universidade federal do rio de janeiro imagens do jeca ......2 imagens do jeca tatu e do gaúcho...

173
1 Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA TATU E DO GAÚCHO PLATINO NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE MONTEIRO LOBATO, DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO E RICARDO GÜIRALDES: UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES BRASILEIRA E ARGENTINA Mônica Farias de Souza 2013

Upload: others

Post on 20-Jul-2020

9 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

1

Universidade Federal do Rio de Janeiro

IMAGENS DO JECA TATU E DO GAÚCHO PLATINO NA PRODUÇÃO

LITERÁRIA DE MONTEIRO LOBATO, DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO E

RICARDO GÜIRALDES: UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE

IDENTIDADES BRASILEIRA E ARGENTINA

Mônica Farias de Souza

2013

Page 2: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

2

Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato,

Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes: um processo de construção de identidades brasileira e argentina

Mônica Farias de Souza

Trabalho escrito apresentado ao Programa de Pós-

Graduação em Ciência da Literatura (Literatura

Comparada), Faculdade de Letras, Universidade Federal

do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à

obtenção do Título de Doutor em Ciência da Literatura

(Literatura Comparada)

Orientador: Eduardo de Faria Coutinho

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

Page 3: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

3

FICHA CATALOGRÁFICA

Souza, Mônica Farias de.

Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato,

Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes: um processo de construção de

identidades brasileira e argentina / Mônica Farias de Souza. Rio de Janeiro: UFRJ/

Faculdade de Letras, 2013.

xi, 173 f.: il.; 31cm.

Orientador: Eduardo de Faria Coutinho

Tese (doutorado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de

Pós-graduação em Ciência da Literatura, 2013.

Referências Bibliográficas: f. 145-152.

1. Jeca Tatu e gaúcho. 2. Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e

Ricardo Güiraldes. 3. Construção de identidades brasileira e argentina. 4. Séculos XIX e

XX. I. Coutinho, Eduardo de Faria. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Faculdade de Letras. III. Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção

literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes: um

processo de construção de identidades brasileira e argentina

Page 4: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

4

Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato,

Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes: um processo de construção de identidades brasileira e argentina

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura (Literatura Comparada).

Aprovada por:

___________________________________________________________________________

Presidente, Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho

___________________________________________________________________________

Prof. Doutor Ary Pimentel – UFRJ

___________________________________________________________________________

Profª. Doutora Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco – UFRJ

___________________________________________________________________________

Profª. Doutora Eleonora Ziller Camenietzki – UFRJ

___________________________________________________________________________

Profª. Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ

___________________________________________________________________________

Prof. Doutor Luis Alberto Nogueira Alves – UFRJ, Suplente

___________________________________________________________________________

Profª. Doutora Vera Lucia Teixeira Kauss – UFRJ, Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

Page 5: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

5

Aos meus pais Yone e Nelson, que tanto amo

Page 6: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

6

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus pela força diária que ele me deu e ainda dá.

Ao Ilustríssimo Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho, de quem tenho muita admiração

pela competência inquestionável e pelo grande profissionalismo, agradeço enormemente a

leitura minuciosa deste trabalho, sua orientação, assim como a enorme compreensão e

paciência que teve comigo no decorrer da escrita deste texto.

Devo aqui registrar um agradecimento especial ao Prof. Dr. Ary Pimentel, eterno

mestre e amigo, pelo constante incentivo e orientações em trabalhos da faculdade e por ter me

orientado na graduação na pesquisa que deu origem a esta tese. A este professor, com quem

tenho, sem dúvida, uma dívida intelectual, meu mais profundo agradecimento.

À Profª. Drª. Carmen Lucia Tindó Ribeiro Secco, com quem iniciei as pesquisas de

iniciação científica, as quais me renderam três anos de bolsa do CNPq, agradeço bastante por

ter me orientado por quatro anos consecutivos em estudos de literaturas africanas de língua

portuguesa, contribuindo largamente em minha formação intelectual.

Ao Prof. Dr. Luis Alberto Nogueira Alves, agradeço igualmente por ter me orientado

em pesquisas de iniciação científica e também por ter me apresentado a teóricos essenciais na

minha formação.

Gostaria também de expressar minha enorme gratidão aos demais professores da

UFRJ, faculdade onde me graduei, sobretudo àqueles com quem tive maior contato, por toda a

contribuição acadêmica que me foi dada ao longo da jornada na faculdade. A todos esses

professores, as palavras pelo agradecimento seriam poucas para expressar minha profunda

gratidão pelos ensinamentos que me foram dados.

Aos meus pais, Yone e Nelson, expresso aqui minha gratidão por todas as coisas boas

que fizeram por mim, sobretudo por me incentivarem a estudar, tendo contribuído muito na

minha formação, maior herança que poderiam deixar para mim.

Page 7: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

7

Ao Helber Medeiros, amigo admirável que me acompanhou nessa jornada, registro

aqui meu carinho especial e profundo agradecimento pelo constante apoio e por ter dado uma

nova cor a minha vida num momento de grande dificuldade, dando-me forças para driblar os

obstáculos que a vida me apresentou, como também por ter acreditado na realização de mais

este sonho. A este homem único, aí vai um agradecimento e abraço especial.

Ao Alfeu, ou Satu como ele mesmo prefere, meu amigo-irmão, grande presente que

Deus me deu em 2012, um agradecimento mais do que especial por fazer parte da minha vida

e por torcer por mim, assim como torço também por ele.

Aos amigos que conviveram comigo diariamente, em especial aos professores do

Colégio Santo Agostinho, Maria Auxiliadora, Dorinha como prefiro chamar, Lícia Paranhos,

Teresinha Bregalda, Denise Pacheco, Sandra Marques e tantos outros, como também aos do

Colégio Pedro II, Solange Garrido, Luis Carlos, Alfeu, em especial a Ana Cristina Viegas,

meu muito obrigada pelas palavras de conforto e pelo apoio constante.

Aos demais que não citei diretamente aqui, mas que de alguma forma contribuíram

para a realização deste sonho, fica aqui meu agradecimento e carinho.

Page 8: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

8

SINOPSE

Apreciação crítica de diferentes projetos de

construção de identidade nacional nos contextos

brasileiro e argentino no período que compreende os

séculos XIX e XX. Leitura comparativa dos

discursos produzidos para se falar do caboclo e do

gaúcho nas obras de Monteiro Lobato, Domingo

Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes.

Investigação sobre a necessidade de construção de

uma identidade para os países. Reflexão sobre a

maneira como fatos históricos influenciam no plano

literário, seja na abordagem do tema, seja no

tratamento estético das obras.

Page 9: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

9

RESUMO

IMAGENS DO JECA TATU E DO GAÚCHO PLATINO NA PRODUÇÃO LITERÁRIA

DE MONTEIRO LOBATO, DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO E RICARDO

GÜIRALDES: UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES BRASILEIRA E

ARGENTINA

Mônica Farias de Souza

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência

da Literatura, Literatura Comparada, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da

Literatura.

A presente tese de doutorado trata de um processo de construção da identidade nacional

na Literatura Brasileira e Argentina, tendo como foco a figura do Jeca Tatu, criada por

Monteiro Lobato, e do gaúcho, construída por Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

Güiraldes. Focalizando dois momentos distintos, este estudo revela que, tanto no caso

brasileiro quanto no argentino, o mestiço é visto por uma perspectiva diferente, e até oposta,

em cada um desses momentos, e que esta alteração corresponde à que ocorreu com o tipo por

ele representado, cuja visão se modificou de acordo com os interesses da elite dominante. No

primeiro momento estudado, o discurso que a elite intelectual produziu para falar sobre o

caboclo e o gaúcho tanto no Brasil quanto na Argentina se aproxima, e em ambos os casos o

mestiço é mostrado por uma ótica negativa, sendo apresentado como preguiçoso e incapaz, e

consequentemente responsável pelo atraso em que se encontrava o país; no segundo

momento, ele é encarado por uma perspectiva positiva e louvado como produto da riqueza

étnico-cultural do país. As duas imagens correspondem a duas políticas distintas adotadas

pelos governos brasileiro e argentino em ocasiões diferentes: uma política de

embranquecimento, caracterizada pelo estímulo à imigração da mão-de-obra estrangeira, de

origem europeia, para o trabalho da lavoura, seriamente afetado pela abolição da escravatura,

e uma política de valorização do elemento local para substituição do estrangeiro, que estava

constituindo uma ameaça à segurança nacional com a realização de greves e a criação de

sindicatos. Para fundamentar a perspectiva sócio-histórica adotada, a autora baseou-se em

textos de estudiosos da Sociologia, da Antropologia e da História brasileira e argentina, além

evidentemente dos estudos de Teoria Literária e de Literatura de ambos os países, e para a

questão mais específica da identidade cultural e nacional serviu-se de textos como os de E.

Hobsbawm, E. Renan, B. Anderson, E. Said e S. Hall. Foram também de utilidade os estudos

que compõem a fortuna crítica de Monteiro Lobato, no caso brasileiro, como também de

Domingo Faustino Sarmiento e de Ricardo Güiraldes, no caso argentino.

Palavras-chave: Construção de identidade brasileira e argentina; Monteiro Lobato; Domingo

Faustino Sarmiento; Ricardo Güiraldes; séculos XIX e XX; crítica literária; sociedade.

Page 10: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

10

ABSTRACT

IMAGENS DO JECA TATU E DO GAÚCHO PLATINO NA PRODUÇÃO LITERÁRIA

DE MONTEIRO LOBATO, DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO E RICARDO

GÜIRALDES: UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES BRASILEIRA E

ARGENTINA

Mônica Farias de Souza

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência

da Literatura, Literatura Comparada, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da

Literatura.

This dissertation deals with the process of constructing national identity in Brazilian

and Argentine literature, by focusing especially on the figures of Jeca Tatu, created by

Monteiro Lobato, in the first case, and of the gaucho, present in Domingo Faustino Sarmiento

and Ricardo Guiraldes, in the second case. By considering two distinct moments of both these

literary productions, this study reveals that the mestizo is seen in Brazil as well as in

Argentina from a different and even opposite perspective in each one of these moments, and

that this difference corresponds to what occurred with the type represented, which changed

according to the interests of the dominating classes. In the first one of these moments, the

discourse produced by the elites to refer to the caboclo and the gaucho both in Brazil and in

Argentina shows these figures from a negative point of view, as lazy and incapable beings,

responsible for the backwardness of their respective countries; and in the second moment it

portrays them from a positive perspective, as products of the their countries’ ethnic and

cultural wealth. These two images correspond to two distinct policies adopted by the

government of both countries at different occasions: an ideology of whitening the population,

characterized by the emphasis on European immigration, and a policy of valorization of the

local element to replace foreign hand labor. In order to support the socio-historic perspective

adopted, the author included in her research a number of texts on Sociology, Anthropology

and History both of Brazil and Argentina, in addition to studies on Literary Theory and

Comparative Literature. For the issue of national and cultural identity, she based primarily on

studies by E. Hobsbawm, E. Renan, B. Anderson, E. Said, and S. Hall. And finally, for the

analysis of Lobato, Sarmiento and Guiraldes, she used especially the critical bibliography on

their works.

Key words: Constructing national identity in Brazilian and Argentine literature; Monteiro

Lobato; Domingo Faustino Sarmiento; Ricardo Güiraldes; centuries XIX and XX; literary

criticism; society.

Page 11: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

11

RESUMEN

IMAGENS DO JECA TATU E DO GAÚCHO PLATINO NA PRODUÇÃO LITERÁRIA

DE MONTEIRO LOBATO, DOMINGO FAUSTINO SARMIENTO E RICARDO

GÜIRALDES: UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES BRASILEIRA E

ARGENTINA

Mônica Farias de Souza

Orientador: Professor Doutor Eduardo de Faria Coutinho

Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em Ciência

da Literatura, Literatura Comparada, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,

como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Ciência da

Literatura.

Esta tesis de Doctorado trata del proceso de construcción de la identidad nacional en

las Literaturas Brasileña y Argentina, teniendo como eje las figuras de Jeca Tatu, creada por

Monteiro Lobato, en el caso brasileño, y del gaucho, presente en las obras de Domingo

Faustino Sarmiento y Ricardo Güiraldes. Al considerar dos momentos distintos en la

producción literaria de estos dos países, esta tesis revela que, tanto en Brasil como en

Argentina, el mestizo es visto por una perspectiva diferente e incluso opuesta en cada uno de

estos momentos, y que esta diferencia corresponde a la que ocurrió con el tipo representado,

que ha cambiado de acuerdo con los intereses de las clases dominantes. En el primer de estos

momentos, el discurso que la elite produjo para referirse al caboclo y al gaucho los revela,

tanto en Brasil como en Argentina, por una perspectiva negativa, como individuos perezosos e

incapaces, responsables por el retraso de sus respectivos países; y en el segundo momento los

retrata por una perspectiva positiva, como producto de la riqueza étnica y cultural de sus

países. Estas dos imágenes corresponden a dos políticas distintas adoptadas por los gobiernos

brasileño y argentino en ocasiones diferentes: una política de blanqueamiento de la población,

caracterizada por el estímulo a la inmigración europea, y una política de valoración del

elemento local para reemplazar al extranjero. Para fundamentar la perspectiva socio-histórica

adoptada, la autora se basó en textos de especialistas en Sociología, Antropología e Historia

brasileña y argentina, además de los textos de Teoría Literaria y Literatura Comparada, y para

la cuestión más específica de la identidad nacional y cultural utilizó, entre otros, textos de E.

Hobsbawm, E. Renan, B. Anderson, E. Said e S. Hall. Fueron también de gran utilidad los

estudios que componen la fortuna crítica de Monteiro Lobato, en el caso brasileño, y de

Domingo Faustino Sarmiento y Ricardo Güiraldes, en el caso argentino.

Palabras clave: Proceso de construcción de la identidad nacional en las Literaturas Brasileña y

Argentina; Monteiro Lobato; Domingo Faustino Sarmiento; Ricardo Güiraldes; Siglos XIX y

XX; crítica literaria; sociedad.

Page 12: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

12

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO

1.1. Sobre o projeto e a razão da escolha.........................................................................15

2. COMO O BRASILEIRO FOI PENSADO EM INÍCIOS E FINS DO SÉCULO XIX: UM

PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE...........................................................21

2.1. O conceito de Nação.................................................................................................23

2.2. Imagens do Brasil: processos de construção de identidade......................................30

2.3. Quem era considerado brasileiro no século XIX......................................................36

3. IMAGENS DA ARGENTINA E DE SEU HOMEM: UM PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE........................................................................................40

4. O IMIGRANTE COMO PROJETO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE...................49

4.1. Imigração: uma saída para o atraso do país..............................................................63

5. O CABOCLO VISTO POR UMA NOVA ÓTICA: A DOENÇA COMO SAÍDA EM

MONTEIRO LOBATO............................................................................................................72

5.1. A descoberta da doença como problema nacional....................................................72

5.2. A reforma urbanística e a higienização: um combate à doença................................77

5.3. A representação da doença na obra de Monteiro Lobato..........................................84

6. O GAÚCHO VISTO POR UMA NOVA ÓTICA: UMA LEITURA DE DOM SEGUNDO

SOMBRA, DE RICARDO GÜIRALDES................................................................................94

6.1. O gaúcho como tipo humano: de marginal a patriota..........................................100

6.2. O gaúcho na obra de Ricardo Güiraldes: um novo olhar sobre o homem dos

pampas argentinos.......................................................................................................105

6.3 O gaúcho no plano literário versus o gaúcho no plano histórico..........................113

6.4 A representação da autoridade jurídica em Dom Segundo Sombra: uma

aproximação com o plano histórico............................................................................115

Page 13: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

13

7. DA HISTÓRIA PARA O ROMANCE: O QUE RICARDO GÜIRALDES NÃO

REGISTROU EM DOM SEGUNDO SOMBRA.....................................................................120

7.1. Como Güiraldes pintou os pampas argentinos e o gaúcho.....................................121

7.2. Do plano histórico ao plano literário......................................................................128

7.3. A percepção da modernização em Dom Segundo Sombra.....................................138

8. CONCLUSÃO....................................................................................................................140

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................145

ANEXOS................................................................................................................................153

Page 14: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

14

“Nada há de mais profundamente desigual do que a

igualdade de tratamento entre indivíduos diferentes”

(Esmeraldino Bandeira)

“O que pretendemos, para o nosso futuro imediato e

remoto, não é a fixação imobilista dos dois pólos,

separando o negro, de um lado, e o mundo dos

brancos, de que ele participa marginalmente, de

outro; mas que o mundo dos brancos dilua-se e

desapareça, para incorporar, em sua plenitude, todas

as fronteiras do humano, que hoje apenas coexistem

‘mecanicamente’ dentro da sociedade brasileira”.

(Florestan Fernandes)

Page 15: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

15

1. INTRODUÇÃO

1.1. Sobre o projeto e a razão da escolha

Esta Tese de Doutorado vincula-se à linha de pesquisa do Curso de Pós-Graduação em

Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) intitulada “Estudos culturais e pós-coloniais”, da qual o prof. Dr. Eduardo de Faria

Coutinho é parte integrante.

Este estudo consiste num desdobramento da pesquisa iniciada no curso de Mestrado,

intitulada “Imagens do Jeca Tatu na produção literária de Monteiro Lobato: um processo de

construção de identidade brasileira”, que teve orientação também do prof. Dr. Eduardo de

Faria Coutinho.

Centrando-se na produção literária do escritor brasileiro Monteiro Lobato e dos

argentinos Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes, por meio do estudo das obras

Urupês (1918), Mr. Slang e o Brasil (1927) e Problema Vital (1918), no caso brasileiro, e de

Facundo(1845) e Dom Segundo Sombra (1926), no caso argentino, este trabalho teve como

objetivo dissertar sobre diferentes projetos de construção de identidade nacional, que foram

pensados pela elite intelectual em momentos distintos da história, compreendida entre os

séculos XIX e XX, avaliando como se produziu o discurso fundador dessas identidades, que

ora se deu no plano literário e ora no plano histórico, com uma intervenção concreta sobre o

corpo da sociedade.

O objetivo aqui foi o de verificar a relação entre escritura e prática dos intelectuais que

estavam pensando na imagem de seus países ao longo dos referidos séculos. Somado a isso,

pretendeu-se verificar a abordagem dos projetos nos casos brasileiro e argentino, mostrando

que, ao mesmo tempo em que se pretendeu construir uma imagem do homem nacional, esta

foi excluída, sendo desenvolvida com base na associação de dois discursos simultâneos, um

hegemônico e outro contra-hegemônico. Neste sentido, o papel protagônico da elite letrada,

Page 16: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

16

seja na elaboração dos projetos de construção de identidade por meio de sua participação nos

debates públicos defendendo uma ou outra solução para os problemas nacionais, seja através

da veiculação dessas ideias em suas obras, foi fundamental nesse processo.

No decorrer dos séculos XIX e XX, a representação da identidade nacional forjou

diferentes imagens, apresentando distintos projetos de construção de identidade. Nesta Tese,

serão analisados dois desses projetos tanto do caso brasileiro quanto do argentino, os quais se

centravam primeiro na figura do imigrante, vendo neste a saída para os problemas nacionais, e

posteriormente, na figura do homem local, que passa a ser valorizada pelos projetos de nação.

A proposta foi a de estudar os contextos brasileiro e hispano-americano, mais

especificamente o argentino, atestando que as estratégias no plano do discurso utilizadas por

Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo Güiraldes são muito próximas.

O que se pretende discutir é que, apesar de os contextos serem diferentes, as obras

analisadas apontam para uma mesma questão. Em um primeiro momento, mais

especificamente no século XIX, a identidade é construída, tanto no Brasil quanto na

Argentina, a partir da negação do mestiço, tido como inferior e inadaptável à civilização. O

projeto pensado pela elite letrada é o de eliminar a população autóctone tida como bárbara e

importar uma população dita “civilizada”, a fim de trazer o progresso que tanto se almejava

para o país. Já em um segundo momento, no início do século XX, tem-se a valorização do

mestiço1 tanto no caso brasileiro quanto no argentino. O mestiço passa de massa indesejada a

desejada, dado que o progresso pensado outrora fracassa, não atendendo mais às necessidades

dos literatos que estão pensando e formulando uma imagem do homem nacional e do seu país.

O projeto de identidade pautado na anulação do mestiço esteve fortemente ligado à

etnicidade. Ao se anular o mestiço, a heterogeneidade do país foi mascarada. O que se

pretendeu foi mimetizar gestos e discursos culturais europeus, dado que a Europa nesse

1 No caso brasileiro, especialmente, no início do século XX, passa-se a valorizar as três raças: branca, mestiça e

negra.

Page 17: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

17

período era tida como centro da civilização. A valorização do europeu foi, desta forma,

fortemente marcada. O discurso elaborado no projeto em questão foi claramente ideológico.

Negaram-se o mestiço e o negro na produção literária como forma de dominá-los. A visão

social seletiva daquilo que se acreditava ser o mestiço autorizava a oligarquia a manipulá-lo.

A exclusão desse homem da nação devido à sua constituição biológica e cultural legitimava a

exploração a que era submetido. Negava-se o “outro” e a este não era dada a voz, uma vez

que, segundo o discurso dessa elite, este não poderia falar; logo, caberia à oligarquia gerir a

vida desses homens.

Como pretendo atestar, as diferenças entre os grupos étnicos serviu para ressaltar a

suposta superioridade que foi atribuída ao homem branco durante muitos séculos. Ao se

excluir os mestiços do projeto de nação, o status quo político-econômico da oligarquia era

mantido.

Como solução para que o seu país pudesse entrar no concerto das nações ditas

civilizadas, a elite intelectual brasileira e argentina propôs um projeto de nação baseado na

figura do imigrante. O objetivo dos formuladores de políticas públicas foi importar uma

população branca, sobretudo europeia, que pudesse atender aos seus interesses. A elite

intelectual via na imigração europeia a possibilidade de implantação de novos hábitos e

comportamentos para seus países. Em fins do século XIX, essa elite desejou e promoveu a

vinda dos imigrantes através da imigração subsidiada. Acreditava-se que todo o esforço de

construir uma nação civilizada seria inútil se não se atingisse a raiz do problema, que estava

na constituição da população autóctone, em sua grande maioria negra e mestiça.

O que se pretendeu com o projeto baseado na figura do imigrante foi claramente

substituir uma população por outra. Contudo, devido à reação negativa dos imigrantes recém-

chegados, em função do não cumprimento das promessas feitas a essa população, estes

passam de massa desejada à indesejada. Somado a isso, como aponta Darcy Ribeiro a respeito

Page 18: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

18

da Argentina ao estudar o alude imigratório, “à medida que o imigrante se instala nas cidades,

inserindo-se na nova estrutura social urbana integrada por uma classe média e um

proletariado, começa a lutar, em massa, pela representação política e por parte dos

enriquecidos, pela participação nos círculos fechados do patriciado e da Oligarquia”2.

Enclausurada em seus privilégios, a elite intelectual, nos dois casos em questão, opõe-se ao

imigrante que aspirava aos direitos de cidadania. Estes, então, não se sentindo pertencentes à

nação, implantam no país escolas para educar seus filhos com a língua e a cultura trazidas de

seu país de origem. A afinidade com a terra natal é para muitos deles bastante forte, e a não

identificação dos imigrantes como cidadãos nativos fez com que o projeto outrora pensado

deixasse de ter sentido. Com isso, o projeto de nação elaborado pelos literatos fracassa.

As tentativas de estabelecer critérios objetivos sobre a existência da nacionalidade

falharam, dado que o conceito de nação baseado em critérios étnicos, linguísticos e

territoriais, como bem aponta Hobsbawm em Nações e nacionalismos desde 1780, não se

sustenta. Por exemplo, os imigrantes, ao chegarem ao Brasil, mesmo falando o português, não

se sentem pertencentes, em sua grande maioria, ao país para onde migraram. O fato de eles

falarem a língua do país onde passaram a viver não os tornava nativos. Esses não mudavam de

nacionalidade em seu imaginário.

Uma vez fracassado o projeto de nação baseado na figura do imigrante, os literatos

produzem um discurso avesso a este e passam a valorizar a população mestiça que constituía

o seu país. O que se pretendeu negar a partir daí foi o imigrante. O mestiço passa assim de

massa indesejada a desejada. No novo discurso da elite intelectual brasileira e argentina, o

mestiço passa a ser valorizado a fim de substituir na representação a massa indesejada de

imigrantes. Os formuladores de políticas públicas afirmavam que era preciso investir nos

mestiços, para que estes pudessem progredir e assim tornar o seu país um lugar civilizado. O

2 RIBEIRO, 2007, p. 429-430.

Page 19: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

19

país a que visavam essas elites passa a ter uma nova identidade. Desta forma, vê-se que o

discurso muda para atender à necessidade de uma elite intelectual que está pensando seu

projeto de nação.

A partir de uma leitura crítica desses projetos, que foram pensados pela elite

intelectual em momentos históricos distintos, avaliarei como se produziu o discurso fundador

dessa identidade, que ora se deu no plano da intervenção concreta sobre o corpo da sociedade

e ora no plano da palavra. Desta forma, pretendo verificar as relações entre escritura e prática,

ou seja, o que se escrevia na literatura e o que se praticava no plano concreto.

No trabalho em questão, reflexões sobre índios, negros, imigrantes, política

imigratória, colonização, saúde pública e educação serão matérias obrigatórias para as

diversas definições de identidade nacional, sendo pensadas em momentos distintos de acordo

com a ideologia vigente no momento. O reconhecimento ou não de determinada camada

estará diretamente associada à ideologia, ou seja, à relação de poder.

Como se pretende mostrar, Monteiro Lobato, por exemplo, em um primeiro momento,

constrói a identidade de seu país através da negação do mestiço, tido como inferior e

inadaptável à civilização. Assim também o fez, na Argentina, Domingo Faustino Sarmiento

em Facundo – obra que, embora não seja um romance, nem uma biografia, nem um ensaio,

nem uma reportagem, tem um pouco de tudo isso. Fazia-se urgente obliterar as culturas

preexistentes e importar uma população branca tida como civilizada para só assim poder o

país ser inserido no concerto das nações ditas civilizadas. O discurso utilizado pela elite

intelectual, sem respeitar as devidas peculiaridades do homem autóctone que vivia no campo,

indicava que o mestiço era o grande mal que assolava seu país. Tanto o gaúcho quanto o

caboclo, com o personagem Jeca Tatu, metonímias do mestiço, são tidos como bárbaros. Nas

obras em questão, ambos não têm voz. Eles são apresentados apenas por um ponto de vista,

Page 20: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

20

que é construído pela elite intelectual. Esta fala do outro e pelo outro e, neste sentido, o

discurso utilizado pelas elites marca instâncias de poder.

Deve-se deixar claro aqui que o que pretendo não é comparar o gaúcho platino ao

caboclo, representado pelo personagem Jeca Tatu, construído por Monteiro Lobato, mas sim

comparar os discursos que se produziram pelos literatos tanto no caso brasileiro quanto no

argentino, avaliando a sua aproximação.

O que pretendo demonstrar em minha tese é que a ideia de identidade não deve ser

fixa e nem única, pois, uma vez pensada assim, acaba se pautando na exclusão, não

respeitando as particularidades de cada grupo ou até mesmo de cada indivíduo. Como bem

aponta o professor doutor Eduardo Coutinho em um texto presente em Literatura comparada

na América Latina, “A ‘Literatura nacional’ nunca constituirá um conceito homogêneo, mas,

ao contrário, será sempre uma construção em aberto, com facetas múltiplas e diversas,

variando de acordo com as necessidades de afirmação e autodefinição de cada momento”3.

3 COUTINHO, 2003, p. 60.

Page 21: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

21

2. COMO O BRASILEIRO FOI PENSADO EM INÍCIOS E FINS DO SÉCULO XIX:

UM PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

No decorrer dos séculos XIX e XX, a construção da identidade brasileira foi

assumindo diferentes imagens, construídas por formuladores de políticas públicas e inúmeros

literatos de distintas formações intelectuais, de acordo com a ideologia vigente em cada

momento histórico. Diferentes elementos como raça, língua, cultura, território, religião,

natureza, dentre outros, foram dando forma a enunciados diversos ao longo dos referidos

séculos. Neste sentido, a ideia de uma identidade nacional admitiu diferentes significados,

compartilhados por intelectuais de orientações ideológicas distintas.

O que se pretendia era criar um símbolo de identidade nacional como elemento

aglutinador de uma nação. Um olhar para as obras literárias e sociológicas produzidas ao

longo dos séculos XIX e XX nos mostra a incessante busca de uma identidade nacional por

parte dos literatos no decorrer da história. No Brasil, autores como Gonçalves de Magalhães,

com Suspiros poéticos e saudades (1836), considerada a primeira obra romântica brasileira,

José de Alencar, com os romances O guarani (1857) e sobretudo Iracema (1865), Euclides da

Cunha, com Os Sertões (1902), Monteiro Lobato, com Problema vital (1918) e Mr. Slang e o

Brasil (1927), Mário de Andrade, com a obra Macunaíma (1928), Gilberto Freyre, com Casa

Grande & Senzala (1933), Sérgio Buarque de Holanda, com a obra Raízes do Brasil (1936),

são exemplos, dentre vários outros registros, de escritores que manifestaram uma preocupação

com a nacionalidade ou que, de alguma forma, estavam pensando uma imagem para o seu

país.

A imagem do brasileiro construída em fins do século XIX em muito difere daquela

que foi formulada em inícios do século XX. Aquela imagem que em inícios do século XIX

Page 22: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

22

ainda estava em formação, assim como o próprio país, que vai tomando seu contorno mais

definitivo, sobretudo, a partir da Independência, em 7 de setembro de 1822.

No início do século XIX, o que se entendia como brasileiro se diferencia da ideia de

brasileiro que se tem hoje, como também da noção de brasileiro que se teve em inícios do

século XX. Neste sentido, é possível perceber que a ideia do homem nacional não foi ao

longo da história homogênea. Foi, em grande medida, construída para atender às necessidades

ideológicas de uma nação que ainda estava em formação.

Um olhar para as obras literárias, sociológicas e antropológicas produzidas ao longo

dos séculos XIX e XX nos permite perceber como foi incessante o processo de construção e

reconstrução de uma identidade nacional e como, de uma forma ou de outra, muitos escritores

guardaram um compromisso com a nacionalidade, pensando em uma imagem para o seu país.

Se pensarmos em termos históricos em quem integrava o país em pleno século XIX,

nos depararemos com uma imagem paradoxal, dada a falta de equivalência entre o discurso

produzido pelos literatos do período em questão e o que de fato se encontrava em nosso país

no plano histórico. Fica-nos, assim, um hiato entre a imagem do Brasil e de seu homem que

era registrada na literatura e os acontecimentos históricos.

Desta maneira, neste capítulo, por meio de um recorte da discussão de nações e

nacionalismo, assim como da construção da identidade nacional, pretende-se analisar como a

imagem do brasileiro foi pensada em inícios e fins do século XIX. Para isso, fundamentarei o

estudo nas obras de Eric Hobsbawm, Benedict Anderson, Ernest Renan e Montserrat

Guibernau, dentre outros.

Page 23: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

23

2. 1. O conceito de Nação

As nações, postas como modos naturais ou divinos de

classificar os homens, como destino político... inerente,

são um mito; o nacionalismo, que às vezes toma culturas

preexistentes e as transforma em nações, algumas vezes as inventa e frequentemente oblitera as culturas

preexistentes.

(Ernest Gellner)

A consciência nacional é proveniente de valores, tradições, lembranças do passado e planos para o futuro

compartilhados, contidos em uma cultura particular que é

pensada e falada numa língua particular.

(Montserrat Guibernau)

A noção de que somos brasileiros e que, portanto, pertencemos a uma comunidade

nacional parece-nos hoje indiscutível. Contudo, é válido questionar o que significa “ser

brasileiro”; quem é considerado brasileiro? Quais são os fatores que conferem a um

determinado indivíduo a condição de integrar uma nação? A ideia de quem é brasileiro foi a

mesma ao longo dos séculos XIX e XX?

Eric Hobsbawm em sua famosa obra intitulada Nações e nacionalismo desde 1780 já

no prefácio afirma que “‘A questão nacional’ é, notoriamente, um tema controverso”4. O

historiador, que nessa obra concentrou seus estudos acerca de nações e nacionalismo

principalmente no século XIX e em inícios do século XX, quando, segundo acredita, o

assunto assume um caráter bastante eurocêntrico – “ou, em qualquer caso, centrado nas

regiões ‘desenvolvidas’”5 – nos traz importantes contribuições a respeito do tema. Como

assinala Hobsbawm, todas as tentativas de estabelecer critérios objetivos (definições) sobre a

existência da nacionalidade falharam. E a explicação, para ele, parece óbvia. Hobsbawm nos

esclarece que

4 HOBSBAWM, 2002, p. 10. 5 HOBSBAWM, 2002, p. 9.

Page 24: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

24

as tentativas de se estabelecerem critérios objetivos sobre a existência de

nacionalidade, ou de explicar por que certos grupos se tornaram ‘nações’ e

outros não, frequentemente foram feitas com base em critérios simples como

a língua ou a etnia ou em combinação de critérios como a língua, o território comum, a história comum, as tradições culturais comuns e outros mais.

6

Se levarmos em consideração o fato de que definições objetivas, tais como a língua, a

etnia, e o território comum, entre outros, podem sempre ser insuficientes por comportar

exceções, uma vez que apenas alguns dos membros de uma ampla categoria de entidades se

ajustarão a uma dada definição de nação, fica claro para o leitor por que esses critérios

falharam para definir uma nação. Tais critérios, como mesmo acrescenta Hobsbawm, “são em

si mesmo ambíguos, mutáveis, opacos e tão inúteis para os fins de orientação do viajante

quanto o são as formas das nuvens se comparadas com a sinalização da terra”7.

Hobsbawm ainda acrescenta que a razão para a escolha de critérios objetivos não foi

gratuita:

É claro que isso os tornou excepcionalmente convenientes para propósitos

propagandísticos e programáticos e não para fins descritivos (...).

Seguramente, pode-se objetar que manifestos abertamente propagandísticos não deveriam ser inquiridos como se fossem contribuições para as ciências

sociais, mas o fato é que quase toda classificação de alguma comunidade

como “nação”, com base em tais critérios significativamente objetivos, seria

suscetível de objeções semelhantes, a menos que o fato de ser uma “nação” pudesse ser estabelecido em outras bases.

8

A definição de nação baseada em critérios objetivos exclui muito mais membros de uma

nação do que os inclui. Para o historiador, “a alternativa objetiva de nação é uma definição

subjetiva, seja ela coletiva (...), seja individual”9. Esta lógica, assim vista, segue a frase útil de

Ernest Renan em Qu’est-ce qu’une nation? /What is a nation?, obra resultante de uma

palestra proferida na Universidade de Sorbonne, em 1882, em que o autor faz uso de uma

metáfora para definir o que entende por nação: “The existence of a nation is (if you will

6 HOBSBAWM, 2002, p. 14-15. 7 HOBSBAWM, 2002, p. 15. 8 HOBSBAWM, 2002, p. 15-16 9 HOBSBAWM, 2002, p. 16.

Page 25: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

25

excuse the metaphor) a daily plebiscite”10

, ou seja, “uma nação é um plebiscito diário”. Ernest

Renan, assim como Eric Hobsbawm, põe em xeque critérios que foram considerados

importantes na formação das nações, a saber: raça, língua, religião, geografia e interesses

comuns. Renan chama atenção para o fato de não existir uma raça pura; todas as grandes

nações europeias são fruto de uma mistura de diversos povos. A língua, por sua vez, para

Renan, não pode ser considerada um sinal definidor de um povo, uma vez que há nações

diferentes que falam a mesma língua e vice-versa. No que diz respeito à religião, como bem

aponta o autor, esta originalmente esteve ligada ao Estado, como uma extensão dos ritos

familiares; mas atualmente, a religião tornou-se parte apenas da consciência individual. Da

mesma forma, os interesses comuns de um povo não formam a ideia de nação; estes apenas

criam acordos. E por fim o critério geográfico por si só também não é capaz de sustentar a

definição de nação. A geografia tem um papel importante na divisão, mas não é o solo que

forma as nações11

.

É válido atentar para o fato de que esses critérios não são descartados para a definição

de uma nação. O que o autor propõe é que esses critérios vistos de uma forma isolada não são

suficientes para se definir uma nação. Renan, ao que aponta Hobsbawm, “sabia muito bem

que as nações possuíam também elementos objetivos comuns”12

.

Para Renan, Nação é um princípio espiritual; o critério legítimo é o desejo – “a nation

is a soul, a spiritual principle”13

. A nação é resultado da culminação de uma história comum

de sacrifícios e devoção – ou seja, um legado compartilhado – e, principalmente, de um

10 RENAN, 1996, p. 49. 11 É interessante acrescentar aqui que, embora Renan esteja tratando do caso europeu, essa discussão se aplica de

igual forma ao caso brasileiro – território que está em questão neste estudo –, uma vez que o Brasil possui extenso território; embora tenha como idioma oficial a língua portuguesa, em diferentes estados falam-se

também outros idiomas; o Brasil é um país composto majoritariamente por mestiços; e, embora a religião

principal do país desde o século XVI seja o catolicismo, muitas outras religiões são praticadas em diferentes

áreas do país. 12 HOBSBAWM, 2002, p. 17 – grifo meu. 13 RENAN, 1996, p. 47.

Page 26: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

26

desejo de compartilhar essa história passada assim como um futuro (consenso, desejo de

manter a herança individual).

Benedict Anderson, teórico do nacionalismo, em Nação e consciência nacional,

propõe a seguinte definição para nação: “ela é uma comunidade política imaginada – e

imaginada como implicitamente limitada e soberana”14

. Note-se que a definição de nação

proposta por Anderson em muito se aproxima da de Renan, que, embora tenha escrito em fins

do século XIX, propõe uma definição bastante moderna para o termo. Para Anderson, “Ela é

imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria

de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente

de cada um esteja viva a imagem de comunhão”15

. Ernest Gellner, em Thought and change,

diz coisa semelhante quando afirma que “o nacionalismo não é o despertar das nações para a

autoconsciência: ele inventa nações onde elas não existem”16

.

É interessante observar que na definição moderna de nação o critério subjetivo

sobrepõe-se ao objetivo. É válido acrescentar aqui que vários são os autores que

compartilham da mesma opinião na modernidade. Montserrat Guibernau, em Nacionalismos:

o estado nacional e o nacionalismo no século XX, também aponta que sua opinião é de que “a

força do nacionalismo procede não do pensamento racional apenas, mas do poder irracional

das emoções que se originam dos sentimentos de pertencer a um determinado grupo”17

. Note-

se que a objetividade também não é descartada por Guibernau, o que pode ser confirmado

quando a autora reconhece que a força do nacionalismo não procede apenas do pensamento

racional, formado por critérios objetivos, mas sim de uma conjugação entre modos de pensar

racionais e, utilizando palavras da própria autora, “do poder irracional das emoções”.

14 ANDERSON, 1983, p. 14. 15 ANDERSON, 1983, p. 14. 16 Apud ANDERSON, 1983, p. 14 – grifo meu. 17 GUIBERNAU, 1997, p. 86.

Page 27: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

27

Ao homem, neste sentido, é permitido fazer opções em vez de ser rotulado por um

sistema que impõe regras e dita normas. Como bem aponta Hobsbawm18

, “há pessoas que

podem identificar-se como judeus mesmo que não partilhem da religião, língua, cultura,

tradição, herança histórica, padrões grupais de parentesco ou de uma atitude em relação ao

Estado judeu. Do mesmo modo, isso não implica uma definição puramente subjetiva de

‘nação’”. Deste modo, nem a definição subjetiva nem a objetiva darão conta da concepção de

nação, uma vez que somente a identificação não é critério suficiente para se definir uma

nação. Foi pensando nisso que Hobsbawm tomou como hipótese inicial de seu trabalho a ideia

de que nação é “qualquer corpo de pessoas suficientemente grande cujos membros

consideram-se como membros de uma ‘nação’”19

.

A posição de Hobsbawm acerca de nações e nacionalismo pode ser resumida no

seguinte: 1. o termo “nacionalismo” significa “fundamentalmente um princípio que sustenta

que a unidade política e nacional deve ser congruente”20

; 2. a “nação” não é uma entidade

social originária ou imutável; 3. “as nações e seus fenômenos associados devem (...) ser

analisados em termos das condições econômicas, administrativas, técnicas e outras

exigências”21

; 4. e, “as nações são (...) fenômenos duais, construídos essencialmente pelo alto,

mas que, no entanto, não podem ser compreendidas sem ser analisadas de baixo, ou seja, em

termos de suposições, esperanças, necessidades, aspirações e interesses das pessoas comuns,

as quais não são necessariamente nacionais e menos ainda nacionalistas”22

.

A questão da identidade nacional foi ao longo dos séculos muito perseguida e ainda

hoje o assunto é muito discutido. Em momentos históricos distintos, teve-se uma elite

intelectual no Brasil que produziu diferentes projetos de construção de identidade nacional

numa tentativa de representar por meio do discurso uma identidade para o homem local, qual

18 HOBSBAWM, 2002, p. 17. 19 HOBSBAWM, 2002, p. 18 – grifo meu. 20 HOBSBAWM, 2002, p. 18. 21 HOBSBAWM, 2002, p. 19. 22 HOBSBAWM, 2002, p. 19-20.

Page 28: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

28

seja, o brasileiro. Neste sentido, a representação da identidade nacional brasileira forjou ao

longo dos séculos – no caso em questão, trataremos aqui do século XIX – diferentes imagens,

através de projetos distintos de construção de identidade que, por sua vez, atendiam às

necessidades vigentes de acordo com a ideologia da época.

A ideia de construção de identidade nacional no Brasil passou a ter uma maior

relevância para os literatos brasileiros sobretudo a partir da Independência. O nacionalismo

teve um papel fundamental no movimento de libertação do país. Uma vez alcançada a

Independência, muitos literatos, influenciados pelas lutas de libertação, sentiram a

necessidade de produzir uma literatura que pudesse caracterizar o país. O nacionalismo

brasileiro assumiu, assim, um matiz próprio. Embora ele tenha tido uma forte influência

europeia, escritores brasileiros objetivavam criar uma produção literária tipicamente nacional,

processo resultante da inspiração que as lutas pela afirmação do “novo” país trouxeram para o

imaginário dos escritores.

Na literatura romântica produzida no século XIX, observa-se um apego emocional à

terra, vista como um espaço idealizado. Ao se tentar construir uma identidade nacional para o

país, houve uma necessidade dos literatos de criar um símbolo que caracterizasse o Brasil. A

figura do índio, no nacionalismo romântico, teve, neste sentido, um papel fundamental. É

válido ressaltar aqui que a imagem do índio como ser autóctone do Brasil constituiu uma

criação dos escritores que não tinha equivalência com a realidade propriamente dita, dada a

não correspondência entre a imagem do nobre guerreiro indígena que se produzia no âmbito

literário e o tratamento dado aos índios na história no período em questão.

Atente-se para o fato de que o processo de exclusão foi muito forte no século XIX. O

que se pode perceber é que, devido à imagem negativa do negro, que fora em grande medida

derivado do processo de escravidão, negros e também mestiços – estes por serem o resultado

do cruzamento entre negro e branco – são excluídos no âmbito literário. Paralelamente a essa

Page 29: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

29

exclusão, teorias europeias importadas eram utilizadas indevidamente para comprovar a

inferioridade dos negros e também a dos índios, fato que legitimava a exclusão deles.

O processo de construção de identidade que se deu nesse período esteve, desta forma,

fortemente ligado à etnicidade. Contudo, há de se atentar para o fato de que, como aponta

Hobsbawm,

a etnicidade “visível” tende a ser negativa na medida em que é muito mais

usada para definir “o outro” do que o próprio grupo. Daí o papel proverbial

dos estereótipos raciais [...], a relativa cegueira dos colonizadores em relação às diferentes cores presentes naqueles considerados globalmente como

“negros” e a expressão “todos eles se parecem” [...], o que é provavelmente

baseado em uma visão social seletiva daquilo que se acredita ser comum ao

“outro”23

.

É importante destacar aqui que a consagração ou não de determinada camada social ou de

certo grupo étnico esteve associada à relação de poder. No século XIX, estigmatizar o negro,

o mestiço ou o índio no Brasil serviu em grande medida para autorizar o/a

colonizador/aristocracia, representado/a na figura do homem branco, a dominar o “outro”,

subalterno. O discurso elaborado pela aristocracia era, neste sentido, ideológico, baseado na

exclusão de certas comunidades, devido à sua constituição biológica ou cultural. A invocação

de diferenças entre os grupos étnicos servia para atribuir superioridade a um grupo em

detrimento do outro. Com isso, houve um favorecimento da proliferação de sentimentos hostis

e da intolerância com as diferenças entre grupos, sendo feita uma avaliação negativa do que se

acreditava ser o “outro”.

O que se pretendeu com isso foi criar uma imagem para o país que pudesse satisfazer o

projeto de nação civilizada elaborado pelos fundadores da nação. O discurso produzido ao

longo do século XIX serviu em grande parte para negar a participação social, política e

econômica a certos grupos. Ao negar espaço e voz ao “outro”, legitimavam-se várias formas

de exploração. O direito das pessoas foi assim tomado como irrelevante, e a criação e a

23 HOBSBAWM, 2002, p.81.

Page 30: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

30

reprodução de estruturas de classe serviram para aumentar ainda mais as diferenças,

distanciando as pessoas que não fossem bem-vindas no projeto de nação formulado.

É útil salientar aqui que o nacionalismo serviu para gerar no imaginário dos literatos

um senso de unicidade. Contudo, como já discutido, ao se tentar criar uma unidade para um

país com a extensão territorial do Brasil, as diferenças regionais e a pluralidade dos grupos

humanos foram deixadas de lado.

2.2. Imagens do Brasil: processos de construção de identidade

De acordo com os dados históricos, o Brasil evoluiu muito com a chegada da corte

portuguesa em 180824

. Ameaçada por Napoleão Bonaparte, então imperador da França, de ter

suas fronteiras invadidas, a coroa portuguesa transferiu-se em massa para o Brasil com o

auxílio da Inglaterra, principal rival dos franceses no período em questão. O Brasil, que tinha

uma população de quase 2,5 milhões de habitantes em 1808, passa para quase quinze milhões

em 1890, ou seja, com pouco menos de um século a população cresceu quase seis vezes. Até

dois anos antes desse período, a sociedade ainda se encontrava escravocrata, embora, segundo

24 Segundo consta da Revista Nossa História, “A vocação cultural do Rio de Janeiro ganhou um novo impulso a

partir de 1808. Em pouco tempo, d. João criou a imprensa Régia, a Livraria Pública, o Jardim Botânico, a Real

Academia Militar, a Academia de Marinha. Apoiou o aperfeiçoamento do ensino médico e abriu o país a

cientistas estrangeiros para viagens de pesquisas” (Revista Nossa História, ano 2006, p. 20). Além disso, D. João

VI criou importantes instituições como o Banco do Brasil, em 1808, a Casa da Moeda, a Biblioteca Pública, a

Academia de Belas-Artes, o Teatro Real, a Escola Médico-Cirúrgica da Bahia e a Escola Anatômica, Cirúrgica e

Médica do Rio de Janeiro. Contudo, apesar do rápido desenvolvimento do país, grande parte das repartições

criadas pelos portugueses ao chegar no Brasil servia apenas como “cabide de emprego” para resolver – diga-se

de passagem, de forma paliativa – o problema de milhares de fidalgos recém-chegados, fato que contribuiu

muito para aumentar os problemas sociais e econômicos do país. É válido ressaltar aqui que, com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, os hábitos e costumes das pessoas que já habitavam o país mudaram. Segundo o

historiador Francisco de Assis Silva, “Elementos da aristocracia rural e das classes médias endinheiradas, ávidos

por mostrar importância e status, passaram a morar no Rio de Janeiro. O luxo e a ostentação começaram a

caracterizar o comportamento das camadas ricas, que passaram a se vestir de acordo com os modelos europeus, a

habitar ricos palacetes e a se cobrir de jóias importadas. Mesmo pessoas de condições sociais menos abastadas

passaram a buscar prestígio através do uso de produtos importados” (cf. SILVA, 1992, p. 115).

Page 31: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

31

consta dos dados do censo da época25

, os escravos não fossem mais a principal força de

trabalho26

.

Na segunda metade do século XIX, o país passou por um intenso processo de

urbanização e modernização. As cidades cresceram consideravelmente, e a vida social nos

grandes centros urbanos se modificou bastante. Contudo, a modernização não foi um processo

global que atingiu todas as regiões. O processo de modernização e urbanização se deu nos

principais centros como Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belém nas regiões dos grandes

portos exportadores. São Paulo foi exceção nesse processo, pois o porto mais próximo

(Santos) se localiza a mais de sessenta quilômetros do centro urbano27

.

Foi a partir do início do século XIX que o café ganhou importância comercial, sendo

cultivado para atender os mercados externos. Antes desse período, a produção do café era

voltada apenas para o consumo doméstico. A partir da década de 1830, a produção do café

cresceu muito, e este passou a ser o principal produto brasileiro de exportação. Esse

crescimento se deveu, especialmente, ao aumento do consumo nos mercados da Europa e dos

Estados Unidos, que se tornaram os maiores compradores do produto brasileiro. Contudo,

como relata o historiador Francisco de Assis Silva, “a crescente expansão da lavoura cafeeira

esbarrou em um sério problema de mão-de-obra, principalmente a partir de 1850, ano em que

o governo imperial promulgou a Lei Eusébio de Queirós, que extinguia o tráfico negreiro”28

.

É válido ressaltar aqui que a extinção do tráfico negreiro provocou uma considerável queda na

oferta de escravos africanos29

. Sua extinção deveu-se, em grande medida, a exigências

inglesas. Os ingleses viam na abolição dos escravos uma forma de ampliar o mercado

25 Atente-se para o fato de que, embora constasse dos dados do censo da época a informação de que os escravos

não eram mais a principal força de trabalho nos anos após a abolição da escravidão, que se deu em 1888, a

historiografia contemporânea aponta um ponto de vista contrário a este. 26 Cf. SILVA, 1992, p. 110-121. 27 Cf. SILVA, 1992, p. 165-166. 28 SILVA, 1992, p. 167. 29 É válido ressaltar aqui que a historiografia contemporânea nos mostra que não houve apenas este ponto de

vista. Hoje, se sabe, que as lutas dos escravos colaboraram muito para a extinção do tráfico negreiro e,

consequentemente, da escravidão dos negros.

Page 32: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

32

consumidor. Interessada em transformar o negro em consumidor dos produtos industrializados

produzidos em suas fábricas, a Inglaterra passa a pressionar os demais países a extinguir o

tráfico dos negros, forma de, paulatinamente, acabar com a escravidão, uma vez que, ao

eliminar o tráfico de negros, fatalmente levaria ao término da escravidão.30

A extinção do

tráfico de negros foi, sem dúvida, fundamental para encaminhar o país rumo à abolição, que

se deu no final da década de 1880, com a promulgação da Lei Áurea.

Atente-se ao fato de que a Lei Áurea, lei que abolia definitivamente a escravidão no

Brasil, só foi assinada pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Segundo consta da Revista

Nossa História, “Quando a Lei Áurea foi assinada, 95% dos descendentes de africanos já

eram livres, alguns faziam parte da elite intelectual e das lutas abolicionistas, e muitos fugiam,

na maior ação de desobediência civil do país”31

. Antes disso, algumas leis em prol da

libertação dos escravos foram promulgadas, porém estas davam liberdade aos escravos de

forma parcial.

Devido aos constantes conflitos – movimentos populares a favor da aceleração da

abolição32

– travados no Rio de Janeiro e em São Paulo, que por vez se tornavam

incontroláveis para o governo, em 1885, foi promulgada a Lei dos Sexagenários, igualmente

conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe, que concedia liberdade aos escravos com mais de

sessenta e cinco anos de idade. Note-se que esta lei favorecia muito pouco – ou quase nada –

os escravos, uma vez que a expectativa média de vida de um negro no referido período era de

30 Estima-se que em 1842, 17.435 escravos foram importados no Império. Em 1844, o número subiu para

22.849; em 1846, a importação teve um índice bastante elevado, crescendo consideravelmente, para 50.324; em

1847, aumentou ainda para 56.172; em 1848, para 60.000; e em 1849, o número chega a 54.000. Em 1850, ano

em que foi promulgada a Lei Eusébio de Queirós, a média anual de importação teve um grande declínio,

passando a 23.000 escravos negros importados. A partir desse ano, a queda na importação foi considerável. Em

1851, um ano após ter sido proibido o tráfico de negros, o índice anual caiu para 3.387. De 1853 a 1856, a média

anual de importação foi de 128 negros. (DOWBOR. A formação do capitalismo dependente no Brasil. In: SILVA, 1992, p. 168) 31 Dados extraídos da Revista Nossa História, ano 2, nº. 19, 2005, p. 16. 32 Segundo o historiador Francisco de Assis Silva, “Em algumas províncias do Norte e do Nordeste a

participação popular acelerava a abolição. O Ceará e o Amazonas foram as províncias pioneiras na extinção da

escravidão, decretando a abolição definitiva em 1884. Isto se deveu, especialmente, à ação vigorosa das camadas

populares” (SILVA, 1992, p. 183).

Page 33: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

33

trinta anos de idade. Uma lei anterior a esta, a Lei do Ventre Livre33

, promulgada em 1871,

não trouxe maiores benefícios aos negros.

A Lei do Ventre Livre acaba por beneficiar sobretudo os senhores dos escravos. A

pretensa liberdade que era conferida aos filhos de escravas que nascessem no Império a partir

da data em que foi promulgada a lei, na verdade, não passava de uma farsa. Na prática o filho

do negro não gozaria de liberdade alguma, dado que era obrigado a ficar sob tutela do dono de

sua mãe até completar oito anos de idade, e após isso o senhor libertaria o escravo em troca de

uma indenização ou ainda poderia usufruir dos serviços dele até que o escravo completasse

vinte e um anos de idade e poderia inclusive alugar seus serviços a terceiros se assim fosse de

sua vontade.

Veja-se que o Brasil, mesmo após sua Independência, ainda utilizava mão-de-obra

escrava. É válido ressaltar aqui que a independência do Brasil significou uma emancipação

política para o país, mas não social, uma vez que, apesar da independência, a escravidão

durou ainda mais algumas décadas, sendo abolida, definitivamente, como já visto, apenas em

1888. Como afirma a historiadora Hebe Maria Mattos, “Desde a independência, os ideais do

liberalismo político, inscritos na Constituição de 1824, passaram a afirmar a igualdade de

todos os cidadãos brasileiros perante a lei. Apesar disso, a escravidão [...] foi mantida

legalmente no país, em nome do direito de propriedade”34

.

Após a Independência, escritores brasileiros, estimulados pelo processo de

emancipação do país, começaram a escrever com uma forte tendência nacionalista. Contudo,

33 De autoria do primeiro-ministro visconde do Rio Branco, a Lei do Ventre Livre determinava o seguinte: Art.

1.º – Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta Lei serão considerados de

condição livre e havidos por ingênuos.

§ 1.º – Os ditos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores das mães, os quais terão a obrigação

de criá-los até a idade de oito anos completos.

§ 2.º – Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá a opção de receber do Estado a indenização de 600$000 ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos.

Art. 2.º – O Governo poderá entregar a Associações por ele autorizadas os filhos dos escravos nascidos desde a

data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados pelos senhores...

§ 1.º – As ditas Associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até os 21 anos completos e poderão

alugar esses serviços. (SILVA, 1992, p. 182). 34 Dados extraídos da Revista Nossa História, ano 2, nº. 19, 2005, p. 16.

Page 34: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

34

o nacionalismo brasileiro não constituiu uma escrita autenticamente nacional, pois esta se

achava fortemente marcada pelo ideário europeu. No Brasil, ao eleger o índio como elemento

nacional, vê-se que as características que lhe foram atribuídas em muito o aproximava do

cavaleiro medieval europeu. Como aponta José Maurício Gomes de Almeida, em A tradição

regionalista no romance brasileiro, “o ideário romântico europeu, para cá transplantado pela

geração da revista Niterói, estava por ele [pelo nacionalismo] fortemente marcado. Graças

porém a uma feliz conjugação de fatores, o nacionalismo europeu assume aqui tonalidade

própria, ao se associar à luta pela afirmação do novo país”35

. Neste sentido, apesar de a

literatura produzida nesse período ter sofrido uma forte influência europeia, o nacionalismo

romântico procurou criar uma imagem própria para seu país, imagem esta que não

correspondia à realidade da época. Embora o país tivesse ao final do período colonial um

terço de sua população constituída por pretos e pardos36

, estes não tinham espaço na literatura.

Conforme relata a historiadora Hebe Maria Mattos, “para os liberais radicais da geração da

Independência, a cor não deveria importar, mas a dificuldade de se falar dela tornava evidente

que a vitória permanecia limitada, já que não se conseguia dissociar ‘o homem da cor’ da

memória da escravidão de seus antepassados”37

.

Na literatura produzida pelos literatos românticos, a imagem que foi representada

como símbolo da identidade nacional brasileira foi a do índio. É válido ressaltar aqui que a

imagem que se traçava dos índios era bem distinta da imagem dos índios que habitavam o

Brasil, assim como o tratamento estético-literário dado a eles foi bem distinto daquele que lhe

foi dado na história. O paradoxo existente entre a importância que os literatos românticos

davam às origens indígenas do país e o perfil negativo que se traçava dos índios daquela

época, os quais eram vistos como comedores de gente e selvagens, é neste sentido bastante

significativa. Os negros e mestiços ficaram excluídos desse processo devido à imagem

35 ALMEIDA, 1999, p. 27. 36 Cf. Revista Nossa história, 2005, ano 2, nº. 19, p. 17. 37 Cf. Revista Nossa história, 2005, ano 2, nº. 19, p. 17.

Page 35: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

35

negativa associada a eles, qual seja, a da escravidão. É válido ressaltar aqui que os negros,

embora constituíssem maioria em território brasileiro, foram silenciados na literatura. Dava-

se, assim, continuidade ao longo processo de exclusão a que os negros foram submetidos por

décadas.

A fim de substituir a mão-de-obra escrava, uma vez extinta a escravidão, imigrantes,

sobretudo europeus, vieram em larga escala para o Brasil. O papel da imigração não se

limitava a fornecer mão-de-obra para uma economia em expansão, mas se inseria em um

contexto mais amplo no qual o objetivo maior era o de incorporar à sociedade brasileira uma

população que se apresentava como ideal, ou seja, um povo essencialmente branco. O que se

pretendeu foi substituir uma população por outra. Para isso, a elite do país desejou e

promoveu a vinda dos imigrantes, sobretudo europeus, através da imigração subsidiada,

processo que foi mais intenso no Brasil no final do século XIX. O movimento migratório de

fins do século XIX foi sem dúvida o mais intenso de toda a história. Movidos pelo sonho de

“fazer a América”, milhares de pessoas abandonaram seu país de origem, deixando suas casas

em busca de melhores condições de vida. Cresceu, assim, assustadoramente o número de

estrangeiros no país. A população em fins do século XIX praticamente duplicou, e a mão-de-

obra operária no país passou a ser majoritariamente de imigrantes.

Page 36: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

36

2. 3. Quem era considerado brasileiro no século XIX

Se hoje sabemos que somos brasileiros e temos na nossa consciência essa certeza de

forma clara, ontem, em inícios do século XIX, essa consciência não era tão clara no

imaginário dos homens que habitavam o território brasileiro. Segundo dados históricos que

constam da revista Nossa história, Hipólito José da Costa38

, natural do Sacramento,

atualmente no Uruguai, publicava em Londres em 1808 o primeiro número do Correio

Braziliense e dez anos depois da publicação do primeiro jornal ainda se questionava qual seria

o nome mais apropriado para os naturais do Brasil – se brasiliano, brasileiro ou brasiliense39

,

o que comprova que a identidade dos habitantes do Brasil nesse período ainda estava em

discussão.

Somado a isso, a Constituição de 1824, outorgada em 25 de março por D. Pedro I,

afirmava que seriam brasileiros “todos os portugueses que tivessem permanecido no país após

a Independência e houvessem aderido à ‘causa do Brasil’”40

. Além disso, a Constituição

previa que apenas os homens livres nascidos no país seriam considerados brasileiros. Sendo

assim, o imenso número de africanos e de seus descendentes escravizados, que constituíam

boa parte da população que habitava o país naquela época, estava excluído do que se entendia

por brasileiro no início do século XIX41

.

Atente-se ao fato de que em 1824, quando a Constituição foi promulgada, o Brasil

contava com uma população enorme de homens negros, em grande maioria escravos que

vieram da África para atender as necessidades de mão-de-obra do país, e com isso toda essa

38

Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça, nascido em 1774 na Colônia do Sacramento, tornou-se outro

intelectual na órbita de d. Rodrigo de Souza Coutinho, que o mandou à América do Norte em 1798 para

pesquisar culturas adequadas ao solo do Brasil (Cf. Revista Nossa história, 2006, p.25). 39 Cf. Revista Nossa história, 2006, p. 6. 40 Revista Nossa história, 2006, p. 7. 41 Visão mais entusiasta do brasileiro pode ser vista nas palavras do “patriarca da Independência” José Bonifácio

de Andrada e Silva, quando este diz que: “Os brasileiros são entusiastas do belo ideal, amigos de sua liberdade e

mal sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram. Obedientes ao justo, inimigos do arbitrário, suportam

melhor o roubo que o vilipêndio; ignorantes por falta de instrução, mas cheios de talentos por natureza” (cf.

Revista Nossa história, 2006, p. 7).

Page 37: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

37

população permanecia marginalizada do sistema, uma vez que, somados aos maltratos e

exploração de mão-de-obra, estes sequer tinham direito à cidadania no país onde habitavam.

Foi só a partir de 1888 com a aprovação da Lei Áurea42

, que contou com a assinatura

da princesa Isabel, que as diferenças entre os cidadãos brasileiros deixaram de existir no plano

institucional. Teoricamente, todos, a partir daquele momento, passariam a fazer parte da

mesma nação. Porém, na prática, sabe-se que o quadro é bastante diferente. Como bem aponta

o prof. José Luiz Werneck da Silva, do departamento de História, do Instituto de Filosofia e

Ciências Sociais da UFRJ, no texto “A lei Áurea revisitada”, “a classe dominante administrou

de tal maneira as mudanças que os ex-escravos não tiveram garantias plenas de acesso à posse

ou à propriedade da terra, ao trabalho e ao salário” e brilhantemente questiona “Onde, pois, a

revolução social [se deu], se não se alterou a relação entre dominador e dominado? A abolição

representou uma das tantas modernizações conservadoras da nossa história”43

. E, neste

sentido, lembra as considerações de Jacob Gorender em A burguesia brasileira, de 1981,

quando vê a abolição “como a única revolução social jamais ocorrida na história de nosso

país”, uma vez que, com o fim das relações escravistas, “todos os trabalhadores se tornaram

juridicamente livres e, com isso, a difusão das relações capitalistas de produção ficou

desembaraçada”44

.

Segundo informações do Censo demográfico de 1872, o primeiro feito no país e o

único no período imperial, a população brasileira chegava a 9.930.478 habitantes, distribuídos

em vinte províncias e um município neutro, a Corte, com 641 municípios e 1.473 paróquias.

Minas gerais era a província que possuía a maior população do Império, totalizando 20,5% do

total. Era também a província com maior número absoluto de escravos no Brasil. De acordo

com os dados, Minas Gerais contava com 25% da população cativa do país; o Rio de janeiro

42 Lei que declarava extinta a escravidão do Brasil desde a data da lei e que revogava as disposições em

contrário. 43

Cf. Encarte especial da Ciência Hoje, 1988, suplemento vol. 8, nº 48, p. 11. 44 Apud Encarte especial da Ciência Hoje, 1988, suplemento vol. 8, nº 48, p. 11.

Page 38: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

38

contava com 19% e a Bahia, com 11%. A população “branca” do Império representava 38%

do total. Arredondando essa porcentagem para 40%, chega-se ao dado de que, a cada 10

pessoas que habitavam o país naquele tempo, apenas 4 eram brancos. O restante da população

se dividia entre índios e negros45

. De acordo com a historiadora Hebe Maria Mattos, “ao final

do período colonial, pretos e pardos livres somavam praticamente 1/3 da população brasileira

(complementada por 1/3 de escravos e 1/3 de brancos)”46

.

Compondo boa parte da paisagem urbana em nosso país, verifica-se no Rio de janeiro,

como também em outras cidades brasileiras, a presença de grandes concentrações de escravos,

inseridos em vários setores da vida urbana. Segundo a estudiosa Marilene Rosa Nogueira as

Silva, do Centro de Estudos Históricos da UFRJ, “Tal era a liberdade de circulação dos

escravos na cidade, que a população livre vivia temerosa de uma rebelião negra, nos moldes

da rebelião dos malês na Bahia”47

e por isso, para melhor controlar a situação, “foram criadas

restrições legais e ideológicas, que atingiam não apenas o escravo, mas o negro de maneira

geral”48

.

Mesmo após a Independência do Brasil, a mão-de-obra escrava continuava existindo

no país. Apesar de o Brasil ter tido emancipação política com a Independência, a escravidão

durou ainda mais algumas décadas, uma vez que foi abolida, definitivamente, apenas em 1888

– quase no final do século XIX. Como afirma a historiadora Hebe Maria Mattos, “Desde a

independência, os ideais do liberalismo político, inscritos na Constituição de 1824, passaram a

afirmar a igualdade de todos os cidadãos brasileiros perante a lei. Apesar disso, a escravidão

(...) foi mantida legalmente em nome do direito de propriedade”49

. Pesava, assim, sobre o

Brasil a grande mácula de ter sido a última nação a ter abolido a escravidão no mundo.

45 Cf. Revista Nossa história, 2006, p. 138-139. 46 Cf. Revista Nossa história, 2005, ano 2, nº 19, p. 17. 47

Cf. Encarte especial da Ciência Hoje, 1988, suplemento vol. 8, nº 48, p. 15. 48 Cf. Encarte especial da Ciência Hoje, 1988, suplemento vol. 8, nº 48, p. 15. 49 Cf. Revista Nossa história, 2005, ano 2, nº 19, p. 16.

Page 39: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

39

A abolição definitiva da escravidão como nos esclarecem muitos historiadores não foi

um simples ato de bondade da elite política para com os negros escravizados. As constantes

fugas e revoltas de negros tornavam a escravidão insustentável. Várias foram as participações

ativas dos negros em movimentos revolucionários. A Conjuração dos Alfaiates, também

conhecida como Conjuração Baiana, que se deu em 1798, foi liderada por negros e mulatos e,

ao que consta, é considerada a primeira revolução social do Brasil. Somado a esse movimento

revolucionário, revoluções como a dos negros malês que se deu na Bahia em 1835, a

Balaiada, no Maranhão, e outras são exemplos da constante luta em prol da liberdade e de

direitos dos negros e mulatos.

Se por um lado a Lei Áurea dava, definitivamente, a liberdade que os negros tanto

almejaram e pela qual lutaram décadas a fio, por outro lado abandonava o negro à própria

sorte, uma vez que inúmeros deles após o fim da escravidão se viram sem reais condições de

se sustentar, dada a falta de emprego ou do emprego não-qualificado devido à falta de

capacitação profissional e ainda a falta de um lugar para moradia, e de alimentos e de

assistência médica – fato que os conduziu à mais pura miséria. Neste sentido, os então ex-

escravos estariam fadados a permanecerem marginalizados do sistema.

Vê-se assim com todos esses registros históricos que, embora o negro constituísse

maioria em nosso país no século XIX, a este estava reservado o não-lugar, em que não se

tinha direito algum; restava a esse homem apenas deveres, pois sua voz durante séculos foi

silenciada e oprimida na história. O negro – um homem praticamente invisível no campo

literário – fora apagado pelo sistema que o excluiu.

Page 40: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

40

3. IMAGENS DA ARGENTINA E DE SEU HOMEM: UM PROCESSO DE

CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

O papel social, histórico e cultural do gaúcho foi, sem dúvida, fundamental para a

formação dos países platinos com as características que os individualizam. Como salienta

Darcy Ribeiro, em As Américas e a civilização, os argentinos – como também os uruguaios –

apresentam diversas características comuns com os demais povos hispânicos “mas

singularizam-se dentre eles por uma fisionomia particular, decorrente da absorção de maiores

contingentes não-ibéricos, do seu assento ecológico em terras temperadas e do grau de

desenvolvimento econômico e social mais alto que alcançaram”.50

Integrantes dos povos transplantados das Américas, os argentinos – povos

transplantados do Sul –, segundo informações de Darcy Ribeiro,

surgem de correntes imigratórias europeias que só vieram ter à América

depois da independência. A terra já havia sido desbravada; os últimos índios,

encurralados nos terrenos mais ermos, estavam sendo dizimados. A conquista e o domínio dos vales e dos pampas, sua ocupação pelo gado e

pelo homem, a construção dos primeiros núcleos urbanos e a própria

independência política já estavam se completando igualmente. Fora obra dos

mestiços plasmados em dois séculos de interação ativa entre espanhóis desgarrados de suas matrizes e as comunidades indígenas em que se

incrustaram. Ou seja, de uma proto-etnia anterior que eles iriam suplantar e

suceder.51

Os mestiços, resultado do cruzamento de uma pequena parcela de pais europeus

conquistadores da terra com uma multiplicidade de mães indígenas, assumiam a forma de

ladino ou de gaúcho. Ao estabelecer a diferenciação entre os dois, Ribeiro nos informa que

eram considerados ladinos aqueles que, por viverem nos vilarejos ou se dedicarem

principalmente à lavoura ou ao artesanato, acabaram menos mestiçados e mais europeizados

em decorrência da constante incorporação de um número reduzido de espanhóis, que vinham

em busca de melhores condições de vida nessa região marginal. A formação cultural do ladino

50 RIBEIRO, 2007, p. 406. 51 RIBEIRO, 2007, p. 407.

Page 41: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

41

foi influenciada predominantemente pelo porto, que o colocava em contato com o mundo

externo, fato que o levou a se tornar cada vez mais exógeno.52

Por sua vez, os gaúchos eram os mestiços, resultantes do cruzamento de índias com

espanhóis. Habitavam os amplos espaços pastoris, dedicando-se ao gado que se multiplicava

prodigiosamente. Suas características biológicas originais foram conservadas pela endogamia

e, devido ao isolamento na campanha, as técnicas de subsistência, as formas de organização, a

visão de mundo, os hábitos e a língua plasmada foram conservados. Diferentemente do

ladino, cujo lócus de formação cultural predominante foi o porto, o gaúcho teve como

influência cultural a campanha, que o vinculava mais ao país e a sua atividade dedicada ao

pastoreio.

Como aponta Darcy Ribeiro, o gaúcho, como estrato subordinado, foi originalmente

livre, “mas depois submetido a crescentes compulsões que, primeiro, o engajam no sistema

global sob o domínio dos donos da terra como peão de seu padrinho, que era seu patrão no

trabalho e seu caudilho na guerra e, depois, o marginalizam e o fazem suceder pelo imigrante,

como força de trabalho básica.”53

E nesse processo, o historiador chama atenção para o fato

de o gaúcho não só se desfigurar como também acabar se espanholizando.

Em seu estudo sobre os gaúchos, Darcy Ribeiro nos informa que “Os primeiros

núcleos gaúchos rio-platenses têm a mesma origem do neoguarani, enquanto descendentes de

colonizadores vindos de Assunção. Crescem, junto com o gado, naquelas primeiras vilas

famélicas da área buenarense, servindo aos poucos reinóis e aos criollos ricos, orgulhosos de

sua nobreza de estirpe ou de branquidade (...)”.54

Os ladinos falavam principalmente o espanhol. Já os gaúchos, cuja dupla herança era o

guarani e o espanhol, falavam principalmente o guarani. Contudo, as sucessivas imigrações

acabam por espanholizar esses povos. Nesse processo, ressalta Darcy Ribeiro que o fato de os

52 Cf. RIBEIRO, 2007, p. 408. 53 RIBEIRO, 2007, p. 408. 54 RIBEIRO, 2007, p. 419.

Page 42: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

42

imigrantes europeus que vieram para as Américas terem saído da Europa antes da plena

definição de suas nacionalidades modernas, extraídas sobretudo de camadas rurais que

falavam dialetos muito diferenciados, contribuiu para a assimilação da língua falada por esses

imigrantes. Ressalta ainda Darcy Ribeiro que as “diferenciações internas, inclusive

linguísticas de cada grupo os compeliam à adoção de um idioma comum de comunicação que,

nas circunstâncias em que se encontravam, resultou ser o espanhol, antes que as línguas

europeias modernas de suas matrizes”55

, o que contribuiu para essa franca assimilação.

As ondas imigratórias para as Américas se deu de forma tão maciça56

que, em vez de

os imigrantes se incorporarem à etnia que estava em formação, se agauchando ou se

ladinizando, conforme seus hábitos rurais ou citadinos, estes formam uma etnia nacional

nova, predominantemente europeia.

Darcy Ribeiro atribui a espanholização linguística desses contingentes às novas ondas

de imigrantes, que apesar de terem sido predominantemente compostas de italianos,

trouxeram um número considerável de espanhóis.

Ainda relatado por Darcy Ribeiro, o gado de Buenos Aires constituía o bem público de

maior valor nas primeiras décadas. Segundo o historiador, “A região rio-platense e todo o seu

enorme Hinterland, descrita pelos descobridores como ‘terra de nenhum proveito’, emerge

para a civilização na segunda metade do século XVI, com a introdução do gado bovino”.57

Nesse período apenas se carneavam as vacas e os velhos bois. O couro era matéria-prima para

usos diversos; a iluminação provinha das velas de sebo; o boi de serviço servia para a lavoura

55 RIBEIRO, 2007, p. 409. 56 Como aponta Darcy Ribeiro, “A Argentina alcança a independência, em 1810, com cerca de 350 mil

habitantes, gaúchos e ladinos¸ havendo incorporado, já então, entre estes últimos uma parcela de europeus que

contribuíram para sua intensa europeização. Esses 350 mil neo-americanos, produzidos em todo um processo

secular de formação étnica, cresceriam para cerca de 1 milhão, em 1850, tanto por incremento vegetativo como, e principalmente, pela incorporação de imigrantes europeus. Daí em diante o processo de sucessão ecológica e

de transfiguração étnica se intensificaria cada vez mais. Sobre aquele milhão original se lançariam, no século

seguinte (1857-1950), 1,8 milhão de italianos, 1,3 milhão de espanhóis e cerca de meio milhão de gente de

outras extrações. Com essa incorporação maciça de imigrantes é que a população argentina pôde saltar a 4,8

milhões em 1900 e a 17 milhões em 1950.” (RIBEIRO, 2007, p. 426-427) 57 RIBEIRO, 2007, p. 414.

Page 43: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

43

como também era utilizado como meio de transporte terrestre; do leite se produzia o queijo e

outras comidas muito apreciadas.

Os animais eram encontrados em abundância na região, sendo suficientes para serem

distribuídos pelas estâncias, que eram esparsas. Os diversos rebanhos foram se multiplicando

ao longo dos anos, vivendo livres nos campos juntamente com cavalos e cães, igualmente

selvagens. Segundo dados, em meados do século XVII, os rebanhos bovinos somavam

milhões de cabeças, e seu desfrute era livre. Como informa Darcy Ribeiro, “Imensos rebanhos

enchiam os campos por todas as comarcas, desde o chaco paraguaio e o pampa argentino até

os campos uruguaios, então chamados as ‘vaquerías del mar’”.58

A promessa de fartura desse gado era tida como inesgotável. Com o gado, como

aponta o referido historiador, surge um novo homem: o gaúcho.

O gado alçado, que por muito tempo cresceu livre na campanha, constituindo a única

riqueza da região, aos poucos deixa de sê-lo. Com isso, as condições em que viviam os

gaúchos –os quais podiam percorrer livremente o campo, abatendo o “gado de ninguém”,

carneando para se alimentar e tirando o couro para vender ao pulpero da campanha ou ao

contrabandista – tornam-se cada vez mais difíceis.

Como aponta Darcy Ribeiro,

Aquela ‘mina’ de couro, de sebo e de carne que parecia inesgotável,

explorada desenfreadamente pelo homem e dizimada pelos cães selvagens

que se multiplicavam também pela campanha alimentando-se de bezerros, acaba por minguar. Em meados do século XVIII a diminuição do gado

cimarrón das antigas ‘vaquerías del mar’ preocupa já, seriamente, as

autoridades. Começam as providências para conduzir o restante às estâncias e para dar cabo dos cães selvagens e famintos que atacavam já as reses

eradas das estâncias e impediam a criação de ovelhas.59

Com a ameaça dos cães selvagens que, assim como o gado, se multiplicavam pela

campanha, dizimando o gado que vivia livre, por algum tempo, o gaúcho cumpre seu papel

58 RIBEIRO, 2007, p. 414. 59 RIBEIRO, 2007, p. 422.

Page 44: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

44

social de erradicar os cães selvagens e conduzir o gado às estâncias, papel que lhe assegura

um lugar na nova sociedade.

Cabendo a ele juntar o gado cimarrón, antes livre, que passa a ser propriedade de

pessoas que se apropriaram das antigas terras devolutas, o gaúcho separa as vacas que serviam

para cria e a ele é permitido carnear as demais.

Somado a isso, em 1820, como aponta Darcy Ribeiro, surge mais um obstáculo para o

gaúcho, uma vez que os saladeiros começam “a disputar os rebanhos e a impor disciplina ao

gaúcho que não poderia carnear uma rês onde lhe parecesse, para tirar o couro e comer um

assado, abandonando o restante. A carne se tornara a parte mais apreciada do gado.”60

Acostumado a uma dieta baseada em carne e chimarrão, tornava-se difícil impor ao

gaúcho que ele se abstivesse de seu principal alimento. Como ressalta Darcy Ribeiro, “A

reação autodefensiva de continuar carneando para comer – agora largando o couro que o

denunciaria – transforma o gaúcho em ‘ladrão e jogador, soez e bárbaro’ por fazer o que

sempre fizera”.61

As condições em que viviam os gaúchos tornam-se ainda mais difíceis com a redução

dos rebanhos de gado alçado. A entrada de brasileiros na disputa do gado e do couro e os

esforços da oligarquia rural e do patriciado em limitar o gaúcho à exploração das riquezas do

campo acentuam ainda mais as dificuldades que o gaúcho passa a enfrentar.

Tidos os gaúchos como uma “praga dos campos”, as autoridades citadinas em conluio

com os proprietários de terra tomam medidas para privá-los ainda mais. Ao decretar um

regime de vigilância que obrigava todo e qualquer indivíduo da campanha que não fosse

proprietário a colocar-se a serviço de um patrão sob o risco de ficar sujeito aos rigores da lei,

caso fosse surpreendido transitando livremente nos campos sem a devida documentação, os

gaúchos tornam-se ainda mais marginalizados do processo.

60 RIBEIRO, 2007, p. 422. 61 RIBEIRO, 2007, p. 422.

Page 45: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

45

Declarados como vadios e sujeitos à prisão por transitar sem a documentação exigida

então por lei ou sem ordem expressa de um juiz, esse novo sistema autoriza as autoridades a

ter poder sobre o outro, ditando os rumos que ao gaúcho competiria tomar.

Ao se efetivar esse novo regime de controle, um serviço policial é instaurado na

campanha a fim de caçar os gaúchos tidos como vagabundos, para que estes pudessem servir

às forças armadas na fronteira ou ainda para que se colocassem compulsoriamente a serviço

dos estancieiros.

Note-se que a apropriação das terras pelos proprietários de fazendas em conjunto com

as novas formas de coação tiram a função social do gaúcho, contribuindo para a sua

marginalização.

Como ressalta Darcy Ribeiro, “Só lhe restava, doravante, uma de suas funções sociais,

a de combatente, que continuará exercendo nas últimas montoneras62

que convulsionariam a

campanha, por décadas, exprimindo a oposição das populações interioranas à dominação e à

exploração portenha e montevideana”.63

Em um primeiro momento, a ordem oligárquico-latifundiária impôs o disciplinamento

dos gaúchos, por meio de variadas formas de compulsão, e depois a substituição da mão-de-

obra gaúcha pela do imigrante europeu, com o surgimento da economia de exportação de

cereais. Dando ao imigrante todas as oportunidades de trabalho, o sistema, que exclui o

gaúcho, acentua ainda mais a marginalização não só deste como também dos ladinos pobres.

Ressalta-se que o projeto que estava por trás de todo esse processo não só consistia em

importar uma mão-de-obra especializada para o trabalho como também objetivava o

embranquecimento da população tida como não civilizada, propondo-se nada menos que a

substituição de gaúchos e ladinos pobres por “gente de melhor qualidade”.

62 Tropas de gaúchos em armas a mando de um caudilho. 63 RIBEIRO, 2007, p. 423.

Page 46: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

46

É interessante destacar aqui o quão alienante foi esse projeto que marginalizou a

população local e enalteceu o estrangeiro, tirando do homem nativo todas as oportunidades,

que por sua vez foram dadas ao imigrante, para atender a uma proposta de substituição de

uma população por outra, dado que o estrangeiro europeu correspondia aos anseios da elite

intelectual.

O imigrante europeu, neste sentido, esteve muito associado ao progresso e à ideia de

civilização. Foi graças aos braços e aos recursos vindos de fora do país, implementando a

industrialização e a renovação tecnológica da agricultura, que em poucos anos os desertos

foram cortados por ferrovias, os portos foram equipados, frigoríficos criados, centrais

elétricas e fábricas foram instaladas e a lavoura foi gradativamente mecanizada, atendendo

assim ao projeto com que tanto sonhavam as elites criollas.

Para alcançar o objetivo, promulgou-se uma legislação que dava claras vantagens ao

imigrante. Nesse processo, o governo concentrou seu esforço em orientar uma parcela das

ondas imigratórias e os capitais vindos da Europa para o rio da Prata.

Ressalta ainda Darcy Ribeiro que a “melhor expressão do projeto do patriciado seria

dada pelas correntes políticas que alcançam o poder de Mitre, Sarmiento e Avallaneda, como

planejadores de uma nova política econômica.”64

Essa nova política dos governantes, conforme apontado por Ribeiro, seria efetivada

após 1880 por meio de procedimentos que se complementaram mutuamente, quais sejam:

o aproveitamento das imensas disponibilidades de terras fiscais para a venda

ou a outorga maciça na forma de grandes propriedades, que permitiram

alargar enormemente as bases do sistema de fazendas; pelo esforço de modernização reflexa, através do livre-comércio e da injeção de capitais

estrangeiros, principalmente ingleses, que possibilitaram a construção de

ferrovias, sistema de comunicação telegráfica, instalações portuárias, as quais instrumentaram a importação de uma economia especializada na

exportação de carnes e de cereais; [e] pela importação maciça de mão-de-

obra estrangeira.

64 RIBEIRO, 2007, p. 423.

Page 47: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

47

Tal política econômica, nacional e persistentemente conduzida em pouco tempo

transformou a sociedade rio-platense, assegurando-lhe um intenso desenvolvimento. No

entanto, instalou no exterior, por sua dependência de capitais e mercados europeus, o

comando dos destinos nacionais.

É válido ressaltar aqui a intencionalidade do projeto desses formuladores de políticas

públicas de refazer não só a cara como o corpo da nação, inspirados em ideais europeus,

propondo nada menos que a substituição da população do país por imigrantes, sobretudo

europeus. Assim, a marginalização do gaúcho se acentua ainda mais.

Somado a isso, como aponta Darcy Ribeiro, “Nas últimas décadas, porém, o patriciado

portenho e montevideano, vivendo já a outra oposição que contrapunha as antigas cepas

nativas às massas de imigrantes, mas composto, agora, mais de gringos que de criollos,

procura exprimir seu nacionalismo em nome de uma identificação com o gaúcho, ou seja,

precisamente com aquele que foi a principal vítima de sua expansão e domínio.”65

Os descendentes de imigrantes que atualmente compõem a quase totalidade da

população, uma vez que o gaúcho apenas sobrevive nas zonas mais ermas ou nas camadas

sociais mais pobres, não conseguiram incutir ainda sua marca à ideologia nacional. Segundo o

historiador, “os que ascendem procuram confundir-se na oligarquia patrícia, impregnando-se

de sua visão do mundo e de sua ideologia. Sua intelectualidade não plasmou, ainda, a imagem

da nação como fruto dos avós gringos, perdendo, a muito custo, o sentimento de inferioridade

em face do patriciado de velha extração.”66

Como aponta Darcy Ribeiro, “Da proto-etnia original que em suas duas formas

básicas, a ladina e a gaúcha, haviam alcançado características singulares (...), ficou apenas, no

Uruguai e na Argentina, uma nostalgia que desponta, às vezes, na auto-imagem nacional,

65 RIBEIRO, 2007, p. 424. 66 RIBEIRO, 2007, p. 424.

Page 48: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

48

como fonte de inspiração patriótica e de afirmação tradicionalista”67

. Nesse processo chama

atenção para o fato de os argentinos, de pura matriz estrangeira, dizerem “versos de Martín

Fierro ou [lerem] páginas de autores gauchescos, numa alienação típica de quem precisa

adotar avós alheios para reconhecer-se e aceitar-se68

”.69

67 RIBEIRO, 2007, p. 409. 68 Darcy Ribeiro chama ainda atenção para o fato de que “Essa incongruência ideológica, ainda mais nítida no

caso dos povos transplantados rio-platenses, é uma indicação de como está incompleto o seu processo de maturação étnico-nacional. Ela pode ser constatada não apenas no plano literário, mas também em muitos outros,

como o educacional, cujos textos, sobretudo da escola primária e média, estão impregnados da noção de uma

heroica ancestralidade comum gauchesca, passando por alto e não valorizando como fator de doutrinação e de

orgulho nacional os contingentes emigrantes afinal majoritários e decisivos na configuração das duas etnias

nacionais rio-platenses.” (RIBEIRO, 2007, p. 409) 69 RIBEIRO, 2007, p. 409.

Page 49: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

49

4. O IMIGRANTE COMO PROJETO DE CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE

A tendência humana de refutar tudo aquilo que confronta seus esquemas representacionais produz o recalcamento

da diferença do estranho, já que, para o eu, tudo que é

estranho é não-eu, ameaça e deve ser rechaçado. (Sigmund Freud)

Este mundo dividido em compartimentos, este mundo

cindido em dois, é habitado por espécies diferentes

(Frantz Fanon)

No século XIX, tanto na Argentina quanto no Brasil, muitos literatos processaram um

discurso no qual transformavam os habitantes nativos em massa indesejada e obstáculo maior

para o projeto de civilização no país. Vistos como bárbaros, era preciso erradicá-los para que

o país entrasse no concerto das nações ditas civilizadas.

Em Buenos Aires, após a queda de Rosas, novos teatros são construídos, e as ruas são

pavimentadas. Além disso, um conjunto de progressos técnicos invade a cidade, dando a ela

uma nova cara. Depois de 1850, a iluminação a óleo – ou, como aponta o historiador Halperin

Donghi em História da América Latina, as malcheirosas graxas animais – dão lugar à

iluminação a gás em Buenos Aires70

.

Como Donghi chama atenção, “os tempos não muito remotos em que as senhoras da

aristocracia de Buenos Aires descreviam [...] o estranho e maravilhoso objeto visto na

refinada capital brasileira, – um lavabo com canos e torneiras para a água quente e fria, – [...]

70 Cf. DONGHI, 1975, p. 151.

Page 50: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

50

já são agora algo definitivamente deixado para trás”71

. Novos meios de transporte aproximam

as cidades europeias, berço da civilização no século XIX.

A navegação oceânica que durante décadas foi feita por navios à vela dá lugar após

1850 a navios a vapor ao longo das mais importantes rotas americanas que o correio inglês

transportava. O tempo da navegação se reduz assim como os frequentes naufrágios que

traziam insegurança ao transporte: “de Portsmouth a Buenos Aires, gasta-se um mês”, como

destaca Donghi72

.

Somado à evolução dos meios de transporte, teatros e novos contatos culturais se

manifestam mediante inovações arquitetônicas. Segundo dados do referido historiador, “a

costa do Rio da Prata, nos arredores de Buenos Aires, cobre-se de vilas de duvidoso estilo

normando, enquanto – é o que Sarmiento escreve, com ar de importância – o estilo dórico

predomina em Zárate (uma aldeia nos arredores da capital argentina)”73

. Donghi enumera

ainda que em Santiago do Chile as novas casas senhoriais passam também por uma profunda

mudança, deixando de ser construídas em torno de um pátio e de um poço. Essas passam a ser

construídas com material importado: as casas “têm uma escada construída com madeira

importada da Europa, salões com teto pintado e profusão de mármores igualmente

importados”74

.

As cidades preparam-se para o progresso numa tentativa de se aproximarem de países

tidos como civilizados. Como bem aponta o historiador Donghi, “a modernização da

economia descarrega sobre as massas de trabalhadores do campo gravames de tal ordem que

não podem ser espontaneamente aceitos”75

. A modernização se dá também nas relações de

trabalho. O ritmo de trabalho deverá modificar-se radicalmente a fim de que a produtividade

da mão-de-obra aumente. Como nos chama a atenção o historiador, “as lamentações sobre a

71 DONGHI, 1975, p. 151. 72 DONGHI, 1975, p. 151. 73 DONGHI, 1975, p. 151. 74 DONGHI, 1975, p. 152. 75 DONGHI, 1975, p. 157.

Page 51: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

51

incurável preguiça do camponês da América espanhola, comuns a observadores estrangeiros e

a doutos expoentes locais dos novos regimes, documentam a presença de um problema

insolúvel”76

.

A partir de 1810, houve uma propensão de a imigração constar no primeiro plano de

todos os projetos de transformação econômica e social. Na segunda metade do século XIX,

essa tendência foi ainda mais forte. Segundo dados, “os Estados Unidos começaram a

fornecer um exemplo impressionante de quanto a imigração era capaz de modificar o ritmo de

desenvolvimento de um país”77

. Na América Latina, diferentemente dos Estados Unidos, a

imigração se deu de forma bastante distinta ao longo das diversas regiões. A imigração em

massa teve destaque apenas em algumas regiões, a saber: Argentina, Uruguai, Brasil central e

meridional. Contudo, as consequências do processo imigratório no período em questão ainda

eram muito incipientes. Nos demais países da América Latina, a expansão das cidades e o

desenvolvimento demográfico global não estavam vinculados à contribuição das correntes

imigratórias78

.

Segundo dados fornecidos por Donghi79

, “as províncias argentinas triplicaram a

população entre o início do século e a década compreendida entre 1865 e 1875 (1,8 milhão de

habitantes)”. O Brasil teve seu aumento demográfico com ritmo semelhante, contando com 10

milhões de habitantes.

Proclamada a Constituição federal, em 1853, inspirada por Juan Bautista Alberdi, um

político da geração de 1837, instaura-se um governo autoritário, que tem como objetivo

assegurar a ordem de modo a permitir ao capital e ao trabalhador europeus povoar e civilizar

o deserto argentino80

.

76 DONGHI, 1975, p. 157. 77 DONGHI, 1975, p. 158. 78 Cf. DONGHI, 1975, p. 159. 79 DONGHI, 1975, p. 159. 80 Cf. DONGHI, 1975, p. 174-175.

Page 52: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

52

Diferentemente do projeto romântico pensado no Segundo Reinado no Brasil, período

que compreende os anos 1840-1889, em que o índio fora transformado, no âmbito literário,

em símbolo nacional, sendo submetido a um processo radical de idealização, gaúchos e

mestiços constituem a população indesejada que precisa urgentemente desaparecer da

Argentina. É válido ressaltar aqui que, tanto no projeto romântico quanto no projeto que será

discutido neste capítulo, ocorre uma ação de extermínio da população. Contudo, o que difere

um projeto do outro é a não equivalência entre o que se praticava no plano concreto e o que se

enunciava na literatura. No projeto baseado na figura do índio, por exemplo, este era exaltado

na literatura, porém dizimado em grande número na história. Em contrapartida, o projeto

baseado na figura do imigrante vê a imigração, sobretudo europeia, como instrumento de

civilização, sendo considerada uma tarefa urgente para o processo civilizatório em questão.

No âmbito literário, mestiços e gaúchos são representados como inferiores e inadaptáveis à

civilização.

O projeto baseado na figura do imigrante foi bastante discutido e pode-se mesmo

observar que em diferentes momentos tentou-se implementá-lo no Brasil, mas na Argentina

ele foi efetivamente levado a cabo, concretizando-se após a eliminação da incômoda

população constituída por gaúchos e índios, os quais não encontravam lugar nos projetos de

nação dos pais fundadores, como Domingo Faustino Sarmiento e Juan Batista Alberdi.

Em Facundo, Sarmiento deixa clara a sua proposta de substituição da população

argentina pela europeia. Descrevendo o enorme hiato que separa os gaúchos do homem

considerado por ele civilizado, ou seja, do europeu, Sarmiento aponta o “espírito do pampa”

como o grande responsável pela manutenção do atraso de Buenos Aires, que, segundo suas

palavras, não fosse tal espírito já teria sido a Babilônia americana81

. Sua grande aspiração é

transformar a cidade na “mais gigantesca cidade de ambas as Américas”. E acrescenta:

81 SARMIENTO, 1996, p. 25.

Page 53: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

53

“Somente ela [Buenos Aires], na vasta extensão argentina, está em contato com as nações

europeias; somente ela explora as vantagens do comércio estrangeiro; somente ela tem o

poder das rendas”82

. Não lhe faltam palavras para deixar evidente que Sarmiento vê como

saída para o atraso a imigração europeia, em passagens como: “Em vão as províncias têm lhe

pedido que lhes deixe passar um pouco de civilização, de indústria e de povoamento

europeu”.83

Sarmiento em seu discurso presente em Facundo atribuirá a Rosas a responsabilidade

pela barbárie em que se encontra sua Argentina. Para ele, Rosas é o responsável por

desencaminhar o povo, devido ao que julga de poder brutal, “capaz de esterilizar, para si e

para as províncias, os dons que a natureza prodigalizou ao povo”84

. Os substantivos e

adjetivos utilizados por Sarmiento, ao criticar Rosas, apontam para o atraso que por ele é

condenado: “Buenos Aires, em lugar de mandar agora luzes, riqueza e prosperidade ao

interior, manda-lhe só grilhões, hordas exterminadoras e tiranetes subalternos”85

. Somado a

isso, a clara oposição “civilização versus barbárie” também se faz presente com sua seleção

vocabular: “luzes, riqueza e prosperidade” versus “grilhões, hordas exterminadoras e tiranetes

subalternos”. Desta forma, os grilhões, para além de prender os “condenados” – os bárbaros –,

condenam Buenos Aires ao retrocesso, e com isso Sarmiento se lamenta: “queríamos a

unidade na civilização e na liberdade, e nos deram a unidade na barbárie e na escravidão”86

.

Como nos aponta a professora Bella Jozef, em História da literatura hispano-

americana, “o gaúcho, contrário ao progresso civilizador, era pela manutenção dos antigos

costumes, e isso o condenava a desaparecer”87

. O gaúcho, rotulado como o elemento

inadaptável à civilização e ao progresso, era considerado contrário à nova ordem econômica e

82 SARMIENTO, 1996, p. 25. 83 SARMIENTO, 1996, p. 25, grifos meus. 84 SARMIENTO, 1996, p. 25. 85 SARMIENTO, 1996, p. 25, grifos meus. 86 SARMIENTO, 1996, p. 26. 87 JOZEF, 2005, p. 57.

Page 54: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

54

social representada pelo unitarismo portenho. Numa atitude de total desrespeito aos valores

humanos e solidariedade com o Outro, o gaúcho é arrancado de seu lar e exige-se dele o

alistamento, “exilando-o nos fortins remotos disseminados pelo deserto, sem direito algum.

Não lhe reconheciam nenhuma aptidão ou qualidade positiva, substituindo-o pelo imigrante

europeu”88

.

Em Facundo, constata-se um forte acento conservador, defendendo-se a cultura urbana

em uma perspectiva predominantemente europeia. Seu grande projeto é o de implantar a

civilização no país e acabar com o que identifica como barbárie autóctone. Este intelectual

assimila acriticamente tudo que acredita relacionar-se ao progresso de seu país, sendo

contrário ao grande mal que assola a Argentina – o homem rural (o gaúcho). Para ele, a cidade

é o centro da civilização argentina, e o homem branco, a raça inclinada à civilização, dotada

de talento e dos mais belos instintos do progresso. Segundo Sarmiento,

O homem da cidade veste trajes europeus, vive a vida civilizada tal como a

conhecemos em todas as partes; ali estão as leis, as idéias de progresso, os

meios de instrução, alguma organização municipal, o governo regular, etc. Deixando-se o ambiente urbano, tudo muda de figura: o homem do campo

usa outra roupa, que chamarei de americana, por ser comum a todos os

povos; seus hábitos de vida tão diversos; suas necessidades, peculiares e

limitadas. Parecem duas sociedades diferentes, dois povos estranhos um ao outro [...].

89

Sobre o gaúcho, como visto, é lançado um olhar exótico, sendo ele encarado como o

Outro90

, ou seja, um estrangeiro, pessoa desconhecida que não pertence à mesma comunidade

prestigiada do grupo branco em questão.

Um olhar para o caso brasileiro nos faz perceber uma grande aproximação do

discurso utilizado para se falar sobre o gaúcho argentino descrito por Sarmiento ao que se

88 JOZEF, 2005, p. 57. 89 SARMIENTO, 1996, p. 32. 90 Conforme aponta Hobsbawm (2002, p. 63), “[...] não basta lembrar a experiência universal dos seres humanos

que, pertencendo a grupos, reconhecem-se mutuamente como membros de coletividades e comunidades e

portanto reconhecem os outros como estrangeiros. O problema diante de nós deriva do fato de que a nação

moderna, seja um Estado ou um corpo de pessoas que aspiram formar um Estado, diferem em tamanho, escala e

natureza das reais comunidades com as quais os seres humanos se identificaram através da história, e colocam

demandas muito diferentes para estes”. (grifo meu)

Page 55: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

55

usou para construir a figura do personagem Jeca Tatu, quando este tem sua identidade

cristalizada inicialmente pelo escritor Monteiro Lobato, em seu livro de contos intitulado

Urupês, no qual descreve o personagem como um “funesto parasita da terra [...], espécie de

homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra

das zonas fronteiriças”91

. De forma muito semelhante, Sarmiento, paradigma da elite letrada,

afirma que:

A vida do campo [...] desenvolveu no gaúcho as faculdades físicas sem

nenhuma das da inteligência [...]. Sem nenhuma instrução e também sem

necessitá-la, sem meios de subsistência como sem necessidades, é feliz em meio a sua pobreza e suas privações, que não são tais para ele, pois nunca

conheceu alegrias maiores nem expandiu mais os seus desejos. De maneira

que, se a dissolução da sociedade radica-se profundamente na barbárie, pela

impossibilidade e inutilidade da educação moral e intelectual, não deixa, por outro lado, de ter seus atrativos. O gaúcho não trabalha; o alimento e o

vestuário, encontra-os preparados em casa; um e outro lhe proporcionam o

seu gado, se é proprietário; a casa do patrão ou do parente, se nada possui.92

No fragmento em questão, Sarmiento coloca-se em uma posição de conhecedor das

aspirações do Outro – o gaúcho –, afirmando que este não “expandiu mais os seus desejos”,

sendo assim um indivíduo limitado. Segundo ele, o gaúcho é feliz em meio a sua pobreza e

suas privações por desconhecer a civilização. Sendo o gaúcho um bárbaro, não necessitaria de

quase nenhum dos aparatos típicos da civilização.

Vê-se, assim, que a figura dele é construída sob um olhar ex-ótico – fora de ótica –

que diminui sua importância. Por ser tido como fraco e inerte, este pode ser dominado pelo

“homem dito civilizado”. Note-se que tal discurso autoriza o Eu – homem branco – a ditar

regras e normas, uma vez que o gaúcho supostamente as desconhece e também não possui leis

próprias. Sua identidade é uma construção que o homem branco produziu. Além disso, o

discurso utilizado por Sarmiento é fatalista e determinista; o problema sócio-político-

econômico do gaúcho é atribuído ao seu destino, já que a vida no campo lhe reservou esse

fim.

91 LOBATO, 2004, p. 161. 92 SARMIENTO, 1996, p. 39.

Page 56: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

56

Assim como Sarmiento, Monteiro Lobato, no contexto brasileiro, constrói a imagem

do Jeca Tatu93

, personagem que representa o caboclo no Brasil, diminuindo sua importância.

O personagem Jeca, conforme citado anteriormente, é apresentado em “Velha Praga” como

um funesto parasita da terra, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à

civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças.94

Jeca, figura de

um homem do campo, é um bárbaro, não produz nada e é negativo, como o próprio

significado que os termos parasita e funesto nos trazem, não trabalha, vive à custa alheia e,

somado a seu estado de dependência, é nocivo. Vivendo na “penumbra da civilização”, dado

que ele é de uma zona fronteiriça, o Jeca fica à parte de todos os acontecimentos e, em

decorrência disto, desconhece inteiramente direitos e deveres, não tendo assim cidadania. Em

passagem do “Urupês”, Lobato diz que:

Quando Pedro I lança aos ecos o seu grito histórico e o país desperta

estrovinhado à crise duma mudança de dono, o caboclo ergue-se, espia e

acocora-se de novo. Pelo 13 de maio, mal esvoaça o florido decreto da Princesa e o negro exausto

larga num uf! o cabo da enxada, o caboclo olha, coça a cabeça, ’magina e

deixa que do velho mundo venha quem nele pegue de novo.

A 15 de novembro, troca-se um trono vitalício pela cadeira quadrienal. O país bestifica-se ante o inopinado da mudança. O caboclo não dá pela coisa.

Vem Floriano; estouram as granadas de Custódio; Gumercindo bate às

portas de Roma; Incitátus derranca o país. O caboclo continua de cócoras, a modorrar...

Nada o esperta. Nenhuma ferrotoada o põe de pé. Social, como

individualmente, em todos os atos da vida, Jeca, antes de agir, acocora-se.95

Como visto, Jeca Tatu é representado como uma pessoa alienada diante das grandes

mudanças nacionais e, ao presenciar grandes feitos, “acocora-se”.96

O comportamento do

personagem é sempre de um ser apático, indolente, sem iniciativa ou sem consciência do seu

93 A imagem do Jeca Tatu é assim construída em Urupês, obra escrita no período de transição entre os séculos

XIX e XX, e publicada no século XX. 94 A imagem do Jeca Tatu como apático, de homem que não trabalha, pode ser visualizada no anexo VI ao final

desta tese. Perceba-se que o homem na referida ilustração está inerte, com sua enxada no chão – mostrando

claramente a situação de inércia do homem rural. Somado a isso, veja-se que, ao fundo da paisagem, pode ser vista uma casinha de sapê, o que indica ser este um espaço mais precário. 95 LOBATO, 2004, p. 167. 96

A imagem do caboclo de cócoras, vide anexo V ao final desta tese, é muito bem representada no famoso traço

de Belmonte. Neste, a figura do caboclo aparece apática, de cócoras e com uma palha na boca – imagem do Jeca

Tatu constantemente traçada por Monteiro Lobato em início do século XX.

Page 57: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

57

papel. O Jeca, devido à sua baixa ou nenhuma escolaridade, é um ser ausente de consciência

política. Lobato acrescenta:

Vota. Não sabe em quem, mas vota. [...]

O sentimento de pátria lhe é desconhecido. Não tem sequer a noção do país

em que vive. Sabe que o mundo é grande, que há sempre terras para diante,

que muito longe está a Corte com os graúdos e mais distante ainda a Bahia, donde vêm baianos pernósticos e cocos.

Perguntem ao Jeca quem é o presidente da República;

--“O homem que manda em nós tudo?”.97

Segundo palavras de Lobato, “a verdade nua manda dizer que entre as raças de

variado matiz, formadoras da nacionalidade e metidas entre o estrangeiro recente e o

aborígine de tabuinha no beiço, uma existe a vegetar de cócoras, incapaz de evolução,

impenetrável ao progresso”98

. Há, dessa forma, uma distância social que separa o homem da

cidade – aristocracia e oligarquia – do homem do campo – Jeca Tatu e aí também o gaúcho,

na Argentina.

Cabe também apontar que a crítica do autor é dirigida às raças de variado matiz,

leia-se ao caboclo – produto da mestiçagem do branco com o índio. Ao referir-se à posição da

elite letrada que protagonizava o processo de construção da identidade nacional, em seu Terra

Ignota99

, Luiz Costa Lima afirma que para essa elite a raça superior (branca) e a inferior

(negra) se degradam na mestiçagem, sendo inquestionável o caráter negativo dos

cruzamentos, dado que o mestiço traz diminuída a capacidade intelectual do ascendente

superior e restrita a capacidade física do ascendente inferior – visão esta muito criticada pelo

autor.

Ainda no artigo “Urupês”, Lobato afirmará que Peri, herói criado por José de

Alencar em O guarani, está morto. Esse personagem é apresentado como “incomparável

idealização dum homem natural como o sonhava Rousseau”,100

ou seja, o bom selvagem; é,

97 LOBATO, 2004, p. 172. 98 LOBATO, 2004, p. 167, grifo meu. 99 Cf. LIMA, 1997, p. 39-49. 100 LOBATO, 2004, p. 165, grifo meu.

Page 58: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

58

como ele mesmo afirma, o “protótipo de tantas perfeições humanas”, estando, no romance,

ombro a ombro com altos tipos civilizados. Em contrapartida, tem-se o Jeca – “um selvagem

real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma

palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci”.101

Vê-se que Lobato contrapõe os dois

personagens. Enquanto Peri era um herói forte, bravo e guerreiro, Jeca é fraco e apático.

Lobato prossegue sua fala de forma bem irônica. Retifica sua afirmação anterior – a de que

havia morrido –, dizendo que, na verdade, Peri não morreu, mas sim evoluiu, crismou-se do

que chama de “caboclismo”: “O cocar de penas de arara passou a chapéu de palha rebatido à

testa; o ocara virou rancho de sapé: o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje

espingarda trouxada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a

camisa aberta ao peito”102

. Como visto, Lobato apresenta o personagem Jeca Tatu como uma

caricatura. Ao compará-lo ao índio romântico, recheia seu texto de ironia. O que está em jogo

é a construção de identidade, que não pode ser pensada com o personagem em questão, o qual

é o “’Ai Jesus!’ nacional”. Jeca Tatu é um “piraquara do Paraíba”, descrito como

“maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características da espécie”. Note-se

que esse personagem funciona como metonímia de sua espécie, ou seja, é a própria

representação do mestiço.

O discurso utilizado por Monteiro Lobato, como todo e qualquer discurso, não é

inocente; é ideológico e, consequentemente, político. A figura do Jeca Tatu é apresentada a

partir de uma ótica que tem como objetivo dominar. O Outro é a representação que o Eu

construiu, dado que, parafraseando Karl Marx em O dezoito brumário de Luís Bonaparte, eles

não podem representar a si mesmos; devem ser representados. Como aponta Edward Said em

Orientalismo, o orientalismo, leia-se discurso,

não apenas cria como mantém; ele é, em vez de expressar, uma certa vontade

ou intenção de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até

101 LOBATO, 2004, p. 165, grifos meus. 102 LOBATO, 2004, p. 166.

Page 59: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

59

incorporar, aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo

e novo); é, acima de tudo, um discurso que não está de maneira alguma em

relação direta, correspondente, ao poder político em si mesmo, mas que

antes é produzido e existe em um intercâmbio desigual com vários tipos de poder.

103

Jeca Tatu não se representa, pois não tem voz. Lobato acrescenta:

Ei-lo que vem falar ao patrão. Entrou, saudou. Seu primeiro movimento após

prender entre os lábios a palha de milho, sacar o rolete de fumo e disparar a cusparada d’esguicho, é sentar-se jeitosamente sobre os calcanhares. Só

então destrava a língua e a inteligência.[...]

De pé ou sentado, as idéias se lhe entramam, a língua emperra e não há de

dizer coisa com coisa.104

Como visto, a língua falada pelo personagem é incompreensível, não fala “coisa

com coisa”; é, assim, um atabalhoado. Tem-se aí mais um fator que ratifica sua inferioridade

em relação ao homem branco, representado pela figura do patrão, aquele que possui capital

econômico, social e cultural. Como bem questiona Eric Hobsbawm, em Nações e

nacionalismos desde 1780, “O que dizer da linguagem? Não será a verdadeira essência

daquilo que distingue um povo de outro, ‘nós’ de ‘eles’, seres humanos reais dos bárbaros que

não podem falar uma língua genuína mas apenas proferem ruídos incompreensíveis?”.105

O

que pretende a elite brasileira representada pelo discurso de Lobato é também anular a voz

dos grupos subalternos, os quais, devido à sua falta de instrução, leia-se letramento, não

concatenam de forma eficiente as ideias, não conseguindo balbuciar mais que palavras

desconexas.

Segundo Lobato, Jeca quase sempre tem um comportamento inerte. De noite,

acocora-se em frente ao fogo para se esquentar e tem seu gesto imitado pela mulher e prole,

uma vez que sua constante falta de iniciativa o leva a agir sem nenhuma iniciativa; quase tudo

que faz é previsível, como, por exemplo, o que transporta consigo – “Quando compareceu às

feiras, todo o mundo logo adivinha o que ele traz: sempre coisas que a natureza derrama pelo

mato e ao homem só custa o gesto de espichar a mão e colher [...]. / Seu grande cuidado é

103 SAID, 1990, p. 24. 104 LOBATO, 2004, p. 168. 105 HOBSBAWM, 2002, p. 68.

Page 60: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

60

espremer todas as consequências da lei do menor esforço [...]”.106

Assim, Jeca Tatu não tem

ganância, é uma pessoa acomodada – o que impera em sua vida é a “lei do menor esforço”.

Em “Urupês”, Lobato apresenta aspectos das condições que apontam para a situação

de miséria em que o Jeca se encontra. A falta de mobília ou a presença deficitária desta

ratificam a condição do personagem:

Começa na morada. Sua casa de sapé e lama faz sorrir aos bichos que moram

em toca e gargalhar ao João-de-barro. Pura biboca de bosquímano. Mobília,

nenhuma. A cama é uma espipada esteira de peri posta sobre o chão batido. Às vezes se dá ao luxo de um banquinho de três pernas – para os hóspedes.

Três pernas permitem equilíbrio; inútil, portanto, meter a quarta, o que o

obrigaria a nivelar o chão. Para que assentos, se a natureza os dotou de

sólidos, rachados calcanhares sobre os quais se sentam? Nenhum talher. Não é a munheca um talher completo – colher, garfo e faca a

um tempo?

No mais, umas cuias, gamelinhas, um pote esbeiçado, a pichorra e a panela de feijão.

Nada de baús. A roupa, guarda-a no corpo. Só tem dois parelhos; um traz no

uso e outro na lavagem.

Os mantimentos apaiola nos cantos da casa. [...] Seus remotos avós não gozaram maiores comunidades. Seus netos não

meterão quarta perna ao banco. Para quê? Vive-se bem sem isso.107

Processo semelhante pode ser visto em Facundo, quando Sarmiento compara a

colônia alemã ou escocesa do sul de Buenos Aires com a vila que se forma no interior. No

primeiro espaço, o autor nos apresenta um lugar com presença de casas pintadas, fachadas

limpas. A mobília utilizada, segundo Sarmiento, é simples porém completa. Em contrapartida,

a vila nacional é “o reverso indigno dessa medalha”. A condição de miséria por ele

apresentada é ilustrada com a presença de crianças sujas e cobertas de farrapos. Para

Sarmiento, sujeira e pobreza estão em todas as partes no interior. Nesse mesmo espaço, é

possível encontrar “homens caídos no chão na mais completa inação”. Assim como o Jeca que

se acocora, o homem do interior (gaúcho) é representado como aquele que vive na mais

completa inércia. Quanto ao mobiliário, a precariedade também se faz presente – “uma

106 LOBATO, 2004, p. 168. 107 LOBATO, 2004, p. 168-169.

Page 61: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

61

mesinha e tamboretes como único mobiliário; e, como habitação, ranchos miseráveis cujo

aspecto geral da barbárie e de incúria os fazem notáveis”.108

Estabelecendo-se uma comparação dos meios de subsistência do Jeca Tatu e do

gaúcho, percebe-se que tanto um quanto o outro são representados como seres que vivem em

meio à pobreza. Ambos não têm instrução, não trabalham, vivem à custa de terceiros. Eles

não possuem e tampouco necessitam de maiores meios para sua subsistência. Assim como o

Jeca, o gaúcho é alienado diante das grandes transformações nacionais e permanece

indiferente às mudanças, uma vez que não possui bens nem instrução, tendo suas necessidades

peculiares e limitadas. A falta de instrução do Jeca leva-o a acreditar em superstições. O

personagem, por desconhecer a medicina, trata de problemas de saúde com crendices. Lobato

escreve:

A sua medicina corre parelhas com o civismo e a mobília – em qualidade.

[...]

Doenças haja que remédios não faltam. Para bronquite, é um porrete cuspir o doente na boca de um peixe vivo e

saltá-lo: o mal se vai com o peixe água abaixo...

Pra “quebranto nos ossos”, já não é tão simples a medicação. Tomam-se três

contas de rosário, três galhos de alecrim, três limas de bico, três iscas de palma benta, três raminhos de arruda, três ovos de pata preta (com casca;

sem casca desanda) e um saquinho de picumã; mete-se tudo numa gamela

d’água e banha-se naquilo o doente, fazendo-o tragar três goles da zurrapa. É infalível!

109

Processo análogo se dá em Facundo. A ausência de instrução se reflete diretamente

na religião do camponês. Longe de constituir uma religião, o gaúcho crê numa grosseira

superstição: “O cristianismo existe, como idioma espanhol, numa espécie de tradição que se

perpetua, mas corrompido, encarnado em superstições grosseiras, sem instrução, sem culto e

sem convicções”.110

108 Cf. SARMIENTO, 1996, p. 30. 109 LOBATO, 2004, p. 173-174. 110 SARMIENTO, 1996, p. 37.

Page 62: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

62

Os Jecas, no imaginário de Monteiro Lobato, não possuem entre eles ninguém que

se destaque. Todos são iguais, não há particularidades. Vê-se que, em nenhum momento, as

diferenças são respeitadas. O responsável por curar doenças não passa de um homem ébrio:

Quem aplica as mezinhas é o “curador”, um Eusébio Macário de pé no chão

e cérebro trancado como moita de taquaruçu. O veículo usual das drogas é

sempre a pinga – meio honesto de render homenagem à deusa Cachaça, divindade que entre eles ainda não encontrou heréticos.

111

Para Lobato, “[a] idéia de Deus e dos santos torna-se jeco-cêntrica”; e chama

atenção para o fatalismo: “Se tudo movem cordéis lá de cima, para que lutar, reagir? Deus

quis. A maior catástrofe é recebida como esta exclamação, muito parenta do ‘Allah Kébir’ do

beduíno”.112

Tal como Sarmiento, Monteiro Lobato apontará o fatalismo como determinante

no processo, uma vez que, para ele, a vida no campo lhe reservou esse fim. O Jeca aceita os

acontecimentos de forma bastante pacífica, pois é tido como um ser acomodado.

Vista a descrição que Lobato faz do Jeca, é possível defini-lo como um preguiçoso e

parasita. Esse, ainda, em vez de produzir, destrói a propriedade dos outros. No “Prefácio da 2ª

edição de Urupês”, Lobato nos informa que é de responsabilidade do Jeca a queima do mato

alheio: “Há o fogo do Teixerinha, o fogo do Maneta, o fogo do Jeca...”.113

E ainda:

É de vê-lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca de

“agregado”; nômade por força de vagos atavismos, não se liga à terra, como o campônio europeu “agrega-se” tal qual o “sarcopte”, pelo tempo

necessário à completa sucção da seiva convizinha; feito o que, salta para

diante com a mesma bagagem com que ali chegou.114

Como visto, o Jeca “arma sua arapuca de ‘agregado’”. Note-se que ao Jeca é

atribuída mais uma condição, a de agregado. Segundo a edição de 2000 do dicionário Aurélio,

Aurélio Buarque de Holanda define agregado, entre as várias significações para o termo,

como “aquele que vive em uma fazenda ou sítio, prestando serviços avulsos, sem ser

propriamente um empregado”. Sendo assim, o Jeca não se fixa em um determinado lugar, ao

111 LOBATO, 2004, p. 173. 112 LOBATO, 2004, p. 175. 113 LOBATO, 2004, p. 158, grifos meus. 114 LOBATO, 2004, p. 161.

Page 63: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

63

contrário do campônio europeu, que se liga à terra. Vê-se na fala de Lobato claramente a

valorização do europeu, desde a referência a Peri, que, embora seja um personagem

pretensamente brasileiro, tem seus traços próximos do cavalheiro medieval.

Só resta ao homem “civilizado”, “tocar” o Jeca, para utilizar expressão do próprio

Monteiro Lobato: “Não há recurso legal contra ele. A única pena possível, barata e fácil e já

estabelecida como praxe, é ‘tocá-lo’”.115

Conduz-se o Jeca como quem se desfaz de um

animal importuno.

4. 1. Imigração: uma saída para o atraso do país

A solução proposta para o país a fim de relativizar esse quadro era a de importar

uma população “civilizada” que pudesse trazer o progresso que o país tanto esperava. O papel

da imigração não se limitava a fornecer mão-de-obra para uma economia em expansão, mas

se inseria em um contexto mais amplo no qual o objetivo maior era o de incorporar às

sociedades argentina e brasileira uma população que se fazia ideal, ou seja, um povo

essencialmente branco. Propõe-se a substituição da população com vista a uma

homogeneização – criação de uma raça pura. O objetivo almejado é o embranquecimento.

O projeto baseado nos imigrantes foi, sem dúvida, muito radical, pois se calcava na

substituição da população. Esses vêm para promover a limpeza e substituir a mão-de-obra

escrava nos latifúndios, para só assim poder inserir o país no concerto das nações civilizadas.

115 LOBATO, 2004, p. 164.

Page 64: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

64

A elite intelectual via na imigração europeia a possibilidade de implantação de novos hábitos

e comportamentos.

As elites intelectuais tanto no Brasil quanto na Argentina acreditavam que todo o

esforço da transformação de seu país seria inútil se não mudassem seu quadro populacional,

atingindo a raiz do problema, que estava associada à própria constituição da população

autóctone, dado que essas pessoas eram demasiado atrasadas e, desta forma, não seria

possível construir uma nação com o homem nativo, considerado incapaz, inferior, resistente à

civilização e ao progresso.

Como presidente, Domingo Faustino Sarmiento, que governou seu país de 1868 a

1874, adotou uma política liberal para a imigração estrangeira. Na Argentina, houve uma

política oficial de incentivo à imigração, processo que também ocorreu no Brasil, porém não

de forma oficial. O governo brasileiro, conforme aponta o historiador Rodrigo Elias, “tomou

parte na imigração europeia, embora sem uma política definida sobre a questão”.116

Vários foram os motivos – sendo estes secundários – que levaram o governo

brasileiro e o argentino a incentivar a imigração, além do de ordem racial. Conforme aponta

Lucio Kreutz discorrendo sobre o caso brasileiro, uma vez proclamada a independência do

Brasil, a discussão de um projeto de nação tornou-se mais intensa. O rápido desenvolvimento

dos Estados Unidos, que foi em grande parte atribuído à imigração, começou a ser

considerado um exemplo a ser seguido. Além disso, a imigração começou a ser vista como

forma de garantir a ocupação do espaço geográfico, especialmente na região sul, o que

evitaria o constante conflito que ocorria na fronteira com os países do Prata.117

Como se pode

constatar, a imigração em meados do século XIX atende a várias necessidades, sendo bastante

interessante para o país em vários sentidos.

116 Revista Nossa História, ano 2, nº 24, 2005, p. 16. 117 KREUTZ, 2000, p. 349.

Page 65: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

65

É válido destacar que a imigração, como ressalta Rodrigo Elias, estava na pauta dos

intelectuais e políticos do país desde a época da independência118

, em 1822. O historiador

elenca três razões que motivaram a imigração: “ocupação do território; necessidade de

soldados para garantir a posse do país; e o estímulo ao trabalho livre, considerado superior ao

escravo”.119

Contudo, a iniciativa de trazer trabalhadores livres da Europa no início do século

XIX não prosperou, uma vez que o tráfico negreiro era um excelente negócio para

agricultores e comerciantes brasileiros. De acordo com o historiador Francisco de Assis

Silva,120

a Inglaterra, berço da Revolução industrial, interessada em transformar o negro em

consumidor dos produtos industrializados em suas fábricas, via na abolição da escravatura

uma possibilidade de ampliar o mercado consumidor. Os ingleses passaram, assim, a exigir

tanto do Brasil quanto de outros países a extinção do tráfico. Promulgada a Lei Eusébio de

Queirós121

, em 4 de setembro de 1850, que extinguia o tráfico negreiro, a crescente lavoura

cafeeira122

deparou-se com um sério problema de mão-de-obra em consequência da sensível

queda na oferta de escravos africanos. Como mesmo aponta Rodrigo Elias, “apenas na

segunda metade do século XIX, com a iminente extinção da escravatura, o trabalho livre

como motor da produção brasileira passou a ser seriamente considerado”.123

A partir de meados do século XIX, a elite do país desejou e promoveu a vinda dos

europeus através da imigração subsidiada. Em 1847, três anos antes de ser decretada a Lei de

118

Segundo o historiador Francisco de Assis Silva, “antes mesmo da independência ocorreram tentativas oficiais

de fixar o trabalhador estrangeiro em terras brasileiras. Tanto o governo de D. João VI como o de D. Pedro I

financiaram a vinda de europeus, que foram distribuídos em pequenas propriedades onde se formaram colônias

de imigrantes” (SILVA, 1992, p. 168-169, grifos no original). 119 Revista Nossa História, ano 2, nº 24, 2005, p. 14. 120 SILVA, 1992, p. 167-168. 121 “O Governo imperial [...] elaborou um projeto de lei, apresentado pelo ministro da Justiça Eusébio de

Queirós, ao Parlamento, visando à adoção de medidas mais eficazes para a extinção do tráfico negreiro. O

projeto [...] extinguia o tráfico determinando que: ‘Artigo 3º - são autores do crime de importação, ou de

tentativa dessa importação, o dono, o capitão ou mestre, o piloto e o contramestre da embarcação, e o sobrecarga.

São cúmplices a equipagem, e os que coadjuvarem o desembarque de escravos no território brasileiro de que concorrerem para ocultar ao conhecimento da autoridade, ou para os subtrair à apreensão no mar, ou em ato de

desembarque sendo perseguida’” (cf. http://www.multirio.rj.gov.br/historia/modulo02/queiros.html). 122 A expansão da lavoura cafeeira no Brasil decorreu essencialmente do aumento do consumo nos mercados da

Europa e dos Estados Unidos, que se tornaram os principais compradores do produto brasileiro, ainda no século

XIX. (Cf. SILVA, 1992, p.166). 123 Revista Nossa História, ano 2, nº 24, 2005, p. 14.

Page 66: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

66

Terras124

(1850) e da extinção do tráfico negreiro, o senador paulista Nicolau Pereira de

Campos Vergueiro, primeiro fazendeiro de café a utilizar imigrantes europeus em sua lavoura,

iniciou o sistema de parceria – um novo sistema de imigração.125

Segundo informações do

historiador Francisco de Assis Silva, em 1847, “Campos Vergueiro, financiado pelo governo,

introduziu 364 famílias de alemães e suíços em sua fazenda em Ibicaba, interior de São

Paulo”.126

Como aponta este historiador, no Brasil, “os imigrantes eram atraídos pelos agentes

da Vergueiro & Cia. através de propostas irrecusáveis”.127

Os agentes prometiam que cada

família de imigrantes receberia, ao chegar ao Brasil, uma quantidade de pés de café que

variava conforme a capacidade que teriam de cultivá-los. Além disso, os imigrantes, segundo

a proposta, teriam o direito de cultivar os gêneros necessários ao seu sustento em áreas que

seriam cedidas pelo proprietário das terras. Havendo excedente dos gêneros produzidos, aos

imigrantes seria dada a possibilidade de vendê-los, desde que repassassem ao fazendeiro a

metade do resultado da venda. Pelo contrato assinado entre as partes, os fazendeiros se

obrigavam a oferecer a cada família a metade do lucro líquido obtido com a venda do café por

ela cultivado. Contudo, a realidade era bem diferente da que constava do contrato, dado que

os fazendeiros cobravam 6% de juros ao ano sobre a verba adiantada para os custos da

viagem, instalação dos imigrantes no Brasil e primeiras despesas dos colonos. Como relata

Francisco de Assis Silva,

o pagamento dos empréstimos e dos juros consumia anualmente a metade do

que os imigrantes lucravam. Presos a diferentes obrigações como, por exemplo,

comprar no armazém da fazenda mercadorias com preços muito acima do valor de mercado, os colonos eram obrigados a permanecer na fazenda, de onde só

podiam sair depois de quitadas as dívidas e, mesmo assim, após comunicar por

escrito ao fazendeiro a intenção de deixar a terra.128

124 “Nesta lei ficava estabelecido que as terras públicas só poderiam ser adquiridas através da compra. Anulavam-se assim as concessões feitas pelo governo aos imigrantes. Estava configurado o fim do colonato”

(SILVA, 1992, p. 169). 125 SILVA, 1992, p. 169. 126 SILVA, 1992, p. 169. 127 SILVA, 1992, p. 169. 128 SILVA, 1992, p. 170.

Page 67: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

67

Somado a isso, os imigrantes eram maltratados pela elite agrária, acostumada ao regime

escravista a que os negros eram submetidos. Com isso, o descontentamento aumentava,

tornando-se geral, e a ideia de rebelião começou a ser difundida pelas fazendas de São Paulo.

Frustrados, os colonos rebelaram-se em 1857. Consequentemente, o sistema de parceria

fracassou129

.

Movidos pela oferta de oportunidades de trabalho, sonho da terra, expectativa de

melhores condições de vida, os imigrantes europeus deslocaram-se em massa para a

Argentina130

e para o Brasil. Na Argentina, a imigração foi mais representativa na década de

1880, quando o fluxo imigratório chega a níveis muito elevados.131

Darcy Ribeiro aponta que,

ao final do século XIX, a Argentina fervilhava de imigrantes, principalmente italianos e

espanhóis, mas também para lá migraram alemães, poloneses e outros. Conforme observa o

historiador, “essa onda imigratória se desmorona sobre os estratos demográficos originais,

como uma mole humana que os soterra, passando a imprimir suas próprias características à

fisionomia da nação”.132

Segundo dados de Ribeiro, com a incorporação maciça desses

imigrantes, a população argentina saltou de 4,8 milhões em 1900 a 17 milhões em 1950.133

No Brasil, como aponta Lúcio Kreutz, o fluxo imigratório mais intenso data de 1890,

quando o número de imigração chega a 1.200.000 pessoas.134

Segundo Benchimol,135 entre

1872 e 1890, a população do Rio de Janeiro duplicou, passando de 274.972 habitantes a

522.651 habitantes. Em 1906, a capital [Rio de Janeiro] possuía 811.444 habitantes. Como

ressalta o historiador Antonio Paulo Rezende, “o Censo Industrial do Brasil indicou, em 1907,

a existência de 149.018 operários – mão-de-obra basicamente composta de imigrantes – e

129 Cf. SILVA, 1992, p. 169-170. 130 Cf. PIMENTEL, 2001, p. 323-357. 131 KREUTZ, 2000, p. 351. 132 RIBEIRO, 2007, p. 426. 133 RIBEIRO, 2007, p. 427. 134 KREUTZ, 2000, p. 351. 135 BENCHIMOL, 1984, p. 111.

Page 68: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

68

3.258 empresas. [...] em 1912, em São Paulo, 80% dos operários têxteis eram estrangeiros”.136

Segundo ele, mesmo em 1920, os estrangeiros eram maioria em São Paulo, constituindo

aproximadamente 52% da população adulta.137

Contudo, as possibilidades de ascensão dos imigrantes são limitadas pela elite tanto

argentina quanto brasileira, que reage de forma negativa às primeiras conquistas dos recém-

chegados.

No que diz respeito ao caso argentino, como ressalta Darcy Ribeiro, em seu estudo

sobre as Américas e a civilização, “à medida que o imigrante se instala nas cidades, inserindo-

se na nova estrutura urbana integrada por uma classe média e um proletariado, começa a lutar,

em massa, pela representação política e por parte dos enriquecidos, pela participação nos

círculos fechados do patriciado e da oligarquia”.138

Essa luta, por sua vez, traz enormes

descontentamentos por parte do patriciado argentino, que, segundo consta, “se enclausura em

seus privilégios, opondo-se à camada gringa que aspirava aos direitos de cidadania, através de

regulamentações do sistema eleitoral que reduziam as massas à condição de clientelas de

grupos partidários, essencialmente idênticos”.139

A oligarquia argentina, ancorada na propriedade monopolítica da terra e nos

privilégios que ela conferia a si própria, torna a terra inacessível num primeiro momento aos

ladinos e gaúchos e, num momento posterior, aos imigrantes, que são rechaçados do sistema.

A educação, meio de transformar a população, não se torna eficaz no processo, pois

os imigrantes, sobretudo os italianos e alemães, implantam escolas para educar seus filhos

com língua e cultura trazidas de seu país de origem. Segundo Lúcio Kreutz, no Brasil, as

escolas étnicas, criadas pelos imigrantes,

não são fruto apenas da preocupação de imigrantes com sua tradição

cultural. Parte dos imigrantes provinha de forte tradição escolar em seu país

136 REZENDE, 1994, p. 10. 137 REZENDE, 1994, p. 10. 138 DARCY, 2007, p. 429. 139 DARCY, 2007, p. 430.

Page 69: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

69

de origem, era alfabetizada e cônscia da importância da escola, porém, não

encontrando escolas públicas nem muitas perspectivas para verem atendido

seu pleito, os imigrantes puseram-se a organizar uma rede de escolas

comunitárias.140

O que se pode perceber na atitude desses homens é uma forte afinidade com sua

identidade de origem, apresentando por outro lado, uma grande resistência em assumir a

cidadania local, dado que a grande maioria dos imigrantes não se sente pertencente a esta

comunidade imaginada. Os imigrantes que viriam “civilizar” o Brasil, vendo um quadro

muito diferente daquele esperado, com promessas não-cumpridas e maus tratos, acabam se

rebelando, fazendo reivindicações, greves, e formando sindicatos, o que faz deles, cada vez

mais, uma massa incômoda e ameaçadora, especialmente após 1917,141

uma vez que parte

dessa população,142

por possuir capital cultural, vai ocupando espaços que não estavam

previstos para ela.143

De acordo com o historiador Antonio Paulo Rezende, “esse proletariado

[imigrantes], em fase inicial de constituição, encontrava dificuldades imensas para se

organizar”.144

Segundo ele, Alcestes de Ambris, um socialista italiano e ativo militante no

Brasil, dizia que “muitos operários e camponeses se consideravam nesta terra como pássaros

de passagem e – obcecados pela ânsia de voltar à pátria – pensam e vivem, individualmente,

pensando que este seja o melhor meio de fazer a América”.145

Segundo o historiador Antonio Paulo Rezende, apesar de todas as dificuldades que

esses homens encontraram, destacou-se uma imprensa operária que publicava uma boa

quantidade de periódicos, dentre eles O Socialista, A Terra Livre, Avante, que colaboravam na

construção do movimento operário. Paulatinamente os anarquistas foram consolidando sua

140 KREUTZ, 2000, p. 348. 141 Neste ano, no mês de junho, foi iniciada pelos operários de Cotonifício Crespi uma das mais famosas greves

da cidade de São Paulo (cf. REZENDE, 1994, p. 17). 142 Destacam-se as seguintes famílias de imigrantes que fizeram fortuna: família Matarazzo; família Diniz;

família Hering; família Klabin. 143 Ortega y Gasset (2002), discutindo em sua obra intitulada A rebelião das massas a capacidade do homem

médio do século XIX para continuar a civilização moderna e quanto à adesão que este homem tem à cultura,

utiliza esse mesmo discurso ao dizer que as massas estavam se rebelando. Segundo o autor, elas estavam

ultrapassando seus limites, ocupando espaços que não cabiam a elas. 144 REZENDE, 1994, p. 10. 145 REZENDE, 1994, p. 10 apud HALL e PINHEIRO, 1979, p. 40.

Page 70: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

70

hegemonia, embora os socialistas se fizessem presentes. A greve, já nesse período,

apresentava-se como um instrumento eficaz de luta contra a exploração a que eram

submetidos. As greves em diferentes regiões – São Paulo, Santos, Rio de Janeiro – mostravam

a insatisfação com a injustiça social. Em contrapartida, os governantes utilizavam a repressão

como instrumento de combate. Ainda segundo o historiador, o Congresso Nacional estudava

um projeto de lei – Adolfo Gordo146

– a fim de expulsar do país os líderes operários

estrangeiros combativos. A ideologia da questão social era tratada como questão de polícia, e

a luta contra a opressão era vista como perigosa.147

Esse quadro acaba por ampliar a insatisfação da elite intelectual que pensava em um

projeto de nação, dado que esta percebe que o projeto centrado no imigrante havia fracassado.

Desta forma, os imigrantes brancos, em especial os italianos, passam de massa desejada a

indesejada. Nessa nova lógica, o imigrante passa a ser visto como ameaça ao projeto de

construção de identidade nacional. Erradicar o analfabetismo era a única solução para o

dilema pelo qual passava o país: ou o Brasil desenvolveria a cultura de seus filhos ou seria

dentro de algumas gerações absorvido pelos estrangeiros que pouco a pouco iam ocupando

espaços que não estavam previstos para eles na sociedade. Deve-se atentar para o fato de que

o surgimento desse dilema foi decorrente, sobretudo, do impacto das greves operárias de 1917

e 1918 no imaginário das elites urbanas, que haviam depositado esperanças nos imigrantes

para aprimorar a raça brasileira. Esses acontecimentos fizeram com que os intelectuais

reavaliassem seu projeto, pensando em um discurso avesso ao que se afirmava anteriormente.

Neste sentido, foi preciso então desenvolver estratégias para resolver o “novo problema” que

146 “A Lei Adolfo Gordo foi uma lei antioperária, não foi uma lei contra a liberdade de imprensa. Foi uma lei que

resultou das greves, das grandes greves de 1917 e 1919, que foram os maiores movimentos da massa operária

que se deram no Brasil até hoje. A de 1917 foi ainda mais forte, mais ampla. Em vários pontos, por exemplo, do

Rio Grande e de São Paulo, os anarquistas estiveram eventualmente no poder. A Lei Adolfo Gordo, foi portanto, votada contra o movimento operário, que era um movimento puramente

sindical, porque não havia comunistas no Brasil naquele tempo, nem socialistas. Só havia anarquistas e

sindicalistas livres e independentes. A lei se destinava a reprimir o movimento operário. Não atingia, ou pelo

menos não pretendia e de fato não atingia, a imprensa não-operária, atingia a imprensa liberal”.

(http://almanaque.folha.uol.com.br/memoria_1.htm). 147 Cf. REZENDE, 1994, p. 10-11.

Page 71: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

71

tanto o Brasil quanto a Argentina passaram a enfrentar. Diante disso, o que se pretende negar

nesse momento é o imigrante.

Page 72: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

72

5. O CABOCLO VISTO POR UMA NOVA ÓTICA: A DOENÇA COMO SAÍDA

PARA O PROBLEMA BRASILEIRO EM MONTEIRO LOBATO

Mais cedo do que se imagina, o governo, diante do

clamor cada vez maior, terá que atender aos

reclamos da opinião nacional. Então veremos que a obra de saneamento iniciada por Oswaldo Cruz no

Rio de Janeiro se dirigirá por todos os caminhos

para o interior do Brasil, em verdadeiro trabalho de

redenção nacional.

ARTUR NEIVA

Respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório

dá-nos o argumento por que ansiamos. Firmados

nele contraporemos à condenação sociológica de Le Bon a voz mais alta da biologia.

MONTEIRO LOBATO

5.1. A descoberta da doença como problema nacional

O imigrante transforma-se no final da segunda década do século XIX em um

incômodo para os formuladores de projetos de nação no Brasil. O discurso elaborado pelas

elites intelectuais no início do século XX passará então a valorizar o mestiço, considerado um

problema ao longo do século XIX. Nos anos de 1910, a ciência experimental traz à tona a

resposta de que a intelectualidade brasileira precisava. O drama vivido por uma parcela

significativa de brasileiros que condenavam o país ao eterno atraso, inferioridade e

improdutividade poderia finalmente chegar ao fim com as novas revelações da medicina. As

respostas desta revelavam e denunciavam o caos pelo qual o país passava. As condições

sanitárias de grande parte do território nacional não poderiam mais passar despercebidas pelas

autoridades brasileiras; era preciso sanear o Brasil e seu sertão.

Page 73: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

73

Desta forma, o movimento sanitarista da Primeira República descobre uma nova

imagem para o Brasil: a cara de país doente. O homem, especialmente o camponês, que antes

era visto como empecilho para o progresso do país, passa a ser vítima das condições precárias

do quadro sanitário e das agressões da natureza. O problema do país não é mais associado ao

homem, mas sim à doença que o acomete, mas que pode ser combatida se, com o apoio da

ciência, forem tomadas as devidas providências. O novo discurso aponta que o brasileiro era

negligente, preguiçoso e improdutivo porque estava doente e abandonado pelas elites

políticas. Para reparar o problema do país, seria necessário cuidar da higiene e do saneamento

básico148

, sendo tarefa obrigatória e indispensável dos governos acabar com as endemias

rurais. A doença passa então a ser proclamada como principal problema do país e o maior

obstáculo à civilização. Note-se que o obstáculo é transferido do homem para a doença, ou

seja, o discurso produzido pelos literatos transfere o problema que antes se encontrava no

homem para a doença que nele se encontra.

Se no projeto pensado anteriormente víamos radicalismo, dado que não se encontrava

solução para o progresso do país senão pela substituição de uma parcela dos habitantes –

negros e mestiços – que nele residia, neste novo projeto observa-se um discurso mais flexível,

pautado não mais na substituição de população mas sim nas mentalidades. Uma vez revelada

ao público a situação catastrófica em que se encontrava o país no que se refere ao quadro

sanitário e de saúde pública, era preciso indenizar o brasileiro que por muitas décadas foi

penalizado pelo discurso dos literatos que o julgavam um homem preguiçoso inadaptável à

civilização. O homem, neste sentido, passa de ser incapaz a ser capaz, se devidamente

medicado. Para isso, torna-se primordial higienizar o país. Como apontam os historiadores

Nísia Trindade Lima e Gilberto Hochman em Raça, ciência e sociedade, “para o movimento

pelo saneamento do Brasil, a redenção nacional demandava ações centralizadas, nacionais e

148 Para maiores informações sobre questões de saúde pública, ver BENCHIMOL (1984).

Page 74: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

74

tecnicamente autônomas, que legitimariam o crescimento do papel do Estado brasileiro no

campo da saúde pública”149

.

O movimento pelo saneamento básico do Brasil combate a ideia de determinismo

racial a que o homem estava fadado, qual seja, a de que não havia meios de civilizar os

homens do interior do Brasil, uma vez que a vida no campo lhes tinha reservado aquele fim,

uma vida cheia de privações mas que contudo não era percebida por tais homens os quais,

segundo o discurso elaborado pelos literatos, não expandiam seus desejos. O movimento

sanitarista da Primeira República teve, sem dúvida, um papel primordial no novo momento de

construção da identidade do brasileiro e do país.

A descoberta da doença que se alastrava em extensas áreas do território brasileiro,

sobretudo no interior do país, foi de fundamental importância no processo. Finalmente, o

movimento sanitarista da Primeira República detecta a doença que assolava o homem: a

tripanossomíase americana, doença mais conhecida como mal de Chagas. A descoberta da

tripanossomíase americana, doença causada pelo Trypanossoma cruzi150

, um parasita

transmitido aos humanos e a outros mamíferos por insetos hematófagos, tais como os da

família do barbeiro, foi feita em 1909 por Carlos Chagas,151

médico brasileiro que descreveu a

doença pela primeira vez no início do século XX.

É válido ressaltar aqui que estes insetos que transmitem a doença152

vivem em

paredes e telhados de habitações precárias, típicas de áreas rurais pobres e favelas. As pessoas

mais afetadas pela doença de Chagas são as menos prestigiadas economicamente, que

geralmente vivem em casas de pau-a-pique, um habitat favorável para proliferação dos

149 In: MAIO e SANTOS, 1996, p. 23. 150 O nome Trypanossoma cruzi dado ao agente causador foi conferido pelo médico Carlos Chagas em

homenagem ao epidemiologista Oswaldo Cruz. Na Argentina, muitas vezes a doença é chamada de Mal de Chagas-Mazza, em homenagem ao médico argentino Salvador Mazza, que em 1926 começou a estudar a

enfermidade e com os anos transformou-se no principal estudioso da doença naquele país. 151 Este foi o principal feito da carreira de Chagas – a descoberta de uma doença que tem pouca chance de cura

uma vez atingida sua fase crônica. (Cf. http://cienciahoje.uol.com.br/materia/view/1091) 152 A doença de Chagas também pode ser transmitida por transfusão de sangue contaminado ou ainda de mãe

para filho na gravidez. (Cf. www.dndi.org.br/Portugues/doenca_chagas.aspx)

Page 75: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

75

insetos. Quando um inseto infectado pica uma pessoa, ele deposita fezes sobre a pele da

vítima, que, ao coçar o local atingido, permite que o parasita atravesse a pele e penetre na

corrente sanguínea. O grande problema da doença é que, na população adulta, a grande

maioria dos pacientes permanece assintomática, o que faz com que o indivíduo fique sem

saber que está infectado. Segundo dados clínicos, “a picada do inseto é raramente visível e,

durante a fase aguda, somente as crianças costumam apresentar sintomas, tais como febre,

inchaço do rosto ao redor da picada, aumento das glândulas linfáticas, que ficam doloridas, e

aumento do fígado e baço”153

. De acordo com as estatísticas, a parcela dos casos agudos que

são diagnosticados é muito pequena – apenas 1%. O parasita pode se alojar no corpo do

homem por muitas décadas sem que o homem sinta qualquer sintoma, sendo capaz de se

multiplicar no corpo do hospedeiro durante anos ou até mesmo décadas, sem que a vítima

tome conhecimento da infecção. Ainda segundo dados estatísticos:

Em cerca de um terço das infecções agudas, há evolução para as formas

crônicas, que se desenvolvem 10-20 anos mais tarde. Quando a fase crônica

começa, normalmente já é muito tarde para o tratamento: os sintomas de comprometimento cardíaco ou as sérias disfunções do esôfago e cólon

podem ser irreversíveis. Os pacientes ficam cada vez mais doentes e podem

sofrer morte súbita por insuficiência cardíaca. A expectativa de vida diminui

em cerca de nove anos.154

Os sintomas do mal de Chagas e suas graves formas clínicas, tais como

comprometimento cardíaco, disfunções do esôfago e cólon, deformações físicas, tais como os

já elencados, e problemas neurológicos justificavam, desta forma, o comportamento do

homem do interior que vivia em condições precárias. Os homens se comportavam de forma

apática porque não tinham forças, uma vez que estavam doentes. Por estarem com uma

doença assintomática, não sabendo assim de sua situação clínica, estes homens eram tidos

como inertes. Saber o que levava os homens do campo a ter tal comportamento os redimia do

discurso dos intelectuais que por longo tempo os condenaram.

153 Cf. www.dndi.org.br/Portugues/doenca_chagas.aspx. 154 Cf. www.dndi.org.br/Portugues/doenca_chagas.aspx.

Page 76: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

76

É válido ressaltar aqui que a doença que assolava o campo e as periferias pobres é

associada também à pobreza, uma vez que as pessoas mais afetadas pelo mal de Chagas são as

muito pobres. Pode-se inferir disso que, para redimir o país, seria preciso não só acabar com

as endemias rurais, mas também melhorar as condições de vida da população em risco,

investindo em saneamento básico e novos hábitos. Neste sentido, é às autoridades que cabe o

papel de dar maiores garantias a essa população mais carente. A tripanossomíase americana

em conjunto com outras doenças endêmicas, tais como a malária155

, configurava um quadro

que comprometia a vitalidade do caboclo. Contudo, este quadro se apresentava não mais

como fixo, dado que, uma vez saneado o país, o homem que estava doente poderia progredir.

A situação de atraso do país e do homem tornava-se assim passageira.

155 De acordo com informações do jornal O Globo, nº. 5, de 2000, em edição especial de história, “Metido num vagão ferroviário transformado em casa e consultório, o médico [Carlos Chagas] examinava o povo de Lassance,

lugarejo perdido no vale do Rio das Velhas, interior de Minas Gerais. Tinha sido mandado para lá pelo Governo

Federal para combater a malária que dizimava os operários de uma ferrovia. Mas o desfile de doentes à sua

frente convenceu-o de que, além da malária, havia ali um mal desconhecido. O jovem Carlos Ribeiro Justiniano

das Chagas estava prestes a realizar façanha inédita: a descoberta de uma doença com a descrição de causas,

características patológicas, meios de transmissão e forma de prevenção [...]” (p. 100).

Page 77: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

77

5.2. A reforma urbanística e a higienização: um combate à doença

Na atualidade, a política da cidade do Rio de Janeiro deve

ser outra – obter as condições de vida. Tudo mais pode

ser excelente, ótimo, mas está em plano inferior. Pois esta população inteira definha de febres, morre de

tuberculoses pulmonares, é vítima imolada a toda casta

de febres (...), a começar pela amarela, a tífica, a perniciosa, biliosa, mucosa, atóxica, a dinâmica, o diabo

a quatro...156

SENADOR SOARES DE SOUSA

No início do século XX, antes da modernização do Rio de Janeiro – a obra mais

edificante do paulista Rodrigues Alves157

, então presidente da República, com o auxílio do

prefeito Francisco Pereira Passos –, a cidade era cheia de becos e vielas sujos e estreitos, com

ruas onde proliferavam o lixo e a sujeira, ambiente propício para a propagação de doenças.

Como relata o historiador Francisco de Assis Silva, “o lixo acumulado e apodrecido no porto

e nas ruelas malcheirosas era foco de ratos e mosquitos transmissores de doenças então fatais,

como, por exemplo, a peste bubônica, a febre amarela e a varíola, que matavam anualmente

milhares de pessoas”158

. Embora a capital da república tivesse belos palacetes e casarões, a

cidade passava por graves problemas urbanos, como rede insuficiente de água e esgoto, coleta

de lixo precária e cortiços super povoados.

No começo do século XX, a cidade do Rio de Janeiro experienciou uma intervenção

radical, projetada pelo presidente Rodrigues Alves, na sua estrutura urbana e na arquitetura.

Nesse período, centenas de prédios foram demolidos, deixando inúmeras pessoas

156 Escrito de um senador da República, recém-chegado da Europa, sobre a reforma urbanística do centro da

cidade do Rio de janeiro. 157 Rodrigues Alves, que presidiu o país de 1902 a 1906, investiu bastante na modernização e saneamento do Rio de Janeiro. Dentre as obras realizadas em seu governo, destacam-se a construção de novos portos e a reforma e

saneamento dos antigos, a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que daria à Bolívia uma saída para

o mar, anexação do Acre, melhoria de ferrovias, remodelação arquitetônica de algumas faculdades como a de

Direito do Recife e as de Medicina de São Paulo e Salvador, construção do Instituto de Manguinhos, no Rio de

Janeiro, dentre outros (cf. SILVA, 1992, p. 211-212). 158 SILVA, 1992, p. 211.

Page 78: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

78

desabrigadas. Grande parte da população pobre e consideráveis parcelas das classes médias

foram desalojadas do centro da cidade e deslocadas para a periferia ou para os morros, onde

se propagaram em um momento posterior as favelas. Segundo registra Francisco Silva, “a

urbanização e o saneamento implicaram a destruição de cortiços e casebres, invasão de casas

e apreensão e destruição de tudo o que era considerado prejudicial à saúde”159

.

É válido ressaltar aqui que por um lado o governo estava resolvendo o problema da

saúde pública e da limpeza da cidade, mas por outro lado o descontentamento de grande parte

da população exacerbava-se, uma vez que as camadas populares passaram a sofrer com

problemas de moradias – dado que muitos não tinham para onde ir – e com o alto custo de

vida, como preços elevados dos imóveis. Segundo relata o historiador Jayme Benchimol, em

seu texto intitulado “O Rio se renova com o prefeito bota-abaixo e o general mata-

mosquitos”, “uma comissão nomeada pelo governo federal, em outubro de 1905, para

examinar o ‘urgente problema das habitações populares na capital’ constatou que ‘ia além de

toda a expectativa’ o número de prédios demolidos e a população desabrigada”160

. No referido

texto, Benchimol relata que “segundo Sousa Rangel, foram desapropriados cerca de 590

prédios; José Reis afirma que a avenida exigiu 700 demolições e Eulália Lobo menciona 641

casas de comércio desapropriadas”161

.

O projeto do então presidente tinha como objetivo higienizar a cidade, ou seja,

tornar a cidade limpa, impedindo que ela permanecesse foco de epidemias. O saneamento da

Lagoa Rodrigues de Freitas, a melhoria no abastecimento de águas, a proibição de mendigos e

de bando de animais, como vacas e cães, que perambulavam pelas ruas da cidade a fim de

minimizar a sujeira no espaço público, a remoção do cemitério da região central para a

periferia, o alargamento e a abertura de ruas, praças e avenidas, a construção de um cais que

159 SILVA, 1992, p. 212. 160 BENCHIMOL, 1984, p. 117. 161 BENCHIMOL, 1984, p. 113.

Page 79: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

79

pudesse impedir que as praias fossem invadidas pelos mangues constituem parte das obras

que foram realizadas no Rio de Janeiro.

No processo de combate às doenças endêmicas, o médico sanitarista Oswaldo Cruz,

então diretor da saúde pública e responsável pelo saneamento da cidade, além de estabelecer

medidas de prevenção às doenças, como desratizar áreas da cidade e destruir e drenar as áreas

onde tivessem foco de mosquitos transmissores de doenças, impôs à população do Rio de

Janeiro a vacina obrigatória contra a varíola. Segundo informações que constam do artigo de

Jayme Benchimol, Oswaldo Cruz, nomeado em 23 de março de 1903 para a chefia da Saúde

Pública162

, propunha-se a extinguir, em um período de quatro anos, a febre amarela – doença

temível que dizimou parte da população da cidade no período em questão –, utilizando os

mesmos métodos profiláticos adotados pelos norte-americanos em Havana. O programa do

médico ainda contava com a prevenção da peste bubônica e da varíola163

. Nesse mesmo ano, o

microbiologista propôs ao presidente Rodrigues Alves um plano com duas linhas de ação,

quais sejam: a de combater o mosquito colex, casa por casa, e vacinação em massa164

.

Ressalta-se ainda aqui que as intenções do médico sanitarista eram boas, porém este

não levou em consideração as grandes dificuldades que seu plano de higienização viria a

suscitar. As críticas ao governo de Rodrigues Alves eram cada vez maiores. A população das

camadas menos prestigiadas economicamente estava bastante descontente com os problemas

que encontrava de moradia, uma vez que mal tinha para onde ir. Em contraposição, viam-se

os casarões da população mais favorecida economicamente e as obras públicas que estavam

sendo feitas em prol da modernização da cidade. Cortiços e casebres que compunham o

panorama dos bairros centrais da cidade do Rio de Janeiro davam então lugar a grandes

avenidas e ao alargamento das ruas, modelo de urbanização dos grandes bulevares

162 Segundo jornal O Globo, o cargo de chefia que lhe foi dado era equivalente ao de ministro – tamanha a

importância que Oswaldo Cruz teve no período em questão (O Globo, nº. 3, 2000, p. 64). 163 Cf. BENCHIMOL, 1984, p. 118. 164 Três anos antes, em Havana, Cuba, erradicara-se a doença (cf. O Globo, nº. 3, 2000, p. 64).

Page 80: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

80

parisienses. Pereira Passos, apelidado desde cedo de “o Haussman tropical”165

, nomeado com

plenos poderes por Rodrigues Alves, era um engenheiro com sólida formação e um entusiasta

da obra de Eugene Haussmann, autoridade que, entre 1863 e 1870, transformou o centro de

Paris em um conjunto monumental de largos e extensos bulevares em perspectiva166

. Segundo

O Globo, “tratava-se, no Rio, de construir uma grande e larga avenida que ligasse o porto ao

obelisco construído à beira-mar, ao mesmo tempo em que ordenasse em paralelas transversais

as ruelas e becos que formavam um fétido emaranhado que se estendia até a zona

portuária”167

.

Somado ao empreendimento junto ao governo de remodelação da estrutura física da

cidade, o então prefeito Pereira Passos pretendia também abolir certos hábitos da população,

que impediam que o Rio de Janeiro tivesse uma boa imagem e privilégios de capital da

República. Vários foram os motivos que levaram o prefeito a tomar essas medidas, dentre eles

o de tornar a cidade o habitat digno de pessoas civilizadas. É possível perceber pelas palavras

de Pereira Passos seus reais objetivos; ele estava longe de apenas querer reformar a cidade do

Rio de Janeiro, a ver:

Comecei por impedir a venda pelas ruas de vísceras de reses, expostas em

tabuleiros cercados pelo vôo contínuo de insetos, o que constituía espetáculo

repugnante. Aboli igualmente a prática rústica de se ordenharem vacas leiteiras na via pública, que iam cobrindo com seus dejetos, cenas estas que

ninguém certamente achará dignas de uma cidade civilizada.

Mandei, também, desde logo, proceder à apanha e extinção de milhares de

cães que vagavam pela cidade, dando-lhe o aspecto repugnante de certas

cidades do Oriente... Tenho procurado pôr termo à praga dos vendedores

ambulantes de bilhetes de loteria, que por toda a parte perseguiam a população, incomodando-a com infernal grita e dando à cidade o aspecto de

uma tavolagem. Muito me preocupei com a extinção da mendicidade

pública... punindo os falsos mendigos e eximindo os verdadeiros à contingência de exporem pelas ruas sua infelicidade...

168

165 Pereira Passos ficou assim conhecido em razão das demolições dos velhos prédios e cortiços, que deram lugar

a grandes avenidas, edifícios e jardins – projeto que contou com uma ampla reforma urbana. 166 Cf. O Globo, nº. 3, 2000, p. 56. 167 O Globo, nº. 3, 2000, p. 64. 168 In: BENCHIMOL, 1984, p. 115-116.

Page 81: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

81

Como bem apontou o historiador Jayme Benchimol, “diante da pobreza urbana, a

administração municipal buscou simplesmente extirpar da cidade que se queria exibir para o

estrangeiro como higiênica e civilizada a chaga que a enfeiava, limitando-se a enclausurar os

mendigos e vadios”169

.

As camadas populares, revoltadas com a sua situação de moradia e com toda a

mudança de hábitos e costumes a que teriam que se submeter, se negavam a tomar a vacina

proposta por Oswaldo Cruz. Munidos da falta de informação, a maioria do povo, por

desconhecer os efeitos que os líquidos aplicados nas injeções poderiam causar, temia a

vacinação. Além disso, segundo informações históricas, jornais da oposição criticavam a ação

do governo e discorriam acerca dos supostos perigos que a vacina poderia causar. Somada às

informações divulgadas nesses jornais, boatos eram espalhados pela cidade de que a vacina

seria aplicada nas partes íntimas do corpo das mulheres e que, desta forma, seria necessário

que as mulheres se despissem diante dos vacinadores. Isso fez com que grande parte da

população se rebelasse, e muitos optaram por não tomar a vacina. Por conta disso, em 29 de

junho de 1904, foi apresentado pela Comissão de Saúde Pública ao Congresso um projeto de

lei170

que tornava a vacinação contra a varíola obrigatória171

, método mais eficaz de prevenir a

doença em todo o território nacional172

. Segundo relata o historiador Francisco de Assis Silva,

“muitos operários [foram] despedidos de seu emprego por não se sujeitarem à ‘tirânica

medida’”173

. Diante desse quadro, é válido apontar aqui que era preciso não só investir em

medidas de saúde mas também em propagandas de conscientização da população, uma vez

169 BENCHIMOL, 1984, p. 116. 170 A Lei da Vacina, aprovada em 5 de novembro de 1904, foi o estopim da revista popular. A Gazeta de notícias

de 14 de novembro de 1904 já anunciava: “Tiros, gritaria, engarrafamento de trânsito, comércio fechado,

transporte público assaltado e queimado, lampiões quebrados às pedradas, destruição de fachadas dos edifícios

públicos e privados, árvores derrubadas: o povo do Rio de Janeiro se revolta contra o projeto de vacinação

obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz”. 171 Ver no anexo VIII ao final desta tese a capa da Revista da Semana sobre a Revolta da Vacina, de outubro

1904, em que se ironizava o ato tirânico de vacinação obrigatória. A capa da revista representa bem esse ato ao

apresentar um representante do Congresso com um grilhão em uma das mãos e uma lança na outra, e um

representante do povo em uma posição inferior, de joelhos, pedindo clemência. 172 Cf. http://www2.prossiga.br/ocruz/Trajetoria/diretoriageral/31campanhas/revoltadavacina.htm. 173 SILVA, 1992, p. 212.

Page 82: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

82

que, como consta do jornal O Globo, “desde que recebessem os aluguéis, os proprietários das

casas, sobrados e cortiços amontoados nas vielas lamacentas do centro pouco ligavam para

ratos, pulgas e mosquitos”174

. Com isso, a febre amarela, no período do verão, e a peste

bubônica, no inverno, devastavam a população.

Uma vez se sentindo ameaçada, a população, sobretudo das camadas mais populares,

passou a se reunir no Largo do São Francisco e no Rossio, onde funcionava o Ministério da

Justiça. O descontentamento generalizado eclodiu em uma revolta popular que se deu em 9 de

novembro de 1904. A noite desse dia ficou conhecida como “noite do quebra-lampião”175

.

Segundo informações históricas, a população furiosa começou a “virar bondes, erguer

barricadas e ameaçar de invasão o Palácio do Catete, sede da presidência da República”176

.

Em 14 de novembro de 1904, o jornal Gazeta de Notícias informava o estado em que a cidade

se encontrava: tiros, gritaria, engarrafamento de trânsito, comércio fechado, transporte público

assaltado e queimado, lampiões quebrados a pedradas, destruição de fachadas dos edifícios

públicos e privados, árvores derrubadas. Este foi o resultado da revolta do povo do Rio de

Janeiro contra o projeto de vacinação obrigatório proposto pelo sanitarista Oswaldo Cruz.

Houve um enfrentamento às tropas por parte da população dos cortiços e das favelas, e de

operários e comerciantes. Durante uma semana a cidade viveu em um rebuliço. Segundo

consta, dos dias de quebra-quebra e dos enfrentamentos resultaram centenas de mortes de

ambos os lados. “A capital federal conhecera uma agitada semana que colocou em perigo a

constitucionalidade da nação e resultou num número incontável de mortes, prisões,

espancamentos, assassinatos e deportações”177

. Informações de Mayla Yara Porto revelam

que “as ruas do Rio viveram uma guerra civil. Segundo a polícia, o saldo negativo foi de 23

174 O Globo, nº. 3, 2000, p. 64. 175 Cf. O Globo, nº. 3, 2000, p. 64. 176 O Globo, nº. 3, 2000, p. 64. 177 SILVA, 1992, p. 213.

Page 83: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

83

mortos e 67 feridos, tendo sido presas 945 pessoas, das quais quase a metade foi deportada

para o Acre, onde foi submetida a trabalhos forçados”178

.

Diante desse quadro, Rodrigues Alves, temendo a ameaça de golpe de Estado,

ordenou que prendessem diversos chefes militares, decretou estado de sítio e garantiu aos

sanitaristas poder para invadir as casas da população e aplicar em massa a vacina179

.

Várias foram as doenças que assolaram o país no início do século, dentre elas o tifo.

De acordo com o jornal O Globo, “observando que o tifo era mais contagioso fora do que

dentro dos hospitais, o médico francês Charles-Henri Nicolle formulou a hipótese de que a

transmissão estava relacionada com a higiene. Após alguns experimentos, descobriu que o

transmissor da doença era o piolho”180

.

Várias foram as doenças que assolaram o país dizimando milhares de pessoas em

fins do século XIX e inícios do século XX. Como se pôde constatar, a grande maioria delas

estava associada à questão da higiene. O país passava por um caos absoluto e, para mudar

esse quadro, a solução mais cabível encontrada pelas autoridades foi a de higienizar as urbes,

pois só assim o país poderia ser considerado um lugar civilizado. Uma vez resolvido o

problema da saúde pública, o país, e consequentemente sua população, poderia assumir uma

outra imagem. Desta forma, era preciso mudar a cara de país doente do Brasil, uma vez que,

devidamente tratada, a população poderia trazer progresso para o país.

178 PORTO, 2003, p. 53. 179 Cf. O Globo, nº. 3, 2000, p. 64. 180 O Globo, nº. 5, 2000, p. 101.

Page 84: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

84

5.3. A representação da doença na obra de Monteiro Lobato

O Brasil é um imenso hospital.

(Miguel Pereira)

Retrato do nosso caboclo quem o dá perfeito, com fidelidade fotografica, é o medico ao desenhar o

quadro clinico do ancilostomado. Tudo mais é

mentira, retorica, verso.

(Monteiro Lobato)181

Monteiro Lobato representa bem a ideia de país doente quando defende, no romance

Problema vital, que “o Jeca não é assim, está assim”182

. Ao opor os verbos ser e estar na

referida afirmação, Lobato se põe na condição de defensor do Jeca. A oposição entre esses

verbos já aponta para uma possível mudança, dado que a ação de estar é transitória. Lobato

passa a representá-lo como um produto das endemias e vítima do descaso do governo. O

discurso do autor nesse momento difere do elaborado outrora. Se antes Lobato condenava os

caboclos pelo eterno atraso do país, dado que eles eram representados como parasitas da terra,

inadaptáveis à civilização e contrários ao progresso da nação, agora o caboclo é absolvido da

sentença que lhe fora dada por longos anos. Segundo Lobato: “é essa bicharia cruel que te faz

papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não. Os culpados são os que falam

francês, dançam o tango, pitam havanas [...]”183

. A ideia de responsabilidade pela situação que

o Jeca vivencia é claramente apresentada quando Lobato questiona se o Jeca é culpado por

sua condição. A pergunta retórica que é seguida prontamente por uma resposta negativa já

aponta para a redenção do personagem.

181 LOBATO, 1951, p. 233-234. 182 LOBATO, 1951, epígrafe. 183 LOBATO, 1951, p. 270.

Page 85: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

85

Note-se que a responsabilidade pelo estado calamitoso do Jeca é atribuída à elite,

representada pelas pessoas que têm acesso a determinada cultura (europeia). A cultura, que

antes era exaltada, e o povo europeu, sobretudo italianos e alemães, que era enaltecido, nesse

momento passam a ser condenados. Lobato passa a representá-los como pessoas alienadas,

uma vez que esses grupos representados pela elite não olham para a população de seu país, e

deixam de cumprir o papel que lhes cabe para beneficiar uma pequena parcela da população

que detém grande parte dos privilégios.

O verme que antes se encontrava no caboclo é comparado às autoridades, a quem

compete zelar pelo povo e pelo país. O descaso do governo associado a outros fatores, como a

corrupção, passa a ser denunciado em Problema vital – “Este verme dá a perfeita imagem dos

parasitas sociais que se acostam ao Estado e em languido ócio mamam a vida inteira o

sangue-dinheiro elaborado pelas classes produtoras”184

. A comparação que Lobato faz do

verme ancilostoma às elites denota a condição de exploração a que o Jeca é submetido.

Levando-se em conta a imagem que o parasita carrega – “organismo que, pelo menos em uma

fase de seu desenvolvimento, se encontra ligado à superfície ou ao interior de outro

organismo, dito hospedeiro, do qual obtém a totalidade ou parte dos nutrientes”185

–, pode-se

inferir disso que o governo, representante das elites, neste sentido, além de não trazer maior

benefício ao povo, retira deste o pouco que ele tem. Perceba-se que, ao construir a identidade

do Jeca Tatu pelo novo ângulo, Lobato enfatiza a tese da alienação das elites que não se

voltam para a realidade do país, tendo uma grande parcela de culpa pelos problemas

nacionais. A responsabilidade de tal estado de coisas é transferida do Jeca para os detentores

do poder.

Lobato deixa clara em sua obra a crítica à mentalidade das elites. Sua proposta é a de

higienizar o país e a de prevenção de doenças. Para ele, a forma mais inteligente e adequada

184 LOBATO, 1951, p. 232. 185 FERREIRA, 2004, Novo dicionário eletrônico versão 5.0.

Page 86: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

86

seria que o governo incentivasse as pessoas a tomar medidas profiláticas contra as

enfermidades. Lobato aponta em Problema vital que Oswaldo Cruz fora o ponto de partida do

movimento em prol do saneamento do país. E afirma: “A escolha desse homem para chefe da

higiene no país foi o maior passo, talvez o único dado pelo país, durante a Republica para

arrancar-se ao atoleiro onde lentamente afundava”186

. Segundo ele: “Até Osvaldo o médico no

Brasil era o Chernoviz187

: xaropes, iodureto e a continha. Curava – quando não matava.

Prevenir nunca. O higienismo dormia o sono das crisálidas”188

. Desta forma, Lobato critica o

tratamento dado à saúde até então, uma vez que curar a doença consistia em uma medida

paliativa. Há aí uma clara denúncia do autor à medicina aplicada até a chegada do médico

Oswaldo Cruz. O problema do país só seria resolvido quando as pessoas se conscientizassem

de que a prevenção era a saída mais adequada para os problemas de saúde.

O caboclo que antes fora comparado por Lobato, no conto “Urupês” presente no livro

de mesmo título, ao personagem Peri, indígena que protagoniza o romance O guarani, de José

de Alencar, pode também ser um forte, um valente, mas para isso precisa apenas de

acompanhamento médico. Peri, segundo palavras de Monteiro Lobato, como visto

anteriormente, é representado como “protótipo de tantas perfeições humanas, que no romance,

ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d’alma e corpo”189

. A

figura do índio idealizada na literatura romântica satisfazia o anseio da elite de se ter uma

nação com pessoas ditas civilizadas. O índio romântico, modelo perfeito de homem que os

formuladores de políticas públicas almejavam para fazer do Brasil um país civilizado, era

bastante distinto da imagem do caboclo, uma vez que o índio era representado como um

guerreiro forte e íntegro, o que lhe dava autonomia para amar Ceci, uma mulher branca. Em

186 LOBATO, 1951, p. 226. 187 Conforme relata Maria Regina Cotrim Guimarães, médica do Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas e

professora de história de medicina na UFF, “por causa de sua grande repercussão, os manuais de Chernoviz

suscitaram muita discussão: segundo os mais diversos autores, o ‘Chernoviz’ variou de genuína ciência à

crendice” (GUIMARÃES, 2005, p. 502). 188 LOBATO, 1951, p. 226. 189 LOBATO, 2004, p. 165.

Page 87: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

87

contrapartida, o caboclo era representado como “tão incapaz, muscularmente, de arrancar uma

palmeira, como incapaz, moralmente, de amar Ceci”190

, ou seja, faltavam-lhe forças no corpo,

dado o seu estado apático e inerte, como também lhe era ausente a potência da alma, sendo

este muitas vezes na obra de Lobato, especialmente no livro de contos Urupês, representado

como trapaceiro, como se exemplifica em passagem de “Velha Praga” no qual o narrador diz

que o Jeca: “Cisma, de fato, não devaneios líricos, mas jeitos de transgredir as posturas com a

responsabilidade a salvo. E consegue-o. Arranja sempre um álibi demonstrativo de que não

esteve lá no dia do fogo”191

. Note-se que o caráter do personagem é posto em xeque; este não

é uma pessoa confiável, dado que o caboclo falta com a verdade, fazendo-se valer de um álibi.

O discurso que antes condenava a postura do Jeca Tatu, julgando-o fraco, inerte e

preguiçoso, uma vez associado ao quadro de enfermidade diagnosticado, passa a justificar-se

pela doença192

. Antes o caboclo era criticado porque não se sabia o motivo que o levava a ter

tal comportamento. Lobato chama atenção em Problema vital para os inúmeros males

causados no organismo humano pela doença, a ver:

A permanente sugadela de sangue traz profunda anemia; a hemoglobina,

cuja proporção normal no sangue é de 80%, cai até abaixo de 20%; os

preciosos glóbulos vermelhos são destruídos em massa, decaindo do coeficiente normal de cinco milhões por milímetro cúbico para a miséria de

um milhão e ainda menos. De par com estas, outras alternativas sofre o

sangue, as quais se refletem na economia do paciente, redundando em baixa

do seu tônus vital, enfraquecendo a defesa natural do organismo e predispondo-o à invasão vitoriosa de todas as doenças

193.

Somado à questão da doença, o hábito de beber cachaça do Jeca também tem seu momento de

redenção, pois o caboclo não bebia por ser um ébrio, mas sim porque, segundo palavras do

190 LOBATO, 2004, p. 165. 191 LOBATO, 2004, p. 163. 192

Em almanaque do Biotônico Fontoura, é possível verificar um diálogo entre Monteiro Lobato e o Jeca Tatu já

apontando para uma clara redenção do personagem caipira. Lobato, ao questionar por que o Jeca Tatu não

trabalhava, indica a causa dos males vividos pelo personagem. O autor de Urupês, que antes rechaçava o caipira, tido por ele como preguiçoso e indolente, agora o tem como amigo. Ao Jeca é dada a voz e a solução para curá-

lo. Lobato aponta que o Jeca sofre de Amarelão, e não de preguiça, como se acreditava outrora. Ao ser

medicado, este homem poderá levar uma vida normal, ou seja, estará apto não só para o trabalho como também

para o seu crescimento pessoal e de seu próprio país.

Para visualizar o referido diálogo, ver anexo IV ao final desta tese. 193 LOBATO, 1951, p. 233.

Page 88: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

88

próprio autor, “inclina o opilado ao vício da cachaça, lenitivo a que recorre para contrabater a

permanente sensação de frio que o desequilíbrio sanguíneo acarreta”194

.

Sem dúvida, a descoberta das doenças que se alastravam em extensas áreas do

território brasileiro trazia uma imagem sobre as populações da zona rural bastante distinta da

imagem do homem idealizada pela literatura romântica. Neste sentido, a doença tira o peso da

imagem injustamente associada ao caboclo, e transfere a culpa para as autoridades que não

olham pela população de seu país. O diagnóstico dado por Lobato a esses homens refletia

muito a situação de enfermidade pela qual o país passava. Lobato constatava que o caboclo se

encontrava

de par com os três flagelos endêmicos, a opilação, a malaria e a moléstia de

Chagas, uma só das quais bastaria para derrancar o país, a lepra campeia

enfrene, a sífilis alarga seus domínios, a tuberculose avulta cada vez mais e a leishmaniose, essa horrenda ulcera de Bauru ou ferida brava, deforma

milhares de criaturas195

.

As inúmeras doenças que assolavam o país refletiam, assim, o quadro de caos pelo qual este

passava a saúde pública. Monteiro Lobato, ao falar da condição do brasileiro, chama atenção

para o grande número de pessoas opiladas no país, a ver: “Computam alguns estatistas em 25

milhões de habitantes a população do Brasil. Destes 25 milhões, 17 milhões são criaturas

derreadas no físico e no moral pela ancilostomose, caso não erram os cálculos de

Manguinhos”196

. A situação do país, neste sentido, era calamitosa.

A crítica à inação das autoridades é reforçada por Lobato já no início de Problema

vital, romance que foi constituído de artigos publicados no Estado de S. Paulo, em 1918. Em

“A ação de Osvaldo Cruz”, primeiro artigo do referido livro, Lobato aponta que o homem

durante muito tempo viveu “em um perfeito mundo da lua muito parente daquele camoneano

estado d’alma ledo e cego da Inês de Castro”197

. A partir desta afirmação, vê-se que Lobato

194 LOBATO, 1951, p. 233. 195 LOBATO, 1951, p. 253. 196 LOBATO, 1951, p. 231. 197 LOBATO, 1951, p. 223.

Page 89: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

89

inicia o artigo tecendo uma crítica ao comportamento do homem durante longas datas. A

menção ao “mundo da lua” nos traz a ideia da alienação que é reforçada à referência “estado

d’alma ledo e cego”. Neste sentido, a cegueira do homem não o impedia de estar feliz. Atente-

se para o fato de que a cegueira a que se refere o autor não é a simples privação da vista, dado

que esta está na alma – o que nos remete à questão da ignorância na definição de Aurélio

Buarque de Holanda, é a “condição de quem não é instruído” ou ainda a “falta de saber;

ausência de conhecimentos”198

. Desta forma, o homem enxergava, mas não conseguia

decodificar a imagem, isto é, interpretar o mundo a sua volta. Fica assim clara a crítica que o

autor faz ao descaso das autoridades por um longo período. O descaso das autoridades que

antes era justificado pela elite intelectual, uma vez que difícil era civilizar o homem do campo

representado pelo mestiço/caboclo, passa nesse momento a também ser condenado.

É interessante observar na referida obra que Lobato utiliza a primeira pessoa do

plural em seu discurso. Logo, ele também não conseguia “ver” as coisas: “sempre vimos

errado, a nós e às nossas coisas”199

, afirma. Ao fazer isso, Lobato também se redime do

discurso que elaborou em um momento anterior. O discurso utilizado pelo autor aponta para o

olhar equivocado que os homens – e neste grupo ele se inclui – tinham, e em certa medida

continuavam a ter, em relação à visão de seu país. Há desta forma um reconhecimento da

parte de Lobato, em relação à sua postura anterior, de que a visão que ele tinha sobre o mundo

e as coisas era deturpada. Lobato, neste sentido, desconstrói um discurso para construir outro.

Seu discurso do momento serve para condenar o anterior. Com isso, ele denunciará a

alienação existente no país, pondo-se a favor das classes menos favorecidas economicamente

de forma a denunciar as desigualdades socioeconômicas existentes no Brasil.

Segundo Monteiro Lobato:

seminus, malnutridos, na grande maioria doentes de males que só aos seus

espoliadores compete prevenir, eles são o pólipo humilde que fez o que aí

198 FERREIRA, 1999, p. 1074. 199 LOBATO, 1951, p. 223.

Page 90: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

90

está. Se o que aí está não é melhor, nem maior, nem mais sério e decente do

que deveria ser, culpa cabe somente a quem carunchou o banco de coral com

a parlapatice retórica de mão dada a velhacaria política.200

A imagem inicial do Jeca que afirmava ser ele um tipo racial inferior, degenerado,

“caboclo de barba rala”, preguiçoso, incivilizado, passa a ser desculpada pelos fatores

endêmicos201

. A representação do caboclo como seminu e malnutrido na obra de Lobato é

constantemente retomada pelo autor. Lobato não poupa palavras ao condenar as autoridades

que não cumprem o papel que lhes compete. Perceba-se que a ação destes não tem espírito

republicano. Estes homens são espoliadores, privam ilegitimamente o caboclo de seus direitos

por meio da fraude. O caboclo por sua vez é designado como pólipo humilde. A metáfora

utilizada por Lobato, ao comparar o Jeca Tatu a um pólipo – segundo o dicionário eletrônico

Aurélio: “zool. cnidário ger. sedentário cujo corpo, de consistência mole, é cilíndrico e

oco”202

– remete à condição doente do caboclo.203

Ele neste sentido é inerte, sedentário.

Contudo, fica bastante claro no discurso de Lobato que o caboclo não tem nenhuma parcela

de culpa por sua condição apática. A culpa cabe somente aos governantes – parlapatões que

reproduzem um discurso mentiroso na política. São estes homens que impedem o progresso

do país. Os homens, uma vez doentes, não conseguem trabalhar, dado que não possuem força,

e consequentemente a produção do país fica deficitária.

200 LOBATO, 1951, p. 270-271. 201 Esta interpretação pode ser encontrada também em Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, romance escrito

por Mário de Andrade em 1928, quando o personagem Macunaíma decreta solene que “pouca saúde e muita

saúva, os males do Brasil são!” (1984, p. 56). Por este fragmento pode-se perceber que os problemas do país na

concepção do autor se devem a pragas e doenças. Macunaíma não é preguiçoso por vontade própria, mas sim por

estar com a saúde debilitada. Note-se que o problema por que passa Macunaíma é semelhante ao do caboclo Jeca

Tatu: a doença que lhe depaupera o corpo. Neste sentido, é a enfermidade que tira as forças destes homens para o

trabalho. No entanto, por esse novo discurso, os traços negativos serão todos justificados pelo estado em que se

encontram esses personagens. Uma vez sanados tais problemas, a tendência do país é crescer, gerando um Brasil

moderno. 202 FERREIRA, 2004, Novo dicionário eletrônico versão 5.0. 203 Voltada muitas vezes para a doença do camponês, que em geral vivia no interior do país, as propagandas do

“Biotônico Fontoura” prometiam a cura do Amarelão. O que o camponês precisava é de informação para se

tratar. A imagem mais uma vez veiculada nessas propagandas representa o homem com um aspecto de cansado,

magro e sem forças, mas que uma vez tratada a moléstia é prontamente curável. Para verificar essa imagem, ver

anexo XIX ao final desta tese.

Page 91: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

91

Neste sentido, o projeto de nação é agora concentrado na interpretação do Brasil

como país doente. Este movimento teve um papel importante na reconstrução da identidade

nacional a partir da identificação da doença como elemento que inibe a produção do homem,

impedindo-o de trabalhar. O que esse homem precisa é de cuidados, pois, uma vez tratado,

poderá progredir, superando até mesmo a produção dos imigrantes, tidos como “artificiais”.

Neste sentido, Monteiro Lobato afirma que:

o pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o português, o

espanhol. Mas é um homem em estado latente. Possui dentro de si grande

riqueza em forças. E é assim porque está amarrado pela ignorância e falta de assistência às terríveis endemias que lhe depauperam o sangue, catequizam o

corpo e atrofiam o espírito204

.

O Jeca passará a configurar não só a identidade do caipira, mas a do brasileiro em geral, sendo

imbuído de grande riqueza e força. É, portanto, capaz de trazer progresso ao seu país. É ele

que mais tarde se transformará em um trabalhador próspero e dedicado a curar outros Jecas.

Seguindo essa mesma linha, Monteiro Lobato lança em 1924 o “Jeca Tatuzinho”,

história infantil em que, por meio de um personagem-símbolo criado pelo autor, o Jeca

Tatuzinho vem ensinar noções de higiene e saneamento às crianças. O texto produzido por

Lobato teve uma enorme repercussão e foi adaptado, no ano seguinte a sua publicação, em

peça publicitária para a promoção dos produtos do laboratório Fontoura Serpe & Cia, em

especial do produto Biotônico Fontoura205

– medicamento fortificante e antianêmico criado

em 1910 pelo farmacêutico brasileiro Cândido Fountoura.

204 LOBATO, 1951, p. 285. 205 O slogan do produto era ferro para o sangue e fósforo para os músculos e nervos. O famoso jingle utilizado na

campanha dizia o seguinte: “Bê, a, bá, bê, e, bê, bê, i, bi...otônico Fontoura”. Propagando ser o mais completo

fortificante, o produto “Biotônico Fontoura” prometia regenerar o sangue, tonificar os músculos e fortalecer os

nervos daquele que o consumisse. Com o uso do medicamento, segundo propaganda veiculada na mídia da

época, poderiam ser observadas as seguintes melhoras: sensível aumento de peso; levantamento geral das forças;

desaparecimento do nervosismo; aumento dos glóbulos sanguíneos; eliminação da depressão nervosa;

fortalecimento do organismo; maior resistência para o trabalho físico; melhor disposição para o trabalho mental; agradável sensação de bem-estar; rápido restabelecimento nas convalescenças.

Note-se que o fortificante em questão prometia combater exatamente os sintomas típicos da Ankilostomina,

doença vulgarmente conhecida como Amarelão – mal que tirou do homem suas forças e a sua saúde no início do

século XX, a que Monteiro Lobato faz referência em sua obra quando se desculpa com o Jeca Tatu.

Page 92: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

92

Tomando como base a figura inicial do Jeca Tatu, Lobato narra a história do

personagem, apresentando-o como um pobre caboclo que morava no mato em uma casinha de

sapé. A falta de energia e forças tomava conta de seu corpo, e ele passava boa parte de seu

tempo a vegetar de cócoras. Só trabalhava mesmo para o sustento mínimo e não se

preocupava em prosperar. A situação da miséria em que se encontrava o Jeca era a mesma da

descrita em Urupês. Contudo, o olhar para o personagem, bastante diferente da visão anterior,

já se fazia presente. No texto adaptado do folheto do Biotônico Fontoura206

, que trazia a

história do Jeca Tatu, o personagem, por ser vítima da sociedade, é apresentado como digno

de pena. O narrador põe-se numa clara posição de defensor do Jeca. Em contraposição, tem-se

o olhar das pessoas que, desconhecedoras da doença que o acometia, faziam um julgamento

prévio equivocado do caboclo, o qual era tido por preguiçoso, vadio, bêbado, imprestável e

idiota. Ao ser atendido por um doutor que lhe diagnostica a doença – ancilostomíase, mais

conhecida como amarelão – e, passando a se tratar com o remédio que lhe fora prescrito, o

Jeca se transforma em uma outra pessoa, irreconhecível aos olhos da vizinhança. A fim de

recuperar o tempo perdido, passa, então, a produzir com todas as suas forças e dá como

resposta ao italiano o resultado de sua produção: “o resultado foi que os milhos vinham lindos

e o feijão era uma beleza. O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca ter visto

roças assim”207

. Note-se que a partir daí sua produção supera até mesmo a do europeu, visto

que, uma vez tratado, o brasileiro é capaz de progredir e superar qualquer produção208

.

Para visualizar a propaganda do fortificante “Biotônico Fontoura” publicado no jornal santista A Tribuna, ver ao

final desta tese anexos X e XI.

206 Ver no anexo III ao final desta tese o texto integral do folheto do Biotônico Fontoura, peça publicitária para a

promoção dos produtos do laboratório Fontoura Serpe & Cia, em especial do produto Biotônico Fontoura,

adaptado do texto “Jeca Tatuzinho”. 207 In: Folheto do Biotônico Fontoura. 208 A imagem de Brasil doente associada a um tratamento que urgia foi muito divulgada no início do século XX.

Vê-se claramente em propagandas da época a oposição entre dois momentos muito bem marcados: o homem

antes e depois da doença que lhe depauperava o sangue e o corpo. Em propaganda do medicamento para curar o

país da doença que assolava a população, sobretudo a carente, o homem é retratado como fraco, desanimado e

imprestável antes do tratamento e ainda cheio de saúde e vigor depois de curado. As imagens utilizadas são

bastante representativas neste sentido. Aquilo que antes “parecia um castigo” para o homem, dado que sem

forças este não agia, sendo incapaz de lutar contra o seu próprio corpo que lhe impedia de estudar e trabalhar,

Page 93: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

93

O objetivo de Lobato, ao produzir a nova versão de sua história, foi bastante claro na

obra em questão. Jeca depois de tratado tornou-se valente, forte, ficou corado e sua produção

era incomparável. O personagem passa a servir de exemplo para outros. Uma vez curado,

passa também a ajudar outros Jecas na questão do saneamento, indicando também aos homens

que sofriam da mesma enfermidade que tivesse o tratamento que ele fizera.

Uma vez curado, a imagem do Jeca era bastante diversa da outrora apresentada. A

palavra de ordem do personagem passa a ser o progresso: “Hei de empregar toda minha

fortuna nesta obra de saúde, dizia. Meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo

a bicharia!”209

. A visão do homem saudável associada ao progresso é bastante clara. No texto

em questão, depois de devidamente medicado, passando a trabalhar com as forças que lhe

competem, Jeca Tatu

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou por aí. Resolveu

ensinar o caminho da saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na

fazenda e vilas próximas vários POSTOS DE MALEITOSAN, onde tratava os enfermos de sezões; e também POSTOS DE ANKILOSTOMINA, onde

curava os doentes de amarelão e outras verminoses210

.

Vê-se assim que, uma vez com saúde, na nova interpretação dos literatos, o homem

nacional não está mais fadado ao fracasso, ele será a própria representação do progresso211

. A

doença é neste sentido um símbolo do atraso e da pobreza, e por isso deve ser exterminada.

Era preciso que o país se mobilizasse, pois este era um problema coletivo. Estava aí a resposta

por que tanto ansiava Monteiro Lobato.

depois de tratado poderá realizar inclusive os seus sonhos. Estas imagens podem ser vistas em propagandas do

“Biotônico Fontoura”, vide anexos XII e XIII ao final desta tese. 209 In: Folheto do Biotônico Fontoura. 210 In: Folheto do Biotônico Fontoura. 211 Ver no anexo VII ao final desta tese a figura do Jeca Tatuzinho, segundo versão lobatiana para o famoso Jeca

Tatu. Em 1924, é lançado Jeca Tatuzinho, história espalhada como propaganda do Biotônico Fontoura por todo o

país durante décadas. Lobato, redimido das acusações que fizera ao personagem Jeca Tatu, se engaja em uma

campanha de saneamento e declara que o Jeca, devidamente medicado e uma vez curado das doenças, é capaz de

progredir.

Page 94: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

94

6. O GAÚCHO VISTO POR UMA NOVA ÓTICA: UMA LEITURA DE DOM

SEGUNDO SOMBRA, DE RICARDO GÜIRALDES

À custa de dramática experiência vivida, esses povos

atrasados vão se apercebendo de que os progressos aparentes de suas cidades modernizadas, de seus hábitos

de consumo conspícuo de artigos importados são a

contraparte das suas crescentes massas pauperizadas, da perda da autonomia do seu desenvolvimento e da

sujeição a vínculos opressivos na órbita econômica,

política e cultural.

(Darcy Ribeiro)

Estamos condenados à civilização. Ou progredimos ou desaparecemos.

(Euclides da Cunha)

Em inícios do século XX, diferentemente do que fizera Domingo Faustino Sarmiento,

em sua famosa obra intitulada Facundo, um clássico da literatura hispano-americana e do

Romantismo argentino, escrito em meados do século XIX e editado em 1845, período em que

Sarmiento atuava como professor e jornalista, Ricardo Güiraldes constrói uma nova imagem

do gaúcho212

– denominação dada às pessoas ligadas à atividade pecuária em regiões de

ocorrência de campos naturais, entre os quais o bioma denominado pampa.

212 Darcy Ribeiro, em As Américas e as civilizações, define os gaúchos como mestiços resultantes do

caldeamento de índias e espanhóis. Habitando os amplos espaços pastoris, dedicavam-se ao gado que se

multiplicava no campo. Suas características biológicas foram mantidas pela endogamia e, em razão de seu

isolamento na campanha, tendiam a conservar as técnicas de subsistência, as formas de organização social, a

visão de mundo, os hábitos e a língua. Os gaúchos, até fins do século XVIII, deviam falar principalmente o

guarani tanto na Argentina quanto no Uruguai. Como estrato subordinado, o gaúcho, originalmente livre, depois

é submetido a crescentes compulsões que, primeiro, o engajam no sistema global sob o domínio dos donos da

terra e, depois, o marginalizam e o fazem suceder pelo imigrante, como força de trabalho básica. Nesse processo é que o gaúcho não apenas se desfigura como também se espanholiza. (Cf. RIBEIRO, 2007, p. 407-408). Um

estudo genético realizado pela FAPESP revelou que os gaúchos, assim como a maioria dos brasileiros, são

descendentes de uma mistura de europeus, índios e africanos, mas com algumas peculiaridades. O estudo

apontou que os ancestrais europeus dos gaúchos eram principalmente espanhóis, e não portugueses. Isto porque a

Page 95: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

95

Tanto um quanto outro tratam em suas obras, escritas em momentos distintos, do

mesmo homem – o gaúcho. Contudo, a imagem que fora construída do gaúcho é radicalmente

distinta nas obras em questão. Sob o pretexto de contar a vida do caudilho Juan Facundo

Quiroga, Sarmiento em Facundo tratará sobretudo do gaúcho e do aspecto físico da República

Argentina, bem como de caracteres, hábitos e ideias que engendra. A imagem que é

apresentada ao longo de sua obra, como já visto em capítulo anterior, é bastante negativa, uma

vez que o gaúcho, habitante do pampa argentino, é pintado nos seguintes termos: “A vida do

campo, pois, desenvolveu no gaúcho as faculdades físicas sem nenhuma das da

inteligência”.213

Como bem aponta Bella Jozef, em História da literatura hispano-americana,

“Facundo Quiroga representa o aspecto primitivo da vida argentina, na concepção das duas

forças contrárias: civilização e barbárie”.214

Vale lembrar que, em Facundo, Sarmiento

defendia a total destruição da etnia gauchesca, por atribuir a ela a responsabilidade pelo atraso

econômico e cultural da Argentina. Opondo civilização e barbárie no pampa argentino,

pregava que o gaúcho era o grande mal que assolava o país, discurso que legitimava a

destruição desses homens.

Vendo na imigração europeia a única saída possível e provável para o atraso da

civilização de seu país, Sarmiento defenderá enfaticamente a substituição da população local

constituída por gaúchos pelos homens europeus. É válido ressaltar aqui que, muito mais do

que importar uma população dita “civilizada” que pudesse trazer o progresso que o país tanto

esperava, o papel da imigração tinha como objetivo importar uma população branca – daí a

preferência por imigrantes europeus – com vista ao embranquecimento da população, que era

região foi por muito tempo disputada entre Portugal e Espanha, e só foi transferida da Espanha para o Brasil em

1750. O estudo também revelou um alto grau de ancestralidade indígena nos gaúchos pelo lado materno (52% de

linhagens ameríndians), maior do que dos brasileiros em geral. O estudo também detectou 11% de linhagens africanas pelo lado materno. Desta forma, os gaúchos são fruto sobretudo da miscigenação entre homens

ibéricos, principalmente espanhóis, com mulheres indígenas e, em menor medida, com africanas. 213 SARMIENTO, 1996, p. 39. 214 JOZEF, 2005, p. 60.

Page 96: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

96

sobretudo formada por mestiços, para se constituir uma população que se fazia ideal.

Homogeneizar, neste sentido, era para a elite intelectual uma forma de civilizar.

Como bem aponta o antropólogo Darcy Ribeiro em seu estudo sobre as Américas e a

civilização, a alienação de Sarmiento, influenciado pela literatura de cunho racista vigente na

sua época, manifesta-se de forma mais evidente em uma carta em que, comentando a respeito

de uma colônia de emigrados da Califórnia que estava criando o Chaco, escreve: “Pode ser a

origem de um território e, um dia, de um Estado ianque (com idioma e tudo). Com esse

concurso genético melhorará nossa raça decaída”.215

Vários foram os literatos que incentivaram a imigração europeia na Argentina.

Seguramente, o programa mais radical foi elaborado por Juan Bautista Alberdi quando da

queda de Rosas. Presente no livro Bases y puntos de partida para la organización nacional

(1852), o ideário alberdiano pode ser resumido na famosa frase “governar é povoar”. Como

bem aponta o pesquisador Fernando Devoto, essa fórmula utilizada por Alberdi para o leitor

avisado sugere imediatamente outra: a de que “povoar é civilizar”. Para Alberdi, como

adverte Devoto, “a imigração europeia seria o novo ator que possibilitaria a implantação de

novos hábitos e novos comportamentos, que, por meio do exemplo cotidiano (a educação

pelas coisas), logo seriam imitados pelos nativos”.216

Tão radical quanto este projeto era também o elaborado por Sarmiento, o qual

compartilhava das mesmas ideias e que, com o propósito de a educação servir como meio de

implantação de novos hábitos e comportamentos, se dedica a construir escolas em seu país.

Em seu governo, Domingo Faustino Sarmiento deu uma enorme contribuição para a educação

na Argentina: fundou escolas públicas, duplicando o seu número, e construiu cem bibliotecas

públicas, além de ter-se destacado como escritor.

215 Apud RIBEIRO, 2007, p. 425. 216 DEVOTO, 2000, p. 34.

Page 97: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

97

Devido à implantação dos projetos políticos e econômicos pensados por Bartolomé

Mitre217

, Domingo Faustino Sarmiento218

e Nicolás Avellaneda219

– presidentes da Argentina

nos períodos que compreenderam os anos de 1862 a 1868, 1868 a 1874 e 1874 a 1880,

respectivamente –, que se concretizaram após 1880, período de grandes transformações do

país, iniciou-se, na Argentina, uma cultura diferente da possuída pelo indígena e da trazida

pelos espanhóis. Tal projeto incluía, além do estímulo em larga escala à imigração de

europeus, os investimentos externos. Ressalte-se aqui que, embora os objetivos de imigração

fossem comuns aos políticos supracitados, a formulação do projeto foi diferente em cada caso.

Para Bartolomé Mitre, a imigração era desejável não para transformar uma realidade e

criar um novo país, mas sim para integrar-se à realidade já existente. Esta formulação difere

da elaborada por Sarmiento, visto que Mitre desejava não a substituição de uma população

por outra, mas a integração de uma nova população à já existente em seu país. Em

contrapartida, Sarmiento pretendia promover a substituição do povo; o que ele de fato

desejava era construir uma nação povoando o deserto. Os imigrantes, neste sentido, seriam os

atores de uma mudança radical. Estes viriam para a Argentina para fornecer mão-de-obra para

uma economia em expansão. Para Sarmiento, o poder de transformação seria extraordinário,

uma vez que eliminaria o grande inimigo da civilização e do progresso: o deserto. O mal da

Argentina era, para Sarmiento, a sua extensão. Portanto, quanto menor fosse o território de

um país, mais fácil seria acabar com a barbárie autóctone.

217 Bartolomé Mitre (1821-1906), político, escritor, militar e jornalista, foi presidente da Argentina no período

que compreendeu os anos de 1862 a 1868, tendo estimulado fortemente a imigração e os investimentos externos.

Fundou La Nación, um dos jornais mais influentes da América Latina. 218 Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), general, pedagogo, político e escritor, presidiu a República

Argentina, sucedendo Mitre, no período de 1868 a 1874. Deu prosseguimento ao programa de incentivo à

imigração europeia e investimentos externos de seu antecessor. Contribuiu para a educação com a fundação de escolas e bibliotecas públicas, além de ter se destacado como escritor por ter produzido a obra Facundo:

civilização e barbárie no pampa argentino, editado em 1845. 219 Nicolás Avellaneda (1837-1885), advogado, jornalista e político argentino, foi presidente da Argentina no

período de 1874 a 1880. Sucedeu Sarmiento na presidência, mantendo o programa de incentivo à imigração. Em

1876, sancionou a Lei da Imigração, conhecida como Lei Avellaneda, a qual prometia terra e trabalho aos

camponeses europeus e que, por sua vez, facilitou a radicação de centenas de milhares de europeus.

Page 98: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

98

Nicolás Avellaneda, por sua vez, sanciona a Lei nº 817, em 1876, conhecida como Lei

Avellaneda, a qual sustenta a política imigratória argentina. A lei que propunha uma relação

estreita entre migração e colonização garantiu um conjunto de benefícios efetivos, como

alojamento gratuito no momento da chegada do imigrante, e passagens gratuitas de trem para

deslocar-se para o interior.

Os governos de Mitre, Sarmiento e Avellaneda, que sucederam o governo de Justo

José de Urquiza220

(1821-1906), abriram caminho para o fortalecimento do comércio

estrangeiro na Argentina e para a atuação dos europeus nos segmentos políticos, econômicos

e sociais. O pampa, neste sentido, deixa de ser gaúcho para se europeizar, como sonharam

muitos literatos. Como aponta o pesquisador Fernando Devoto, em estudo presente em Fazer

a América, “Setenta anos de imigração em massa, em proporções que quase nenhum país do

mundo conhecera, mudaram o rosto da Argentina ao mudar o dos seus habitantes”.221

De acordo com dados históricos, quando a Argentina alcançou sua independência, em

1810, o país possuía cerca de 350 mil habitantes. Em 1850, esses 350 mil neoamericanos

cresceriam para cerca de 1 milhão, sobretudo pela incorporação de imigrantes europeus. Daí

em diante, esse número tenderia a se intensificar cada vez mais. Somado a um milhão de

novos habitantes, no século seguinte, entre 1857-1950, se lançariam 1,8 milhão de italianos,

1,3 milhão de espanhóis e aproximadamente meio milhão de pessoas de outras extrações222

.

Diante desse contexto, Darcy Ribeiro ressalta que, “Com essa incorporação maciça de

imigrantes é que a população argentina pôde saltar de 4,8 milhões em 1900 a 17 milhões em

1950”.223

É válido destacar que, para alcançar seus objetivos de imigração, o país se valeu da

imigração subsidiada. Para isso, foi promulgada uma legislação que oferecia vantagens

evidentes ao imigrante.

220 Justo José de Urquiza, militar e político argentino, foi presidente no período que compreendeu os anos de

1854 a 1860. 221 DEVOTO, 2000, p. 33. 222 A respeito do alude imigratório, ver RIBEIRO (2007, p. 426-430). 223 Cf. RIBEIRO, 2007, p. 427.

Page 99: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

99

Contudo, não só o desejo de mudar o rosto da Argentina motivou os projetos políticos

dos governantes em questão. Lutas políticas, como foi o caso de Sarmiento, impulsionaram os

políticos em sua animosidade contra os gaúchos.

Sabe-se também que o livro de Sarmiento é um protesto evidente contra Rosas e o

regime por ele implantado. O federalista Juan Manuel Rosas (1793-1877), que governou

primeiramente Buenos Aires de 1829-1832, sendo nomeado para um segundo quinquênio de

governo, entre 1835-1840, exerceu vigorosa hegemonia sobre os caudilhos das demais

províncias. Na luta contra os unitários, numa incessante cruzada, contou com o apoio das

massas (gaúchos, camponeses e negros), da Igreja, de estancieiros e de parte da população

urbana, sobretudo dos homens negros, simpatizantes do federalismo.

Segundo palavras de Sarmiento, o atraso de Buenos Aires se deve, para além das

questões concernentes ao gaúcho, à falta de providência das autoridades para com seu país.

Sua crítica é dirigida de forma bastante evidente quando nos diz:

Queixemo-nos da ignorância desse poder brutal, capaz de esterilizar, para si

e para as províncias, os dons que a natureza prodigalizou ao povo que

desencaminha. Buenos Aires, em lugar de mandar luzes, riqueza e prosperidade ao interior, manda-lhe só grilhões, hordas exterminadoras e

tiranetes subalternos. Também vinga-se do mal que as províncias lhe fizeram

ao arranjar-lhe Rosas!224

Sarmiento, paralelamente à crítica que faz ao governo de Rosas, pregava a destruição

dos gaúchos, ao mesmo tempo em que estabelecia a oposição entre dois espaços muito bem

delimitados ao longo de sua obra: o campo, segundo ele, espaço marcado pela barbárie, e a

cidade, lugar onde supunha se encontrava a civilização, o progresso e a riqueza, segundo

palavras do próprio autor. É importante destacar aqui que, ao mesmo tempo em que essa

oposição era cultural – o mundo dos homens letrados versus uma tradição tipicamente oral –,

era, sobretudo, também política, dado que combatia os federalistas que lutavam pelo campo,

224 SARMIENTO, 1996, p. 25.

Page 100: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

100

quais sejam: Rosas e os caudilhos das províncias. Neste sentido, combater Rosas significava

combater a massa que o apoiava, composta fundamentalmente por gaúchos.

6. 1. O gaúcho como tipo humano: de marginal a patriota

Ao abordar a história dos mestiços que habitavam a região do Prata, Darcy Ribeiro

(2007) estabelece uma diferenciação entre o ladino e o gaúcho, ambos mestiços platinos,

frutos do caldeamento de uns poucos pais europeus com uma multiplicidade de mães

indígenas. Conforme aponta Ribeiro225

, eram ladinos os que “resultaram relativamente menos

mestiçados e mais europeizados pela absorção contínua de um pequeno número de espanhóis,

que vinham tentar a América nessa região marginal”, em decorrência de uma imigração que já

se fazia presente. Estes homens viviam em vilarejos ou se dedicavam principalmente à

lavoura e ao artesanato. Segundo consta, “Os núcleos ladinos das barrancas do rio da Prata

receberam alguns escravos negros, como artigo suntuário para serviços domésticos e outros, a

que o gaúcho não se adaptava”.226

Os ladinos falavam principalmente o espanhol. Devido à

influência dominadora na formação cultural do ladino ter sido o porto, este manteve contato

com o grande mundo externo, tornando-se cada vez mais exógeno.

Em contrapartida, os gaúchos eram os mestiços criados junto ao gado que se

multiplicava prodigiosamente nos amplos espaços pastoris. Suas características biológicas

originais foram conservadas pela endogamia e, devido ao isolamento na campanha,

conservaram “as técnicas de subsistência, as formas de organização social, a visão de mundo,

os hábitos e a língua plasmada nas primeiras décadas pela amalgamação da dupla herança

225 RIBEIRO, 2007, p. 407. 226 RIBEIRO, 2007, p. 407.

Page 101: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

101

guarani e espanhola, no que tinham de compatíveis com seu modo de vida peculiar”.227

A

influência dominadora do gaúcho foi a campanha, que o deixava atrelado ao país e ao trabalho

dedicado ao pastoreio. Ao que tudo indica, os gaúchos, até fins do século XVIII, falavam

principalmente o guarani, tanto na Argentina quanto no Uruguai.

Como aponta Ribeiro228

, o gaúcho constituiu a contraparte humana do pastoreio

selvagem dos pampas e dos campos rio-platenses. Vivia percorrendo os campos em

cavalgadas, abatendo o gado que circulava livremente, carneava para churrasquear o que lhe

apetecesse e tirava o couro para vender ao pulpero da campanha ou ao contrabandista. O

engajamento como peão temporário para as vaquejadas livres a fim de recoletar grandes

quantidades de couro, ou ainda o acampamento nos latifundiários dos estancieiros ricos, pelo

gosto do ofício do rodeio ou como empresa esportiva eram atividades esporádicas do gaúcho.

Mantendo-se independente e livre, contrastava com o camponês ladino “que se deixa[va] atar

ao vilarejo e à lavoura, ou que se faz[ia] peão de serviços subalternos das estâncias”.229

Para

fins de análise, trabalharei aqui apenas a figura dos gaúchos, foco deste estudo.

Durante dois séculos, o gaúcho constituiu-se no elemento característico do pampa

argentino. Este tipo humano apareceu em sua feição primitiva primeiramente nas terras do

Rio da Prata e, num momento posterior, em terras do Rio Grande do Sul. O gaúcho começou

a projetar-se como tipo social a partir da primeira fundação de Buenos Aires, em 1536.

Durante um longo período, habitou os amplos espaços pastoris, dedicando-se basicamente ao

gado que se multiplicava no campo.

Ainda segundo Ribeiro, “Por muito tempo, a única riqueza seria, ainda, o gado alçado,

selvático, que crescia livre na campanha, onde devia ser caçado. Livre era seu desfrute para

quem o fosse buscar nos ermos onde se encontrava”.230

227 RIBEIRO, 2007, p. 408. 228

RIBEIRO, 2007, p. 420. 229 RIBEIRO, 2007, p. 420. 230 RIBEIRO, 2007, p. 421.

Page 102: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

102

No século XVIII, além do couro, do sebo e da gordura, a carne do gado passou a ser

valorizada sobretudo em decorrência da produção de charque. Darcy Ribeiro menciona que a

“‘mina’ de couro, de sebo e de carne que parecia inesgotável, explorada desenfreadamente

pelo homem e dizimada pelos cães selvagens que se multiplicavam também pela campanha

alimentando-se de bezerros, acaba por minguar”231

.

Em 1820, surgem os saladeiros que começam a disputar o rebanho e a impor disciplina

ao gaúcho, que passou a ser impedido de carnear livremente, para tirar o couro e para se

alimentar232

. Por não ter mais liberdade para carnear para seu próprio sustento, atividade que

vinculava o gaúcho ao sistema produtivo e de alguma forma o inseria no contexto social, este,

seguindo na atividade, ingressou na chamada delinquência. Não sendo proprietário de terras,

sofrendo devido à falta de trabalho e moradia fixa, este homem ficou à margem do sistema,

transformando-se assim em ladrão, jogador, vadio, sendo considerado assim um bárbaro.

Diante desse quadro, o gaúcho passou a ser visto como ser indesejado, sobretudo pelos

detentores do poder: as autoridades das cidades e os estancieiros (fazendeiros de gado).

Segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, em As Américas e as civilizações,

Para acabar com esta “praga dos campos” [os gaúchos], as autoridades

citadinas, mancomunadas com os proprietários de terras, decretam um

regime de vigilância que obriga todo indivíduo da campanha que não seja proprietário, a colocar-se a serviço de um patrão. Doravante, quem fosse

encontrado nos campos, sem a competente “papelada”, estava sujeito aos

rigores da lei. Assim, todos os gaúchos são declarados vadios, sujeitos à prisão por transitar sem documentos ou ordem expressa de um juiz. Na

efetivação do novo regime, todo um serviço policial é montado na campanha

para caçar “gaúchos vagabundos”, a fim de condená-los a anos de serviço

militar na fronteira ou colocá-los compulsoriamente a serviço dos estancieiros.

233

Somente durante as guerras de independência platina é que o gaúcho passou de massa

indesejada a desejada, ao se incorporar como soldado nas lutas – fato este que lhe conferiu o

status de patriota e herói. Contudo, a condição de não-marginal teve curta duração para o

231 RIBEIRO, 2007, p. 422. 232 Cf. RIBEIRO, 2007, p. 422. 233 RIBEIRO, 2007, p.422-423, ênfases no original.

Page 103: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

103

gaúcho, pois, passada a consolidação dos objetivos dos estancieiros e dos comandantes, eles

voltaram a ocupar o patamar de marginais, dado que sua serventia já não era mais necessária,

podendo ser descartados. Como aponta o historiador Jose Miguel Oviedo, em Historia da

literatura hispano-americana,

Esa fase “civilizada” resultará pasajera, pues en las primeras décadas

republicanas la utilidad del gaucho será olvidada en medio de las luchas por

el poder, en las que aparece como aliado de la dictadura y el caudillismo retrógrado, como un elemento renuente al progreso. Con el estigma de

anárquico, con un apego recalcitrante a sus proprias tradiciones, “desertor” o

“matrero”, volverá a ser visto como socialmente irrecuperable; con los

“instintos de destrucción y carnicería” que ve en él Sarmiento, se transforma en outra clase de proscrito argentino; siempre empujado a una tierra de

nadie, mas allá de la civilización y la legalidad.234

O gaúcho, neste sentido, é rechaçado de seu próprio país. É interessante observar a

intencionalidade desse processo e, por conseguinte, a alienação da liderança nacional sobre

seu próprio povo, ao propor nada menos que a substituição do gaúcho por “gente de melhor

qualidade”, objetivo central no projeto de construção de identidade em vigor na época no qual

estava inserido Domingo Faustino Sarmiento.

Ao negar o outro, há na atitude do homem uma forma de alienação social. O homem

com esse comportamento ignora que ele é criador da sociedade, da política, da cultura e,

sobretudo, que é um agente da História. Neste sentido, este homem acredita ou finge acreditar

que a sociedade não é instituída por ele, mas por vontade e obra da natureza e dos deuses,

como aponta criticamente Chauí235

.

Ao dizer que o outro é “preguiçoso, inadaptável à civilização e ao progresso”, está-se

imaginando/reproduzindo a ideia equivocada de que somos o que somos somente por nossa

própria vontade, sem levar em consideração que a organização e a estrutura da sociedade,

assim como de sua economia e política, possuem um peso sobre a vida das pessoas. Neste

234 OVIEDO, 1997, p. 50. 235 Cf. CHAUÍ, 1997, p. 174.

Page 104: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

104

sentido, atribuir à vontade os males em que se encontra um ser configura um discurso, no

mínimo, falacioso.

Marilena Chauí chama atenção para o fato de a alienação social se exprimir numa

“‘teoria’ do conhecimento espontânea, formando o senso comum da sociedade. Por seu

intermédio, são imaginadas explicações e justificativas para a realidade tal como é

diretamente percebida e vivida”.236

Assim, a “explicação” – ou, melhor dizendo, a tentativa de

explicação – para a pobreza do homem é atribuída à preguiça e ignorância do outro, ou seja, é

atribuída pelo senso comum à responsabilidade do homem. O homem é assim por vontade

própria; só a ele cabe a mudança, que não ocorre porque assim quer o homem. Há ainda a

afirmação de que por vontade divina ou por uma inferioridade que lhe é peculiar, o homem

está fadado a permanecer inerte, sem mudança social.

O homem, neste sentido, é explicado/descrito a partir do ponto de vista da classe

dominante da sociedade a que pertence, constituída pelos intelectuais, filósofos, cientistas,

professores, escritores etc. Essa elaboração intelectual incorporada pelo senso comum é, para

Chauí, a denominada ideologia, cuja função principal é “ocultar e dissimular as divisões

sociais e políticas, dar-lhes a aparência de indivisão e de diferenças naturais entre os seres

humanos”.237

Assim, o ponto de vista de um grupo ou de uma classe social é representado

como sendo o ponto de vista de toda a sociedade.

Como bem aponta Chauí,

A ideologia precisa das ideias-imagens, da inversão de causas e efeitos, do

silêncio para manifestar os interesses da classe dominante e escondê-los

como interesse de uma única classe social. A ideologia não é o resultado de uma vontade deliberada de uma classe social para enganar a sociedade, mas

o efeito necessário da existência social da exploração e dominação, é a

interpretação imaginária da sociedade do ponto de vista de uma única classe social.

238

236 CHAUÍ, 1997, p. 174. 237 CHAUÍ, 1997, p. 174. 238 CHAUÍ, 1997, p. 176.

Page 105: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

105

Neste sentido, valendo-se de um discurso alienante e de um pensamento ideológico, a

classe dominante pode não só falar do outro como também pelo outro, numa clara tentativa de

anulação deste homem, como fora feito com o gaúcho.

6.2. O gaúcho na obra de Ricardo Güiraldes: um novo olhar sobre o homem dos pampas

argentinos

Ricardo Güiraldes, romancista, poeta e contista, nascido em Buenos Aires em 1886,

lança um ano antes de sua morte, que ocorreu em 1927, o romance Dom Segundo Sombra.

Considerado um dos maiores clássicos da literatura argentina e latino-americana, Dom

Segundo Sombra narra a vida dos homens do pampa argentino. Güiraldes, por meio dos

conselhos e ensinamentos do legendário Dom Segundo, personagem que dá nome ao livro, ao

jovem Fábio, gaúcho que com apenas quatorze anos decide dar um novo rumo à sua vida,

eterniza a mística campeira. O que Güiraldes pretende com seu romance é descrever a

formação do trabalhador rural da campanha gaúcha.

Em prefácio de Dom Segundo Sombra, escrito pelo poeta Leopoldo Lugones (1847-

1938), um dos grandes intelectuais argentinos do seu tempo, o autor afirma que Ricardo

Güiraldes em Dom Segundo Sombra falará do gaúcho como ele é e sempre foi: “el hombre de

pampa e de huella”, ou seja, o homem do pampa e dos caminhos. Güiraldes desenhará a

imagem do gaúcho não como um bárbaro, vadio e degenerado, mas sim como um homem

“acomodado, por temperamento, ao seu mister de combatente e andarilho”. Para ele, esse

Page 106: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

106

mister, como aponta Lugones, consiste em “dominar o gado com destreza, mediante um

complicado sistema do qual fazem parte a sabedoria e a arte”.239

Diferentemente do que Sarmiento apontara em sua obra – de que “As raças americanas

vivem na ociosidade e se mostram incapazes, ainda que obrigadas, para dedicar-se a um

trabalho duro e contínuo”240

–, o gaúcho é representado com função social na obra de

Güiraldes, dado que este não é mostrado como um “vagabundo”, mas como um trabalhador

que ganha a vida duramente na terra, domando o gado.

Note-se que a transformação do gaúcho, comparadas as obras de Sarmiento e

Güiraldes, faz-se muito evidente. Se por um lado Sarmiento viu no gaúcho a figura de um

homem acomodado e inerte, definido por um discurso inquestionavelmente determinista, por

outro Güiraldes retifica a visão de Sarmiento ao afirmar que o gaúcho é acomodado ao mister

de combatente e andarilho. É nítida nos discursos em questão uma clara oposição entre inércia

e movimento.

O ofício do gaúcho, descrito por Sarmiento como mera atividade braçal, é

radicalmente oposto se comparado às palavras de Güiraldes, que vê nessa atividade a

sabedoria e a arte como pré-requisitos para dominar o gado e tocá-lo, visto que, para o trato

com o gado, é preciso ter destreza.

O romance que para Lugones pertence à família do Facundo e do Martín Fierro em

muito se distancia daquilo que Domingo Faustino Sarmiento escreve sobre o gaúcho em sua

prosa. Pode-se assim dizer que de fato Dom Segundo Sombra, Facundo e Martín Fierro

pertencem à mesma família, pois as obras em questão, seja em prosa seja em verso, tratam do

gaúcho e daquilo que acreditam se relacionar à sua vida. Contudo, um olhar mais atento para

essas obras nos faz perceber que em muito difere a visão que os autores têm sobre o gaúcho e

a formação do trabalhador rural da campanha gaúcha.

239 GÜIRALDES, 1997, p. 7, grifos meus. 240 SARMIENTO, 1996, p. 29.

Page 107: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

107

A definição do gaúcho elaborada por Güiraldes, como se vê, é radicalmente oposta à

elaborada por Sarmiento. Enquanto Güiraldes associa o gaúcho à imagem do homem que

busca o caminho em sua constante andança, para Sarmiento o gaúcho não passa de um ser

inerte, que se recusa a buscar novos horizontes, não aceitando assim a modernização. A

inércia, neste sentido, representará a estagnação, o atraso, o que é avesso à mudança, na visão

de Domingo Faustino Sarmiento. Configura-se aí nas obras em questão uma evidente

oposição entre inércia e movimento.

Em Güiraldes, a ideia de movimento faz-se presente em diversas passagens do

romance. Se por um lado autores que compartilhavam da mesma posição ideológica de

Sarmiento representaram o gaúcho como inerte e acomodado, Güiraldes não titubeia em

registrar o gaúcho associado ao movimento. Caminhar, neste sentido, passa a ser uma ideia

fixa e constante, em passagens como:

Com a saída do sol veio o frescor, que nos trouxe uma alegria ávida de

traduzir-se em movimento241

.

[...] Animais e pessoas moviam-se como presas de uma ideia fixa: caminhar,

caminhar, caminhar242

.

Escrito em primeira pessoa, o romance Dom Segundo Sombra narra a história vivida

pelo personagem Fábio Cárceres – que teve a identidade de seu pai revelada somente quando

da transição da adolescência à fase adulta de sua vida –, relatando sua vida desde criança até

atingir a fase adulta. Dividido em vinte e sete capítulos, a narrativa abrange as recordações da

infância de Fábio, presentes no primeiro capítulo do livro, a fase da adolescência que

compreende quase todo o romance, iniciando-se no capítulo II e estendendo-se ao XXVI, e

por fim a fase adulta, presente no último capítulo do romance, o XXVII.

Escrito na forma de memórias, o romance relatará a vida do jovem Fábio desde

aproximadamente seis anos, idade em que é tirado da convivência junto à mãe para viver com

241 GÜIRALDES, 1997, p. 60. 242 GÜIRALDES, 1997, p. 68

Page 108: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

108

duas tias solteironas, Assunção e Mercedes, sob o pretexto de estudar no povoado da

província de Buenos Aires, onde passa a residir junto a elas. O novo ambiente familiar,

descrito como verdadeira prisão, traz péssimas recordações ao personagem-protagonista, dado

o tratamento que recebe de suas familiares: “Minhas tias logo se cansaram do brinquedo e

resmungavam o dia todo, pondo-se de acordo somente para dizer-me que eu estava sujo, que

era vagabundo, e para atirar-me a culpa de quanto contratempo ocorresse em casa”.243

De sua infância, Fábio guarda vagas recordações. A figura de sua mãe, de quem é

retirado dos braços ainda muito novo, fica reservada somente às lembranças do personagem,

cujo transcurso de vida é apenas mencionado como coisa do passado.

A figura das duas tias solteironas e de um homem, a quem chama de protetor, são

igualmente vagas para o protagonista. O homem, cuja verdadeira identidade é revelada apenas

ao final do romance, é Dom Fábio Cárceres, pai biológico do então jovem bastardo Fábio.

Tendo sido visitado algumas vezes por Dom Fábio Cárceres quando da sua infância e início

da adolescência, desfruta de pequenos passeios e presentinhos, que vão se tornando cada vez

mais esporádicos.

Frequentando apenas três anos o colégio, Fábio deixa de estudar por suas tias

entenderem que não “pagava a pena” prosseguir sua instrução, e passa a encarregar-se de

mandaletes244

, atividade que o mantém constantemente nas ruas. Tendo sua educação

negligenciada pelas tias, Fábio põe-se a vagar pelas ruas quase todos os dias. A fim de

conseguir alguns trocados, pescava pequenos bagres e os vendia no comércio.

Em suas andanças, conhece Dom Segundo Sombra, um gaúcho solitário, itinerante,

que realizava trabalhos de estância em estância em longas caminhadas. Fascinado pela figura

daquele homem, Fábio com apenas quatorze anos de idade decide fugir da casa de suas tias e

243 GÜIRALDES, 1997, p. 12. 244 Segundo consta do dicionário Aurélio, “1. Recado, mandado, incumbência; [...] 3. Pessoa que trabalha numa

estância, em serviços leves ou na transmissão de recados ou ordens” (Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão

5.0).

Page 109: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

109

vai ao encontro de Dom Segundo, passando a acompanhá-lo em sua jornada pela imensidão

das planícies argentinas. A partir desse encontro, Fábio praticamente viverá a sombra de Dom

Segundo, acompanhando seus passos e seguindo seus ensinamentos, numa clara tentativa de

ser o outro – ou, pelo menos, de se parecer com o outro a quem tanto admira.

Neste sentido, Dom Segundo Sombra é para Fábio o que Freud, estudando o aparelho

psíquico do ser humano, chamou de superego245

– instância inconsciente que representa as

influências do passado: “a influência, essencialmente, do que é retirado de outras pessoas”246

.

Freud acrescenta que o superego, “ao longo do desenvolvimento do indivíduo, recebe

atribuições de sucessores e substitutos dos pais, tais como professores e modelos, na vida

pública, de ideais sociais admirados”.247

Dom Segundo, apresentado no romance como um típico gaúcho, é um exemplo de

homem honrado, sábio e de boa conduta. A passagem de Dom Segundo pelo pueblo onde

Fábio residia junto a suas tias muda o rumo da vida desse adolescente sem muitas

perspectivas. O contato de Dom Segundo Sombra com o então jovem Fábio marca, sem

dúvida, a vida do personagem-protagonista, que terá na figura de Dom Segundo um modelo

de homem e de vida.

Disposto a passar-lhe seus ensinamentos, o sábio gaúcho aos poucos o transforma num

verdadeiro homem do pampa. Fábio, na convivência diária ao lado de Dom Segundo, aprende

os conhecimentos necessários de um homem do campo, e seu contato com Dom Segundo em

inseparáveis cinco anos significam não só afastar-se da prisão em que vivia ao lado de suas

245 “O super-ego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id

[formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como

pulsões], impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a

repressão sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma de moral, como um conjunto de

interdições e de deveres, e por meio da educação, pela produção de imagens do ‘eu ideal’, isto é, da pessoal moral, boa e virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de

latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse período, forma-se nossa

personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará obrigada a seguir o

caminho traçado pelo super-ego” (CHAUÍ, 1997, p. 167-168). 246 CHAUÍ, 1997, p. 164. 247 CHAUÍ, 1997, p. 164.

Page 110: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

110

tias, ganhando liberdade nas extensas planícies argentinas, como também ver-se livre da

condição de marginal em que se encontrava, uma vez que era tido por alguns no vilarejo onde

residia junto a suas tias por guacho248

. Em suas palavras, Fábio declara:

Cinco anos tinham passado, sem que nos separássemos um só dia, durante

nossa penosa vida de tropeiros. Cinco anos desses que fazem dum menino

um gaúcho, quando se teve a sorte de vivê-los ao lado de um homem como o que eu chamava de padrinho. Foi ele quem me guiou paciente a todos os

conhecimentos do homem do campo. Ensinou-me as artes de tropeiro, as

artimanhas do domador, o manejo do laço e das boleadeiras, a difícil ciência

de formar um bom cavalo para o aparte e as pechadas, o amadrinhar uma tropilha e fazê-la parar à mão no campo, até poder agarrar os animais onde e

como quisesse. Vendo-o, tornei-me hábil na preparação de loncas e tentos,

com os quais logo fazia meus bucais, rédeas, sobrecinchas, encimeiras; assim como para enxerir laços e colocar argolas e presilhas.

249

Dom Segundo assume um papel fundamental na vida de Fábio. Sua companhia, além

de significar a conquista da liberdade e de longos ensinamentos e aprendizagem, está

associada também ao progresso, uma vez que, segundo palavras do próprio personagem, “ao

lado de Dom Segundo, que mantinha seu redomão ao tranco, [Fábio] ia caminhando a largos

passos” (p. 28). Não há dúvida de que Dom Segundo, no romance, representa, assim, a

sabedoria. Este homem que muito percorreu pelos pampas argentinos, caminhando de estância

em estância, adquire conhecimentos ao longo dos caminhos, em suas constantes andanças;

neste sentido, o movimento está diretamente associado à sabedoria. Andar assume no

romance a conotação de viver, de adquirir experiência, e nisso Dom Segundo tinha muita

vivência.

O contato de Dom Segundo Sombra com Fábio, sem dúvida, marca a vida do

protagonista, que terá na figura de Dom Segundo um modelo de homem e de vida.

Somado a isso, a imagem do gaúcho está associada à valentia, à persistência e à força.

O gaúcho descrito por Güiraldes é, antes de tudo, um forte, aguentando sem se queixar de seu

248 Segundo nota do tradutor (N.T.), guacho representa a criança ou animal sem pais; essa palavra constitui

qualificação ofensiva e equivale a um dos piores insultos que se podem fazer a um gaúcho. 249 GÜIRALDES, 1997, p. 84.

Page 111: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

111

quinhão de dor250

. Dom Segundo não só ensina a Fábio a arte de ser um tropeiro, como

também o ensina a enfrentar as dificuldades que a vida oferece ao homem, como se pode

constatar em passagem do romance:

Também por ele [Dom Segundo] soube da vida, aprendi a resistência e a

inteireza na luta, o fatalismo em aceitar sem resmungos o acontecido, a força

moral ante as aventuras sentimentais, a desconfiança com as mulheres e a bebida, a prudência entre forasteiros, a fé nos amigos.

251

Enquanto descreve as aventuras de Fábio pelo pampa em companhia do sábio mestre

Dom Segundo, a quem aquele chama de padrinho, o narrador oferece ao leitor inúmeras

descrições da paisagem local, da forma de vida no povoado, nas estâncias, assim como

apresenta a vida campeira narrando cenas de domas, arreios, rodeios, rinhas de galos, duelos,

apostas em jogos, feiras comerciais, superstições, e aspectos da religiosidade que marcam a

vida dos homens da zona rural argentina.

Ressalte-se que, ao abordar certos aspectos da vida na zona rural argentina, o autor de

Dom Segundo Sombra resgata não só a paisagem local como também a forma de vida no

povoado e nas estâncias, dando vida a elementos que tenderiam a desaparecer devido ao

decorrer das transformações que já se faziam presentes nessas regiões no plano histórico.

Ao retornar ao seu povoado, certo dia, o tropeiro Fábio recebe uma carta das mãos de

Pedro Barrales a qual revela sua paternidade, até então desconhecida, e concede a ele, além do

nome, uma herança. Vendo-se rico e com extensas propriedades, angustiado por ter de deixar

seus companheiros e a vida de tropeiro, Fábio se despede daqueles que o acompanharam por

alguns tempos. O personagem declara:

Parece mentira; em lugar de alegrar-me pelas riquezas que me caíam das mãos do destino, entristecia-me pelas pobrezas que ia deixar. Por quê?

Porque atrás delas estavam todas as minhas lembranças de tropeiro andejo e,

mais além, essa indefinida vontade de andar, que é como uma sede de

caminho e uma ânsia de possessão, cada dia aumentada, de mundo.252

250 Cf. GÜIRALDES, 1997, p. 170. 251 GÜIRALDES, 1997, p. 85. 252 GÜIRALDES, 1997, p. 248-249.

Page 112: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

112

A revelação da paternidade de Fábio, como também da herança que herdara de seu pai

biológico, não lhe traz grandes alegrias, uma vez que muito mais do que receber uma riqueza

que lhe era de direito Fábio sentia-se perdendo parte do que mais achava valioso: a vida de

tropeiro.

Aos poucos, Fábio vai se tornando homem culto, viajado e com vocação para escritor

– “livros e algumas viagens a Buenos Aires com Raucho foram-me transformando

exteriormente no que se chama homem culto”.253

É interessante observar aqui que o contato de Fábio com os livros e com a cidade de

Buenos Aires transforma o tropeiro num homem culto. Contudo, essa transformação não se dá

em sua plenitude, dado que ocorre somente no exterior do personagem, não atingindo, assim,

sua formação de gaúcho, que permanece viva no seu interior. Os conhecimentos adquiridos ao

longo de sua trajetória em constantes andanças pelos pampas argentinos em companhia

daquele que lhe ensinou a difícil arte de ser tropeiro lhe são seguramente muito mais úteis do

que os conhecimentos que a vida em Buenos Aires tem a lhe ensinar, conforme se pode

constatar claramente em passagens do romance, em que o personagem-protagonista se

posiciona em relação à vida do homem na cidade: “(...) os livros e algumas viagens a Buenos

Aires com Raucho foram-me transformando exteriormente no que se chama um homem culto.

Nada, porém, me dava a satisfação potente que encontrava em minha existência rústica”.254

Neste sentido, Güiraldes mantém acesos os valores próprios que este tipo humano – o

gaúcho – carregava consigo. Nessa passagem, percebe-se que o autor resgata usos e costumes

do gaúcho que no plano histórico estavam condenados a desaparecer com a chegada da

modernidade à cidade. Como bem aponta Bella Josef, “O gaúcho, contrário ao progresso

civilizador, era pela manutenção dos antigos costumes, e isso o condenava a desaparecer”.255

Contudo, o que o autor procura fazer em sua obra é resgatar os valores do gaúcho que

253 GÜIRALDES, 1997, p. 262, grifos meus. 254 GÜIRALDES, 1997, p. 262. 255 JOSEF, 2005, p. 57.

Page 113: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

113

estavam se perdendo, fruto de um discurso alienante que priorizava o progresso a todo custo e

via como saída para o país a substituição da população por pessoas ditas civilizadas. Para o

patriciado ladino, que regeu o processo, o gaúcho, tido por eles como “homem selvagem de

esporas e chiripá”, “não era cimento e tijolo adequado para erigir uma nação”.256

Por fim, tendo permanecido com Fábio na estância durante três anos, Dom Segundo,

de natureza errante, conforme descrição constante do romance, incapaz de fixar-se em um

determinado lugar, resolve abandoná-lo, para seguir seu destino itinerante. Fábio não o

acompanha para poder dedicar-se aos seus negócios, dado que nesse momento passa de

tropeiro a grande proprietário de terras. Assim, separa-se daquele que durante anos, através de

conselhos e ensinamentos, lhe ensinara a vida de gaúcho.

6. 3. O gaúcho no plano literário versus o gaúcho no plano histórico

O gaúcho ao longo do romance Dom Segundo Sombra é apresentado como valente e

corajoso. Este homem que precisa trilhar longos e duros caminhos numa jornada de muito

sacrifício é descrito, antes de tudo, como um forte. Fábio admirava a figura de Dom Segundo,

um típico gaúcho, e procurava se mirar no seu exemplo. É possível verificar sua valentia em

várias passagens do livro, a exemplo de um episódio narrado em que após uma longa

caminhada, já com o corpo ardendo em dor, declara sobre seu mestre: “Compreendi que não

dormira e que estava na mesma postura desde o dia anterior por volta do meio-dia. ‘Gaúcho

256 Cf. RIBEIRO, 2007, p. 412.

Page 114: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

114

duro’, disse com meus botões, e prometi-me aguentar sem queixa meu quinhão de dor”.257

Neste sentido, ao contrário do que se apresentou no discurso de inúmeros literatos, a exemplo

de Sarmiento, a figura do gaúcho não é vista como homem preguiçoso, ocioso, incapaz de

dedicar-se a um trabalho duro e contínuo.

O que se pode ver na obra em questão é por sua vez uma não equivalência entre a

imagem que se apresenta do gaúcho em Dom Segundo Sombra e o gaúcho como tipo humano

encontrado na realidade, visto que este era marginalizado, com baixo poder aquisitivo, e

sofria sob o jugo da classe estancieira, tendo sua mão-de-obra bastante explorada. Neste

sentido, o gaúcho não pode representar, como desejava Ricardo Güiraldes, o gaúcho real.

Güiraldes, para documentar a vida no pampa, utiliza inúmeros termos técnicos de

criação de gado e do trabalho no campo, exaltando o vernáculo que se liga à terra e à natureza

do pampa.

O autor de Dom Segundo Sombra construiu a figura do gaúcho, apresentando um

personagem que possui, antes de tudo, valores de trabalho, de amor à terra, de solidariedade,

fraternidade e religiosidade. Contribuiu para este cenário o registro e a descrição minuciosa da

geografia dos pampas argentinos, dos ofícios do homem da terra, da fauna e da flora,

resgatando usos e costumes que estavam condenados a desaparecer. O gaúcho com seus

costumes, seu ofício, sua cultura, embasado num código de valores próprios, constituiu o foco

da obra de Ricardo Güiraldes.

É importante ressaltar aqui que não se trata de exaltar um tipo humano em detrimento

do outro, nem tampouco de idealizar a figura do gaúcho como tipo humano, mas sim de

chamar atenção para o desrespeito aos valores humanos, dado que as marcas do preconceito

contra os mestiços foram muito fortes no período estudado e ainda podem ser sentidas nos

dias de hoje. Atualmente a população da Argentina é composta majoritariamente por

257 GÜIRALDES, 1997, p. 170.

Page 115: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

115

descendentes de imigrantes. De acordo com Darcy Ribeiro (2007), somente nas zonas mais

ermas ou nas camadas sociais menos prestigiadas economicamente é que sobrevive uma

pequena parcela de gaúchos, que vivem com grandes dificuldades de superar o sentimento de

inferioridade que lhes fora imposto durante décadas.

6.4. A representação da autoridade jurídica em Dom Segundo Sombra: uma

aproximação com o plano histórico

Ricardo Güiraldes não deixa de registrar o poder que a lei estatal exercia sobre os

gaúchos, o que parece aludir à já conhecida realidade histórica. Sabe-se que no século XIX, a

fim de acabar com a “praga dos campos” – como os gaúchos foram considerados em um

determinado período histórico –, as autoridades da cidade, em conjunto com os proprietários

de terra, decretam um regime de vigilância que obriga todo indivíduo da campanha que não

fosse proprietário a colocar-se a serviço de um patrão. Aquele que fosse encontrado nos

campos, sem a devida documentação, estava sujeito aos rigores da lei. Neste sentido, muitos

gaúchos andarillos são sujeitos à prisão por assim transitar sem documentos ou ordem

expressa de um juiz. Sendo assim, o gaúcho que não tinha patrão nem servia ao exército era

tido por delinquente, ladrão e vagabundo, fato que justificava a sua prisão.

Em passagem do capítulo XIV de Dom Segundo Sombra, Dom Segundo, ao andar

pelas ruas de um pueblo na companhia de Fábio, é interpelado pela autoridade local quando

estava fazendo uma compra em uma pulperia, como se pode constatar no fragmento:

Surpreendeu-nos, com uma paulada, uma voz autoritária: Teje preso, amigo.

Na porta se erguia a desagradável figura de uma polícia, cujas mangas eram

sublinhadas pelos magros galões de cabo.

Page 116: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

116

Fazendo-se de desentendido, Dom Segundo abriu os olhos para buscar em

redor o homem em questão. Mas não havia mais que nós.258

Note-se que quando a figura do cabo, representante da autoridade local, surpreende os

gaúchos na entrada do armazém, é a lei que se ergue para atacar o gaúcho andarillo, fazendo

uso não só de sua voz autoritária como também da agressão física, ao surpreendê-los “com

uma paulada”. Ao apresentar-se na delegacia, a documentação de Dom Segundo é logo

questionada pelo comissário da polícia, que procura averiguar a procedência dos gaúchos,

conforme se pode evidenciar no diálogo entre o comissário e os personagens gaúchos do

romance:

Em um grande salão desguarnecido, diante de um enorme mapa da

província, estava sentado o comissário, pançudo e bigodudo.

– Aqui estão, senhor – disse o cabo recobrando coragem.

– Aqui estamos, senhor – repetiu Dom Segundo –, porque o cabo nos trouxe. – São forasteiros aqui, não? – inquiriu o mandão.

– Sim, senhor.

– E no seu povo se passa galopando em frente da Comissária? – Não senhor... mas como não vimos bandeira nem escudo...

– Onde está a bandeira? – perguntou o comissário ao cabo.

– A bandeira, senhor, emprestamos para a Intendência, pra festa de sábado. – O comissário voltou-se pra nós:

– Que ofício tem?

– Tropeiros.

– De que partido são? Como se não entendesse o caráter político da pergunta, meu padrinho

respondeu sem pestanejar:

– Eu sou de Cristiniano Muerto...; meu companheirinho, de Callejones. – E as cadernetas?

Continuando a burla que fizera com nossas procedências, Dom Segundo

inventou uma personagem:

– Está com elas Dom Isidro Melo. – Muito bem. Pra outra vez, já sabem onde é a Comissaria, e se esquecerem

eu vou ajudar-lhes a memória.259

Note-se ainda que as imagens atribuídas aos gaúchos e às autoridades são bastante

representativas no fragmento em questão. A seleção vocabular feita pelo autor faz-se

significativa neste sentido. Ao se referir à autoridade, Güiraldes faz uso de sufixos com valor

aumentativo. O comissário, a quem Dom Segundo irá se dirigir, é mandão, pançudo e

bigodudo. Este ainda está sentado diante de um enorme mapa da província, em um grande

258 GÜIRALDES, 1997, p. 123. 259 GÜIRALDES, 1997, p. 125.

Page 117: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

117

salão. Em contraposição, o gaúcho é referido como “meu companheirinho”. As adjetivações

com claro valor aumentativo em conjunto com os afixos de mesmo valor agregados às

palavras remetem ao peso e a rigidez da lei sobre os gaúchos andarillos. Já o sufixo -inho,

presente na forma de tratamento ao se referir a Fábio, denota um valor diminutivo e remete à

posição em que se encontram os gaúchos sob as mesmas condições de Dom Segundo e de

Fábio – são “pequenos” diante da lei.

É importante chamar atenção aqui para o fato de que, devido à aplicação da lei estatal

ser diferenciada entre os homens, Dom Segundo, ao responder às perguntas do comissário da

lei, burla não só a sua procedência como também o seu partido político a fim de fugir da

acusação de um delito.

Sabe-se que, sob o pretexto de condenar os gaúchos a anos de serviço militar ou ainda

colocá-los compulsoriamente a serviço dos estancieiros, um novo regime foi instaurado e todo

um serviço militar entra em vigor para caçar os gaúchos, tidos intencionalmente como

“vagabundos”. Ressalte-se ainda o fato de a aplicação da lei no plano histórico ser

diferenciada entre os indivíduos, uma vez que a obrigatoriedade do serviço militar não incluía

os estrangeiros nem tampouco os indivíduos com alto poder aquisitivo das estâncias como

também os das povoações ou ainda os indivíduos que tivessem alguma ligação com o

governo.

Nesse período na Argentina, sabe-se também que a filiação partidária encontrava-se

registrada nas famosas cadernetas, uma espécie de identidade de onde constavam todos os

dados sobre o indivíduo, funcionando, assim, como instrumento de controle. Neste sentido, a

lei em vigor é claramente adaptada para beneficiar os estancieiros, que, detendo grande parte

das terras, monopolizavam a região.

Dom Segundo, sabendo que poderia ser preso por ter passado galopando em frente da

delegacia, burla o seu partido político como também o de Fábio, numa clara tentativa de ser

Page 118: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

118

absolvido do “delito” cometido. Como se vê, fica evidente neste episódio que o tratamento era

diferenciado dependendo da procedência de cada indivíduo.

Contudo, não só a delegacia é apresentada no romance como repressora. Quando

Fábio vai passear com Dom Fábio Cárceres, homem que considera como seu protetor, certa

vez é levado para conhecer a estância do homem que o protege e esse espaço, a casa de Dom

Fábio, que representa um dos poderes a que o gaúcho estava submetido, qual seja, o

estancieiro, impõe silêncio a Fábio:

Conheci a casa, suntuosa como não havia igual no pueblo, impondo-me um

respeito silencioso como o da igreja, à qual costumavam levar-me as tias,

sentando-me entre elas para me soprar o rosário e vigiar minhas atitudes, fazendo de cada repreensão um mérito diante de Deus

260.

Essa relação de poder também pode ser percebida na escolha dos nomes das estâncias

feita pelo autor, em que se pode observar uma referência a nomes de militares e políticos,

como os do General Julio Roca Paz261

, Tomás Manuel Anchorena262

e Justo José de

Urquiza263

, presentes na relação de estâncias que Fábio conheceu, fruto de seu ofício, em que

declara: “Levados por nosso ofício, tínhamos corrido grande parte da província. [...]

Conhecíamos as estâncias de Roca, Anchorena, Ocampo, Urquiza [...]”264

(p. 86).

Por esses motivos, não há razões para os gaúchos apreciarem as cidades, lugar em cuja

sociedade não encontravam espaço. O campo, neste sentido, e os valores que dele engendra

260 GÜIRALDES, 1997, p. 13. 261

General Julio Roca foi político e militar argentino, presidente da nação em dois mandatos (1880-1886; 1898-

1904). Destacou-se por ter conduzido a denominada Campanha do Deserto, qualificada por diversas fontes

como genocida e de purificação étnica. Comandando um exército moderno e bem preparado, submeteu-se à

Patagônia, vencendo a tenaz resistência dos povos originais da etnia mapuche, causando uma grande quantidade

de vítimas e expulsando as populações restantes para áreas periféricas. Se estima que a campanha causou

diretamente a morte de cerca de 20 000 indígenas. As tribos que sobreviveram foram deslocadas para zonas mais

periféricas e estéreis da Patagônia. Milhões de hectares se somaram assim à República Argentina. 262 Tomás Manuel Anchorena foi um político e advogado argentino, conhecido por firmar a Ata da

Independência Argentina. Serviu como secretário do General Manuel Belgrano no Exército do Norte e, em 1815, foi eleito deputado de Buenos Aires para o Congresso de Tucumán, estando presente em 9 de julho de 1816, dia

da Independência Argentina, firmando sua respectiva declaração. 263 General Justo José de Urquiza foi militar e político argentino, presidente da Argentina de 1854 a 1860.

Durante sua presidência foram melhoradas as relações exteriores, se impulsionou a educação pública, se

promoveu a colonização e se iniciaram planos para a construção de ferrovias. 264 GÜIRALDES, 1997, p. 86.

Page 119: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

119

são assim apresentados como muito superiores aos da cidade e, como tal, Ricardo Güiraldes

não deixa de registrar essa aversão dos gaúchos às cidades em Dom Segundo Sombra.

Page 120: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

120

7. DA HISTÓRIA PARA O ROMANCE: O QUE RICARDO GUIRALDES NÃO

REGISTROU EM DOM SEGUNDO SOMBRA

Em inícios do século XX, Ricardo Güiraldes, romancista, poeta e contista nascido em

Buenos Aires, incumbe-se de narrar a vida dos homens do pampa em seu clássico romance

intitulado Dom Segundo Sombra, lançado em 1926. Güiraldes dedicará vinte e três capítulos a

narrar a vida dos homens dos pampas argentinos, numa tentativa de apresentar, conforme

aponta o autor da obra, o tipo humano argentino.

Contudo, o que se pode perceber no romance do referido autor é que – diferentemente

do que fora narrado a respeito dos pampas argentinos, em que prevaleceu para muitos literatos

a imagem de um país que precisava passar por um processo de modernização, e de um

indivíduo, o habitante deste espaço, o gaúcho, que precisava ser substituído e desaparecer –

Ricardo Güiraldes apresentará em sua obra a imagem de uma outra Argentina. Güiraldes pinta

o gaúcho assim como Martín Fierro, como aponta o poeta Leopoldo Lugones em prefácio à

obra em questão.

É interessante, contudo, observar que, em se tratando de uma obra publicada em

inícios do século XX, o romancista apresenta a imagem de uma Argentina que já não existe

mais, uma vez que nesse período o país havia recebido milhares de imigrantes europeus,

sobretudo de italianos, não só para substituir a mão-de-obra nas lavouras, como também para

substituir a população constituída até então na grande maioria de gaúchos por “gente de

melhor qualidade”, como se defendia na época.

Em contrapartida, o gaúcho em Dom Segundo Sombra é apresentado com diferentes

cores. Este não é mais o homem inadaptável à civilização e ao progresso, como bem quis

Domingo Faustino Sarmiento em sua clássica obra Facundo; o gaúcho ganha na obra de

Page 121: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

121

Güiraldes novos valores. O olhar de Güiraldes para a Argentina e para os gaúchos em muito

se distancia da visão pejorativa e anuladora destes homens, tidos como “incapazes para

dedicar-se a um trabalho duro e contínuo”, como bem afirmou Sarmiento.265

Também se poderá constatar que os valores do campo ganham uma outra dimensão.

Para Güiraldes, a cidade não constitui o centro da civilização argentina. Pelo contrário, para

ele é nesse espaço que se encontram os valores mais degradantes da sociedade, como será

visto adiante.

7.1. Como Güiraldes pintou os pampas argentinos e o gaúcho

Em Dom Segundo Sombra, os valores do campo, na perspectiva do autor, sobrepõem-

se aos demais. O campo assume um duplo papel na vida do tropeiro, uma vez que é ao mesmo

tempo o espaço gratificante, que confere ao homem os caminhos, a liberdade, e que dignifica

o gaúcho, e o espaço do sacrifício, mas que traz honra e dignidade ao tropeiro que por ele

passa. Neste sentido, ao mesmo tempo em que os pampas acolhem o homem, eles também o

castigam. Contudo, é neste espaço de dificuldades que o homem se faz verdadeiramente

homem. É nas raízes do pampa que o gaúcho mostra a sua superioridade, é daí que emanam

os verdadeiros valores do homem. O pampa, para o protagonista do romance, é assim o

espaço do crescimento.

É válido lembrar aqui que a saída de Fábio do convívio com as tias no início do

romance confere ao personagem a liberdade. A casa das tias é apresentada como o lugar do

aprisionamento, da privação. O espaço narrado é a todo momento mal visto pelo protagonista.

265 SARMIENTO, 1996, p. 29.

Page 122: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

122

Para que pudesse frequentar a escola, Fábio, que tinha aproximadamente sete anos de idade, é

tirado do seu seio familiar, em que vivia na companhia da mãe, para morar com suas tias –

Mercedes e Assunção – de que tinha ojeriza. O contexto a que se refere no romance é o

urbano. Este espaço é rejeitado pelo personagem que sonha em “ganhar a vida” nos pampas. É

notório que o contexto urbano é para Fábio um espaço degradante, como pode ser visto em

uma passagem no início da narrativa, em que o protagonista afirma:

Aquele dia, como de costume, eu fui me esconder à sombra fresca da pedra

(...).

Pensava. Pensava nos meus quatorze anos de guri abandonado, de guacho, como certamente diriam por aí.

Com as pálpebras caídas para não ver as coisas que me distraíam, imaginei

as quarenta quadras do lugarejo, suas casas baixas, divididas monotonamente

pelas ruas traçadas a esquadro, sempre paralelas ou perpendiculares entre si. Em uma dessas quadras, sem mais luxo nem pobreza que as outras, estava a

casa das minhas presumidas tias, minha prisão.266

Note-se que a insatisfação do personagem se reflete na descrição que faz do povoado

onde reside. As casas, como aponta Fábio, são divididas monotonamente, assim como

também o é sua vida naquele contexto, onde se sente oprimido não só pelas tias, que o tratam

como um vagabundo, como também pelo espaço geográfico onde vive. Vê-se assim uma clara

oposição entre dois espaços muito bem definidas, a saber: o espaço urbano, onde o

personagem se sente privado de liberdade, e o espaço rural, onde se tem a liberdade para

trilhar caminhos.

A escolha vocabular da passagem em questão contribui para expressar o estado

emocional em que se encontra o personagem. As casas do vilarejo, como se pode verificar,

são “baixas”, sugerindo a falta de amplitude deste espaço. Somado a isso, a descrição das ruas

“traçadas a esquadro, sempre paralelas ou perpendiculares entre si” sugere a falta de novidade

e, consequentemente, de atrativos. Este lugar pode, por sua vez, ser contraposto ao campo,

que é o espaço da infinitude.

266 GÜIRALDES, 1997, p. 11-12.

Page 123: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

123

O espaço das povoações, onde Fábio residia junto às tias, reduz o personagem a um

jovem triste e descontente com a vida que levava. Para fugir dessa realidade, o jovem, como

se pode verificar na passagem acima, tem o costume de esconder-se “à sombra fresca da

pedra” à beira de um arroio. Veja-se que os elementos que compõem a natureza desse cenário

representam o locus amoenus, ainda que temporário, onde o protagonista se refugia.

A geografia do povoado é tão monótona quanto os dias da existência vilareja descritos

pelo protagonista, o qual classifica o povoado como um “lugar miserável” e deseja fugir desse

local para ir em busca de “uma vida nova, feita de movimento e espaço”267

.

Várias são as imagens que sugerem a insatisfação do personagem em relação ao seu

povoado e que, por sua vez, dão ao leitor uma clara ideia da aversão de Fábio ao contexto

urbano. A descrição que Fábio faz desse espaço está intimamente relacionado ao seu estado

de espírito e a como se sente nesse contexto.

Outra imagem que é representativa ao descrever o estado de espírito do personagem

está presente em uma passagem em que, refugiando-se em um rio próximo ao vilarejo, o

personagem, ao contemplar os bagrezinhos “duros de morrer”, sente-se igualmente asfixiado

pela vida que leva:

As águas do rio fizeram-se frias a meus olhos e o reflexo das coisas na

superfície serenada tinha mais colorido que as próprias coisas. O céu

distanciava-se. Mudavam-se as tintas áureas das nuvens em vermelho, o vermelho em pardo.

Junto a mim, tomei a fieira de bagrezinhos “duros pra morrer”, que ainda

pulavam no desespero de sua asfixia lenta268

.

Um olhar para a obra de Güiraldes nos mostra que não só a pobreza material como

também a pobreza moral compõem a miserabilidade do povoado onde Fábio reside. Por esses

motivos, não lhe faltam razões para querer ir embora daquele local.

267 GÜIRALDES, 1997, p. 21. 268 GÜIRALDES, 1997, p. 18.

Page 124: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

124

Contudo, não só o vilarejo onde Fábio reside é apresentado como hostil. Já distante de

seu povoado, depois de já ter decidido fugir, em suas andanças na companhia de Dom

Segundo, Fábio, estando no povoado de Navarro, observa:

Uma hora passou para mim sem diversão, vendo entrar e sair a gauchada

endomingada, que nos observa de soslaio, observando furtivamente o porte

selvagem e rude de meu padrinho. Para mim todos os pueblos eram iguais, toda a gente mais ou menos da

mesma laia, e as lembranças que tinha daqueles ambientes, pressurosos e

inúteis, causavam-me antipatia269

.

Os valores que Güiraldes atribui ao campo e à cidade são claramente opostos àqueles

que foram defendidos por muitos literatos em momento anterior, como já visto. O pampa para

o personagem-protagonista de Dom Segundo Sombra constitui o espaço que ora acolhe, ora

castiga. No entanto, este sempre confere liberdade e, sobretudo, dignidade ao indivíduo que

por ele passa.

Diferentemente do espaço rural, o urbano – o espaço das povoações – sob a

perspectiva do protagonista é sempre depreciativo e degradante. Várias são as passagens que

ratificam esse olhar aviltante para as cidades e para os homens que nelas habitam. Aí se pode

presenciar a falta de dignidade humana, como se pode constatar nas seguintes passagens do

romance, em que o personagem-protagonista relata aquilo que presencia no pueblo, como as

relações do comissário com a viúva Eulália, os embrulhos comerciais dos Gambutti, a

reputação ambígua do relojoeiro Porro270

, e “o descaramento do gringo Culasso, que vendera

por vinte pesos a filha de doze anos ao velho Salomovich, dono do prostíbulo.”271

Em contrapartida, o campo, para Sarmiento, era o inverso. Para o intelectual, era na

cidade que se podiam encontrar grandes atrativos. Mudando-se de espaço, tudo “mudava de

figura”.

269 GÜIRALDES, 1997, p. 113. 270 Cf. GÜIRALDES, 1997, p. 14 271 GÜIRALDES, 1997, p. 17.

Page 125: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

125

As palavras de Fábio, ao descrever as casas, “divididas monotonamente pelas ruas

traçadas a esquadro, sempre paralelas ou perpendiculares” (ênfase minha), nos dá a clara

ideia da suposta repetição, da “mesmice”, e da falta de novidade do lugar, que se apresenta

sem grandes atrativos para o protagonista.

Mais adiante, Fábio irá se reportar ao colégio, lugar de onde é “liberto” pelas suas tias

depois de três anos de estudo, por estas acreditarem que “não pagava a pena prosseguir” com

a instrução do jovem. Neste sentido, os ambientes fechados irão representar para o

personagem o lugar da clausura, e os espaços abertos representarão claramente o oposto, fato

que fica bastante evidente na passagem do romance quando Fábio revela: “A rua foi meu

paraíso e a casa, minha tortura”.272

Seu anseio de mudança é repetido em passagens do

romance que não deixam dúvida de que aquele não é seu espaço: “Mais forte que nunca,

apoderou-se de meu ser o desejo de ir-me para sempre daquele lugarejo miserável. Entrevia

uma vida nova, feita de movimento e espaço”.273

Vê-se assim que o repúdio de Fábio ao ambiente urbano não é camuflado pelo

personagem. Este quando quer se refugiar se dirige a um rio nas proximidades do pueblo onde

morava. Este espaço é para ele um locus amoenus, onde o personagem pode se refugiar e

refletir.

Como se pode constatar, o pampa no romance – embora nem sempre seja representado

como um espaço acolhedor, visto que nele se encontram dificuldades – é o espaço que, sem

dúvida, confere liberdade e hombridade ao homem. Em contrapartida, o espaço das povoações

é apresentado, na perspectiva do protagonista, como aviltante, dado que a sociedade se mostra

frequentemente degradante nesses locais.

272 GÜIRALDES, 1997, p. 14. 273 GÜIRALDES, 1997, p. 21.

Page 126: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

126

Várias imagens irão enriquecer a narrativa a fim de ratificar a insatisfação constante de

Fábio quando da convivência com suas tias no povoado. Ao descrever o povoado, Fábio

aponta não só a miséria material do local como também a pobreza moral. É exemplo disso a

passagem do romance em que o narrador-personagem descreve seus sentimentos diante

daquele lugar, momentos antes da ruptura do convívio no pueblo, quando definitivamente se

convence de fugir daquele ambiente de opressão:

– Me vou, me vou – dizia quase em voz alta.

Sentado na cama, às escuras, para que me imaginassem dormindo, esperei o

momento propício para a fuga. Pela casa sonolenta arrastavam-se os últimos ruídos, que me falavam da estupidez das miudezas quotidianas. Já não podia

suportar aquelas coisas, e um arroubo de ódio fez-me olhar em redor as

desmanteladas paredes do meu quartinho, como se deve olhar sem piedade o

inimigo vencido. Oh! Certamente não sentiria falta de nada do que deixava, pois as rédeas e o buçalzinho, que eu adivinhava enrolados no prego que os

suspendiam de encontro às tábuas da porta, viriam comigo! Aquelas paredes

que haviam testemunhado impassíveis minhas primeiras lágrimas, meus aborrecimentos e meus protestos ficariam bem sós.

Tateando, tirei de baixo da cama um par de botas pequenas e sovadas. Junto

delas coloquei rédeas e bucal. Enrolei tudo no meu querido poncho, presente

de Dom Fábio, com umas escassas peças de roupa.274

Note-se que a referência às “desmanteladas paredes” do quartinho somadas aos poucos

pertences do personagem contribuem para demonstrar a pobreza material em que Fábio vivia

na casa de suas tias. Além disso, os ruídos da casa que já não pode mais suportar porque

“falavam da estupidez das miudezas quotidianas”, revelando assim a pobreza moral daquele

ambiente, contribuem para aumentar o ódio que o personagem sente daquele ambiente hostil

que conjugava a indiferença e a mesquinhez das tias. Vê-se assim que a avaliação que Fábio

faz daquele ambiente justifica a sua fuga.

Contudo, não só a casa das tias Assunção e Mercedes é apresentada como desprezível

no romance, na perspectiva do personagem protagonista. Pode-se constatar em outras

passagens do romance uma clara aversão ao contexto urbano, dado que os valores das pessoas

que vivem nesse contexto são degradantes.

274 GÜIRALDES, 1997, p. 29-30.

Page 127: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

127

Somado a isso, encontros em pousadas a fim de divulgar boatos e escarnecer pessoas

com pouca ou nenhuma instrução – e que desta forma se encontravam numa posição de menor

prestígio que as demais – eram comuns de ocorrer, o que confirma os valores degradantes que

são atribuídos às pessoas que vivem nas cidades.

Os valores degradantes atribuídos à cidade e às pessoas que nela habitam são também

realçados pelo narrador em diversas passagens do romance. O episódio narrado ao final do

romance quando Fábio recebe sua herança e se torna um homem rico faz-se revelador neste

sentido. Devido à sua nova condição financeira, alguns personagens mudam o trato com

Fábio, a exemplo de seu amigo Pedro Barrales que, ao entregar a carta revelando sua

paternidade e a fortuna que herdara de seu pai, o trata diferentemente, conforme se evidencia

na passagem: “me aproximei cordial, para estreitar a mão do companheiro, este com

incompreensível respeito, tocou a aba do chambergo, agraciando-me com um ‘Como passa?’,

que não entendi”275

. Somado a isso, Dom Leandro Galván, que havia sido seu patrão e que na

ocasião escrevera a carta em razão do falecimento de Dom Fábio Cárceres, pai de Fábio, o

trata com um “usted” (senhor); o barbeiro o saúda “como se tivesse apresentado com traje que

os príncipes usam nos contos de magia [e chamam-no por] ‘Senhor’ e ‘Dom’ até cansar”276

; o

ourives lhe rende homenagens, oferecendo-lhe vitrines; os “graudões”, que se divertiam com

as audácias de Fábio, quando este era jovem, mostram-se “mais carinhosos que nunca”.277

Estas são apenas algumas passagens em que o autor nos revela a hipocrisia e a degradação dos

valores cultivados no povoado.

Vê-se assim que os valores rurais se sobrepõem aos urbanos, uma vez que é no

contexto urbano que se encontra a grande degradação humana.

275 GÜIRALDES, 1997, p. 244. 276 GÜIRALDES, 1997, p. 252. 277 GÜIRALDES, 1997, p. 253.

Page 128: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

128

7.2. Do plano histórico ao plano literário

É válido destacar aqui que a Argentina com italianos em nenhum momento é

registrada em Dom Segundo Sombra. Se pensarmos em termos históricos, Ricardo Güiraldes

registra em sua obra a imagem de uma Argentina que já não existe mais. Neste sentido, a obra

produzida por Güiraldes pode ser considerada anacrônica. É interessante observar que o

encontro do europeu, sobretudo do italiano, imigrante que veio em maior número para a

Argentina em fins do século XIX, com o homem do pampa – o gaúcho – não se dá na obra em

questão. Os pampas argentinos e o gaúcho são registrados no plano literário de uma forma já

quase inexistente. O romance neste sentido funciona como uma tentativa de resgate daquilo

que já não existe mais.

É de suma importância destacar aqui que grande parte dos imigrantes tinha como

objetivo fazer riqueza no país para o qual se destinou e retornar ao país de origem. Vários

estudos indicam que aproximadamente a metade dos imigrantes retornou a seus países de

origem e que os demais acabaram permanecendo no país de recepção por motivos diversos.

As condições econômicas são apontadas como principal fator motivador ao processo

imigratório. As migrações do século XIX e XX tiveram, sem dúvida, uma relevância

significativa para a história. O historiador Herbert Klein278

afirma que “O aumento de

produtividade e a crescente mecanização da agricultura europeia significaram menor

necessidade de mão-de-obra exatamente num momento em que surgia um excedente de força

de trabalho”. Esse fator em conjunto com a falta de apoio governamental fez com que a fome

se tornasse uma séria ameaça às populações que não possuíam terra ou ainda às que possuíam

terras limitadas. Como assinalam os estudos, a possibilidade de obter terra atraiu grande parte

dos imigrantes para a América. Como a terra americana era mais barata, se comparada aos

278 KLEIN, 2000, p. 15.

Page 129: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

129

padrões europeus, a possibilidade de trabalhadores sem terra conquistarem propriedades

próprias tornou-se muito maior e logo muito mais atrativa.

Estima-se que um total de 11,8 milhões de imigrantes europeus tenham trocado a

Europa pela América entre as décadas de 1821 e 1880.279

Ressalte-se aqui que a Argentina, e

em seguida o Brasil, estavam entre os países que mais dependiam da imigração estrangeira

para manter seu crescimento populacional. O Brasil, no período que antecede o ano de 1880,

absorveu uma parcela significativa de colonos agrícolas, imigrantes oriundos da Alemanha e

do norte da Itália.

Segundo dados históricos, apesar de a Argentina ter começado tardiamente no

processo de recepção de imigrantes, o país torna-se um receptor de destaque. Contando com

uma densidade populacional baixa e com ricas terras de agricultura, a Argentina configurou-

se como um país ideal para receber migrantes estrangeiros. Até a década de 1850, devido a

intensas lutas políticas internas e à população indígena hostil que refreava a expansão

territorial, o país não recebia migrantes estrangeiros. Este quadro mudará com a estabilização

final do sistema político. Estima-se que aproximadamente 26 mil migrantes chegaram à

Argentina em fins da década de 1850 e que, por volta de 1880, cerca de 440 mil europeus já

haviam entrado no país.280

Conforme dados do historiador Klein, “Por volta de 1914, os

italianos residentes na Argentina eram responsáveis por 12% da população, enquanto o total

de estrangeiros chegava a significativos 30% de toda a população”.281

Vê-se por esses dados que em fins do século XIX e inícios do XX, uma parcela

significativa da população era constituída de imigrantes, resultado de “Setenta anos de

imigração em massa, em proporções que quase nenhum país do mundo conhecera”, como

bem aponta o historiador Fernando Devoto.282

279 Cf. KLEIN, 2000, p. 21. 280 Cf. dados extraídos de KLEIN, 2000, p. 22. 281 KLEIN, 2000, p. 22. 282 DEVOTO, 2000, p. 33.

Page 130: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

130

Segundo informações históricas, entre 1881 e 1915, cerca de 31 milhões de imigrantes

chegaram às Américas. Como informa o historiador Klein, “os Estados Unidos eram o

principal país de recepção, recebendo 70% desses imigrantes”.283

Em seguida aos EUA, a

Argentina e o Brasil constituem os dois países latino-americanos que receberam o maior

número de imigrantes, a saber: a Argentina recebeu 4,2 milhões, e o Brasil, 2,9 milhões de

imigrantes. Tendo a Argentina uma população nativa inicialmente considerada muito

pequena, a migração, sem dúvida, não poderia deixar de causar um impacto grande sobre o

crescimento populacional do país.

Pode-se assim dizer que, fruto de uma migração maciça, o perfil da Argentina em

inícios do século XX estava mudado. Como já apontado, o total de estrangeiros no país nesse

período chegava a 30% de toda a população, conforme dados do Terceiro Censo Nacional,

realizado em 1914.

Ressalta-se que, apesar de o percentual de imigrantes presentes no país ser bastante

significativo, Ricardo Güiraldes não registra a presença de imigrantes em seu romance Dom

Segundo Sombra.

É interessante observar que Domingo Faustino Sarmiento, em Facundo, vê as

necessidades do gaúcho como limitadas. Em contrapartida, Leopoldo Lugones, em prefácio à

obra de Güiraldes, apontará que o gaúcho “na sua simplicidade, [possui] aquilo que o homem

necessita para uma vida integral, do pastoreio à medicina, da música ao duelo”.284

Bem se

percebe que Ricardo Güiraldes, em Dom Segundo Sombra, apresentará em sua obra a figura

do gaúcho em uma perspectiva radicalmente oposta à apresentada por Sarmiento ao descrever

o tipo e falar em civilização e barbárie no pampa argentino em seu clássico Facundo. Vale

lembrar que, para Sarmiento, o gaúcho apresentava características peculiares e limitadas –

“Sem nenhuma instrução e também sem necessitá-la, sem meios de subsistência como sem

283 KLEIN, 2000, p. 25. 284 GÜIRALDES, 1997, p. 7.

Page 131: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

131

necessidades, é feliz em meio a sua pobreza e suas privações, que não são tais para ele, pois

nunca conheceu alegrias maiores nem expandiu mais os seus desejos”.285

Diferentemente do que apresentaram os autores que compartilhavam do mesmo

discurso que Sarmiento, em Güiraldes a sabedoria e a arte ocupam o lugar da falta de

instrução e desejos. Tudo levava a crer que o progresso não poderia se fazer presente com

aquele rústico homem do campo, visto como um bárbaro, inerte, “inadaptável à civilização e

ao progresso”, como apontava Sarmiento. Contudo, para Güiraldes, o gaúcho é acomodado

não à pobreza e privações, mas sim, por temperamento, ao seu mister de combatente e

andarilho. A fidalguia do gaúcho, como aponta o poeta Leopoldo Lugones, disposta à

aceitação de qualquer superioridade, como também disposta a enfrentá-la, se representa

humilhação, conforme suas próprias palavras, é uma das marcas de seu individualismo. O

gaúcho em meio a constantes rinhas e duelos descritos em muitas passagens do romance está

sempre disposto a desafios. A vida deste homem do campo é apresentada em constante luta,

sacrifícios e desafios, os quais, em lugar de fugir, enfrenta. Rinhas e duelos, neste sentido,

assumem o valor metafórico das lutas diárias a que o homem do pampa é constantemente

submetido.

Ainda no que se refere ao prefácio do livro, é possível constatar por meio das palavras

de Leopoldo Lugones que o poeta reconhece que a Argentina passou por novas condições de

civilização, mudanças que podem ser percebidas mais visivelmente ao final do romance de

Güiraldes, quando em decorrência de suas andanças, Dom Fábio retorna a sua terra natal e as

presencia. Não só a Argentina muda como também o personagem, que deixa de ser um

guacho286

para ser um verdadeiro gaúcho. No romance, como aponta Lugones, em meio às

285 SARMIENTO, 1996, p. 39. 286 Cf. Nota do tradutor, presente no romance: “A criança ou animal sem pais; essa palavra constitui qualificação

ofensiva e equivale a um dos piores insultos que se podem fazer a um gaúcho” (GÜIRALDES, 1997, p. 11).

Page 132: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

132

mudanças, “O caráter gaúcho não desapareceu. Adaptou-se, como o país, às novas condições

de civilização, provando que é capaz de nela subsistir”.287

A metáfora que se faz presente em várias passagens do livro a respeito das andanças

do gaúcho é bastante significativa. Este, que outrora fora visto como um homem acomodado,

é representado por alguém que está sempre buscando caminhos. A pobreza de Fábio, que

depois de herdar as propriedades de seu pai se torna um homem abastado, é associada no

romance a lembranças de luta, de busca, de mudança. Isso fica bastante evidente em uma

passagem do romance, quando Fábio já havia tomado conhecimento de sua herança:

Parece mentira; em vez de alegrar-me pelas riquezas que caíam das mãos do

destino, entristecia-me pelas pobrezas que ia deixar. Por quê? Porque atrás

delas estavam todas as minhas lembranças de tropeiro andejo e, mais além, essa indefinida vontade de andar, que é como sede de caminho e uma ânsia

de possessão, cada dia aumentada, de mundo.288

O que se percebe é que o gaúcho do romance em muito se afasta do gaúcho que vivia

nos pampas argentinos em fins do século XIX. Neste sentido, vê-se uma clara falta de

correspondência entre o que se representava no plano literário e o que se via no plano

histórico.

É válido afirmar que nesse processo a força de trabalho nacional foi substituída por

imigrantes europeus, o que reforça a marginalização do gaúcho. Como aponta Darcy Ribeiro,

“[ao dar] ao imigrante todas as oportunidades de trabalho e de ascensão social no novo

sistema produtivo, pastoril e agrícola, (...) marginalizou os gaúchos e os ladinos pobres”.289

Darcy Ribeiro ainda chama a atenção para a intencionalidade desse processo, que se aliena

profundamente de seu próprio povo e propõe nada menos que a substituição de seu povo por

“gente de melhor qualidade”, como muitos literatos defendiam na época, intoxicados pela

literatura racista de seu tempo.

287 GÜIRALDES, 1997, p. 8. 288 GÜIRALDES, 1997, p. 248-249. 289 RIBEIRO, 2007, p. 412.

Page 133: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

133

Como já visto, o gaúcho, tido como uma “praga dos campos”, é posto cada vez mais

numa condição marginal dentro de seu próprio país. O fato de as autoridades citadinas, em

conluio com os proprietários de terra, terem decretado um regime de vigilância que obrigava

todo cidadão da campanha, que não fosse proprietário, a colocar-se a serviço de um patrão,

sob pena de sofrer sanções da lei caso fosse encontrado nos campos sem a devida

documentação, coloca o gaúcho numa condição delicada. Condenado à condição de vadio,

este homem, que no romance de Ricardo Güiraldes é pintado com as mais belas cores, no

plano literário não tem voz nem vez, e é oprimido pela sociedade dentro de seu próprio país.

Ao gaúcho não era reconhecida nenhuma qualidade positiva. Tido como um ser sem aptidão,

o gaúcho é apagado da história com a borracha do massacre. Este homem, contudo, que foi

renegado durante décadas aparece no romance de Güiraldes como uma tentativa de resgate do

que já não existe mais.

Os gaúchos até meados do século XIX foram maioria em seu país, passando a minoria

após a larga imigração subsidiada que se iniciou sobretudo em fins do século XIX, mais

precisamente a partir da década de 1980, quando o fluxo imigratório foi mais intenso na

Argentina. Atualmente sobrevivem nas zonas mais ermas, constituindo a camada social mais

pobre do país. Nas últimas décadas o patriciado portenho vem tentando resgatar a imagem do

gaúcho, exprimindo um nacionalismo centrado na sua figura, que precisamente foi a principal

vítima da busca de progresso do país.

Diante desse quadro, é curioso observar que Juan Bautista Alberdi, que fora

explicitamente a favor da europeização, torna-se, mais tarde, o principal porta-voz da etnia

gauchesca. A imagem nacional que se vai definindo busca nada menos que o resgate do

gaúcho, numa tentativa de integrá-lo à nação. O gaúcho passa então a ser recordado

nostalgicamente como a grande vítima da “civilização”.

Page 134: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

134

Note-se que este processo se dá de forma semelhante no caso do Brasil, como ocorre

com Monteiro Lobato, ao construir a imagem do personagem Jeca Tatu, metonímia do

caboclo brasileiro, inícios do século XX. Monteiro Lobato, que fora avesso à figura do

caboclo em fins do século XIX, acusando-o de inadaptável à civilização e ao progresso

(acusação esta que também ocorre com o gaúcho na Argentina), e que por isso precisava ser

substituído por gente de “melhor qualidade”, muda radicalmente o seu discurso após o projeto

mal-sucedido de substituição do mestiço pelo imigrante europeu, e passa a atribuir às

autoridades a responsabilidade pela condição de miséria em que se encontra o caboclo: ele

está doente assim como doente está a mentalidade de seu país, que precisa urgentemente ser

modificada.

O que se pode perceber é que a mudança de discurso de grande parte dos intelectuais,

tanto no caso argentino como no brasileiro, não se deve a uma superação de mentalidade

retrógrada, como à primeira vista um leitor desavisado poderia considerar, mas sim a um jogo

claro de interesses em que prevalece a preocupação por muitos formuladores de políticas

públicas de se elaborar um projeto de nação que atenda às necessidades de seu país.

Tão logo o imigrante europeu chega às Américas, muitos deles se destacam, tanto em

terras brasileiras quanto em terras argentinas. Contudo, é certo que não estava em pauta que

boa parte dos imigrantes não assumiriam como sua a identidade do país para o qual se

dirigiriam. Ribeiro aponta que “À medida que o imigrante se instala nas cidades, inserindo-se

na nova estrutura social urbana integrada por uma classe média e um proletariado, começa a

lutar, em massa, pela representação política e por parte dos enriquecidos, pela participação

nos círculos fechados do patriciado e da oligarquia”.290

Tendo em vista esses fatores, é fácil entender por que o imigrante europeu em tão

pouco tempo passa de massa desejada à indesejada pelos formuladores de políticas públicas.

290 RIBEIRO, 2007, p. 429-430.

Page 135: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

135

O projeto de construção de identidade baseado na figura do europeu não atende às

expectativas da oligarquia, que, além de não ter obtido êxito em seu projeto de identidade,

ainda esbarra com um novo problema a solucionar: o imigrante.

Segundo dados históricos, o declínio da migração internacional se dá a partir da

Primeira Guerra Mundial, momento considerado decisivo na história da migração

internacional. O conflito que se deu em 1914 deteve, ainda que de forma temporária, grande

parte da migração para a América, que só será retomada na década de 1920, de forma bem

menos expressiva. Klein291

chama atenção para o fato de a queda dos preços de produtos

primários americanos no mercado mundial, em fins da década de 1920, somado ao início da

Grande Depressão nas nações desenvolvidas após 1929 – quando ocorreu a quebra da bolsa

de Nova York, trazendo catastróficas consequências para vários países, uma vez que atingiu

todas as nações capitalistas – ter contribuído para limitar os mercados de trabalho nacionais e

promovido um sentimento xenófobo nos países americanos. É válido ressaltar que é nesse

período que as políticas imigratórias se tornam cada vez mais restritivas.

Para o historiador, a decisão dos Estados Unidos, em 1921, de limitar com todo o rigor

a imigração proveniente de todos os países, sem restrição a nenhum deles, foi um ponto

decisivo na política imigratória. Seguida da decisão dos EUA, novas leis, ainda mais rígidas,

foram tomadas em todos os principais países americanos.292

Como se pode perceber, o imigrante passa de massa desejada à indesejada numa

política que vai além da simples aversão. A imigração que fora subsidiada por vários países

da América durante décadas dá lugar a leis rígidas de proibição de entrada de imigrantes

nesses países. Ressalta-se que a exclusão do imigrante se dá tanto no plano histórico quanto

no literário, a exemplo da obra de Güiraldes que nem sequer menciona a presença do

imigrante nos pampas argentinos em Dom Segundo Sombra. O silenciamento estético-

291 KLEIN, 2000, p. 26. 292 Cf. KLEIN, 2000, p. 26.

Page 136: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

136

discursivo do estrangeiro fica bastante evidente quando associamos a data da publicação do

referido romance – vale lembrar que o romance data da década de 1920, tendo sido publicado

mais precisamente em 1926 – ao contexto histórico, período em que a Argentina possuía uma

parcela significativa de estrangeiros, resultado de anos de imigração, e que, apesar disso,

devido às circunstâncias do momento em questão, eles não eram mais vistos com “bons

olhos”.

Conforme apontam os dados históricos, em fins do século XIX surgem os primeiros

movimentos de imigrantes lutando em prol de melhores condições de trabalho. Datam

também deste período as tentativas de se fundarem federações, como é o caso da fundação,

em 1901, da Federação Operária Argentina. Dentre os propósitos da federação, estavam:

“‘melhorar por todos os meios legais a situação da classe operária’, harmonizar os interesses

das classes, defender os salários, lutar por uma jornada de oito horas e ‘propagar entre a classe

operária instrução correspondente em seus direitos e obrigações’”.293

A historiadora

Wasserman afirma que “apesar do caráter mutualista e apolítico, estas associações foram o

lugar de crescimento e ideologização do movimento operário na América Latina” e ressalta a

importância dos jornais dessas associações para a divulgação dos primeiros debates públicos

sobre as ideologias anarquista e socialista. Segundo informações, “A presença do

anarcossindicalismo e do socialismo foi inegável e teve mais força nos países com grandes

contingentes imigratórios”, como foi o caso da Argentina.

É válido ressaltar aqui que os movimentos paredistas, tidos como precursores das

atividades operárias em cada país, foram reprimidos com extrema violência pelos governos

oligárquicos, como ocorreu na Argentina, onde, em 1902, se iniciou, em contrapartida, um

movimento grevista de grandes proporções. O governo, em decorrência, segundo dados,

“reagiu com a prisão de dirigentes, fechamento de jornais, com uma ‘lei de residência’ que

293 WASSERMAN, 1992, p. 35.

Page 137: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

137

estabelecia o poder de expulsar estrangeiros e, finalmente, com a decretação de estado de

sítio, cinco vezes em oito anos”294

.

Atitudes tanto do governo argentino quanto do brasileiro apontam para uma clara

tentativa de aculturação dos imigrantes que, não querendo deixar de lado a cultura de seu país

de origem, a exemplo da criação de escolas onde se lecionava na língua do imigrante, sofrem

com as medidas das autoridades que lutam pela integração do imigrante às culturas argentina

e brasileira. Na Argentina, o que se percebe é uma clara resistência dos imigrantes, sobretudo

dos italianos, de assumir a cidadania argentina, como também de se interessar pelos assuntos

concernentes ao país. Como aponta o historiador Fernando Devoto,295

“A educação, remédio

de tantos males, não pode cumprir sua missão eficaz, pois várias comunidades e sobretudo os

italianos multiplicam suas escolas (...), nas quais tentam educar ‘italianamente’ seus filhos”,

fato que preocupa muito as autoridades e os formadores de políticas públicas. Processo

semelhante ocorre também no Brasil.

Segundo o estudioso Lúcio Kreutz, “Há referências de que desde o início da imigração

governantes externavam preocupação quanto às escolas de imigrantes”.296

No caso brasileiro,

por exemplo, durante a Primeira Guerra Mundial, e especialmente após o término desta,

constatam-se medidas do governo de restrição às escolas de imigrantes, proibindo o uso de

idiomas que não fosse o português e fechando temporariamente a imprensa de grupos étnicos.

Kreutz assinala em seu estudo sobre a educação de imigrantes no Brasil que após ter

encorajado a iniciativa destes últimos em relação ao processo escolar, dado que o país

esbarrava com a dificuldade de oferta de escolas públicas e, sobretudo, de professores, o

governo começa a interferir com legislação coibitiva. Várias medidas foram tomadas pelo

governo brasileiro, por meio de decretos, como o estabelecido no ano de 1938, a saber:

294 WASSERMAN, 1992, p. 35-36. 295 DEVOTO, 2000, p. 38. 296 KREUTZ, 2000, p. 364.

Page 138: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

138

Com o Decreto 406 de maio de 1938, [o governo brasileiro] ordenou que

todo o material usado na escola elementar fosse em português, que todos os

professores e diretores de escola fossem brasileiros natos, que nenhum livro

de texto, revista ou jornal circulasse em língua estrangeira nos distritos rurais e que o currículo escolar tivesse instrução adequada em história e geografia

do Brasil. Proibia o ensino de língua estrangeira a menores de 14 anos e

ordenava que se desse lugar de destaque à bandeira nacional em dias festivos, rendendo-lhe homenagem.

297

Vários foram os decretos estabelecidos no país como tentativa de inserir a cultura e a

língua oficial do Brasil na cultura do imigrante, visando a um claro propósito de aculturação

dos mesmos. Contudo, ressalte-se aqui que muitas dessas tentativas foram frustradas, o que

faz com que o imigrante progressivamente passe de massa desejada à indesejada, como

ocorreu também no caso argentino.

7.3. A percepção da modernização em Dom Segundo Sombra

Por trás de todo esse processo, em meados do século XIX o que estava em jogo era a

modernização da Argentina. No romance em questão, é possível constatar que os sinais de

modernização já haviam chegado aos pampas. Güiraldes não deixa de registrar a transição da

Argentina tradicional à Argentina moderna. Percebe-se assim que o autor reconhece que o

país passou por novas condições de civilização.

Sabe-se que na ocasião da publicação de Dom Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes,

a chegada da modernização já se fazia presente na Argentina, e Güiraldes não deixa de

297 In: KREUTZ, 2000, p. 365. Para maiores informações a respeito desse tema, ver KREUTZ (2000, p. 347-

370).

Page 139: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

139

registrar aspectos da modernização em seu romance. Contudo, o autor não lhe confere grandes

dimensões, fazendo vagas menções a esses elementos.

Depois de 1850, a iluminação a óleo dá lugar à iluminação a gás em Buenos Aires,

como também surgem novos meios de transporte, aproximando as cidades europeias das

cidades argentinas. E, neste sentido, não lhe passa despercebida a chegada da modernização,

que é registrada em passagens de seu romance.

A referência à linha férrea, ao moinho e à iluminação a gás, frutos do investimento do

capital inglês na Argentina, se fazem presentes em poucas passagens do livro, como naquela

em que se verifica a seguinte observação do protagonista a respeito da iluminação da cidade:

“A pouca distância divisei os primeiros ranchos, miseravelmente silenciosos e alumiados pela

débil luz de velas ou de lampiões de malcheiroso querosene”298

. Note-se, no entanto, que a

avaliação que o personagem faz da iluminação é sobretudo negativa. O gaúcho, como se pode

constatar no fragmento, é avesso à modernização.

Contudo, no romance, a modernização de Buenos Aires não é atribuída ao trabalho do

imigrante, que tem sua figura silenciada na obra de Güiraldes. Neste sentido, negar o

imigrante é também negar o processo de modernização que tanto marginalizou seu próprio

povo.

298 GÜIRALDES, 1997, p. 20.

Page 140: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

140

8. CONCLUSÃO

Como se pôde observar nesta tese, reflexões sobre índios, negros, mestiços, imigrantes,

política imigratória, colonização, saúde pública e educação foram objeto fundamental nos

diferentes projetos de construção de identidade nacional brasileira e argentina elaborados

pelos formuladores de políticas públicas e pela elite intelectual, e em especial pelos projetos

de identidade pensados, no Brasil, pelo literato Monteiro Lobato, na transição dos séculos

XIX e XX e em inícios do século XX, utilizando as diferentes imagens do personagem Jeca

Tatu, caboclo cuja representação é identificada à figura do mestiço, e, na Argentina, por

figuras como Domingo Faustino Sarmiento, em Facundo, e por Ricardo Güiraldes, em Dom

Segundo Sombra, quando estes se propuseram a falar sobre o gaúcho platino nos séculos XIX

e XX.

O que se pretendeu nesta tese foi comparar os discursos produzidos pela elite intelectual,

tanto no que diz respeito ao Brasil quanto no que concerne à Argentina, para se falar sobre o

caboclo, no caso brasileiro, e sobre o gaúcho, no caso argentino, atestando que em ambos os

casos houve uma aproximação daquilo que se produziu para falar sobre os mestiços. Como foi

possível constatar aqui, a consagração ou não de determinado grupo esteve diretamente ligada

à ideologia, ou seja, à relação de poder dominante nos momentos em causa.

O que se pode perceber é que as diferentes definições de identidade foram pensadas em

épocas distintas de acordo com a ideologia vigente em cada momento. No projeto de

identidade pensado no século XIX, no caso argentino, e na transição dos séculos XIX e XX,

no caso brasileiro, viu-se que as identidades dos referidos países foram construídas a partir da

negação do mestiço, uma vez que este era representado pelos literatos como inferior e

inadaptável à civilização em ambos os casos. Sendo o mestiço tido como bárbaro, era preciso

erradicá-lo, pois acreditava-se que só assim os países poderiam superar o atraso em que se

Page 141: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

141

encontravam, trazendo para esses espaços a modernização a que tanto almejavam as elites

intelectuais, que estavam pensando em uma imagem para o seu país e para o homem que nele

habitava.

O mestiço, em decorrência de teorias de cunho racista veiculadas na época, era

associado a uma imagem negativa, o que por sua vez contrariava o projeto de construção de

identidade pensado pelas elites intelectuais tanto brasileira quanto argentina, que viam no

imigrante, sobretudo o europeu, a solução para os problemas nacionais. Esses intelectuais não

só acreditavam que era preciso importar a mão-de-obra desses homens para atuar nas lavouras

como também viam nisso uma contribuição para embranquecer a população, com um projeto

claro de substituição de uma população por outra ou ainda, como se defendia na época, de

substituir a população do país por “gente de melhor qualidade”.

O projeto de identidade pautado na anulação do mestiço esteve fortemente ligado à

etnicidade. Ao se anular o mestiço, a heterogeneidade dos países que o fizeram foi mascarada.

O que se pretendeu foi mimetizar gestos e discursos culturais europeus, dado que a Europa

nesse período era tida como centro da civilização. A valorização do europeu foi, desta forma,

fortemente marcada. O discurso elaborado no projeto em questão foi claramente ideológico.

Negaram-se o mestiço, o índio e o negro na produção literária como forma de dominá-los. A

visão social seletiva daquilo que se acreditava ser o caboclo e o gaúcho autorizava a

oligarquia a manipulá-los. A exclusão desses homens da nação devido à sua constituição

biológica e cultural legitimava a exploração a que eram submetidos. Negava-se o “outro” e a

este não era dada a voz, uma vez que, segundo o discurso dessa elite, este não poderia falar;

logo, caberia à oligarquia gerir a vida desses homens e até mesmo falar por eles.

Como visto, as diferenças entre os grupos étnicos serviu para ressaltar a suposta

superioridade que foi atribuída ao homem branco durante muitos séculos. Ao se excluírem os

mestiços do projeto de nação, o status quo político-econômico da oligarquia era mantido.

Page 142: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

142

Como solução para que o Brasil e a Argentina pudessem entrar no concerto das nações

ditas civilizadas, a elite intelectual de ambos os países propôs um projeto de nação baseado na

figura do imigrante. O objetivo dos formuladores de políticas públicas foi importar uma

população branca, sobretudo europeia, que pudesse atender aos seus interesses. As elites

intelectuais viam na imigração europeia a possibilidade de implantação de novos hábitos e

comportamentos.

Em fins do século XIX, essas elites desejaram e promoveram a vinda dos imigrantes

através da imigração subsidiada. Acreditava-se que todo o esforço de construir uma nação

civilizada seria inútil se não atingisse a raiz do problema dos países em causa, que estava na

constituição da população autóctone, em sua grande maioria negra e mestiça.

O que se pretendeu com o projeto baseado na figura do imigrante foi claramente

substituir uma população por outra. Contudo, devido à reação negativa dos imigrantes recém-

chegados, dado o não cumprimento das promessas feitas a essa população, estes passam de

massa desejada a indesejada. Não se sentindo pertencentes à nação, eles implantam escolas

para educar seus filhos com a língua e a cultura trazidas de seu país de origem. A afinidade

com a terra natal é para muitos deles bastante forte. A não identificação dos imigrantes como

cidadãos do país para o qual migraram fez com que o projeto outrora pensado deixasse de ter

sentido e necessitasse então ser reformulado. Uma vez fracassado o projeto de nação

elaborado pelos literatos brasileiros e argentinos, era necessário repensar o projeto de

construção de identidade para o país em ambos os casos.

As tentativas de estabelecer critérios objetivos sobre a existência da nacionalidade

falharam, dado que o concerto de nação baseado em critérios étnicos, linguísticos e

territoriais, como bem aponta Hobsbawm, não se sustenta. Por exemplo, os imigrantes, ao

chegarem ao país para o qual se destinavam, mesmo falando a língua daquele país, não se

sentem pertencentes, em sua grande maioria, ao novo território. O fato de eles falarem a

Page 143: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

143

língua do país onde passaram a viver não os tornava nativos. Esses não mudavam de

nacionalidade em seu imaginário.

Uma vez fracassado o projeto de nação baseado na figura do imigrante, os literatos

produzem um discurso avesso a este e passam a valorizar a população negra e mestiça que

constituía o país. O que se pretendeu negar a partir daí foi o imigrante. O mestiço passa assim

de massa indesejada a desejada. No novo discurso da elite intelectual, o mestiço passa a ser

valorizado a fim de substituir a massa indesejada de imigrantes.

As elites intelectuais no caso brasileiro afirmavam que era preciso investir nos mestiços,

sobretudo no que dizia respeito à saúde, para que estes pudessem progredir e assim tornar o

país um lugar civilizado. O discurso utilizado pela elite começa, então, a valorizar o mestiço,

atribuindo o problema não mais a ele, mas sim às autoridades do país, que não olhavam para o

seu povo. Monteiro Lobato constrói, então, uma nova identidade para o Jeca Tatu. O Jeca,

representante do homem mestiço, só se comportava de forma apática porque estava doente.

Estando ele enfermo, o caboclo se encontrava impossibilitado de trabalhar e,

consequentemente, não progredia. Contudo, uma vez curado, o Jeca poderia até mesmo

superar a produção do imigrante europeu. A descoberta do problema que assolava o caboclo

foi fundamental para que o novo projeto pudesse assim se estabelecer. O país passa a ter uma

nova identidade.

No caso argentino, a estratégia utilizada, como se pôde constatar, foi o silenciamento

estético-discursivo do imigrante, que não foi registrado, por exemplo, em Dom Segundo

Sombra, de Ricardo Güiraldes. O gaúcho, que antes fora marginalizado tanto na literatura

como no plano concreto, no romance de Güiraldes é pintado com outras cores, sendo

apresentado sob um prisma favorável. O que na visão de Domingo Faustino Sarmiento era

acomodação e inércia, para Güiraldes estava associado à sua condição de combatente e

Page 144: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

144

andarilho, por uma questão de temperamento. Desta forma, vê-se que o discurso muda para

atender à necessidade de uma elite intelectual que está pensando seu projeto de nação.

Como se pôde constatar neste trabalho, ao construir a identidade levando em conta

apenas um critério, ora se incluem ora se excluem do processo determinados grupos. Esses,

mesmo beneficiados pelo discurso produzido pela elite letrada, a exemplo dos imigrantes em

um primeiro momento, não se sentem pertencentes à comunidade imaginada em questão, uma

vez que não foram devidamente inseridos na sociedade como almejavam ser. O discurso os

inseria na sociedade, mas a prática acabava por excluí-los.

A ideia de identidade, neste sentido, não deve ser fixa e nem única, pois, uma vez

pensada assim, acaba se pautando na exclusão, não respeitando as particularidades de cada

grupo ou até mesmo de cada indivíduo. Reproduzindo o pensamento de Eduardo Coutinho299

,

“A ‘Literatura nacional’ nunca constituirá um conceito homogêneo, mas, ao contrário, será

sempre uma construção em aberto, com facetas múltiplas e diversas, variando de acordo com

as necessidades de afirmação e autodefinição de cada momento”.

299 COUTINHO, 2003, p. 60.

Page 145: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

145

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. O Guarani. São Paulo: FTD, 1999.

ALMEIDA, José Maurício Gomes de. A tradição regionalista no romance brasileiro (1857-

1945). 2ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.

ALMEIDA, Ângela Mendes de, ZILLY, Berthold e LIMA, Eli Napoleão (orgs.). De sertões,

desertos e espaços incivilizados. Rio de Janeiro: FAPERJ: MAUAD, 2001.

ALVES FILHO, Aluízio. As metamorfoses do Jeca Tatu: a questão da identidade do

brasileiro em Monteiro Lobato. Rio de Janeiro: Inverta, 2003.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 20a ed. Belo Horizonte:

Itatiaia, Brasília: INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984.

ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira.

São Paulo: Ática, 1983.

BENCHIMOL, Jayme. “O Rio se renova com o prefeito bota-abaixo e o general mata-

mosquitos. E o povo se rebela”. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, ano 1, nº 2, 1984, pp.

108-121.

BERNASCONI, Alicia. “Imigrantes italianos na Argentina (1880-1930): uma aproximação”.

In: FAUSTO, Boris (org.). Fazer a América: a imigração em massa para a América

Latina. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2000, pp. 61-92.

BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS,

1992.

BERTUCCI-MARTINS, Liane Maria. “Entre doutores e para leigos: fragmentos do discurso

médico na influenza de 1918”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de

Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, vol. 12, nº. 1, 2005, pp. 143-157.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis

e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

BONFIM, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.

BOSI, Alfredo. “A escravidão entre dois liberalismos”. In: ---. Dialética da colonização. 3ª

ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 194-245.

-----. História concisa da literatura brasileira. 37ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

BOTELHO, André. “O Brasil que se divisa em Gilberto Freyre”. In: História, Ciências,

Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, casa de Oswaldo Cruz,

vol. 12, nº. 1, 2005, pp. 199-203.

Page 146: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

146

BURKE, Peter. “História como memória cultural”. In: ---. Variedades de história cultural.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, pp. 66-89.

CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito: estudos sobre o caipira paulista e a

transformação dos seus meios de vida. 10ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Duas Cidades,

2003.

-----. “Literatura e subdesenvolvimento”. In: ---. A educação pela noite & outros ensaios. 3ª

ed. São Paulo: Ática, 2003, pp. 140-162.

-----. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Vols. 1 e 2. 9ª ed. Belo

Horizonte / Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000.

CARVALHO, Marta Maria Chagas de. “Reforma da instrução pública”. In: LOPES, Eliane

M. S. T. et alii., orgs. 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000,

pp. 225-247.

CARRIZO, Silvina. Fronteiras da imaginação: os românticos brasileiros: mestiçagem e

nação. Niterói: EdUFF, 2001.

CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Vol. 2. Trad. Klauss Brandini Gerhardt. São

Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHAUÍ, Marilena. “A consciência pode conhecer tudo?”. In: Convite à filosofia. São Paulo:

Ática, 1997, cap. 7, pp. 165-175.

CORNEJO POLAR, Antonio. “A ‘invenção’ das nações hispano-americanas. Reflexões a

partir de uma relação textual entre o Inca e Palma”. In: VALDÉS, Mario J., org. O

condor voa: literatura e cultura latino-americana. Trad. Ilka Valle de Carvalho. Belo

Horizonte: UFMG, 2000, pp. 55-75.

COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 2ª ed. 5 vols. Rio de Janeiro: Editorial Sul

Americana, vol. 5, 1970.

-----. Introdução à literatura no Brasil.19ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

COUTINHO, Eduardo F. Literatura comparada na América Latina: ensaios. Rio de Janeiro:

EDUERJ, 2003.

DA MATTA, Roberto. O que faz o brasil Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

DECCA, Edgar Salvadori de. “Tal Pai, qual filho? Narrativas da identidade nacional”. In:

CHIAPPINI, Ligia e BRESCIANI, Maria Stella, orgs. Literatura e cultura no Brasil:

identidades e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2002, pp.15-27.

DEVOTO, Fernando J. “Imigração européia e identidade nacional nas imagens das elites

argentinas (1850 – 1914)”. In: FAUSTO, Boris, org. Fazer a América: a imigração

latina. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2000, pp. 33-60.

Page 147: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

147

DONGHI, Túlio Halperin. História da América Latina.Trad. Carlos Nelson Coutinho.Rio de

Janeiro: Paz e Terra, 1975.

DOWBOR, Ladislau. A formação do capitalismo dependente no Brasil. São Paulo:

Brasiliense, 1982.

ENGERMAN, Stanley L. “A economia da escravidão”. In: Revista Ciência Hoje, vol. 8, nº.

48, p. 4-9 (Negros brasileiros – encarte especial).

ESTEVES, Anderson Alves. “A leitura gramsciana do fordismo e do americanismo: a

hegemonia nasce na (e da) fábrica”. Artigo disponível em:

<http://www.consciencia.org/contemporanea/gramscianderson.shtml>. Acesso em:

13/01/2006.

FAUSTO, Boris, TRUZZI, Oswaldo, GRÜN, Roberto e SAKURAI, Célia. Imigração e

política em São Paulo. São Paulo: Sumaré: Fapesp, 1995.

FAUSTO, Boris (org.). “Introdução”. Fazer a América: a imigração em massa para a América

Latina. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2000, pp. 9-12.

-----. História do Brasil. 13ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010.

FELGUEIRAS, Carmen Lucia Tavares. “Os arquitetos do futuro. Os Estados Unidos segundo

Monteiro Lobato e Eduardo Prado”. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro, nº 27, 2001,

p. 1-24. Disponível também em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/297.pdf.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XX: o dicionário da língua

portuguesa. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

-----. Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0, 2004.

FIORIN, José Luis. “Identidades e diferenças na construção dos espaços e atores do novo

Mundo”. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de, org. Os discursos do descobrimento: 500

anos de discursos. São Paulo: Edusp, FAPESP, 2000, pp. 27-49.

FREUD, Sigmund. Esboço de psicanálise. Seleção de Jayme Salomão. São Paulo: Nova

Cultura, 2005.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da

economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1999.

GALVÃO, Walnice Nogueira. “Forasteiros”. In: ---. Desconversa: ensaios críticos. Rio de

Janeiro: UFRJ, 1998, pp. 15-28.

GARCÍA CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da

modernidade. Trad. Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. 3ª ed. São Paulo:

Editora da Universidade de São Paulo, 2000.

GELLNER, Ernest. Nations and Nationalism. Ithaca: Cornell University Press, 1983.

Page 148: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

148

GUIBERNAU, Montserrat. Nacionalismos: o estado nacional e o nacionalismo no século XX.

Trad. Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,

1997.

GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. “Chernoviz e os manuais de medicina popular no

Império”. In: História, Ciência, Saúde-Manguinhos, vol. 12, nº. 12, 2005, pp. 501-514.

GÜIRALDES, Ricardo. Dom Segundo Sombra. Trad. Augusto Meyer. Porto Alegre: L&PM,

1997.

-----. Don Segundo Sombra. Edição crítica; Paul Verdevoye, coord. Madrid, Paris, México,

Buenos Aires, São Paulo, Lima, Guatemala, San José de Costa Rica, Santiago de Chile:

ALLCA XX, 1997.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e

Guacira Lopes Louro. 10ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

HALL, Michael e PINHEIRO, Paulo S, orgs. A classe operária no Brasil (1889-1930); o

movimento operário. São Paulo: Alfa-Ômega, 1979, v.1.

HARDMAN, Francisco Foot. “Algumas fantasias de Brasil: o modernismo paulista e a nova

naturalidade da nação”. In: DECCA, Edgar Salvadori de e LEMAIRE, Ria, orgs. Pelas

margens: outros caminhos da história e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da

Unicamp, Ed. da Universidade – UFRGS, 2000, pp. 317-332.

HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Trad.

Maria Celia Paoli e Anna Maria Quirino. 3a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Prefácio de Antônio Cândido. 6ª ed. Rio de

Janeiro: José Olympio, 1971.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo

Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

JOSEF, Bella. História da literatura hispano-americana. 4ª ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro:

Editora UFRJ; Francisco Alves Editora, 2005.

KLEIN, Herbert S. “Migração internacional na história das Américas”. In: FAUSTO, Boris

(org.). Fazer a América: a imigração em massa para a América Latina. 2ª ed. São Paulo:

Edusp, 2000, pp. 13-31.

KREUTZ, Lúcio. “A educação de imigrantes no Brasil”. In: LOPES, Eliane M. T. et alii

(orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, pp. 347-370.

LIMA, Luiz Costa. Terra ignota: a construção de Os Sertões. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1997.

LOBATO, Monteiro. Urupês. 37ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.

------. Obras completas – Mr. Slang e o Brasil e Problema vital. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense,

1951.

Page 149: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

149

-----. Obras completas – Idéias de Jeca Tatu. Vol. 4. São Paulo: Brasiliense, 1959.

-----. A barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e

Godofredo Rangel. Iº Tomo. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1969.

-----. A barca de Gleyre: quarenta anos de correspondência literária entre Monteiro Lobato e

Godofredo Rangel. 2º Tomo. 13ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1969.

LOPES, Edward. “Ler a diferença”. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de, org. Os discursos do

descobrimento: 500 anos de discursos. São Paulo: Edusp, FAPESP, 2000, pp. 11-26.

LUCA, Tania Regina. “Representação do trabalho”. In: Revista Ciência Hoje, vol. 8, nº. 48,

p. 40-45 (Negros brasileiros – encarte especial).

MABEL MORAÑA. “De la ciudad letrada al imaginario nacionalista: contribuciones de

Angel Rama”. In: STEPHAN, Beatriz González, LASARTE, Javier, MONTALDO,

Graciela e DAROQUI, María Julia, orgs. Esplendores y miserias del siglo XIX. Cultura

y sociedad en América Latina. Monte Ávila Editores. Latinoamericana. Equinoccio.

Ediciones de la Universidad Simon Bolívar, 1995, pp. 41-52.

MOTT, Maria Lúcia, NEVES, Maria de Fátima Rodrigues e VENANCIO, Renato Pinto. “A

escravidão e a criança negra”. In: Revista Ciência Hoje, vol. 8, nº. 48, p. 20-27 (Negros

brasileiros – encarte especial).

NOVAES, Adauto, org. Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

O GLOBO, nº. 2, 2000, p. 25-48 (edição especial de história).

O GLOBO, nº. 3, 2000, p. 49-72 (edição especial de história).

O GLOBO, nº. 4, 2000, p. 73-96 (edição especial de história).

O GLOBO, nº. 5, 2000, p. 97-120 (edição especial de história).

OLIVEIRA, Lúcia Lippi. “Portugal e Brasil: uma relação tão delicada”. In: Art Cultura –

Revista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, nº. 9, 2004, pp.

119-127.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Trad. Marylene Pinto Michael. 2ª ed.

São Paulo: Martins Fontes, 2002.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003.

OVIEDO, José Miguel. Historia de la literatura hispanoamericana: del romantismo al

modernismo. Madri: Alianza S. A., 1997.

PAIVA, Carlos Henrique Assunção. “A saúde pública em tempos de burocratização: o caso

do médico Noel Nutels”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro:

Fundação Oswaldo Cruz, casa de Oswaldo Cruz, vol. 10, nº. 3, 2003, pp. 827 – 851.

Page 150: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

150

-----. “Imperialismo & filantropia: a experiência da fundação Rockefeller e o sanitarismo no

Brasil na Primeira República”. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de

Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, casa de Oswaldo Cruz, vol. 12, nº.1, 2003, pp. 205-

214.

PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de

Janeiro: Casa da Palavra, 2002.

-----. (org.). Olhares sobre a cidade. Rio de janeiro: Ed. UFRJ, 1994.

PEDRO, Joana Maria, CZESNAT, Ligia de Oliveira, CARDOSO, Paulino Francisco de

Jesus, FALCÃO, Luís Felipe, SILVA, Orivanda Lima e CHEREM, Rosângela Miranda.

“Abolição e branqueamento”. In: Revista Ciência Hoje, vol. 8, nº. 48, pp. 28-30 (Negros

brasileiros – encarte especial).

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. “O jogo dos sentidos: os literatos e a

popularização do futebol no Rio de Janeiro”. In: CHALHOUB, Sidney e PEREIRA,

Leonardo Affonso de Miranda, orgs. A história contada: capítulos de história social da

literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, pp. 195-231.

PIMENTEL, Ary. Literatura, imagem & ação: intelectuais, massas e poder no discurso

cultural argentino. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2001. 381 fl. Mimeo.

Tese de doutorado.

PORTO, Mayla Yara. “Uma revolução popular contra a vacinação”. In: Revista Ciência e

Cultura, vol. 55, nº. 1, 2003, pp. 53-54. Disponível também em:

http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v55n1/14861.pdf.

QUEIROZ, Suely Robles Reis. “Lembranças do passado cativo”. In: Revista Ciência Hoje,

vol. 8, nº. 48, pp. 36-39 (Negros brasileiros – encarte especial).

RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? / What is a nation? Toronto: Tapir Press, 1996.

REVISTA NOSSA HISTÓRIA. Abolição. Ano 2, nº. 19, maio, 2005.

REVISTA NOSSA HISTÓRIA. Os imigrantes. Ano 2, nº. 24, outubro, 2005.

REVISTA NOSSA HISTÓRIA. A construção do Brasil: fatos, pessoas e idéias que formaram a

nação. Edição especial, 2006.

REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL. Ano 2, nº. 18, março, 2007.

REZENDE, Antonio Paulo. História do movimento operário no Brasil. 2ª ed. São Paulo:

Ática, 1994.

RIBEIRO, Darcy. “Manoel Bonfim, antropólogo”. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, ano 1, nº

2, 1984, pp. 48-59.

Page 151: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

151

RIBEIRO, Darcy. As Américas e as civilizações: processos de formação e causas do

desenvolvimento dos povos americanos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

ROSA, Zita de Paula. “Laços e perdas em família”. In: Revista Ciência Hoje, vol. 8, nº. 48,

pp. 46-48 (Negros brasileiros – encarte especial).

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Trad. Tomás Rosa

Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SAMPAIO JR., Plínio de Arruda. Entre a nação e a barbárie: os dilemas do capitalismo

dependente em Caio Prado, Florestan Fernandes e Celso Furtado. Petrópolis, RJ:

Vozes, 1999.

SANTOS, Luiz Antonio de Castro. “O pensamento sanitarista na primeira república: uma

ideologia de construção da nacionalidade”. In: Dados. Revista de Ciências Sociais. Rio

de Janeiro, vol. 28, nº 2, 1985, pp. 193-210.

-----. “Estado e saúde pública no Brasil, 1889-1930”. In: Dados. Revista de Ciências Sociais.

Rio de Janeiro, vol. 23, nº 2, 1980, pp. 237-250.

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo: civilização e barbárie no pampa argentino. Trad.

Aldyr Garcia Schlee. Porto Alegre: Universidade / UFRGS / EDIPUCRS, 1996.

SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil: Colônia, Império, República. São Paulo:

Moderna, 1992.

SILVA, José Luiz Werneck. “A lei áurea revisitada”. In: Revista Ciência Hoje, vol. 8, nº. 48,

pp. 10-13 (Negros brasileiros – encarte especial).

SILVA, Marilene Rosa Nogueira. “Os escravos na paisagem urbana”. In: Revista Ciência

Hoje, vol. 8, nº. 48, pp. 14-15 (Negros brasileiros – encarte especial).

SILVEIRA, Éder. “Sanear para integrar: a cruzada higienista de Monteiro Lobato”. In: Art

Cultura – Revista do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, nº. 9,

2004, pp. 128-138.

SOUZA, Mônica Farias de. “Os índios, os imigrantes e as três raças: três projetos de

construção de identidade nacional”. In: Inicia: Coletânea de Trabalhos da Graduação em

Letras da UFRJ. 2ª ed. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 2004.

SÜSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

VASCONCELLOS, Zinda Maria Carvalho de. O universo ideológico da obra infantil de

Monteiro Lobato. São Paulo: Traço Editora, 1982.

VASQUEZ, Karina R. “Redes intelectuais hispano-americanas na Argentina de 1920”. Trad.

Sergio Miceli e Evania Guilhon. In: Tempo Social, revista de sociologia da USP, São

Paulo, vol. 17, nº 1, 2005, p. 55-80.

Page 152: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

152

WASSERMAN, Cláudia. História contemporânea da América Latina: 1900-1930. Porto

Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1992.

WOLFF, Francis. “Quem é bárbaro?”. In: NOVAES, Adauto, org. Quem é bárbaro? Trad.

Dorothée du Bruchard. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, pp. 19-43.

ZEA, Leopoldo. Discurso desde la marginación y la barbárie. México: Fondo de Cultura

Económica, 1992.

Page 153: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

153

ANEXO I

Carta de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel. In: LOBATO, M. A barca de Gleyre. 13ª ed.

São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 362-365.

Fazenda, 20, 10, 1914

Rangel:

Ora graças que nos encontramos de novo. Porque não tinha graça nenhuma que depois

de tão comprida caminheira nós nos “estranhássemos”, num quasi divorcio, só porque você se

meteu a eletricista e eu a fazendeiro. Vida em fazenda antes personaliza do que uniformiza. E

argumento por argumento, os teus podem aplicar-se a você mesmo, que na classificação social

tem a ficha de juiz mineiro. Quantos elementos cá na roça encontro para uma arte nova!

Quantos filões! E muito naturalmente eu gesto coisas, ou deixo que se gestem dentro de mim

num processo inconsciente, que é o melhor: gésto uma obra literaria, Rangel, que, realizada,

será algo nuevo neste país vítima duma coisa: entre os olhos dos brasileiros cultos e as coisas

da terra ha um maldito prisma que desnatura as realidades. E ha o francês, o maldito

macaqueamento do francês.

Não sei como vai ser essa obra. Talvez romance. Talvez uma serie de contos e coisas

com uma ideia central. Nessa obra aparecerá o caboclo como o piolho da serra, tão

espontaneo, tão bem adaptado como nas gainhas [sic] o piolho-de-galinha, ou como no pombo

o piolho-de-pombo, ou como no besouro o piolho-do-besouro – especies incapazes de viver

em outros meios. O caboclo, piolho-de-serra, tambem é incapaz de outra piolhagem que não é

a da serra. Já te escrevi sobre isto; e se a ideia insiste, é que de fato está se gestando bem

vizinha e será parida no tempo proprio.

Atualmente estou na luta contra quatro piolhos desta ordem – “agregados” aqui da

terra. Persigo-os, quero ver se os estalo nas unhas. Meu grande incendio de matas deste ano a

eles o devo. Estudo-os. Começo a acompanhar o piolho desde o estado de lendea, no utero

duma cobocla suja por fora e inçada de superstições por dentro. Nasce por mãos duma negra

parteira, senhora de rezas magicas de macumba. Cresce no chão batido das choças e do

terreiro, entre galinhas, leitões e cachorrinhos, como uma eterna lombriga de ranho pendurada

no nariz. Ve-lo virar menino, tomar o pito e a faca de ponta, impregnar-se do vocabulario e da

Page 154: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

154

“sabedoria” paterna, provar a primeira pinga, queimar o primeiro mato, matar com a picapau a

primeira rolinha, casar e passar a piolhar a serra nas redondezas do sitio onde nasceu, até que

a morte o recolha. Constroi lá uma choça de palha igualzinha á paterna, produz uns piolhinhos

muito iguais ao que êle foi, com a mesma lombriga nas ventas. Contar a obra de pilhagem e

depredação do caboclo. A caça nativa que ele destroi, as velhas arvores que ele derruba, as

extensões de matas lindas que ele reduz a carvão. Havia uma gameleira colossal perto da

choça, arvore centenaria – uma pura catedral. Pois ele derruba-a com “tres dias de machado”

– atorou-a e dela extrai... uma gamelinha de dois palmos de diametros para os semicupios da

mulher! Tambem extraiu da gameleira morta um pilãozinho de moer sal. Como aproveitou a

gameleira, assim aproveitou a terra. Queima toda uma face de morro para plantar um litro de

milho. E assim por diante. Um dia aparece o pó da Persia que afugenta a piolhada: o italiano.

Senhorea-se da terra, cura-a, transforma-a e prospera. O piolho, afugentado, vai parasitar um

chão virgem mais adiante.

Como você vê, não é fantasia nem carocha. É uma coisa que está aí e ninguem vê por

causa do tal prisma. Rangel, é preciso matar o caboclo que evoluiu dos indios de Alencar e

veiu até Coelho Neto – e que até o Ricardo romantizou tão lindo:

Cisma o caboclo à porta da cabana...

Eu vou contar o que ele cisma. A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos

que não penetram nos campos de medo dos carrapatos. E se por acaso um deles se atreve e faz

uma “entrada”, a novidade do cenario, embota-lhe a visão, atrapalha-o, e ele, por comodidade,

entra a ver o velho caboclo romantico já cristalizado – e até vê caipirinhas côr de jambo,

como o Fagundes Varela. O meio de curar esses homens de letras é retificar-lhes a visão.

Como? Dando a cada um, ao Coelho, á Julia Lopes, uma fazenda na serra para que a

administrem. Se eu não houvesse virado fazendeiro e visto realmente a coisa, o mais certo era

estar lá na cidade a perpetuar a visão erradissima do nosso homem rural. O romantismo

indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e morto o indianismo, os nossos escritores o

que fizeram foi mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de indio, caboclo.

Entrementes, colho café, planto feijão, milho e arroz, acompanho a guerra, leio

Albalat, fumo cigarros de palha, não pago dividas, carteio-me de longe em longe com o

Rangel e, sempre magro, vejo engordar á vista d’olhos a legião de parentes e amigos que

hospedei este ano e hospedo ainda. Agora que puseste fora da eletricidade, que vais tu

começar ou que tencionas concluir? Ando saudoso dos tempos de Areias, em que o correio

Page 155: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

155

me trazia os teus famosos romances numerados. Quando me mandas o ultimo? Vamos,

Rangel, tocar a andar. Quem sabe se estamos pertos? Ás vezes a gente chega inopinadamente.

Lobato

Page 156: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

156

ANEXO II

Carta de Monteiro Lobato a Godofredo Rangel. In: LOBATO, M. A barca de Gleyre. 13ª ed.

São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 365-367.

Fazenda, 22, 11, 1914

Rangel:

Chove. Aproveito a interrupção dos serviços para pôr a minha correspondencia em dia.

Creio que desta feita a montanha parirá. Sinto cá dentro as agitações do filhote. O diabo é que

não é um filho só, sim ninhada – assuntos a dar com o pau. Publiquei a semana passada um

artigo no Estado, e com surpresa, recebi a proposito cinco cartas e um convite da Sociedade

de Cultura Artistica de S. Paulo para fazer uma conferencia lá. Em vez disso, eu e minha

mulher fomos ler o tal artigo, cheios de vontade de gostar – e nada vimos que provocasse o

entusiasmo dos paulistas. Fiquei na duvida, porque cá no intimo, Rangel, acho o meu talento

muito problematico; o que eu tenho é jeito, habilidade; e assim como sem ser pintor, pinto

minhas aquarelas, sem ser caricaturista faço minhas caricaturas, sem ser relojoeiro conserto

relogios (dos grandes), e conserto fechaduras, e faço mobilia tosca, como fiz em Areias, e

construo uma capelinha com torre (como a construi em Taubaté), assim também, por força

desse mesmo jeito para tudo, escrevo artigos e contos sem ter o real, o solido, o bom talento

do escritor que veiu ao mundo para escrever. Sinto-me capaz de tudo, mas sempre por força

da habilidade e da manha, não pela força ingenita do artista que cria inconcientemente e de

jacto. Sou, em suma, o tipo do “curioso” – e acho uma beleza de expressão esta palavra

popular, equivalente a “amador”. Eis Rangel, o que no fundo penso de mim.

A obra capital da minha literatura, Rangel, o porco macho da ninhada, é ideia muito

velha em minha cabeça: o homem visto por um não-homem – para comodidade este não-

homem pode ser a alma duma montanha. Livro fragmentario. Impressões. Jactos. Manchas.

Notas dum não-homem. Tenho algumas e mandarei para que ajuizes.

Outro feto que sinto no utero é um romance comico onde se desenvolva o quatrienio

Hermes, visto por um Zé Ninguem que o hermismo plantou num cargo publico – de agente de

correio, suponhamos. Outro feto que já me dá pontapés no utero é a simbiose do caboclo e da

Page 157: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

157

serra, o caboclo considerado o mata-pau da terra: constritor e parasitario, aliado do sapé e da

samambaia, um homem baldio – inadaptável á civilização.

Por hoje bastam essas tres amostras da barrigada.

Mas antes delas o que vai sair é um estudo da guerra dum ponto de vista novo. Novo,

imagina tu! A hostefagia, Rangel! Não dar comida aos soldados para que lhes venha á boca á

lembrança da carne dos inimigos. O grande premio do vencedor não é o saque dos inimigos.

Napoleão trocará os quarenta seculos por quarenta mil bifes. “Camaradas, atrás daquelas

piramides, quarenta mil mamelucos assaveis vos esperam!”

Lobato

Page 158: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

158

ANEXO III

(Texto integral do folheto do Biotônico Fontoura, peça publicitária para a promoção dos

produtos do laboratório Fontoura Serpe & Cia, em especial do produto Biotônico Fontoura,

adaptado do texto “Jeca Tatuzinho”)

I

Jeca Tatu era um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior

pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários filhinhos pálidos e tristes.

Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer

coisa nenhuma. Ia ao mato caçar, tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva, mas não tinha

idéia de plantar um pé de couve atrás da casa. Perto corria um ribeirão, onde ele pescava de

vez em quando uns lambaris e um ou outro bagre. E assim ia vivendo.

Dava pena ver a miséria do casebre. Nem móveis, nem roupas, nem nada que significasse

comodidade. Um banquinho de três pernas, umas peneiras furadas, a espingardinha de

carregar pela boca, muito ordinária, e só.

Todos que passavam por ali, murmuravam:

- Que grandessíssimo preguiçoso!

II

Jeca Tatu era tão fraco que, quando ia lenhar, vinha com um feixinho que parecia brincadeira.

E vinha arcado, como se estivesse carregando um enorme peso.

- Por que não traz de uma vez um feixe grande? perguntaram-lhe um dia.

Jeca Tatu cortou a barbicha rala e respondeu:

- Não paga a pena.

Tudo para ele não pagava a pena. Não pagava a pena consertar a casa, nem fazer uma horta,

nem plantar árvores de fruta, nem remendar a roupa.

Só pagava a pena beber pinga.

- Por que você bebe, Jeca? diziam-lhe.

- Bebo para esquecer.

- Esquecer do quê?

- Esquecer as desgraças da vida.E os passantes murmuravam:

- Além de vadio, bêbado ...

III

Jeca possuía muitos alqueires de terra, mas não sabia aproveitá-la. Plantava todos os anos uma

rocinha de milho, outra de feijão, uns pés de abóbora e mais nada. Criava em redor da casa

um ou outro porquinho e meia dúzia de galinhas. Mas o porco e as aves que cavassem a vida,

porque Jeca não lhes dava o que comer. Por esse motivo o porquinho nunca engordava, e as

galinhas punham poucos ovos.

Jeca possuía ainda um cachorro, o Brinquinho, magro e sarnento, mas bom companheiro e

leal amigo.

Brinquinho vivia cheio de bernes no lombo e muito sofria com isso. Pois apesar dos ganidos

do cachorro, Jeca não se lembrava de lhe tirar os bernes. Por quê? Desânimo, preguiça...

As pessoas que viam aquilo, franziam o nariz.

- Que criatura imprestável! Não serve nem para tirar berne de cachorro...

Page 159: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

159

IV

Jeca só queria beber pinga e espichar-se ao sol, no terreiro. Ali ficava horas, com o

cachorrinho rente, cochilando. A vida que rodasse, o mato que crescesse na roça, a casa que

caísse. Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele.

Perto morava um italiano já bastante arranjado, mas que ainda assim trabalhava o dia inteiro.

Por que Jeca não fazia o mesmo?

Quando lhe perguntavam isso, ele dizia:

- Não paga a pena plantar. A formiga come tudo.

- Mas como é que seu vizinho italiano não tem formiga no sítio?

- É que ele mata.

E por que você não faz o mesmo?

Jeca coçava a cabeça, cuspia por entre os dentes e vinha sempre com a mesma história:

- Quá! Não paga a pena ...

- Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota, era o que todos diziam.

V

Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se de tanta miséria. Vendo o

caboclo tão amarelo e magro, resolveu examiná-lo.

- Amigo Jeca, o que você tem é doença.

- Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e uma pontada aqui no peito, que

responde na cacunda.

- Isso mesmo. Você sofre de ancilostomíase.

- Anci... o que?

- Sofre de amarelão, entende? Uma doença que muitos confundem com a maleita.

- Essa tal maleita não é sezão?

- Isso mesmo. Maleita, sezão, febre palustre ou febre intermitente: tudo a mesma coisa.

A sezão também produz anemia, moleza e esse desânimo do amarelão; mas é diferente.

Conhece-se a maleita pelo arrepio ou calafrio que dá, pois é uma febre que vem sempre em

horas certas e com muito suor. Quem sofre de sezão sara com o MALEITOSAN

FONTOURA. Quem sofre de amarelão sara com a ANKILOSTOMINA FONTOURA. Eu

vou curar você.

VI

O doutor receitou um vidro de ANKILOSTOMINA FONTOURA, para tomar assim: seis

comprimidos hoje pela manhã e outros seis amanhã de manhã.

- Faça isto duas vezes, com o espaço de uma semana. E de cada vez tome também um

purgante de sal amargo, se duas horas depois de ter ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver

evacuado. E trate de comprar um par de botinas e alguns vidros de BIOTÔNICO e nunca mais

me ande descalço e nem beba pinga, ouviu?

-Ouvi, sim, senhor!

- Pois é isso, rematou o doutor, tomando o chapéu. A chuva já passou e vou-me embora. Faça

o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. Na semana que vem estarei aqui de

volta.

- Até por lá, sêo doutor!

Jeca ficou cismando. Não acreditava muito nas palavras da Ciência, mas por fim resolveu

comprar os remédios, e também um par de botinas ringideiras.

Nos primeiros dias foi um horror. Ele andava pisando em ovos. Mas acostumou-se, afinal...

Page 160: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

160

VII

Quando o doutor voltou, Jeca estava bem melhor, graças à ANKILOSTOMINA e ao

BIOTÔNICO. O doutor mostrou-lhe com uma lente o que tinha saído das suas tripas:

- Veja, sêo Jeca, que bicharia tremenda estava você a criar na barriga! São os tais

ancilóstomos, uns bichinhos dos lugares úmidos, que entram pelos pés, vão varando pela

carne adentro até alcançarem os intestinos. Chegando lá, grudam-se nas tripas e escangalham

com o freguês.

Tomando a ANKILOSTOMINA, você bota fora todos os ancilóstomos que tem no corpo. E

andando sempre calçado, não deixa que entrem os que estão na terra. Fazendo isso e

fortalecendo-se com alguns vidros de BIOTÔNICO, ovos e leite, você fica livre da doença

para sempre.

Jeca abriu a boca, maravilhado.

- Os anjos digam amém, sêo doutor!

VIII

Mas Jeca não podia acreditar numa coisa: que os bichinhos entrassem pelo pé. Ele era

"positivo" e dos tais que "só vendo". O doutor resolveu abrir-lhe os olhos: Levou-o a um lugar

úmido, atrás de casa, e disse:

- Tire a botina e ande um pouco por aí.

Jeca obedeceu.

- Agora venha cá. Sente-se. Bote o pé em cima do joelho. Assim. Agora examine a pele com

essa lente.

Jeca tomou a lente, olhou e percebeu vários vermes pequeninos que já estavam penetrando na

sua pele, através dos poros. O pobre homem arregalou os olhos, assombrado.

- E não é que é mesmo? Quem "haverá" de dizer!...

- Pois é isso, sêo Jeca, e daqui por diante não duvide mais do que disser a Ciência.

- Nunca mais! Daqui por diante dona Ciência está dizendo, Jeca está jurando em cima!

T'esconjuro! E pinga, então, nem para remédio...

IX

Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho! Três meses depois ninguém mais conhecia o

Jeca. A ANKILOSTOMINA curou-o do Amarelão. O BIOTÔNICO deixou-o bonito, corado,

forte como um touro.

A preguiça desapareceu. Quando ele agarrava no machado, as árvores tremiam de pavor.

Era pã, pã, pã... horas seguidas, e os maiores paus não tinham remédio senão cair.

E Jeca, cheio de coragem, botou abaixo o capoeirão, para fazer uma roça de três alqueires. E

plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos

da casa. E fez um chiqueiro para os porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não

parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.

- Descanse um pouco, homem! Assim você arrebenta... diziam os passantes.

- Quero ganhar o tempo perdido, respondia ele, sem largar do machado. Quero tirar a prosa do

"italiano".

X

Jeca, que era um medroso, virou valente. Não tinha mais medo de nada, nem de onça! Uma

vez, ao entrar no mato, ouviu um miado estranho.

- Onça! Exclamou ele. É onça e eu aqui sem uma faca!...

Page 161: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

161

Mas não perdeu a coragem. Esperou a onça, de pé firme. Quando a fera o atacou, ele ferrou-

lhe tamanho murro na cara que a bicha rolou no chão, tonta. Jeca avançou de novo, agarrou-a

pelo pescoço e estrangulou-a.

- Conheceu, papuda? Você pensa que está lidando com algum pinguço opilado? Fique

sabendo que tomei ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO e uso botina ringideira!...

A companheira da onça, ao ouvir essas palavras, não quis saber de histórias - azulou! Dizem

que até hoje está correndo...

XI

Ele, que antigamente, quando lenhava, só trazia três pausinhos, carregava agora cada feixe

que metia medo. E carregava-os sorrindo, como se o enorme peso não passasse de

brincadeira.

- Amigo Jeca, você arrebenta! diziam-lhe. Onde se viu carregar tanto pau de uma vez?

- Já não sou aquele de dantes! Isto para mim agora é canja... respondia o caboclo, sorrindo.

Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou no mato grossas perobas,

atorou-as, lavrou-as e trouxe no muque para o terreiro as toras todas. Sozinho!

- Quero mostrar a essa paulama quanto vale um homem que tomou ANKILOSTOMINA e

BIOTÔNICO, que usa botina cantadeira e que não bebe nem um só martelinho de cachaça!

O italiano via aquilo e coçava a cabeça.

- Se eu não tropicar direito, este diabo me passa na frente. Per Bacco!

XII

Dava gosto ver suas roças. Comprou arados e bois, e não plantava nada sem primeiro afofar a

terra. O resultado foi que os milhos vinham lindos e o feijão era uma beleza.

O italiano abria a boca, admirado, e confessava nunca ter visto roças assim.

E Jeca já não plantava rocinhas, como antigamente. Só queria saber de roças grandes, cada

vez maiores, que fizessem inveja no bairro.

E se alguém lhe perguntava:

- Mas para que tanta roça, homem? ele respondia:

- É que agora quero ficar rico. Não me contento com trabalhar para viver. Quero cultivar

todas as minhas terras, e depois formar aqui duas enormes fazendas - a Fazenda

Ankilostomina e Fazenda Biotônico. E hei de ser até coronel...

E ninguém duvidava mais. O italiano dizia:

- E forma mesmo! E vira mesmo coronel! Per la Madonna!...

XIII

Por esse tempo, o doutor passou por lá e ficou admiradíssimo com a transformação de seu

doente.

Esperara que ele sarasse, mas não contara com tal mudança.

Jeca o recebeu de braços abertos e apresentou-o à mulher e aos filhos.

Os meninos cresciam viçosos, e viviam brincando, contentes como os passarinhos.

E toda gente ali andava calçada. O caboclo ficara com tanta fé no calçado, que metera botinas

até nos animais caseiros!

Galinhas, patos, porcos, tudo de sapatinho nos pés! O galo, esse andava de bota e espora!

- Isso também é demais, sêo Jeca, disse o doutor. Isso é contra a natureza!

- Bem sei. Mas quero dar um exemplo a esta caipirada bronca. Eles vêm aqui, vêem isso e não

se esquecem mais da história.

Page 162: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

162

XIV

Em pouco tempo os resultados foram maravilhosos. A porcada aumentou de tal modo, que

vinha gente de longe admirar aquilo. Jeca adquiriu um caminhão, e em vez de conduzir os

porcos ao mercado pelo sistema antigo, levava-os de auto, num instantinho, buzinando pela

estrada afora, fon-fon! Fon-fon! ...

As estradas eram péssimas; mas ele consertou-as à sua custa. Jeca parecia um doido. Só

pensava em melhoramentos, progressos, coisas americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a

casa de livros e por fim tomou um professor de inglês.

- Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa.

O seu professor dizia:

- O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig. Não diz galinha; é hen... Mas de álcool,

nada. Antes quer ver o demônio, que um copinho da "branca"...

XV

Jeca só fumava charutos fabricados especialmente para ele, e só corria as roças montado em

cavalos árabes de puro sangue.

- Quem o viu e quem o vê! Nem parece o mesmo. Está um "estranja" legítimo, até na fala.

Na "Fazenda Biotônico" havia de tudo. Campos de alfafa. Pomares belíssimos com quanta

fruta há no mundo. Até criação do bicho-da-seda; Jeca formou um amoreiral que não tinha

fim.

- Quero que tudo aqui ande na seda, mas seda fabricada em casa. Até os sacos aqui da fazenda

tem que ser de seda, para moer os invejosos...

E ninguém duvidava de nada.

- O homem é mágico, diziam os vizinhos. Quando assenta de fazer uma coisa, faz mesmo,

nem que seja um despropósito...

XVI

A "Fazenda Biotônico" tornou-se famosa no país inteiro. Tudo ali era por meio do rádio e da

eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do chiqueiro se

enchia automaticamente de rações muito bem dosadas. Tocava outro botão e um repuxo de

milho atraía todo o galinhame!...

Suas roças eram ligadas por telefones. Da cadeira de balanço na varanda, ele dava ordens aos

feitores, lá longe.

Chegou a mandar buscar nos Estados Unidos um aparelho de televisão.

- Quero aqui desta varanda ver tudo o que se passa em minha fazenda.

E tanto fez, que viu. Jeca instalou os aparelhos, e assim pôde, da sua varanda, com o charutão

na boca, não só falar por meio do rádio para qualquer ponto da fazenda, como ainda ver, por

meio da televisão, o que os camaradas estavam fazendo.

XVII

Ficou rico e estimado, como era natural; mas não parou aí. Resolveu ensinar o caminho da

saúde aos caipiras das redondezas. Para isso montou na fazenda e vilas próximas vários

POSTOS DE MALEITOSAN, onde tratava os enfermos de sezões; e também POSTOS DE

ANKILOSTOMINA, onde curava os doentes de amarelão e outras verminoses.

E quando algum empregado sentia alguma dor de cabeça, se estava resfriado, Jeca arrumava-

lhe uns dois ou três comprimidos de Fontol, e imediatamente o homem estava bom, e pronto

para o serviço.

Page 163: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

163

O seu entusiasmo era enorme. "Hei de empregar tôda minha fortuna nesta obra de saúde geral,

dizia. Meu patriotismo é este. Minha divisa: Curar gente. Abaixo a bicharia! Viva o

Biotônico! Viva ANKILOSTOMINA! Viva o Maleitosan! Viva o Fontol!"

A estes vivas o coronel Jeca aumentou mais um. Foi quando apareceu o grande "liquida-

insetos" chamado DETEFON e ele o experimentou na miuçalha da fazenda: pulgas,

percevejos, piolhos, baratas, pernilongos e moscas. Deixou aquilo lá sem um só bichinho para

remédio.

Não contente com isso, Jeca tomou o hábito de nunca sair a cavalo ou de automóvel sem levar

a tiracolo a bomba de pulverizar o DETEFON. Entrava nos casebres de beira de caminho e

antes do "Bom dia!" punha-se fon, fon, fon, detefon, a pulverizar tudo, coisas e gentes.

Quando acaba, dizia:

- Ninguém faz a conta dos males que estes bichinhos causam à humanidade, como

transmissores de moléstias... e dava mais umas bombadas de lambuja.

E a curar gente da roça passou Jeca toda a sua vida. Quando morreu, aos 89 anos, não teve

estátua ou grandes elogios nos jornais. Mas ninguém ainda morreu de consciência mais

tranqüila. Havia cumprido o seu dever até o fim.

XVIII

Meninos: nunca se esqueçam desta história; e, quando crescerem, tratem de imitar o Jeca. Se

forem fazendeiros, procurem curar os camaradas. Além de ser para eles um grande benefício,

é para você um alto negócio. Você verá o trabalho dessa gente produzir três vezes mais.

Um país não vale pelo tamanho, nem pela quantidade de habitantes. Vale pelo trabalho que

realiza e pela qualidade da sua gente.

Ora, ter mais saúde é a grande qualidade de um povo. Tudo mais vem daí. E o grande remédio

que combate o amarelão, esse mal terrível que tantos braços preciosos rouba ao trabalho, é a

ANKILOSTOMINA. Assim como o grande conservador da saúde, que produz energia, força

e vigor, chama-se BIOTÔNICO FONTOURA.

Page 164: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

164

ANEXO IV

Page 165: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

165

ANEXO V

Page 166: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

166

ANEXO VI

Page 167: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

167

ANEXO VII

Page 168: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

168

ANEXO VIII

Page 169: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

169

ANEXO XIX

Ankilostomina Fontoura - o biotônico

Publicado no jornal santista A Tribuna, em 2 de dezembro de 1923, página 16 (última)

Page 170: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

170

ANEXO X

Page 171: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

171

ANEXO XI

Biotonico Fontoura (publicado ao lado do anúncio de Ankilostomina Fontoura)

Publicado no jornal santista A Tribuna, em 2 de dezembro de 1923, página 16 (última)

Page 172: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

172

ANEXO XII

Page 173: Universidade Federal do Rio de Janeiro IMAGENS DO JECA ......2 Imagens do Jeca Tatu e do gaúcho platino na produção literária de Monteiro Lobato, Domingo Faustino Sarmiento e Ricardo

173

ANEXO XIII