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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MARIA SILVA PRADO LESSA O POEMA COMO PALCO: ALGUMAS CENAS DA ESCRITA DE MÁRIO CESARINY RIO DE JANEIRO 2017

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MARIA SILVA … · Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes – UFRJ, Suplente Rio de Janeiro Fevereiro de 2017 . RESUMO LESSA, Maria Silva. Prado

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MARIA SILVA PRADO LESSA

O POEMA COMO PALCO: ALGUMAS CENAS DA ESCRITA DE MÁRIO CESARINY

RIO DE JANEIRO

2017

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MARIA SILVA … · Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes – UFRJ, Suplente Rio de Janeiro Fevereiro de 2017 . RESUMO LESSA, Maria Silva. Prado

Maria Silva Prado Lessa

O POEMA COMO PALCO: ALGUMAS CENAS DA ESCRITA DE MÁRIO CESARINY

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas). Orientadora: Profa. Dra. Sofia Maria de Sousa Silva

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

L638pLessa, Maria Silva Prado O poema como palco: algumas cenas da escrita deMário Cesariny / Maria Silva Prado Lessa. -- Rio deJaneiro, 2017. 102 f.

Orientadora: Sofia Maria de Sousa Silva. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal doRio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Letras Vernáculas, 2017.

1. Poesia Portuguesa. 2. Mário Cesariny. 3.Surrealismo. I. Silva, Sofia Maria de Sousa,orient. II. Título.

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O POEMA COMO PALCO: ALGUMAS CENAS DA ESCRITA DE MÁRIO CESARINY

Maria Silva Prado Lessa

Orientadora: Sofia Maria de Sousa Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas

da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do título de Mestre em Letras Vernáculas (Literaturas Portuguesa e Africanas).

Examinada por:

________________________________________________ Presidente, Profª. Doutora Sofia Maria de Sousa Silva ________________________________________________ Prof. Doutor Jorge Fernandes da Silveira – UFRJ ________________________________________________ Profª. Doutora Izabela Guimarães Guerra Leal – UFPA ________________________________________________ Profª. Doutora Ida Maria Santos Ferreira Alves – UFF, Suplente ________________________________________________ Prof. Doutor Marcelo Jacques de Moraes – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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RESUMO

LESSA, Maria Silva. Prado. O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2017. 102 fl. Dissertação de Mestrado em Literaturas Portuguesa e Africanas.

Esta pesquisa tem como objeto de estudo cinco poemas do surrealista Mário Cesariny: “tal como catedrais”, “you are welcome to elsinore”, “autografia I”, “a antonin artaud” e “pena capital”. Construídos como artes poéticas, os textos encenam um poeta condenado a lutar contra o “peso” que as palavras adquiriram ao longo do tempo, em busca de um novo leitor e de um tempo futuro no qual as palavras se terão tornado puras – em que serão pura potência de significado. No entanto, os poemas estão eles próprios sempre em diálogo com outros poetas, outros tempos, outras vozes que são evocadas no processo de criação, sugerindo que o diálogo com o outro é condição para a escrita. Cesariny toma para si as palavras que já foram de outros, entrando em um jogo que atravessa os tempos e as vozes dos homens, engrossando o coro e adensando ainda mais a trama textual da linguagem poética. Ao espetacularizar o processo de criação poética, Cesariny guia-nos por cenas nas quais somos apresentados aos aspectos fundamentais da poética que buscou definir em meados dos anos 1950.

Palavras-chave: Mário Cesariny; surrealismo; cena.

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ABSTRACT

LESSA, Maria Silva Prado. O poema como palco: algumas cenas da escrita de Mário Cesariny. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2017. 102 fl. Dissertação de Mestrado em Literaturas Portuguesa e Africanas.

This research centers on five poems by the surrealist artist Mário Cesariny: “tal como catedrais”, “you are welcome to elsinore”, “autografia I”, “a antonin artaud” and “pena capital”. Representing the poet’s poetic principles, these texts are constructed as scenes where a poet acts as if condemned to strive against the “weight” some words have acquired over time, as someone who’s looking for a new reader and for a future time in which the words will have become “pure” – in which they’ll come up as infinite possibility of meaning. However, the poems establish an intense dialogue with other poets, times and voices that are summoned as the echoes of ghosts, thus suggesting that “dialogue” is a fundamental condition on his writing process. By stealing the words of others, Cesariny participates in a literary game that has been played throughout the centuries. Transforming the poetic creation into a spectacle, Cesariny guides us through a series of different scenes where we are presented to the main characteristics of the poetic he is defining in the mid-1950’s.

Key words: Mário Cesariny; Surrealism; scene.

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Para minha mãe, meu pai, minhas irmãs e meu irmão. Por sermos sete vidas de puro amor.

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AGRADECIMENTOS

À Sofia de Sousa Silva, por me ensinar a ler poesia, por todas as portas que me abriu e

por contribuir diariamente para o meu crescimento na academia e fora dela. Acima de tudo,

agradeço pela generosidade com que me orienta e por ter me apresentado (a)o Cesariny.

Ao professor Jorge Fernandes da Silveira, mestre fundamental da minha trajetória pela

senda da poesia portuguesa, por ter aceitado ser meu leitor.

À professora Izabela Leal, por aceitar participar da minha banca e na esperança de que

tenhamos muitos encontros pela frente.

Às professoras que contribuíram diretamente para o desenvolvimento desta pesquisa e

que, de uma forma ou de outra, me acolheram como aluna: Mônica Fagundes, Rosa Maria

Martelo e Joana Matos Frias.

Ao grupo de estudos de poesia portuguesa, pelas leituras e estudos feitos por prazer.

À Marlene Oliveira, à Paula e à Fundação Cupertino de Miranda, por me deixarem

entrar no mundo do Cesariny.

Ao CNPq pela bolsa que me concedeu para realizar esta pesquisa.

À minha família, especialmente às minhas avós, pela escuta atenta e pelo amor

constante, e aos meus tios, Maurício e Bia, pela recepção carinhosa e pela amizade.

À Rafaela Cardeal, por ser minha amiga nos momentos de maior descoberta e pela

jornada que compartilhamos.

Aos meus amigos, particularmente àqueles que comigo debateram os temas desta

dissertação, na biblioteca ou no bar: Antonio Kerstenetzky, Claudio Cabral, Felipe Lima,

Fernanda Araújo e Hugo Arruda.

Ao Carlos, pelo apoio que me deu ao longo dos dois últimos anos (e ainda antes), por

estar comigo nas angústias e nas alegrias. Pelas conversas fundamentais – pelo amor e pela

cumplicidade.

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Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te vou perdendo a noção desta subtileza. Aqui chegado até eu venho ver se me apareço e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho Muita vez vim esperar-te e não houve chegada De outras, esperei-me eu e não apareci embora bem procurado entre os mais que passavam. Se algum de nós vier hoje é já bastante como comboio e como subtileza Que dê o nome e espere. Talvez apareça (Mário Cesariny, “estação”)

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SUMÁRIO

1. Introdução 11

2. O depois e o antes da escrita 16

2.1 “tal como catedrais” 18

2.2 “you are welcome to elsinore” 29

3. O sujeito poético em transformação 43

3.1 “autografia I” 45

3.2 “a antonin artaud” 56

4. O poema como palco 67

4.1 “pena capital” 69

5. Considerações finais 93

Referências bibliográficas 96

Anexo 101

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1. Introdução

Há muito que vejo inútil a comunicação que se exerce fora do campo, algo obscuro, convenho, da criação poética – o que não significa exclusivamente o poema. Da linguagem [...] que não é ela própria uma revolução. [...]([...] toda a linguagem ausente de impulsão criadora me parece coroada de inanidade. O que evidentemente é, se me afigura, uma das vitórias do espírito surrealista. [Em mim]) (CESARINY, 1985 [1970], p. 205).

Escrever sobre Mário Cesariny requer um grande esforço de desapego. Falar desde um

lugar intermédio entre o discurso amoroso e o discurso acadêmico exige que se oculte uma

das vitórias do espírito de Cesariny (em mim) para que soe uma fala despida de paixão e

comoção. Se, para Michel Schneider (1991, p. 16), o “encontro do autor com ‘seu’ leitor –

quem pertence a quem? – tem muito do encontro às cegas em que, cada um, crendo se

interrogar sobre o outro, na verdade espera que este lhe diga sua própria identidade”, neste

trabalho sobre algumas cenas da escrita de Cesariny, as perguntas lançadas sobre a poética do

surrealista revelam muito mais a respeito da minha própria trajetória de leitura dentro dos

muros de seu Elsinore do que da obra que Cesariny pretendeu ter escrito.

Segundo o artista, “não se trata do poema a domicílio uma vez por semana ou mil

vezes por dia, trata-se de um ataque e de uma defesa inextrincavelmente ligados à expressão

do ser vivo, trata-se de todos os homens e de todos os dias” (CESARINY, 1997 [1966], p.

13). Para ele, o Surrealismo, como “atitude do espírito humano” (PAZ, 1980, p. 31, tradução

minha)1, é forma de criação e transformação do mundo. Trabalhar com a sua poesia significa,

portanto, abordá-la enquanto processo aberto, em suspensão, nunca como obra fechada e total,

fundamentalmente ligada ao nosso tempo de leitura. Octavio Paz, um dos mais célebres

pensadores e praticantes do Surrealismo fora da França, afirma que “desde o princípio, a

1 “El surrealismo es una actitud del espíritu humano” (PAZ, 1980, p. 32). Todas as traduções de PAZ (1980) são minhas.

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concepção surrealista não distingue entre o conhecimento poético da realidade e sua

transformação: conhecer um ato que transforma aquilo que se conhece” (PAZ, 1980, p. 32)2.

Nesse sentido, a seleção das cenas que compõem o corpus desta pesquisa é resultado

de um percurso ao longo do qual procurei a resposta para uma pergunta suscitada por outra

leitora da obra de Cesariny, Maria de Fátima Marinho Saraiva, em seu O surrealismo em

Portugal e a obra de Mário Cesariny de Vasconcelos (1986). Para essa autora, apesar de ter

iniciado sua trajetória como poeta em 1950 com a publicação de Corpo visível, a partir dos

livros Manual de prestidigitação (1956) e Pena capital (1957), Mário Cesariny “[se] dedica

cada vez mais à ‘Definição de uma Arte Poética’ que, sendo inegavelmente surrealista, é

sobretudo cesarinyana” (SARAIVA, 1986, p. 306). Reconhecendo que, com esses livros,

Cesariny de fato parecia apresentar uma poética mais “sólida”, restava descobrir o que

significa essa “Arte poética” e como seria possível caracterizá-la.

Nas palavras escolhidas por Saraiva para abordar essa fase da escrita de Cesariny,

encontramos já uma característica da “Arte poética” “sobretudo cesarinyana”. Afirmando

tratar-se da dedicação à definição de uma arte poética, Saraiva sugere que de maneira alguma

a definição é final, uma vez que, se o poeta a isto se dedica, é porque se trata de um trabalho

ainda em operação, o qual poderia ser concluído após esse período. Assim, na tentativa de dar

contorno a alguns aspectos fundamentais desse trabalho de definição, farei um exercício de

leitura de cinco poemas seus nos quais o desenvolvimento de uma poética é feito sobre um

palco: “tal como catedrais”, do livro de 1956, “you are welcome to elsinore”, “autografia I”,

“a antonin artaud” e “pena capital”, da publicação de 1957. Como “inegavelmente

surrealista”, será necessário recorrer frequentemente a ensaios e outros poemas seus, bem

como a textos de intervenção produzidos por companheiros de movimento – portugueses e

franceses – que revelam algumas características fundamentais do Surrealismo e da relação

que Mário Cesariny com este estabeleceu.

Veremos como as cenas de escrita representadas nesses poemas apresentam um

personagem – “um homem / um poeta” (CESARINY, 2004, p. 36) – que se encontra

“exorcismando ao seu atelier” (CESARINY, 2004, p. 78). Se, para Rosa Maria Martelo,

“quando um poema se transforma em cena de escrita, o que nos é dado a ver é sempre a

2 “Desde el principio la concepción surrealista no distingue entre el conocimiento poético de la realidad y su transformación: conocer un acto que transforma aquello que se conoce” (PAZ, 1980, p. 32).

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poética que lhe está subjacente, numa situação que lhe dá corpo, espessura e concreção”

(MARTELO, 2010, p. 323), então, essas composições parecem assentar sobre uma

simultaneidade da apresentação de uma teoria e da prática de poesia. Assim, contam com um

caráter performático próprio da linguagem teatral, quando “dizer é fazer”, indicando “sua

força performática, seu poder de, simbolicamente, levar a cabo uma ação” (PAVIS, 2011, p.

103).

Apresentando, dessa forma, um conjunto de convenções e técnicas para a escrita de

poesia, os textos podem ser considerados como “artes poéticas” cesarinyanas. Ao contrário

das artes poéticas da Antiguidade e do Renascimento, as quais procuravam definir regras

gerais para a escrita, as reflexões acerca da função da poesia e do papel do poeta no mundo

nas composições de Cesariny parecem fundar uma poética particular. Segundo Greene et alii

(2012), com a redação de diversos tratados de poética, os críticos renascentistas encabeçavam

um movimento de defesa da poesia e “dos princípios da educação humanista” (GREENE et

al., 2012, p. 1158, tradução minha)3. Contudo, “as teorias desenvolvidas [...] estavam

frequentemente distantes da realidade do mercado literário” (GREENE et al., 2012, p. 1162)4,

e a única maneira de se falar sobre arte era limitada pelos “termos formulados e promulgados

pela poética renascentista” (GREENE et al., 2012, p. 1162)5. Na tentativa de definir sua

própria poética, podemos perceber que Cesariny não tem em vista a formação de outros

poetas, mas sugere um modo próprio de funcionamento de sua poética e, assim, alguns

protocolos de leitura.

Dessa forma, proponho um percurso por alguns poemas de Cesariny ao longo do qual

seremos convidados a “descobrir os pontos nevrálgicos da cenografia ou do espaço teatral, a

não considerar o cenário como fixo e acabado, mas como um local onde o olhar se investe de

maneira diferente conforme os momentos do espetáculo” (PAVIS, 2011, p. 283), como numa

peça de teatro na qual se espera que os espectadores adentrem o cenário. Guiados por aquele

que se assume como um “eu”, veremos como os poemas selecionados se revelam inacabados

3 “Ren. crit. began in the struggle […] to put forward tenets and practices of humanist education” (GREENE et al., 2012, p. 1158). Todas as traduções de GREENE et al. (2012) são minhas. 4 “The theories that were produced by Ren. critics […] were often divorced from the realities of the literary marketplace” (GREENE et al., 2012, p. 1162). 5 “the only way […] [anyone] could talk about art was in the terms formulated and promulgated by Ren. poetics” (GREENE et al., 2012, p. 1162).

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e imperfeitos, sugerindo que a Arte poética que Cesariny se dedica a definir guarda “inerentes

avarias centrais” (CESARINY, 2008, p. 150).

Partindo da proposta de leitura segundo a qual os poemas de Cesariny selecionados

representariam cenas de escrita, algumas questões surgem, como, por exemplo, quem estaria

sobre o palco, a quem se dirige, qual a relação entre a poesia e o drama? Elemento principal

do texto teatral, o diálogo é “a forma fundamental e exemplar do drama” (PAVIS, 2011, p.

96) e parece ser, também, o modo de ação dos poemas que constituem o corpus desta

pesquisa. Tomando, assim, como central a busca pelo outro – seja este representado por um

“tu” leitor e amante, seja por textos alheios –, esta dissertação se divide em três capítulos nos

quais três elementos fundamentais da poética de Cesariny se delineiam: a identidade do outro

a quem o poeta se dirige, a identidade do próprio poeta e a potência criadora das palavras, sua

capacidade de “reabilitação do real quotidiano”6. Apesar de serem analisados a partir dos

diferentes efeitos revelados pelo encontro com o outro, os poemas se complementam,

revelando a persistência dessas questões em cada um deles.

No primeiro capítulo, “O depois e o antes da escrita”, entra em cena um poeta

hesitante diante do uso das palavras, as quais surgem carregadas de sentidos a elas atribuídos

por outros poetas, e em busca de um interlocutor sem o qual o seu trabalho não tem razão de

ser. Os dois poemas analisados omitem a cena de escrita, uma vez que, em “tal como

catedrais”, o ato poético já se consolidou e, em “you are welcome to elsinore”, não foi ainda

consumado, levando-nos a crer que os textos que temos diante de nós não são aqueles que o

poeta desejava ou deseja escrever.

No capítulo seguinte, “O sujeito poético em transformação”, o diálogo é tomado como

uma forma de revelação daquele responsável por conduzi-lo e não daquele a quem se dirigem

perguntas, manifestando um desdobramento da moderna instabilidade das figurações autorais.

Em “autografia I”, veremos o encontro de Cesariny com a poética do fingimento pessoana, a

partir do qual tentará definir sua própria identidade, ligando-a à potência criadora da palavra

poética. Em “a antonin artaud”, a homenagem dedicada ao fundador do Teatro da Crueldade

aponta o desejo de “romper de vez a armadura, arrebentar a golilha” (ARTAUD, s/d, p. 117) e

6 Cf. CESARINY, Mário. Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano. Lisboa: Delfos, 1961.

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a necessidade de reivindicação de “nomes / puros” (CESARINY, 2004, p. 50-51) como

exercício de liberdade e fundação de um novo sujeito.

O título deste trabalho antecipa o capítulo final, “O poema como palco”. Nele,

proponho a leitura do poema “pena capital”, cuja estrutura de texto dramático é revelada a um

breve lançar de olhos sobre o papel. Ao longo de uma viagem cósmica, o personagem poeta

encontra os símbolos do imaginário português e ocidental transformados em personagens

atuantes. A partir de sua leitura, será possível perceber como Cesariny espetaculariza o

processo de criação artística e mostra ao leitor a potência da palavra poética.

Os cinco poemas parecem desestabilizar nosso papel pretensamente assegurado de

leitores e nos interpelam, dirigindo-se a nós na forma de um “tu”, um “nós”, um “viandante”.

Assumindo o meu papel de leitora convocada pela obra de Cesariny, não será de meu

interesse esmiuçar até o “último” nível cada referência que o poeta faz a outros textos –

tampouco creio na existência desse nível, uma vez que a leitura “não se limita à redução de

um texto ao cerne de qualquer propósito predeterminado, sendo também a ligação dos sinais

de um texto ao conjunto de outros sinais” (SCHOLES, 1991, p. 26-27), dependendo, portanto,

tanto do momento de escrita do texto, quanto daquele no qual ele é lido. Dessa forma,

desenvolverei, em cada um dos poemas, aquele que me parece o diálogo mais fecundo

estabelecido entre Cesariny e outros autores, percebendo como o “autoractor” (CESARINY,

2004, p. 91) em cena representa dois papéis – ele é tanto escritor, quanto leitor.

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2. O depois e o antes da escrita

Octavio Paz, na seção “Poesia e história” de O arco e a lira (1982), afirma que a

palavra poética “é histórica em dois sentidos complementares, inseparáveis e contraditórios:

no sentido de constituir um produto social e no de ser uma condição prévia à existência de

toda sociedade” (PAZ, 1982, p. 226). Os poemas são feitos, portanto, a partir de um ponto na

história, mas são também capazes de atravessá-la, uma vez que se realizam a cada vez que

encontram um leitor, onde quer que este esteja. O momento consagrado pelos poemas “é

perpetuamente suscetível de se repetir em outro instante, de se reengendrar e iluminar com

sua luz novos instantes, novas experiências” (PAZ, 1982, p. 227).

Os poemas de Mário Cesariny que temos diante de nós situam-se justamente nessa

fratura do tempo cronológico, ao qual Paz denomina “tempo arquetípico”, aquele que “já não

é passado nem futuro, mas presente” (PAZ, 1982, p. 228). Contudo, não se trata apenas do

aparecimento do tempo de sua escritura naquele no qual lemos os poemas, mas da

emergência, no momento em que são escritos, de outros poemas lidos pelo próprio poeta, da

palavra poética encarnada (PAZ, 1982). Dessa forma, a ruptura com a perspectiva de um

desenrolar linear do tempo dá-se a partir da leitura de outros poemas na cena de escrita,

implicando uma construção potencialmente em abismo – sucessão e retomada infinita de

outros tempos e vozes presentificadas pelo trabalho de leitura-e-escritura ou de “escrita-e-

leitura” (GUSMÃO, 2000, p. 277) empreendido pelo autor. Nesse sentido, o poeta que

encontramos nas cenas dos poemas de Mário Cesariny interpreta dois papéis: o de leitor

formado por uma herança poética e o de escritor em crise com a matéria prima de seu trabalho

– as palavras.

O projeto poético que vemos em construção nos poemas selecionados para este

trabalho parece se inscrever numa “tradição moderna da poesia” na qual “[a] crítica da

tradição se inicia como consciência de pertencer a uma tradição” (PAZ, 2013, p. 21). Neste

primeiro capítulo, dialogaremos com dois poemas: “tal como catedrais” e “you are welcome

to elsinore” – o primeiro publicado em Manual de prestidigitação, em 1956, o segundo, em

Pena capital, em 1957. Neles, entra em cena um poeta hesitante diante do uso das palavras, as

quais surgem carregadas de sentidos a elas atribuídos por certa tradição, e em busca de um

interlocutor sem o qual seu trabalho não tem razão de ser.

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Nas cenas representadas em ambos, o ato poético já se consolidou ou não foi ainda

consumado, levando-nos a crer que os poemas que temos diante de nós não são aqueles que o

poeta desejava ou deseja escrever. Encontramos, portanto, um autor obrigado ao incômodo

convívio com a tradição e em confronto com as palavras que, “justamente por serem palavras,

são suas e alheias” (1982, p. 226), como lembra Paz. A criação poética se apresenta, assim,

como uma atividade que só pode ser empreendida a partir do encontro de pelo menos dois

corpos, representados não apenas pelo “tu e eu”, de “tal como catedrais”, ou pelo “nós”, de

“you are welcome to elsinore”, mas também pelo jogo intertextual ao qual os poemas se veem

obrigados. O diálogo com a tradição se torna uma condenação, uma pena capital para o poeta

que busca a construção de voz e identidade próprias em meio ao coral massificado e

dessubjetivado do discurso neorrealista, o qual não deixa de encontrar seu paralelo no

discurso oficial fascista do Estado Novo uma vez que a união com o outro em ambos os casos

não parece se dar em termos de uma valorização do encontro de individualidades, mas de

“papéis sociais” – trata-se do “povo”. Cesariny, em seu Nicolau Cansado Escritor, escrito em

1944, satiriza a literatura neorrealista e “busca retratar o romanticismo idealista, ‘pré-

hegeliano’, dos poetas do ‘Novo Cancioneiro’” (CESARINY, 1997, p. 51). No poema

“Reabastecimento”, abaixo, o surrealista apresenta uma contundente crítica à tentativa dos

poetas do Neorrealismo de representação do “povo”, sugerindo que os poetas do Novo

cancioneiro procurariam o povo para se “reabastecerem” de matéria sobre a qual escrever,

apontando, assim, a existência de uma distância entre eles:

Vamos ver o povo. Que lindo que é. Vamos ver o povo. Dá cá o pé. Vamos ver o povo. Hop-lá! Vamos ver o povo. Já está. (CESARINY, 1961, p. 44).

A dicção do surrealista, portanto, propõe a quebra desse paradigma e afirma sua autoridade –

o que é próprio do autor – como a única liberdade possível, como defende no ensaio-poema

“Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (CESARINY, 1985, pp. 73-75), apostando

num encontro amoroso com o outro, o qual não é coletividade massificada, mas

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individualidade, entrega ao mesmo tempo única e múltipla, como percebemos em “tal quando

catedrais”, no encontro com um “TU MEU ÚNICO AMOR MEU AMOR / MEU

MÚLTIPLO AMOR MEU” (CESARINY, 2008, p. 151).

2.1 “tal como catedrais”

No livro Manual de prestidigitação, Mário Cesariny iniciou sua busca pela “definição

de uma Arte poética” (1986, p. 306), conforme anotou Maria de Fátima Marinho Saraiva.

Como anuncia o título da publicação, Cesariny produz um “manual” de ilusionismo, um

instrumento que permitiria ao leitor acessar e reproduzir o processo de criação poética, o qual

depende do trabalho manual, de digitação, comparado à ilusão, ao engano e ao fascínio. Nesse

livro, encontram-se diversos poemas que fazem referência direta ao universo teatral e que

revelam a relação entre poesia e espetáculo na obra do surrealista. Em diversas composições,

como “cena para final de um terceiro acto”, “o prestidigitador organiza um espetáculo”, ou

“coro dos maus oficiais de serviço na corte de epaminondas, imperador”, somos conduzidos

por pequenos fragmentos de um espetáculo de ilusionismo no qual as palavras enunciadas

adquirem um poder performático e genesíaco.

No “manual” que nos é apresentado, concedendo ao leitor o acesso a seus “truques”,

algo que jamais é revelado por um prestidigitador, o autor vê-se desabrigado de sua posição

de proprietário da obra, detentor de sentido e verdade plenos. No poema “tal como catedrais”,

com o “deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores”, constata-se que “uma obra

está completa”. A afirmação é válida tanto como uma referência à sua própria poesia quanto

como uma declaração de que ele também “deita a língua de fora” a outros autores. Assim, o

desejo do “Autor” de reencontrar sua Obra no mundo mostra-se uma “esperança cínica e

conservadora”, uma vez que “outros obreiros” dela se apropriarão para construírem suas

próprias obras.

tal como catedrais Consumada a Obra fica o esqueleto da mesma e as inerentes avarias centrais entre céu e terra à espera do descanso Consumada a Obra ficamos tu e eu

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pensando frases como: como é possível? o que foi que fizemos? ou esta, mais voraz que todas as anteriores: Onde está a camisola? Sim realmente onde está a camisola? Ola palavra espanhola que quer dizer-nos: Onda coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras há tantos anos não há aí quem possa dar descanso a estas senhoras? O rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia — frase entre todas triste, a atentar na significação Sim consumada a Obra sobram rimas pois ela é independente do obreiro no deitar a língua de fora, no grande manguito aos Autores é que se vê se uma obra está completa Fiquemos tristes abraça-me nós fizemos tão pouco e ela aí vai pelo mar fora cavando a sua avaria! (O mundo é redondo talvez a reencontremos... — Esperança cínica e conservadora...)

TU MEU ÚNICO AMOR MEU AMOR MEU MÚLTIPLO AMOR MEU!

Sim, sim, de facto Efectivamente mas o dia arrefece e pálidos pálidos estamos (CESARINY, 2008, pp. 150-151).

Começo por um poema que retrata uma cena final, localizada num momento posterior

à “consumação” de uma “Obra”. Exaurido e “pálido”, o poeta, arquiteto ou engenheiro dessa

empreitada foi abandonado por sua criação, ser “independente do obreiro”. Lançando sobre a

atividade já terminada um olhar retroativo, o sujeito do poema interroga um “tu” com o qual

teria “consumado a obra”: “o que foi que fizemos?”. O encontro de “tu e eu” como ponto de

partida para a criação da Obra mostra que esse processo não se dá de forma solitária, pelo

contrário. Equivale a um encontro erótico que se confirma também amoroso na penúltima

estrofe. Logo, a consumação da Obra é a de um matrimônio, encontro fértil e criativo entre

“tu e eu”: amado e amador, mas também o lido e o escrito, leitor e escritor. O momento dessa

conjunção é a cena que não vemos no poema. O sujeito tampouco parece saber como se deu o

ato, como percebemos na interrogação “como é possível?”, ou ainda na constatação de que

“fizemos tão pouco”.

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Tal afirmação reforça a ideia exposta de forma simplória na abertura do poema de que

“[c]onsumada a Obra fica o esqueleto da mesma / e as inerentes avarias centrais”. Apoiando-

nos na comparação arquitetônica expressa pelo título, podemos pensar como essa afirmação

inicial vai na contramão do que se espera de uma obra concluída: paredes, janelas, teto,

telhados e portas bem traçados e executados – não o esqueleto da obra ou uma declaração do

obreiro a respeito das “inerentes avarias centrais” da construção. No entanto, a obra de

Cesariny aceita sua condição de terminada, não de concluída. Ao admitir que o que fica desta

é “o esqueleto da mesma”, reconhece que o único traço de autoria que resta é o projeto inicial

sobre o qual se ergue. Da mesma forma, confessar a existência de “inerentes avarias centrais”

é aceitar a iminência da ruína daquilo que propõe, entregando a obra à própria sorte.

A separação entre obreiro e Obra se reflete no isolamento dos construtores “tu e eu”

frente a ela, algo que se realiza visualmente no poema, percebido pelo deslocamento das

referências aos dois à direita nos quarto, quinto e sexto versos da primeira estrofe do poema:

Consumada a Obra ficamos tu e eu pensando frases como: como é possível? o que foi que fizemos? (CESARINY, 2008, p. 150).

A partir do oitavo verso – “Onde está a camisola?” –, há uma mudança no

alinhamento dos versos do poema, com um recuo progressivo à esquerda, indicando a

introdução da reflexão antes reservada a um espaço circunscrito ao “tu e eu” como um

caminho de desenvolvimento do poema como um todo, algo que é reforçado, ainda, pela

repetição da mesma interrogação, porém já realocada à posição convencional do verso:

ou esta, mais voraz que todas as anteriores: Onde está a camisola? Sim realmente Onde está a camisola? Ola (CESARINY, 2008, p. 150).

Como é possível perceber, o poema evoca diferentes vozes seja pela inserção de

pequenos fragmentos discursivos que rompem a progressão temática no interior de cada

estrofe, seja pelos ecos de citações provenientes da cultura portuguesa, como veremos

adiante. Tal multiplicidade de discursos com a qual o poema é tecido reflete a própria

discussão nele desenvolvida a respeito da condição das palavras, atravessando “fronteiras há

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tantos anos”, revelando uma consciência acerca de seu tempo histórico e da historicidade do

discurso poético. As citações são retiradas tanto de seu cânone literário – como é o caso do

poema de Fernando Pessoa “Tenho dó das estrelas” –, quanto da tradição popular –

representada pelo trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia” ou, ainda,

pelo apelo ao imaginário marítimo português, percebido na referência ao lugar de deriva das

obras (“e ela aí vai pelo mar fora cavando sua avaria”) e na comparação das obras com

navios. Como observaremos ao longo deste trabalho, a metáfora da obra, ou do poema, como

navio ou jangada no mar é recorrente no trabalho de Mário Cesariny, encontrando-se nos

poemas “O navio de espelhos”, de A cidade queimada (1965), “Pena capital”, de Pena capital

(1957), poema que analisaremos no terceiro capítulo, e no poema II do Discurso sobre a

reabilitação do real quotidiano (1952). Da mesma forma, podemos observar a curiosa escolha

de palavras de Cesariny para se referir à sua adesão ao surrealismo: “[é]ramos umas pessoas

zangadas no meio do mar alto e havia um naufrágio – nós escolhemos a mesma jangada”

(CESARINY apud SARAIVA, 1986, p. 66).

Em ABC of Reading, Ezra Pound desenvolve a ideia de que a poesia seria “a mais

concentrada forma de expressão verbal” (POUND, 1991, p. 36, tradução minha)7, querendo

com isto dizer que as palavras dos poemas estão em um estado limite de saturação de

significados. Nesse sentido, afirma que

7 “the most concentrated form of verbal expression” (POUND, 1991, p. 36). Todas as citações de Pound em inglês foram traduzidas por mim. Opto, aqui, pela citação de Pound no original, uma vez que a tradução para o português que tenho em mãos percebe “concentrated” enquanto sinônimo de “condensado”. Observando que antecede a essa passagem a citação “Dichten = condensare”, e que Pound escolhe utilizar “concentrated” em lugar da tradução “mais fiel” (e também mais óbvia e imediata) ao significante latino, “condensed”, acredito que é relevante mantermos a distinção perceptível no original. Descartando, por ultrapassar os limites deste trabalho, a discussão metafísica que poderia ser suscitada por essa distinção, sugiro uma metáfora química que subjazeria às ideias de “condensação” e “concentração”: a condensação é um processo de transformação, como é o caso da transformação de vapor em líquido; a concentração está relacionada ao excesso de determinada substância em um meio – ideia certamente mais próxima à tese defendida por Pound a respeito do “excesso” e da “saturação” de significados convocados por determinadas palavras.

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O bom escritor escolhe suas palavras por seu ‘significado’, mas esse significado não é algo tão predeterminado e limitado como os movimentos do rei ou do peão sobre um tabuleiro de xadrez. O significado surge com raízes, com associações, com o como e quando a palavra é comumente utilizada, ou onde foi utilizada brilhante ou memoravelmente (POUND, 1991, p. 36, grifo meu)8.

Podemos perceber como o poema de Cesariny acima parece dialogar com o conceito de

Pound a respeito da saturação da linguagem de diversas formas, tanto no tocante à temática do

poema quanto em sua própria estrutura. Retomando os conceitos de “esqueleto” e de

“inerentes avarias”, podemos nos aproximar da tese de Pound pelo viés do leitor, alguém que

deve ser capaz de construir, sobre esse esqueleto, um acabamento, bem como remendar e

reparar as “avarias centrais”. Enquanto leitores de sua obra, cabe a nós um esforço

interpretativo e construtivo sobre o esqueleto da Obra sobre a qual fala o poeta. Como afirma

Pound, certas palavras “provavelmente lançarão sobre a tela mental do leitor a imagem de

uma década passada” (POUND, 1991, p. 37)9 e, continua, “são infinitas as qualidades que

algumas pessoas conseguem associar a uma dada palavra ou tipo de palavra, e a maioria delas

varia de indivíduo para indivíduo” (POUND, 1991, p. 37)10. Cesariny faz o mesmo enquanto

herdeiro de uma tradição que se inscreve também na sua língua. Nesse sentido, falar é citar,

uma vez que as palavras, coitadas, estão “a atravessar fronteiras há tantos anos”.

No entanto, é inerente ao trabalho poético a escolha das palavras, como bem lembra

Pound. Assim, podemos perceber como algumas referências marcantes convocadas em “tal

como catedrais” emergem como um trabalho de citação, que deve ser pensado enquanto tal,

ou seja, enquanto processo e ato, como o pensou, também, Antoine Compagnon. Em O

trabalho da citação (1996), Compagnon aborda o conceito de “working paper”, ou “trabalho

em processo”, afirmando que é preciso distinguir o sentido da citação do ato da citação. O

crítico afirma que “o sentido vem por acréscimo, ele é o suplemento do trabalho; [é] preciso

distingui-lo do ato e da produção para não ignorar estes últimos, para não confundir o sentido

da citação (de enunciado) com o ato de citar (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p. 46).

No poema de Cesariny, podemos perceber como o esforço de apagamento e rasura das vozes

8 “the good writer chooses his words for their “meaning”, but that meaning is not a set, cut-off thing like the move of knight or pawn on a chess-board. It comes up with roots, with associations, with how and where the word is familiarly used, or where it has been used brilliantly or memorably” (POUND, 1991, p. 36) 9 “will probably throw the image of a past decade upon the reader’s mental screen” (POUND, 1991, p. 37). 10 “there is no end to the number of qualities which some people can associate with a given word or kind of word, and most of these vary with the individual” (POUND, 1991, p. 37).

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que emergem no dizer do sujeito poético transformam-se na própria “Obra”, uma vez que, ao

mesmo tempo que causam o apagamento daquela que se diz consumada no início do poema,

criam uma nova cena, a de um momento posterior à escrita, fazendo com que a “Obra” sobre

a qual se fala simultaneamente seja e não seja a obra que nos fala.

Se, para Compagnon, “[o] texto, o fenômeno ou o trabalho de citação, é o produto da

força pelo deslocamento” (1996, p. 48), torna-se necessário pensarmos as citações do poema

de Cesariny a partir dos processos de deslocamento e desapropriação, a começar pelo jogo

com o poema de Fernando Pessoa “Tenho dó das estrelas”. Nesse sentido, podemos perceber

como esses processos sobre os discursos canônicos se dão através da construção do

argumento defendido por Cesariny a respeito do cansaço das palavras a partir da

transformação de versos do poema de Pessoa, reproduzido abaixo11, nos versos cesarinyanos

“coitadas das palavras sempre a atravessar fronteiras há tanto ano / não há aí quem possa dar

descanso a estas senhoras?”.

Tenho dó das estrelas Luzindo há tanto tempo, Há tanto tempo... Tenho dó delas. Não haverá um cansaço Das coisas, De todas as coisas, Como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, De ser, Só de ser, O ser triste brilhar ou sorrir... Não haverá, enfim, Para as coisas que são. Não a morte, mas sim Uma outra espécie de fim, Ou uma grande razão – Qualquer coisa assim Como um perdão? (PESSOA, 1985, pp. 148-149).

11 Este poema de Pessoa foi citado mais de uma vez por Mário Cesariny, conforme verificamos na seção V do poema “Discurso”, publicado em Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano, de 1952. O primeiro verso do poema é já uma citação de “Tenho dó das estrelas”: “Falta por aqui uma grande razão” (CESARINY, 2007, p. 25).

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O poema acima, tal qual o de Mário Cesariny, parece relacionar aquilo que é dado

como eterno e imutável ao cansaço e à fadiga consequentes da travessia temporal, ao mesmo

tempo que apresenta como alternativa à existência “para as coisas que são” uma espécie de

redenção. Nesse sentido, constitui uma crítica a respeito da longevidade e eternidade das

estrelas quando comparadas à sua própria condição mortal, percebida pelo “dó” que sente dos

astros. O sentimento de pena só o podemos sentir através da constatação da diferença da nossa

própria condição quando comparada à do outro: só podemos “ter dó” na medida em que nos

distanciamos e diferenciamos do outro. Encontramos, nos poemas apresentados, a “crítica à

eternidade em que consiste essencialmente a modernidade” (2013, p. 35), como resume

Octavio Paz, uma vez que afirmam sua permanência e sobrevivência através da

transformação, como percebemos principalmente no poema de Mário Cesariny.

Parece haver, assim, uma manifestação da consciência histórica dos poetas,

representada pelo desejo de pôr “uma outra espécie de fim”, percebido não como uma morte,

mas como uma atribuição de nova finalidade às estrelas que brilham desde tempos

imemoriais. Ao apropriar-se do poema de Fernando Pessoa, Cesariny mostra que o brilhar das

estrelas não é por ele percebido como estático, apesar de apontar a permanência dos astros,

agora “palavras”. Tal como catedrais e obras, as palavras e as estrelas, apesar de longevas e

perenes, estão expostas aos efeitos do tempo, ao desgaste físico e a sucessivas transformações.

Cabe àqueles “bons poetas” sobre os quais fala Pound escolher conscientemente as palavras

que foram usadas “brilhante ou memoravelmente”, cujos significados surgem “com raízes,

com associações”. Por esse motivo, Cesariny opera a troca entre “estrelas” e “palavras”,

apropriando-se do poema de Pessoa e transformando a metáfora já por demais “carregada”

pela fala daquele poeta. É como se o surrealista percebesse que o brilho que emana das

estrelas atravessa distâncias temporais e espaciais, ou que elas “vão pelo mar fora cavando

sua avaria”, e, mesmo após a sua morte, continua a chegar até o nosso tempo e olhar. Assim,

deslocar o discurso pessoano equivale a apontar para as próprias estrelas um espelho de circo,

que distorcesse a luz que delas mesmas emana. A partir dessa nova luz, poderíamos perceber

as estrelas de outra forma.

Assim, “tal como catedrais” desfaz a metáfora da longevidade das estrelas e toca

direta e literalmente no problema da saturação da linguagem, transformando “estrelas” em

“palavras”. Ao citar Fernando Pessoa para abordar sua travessia temporal, Cesariny reforça a

ideia da transitoriedade já inscrita em “Tenho dó das estrelas”. A transformação de “estrelas”

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em “palavras”, bem como a substituição do “dó” sentido pelo eu-lírico pessoano pela

expressão “coitadas das palavras”, a qual ecoa o irônico “Coitado do Álvaro de Campos”12,

provocam certo efeito humorístico no poema de Cesariny para além da aparente melancolia

evocada pelo poema pessoano. O deslocamento da poética de Pessoa e a apropriação radical

dos elementos de sua (ou de qualquer outra) poética ressoam, ainda, na afirmação de que a

obra “é independente do obreiro”.

O poeta que consuma a obra, em “tal como catedrais”, reconhece como “esperança

cínica e conservadora” a pretensão de reencontrá-la no mundo, uma vez que é na

independência daquilo que constrói que se verifica sua completude. O reencontro com a Obra

é impossível, pois as únicas coisas que dela restam após consumada seriam o esqueleto, ou o

projeto inicial proposto pelo criador, e as “inerentes avarias centrais”. A partir daí, será

tomada por outros “obreiros” que deitam “a língua de fora, no grande manguito aos Autores”,

da mesma forma que Cesariny o fez frente à tradição que o constituiu, confirmando que a

Obra mesmo quando consumada não está concluída – fez-se “tão pouco”.

A censura de Cesariny sobre o poema de Pessoa implica um movimento complexo. Ao

negar o metafórico “estrelas”, Cesariny atua sobre ele – agora percebido de outra maneira

pelos leitores de um e de outro – e, além de introduzir em “tal como catedrais” a ideia de

cansaço do que é eterno, como também se vê em “Tenho dó das estrelas”, indica o

reconhecimento da transitoriedade de seu momento presente, já que é uma “esperança cínica e

conservadora” querer reencontrar a “sua” Obra no mundo, pois esta pode ser, como aconteceu

com o poema de Pessoa, transformada por outro “obreiro”. Dessa forma, a experiência do

presente não é consequência de uma cronologia linear que liga passado, presente e futuro, mas

está fundamentalmente ligada a uma concepção moderna de transmissão da cultura. Como

afirma Luciano Gatti,

12 PESSOA, Fernando. Obra poética: em um volume. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 413-415.

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[s]endo uma tarefa do presente constituir uma relação produtiva com o passado, a experiência não é assim um tempo pleno que se desenrola do passado ao futuro, formando uma continuidade. Ela é, isso sim, uma descontinuidade, uma atividade que tem que ser reiterada a cada momento, uma retomada que não ocorre automaticamente. Tal contato está sempre sujeito ao perigo e ao risco envolvidos no processo de transmissão da cultura (GATTI, 2009, p. 173).

Em Os filhos do barro (2013), Octavio Paz afirma que a modernidade é uma tradição,

desenvolvendo a ideia de que a “ruptura”, marca da modernidade, tornou-se uma constante.

Haveria, assim, um movimento recorrente de interrupção da tradição na modernidade e, por

esse interminável movimento de ruptura, a modernidade ela mesma torna-se uma tradição –

permanente negação de uma tradição que precede a ruptura que é. Nas palavras de Paz,

desde o princípio do século XIX fala-se da modernidade como uma tradição e se pensa que a ruptura é a forma privilegiada da mudança [...]. A modernidade é uma tradição polêmica que desaloja a tradição imperante, seja ela qual for; mas só a desaloja para, no instante seguinte, ceder o lugar a outra tradição, que, por sua vez, é mais uma manifestação momentânea da atualidade (PAZ, 2013, p. 15).

O poema de Cesariny que se encontra acima traz ainda outros discursos tradicionais da

cultura portuguesa e lusófona, como é o caso da alusão ao imaginário marítimo, introduzido

na segunda estrofe. Feita de forma jocosa, a partir do destaque do significante “ola” dentro da

palavra “camisola”, Cesariny mostra o quanto as palavras estão saturadas de significados, que

surgem das mais inesperadas maneiras. A referência ao mar introduz no poema a reflexão

crítica a respeito da historicidade do discurso poético, a qual conduzirá o desenvolvimento do

tema do caminho inesperado seguido pela obra poética no mundo, independente do destino

que lhe dá seu autor, ao seguir à deriva, “pelo mar fora cavando a sua avaria”. Ao abordá-lo

de forma tão surpreendente e quase despropositada, Cesariny opera uma ruptura na relação

que se tem com um dos pilares fundamentais da cultura portuguesa, inúmeras vezes revisitado

e reelaborado por outros poetas e artistas do país. No texto “Adeus às armas” (2002), Jorge

Fernandes da Silveira, refletindo acerca da impregnação em mais alto grau do imaginário

marítimo, afirma que

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[a] saturação que, ao longo dos séculos, foi-se inscrevendo na linguagem da Literatura Portuguesa voltada para o mar implica, hoje, a necessidade de uma viagem de reconquista da terra como paisagem e, portanto, como desejo de uma ficção que, enfrentando o “nó” do passado feito na água, movimente em novas empresas o imaginário português (SILVEIRA, 2002, p. 39).

Assim, a referência à tradição parece apontar o reconhecimento desse caráter “concentrado”

de suas imagens e palavras-chave. A eleição do espaço marítimo como lugar da deriva das

Obras é oportuna, ainda, ao trazer em si a metáfora da tradição ao mesmo tempo que aponta

seu desgaste. Mar cultural, símbolo da tradição literária portuguesa aqui transfigurado em

espaço por onde seguem as palavras, fatigadas, as “senhoras” a quem é preciso “dar

descanso”.

Outro traço da tradição pode ser percebido pela inserção igualmente inesperada do

trava-línguas “o rato roeu a rolha da garrafa do Rei da Rússia”, deslocado e transformado pelo

discurso poético cesarinyano: “frase entre todas triste, a atentar na significação”. Ao apontar

para a “significação” da frase, “entre todas triste”, o poeta põe em questão um caráter quase

sempre ignorado dos trava-línguas, o sentido, uma vez que são expressões marcadas pelo

caráter sonoro e performático, características materiais que se encontram fora do campo dos

significados. Porém, ao ser efetivamente escrito no poema, deixa de ser percebido como uma

frase cujo valor é puramente sonoro e humorístico, para ganhar o valor de significação, algo

que podemos perceber como um traço profundamente irônico – e essencialmente crítico – da

poesia de Cesariny. Nesse movimento de deslocamento do discurso que pertence quase

exclusivamente ao campo material (sonoro e performático) para o abstrato (o dos

significados), podemos perceber uma crítica a um lirismo exacerbado e a uma solenidade da

poesia. Ao mesmo tempo, cria um novo trava-línguas para o leitor, através das repetições da

consoante [t] e dos encontros consonantais [tr] ou [fr], o que produz dois efeitos: por um lado

reforça a mistura entre os planos material – aquele dos sons, da execução, ou da performance

sonora – e abstrato – aquele dos significados –, por outro, ativa a memória de outro trava-

línguas, ou seja, a memória cultural associada a “três pratos de trigo para três tigres tristes”,

uma vez que se utiliza das mesmas consoantes e encontros consonantais dessa expressão,

além de repetir o vocábulo “triste” em seu novo trava-línguas.

“tal como catedrais” explora, portanto, o deslocamento e a desapropriação dos

discursos, algo que não é dado apenas no nível do “tema” do poema e de seu marcante caráter

metapoético, mas se dá em sua própria estrutura, uma vez que Cesariny demonstra a partir do

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que escreve o processo de pilhagem da tradição empreendido também por ele. Na tentativa de

definição de uma Arte poética, na escrita de um manual de prestidigitação, o autor instaura

um “protocolo de leitura” (SCHOLES, 1991) com o qual pressupõe um trabalho por parte de

seu interlocutor, reforçado ainda pelas expressões injuntivas “fiquemos tristes” e “abraça-

me”. Nesse sentido, o “tu” interpelado pelo sujeito poético seríamos nós leitores, afetados por

seu discurso. Se, para Paz, “o poema é mediação entre uma experiência original e um

conjunto de atos e experiências posteriores” (1986, p. 227), o mesmo parece se verificar no

projeto de definição de uma arte poética cesarinyana. Nela, os leitores surgimos como

personagens fundamentais, convocados pelo sujeito poético a sermos seu “ÚNICO AMOR” e

passarmos a “MÚLTIPLO AMOR”, o qual, na concepção surrealista, “assume um carácter de

gnose” (CORREIA, 1973, p. 62).

No poema a ser analisado na próxima seção, veremos como a busca desse sujeito por

um diálogo amoroso com o outro emerge como uma alternativa aos discursos dominantes,

dado o contexto do Estado Novo e a cena literária neorrealista. Os últimos, frontalmente

criticados por Cesariny, ao falar “‘em nome’ do povo e ‘para o povo’, nem do povo eram

lidos nem curavam (ou podiam) (ou saberiam) dar-lhe textos capazes de ilustrar a palavra de

ordem de Lénine: ‘Nada é bom demais para os operários.’” (CESARINY, 1985, p. 266). O

poema a seguir não deixa de contemplar e movimentar certa gramática neorrealista,

representada pelas imagens da “noite”, da “escuridão”, do “emparedamento” e das

“muralhas”, conhecidas metáforas para designar o Estado Novo e o fascismo. Da mesma

forma, veremos como Cesariny recorre à voz plural de um “nós” comumente utilizado por

poetas neorrealistas como forma de cantar “em nome do povo e para o povo”. No entanto, o

emparedamento em questão no poema de Cesariny parece tocar diretamente na necessidade

do empreendimento de um trabalho poético de transformação da linguagem como forma de

diálogo com o outro para resistência no mundo ou re-existência do mundo. No ensaio

“Resistência da poesia – resistência na poesia” (2012), Rosa Maria Martelo, a respeito do

progressivo apagamento do pronome “nós” na poesia de Carlos de Oliveira, referindo-se

também a um movimento perceptível nos trabalhos de outros poetas – entre eles, Cesariny – ,

aponta que há uma passagem da

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noção (neo-realista) de escrever ‘no lugar de’, dando voz aos que não a têm, para a noção (modernista) de escrever ‘na intenção de’ [...]. Escrever ‘na intenção de’ era partir do princípio de a poesia ser, em si mesma, um acto de violência e de resistência; era valorizar a condição ontológica propriamente textual e material da escrita e a correlativa emergência de uma subjetivação mais livre (MARTELO, 2012, pp. 39-40).

Nesse sentido, creio ser possível perceber, no poema que se segue, como a retomada do “‘nós’

coral neo-realista” (MARTELO, 2012, p. 39) é feita de maneira a criticar aqueles que

acreditam, ainda, na possibilidade de se cantar em nome de, ou no lugar de, um povo, uma

vez que aponta repetidamente a própria busca pelo diálogo com o outro, o “nosso dever

falar”, para a fundação do canto de liberdade.

2.2 “you are welcome to elsinore”

Ao contrário da cena posterior à escrita representada em “tal como catedrais”, “you are

welcome to elsinore” expõe a gagueira do poeta e sua dificuldade em iniciar o trabalho com

as palavras. Publicado em Pena capital (1957), esse poema é considerado por alguns críticos

como um dos maiores exemplos da poética cesarinyana, sendo objeto de relevantes estudos,

como os ensaios de Perfecto E. Cuadrado, que sucede o poema na antologia Século de Ouro

(2002), e de Manuel Gusmão, “Entre nós e as palavras (Mário Cesariny)” (2010). A

composição parece ter como ponto central a tentativa de expressão e comunicação com o

outro através da fundação de uma linguagem poética frente à constatação da existência de um

intervalo entre o que se deseja exprimir e aquilo que se consegue efetivamente dizer, refletido

pela repetição de uma fórmula ao longo de todo o poema: “entre nós e as palavras”. “you are

welcome to elsinore” se apresenta, assim, como mais uma arte poética cesarinyana na qual

vemos em cena um poeta em crise com “as palavras”, onde o encontro com o outro é

condição fundamental para o trabalho de escrita.

Assim, se, em “tal como catedrais”, “tu e eu” são abandonados à própria sorte,

“pálidos” e “tristes” após a consumação da obra, em “you are welcome to elsinore”, “o nosso

dever falar” se mostra como um dever ético ainda a ser cumprido. Como no primeiro, o

sujeito plural que nele se apresenta pode ser pensado tanto como uma tentativa de

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comunicação com o outro, futuro encontro amoroso de liberdade entre texto e leitor, quanto

como um encontro entre textos, perceptível pelo deslocamento dos discursos alheios para

dentro do poema. Nesse sentido, o “nós” que percorre todo o poema poderia ser tomado como

uma constatação da situação comum de emparedamento do homem dentro dos muros da

linguagem, retomando a problemática em torno da ineficiência das palavras, as “senhoras” a

quem é preciso dar “descanso”, as quais já não “atravessam fronteiras”, mas formam uma

muralha dentro da qual habitam os homens. Assim, o poema de Cesariny parece encontrar

André Breton e sua acusação a respeito do “peu de réalité”13 com o qual contatamos através

da linguagem cotidiana. Para o francês,

as palavras tendem a se agrupar de acordo com afinidades particulares, cujo resultado é, normalmente, o constante recriar do mundo em seu antigo modelo. [...] É suficiente que critiquemos as leis que regem o seu agrupamento. A mediocridade de nosso universo não depende essencialmente do nosso poder de enunciação? (BRETON, 1992, pp. 275-276, tradução minha)14.

Porém, “you are welcome to elsinore” parece ir além, ao propor o encontro com a palavra

poética, as palavras “dos amantes” e as “maternais”, aquelas que são “só solidão desfeita”,

como forma de libertação dos homens não apenas do emparedamento dentro dos muros da

“medíocre” realidade fundada pela linguagem, mas do aprisionamento entre as paredes de

Elsinore/Portugal.

you are welcome to elsinore Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício

13 Cf. BRETON, André. “Introduction au discours sur le peu de réalité” (1992 [1924]). 14 “Les mots sont sujets à se grouper selon des affinités particulières, lesquelles ont généralement pour effet de leur faire recréer à chaque instant le monde sur son vieux modèle . […] Il suffit que notre critique porte sur les lois qui président à leur assemblage. La médiocrité de notre univers ne dépend-elle pas essentiellement de notre pouvoir d’énonciation?” (BRETON, 1992, p. 275-276). Todas as citações desse texto foram traduzidas por mim.

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Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição Entre nós e as palavras, surdamente, as mãos e as paredes de Elsenor E há palavras e nocturnas palavras gemidos palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever por não termos connosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmo só amor só solidão desfeita Entre nós e as palavras, os emparedados e entre nós e as palavras, o nosso dever falar (CESARINY, 2004, pp. 34-35).

Ao contrário da cena final de “tal como catedrais”, o poema acima encena um

momento prévio à escrita, no qual se representa uma situação angustiante de constatação de

que “entre nós e as palavras” há uma distância com a qual é preciso negociar para que seja

possível empreender esse trabalho, algo que se percebe através das imagens violentas em seus

primeiros versos, tais como “metal fundente” e “hélices que [...] podem dar-nos morte”. Ao

ensaiar repetidamente seu começo, o poema parece um tanto fragmentário. O efeito é

provocado pela repetição da expressão que o inicia, “entre nós e as palavras”, não menos que

seis vezes ao longo das quatro estrofes, formando uma espécie de fórmula para o lermos, ou

uma “coluna vertebral do poema” (2010, p. 398), como caracteriza Manuel Gusmão. Mesmo

quando não a encontramos integralmente, seu eco permanece e vemos seus vestígios

espalhados pelos versos do poema: “há palavras de vida há palavras de morte/há palavras

imensas/[...] há palavras acesas como barcos/e há palavras homens”. Porém, a imagem

construída pela palavra “entre” sugere não apenas um hiato ou um espaço vazio que divide

duas ou mais coisas, mas também uma inter-dicção, um entredizer, uma fala que se põe em

meio a outra. Nesse sentido, o espaço existente “entre nós e as palavras” deixa de ser

percebido como vazio que separa, e passa a ser um espaço de ligação dos elementos que

carregam em si um sentido de interrupção ou incompletude, como “portas por abrir”, e a

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marcante imagem do emparedamento, unidas como por “metal fundente” no espaço do

discurso poético que afirma repetidamente a fissura e a censura.

As análises do poema de Cesariny empreendidas nos ensaios citados anteriormente

desenvolvem-se a partir de duas características principais nele identificadas: Perfecto

Cuadrado ressalta seu caráter engajado, “como denúncia e crítica dum tempo e dum país”

(2002, p. 282), apontando “para a vontade de intervenção e de transformação [...] desse país e

desse tempo” (CUADRADO, 2002, p. 282), caráter esse sugerido pela comparação, no título

do poema, entre a Dinamarca de Hamlet e o Portugal do momento de escrita de “you are

welcome to elsinore”15; Manuel Gusmão atenta para aquilo que chama de um “perturbante

intervalo” (2010, p. 398) entre nós e as palavras, relativo à percepção de que há uma

“distinção entre a articulação verbal e o mundo da vida”, apontando, portanto, a existência de

algo que resiste à simbolização e indicando a possibilidade de as palavras do poema serem

uma maneira de tocar o insimbolizável (GUSMÃO, 2010). Aceitando essas duas perspectivas

como complementares, isto é, tomando “a miséria da ‘prisão’ do Portugal salazarista”

(CUADRADO, 2002, p. 282) como algo que permanece como um resto da operação de

nomeação, como o “irrepresentável” (2010, p. 400) de que fala Gusmão, e retomando a

distinção sublinhada por Compagnon entre o “sentido da citação (o enunciado)”

(COMPAGNON, 1996, p. 46) e “o ato da citação (a enunciação)” (COMPAGNON, 1996, p.

46), creio ser possível aproximar-me de “you are welcome to elsinore” tendo em vista que, a

partir da movimentação de discursos alheios dentro de seu poema e da busca por um diálogo

amoroso com o outro perceptível por um “dever falar” que permanece como dever ético ainda

a ser cumprido, Cesariny tenta abrir uma via de saída à situação de emparedamento dentro dos

muros da ditadura e da linguagem petrificada pelo “mundo informativo da fala” (1982, p. 47),

como a qualifica Octavio Paz. Assim, o “nosso dever falar” se converte no esforço da união

15 Perfecto Cuadrado explora essa comparação apoiando-se, também, na obra do surrealista Alexandre O’Neill: “A referida obra do dramaturgo inglês foi aliás reiteradamente invocada para assinalar obliquamente a miséria da ‘prisão’ do Portugal salazarista, e baste para isso lembrar o lugar explicitamente nomeado por O’Neill – No Reino da Dinamarca” (CUADRADO, 2002, p. 282). Ao inventário surrealista de comparações entre a Dinamarca de Shakespeare (que, como alguns autores defendem, é também uma comparação entre o contexto político dinamarquês representado na tragédia e aquele da Inglaterra no momento de suas primeiras encenações) e o Portugal de Salazar, gostaria de acrescentar outro poema de Cesariny: “elogio do príncipe da dinamarca”, publicado originalmente em Nobilíssima visão (1959), presentemente publicado na seção “visualizações” de Manual de prestidigitação (2008).

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em canto coral de amantes como maneira de dar conta do irrepresentável e de “impor à

realidade real uma realidade poética” (2002, p. 283), como afirma Cuadrado.

Podemos perceber o deslocamento de discursos alheios para dentro do poema desde o

título até seu dístico final. Em seus versos, julgamos ler o Elsinore de Shakespeare e o “vale

escuro das muralhas” (1977, p. 102) de Cesário Verde, passando pela “criança [que] passa de

costas para o mar” (1971, p. 92), de Eugénio de Andrade, pelas “Notícias do Bloqueio” de

Egito Gonçalves (1952), ou pelas “palavras nocturnas” de Isabel Meyrelles (1954), além das

referências ao léxico neorrealista, como percebemos nas imagens da “noite” e da “muralha”,

bem como na fala em nome de um suposto coletivo representado pelo pronome “nós”.

Aproximando a teoria de Compagnon dos estudos de literatura portuguesa, encontramos o

ensaio “O retorno do épico: a nau e a nave” (2010), de Jorge Fernandes da Silveira, no qual o

autor defende que, na literatura contemporânea portuguesa, principalmente naquela produzida

durante o período do Estado Novo, a dissonância entre o sujeito e o mundo ao seu redor

produz uma poesia que encontra, através de um jogo intertextual, de troca de versos, a forma

de se falar em liberdade. O conceito elaborado por Silveira parte da constatação de que há

imagens que se repetem ao longo da cultura portuguesa que passam a servir a um propósito

comunicativo em estados de “proibição do livre trânsito da palavra” (SILVEIRA, 2010, p.

34). Seria possível, portanto, observar como os poemas escritos sob um estado de censura

evocam poetas da tradição literária portuguesa de forma a comunicarem certas “notícias do

bloqueio” (SILVEIRA, 2010, p. 34), como afirma com Egito Gonçalves. A linguagem poética

que valorizasse os jogos intertextuais seria, assim, uma linguagem da comunicação possível

num estado de exceção. Apesar de as leituras de Silveira se restringirem a análises de obras

que dialogam especificamente com a cultura portuguesa, tomo como igualmente oportuna a

leitura do diálogo com o poeta e dramaturgo inglês no poema de Cesariny como uma forma

de comunicação no estado de exceção, algo que pode ser observado tanto na comparação

entre Elsinore e Portugal, como já observado por Cuadrado, quanto na problemática da

comunicação movimentada por ambos os textos.

Desde o título do poema acima, podemos perceber como Cesariny recorre a um

discurso que não é o seu para dar conta do espaço para o qual os leitores são convidados.

Trata-se de uma citação que figura como uma das referências mais emblemáticas de sua

poética: uma passagem de The Tragedy of Hamlet, Prince of Denmark, de Shakespeare, o

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mais longo drama do bardo inglês. A escolha de Cesariny por uma citação direta dessa peça, a

qual não é sequer adaptada ao português – para além das duas diferentes grafias do nome do

castelo, escrito “Elsinore” no título e “Elsenor” na terceira estrofe – talvez indique certa

“dificuldade em nomear/grafar o lugar para o qual somos convidados – o impossível lugar da

poesia” (2010, p. 397), como nota Manuel Gusmão. Porém indica, sobretudo, que só se pode

falar desse espaço através da voz fantasmagórica que remete a Hamlet e Elsinore, a voz de um

outro.

A citação da tragédia shakespeariana no título do poema de Cesariny sugere um

protocolo de leitura, fazendo com que seja necessário “procurar [...] a intenção na metáfora

que utiliza” seu autor (SCHOLES, 1991, p. 25). Nesse sentido, ler “you are welcome to

elsinore” implica ter em mente as principais questões do enredo de Hamlet e o porquê de sua

convocação nesse poema16. No drama de Shakespeare, surpreende a inação do personagem

principal e sua incapacidade de vingar o pai rapidamente, como percebemos no Ato III, Cena

2, quando é montada uma peça dentro da peça na qual é encenado um assassinato idêntico ao

do Rei Hamlet para que Claudius, uma vez confrontado pelo drama encenado à sua frente,

confessasse seu crime. Afirma Hamlet que

[...] I have heard That guilty creatures sitting at a play Have by the very cunning of the scene Been struck so to the soul, that presently They have proclaimed their malefections; [...] The play’s the thing Wherein I’ll catch the conscience of the king. (Hamlet, II, 2, 541-558).

16 Para tal, poderíamos tentar resumir o drama shakespeariano da seguinte maneira: o rei da Dinamarca, Hamlet, é morto e sua viúva, Gertrude, casa-se com seu cunhado, Claudius. Uma noite, o príncipe Hamlet, filho da rainha com o falecido monarca, é visitado pelo fantasma do pai e este lhe revela a verdade a respeito de sua morte: ele fora envenenado no ouvido, durante a noite, a mando de seu irmão, que agora ocupa o trono real. No encontro com o espectro, o jovem Hamlet promete vingança para que o espírito do pai descanse em paz. O primeiro plano que executa consiste em convidar atores ao seu castelo, Elsinore, para que encenem um drama cujo enredo seria exatamente idêntico aos acontecimentos narrados pelo espectro a respeito de seu assassinato, para que o rei ilegítimo, ao ser confrontado pela peça, confessasse seu crime. O plano não é bem-sucedido e Claudius percebe as intenções de Hamlet. Desejando livrar-se das ameaças do sobrinho, planeja seu assassinato e convence os outros personagens de que Hamlet teria ficado louco após a morte do pai. Atormentado pela responsabilidade da empreitada e tendo assumido o papel de louco a ele imputado, Hamlet vê seu desejo de vingança causar um banho de sangue iniciado com o suicídio de Ofélia, seu “par”, seguido dos assassinatos de Polônio, pai de Ofélia, de seus amigos Rosencrantz e Guildenstern e de sua mãe, culminando com as mortes quase simultâneas de Claudius, de Laertes, irmão da jovem, e da sua própria.

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Durante a encenação, Hamlet tem certeza da culpa de Claudius, porém é incapaz de

confrontá-lo. Em oposição à inação do personagem principal, são dominantes na peça seus

solilóquios, os quais concentram mais da metade das falas de toda a composição. Indo na

contramão dos dramas encenados no teatro elisabetano, que se baseavam no ensinamento

aristotélico a respeito do drama, o qual “‘precisa focar em sua ação, não em seu personagem’

[...][,] Shakespeare reverte essa técnica, substituindo as ações pelos solilóquios como meio de

explicar para o público os pensamentos e os motivos de Hamlet” (VASCONCELOS, 2013, p.

20). A tragédia se prolonga, portanto, por mais dois longos atos, até que se encerre com as

mortes quase simultâneas de Claudius, Laertes e Hamlet.

Ao encontrarmos a expressão “you are welcome to Elsinore” (Hamlet, II, 2, 340)

numa fala do príncipe da Dinamarca, no momento em que recebe seus amigos Rosencrantz e

Guildenstern no castelo de Elsinore, torna-se possível estabelecer uma comparação entre o

personagem Hamlet e o eu-lírico de Cesariny. A expressão do título, descontextualizada da

fala original, passa a significar um “és (sois) bem-vindo(s) a Elsinore”, e não um mero “bem-

vindo(s) a Elsinore”, levando a crer que não se trata de um desejo de boas-vindas àquele que

já chegou a Elsinore, mas de um convite feito às portas do castelo. Dessa maneira, o receptor

da mensagem do poema de Cesariny, portanto um tu-leitor, é bem-vindo caso queira entrar.

Atravessamos essas portas no momento em que começamos a ler o poema. Ao serem para ele

convocadas, a escuridão e a podridão da Dinamarca de Shakespeare são comparadas ao

Portugal salazarista do emparedamento e silenciamento no qual vive o poeta, como apontado

por Perfecto Cuadrado (2002), e sugerem que, como o discurso de Hamlet em Elsinore, o

poema se movimenta em torno de uma crise frente à constatação de que a realidade é uma

narrativa, com a percepção de que a “verdade” é ditada pela linguagem, como, aliás, fora

apontado por Breton. No drama, ao tomar conhecimento do assassinato de seu pai, Hamlet se

encontra preso no intervalo de dois discursos a respeito do que se passou: o discurso oficial de

Claudius, agora rei da Dinamarca, e o de seu pai, agora fantasma que clama por vingança.

Aceitando a condição que lhe fora conferida por Claudius, Hamlet assume a fala de um louco

como forma de sobrevivência até que execute sua vingança. O diálogo abaixo, retirado do

texto da peça de Shakespeare, demonstra como a fala do príncipe toma as palavras em um

sentido descolado daquele utilizado comumente, quando interpelado por Polônio a respeito do

que lê:

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LORD POLONIUS [...] what do you read, my lord? HAMLET Words, words, words. LORD POLONIUS What is the matter, my lord? HAMLET Between who? LORD POLONIUS I mean, the matter that you read, my lord. [...] (Aside) Though this be madness, yet there is method in’t. – Will you walk out of the air, my lord? HAMLET Into my grave? LORD POLONIUS Indeed that’s out of the air. Aside How pregnant sometimes his replies are! (Hamlet, II, 2, 187 – 204).

Em Hamlet, podemos ver como a loucura assumida pelo herói, enquanto efeito de

linguagem, torna-se uma forma de sobrevivência do príncipe. Hamlet passa a ser percebido

como um louco justamente por se recusar a atribuir àquilo que diz lógica ou significados

únicos, delegando àqueles que o escutam a tentativa de dar sentido final ao seu discurso,

fazendo com que os outros personagens efetuem um exercício de tradução de suas falas:

“What is the matter my lord?”, pergunta Polônio após a resposta sem sentido. No ensaio

“Hamlet and the Power of Words” (1995), Inga-Stina Ewbank afirma que

o próprio Hamlet está, ao longo de toda a peça, tentando encontrar uma linguagem com a qual se expressar, assim como linguagens com as quais se comunicar com os outros; e, a seu redor, os membros da corte de Elsinore empreendem atos de tradução, quer para favorecê-lo, quer para prejudicá-lo (EWBANK, 1995, p. 59, tradução minha)17.

Assim como Hamlet em seu castelo, o eu-lírico que nos conduz pelo Elsinore que o poema

tenta representar somente pode se referir a esse lugar a partir de um trabalho com a língua que

seja capaz de deslocar as palavras de seus significados cristalizados pela fala quotidiana, para

17 “Hamlet himself is throughout the play trying to find a language to express himself through, as well as languages to speak to others in; and round him – against him and for him – the members of the court of Elsinore are engaging in acts of translation” (EWBANK, 1995, p. 59). Todas as traduções de Ewbank são minhas.

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fundar uma nova realidade através da poesia. Dessa maneira, se há qualquer mudança

observável entre aquilo que há “entre nós e as palavras” na passagem da primeira estrofe – na

qual se afirma que “há metal fundente” ou “há hélices que andam” – para a segunda estrofe

– onde encontramos “há palavras de vida”, “há palavras imensas” ou “há palavras acesas

como barcos” –, podemos tomá-la como uma manifestação da percepção a respeito daquilo

que Perfecto Cuadrado chama de “força genésica da linguagem, a capacidade das palavras

para criar realidade” (2002, p. 283). Da mesma forma, Ewbank reconhece como, na peça

shakespeariana, “o mistério da comunicação humana é encenado e o poder das palavras

demonstrado: aquilo que dizemos – e, ao dizer, fazemos – uns aos outros, criando e

destruindo continuamente” (EWBANK, 1995, p. 60)18.

Nesse sentido, podemos perceber como há uma transformação progressiva das

palavras sobre as quais o poeta fala ao longo do poema, “criando e destruindo” à medida que

este se desenvolve. Assim, na primeira estrofe, vemos como os elementos “entre nós e as

palavras” remetem à censura, a imagens negativas e violentas com as quais se fundamenta a

ideia de que há uma interdição brutal entre aquilo que desejamos e aquilo que realmente

podemos falar. A repetição da expressão “entre nós e as palavras há” três vezes nessa estrofe

aponta certa dificuldade do poeta em iniciar o trabalho com as palavras. O efeito de gagueira

causado pelas repetições anafóricas reafirma a dificuldade de comunicação e provoca uma

sensação de impotência angustiante naquele que lê. Podemos nos imaginar a escrever, ou a

falar, ou nos colocar em qualquer situação que exija nossa expressão através de palavras, e

nos vermos, imediatamente, confrontados com a mesma questão: existe uma barreira entre o

que quero e o que posso dizer. Assim, o “nós” que identifica leitor e eu-lírico é uma união

resultante do reconhecimento da condição comum à qual estão sujeitos todos os homens.

Porém, o “nós” que remeteria ao coral neorrealista e apelaria à identificação de Elsinore com

o Estado Novo surge, aqui, cindido, uma vez que o espaço “entre nós e as palavras” expõe a

impossibilidade comunicativa e incapacidade momentânea de se superar esse hiato. As

lacunas entre as palavras dos versos 3 e 7 reforçam a imagem da interdição e da gagueira:

Entre nós e as palavras há metal fundente

18 “the mystery of human intercourse is enacted and the power of words demonstrated: what we say, and by saying do, to each other, creating and destroying as we go along” (EWBANK, 1995, p. 60).

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entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheio de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera de seu tempo e do seu precipício (CESARINY, 2004, p. 34, grifos meus).

Na segunda estrofe, entretanto, encontramos justamente aquela “força genésica da

linguagem” sobre a qual falava Cuadrado:

Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição (CESARINY, 2004, p. 34).

Agora, não encontramos mais os elementos violentos do espaço “entre nós e as palavras”, mas

as próprias palavras que existem “ao longo da muralha que habitamos”. Nesse sentido, o

poeta não nos fala da impossibilidade de expressão, mas aponta a possibilidade de um

encontro libertador com as palavras. A citação de “O sentimento dum ocidental” que notamos

no primeiro verso dessa estrofe convoca a “escuridão” das “horas mortas” do poema de

Cesário Verde para dentro do poema de Cesariny e, assim como notamos anteriormente a

respeito de seu título, permite que se fale do espaço onde esse “nós” habita. Como afirma

Cuadrado, “no interior desses muros, apesar da evidência do abismo, sempre existe a

possibilidade de criar ou reinventar a realidade pela força conjuradora, convocadora,

invocadora e criadora da linguagem” (2002, p. 284) – através, também, do encontro com as

palavras alheias. Portanto, aquelas “palavras imensas, que esperam por nós”, podem ser

tomadas como as palavras que já foram ditas, ou escritas, por outros, à espera do encontro

com um leitor, assim como Mário Cesariny encontrou as palavras de Cesário Verde. Dessa

maneira, as próprias palavras serão capazes de iluminar a escuridão onde habitam os que

estão “emparedados, / Sem árvores, no vale escuro das muralhas...!” (VERDE, 1977, p. 102),

uma vez que “há palavras acesas como barcos” e aqueles que foram violados e tiveram seus

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“mais úteis segredos” tirados de si pelas “hélices que andam” podem encontrar, “ao longo da

muralha”, “palavras que guardam / o seu segredo e a sua posição”.

A terceira estrofe do poema retoma o refrão “entre nós e as palavras”. Agora, porém, o

advérbio de modo que se segue à expressão introduz uma nova perspectiva para pensarmos o

espaço de interdição, a qual diz respeito não apenas ao dizer, mas ao ouvir: “surdamente”. Isto

é, as paredes de “Elsenor” – uma grafia distinta do “Elsinore” da peça de Shakespeare e do

título do poema 19 – não têm ouvidos (um tanto como o rei Hamlet), mas mãos. A

incapacidade das “paredes de Elsenor” de escutarem abre uma via de resistência dentro dos

muros, algo que é reforçado pelos versos seguintes: “E há palavras e nocturnas palavras

gemidos / palavras que nos sobem ilegíveis à boca”, palavras que só existem no encontro

noturno de amantes, na “surdina”, as quais não deixam de ser tentativa de comunicação. As

palavras são “palavras diamantes” que não se tornaram “palavras grafites” e nunca serão

“escritas”, apesar da idêntica composição química dos minerais, são “palavras impossíveis de

escrever”, contudo, são palavras [de amantes].

Os versos seguintes, introduzidos pela conjunção explicativa “por”, são os únicos que

pretendem justificar o silenciamento, ou localizar a experiência do emparedamento numa

ordem lógica, apresentando os elementos necessários para a escrita das palavras. Seria

necessária a união de três elementos que são o âmago, a parte mais fundamental para a

garantia da sobrevivência dos universos aos quais pertencem – “cordas de violinos”, “todo o

sangue do mundo” e “todo o amplexo do ar”: o coração de uma orquestra sinfônica,

convocando a música e a arte; toda a vida, ou todo amor, do mundo; e toda respiração, ou

todas as vozes, do mundo. A falta de ar que sentimos após a leitura em voz alta do verso “nem

todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar”, o mais longo de todo o poema, reforça a

imagem por ele convocada e apela ao silêncio antes que retomemos a leitura do poema.

“Silêncio, para que eu passe lá onde ninguém jamais passou, silêncio! – Depois de ti, minha

bela linguagem” (BRETON, 1992, p. 276)20, diria André Breton.

19 Em uma palestra que proferi em fevereiro de 2016 na Faculdade de Letras da UFRJ, Mariana Gonçalves dos Santos reconheceu, nessa diferença de grafia, as palavras “el señor”. Acredito que a leitura é pertinente e aprofunda a discussão a respeito da comparação entre Elsinore e Portugal. Assim, a personificação de Elsenor, ao qual são atribuídas mãos além de paredes, revelaria uma comparação entre o suposto “el señor” e o próprio Salazar. 20 “Silence, afin qu’où nul n’a jamais passé je passe, silence! – Après toi, mon beau langage” (BRETON, 1992, p. 276).

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Encontramos novamente as palavras de amantes nos versos seguintes. Neles, podemos

notar a aposta em outra forma de liberdade – se a “muralha que habitamos” não pode ser

ultrapassada por terra, ainda é possível voar. Na sequência dos versos, percebemos uma

valorização de união absoluta com o outro, seja ele amante ou mãe, e um apagamento do

excesso de significados das palavras, sentido especialmente na aliteração da sibilante nos dois

últimos versos dessa estrofe, a qual leva a um progressivo silenciamento no interior do

poema:

e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmo só amor só solidão desfeita (CESARINY, 2004, p. 35, grifos meus).

Assim, se “a distância entre a palavra e o objeto [...] é precisamente o que obriga cada palavra

a se converter em metáfora daquilo que designa” (PAZ, 1982, p. 43), é necessário que a

criação poética seja feita “como violência sobre a linguagem” (PAZ, 1982, p. 47). Dessa

maneira, para que atravessem o espaço “entre nós e as palavras”, é preciso que as palavras do

poema se convertam exatamente naquilo que nomeiam: sejam “sombra”, “soluço”,

“espasmo”, “amor”, “solidão desfeita”. Nesse ponto, “you are welcome to elsinore”, da

mesma forma que “tal como catedrais”, parece querer “dar descanso a estas senhoras”,

apostando no diálogo amoroso com o outro como alternativa à censura imposta pelo discurso

dominante.

O dístico final do poema, aquele que encerra “a concentração da lição de poética”

(GUSMÃO, 2010, p. 398), retoma a expressão central “entre nós e as palavras”, repetida em

ambos os versos. A insistência da mesma construção do verso inaugural, nessa estrofe, nos

leva a crer que aquela primeira resistência percebida pelo poeta não foi ainda ultrapassada.

Nesse sentido, a cena representada ao longo de todo o poema é a de uma preparação da

escrita, na qual o eu-lírico que nos interpela parece gaguejar em sua tentativa de expressão.

Assim como no poema analisado na primeira seção, a encenação do ato de escrita que vemos

representada em “you are welcome to elsinore” não coincide com a escrita do poema que

estamos a ler. Se, no primeiro, vemos uma cena final, posterior à escrita de uma “Obra”, no

segundo, encontramos um poeta preparando-se para escrever, ainda às voltas com um “dever

falar” que indica a realização futura do ato poético.

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Nessa estrofe, encontramos, novamente, aqueles mesmos versos do poema de Cesário

Verde, cuja marcante imagem do emparedamento nos revela algo a respeito de nossa própria

condição humana. Aqui chegados, porém, podemos perceber como o que inicialmente se

apresentava como um problema, como algo a ser superado, aquele “perturbante intervalo [...]

entre nós, os emparedados, aqueles que estão prisioneiros entre as paredes da cidade moderna

ou entre o pouco de realidade que nos querem impor como todo o real acessível e as palavras”

(GUSMÃO, 2010, p. 398), já não parece ser tomado como um obstáculo. A percepção de que

nossa relação com a realidade é pautada pela linguagem apresenta-se como uma possibilidade

de solução tanto para o eu-lírico cesarinyano quanto para o personagem shakespeariano. O

argumento de Ewbank, segundo o qual “o que as vozes silenciosas na peça têm em comum

com as vozes sonoras e eloquentes é a crença na importância da fala” (EWBANK, 1995, p.

61)21, não deixa de nos soar muito familiar: “entre nós e as palavras, o nosso dever falar”.

Dessa forma, o “dever” que se coloca ao fim do poema não é percebido como uma

condenação, ou uma obrigação violenta que retomaria a imagem da tortura representada nos

versos 2, 3 e 4, mas como um dever ético a ser cumprido pelo poeta. Assim como Horácio ao

fim da tragédia de Shakespeare, o poeta carrega consigo a tarefa fundamental de “falar”,

fundando, através de um diálogo amoroso, uma nova realidade que seja possibilidade de

liberdade. O poeta que se põe ao trabalho, “não, certamente, em busca da salvação, mas da

verdadeira vida” (1980, p.29)22, como afirma Octavio Paz.

A princípio estreitamente ligado a uma concepção neorrealista do fazer poético, o

compromisso ético representado pelo “nosso dever” que se coloca ao fim do poema, no

entanto, parece depender fundamentalmente do encontro com o outro: trata-se do “nosso

dever falar”. Seria, como afirmamos ao final da seção anterior, um falar “na intenção de” e

não “no lugar de” – uma mudança fundamental na concepção do canto coletivo neorrealista,

como nota Rosa Maria Martelo em relação à poética de Carlos de Oliveira. Dessa forma, a

intenção ética na poética cesarinyana e a forma de “intervenção” à qual se dedicará o

surrealista parecem contemplar uma mudança na concepção do interlocutor ao qual se dirige e

do papel que o sujeito poético representa dentro da poesia, cujos primeiros traços já podemos

21 “what the still small voices in the play have in common with the loud and eloquent ones is a general belief in the importance of speaking” (EWBANK, 1995, p. 61). 22 “No, ciertamente, en busca de salvación, sino de la verdadera vida” (PAZ, 1980, p. 29).

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notar na problematização do sujeito plural que se apresenta nos dois poemas sobre os quais

falamos neste capítulo. A defesa dos surrealistas portugueses de uma atividade poética

individual, como pode ser observado no “Comunicado dos surrealistas portugueses” (1981),

parece corroborar essa hipótese. Afirmam Cruzeiro Seixas, João Artur Silva e Maria Henrique

Leiria que

em Portugal, estando, como estamos, limitados por todos os lados, só temos à nossa frente a feroz presença do desejo individual para lutarmos contra a extinção do Homem que o estado vai realizando sistematicamente e não podemos, portanto, enfileirar em qualquer partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer) nos faria cair fatalmente noutra ditadura. Também não acreditamos que o seguir esta ou aquela tendência estética que, a título de revolucionária, pretenda criar outro tipo de academismo, fosse de qualquer maneira suficiente para nos levar à libertação desejada (LEIRIA; SEIXAS; SILVA, 1981, p. 151-152).

Declaradamente contrário à poética neorrealista, e à sua busca por abarcar uma coletividade

dessubjetivada representada por uma voz coral, o projeto poético surrealista e cesarinyano

propõe uma mudança de voz dentro da poesia, como veremos nos poemas que apresentarei no

próximo capítulo.

A afirmação final de “you are welcome to elsinore”, portanto, aponta um imperativo

ético de transmissão e testemunho do emparedamento vivido sob a ditadura salazarista. O

“nosso dever falar” se apresenta tanto como transmissão das “notícias do bloqueio”, conforme

nota Silveira, ou como manifestação de uma consciência crítica a respeito desse tempo,

quanto como desejo de diálogo com o outro, como uma “criação que transcende o histórico”

(PAZ, 1982, p. 228), encontrando-se em uma “categorial temporal especial, um tempo que é

sempre presente, um presente potencial, que não pode realmente se realizar a não ser se

fazendo presente de uma maneira concreta num aqui e agora determinados” (PAZ, 1982, p.

228). Novamente, a “Obra” de Cesariny que temos diante de nós assume seu caráter de

“consumada”, mas não de concluída, algo que percebemos na perpetuação da busca pelo

diálogo inscrita nas palavras finais do poema: uma afirmação da incompletude do trabalho e

de sua persistência.

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3. O sujeito poético em transformação

No capítulo anterior, vimos como o poeta que se apresenta nas cenas de escrita de

Mário Cesariny aponta a necessidade de diálogo amoroso com um interlocutor – seja ele um

texto alheio, seja um possível leitor. Nos poemas a serem analisados neste capítulo, creio ser

possível perceber como esse diálogo resulta, também, numa definição do próprio sujeito que

empreende a busca por um interlocutor. Se, no “Comunicado dos Surrealistas Portugueses”

(1981), afirma-se a impossibilidade de atuação de “qualquer agrupamento ou movimento dito

surrealista, [e defende-se] que apenas poderão existir indivíduos surrealistas” (LEIRIA;

SEIXAS; SILVA, 1981, p. 152), em “autografia I” e em “a antonin artaud”, Cesariny parece

conceber o sujeito poético como “um homem / um poeta” efeito da própria criação poética,

cujo nome provavelmente se encontraria “escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’”.

As possibilidades de figuração do sujeito nos dois poemas trabalhados neste capítulo

podem ser percebidas como desdobramentos da moderna instabilidade da figuração autoral, a

qual, como defende Manuel Gusmão no ensaio “Anonimato ou alterização?”, apresenta “dois

modos de configurar uma crise e uma crítica dessas figurações autorais” (GUSMÃO, 2000, p.

263): aquilo que denomina como anonimato, identificado na poesia de Mallarmé, e como

alterização, vinculada a Rimbaud e Fernando Pessoa. Através da apropriação de outras

poéticas no seio de sua produção e da reivindicação do apagamento do nome próprio do autor

empírico, Cesariny parece enfrentar uma crise semelhante nos modos de figurar a

“autoridade”, afirmando que seu nome “está farto de ser escrito na lista dos tiranos:

condenado à morte”, em “autografia I”.

A necessidade do diálogo, que vimos como marca fundamental nos poemas anteriores,

persiste em “autografia I” e em “a antonin artaud”, ambos publicados pela primeira vez em

Pena capital, em 1957. Dessa forma, convocados a entabularem um diálogo com os poemas

de Cesariny, Fernando Pessoa e Antonin Artaud são autores de poéticas que abordam

frontalmente a questão da autoridade na arte e na poesia. Em “autografia I”, nosso autor

promove uma apropriação surrealista da poética do fingimento expressa em

“Autopsicografia”, do “drama em gente”, o qual, segundo Silveira, “talvez esteja a exigir [...]

a historicização da sua ficção” (2002, p. 50). A homenagem expressa no título do segundo

poema que analisaremos parece indicar que “antonin artaud” não se refere apenas ao artista,

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ou ao artista como metonímia de sua obra, mas ao artista como obra, uma vez que, em Artaud,

a linha que separa arte e vida é tênue e, por vezes, parece inexistente.

O diálogo, enquanto temática e forma de construção nessas artes poéticas de Cesariny,

talvez encontre respaldo nas primeiras teorias surrealistas formuladas por André Breton, nas

quais defendia que “ainda é ao diálogo que as formas da linguagem surrealista se adaptam

melhor” (BRETON, s/d, p. 198). Seguindo o exposto no “Manifesto do Surrealismo” de 1924

a respeito dos “diálogos automáticos”, um dos experimentos iniciais do grupo francês, os

surrealistas portugueses trataram de desenvolver, também, suas próprias composições desse

tipo, cujo objetivo, como o nome já sugere, era análogo àquele pretendido pelo método da

“escrita automática”. Consistiam, assim, em um jogo rápido de perguntas e respostas, o qual

seria pura libertação do previsível e da atenção no momento de produção poética e uma

convocação do aleatório e do contingente para o seio desta.

De fato, o diálogo em questão nos poemas de Cesariny que temos diante de nós é

fundamentalmente distinto, uma vez que sua forma de produção não é aquela proposta nos

jogos surrealistas. Contudo, a importância conferida à voz e ao pensamento do outro dentro da

poesia cesarinyana pode ser tomada como a manifestação da herança de alguns traços

identificáveis nos “diálogos automáticos” surrealistas, tanto no que estes revelam a respeito

da necessidade do encontro com outra voz na base dessa forma de produção, quanto no seu

efeito e nas reações que provocam naqueles que se põem a dialogar. Breton defende esse

conceito afirmando que

[o] surrealismo poético [...] aplica-se hoje a restabelecer em sua verdade absoluta o diálogo, desembaraçando os dois interlocutores das obrigações de cortesia. Cada qual prossegue simplesmente no seu solilóquio, sem procurar tirar dele um prazer dialético especial e impô-lo absolutamente a seu próximo. As conversas tidas não visam como no comum ao desenvolvimento de uma tese, por mais negligenciável que se queira, são tão despretensiosas quanto possível. Quanto à reação que evocam, esta é, em princípio, totalmente indiferente ao amor-próprio de quem fala. As palavras, as imagens só se apresentam como trampolins ao espírito de quem ouve (BRETON, s/d, p. 199, grifos meus).

Nesse sentido, o resultado principal dos “diálogos automáticos” consistia na revelação

daquele que interpela e questiona o arguido e não o inverso, uma vez que as respostas

proferidas surgiam, em sua grande maioria, como desdobramentos superficiais das ideias

apresentadas nas perguntas formuladas (BRETON, s/d).

Da mesma forma, o desejo de diálogo nos poemas de Cesariny – quer o concebamos

como uma busca por outros poetas, quer como uma tentativa de comunicação com o leitor –

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parece pôr em evidência, principalmente, aquele que interroga. Assim, se, anteriormente,

encontramos um sujeito poético que via a interlocução como uma condição fundamental para

empreender o trabalho de escrita, agora, a escrita dela resultante é percebida como aquilo que

determina as próprias dimensões do sujeito, o qual parece escrever uma bio/biblio-grafia23. Os

dois poemas sobre os quais nos debruçamos neste capítulo são marcados por uma tentativa de

definição sempre em transformação daquele que se declara como um corpo que recusa “uma

caricatura a todos os títulos porca”, recusando até mesmo seu nome próprio, para surgir como

resultado de uma poetização em constante movimento.

3.1 “autografia I”

“autografia I” é o primeiro de cinco poemas publicados sob o título “AUTOGRAFIA”

em Pena capital, em 1957. Nas edições seguintes do livro, as seções de I a V aparecem

separadas e rearrumadas, assumindo, atualmente 24 , uma configuração bastante distinta

daquela primeira publicação. Hoje, levam o título “autografia I” e “autografia II” as seções I e

III da versão original. O poema II não consta no livro e as seções IV e V levam ambas o título

de “poema”, cujos primeiros versos são “Reconheço este quarto impermeável”25 e “Faz-se luz

pelo processo de eliminação das sombras”, respectivamente. Ainda que seja possível perceber

ecos das outras seções ao longo deste trabalho, interessa-me, aqui, abordar a primeira parte do

poema, uma vez que é construída como uma apresentação de “um poeta” transfigurado

através do processo de escrita.

23 Curiosamente, a expressão que escolhi adotar para denominar o processo de formação de um sujeito no mundo como resultado do trabalho poético é muito similar à “bi(bli)ografia” sobre a qual Antoine Compagnon fala em seu O trabalho da citação (1996). Porém, o termo utilizado pelo francês está ligado à identificação entre leitor e autor a partir de leituras que compartilham. Isto é, o leitor busca, na bibliografia do autor que pretende ler, a sua própria autobiografia: “Percorro-a [a bibliografia] como um atlas geográfico ou um prospecto de uma agência de viagem, atento ao eco que faz vibrar em mim o nome de um lugar por onde passei. [...] [A] bibliografia me prende quando encontro meu lugar junto ao autor: temos as mesmas leituras, pertencemos ao mesmo mundo” (COMPAGNON, 1996, p. 112-113). 24 A edição mais recente e a última revisada por Mário Cesariny, aquela que podemos chamar de “definitiva”: CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. 25 Este poema recebeu uma ótima análise no ensaio “O Corpo-Cesariny-surrealista”, de Ana Cristina Joaquim. Revista Convergência Lusíada, nº 33. Rio de Janeiro, janeiro – junho, 2015.

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autografia I Sou um homem um poeta uma máquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configurada um avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte! os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada tenho um pé que já deu a volta ao mundo e a família na rua um é loiro outro é moreno e nunca se encontrarão conheço a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa) tenho um sol sobre a pleura e toda a água do mar à minha espera quando amo imito o movimento das marés e os assassínios mais vulgares do ano sou, por fora de mim, a minha gabardina e eu o pico do Everest posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola do rei morto, do vento e da primavera Quanto ao de toda a gente — tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris — já se arranjaram algumas. Enlaces e divórcios de ocasião — não foram poucos. Conversas com meteoros internacionais — também, já por cá passaram. Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra uma carruagem de propulsão por hálito os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez tudo isso vive em mim para uma história de sentido ainda oculto magnífica irreal como uma povoação abandonada aos lobos lapidar e seca como uma linha férrea ultrajada pelo tempo é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costas a servir de combustível e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas para não termos de atirá-las semi-mortas à linha E para dizer-te tudo dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou em franca ascensão para ti O Magnífico na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias

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sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande! (CESARINY, 2004, p. 36-38)

Quando comparado aos dois poemas analisados no capítulo anterior, “autografia I”

parece apostar em um caráter verborrágico, efeito produzido pelo excesso de imagens que são

construídas e por certa progressão rítmica, sentida no alongamento dos versos e das frases do

poema. Assim, se, na primeira estrofe, lemos “Sou um homem / um poeta”, definições

simplórias do sujeito poético encerradas dentro de um único verso cada, a partir do terceiro

verso, as descrições se tornam cada vez mais complexas, construindo imagens mais próprias

do universo surrealista, criadas a partir da mistura de níveis de experiência e de certa

literalização das metáforas – processo percebido na transformação progressiva pela qual passa

o sujeito poético. Os dois versos finais do poema, em oposição às definições curtas do início,

formam uma única frase, configurando o ponto máximo da construção frenética de imagens

no poema e de certo aceleramento provocado durante sua leitura: “e que o homem-expedição

de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias / sou eu meu bem sou eu

partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande!”.

Em cena, um sujeito que parece apresentar-se a uma segunda pessoa, em busca de uma

definição total do seu ser: “E para dizer-te tudo / dir-te-ei que [...] estou em franca ascensão

para ti”. O excesso de imagens e de tentativas de representação do sujeito que afirma

constantemente um “eu sou”, ao contrário da coesão e do detalhamento esperados, leva ao

constante apagamento desse enunciador. Para isto contribuem a repetição de artigos

indefinidos e o uso do plural como forma de indefinição, fazendo com que as imagens

construídas vacilem, num processo de construção e destruição constante, o qual se alia ao

projeto poético do surrealismo de Cesariny. Segundo o poeta, “produzir um objecto onde

tudo, simultaneamente, tem as propriedades da verdade e do erro, da razão e da loucura, do

que foi encontrado e do que foi perdido, [...] é fixar, violentando a realidade ‘presente’, um

novo real poético (uno)” (CESARINY, 1997, p. 89). Assim, as definições que conduzem ao

aberto parecem convocar a simultaneidade de todas as transformações pelas quais passa o

sujeito poético:

Sou um homem um poeta uma máquina de passar vidro colorido [...] tenho um sol sobre a pleura

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[...] a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola [...] Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa Viagens a Paris – já se arranjaram algumas. Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos [...] é por isso que eu trago um certo peso extinto [...] e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre lagos de incêndio e o teu retrato grande! (CESARINY, 2004, p. 36-38).

Seguindo o pacto de leitura proposto por seu título e as repetições da expressão “eu

sou” ao longo do poema, torna-se possível perceber um diálogo entre a composição de

Cesariny e certa tradição moderna da poesia no que tange à crise da figuração do autor. Em

sua leitura da “morte do autor” barthesiana, Manuel Gusmão afirma que a crítica do

semiólogo francês sobre a representação do autor como pai e proprietário da obra, apesar de

incontornável, ao apostar na “instituição do ‘anonimato transcendental’[,] dissolve sem

resolver demasiados problemas” (GUSMÃO, 2000, p. 268). Nesse sentido, Gusmão propõe

um recuo à poética rimbaudiana para abordar essa questão, introduzindo a noção de

alterização que “permite, sim, figurar um acontecimento de linguagem, um acontecer da

escrita ou da poesia: difere a fonte da voz, mas evita o anonimato transcendental” (GUSMÃO,

2000, p. 269). Identificando a poética do fingimento pessoana à alterização identificada na

poesia de Rimbaud, o crítico português aponta que “a autoria em Fernando Pessoa exibe a

forma de um diálogo múltiplo e descentrado, que cruza génese de escrita e construção

retroactiva da imagem ou da figura autoral” (GUSMÃO, 2000, p. 272). Sugere, então, que a

figura do “autor” na obra pessoana se dá, justamente, a partir da escrita e não existe a priori

desta.

Em “autografia I”, Cesariny parece se aproximar da poética de Fernando Pessoa nesse

ponto, uma vez que podemos perceber como o “autor” nega sua posição de anterioridade em

relação à obra, indicando que sua identidade emerge como um efeito do próprio ato de escrita.

Assim, na rasura sobre o título do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, Cesariny

aponta a necessidade da apropriação dos textos alheios não apenas para o empreendimento do

trabalho de escrita, mas para a construção do sujeito poético cesarinyano, estabelecendo,

portanto, um jogo bio/biblio-gráfico desde o título do poema. Com a expressão “autografia”, o

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poeta parece definir uma escrita e uma inscrição de si, como se estas fossem responsáveis

simultaneamente por um “autógrafo” e por uma “autobiografia”.

Com o apagamento do sintagma [bio-], constituem-se os termos que dão título às duas

artes poéticas em questão – autopsicografia e autografia. No título do poema de Pessoa, tal

apagamento indicaria a cisão modernista entre a vida do autor e seu trabalho de escrita.

Porém, se Pessoa substitui [-bio] por [-psico], Cesariny abole ambos, reforçando os

significados dos dois afixos que se encontram nos extremos da palavra: [-auto] e [-grafia],

permitindo um alargamento dos significados que cada um dos termos carrega26. A operação

de supressão dos dois sintagmas anteriores mostra-se, assim, de fundamental importância para

a compreensão da poética que Cesariny apresenta nesse poema e indica que a escrita é

concebida como forma de constituição do sujeito, o qual assume simultaneamente os papéis

de criador e criatura, autógrafo e autografado.

As três estrofes de “autografia I” parecem subverter a estrutura rígida de teorema de

“Autopsicografia”, na qual, na primeira estrofe, apresenta-se uma proposição que será

justificada ao longo das estrofes seguintes. Seguindo a leitura de Gusmão, o primeiro verso do

poema pessoano, “[o] poeta é um fingidor” (PESSOA, 1985, p. 164), funciona como um

aforismo no qual a 1a pessoa sugerida pelo “auto” do título transforma-se em uma 3a pessoa,

“o poeta”, o qual “designa a classe dos poetas” (GUSMÃO, 2000, p. 274). Como diversas

vezes notado, o fingimento do poeta não deve ser tomado em uma dimensão moral, mas como

uma manifestação “da ordem o artístico ou do estético, da ficção” (GUSMÃO, 2000, p. 275).

A identificação daquele que afirma “[eu sou] um poeta”, em “autografia I”, com “o

poeta” que representa toda a classe de poetas em “Autopsicografia” é uma forma de

deslocamento da lição de poética de Pessoa, levando-nos a crer que o “poeta” de Cesariny

poderia ser, também, “um fingidor”. Nesse movimento, porém, a reiteração da 1a pessoa do

singular expressa pelo título e as sucessivas definições que o sujeito reclama para si parecem

indicar uma transformação radical do fingimento pessoano, mostrando um outro modo de

estar em poesia, no qual a enunciação poética funciona como a fundação efetiva de um novo

sujeito no mundo. Assim, a repetição do verbo “ser” ao longo de todo o poema de Cesariny,

26 Dessa forma, a expressão de Cesariny parece guardar ainda outro sentido: a escrita (grafia) automática. Um dos pilares da prática do Surrealismo, a escrita automática consistia em burlar a racionalidade, a lógica, através de uma escrita que emergia num estado de “desatenção” (BRETON, s/d, p. 195).

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mesmo quando eclipsado, reforça a ideia de definição do sujeito como um corpo poético,

configurado pelos encontros “no processo de escrita-e-leitura” (GUSMÃO, 2000, p. 275). Ao

afirmar, ainda,

Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra uma carruagem de propulsão por hálito (CESARINY, 2004, p. 37),

a falta de uma vírgula que separe o aposto “no sentido mais enérgico [...]” de “uma carruagem

de propulsão [...]”, aponta que aquilo que se diz “no sentido mais enérgico da palavra” é a

afirmação anterior à virgula: o “eu sou”. Na “propulsão por hálito”, percebemos como a

identidade que se constrói ao longo do poema surge como resultado do encontro com o outro,

reforçada, ainda, pela dimensão física de tal encontro.

Assim como nos poemas anteriores, o “eu” do poema de Cesariny pronuncia um “tu”

ao longo do poema. Como o “tu” de “tal como catedrais” com o qual o “obreiro” teria

consumado sua obra, aquele que é interpelado em “autografia I” parece ser um “tu” amante,

profundamente implicado no processo de transformação do “eu-lírico”. Na primeira estrofe,

vemos como esse outro figura no interior da cena da transformação do “poeta”:

um avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra (CESARINY, 2004, p. 36).

O advérbio “agora”, nessa passagem, leva-nos a crer que se trata, justamente, do momento da

leitura, daquele em que lemos esses versos. Nesse sentido, a interpelação de um “tu” indica

uma mudança profunda na ligação entre o poeta e seus leitores em relação ao expresso no

poema de Pessoa. Se, para o modernista, a primeira pessoa anunciada pelo título esconde-se

num generalizante “o poeta” e a referência aos leitores se dá em termos de um distante “os

que leem o que escreve”, para o surrealista, parece tratar-se de uma relação íntima entre

aquele que diz “Eu sou” e chama-nos por “tu”. Afirma ainda

conheço a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa) (CESARINY, 2004, p. 36).

A expressão “[e] assim”, com a qual se inicia a terceira e última quadra de

“Autopsicografia”, forma de conclusão que pretende encerrar a tese apresentada nas duas

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estrofes anteriores, aparece transformada por Cesariny num pouco esclarecedor “[e] para

dizer-te tudo”, outra maneira de concluir um percurso de apresentação e definição de uma

poética. A explicação final, contudo, conduz a ainda outro processo de transformação do

corpo poético cuja mais potente definição seria a do “homem-expedição”, possível encontro

com o “não evoluo. VIAJO” (PESSOA, 1962, p. 209), de Pessoa.

No ensaio “Fernando Nogueira Pessoa Autoractor”, Cesariny acusa Pessoa de não ter

vivido inteiramente sua poética, algo que seria totalmente avesso à concepção de poética do

surrealista, identificado com o projeto vanguardista de dissolução das fronteiras entre arte e

vida. Para o nosso poeta,

[o] “não evoluo, viajo” e a explicação do surgimento dos heterónimos, nas duas cartas a Casais Monteiro, são o naufrágio à vista do continente que os surrealistas haviam de desbravar, por operação inversa, mas de signo idêntico, à da poética fernandina. [...] Porém, a “loucura” de Pessoa não sai nunca da “linha de razão”. É metodológica (CESARINY, 1985, p. 72).

A crítica do “homem-expedição” ao viajante reside na tentativa de “explicação” racional do

funcionamento da criação e no balizamento lógico da poesia de Pessoa, com os quais, de certa

forma, é preservado o “insofrimento aristocrático do poeta” (GUSMÃO, 2000, p. 275).

Já em “autografia I”, o sujeito poético está em uma posição diametralmente oposta à

do poeta modernista. Se Gusmão afirma que “a cena da escrita e da leitura figurada no poema

[de Pessoa] é regida por uma assimetria iniludível, porque a dor lida não é nenhuma das que o

poeta teve” (GUSMÃO, 2000, p. 277) e que “[e]ssa dissimetria diz o excesso e a

determinação da escrita sobre a leitura”, o poeta em cena no poema de Cesariny parece

identificar-se mais íntima e solidariamente com “os que leem” do que com “o poeta [que] é

um fingidor”. Portanto, a “operação autobiográfica do leitor” (GUSMÃO, 2000, p. 277)

desencadeada no ato da leitura parece ser aquela pela qual passa o “poeta” no poema de

Cesariny. Assim, sofre, como um corpo único, uma contínua transfiguração ao longo do

poema, ao passo que Pessoa se compartimentara para permitir as transformações do sujeito.

No texto “Para uma cronologia do surrealismo em português” (CESARINY, 1985, p.

261-282), Cesariny afirma que

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[o] que em Fernando Pessoa interessou profundamente os surrealistas foi o desligar da corrente alterna que ligava há séculos o discurso racionalista ao princípio de identidade, foi a destruição do conceito (válido) de “personalidade” (da “personalística contemporânea”, escrevi, em 1948), e não, nunca, o da sua divisão, compartimentação ou dispersão. A ‘operação cirúrgica’ levada por Pessoa ao motor central da psique moveu a gestação de quatro maravilhosos monstrozinhos que cantam todos juntos a morte do super-racionalista seu pai (CESARINY, 1985, p. 262-263).

Nesse fragmento, podemos perceber como Cesariny reconhece como valoroso o

desenvolvimento de uma poética na qual se “desligava” o “discurso racionalista ao princípio

de identidade”. Condena, entretanto, a “operação cirúrgica” de criação da heteronímia, a

compartimentação de um em muitos, crítica que vemos desenvolvida em “autografia I”, onde

a possibilidade de transformação de um mesmo sujeito é demonstrada em profusão. No

“Prefácio” à Poesia de Teixeira de Pascoaes, Cesariny compara a obra dos dois poetas e

afirma que, na poesia do saudosista, “o Poeta recusa o mero lirismo catalogante [...] e é enfim

Vidente, ‘possuidor das forças das coisas superiores e das coisas inferiores que se dermos a

volta à esfera trocam posições’” (CESARINY, 1972, p. 12), ao passo que, a respeito de um

poema de Pessoa, Cesariny escreve: “muito belo. Dizer apenas ‘bonito’ seria ingratidão”

(CESARINY, 1972, p. 11).

A temática da constituição da “autoridade” emerge não apenas em “autografia I” e nos

poemas trabalhados nesta dissertação, mas é perceptível ao longo de toda a obra de Cesariny,

notadamente em alguns ensaios publicados em As mãos na água, a cabeça no mar (1985),

como no já mencionado “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” e em “Razão e

actualidade de Gérard de Nerval”27. No primeiro ensaio, publicado em maio de 1958,

Cesariny pretende subverter o significado cristalizado de “autoridade”, atribuindo a essa

palavra um novo sentido: “autoridade é do que é autor” (CESARINY, 1985, p. 75). O poeta se

apropria de dois termos tabus em meados dos anos de 1950, no Portugal de Salazar,

subvertendo a noção corrente segundo a qual “o português é convidado a imaginar que o

fragmento de liberdade resulta do inchaço de autoridade; e, inversamente: que dum inchaço

27 É interessante notar que ambos os ensaios foram publicados originalmente em datas muito próximas à do lançamento de Pena capital, em 1957, levando a crer que este era um tema relevante para Cesariny durante esse período. A ordem cronológica das publicações é “Razão e actualidade de Gérard de Nerval” (1956), Pena capital (1957) e “Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (1958).

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da liberdade resulta o fragmento da autoridade” (CESARINY, 1985, p. 74). Cesariny afirma

crer ser seu “dever de cidadão e de autor [...] declarar as seguintes palavras fundamentais”

(CESARINY, 1985, p. 75):

AUTORIDADE E LIBERDADE SÃO UMA E A MESMA COISA Autoridade é do que é autor. Só a autoridade confere autoridade. A autoridade não é uma quantidade. Todo o homem é teatro de uma inexpugnável autoridade. Aquele que julga ser possível autorizar ou desautorizar a autoridade de outrem não sabe no que se mete. Liberdade. A liberdade conhece-se pelo seu fulgor. Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só. Mas são mais reverbero no mesmo fulgor. Trocar a liberdade em liberdades é a moda corrente do libertino. Pode prender-se um homem e pô-lo a pão e água. Pode tirar-se-lhe o pão e não se lhe dar a água. Pode-se pô-lo a morrer, pendurado no ar, ou à dentada, com cães. Mas é impossível tirar-lhe seja que parte for da liberdade que ele é. Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz. Do cadáver do homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca sairá escravo. Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa (CESARINY, 1985, p. 75).

Nesse fragmento do ensaio-poema, Cesariny defende ser “dever” do cidadão e do autor uma

atitude de resistência que se instancia no próprio ato de escrita, no qual a reivindicação e a

conquista de sua autoridade são a própria liberdade, indicando a dimensão ética da poesia

cesarinyana.

No outro ensaio, publicado pela primeira vez em 1956, Cesariny elenca citações de

diversos poetas que tematizam a questão da autoridade em poesia. Afirmando que “Nerval

antecipa-se a toda a modernidade” (CESARINY, 1985, p. 51), o português faz a seguinte

lista:

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“Eu sou o outro” (Gérard de Nerval). “Je, est un autre.” (Rimbaud). “Eu não sou eu / Eu não nasci ainda!” (Teixeira de Pascoaes). “Ah, poder ser tu, sendo eu!” (Fernando Pessoa em estado de labirinto, como se efectivamente tivesse conhecido o outro). “Eu não sou eu nem o outro” (Mário de Sá-Carneiro). “Não há na terra um único ser humano capaz de se declarar, com toda a certeza, quem é. Ninguém sabe o que veio fazer a este mundo, a que correspondem os seus actos, os seus sentimentos, as suas ideias, nem qual é o seu nome verdadeiro.” (Léon Bloy, citado por Borges) (CESARINY, 1985, p. 51).

A essa sequência, poderíamos incluir o “eu sou, no sentido mais enérgico da palavra” que

lemos em “autografia I”.

Aceitando a complementaridade dos dois ensaios, podemos ver como a “autoridade”

de Cesariny é constituída por uma complexa relação entre arte e vida, na qual se observa um

compromisso ético que instaura o franqueamento das fronteiras entre ambas. Esta parece ser

um desdobramento da primeira crítica de Cesariny à poesia de Fernando Pessoa e a ressalva

fundamental que a ela fazem os poetas contemporâneos do surrealista 28 : a aparente

inexistência de um compromisso ético na poética pessoana. Rosa Maria Martelo, em “Cenas

de escrita” (2010), afirma que “a representação do poeta [Cesariny] se situa nos antípodas

(surrealistas) da cisão modernista entre escrita e vida, ou seja, muito longe das poéticas cujo

empenhamento é essencialmente textual ou textualista” (MARTELO, 2010, p. 329). Nesse

sentido, a “autografia” que se consuma nesse poema é, de fato, inscrição e construção de um

corpo/corpus dependente do trabalho de escrita para sobrevivência e como exercício de

conquista da liberdade29. Apesar de se aproximar dos poetas do Orpheu, para os quais, “[é] o

poema mesmo que cria a realidade que nós tocamos depois de o ter lido. Não é descrição,

28 Uma reação poética muito conhecida e abordada pela crítica à “poética do fingimento” de Pessoa é a “poética do testemunho” fundada por Jorge de Sena, especialmente defendida em seu Prefácio à Poesia I (1961). Neste, Sena afirma que “[t]ambém para mim, a poesia não é de facto um fingimento. [...] repugnou-me sempre a parte de artifício, no mais elevado sentido de técnica de apreensão das mais virtualidades, que um tal ‘fingimento’ implica. [...] Há muito de orgulho desmedido nesse ‘fingimento’, que contrasta, quanto a mim, com a humildade expectante, a atenção discreta, a disponibilidade vigilante, com que, dando de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca, como do mundo que, vivendo-o, nós próprios cercamos do nosso material cuidado. É que à poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender o mundo, transformá-lo. [...] Se o ‘fingimento’ é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito enquanto educador de si próprio e dos outros, o ‘testemunho’ é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos” (SENA, 1961, p. 11). 29 Muitas são as definições de liberdade que encontramos nos escritos de Cesariny. Todas elas, no entanto, parecem insistir em um ponto comum: “a liberdade não é uma coisa que se dá, ou se recebe, como um presente de Natal! A liberdade é algo que se arranca a quem, homem, coisa, ou ideia, traz o hábito do carrasco. Não existe homem livre senão na conquista da liberdade” (CESARINY, 1985, p. 97, grifo meu).

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nem comentário, nem alusão, nem símbolo, nem mesmo sugestão. [...] O mundo que há é esse

que o poema faz existir ou inexistir” (LOURENÇO, 1987, p. 145), confirme anotou Eduardo

Lourenço, a poesia de Cesariny parece mais comprometida com a luta “contra o que nos

oprime” (CESARINY, 1985, p. 75). Dessa forma, a emergência de um autor no ato da escrita

é, também, a emergência de um sujeito no mundo que, apesar se esconder atrás de sua

“gabardina”, pode “ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita”. Para Martelo,

“[o] que vemos na cena de escrita representada por Cesariny é a própria implicação surrealista

da escrita numa aventura que é, antes de mais, vivencial, quotidianamente vivida”

(MARTELO, 2010, p. 329). Assim, se a dor sobre a qual o poeta pessoano

finge/elabora/esculpe – para poder transpor ao poema e, assim, fazer com que os leitores

conheçam uma nova dor – é uma dor não localizada dentro de uma experiência de mundo, no

poema de Cesariny, a “dor” é circunstanciada: são “os dias e os anos deste século [que] têm

gritado tanto no meu peito”.

No filme documentário que lhe é dedicado, Autografia30, Cesariny afirma: “nunca

escrevi um poema em casa”, mostrando que concebe sua escrita como uma atividade que só

poderia ser feita a partir do contato com o mundo, com o cotidiano. Não escrevia em casa,

pois via como necessários o estar na rua e o encontro com as pessoas nos cafés, era preciso

ver e ser visto. Reforça, assim, o caráter “engajado” de sua obra: não se pode dar as costas ao

mundo, uma vez que o poeta com ele se encontra para a escrita do poema. Quando lemos

“autografia I”, portanto, vemos que não se trata da inserção de marcas de sua vida pessoal, ou

civil31, na poesia, mas da criação de um corpo poético apenas existente porque criado pela

poesia. Trata-se, assim, do movimento inverso: da invasão da arte na vida.

A metamorfose do sujeito poético, múltiplo à medida que o poema não apenas o

configura, mas é capaz de o transfigurar continuamente, dá-se a partir de uma apropriação do

mundo que se inscreve no próprio corpo do poeta, o qual, como vemos no fim da segunda

estrofe, afirma que “é por isso que eu trago um certo peso extinto / nas costas / a servir de

combustível”. Portanto, a criação do corpo pela poesia não se dá somente como efeito do que

o próprio Cesariny escreve, uma vez que percebemos uma herança artístico-literária

30 Autografia. Direção de Miguel Gonçalves Mendes, produzido por JumpCut. Lisboa: Atlanta Filmes, 2004. 31 Cf. António Carlos Cortez – “Mário Cesariny ou os caminhos de uma poética”, Relâmpago, Nº 26, abril de 2010: “No cerne da poesia de Cesariny, o que encontramos é a expressão de uma vida assumidamente poética, como se entre a esfera civil e a esfera ‘literária’ não houvesse qualquer distinção” (op. cit., p. 58).

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fortemente representada em sua obra, como temos visto ao longo deste estudo. Dessa maneira,

o encontro do poeta com sua herança cultural é também definidor da relação que estabelece

com o mundo à sua volta.

Talvez este seja o mesmo movimento que observamos no capítulo anterior, quando

trabalhamos com o poema “tal como catedrais”. Como vimos, foi na condição de leitor de

poesia que o “obreiro” pôde construir sua nova “Obra”. No poema desta seção, o suposto “eu-

lírico” de Cesariny também se apropria de outras poéticas para se transformar em “homem-

expedição”, naquele que busca uma “outra espécie de fim, para as coisas que são”, ou que

acha “que as paisagens ainda hão-de vir a ser escrupulosamente electrocutadas vivas / para

não termos de atirá-las semi-mortas à linha”. Assim, a posição de leitor que assume Cesariny

é o que o distingue profundamente do poeta “fingidor” pessoano. Na condição de leitor, é

trans/con-figurado pelo poder da linguagem poética e pode reivindicar sua autoridade e um

lugar de poeta em seu tempo. Novamente, seu texto parece depender do encontro com o

outro: corpo ou texto amante.

3.2 “a antonin artaud”

Dedicado ao fundador do Teatro da Crueldade, “a antonin artaud” é o último de uma

série de três poemas oferecidos a outros autores publicada em Pena capital (1957). Além de

Artaud, Cesariny contempla Edgar Allan Poe e António Maria Lisboa em poemas cujos

títulos seguem a mesma lógica de dedicatória: “a edgar allan poe” e “a antonio maria lisboa”.

Numa espécie de fundação do cânone próprio do surrealista, os três poemas parecem expor e

propor um contrato de leitura da poética cesarinyana, indicando poetas dos quais Cesariny se

apropriará na composição de sua obra – a começar por seus nomes, aqui já marcados pela

preferência do autor por utilizar letras minúsculas nos títulos dos poemas, como é o caso de

todos os títulos em Pena capital, a partir da edição de 1982.

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Apesar de ter rompido com André Breton e o grupo francês em 192632, Antonin

Artaud participou ativamente do Movimento Surrealista entre 1924 e esse ano, tendo

inclusive editado o número 3 da revista La Révolution Surréaliste e dirigido as atividades de

seu “Bureau de Recherches”33. Sua saída do Movimento costuma ser relacionada à vinculação

do grupo, àquele momento, ao Partido Comunista Francês. Porém, Cláudio Willer, na

detalhada “Nota biográfica” de abertura a Os escritos de Antonin Artaud (1986), ressalta que

a ruptura foi causada por “certo tipo de niilismo” (WILLER, 1986, p. 11) da parte de Artaud

frente a “uma tendência organizadora, voltada para a positividade, presente no Surrealismo”

(WILLER, 1986, p. 11). Afirma, ainda, que

não deixa de ser curioso e digno de nota que o Surrealismo seja, de um lado, radical demais para muitos gostos e criticado como irracionalismo e “assalto à razão” pelos intelectuais conservadores e burgueses, pelos católicos (tradicionalistas ou socializantes), pelos comunistas (ortodoxos ou dissidentes) e pelos existencialistas; de outro, sob a ótica artausiana, é demasiado organizado e bem-comportado (WILLER, 1986, p. 11).

Cesariny, por sua vez, considerava Antonin Artaud um dos maiores representantes do

Surrealismo. Para ele, “é num homem banido pelos surrealistas, Antonin Artaud, [...] que o

surrealismo ponta a sua vanguarda: [...] a provada possibilidade de vida mágica, a

redescoberta nela” (CESARINY, 1985, p. 114).

Sua autodenominação como “poeta” aponta a dimensão ilimitada e o caráter plural de

sua obra, uma vez que escreveu e publicou pouquíssimos poemas, expressando-se de maneira

mais frequente através de cartas, além de ter dedicado sua trajetória artística ao teatro,

principalmente. A denominação escolhida de “poeta” funciona, portanto, como uma marca da

mistura dos diversos níveis de experiência (artística ou não) dentro de um único campo, ao

qual Artaud se refere como o “poético”. Segundo Willer, era impossível para o francês

assumir uma postura impassível perante suas produções, algo que acarretava sua total

identificação com os personagens que criava ou com os textos que porventura lia

publicamente. O crítico relata que, “invariavelmente, Artaud abandonava o texto e passava a

encarnar o assunto do qual tratava, em vez de se limitar a discorrer sobre ele” (WILLER,

32 Em “Prolegómenos ao aparecimento de Dadá e do Surrealismo” (1997), Mário Cesariny anota a ruptura de Artaud no ano de 1927: “Manifestos À luz do dia, de Breton, Aragon, Éluard, Péret, P. Unik, e Em plena noite, de Artaud, que consagram a ruptura deste último com a orientação do movimento” (CESARINY, 1997, p. 32). 33 C.f. La Révolution Surréaliste, Paris, nº 3, 15 de abril 1925.

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1986, p. 12) e que, durante o período de escrita de Heliogábalo ou O anarquista coroado

(1934), livro, aliás, traduzido para o português por Mário Cesariny,

Artaud se identificava com o personagem a ponto de achar que era o próprio Heliogábalo e o mundo ao seu redor, a Roma decadente. Aliás, esta é uma característica de Artaud: ele só conseguia escrever ou produzir apaixonadamente, entregando-se totalmente ao tema, assumindo-o plenamente (WILLER, 1986, p. 32).

A forte aproximação entre as poéticas de Antonin Artaud e a fundamentada pela arte

poética que Cesariny dedica ao francês revela um intenso exercício de apropriação promovido

pelo português. Os outros dois poemas que integram a tríade de dedicatórias, “a edgar allan

poe” e “a antonio maria lisboa”, apresentam estruturas quase fragmentárias, nas quais é

possível identificar de maneira mais explícita os deslocamentos operados por Cesariny sobre

as obras alheias. As expressões retiradas dos dois escritores são grafadas entre aspas, em

itálico ou apresentam ambas as formas sobrepostas, explicitando, assim, os cortes e colagens

empreendidos. Dessa maneira, podemos destacar a seguinte passagem de “a edgar allan poe”:

“Contei-lhes a minha história” – “não quiseram acreditar-me!” (CESARINY, 2004, p. 46).

Trata-se de uma citação direta das linhas finais do conto “A Descent into the Maelstrom”, “I

told them my story – they did not believe it” (POE, 1982, p. 142). Já no poema “a antonio

maria lisboa”, há versos retirados dos poemas “Z” e “H”, de Ossóptico (2008 [1952]), postos

em uma mesma estrofe por Cesariny:

E depois de longo tempo eu te perdi de vista lá longe, numa fonte cheia de fogos fátuos (CESARINY, 2004, p. 47).

Em “a antonin artaud”, no entanto, não é possível notar claramente quais versos são e quais

não são de Cesariny, à exceção de uma única expressão grafada entre aspas:

O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar “tenebroso e cantante” suficientemente glaciado e horrível (CESARINY, 2004, p. 50).

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No entanto, ao contrário do que se passava nos outros poemas, nos quais as citações

provinham da obra dos autores nomeados em seus títulos, esta não é uma citação de Antonin

Artaud, mas do poeta português Mário Henrique Leiria, no poema “eu sei”34. Como veremos,

a apropriação da poética de Artaud no poema a ele dedicado parece se dar de forma mais

radical se comparada ao que se passa nos outros poemas da série, emergindo numa relação

similar àquela que Breton nota a respeito do diálogo surrealista, isto é, como um “trampolim

ao espírito” (BRETON, s/d, p. 199) de Cesariny, revelando-nos mais a respeito de sua própria

poética.

Portanto, a relação com a obra artausiana, declarada em forma de homenagem, pode

ser pensada em termos de um conceito fundamental identificável nesta, cujo traço percebemos

em Cesariny: “a identidade entre linguagem e vida, entre o signo e seu significado”

(WILLER, 1986, p. 33). Como vimos em “you are welcome to elsinore”, o poeta reivindica às

palavras a possibilidade fundação de uma nova realidade através da destruição dos

significados estanques a elas atribuídos pela linguagem cotidiana, pelo “mundo informativo

da fala” (PAZ, 1982, p. 47), para que recobrem toda a sua potência significativa. Ana Kiffer,

em Antonin Artaud: Uma poética do pensamento, afirma que “não se trata de uma aniquilação

da linguagem, do texto, da palavras, mas como disse ainda o poeta [Artaud], trata-se de

‘quebrar o sentido usual da linguagem, de romper com sua armadura, de explodir a carcaça’”

(KIFFER, 2003, p. 34-35). Se, nos poemas do primeiro capítulo, destacamos a “força

genésica da linguagem” (CUADRADO, 2002, p. 183) no tocante à fundação do mundo e das

coisas, ou na relação de dependência entre a nomeação das coisas e o seu aparecimento, em “a

antonin artaud”, tal como em “autografia I”, a potência criadora se volta para o próprio sujeito

que emerge como efeito do ato poético.

a antonin artaud I Haverá gente com nomes que lhes caiam bem. Não assim eu.

34 “eu sei / que há um lugar por descobrir / um lugar tenebroso e cantante / como uma ponte de velhos manequins // aí / o teu corpo / dois seios despedaçados / e o vento só o vento / soprado através dos / teus cabelos” (in: CUADRADO, Perfecto (org.). A única real tradição viva: antologia da poesia surrealista portuguesa. Lisboa, Assírio & Alvim, 1998, p. 159).

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De cada vez que alguém me chama Mário de cada vez que alguém me chama Cesariny de cada vez que alguém me chama de Vasconcelos sucede em mim uma contracção com os dentes há contra mim uma imposição violenta uma cutilada atroz porque atrozmente desleal. Como assim Mário como assim Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos? Porque é que querem fazer passar para o meu corpo uma caricatura a todos os títulos porca? Que andavam a fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios para que eu recebesse em plena cara semelhante feixe de estruturas tão inqualificáveis quanto inadequadas ao acto em mim sozinho como a vida puro eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu não quero eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais vulneráveis da matéria Eu estou só neste avanço de corpos contra corpos Inexpiáveis O meu nome se existe deve existir escrito nalgum lugar ‘tenebroso e cantante’ suficientemente glaciado e horrível para que seja impossível encontrá-lo sem de alguma maneira enveredar pela estrada Da Coragem porque a este respeito – e creio que digo bem – nenhuma garantia de leitura grátis se oferece ao viandante Por outro lado, se eu tivesse um nome um nome que me fosse realmente o meu nome isso provocaria calamidades terríveis como um tremor de terra dentro da pele das coisas dos astros das coisas das fezes das coisas II Haverá uma idade para nomes que não estes haverá uma idade para nomes puros nomes que magnetizem constelações puras que façam irromper nos nervos e nos ossos dos amantes inexplicáveis construções radiosas prontas a circular entre a fuligem

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de duas bocas puras Ah não será o esperma torrencial diuturno nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo o fim da pavorosa dança dos corpos onde pontificaste de martelo na mão Mas haverá uma idade em que serão esquecidos por completo os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas Haverá um acordar (CESARINY, 2004, p. 49-51).

O poema acima se aproxima daqueles trabalhados no capítulo anterior, uma vez que o

questionamento a respeito da potência das palavras e da saturação dos significados a elas

atribuídos pela tradição persiste como tema da poesia de Cesariny. Da mesma forma, constitui

uma arte poética na qual encontramos um sujeito que, em crise com a linguagem cotidiana,

busca um tempo futuro de “nomes / puros”. Se, em “you are welcome to elsinore”, a fundação

de uma nova linguagem permitiria um encontro libertador com o outro, no poema “a antonin

artaud”, a esperança de “nomes que não estes” está diretamente ligada ao desejo de libertação

do sujeito frente à “imposição violenta” de estruturas estranhas a si. Na recusa do nome

próprio, primeira marca da imposição do outro sobre seu corpo, que parece ocupar um lugar

análogo ao da tradição imposta, o “eu” que lemos muitas vezes na primeira seção do poema

escolhe homenagear uma poética, dedicar-lhe um poema, prova poética de aprendizagem e de

identificação com um outro. Em “a antonin artaud”, portanto, a recusa de “uma caricatura a

todos os títulos porca” parece equivaler à tentativa de construção da própria identidade, a

qual, como vimos em “autografia I”, corresponde a um exercício de liberdade.

Tal recusa ao nome próprio lida na seção inicial do poema, no entanto, parece assentar

sobre certa oscilação entre a negação e a afirmação, o apagamento e a inscrição do nome.

Assim, ao dizer que “de cada vez que alguém” o chama pelo nome próprio lhe sucede “uma

contracção com os dentes”, que há contra si “uma imposição violenta”, o poeta não deixa de

inscrever no papel seu nome completo, ainda que apareça esquartejado. O movimento se

repete ainda no primeiro verso da segunda estrofe, o qual encerra certo caráter humorístico

fundamentado no aparente absurdo do questionamento: “Como assim Mário como assim

Cesariny como assim ó meu deus de Vasconcelos?”. O título do poema parece sofrer da

mesma oscilação, uma vez que nomeia explicitamente Antonin Artaud, mesmo que com as

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iniciais minúsculas. Nesse movimento, o escritor, sujeito empírico que precede o poema,

parece tentar apagar um nome imposto – ou de impostor – sobre seu corpo, em busca da

conquista de sua identidade – identificação e correspondência totais entre corpo e nome.

Jacques Derrida, em seu belíssimo ensaio sobre Artaud, Enlouquecer o subjétil (1998),

aponta que, nesse poeta,

[a]través da paixão ou da patologia a que seu sofrimento o submete, sua verdade exibe, em seu nome, a verdade da verdade, isto é, que todo “eu” em seu nome próprio é chamado a essa expropriação familiar do recém-nascido, constituído, propriamente instruído por essa expropriação, essa impostura, essa deserção, no momento em que, muito simplesmente, uma família declara um filho e lhe dá o seu nome, em outras palavras, prende-o a si. Essa apropriação expropriante, essa legitimação só pode ser uma violência da ficção, nunca pode ser natural nem verdadeira por estrutura (DERRIDA; BERGSTEIN, 1998, p. 65-66).

Cesariny parece expor o mesmo sentimento em seu poema quando pergunta “que andavam a

fazer com a minha altura os pais pelos baptistérios / para que eu recebesse em plena cara

semelhante feixe de estruturas / tão inqualificáveis quanto inadequadas [?]”. Para ambos os

poetas, portanto, a imposição do nome próprio é um acontecimento sobre seus corpos. Como

afirma Derrida a respeito de Artaud, a nomeação de um filho por uma família é “singular,

ligada ao corpo do evento e ao evento do corpo” (DERRIDA, 1998, p. 66). Já no poema de

Cesariny, podemos ver como as reações causadas no momento em que o chamam por seu

nome são descritas a partir de elementos ligados ao corpo e à violência física sobre o sujeito,

o qual afirma que “sucede [...] uma contracção com os dentes”, que há contra ele “uma

cutilada atroz”. Pergunta, em seguida, “porque é que querem fazer passar para o meu corpo /

uma caricatura a todos os títulos porca?”. A vontade dos “pais” em determinar as dimensões

dos sujeitos, ao se inscrever sobre os corpos destes, é análoga ao processo emparedamento do

homem dentro de uma muralha criada pela linguagem, conforme articulado em “you are

welcome to elsinore” e no estudo de Breton, “Introduction au discours sur le peu de réalité”

(1992 [1924]). Isto é, nomear um corpo, aquilo que é “acto [...] sozinho como a vida puro”,

é circunscrevê-lo dentro de uma lógica de significados estanques e limitadores. Segundo

Derrida, essa imposição

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preside ao nascimento de tudo o que será legitimado na linguagem, isto é, na sociedade, sob os nomes de nome, ser, verdade, eu, deus etc. Quem quer que se submete, vê-se submeter, sem pensá-las em seu corpo, a essas formas e a essas normas, acha-se assim bem formado, isto é, normatizado: normal. Trocou uma força por uma forma (DERRIDA, 1998, p. 66, sublinhados meus).

A “deslealdade” cometida pelo discurso dominante expressa nas duas primeiras

estrofes de “a antonin artaud” é contrastada com o “enveredar pela estrada / Da Coragem”,

caminho obrigatório para quem pretende encontrar o nome real daquele chamado “[...] Mário

[...] Cesariny [...] de Vasconcelos”. A estrada “Da Coragem” que leva ao encontro do lugar

“‘tenebroso e cantante’”, grafada com iniciais maiúsculas, assume o estatuto de “Toda A

Coragem”, comparável a “todo o sangue do mundo [e] todo o amplexo do ar”. A articulação

com a “leitura grátis” que não se garante ao “viandante” indica que não é possível passar por

essa poesia sem deixar ou sem dar algo em troca, sem ser por ela afetado de alguma maneira.

Nesse sentido, para enveredar pela estrada e encontrar o verdadeiro nome de “Cesariny”, é

preciso ser herói.

Na segunda parte do poema, os “nomes que não estes” deixam de significar apenas os

“nomes próprios”, para abarcar todos os substantivos que dão nome “às coisas”. O dêitico

“este” que lemos no primeiro verso aponta que os nomes sobre os quais se fala são aqueles

com os quais ele é escrito. São, também, as “palavras” de “tal como catedrais” e “you are

welcome to elsinore”. Desse último, vemos a retomada da anáfora em “há palavras”,

transformada, agora, em “haverá uma idade [para nomes]”. O desejo de fundação de uma

nova linguagem expresso pelo poema, junto à esperança de um tempo futuro no qual “serão

esquecidos por completo / os grandes nomes opacos que hoje damos às coisas” manifestam

uma forma de encontro com aquilo que Cuadrado chamou de “força genésica da linguagem, a

capacidade das palavras para criar realidade” (2002, p. 283)”, a qual emerge como

reivindicação de liberdade desses corpos subjugados. Tanto Artaud quanto Cesariny

convocam o poder mágico de criação das palavras, de encontro absoluto entre “os nomes” e

“as coisas”.

Para Octavio Paz, o movimento da poesia surrealista deve ser o de um retorno ao

estado primitivo da língua, àquele em que as palavras ainda não foram destituídas de toda a

sua potência significativa pela sociedade. Esse retorno consiste numa operação mágica sobre

a linguagem, uma vez que as palavras do poema – que são e não são as da língua, como

lembra Manuel Gusmão (2010, p. 400) – revelam múltiplos significados, fazendo com que o

poema se construa como um feitiço verbal. Dessa forma, segundo Paz, “poeta e leitor se

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servem do poema como de um talismã mágico, literalmente capaz de metamorfoseá-los”

(PAZ, 1980, p. 48, grifo meu)35.

Para Artaud, corresponde ao “direito de romper o sentido usual da linguagem, de

romper de vez a armadura, arrebentar a golilha, voltar enfim às origens etimológicas da língua

que, através dos conceitos abstratos, evocam sempre uma noção concreta” (ARTAUD, s/d, p.

117). Em seu Teatro da Crueldade, trata-se do franqueamento das fronteiras entre o teatro e a

realidade, através do qual arte e vida deixam de ser tomadas como termos opostos. Assim,

Artaud toma o teatro como uma força que precede qualquer mudança na sociedade, negando

ser um “dos que acreditam que a civilização deva mudar para que o teatro mude; mas [crê]

que o teatro utilizado num sentido superior e o mais difícil possível tem a força de influir

sobre o aspecto e a formação das coisas” (ARTAUD, s/d, p. 89). Willer nota que o projeto

central do Teatro da Crueldade formulado por Artaud seria “a substituição do texto pela

realidade, pela própria vida, e, ao mesmo tempo, a transformação da vida e da realidade em

obra, em algo que é criado e transformado pelo autor” (WILLER, 1986, p. 33-34).

Da mesma forma, a cena escrita por Cesariny do sujeito que ensaia um apagamento de

seu nome do poema que escreve parece apontar uma imbricação entre essas esferas. Seu

objetivo parece ser, também, a dissolução da oposição entre vida e arte, através do “poder de

germinação (plástico ou escrito) do verbo” (CESARINY, 1985, p. 158) surrealista frente à

“‘pouca realidade’ do mundo exterior” (CESARINY, 1985, p. 158), mostrando que o

movimento que vai da arte à realidade está vinculado a um compromisso ético assumido pela

primeira. A recusa do nome próprio e o desejo de fundação do sujeito a partir de uma nova

linguagem parecem, também, encontrar a “autoridade” sobre a qual Cesariny discorre em

“Autoridade e liberdade são uma e a mesma coisa” (1985).

Sua busca pelos “nomes / puros” parece ser ensaiada formalmente, uma vez que é

possível perceber como a construção dos versos do poema conduz ao silêncio, num

movimento similar ao observado em “you are welcome to elsinore”, através das

palavras maternais só sombra só soluço só espasmos só amor só solidão desfeita (CESARINY, 2004, p. 35).

35 “poeta y lector se sirven del poema como de un talismán mágico, literalmente capaz de metamorfosearlos” (PAZ, 1980, p. 48).

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O silenciamento também pôde ser percebido em “tal como catedrais”, no desejo de “dar

descanso” às palavras, comparadas a senhoras fatigadas. A busca pela pureza das palavras

resulta numa tentativa de purificação do próprio poema, o qual, segundo Octavio Paz,

seria aquele em que as palavras abandonassem seus significados particulares e suas referências a isto ou aquilo, para significar apenas o ato de poetizar – exigência que acarretaria seu desaparecimento [...]. Um poema puro não poderia ser composto de palavras e seria literalmente indizível (PAZ, 1982, p. 225).

O “desaparecimento” de que fala Paz parece ser o desejo do poema de Cesariny, algo que se

verifica desde a segunda estrofe de sua primeira seção. Nela, alguns vocábulos são escritos

após um espaçamento na página que pretende forçar um intervalo entre as palavras que são

ditas, numa libertação dos nomes. Dessa forma, encontramos

[...] ao acto em mim sozinho como a vida puro eu não sei de vocês eu não tenho nas mãos eu vomito eu não quero eu nunca aderi às comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais vulneráveis da matéria (CESARINY, 2004, p. 49).

Já na segunda seção do poema, os versos formados por apenas um vocábulo, bem como os

espaços vazios que separam expressões no interior dos versos, enquanto execução formal da

pureza perseguida ao longo do poema, mostram, na finda, a expressão máxima da purificação

da linguagem:

Haverá uma idade para nomes puros nomes que magnetizem constelações puras [...] Ah não será o esperma torrencial diuturno nem a loucura dos sábios nem a razão de ninguém Não será mesmo quem sabe ó único mestre vivo [...] Haverá um acordar (CESARINY, 2004, p. 50-51).

Dessa purificação, portanto, resta uma linguagem rarefeita, que deseja uma nova

possibilidade de linguagem, na qual os “nomes” serão capazes de “magnetizar” “constelações

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/ puras”. Nesse sentido, parece corresponder a uma esperança na subversão da ordem

estabelecida e aceita como natural, na qual “um acordar”, lançado a um momento futuro,

opõe-se ao adormecimento e opacidade do presente. Porém, se, na segunda parte do poema, a

“idade para nomes / puros” é mera esperança de mudança e não encontra qualquer ator capaz

de empreender uma subversão sobre os “grandes nomes opacos” (“nem a loucura dos sábios

nem a razão de ninguém”), na primeira parte, essa subversão é operada pelo próprio sujeito,

na recusa de seu nome. Podemos ver, portanto, que o compromisso ético assumido por

Cesariny tem seu ponto de partida, novamente, em seu próprio corpo, transformado pela

reivindicação de autoridade e liberdade no ato poético, para que, só então, possa se inscrever

na realidade, “num novo real poético” (CESARINY, 1997, p. 89). Depende,

fundamentalmente, do encontro com o outro. Como afirma Cesariny,

[a] acção surrealista, tende constantemente, como no acto amoroso, a fundir num só total delirante, “explosivo-fixo”, “solene-circunstancial”, todas as presenças, ligando estreitamente a coisa a possuir e os meios de possuí-la numa viagem que só se termina quando ardeu por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva, a estação de chegada, os raills (sic) e os passageiros (CESARINY, 1997, p. 89).

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4. O poema como palco

Nos capítulos anteriores, propus, como um dos aspectos fundamentais da poética que

Mário Cesariny se dedica a definir, a centralidade do encontro e do diálogo amorosos com o

outro: a convocação de uma segunda voz como maneira de fazer soar a própria fala do poeta.

Nesse sentido, foi necessário refletirmos acerca do “nós” composto da relação entre um “eu”

e um “tu” e avaliarmos a identidade de cada um desses “personagens”. A relação conflituosa

com a tradição – declarada em “tal como catedrais” e em “you are welcome to elsinore” – e a

apropriação de outras poéticas como forma de fundação da identidade do sujeito poético –

como lemos em “autografia I” e em “a antonin artaud” – mostraram como o encontro

amoroso e fundente com o outro é indispensável no trabalho de Cesariny.

Neste capítulo, a cena na qual “eu” e “tu” se encontram se passa num espaço cuja

localização excede os limites terrenos da cidade: no “atelier nos astros” d’O Poeta36. A

estrutura do poema é muito distinta das observadas nas composições dos capítulos anteriores,

pois, se tomei os poemas de Cesariny analisados até aqui como palcos onde se desenvolvem

cenas de escrita, na composição que motiva este capítulo, a “cena” deixa de ser uma metáfora

de leitura e se literaliza num “poema em drama”, distinto do “poema dramático” clássico em

alexandrinos, contando com rubricas do autor, as quais apontam nomes de personagens,

indicações de entrada e de saída destes e conduzem os diálogos travados ao longo da peça,

apresentando características mais prototípicas de um “texto dramático” (PAVIS, 2011, p. 404-

406). Trata-se do poema “pena capital”, publicado no livro homônimo de 1957, cuja cena

inicial se passa no interior dum atelier, onde se encontra O Poeta, personagem principal do

poema-drama.

Em consonância com “autografia I”, poema no qual o sujeito poético afirma que seu

“nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte”, a pena capital do

título do poema que analisarei a seguir também é uma sentença tirânica imposta ao Poeta que

36 Os personagens do poema, bem como todas as citações retiradas de suas rubricas, serão sempre grafados em itálico, para sua melhor identificação. Já os artigos definidos que, invariavelmente, antecedem os nomes dos personagens são ora grafados em maiúsculas ora em minúsculas no próprio texto de Cesariny e tal fato parece se dar aleatoriamente, uma vez que não observei nenhuma justificativa para a mudança de grafia. Dessa forma, neste texto, as minhas referências aos personagens de Cesariny também apresentam certa variação no que diz respeito aos artigos definidos.

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empreende o trabalho de leitura e de escrita, como verificamos principalmente nas falas finais

desse personagem. Em carta enviada a Cruzeiro Seixas no ano de publicação do livro,

Cesariny escreve as seguintes palavras a respeito da brochura e do poema:

o meu livro dito Pena Capital – capital para todos, sem esquecer o autor – chegou às livrarias. Vou fazer-to chegar – apesar de, ao que me parece, não tenhas tomado na devida conta a matéria constante do poema que dá nome ao livro e que não é outro senão o que lá tens, mal titulado: António o Azul o Poeta. Pena Capital, é mais correcto (CESARINY, 2014, p. 135).

Avançando um pouco mais na interpretação da expressão que dá título ao poema e ao livro, é

possível afirmar que “pena capital” remete não apenas a uma sentença proferida por um

tribunal – a pena de morte –, mas à pena do trabalho de escrita, levando a crer que a pena

utilizada é capaz de transcender o papel e inscrever-se para além dele. Sobre esse aspecto,

veremos como o trabalho empreendido pelo Poeta resulta na ressurreição do surrealista

António Maria Lisboa, falecido em 1953, e na possibilidade de mais um encontro com o

amigo perdido, indicando ainda outra manifestação da “força genésica da linguagem”

(CUADRADO, 2002, p. 283), valorização, portanto, do caráter performativo da linguagem

poética surrealista. Em “Esclarecimento a um crítico”, texto publicado em A intervenção

surrealista (1997), mas datado de 1949, o próprio Lisboa afirma que

[a] actividade surrealista não é [...] uma simples libertação de coisas que chateiam, mas um golpe fundo, e de cada vez que é dado, na realidade presente... Não é mero exercício para se dormir melhor na noite seguinte, mas esforço demoníaco para se dormir de maneira diferente (LISBOA, 1997, p. 175).

Abordar o aspecto dramático desse poema significa salientar de que forma Cesariny

exerce a função de autor e encenador da atividade poética, percebendo sua maneira não

apenas de escrever essa cena, mas de criar um todo significativo a partir da disposição de

diversos elementos convocados a contracenarem sobre um mesmo palco. Assim, será possível

perceber como os diálogos com outros textos reincidem como a base de construção de sua

poética, conforme percebemos na apropriação de diversos símbolos da tradição ocidental, em

particular a portuguesa, e sua transformação em personagens – convidados a entabularem um

diálogo literal com o Poeta ao longo de uma viagem cósmica que vai desde seu “atelier nos

astros”, passando da Terra para O Mar, do Mar para o céu, numa ascensão vertiginosa,

ultrapassando Deus e o Olimpo, para cair, novamente, no atelier do Poeta. Retomando, assim,

a temática do diálogo como fundamento das cenas que se apresentam nos poemas de Mário

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Cesariny trabalhados até aqui, creio ser possível perceber como os movimentos de

deslocamento e de apropriação da tradição se radicalizam no poema que leremos a seguir,

fazendo com que a fundação da poética cesarinyana seja exemplificada em forma de

espetáculo.

4.1 “pena capital”

O longo poema que leremos a seguir explora as possibilidades de criação de uma nova

realidade a partir da potência evocatória das palavras e de seu poder de “golpear a realidade

presente” (LISBOA, 1997, p. 175). Sua cena de abertura apresenta um momento de leitura-e-

escrita, na qual o Poeta, ao “exorcismar ao seu atelier”, vê sair, “das páginas do livro”, o

amigo António, com quem irá empreender uma viagem cósmica durante a qual os dois

personagens, junto a um terceiro – o Azul –, encontram-se com símbolos de certo imaginário

marítimo caracteristicamente português. Através das “páginas do livro jovialmente aberto”,

testemunhamos a animação desses símbolos e sua transformação em personagens “duma

tragédia química”, bem como a ressuscitação de um dos maiores poetas do surrealismo

português, António Maria Lisboa, falecido quatro anos antes da publicação do poema. Com a

leitura de um livro, atividade que parece equivaler a um trabalho criativo de escrita, António

volta à vida e respira:

Olho-te no meu espelho de atravessar os mares olho-te com simpatia com anterior amizade respiras tu respiras! e deste um passo para o lado como quem chega um pouco mais a si o seu ar pessoal Caramba caramba António já estás muito mais parecido ou então era eu que não me lembrava (CESARINY, 2004, p. 78).

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Publicado originalmente como o poema final do livro Pena capital37, “pena capital” é

construído como um texto dramático, contando com indicações cênicas destinadas a

“esclarecer ao leitor a compreensão ou o modo de apresentação da peça” (PAVIS, 2011, p.

206), como define Patrice Pavis, em seu Dicionário de teatro. Aos diversos personagens que

encontramos ao longo do texto, Cesariny atribui, para além de falas, marcas de entrada e de

saída, apresentando comentários de atuação e descrições dos lugares onde se passam as

sucessivas cenas da peça. Ao contrário, porém, do que se observa comumente em textos

dramáticos escritos, os quais apresentam um “texto principal” (PAVIS, 2011, p. 409) – que

corresponde às falas dos personagens – e um “texto secundário” (PAVIS, 2011, p. 409) –

constituído das rubricas do autor e que não é pronunciado pelos atores –, as indicações

cênicas espalhadas pelo poema de Cesariny devem ser lidas como falas de um personagem

que encontraremos apenas ao final da peça, o Autor. Uma pista de sua existência, no entanto,

é dada ainda na primeira cena do poema, na qual podemos observar como uma rubrica rima

com os versos que compõem as falas dos personagens, como na passagem a seguir, quando a

musicalidade da fala do Poeta ressoa nas rubricas do Autor:

O Poeta: Então que é isso rapazes estamos atrasados toca a andar para o comboio meu amigo e tu António cautela já estás mais que parecido vai ser mau continuar António chora, contrariado. E assim vão para o comboio, que os leva para o mar (CESARINY, 2004, p. 79).

O encontro entre esses dois “níveis” de construção do drama, aquele do universo dos

enunciados dos personagens e o das anotações a respeito deles, revela uma instância

metateatral (ou mesmo metapoética) desse texto, indicando uma construção similar a uma

mise en abyme, efeito reforçado pela afirmação encontrada, ao fim do poema, de que o Poeta

é, na realidade, um personagem escrito pelo Autor que, por sua vez, está sendo escrito por um

outro autor que se encontra fora do texto e que não é nomeado. O franqueamento das

fronteiras entre esses diversos níveis de experiência, a dissolução das barreiras entre o textual

e o extratextual, entre arte e vida, entre vida e morte, representa uma das características

37 A partir da edição de 1982, no entanto, o poema “autoractor” é o último.

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fundamentais do surrealismo francês das quais se apropriou a poesia de Mário Cesariny,

conforme apontei em relação aos outros poemas analisados ao longo deste trabalho. A

construção em abismo simula uma encenação de um palco-dentro-do-palco que ecoa, ainda,

os diálogos com os teatros de Shakespeare e de Artaud que encontramos em “you are

welcome to elsinore” e “a antonin artaud” e que pode ser percebida como uma marca

característica da autorreferencialidade presente em artes poéticas, nas quais podemos perceber

uma correspondência entre enunciado e enunciação. pena capital O Poeta, exorcismando ao seu atelier nos astros: das páginas do livro jovialmente aberto primeiro os pés depois a cabeça sais tu não estás nada parecido mas és sem dúvida o que se pôde arranjar Olho-te no meu espelho de atravessar os mares olho-te com simpatia com anterior amizade respiras tu respiras! e deste um passo para o lado como quem chega um pouco mais a si o seu ar pessoal Caramba caramba António já estás muito mais parecido ou então era eu que não me lembrava Olha hoje o teu clima está magnífico olha vamos sair desta cidade onde o teu clima é sempre para dividir por cinco vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos vamos ser os heróis duma tragédia química e convidamos o Azul por uma questão de princípio O Azul, entrando: Azul criado incriado azul de todas as cores dos caminhos anteriores ao mistério revelado António, erguendo-se agressivo: Tu não és o azul tu és a morte tu estás feito com os meus olhos fora daqui para fora desaparece ou passo-te o automóvel em cima O Azul: Teus olhos lugar geométrico teus olhos estrada marinha teus olhos vivos por dentro teus olhos treva exemplar António: Fora! Fora!

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O Poeta: Então que é isso rapazes estamos atrasados toca a andar para o comboio meu amigo e tu António cautela já estás mais que parecido vai ser mau continuar

António chora, contrariado. E assim vão para o comboio, que os leva para o mar.

O Mar: Eu faço a tempestade... O Poeta: Oh! O Mar: Eu, só, criei a terra por retirada minha... O Azul: Oh! O Mar: Eu dei o nome às pessoas... O Azul e o Poeta: Oh! O Poeta, para António: O Mar não dá nada às pessoas O Mar é mau O Mar o mais que dá é uma alma negócio de bruxas — rrrrr O Mar, para António: Escuta, corpo meu, meu filho natural...

António entra na água. O Poeta e o Azul, ajoelhados na areia: Deus o guarde do Espírito do Mar! António, gritando no banho: Quando eu for pequenino aumentará o mundo Tudo me será dado por acréscimo!

Passa uma flor perseguida pela Morte. Flor: Bom dia, boa noite.

Desaparecem. António volta do banho, António, O Azul e O Poeta comem figos e é chegada a hora da lição.

Dão-se humanidades, germânicas e ciências naturais. O Azul ponta a lição servindo-se de um livro especialmente disposto.

O Poeta: Pão a cozer...

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António: ...Menino a ler. O Poeta: Fogo na palha... António: ...Canta o canalha. O Poeta: Pouca atenção... António: ...Cornos no chão. O Azul, virando a página: Virou!! O Poeta: Enterocolites... António: ...Frederico Nites. O Poeta: Delirium trémos... António: ...Dá cá os remos. O Poeta: Externo-cleudo-mastoideu... António: ...Foi uma mulher que o perdeu. O Azul, virando a página: Virou!! O Poeta: A noite... António: ...Não me lembro... O Poeta: A noite... António: ...É o corvo em liberdade O Poeta: A Águia... António: ...É o amor na cama O Poeta:

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Os Poetas... António: ...São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética O Azul: Novalis.

O Poeta abraça António dando por finda a lição. Passam então, em velocidades conformes:

Um barco a que faltam os pulmões Goethe em cima dum plinto onde segue também o seu segundo Fausto

Um Frade que arrasta Ofélia pelo bico. Reaparece a Morte com a Flor na lapela.

António: Salvemos Ofélia! Salvemos a pureza que vai pela mão Salvemos o doce cabelo Salvemos, pelo menos, o braço.

Corre atrás do Frade que puxa dum pau e dá para baixo bem em cima da cabeça de António que se agarra ao Frade

e luta com ele, esquecendo-se ambos de Ofélia, que se atira ao mar.

António, largando o Frade: Ofélia! Ofélia!

O Frade desaparece transformado em lobo. António, chorando: Poeta!... O Poeta: Não. António, chorando: Poeta!... O Poeta: Não.

António lança-se ao Mar, onde flutua ainda o branco corpo de Ofélia.

O Poeta e O Azul impedem-no de se afogar dançando com ele animada sarabanda

que em estreitos movimentos circulares os começa a subir pelo espaço fora.

António: Olha olha os países. O Poeta: Não são mais do que três. O Azul: Eu vou acelerar vertiginosamente.

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Acelera vertiginosamente. António começa a vomitar

nuvens de borboletas brancas e azuis, e a cabeça pende-lhe ligeiramente para o lado, forma expressiva de dizer

que não se sente bem. O Poeta: Dança! Dança! Dança! O Azul: Marialfabeta Iowanalfabeta Ariana alfa beta Os Astros: Um, três, cinco, sete, dez! Dois, quatro, cinco, oito, um! Voz, dentro duma nuvem: Deixem passar Deus! Deixem passar Deus!

Passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais.

António: Eu amava, tu amavas, ele amava... O Poeta, analisando à lupa os olhos de António: De olhos para olhos a distância aumentou.

Passam então por um pequeno Olimpo que anda a voar perdido de referências.

Os Deuses abandonam os jogos do costume e montam observatórios-periscópios por onde estudam o grupo voante.

Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros. A Máquina de Consultar Os Astros diz o seguinte:

Um, dois, dois, três, um. Das janelas dos terraços alguns Deuses mais importantes

escrevem em alvos cadernos individuais observações pertinentes sobre o número e o propósito dos intrusos.

Caderno de Ares: Tudo o que usa chapéu lhes diz respeito Tudo o que à noite brilha conta com eles Todo o anjo vestido de diamante Toda a hora de luto e crueldade Caderno de Zeus, em caracteres estenográficos: São mágicos cartógrafos amando pelos bolsos das calças A Montanha Caderno de Afrodite Anadiómena. (Letra crispada, irregular, denunciando perturbação): Vêm da Terra! Nada pode já salvá-los! Nem as Torres do Reino das Pacientes Esperas nem as rosas da mais solene exéquia! Pelo espelho das suas pernas nítidas

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pela curva dos seus braços desce um pássaro de límpida memória e uma frota de cardos luxuosíssimos segue-os para sempre para toda a vertigem Caderno de Afrodite Urânia: São quatro! QUATRO! Aliás, cinco mil pronunciados por crimes de aparição na duna junto à terra da Ilha dos Amores na pálpebra de sol que me deixaram vêm exaustos de esperança, exaustos de água, respirando pelas mãos, ouvindo atônitos a música da guerra que levantam Zeus, num grito: Que cesse todo o trânsito entre um corpo e outro corpo RODA E ESTRADA!! Uma Vendedeira de Fruta, fechando as portas do Olimpo: Estranha gente. Sem música. Sem armas e bela, apenas, da sua própria beleza... O Poeta, num murmúrio: Para uma boca, outra boca, para um leito, o telhado. Nem sempre, como se diz, a batalha é de flores.

Passa lentamente uma rosa. António: Olha olha uma rosa. O Poeta, num repente: As rosas deviam deixar de saber tão bem que são rosas As rosas incomodam-me quando se põem assim Com o ar de quem diz: Olha, este não é uma rosa no seu jardim O Azul: Ó rosas catedráticas! Esplendorosíssimas rosas! António: Morte, morte, morte.

Dito o que, desfalece. É óbvio que vai morrer. O Poeta e o Azul carregam-no para cima de uma cama de folhelho,

acendem duas candeias e velam a seu pés38. Um vulto muito alto que parece pairar na vastidão dos ares,

mas que em verdade se dirige para eles a uma velocidade vertiginosa, é A Morte.

António, delirante:

38 Está assim na edição CESARINY, Mário. Pena capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

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Poeta! Meu Poeta! O Poeta, deitando sangue pelos ouvidos: Eu vejo! Eu vejo! EU VEJO-TE!! O Azul, soprando as candeias e gritando no escuro: Dança!

O espaço tem agora a cor dos olhos de António. Voz do Mar, falando de baixo: Eu sei as bodas químicas do princípio e do fim Eu, só, criei a Terra por retirada minha Eu sei os grandes espaços intervalares Eu sei Ofélia... António: Ofélia... O Poeta: Muito parecida, António, muito parecida. Voz da Terra, falando de baixo: Ah se toda a viagem fosse para mim e todos os navios me buscassem! A Morte, tocando a fronte de António: HOME SWEET HOME

António morre. O Azul, o Poeta, o Desmaiado e a Morte,

descem em lentidão pelo ar abaixo. Voz, dentro duma nuvem: Não deixem passar Deus! Não deixem passar Deus! Não passa Deus, seguido dos seus Anjos e dos seus Animais. O Poeta regressa ao seu atelier nos astros, que a sua governanta encheu de flores. Faz café, que ingere em goladas pequenas, sentado abstracto em cima do telhado. Chora um pouco e murmura, olhando o céu escuro: Sou um rio injusto, com margens de labaredas, Se me navegam, gelo, se me fogem, queimo.

Assim acaba este estranho poema, o último de nome religioso escrito pelo Autor.

(CESARINY, 2004, p. 78-90).

No “estranho poema” acima, três personagens, o Poeta, António e o Azul, lançam-se

em uma viagem quase épica durante a qual encontram diversos personagens e espaços

provenientes de certo imaginário cultural e poético português. Elementos marcantes dessa

cultura – mar, terra, astros e azul – são transformados em personagens atuantes que intervêm

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no enredo do drama, e adotam características de seres animados. Cesariny destitui, assim,

qualquer traço “natural” desses elementos e garante sua inserção em um universo estritamente

cultural, no qual passam a ser O Mar, Voz da Terra, Os Astros e Azul, transformados não

apenas em mitos, mas em personagens da cultura portuguesa.

Certamente, o tema da viagem e os personagens eleitos para comporem as cenas desse

poema em drama levam-nos a crer que o diálogo intertextual fundamental em “pena capital” é

entabulado com Os Lusíadas, de Camões. Podemos constatar, no entanto, certo apagamento

desse poeta na obra de Cesariny, algo que é percebido quando buscamos, sem êxito, qualquer

referência direta a ele. Sua aparente ausência nas publicações inaugurais de Mário Cesariny39

– como Corpo visível (1950), Discurso sobre a reabilitação do real quotidiano (1952),

Louvor e simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de prestidigitação (1956) e

Pena capital (1957) – contrasta com as diversas referências a outras obras que se espalham

por esses livros, uma vez que o surrealista não hesita, como vimos nos capítulos anteriores,

em citar explicitamente – por vezes, nominalmente – os poetas com os quais estabelece algum

tipo de vínculo em sua poesia. O retorno a Camões é feito, portanto, de forma tortuosa e

parece se dar através da leitura empreendida por outros poetas da obra camoniana, como

Cesário Verde em “O sentimento dum ocidental”, ou Fernando Pessoa em Mensagem. Mário

Cesariny retoma, assim, não apenas um livro ou uma obra determinada, mas um imaginário

consagrado ao longo de séculos de cultura portuguesa.

Espaço percorrido pelos heróis ao longo da viagem épica e condutor da expansão do

saber, bem como do encontro com o desconhecido, n’Os Lusíadas, lugar ao qual o herói dá as

costas, como em Viagens na minha terra, ou lugar no qual se “escarra”, como nos poemas de

Cesário Verde, o mar é imagem fundamental da literatura portuguesa, não apenas como a “via

da glória nacional” (SILVEIRA, 1995, p. 7), mas como elemento cantado desde as cantigas

trovadorescas, como não poderia deixar de ser em uma poesia peninsular. Em “pena capital”,

Cesariny mantém a centralidade desse símbolo, uma vez que O Mar é o fio condutor e

personagem-chave do drama, sendo alçado à posição suprema de um deus, mais potente que

39 No entanto, em Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor, livro publicado em 1958, um ano depois da edição de Pena capital, podemos ver uma citação de Os Lusíadas estampada na capa (ANEXO A). O fato é registrado por Mário Cesariny em A intervenção surrealista (1997): “1958 [...] Publicação de A antologia em 1958, dirigida por Mário Cesariny: Alguns mitos maiores alguns mitos menores propostos à circulação pelo autor, de Mário Cesariny. Na capa: Aqueles Que Por Obras Valerosas Se Vão Da Lei Da Vida Libertando” (CESARINY, 1997, p. 81).

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todos os outros personagens divinos referidos ao longo da peça, tendo, sozinho, criado “a

terra por retirada” sua e de ter dado “o nome às pessoas”. O Mar é, no entanto, visto de forma

negativa pelo Poeta, como percebemos na fala abaixo, na qual ressoa o “desdém” de Cesário

Verde40:

O Poeta, para António: O Mar não dá nada às pessoas O Mar é mau O Mar o mais que dá é uma alma negócio de bruxas – rrrrr (CESARINY, 2004, p. 80).

Como destaquei também no primeiro capítulo deste trabalho, referindo-me à deriva

das palavras “pelo mar fora cavando a sua avaria” (CESARINY, 2008, p. 151), parece haver

uma trajetória percorrida também pelo personagem mar na literatura portuguesa. Para

Silveira, tal trajetória resultou numa saturação do imaginário marítimo que exige, agora, a

retomada da terra como paisagem (SILVEIRA, 2002). No poema de Cesariny, a terra, a quem

os portugueses haviam dado as costas “para buscar do mundo novas partes” (Lus., IV, 85), é

transfigurada numa voz que lamenta significativamente:

Voz da Terra, falando de baixo: Ah se toda a viagem fosse para mim e todos os navios me buscassem! (CESARINY, 2004, p. 90).

O desejo expresso pela Voz da Terra nos versos acima ecoa, também, o livro de Almeida

Garrett, Viagens na minha terra (1846), cujo diálogo com Os Lusíadas se dá a partir da

reelaboração da tradição camoniana (MARTELO, 1996, p. 299). Nesse processo, a recusa da

viagem por mar aponta a necessidade de uma viagem na sua terra como uma declaração de

“grande amor por tudo o que é português” (FERREIRA, 1999, p. 31). Em Cesariny, contudo,

o lamento da Terra não parece corresponder a uma expressão de amor à pátria, mas a um

antagonismo verificável entre o mar, como representante do imaginário de um passado

40 Em “Cesário: duas ou três coisas”, Jorge Fernandes da Silveira comenta o verso de “Heroísmos”, articulando-o ao célebre “O sentimento dum ocidental”: “Nas suas viagens em círculos pelas ruas de Lisboa, Cesário acaba sempre por chegar à beira dum rio fechado: o Tejo. Corajosamente, no limite da cidade, é ele o primeiro poeta português a sujar a via da glória nacional: ‘Escarro, com desdém, no grande mar’, Heroísmos” (SILVEIRA, 1995, p. 7).

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glorioso do qual se apropriou o Estado Novo, mas também como espaço a ser dominado

segundo a ideologia colonialista, e a terra, enquanto lugar abandonado e degradado em

consequência dessa mesma ideologia41. Como forma de oposição a ambos os símbolos, a

viagem empreendida pelos personagens do drama de Cesariny não é marítima ou terrena, mas

cósmica.

Se os personagens Poeta e Azul atribuem ao Mar características negativas e obscuras,

como verificamos em sua fala em coro – “Deus o guarde do Espírito do Mar!” –, António atua

como se estivesse hipnotizado pelas águas. Em sua atração pelo Mar, na cena do banho,

podemos perceber uma correspondência com o ensaio “Isso ontem único”, de António Maria

Lisboa, sugestão de leitura dada por Mário Cesariny no texto “alguns vocábulos para a

compreensão”, pequeno dicionário de termos surrealistas publicado em Pena capital, em

2004. Na entrada “MAR”, Cesariny anota:

MAR – ...agitado, de água branca, atravessado, cavado, cruzado, desencontrado, desfeito, espelhado, esperto, estranhado, verde, em flor, de fora, grande, interior, lançado, largo, de leite, livre, vivo. Ver “Isso Ontem Único”, de António Maria Lisboa (CESARINY, 2004, p. 197).

Se fizermos o que nos pede Cesariny, veremos que as características atribuídas ao “MAR” por

seu amigo surrealista são, também, de uma potência incontrolável e fascinante, sendo o mar

associado a todas as possibilidades de “amor”. No ensaio de Lisboa, lemos

Amor confuso, amor repetido, amor esotérico, amor mágico – MAR mar perdido das conchas no meio do mar mar de marés justapostas de amor num mar de marfim perdido no teu joelho de

marfim [...] MAR para que não me chegam os olhos mar branco de nuvens sobrepostas para lhe podermos passar por cima mar de esquecimento, de objectos sensíveis e distintos mar onde guardei o aquário azul que trouxe até hoje na memória

41 António José Saraiva e Óscar Lopes, em História da literatura portuguesa (2001), afirmam que “[q]uer no plano económico-social, quer no da ideologia dominante, o Estado corporativo limitou-se a levar ao extremo certas tendências da República democrática liberal: a concentração do capital à custa de assalariados e rendeiros, o mito da regeneração pelas virtudes agrárias provincianas, e de um nacionalismo passadista que se projetava em novo ciclo de expansão colonial. No entanto, [...] este ideário [...] tende para uma ideologia desenvolvimentista e tecnocrática, face à [...] intensificação em escala inédita da emigração (c. 1 milhão e 500 mil entre 1956 e 1974), e ao beco sem saída de um colonialismo de tipo oitocentista, insustentável a prazo e universalmente condenado” (SARAIVA; LOPES, 2001, p. 950).

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e hoje só te espalho para o mundo MAR

onde é possível e provável o envenenamento total da espécie onde descanso a minha mão esquerda sobre uma pantera negra e todos os dias mergulho em fogo

Amor sem nexo, amor contínuo, amor disperso – MAR [...] MAR que flutua no MAR abusivamente medonho amor esquecido, amor distante, amor insolente RAOMOMAR (LISBOA, 2008, p. 90-91).

A partir do fragmento acima e da atuação do personagem António quando confrontado com o

Mar, podemos perceber como as relações que o Poeta e António estabelecem com esse grande

antagonista parecem se dar em termos de uma representação das poéticas de Cesariny e de

Lisboa, respectivamente, e da forma como estas se referem ao mar.

No drama de Cesariny, o diálogo com a tradição parece inescapável. Nele, a

convocação do “mar” é uma operação de apropriação de uma imagem consagrada pela cultura

portuguesa. Nesse movimento de transformação do imaginário marítimo, Cesariny entra em

diálogo com uma tradição de releitura da viagem épica, na qual os “mares nunca dantes

navegados” (Lus., I, 1) camonianos transfigurados no “sinistro mar” (2010, p. 78) de Cesário,

e no “Mar Portuguez” “salgado” de “lágrimas de Portugal” (1985, p. 82) pessoano, desaguam,

finalmente, no mar crepuscular de Cesariny, que afirma, de maneira quase banal mas

definitiva, “O Mar é mau”.

Na referência à Ilha dos Amores, Cesariny opera outro deslocamento. Ao contrário

dos heróis liderados por Vasco da Gama que recebem a Ilha como prêmio de Vênus (Lus.,

IX), os viajantes cesarinyanos são percebidos como invasores, como lemos durante o consílio

dos deuses no “Caderno de Afrodite Urânia”:

Caderno de Afrodite Urânia: São quatro! QUATRO! Aliás, cinco mil pronunciados por crimes de aparição na duna junto à terra da Ilha dos Amores na pálpebra de sol que me deixaram vêm exaustos de esperança, exaustos de água respirando pelas mãos, ouvindo atónitos a música da guerra que levantam (CESARINY, 2004, p. 87).

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Nessa fala, a conquista portuguesa deixa de ser vista como gloriosa, para ser tomada como um

crime de invasão. Os personagens de Cesariny não são, como Gama e seus companheiros,

viajantes que partem esperançosos e se tornam heróis orgulhosos de seus feitos. Agora, a

esperança já os cansa, a água os afoga e seus feitos são uma declaração de guerra.

Outro personagem ligado às viagens marítimas e terrenas, os astros, certeza de

precisão e rumo, referências espaciais imprescindíveis para os viajantes, deixam de indicar,

em “pena capital”, um caminho a ser seguido, uma vez que suas coordenadas passam a ser

confusas e ilógicas. A fala matemática, que sugeriria uma progressão lógica e previsível, é

destituída de precisão e surpreende pela ruptura sequencial:

Os Astros: Um, três, cinco, sete, dez! Dois, quatro, cinco, oito, um! (CESARINY, 2004, p. 86).

A primeira sequência mostraria a progressão dos números ímpares, não fosse pelo

aparecimento do número “dez” em lugar do esperado “nove”, já a segunda sequência, mais

desordenada do que a primeira, conta com uma interrupção na progressão lógica em dois

momentos. Observando que se trataria de uma série de números pares, podemos perceber que

Os Astros substituem o número “seis” pelo número “cinco” e o número “dez” pelo “um”

Dessa forma, os viajantes do poema de Cesariny voam como o Olimpo, “que anda a voar

perdido de referências”, uma vez que os deuses, ao consultarem a Máquina de Consultar Os

Astros, são também surpreendidos por uma fala ilógica:

Zeus consulta a Máquina de Consultar Os Astros. A Máquina de Consultar Os Astros diz o seguinte: Um, dois, dois, três, um (CESARINY, 2004, p. 86).

O Azul é personagem improvável eleito por Cesariny para acompanhar O Poeta e

António ao longo de sua viagem por céu. A cor azul é aquela presente tanto no espaço aéreo

quando no marítimo, mas, principalmente, na junção dos azuis que se encontram no horizonte

de quem se põe de costas para a Terra e fita O Mar. É, assim, a cor que vê quem olha para o

infinito. Na fala do Azul, lemos uma citação de Novalis que propõe mais um protocolo de

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leitura da obra de Cesariny. Na sequência final de um jogo de diálogo automático42, há a

seguinte passagem:

O Poeta: Os Poetas... António: ...São os mais fortes condutores-isoladores da corrente poética O Azul: Novalis (CESARINY, 2004, p. 83).

A citação é de um fragmento de Novalis, ao qual Cesariny retorna mais de uma vez em seus

escritos, como nota Emília Pinto de Almeida43. A referência ao poeta alemão parece indicar

certo modo de estar na poesia de Cesariny, uma vez que, ao pronunciar o nome “Novalis”,

evoca a obra do romântico. Assim, ao seguirmos a pista de leitura que aqui encontramos,

percebemos que o conceito de real absoluto formulado por Novalis parece próximo à busca de

Cesariny pela ruptura dos níveis de experiência do mundo e pela liberdade, algo que é

confirmado, ainda, por uma fala posterior de Cesariny: “A poesia é esse real absoluto que

quanto mais poético mais verdadeiro. Era Novalis quem o dizia. A poesia vale como uma

liberdade mágica” (CESARINY, 2007, p. 19). O fragmento de Novalis retoma o tema da

travessia das palavras, “a atravessar fronteiras há tantos anos” (CESARINY, 2008, p. 150),

42 Nessa passagem, Cesariny reproduz diversos trechos de diálogos automáticos e de cadáveres esquisitos produzidos pelos surrealistas portugueses na década de quarenta e publicados na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito, em 1961. Contudo, Maria de Fátima Marinho Saraiva, em O surrealismo em Portugal e a obra de Mário Cesariny de Vasconcelos (1986), afirma que, nessa passagem de “pena capital”, Cesariny reconstrói diálogos que tivera com Lisboa. Afirma a autora: “Invocando os processos usados nos jogos do cadáver esquisito, Cesariny faz [em ‘pena capital’] como que uma homenagem ao seu amigo, reconstruindo um diálogo entre os dois” (1986, p. 381). É a própria Saraiva quem afirma, entretanto, que o segmento “Pão a cozer – menino a ler” é um fragmento retirado do texto “Alguns provérbios e não”, de Mário Cesariny e Alexandre O’Neill (idem, p. 38), ao qual podemos somar o provérbio “enterocolites – Frederico Nites” (CESARINY, 1961, p. 20) do mesmo texto produzido por Cesariny e O’Neill, também retomado no poema “pena capital”. Assim, na cena da lição, Cesariny faz uma recolha de diversos textos – surrealistas ou não, como é o caso da citação de Novalis que se segue. 43 Cf. ALMEIDA, Emília Pinto de. Para a consideração de um plano de criação poética na obra de Mário Cesariny (2011). Afirma a autora: “‘Os poetas são, simultaneamente, isoladores e condutores da ‘corrente poética’’, afirma Novalis, num dos aforismos de Fragmentos que Cesariny traduziu e dos que mais cita e retoma” (ALMEIDA, 2011, p. 26). Uma das retomadas a esse aforismo é verificada no Prefácio de Cesariny a Os poetas lusíadas, de Teixeira de Pascoaes (1987). No texto, Cesariny traduz o aforismo exatamente da mesma maneira que o fizera, anos antes, em “pena capital”.

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conforme lemos em “tal como catedrais”, e atribui aos poetas uma função que não é a de

criadores, mas de condutores de uma corrente que também os atravessa.

Podemos associar o aparecimento e a nomeação dos personagens-mito Mar, Azul,

Terra e Astros ao poema “a arte de inventar personagens”, publicado em Manual de

prestidigitação (1956), no qual a criação, ou a “invenção”, é um modo de convocação.

arte de inventar personagens Pomo-nos bem de pé, com os braços muito abertos e olhos fitos na linha do horizonte Depois chamamo-los docemente pelos seus nomes e os personagens aparecem (CESARINY, 2008, p. 125).

Parece ser este o procedimento posto em prática em “pena capital”. O ato de nomear

personagens é responsável por sua presentificação, bem como de todos os significados que

cada nome traz, potencialmente, em si. É o mesmo movimento que lemos no início do poema,

quando António surge a partir das “páginas do livro jovialmente aberto”, e será o mesmo com

os personagens-mito que, ao serem chamados “docemente”, “aparecem” (CESARINY, 2008,

p. 125), falam e interagem com O Poeta.

Há, portanto, uma função atribuída a esse personagem que revela outra forma de

relacionar “pena capital” ao poema épico de Camões, encontrada no fio condutor (“-

isolador”) das viagens narradas em ambos: O Poeta, ou O Autor que se assume nos dois

últimos versos de “pena capital”, e o Poeta44 d’Os Lusíadas. Tanto para Cesariny, quanto para

Camões, o poeta parece assumir o papel de transmitir um conhecimento por meio do trabalho

poético, no qual uma “pena” ganha o mesmo valor duma “espada”. Assim, se, em Camões, a

morte é superada através da imortalização dos feitos dos homens por obra do canto, em

Cesariny, António é ressuscitado pelo Poeta quando este se põe a ler.

No poema do século XVI, o Poeta defende que o louvor e a justa glória dos feitos só

são doces caso sejam cantados, defendendo, com isso, sua fundamental missão, conforme

lemos no Canto V, estância 92:

44 Minha leitura de Os Lusíadas é, sem dúvida, devedora dos estudos publicados no fundamental Estudos camonianos, da professora Cleonice Berardinelli (2000), especialmente no que se refere à divisão dos narradores da epopeia.

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Quão doce é o louvor e a justa glória Dos próprios feitos, quando são soados! Qualquer Nobre trabalha que em memória Vença ou iguale os grandes já passados. As envejas da ilustre e alheia história Fazem mil vezes feitos sublimados. Quem valerosas obras exercita, Louvor alheio muito o esperta e incita (Lus., V, 92).

Da mesma forma, O Poeta de Cesariny é aquele capaz de trazer novamente à vida o amigo já

falecido, ressaltando a correspondência entre chamar os personagens “docemente pelos seus

nomes” (CESARINY, 2008, p. 125) e a sua presentificação e concretização no mundo

cotidiano. Em “pena capital”, ao olhar pelo “espelho de atravessar os mares”, lendo um “livro

jovialmente aberto”, o Poeta participa ativamente do processo de criação do livro que lê,

fazendo com que António respire, “caramba”.

Ao final do poema de 1957, lemos que O Poeta não passa de um personagem escrito

pelo Autor, o qual é, também, uma criação de alguém que escreve, mas não é nomeado. Esse

encadeamento de escrita está presente, também, na estrutura d’Os Lusíadas. Cleonice

Berardinelli, afirma que, no poema, “há vários narradores: um narrador não é nomeado,

extradiegético, que introduz os outros, todos – é óbvio – personagens da estória –

intradiegéticos, portanto – que é narrada pelo primeiro” (BERARDINELLI, 2000, p. 20).

Responsável por “iniciar e concluir o poema, fechar todos os dez cantos, retornar quatro vezes

à reinvocação à(s) Musa(s) e tecer comentários de vária ordem” (BERARDINELLI, 2000, p.

33), o Poeta é aquele que conduz o canto e não o Narrador1, que narra a viagem “do canal de

Moçambique a Melinde” (BERARDINELLI, 2000, p. 18), ou o Narrador2 – a quem aquele

passara a palavra –, Vasco da Gama, que descreve a viagem “da praia do Restelo a Melinde”

(BERARDINELLI, 2000, p. 18). Dessa forma, parece haver uma viagem da palavra que só é

possível através do trabalho de leitura e escrita que empreende o Autor, cuja voz ecoa nas

palavras do Poeta e do Narrador1: Camões45.

45 Berardinelli, em “A estrutura d’Os Lusíadas” afirma que “o Narrador1 é um ente de papel: teoricamente é verdade; na prática, nem tanto. Como dissociá-lo do Autor, quando é este que pede ao rei o alvará de licença para passar, com seu canto, à posteridade” (BERARDINELLI, 2000, p. 26). No entanto, a mesma autora afirma, no texto “Os Excursos do Poeta n’Os Lusíadas”, que o pedido de alvará ao rei é feito pelo Poeta e não pelo Narrador1. Assim, podemos admitir que ambos os personagens são indissociáveis do Autor.

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Outra característica formal que parece ligar os dois poemas em questão – cujo traço já

podemos perceber na identificação dos diferentes condutores do canto – diz respeito a seus

caráteres dramático e performático. Há, assim, uma encenação da própria evolução do

“acontecimento canto”, o qual passa desde a primeira enunciação do poeta na Proposição do

poema, pelas Invocações às musas, que só podem ser feitas mediante verbos performativos,

como é o caso de “[d]ai-me agora um som alto e sublimado” (Lus., I, 4), até o cansaço do

poeta que percebe que viera cantar – expondo, dessa forma, a passagem do tempo de escrita e

de leitura – “a gente surda e endurecida” (Lus., X, 145). O poema de Cesariny parece captar

tal característica do texto camoniano em sua estrutura de peça teatral, na qual “dizer é fazer”

(AUSTIN apud PAVIS, 2011, p. 103). Segundo Pavis, “o discurso teatral se distingue do

discurso literário ou ‘cotidiano’ por sua força performática, seu poder de, simbolicamente,

levar a cabo uma ação” (PAVIS, 2011, p. 103).

O caráter performático de ambos os textos, porém, parece ultrapassar os limites de

suas diegeses para encontrar o leitor que tem os livros em mãos. Na epopeia camoniana,

podemos observar como esse artifício se mostra ainda mais potente quando as instruções que

o Poeta dá a d. Sebastião na Dedicatória se estendem a nós, leitores:

Inclinai por um pouco a majestade Que nesse tenro gesto vos contemplo, Que já se mostra qual na inteira idade, Quando subindo ireis ao eterno Templo; Os olhos da real benignidade Ponde no chão: vereis um novo exemplo De amor dos pátrios feitos valorosos, Em versos devulgado numerosos (Lus., I, 9).

Há, por certo, uma forte relação com o ato que, n’Os Lusíadas, é atribuído ao Rei a quem o

poema é dedicado e, consequentemente, ao leitor que põe seus olhos sobre ele e o lê e os

leitores do texto do surrealista, quando observamos que, nas versões de “pena capital”

publicadas antes de 2004, há uma coincidência entre o ato de virar a página do livro pena

capital e o virar de páginas que sucede na cena da “hora da lição”, durante a qual “[d]ão-se

humanidades, germânicas e ciências naturais” e o “Azul ponta a lição servindo-se de um

livro especialmente disposto”, conforme podemos ver na Figura 1, retirada de Poesia (1944-

1955) (1961), e na Figura 2, de Pena capital (1999).

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Figura 1

Figura 2

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Nessa coincidência entre o ato que se passa no interior da peça de Cesariny e o

movimento que se espera que o leitor faça, encontramo-nos, novamente, com os teatros de

Shakespeare e Artaud. Recorrendo à peça trabalhada no primeiro capítulo deste estudo, é

necessário retornarmos à cena na qual o príncipe da Dinamarca convida atores ao castelo de

Elsinore para encenarem uma tragédia cujo enredo é idêntico àquele da peça da qual são

personagens. Também conhecido como teatro dentro do teatro, o palco-dentro-do-palco é um

“[t]ipo de peça ou representação que tem por assunto a representação de uma peça de teatro”

(PAVIS, 2011, p. 385). Dessa maneira, é inserida, na diegese de Hamlet, uma metadiegese,

cuja função é, justamente, intervir na realidade da diegese principal. Montado o palco-dentro-

do-palco, os espectadores da peça de Shakespeare que se encontram na plateia e assistem a

Hamlet passam a ser, também, espectadores sobre o palco que assistem à nova tragédia da

mesma perspectiva que os personagens shakespearianos, ou seja, são postos no mesmo nível

de existência de Hamlet, Gertrude, Laertes e Claudius, uma vez que esses personagens se

tornam, eles também, espectadores da metadiegese.

No Teatro da Crueldade artausiano, com o qual Cesariny parece dialogar no poema

dedicado ao francês, trata-se menos de palco-dentro-do-palco do que de ação direta sobre o

público, sem que haja qualquer mediação representacional. Nele, não há qualquer

distanciamento entre o que se passa no palco e na plateia, como percebemos na descrição “A

Cena – A Sala”, no primeiro manifesto de “O Teatro da Crueldade”:

Suprimimos o palco e a sala, substituídos por uma espécie de lugar único, sem divisões nem barreiras de qualquer tipo, e que se tornará o próprio teatro da ação. Será restabelecida uma comunicação direta entre o espectador e o espetáculo, entre ator e espectador, pelo fato de o espectador, colocado no meio da ação, estar envolvido e marcado por ela. Esse envolvimento provém da própria configuração da sala (ARTAUD, s/d, p.110).

No Teatro da Crueldade, portanto, o espectador é constantemente interpelado pelo que se

passa na encenação e vice-versa.

“pena capital” é a representação de um Autor que escreve um “estranho poema”, no

qual um Poeta está “exorcismando ao seu atelier nos astros”. A mise en abyme sobre a qual

se estrutura drama, da qual o “palco-dentro-do-palco” shakespeariano é uma das muitas

formas de realização, convida os leitores a participarem em um de seus níveis estruturais.

Podemos perceber essa estrutura também n’Os Lusíadas, como nota Berardinelli, quando

afirma que “[n]uma imagem de que o cinema tantas vezes lançou mão (com outros fins)

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vemos [o Poeta e o Narrador1] um deslizar de dentro do outro e agir independentemente, em

concordância às vezes, às vezes em completa discordância” (BERARDINELLI, 2000, p. 25).

Apesar de distintos, desses tipos de construção resulta um profundo abalo da quarta

parede imaginária que separa a realidade diegética (do texto, ou do palco), da realidade

extradiegética (cotidiana, habitada por nós, leitores e espectadores). Em relação a essa divisão

imaginária no teatro, Pavis afirma que, “[n]a qualidade de voyeur, o público é instado a

observar as personagens, que agem sem levar em conta a plateia, como que protegidas por

uma quarta parede” (PAVIS, 2011, p. 316). O poema de Cesariny analisado neste capítulo,

assim como Hamlet, evocado em “you are welcome to elsinore”, e as teorias teatrais

desenvolvidas por Antonin Artaud, em O teatro e seu duplo, apesar de apresentarem

estruturas distintas, parecem ensaiar uma fratura dessa barreira imaginária.

Em “Magias parciais do Quixote”, Jorge Luis Borges (1999) registrou da seguinte

maneira a estranheza que a encenação de um palco-dentro-do-palco provoca em leitores e

espectadores:

Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor do Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio ter encontrado a causa: tais inversões sugerem que, se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios (BORGES, 1999, p. 50).

Em consonância com Borges, Rosa Maria Martelo aponta, no ensaio “Livros, filmes,

metalepses”, que o que nos inquietaria em construções como aquelas mencionadas acima

“não seria tanto o processo de replicação especular a que chamamos mise en abîme quanto o

facto de a replicação nos alertar para a possibilidade conexa de se verificar uma hipótese

‘inaceitável e insistente’” (MARTELO, 2015, p. 2) segundo a qual os leitores e espectadores

pertenceriam a uma narrativa. Baseando-se na obra de Gérard Genette, notadamente em seu

Metalepsis (2004), Martelo vai além do que dissera Borges e afirma que “nada poderá

assegurar-nos que a ficção não pertence a este outro domínio que seria o da não-ficção –

questão por certo não menos perturbadora” (MARTELO, 2015, p. 2). O movimento que se

simula no poema de Cesariny parece gerar um efeito similar. Se fizermos o caminho inverso

ao do desenvolvimento do poema, veremos que “pena capital” é estruturado sobre três –

talvez quatro – planos. Assim, partindo do mais externo ao mais interno, num primeiro plano,

estamos nós que lemos o poema “pena capital” escrito pelo poeta português Mário Cesariny

de Vasconcelos; nesse poema (o segundo plano), um Autor afirma ter escrito “este estranho

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poema, o último de nome religioso”, isto é, aquele que acabamos de ler; em seu “estranho

poema” (o terceiro plano), um personagem, o Poeta, está em seu atelier lendo um livro; desse

livro (talvez um quarto plano que transborda no terceiro), o Poeta vê sair outro poeta,

António, com quem será herói “duma tragédia química” e encontrará, ainda, personagens de

outras tragédias, como Ofélia e Fausto, este último acompanhado de seu autor, Goethe, além

dos personagens da cultura portuguesa e ocidental, como O Mar e Os Deuses de um “pequeno

Olimpo”. Portanto, não se trata apenas da possibilidade de transformação dos leitores ou

espectadores em ficção, mas da transposição, para fora do poema, dos acontecimentos

passados em “pena capital”, tal como sucedera com a ressuscitação de António Maria Lisboa

e seu aparecimento, no atelier do Poeta, em forma de António, desde as páginas de um livro,

confirmando algo que Lisboa afirmara em “Alguns personagens”: “o poeta não morre (como

poderia ele morrer?!...)” (LISBOA, 2008, p. 105).

Assim, se o poema de Cesariny joga com a transgressão de diversos planos narrativos,

podemos aproximá-lo do conceito de “metalepse” conforme retomado por Genette. Enquanto

modo, figural ou ficcional, de “transgredir o umbral da representação” (GENETTE, 2004, p.

16, tradução minha)46 – tomando como “representação” tudo aquilo que pertence ao “âmbito

literário e a outros: pintura, teatro, fotografia, cinema” (GENETTE, 2004, p. 15)47, entre

outros –, a metalepse de Genette é interpretada por Martelo como uma figura de linguagem

associada à “porosidade entre o mundo do texto e o nosso mundo enquanto leitores, fazendo-

nos tomar consciência do acto de leitura como vertigem e como fruição da vertigem”

(MARTELO, 2015, p. 4).

Dessa maneira, se assumirmos que “pena capital” é mais uma arte poética cesarinyana,

na qual a apresentação de um modo de escrita sugere, também, um protocolo de leitura, então,

o franqueamento das fronteiras entre o textual e o extratextual na diegese desse poema

funciona como uma declaração de um desejo do poeta de inscrever, na vida cotidiana, uma

nova possibilidade de existência. A encenação de um ato de leitura corresponde à

apresentação de um modo de ler Cesariny, o qual se aproxima da definição dada por Scholes

em seu Protocolos de leitura, quando o autor afirma que “[n]ão nos é possível penetrar nos

46 “transgredir el umbral de representación” (GENETTE, 2004, p. 16). Todas as traduções de GENETTE (2004) são minhas. 47 “digo ‘representación’ para abarcar a la vez el ámbito literario y algunos otros: pintura, teatro, fotografía, cine y, sin duda, alguno que ahora no recuerdo” (GENETTE, 2004, p. 15).

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textos que lemos, mas estes podem entrar em nós; é isso precisamente o que constitui a

leitura” (SCHOLES, 1991, p. 22). Assim, a cena de escrita representada pelo Autor que se

mostra ao fim do poema corresponde à fundação de uma poética na qual “ler é escrever, é

viver, é ler, é escrever” (SCHOLES, 1991, p. 23).

O conhecimento adquirido na cena final do poema parece dizer respeito à condenação

do Poeta, que recebe como sentença a “pena capital”. O contraste entre a primeira e a última

fala do personagem principal parece apontar para essa tomada de consciência de um destino

que lhe cabe, de uma condenação final paradoxal. Assim, à atmosfera otimista do início do

poema, opõe-se o lamento do Poeta retornado da viagem:

Olha hoje o teu clima está magnífico olha vamos sair desta cidade onde o teu clima é sempre para dividir por cinco vamos para as praias da alma arrebentar-nos vivos vamos ser os heróis de uma tragédia química (CESARINY, 2004, p. 78).

Ao final:

[O Poeta] Chora um pouco e murmura, olhando o céu escuro: Sou um rio injusto, com margens de labaredas, se me navegam, gelo, se me fogem, queimo (CESARINY, 2004, p. 90).

Se a atitude surrealista pode ser definida como a busca por “um certo ponto do espírito

no qual a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o

incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos contraditoriamente” (BRETON,

1929, p. 1, tradução minha)48, a escrita de Cesariny seria uma tentativa de inscrever no

mundo, a partir daquela potência criadora da linguagem, um novo real poético. Seguindo a

linha de pensamento de André Breton, o português reconhece que aquilo que chamamos de

realidade é, de fato, uma pequena parte do real. Se esse poema é o “último de nome religioso

escrito pelo Autor”, isso se dá como efeito da transcendência de Deus, que “não passa

seguido de seus Anjos e de seus Animais”, uma vez que o Poeta se vê capaz de criar homens,

animais, terra, mar, céu, deuses e o Olimpo, desde o interior de seu atelier. A “pena capital” é

48 “un certain point de l’esprit d’où la vie et la mort, le réel et l’imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent d’être perçus contradictoirement” (BRETON, 1929, p. 1).

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a condenação daquele que se atreve a reivindicar para si o poder da criação e da nomeação do

mundo.

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5. Considerações finais

Ao longo deste estudo, busquei delinear alguns aspectos da Arte poética que Cesariny

se dedicou a definir em meados dos anos cinquenta. O corpus desta pesquisa, ainda que

conciso, permitiu-nos analisar os desdobramentos de questões recorrentes no trabalho de

Cesariny desse período, como a busca pelo diálogo com o outro, a concepção de “autoridade”

e a potência criadora da linguagem poética. Enveredando por uma leitura de poesia que

valorizasse a relação desta com a encenação teatral, pudemos notar como o “poder de

germinação (plástico ou escrito) do verbo” “exaltado” pelo surrealismo (CESARINY, 1997,

p. 158) encontra seu paralelo na força performática da linguagem do teatro.

Mário Cesariny pode ter, a rigor, publicado uma única peça e tê-la visto encenada

apenas duas vezes49, mas o poeta, artista plástico, ficcionista, “performer”, crítico de arte,

tradutor, prefaciador, “antologizador”, teórico do surrealismo, etc., tendo enveredado por um

caminho “intensamente livre” (CESARINY, 2004, p. 59) aberto pelo Surrealismo, parece ter

vivido sobre um grande palco. O encontro de múltiplas artes em um único indivíduo sugere

que talvez seja a arte teatral, em sua infinita trama de relações interartísticas, aquela que mais

se adequa à leitura da obra de Cesariny.

Vimos como o personagem que nos conduz pelas cenas demonstra um desejo de

libertar as palavras do “peso” que adquiriram por obra de outros poetas, e crê num tempo

futuro no qual as palavras se haverão tornado “puras” – transformadas em “só espasmo só

amor só solidão desfeita” (CESARINY, 2004, p. 35). Contudo, esse mesmo personagem

exerce uma outra função – a de leitor –, apropriando-se de palavras alheias e dialogando com

outros poetas e tempos. Convocando outras vozes para participarem de sua criação, ele

paradoxalmente contribui para adensar ainda mais a trama textual da linguagem poética que

afirma querer purificar. O poeta, assim, não paga tributo aos mestres: sua atitude é a de um

irreverente saqueador de outras obras.

49 Trata-se de Um auto para Jerusalém, de 1946. A peça foi encenada pela primeira vez no Teatro Municipal de São Luís, em Lisboa, em 1975. Passados quase trinta anos, foi encenada uma segunda vez no Teatro Nacional D. Maria II, também na capital portuguesa.

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Nessa articulação entre a função como leitor de poesia e como indivíduo que se põe a

escrever, o poeta surge cônscio da historicidade do discurso poético e reflete acerca do lugar

do seu trabalho no mundo. Apropriando-se das falas alheias, Cesariny reconhece a

transitoriedade do seu próprio tempo, percebendo que a sua “obra” (CESARINY, 2008, p.

150) será, ela também, transformada por outro “obreiro” (CESARINY, 2008, p. 150). As

questões suscitadas pelos poemas que lemos, portanto, relacionam-se com uma concepção

moderna de transmissão da cultura, segundo a qual “as distinções entre os diferentes tempos –

passado, presente e futuro – se apagam ou, ao menos, se tornam instantâneas, imperceptíveis e

insignificantes” (PAZ, 2013, p. 18-19).

O duplo papel que representou Cesariny em seus poemas revelou que sua Arte poética

funda, sobretudo, um modo de ler. Nesse sentido, apresentando conjuntos de convenções e

técnicas para a escrita de poesia e recorrendo ao diálogo com textos alheios como forma de

criação, os seus poemas sugerem uma coincidência entre a demonstração da maneira de

funcionamento de uma prática de escrita e o desejo de formação de um novo leitor. Para

Martelo, “o que parece estar em causa é sempre a necessidade de fazer derivar de uma nova

poética de produção textual a emergência de novos protocolos de leitura, sem os quais seu

pleno entendimento nem sua legitimação seriam possíveis” (MARTELO, 2003, p. 90). A

escrita se apresenta, assim, como uma atividade que só pode ser empreendida como resultado

do encontro de pelo menos dois corpos, sendo o outro buscado pelo poeta revelado tanto

como um “tu” lido quanto como um “tu” leitor.

No jogo de “escrita-e-leitura”, Cesariny replica o momento em que lemos seus

poemas, movimento do qual resulta a nossa identificação, seus leitores, com o poeta que se

põe a ler. Se, para Scholes, “[o] leitor permanece sempre fora do texto [e] [...] o preço do

ingresso é o labor da própria criação” (SCHOLES, 1991, p. 21), podemos nos ver, também,

como escritores dos poemas que temos em mãos, convocados a participar, como outros

“obreiros”, da construção da obra que guarda “inerentes avarias centrais” (CESARINY, 2008,

p. 150). A identificação de Cesariny com seu leitor parece ser, portanto, uma das

características fundamentais da Arte poética que o surrealista procurou fundar a partir dos

livros de 1956 e 1957.

Na conclusão deste estudo, é importante apontar que os diálogos que Cesariny

estabeleceu com outros poetas para a criação de uma obra própria foram fundamentais para a

minha formação como sua leitora. Assim, vi-me, durante os dois anos de desenvolvimento

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desta pesquisa, sendo guiada por Cesariny pelas obras de outros autores para que pudesse

compreender sua Arte poética em vias de definição. Os caminhos a serem percorridos não se

esgotaram, mas aqueles pelos quais enveredei me levaram ao encontro de Fernando Pessoa,

William Shakespeare, André Breton, Antonin Artaud, Luís de Camões, Cesário Verde, entre

muitos outros que foram convocados pelo “homem-expedição”. Se, como afirma Scholes, “ler

é escrever” (1991, p. 23), parece haver uma leitura que só se realiza como escrita, no instante

em que o Poeta, que exorcisma ao seu atelier e lê, se revela Autor de um estranho poema, ou

em que alguém escreve uma dissertação.

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ANEXO

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ANEXO A – Capa da primeira edição de Alguns mitos maiores alguns mitos menores

propostos à circulação pelo autor (1958).