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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Faculdade de Letras Departamento de Ciência da Literatura Programa de pós-graduação em Ciência da Literatura Doutorado em Teoria literária Adriana de Fátima Barbosa Araujo MIGRANTES NORDESTINOS NA LITERATURA BRASILEIRA Rio de Janeiro 2006

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Faculdade de Letras

Departamento de Ciência da Literatura Programa de pós-graduação em Ciência da Literatura

Doutorado em Teoria literária

Adriana de Fátima Barbosa Araujo

MIGRANTES NORDESTINOS NA LITERATURA BRASILEIRA

Rio de Janeiro 2006

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Adriana de Fátima Barbosa Araújo Migrantes nordestinos na literatura brasileira

Tese de Doutorado em Teoria Literária apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, Departamento de Ciência da Literatura, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Ciência da Literatura (Teoria Literária) Orientador: Prof. Dr. Eduardo de F. Coutinho Rio de Janeiro 2006

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FICHA CATALOGRÁFICA

ARAÚJO, Adriana de F. B. Migrantes nordestinos na literatura brasileira/Adriana de Fátima Barbosa

Araújo. Rio de Janeiro, 2006. 182f.

Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura, 2006. Orientador: Eduardo de F. Coutinho

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Adriana de Fátima Barbosa Araújo

Migrantes nordestinos na literatura brasileira Rio de Janeiro, 7 de agosto de 2006 _____________________________ Eduardo de Faria Coutinho, Doutor, UFRJ

____________________________________________ Elizabeth de Andrade Lima Hazin, Doutora, UnB ____________________________________________ Luiz Edmundo Bouças Coutinho, Doutor, UFRJ

____________________________________________ Rosa Maria de Carvalho Gens, Doutora, UFRJ

____________________________________________ Teresa Cristina Meireles de Oliveira, Doutora, UFRJ

____________________________________________

Eleonora Camenietski, Doutora, UFRJ (Suplente)

____________________________________________

Vera Lucia Teixeira Kauss, Doutora, UFRJ (Suplente)

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ao Alício, meu querido

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, professor Dr. Eduardo Coutinho, que, com sua sabedoria e paciência, soube tirar leite das pedras. Ao meu marido, Alício, que me deu forças para abandonar os piores desânimos e que também financiou esta pesquisa. À minha família que sempre soube reconhecer a importância desse estudo, e especialmente a minha avó, Clélia Barreto Alexandrino – Vó Rosa – e minha mãe, Maria Umbelina Alexandrino Lima, que o inspirou. A meus filhos, Gabriel, Luísa, José e Cecília.

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O que foi é o que será : o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: “Veja: isto é novo”, ela já existia nos tempos passados.

Eclesiastes

Uma coisa é pôr idéias arranjadas, outra é lidar com país de pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misérias... Tanta gente – dá susto de saber – e nenhum se sossega: todos nascendo, crescendo, se casando, querendo colocação de emprego, comida, saúde, riqueza, ser importante, querendo chuva e negócios bons...

Guimarães Rosa

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SINOPSE ARAÚJO, Adriana de Fátima Barbosa. Migrantes nordestinos na literatura brasileira. Rio de Janeiro, 2006. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. Esta pesquisa é sobre os migrantes nordestinos como protagonistas em obras de arte literárias canônicas brasileiras. A partir da revisão do movimento regionalista nas histórias literárias brasileiras, a pesquisa estuda os conceitos de “nação” e “região” em seus aspectos ideológicos. Mostra, ainda, como os migrantes passam de objeto a sujeito nos textos e considera a classe social e a relação entre a cultura letrada e a oralidade na abordagem que faz das seguintes obras: Vidas secas, de Graciliano Ramos; Morte e vida severina: auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto; Essa terra e O cachorro e o lobo, de Antônio Torres; A hora da estrela, de Clarice Lispector; As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto

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SUMÁRIO

Introdução, 10

1º Capítulo: Nação e Região, 17

2º Capítulo: A migração do ponto de vista da origem, 70

3º Capítulo: A migração do ponto de vista da cidade grande, 113

4º Capítulo: O efeito migração, 161

Considerações Finais, 171

Referências, 184

Resumo, 190

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INTRODUÇÃO

Sabemos dos desequilíbrios regionais da nossa nação que já no século XIX

sofre de uma política de preferências econômicas injusta. Antônio Jorge de

Siqueira, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, no texto “Nação e região:

seus discursos fundadores” (2004) explica, do ponto de vista histórico, como no

momento de passagem do Império para a República, com o fim do escravismo, o

sistema republicano tentará neutralizar um imaginário do poder monárquico

personalista e paternalista em prol de uma representação mais democrática do

poder. É nesse momento que se desenvolvem os processos de regionalização e

nacionalização que estão imbricados no sistema de forças políticas e econômicas

do Brasil do século XIX.

Na explicação de Siqueira, o Nordeste está em desvantagem já na década

de 1880 devido ao longo processo de mudança do eixo econômico que já tinha

passado pelo ouro em Minas Gerais no século XVIII e que nesse momento

estava concentrado no café do Sudeste. A modernização que acontece no

Sudeste nesse período agrava as diferenciações internas no país no momento em

que a sociedade tende a se compreender como nação.

Para demonstrar essas diferenças internas e como elas manejam as idéias

de nação e região, Siqueira usa a opinião pública veiculada pelos jornais em

Pernambuco nos quais aparece nítido o mal estar da província frente à

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centralização do poder imperial. Do editorial do Diário de Pernambuco de 29 de

agosto de 1859, Siqueira copia:

E como poucas vezes sucede que as Províncias do Norte sejam representadas no gabinete por algum filho seu, os interesses, por mais que eles importem à prosperidade geral, raras vezes são atendidos devidamente. Ao passo que as Províncias do Sul são largamente dotadas de toda a sorte de melhoramentos, as do Norte só por um favor especial recebem de tempos em tempos um escasso subsídio, que por minguado deixa muitas vezes de lhes aproveitar. (SIQUEIRA, 2004, 5)

Segundo Siqueira, este é o olhar que a região, Pernambuco, tem frente à

nação. Como conseqüência, o pesquisador afirma como a nação, no momento

mesmo em que surge como uma idéia que une os brasileiros, já enfrenta

ressentimentos regionais. Na verdade, esse descompasso estrutural entre a nação,

identificada com o poder monárquico e depois com o poder republicano

concentrados no Rio de Janeiro, e a região já é motor de inúmeras insurreições

(Cabanagem, Sabinada, Balaiada, Farrapos, Praieira) desde a Independência. Ao

fim do século XIX, em 1897, Canudos mostra mais uma vez a face dessa

diferenciação profunda entre região e nação. Já no século XX, a Questão do

Contestado e a Sedição de Juazeiro continuam as revoltas regionais contra a

República.

Muito embora as condições inferiores da região, no caso Pernambuco,

tenham servido de munição para discursos estratégicos, ideológicos e políticos

das elites conservadoras para proveito próprio, deve-se reter o fato de que os

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discursos hegemônicos do saber competente sempre estiveram centralizados no

pólo sudestino.

Euclides da Cunha, no texto “Um clima caluniado” do seu livro À margem

da história, escreve sobre o povoamento do Acre pelos retirantes nordestinos. Os

conceitos de “nação” e “região” conforme explicados por Siqueira aparecem no

dircurso de Euclides como idéias; não há a utilização direta das palavras. Mas a

idéia de que o Brasil, a nação, existia em oposição às populações do interior está

visível no discurso de Euclides. Numa passagem desse texto, em que Euclides

narra a política que o governo tinha para os nordestinos que fugiam das secas, é

interessante notar como ele próprio usa a palavra “Brasil”:

Quando as grandes secas de 1879-1880, 1889-1890, 1900-1901 flamejavam sobre os sertões adustos, e as cidades do litoral se enchiam em poucas semanas de uma população adventícia, de famintos assombrosos, devorados das febres e das bexigas – a preocupação exclusiva dos poderes públicos consistia no libertá-las quanto antes daquelas invasões de bárbaros moribundos que infestavam o Brasil. Abarrotavam-se, às carreiras, os vapores, com aqueles fardos agitantes consignados à morte. Mandavam-nos para a Amazônia – vastíssima, despovoada, quase ignota – o que equivalia a expatriá-los dentro da própria pátria. A multidão martirizada, perdidos todos os direitos, rotos os laços da família, que se fracionava no tumulto dos embarques acelerados, partia para aquelas bandas levando uma carta de prego para o desconhecido; e ia, com os seus famintos, os seus febrentos e os seus variolosos, em condições de malignar e corromper as localidades mais salubres do mundo. Mas feita a tarefa expurgatória, não se curava mais dela. Cessava a intervenção governamental. Nunca, até os nossos dias, a acompanhou um só agente oficial, ou um médico. Os banidos levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem... (Cunha, 1995: 276) A expressão “os moribundos que infestavam o Brasil” deixa clara a idéia

de que aqueles moribundos não eram o Brasil; eles infestavam o Brasil

correspondente da palavra “nação” fortemente ligada ao Rio de Janeiro. Esse

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descaso do poder público com os nordestinos é visto ainda pelo ângulo da falta

de alternativas para o desenvolvimento nordestino frente à decadência do açúcar,

enquanto que no Sul as políticas de captação de imigrantes para a substituição do

braço escravo eram patrocinadas pelo governo. Chegando ao limite de o

migrante italiano estar em melhor posição que o nordestino como mão-de-obra.

Sobre essa situação escreve Euclides no mesmo texto:

Enquanto o colono italiano se desloca de Gênova à mais remota fazenda de São Paulo, paternalmente assistido por nossos poderes públicos, o cearense efetua, à sua custa e de todo em todo desamparado, uma viagem mais difícil, em que os adiantamentos feitos pelos contratadores insaciáveis, inçados de parcelas fantásticas e de preços inauditos, o transformam as mais das vezes em devedor para sempre insolvente. (Cunha, 1995: 278)

Nesse panorama político e social, está imerso o homem que com sua

família tem que fugir da seca e da pobreza para procurar uma vida melhor no sul.

Estamos acostumados a ver o/a nordestino/a como figura fadada a um destino

de migração. Dentro do pau de arara, ele mesmo um pau de arara, segue para o

sul como tantos outros antes e depois dele, expulso de suas origens. Está inscrito

na posição de vítima e também ocupa uma posição subalterna na nossa

hierarquia social.

Mas esta representação de nordestino vem se transformando lentamente.

Sabe-se lá que mudanças sofrerá com o fato de termos um migrante nordestino

como Presidente da República. Esse discurso de subalternidade nordestina e de

centralização do poder no pólo sudestino é uma realidade social e cultural que

está fortemente ligada à estrutura econômica brasileira.

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Esta pesquisa é sobre a trajetória da personagem migrante nordestina

como protagonista no cânone da literatura brasileira. O horizonte social é a

condição brasileira de nação periférica e dependente que ainda não concluiu seu

processo de modernização diversas vezes retomado. Sendo assim, estudar as

formas de inserção social na literatura constitui um ponto fundamental.

Devedora de Antonio Candido, Alfredo Bosi e Roberto Schwarz, a

proposta de estudo e análise das obras nesta pesquisa, grosso modo, vê a

literatura como fatos associativos, ou seja, obras e atitudes que exprimem ou

escondem relações de sociabilidade. A obra é uma singularidade única e pessoal,

é uma confidência, um esforço de pensamento; a literatura, entretanto, é coletiva

e necessita da comercialização em um mercado (editoras, distribuidoras, livrarias)

e de uma instituição para ser validada como tal: universidades, academias

literárias, suplementos especializados dos jornais, além de um sistema que garanta

uma continuidade perfazendo uma herança e uma tradição.

Nesse sentido, o estudo da história literária na busca de como o cânone se

constituiu e que lugar deu a determinadas obras pode ser desenvolvido a partir da

leitura desses textos com os olhos de hoje. Assim, há uma tentativa de tornar a

leitura dos textos informada pelo estudo das condições de produção, recepção e

circulação das obras.

A análise literária será feita a partir da investigação dos elementos que

compõem o objeto ficcional: matéria sonora, ritmo, imagens, articulação interna

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do período, o trabalho estilístico das descrições, a técnica do diálogo, os planos

narrativos e discursivos, coerência dos personagens, a questão das convenções, a

fidelidade das reconstruções ambientais. A análise focaliza, ainda, as relações

entre o estilo de cada autor/a e a visão de mundo de uma classe ou período.

Além disso, como a meta principal da pesquisa é traçar a trajetória dos

protagonistas migrantes nordestinos/as no cânone da literatura brasileira, a

pesquisa procura identificar a focalização narrativa de cada texto no sentido de

definir a) quem fala b) com que autoridade fala c) que distância toma da matéria

narrada. E, ainda, num contexto analítico mais amplo procuram-se identificar as

condições de produção, circulação e recepção da obra para que seja possível uma

aproximação entre forma literária e processo social.

É importante frisar que mesmo sendo para este estudo importantes os

processos históricos relacionados com as políticas culturais e o lugar que nelas

ocupam a expressão literária nordestina, o principal foco deste trabalho é o

estudo literário das obras que em nenhum momento se confunde com uma

comparação delas com a realidade exterior.

Inicialmente, reúno da série literária brasileira do século XX os seguintes

textos: Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, da década de 1930, e Morte e vida

severina, de João Cabral de Melo Neto, da década de 1950. Da década de 1970,

destaco Antônio Torres e Clarice Lispector que recuperam o tema com Essa

Terra (1976) e A hora da estrela (1977), respectivamente. Da década de 1980,

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seleciono Marilene Felinto com As mulheres de Tijucopapo (1982) e, finalmente, da

década de 1990, pinço Antônio Torres que, vinte e um anos após a publicação de

Essa terra (1976), volta ao mesmo personagem em O cachorro e o lobo (1997).

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1º capítulo

Nação e região

Antecedentes da questão; Corpus da pesquisa; Regionalismo e dependência; O regionalismo nas histórias literárias; Regionalismo e Modernismo; Gilberto Freyre: O Livro do Nordeste e o Manifesto regionalista.

Antecedentes da questão

Os migrantes nordestinos entram na literatura brasileira como referência

superficial. Isso acontece em O cabeleira (1876), de Franklin Távora. Esse decênio

de 1870, segundo Antonio Candido, sacudiu o ideário brasileiro com a presença

marcante de dois elementos: a divulgação de novas correntes européias de

pensamento e a campanha abolicionista. (Candido, 1999: 48 e segs)

Em centros irradiadores como o Recife, o Ceará, e sobretudo o Rio de

Janeiro, desenvolveu-se intensa atividade crítica muito inspirada pelo Positivismo

de Augusto Comte e depois pelas diversas modalidades de evolucionismo, além

da repercussão das novas ciências como a Biologia, a Lingüística, a Etnografia, a

Antropologia e a Física.

O choque causado entre essas correntes científicas realistas e democráticas

e o ideário romântico aristocrático provoca um forte questionamento da

legitimidade das oligarquias e das hierarquias de privilégios. A luta contra o poder

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baseado no autoritarismo, no personalismo e no paternalismo ganha força com

instrumentos novos de argumentação.

Nesse cenário, Franklin Távora inicia com O cabeleira (1876) uma série de

publicações, que ficou conhecida como “Literatura do Norte”, que têm o

objetivo de resgatar as histórias do Nordeste e fazê-las visíveis para o povo do

sul, especialmente para o Rio de Janeiro, o grande centro intelectual do país.

Pouco antes, em 1875, Alencar havia lançado um romance que tratava das coisas

do sertão cearence, O sertanejo.

Alencar, em momentos iniciais da narrativa, confessa rememorar sua terra

natal: “Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há tantos

anos na aurora serena e feliz da minha infância?” (Alencar, 1991:11) Mas essa

informação que está lambuzada de comprovações biográficas não passa de um

subterfúgio do narrador – espécie de argumento de autoridade – para motivar

uma história. Essa técnica narrativa é das mais antigas e nada mais é que uma

variação daquela em que o narrador diz ter encontrado, de maneira inesperada,

certo manuscrito...

O passo sofisticado, porém, simples que o narrador dá quando faz a

passagem da sua própria história para a história do personagem é magnífico. Diz

que naquela época a pessoa tinha que andar muito dentro da natureza para avistar

gente, então, passando por entre esses campos, como fez quando era pequeno, vê

um viajante que ...

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O narrador de O sertanejo leva seu leitor pela mão, como um sereno e

astuto preceptor. E lança seu encanto sobre o leitor. As suas palavras são ditas

com olhos postos em um público leitor que Alencar conhecia bem: a elite carioca

da segunda metade do século XIX. O lugar que o romancista tem no século XIX,

especialmente quando se trata de José de Alencar, é muito estratégico, pois, são

eles que estão inventando uma nação que precisa ter identidade própria frente a

sua recente emancipação.

O sertanejo de Alencar, Arnaldo, é um homem em tudo superior, menos

em termos de classe social: ele tem todas as virtudes da terra e todos os dons da

natureza. Nascido sob o signo de um milagre, ele tem qualidades extraordinárias.

Para dar um exemplo da composição dessa personagem, cito a passagem em que

Arnaldo interage com uma onça. Nessa passagem também fica clara a visão de

mundo do narrador através da sua escolha vocabular. O narrador substitui a

palavra “onça” pela palavra “tigre”:

Arnaldo pôs a cabeça para fora da rede, e perscrutando a folhagem descobriu duas tochas acesas no meio das trevas, mas de uma luz baça e sulfúrea. Há um quer que seja de satânico na pupila da onça, .... Enquanto o tigre continuava a grunir o seu riso de fera com uns agachos de rarefeito, que lhe espreguiçavam o torso mosqueado. (Alencar, 1991:33)

Esse caso do tigre ensina uma coisa sobre o narrador e uma sobre a

personagem. Sobre Arnaldo, veremos, que ele não tem medo de onça, pelo

contrário conseguiu até ter uma como amiga. E, sobre o narrador, vamos

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entender como sua escolha vocabular constrói sua visão de mundo superior e

elitista.

O narrador usa a palavra tigre para substituir a palavra onça. Essa

substituição se dá em um momento inicial da narrativa quando o narrador está

espalhando pelo texto informações que estão construindo as identidades de cada

personagem, especialmente dos protagonistas. Neste trecho, vamos observar dois

processos: primeiro a constituição da identidade de Arnaldo e depois o efeito que

tem a substituição da palavra onça pela palavra tigre na designação do mesmo

animal.

Trata-se de uma passagem em que Arnaldo se prepara para dormir.

Arnaldo gosta de dormir ao relento, tendo na rede armada no alto da árvore seu

lugar preferido, sua residência errante. Longe dessa descrição está o pobre

miserável que vaga pelo sertão em busca de um meio de vida. É por aí que

entendemos a idealização do sertanejo, que aparece junto com os processos de

identificação de Arnaldo e de identificação da narrativa.

Entabulando conversa com a onça, e depois se defendendo de uma

investida, Arnaldo parece dominá-la. Enquanto ela tenta atacá-lo, ele repousa

friamente em sua rede, pois como conhece a árvore como a palma de sua mão,

percebe ser impossível para o bicho chegar até ele. Esse é um dos aspectos da

identidade de Arnaldo: seu admirável conhecimento da natureza. Nesse sentido,

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se pensarmos a dicotomia natureza e cultura, veremos que Arnaldo está próximo

da natureza e longe da cultura.

A substituição da palavra “onça” pela palavra “tigre” endereça o leitor para

as coisas exóticas do Oriente, encaradas do ponto de vista do europeu que tem o

Oriente como uma fonte de mistérios exóticos. Como a visão de mundo da elite

carioca estava profundamente marcada pela visão de mundo da elite francesa – o

teatro municipal do Rio é nossa pequena “ópera de Paris” –, ela tem essa imagem

do Oriente como exótico e misterioso. O uso da palavra “tigre” endereça esse

referencial “chic” europeu estabelecendo logo um diálogo com o imaginário da

elite carioca.

O romance que Távora faz publicar um ano depois de O sertanejo não é

menos idealizado, mas a escolha do tema do cangaço é inédita na literatura da

época, mais dada ao folhetim de romance de costumes. Inédito também é o

ponto de vista adotado por Távora.

No romance de Alencar, o ponto de vista é solidário da classe alta, da elite

urbana carioca. A escolha vocabular de Alencar quer dar a ver que é de

linguagem muito mais culta do que popular. A preferência pelo termo “tigre”

para designar aquilo que é um dos temas mais célebres da cultura popular oral

brasileira, a onça, torna distante toda e qualquer referência à cultura popular

brasileira. A onça de Alencar se insere no referencial europeu, está ligada ao

animal exótico e raro, o tigre.

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Ora, se Alencar torna seu enunciado informado por coisas da Europa,

entrando assim em consonância com a classe alta e culta carioca para a qual se

endereçava, Távora, com o cangaceiro, dá a ver um tipo específico de brasileiro.

Alencar chama a atenção para o sertão a partir de uma noção de exotismo.

Távora, também, mas a diferença é que ele endereça um exótico brasileiro. As

duas visões se complementam.

Mas, o ponto de vista que o narrador de O cabeleira busca descobrir é o do

cangaceiro, do pobre. Há na obra um narrador que funciona como um advogado

desse personagem. Há, por exemplo, um momento em que o narrador faz uma

grave crítica social ao considerar a pena de morte a que, por meio de processo

judicial, Cabeleira fora condenado:

Arrastam os delinqüentes à barra dos tribunais ou ao pé dos juízes para serem interrogados sobre as circunstâncias dos crimes que cometeram. Não devia ser assim. O interrogatório principal devia ter por objeto os precedentes do culpado, o grau da sua instrução literária, a sua educação, os seus teres. À pobreza, que é na realidade uma desgraça, deve-se atribuir o maior número dos crimes que pune e dos erros e faltas que não se julga com o direito de punir. A pobreza nunca foi nem jamais será um elemento de elevação; ela foi e sempre será um elemento de degradação social. (Távora, 1988: 135-36)

O narrador assume um tom de denúncia. Penso aqui que o contexto de

produção da imagem de sertanejo esteve em sua origem entre uma referência

idealizada, a de Alencar, e uma paternalista, a de Távora. De qualquer modo a

história literária brasileira deixa para Alencar um lugar de cunho nacional

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enquanto que a Távora designa-se um local compartimentado, oposto ao

nacional, o local, o regional.

Baliza para o regionalismo nordestino, O cabeleira, de Franklin Távora,

narra a trajetória de um fora-da-lei que se redimiu pelo amor de uma moça. As

proezas e as atrocidades do bando comandado pelo Cabeleira são entremeadas

por forte documentação histórica. Trata-se de duas instâncias nem sempre bem

harmonizadas no discurso do romance. O lado histórico parece oferecer um

atraso desagradável ao desenvolvimento clássico da história. A palavra “clássico”

aqui refere-se ao tipo de literatura a que a classe consumidora estava acostumada.

O romance de Távora marca uma diferença fundamental de ponto de vista. Vai

aparecer na literatura brasileira um outro ponto de vista, solidário com os pobres.

Távora investiu em um tipo de texto que pudesse unir ficção e realidade e

essa empresa é ao mesmo tempo seu trunfo e sua derrota. A pesquisa

documentária ganhou impulso entre nós nesse período, mais especificamente em

1878, quando à Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro junta-se o apoio

dos Anais da Biblioteca Nacional. Entretanto, a crítica literária viu no romance

imperícia literária pois, de acordo com a crítica, esse expediente entravava a

fluidez narrativa uma vez que fatos históricos e intriga aparecem no mais das

vezes justapostos de modo desconexo.

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No trecho citado anteriormente do romance de Alencar, é possível

perceber o tom de autoridade com que o narrador elabora sua matéria. E o ponto

de vista do narrador, superior e educado, está em profundo acordo com aquele

do possível leitor, sujeito da classe alta.

Já em O cabeleira, o narrador não está tão à vontade assim. Incomodado, ele

sente que sua narrativa vai ferir o gosto de seu leitor e por isso vez por outra

desculpa-se, como lemos no trecho abaixo:

Não é sem grande constrangimento, leitor, que a minha pena, molhada em tinta, graças a Deus, e não em sangue, descreve cenas de estranho canibalismo como as que nesta história se lêem. Aperta-se-me o coração sempre que me vejo obrigado a relatá-las. ... Mas desgraçadamente estas cenas não são geradas pela minha fantasia. São fatos acontecidos há pouco mais de um século. ... Não estou imaginando, estou, sim, recordando... (Távora, 1988: 68)

O narrador assume um tom culpado porque sabe que desobedeceu à

convenção do gênero que corria no veio da época: o romance de costumes

carioca. Acho que esse ponto de vista subordinado que o narrador de O cabeleira

apresenta deve estar relacionado com o modo como o próprio Távora entendia

seu papel na cena carioca daquele período. O tom de serena autoridade do

narrador de Alencar e o tom de denúncia e de compromisso com a verdade do

narrador de Távora, afirmam os dois lados do tema “nação contra região” tão

discutido e presente nas discussões dos intelectuais da época.

Grosso modo, a comparação estabelecida entre Alencar e Távora dá a ver

uma diferença no tratamento do tema que parece repercutir a luta de classes.

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Alencar escreve da e para a elite e Távora apresenta, de modo subalterno, não

por acaso, os mais pobres. No primeiro, o ponto de vista é do alto, da elite; no

segundo, apresenta-se um ponto de vista de baixo, da classe pobre.

Os processos narrativos usados por ambos os autores são bem

semelhantes, já que eram contemporâneos. Tanto um como outro mantém certa

distância da matéria narrada. Os seus narradores de terceira pessoa contam a

história de um ponto de vista externo. Está clara a idéia de que a discussão que

desencadeiam está apenas no terreno do tema pois a forma dos dois é quase a

mesma. A questão do estilo é individual e leva em conta outros tópicos não

desenvolvidos nesta breve comparação.

Os migrantes aparecem em O cabeleira quando em determinado momento

um velho explica ao cangaceiro as causas de sua situação miserável: ele conta que

a pouca criação que tinha fora tomada pelos “magotes de gente, que vem aí em

retirada, caindo aqui, morrendo acolá de fome, só de fome” (Távora, 1988: 128).

Algo pouco diferente em termos de técnica vai aparecer quase trinta anos depois,

com a publicação de A bagaceira.

José Américo de Almeida, em A bagaceira (1928), já trabalha com os dois

pontos de vista – da elite e dos pobres – em uma mesma história. A tensão

presente neste clássico da literatura nordestina é enorme. À luta de classes soma-

se a luta de gerações. Gilberto Freyre, em Sobrados e mucambos, dedica um capítulo,

“O pai e o filho”, a esta questão (Freyre, 2000). A grande diferença de visão de

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mundo entre o pai – patriarca tradicional rural –, e o filho – menino esclarecido

nos grandes centros, cheio de idéias revolucionárias do século XIX europeu – é

enorme.

Esse romance mostra o princípio do esgotamento do modo de produção

tradicional do açúcar, baseado apenas na enxada e na coivara (ferro e fogo) e o

surgimento da usina, que mais tarde também sofreria decadência.

O embate entre o patriarca, Dagoberto Marçau, senhor de engenho, e seu

filho, Lúcio, rapaz estudado, cheio de idéias para a implementação de técnicas

agrícolas modernas, será aumentado pela disputa do amor de uma bela jovem, a

retirante Soledade, filha do sertanejo Valentim Pedreira. Os salvados (da casa

grande) e os perdidos (pequenos sitiantes que perdem tudo na época da seca e

buscam abrigo na grande propriedade) formam outra oposição no romance.

A bagaceira tem uma recepção crítica muito boa que o eleva a marco da

literatura social nordestina, segundo Alfredo Bosi em História Concisa da Literatura

Brasileira (Bosi, 1980: 443-444). Os rasgos de crítica social aproximam este

romance de O cabeleira. A narração é feita em terceira pessoa e o ponto de vista

também é externo à história e se solidariza ora com o ponto de vista do alto, ora

com o de baixo.

Em O quinze, de Rachael de Queiroz, os retirantes aparecem também

como pano de fundo, mas o tratamento do tema é totalmente diverso. O tom de

crítica social desaparece e a narrativa ganha leveza. A fatura técnica do romance é

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muito exaltada, principalmente no que diz respeito à simplificação estilística, que

torna a prosa de Rachael de Queiroz enxuta e viva. Não há mais o tom de

exotismo, nem o de denúncia, nem tampouco o de crítica social refinada: surge

um novo ponto de vista da questão, vindo de uma mulher incrivelmente jovem.

O quinze narra, do ponto de vista da personagem, Conceição, a terrível seca

de 1915. Conceição é moça estudada que, como Lúcio, vem passar as férias no

interior. Conceição é o ponto de cruzamento de duas linhas narrativas e de duas

classes sociais: as lidas e os sonhos de seu pretendente Vicente, seu primo, e a

saga da família de Chico Bento, um vaqueiro de uma fazenda vizinha à da avó de

Conceição.

Chico Bento é um dos muitos vaqueiros obrigados a deixar a terra por

causa da seca. A proprietária não tem mais recursos para manter sua família ali e

o dispensa. E assim como cresce a impossibilidade de realização do amor de

Conceição e Vicente, cresce a compreensão e a vontade de dever que ela sente

para com aquele mundo de gente em retirada, reunido em campos de

concentrações terríveis, explorado por governantes trambiqueiros que extraviam

os recursos que pleitearam com base na desgraça desses pobres. O tom que a

narradora apresenta está bem em conformidade com as leituras que Conceição

fazia: leituras socialistas.

Pois bem, Conceição e Vicente vivem um amor frustrado. E esse

sentimento cresce ao considerar-se todo o contexto: aquela situação de tanta

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gente pobre e desvalida e a quase impossibilidade de transformá-la que

Conceição vive. Está lá ela, forte e guerreira, professora de escola pública,

ensinando as crianças e em casa tomando conta de uma criancinha pobre, sua

afilhada. Ela faz apenas o que está ao seu alcance e encara os fatos e seus deveres

com mansidão.

Vicente, por seu lado, trabalha duro tentando salvar sua criação da seca, e

para isso luta incansavelmente. É por momentos raros de esgotamento que lhe

aparecem uns sonhos, umas vontades de emigrar dali para um lugar melhor, para

São Paulo, como podemos ler nos trechos copiados abaixo:

No entanto, agora, Conceição estava bem longe. Separava-os a agressiva miséria de um ano de seca; era preciso lutar tanto, e

tanto esperar para ter qualquer coisa de estável a lhe oferecer! Teve um súbito desejo de emigrar, de fugir, de viver numa terra melhor, onde a

vida fosse mais fácil e os desejos não custassem sangue. ... Quando, mais tarde Vicente dormia, teve um sonho esquisito: Conceição, caída por terra, se debatia gemendo. Ele tentava erguê-la, ..... E, largando-a subitamente: - É melhor deixar você aqui, porque eu tenho que ir-me embora para S.

Paulo... (Queiroz, 1970: 58-59)

O ponto de vista adotado na narração de O quinze é interno. Com uma

espécie de terceira pessoa levemente dramatizada, a narração escorrega para o

discurso indireto livre em determinados momentos de entrega ao personagem.

Como exemplo, há o trecho em que, por uma série de desenganos, Conceição

acredita ter Vicente andado de caso com outra moça (Zefina). É interessante

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notar como no final do trecho a voz do narrador e a voz da personagem se

confundem. Conceição, olhando-o de frente insistiu:

- As filhas também são muito boas, não são? A Zefina mormente... Ele, com o mesmo gesto inocente, confirmou: - Muito boa rapariga. É quem cuida de minha roupa. - É!... – E Conceição, furiosa com a incompreensão verdadeira ou fingida, e

com o sossego dele, concentrou nesse “é” toda sua ironia despeitada. Mas não pôde ir mais longe por causa da presença da avó... Cínico! Cínico! (Queiroz, 1970:82)

Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, é o primeiro romance que coloca

na condição de protagonista o migrante nordestino e por isso ele é tão

revolucionário. A narração é feita em terceira pessoa e o narrador apresenta

momentos de aproximação e afastamento da matéria narrada.

Alfredo Bosi no ensaio “Céu, inferno” investiga minuciosamente a

distância e a aproximação que o narrador dessa obra estabelece das personagens,

especialmente de Fabiano (Bosi, 1988:10-32). Ele explica como na narrativa há

cortes nítidos entre o ponto de vista da personagem, que é aquele de um vaqueiro

pobre, muito desconfiado da palavra, e em especial da palavra escrita, e que segue

de modo quase natural para um destino onde pensa encontrar uma vida melhor,

e o do narrador, que olha de cima o destino do vaqueiro e dá o salto que ao outro

é impossível. O narrador enuncia os efeitos de uma realidade opressiva no dia-a-

dia da vida de cada um dos membros daquela família.

Bosi mostra ainda como nos momentos de aproximação entre narrador e

personagem, Graciliano marca com teor revolucionário sua realização. Como o

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personagem, o narrador também desconfia do discurso “civilizado”. De um lado,

a voz do personagem iletrado é fragmentada e lacônica, mas, por outro lado, a

voz do letrado é considerada perigosa.

Corpus da pesquisa

Vidas secas constitui o primeiro romance do corpus dessa pesquisa. Esse

romance de Graciliano desafiou os críticos de sua época tanto no que diz

respeito à classificação do texto – que é curto para os padrões da época e

formado por episódios autônomos justapostos de modo descontínuo –, quanto

pelo discurso dos protagonistas, que não poderia ser descrito nem como

monólogo interior, nem como discurso indireto livre. A narração é feita com o

máximo de objetividade, em terceira pessoa.

Vidas secas, último romance de Graciliano Ramos, de 1938, causou grande

interesse na época pelo tom de denúncia, ou seja, por mostrar um Brasil que

estava invisível. Távora já no século XIX tentava fazer essa parte do país ser

vista, mas é só no decênio de 1930 que há condições favoráveis para que essa

visão prevaleça.

No decênio de 1930, segundo Antonio Candido, ocorre em toda a

América Latina uma alteração de perspectivas, já que a idéia de “país novo”, que

ainda não teve condições de cumprir suas grandes possibilidades de progresso e

futuro, é substituída pela noção de subdesenvolvimento que, ao invés da

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grandeza, marca a falta e a atrofia presentes na vida do continente (Candido,

2000: 140-63).

A consciência amena do atraso, ligada à ideologia de “país novo”, dá lugar

à consciência catastrófica do atraso. E essa consciência, atravessada pela noção

de subdesenvolvimento, marca um momento no qual escritores e escritoras

encontram novas formas literárias de tratar o tema da vida rural, agora livre de

um tratamento exótico e pitoresco.

É o escavamento destas formas literárias, que surgem com essa mudança

de perspectiva no plano social, que este trabalho procura realizar, tentando

aproximar forma literária e processo social. Há, na proposta, a tentativa de

estabelecer a trajetória dessa figura migrante no cânone da literatura brasileira.

A hipótese é a de que a personagem migrante nordestina entra no cânone

da literatura brasileira na condição de tema, de objeto da narração, e pouco a

pouco conquista sua voz. Em Vidas secas, a voz do migrante está quase que

reduzida a sons e interjeições guturais que produzem uma linguagem

monossilábica e gaguejada. O discurso do narrador é seco e objetivo.

O segundo texto a ser analisado, Morte e vida severina: auto de natal de

Pernambuco (1956), resgata de um longo período de esquecimento o tema da

migração nordestina. Nesse caso, o gênero escolhido, o auto, por definição leva o

migrante a falar por si, fato ainda não realizado em obra romanesca. Infelizmente,

o auto não chega a atingir as classes pobres, como era desejo de seu autor, mas

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cai no gosto de uma certa fatia de intelectuais de esquerda que ajudam na

divulgação do texto e na realização de montagens.

Na década de 1970, aparecem Essa terra (1976) de Antônio Torres e A hora

da estrela (1977), de Clarice Lispector, mais dois textos para o corpus da pesquisa.

Em Essa terra, o migrante aparece pela primeira vez na forma de um eu –

finalmente chega à primeira pessoa o migrante nordestino. O romance narra

como um jovem, Totonhim, a exemplo de seu irmão mais velho, vai deixar a

família em busca de uma vida melhor em São Paulo.

Mas como a conquista da voz da personagem migrante na literatura não é

uma linha evolutiva, aparece pouco depois o romance de Clarice Lispector, A

hora da estrela. Nesse romance, Macabéa, a nordestina, é atropelada pelas vozes da

autora e do narrador e finalmente pela grande cidade. Portanto, é apenas com

Essa terra e com A hora da estrela na década de 1970 que a personagem toma posse

de um “eu” ainda que não tão consolidado.

Vidas secas (1939), Morte e vida severina (1956) e Essa terra (1976), no escopo

das obras estudadas nesta pesquisa, retratam o problema da migração em sua

origem. A personagem é tratada como retirante e o ambiente é sempre o do

sertão. A partir de A hora da estrela (1977), o drama da personagem não está mais

focado no trânsito migratório, mas na adaptação da personagem à cidade para a

qual emigrou.

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Macabéa anda pelas ruas do Rio de Janeiro. Nesse ponto ela não é mais

denominada como retirante a não ser com um sentido pejorativo ou agrassivo.

Isto é, no Nordeste a palavra “retirante” significa aquele que vai para o sul em

retirada. No sul, a palavra “retirante” adquire uma carga negativa e se transforma

quase que num xingamento.

O problema da identificação marca profundamente todos os romances que

tratam o tema de uma perspectiva externa em terceira pessoa. Especialmente em

Vidas secas e em A hora da estrela, a questão da não identificação entre narrador e

personagem gera saídas técnicas de expressão que põe à prova a genialidade

desses dois grandes autores: Graciliano e Clarice.

Em A hora da estrela, a autora não se identifica com a personagem e assim

passa a narração para um outro, propositalmente do sexo masculino, que vai

mediar autora e personagem de modo que os três, autora, narrador e

personagem, se engalfinham na narração. O problema do escritor que tenta dar

voz aos que não têm expressa bem a questão da autora, que passou boa parte da

infância em Recife, como se pode ler nos trechos abaixo citados em que o

narrador afirma:

Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe. (Lispector, 1995:26)

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É parece que estou mudando de modo de escrever. Mas acontece que só escrevo o que quero, não sou um profissional – e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. (Lispector, 1995, 31)

Marilene Felinto, com As mulheres de Tijucopapo (1982), é a primeira a

explorar, em primeira pessoa, a condição de migrante nordestina em São Paulo.

E nesse cavoucar de sua história ela se depara com os fantasmas de sua infância,

com os maus-tratos da mãe e as traições do pai. Sua prosa é confessional e

estouvada, enfezada e poética. A invenção de uma origem digna, diferente

daquela terrível, é o motor de sua pungente narrativa.

Em 1997, Antônio Torres publica O cachorro e o lobo, romance que narra a

volta daquele personagem Totonhim que foi para São Paulo em 1976 em Essa

terra. Romance de primeira pessoa, de rememoração, de reconciliação, O cachorro e

o lobo mostra os efeitos das modernizações inconclusas no agreste. O ponto de

vista é de um eu maduro e conformado, mais compreensivo e observador do que

crítico.

Marilene Felinto e Antônio Torres são os escritores do migrante

nordestino em primeira pessoa. Torres ambienta seus dois romances, Essa terra

(1976) e O cachorro e o lobo (1997) em Junco, cidadezinha do interior bahiano. Em

As mulheres de Tijucopapo (1982), a ambientação está associada ao onírico, e seu

ponto de vista é construído a partir do presente da personagem, pessoa bem

sucedida, moradora de São Paulo.

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Regionalismo e dependência

A partir do texto de Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”,

no qual é explorada a relação entre dependência e literatura na América Latina,

esta seção tem como objetivo encaminhar algumas das questões relacionadas ao

caso específico da literatura regionalista brasileira.

Neste texto, Candido opera com os conceitos de consciência amena do

atraso referente à noção de “país novo” e consciência catastrófica do atraso

correspondente à noção de subdesenvolvimento. A tônica do texto está numa

análise que leva em conta a condição da literatura num país de analfabetos como

é o nosso. Vale lembrar que mesmo em queda nossa taxa de analfabetismo é

superior a 11% conforme divulgou o IBGE pela pesquisa nacional de domicílios

1988/2003. A literatura é assim, considerando tudo, um produto de elite.

Aqui toca-se num dos problemas centrais desse trabalho: a relação entre

aqueles que não vão ler e os intelectuais que pretendem dar-lhes voz. No campo

do ficcional, a literatura dá uma solução imaginária para um problema real.

O momento que Candido relaciona a uma consciência amena do atraso

está ligado às promessas de esperança que o Brasil como um país novo inspirava.

Terra bela - pátria grande, essa era a idéia que estava associada à grandeza da

primeira e à futura pujança da segunda.

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Nesse tempo, o escritor partilha da ideologia ilustrada que pensa a

instrução como humanização e progresso. Esses intelectuais flutuavam acima da

incultura geral e, desejosos de que ela desaparecesse a fim de que a pátria

encontrasse seu grandioso destino, eles sonhavam e ignoravam o atraso, que

achavam não poder alcançá-los. Dessa forma, sem uma cultura que lhes servisse

de base, voltavam-se para a Europa a partir da qual estabeleciam um ponto de

referência e uma escala de valores. Achavam-se semelhantes ao que havia de

melhor na Europa. Assim, os escritores formavam um grupo “aristocrático” em

relação ao homem inculto. Alencar e Távora são regidos por essa ideologia de

país novo.

Candido entra fundo na questão do atraso e da dependência cultural

quando analisa as influências estrangeiras. E cita como exemplo extremo desse

aristocratismo alienante o uso de línguas estrangeiras na redação das obras. Mas

lembra também que, entre os intelectuais, ainda existiam aqueles que, de maneira

até intransigente (Távora), lutavam pela independência cultural, de modo que o

cosmopolitismo e o regionalismo parecem ter suas raízes misturadas.

Mas, essas afirmações de nacionalismo e de independência cultural, explica

Candido, também são inspiradas em formulações européias. Ele lembra que a

ligação entre intelectuais brasileiros e latino-americanos é maior nas academias

européias e americanas onde recebe incentivo bem maior do que entre nós

mesmos.

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De modo reduzido, Candido vê atraso e dependência na literatura

brasileira, especialmente nos movimentos de rejeição e cópia que movem nossos

intelectuais frente às inevitáveis influências externas. No mais das vezes, quando

os intelectuais se renderam às ilusões patrioteiras de um nacionalismo fervoroso

que parece afirmar nossa identidade própria, o que aconteceu foi uma produção

matizada por condescendência e exotismo que ofereceu à Europa exatamente o

que ela queria ver no Brasil. Essa é uma questão aguda de dependência na

independência. A cópia servil, do outro lado da ambivalência, seduz os escritores

e mostra tanto um caminho intelectual baseado em um argumento de autoridade,

quanto um caminho migratório que, no limite, isola e silencia.

Dentro desse contexto de ambivalência, Candido afirma que o romance de

1930 antecipou, na literatura, a consciência catastrófica do atraso que, segundo

ele, ocorreria nos contextos sociais e políticos apenas depois da Segunda Guerra

Mundial, portanto quase quinze anos depois.

A literatura de Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo e Jorge Amado,

afirma o crítico, “desvendam a situação na sua complexidade, voltando-se contra

as classes dominantes e vendo na degradação do homem uma conseqüência da

espoliação econômica, não do seu destino individual” (grifo do autor) (Candido,

2000: 160)

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O regionalismo nas histórias literárias

Falar de regionalismo causa sempre uma estranheza. Estranheza que vem

do fato de a palavra regionalismo estar investida de uma carga semântica que, no

mais das vezes, remete a nacionalismos baratos e tacanhos. É como se o

regionalismo fosse o par oposto de universalismo.

Um exemplo desse clima que ronda a palavra é a sua relação com

Guimarães Rosa. Estamos falando aqui de um dos maiores escritores brasileiros

do século XX. Rosa colocou um redemoinho no meio do regionalismo. Eduardo

Coutinho, na “Introdução” das Obras Completas de Rosa, explica como

regionalismo e universalismo não se excluem em Rosa (Rosa, 1994:11-26). E

Alfredo Bosi lança uma pergunta sobre o assunto que ainda paira no ar: o que

ficará em primeiro plano: a reprodução da vida e da mentalidade agreste, ou o

experimento estético? (Bosi, 1980: 487). Entre o transcendentismo formal e o

conteudismo bruto há matrizes críticas que ora investem no ponto de vista

técnico, ora no rico complexo de estilos de pensamento que serviram de

contexto para a ficção de Rosa para conseguir argumentos que expliquem seu

caráter universal.

Grosso modo, o regionalismo é a expressão literária que valoriza a força

que se dá a peculiaridades locais, tanto em suas formas particulares de dizer

quanto na exploração descritiva de seu lugar geográfico. Vejamos a seguir como

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alguns críticos do passado e do presente como Afrânio Coutinho, Lucia Miguel-

Pereira, Alfredo Bosi, Antonio Candido, Antonio Dimas e José Maurício Gomes

de Almeida definiram e estudaram o regionalismo na literatura brasileira.

Afrânio Coutinho e Alfredo Bosi lançam um olhar mais amplo sobre o

termo. Afrânio Coutinho apresenta duas entradas para o temo. A primeira,

ampla, diz que toda obra de arte é regional quando apresenta como pano de

fundo um lugar ou quando parece brotar desse local particular. Mas, ele convém

que nessa situação uma obra poderia ser localizada numa região, mas tratar de

assunto universal de modo que essa particularidade local lhe seria apenas

incidental. (Coutinho, 1966)

A segunda entrada para o termo, aquela que A. Coutinho define como o

sentido do regionalismo autêntico, diz ser regional uma obra que não somente é

localizada numa região como também retira a sua “substância real” das

particularidades deste lugar. A. Coutinho define essa substância da seguinte

maneira:

Essa substância decorre, primeiramente, do fundo natural – clima, topografia, flora, fauna, etc. – como elementos que afetam a vida humana na região; e em segundo lugar, das maneiras peculiares da sociedade humana estabelecida naquela região e que a fizeram distinta de qualquer outra. (Coutinho, 1966: 202)

Desta maneira, fica entendido que a ficção regionalista coloca em primeiro

plano a presença tanto física da região, quanto dos costumes locais, concentrando

suas forças na exploração desse panorama. Essa visão crítica privilegia elementos

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estéticos num plano que se concentra nos caracteres formais do texto literário. É

preciso observar que essa visão de A. Coutinho surgiu como uma reação à

posição de Sílvio Romero que em fins do século XIX abordava a obra literária

por uma perspectiva puramente extrínseca.

Para A. Coutinho os contextos histórico e biográfico são considerados

fatores externos à criação da obra de arte e como tal não ocupam lugar central na

compreensão da obra literária. Esses preceitos estão na base da “nova crítica”

preconizada por Coutinho nos anos de 1950. Essa proposta veio do New Criticism

e do Formalismo Russo e foi a base teórica para a empresa de Coutinho de

renovar a compreensão da literatura brasileira até então. O resultado desse

projeto foi a publicação dos seis volumes de A literatura no Brasil. Nesse conjunto,

Coutinho publicou monografias de autores e obras realizando uma profunda

revisão em termos estéticos da literatura brasileira.

Lúcia Miguel-Pereira elabora sua visão do regionalismo em contraponto

com o norte-americano através dos autores Bret Harte e Vernon Louis

Parrington. Para Lúcia o regionalismo se restringe “[às] obras cujo fim primordial

for a fixação de tipos, costumes e linguagem locais, cujo conteúdo perderia a

significação sem esses elementos exteriores, e que se passem em ambientes onde

os hábitos e estilos de vida se diferenciem dos que imprime a civilização

niveladora” (Miguel-Pereira, 1973: 179). Neste trecho vemos como Miguel

Pereira entende a questão do nacional e do regional: é regional tudo o que se

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diferencie da “civilização niveladora” e, neste caso, o conceito de civilização está

ligado ao de “nacional” que, por sua vez, se identifica com o Rio de Janeiro,

capital do país àquela altura dos acontecimentos.

Lucia Miguel Pereira pensa o regionalismo brasileiro em surtos e se refere

a cinco desses surtos no período de 1870 a 1920. O primeiro, que abarca o

decênio de 1870 e 1880, é marcado pelo regionalismo exótico e pitoresco, com

preferência pelo conto. Esse tipo de regionalismo põe em segundo lugar o

homem, valorizando fortemente as exterioridades das personagens e as

peculiaridades locais e, no limite, cai num artificialismo quase teatral. Lucia se

refere aos autores regionais desse momento como se fossem espíritos que sentem

a sedução de modos de vida rudimentares por conhecerem outros mais

complexos. O regionalismo é, então, para a autora, uma expressão que parece sair

de fora para dentro: daí seu aspecto artificial.

O segundo surto acontece no fim do século XIX, após o corte

fundamental na história brasileira que foi a abolição da escravatura. A abolição irá

fomentar o ingresso de imigrantes que vêm ocupar o lugar deixado pelos

escravos. Miguel-Pereira ressalta que no período havia o desejo dos autores de

explorar os modos de vida do brasileiro, livre de influências externas. Esses

fatores são, segundo ela, determinantes para o surgimento de um regionalismo

mais verdadeiro como o do paulista Valdomiro Silveira, do mineiro Afonso

Arinos e o do cearense Manuel de Oliveira Paiva. Renova-se o sertanismo sem

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aquele predomínio da região pelo homem e o regionalismo se torna, então, um

laboratório para concepções mais universais da vida e do homem.

Lucia Miguel-Pereira relaciona como terceiro surto um momento posterior

no qual reúne os autores Simões Lopes Neto, Oliveira Paiva, Domingos Olímpio

e Lindolfo Rocha, dos quais ressalta como definitiva para o regionalismo a obra

do gaúcho Simões Lopes Neto. Nesse momento, a autora identifica um

regionalismo menos rígido e permeável a concepções mais gerais do homem.

Como quarto momento, Lúcia Miguel-Pereira destaca o filão Euclidiano,

formado por Alcides Maya, Roque Calage e Alberto Rangel, autores

profundamente tocados pelo grande marco da literatura brasileira do início do

século, Os sertões. Trata-se de narrativas mais literárias com uma linguagem menos

objetiva e mais interpretativa.

Os sertões (1902) reúne temas que serão desenvolvidos ao longo do século

XX. Walnice Galvão mostra como essas questões eram preocupações que

Euclides aprendeu na escola1 (Galvão, 1994: 615-33).

1 Euclides da Cunha ingressa na Escola Militar para cursar engenharia militar em 1886, aos vinte anos de idade. A Escola Mititar tinha características muito peculiares que a tornavam uma experiência única no país. Era uma escola híbrida pois, embora destinada a formar quadros militares, obedecia um regime de externato e aceitava paisanos. Corria paralela à não-militarização e à não-quartelização da escola, a característica de privilegiar a formação do oficialato e de engenheiros civis revelando o profundo desprezo pela profissão de soldado presente na sociedade da época. O currículo de seus alunos seguia o modelo da Escola Politécnica Francesa. Na verdade, a escola era um centro de altos estudos matemáticos e de ciências do país, talvez o único. Na época em que Enclides se torna aluno, a Escola já estava bastante aliciada para o republicanismo e o abolicionismo. Além de já estar vivendo a Questão Militar, por se tornarem difíceis as relações entre Exército e Monarquia. Por um típico gesto de aluno da escola, Euclides será expulso em novembro de 1888. Em formatura diante do Ministro da Guerra, planejada para impedir que os alunos fossem ao desembarque de um famoso republicano, Lopes Trovão, que voltava da Europa, Euclides em vez de levantar seu sabre em saudação à autoridade, joga-o no chão, gesto combinado com alguns colegas, mas executado apenas por ele. Euclides será reintegrado na Escola Superior de Gruerra em 1889, terminando seu curso, de modo apertado, um ano depois.

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Ressalto de seu texto a afirmação de que “o modernismo vai dar

continuidade a algumas preocupações de Euclides com os interiores do país e

com a repulsa à macaqueação européia nos focos populacionais litorâneos”

(Galvão, 1994:618).

E, finalmente, terminando a linha de raciocínio de Lucia Miguel-Pereira,

surge em 1917, com Hugo Carvalho Ramos, uma nova fase com tônica não mais

no descritivismo, mas na denúncia. Para Lúcia, pouco depois, com Monteiro

Lobato, se dá a superação de uma vez do lado pitoresco e exótico da expressão

regional no estabelecimento da investigação humana.

Grosso modo, no pensamento de Lucia Miguel-Pereira a literatura

regionalista evoluiu sempre que investiu em concepções mais universais do

homem. Desse modo, para ela, a literatura regionalista cresceu quando abriu mão

do localismo em busca do cosmopolitismo.

José Maurício Gomes de Almeida, autor de um estudo instigante sobre a

tradição regionalista no romance brasileiro, orientado por A. Coutinho, parte da

nocão da região como “substância real” para eleger sua matéria de estudo

(Almeida, 1981). Em seu trabalho, que apresenta o recorte temporal de 1857-

1945, faz um esquema de análise, no qual divide seu corpus em regionalismo

romântico, regionalismo realista, e o romance de 1930, que já é por convenção

regional. Para cada fase, ele realiza uma contextualização histórica, depois

aprofunda as análises das obras individuais, sempre as relacionando com outras

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produções do período, e por último faz uma reflexão sobre a dimensão

regionalista de cada uma das obras eleitas.

Na fase do regionalismo romântico, assinala dois movimentos

importantes. Ressalta o Indianismo de Alencar e o Sertanismo de Alencar e

Taunay. E opõe Alencar e Taunay à “literatura do norte” de Franklin Távora.

Lembramos que Távora vem sendo em maior ou menor grau considerado

inferior a Alencar e Taunay, seus contemporâneos. Continuando essa tradição,

José Maurício afirma que o projeto regionalista de Távora foi fracassado, pois

seus romances não estão de acordo com os padrões estéticos. Na visão dessa

linha crítica, Távora malogra ao fazer “opção pelo romance histórico, [pela]

preocupação documental e [pela] incapacidade de incorporação do material

pesquisado em uma estrutura ficcional coerente” (Almeida, 1981:24).

José Maurício recupera o romance de Manuel de Oliveira Paiva, Dona

Guidinha do poço, publicado em 1952, mas com data de elaboração provável de

1891, fazendo dele o marco inicial do regionalismo realista. Desse período analisa

também Luzia-homem, de Domingos Olímpio. Acaba sua análise com leituras

panorâmicas do romance de 1930 do qual considera uma síntese Fogo morto, de

José Lins do Rêgo. Dá relevo também a Jorge Amado e Graciliano Ramos.

José Maurício parte do princípio de A. Coutinho de que a obra regionalista

deve “haurir a sua matéria e a sua substância da própria realidade físico-cultural

da região, ainda que para transcendê-la” (Almeida, 1981:25). Dessa forma, ele

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considera os romances regionalistas quando a realidade física é determinante para

a intriga. Exemplificando sua visão, recorto o momento em que ele reflete sobre

a questão regionalista em Dona Guidinha do poço e Luzia-homem:

A seca em Luzia-homem não constitui apenas um elemento adjetivo, de interesse documental, mas contribui de forma decisiva para definir o destino dos personagens – unidos pelo fado comum do êxodo e da miséria -, bem como para criar a atmosfera trágica em que se desenrola a ação. Como em Dona Guidinha do poço, o conflito dramático em si 2 não se define a partir de coordenadas regionalistas, mas Domingos Olímpio procura, como Oliveira Paiva, enraizá-lo na realidade física e social que envolve os personagens. (ALMEIDA, 1981: 160, grifo do autor)

José Maurício põe em ação as orientações conceituais de A. Coutinho.

Percebe como esses romances tiram suas linhas mestras do chão regional em que

estão assentadas, quer pela exploração da sua realidade física, quer pela ligação

dessa realidade à composição das personagens.

Mas não é apenas por esse fio conceitual que José Maurício arma sua

análise. No momento em que ele discute a questão em Jorge Amado e o compara

a José Lins do Rego, outra é a noção de regionalismo que surge:

o regionalismo de Terras do sem fim, como o de Fogo morto, não se resume à descrição de aspectos pitorescos da vida e da paisagem locais que possam servir de pano de fundo ou de condimento à narrativa, mas assimila-se à natureza mesma tanto da ação, como dos personagens nela envolvidos. (ALMEIDA, 1981: 237)

O que Almeida valoriza nesses autores é então o regionalismo como

“natureza mesma” da ação e dos personagens. Essa diferenciação conceitual é

própria de uma visão que respeita o romance como uma obra de arte

2 grifo do autor

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individualizada e singular, revendo o conceito a partir da leitura de cada obra. É

exatamente essa notícia que o autor dá em suas considerações finais em que

chega à conclusão de que o romance regionalista brasileiro é de extração rural,

sendo bastante problemático, senão impossível, a existência de um regionalismo

urbano.

Para Antonio Candido, na literatura brasileira, o regionalismo surgiu junto

com a independência literária, pois foi o desejo de exprimir nosso nacionalismo

que levou escritores e escritoras a descobrirem o Brasil que estava encoberto pelo

domínio colonial (Candido, 2002). Na visão de Candido, o Romantismo

brasileiro foi, sobretudo no início, mas até o fim, nacionalismo. E nacionalismo,

segundo ele, significa escrever sobre coisas locais. No decênio de 1850, acontece

a consagração do Romantismo com sua manifestação mais nacional, o

Indianismo. A intenção era construir nossos aspectos mais originais, aqueles que

nos tornavam diferentes de Portugal, aqueles que forjavam nossa identidade

nacional.

Resumindo bastante o que Candido explica nas minúcias, como nossa

literatura não nasceu aqui, mas foi transposta no processo de colonização, houve

na nossa formação um contato trabalhoso entre as culturas primitivas locais e as

culturas maduras transplantadas para cá. A independência literária criava a

necessidade de que as formas importadas fossem guiadas pelos temas brasileiros

e, além disso, novas formas seriam necessárias para exprimir as realidades e os

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sentimentos locais. Assim, regido por esses dois movimentos, nosso sistema

literário se desenvolveu por essa contradição de nascença: a convivência do

metropolitano com o rural, do grosseiro com o desenvolvido.

Candido mostra que, na década de 1870, os romancistas vindos de antes

produziram bastante, mas no cenário da literatura regional dois se destacam.

Visconde de Taunay com o bem realizado Inocência (1872) é o melhor produto do

Regionalismo literário da época, diferentemente de Franklin Távora que, na

opinião de Candido, é menor, pois, apela para uma prosa melodramática.

A obra ficcional de Távora caiu no esquecimento, mas sua importância

histórica é sempre ressaltada, pois é tida como um marco fundador do

Regionalismo nordestino. Para Candido, a expressão literária de Távora

“raramente chega a prender e sua escrita é banal”(Candido, 2002: 80). Candido

parece tecer essa crítica com base em valores estéticos, mas enseja também uma

ideologia, já que podemos afirmar, grosso modo, que não há sujeito sem

ideologia3. Ao lado dessa crítica dura em termos estéticos, ele alinha a questão da

decadência do Nordeste e da supremacia política do Sul. Vejamos a confirmação

dessa afirmação num trecho da seção “O regionalismo como programa e critério

estético” da Formação da Literatura Brasileira:

3 O conceito de ideologia usado nesta pesquisa está de acordo com aquele elaborado a partir das idéias do pensador francês, M. Pêcheux. A idéia é a de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua, daí, não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. É portanto no discurso que se pode observar essa relação língua e ideologia, compreendendo-se como são produzidos os sentidos por/para sujeitos.

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As lacunas de Távora provêm, a meu ver, de imperícia e carência estética, não da matéria, nem do ponto de vista, coerentes, em seu tempo, com a concepção de romance. Nem tampouco da nítida intenção ideológica, do programa definido de demonstrar teses e sugerir modelos. ... A importância de Távora consiste, como disse, em ter percebido a valia de uma visão da realidade local, que era a sua. Ora, para ele, ..., a região não era motivo apenas de contemplação, orgulho ou enlevo, mas também complexo de problemas sociais, sobrelevando (não custa repisar) a perda de hegemonia político-econômica. (CANDIDO, 1997: 271)

Candido, no célebre texto, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, avança

um pouco mais, até 1920, na sua visão da expressão regional. O autor afirma que

no período de 1880 a 1920 se produz um Regionalismo pobre e romantizado, o

qual ele descreve assim:

O regionalismo, [que] desde o início do nosso romance constituiu uma das principais vias de autodefinição da consciência local, com José de Alencar, Bernardo Guimarães, Franklin Távora, Taunay, transforma-se agora no "conto sertanejo", que alcança voga surpreendente. Gênero artificial e pretensioso, criando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas. Forneceu-lho o "conto sertanejo", que tratou o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu respeito idéias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto, sobretudo, estético. (Candido, 1967: 136) Note-se a diferença com que é tratado o mesmo período por Lúcia

Miguel-Pereira. A diferença entre os dois pensadores consiste na visada mais

genérica que Candido tem do período, considerando o período de 1880 a 1920

todo dominado por esse registro regional centrado numa visão condescentente

recheada de exotismo, ao passo que Lucia esmiuça o mesmo período em cinco

esteiras regionais diferentes.

O decênio de 1930, explica Cândido no texto “Literatura e cultura...”, vê

surgir uma geração de explicadores do Brasil, que tende para o ensaio, uma vez

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que se tratava de "redefinir nossa cultura à luz de uma avaliação nova de seus

fatores" (Candido, 1967: 147). São estes, entre outros, Sérgio Buarque de

Holanda, Gilberto Freyre, Paulo Prado e, um pouco mais tarde, Caio Prado Jr.

Em resumo, na prosa de 1930, o regionalismo é retomado sem o pitoresco

e numa perspectiva diferente. O homem pobre do campo passa a ser

problematizado. Candido, de modo ainda muito astuto, observa como o nome

regionalismo serviu para classificar obras produzidas fora do Rio de Janeiro. E,

de fato, não surgiu nada ainda denominado de regionalismo carioca. Nesse

sentido, Candido parece trabalhar com uma perpectiva dialética que tenta escapar

da dicotomia do nacional e do regional.

Alfredo Bosi, na sua História concisa da Literatura Brasileira, considera como

tipos de ficção romântica a passadista e colonial (O guarani e As minas de prata, de

Alencar, As mulheres de mantilha e O rio do quarto, de Macedo, Maurício e O bandido

do rio das mortes, de Bernardo Guimarães ...); a indianista (Iracema e Ubirajara, de

Alencar; O índio Afonso, de Bernardo Guimarães...); a sertaneja (O sertanejo e O

gaúcho, de Alencar, O garimpeiro, de Bernardo Guimarães, Inocência, de Taunay, O

cabeleira e O matuto, de Franklin Távora) ou o dia-a-dia das convenções centrado

nos costumes da burguesia de Memórias de um sargento de milícias. É como

sertanismo que Bosi apresenta a expressão regional do Romantismo. Vejamos o

trecho no qual ele caracteriza o termo:

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As várias formas de sertanismo (romântico, naturalista, acadêmico e, até, modernista) que têm sulcado nossas letras desde os meados do século passado, nasceram do contato de uma cultura citadina e letrada com a matéria bruta do Brasil rural, provinciano e arcaico. Como o escritor não pode fazer folclore puro, limita-se a projetar os próprios interesses ou frustrações na sua viagem literária à roda do campo. Do enxêrto resulta quase sempre uma prosa híbrida onde não alcançam o ponto de fusão artístico o espelhamento da vida agreste e os modelos ideológicos e estéticos do prosador. (Bosi, 1980: 155)

O termo “sertanismo” parece ter sido aproveitado de Nelson Wernek

Sodré em sua História da Literatura Brasileira, de onde Bosi cita um longo trecho

no qual Sodré comenta o esforço malogrado e ingênuo da luta que travam

aqueles que desejam superar as condições que subordinam a literatura brasileira a

modelos estrangeiros.

Na explicação de Sodré, uma vez que se admite que o índio não era

suficiente para a expressão da identidade nacional, escolhe-se, então, o sertanejo

para ocupar este lugar: ele é o homem do Brasil interior e, portanto, teria o poder

de exprimir o que é nacional. A justificativa que se dá, segundo Sodré é

precisamente aquela dada por Távora no prefácio de O cabeleira, a de que “o norte

ainda não foi invadido como está sendo o sul de dia em dia pelo estrangeiro”

(apud Bosi, 1980: 156-57). Daí a oposição entre o urbano que copia o estrangeiro

e o quadro rural ainda intocado. Isto que é Brasil, escreve Sodré resumindo o

lema desses autores. E o crítico termina sua argumentação um tanto irônica com

a conclusão de que esses autores não são menos românticos do que aqueles que

criticam.

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Bosi parte dessa visão para afirmar como o regionalismo é uma literatura

menor, que criou romances que nada acrescentam aos desejos do leitor médio.

Identificando como critério de ajuizamento das obras o nervo do tratamento

literário, Bosi salva dessa menoridade Inocência, de Taunay, e alguns romances de

segunda plana de Alencar como O sertanejo, O gaúcho e O guarani. Esses romances,

nas palavras do crítico, redimem-se “das concessões à peripécia e ao inverossímil

pelo fôlego descritivo e pelo êxito na construção de personagens-símbolo” (Bosi,

1980: 143).

Da citação anterior já vamos começar a reunir algumas das faltas estéticas

atribuídas à maioria dos regionalistas. A concessões a peripécias e ao inverossímil,

o crítico soma como cerne do problema estético a dificuldade “de superar em

termos artísticos o impasse crítico criado pelo encontro do homem culto,

portador de padrões psíquicos e respostas verbais peculiares ao seu meio, com

uma comunidade rústica, onde é infinitamente menor a distância entre o natural e

o cultural (Bosi, 1980: 158). Mas Bosi convém que nem toda literatura

regionalista se perdeu no banal e no precioso. O crítico, no trecho a seguir,

desenvolve o argumento de Sodré sobre o esforço dessa literatura regional em

afastar o expediente de importação e imitação de estéticas estrangeiras:

O projeto explícito dos regionalistas era a fidelidade ao meio a descrever: no que aprofundavam a linha realista estendendo-a para a compreensão de ambientes rurais ainda virgens para a nossa ficção. Voltando as costas para as modas que as elites urbanas importavam, tantas vezes por mero esnobismo, puseram-se a pesquisar o folclore e a linguagem do interior, alcançando em alguns momentos, efeitos estéticos

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notáveis, que a cultura mais moderna e consciente de um Mário de Andrade e de um Guimarães Rosa não desdenharia. (Bosi, 1980: 232)

Bosi propõe duas alternativas extremas para a questão formal da oralidade:

o puro registro da fala regional (Taunay, Vadomiro Silveira, Simões Lopes Neto),

ou a pesquisa dos princípios e formas que regem a vida rústica para com eles

elaborar novos códigos de comunicação com o leitor culto (Guimarães Rosa).

Para o crítico, entre os dois, o regionalismo é uma literatura de segundo nível,

que subsiste pelas exigências da tradição escolar (Bosi, 1980: 156).

Em trabalho mais recente, de 2002, Bosi pensa a relação entre a escrita e

os excluídos e toca a questão da oralidade da expressão regional. Reconstituindo

as linhas gerais de seu raciocínio sobre esse tema, Bosi considera a questão de

duas maneiras. A primeira consiste em pensar o excluído como objeto da escrita

ou seja, ao nível dos temas, das personagens e das situações narrativas. A segunda

maneira toma o “homem sem letras” como sujeito do processo simbólico (Bosi,

2002).

Bosi afirma que esse olhar, que deslocou o marginalizado de objeto a

produtor, parece ser novo, como é o interesse pelos vencidos e pelas minorias

muito presente desde a década de 1970, mas essa visão, segundo ele, é de um

tempo bem anterior, do início do século XIX e tem raízes românticas. Ela data

de estudos eruditos que escavaram a memória cultural e a linguagem arcaico-

popular no séulo XIX. Bosi lembra que o termo folklore (sabedoria popular)

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apareceu em meados do século XIX. Assim como os estudiosos do velho

mundo, os pensadores brasileiros também investiram nesse movimento de

reunião dessas manifestações simbólicas que exprimissem uma identidade

nacional diferente da forma culta estabelecida pela linguagem “alta” do poder

colonizador.

A entrada da oralidade na ficção brasileira, então, tem suas raízes no

Romantismo. A questão é que as primeiras realizações desse projeto,

especialmente se pensarmos em Alencar, se concretizam de forma que há uma

diferenciação bem nítida entre a voz culta e alta do narrador e a voz do índio, do

sertanejo ou do gaúcho. A voz da diferença é sempre bem marcada numa espécie

de parênteses e ocupa uma posição subalterna em relação à voz do narrador que

se utiliza de linguagem culta.

Bosi reúne os movimentos do Romantismo, do Indianismo, do Nativismo

e a paixão pela cultura popular como processos que duraram gerações com pico

no período das independências. Para o crítico, o regionalismo opera uma

valorização tanto estética quanto moral das tradições populares e faz crescer o

debate sobre as identidades regionais e finalmente sobre a identidade nacional.

Quanto ao uso ideológico desse panorama cultural, Bosi afirma que

dependerá do olhar conservador ou progressista do pesquisador e de seus

leitores. De toda forma, o autor conclui que a oralidade sempre esteve no íntimo

de toda expressão arcaico-regional tanto formalmente quanto como sistema de

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comunicação. Eu diria que a oralidade está longe da língua padrão que é, quase

que por força, escrita. O Nordeste sempre foi a região do país com maior

número de crianças em fase escolar fora da escola. Então, não é à toa que sua

literatura seja mais apegada ao universo do oral.

Mas há ainda uma grande mudança no ponto de vista de Alfredo Bosi,

desde as críticas duras de História concisa da Literatura Brasileira até a valorização do

regionalismo como um local de revelação da tradição popular e de descoberta da

identidade própria em Literatura e resistência.

O texto de Antonio Dimas, “A encruzilhada do fim do século” (Dimas,

1994: 555-74), explica de maneira um pouco mais pegada ao momento sócio-

histórico a quantidade de veias literárias antagônicas e até contraditórias que

marcaram o fim dos oitocentos.

Dimas lança outra visada sobre o mesmo período analisado por Lúcia

Miguel-Pereira e Antonio Candido. Segundo sua explicação, o período romântico

viu surgir uma valorização do local e uma busca pelo nacional, mas o que veio

depois da liberação da tutela cultural portuguesa foi uma adesão quase que

unânime a outras fontes, especialmente a francesa.

Pouco a pouco as fórmulas importadas se esvaziaram em fôrmas e a

destreza no manejo delas era sinônimo de refinamento cultural, podendo até

servir de trampolim social. Os homens de letras foram quase que engolidos por

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um estado de alienação e frivolidade guiado por um exibicionismo pessoal que

estava algumas vezes acima da dedicação artística.

Esse estado de coisas fez surgir um esforço para cobrir o homem de letras

de um mínimo de respeitabilidade burguesa antes que ele se afundasse de vez na

ilusão afrancesada de ser um boêmio literário movido por um desejo de

transgressão social e pelo sonho de morrer gloriosamente em Paris. Bosi, como já

vimos anteriormente, resume esse período no esnobismo das elites urbanas em

importar modas estrangeiras.

Acontece que a Abolição e a República transformaram a sociedade de tal

modo que o ingresso dessa geração de forma regular na sociedade foi guiando

esses boêmios para carreiras no jornalismo, na diplomacia ou na burocracia do

estado. Dessa geração, Dimas cita os nomes de Bilac, Coelho Neto, Aluísio

Azevedo e Raul Pompéia.

Surge desse jogo de incompatibilidades um momento de patriotismo que

tinha o desejo de enterrar essa literatura de floreio. Nesse sentido, na década de

1920, acontece um momento de revalorização do Regionalismo literário. Essa

revalorização segue o mesmo rumo do regionalismo romântico. Faz da região um

idílio e a representação do homem do campo atinge seu grau máximo de

idealização. Juca mulato (1917) de Menotti del Picchia, Alma cabocla (1920) de

Paulo Setúbal, Os caboclos (1920) de Valdomiro Silveira e os Ipês (1921) de Ricardo

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Gonçalves são romances dessa fase, responsáveis pela construção de uma

imagem idealizada de homem do campo.

Monteiro Lobato em 1918, compra a Revista do Brasil para levar adiante seu

projeto de defesa dos postulados nacionalistas em todos os níveis. Mas, sabemos

que Lobato tem o seu momento de tornar o caboclo um estigmatizado, avesso ao

progresso, uma praga a exaurir a terra. Lembremos de seu Jeca e recortemos um

trecho do texto “Velha praga” de Urupês:

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, semi-nômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se. .... Acampam. Em três dias uma choça, que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê. Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes, o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto. Tão íntima é a comunhão dessas palhoças com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida do chão por obra espontânea da natureza – se a natureza fosse capaz de criar coisas tão feias. Barreada a casa, pendurado o santo, está lavrada a sentença de morte daquela paragem (Lobato, 1983: 141-42).

Lobato é realmente uma figura contraditória como o seu tempo e sabemos

como mais tarde suas opiniões sobre o caboclo vão mudar a ponto de Lobato

trabalhar em benefício do caboclo em campanhas de saúde pública.

Euclides da Cunha, num trecho realmente célebre de Os sertões, elabora

uma visão do homem culto em relação ao sertanejo pobre oposta à de Lobato:

A lei do cão... Este era o apotegma mais elevado da seita. Resumia-lhe o programa. Dispensa

todos os comentários. Eram, realmente, fragílimos aqueles pobres rebelados... Requeriam outra reação. Obrigavam-nos a outra luta.

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Entretanto enviamos-lhes o legislador Comblain; e esse argumento único, incisivo, supremo e moralizador – a bala. (Cunha, 2002: 320)

Parece que Dimas traz à tona um outro lado da questão regionalista: a luta

que essa expressão literária trava com esse lado da nossa identidade que a faz

subalterna. Essa luta na qual as influências estrangeiras são negadas sempre

existiu na nossa literatura com maior ou menor intensidade. Quando essas

influências são afastadas surge espaço para a observação e invenção de nossas

individualidades e é nesse momento que a “cor local” aparece junto com as

formas de viver e de falar de nossa gente.

Grosso modo, o regionalismo literário foi caracterizado neste estudo da

seguinte forma. O regionalismo, presente desde o início da nossa literatura, se

apresenta de modo mais evidente em três momentos. Primeiro, no início mesmo

do nosso romance, há a configuração de um regionalismo romântico com

Taunay, Távora, José de Alencar, Bernardo Guimarães entre outros.

Depois, de 1880 a 1922, numa fase de permanência, chamada também de

pós-romântica, surge o conto sertanejo como um gênero artificial e pretensioso.

Finalmente, será apenas com o romance de 1930 que o regionalismo abandona a

idealização pitoresca e inventa uma voz autêntica pela qual mostra vivamente os

dramas da região. Não há mais a apreciação amena e condescendente do tema.

Antes, encontra-se uma forma seca e dura, de fundo crítico, que mostra numa

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união belíssima de forma e conteúdo os temas do Regionalismo Nordestino: a

seca, a fome e a migração.

Temos feito até agora um mapeamento das definições e fases do

regionalismo desde o que nos diz o senso comum até as elaborações mais

sofisticadas feitas por alguns de nossos principais críticos. Mas será que toda obra

que tematiza o Nordeste é regional? Será que o regionalismo ainda existe?

Com base no estudo que até agora fizemos, é possível chegar à conclusão

de que o regionalismo enquanto movimento literário chegou ao ápice e ao fim

com a obra genial de Guimarães Rosa. Já em 1970, momento em que foi

publicado o texto “Literatura e subdesenvolvimento”4, Antonio Candido afirma

que o regionalismo não se esgota pelo fato de ninguém mais o considerar uma

expressão privilegiada. É claro que do ponto de vista de Candido, porque se

olharmos pelo lado da produção, escritores continuam produzindo. A

repercussão dessa produção é que é diferente.

A literatura nordestina contemporânea está longe da temática

comprometida com a realidade sociológica ou de denúncia que marcou o

Romance de 1930. Flávio Moura, em artigo publicado recentemente, parte de um

4 Segundo informação nas notas do livro de Candido, A educação pela noite & outros ensaios (Candido, 1986), “Literatura e Subdesenvolvimento” apareceu em tradução para o franc~es de Claude Fell na revista Cahiers d’Histoire Mondiale, UNESCO, XII, 4, 1970, e a seguir em espanhol na obra coletiva a que se destinava, America Latina em su Literatura (Coordenação e Introdução de César Fernández Moreno), México, UNESCO, Siglo Veintiuno, 1972, editado em Português pela editora Perspectiva em 1979, em São Paulo. Antes, porém, já havia aparecido na revista Argumento, I, 1 de outubro de 1973.

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texto de Ariano Suassuna para caracterizar a produção literária nordestina atual

como “expressão poética da realidade” (MOURA, 2005: 40).

Regionalismo e Modernismo

O Modernismo de São Paulo disputa com o Regionalismo nordestino a

hegemonia no campo literário das décadas de 1920 e 1930. Nessa disputa o

programa paulista apresenta grande força e facilmente ganha o poder de

infiltração nacional. O Brasil dos anos vinte estava dominado pelas idéias do

grupo paulista, embora de Recife surja a voz de Gilberto Freyre que,

contrariando as tendências que ditavam moda no momento, realiza estudos de

antropologia histórica e cultural moderníssimos.

Mary Del Priore, num texto brilhante intitulado “Entre tradição e

modernidade: o exemplo de Gilberto Freyre” incluído na obra coletiva

organizada por Fátima Quintas, Evocações e interpretações de Gilberto Freyre, questiona

a originalidade dos estudos de Gilberto Freyre a partir de um contexto de forte

crítica em relação à pressão da historiografia internacional que nos faz modernos,

mas também ignorantes da nossa própria tradição. Priore entra fundo na

discussão sobre a colonização do campo acadêmico brasileiro, sempre obrigado a

estar atualizado em relação aos estudos desenvolvidos nas universidades

americanas, no mais das vezes, ou européias, se fortes o suficiente para atingirem

o campo americano.

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Para Priore, a originalidade de Freyre vem de sua capacidade de analisar a

sociedade brasileira a partir do privado. Isso nos anos de 1930. Geoges Duby e

outros intelectuais irão pelo mesmo caminho apenas nos anos de 1970. A

historiadora reafirma que a grande contribuição dos estudos de Freyre foi ter

baseado seu trabalho intelectual na noção de que é preciso estudar o Brasil

valorizando o regionalismo. Especialmente nos tempos de hoje, quando o ponto

de vista crítico elaborado a partir do regional se mostra cada vez mais produtivo.

Priore argumenta que:

Nesses tempos de multiculturalismo, a reflexão sobre as culturas locais é imperiosa. Sim, obrigatória porque ao desmembrarmos as rubricas que nos permitem estudar uma cultura (religião, mitos, crenças, técnicas, ..., enfim, as que foram visitadas, de forma inédita, nos anos 1930, por Freyre), percebemos a coerência interna de comunidades que seguimos desconhecendo. Desconhecemos a singularidade da maior parte dos nossos sistemas sociais. Sobretudo dos que estão nas margens, nas franjas do Sudeste. Nesse sentido, o compromisso que deveria ser firmado é com o regional. (Quintas, 2003, 138)

José Aderaldo Castello faz uma leitura conciliadora de Gilberto Freyre e de

José Lins do Rêgo que revela, para além dessa disputa superficial, o sentido do

modernismo profundo, que ambas as tendências gozam, uma vez que encenam

um

processo de revisão temática e renovação estilística, a partir de sugestões tomadas a escritores da era colonial, desde cronistas do século XVI, até a observação direta da linguagem oral contemporânea. (CASTELLO, 1961: 16)

Então, para Castello, o modernismo do sul e o movimento regionalista

nordestino grosso modo divergem apenas num momento inicial, devido ao forte

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veio futurista de destruição do passado alardeado pelos paulistas e largamente

refutado pelos nordestinos. E o que seria uma discussão pontual cresce para uma

disputa calorosa que revolvia a superfície de um discurso comum voltado ao

mesmo tempo para a revisão temática e a renovação estilística.

Como já vimos anteriormente, a crítica paulista resolve a questão dessa

disputa a partir de uma explicação de base política e econômica resumida no

embate: a decadência do açúcar versus a expansão cafeeira. As argumentações de

Maria Arminda do Nascimento Arruda (Arruda, 1986: 87) e de Neroaldo Pontes

de Azevedo (Azevedo, 1984) na esteira de idéias de Antonio Candido se voltam

para o argumento de que o Regionalismo nordestino defende a tradição porque é

nela que está localizada sua hegemonia, naquele momento perdida para os

paulistas.

Então, como numa tentativa de resgate desse passado de glórias e por uma

necessidade de conservação, o grupo nordestino apela para o passado, ao passo

que o grupo modernista, num primeiro momento futurista, apresenta um caráter

destruidor de estéticas tradicionais. Azevedo cita uma frase de Prudente de

Moraes Neto que define bem as idéias paulistas nesse momento: “Basta não ser

tradicional para ser ótimo”. (Azevedo, 1984: 185)

Mário da Silva Brito, no primeiro tomo de sua História do Modernismo

brasileiro, mostra como a palavra futurista era usada pelo grupo paulista mais

como um rótulo de desafio que aborrece do que propriamente como um

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programa, pois o que eles queriam marcar a todo custo era a sua reação à arte

acadêmica. (Brito, 1997: 157-247). Para colocar seu projeto de renovação em

prática e para dar visibilidade a ele, o grupo paulista dispunha de tudo, inclusive

da palavra “futurista”.

O que esses artistas liderados por Oswald de Andrade, Menotti del Piccia,

Mário de Andrade e Anita Malfati queriam mostrar, segundo Brito, era que a arte

tinha mudado porque a vida tinha mudado. Eles queriam alardear a vida nova de

São Paulo: as fábricas, os imigrantes, os comissionários, os burgueses. Nesse

sentido é que sua visão nacional é somente uma visão paulista:

O meio citadino sobrepunha-se ao campesino. A fábrica e a bolsa suplantavam a fazenda. O modernismo começa por ser um movimento de São Paulo não contra o Brasil, mas acima do Brasil. São Paulo, através de seus escritores, pretende alcançar a liderança cultural, reivindica para si a direção da inteligência brasileira. (BRITO, 1997: 174)

José Lins do Rêgo e Gilberto Freyre, por outro lado, lutam nos jornais

contra a propaganda modernista feita por Joaquim Inojosa, que foi o divulgador

das idéias paulistas em Pernambuco. Nessas disputas, muito bem contadas por

Neroaldo Pontes de Azevêdo, o grupo nordestino se apega ao conceito de

nacionalidade, pois, vê nos modernistas do sul um apego a idéias e valores

importados. Aprofunda-se, então, a disputa entre passadistas e futuristas:

Os escritores moços de São Paulo adotam atitudes de antagonismo ao passado, ao realismo, às escolas romântica, parnasiana e regionalista, e debatem, apoiados numa visão paulista da realidade brasileira, o tema da formação racial do país. De permeio à polêmica propriamente dita, cuidam ainda em divulgar os valores modernos, quer

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nacionais, quer estrangeiros, oferecendo ao público o conhecimento direto do que seja a nova estética. (Brito, 1997: 211) Do trecho citado acima, podemos estabelecer a relação desses modernistas

do Sul com aqueles do Norte que também clamavam por uma renovação estética

ao passo que também discutiam a formação do Brasil.

Desde 1928 com a publicação de Macunaíma por Mário de Andrade e a de

Retrato do Brasil por Paulo Prado estava aberta um senda que motivaria inúmeras

interpretações do Brasil que buscavam estudar nosso passado em busca de um

conhecimento profundo do país despojado de qualquer resquício do ilusório

idealismo romântico. Paulo Prado vê na luxúria, na cobiça, na tristeza e no

romantismo os principais males deixados pela colonização portuguesa. Ele parte

da Carta de Caminha para iniciar uma argumentação que é toda construída a

partir de um rica pesquisa em documentos de viajantes, cartas, biografias e outras

fontes históricas. Discípulo do historiador cearence Capistrano de Abreu, Paulo

Prado realiza uma obra que representa um marco na mudança que Antonio

Candido registrou como o abandono de uma visão de país novo e grandioso para

uma de país atrasado.

Pouco tempo depois, em 1933, é publicado Casa-Grande e senzala de

Gilberto Freyre que iria, na esteira do livro de Paulo Prado, contribuir para o

conhecimento do Brasil patriarcal e rural. Freyre, dono de uma prosa suculenta e

recheada de detalhes, nos mostra um quadro vivo e colorido do que foi o

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processo de formação do Brasil. Como bem aponta Darcy Ribeiro, na introdução

do livro, Freyre tem o olhar do fidalgo, que o impede de ver uma matriz do Brasil

que é formada pela não-família, “esta família matricêntrica de ontem e de hoje,

que é a mãe pobre, preta ou branca, parideira, que gerou e criou o Brasil-massa”

(Freyre, 2000: 29).

Raízes do Brasil, de Sergio Buarque de Holanda, publicado em 1936

continua esse esforço coletivo, cada qual como pode, de construir o

autoconhecimento nacional. Conhecimento esse que se voltou sempre para

nosso passado colonial e imperial. Isso em pleno momento modernista. Talvez

seja essa nossa característica mais marcante entre os modernismos ocidentais.

Gilberto Freyre: o Livro do Nordeste e o Manifesto

Regionalista

Gilberto Freyre volta de seus estudos nos Estados Unidos em 1923 e dois

anos depois já dirige um movimento no qual organizou uma publicação que

alcançaria um êxito ainda hoje inexplorado: o Livro do Nordeste. Para a realização

deste livro ele conseguiu a colaboração de artistas e escritores já consagrados de

formação intelectual heterogênea e de várias áreas do conhecimento, quando ele

próprio não passava de um jovem recém formado de vinte e cinco anos. Deste

modo, inicia-se sua carreira intelectual e inaugura-se uma nova forma de

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compreensão e representação de uma região até então vista de modo pitoresco e

condescendente.

O Livro do Nordeste nasceu da idéia de comemorar os cem anos do Diário de

Pernambuco, mas Freyre levou o projeto para muito além de seus propósitos

iniciais. Preferiu investigar os limites da cultura regional neste período de tempo

numa cobertura multidisciplinar na qual harmonizam-se dados humanos e

estatísticos, além da defesa de uma atitude política clara de criar-se no Brasil um

órgão para a defesa dos valores históricos. Desta forma, a onda que se espalhava

a partir de Freyre não era concentrada na literatura como foi o Modernismo

Paulista: antes foi um movimento transdisciplinar com forte inclinação

sociológica e histórica.

A modernização do Rio de Janeiro era o exemplo que os recifenses não

queriam seguir. Seus objetivos incluíam inventariar, de forma orgânica, um legado

cultural que estava em vias de extinção porque atravancava o fluxo veloz da

modernidade. A arquitetura, a culinária, a pintura, a vida dos estudantes, a vida

econômica, a vida política, a moda, a literatura, esses eram alguns dos assuntos

sobre os quais versavam os textos publicados no Livro do Nordeste. A insistência

de Freyre consistia na idéia de que fossem abandonadas as convenções plásticas

européias para serem substituídas por temas locais.

A questão, segundo Neroaldo Pontes de Azevedo, é mais de

complementariadade e não de antagonização. Aquela contradição cultural que

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Candido identifica na base de nossa formação cultural e literária apresenta-se

nesta riquíssima década de 1920 no diálogo tenso desses dois movimentos: o

Regionalismo e o Modernismo.

As bases do pensamento dos regionalistas nordestinos e a seu modo

modernistas são consolidadas nas páginas do Livro do Nordeste para pouco mais de

um ano depois desembocar no 1O Congresso Regionalista do Recife, onde foi

lido o Manifesto Regionalista.

Gilberto Freyre contribui no Livro do Nordeste com três artigos – “Vida

social no Nordeste. Aspectos de um século em transição”, “A pintura no

Nordeste” e “A cultura da cana no Nordeste. Aspectos do seu desenvolvimento

histórico” – que iriam mostrar suas linhas e formas de argumentação pouco

depois mais desenvolvidas no Manifesto Regionalista.

José Maurício Gomes de Almeida, em artigo no qual analisa a relação entre

o Modernismo e o Regionalismo na década de 1920 aponta uma relação muito

íntima entre a visão social que Freyre difundiu a partir de Recife e a produção

literária que daí a pouco surgiu no nordeste. Ele escreve:

Prova do acerto e oportunidade da luta então desenvolvida por Gilberto Freyre, além das realizações inspiradas diretamente no projeto regionalista (o “Centro Regionalista do Nordeste”, de 1925, e o “1º Congresso Regionalista do Nordeste”, realizado em 1926), foi toda uma literatura que despontou, tanto na poesia quanto no romance, a partir de fins da década de 1920, e que buscou no solo regional – na existência sofrida do povo, bem como nas contradições da realidade nordestina – a matéria mesma da criação literária. Partindo inicialmente de uma visão afetiva e nostálgica, a atitude regionalista encaminha-se finalmente para o questionamento crítico, em profundidade, das bases sociais e políticas da região. (Kosminsky, 2003: 324)

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O Manifesto Regionalista chegou à publicação apenas em 1952 quando

Gilberto Freyre garantia que só então fora possível publicar o texto que já estava

pronto em 1926 quando foi lido no 1o. Congresso Regionalista do Recife. Em

1968, Joaquim Inojosa publicou farto material documental, em três volumes, –-

O movimento modernista em Pernambuco – com o objetivo de provar ser falsa essa

declaração de Freyre e chamar a atenção para o fato de que ele, Inojosa, é que era

real merecedor da glória de ter sido em 1923, com a publicação do primeiro

número de sua Mauricéia, revista na qual divulga as idéias futuristas do sul, o

primeiro a defender uma literatura renovada.

Inojosa sempre fora deslumbrado com as idéias da Semana de Arte

Modena e mostrou uma atitude subalterna em relação aos seus realizadores. Essa

atitude submissa de Inojosa era o que o grupo recifense menos queria naquele

momento porque o centro da questão era exatamente a auto-afirmação da cultura

local. O contexto no qual Inojosa questiona Freyre está marcado por vaidades

ofendidas e orgulho ferido.

Há um possível deslize de Freyre ao afirmar que o texto de 1952 é o

mesmo lido em 1926, mas, definitivamente, ele não é um produto de 1952. É

possível localizá-lo no âmago da discussão que levou à publicação do Livro do

Nordeste. O Manifesto é um documento de reafirmação de posições desde há

muito defendidas e expostas.

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Logo nas primeiras linhas do Manifesto em sua Recife, “velha metrópole

regional” (Freyre, 1996: 47), Freyre caracteriza o Congresso Regionalista

brasileiro como primeiro do gênero e desenrola uma enorme lista de

participantes do movimento dando a cada um sua participação particular e a

todos:

o sentido de regionalidade acima do de pernambucanidade ... de cada um e esse sentido por assim dizer eterno em sua forma – o modo regional e não apenas provincial de ser alguém de sua terra – manifestado numa realidade ou expresso numa substância talvez mais histórica que geográfica e certamente mais social que política. (Freyre, 1996: 48)

Em prefácio da 6a. edição do Manifesto, publicado em 1976, Freyre faz um

balanço do movimento, do qual cito dois pontos importantes para este trabalho:

primeiro, a visão orgânica entre homem-natureza-cultura que o pensamento

regionalista defende e, segundo, a precipitação que o movimento ocasionou de

uma corrente de pensamento social que privilegia o miúdo: a casa e a comida,

ambos aspectos tão presentes nas pautas da contemporaneidade.

A doçaria das tradicionais senhoras de engenho e das negras de tabuleiro

foi registrada como fruto de pesquisa antropológica no livro Açúcar, de Gilberto

Freyre. A renda e a medicina popular também foram temas importantes de

estudo, dirigido por uma visão ecológica pioneira, se considerarmos a

importância que a ecologia tem hoje para a conservação da vida no planeta. Cito

a seguir um trecho desse texto de Freyre de 1976, intitulado, “O movimento

regionalista, tradicionalista e, a seu modo, modernista do Recife”:

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... Ao mesmo tempo que dava relevo a tais valores tradicionais (a cozinha e a doçaria), pioneiramente iniciava um movimento tão modernista quanto tradicionalista regionalista de revolução das normas de artes brasileiras: pintura, escultura, arquitetura (inclusive a paisagística), móvel, cerâmica e renda. Suscitava o primeiro estudo idôneo da arte da renda no Nordeste: o do alagoano Leite Oiticica. Pretendia influir sobre modas, isto é, vestido, sapato, adorno, jóias, perfumes e sobre a medicina. Medicina, através da defesa do uso de plantas tropicais e também da assimilação de conhecimentos paramédicos e higiênicos de ameríndios, africanos e de gente do povo. Note-se que do Recife surgiria uma ecológica Sociologia da Medicina: obra que traduzida ao italiano vem tendo repercussão européia. Pretendia-se que se dessem novas formas a essas tradições de cultura, assim como à música ... rompendo-se com as convenções e com a passiva subordinação absoluta a modelos estrangeiros e unindo-se a essas novas formas ... a reinterpretação, a interpretação e a utilização de motivações e motivos brasileiros, regionais, tropicais que dessem vigor ecológico e visão ecológica das relações do homem com o ambiente regional. (FREYRE, 1996: 238)

O caráter sociológico do movimento regionalista recifense é

preponderante e não seria de outro modo, uma vez que era a sociologia a

formação de seu pensador de ponta, Gilberto Freyre. Mas, não há prejuízo de

uma visão transdisciplinar e multidisciplinar como já dito anteriormente. Nesse

sentido, recorro à outra citação deste texto na qual Freyre explica e contextualiza

essa importância da sociologia:

Nos estudos propriamente antropológicos e sociológicos, pode-se dizer que Recife, como seu Regionalismo a um tempo tradicionalista e modernista e, em seguida, com a sua revolução nos estudos afro-brasileiros e com outros arrojos inovadores, que teriam tido seu começo no Movimento da década de 20, iniciou toda uma valorização de expressões de comportamento e cultura geralmente desprezadas. Daí sua “sociologia da rua”, sua “sociologia da casa”, sua “sociologia da cozinha” e não apenas da região, dentro do seu critério ecológico tão diferente do da “Escola de Chicago” ... Daí aquele emprego pioneiro, nos setores antropológico, sociológico, psicológico – depois estendido, por seguidores vários, aos setores médico, ao etnográfico, ao da história da arte não só dos anúncios de jornais como do uso sistemático de documentos íntimos, particulares, pessoais, como testamentos, – estes para efeitos principalmente históricos .. – cartas, receitas, médicas e de cozinhas, contas de armazéns, lojas, diários, álbuns de retratos, cartões postais, caricaturas. (FREYRE, 1996, 247)

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2º capítulo

A migração do ponto de vista da origem

Vidas secas(1938), de Graciliano Ramos; Recepção crítica: Candido e Bosi; Os retirantes e a cultura; Morte e vida severina: auto de natal de Pernambuco(1956), de João Cabral de Melo Neto; A estrutura bipolar de Morte e vida severina; Impactos da modernização, reforma agrária e humor negro; A resposta de Seu José; O migrante escuta; Essa terra (1976), de Antônio Torres; Estrutura, discurso e tempo: amor e ódio; Modernização e traição: nem Lampião nem Antônio Conselheiro; Migrações frustradas.

Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos Recepção crítica: Candido e Bosi

Vidas secas (1938) passou por críticos que teimavam em afirmar que o texto

não era romance. Maravilhou o mundo literário da década de 1930 pela sua

estrutura discursiva. Espantou a intelectualidade pelo tratamento nada

condescendente e altamente crítico e ao mesmo tempo refinado dado ao tema da

seca e da migração. Vidas secas é sem dúvida nenhuma um clássico da literatura

brasileira.

Antonio Candido e Alfredo Bosi leram toda a obra de Graciliano com uma

profundidade e uma clareza de análise impressionantes e em especial Vidas secas.

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Estas são as duas leituras nas quais vou me concentrar para apresentar um pouco

da fortuna crítica desse romance.

Quando se trata da leitura crítica de Graciliano, é impossível não

mencionar o livro de Candido, Ficção e confissão. Neste livro, Candido reúne quatro

ensaios escritos ao longo de mais de quarenta anos. O primeiro “Ficção e

confissão” é a soma de cinco rodapés publicados por Candido no jornal Diário de

São Paulo pela ocasião da publicação de Infância. Estes textos provocaram uma

carta “amável e desencantada” de Graciliano que também está publicada no livro

junto dos artigos.

A crítica que Candido faz a Vidas secas presente no texto “Ficção e

confissão” será retomada por ele e ligeiramente alterada no último ensaio do livro

“50 anos de Vidas secas”. Nesse texto, Candido refaz o percurso da recepção do

romance, começando pelas indagações de Lucia Miguel-Pereira na resenha do

Boletim de Ariel (1938) a respeito da sua classificação como romance.

Candido ressalta ainda que Lucia também chamou atenção para o fato de

Graciliano ter conseguido alcançar a humanidade de criaturas embrutecidas e de

um nível social e cultural muito humilde. Nesse sentido, a crítica é a primeira a

falar que Graciliano deu voz àqueles que estão à margem da sociedade. Além

disso, Lucia ainda resiste em receber o romance como empenhado ou proletário.

Para ela, Vidas secas é um romance no qual “palpita a vida .. que é a mesma em

todas as classes e todos os climas” (Candido, 1992: 15)

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Para Candido, esses temas abordados por Lucia Miguel-Pereira resumem

os pontos centrais dessa obra de Graciliano Ramos: o problema da classificação,

a composição do mundo mental de personagens regidas pelo silêncio e pela

inabilidade verbal e a superação da literatura empenhada.

A forma descontínua de Vidas secas deu o que falar. O questionamento da

classificação de romance dada pelo autor foi um dos grandes motes da sua

recepção crítica. De fato alguns segmentos de Vidas secas foram publicados e

lidos como contos. No entanto, os segmentos que compõem a narrativa, mesmo

sendo autônomos e completos, são justapostos de modo que existe uma relação

de adição e de complementaridade entre eles. Não há, como bem aponta

Candido, os elementos de ligação normalmente presentes na narrativa tradicional,

mas nem por isso a narrativa deixa de compor um círculo sem saída no qual se

fecha a vida da família de retirantes.

Ainda sobre a questão da forma descontínua de Vidas secas, Candido

mostra como a forma segmentada de Graciliano nada tem a ver com a

descontinuidade que existe no plano composicional de Memórias sentimentais de João

Miramar, de Oswald de Andrade. Em Oswald, a descontinuidade está ligada à

técnica do fragmento e é dirigida por um discurso elíptico. Em Graciliano, a

organização discursiva é muito diversa; nele o discurso é cheio e contínuo.

Segundo Candido, para mostrar a riqueza interior de personagens

culturalmente pobres, Graciliano usou uma terceira pessoa na qual o narrador,

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com uma objetividade de relator, consegue sugerir a identidade das personagens,

sem perder a própria. O resultado dessa técnica é a composição de uma realidade

honesta e possível que é, para Candido, a menos sentimental da ficção brasileira,

mesmo quando vêm à baila grandes nomes como o do próprio Oswald, Jorge

Amado ou Guimarães Rosa.

Talvez seja fruto da extrema objetividade do narrador o fato de a crítica,

desde Lucia Miguel Pereira, ter reconhecido em Vidas secas um outro patamar do

regionalismo. O romance de 1930, como já vimos no primeiro capítulo, encontra

uma forma para tratar os temas nordestinos – seca, miséria, migração – de modo

que passa longe tanto da condescendência com que esses temas eram tratados

anteriormente quanto do discurso que está claramente comprometido com

ideologias políticas, como o romance proletário muito em voga na época. Para o

crítico, Vidas secas mostrou um país que o Brasil não conhecia e de forma tão seca

e dura como a própria realidade que Graciliano recriava.

O estudo de Alfredo Bosi sobre Vidas secas, o ensaio “Céu, inferno”,

apareceu pela primeira vez em 1982 como “Sobre Vidas secas” na revista Novos

estudos Cebrap. No ano seguinte fez parte do grande livro organizado por Roberto

Schwarz, Os pobres na literatura brasileira (1983), e, em versão ampliada foi incluída

no livro de Bosi, Céu, Inferno: ensaios de crítica literária e ideológica (1988).

Bosi faz uma análise vertical de Vidas secas, investigando a fundo o

problema do ponto de vista da narrativa. Entra aí a questão já abordada por

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Candido da não identificação do narrador com seus personagens. Bosi consegue

armar uma leitura que explica como, por um lado, existe uma aproximação de

foco narrativo em relação ao tema, mas, por outro lado, há uma distância do foco

narrativo em relação à consciência dos personagens. A visão do narrador

desencantada e altamente crítica vai se construindo nessa combinação de fatores.

Bosi aponta o que considera o passo revolucionário da visão crítica de

Graciliano, qual seja, o fato de o narrador estar despregado da matéria que narra,

não favorecendo nem a linguagem do dominado, que é descrita na sua

inabilidade, nem a linguagem dos dominantes, que é denunciada.

Para Bosi, Graciliano avança ainda mais na sua visão crítica quando mostra

desconfiança pela cultura formalizada. Fabiano não tem nenhuma esperança de

que sua situação mude com alguma formação: antes ele teme as palavras

compridas e difíceis que, além de bonitas, podem ser perigosas.

O distanciamento que o narrador toma de sua matéria, para Bosi, vem do

fato de que Graciliano conhece por dentro as necessidades a as dificuldades da

vida de seus personagens e sabe mostrar que as folgas simbólicas dos retirantes

não passam de ilusões consoladoras.

Os retirantes e a cultura

Vidas secas é uma narrativa de terceira pessoa na qual a relação entre o

narrador e a matéria narrada encontra momentos de aproximação e de

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distanciamento. Os migrantes, chamados de retirantes na narrativa, pertencem a

ela na condição de tema, de matéria para a narração. Do narrador, pode-se dizer,

que se trata de pessoa da elite, embora profunda conhecedora do tema e de uma

visão social altamente crítica e desencantada.

A perspectiva do narrador poderia ser apenas ilustrada, como tantas que a

precederam, não fosse o salto crítico que Graciliano dá quando aproxima a visão

do narrador da de Fabiano no que diz respeito à cultura letrada, por ambos

considerada perigosa. Do ponto de vista de hoje, é curiosa esta afirmação, pois

assistimos a uma espécie de banalização da cultura letrada. Parece que também

ela virou mercadoria e sabemos que no mercado das instituições de nível superior

estão disponíveis cursos de licenciatura em apenas três anos, com mensalidades

baratas que abrangem todas as áreas do conhecimento.

Na década de 1930, no entanto, a situação era bem diversa, como mostra

Antonio Candido, no estudo “A revolução de 30 e a cultura”. O crítico lembra

que foi nesse período que surgiram as primeiras universidades, fator que alterou

o esquema tradicional das elites. O estudo no estrangeiro era muito valorizado,

principalmente no século XIX, mas ainda hoje, goza de prestígio. A alternativa

criada pelas elites, da qual fala Candido, era a de criação de faculdades isoladas,

especialmente voltadas para a formação dos quadros da vida política e

administrativa do país. Direito, medicina e engenharia eram as portas de entrada

num tipo de nobreza funcional muito característica do tipo de sociedade de

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feição estamental como a nossa naquele período. Numa sociedade estamental,

além das classes sociais, existem grupos de status que entram nela pelo prestígio

de suas funções. Além daquelas citadas por Candido, pode-se acrescentar ainda

os militares e o clero.

Candido afirma neste texto, “A revolução de 30 e a cultura”, que em 1940

os índices mais altos de crianças em idade escolar que freqüentavam a escola

eram os de Santa Catarina e São Paulo com 42 e 40% respectivamente. Esses

números mostram quão precário era para a maioria da população o acesso à

cultura letrada. Foi apenas depois de 1930 que a cultura começou a ser vista, em

tese apenas, ressalta Candido, como um direito de todos. O que predominava

anteriormente era a visão aristocrática de que a alta cultura era um privilégio das

elites, como sugere o trecho em que Fabiano se irrita com o modo questionador

dos filhos: “E eles estavam perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem

com a ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.” (Ramos, 1992:

21)

Essa visão da cultura está bem marcada em Vidas secas pelas atitudes, no

plano do tema, dos retirantes em relação às letras, como também, já no plano da

estrutura narrativa, pela forma como o narrador caracteriza a fala dos retirantes.

Não são poucas as referências ao modo de dizer de Fabiano e sua gente. Um

índice forte dessa condição é que até o papagaio da família, que terminou

servindo de comida, era mudo. Falavam por meio de interjeições guturais uma

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linguagem cantada e monossilábica. Nenhum diálogo acontece sem que se passe

por meio de frases soltas e espaçadas ou que termine subitamente por um ato de

violência. Reúno abaixo uma série de explicações que o narrador nos oferece em

relação à fala dos retirantes, a primeira com relação a Fabiano, a segunda a Sinhá

Vitória, e a terceira à família como um todo:

[Fabiano] Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 1992: 20) [Sinhá Vitória] – “Meu louro”. Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como baleia. (RAMOS, 1992: 43)

[A família perto do fogo da cozinha] Não era propriamente conversa, eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção à linguagem do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de domá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto. .... Desse negrume saiu novamente a parolagem mastigada. (RAMOS, 1992: 63-4-5)

Da primeira citação, lemos o famoso trecho no qual o narrador por meio

de um ambíguo “mas sabia” conta como Fabiano desconfiava das palavras

“bonitas”. Na segunda citação, lemos um exemplo das várias vezes em que o

narrador aproxima o discurso das personagens ao som dos animais,

especialmente aos de Baleia. Candido, no texto “50 anos de Vidas secas”, afirma

que existe quase que uma humanização de Baleia pelo mesmo caminho que

ocorre uma animalização das personagens (Candido, 1992). E, finalmente, pela

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terceira citação fica nítida a inabilidade oral dos retirantes até e principalmente na

sua intimidade.

Os meninos nutrem ainda ilusões em relação aos poderes da linguagem

diretamente proporcionais à inocência deles. O mais novo na sua imensa vontade

de crescer logo para ser como o pai acha que pode explicar-se por meio de uma

conversa, conversa esta que não acontece. E o mais velho decide aprender uma

palavra nova que ouvira na conversa de gente adulta, a palavra “inferno”, que ele

achava bonita e repetia para si mesmo. Mas quando vai perguntar o significado

da palavra à mãe, ela o repreende com um cascudo. Sobre essa passagem, Alfredo

Bosi, conclui que infernal é não poder perguntar o que é “inferno” (Bosi, 1988:

16). O trecho mostra também, e Bosi aponta esta problemática, a violência que

está prestes a explodir a qualquer momento entre o forte e o fraco, no caso o

adulto e a criança.

Fabiano não partilha da visão de que estudo traz melhoria de vida. A

forma como ele avalia a situação de Seu Tomás da Bolandeira é indicativa desta

sua falta de confiança na cultura letrada. E esta se agrava ainda por uma espécie

de crença de que as pessoas letradas são vistas como fracas para serviços pesados:

Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porque? Só se era porque lia demais. Ele, Fabiano, muitas vezes dissera; - “seu Tomás, vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros.” Pois viera a seca, e o pobre velho, tão bom e tão lido, perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão puxado. (RAMOS, 1992: 22)

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As contas do patrão são outra forma de Fabiano desconfiar da escrita.

Fabiano tem certeza de que é espoliado pelo patrão, e certa vez até o questionou

- “trabalhar como um negro e nunca arranjar carta de alforria!” (Ramos, 1992:

93)- ao que o patrão respondeu com a sua demissão. Sua reação, então,

transforma-se em pedido de desculpa. O patrão vinha sempre com a mesma

conversa. Conversa de juros e multas. Estas palavras eram os espinhos de

Fabiano. E Fabiano revidava apenas com desculpas pois não sabia como se

defender: “Ouvira falar em juros e prazos. Isto lhe dera uma impressão bastante

penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam palavras difíceis, ele saía

logrado” (Ramos, 1992: 96)

Essa sua visão ainda era informada por uma certa noção de subalternidade

que Fabiano não questiona. Ele não se arvora a nada mais do que o cabra que

sabe que é. Sinhá Vitória tem seus desejos, quer uma cama como a de seu Tomás.

Fabiano acha que isso é doidice e pergunta de modo irônico, “cambembes

podiam ter luxo?”(Ramos, 1992: 23). No trecho a seguir lemos como Fabiano se

relaciona com o saber de Seu Tomás e como constrói a visão de si mesmo: “Em

horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando

tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um

sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.” (Ramos, 1992: 22)

Mas Fabiano tem seus sonhos. Sonhos que, concordando com Bosi, não

passam de ilusões consoladoras, porque são sempre arrematados pela noção de

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subalternidade limitadora de sua condição de sujeito. Ele se pergunta se é um

homem, mas sabe que é apenas um pau mandado:

Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomás da bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se forte para brigar com ela e vencê-la. ... um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria um homem. ... Não, provavelmente não seria homem; seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na fazenda alheia.(RAMOS, 1992: 23-4)

Nesse trecho, aparece nítida a visão de subalternidade que informa a

subjetividade do retirante. Em termos de narratividade, vemos como o narrador

de terceira pessoa confere à personagem um tom de primeira pessoa, ainda que

fortemente arraigado na terceira. Nada mais longe dessa forma discursiva do que

o discurso indireto livre ou o monólogo interior. Diante da análise, apesar de

termos uma primeira impressão de que quem fala é Fabiano, sabemos que quem

fala é o narrador de terceira pessoa. A fala do narrador, de tão objetiva, quase que

exclui o sujeito do narrador, chamando toda a atenção apenas para o objeto da

narração, Fabiano.

Essa noção de subalternidade de Fabiano existe em relação aos brancos –

e como Fabiano não é negro, branco significa a posição superior – como também

em relação ao governo. Governo, para Fabiano é coisa distante, certa, não podia

ser o soldado amarelo que comete injustiça e violências. Mas Fabiano vai apenas

até onde pode. Ele se depara com as grades da cadeia da primeira vez que

encontra o soldado, e da segunda fica apenas no desejo de o matar, resignando-se

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com frases feitas do tipo: “quem é do chão não se estrepa” (Ramos, 1992: 92) e

“apanhar do governo não é desfeita” (Ramos, 1992: 105).

A condição do migrante-retirante na narrativa de Vidas secas é a de tema ou

seja, sua voz está submetida à voz de um outro – o narrador. Os retirantes

possuem fala desarticulada e inábil mais afeiçoada a sons animais do que

propriamente a uma linguagem popular. A visão de mundo dos personagens é

transmitida através do discurso do narrador. Este discurso se dá em terceira

pessoa e é objetivo ao máximo. Nem por isso deixa de ser requintado no que diz

respeito à técnica.

A objetividade dessa terceira pessoa é tão plena que provoca um efeito de

eliminação do foco narrativo. À primeira vista, tem-se a impressão de que a

história se narra a si própria. Mas é só perceber que, embora os personagens

pareçam falar por si, existe ali interposto um narrador que é, no limite, a única

voz do texto. O que não é fácil de especificar é até onde vai a personagem e onde

começa a crítica do narrador. O que se pode perceber mais facilmente em

algumas passagens é o momento em que a visão do narrador ora se aproxima ora

se distancia da personagem.

Esse é justamente o grande mérito do texto, reconhecido por todos os

críticos mencionados neste estudo: a capacidade de dar visibilidade, de modo

altamente crítico, a uma realidade que é limitada em todos os recursos. Os pobres

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estão retratados em Vidas secas de uma maneira na qual os modos literários fazem

no texto o que os modos políticos ainda não puderam.

Morte e vida severina: auto de natal pernambucano

(1956), de João Cabral de Melo Neto

A obra poética de João Cabral de Melo Neto possui uma bibliografia

crítica das mais extensas. Pela bibliografia levantada por Zila Mamede no livro

Civil geometria (Mamede, 1987), até 1982, já havia quase que 2000 títulos de

estudos dedicados ao poeta. Contando os mais de vinte anos que nos separam

dessa publicação, vemos que é obra hercúlea dar conta de sua fortuna crítica.

Portanto, reúno aqui uma breve discussão sobre Morte e vida severina que não tem

o objetivo de esgotar os pontos de vista sobre a produção poética de Cabral.

Benedito Nunes no livro que dedicou à poesia de João Cabral (Nunes,

1978) realiza, na nota bibliográfica, um histórico bem completo da vida e da obra

do autor, e é dessa fonte que recolhemos o pedaço do caminho que se refere a

Morte e vida severina. No momento em que Benedito escrevia, João Cabral ainda

estava vivo e já era reconhecido como um dos poetas mais populares do Brasil.

Enormes platéias do Brasil e do exterior já tinham aplaudido o auto de natal

pernambucano Morte e vida severina, que ampliou consideravelmente o espaço de

penetração da poesia de Cabral. Morte e vida foi escrito em 1955, a pedido de

Maria Clara Machado para seu teatro, o Tablado. Ao saber que sua peça não seria

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representada, João Cabral guardou o texto que foi publicado apenas em 1956 no

volume intitulado Duas águas, que reunia sua poesia completa até então.

Em 1958, o texto recebe sua primeira montagem realizada por um grupo

amador, o Norte Teatro Escola do Pará, que o levou a palcos do Recife por

ocasião do 1º Festival Nacional de Teatros dos Estudantes. A montagem valeu a

João Cabral o Prêmio de Melhor Autor Teatral daquele ano. Essa montagem teve

uma repercussão regionalizada, mas chamou a atenção da Companhia Cacilda

Becker que encenaria o texto anos depois. No entanto, foi só em 1966 que o

texto ganhou notoriedade, quando foi encenado no teatro da PUC-SP e do Rio

de Janeiro e posteriormente no Festival Universitário de Nancy (França), com

música de Chico Buarque de Holanda.

O grande sucesso internacional repercutiu no Brasil, garantindo ao

espetáculo uma longa estrada de apresentações, com casas lotadas, em quase

todas as capitais com a Companhia Paulo Autran. Junto com o sucesso de

público aumentavam as inúmeras tiragens do texto e posteriormente da primeira

edição das obras completas do autor. Benedito Nunes chama a atenção para o

fato de que com João Cabral acontece um fenômeno que não se repetia desde

1922, a consagração popular de um poeta. Cabral chegou também à Academia

Brasileira de Letras onde tomou posse em 1969.

Marly de Oliveira na “Introdução” que faz à edição da Obra completa do

autor (Melo Neto, 1994: 15-24), conta que por volta de 1949-50, João Cabral lê

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por acaso no El Observador Económico que a expectativa de vida no Recife era

menor que a da Índia. Cabral produz então O cão sem plumas. E, não satisfeito,

volta ao mesmo tema, mas com uma mudança de perspectiva, produziu O rio ou

relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife. Respectivamente

de 1950 e 1953, esses livros representam uma virada na poesia de João Cabral.

As interpretações geradas a partir da disposição do autor em dar a

denominação de “duas águas” à sua obra entram num debate interessante.

Alfredo Bosi (de forma sintética na História concisa) e Antonio Carlos Secchin (no

estudo aprofundado em A poesia do menos) avaliam as duas águas como uma

diferenciação entre uma poesia auto-referenciada, complexa e cerebral, e uma

participante, na qual aparece o tratamento natural e humano da região com raízes

populares, e um discurso mais fácil, dada a sua natureza dramática e o uso da

redondilha maior, respectivamente.

Haroldo de Campos, em estudo dedicado a Cabral (Campos, 1970: 67-78),

chama a atenção para textos do próprio Cabral para comprovar a mesma tese.

Haroldo mostra como Cabral estava preocupado com o problema da

comunicação. Do depoimento dado por Cabral sobre a “Geração de 45” ao

Diário Carioca em 21-12-52, Haroldo aponta os traços que Cabral critica nessa

geração de poetas. Primeiro, Cabral os considera idealistas na seleção e no

tratamento da linguagem, que valoriza o sublime em detrimento do prosaico e o

inefável em detrimento do tangível. A seguir, Cabral acrescenta que “trata-se de

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uma poesia feita sobrerealidades, feita com zonas exclusivas do homem, e o fim

dela é comunicar traços sutilíssimos, a que só pode servir de instrumento a parte

mais leve e abstrata dos dicionários. O vocábulo prosaico está pesado de

realidade, sujo de realidades inferiores, as do mundo exterior, e em atmosferas

tão angélicas só pode servir de neutralizador” (Campos, 1970: 70).

Assim falando, Haroldo afirma que Cabral sustenta, até em favor próprio,

uma noção de que havia, nessa geração, poetas que preferiam os meios da prosa e

que portanto estariam bem longe dos processos usados pelos poetas do veio da

produção naquele período, e assim, a relação entre uns e outros era apenas

cronológica. Dessa citação de Cabral, Haroldo tira a diferença entre a poesia do

próprio Cabral, marcada pela propensão realista para o substantivo e o concreto,

e a poesia da “geração de 45” de forte pendor idealista para o imponderável.

Da questão da desalienação da linguagem, Haroldo de Campos chama a

atenção para o problema da participação tratada pelo poeta no texto de 1954,

“Da função moderna da poesia”. Nesse texto, Cabral atribui o divórcio entre a

poesia e o leitor à preferência dos poetas por temas intimistas e individualistas.

Cabral critica o poema moderno que, como uma caixa de depósito, é o simples

acúmulo de material poético escrito em primeira pessoa, rico, mas desprovido de

organização e construção. Assim, Haroldo comprova como no bojo da poesia de

Cabral existe um empenho pelo alargamento do auditório.

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Cão sem plumas (1950) é para Haroldo de Campos um poema que marca a

passagem entre as dicções do poeta, um momento de equilíbrio entre as

conquistas construtivas dos livros anteriores e a vontade de comunicação e de

abertura do ambiente temático do poema. Em O rio (1953), Haroldo afirma que

Cabral já faz prosa em poesia e explica “não prosa poética nem poema em prosa,

mas poesia que fica do lado da prosa pela importância primordial que confere à

informação semântica” (Campos, 1970: 72). Morte e vida é, para Haroldo, a obra

de Cabral menos consumada e mais diluída em termos da participação, embora

apresente boa fatura enquanto experiência de poesia dramática. Resumindo a

opinião de Haroldo de Campos sobre as duas águas, diz ele que a primeira água é

a poesia de concentração reflexiva e a segunda é aquela destinada a auditórios

mais largos, é a poesia crítica que põe seu instrumento a serviço da comunidade.

Já Benedito Nunes é de opinião que em ambas há o distanciamento da

individualidade, da voz pessoal e de seus sentimentos (Nunes, 1971). Como já

bem estabelecido criticamente, a poesia de Cabral é do domínio da poesia anti-

lírica, da poesia do não, da não musicalidade, não subjetividade, não

confessionalismo, poesia desemplumada, com base na palavra concreta e com

um sentido prosaico de ordenação sintática e semântica.

A diferença entre as duas águas, segundo Benedito Nunes, está no aspecto

e na forma de comunicação. Na segunda água, há um aumento de volume e uma

ampliação da comunicabilidade dos poemas. Para Benedito Nunes, ao invés de

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dois tipos de poesia, há dois tipos de dicção que divergem pelo modo no qual o

texto chega ao seu destinatário: ora pela leitura individual e silenciosa, ora pela

comunicação oral que possibilita uma recepção coletiva.

Penso que as diferenças entre as duas águas, no entanto, não são tão

importantes, grosso modo, quanto a visão que se encerra nelas. Poeta do

concreto, Cabral escolheu a imagem da casa com suas duas caídas, mas ainda

uma coisa inteira e sólida.

Já foi dito que a poesia de Cabral obedece a um rigor sintático e semântico

de encadeamento de idéias e palavras muito cristalino. Críticos como João

Alexandre Barbosa e Mário Chamie chamam a atenção para o fato de que esse

expediente discursivo leva o poeta e a nós leitores pelo caminho de uma didática.

Há uma espécie de lição que o poeta dá ao leitor e a si mesmo que afasta os

limites e amplia a nossa educação.

No tríptico, O cão sem plumas, O rio e Morte e vida severina (há os que preferem

reunir esses poemas na chave “ciclo do rio”), é forte a influência narrativa e

dramática. Poema todo feito na base das símiles prosaicas, O cão sem plumas é

elaborado a partir da visão de um sujeito-observador. Em O rio, o sujeito é o

próprio rio que é também objeto da narração. Já em Morte e vida severina, agora na

forma dramática, a voz vem diretamente das personagens. Essas mudanças na

forma exprimem as aproximações tateantes de Cabral ao tema do

subdesenvolvimento e da miséria no sertão nordestino.

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Se pensarmos esses poemas em termos de evolução é curioso notar como

o poeta sai da observação (O cão sem plumas) para o estudo de um ser, o rio, em

todas as suas possibilidades econômicas e geográficas durante seu percurso de

misérias e grandezas, e mais adiante seu foco se volta para as pessoas (Morte e

vida). É a voz que determina o ponto de vista em cada poema. A voz faz o trajeto

que sai do poeta, enquanto observador, para, num momento intermediário, ser

do próprio rio e, finalmente, para ser daqueles que vivem a miséria da região.

Não há problema ou hesitação em relação à identificação, como estudado no

processo narrativo de Vidas secas.

Discordando de Haroldo, penso que é com Morte e vida severina que Cabral

chega no melhor da realização de sua intenção de diminuir a distância entre poeta

e público. A questão aqui se torna outra: o público que Cabral queria alcançar

não foi o público que o consumiu. Não foi possível naquele momento, embora

houvesse uma tentativa, levar a poesia para fora do círculo elitista que a consome.

Mas por outro lado, há a vitória de conseguir mostrar para essa elite algo que não

seja ela mesma. Nesse sentido, o alcance da realização se emparelha ao de Vidas

secas.

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A estrutura bipolar de Morte e vida severina

Morte e vida severina é uma homenagem às várias literaturas ibéricas. Marly

de Oliveira, na “Introdução” à Obra completa de Cabral (Melo Neto, 1994), faz um

estudo bem detalhado das influências catalã, galega, portuguesa, castelhana, do

folclore pernambucano, do Realismo, do Modernismo presentes no texto (Melo

Neto, 1994). No nível do tema, esse poema condensa uma série impressionante:

os impactos de uma modernização que nunca se completa e da qual resta apenas

penúria e indigência, a denúncia da luta desigual e violenta entre pequenos

sitiantes e grandes proprietários e os efeitos da migração que transforma

vaqueiros em sub-empregados.

A estrutura do texto é bivalente: há, como no poema anterior, O rio, o

episodismo da viagem que se realiza por etapas. Acompanhamos essa viagem por

quase dois terços do texto até quando o auto propriamente dito toma lugar.

Durante o trajeto até o Recife, primeira parte do texto, Severino se depara com as

várias caras da morte: irmãos das almas que levam numa rede um sitiante

assassinado por aumento de latifúndio; morte do próprio rio que seca no verão;

casa onde velam outro Severino; uma mulher da janela que vive apenas de

atividades ligadas à morte; enterro de um lavrador. E mesmo quando chega ao

Recife, ao descansar ao pé de um muro alto, o que escuta é a conversa cheia de

humor negro dos coveiros. Deles aprende as hierarquias do cemitério que são

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como um espelho do que se passa no mundo dos vivos. Dividido pela classe

social, o cemitério dá lugar aos retirantes junto com os indigentes, dois grupos

que estão em último lugar na escala social.

Onde antes havia um lavrador, um vaqueiro, um trabalhador de engenho,

agora há um indigente. É uma pessoa que não tem outra alternativa senão viver

nas partes mais pobres da cidade, nas margens, exposto a todo tipo de violências,

e sem nenhum conhecimento válido para os trabalhos na cidade. O destino desse

homem é o subemprego na melhor das hipóteses.

Quando Severino, a um passo de se suicidar, é salvo pelo nascimento do

filho de Seu José, passamos para o outro lado do texto, para o momento de

valorização do pólo “vida”. Não há, entretanto, nenhuma poetização da vida. A

estrutura tradicional do auto é parodiada. As rezas típicas são introduzidas e

transtornadas em seus desenvolvimentos, onde de novo aparecem miséria e

morte. O rito passa da celebração para a descrição de uma visão desencantada e

cruel. Antonio Carlos Secchin escreve que Cabral passa da palavra florida à

palavra ferida (Secchin, 1985: 107-77).

A ambivalência do texto se apresenta de modo isomórfico. Da estrutura ao

tema, a exploração das possibilidades de morte e vida ocupa todos os lugares. Se

começarmos pela definição do tipo de texto, já encontramos ambivalências: este

texto se apresenta como auto de natal pernambucano, expressão que vem entre

parêntesis abaixo do título Morte e vida severina. Segundo o Dicionário de termos

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literários, “o auto designa toda peça breve, de tema religioso ou profano, em

circulação durante a Idade Média” (Moisés, 1974: 49). Assim, é, por definição,

peça, drama, no entanto, o título da primeira seção do texto, “O retirante explica

ao leitor quem é e a que vai”, nos abre a porta da leitura, já que endereça o leitor,

nos remetendo diretamente para o texto narrativo. Casando os domínios do

drama, da narração e da poesia, Cabral, com sua didática, já nos havia dado a

chave no título de um livro em que reunia “poemas em voz alta” (Melo Neto,

1978).

O final dessa primeira seção, “passo a ser o Severino/que em vossa

presença emigra”, continua conduzindo a ambigüidade de classificação textual e,

além disso, o uso duplo da palavra “emigra”, que remete tanto a emigrar para

nossa presença quanto para o Recife, já antecipando o tema e uma grande parte

da ação do texto.

Esse auto despontará como auto propriamente dito somente a partir da

terça parte do texto. Até lá veremos morte e vida no tratamento do tema da

migração. Muito mais morte, é verdade, e de modo muito concreto na presença

constante de defuntos chamados Severino. No entanto, o pólo “vida” existe no

plano do sonho do migrante: “só a morte tem encontrado/quem pensava

encontrar vida,/ e o pouco que não foi morte/foi de vida severina/ (aquela vida

que é menos/ vivida que defendida,/ e é ainda mais severina/ para o homem que

retira).” (Melo Neto, 1994: 178)

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A migração esconde muitas formas de morte e vida. Morre a vida que

antes se levava na cidade natal, e nunca haverá retorno a ela, porque quando o

migrante volta à terra natal, ele nunca a vê como antes via, tão transformado pela

experiência da vida que levou na cidade para a qual migrou, no mais das vezes

maior e mais desenvolvida. Assim, para sempre será, além de estrangeiro na terra

dos outros, estrangeiro na própria terra. O próprio João Cabral viveu essa

realidade, assim como Graciliano antes dele, para citar apenas dois nomes.

Benedito Nunes escreve sobre a “dialética do desterramento” como uma

força na poesia brasileira desde Gonçalves Dias, passando por Oswald de

Andrade, Sousândrade e Carlos Drummond. É interessante lembrar aqui também

de Gilberto Freyre, que influenciado pelo desterramento, criou sua obra e está lá

citado ironicamente por Cabral, na seção catorze, momento em que o menino é

louvado em sentido inverso ao religioso: “Todo o céu e a terra/ lhe cantam

louvor/e cada casa se torna/num mocambo sedutor./Cada casebre se torna/no

mocambo modelar/que tanto celebram os/sociólogos do lugar.” (Melo Neto,

1994: 196)

Benedito Nunes explica como o nome “Severino” passa de substantivo

próprio a comum sendo todos severinos os que a seca expulsa do sertão e o

latifúndio expulsa da terra. O nome passa à categoria de adjetivo quando marca

como severina a condição de penúria e indigência vivida pelos retirantes.

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Severino procura vida e só encontra a morte. Ele caminha para um destino

trágico, produto de condições climáticas, sociais e políticas, e é salvo pelo auto de

natal que interrompendo o seu caminho para fora da vida, lhe apresenta o salto

para dentro dela. O texto é dividido em dezoito cenas/episódios. Na décima

segunda acontece o ponto alto da ação quando Severino, após ter escutado a

conversa dos coveiros no momento em que chega a Recife, começa a perceber a

cruel realidade do que lhe aguarda ali. Na seção que antecede o encontro com

Seu José, Severino faz um balanço de seu trajeto e atesta:

- Nunca esperei muita coisa, é preciso que eu repita. Sabia que no rosário ... ao acabar minha descida, não seria diferente a vida de cada dia: ... esperei, devo dizer, que ao menos aumentaria na quartinha, a água pouca, dentro da cuia, a farinha, o algodãozinho da camisa, meu aluguel com a vida. E chegando, aprendo que, Nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. (MELO NETO, 1994: 192)

Profundamente desencantado com suas perspectivas na cidade, ele pensa

em cometer suicídio. Neste momento, encontra Seu José, a quem pergunta se

não seria melhor saída saltar fora da ponte e da vida. Seu José argumenta com

esperança e fé na vida quando Severino acha que:

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não é melhor se entregar? Severino, retirante, o mar da nossa conversa precisa ser combatido, sempre, de qualquer maneira. ... Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para trás (MELO NETO, 1994: 194)

A partir daí, Severino se retira da ação de que participa para assistir a outra:

o auto que será representado para ele. Benedito Nunes chama esse procedimento

de auto dentro do auto, que ao terminar cede lugar à continuação do diálogo

entre Severino e Seu José.

Impactos da modernização, reforma agrária e humor negro

Severino pertence a um modo de produção que está completamente

esgotado e decadente. O diálogo entre Severino e a mulher da janela prova como

as suas atividades econômicas do Nordeste – lavrar, cuidar do gado e trabalhar

no bangüê – estão em baixa. Quanto às roças, ela explica que “esses roçados o

banco/ já não quer financiar” (Melo Neto, 1994: 179), também ali não é lugar

para criação, e, finalmente, explica quanto aos bangüês que “com a vinda das

usinas/ há poucos engenhos já” (Melo Neto, 1994: 180). Em alta estão as

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profissões que tratam da morte e profissionais vêm da cidade, retirantes às

avessas, farmacêuticos, coveiros, doutores.

O impacto que a modernização das usinas trouxe é também tratado no

trecho em que Severino chega à zona da mata e não encontra gente trabalhando.

Observa apenas o engenho em ruínas e o bueiro da usina: “Mas não avisto

ninguém,/ só as folhas da cana fina;/ somente ali à distância/ aquele bueiro de

usina;/ somente naquela várzea/ um bangüê velho em ruína./ Por onde andará a

gente/ que tantas canas cultiva?” (Melo Neto, 1994: 180)

Como todos sabem, as usinas modernizaram a produção da cana,

diminuindo o número de trabalhadores efetivos necessários. Muitos eram

aproveitados no corte da cana, mas esta é uma atividade sazonal e, no mais das

vezes, sem registro em carteira de trabalho. Desprovidas de uma forte política de

sustentação e incentivo, as usinas ficaram à mercê das flutuações do mercado e

muitas fecharam devido à ausência de investimentos e de modernização em

termos de técnica. O fechamento das usinas foi ainda pior que a sua abertura. O

desemprego gerado foi maior ainda.

A reforma agrária anda a passos lentos e violentos. Na migração de

Severino, o primeiro encontro que ele tem é com os “irmãos das almas” que

carregam no fundo de uma rede um pequeno proprietário assassinado pela

voracidade do latifundiário. Em passagem mais adiante, Severino assiste ao

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enterro de um lavrador que viveu sua vida toda trabalhando pelo sistema de

“meias”. De seus amigos, Severino escuta os famosos versos:

- Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida.

- É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio.

- Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida. (MELO NETO, 1994: 183)

No diálogo que Severino entabula com os irmãos das almas há ainda um

toque de humor negro. Severino pergunta aos irmãos que acontecerá contra a

espingarda. O que se espera num caso como esses é a punição, a prisão por

homicídio, mas na resposta dos irmãos conhecemos a dura e irônica realidade:

mais liberdade é que o grande proprietário terá, “mais campo tem para soltar,

irmão das almas, tem mais onde fazer voar/ as filhas-bala” (Melo Neto, 1994:

183).

Em seguida, Severino pergunta aonde é que levam o corpo para ser

enterrado e se acaso não pode ajudar a levá-lo. Os irmãos aceitam a sua ajuda,

pois, assim, aquele que fez mais longo caminho pode voltar dali mesmo. Os dois

estavam tão cansados que afirmam: “mais sorte tem o defunto,/ irmão das

almas,/ pois já não fará na volta/ a caminhada.” (Melo Neto, 1994: 175). É

terrível a tirada que mais uma vez inverte a valorização dos pólos morte e vida.

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A inversão do sentido religioso do auto dentro do auto também apresenta

toques de humor negro. Quando os vizinhos oferecem seus presentes ao recém-

nascido, vemos a passagem da celebração para a descrição desencantada de uma

realidade de penúria e miséria. No trecho a seguir, pode-se perceber a inversão

do tom de sobrenatural do Natal para o tom da realidade concreta mais um toque

de humor negro:

- Minha pobreza tal é que não tenho presente melhor: trago papel de jornal para lhe servir de cobertor; cobrindo-se assim de letras vai um dia ser doutor. (MELO NETO, 1994: 197) O futuro do menino, no entanto, previsto pelas duas ciganas, é

desalentador. A primeira cigana faz uma previsão dentro da permanência do

modo de vida já conhecido por todos: “cedo aprenderá a caçar:/ primeiro, com

as galinhas,/ que é catando pelo chão/ tudo que cheira a comida” (Melo Neto,

1994: 198). Mais tarde, ela continua, será um pescador de mangue coberto de

lama ou fazendo iscas com os dedos para pescar camarões. A segunda cigana

completa a figura já na clave dos impactos da modernização. Ela vê o menino

todo negro não de lama, mas de graxa das máquinas da fábrica, emprego que o

levará longe. O longe do qual fala é um mangue mais distante.

Na penúltima seção, no entanto, o tom de humor negro cede lugar a uma

crescente valorização da vida, cujo ápice é o nascimento do filho de seu José,

com toda a aura de promessa e renovação que qualquer nascimento enseja:

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Sua formosura

deixai-me que cante: é um menino guenzo como todos os desses mangues, mas a máquina de homem já bate nele, incessante. ... - De sua formosura deixai-me que diga: é belo como o coqueiro que vence a areia marinha. ... é tão belo como um sim numa sala negativa. ... Belo porque é uma porta abrindo-se em mais saídas. ... E belo porque com o novo todo o velho contagia. Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. Infecciona a miséria com vida nova e sadia. Com oásis, o deserto, com ventos, a calmaria. (MELO NETO, 1994: 200-1)

A resposta de Seu José

O retirante, que esteve de fora, volta agora à cena para ouvir de Seu José a

resposta da pergunta que havia feito: se não valia mais saltar para fora da vida. A

fala de Seu José arrepia até as pedras pelo profundo respeito, confiança e

esperança na vida. E como nas tragédias shakespearianas há lugar para o riso,

mesmo aquele sem graça, no auge do drama, assim como na oposição entre o

vilão e o herói, em que quanto pior for o vilão, maior será o herói. Em Morte e

vida severina, apesar da presença constante da morte, da desesperança e da

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ausência de perspectivas, a renovação que o nascimento de uma vida faz

acontecer é suficiente para que Seu José dê a sua resposta. E sua resposta não é

pautada pelas idéias já que, como diz, “é muito difícil defender/ só com palavras

a vida”, mas o espetáculo de florescimento que é a própria vida fala por si só.

O migrante escuta

O rumo que Severino vai tomar depois de ouvir a resposta de Seu José

restou aberto. Parece que Seu José dá a ele uma lição. Uma lição de vida. Dentro

do cenário da obra poética de João Cabral esta é mais uma de suas lições dentro

de sua pedagogia da pedra.

Essa terra (1976), de Antônio Torres

Antonio Torres é um dos escritores mais reconhecidos da geração dos

anos de chumbo. Nascido no interior do sertão baiano, em Junco, hoje Sátiro

Dias, começou a publicar em 1972 com Um cão uivando para a lua. Também

jornalista e publicitário, hoje vive no Rio de Janeiro. Entre seus prêmios mais

importantes pode-se citar o Machado de Assis da ABL pelo conjunto da obra em

2000 e o Chevalier des Arts et des Lettres dado pelo governo francês em 1998 pelos

romances publicados lá, Essa terra e Um táxi para Viena d’Áustria.

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Fortemente marcados pela autobiografia, a maioria dos romances de

Torres, em diferentes tonalidades, tem como centro irradiador a antiga Junco.

Um táxi para Viena d’Áustria sai dessa esfera e encena os limites da vida no caos

urbano de um engarrafamento em Ipanema. Outra parte da obra de Torres é

dedicada à crônica como Centro das nossas desatenções (1996), feito de encomenda

sobre o centro do Rio de Janeiro e os seguintes: O circo no Brasil (1998) e Meu

querido canibal (2000).

Essa terra, seu mais famoso romance, é publicado com uma primeira

tiragem de trinta mil exemplares, um fenômeno editorial, esgotado rapidamente e

seguido por uma longa série de reedições e traduções. Em 2001, a editora Record

lançou a décima quinta edição de Essa terra comemorando os vinte e cinco anos

de circulação da obra. Marco da literatura sobre a migração, o romance consta

também na bibliografia de concursos vestibulares, como, por exemplo, o da

Universidade de Brasília.

Aleilton Fonseca tem publicada no site do escritor uma interessante

resenha (Fonseca, 2005) sobre Essa terra, na qual defende seu caráter de grande

clássico. Não é para menos, pois Essa terra focaliza, na experiência de uma família

do sertão baiano, o drama da migração nordestina para São Paulo numa rica

variação de matizes sem perder nem a concisão nem o poder de exploração do

tema. O ponto de vista predominante é o de Totonhim, o irmão mais novo, mas

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há momentos em que a primeira pessoa passa para outros personagens. O

resultado dessa técnica é a amplificação do horizonte de perspectivas e o

conseqüente aumento da compreensão das diferentes respostas à situação da

migração.

Nelo, o irmão quase vinte anos mais velho que Totonhin, é o migrante

que, ao deixar sua terra, sua família e sua identidade para trás, entrega-se à

metrópole paulistana e nela se perde, desenraiza-se e termina derrotado. Ao

retornar ao lar paterno, encontra-se doente, abandonado e desiludido. Não

suporta o peso da frustração, ao sentir que não contemplara as expectativas da

família, sobretudo de sua mãe, que o imaginava rico e vencedor. O suicídio de

Nelo é, portanto, o nó do enredo. É a primeira cena do livro e é dela que vão ser

puxados os fios que ficaram soltos nos vinte anos que separam a ida e a volta do

personagem Nelo.

Este drama pungente é testemunhado por Totonhim, o mais novo da

família, que nem conhecia o irmão mais velho. Com a ajuda em dinheiro que

Nelo mandava de São Paulo, a mãe decide botar os filhos para estudar em Feira

de Santana, mas Totonhin não agüenta viver numa casa muito pior que a da roça.

Volta sozinho para o Junco, arruma um trabalho na prefeitura e mora de graça na

casa que já tinha sido de sua família.

O pai da família, muito endividado, perde as terras para seu irmão. A mãe,

iludida pela civilização, realiza seu sonho de morar em Feira de Santana e ter os

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filhos na escola. Acontece que em Feira se dá a perdição das meninas e a baixa na

qualidade de vida apenas reforça o ódio que o pai sente por ela, já que eles viviam

em constante desentendimento sobre os rumos da família. É nesse cenário que

Totonhim reencontra Nelo, que, pobre e perdido, é recebido com saudações

destinadas aos ricos.

O suicídio de Nelo parece matar também o sonho de toda a cidade: ir

enriquecer no sul. Sua morte pode ser vista ainda como uma trágica síntese do

enorme contraste entre os grandes centros desenvolvidos e o sertão esquecido à

própria sorte, em que a redenção do homem se reduzia ao horizonte das tristes

estradas. Mas o fim da narrativa mostra a surpreendente redenção desse sonho

com a decisão de Totonhim de seguir o exemplo do irmão. Dolorosamente

ambígua, a expressão de “seguir o exemplo” nesse caso sugere a força que o

sonho de melhorar de vida na cidade grande tem, mesmo quando a realidade

mostra as piores dificuldades para a sua realização.

Estrutura, discurso e tempo: amor e ódio

A narrativa está dividida em quatro grandes partes: “Essa terra me chama”,

“Essa terra me enxota”, “Essa terra me enlouquece” e “Essa terra me ama”.

Duas delas estão subdivididas em seções menores: “Essa terra me enlouquece”

tem sete seções e “Essa terra me chama”, a primeira parte, onze seções. Dez

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delas são narradas a partir do ponto de vista de Totonhim e a décima primeira é

narrada a partir do ponto de vista de Nelo.

Nesta seção, é contado o episódio em que Nelo apanha de policiais perto

do rio Tietê por motivos pessoais: sua esposa havia fugido com um deles e a sova

era como que um aviso para que Nelo não os atrapalhasse mais. Enquanto

apanha, meio consciente, as lembranças de sua terra afloram e se misturam com

os fatos presentes: “O mijo escorre quente e fedido, é a chuva que Deus mandou

na hora certa, viram como foi bom a gente plantar no dia de São José?” (Torres,

1997 a: 46)

A parte “Essa terra me enxota” é narrada em terceira pessoa, por

Totonhim, a partir do ponto de vista do pai. Há um deslocamento interessante

nesta seção pois o óbvio seria que o capítulo intitulado dessa forma, que remete

diretamente à migração, fosse sobre a migração para São Paulo, mas, na verdade,

trata da migração que ocorre para os centros próximos aos pequenos povoados.

Pequenos centros. Nesse caso, falando a partir de Junco, temos Inhambupe e

depois Feira de Santana. A mãe era completamente seduzida pela civilização.

Nutria grandes ilusões em relação à vida do filho em São Paulo e chegava a

desprezar os outros por não terem a mesma “sorte”. O pai era contrário a isso e

comparava a situação a ter o filho perdido no mundo. A mudança para Feira de

Santana foi a derrota do pai, mas a mãe tinha ilusões de que os filhos iriam se

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desenvolver com a educação formal. Contudo, o que houve na realidade foi uma

queda em todos os sentidos, desde o desmembramento da família, até a profunda

desilusão do pai e a forte baixa no padrão de vida da família.

A terceira parte, “Essa terra me enlouquece” é narrada por Totonhim e

reúne histórias sobre o doido Alcino, o bobo da cidade, o desnorteado Nelo e

uma grande parte é destinada à mãe enlouquecida frente à notícia da morte

trágica do filho. Totonhim teve que acompanhar a mãe que estava

completamente fora de si a uma casa de repouso na cidade vizinha. No trajeto a

mãe delira e fala com ele como se falasse com Nelo. Ela se recusa a acreditar na

morte do filho: não pode suportar o suicídio, pois aquilo matava também seus

sonhos e invalidava toda sua vida.

A última parte, “Essa terra me ama”, conta, a partir do ponto de vista de

Totonhim, a loucura da mãe e o sofrimento do narrador em passar por aquele

processo de internação da mãe. E, finalmente, chega a última conversa que ele

tem com seu pai. Depois de o pai reclamar que havia poucas pessoas no enterro

de Nelo, Totonhim pergunta que é que o pai irá fazer agora. O velho divaga e

não acha uma resposta certa. Depois de três vezes fazer a mesma pergunta,

Totonhim se sente perdido no meio daquela situação: “Foi então que comecei a

me sentir perdido, desamparado, sozinho. Tudo o que me restava era um imenso

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absurdo. Mamãe Absurdo, Papai Absurdo. Eu Absurdo. “Vives por um fio de

puro acaso”. E te sentes filho deste acaso.” (Torres, 1997 a: 110)

No final desse diálogo, Totonhim comunica ao pai sua decisão de ir para

São Paulo. Contrariado, o pai responde: “- Você é igual aos outros. Não gosta

daqui – falou zangado, como se tivesse dado um pulo no tempo e de repente

tivesse voltado a ser o pai de outros tempos. – Ninguém gosta daqui. Ninguém

tem amor a esta terra” (Torres, 1997 a: 111).

O tempo em Essa terra não é linear. Longe disso, há no romance uma

simultaneidade de tempos. O tempo presente da narração está ancorado em vinte

anos depois que Nelo foi para São Paulo:

Vinte anos para frente, vinte anos para trás. E eu no meio, como dois ponteiros eternamente parados, marcando sempre a metade de alguma coisa – um velho relógio de pêndulo que há muito perdeu o ritmo e o rumo das horas. Eis como me sinto e não apenas agora, agora que já sei como tudo terminou. (Torres, 1997 a: 18)

O tempo da narrativa é o pretérito imperfeito. Essa escolha técnica dá ao

texto um tom de memória:

Não custa a crer, diria eu. Nós íamos colados um no outro, a caminho da roça. Íamos para a casa onde havíamos nascido e que há muito já não nos pertencia. Nelo se derretia em suor, mas eu não podia tirar o braço dele do meu ombro. Ele estava caindo de bêbado. (Torres, 1997 a: 29)

O discurso da narrativa, com tom coloquial, leve e bem humorado, por

vezes inverte sentidos de expressões populares e de expressões literárias

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conhecidas. As letras das orações e do hino nacional parecem ser constantemente

relembradas e transformadas:

- Hei de te amar até morrer.

Essa é a terra que me pariu.

... Moças na janela, olhando para a estrada, parecem concordar: isto aqui é o fim do mundo. Estão sonhando com os rapazes que foram para São Paulo e nunca mais vieram buscá-las. Estão esperando os bancários de Alagoinhas e os homens da Petrobrás. Estão esperando. Tabaréu, não: rapazes da cidade. – Vão morrer no barricão, loucas e com o tabaréu ensebado, para pagar a língua, revidam os solteirões desenganados. Desengano é nome feio, treta do diabo. Como o pecado e os outros nomes feios: tabaco, chibiu, e a puta que as pariu. Vaca, bezerra, égua, jumenta também têm tabaco. Eles não morrerão ensebados. (Torres, 1997 a: 16)

Há uma forte interferência da oralidade no discurso de Torres como se

pode entrever no trecho acima. A coloquialidade dos termos e a leveza do

andamento dão um tom de conversa bem humorada à narrativa. Há ainda uma

discussão de expressões literárias conhecidas que dizem respeito ao tema como a

discussão da famosa passagem de Os sertões e uma referência ao Morte e vida severina

na figura do pai que é um carpinteiro. O narrador usa a mesma expressão que

Cabral, “mestre carpina”:

Sertanejo velho, não era um forte. Também não era um fraco. Ainda era homem capaz de pegar o tronco de uma sucupira e transformá-lo, em poucas horas, num eixo que podia durar uma vida inteira. E quando um carro de boi passava cantando pela estrada, ele sabia que em algum lugar alguém estava anunciando a sua fama de mestre carpina.

Sim, era um forte. (Torres, 1997 a: 53-3)

Esse pai era basicamente um lavrador que tinha na sua família os braços

para o eito. Ele se faz carpinteiro apenas em momento de morte quando se põe a

construir o caixão. De seu ponto de vista, economicamente, ele tem o perfeito

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esquema de sobrevivência, pois com a família toda trabalhando não precisaria de

empréstimo do banco. Mas, do ponto de vista da mãe, os filhos tinham que ter

educação formal e daí vêm as contradições.

Há inversões de cantigas populares no texto como na seguinte referência à

mãe, “ela nunca teve o avental todo sujo de ovo, ela nunca teve um avental”

(Torres, 1997 a: 97).

Às ligações em termos discursivos que são feitas a Euclides e a Cabral,

juntam-se uma referência em nível temático a Graciliano, pois temos o Nelo

sofrendo na mão de um policial e ainda um tratamento histórico de fatos

relevantes sobre o Junco, que lembram Távora, mas que dele se afastam pela

leveza, e ainda lembram o Euclides da primeira parte de Os sertões, “A terra”,

quando o engenheiro nos mostra em detalhes o relevo, o clima e a vegetação

daquela parte da Bahia. Totonhim descreve sua terra:

Vagaroso e solitário, o Junco sobrevive às suas próprias mágoas, com a certeza de quem já conheceu dias piores, e ainda assim continua de pé, para contar como foi. Em 1932 o lugar esteve para ser trocado do Estado da Bahia para o mapa do inferno, na pior seca que já se teve notícia por essas bandas, hoje reverenciada em cada caveira de boi pendurada numa estaca, para dar sorte ... As primeiras chuvas de 33 prometiam a bonança, mas ficaram só na promessa. O que se viu mais tarde foi o dilúvio, o sezão e o impaludismo... (Torres, 1997 a: 16)

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Modernização e traição: nem Lampião nem Antonio Conselheiro

O deputado sobe no palanque e comemora com o povo ter conseguido

emancipar o lugarejo. O povo se enche de orgulho por nada mais dever à cidade

vizinha. Mas os dias passam e o povo nota que nada mesmo mudou. Para o

deputado, aquilo ali era mais uma cidade para lhe dar votos. Para o povo aquilo

era mais uma oportunidade de melhorar a cidade. O povo tem esperança. O

discurso político inventa uma modernização que soa muito boa, mas que tem

resultados apenas em benefício de quem o emite. A educação vai avançar ali o

necessário apenas para que se saiba votar. O narrador reflete sobre esses

problemas no trecho a seguir:

... o velho mal sabia assinar o nome em dia de eleição, o que não era nenhuma vergonha, todos aqui são assim: desde que se aprenda a votar, não se precisa saber mais nada. Sua escrita era outra e essa ele tinha orgulho de fazer bem: riscos amarronzados sobre a terra arada, a terra bonita e macia ... a melhor caneta do mundo é o cabo de uma enxada. (Torres, 1997 a: 49)

O modo como o banco chega na cidade completa o quadro da vida

política brasileira que no mais das vezes fala em nome de todos, mas age em

benefício próprio. O banco chega de jipe e se intromete no discurso do padre. A

palavra progresso enche as bocas, mas o final da história são papéis assinados e

prazos improrrogáveis que tiram das famílias as terras de seus antepassados:

Ancar: o banco que chegou de jipe, num domingo de missa, para emprestar dinheiro a quem tivesse uma poucas braças de terra. Os homens do jipe foram diretamente para a Igreja e pediram ao padre para dizer quem eles eram, durante o sermão. O padre disse.

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Falou em progresso, falou no bem de todos. O banco tinha a garantia do presidente. (Torres, 1997 a: 18)

A modernização parece que está, tanto no caso do deputado quanto no

caso do banco, ligada a uma traição. As palavras “desenvolvimento”,

“modernização” e “progresso” seduzem o povo que cai como pato em ciladas

políticas e econômicas, sendo sempre enganado. A política corrupta é um

problema crônico no Brasil. Nós somos um povo que tem esperança, que tem

vontade de transformar, mas que fica sempre no ora veja. Torres mostra essa

realidade de modo magistral sem cair no tom de panfleto.

Para quebrar qualquer tom de crítica social ou política que venha a

enveredar para o lado da denúncia, o narrador diverte a atenção do leitor com

duas histórias engraçadas. Uma diz que Lampião não foi a Junco, que mandou

recado dizendo que ia, mas não apareceu, e o povo se consola pensando o que

ele iria fazer naquele fim de mundo. E a outra conta que Antonio Conselheiro

esteve próximo de Junco, na rival Inhambupe, mas lá foi apedrejado. E rogou

praga dizendo que a cidade cresceria como rabo de besta, que como todos os

rabos, cresce para baixo, mas o de besta o dono corta para dar mais valor ao

animal.

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Migrações frustradas

A visão da migração ensejada pela leitura de Essa terra é desalentadora.

Tanto a migração que ocorre para um pequeno centro próximo quanto a

migração para o sul do país, ambas acalentadas por ilusões de riqueza e de

melhoria de vida pela educação formal, não vão ao encontro dessas expetativas.

Muito ao contrário, o que acontece, como vimos anteriormente, é o

desmembramento da família, o desmantelo da economia familiar e a perda da

propriedade rural, ou seja, para aquela família ter deixado a roça, que era de

propriedade deles e de onde tiravam o seu sustento, foi o pior negócio.

Para Feira de Santana, a migração resultou numa terrível piora na

qualidade de vida da família do protagonista, pois eles foram morar num bairro

de periferia no qual o dinheiro que tinham mal dava para as despesas da casa. A

mãe teve que adicionar ao trabalho rotineiro na casa o trabalho de costura para

completar a renda e as filhas se perderam no choque cultural que é sair da roça e

entrar na cidade.

A migração para o sul não foi diferente. Ali onde antes havia um

trabalhador rural, agora há um homem bêbado, doente e perdido. Ele também é

morador de periferia, no caso de São Paulo, e uma periferia muito mais difícil,

porque mais distante do centro e mais violenta. O sonho de ficar rico em São

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Paulo se transforma em um pesadelo de misérias que não mata, no entanto, a

ilusão lá na cidade do interior. O lema dito aos meninos “cresce logo para ir par

São Paulo” (Torres, 1997 a: 47) continua sendo repetido e a grande virada do

romance é a decisão de Totonhim em seguir os passos do irmão, mesmo tendo

diante de si o fracasso como exemplo.

A voz de Totonhim é predominante na narrativa. Nelo narra apenas uma

seção da narrativa na qual é profundamente humilhado e espancado por policiais

`a beira do Tietê. São exatamente os dois migrantes que falam na narrativa. No

escopo dos romances que formam o corpus dessa pesquisa é apenas neste

romance que aparece a primeira voz de migrante a narrar sua história.

Para um tema que está no pano de fundo da literatura brasileira desde pelo

menos 1876, com O cabeleira, e que ganhou força na década de 1930, quando

foram renovadas as técnicas e assumidas atitudes de enfrentamento do tema, que

não fossem guiadas pela condescendência ou pelo apelo ao exótico, pode-se dizer

que foi longo o caminho da personagem migrante até a conquista de sua própria

voz. Cem anos separam O cabeleira (1876) de Essa terra (1976).

É possível que esteja associada a este fato uma mudança no lugar social

dos migrantes nordestinos no sul, já há um tempo moradores e trabalhadores na

cidade grande. A vida do próprio Antonio Torres traduz um pouco essa mudança

de perfil. Não é caso isolado, é uma legião, todos os que saíram do nordeste e

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“venceram” na vida depois de terem migrado para o sul. Mas, como veremos a

seguir, com a leitura de A hora da estrela, essa conquista da voz não é algo tão

positivo. É um desenvolvimento que opera em idas e vindas.

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3º capítulo

A migração do ponto de vista da cidade grande

A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector; O prefácio; Os títulos; A estrutura narrativa; Clarice e Graciliano; Clarice-Euclides-Cabral; Classe social e pensamento; Nossa dor de dente; As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene Felinto; As mulheres de Tijucopapo e a crítica; Narrativa trajetória; Classe social e revolução; A voz da migrante.

A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector

Quando Clarice publica aquele que seria seu último romance, A hora da

estrela, em 1977, ela tinha atrás de si uma obra literária já sedimentada no

panorama da literatura brasileira como uma das maiores. Tendo começado a

publicar muito jovem, na década de 1940 – Perto do coração selvagem, seu primeiro

romance, é de 1944 – Clarice, por mais de trinta anos de escritura, tinha

construído uma identidade literária que a afastava de engajamentos políticos e

sociais. Longe disso, sua obra estava profundamente comprometida com o

escavamento do ser humano numa literatura implicada com as questões de

existência, como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a comunicação das

consciências e os limites do ser.

Em A hora da estrela, no entanto, Clarice provoca um grande deslocamento

dos alicerces sob os quais estava construída sua obra. Na narrativa de A hora da

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estrela há uma preocupação incansável em discutir com o leitor os motivos dessa

mudança na forma de escrever. Clarice, que teve uma infância difícil no Recife,

parece acertar as contas com o sentimento de culpa que tem diante da nordestina

miserável que fracassa no Rio de Janeiro, aquela que poderia ter sido ela.

Clarice se propõe “contar as fracas aventuras de uma moça numa cidade

toda feita contra ela” (Lispector, 1995: 29). Como existe aí um problema grave de

identificação entre a autora e a personagem, a questão da pessoa que fala na

narrativa é resolvida por meio da interposição de um narrador. Mas esse

expediente é mais um recurso pelo qual a autora justifica e comenta seu novo

modo de escrever, bem como sua nova personagem, tão diferente daquelas

mulheres profundas de seus romances anteriores. O fictício e o verdadeiro são

despidos e travestidos de forma desconcertante no prefácio. Senão, vejamos:

O prefácio

Intitulado “Dedicatória do autor” e seguido de um parêntesis no qual

lemos “Na verdade Clarice Lispector”, este prefácio nos encaminha para uma

autora verdadeira e para uma persona masculina e fictícia. A palavra de origem

grega persona representa muito bem o que aqui fez Clarice, já que remete

etimologicamente à máscara que os atores usavam no teatro e através da qual a

voz do ator passava; daí a idéia de soar através – per sona. Nesse sentido, é que

Clarice deixa clara sua persona ao explicitar que é sua a voz que sai da boca de

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Rodrigo S. M. Nesse sentido, há ao mesmo tempo uma quebra da ilusão narrativa

e uma renegociação dessa ilusão.

Há ainda um certo distanciamento ou, no limite, talvez até um desprezo

pela obra que é definida como “esta coisa aí”. Esse distanciamento deve estar

ligado ao trabalho com o novo a que a autora se dedicou e que não ocorreu de

forma pacífica, como fica claro nas duas passagens que copio a seguir:

(Vai ser difícil escrever essa história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona) (LISPECTOR, 1995: 39)

(Como eu disse, essa não é uma história de pensamentos. Depois provavelmente voltarei para as inominadas sensações, até sensações de Deus. Mas a história de Macabéa tem que sair senão eu estouro) (LISPECTOR, 1995: 63)

Essas passagens mostram como a identificação com a personagem era

difícil, assim como também era difícil a nova modalidade de expressão que a

autora buscava para sua nova personagem. A vontade de escrever a história é

movida por uma necessidade inexplicável e superior que comanda a ação da

escritora, embora seu desejo parecesse ser outro. É como se ela se consolasse

dizendo para si mesma que depois voltará a seu lugar confortável, mas que antes

tem que fazer acontecer a Macabéa senão ela explode. Explodiria por quê? Por

culpa de não ser a nordestina, por ser uma nordestina que passou dificuldades na

infância, mas que sempre pertenceu a uma classe social superior?

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A questão da identificação é muito penosa para ela, pois para ela o ato de

escrita é um ato de sentir também. Ela explicita como mesmo sem identificação

há ainda um doar-se ao personagem. Nesse mundo literário de Clarice, há algo

que remete de novo à persona no próprio ato de criação da personagem, ou seja,

por aquela personagem criada soa a voz que vem do interior de uma pessoa de

carne e osso, que é a escritora.

E o que Clarice deixa claro, de modo recorrente no discurso da narrativa é

que, apesar de difícil, de distante, de desinteressante, essa história deve ser

contada. É uma história que é óbvia, que está na cara de todo o mundo, mas que

ninguém quer ver, porque essa moça é invisível para a sociedade. Mas o que a

autora se propõe é lutar contra esse desejo de ignorar a moça, que também é dela,

e não apenas da classe à qual pertence (o que seria uma saída bem mais fácil,

porém hipócrita). Nesse sentido não há denúncia, como na literatura engajada

tradicional, pois ela parte de seus próprios preconceitos, ou melhor, ela luta

contra seus próprios preconceitos para dar visibilidade àquela moça, como lemos

no trecho a seguir:

Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. (Lispector, 1995: 33)

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É por meio de parêntesis que na maioria das vezes há intromissão do autor na

narrativa. Abre-se uma brecha no discurso da narrativa para que se comente o

próprio discurso. Esses comentários vão se tornando como que pedras seguras

por onde passa alguém que cruza um córrego lodoso. Pisando na pedra seca,

perde-se o medo de escorregar no lodo molhado e mais um pouco se pode

avançar. A narrativa está toda ponteada por essas pedras secas, ou seja, por esses

trechos que investigam o próprio ato de narrar. São como bolsões de ar nos quais

a autora respira e como que recompõe seu fôlego para o ato de narrar algo a que

não se está acostumado, algo que é desinteressante, algo que não se entende bem,

algo do qual ela queria distância:

(Estou passando por um pequeno inferno com esta história Queiram os deuses que eu nunca descreva o Lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.) (Lispector, 1995: 55) O uso dos parêntesis me parece uma forma de a autora se intrometer não

apenas na narrativa, mas no discurso de seu narrador. O trecho que diz

“(Quando penso que eu podia ter nascido ela – e por que não? – estremeço. E

parece-me covarde fuga o fato de eu não a ser, sinto culpa como disse num dos

títulos)” (Lispector, 1995: 54) é muito emblemático desse jogo de espelhos entre

a autora e o narrador, pois os limites entre um e outro são postos á prova.

Pergunto: quem dá títulos à narrativa? Rodrigo S. M. é narrador de primeira

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pessoa, personagem que se declara autor do relato, mas poderia ele dar título ao

texto? Ora, isso é função do autor real, daquela que mal se esconde entre os

parênteses quando se identificou por “(Na verdade Clarice Lispector)”. Então

quando ela diz “sinto culpa como disse num dos títulos” me parece que aí quem

fala é na verdade Clarice Lispector. Esse jogo de duplos entre o ficcional e o real

é o dado mais intrigante do prefácio e, sem dúvida nenhuma, prepara o leitor

para uma jornada na qual Clarice, sendo, não quer ser.

A dedicatória que a autora (ou o narrador) faz ao “antigo Schumann e sua

doce Clara” revela outra face dessa grande vontade de tomar distância do texto e

de apresentá-lo para seu público de uma forma irônica. É irônico por ser uma

dedicatória a mortos, a pessoas com as quais nunca se teve intimidade, já que é de

praxe nas dedicatórias o autor se lembrar dos seus entes mais queridos e íntimos.

Além de mortos, são todos músicos eruditos, mas a narrativa vai mostrar o

avesso desse gosto refinado.

Depois do momento da dedicatória, há um deslocamento de toda essa

linha de pensamento, pois acontece a passagem do dedicar para o “dedicar-me”.

E aí temos uma seqüência de elementos aos quais a autora dedica seu trabalho: a

seu vermelho sangue, a forças sobrenaturais como gnomos e anões, a sua antiga

pobreza, e finalmente a vários autores clássicos e especialmente àquilo que cada

um deles despertou nela. A sensibilidade musical faz pauta para o encontro das

fronteiras entre a concretude física, o sangue da vida e os ossos da morte com o

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imaginário, dos gnomos e anões. Tanto a interioridade física quanto o mundo

espiritual são atravessados pelas lembranças da pobreza e por um sentimento de

culpa que aparece logo no primeiro dos outros treze títulos da narrativa, “A culpa

é minha”.

Após o “dedicar-me”, surge um outro movimento, o de meditar, até

chegar o momento que é o de escrever. E o último parágrafo deste prefácio

remete a esse problema de identificação que chega também a ser um problema de

classe social que será profundamente investigado mais adiante. A autora diz que a

história acontece em estado de calamidade pública, mas em tecnicolor “para ter

algum luxo, por Deus, que eu também preciso” (Lispector, 1995: 22). A autoria,

que já de início se declara partida, está sob uma dupla pressão: de um choque de

identificação e de sua classe social no momento em que, mesmo sem se desvestir

dos luxos que vive e dos preconceitos que tem, tenta abrir espaço para a vida e a

história de uma singela, pobre e estúpida migrante nordestina.

Os títulos

Após A hora da estrela há uma lista de outros treze subtítulos entrecortados

pela conjunção “ou”. Após o quarto subtítulo, “Direito ao grito”, aparece o

nome da autora seguido pelo subtítulo, “Quanto ao futuro.”, que ironicamente

vem marcado por um ponto final. A maioria dos títulos de fato vai aparecer no

texto, eles tem um lugar na narrativa, de modo que, à medida que lemos o texto,

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somos remetidos para cada um deles. “O direito ao grito”, por exemplo, está

referido no trecho que copio a seguir:

O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Porque há o direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir esmola. (LISPECTOR, 1995: 27)

A estrutura narrativa

O discurso da narrativa de A hora da estrela é construído em pelo menos

duas instâncias: uma auto-reflexiva que investiga como e por que escrever a

história de Macabéa e a outra que é a própria história de Macabéa. De modo que

a narrativa articula duas histórias: uma é a história de como o autor escreve e a

outra é a história que o autor escreve. A primeira especula a forma e a motivação

do texto, a construção e a identidade das personagens e as tramas do enredo; a

segunda relata a simples história de Macabéa que é entrevista como uma das

muitas nordestinas que andam por aí com a “doida” palavra “felicidade” na boca.

Nos momentos iniciais da narrativa há toda uma discussão sobre quem

está escrevendo e como está escrevendo e por que não começa logo a história.

Várias vezes reitera o autor seu propósito em escrever de modo simples. Penso

que pelo fato de a história ser simples, não deseja o autor que seu discurso seja

complexo. De modo irônico, há uma espécie de rejeição de uma possível crítica

rápida que leia o romance como “modernoso”.

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Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora obrigado a usar palavras que vos sustentam. A história – determino com falso livre arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. (LISPECTOR, 1995: 26-7) A questão da autoria dupla volta de novo à cena neste trecho acima, pois

aquele que se autodenomina “autor da narrativa” também é um de seus

personagens, uma vez que, mesmo em narrativas de primeira pessoa, a ilusão

narrativa nos ensina que o autor e seu herói são sempre uma espécie de si mesmo

como outro, pois o si mesmo é sempre, no limite, inefável. O autor discute essa

questão – “A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida

mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só

palavra que a signifique.” (Lispector, 1995: 25) – e a teoria narrativa nos explica

que mesmo em romances autobiográficos, o eu narrado e o eu narrador não

coincidem. Entre eles há o tempo e o vento.

Clarice e Graciliano

Há um necessário diálogo com Graciliano Ramos nesse ponto da não

identificação autor-personagem. Graciliano criou uma terceira pessoa tão objetiva

que até parece sumir da narrativa, criando um enorme dissenso na sua recepção

crítica, e já surgiram análises literárias que classificavam a sua narração de

“onisciência múltipla seletiva” na qual, a partir de noções de Norman Friedman,

não há narrador e a história vem diretamente da mente das personagens.

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Na leitura que fiz de Vidas secas, no capítulo anterior, discuto o problema

da narração no romance que acredito, junto com Alfredo Bosi, ser feita em

terceira pessoa. Trata-se de uma terceira pessoa objetiva ao extremo, mas ainda

assim passível de ser diferenciada dos personagens. Clarice, por sua vez, cria uma

terceira pessoa imaginária, Rodrigo S. M., que escreve em primeira pessoa. A

clareza e a objetividade que a narrativa de Graciliano tem parece vir do propósito

de equilibrar forma e conteúdo, e este propósito é também partilhado por Clarice

em seu desejo de mudar seu jeito de escrever para conseguir escrever simples:

Será que eu enriqueceria este relato se usasse alguns difíceis termos técnicos? Mas aí é que está: esta história não tem nenhuma técnica, nem de estilo, ela é ao deus-dará. Eu que também não mancharia por nada deste mundo com palavras brilhantes e falsas uma vida parca como a da datilógrafa. (LISPECTOR, 1995: 52) Um outro elemento de relação com Vidas secas está no fato de que

Macabéa não se expressa por si só. Ela fala, mas é muda. O narrador chama a

atenção para sua falta de habilidade lingüística: “O seu diálogo era sempre oco.

Dava-se conta longinquamente de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E

“amor” ela não chamava de amor, chamava de não-sei-o-quê.”(LISPECTOR,

1995: 71). Como os retirantes de Vidas secas, então, Macabéa, depende de uma

voz que a faça existir.

O narrador de Vidas secas não tem ilusões hipócritas de tentar resolver o

problema dos retirantes com a narrativa. Longe disso, ele não vê redenção na

cultura letrada da qual, como seu personagem, desconfia. Graciliano consegue,

com sua obra, mostrar o avesso da sociedade. Ele põe em primeiro plano aquilo

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que estava escondido embaixo do tapete. Clarice faz o mesmo, especialmente

quando diz que quer “tornar nítido o que está quase apagado” (Lispector, 1995:

33). Não há em ambas as narrativas um sentimento de piedade pelos

personagens. Macabéa é alvo do amor e da raiva de Rodrigo. Como criação sua,

ele confessa ser o único a amá-la, mas por outro lado ele tem raiva da sua

incompetência para a vida, da sua falta de jeito em se arranjar, da sua falta de

energia para lutar, para gritar. A subalternidade de Macabéa dá nos nervos de

Rodrigo,

(Ela me incomoda tanto que fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva. Uma cólera de derrubar copos e pratos e quebrar vidraças. Como me vingar? Ou melhor, como me compensar? Já sei: amando meu cão que tem mais comida do que a moça. Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente.) (LISPECTOR, 1995: 41)

ao mesmo tempo em que ele a ama e a entende:

Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela. E só eu é que posso dizer assim: “que é que você me pede chorando que eu não lhe dê cantando”? Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro. Daí não se sentir infeliz. (LISPECTOR, 1995: 42)

Não é piedade o que Rodrigo sente por Macabéa. Ele a ama enquanto seu autor,

ele lhe dedica um carinho especial enquanto criação sua, mas ele sabe que o

destino dela não é bom. Justaponho um outro trecho no qual surge esse mesmo

tom irônico: “(O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano

alegre – será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro

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esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta

se torne real.)” (Lispector, 1995: 45)

Como em Vidas secas, também em A hora da estrela há momentos em que o

narrador está mais próximo do horizonte da personagem e há momentos de

distanciamento. No entanto, está claro, há uma diferença fundamental nos dois

romances quando pensamos no modo como se dá esse movimento de

aproximação/afastamento entre narrador e personagem.

Em A hora da estrela, há momentos em que a fala simples de Macabéa se

intromete no discurso do narrador por meio do discurso indireto livre. Mas,

como ela não fala muito, a passagem para sua voz é bem curta e sem muita

elaboração, de modo que o discurso é rapidamente retomado pelo narrador. A

seguir copio dois trechos, nos quais surpreendemos a vozinha sumida de

Macabéa:

Encontrar-se consigo própria era um bem que ela até então não conhecia. Acho que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada. (LISPECTOR, 1995: 58) E uma vez os dois [Macabéa e Olímpico] foram ao Jardim Zoológico, ela pagando a própria entrada. Teve muito espanto ao ver os bichos. Tinha medo e não os entendia: por que viviam? Mas quando viu a massa compacta, grossa, preta e roliça do rinoceronte que se movia em câmara lenta, teve tanto medo que se mijou toda. O rinoceronte lhe pareceu um erro de Deus, que me perdoe por favor, sim? Mas não pensara em Deus nenhum, era apenas um modo de. (LISPECTOR, 1995: 71-2) Há ainda outro ponto de contato com Vidas secas que é a questão da

subalternidade. Macabéa age por meio de uma noção de inferioridade e

subalternidade interiorizada. E algo como uma estranha mansidão que faz com

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que ela faça todas as interpretações contra si própria. Como vimos na citação

anterior, Olímpico não gastava dinheiro com Macabéa e, por ter medo do bicho,

ela urinou nas calças e pensou: “eu não mereço que ele me pague nada porque

me mijei” (Lispector, 1995: 72).

Essa sua subalternidade vinha desde menina quando apanhava da tia e não

perguntava o porquê: “a menina não perguntava porque era sempre castigada

mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida”

(Lispector, 1995: 92). Em outra parte da narrativa, quando está na casa da

Madama Carlota, Macabéa vê Madama devorar chocolates, mas “não cobiçou o

bombom pois aprendera que as coisas são dos outros” (Lispector, 1995: 92).

Essa subalternidade está internalizada em Macabéa como em Fabiano. Na

seção sobre Vidas secas usei uma expressão de José Américo de Almeida em A

bagaceira para definir a situação: servilismo hereditário. É mesmo sem refletir

sobre a ação que a personagem a executa. Está claro no modo como Macabéa

pede desculpas ao ser ofendida. Ficar com raiva, exercer seu direito ao grito, seria

o esperado numa situação de ofensa, mas Macabéa desculpa-se. Existe um

pressuposto básico de que a culpa é sua. E aqui estamos em pleno diálogo com o

subtítulo, “a culpa é minha”. Primeiro da lista, o subtítulo parece dar conta da

culpa que a autora sente e confessa quando diante da nordestina, mas pode-se

abrir espaço para a culpa destruidora da vontade de ação de Macabéa.

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Clarice-Euclides-Cabral

Além do diálogo com Graciliano, há ainda uma referência a Euclides da

Cunha e alguns índices que remetem a João Cabral de Melo Neto. Uma passagem

da descrição da personalidade de Olímpico termina com a afirmativa que “o

sertanejo é antes de tudo um paciente” (Lispector, 1995: 83) remetendo

diretamente à famosa frase de Euclides. A troca de “forte” por “paciente”, no

entanto, merece um pouco mais de atenção.

Olímpico, ao contrário de Macabéa – e seu nome já indica seu caráter –

tem a força e vontade para subir na vida. Sendo um operário, se considera

metalúrgico, já matou, já roubou, está disposto a fazer tudo que o leve a subir na

escala social. E Olímpico vai um dia se tornar deputado e exigir que lhe chamem

de doutor. Ele troca Macabéa por Glória sem remorso algum. Glória, loira e

gorda, tinha pai açougueiro, o que já lhe dava alguma coisa na vida, além de

pertencer ao ambicionado sul do país, era carioca da gema:

No mundo de Glória por exemplo, ele ia se locupletar, o frágil machinho. Deixaria enfim de ser o que sempre fora e que escondia até de si mesmo por vergonha de tal fraqueza: é que desde menino na verdade não passava de um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. O sertanejo é antes de tudo um paciente. Eu o perdôo. (LISPECTOR, 1995: 83)

O caráter de Olímpico tem uma força que sangra, uma vontade incrível de vencer

não importa como. Mas, paciência? Paciência, por não ter outro recurso senão o

de esperar chegar até onde querem seus necessariamente lentos passos. Talvez o

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que esteja aí entendido é que, para o sertanejo, tudo é difícil e os benefícios, se

chegam, chegam muito lentamente.

Macabéa, ao contrário de Olímpico, não achava que precisava vencer na

vida. Ela aceitava o que lhe dizia a Rádio Relógio, que as pessoas tinham que ser

felizes, então ela era feliz. Enquanto Olímpico tinha certeza de que venceria na

vida, Macabéa não se preocupava com seu futuro: “ter futuro era um luxo.

Ouvira na Rádio Relógio que havia sete bilhões de pessoas no mundo. Ela se

sentia perdida. Mas com a tendência que tinha para ser feliz logo se consolou:

havia sete bilhões de pessoas para ajudá-la.” (Lispector, 1995:75)

As referências a João Cabral estão mais ligadas à vontade que o narrador

exterioriza de querer o concreto e o simples, de querer os fatos, “fatos são pedras

duras” (Lispector, 1995: 30). Nesse sentido, há uma relação com a obra de Cabral

que é o coroamento da literatura como coisa concreta, desvestida de plumas e do

cavouco da interioridade. Mas esse caminho para o concreto em Clarice é um

caminho, é um processo que se pensa e pensamento que acompanhamos,

enquanto, em Cabral já é um ponto de partida. No trecho que copio a seguir, há

uma reflexão sobre a sedução que a forma concreta exerce sobre essa nova

maneira de escrever, que o narrador busca, comparada a seu modo antigo de

escrever. A metáfora usada é a do pintor que sai da abstração para o figurativo:

Pergunto-me também como é que eu vou cair de quatro em fatos e fatos. É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. Também quero o figurativo assim como o pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o

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fazia por gosto, e não por não saber desenhar. Para desenhar a moça tenho que me domar e para poder captar sua alma tenho que me alimentar frugalmente de frutas e beber vinho branco gelado pois faz calor neste cubículo onde me tranquei e de onde tenho a veleidade de querer ver o mundo... Vejo agora que esqueci de dizer que por enquanto nada leio para não contaminar com luxos a simplicidade de minha linguagem. (Lispector, 1995: 37)

Os índices da classe social à qual pertence o narrador dão a exata noção da

dificuldade de identificação e do esforço em alterar uma forma de escrever que

passava longe da simplicidade que desta vez se quer alcançar.

Classe social e pensamento

A investigação da classe social é um movimento presente na reflexão que o

narrador faz sobre seu processo de desenvolvimento do tema: a vida daquela

nordestina. A primeira reflexão identifica o seu próprio lugar social, o narrador

do romance:

E eis que fiquei receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta é: como escrevo? Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. E só minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim. (Lispector, 1995: 33)

O narrador declara ter dinheiro e, na citação anterior, já o vimos bebendo

vinho branco gelado com frutas. Sabemos também que não tem rotina de

assalariado, pois não trabalha. Está na posição de escritor que vive de seu ofício e

que poderíamos supor, de classe média. Mas ele afirma não ter classe social, pois

se sente marginalizado. Ora, o modo como ele se sente em relação a sua classe

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social não o retira dela, está claro. Senão como explicar o tempo livre, o vinho e a

cozinheira que joga fora seus rascunhos? Há aí uma possível defesa em relação ao

velho perigo que o escritor enfrenta quando, a partir de uma classe social

superior, se coloca a escrever sobre os pobres, verdadeiramente marginalizados,

com a boa intenção de dar-lhes voz. O narrador foge desta visão. Assim como

foge do lugar de autor engajado: “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei

o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo. Escrevo

portanto não por causa da nordestina mas por motivo grave de “força maior”,

como se diz nos requerimentos oficiais, por “força de lei”” (Lispector, 1995: 32).

Nem o tema, nem a denúncia – “há poucos fatos a narrar e eu mesmo não

sei ainda o que estou denunciando” (Lispector, 1995: 43) – são motivos da

escrita. A escrita está acima dos temas, digamos assim, a escrita na qual a forma

faz o conteúdo. Mas ainda no que diz respeito à classe social, vejamos que o

narrador identifica a classe social da personagem como sendo bem pobre pois, às

vezes, à noite, com fome, mastigava papel bem mastigadinho, mas ainda assim,

“a moça que pelo menos comida não mendigava, havia toda uma subclasse de

gente mais perdida e com fome” (Lispector, 1995: 45). Os piores que ela estão já

em subclasse, portanto é certo afirmar que esta nordestina está no último andar

da escala social.

Num dos “retratos” que o narrador tira de Macabéa, ele mostra como ela

por um instante se reconhece numa classe e como seu pensamento, guiado pela

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subalternidade interiorizada, a leva ao pensamento apequenado da comodidade

da inércia:

Mas um dia viu algo que por um leve instante cobiçou: um livro que Seu Raimundo, dado a literatura, deixara sobre a mesa. O título era “Humilhados e Ofendidos”. Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou! Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? (Lispector, 1995: 56) O pensamento de Macabéa é no mais das vezes levado por duas

referências básicas: a “cultura” da Rádio Relógio e ditos populares ou frases

feitas, como vemos na citação anterior, “as coisas são assim mesmo”. As

informações que a Rádio dá e que Macabéa decora simplesmente não lhe servem,

pois não são processadas. Macabéa não entende o sentido de palavras

importantes como “cultura”, “eletrônico” e “álgebra”, esta última ela nem

pronunciava direito, dizia “élgebra”. A falta da educação formal lhe impede de

aprender o mundo.

Os ditos populares como “quem cai não passa do chão” (p. 48), “o que é

bom devia ser proibido” (p. 50), “quem espera sempre alcança” (p. 53) ponteiam

a forma de pensar de Macabéa, engendrando uma interpretação dos eventos que

é sempre contra ela ou que apenas cria uma ilusão consoladora.

Uma vez definidos os lugares sociais de narrador e personagem, o foco

agora recai sobre quem lê:

(Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si mesmo para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo

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para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. (Lispector, 1995: 46)

E nesse ponto a visão que o narrador tem do leitor parece bem mais acurada do

que aquela que tem em relação a si mesmo, quando declara não ter classe social.

Nessa passagem, Rodrigo S. M. assume o papel de “válvula de escape” da

massacrada classe média. Há o pressuposto de que o leitor é da classe média

quando diz “vossa válvula de escape”, ao mesmo tempo que também se assume

como tal. Sabe que seu texto, embora trate do pobre, nunca será lido pelo pobre.

Talvez seja por isso que pensa ser visto como monstro pela classe alta, pois trata

de modo não condescendente o tema, e também, por isso, talvez incomode ou

desestabilize a classe média na medida em que a esclarece.

Nossa dor de dente

O narrador, mais uma voz que se identifica como na verdade Clarice

Lispector, e ainda, em parcas intromissões, Macabéa, se engalfinham na disputa

pela voz no discurso de A hora da estrela. Podemos afirmar que Rodrigo S. M.,

sem dúvida, domina a narração, mas não o faz de modo pacífico. As intromissões

constantes de uma voz que aparece, no mais das vezes, entre parêntesis e as

pequenas e escassas intromissões de Macabéa desestabilizam a constância da voz

de Rodrigo. Muito embora essa multiplicidade seja reconhecida pelo próprio

narrador, “a dor de dentes que perpassa essa história deu uma fisgada em plena

boca nossa” (Lispector: 1995: 25).

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Clarice escreve A hora da Estrela já no fim da sua vida e como escritora

reconhecida como uma das maiores. Ela se propõe uma matéria com a qual não

tinha intimidade numa procura de um modo novo de escrever sobre um tema

que expressa um problema social e assim, ao longo do discurso da narrativa, ela

discute suas escolhas, sua produção, suas personagens e a classe social de todos

os envolvidos: autor, personagens e leitor.

Clarice sabe que a escolha do tema a leva para um terreno perigoso no qual

a mistura de política e crítica social à matéria do romance podem desvirtuar sua já

reconhecida dicção literária. No entanto, ela cria um discurso em que os deslizes

e os perigos são discutidos e ultrapassados. A autora nega a possibilidade de

rotularem seu texto como literatura engajada, embora saiba que realiza uma

denúncia, mas afirma que não sabe bem o que está denunciando nem sabe a

quem acusar. Além disso, não há, em sua obra, ilusões de transformação da

sociedade. Há inclusive um movimento de desprezo pelo que foi produzido e o

alcance que a denúncia poderia ter é tratado com ironias, como já vimos na

análise do prefácio.

A última palavra do texto é um “Sim” que nos remete invariavelmente

para o início quando lemos “Tudo no mundo começou com um sim”. Nessa

forma estamos dentro de um círculo vicioso que, de maneira isomórfica, nos

remete para o destino de milhares de nordestinos que migram para o sul do país

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em modo contínuo como estratégia para melhorar a vida, e encontram ou a

morte, como Macabéa, ou a glória, como Olímpico.

As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene

Felinto

Ariano Suassuna, em relato sobre um encontro que teve com Raduan

Nassar e Marilene Felinto em sua casa em 2000, conta que de Marilene já havia

escutado numa feira do livro brasileiro, em Paris, “belas, preocupadas e

pungentes palavras” (Suassuna, 2000: A2). Marilene afirmava naquela

oportunidade que escritores como Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice

Lispector:

escreviam a partir da experiência vivida, com verdade e força dramática (...). Hoje, pelo contrário, os escritores parecem que flanam, bóiam numa onda de diletantismo que relega a literatura a um hobby das classes médias altas do país. É enquanto artistas que os escritores brasileiros pecam. Como a narrativa deles não expressa uma pessoa, não expressa, portanto, nenhuma paisagem humana. São sombras que escrevem sobre sombras para outras sombras. A literatura brasileira de hoje é a literatura da verborragia e do show – está atrelada à televisão, à música popular e à imprensa. É uma literatura sem leitor, sem público (...). É uma literatura sem crítica – a que existe se encolhe sobre si mesma nas universidades de elite, escreve sobre si mesma, revela total desinteresse pela realidade à sua volta. (Suassuna, 2000: A2)

Nesse trecho, bastante polêmico, como quase tudo que Marilene publicou até agora, há um caminho para pensarmos o modo como a própria autora localiza sua produção na série literária brasileira. Como a de Antonio Torres, a prosa de Marilene está profundamente comprometida com a autobiografia, especialmente pela questão da migração, da identidade partida entre a infância no nordeste e a luta para “vencer” no sul. Em outro texto intitulado “Geração de Lispector produz literatura

superficial”, Felinto faz uma leitura dura de obras de Lygia Fagundes Telles, Lya

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Luft e Nélida Piñon (Felinto: 1997: 4-3). Para ela, a literatura dessas autoras é

rotineira, bem comportada e fácil de ler. Para ela, falta “vitalidade, perplexidade, a

reinvenção mais ou menos radical de técnicas ou recursos da ficção que

atribuíssem uma marca inconfundível ao estilo dessas escritoras ... A impressão

que se tem é que falta vida nesses textos, verdade, e não o realismo a que eles

pretendem se opor” (Felinto: 1997: 4-3). Essa análise feita pelo viés do que a

essas autoras falta parece apontar para o que há em sua literatura. Ela

possivelmente identifica, nesse artigo, o inverso de sua produção literária. De

onde se tira uma primeira idéia: a literatura de Felinto é segundo ela mesma uma

que guarda seu valor na vida, na experiência vivida e na reinvenção de técnicas

ficcionais.

O problema da oposição verdade-ficção, brevemente discutido acerca de

A hora da estrela, não está no âmbito da discussão de As mulheres de Tijucopapo:

limito-me, portanto, a anotar a questão como uma posição pessoal da autora.

Está claro que as opiniões do autor e a análise de sua obra são searas

completamente independentes.

A questão que paira sobre essa discussão é clássica na teoria da literatura:

questionar se textos de memória e autobiográficos são romance ou não. Sabemos

que a literatura não é a verdade, tampouco a não-verdade, a literatura é o espaço

no qual a verdade é posta em jogo. O enunciado fictício é recebido exatamente

pelo que é – nem realidade nem mentira – porque o escritor e o leitor juntos

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combinam suspender as regras normais da comunicação. Quando lemos, somos

regidos pelo pacto ficcional. Entramos numa realidade paralela que existe ali no

ato da leitura.

O texto marcado pela memória coloca em xeque este pacto, pois se

apresenta com “pé” na realidade. Acontece que a História nova, especialmente na

segunda metade do século XX, já tornou bem aceita a idéia de que a história,

assim como o romance, é gerada a partir de um ponto de vista que recorta, junta

e organiza os eventos de acordo com uma lógica que rege a economia interna do

texto. O ponto de vista está sempre atrelado a uma visão de mundo que tem seus

comprometimentos sociais, econômicos e políticos.

Diante disso, se já é corrente a idéia de que a história não é mero retrato

objetivo da realidade – longe disso ela está profundamente marcada pela visão de

mundo de cada autor em cada texto – a autobiografia ou o texto, como o de

Marilene Felinto e Antonio Torres, fincado na memória apresenta uma variação e

não mais um problema para sua identificação como romance.

Marilene Felinto discute seu modo de produção literário pelo viés de sua

condição de produção. Nesse sentido, entra em jogo uma discussão mais

contemporânea que tenta pensar as relações entre a literatura e os modos de

comunicação de massa como a TV e a Internet.

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Em um texto, publicado em 1993, “Esc transferir Salvar-Tudo”, Felinto já

endereça esse nosso pão-de-cada-dia, o computador. Ela escreve que TV,

computador e telefone eram atores de sua última influência literária:

... no meu quarto pequeno de noite ... meu computador ligado olhando para meu televisor ligado, um casualmente de frente para o outro, o televisor propositalmente estacionado na tela azul de um canal que não transmitisse imagens nem sons enquanto eu falava ao telefone ... (Felinto, 1993: 6-7)

A virtualidade era o local da comunicação. O isolamento e a relação com

máquinas apontam para esse caminho que Felinto defende como um retorno à

vida, às coisas simples da vida. Não é de se estranhar que cada vez mais as

pessoas utilizem a Internet como uma estratégia para escapar da solidão exibindo

sua vida pessoal, suas fotos, seus gostos. O Orkut e o Messenger, com todo o

potencial de invenção que a escrita permite, estão dentro desse movimento de

escape da solidão, ainda que um tipo novo de comunicação aconteça na Internet.

O orkut é um caso interessante porque naquele espaço as pessoas se

integram a comunidades virtuais que eventualmente podem fazer acontecer

amizades também virtuais. A circulação de fotoblogs também é outro índice

interessante dessa satisfação do desejo de pertencimento. Há toda uma estilística

para as fotos de apresentação pessoal, geralmente borradas ou privilegiando

partes do corpo; elas raramente são claras e óbvias. Fotos do dia-a-dia e de

eventos especiais como viagens e festas também circulam ad-nauseam por todos

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esses ambientes virtuais. A Internet funciona como um meio de transformação

da vida cotidiana em espetáculo nessa sociedade de espetáculo que vivemos hoje.

Marilene Felinto deixa clara sua posição de incorformismo frente a essa

questão virtual. Diante de autoras recentes profundamente mergulhadas na

mudez dos ambientes virtuais (barulho de teclas), na surdez da música pancadona

trance, techno, etc, e na cegueira das vitrines dos shoppings como Clarah Averbuck

e Simone Campos, Marilene Felinto representa ainda uma força de combate à

aceitação do mundo virtual encaminhada por essas autoras. Veja-se como no

trecho abaixo o melhor momento não se dá frente à tela, mas depois de largar o

computador e, além disso, como sua literatura está profundamente marcada não

pela virtualidade, mas pela vida vivida:

O melhor lugar é ... quando já se terminou de escrever, quando se pode voltar ao mundo normal das coisas e suas formas, e suas pontas e suas entranhas e sua consistência viva, tão viva quanto as fibras de uma manga-espada que se tirou do pé, se amolengou, abriu e chupou fibra por fibra doce. A vida. Minha literatura é mais influenciada por coisas assim como uma manga-espada do que por toda a literatura francesa. (Felinto, 1993: 7) Marilene Felinto nasce em Recife em 1957 e com onze anos se muda com a família para São Paulo onde, mais tarde, cursa a graduação em Letras na USP. A mudança de Recife para São Paulo produz uma marca na sua visão de mundo e na língua, ou, como ela mesma acredita (Felinto, 2005), um trauma, que reverbera no contexto de sua produção literária: “Percebi que estava no meu país mas que não falava a mesma língua, e na escola eu e meus irmãos nos sentávamos num muro passando horas a treinar o sotaque de São Paulo até perdermos completamente o do nordeste” (Felinto, 2005). A diferenciação pela língua remete à condição do estrangeiro, forte marca

da literatura de Marilene. E é a partir do reconhecimento desta condição que

Marilene se identifica como escritora: “meu caminho ... é de solidão maior ainda

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no continente deste país gigante, onde eu não sou nada além de uma eterna

imigrante em busca de uma língua própria” (Felinto, 2005).

Marilene Felinto é também tradutora e conhecedora de autores de

expressão inglesa importantes como Virginia Woolf, Edgar Allan Poe, Bernard

Shaw, Bukowski e conhecedora também da literatura russa. Note que as epígrafes

de As mulheres de Tijucopapo reúnem Walt Whitman e Graciliano Ramos. Na

década de 1980, começa a publicar ficção. As mulheres de Tijucopapo (1982),

traduzido para o inglês pela Editora da Universidade de Nebraska, é seu primeiro

romance, escrito com apenas 22 anos, ganhador do Prêmio da União Brasileira

dos Escritores e do Prêmio Jabuti. O lago encantado de Grogonzo sai em 1987. Em

1991, publica o livro de contos Postcard (1991). E, em 2002, Marilene publica

Obsceno abandono: amor e perda.

No início da década de 1990 foi convidada para escrever na Folha de São

Paulo, onde começou resenhando, para a Revista Folha, literatura brasileira e

estrangeira, e também fez crítica de cinema, teatro e televisão. Escreveu na

Folhinha textos destinados às crianças e sobre literatura infantil. Depois migrou

para o “Caderno Cotidiano” no qual escreveu diariamente até 2001 quando

passou a ser colaboradora para a revista Caros Amigos onde ainda escreve.

As crônicas no “Caderno Cotidiano” provocaram enorme rebuliço.

Algumas deram até em processo, mas grande parte da repercussão aprova sua

originalidade e coragem no trato com determinados temas espinhosos. Enfim,

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Marilene escreve diferentes tipos de textos em diferentes tons sobre os mais

variados assuntos com um estilo e uma visão desestabilizadora, questionadora e

polêmica, numa voz dissonante e afiada.

Da leitura que fiz de muitos desses textos da FSP (reunidos no livro

publicado pela Record, em 2000, intitulado Jornalisticamente incorreto), o que mais

me impressionou foram os sentimentos fortes que ela despertava nos leitores. Na

seção “Opinião”, li louvações e xingamentos em sua detração e em sua defesa.

As mulheres de Tijucopapo e a crítica

E as mulheres guerreiras de Tejucopapo existiram. Em 1646, o arraial de

Tejucopapo, a 60 km do Recife, viveu a Batalha das Trincheiras ou o que hoje é

conhecido como “a epopéia das heroínas de Tejucopapo”. Movidos pela fome,

invasores holandeses tentaram se apoderar do arraial, mas foram duramente

combatidos por todos do lugarejo inclusive as mulheres, que utilizaram tudo o

que podiam na luta, até água fervente, na falta de maior número de armas de

fogo. Os holandeses estavam sofrendo de escorbuto e queriam os frutos dos

cajueiros, conhecidos como remédios para a doença. Não conseguiram o que

vieram pegar.

Em 2001, quando a população do lugar organizada em um Clube de mães

da vila de Tejucopapo encenava a epopéia das guerreiras já há oito anos, Marcílio

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Brandão captou imagens que usou para compor um curta metragem sobre essas

mulheres.

É interessante notar que o romance As mulheres de Tijucopapo, de Marilene

Felinto, teve sua primeira publicação em 1982 com prefácio de Marilena Chauí.

Dez anos depois, foi publicada a segunda edição do livro e pouco menos de um

ano depois a montagem teatral, As heroínas de Tejucopapo, começa a ser anualmente

realizada em Goiana, antiga Tejucopapo.

A repercussão dessa obra de Marilene Felinto acontece de um modo muito

peculiar. Há uma recepção no âmbito dos cursos de pós-graduação que

privilegiam a relação Literatura e Mulher, e uma grande repercussão no meio

jornalístico no qual é conhecida por sua atuação como cronista. Há ainda uma

outra recepção no meio acadêmico americano que acontece a partir de 1994,

quando o romance é traduzido para o inglês e publicado pela Universidade do

Nebrasca.

Em 1995, João Camillo Penna estudou a obra de Marilene Felinto, a partir

da Universidade de Washington, publicando o ensaio “Marilene Felinto e a

diferença” na Revista de crítica literaria latinoamericana (Penna, 1995: 213-53). Num

texto vertical e erudito, Camillo apresenta a tese de que a obra de Marilene

Felinto surge na literatura brasileira como uma obra que detona por dentro o

processo de ocultação das diferenças produzido pelo sistema unificador que

configura uma literatura brasileira como múltipla, mas que tem suas diferenças

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absorvidas e traídas nesse processo. Para Camillo, a obra de Marilene torna

inviável a formação de tendência conciliatória do sistema intelectual brasileiro.

Fazendo uma leitura interessada deste ensaio, chamo a atenção para o que

o autor afirma em relação à questão da inserção da obra de Marilene no veio

Regionalista. Camillo parte da idéia de que o romance regionalista expunha uma

contradição interna entre escritor e massa, contradição que não mais existe na

obra de Marilene, onde, segundo ele, a massa ocupa o lugar do sujeito.

Note-se como estamos longe da síntese representativa do romance do Norte, defendida como solução integrativa do problema social brasileiro. A diferença interna ao romance regionalista entre escritor e massa, torna-se aqui diferença interna ao próprio sujeito, ele próprio sendo escritor e massa, diferença, portanto, não integrada, não assimilada, não dialetizável em uma síntese qualquer. (Penna, 1995: 243)

Esse argumento usado por Camillo de que o romance regionalista expõe a

fratura entre escritor e massa tem a ver com a idéia já discutida nesta pesquisa de

que o escritor quer dar visibilidade a um tema que está aí, mas que ninguém quer

tocar, porque escritores são pessoas da elite e o tema da migração é um tema da

massa excluída. Isso vale especialmente para Vidas secas e A hora da estrela.

Nesse sentido, há uma discussão mais nomeada no romance de Clarice,

mas também presente no texto de Graciliano sobre a função social do escritor. A

posição de Graciliano parece ser a tentativa de se colocar ao lado dessa massa

excluída sem, no entanto, falar por ela, mas falando dela a partir de seu ponto de

vista informado pelo enfrentamento honesto dos pontos de contato e de

afastamento entre as duas diferentes visões de mundo. Clarice Lispector, por sua

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vez, encena a luta pelo poder no espaço do discurso da narrativa dando voz e vez

a um narrador (para evitar choramingos feminos), a personagem e a si própria

como autora que reclama sua voz. Em determinados momentos é muito difícil

decidir até onde vai a autora e onde começa o narrador.

Nesse sentido, esses dois romances encenam a fratura elite-massa já que os

dois são narrativas de terceira pessoa que opõem o narrador (elite) ao

personagem (massa). O argumento que Camillo usa para entender As mulheres de

Tijucopapo pode ser estendido para os dois romances de Antonio Torres,

principalmente, Essa terra, pois nestes textos o narrador não é pessoa da elite, mas

da massa. Ou melhor, como diz Camillo, essa diferença se torna estrutural do

sujeito narrador, ao mesmo tempo elite e massa.

Em linha completamente diferente, Ana Cristina Cesar resenhou As

mulheres de Tijucopapo para o Jornal Leia Livros em setembro de 1982 (Cesar, 1999),

tocando na questão do excesso do feminino frente ao menos do masculino, a

partir da seguinte passagem do romance de Felinto: “as mulheres são um pouco

doidas e os homens um pouco menos” (Cesar, 1999: 250). Nessa breve resenha

intitulada “Excesso inquietante”, Ana C. identifica o texto como “livro de

mulher” que, em permanente estado de diálogo (falando sempre para alguém),

entra em contato com muito sentimento bruto. A luta, segundo Ana C, travada

no livro é contra esse “a-mais” feminino, esse excesso com que, com muita garra

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Marilene se atraca tentando se desviar do turvo, da indefinição e da possibilidade

de não acabar-se, de não definir que esse “a-mais” a lança.

Ana C. copia do texto a seguinte frase “porque eu posso no máximo seguir

Lampião. Por uma causa justa” (Cesar, 1999: 250) e questiona essa que seria a

saída para a loucura feminina: fincar pé no masculino. Ana C. faz uma análise que

está profundamente marcada pelas discussões de gênero que fervilhavam no

momento de sua escrita. Naquele contexto combativo era impossível aceitar a

idéia de que a salvação estaria em seguir um homem, mesmo que por uma causa

justa.

Considerando a idéia, já tão sedimentada pela crítica feminista, de que a

construção social da mulher foi sempre subordinada ao homem, numa sociedade

patriarcal, e que seus papéis foram determinados a partir de uma diferenciação

biológica – a mãe que zela do lar e o pai que luta lá fora pelo sustento da família

– penso ser possível afirmar que, do ponto de vista de hoje, essa crítica feminista

já está ultrapassada.

O mundo de hoje é regido pela convivência das mais diversas matrizes

identitárias. Ainda existem muitas lutas para serem ganhas pelas minorias, mas

sua presença na sociedade já não é tão difícil como há vinte ou trinta anos atrás.

No caso de Marilene Felinto, a situação de migração de uma região menos

desenvolvida economicamente, como o Nordeste, para o “sul maravilha” causa

naturalmente um choque de cultura inquestionável. A convivência de modos de

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vida antigos e novos é especialmente visível nesse contexto. E essa convivência

entre o antigo e o novo, esse choque entre um feminino tradicional e o feminino

que está lutando contra a tradição e avançando barreiras, está presente no texto

de Marilene.

A casa de paredes brancas é um elemento recorrente na narrativa. Essa

imagem da casinha branca está ligada à representação da família tradicional que

ora é rejeitada ora é almejada. Essa contradição em relação ao casamento está

ligada ao fato de Rísia ter sofrido muito com a forma do casamento de seus pais,

o que a leva a rejeitar a situação por não querer repetí-la, mas por outro lado ela

tem o sonho do marido e do filho na casinha branca:

Talvez esteja indo para me casar. Porque esse poder que tenho de matar me apavora. Só um homem, um filho e uma casinha branca poderão, senão extinguir, pelo menos domar esse poder em mim. .... Serei sempre uma voluntária à guerra até que se mate em mim esse poder meu para qualquer coisa do resto que não seja uma mulher casada numa casinha branca. (FELINTO, 1992: 16)

Essa citação sozinha já dá um bom sinal das contradições em que é lançado o

tema do casamento. Existe, por um lado, a idéia de que a situação do casamento

é capaz de pôr ordem onde não há, e, por outro, a idéia de que há uma tendência

poderosa (“poder meu”) da personagem para tudo o que esteja na margem do

casamento, espécie de liberdade perigosa.

A questão do feminino é toda perpassada por contradições. Um outro

problema é a questão da sedução. Quando já próximo do final da narrativa, Rísia

decide que precisa de um homem, ela usa a intrigante expressão, “mas hoje meu

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corpo precisou de um homem. ... eu queria ser seduzida” (Felinto, 1992: 110). O

ponto de vista da narradora é a de que é o homem o sujeito no ato da sedução.

Eis aí uma visão, pode-se dizer sem susto, bem antiga e tradicional da conquista

amorosa. Ao mesmo tempo em que ela rejeita a possibilidade da casinha branca,

sonha com ela. Ao mesmo tempo em que afirma que o homem é sempre de

menos, é dele que depende para ser seduzida. E esse homem é Lampião.

Outro índice de visão do feminino tradicional é colocar o homem na

posição de comando. Porque, embora as mulheres de Tijucopapo tenham

começado a revolução, quem está na liderança é Lampião. E Rísia será a mulher

de Lampião.

As imagens do feminino em As mulheres de Tijucopapo são contraditórias. A

coexistência de uma visão mais tradicional e de uma mais questionadora do

feminino é o retrato perfeito da consciência de uma mulher educada

tradicionalmente, mas sensível aos seus desejos e ao seu tempo. Sabe-se lá até

que ponto é possível lutar contra a tradição sem esgarçar-se, sem perder o

sentimento do que é certo ou errado. Porque a mulher queimou o soutien, mas

não consta que o homem tenha queimado a cueca. Uma coisa é a coexistência

mais pacífica e socialmente aceita de várias posições identitárias, outra coisa é

levar a discussão para o limite no qual só o que antes era margem agora é o veio.

Lampião é um símbolo de luta contra as instituições opressoras. Penso que

a inserção de Lampião na revolução contra São Paulo tem a ver com essa

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primeira idéia que vem à cabeça quando esse nome é pronunciado. É a revolta, a

luta armada contra instituições que não solucionam os problemas da exclusão

social

Mas uma questão forte no livro, como bem apontou Ana C., é o horror à

margem. E talvez seja por causa deste horror que a família tradicional aparece no

ambiente do sonho. E um sonho artificial, escolhido e inventado como uma idéia

capaz de consolar: “vou ter que sonhar agora. Aproxima-se o meio dia e vou

precisar sonhar para agüentar que não terei a voz-fala dos meus amigos” (Felinto,

1992: 104).

No sonho, Rísia cria um espaço a salvo do mundo cão, de safadezas e

traições, vivenciado por Rísia na sua família. No sonho, Jonas corta madeira para

o berço do filho deles. Há jambos no alguidar e rosas para agüar. Do jardim, os

jasmineiros e as outras flores perfumam todo o ambiente, as colinas são verde

escuras, a vegetação da mata é exuberante de cheiros e formas. Enfim, o sonho

reúne todos os símbolos da felicidade feminina ideal: o verdadeiro amor, uma

família, o filho.

O medo da margem a coloca voltada para o lado do tradicional, daquelas

condutas aceitas por todos, embora ela se sinta quebrada por essas cobranças que

ela mesma se impõe. Esse medo da margem leva a uma queda em preconceitos:

E (vou até falar baixo) esse é o mesmíssimo poder que me torna capaz de virar uma prostituta, uma homossexual, uma louca, uma bêbada, uma bandida, uma marginal. E,

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não, eu não sou de agüentar a margem da vida. Na margem sou fio que se quebra. Na margem só ficam os fortes. Sou fraca, fina e frágil. (FELINTO, 1992: 16)

A personagem, que se identifica como neta de avó negra e avô índio, preta de

cabelo duro, tem medo da margem. Rísia discute a prostituição, a

homossexualidade e em outras repetidas vezes a classe social. É recorrente em

sua fala o ódio por ter sido pobre, gaga e quase muda.

Narrativa trajetória

Ana C. faz um resumo maravilhoso dos pontos fortes de As mulheres de

Tijucipapo no que se refere à técnica:

Tudo é turvo neste excesso, diz a autora. Com muita garra Marilene tem a coragem de escrever disto que é turvo. Mas sem hermetismo algum. O resultado é uma narrativa em ziguezague, construída toda em desníveis, numa dicção muito oral, atravessada de balbucios, repetições, interrupções, associações súbitas, falas de tonalidade infantil. (Cesar, 1999: 249)

Talvez a grande novidade da obra de Marilene Felinto seja sua incomum dicção.

Rísia, a protagonista, tem momentos de gagueira, de mudez, porque houve um

momento de sua vida em que lhe roubaram a própria fala – sua língua

pernambucana teve de ser suprimida por outra, a paulista. Essa supressão lhe

deixou fissuras que aparecem na sua forma de expressão lingüística, toda

atravessada, como bem marcou Ana C., de repetições e interrupções que são

balanceadas com momentos de desabafos irados e cheios de ressentimentos.

Esse isomorfismo entre as condições de vida da personagem e o modo de

construção do discurso na narrativa é muito bem elaborado.

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A narrativa é em primeira pessoa e tem constantemente a perspectiva de

um diálogo, são falas reprimidas, falas que a personagem queria pronunciar ou

para a mãe, ou para Nema, ou para Luciana e assim vai. É o que ficou engasgado

e oprimido, que através da escrita ganha expressão. Sai do jeito que tem de sair:

com raiva, rancor e ódio.

A dicção da narradora é toda construída por uma forte oralidade que tem

muito a ver com essa questão lingüística que está mesmo no modo de construção

da narrativa. Já mencionamos o aspecto da gagueira que pode estar ligado aos

processos de repetições de trechos inteiros. A oralidade tem fundo no tom de

diálogo, na forma dessa prometida carta que nunca é escrita, mas que não sai do

horizonte de perspectiva da narradora:

Mas que eu odiei meu pai, odiei. Isso sim. Até o ponto de incorporar esse ódio todo que me atrapalha. Porque ódio, menino, ódio é fogo. (Felinto, 1992: 21) Acho que ainda posso amar. Ainda posso amar. Não quero morrer, Nema. Peiote, Nema. Nemaaaaaaaaaa... (Felinto, 1992: 49) Mamãe, eu só estava esperando chegar para passar a carta para o inglês e enviar. Mamãe, essa carta, uma carta para Luciana? Eu não me arrependi. (Felinto, 1992: 135)

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Em As mulheres de Tijucopapo, a narrativa é uma trajetória, ou seria melhor

dizer que a trajetória é a narrativa. Isso porque há a busca da origem no barro, na

lama da lendária Tijucopapo, o lugar das mulheres que não eram sua mãe, e

também a invenção de uma origem que em tudo seja contrária àquela sua.

Rísia, a personagem principal, foge de São Paulo para buscar Tijucopapo, e

caminha sonhando pela mata, um caminho de pensamentos, um caminho que é a

escrita do romance (Felinto, 1992: 57). Rísia repete que tudo parece estar

acontecendo num intervalo de fantasia e sonho e, quanto à revolução, Rísia

sempre se refere a ela como pintada a giz de cera. Nas duas passagens, que

transcrevo abaixo, há fortes indícios daquilo que chamei de trajeto-narrativa:

Eu não tenho mais esse começo que acho que tenho. Meu começo se perdeu serras lá para trás, não vou iniciar ninguém em nada. Não sei iniciar. Só sei terminar. Mas é muito difícil chegar ao fim também. Sei que do começo não me resta mais nada e que devo prender todas as esperanças ao final. Seria fácil se eu não estivesse exatamente no meio, na metade. De que me adianta evitar? Isto é uma estrada de ninguém e por onde vou a 250 mil milhas. E estou aqui porque não mais pude telefonar. Porque não mais pude falar. (FELINTO, 1992: 57) Mas eu não tomei peiote. E hoje nem peiote nem salmo 91 nem porra nenhuma para acreditar, para não cair na ilusão de . Nada, a não ser uma paisagem que vou pintando a lápis de cera num papel em branco. Minha caixa de vinte e quatro lápis coloridos. Minha ilusão. Minha revolução de cera. (FELINTO, 1992: 77)

O “aqui” a que a personagem se refere está profundamente ligado ao espaço do

texto no qual o desabafo de ressentimentos está caminhando ao lado da tentativa

de criação de uma ilusão consoladora. Ou seja, o “aqui” é o texto que ela escreve.

Ela foge da realidade através e pela escrita da narrativa, ela foge de São Paulo

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porque perdeu o amor de um homem, foge por um caminho de sonhos e para

uma origem encantada que a redima de sua difícil e entronizada infância e da dor

de ter perdido o grande amor. Em determinado momento Rísia se pergunta se

este expediente não será falso e covarde, ao que responde de imediato “não”, e

cai logo em seus ressentimentos e no desejo de consertá-los:

Em Tijucopapo, com o homem que eu encontrar, parece menos perigoso. Mas, será falso? Será covarde? Não. .... A palavra safadeza foi mamãe que inventou. Mas eu sucumbo e confesso que terei de me cercar de uma casa e paredes brancas para não voar de déu em déu como fiapo ou pena de pássaro. ... O que me dói nas safadezas, o porquê sofro ao encontrá-las., é porque venho de um mundo já tão safado de pai e mãe, de Lita, de tia... Que o meu mundo eu quero consertado. Que foi por descobrir e lidar muito cedo com a safadeza dos homens que perdi a confiança na dignidade deles. (Felinto, 1992: 80)

Classe social e revolução

Rísia é a migrante que venceu em São Paulo. Lá da sua pobreza, da sua

falta de carinho, dos seus vermes, das malvadezas que fizeram com ela e que ela

fez com os outros, lá de Recife, “a coitada”, enfim, de lá da sua origem, ela vem

para São Paulo, “a rica”, ainda criança com a família. Foram morar no fundo de

um hotel do Brás. O primeiro choque é o da queda na qualidade de vida. O preço

na maçã:

Nem mesmo a maçã. A maça que se dizia haver em São Paulo como só há no paraíso. Nem a maçã eu provaria. Em Recife não havia maçã para pobre. Só nas oferendas do Passarás que a gente brincava. Maça ou pêra? Nema... Recife, a das frutas duras. A das macaíbas e pitombas. Mas São Paulo jamais seria o paraíso dos panfletos que distribuíam sobre ela lá na coitada Recife. (Felinto, 1992: 73)

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Depois de dois anos que estavam em São Paulo, o pai foi preso por

contrabando. A qualidade de vida cai de modo impressionante, como já vimos na

seção sobre Essa terra, as possibilidades de renda ou são muito baixas ou estão

ligadas a ilícitos. Mas Rísia, que cresceu em São Paulo, está em outro patamar de

migração. Ela pode desenvolver sua inteligência, era muito inteligente mesmo,

“só tirava cem” (Felinto, 1992: 26), e assim que começou a trabalhar já ganhava o

salário mais alto da casa. Mas mesmo assim se sente ainda muito diferente de

seus amigos:

Eu saí de São Paulo porque houve um homem que se morreu de mim e porque lá eu morava no subúrbio enquanto todos os meus amigos estavam bem estabelecidos no Higienópolis paulista. Então, muitas vezes o contato era impossível porque eu não tinha telefone. ... O Higienópolis paulista é onde se bebem guaranás inteiros. E onde estão as pessoas que já leram os livros que eu li. (Felinto, 1992: 91)

E nesse ponto de aguçada compreensão de sua classe social, a narradora discute a

questão da classe social dos leitores, dos consumidores de literatura, assim como

Rodrigo S. M. em A hora da estrela. A conclusão a que Rísia chega é a de que

quem lê pertence, no mínimo, à classe média:

E é isso que me dana. É saber que quem vai ler os livros que lerei não é Nema – Nema não fala Inglês – não é Isla, a empregada doméstica, não é sequer minha mãe, não é muito menos o esmoler na ponte. É essa gente que discutirá a goles de coca-cola inteira no Higienópolis paulista. (Felinto, 1992: 91)

Mas a situação financeira de Rísia melhora um pouco e todas essas anotações

estão postas sob a perspectiva de um momento presente, “hoje eu viajo nos

aviões da Varig” (Felinto, 1992: 34, 39 72), frase recorrente na narrativa. Nesse

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sentido, Rísia se torna uma aspirante à classe média de São Paulo. E a revolução

que ela pinta é contra São Paulo. Mas antes ela sai de São Paulo, na frase,

também recorrente, “Vou-me embora”. E penso estar clara a relação com o

célebre poema de Bandeira “Vou-me embora pra Pasárgada”, só que a Pasárgada

de Rísia é Tijucopapo.

Os motivos para deixar São Paulo estão relacionados com um ódio ao

modo de vida de São Paulo (p. 47). Ou porque lá todo o mundo é sozinho e

todas as histórias estão perdidas (p. 66), ou porque “em São Paulo eu quase perdi

a fala” (p. 81) ou porque Rísia está cansada de gastar seu dinheiro com táxis para

o Higiénópilis (p. 91), ou porque eram ilusórias as telas de cinema nos fins-de-

semana (p. 93), ou “porque lá se eu quisesse eu não podia” (p. 99), ou porque

“no centro da cidade de São Paulo havia era concreto armado contra mim”

(p.100), ou “porque lá eu me achava uma apedrejada” (p. 101).

Outro motivo forte é a perda do amor. Daí parecer que todos os laços

afetivos estão rompidos e a personagem está literalmente solta no intervalo de

pensamentos, escolhendo sonhos para sonhar, pintando a revolução, indo

sozinha pela estrada exposta a todos os perigos: “Nema, é assim que faço agora,

aqui, para agüentar o meio-dia. Sabe quando foi que primeiro sonhei? Quando

era 1969 e eu pisei em São Paulo. Lá nessa cidade eu passei a inventar sonhos.

Passei a precisar que o mundo se acabasse.” (Felinto, 1992: 66)

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Rísia precisa emendar os laços rompidos, precisa se recompor e daí ela vai

atrás das mulheres que não eram sua mãe, as mulheres de Tijucopapo. Vai ver

porque era pobre, porque o pai batia nela, enfim ela vai consertar seu mundo

num intervalo de fantasias. Quanto mais perto de Tijucopapo, mais onírico vai se

tornando o texto que ganha diálogos cinematográficos:

- Arreie, mocinha. Voltaram eles com as espingardas. - Eu tenho que ir... - Arreie. (Felinto, 1992: 119)

E já ouvindo os barulhos da revolução, quase chegando em Tijucopapo, a

narradora faz um balanço do que narra. Rísia joga suspeição em si mesma. E

além disso, hesita frente à revolução que ela mesma pintou. Penso que essa

hesitação vem do fato de estar o romance armado de contradições, especialmente

no que se refere ao feminino e à classe social. Já vimos que o ser mulher, para

Rísia, está em constante luta – há o choque da tradição na qual foi criada e o

questionamento dessa tradição que ronda seu espírito. Quanto à classe social,

vimos que Rísia subiu na escala social, mas não esqueceu seu passado pobre:

longe disso, está profundamente marcada por ele. Toda a força de ressentimento

e ódio que movem Rísia está ao lado de uma grande fragilidade:

Eu galopei sem olhar para trás. Não sei se acreditava. Não sei se acreditava que as coisas aconteciam num intervalo de fantasias. Eu continuava insolarada? Mas o ar cheirava a pólvora eu ouvia zunidos de bombas. Tudo acontecia mesmo num intervalo de pensamentos e sonhos. Eu sempre dissera que seria uma voluntária à guerra até que se matasse em mim esse poder meu para qualquer coisa do resto que não fosse uma mulher casada numa casinha branca. Mas daí até uma guerra.... Eu já me perdera completamente. Meu começo já ficara lá para trás serras e serras... Eu saíra de casa por

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vários motivos, mas daí uma guerra? Uma guerra? Quem é que roubara meu plano? (Felinto, 1992, 116)

De repente, quando acorda de uma queda, Rísia já está em Tijucopapo.

Por um trajeto que lhe custou nove meses. Foi uma gestação da qual ela mesma

nasceu. Nasceu de nova origem. Nasceu das mentiras inventadas por ela para

salvar as mulheres traídas como sua mãe:

Eu mentindo assim descaradamente, eu criando meus sonhos para satisfazer aquelas mulheres traídas, perdidas, dadas, grávidas, adotadas, não verdadeiras, mulheres de mentira, prostitutas que, como minha mãe, dormiam com meu pai de noite tendo sido surradas por ele de manhã. Minha mãe era uma prostituta. Como Lita na goiabeira. Como tia, a bêbada derrotada. (Felinto, 1992: 129)

Além do símbolo da gestação, a narradora identifica o momento como

natal – e natal na narrativa é sempre um símbolo de mudança: no natal de 64 sua

mãe pariu Ismael morto, no natal de 69 ela foi para São Paulo – e agora neste

natal em Tijucopapo ela renasce, ela se reinventa, a partir das mulheres de

Tijucopapo:

Eram umas mulheres que eu vira nascer, só podia ser. Só podiam ser. Naquele meu livro, um livro de escola, um livro com uma figura vermelha a lápis de cera, era? Uma paisagem? Uma paisagem revolucionária de mulheres guerreiras. Eram mulheres que não eram minha mãe. Essas mulheres, que não eram minha mãe, tinham a sina das que desembestam mundo adentro escanchadas em seus cavalos, amazonas defendendo-se não se sabe bem do quê, só se sabe que do amor. Só se sabe que do amor as fez sofrer. Só se sabe que do amor as fez traídas. Mulheres na defesa da causa justa. (Felinto, 1992: 131)

Natal e migração nos devolvem para Morte e vida severina, está claro.

Marilene é profunda admiradora da poesia de Cabral e as marcas dessa sua

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admiração podem ser traçadas no texto. Não em termos de estilização, mas,

penso que na própria re-elaboração do tema.

Assim como o Vidas secas de Graciliano Ramos também está presente em

seu texto. Já da epígrafe somos lembrados de Graciliano, “a culpa foi minha, ou

antes, a culpa foi dessa vida agreste, que me deu uma alma agreste” (Felinto,

1992). Por aí começamos a leitura do romance já preparados para as durezas dos

sertões. Junto de Graciliano, a outra epígrafe traz um dos mais célebres versos de

toda a poesia americana, “I celebrate myself, and sing myself”. É o verso de

abertura do longo poema de Walt Whitman, Song of myself, que forma junto ao

recorte de Graciliano uma idéia de que veremos o sertão a partir de um olhar

pessoal.

E é esse mesmo o principal resultado de As mulheres de Tijucopapo: uma

visão original e pessoal de um tema que tem uma história na literatura brasileira,

mas que é tratado de modo quase que íntimo, ou seja, os problemas são

colocados a partir da experiência de vida e do ponto de vista da personagem

Rísia. Mas as discussões ultrapassam o plano do íntimo e entram em diálogo com

Vidas secas, Morte e vida severina e A hora da estrela de um modo que não é tanto

intertextual, mas de outra natureza mais difícil de ser identificada. É uma volta ao

tema, mas com desenvolvimentos radicalmente originais.

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Por exemplo, quando a narradora se refere a policiais como macacos

estaria aí uma forte referência ao Vidas secas, e creio que há mesmo, mas a

referência é toda transformada em termos próprios:

Mas, macacos? Seriam macacos mesmo aqueles homens? Macacos eram os que eu inventava nas histórias a meus irmãos. Macacos bélicos que viviam em constantes batalhas contra as cobras da floresta. Meus macacos não eram bandidos. Minhas histórias eram de batalhas por uma causa justa. Meus macacos eram de brinquedo e invenção. (Felinto, 1992: 118)

Está claro que a ilusão que Rísia inventa é compensatória da dura análise de seus

pensamentos e da lembrança de todas as sensações desgostosas de miséria e

humilhação que ela já passou na vida, especialmente as da infância. Mas com a

criança que ela foi, sempre sentada num trono, não é a si mesma que ela culpa, os

culpados são papai e mamãe.

Mas em determinado momento de lucidez, ela ultrapassa seus sentimentos

de ódio aos pais para tentar compreendê-los a partir de uma análise mais ampla

da questão, na qual encontra a culpa na diferença de situação econômica entre

Recife, a coitada, e São Paulo, a rica:

A paisagem que eu trouxe pintada na folha em branco virou a de uma revolução. Vim fazer a revolução que derrube, não o meu guaraná no balcão, mas os culpados por todo esse desamor que eu sofri e por toda a pobreza que vivi. Vou dizer aos miseráveis trabalhadores da usina que eles são uns desgraçados infelizes porque há festas de luzes acontecendo em São Paulo. E que, se eles quisessem, tomariam um guaraná inteiro porque lá em São Paulo a vida continua acontecendo aos goles, aos gotos e arrotos. E aos filhos dos trabalhadores eu vou dizer que os culpados de eles levarem pisas porque comem terra e cagam lombrigas não são seus pais não. Eu sei quem são. E às mulheres dos trabalhadores, vou dizer que, caso elas sejam traídas e os maridos dêem nelas, os culpados não são bem os maridos, eu sei quem são. É que lá em São Paulo, há mulheres cosméticas acontecendo pelas festas e usando óculos escuros na direção dos carros em largas avenidas iluminadas – as amantes. (Felinto, 1992: 106-7)

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E aqui a questão individual é ultrapassada para um plano social no qual ela

identifica as diferenças brutais, grosso modo, entre o norte e o sul. E, como já

vimos na análise de Essa terra, também em As mulheres de Tijucopapo, a migração

em busca da melhora se reverte, ao contrário, em uma brutal queda na qualidade

de vida. Vimos que dois anos depois de Rísia ter se mudado para São Paulo, seu

pai é preso por contrabando. Então, de novo, onde havia um trabalhador de

usina, agora há um contrabandista. Mas, por outro lado, vimos que quanto mais

jovem é o migrante mais chances ele tem de se desenvolver. Não foi possível

para Nelo, nem para o pai de Rísia, mas Totonhim e Rísia são migrantes mais

bem sucedidos.

Rísia se remete à parte mais pobre do interior do Nordeste quando passa

por lá em sua trajetória, vê mocambos, vê a miséria:

Outra noite fiquei no mocambo duns xavantes que a toda hora me faziam lembrá-los, papai, mamãe e os meninos. Era uma longa família de muitos meninos pirralhos e buchudos de quilos de lombriga na barriga. Eram uns doze. O mocambo vinha bagaceira de porta a porta. Eram pobres pobres pobres e os filhos formavam uma longa fileira de efes: Francisco, Francischio, Francisca, Francisval, Fransérgio, Fátima, Fábio, Fransilvia, Fransonia, etc., etc. (FELINTO, 1992: 87)

De novo a palavra mocambo, que já havia sido usada por Cabral, numa

crítica a Gilberto Freyre, aparece expondo o cerne dessa crítica. Freyre, que a

crítica já cunhou de genial, de reacionário e de tradicionalista, é sem dúvida dono

de uma das visões mais interessantes da cultura brasileira. A visão romântica que

Freyre imprimiu em certas passagens do estudo, no entanto, geram as críticas

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mais ferrenhas a seu trabalho, como nesta passagem sobre os mocambos. Freyre

chega a fazer uma defesa dos mocambos como uma habitação mais adequada ao

nosso clima e de certa forma até melhor que a casa rica:

O contraste da habitação rica com a pobre no Brasil não se pode dizer que foi sempre absoluto, através do patriarcalismo e seu declínio, com toda a vantagem do lado do sobrado, e toda desvantagem do lado do mucambo ou palhoça. Pode-se até sustentar que o morador do mucambo construído em terreno seco, enxuto, a cobertura dupla protegendo-o bem da chuva, foi e é indivíduo mais higienicamente instalado no trópico que o burguês e sobretudo a burguesia do antigo sobrado. (Freyre, 2000: 212)

O que fica dessa polêmica dos mocambos é a condição de miséria de quem só

pode morar neles como mostram Felinto e Cabral.

Aquilo que estava desmantelado na vida é consertado pela narrativa através

da narração. Uma narração revoltada. Falando mesmo de sobrados e mocambos,

a revolução pela causa justa é pintada a giz de cera por Rísia. O alvo da revolução

é São Paulo, e no último capítulo do livro, de número 33 – referência à idade de

Cristo e de novo a um momento de mudança, um momento de ressurreição –

Rísia decide amar de novo, amar Lampião e segui-lo junto com as mulheres de

Tijucopapo pelo caminho da BR em direção a São Paulo para lutar por uma

causa justa. E essa decisão ela quer anunciada para mamãe, como um troco,

como um acerto de contas.

O romance é uma trajetória circular na qual o caminho de volta é todo

consertado. Há de novo o amor e a companhia das mulheres fortes e guerreiras.

É o final de filme de cinema que Rísia queria para sua vida, sua hora de estrela:

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O que eu fiz foi um pensamento. As mulheres de Tijucopapo eram, enfim, como eu fazendo sombra no chão, meio dia de sol de fogo, caminho da BR. É isso mesmo mamãe. Eu quero que minha vida tenha um final de filme de cinema em outra língua, em língua inglesa. Eu quero que tudo me termine bem. (Felinto, 1992: 137)

A voz da migrante

A voz da migrante ocupa o lugar de sujeito do discurso. Rísia toma para si

a palavra e abre o verbo contra tudo e todos que a fizeram assombrada por

lembranças de sofrimentos e dores. O discurso da narrativa, um trajeto de sonho,

de intervalo de pensamentos, é marcado pelo desabafo, pela externalização das

angústias, dos sentimentos de inferioridades e das falas que, como um troco, ela

queria dar para a mãe, a melhor amiga, a inimiga, mas nunca pôde.

A voz que fala no discurso da narrativa preenche todo o espaço do texto.

Os diálogos presentes no final da trama são feitos à moda dos filmes de cinema,

artificiais, saídos das mentiras e dos pensamentos da narradora que quer seu

mundo consertado. Nesse sentido o romance apresenta uma forma original. Traz

uma narradora-personagem original.

A discussão da pobreza e da hegemonia da língua paulista encabeçam os

nós da narrativa que ainda deslinda questões de gênero, sem nunca descambar

para o que se poderia chamar de literatura engajada, nem tampouco para a

literatura feminista. Todos os assuntos são discutidos de dentro para fora.

Nascem da interioridade da personagem que os fala, os expressa, a seu modo,

gaga ou aos berros e com xingamentos.

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Rísia não sofre preconceito por ser negra. As referências à questão da cor

são muito sutis, ela lembra da brilhantina derretendo ao sol do meio-dia no seu

cabelo duro, mas não há um momento na narrativa em que ela expresse

claramente ter sofrido por ser negra. Sofreu porque era pobre e em São Paulo,

sofreu por ser também nordestina.

Migrante em São Paulo, ela migra de novo para a origem. Ela migra de São

Paulo. Não é apenas uma questão de inversão do pólo migratório. É uma

reinvenção da imagem de São Paulo. Tendo freqüentado a USP, através da

educação, portanto, Rísia melhora sua posição social ainda que muito

humildemente. Mas seu estar em São Paulo não é pacífico. Longe disso, ela

enumera, já nos referimos a isso anteriormente, ela enumera as dificuldades na

vida de São Paulo: a solidão, a grandeza, a dureza, os fins-de-semana iludidos

pelas telas de cinema...

Enfim, é muito nova a visão de São Paulo a partir da visão da migrante

que veio menina. A infância está num trono, o gosto perdido das frutas do

Recife, mas o tornar-se adulta aconteceu em São Paulo, de onde ela também

migra, mas para onde volta. Revoltada, mas volta.

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4º Capítulo

O efeito migração

O cachorro e o lobo (1997), de Antônio Torres; Estrutura: o migrante adaptado; O velho e o novo; Cultura regional e letramento.

O cachorro e o lobo (1997), de Antônio Torres

Estrutura: o migrante adaptado

Depois de vinte anos da publicação de Essa terra, Torres volta a seu

personagem Totonhim e a sua terra. O cachorro e o lobo é um livro de recordações.

É uma narrativa que conta tudo aquilo que vem à lembrança de Totonhim

quando ele revê seu lugar de origem e se pergunta: “ainda terei um lugar aqui?”

(Torres, 1997 b: 83). Mas não só as memórias ocupam a narrativa: há também as

comparações entre a Junco da infância e uma Junco “modernizada”.

A narrativa é composta por cinco seções divididas em partes menores,

com exceção de “O telefonema” e “A despedida”, primeira e última,

respectivamente, que se ocupam do que seus títulos indicam. O telefonema que a

irmã, Noêmia, deu para São Paulo para avisar a Totonhim que seu pai havia feito

oitenta anos é o ponto de partida da história.

Mas aconteceu depois da festa acabada: Totonhim havia sido esquecido,

assim como também se esquecera da família nos vinte anos que passaram desde o

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suicídio de Nelo – aquele de Essa terra. As outras três seções maiores, “Manhã”,

“Tarde” e “Noite”, ocupam o grosso da narrativa e cronologicamente nos guiam

por um dia num mundo de recordações acalentadas por uma trilha sonora toda

feita do cancioneiro popular.

A narrativa é de primeira pessoa e tem um tom de conversa gostosa, lenta.

Estamos diante de um contador de “causos”, dono de uma dicção jocosa e

divertida. Mas muito culta. A voz do narrador é construída a partir do efeito que

teve em sua vida viver os primeiros vinte anos no Junco, interior da Bahia, filho

de um pequeno sitiante, e mais outros vinte anos em São Paulo onde se tornou

uma pessoa de classe média, funcionário do Banco do Brasil.

O discurso desse narrador, ser híbrido, nordestino-paulista, é um

amálgama da cultura regional, fortemente marcada pela oralidade (as canções

ouvidas em casa e no auto-falante da praça, os hinos da igreja, o hino nacional, as

comidas, o vocabulário e expressões regionais), mais uma cultura de elite – a

literatura da qual mostra bastante conhecimentos. Totonhim é um bancário

muito afeito a leituras; cita Rousseau, Baudelaire, Rulfo, Fitzgerald, Hemingway,

Lorca, Alexandre O’Neill e os brasileiros, todos poetas, Augusto dos Anjos,

Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade.

As referências literárias acompanham as histórias da juventude assim como

as canções. É como se o narrador deixasse livres os canais associativos e a cada

lembrança reunisse tudo o que vem junto delas. Passagens de livros, versos de

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poemas e letras de canções vêem à tona no reencontro que o personagem tem

com sua terra.

O efeito da migração, nesse sentido, faz nascer uma voz que tem lá

escondida uma fonte de cultura popular, um sotaque que sabe carregar no

momento oportuno, um vocabulário regional que é resgatado, mas tudo isso

misturado a uma cultura, digamos assim, de elite, de uma cidade que é um dos

grandes centros culturais do Brasil contemporâneo.

Reúno abaixo duas passagens nas quais é possível verificar o tom jocoso

do narrador, na primeira, e seu outro lado mais elitista, na segunda:

Chegamos ao carro. Abro a porta para ele entrar. Quando me sento no banco do motorista, sinto as pernas pesadas, os músculos doloridos. Eis aí a P.V.C. Puta Velhice Chegando. O meu pai, porém, dobrou os joelhos sem se queixar de nada. Em sua homenagem, pego no porta-luvas uma fita que eu trouxe, com uma seleção de alguns clássicos do repertório de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. (Torres, 1997 b: 163) Ontem, à mesa, ao me sentar diante dela, eu me lembrei de um poema do português Alexandre O’Neill, que descobri há séculos numa antologia de poetas lusitanos, comprada num sebo em São Paulo – e já toda ensebada mesmo –, e que começava assim: “Nos teus olhos altamente perigosos/vigora ainda o mais rigoroso amor...”. Agora me lembro como termina: “Nesta curva tão terna e lancinante/ que vai ser que já é o teu desaparecimento/digo-te adeus/ e como um adolescente/tropeço de ternura/por ti.” O poema tem por título Um adeus português. (Torres, 1997 b: 210)

Na primeira passagem, é difícil segurar o riso. E isso não é difícil de acontecer em

outros trechos. O tom jocoso e leve perpassa todo o livro. Não há nada que pese,

ao contrário de Essa terra. Mas o interessante dessa passagem é mostrar a

interação cachorro/lobo. O lobo é o pai. A rocinha onde passa a maior parte do

tempo e onde todos pensam que irá morrer sozinho é chamada de toca do lobo.

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O lobo é um animal selvagem, avesso à civilização, um ser digamos assim,

original do sertão, de músculos tonificados, forte. O narrador é o cachorro que

nunca deu notícia a seus parentes, em um sentido, mas em outro, também um

animal doméstico, sedentário, civilizado e amistoso. Aí temos a grande oposição

do romance: pai “selvagem” e filho “domesticado”. No segundo trecho, vemos

como o narrador mostra seus conhecimentos de literatura.

Vimos como nas narrativas de terceira pessoa há uma distinção entre

narrador e migrante; já aqui, como em As mulheres de Tijucopapo, o mesmo sujeito é

narrador e migrante, elite e massa.

O velho e o novo A oposição cachorro/lobo está também correlata a outra no sentido dos

impactos da modernização em, por exemplo, velho/novo, atrasado/moderno,

senhor/empregado. A evolução tecnológica é indicada sempre por um

diminutivo que esconde o sentido parco da modernização do Junco, “- O lugar

está uma gracinha. Dá gosto de ver. Tem luz elétrica noite e dia, água encanada,

televisão de montão, banca de jornais, dois ginásios, dois hospitais,

supermercado, carro a dar com pau, e pasme, até uma biblioteca pública!”

(Torres, 1997 b: 12)

Nesse processo que vivemos de uma modernização conservadora não há

propriamente uma radical transformação dos meios de vida, há sim uma espécie

de expansão de mercado, ou seja, a modernização aparece mais em termos de

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mercadoria do que propriamente em termos de modo de produção. Há uma

expansão do capital, mas incompleta, que chega apenas pelo lado da compra,

nunca pelo da produção. Por isso mesmo é retrato de uma modernização

conservadora porque ela moderniza no sentido que expande seu mercado

consumidor, mas conserva os meios de produção.

O filho está no pólo novo, moderno, mas, como colaborador, digamos

assim, pois é empregado, pessoa que vive sob o constante medo de ser demitido

a qualquer momento e de não mais poder arcar com as despesas da família.

Embora sua vida tenha melhorado em termos de poder de compra – saiu de

ônibus e voltou de avião e carro alugado – o modo como ele vê a si mesmo é

totalmente diferente daquele como seu pai se identifica.

O pai, velho lobo, não é dominado por ninguém; ele é senhor de seu

destino. Contra a opinião de todos os que o amam, ele teima em morar como

quer, onde quer e fazendo o que gosta. Já Totonhim não. Ele se vê como uma

pessoa subalterna, que está com o destino na mão das forças do capital e que

toma atitudes segundo as convenções sociais:

Que lhe diria. Que de fato ando com medo de perder o emprego, já que o Banco do Brasil está reduzindo o quadro de funcionários à metade, trocando os antigos por estagiários que aceitam trabalhar até de graça, só para aproveitarem a oportunidade de entrar em algum lugar, na esperança de mais tarde virem a ganhar algum salário? (Torres, 1997 b: 149)

A atitude dos dois em relação ao prefeito “ladrão” tem a ver com essa questão do

cachorro e o lobo. O pai não quer nem saber do prefeito. Bêbado ou não, fala

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tudo o que pensa do prefeito para o próprio e para os outros. Diante do convite

que o prefeito havia feito para o jantar, o pai simplesmente decide não ir, mas o

filho, conciliador, vai até a casa do prefeito passar uma desculpa esfarrapada. Da

porta mesmo, vê todos os índices do enriquecimento ilícito do prefeito. Num

lugar tão pobre, a casa do prefeito, antes humilde, está ricamente mobiliada e

equipada com utensílios eletrônicos que a grande maioria nem sabe que existe. É

assim que o pai explica a Totonhim o que é o prefeito:

...O prefeito não é um ladrão qualquer, um pé-de-chinelo que bate a sua carteira, rouba casas e galinhas. É um ladrão cheio de manhas, de lero-lero, que não furta ninguém em particular, mas rouba todos em geral. Um ladrão do povo Um imposto aqui, uma verba estadual dali, um adjutório federal de lá, obras contra a seca, campanhas contra a fome, e ele embolsando tudo. (Torres, 1997 b: 77-8)

A desilusão política é grande e nesse romance é tratada com mais dureza que em

Essa terra. No romance de 1976, o discurso crítico não era tão incisivo quanto o

que lemos em O cachorro e o lobo. No romance de 1997, parece que a situação já

está muito clara para o narrador que não toca apenas no assunto, mas analisa

com mais liberdade questão, o que provavelmente não seria possível naqueles

anos de 1970:

Agora, sim, o Junco está no mapa viário do mundo, pois teve os seus quarenta e dois quilômetros de terra e cascalho asfaltado às pressas na última campanha eleitoral. E como vou ouvir falar nisso, meu Deus. Com que alegria e orgulho dirão todos que o lugar finalmente atravessou o túnel do tempo e chegou ao futuro. A travessia, porém, já registra algumas baixas: os que já morreram acidentados. Na pressa das eleições, fizeram uma estrada estreita demais. Agora, salve-se quem puder. (Torres, 1997 b: 46)

O que o pai reclama na passagem acima – que todo o dinheiro público é usado

em benefício próprio – indica mesmo um modo muito típico da política. Ora,

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não é por outro motivo que a mãe quer sair do Junco: ela quer dar educação aos

filhos e a si mesma. Ela não queria ser analfabeta para sempre: buscou

desenvolver-se e educar os filhos numa cidade maior, vizinha, que tinha ginásio.

Esse é o problema fundamental da cidade: a falta de escolas de ensino médio e

universidades. O acesso à educação em nível médio já está barrado, imagine-se ao

ensino superior.

Cultura regional e letramento

Em O cachorro e o lobo, a grande discórdia entre os pais de Totonhim é a

questão da educação formal. Para o pai, machista e tradicionalista, as mulheres

não tinham que estudar. A mãe, ao contrário, segue para um cidade melhor

buscando educação:

Perguntei porque haviam se separado. Foi então que ela me contou uma longa história, da sua luta para botar os meninos para estudar – “você se lembra, não se lembra?” E papai, a seu ver, naquele atraso de roceiro que só sabia arar a terra, plantar e colher, sempre dizendo que escola não enchia barriga de ninguém. Tinha sido aí que haviam começado os conflitos, os desentendimentos, as discussões, as brigas. “Mas, se não fosse isso, você hoje não era um homem instruído”, ela disse. E contou como aprendeu a ler e a escrever. (Torres, 1997 b: 59)

Nesse caso não é o escritor que dá voz a quem não tem. Longe disso, em O

cachorro e o lobo, o personagem conta sua própria história, nela enredada a história

de sua mãe, antes iletrada. Sim, porque não era outro o problema ideológico por

que passaram todos os escritores que, ou por denúncia social ou por sensação de

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missão, se propuseram escrever sobre os pobres, iletrados. Daí, nasce a questão:

como, por meio da escrita, representar o iletrado?

No caso de O cachorro e o lobo, é a própria mãe do narrador a personagem

iletrada. Estamos longe de uma tentativa de um escritor de elite dar voz aos que

não têm. O caso aqui é de um menino que teve que sair de sua terra primeiro

para cursar ensino médio, e depois para arranjar um trabalho que lhe desse uma

condição de vida digna. Esse menino entra na engrenagem da máquina dos

grandes centros urbanos e lá consegue galgar degraus na escala social. Aumenta

sua cultura, melhora seu padrão de vida, e narra sua própria história, nela

encaixada a história dolorosa de sua mãe, mulher que sofreu as mais difíceis

conseqüências – desencaminhamento das filhas, desentendimento constante com

o marido, aumento do volume de trabalho – por ter tomado a atitude de mudar o

papel que já estava escrito para ela.

Aquilo a que chamamos de o efeito da migração se refere ao fato, já

comentado anteriormente, na seção sobre Morte e vida severina, de que o migrante

tem uma noção de pertencimento cindida. Nem ele pertence mais a sua terra

natal nem é nativo de onde está; portanto é sempre um estrangeiro onde quer

que esteja. Mas não há ressentimentos.

Em O cachorro e o lobo, esse efeito da migração aparece não como um

elemento que esgarça a subjetividade, mas como um fato já resolvido, como uma

discussão pacificada. Não há mais desconforto em relação a essa condição de

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estrangeiro. Quando seu pai pede que ele fique e que traga sua família, Totonhim

argumenta com toda a serenidade que seu lugar não é ali:

- Telefone para São Paulo e mande eles virem para cá. - Não é assim tão fácil. - Como não? Hoje você não ligou pra lá na maior facilidade? - O que não é fácil é fazer com que eles troquem São Paulo por isso aqui. - E você, também gosta de lá? - Muito. Tem muita coisa ruim, mas também tem muita coisa boa. Já me acostumei

a viver numa cidade grande. E o que era que eu ia fazer aqui, papai? (Torres, 1997 b:192-3)

Embora haja uma hesitação entre pertencer ou não ao lugar de origem, já não há

problema em afirmar que pertence à cidade grande. Em relação ao pertencimento

ao lugar de origem, reúno duas citações: na primeira, Totonhim se questiona se

ainda tem lugar no Junco – “ainda terei um lugar aqui?” (Torres, 1997 b: 83) – e

na segunda, descobre que tem:

Sua benção, meu padrinho. Obrigado por ter existido. E por haver legado uma casa cheia de recordações de um tempo em que a vida parecia tão inocente quanto as letras dos boleros e das guarânias. E a velha casa revisitada só tem de luxo um chuveiro, debaixo do qual eu canto, com a alegria de quem descobre que ainda não perdeu todas as referências. (Torres, 1997 b: 120)

É com alegria que Totonhim descobre suas ligações com o lugar de

origem, ligações que julgava todas perdidas porque, de seu ponto de vista, ele já é

paulista. Sem dramas de consciência, sem a angústia da sensação de perda, o

narrador de O cachorro e o lobo é um personagem que ultrapassou os limites dos

conhecidos efeitos da migração.

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O personagem está totalmente à vontade com a situação. Ela não o

diminui, nem o esgarça, nem o incomoda. O narrador de O cachorro e o lobo parece

que reencontra seu passado do modo mais sereno possível. Está de bem com sua

terra. Aqueles dramas todos vividos por Totonhim em Essa terra, dão lugar a um

delicioso acerto de contas com o passado. Espécie de libertação de demônios, O

cachorro e o lobo encena a reunião dos fios soltos na trama da vida de Totonhim.

Mas o ir e vir de São Paulo ainda continua. Quando pai e filho vão visitar

o Cruzeiro da Piedade, eles vêem um garoto sentado sozinho nos degraus ao pé

do cruzeiro. O garoto estava lá tentando ver a estrada que leva para fora. Estava

com saudade de seus pais que haviam ido trabalhar em São Paulo por um tempo.

E aí Totonhim diz reflexivo, “Ah, São Paulo: o ir e vir ainda não terminou. Olho

para o rosto tristinho do garoto, me perguntando: será que sabemos o que

dissemos quando falamos em solidão?” (Torres, 1997 b: 165)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa estudou o processo de vocalização da personagem migrante

nordestina na literatura brasileira canônica. O conceito de canône foi usado para

limitar o corpus e o sentido atribuído ao conceito é o de repertório de obras

consagradas pela crítica acadêmica, de modo que já são amplamente conhecidas e

reconhecidas pelas instâncias do campo literário como universidades,

suplementos especializados, listas de obras indicadas em vestibulares e exames

nacionais de cursos do Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEPE).

Concentrando a análise na voz que fala na narrativa e observando

minuciosamente o estatuto da narração, esse estudo mostrou a inserção de um

sujeito na literatura brasileira, uma vez que o migrante passou de tema, de objeto

da narração, a sujeito da enunciação.

A tese foi dividida em quatro capítulos mais as considerações finais. A

divisão dos capítulos de análise intitulados “A migração do ponto de vista da

origem”, “A migração do ponto de vista da cidade grande” e “O efeito migração”

dão a noção da trajetória periferia-centro por que passa não somente a

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personagem, enquanto sujeito de um movimento migratório, mas também a

personagem enquanto sujeito que vai da interdição à dicção.

O primeiro capítulo tenta situar alguns pressupostos da análise.

Inicialmente mostra que a relação entre nação – literatura nacional e região – e

literatura regional foi determinante para a construção crítica do que ficou

conhecido como regionalismo nordestino e do qual é baliza Franklin Távora. O

migrante nordestino aparece como referência no romance O cabeleira (1876), de

Franklin Távora, que, com seu projeto “Literatura do Norte”, tentou construir

uma identidade um pouco diferente daquela que vinha sendo trabalhada por

Alencar no seu projeto de construção de uma identidade nacional através da

literatura.

Essa discussão é aprofundada com uma comparação entre as obras e a

recepção crítica de O sertanejo (1875), de Alencar, e o romance de Távora, em que

se mostra que ambos concentraram esforços para a representação do homem do

sertão nordestino. Alencar escreve da e para a elite num tom que busca adaptar o

tema ao gosto do público. Távora, de uma perspectiva quase que estrangeira,

submissa, desculpando-se, apresenta o tema com tom de denúncia e verdade e

tenta conferir ao relato ares de documento histórico.

Depois de Távora, há referências a outros autores nordestinos que foram

destaque nas histórias literárias, como José Américo de Almeida, com A bagaceira

(1928), romance que conta a história da decadência do engenho e das lutas entre

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pai e filho, proprietários e retirantes, que é recebido pela crítica de modo mais

positivo que Távora, e O quinze (1930), de Raquel de Queiroz, que vai ser

saudado pela crítica e que de uma perspectiva interna vai aproximar a visão do

drama dos retirantes da seca. É uma brilhante narrativa que do ponto de vista da

casa-grande constrói uma situação de profunda empatia com o drama dos

retirantes.

A partir desse filão é feita uma apresentação preliminar do corpus da

pesquisa. Como seguimento, o primeiro capítulo, talvez de modo espasmódico,

continua a indicação dos pressupostas da pesquisa, dentre os quais destaco:

A relação entre regionalismo e dependência tomando por base a conceituação

de Antonio Candido, que mostra como na década de 1930 a noção de

subdesenvolvimento, presente em toda a América Latina, deu uma virada nas

perspectivas críticas, e que foi durante essa virada de pensamento que o romance

do nordeste foi melhor recebido pela crítica. Essa idéia não afasta o

reconhecimento de que essa virada de pensamento também influenciou os

escritores que inventaram novas formas de dizer as diferenças.

A insuficiência e a fragilidade dos argumentos, na verdade políticos, mas

cobertos por razões estéticas, com que o regionalismo foi estudado por algumas

de nossas principais histórias literárias e mais alguns críticos estudados. Os

pontos mais importantes dessa passagem são: a idéia de Candido de que o

conceito de regionalismo serviu para designar literaturas produzidas fora do Rio

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de Janeiro, ele lembra que não há regionalismo carioca; a argumentação de Lucia

Miguel-Pereira sobre as fases do regionalismo, que defende que o regionalismo

era a literatura produzida com diferenças da “civilização niveladora” e que

melhora na medida em que se torna mais universal; e, por último, a radical

transformação do ponto de vista do Bosi da História Concisa, que afirma que o

regionalismo sobrevivia apenas por uma necessidade escolar, para o Bosi de

Literatura e resistência, que muda o foco da questão para as possibilidades de

representação dos excluídos, bem como a questão da oralidade, marca forte de

narrativas regionais.

O argumento de que a relação belicosa entre o modernismo paulista e o

regionalismo nordestino tinha um fundo mais político do que realmente de

programa, como demonstram as argumentações de Neroaldo Pontes de Azevedo

e Mario da Silva Brito mostraram.

E, finalmente, a contribuição que o Manifesto Regionalista e o Livro do

Nordeste de Gilberto Freyre deram para a ampliação do conceito de regionalismo

nordestino como relação orgânica entre homem-natureza-cultura, talvez válido

para qualquer literatura.

Uma vez contextualizado o corpus nesse campo de representações e sentidos,

seguiram-se os capítulos de análise. O primeiro capítulo reúne Vidas secas (1938),

Morte e Vida severina (1956) e Essa terra (1976), textos que se concentram no ponto

de vista da origem, na partida ou no trajeto da jornada. Vidas Secas, obra clássica

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da literatura brasileira, é narrada em terceira pessoa e tem uma visão que ora se

identifica com a da personagem ora se afasta. A partir da leitura de Bosi, o estudo

da obra mostrou que o fato de o narrador estar despregado da matéria que narra,

não favorecendo nem a linguagem do dominado, que é descrita na sua debilidade,

nem a linguagem do dominante, que é denunciada, constrói uma narrativa na

qual há a problematização de sujeito e objeto. O narrador não pode ser

simplesmente descrito como pessoa ilustrada que representa a condição

subalterna.

O narrador e o subalterno se aproximam e se afastam. A aproximação se dá

em momentos de desconfiança da cultura letrada como instrumento de

dominação – lembre-se do capítulo “Contas”, ou da relação de Fabiano com Seu

Tomás da Bolandeira. O afastamento acontece quando a visão desiludida e

desencantada do narrador ultrapassa as ilusões consoladoras de Fabiano, como

no último momento da narrativa em que Fabiano sonha com a vida no sul

enquanto o narrador diz que caminham para uma terra desconhecida e civilizada

onde ficariam presos.

Destaco ainda da análise o modo como Fabiano se constitui como sujeito

subalterno quando se consola com frases feitas do tipo “apanhar do governo não

é vergonha” ou “quem é do chão não se estrepa”.

O primeiro texto a apresentar o migrante com fala própria, e curiosamente

corpo, é Morte e vida severina. Sucesso de público, tendo percorrido grande parte

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das capitais do Brasil e tendo ganhado vários prêmios, Morte e vida fez com que a

poesia de Cabral fosse conhecida do grande público. Mescla de prosa, poesia e

drama, o texto mostra o trajeto que Severino percorre para a capital.

Embora só encontre morte, seja o assassinato de pequeno sitiante pela fome

do latifúndio, seja pela morte das usinas e roças por falta de incentivos de

produção, a perspectiva do protagonista é otimista – a vontade de encontrar

melhores condições de vida só acaba quando escuta a conversa dos coveiros ao

chegar em Recife. Uma vez tendo percebido que seu sonho não passava de uma

ilusão, ele pensa em se matar, mas o auto de natal que é encenado para ele e a

lição de fé na vida que Seu José lhe dá, mostram uma alternativa. Mas aí o texto

acaba. O destino de Severino resta aberto.

Essa terra é o primeiro romance que apresenta um narrador migrante

nordestino em primeira pessoa propriamente dita. (Curiosamente houve um

percurso de exatos 100 anos desde a publicação de O cabeleira (1876) até Essa terra

(1976)). O romance é construído pelo espelhamento entre dois irmãos. O mais

velho, Nelo, volta depois de 20 anos de SP e, sem ter forças para frustrar as

expectativas da família, principalmente as da mãe, se suicida. Acontece que o

suicídio de Nelo não mata o sonho da cidade de ir para São Paulo. Totonhim é o

outro irmão, que lida primeiro com Nelo, depois com seu suicídio, depois com a

loucura da mãe, e decide, passado o drama da primeira hora, ir também para São

Paulo. Os títulos das partes nas quais a narrativa se divide já dão noção das

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matizes do drama da migração para o sul: “Essa terra me chama”, “Essa terra me

enxota”, “Essa terra me enlouquece”, “Essa terra me ama”. Lançando mão de

um diálogo com textos já tradicionais sobre o tema como Os sertões, de Euclides

da Cunha, e Morte e vida Severina, de Cabral, o texto, que teve uma tiragem inicial

de 30.000 exemplares, um fenômeno editorial, e esgotou edições posteriores,

promove uma inserção de um sujeito subalterno na literatura e elimina a distância

sujeito intelectual – objeto subalterno, uma vez que institui um sujeito que fala a

partir de sua condição subalterna.

No terceiro capítulo, segundo da análise, reuni dois textos: A hora da estrela

(1977), de Clarice Lispector, e As mulheres de Tijucopapo (1982), de Marilene

Felinto. Nessas duas obras a migração é abordada já do ponto de vista da cidade

grande.

A hora da estrela apresenta um prefácio que já problematiza a autoria da obra

quando aparece na Dedicatória do autor, entre parênteses, a expressão “Na

verdade, Clarice Lispector” que traz para dentro do texto uma entidade que

rivaliza com o narrador. É uma narrativa de primeira pessoa, mas que tem um

narrador construído como uma terceira pessoa e que, nessa condição, medeia a

interação entre a autora, que custa e se esconder nos parênteses, e a personagem,

que é descrita na sua inabilidade de se expressar.

Espelho dessa condição dupla de narração, o texto é construído a partir de

duas instâncias discursivas – a da narrativa – na qual o narrador conta a história

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de Macabéa, e a da narração – na qual o narrador se debate numa reflexão sobre

o processo de escrita que está desenvolvendo e sobre o qual lança constantes

dúvidas e suspeições. O principal problema da narrativa é a identificação: como

narrar a história de uma personagem com a qual o narrador não se identifica.

A saída de interposição de um narrador, Rodrigo S. M., não é suficiente, e por

isso há a constante re-discussão e interferência do e no processo. O narrador

quer a todo custo afastar a idéia de que o texto seja um romance engajado. A

ausência de pretensões nessa direção, a recusa de arvorar-se a uma possível

tentativa de resolução do problema, faz com que a primeira frase da narrativa já

apresente o tom de menosprezo pelo texto, que é denominado como “esta coisa

aí”.

O texto apresenta ainda um diálogo com os já clássicos Euclides, Graciliano e

Cabral, e dentro desse contexto de interrelações nota-se como Macabéa

interpreta sua vida a partir de frases feitas (quem cai não passa do chão, quem

espera sempre alcança), achando aí um tipo de consolação, como também fazia

Fabiano. A pertinente exploração da classe social do leitor, de si mesmo e da

personagem, que o narrador empreende, o faz concluir que, ao escrever aquela

história – que está ao alcance de todos, mas que é de difícil elaboração e que

possui tema extremamente desinteressante e importuno, desinteressando e

importunando o narrador –, ele opera como se fosse uma válvula de escape da

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classe média, ou seja, como se construísse uma ilusão consoladora para o

problema real.

As mulheres de Tijucopapo apresenta a primeira narradora migrante nordestina. A

dicção da protagonista, Rísia, é marcada pela violência da raiva, pelos sentimentos

brutos que são exteriorizados e por uma oralidade construída pelo viés do

diálogo que a narrativa institui. A narrativa é o espaço onde é possível que a

narradora construa suas ilusões consoladoras. É pela narração que acontece a

vocalização de falas que a narradora gostaria de dizer à mãe, à amiga Nema

(principal interlocutora no texto) ou à inimiga dos tempos de infância, Luciana.

O modo de construção do texto, feito todo em zigue-zague, com repetições

de partes inteiras, funciona como um correlato objetivo da situação de opressão,

mudez e gagueira pela qual viveu a personagem e da qual se livra na busca das

mulheres guerreiras de Tijucopapo. A narradora vai em busca de uma origem

inventada para nela se redimir de seus males e raivas. Seu discurso opera uma re-

inserção no mundo, consertando sua vida marcada pela miséria e traição.

No sonho que toma lugar na narrativa, Rísia é uma migrante às avessas. Ela

deixa São Paulo, “a rica”, na direção de Recife, “a coitada”, de onde saiu ainda

criança. A verdadeira Tejucopapo, hoje Goiana, fica a 60 km de Recife e sediou o

que hoje é encenado pelo Clube de mães da vila de Tejucopapo como a Epopéia

das heroínas de Tejucopapo que, em 1646, defenderam a vila da invasão de

holandeses. Rísia pinta a giz de cera a revolução que parte de Tejucopapo com

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Lampião como líder a pé pela BR contra São Paulo. Tudo se dá num intervalo de

fantasia e sonho, no qual as visões contraditórias de feminilidade que Rísia vive

são harmonizadas e ultrapassadas.

A reflexão constante sobre a classe social e a riqueza de São Paulo informam a

revolução que tem muito mais peso na narrativa que as sutis referências a sua

condição de negra. Ela se refere à brilhantina derretendo no cabelo ao sol de

meio-dia, mas o forte de sua revolta não vem da condição de ser negra, mas da

condição de migrante pobre nordestina.

O último capítulo de análise mostra como no romance O cachorro e o lobo,

de Antônio Torres, o personagem Totonhim, de Essa terra, volta a pisar em sua

terra agora de modo a tornar possível a harmonização de seu passado do interior

sertanejo com a vida já assentada de classe média de São Paulo. O efeito

migração aponta nesse sentido para essa adaptação do migrante, que constrói um

discurso que reflete essa mescla.

O discurso no romance é construído a partir do amálgama da cultura

regional, marcada pela oralidade, e da cultura letrada, do fundo da qual cita uma

longa lista de autores nacionais e estrangeiros. O contato com sua terra natal,

especialmente com seu pai, dispara um processo de identificação, que chega ao

ponto máximo quando Totonhim diz ao pai que não pode ficar ali porque já está

acostumado com a vida de São Paulo e que ali não há nada para ele. A

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vocalização dessa conclusão mostra a terrível estagnação daquele interior que

quase permaneceu inalterado no decorrer do tempo.

A crítica da modernização como uma traição é um dos pontos mais fortes

da narrativa, que mostra como as armadilhas políticas e econômicas iludem e

empobrecem o povo, favorecendo apenas a uns poucos. A alternativa da cidade

ainda é a mesma, as tristes estradas. Estrada para a qual um menino olha com

saudade dos pais que estão trabalhando em São Paulo. O narrador, desiludido,

conclui que o ir e vir de São Paulo ainda não terminou.

Considerando tudo, Vidas secas e A hora da estrela são os dois textos que

apresentam o binômio clássico intelectual-subalterno. Nos dois, o subalterno não

fala, mas também o sujeito que fala é extremamente problematizado, tanto em

Graciliano com suas aproximações e afastamentos, quanto em Clarice com a

criação da terceira pessoa, o Rodrigo S. M., que enuncia todos os problemas que

a não identificação entre personagem e narrador, por causa da classe social,

impõe.

Morte e vida severina, o primeiro texto, não por acaso saído de 1956, ano

especialíssimo para a discussão da representação dos excluídos na literatura

brasileira – Grande Sertão: veredas, de Guimarães Rosa foi publicado nesse ano –,

coloca na cena brasileira de corpo inteiro, não apenas em voz, um Severino que

explica a si mesmo, que vai e que fica lá pensativo e desiludido.

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Finalmente, Antônio Torres e Marilene Felinto, ambos com traços fortes

de oralidade e de autobiografia, implodem o binômio intelectual-excluído.

Ambos criam representações estéticas do excluído que partem da experiência de

vida de cada um deles.

A literatura brasileira, essa riqueza que nós temos, é fonte inesgotável para

quem deseja conhecer o Brasil, para quem deseja saber como as criações literárias

responderam as nossas questões sociais e políticas. É nessa literatura que eu vejo

uma resposta original a uma questão teórica que suscitou a primeira idéia de

realização desta pesquisa. Foi quando em 2000, na UFBA, eu ouvi Gaiatri Sivak

dizendo que seu trabalho como intelectual indiana e mulher era emendar laços

rompidos.

O texto de Spivak “Pode o subalterno falar?”, produzido na década de

1980, já tinha deixado uma série de indagações, mas eu sabia que havia algo ali

muito significativo. Spivak nesse texto parte do diálogo sobre o papel do

intelectual entre Foucault e Deleuze no qual eles chegam à conclusão que o

intelectual deve falar pelos que não têm voz.

Spivak chega à conclusão contrária. Ela diz que o subalterno não fala,

porque é exatamente a impossibilidade de falar que funda sua condição, e que ao

intelectual resta falar por si e investigar o quanto seus métodos de análise

carregam privilégios institucionais. A principal conclusão desta pesquisa é a de

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que os livros estudados, cada qual a seu modo, mostrou formas de escutar e

dialogar com o silêncio fundador dos subalternos.

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RESUMO

Esta pesquisa é sobre os migrantes nordestinos que figuram como protagonistas em obras canônicas da literatura brasileira, mostrando como em sua trajetória, ao longo do século XX, eles passaram de tema a sujeito da narração. O corpus da pesquisa reúne Vidas secas, de Graciliano Ramos, Morte e vida Severina: auto de natal pernambucano, de João Cabral de Melo Neto, Essa terra e O cachorro e o lobo, de Antônio Torres, A hora da estrela, de Clarice Lispector e As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto. No primeiro capítulo, “Nação e região”, faz-se uma revisão da literatura regionalista brasileira para mostrar como a produção regional nordestina foi sempre encarada pela crítica por uma perspectiva preconceituosa. Os três capítulos seguintes consistem na análise do corpus e seu foco principal reside na investigação do estatuto do narrador e da natureza de seu discurso. No primeiro, estuda-se o êxodo da região rural e suas motivações e efeitos sobre os personagens; no segundo, as relações entre os migrantes e a cidade para onde eles se transferem; e, finalmente, no terceiro, a sua reconciliação com o seu local de origem. A análise aborda ainda a questão da classe social e a relação entre a cultura letrada e a oralidade. A conclusão revela que a passagem do migrante de tema a sujeito da narração na literatura brasileira é acompanhada de uma valorização cada vez maior do ponto de vista regional.

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ABSTRACT

This is a study about Northeastern migrants who appear as protagonists in canonic Brazilian literary works. Our main purpose is to investigate how their role has changed, throughout the twentieth century, from the position of theme to that of subjects of narration. The works which form the corpus of this study are: Graciliano Ramos’ Vidas secas, João Cabral de Melo Neto’s Morte e vida severina: auto de natal pernambucano, Antônio Torres’ Essa Terra and O cachorro e o lobo, Clarice Lispector’s A hora da estrela, and Marilene Felinto’s As mulheres de Tijucopapo. In the first chapter, entitled “Nation and Region”, we offer a review of Brazilian regionalist literature in order to show how Northeastern regional works have always been seen by criticism from a prejudiced perspective. The three following chapters consist of the analysis of the corpus and their focus lies especially upon the issue of the narrator’s statute and of the nature of his discourse. The movement of migration is studied in three different aspects: the exodus from the rural region and its motivations and effects upon the characters, the relationship between these characters and the city to which they migrate and finally their reconciliation with their place of origin. The question of the social class and of the relationship between literacy and orality are also studied in these chapters. The conclusion of the work reveals that the change the characters undergo from theme to subject of narration is accompanied by a higher estimation of the region from the point of view of their authors.

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RÉSUMÉ

Cette étude concerne les migrants nordestins figurant comme

protagonistes dans les oeuvres canoniques de la littérature brésilienne. Elle montre comment, au cours du 20ème siècle, ces migrants passent de la condition de thème à celle de sujet de la narration. Le corpus de l’étude inclut Sécheresse (Vidas secas) de Graciliano Ramos, Mort et vie Séverine (Morte e vida Severina: auto de natal pernambucano) de João Cabral de Melo Neto, Cette terre (Essa terra) et Chien et Loup (O cachorro e o lobo) de Antônio Torres, L’Heure de l’étoile (A hora da estrela) de Clarice Lispector et Les femmes de Tijucopapo (As mulheres de Tijucopapo) de Marilene Felinto. Dans le premier chapitre, « Nation et région », on trouvera une révision de la littérature régionaliste brésilienne montrant comment la production régionale nordestine a toujours souffert des préjugés de la critique. Les trois chapitres suivants sont consacrés à l’analyse du corpus, et notamment à l’étude du statut du narrateur et de la nature de son discours. Le premier concerne l’exode rural, ses motivations et ses effets sur les personnages ; le deuxième, les relations entre les migrants et les villes où ils vont habiter ; enfin, le troisième chapitre est consacré à leur réconciliation avec leur lieu d’origine. L’analyse traite aussi de la question de la classe sociale et de la relation entre la culture lettrée et l’oralité. La conclusion montre que le passage du migrant dans la littérature brésilienne du statut de thème à celui de narrateur s’accompagne d’une valorisation toujours croissante de la perspective régionale.