino olha com
saudade dos pais que estão trabalhando em São Paulo. O narrador, desiludido,
conclui que o ir e vir de São Paulo ainda não terminou.
Considerando tudo, Vidas secas e A hora da estrela são os dois textos que
apresentam o binômio clássico intelectual-subalterno. Nos dois, o subalterno não
fala, mas também o sujeito que fala é extremamente problematizado, tanto em
Graciliano com suas aproximações e afastamentos, quanto em Clarice com a
criação da terceira pessoa, o Rodrigo S. M., que enuncia todos os problemas que
a não identificação entre personagem e narrador, por causa da classe social,
impõe.
Morte e vida severina, o primeiro texto, não por acaso saído de 1956, ano
especialíssimo para a discussão da representação dos excluídos na literatura
brasileira – Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa foi publicado nesse ano –,
coloca na cena brasileira de corpo inteiro, não apenas em voz, um Severino que
explica a si mesmo, que vai e que fica lá pensativo e desiludido.
182
Finalmente, Antônio Torres e Marilene Felinto, ambos com traços fortes
de oralidade e de autobiografia, implodem o binômio intelectual-excluído.
Ambos criam representações estéticas do excluído que partem da experiência de
vida de cada um deles.
A literatura brasileira, essa riqueza que nós temos, é fonte inesgotável para
quem deseja conhecer o Brasil, para quem deseja saber como as criações literárias
responderam as nossas questões sociais e políticas. É nessa literatura que eu vejo
uma resposta original a uma questão teórica que suscitou a primeira idéia de
realização desta pesquisa. Foi quando em 2000, na UFBA, eu ouvi Gaiatri Sivak
dizendo que seu trabalho como intelectual indiana e mulher era emendar laços
rompidos.
O texto de Spivak “Pode o subalterno falar?”, produzido na década de
1980, já tinha deixado uma série de indagações, mas eu sabia que havia algo ali
muito significativo. Spivak nesse texto parte do diálogo sobre o papel do
intelectual entre Foucault e Deleuze no qual eles chegam à conclusão que o
intelectual deve falar pelos que não têm voz.
Spivak chega à conclusão contrária. Ela diz que o subalterno não fala,
porque é exatamente a impossibilidade de falar que funda sua condição, e que ao
intelectual resta falar por si e investigar o quanto seus métodos de análise
carregam privilégios institucionais. A principal conclusão desta pesquisa é a de
183
que os livros estudados, cada qual a seu modo, mostrou formas de escutar e
dialogar com o silêncio fundador dos subalternos.
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REFERÊNCIAS
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RESUMO
Esta pesquisa é sobre os migrantes nordestinos que figuram como protagonistas em obras canônicas da literatura brasileira, mostrando como em sua trajetória, ao longo do século XX, eles passaram de tema a sujeito da narração. O corpus da pesquisa reúne Vidas secas, de Graciliano Ramos, Morte e vida Severina: auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto, Essa terra e O cachorro e o lobo, de Antônio Torres, A hora da estrela, de Clarice Lispector e As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. No primeiro capítulo, “Nação e região”, faz-se uma revisão da literatura regionalista brasileira para mostrar como a produção regional nordestina foi sempre encarada pela crítica por uma perspectiva preconceituosa. Os três capítulos seguintes consistem na análise do corpus e seu foco principal reside na investigação do estatuto do narrador e da natureza de seu discurso. No primeiro, estuda-se o êxodo da região rural e suas motivações e efeitos sobre os personagens; no segundo, as relações entre os migrantes e a cidade para onde eles se transferem; e, finalmente, no terceiro, a sua reconciliação com o seu local de origem. A análise aborda ainda a questão da classe social e a relação entre a cultura letrada e a oralidade. A conclusão revela que a passagem do migrante de tema a sujeito da narração na literatura brasileira é acompanhada de uma valorização cada vez maior do ponto de vista regional.
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ABSTRACT
This is a study about Northeastern migrants who appear as protagonists in canonic Brazilian literary works. Our main purpose is to investigate how their role has changed, throughout the twentieth century, from the position of theme to that of subjects of narration. The works which form the corpus of this study are: Graciliano Ramos’ Vidas secas, João Cabral de Melo Neto’s Morte e vida severina: auto de natal pernambucano, Antônio Torres’ Essa Terra and O cachorro e o lobo, Clarice Lispector’s A hora da estrela, and Marilene Felinto’s As mulheres de Tijucopapo. In the first chapter, entitled “Nation and Region”, we offer a review of Brazilian regionalist literature in order to show how Northeastern regional works have always been seen by criticism from a prejudiced perspective. The three following chapters consist of the analysis of the corpus and their focus lies especially upon the issue of the narrator’s statute and of the nature of his discourse. The movement of migration is studied in three different aspects: the exodus from the rural region and its motivations and effects upon the characters, the relationship between these characters and the city to which they migrate and finally their reconciliation with their place of origin. The question of the social class and of the relationship between literacy and orality are also studied in these chapters. The conclusion of the work reveals that the change the characters undergo from theme to subject of narration is accompanied by a higher estimation of the region from the point of view of their authors.
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RÉSUMÉ
Cette étude concerne les migrants nordestins figurant comme
protagonistes dans les oeuvres canoniques de la littérature brésilienne. Elle montre comment, au cours du 20ème siècle, ces migrants passent de la condition de thème à celle de sujet de la narration. Le corpus de l’étude inclut Sécheresse (Vidas secas) de Graciliano Ramos, Mort et vie Séverine (Morte e vida Severina: auto de natal pernambucano) de João Cabral de Melo Neto, Cette terre (Essa terra) et Chien et Loup (O cachorro e o lobo) de Antônio Torres, L’Heure de l’étoile (A hora da estrela) de Clarice Lispector et Les femmes de Tijucopapo (As mulheres de Tijucopapo) de Marilene Felinto. Dans le premier chapitre, « Nation et région », on trouvera une révision de la littérature régionaliste brésilienne montrant comment la production régionale nordestine a toujours souffert des préjugés de la critique. Les trois chapitres suivants sont consacrés à l’analyse du corpus, et notamment à l’étude du statut du narrateur et de la nature de son discours. Le premier concerne l’exode rural, ses motivations et ses effets sur les personnages ; le deuxième, les relations entre les migrants et les villes où ils vont habiter ; enfin, le troisième chapitre est consacré à leur réconciliation avec leur lieu d’origine. L’analyse traite aussi de la question de la classe sociale et de la relation entre la culture lettrée et l’oralité. La conclusion montre que le passage du migrant dans la littérature brésilienne du statut de thème à celui de narrateur s’accompagne d’une valorisation toujours croissante de la perspective régionale.