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Universidade Federal do Rio de Janeiro A CONTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A NARRATIVA MEXICANA MODERNA: A IMAGINATURA DO TEMPO BRUNO DA CRUZ FABER 2013

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

A CONTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A NARRATIVA MEXICANA MODERNA: A

IMAGINATURA DO TEMPO

BRUNO DA CRUZ FABER

2013

Faculdade de Letras/ UFRJ

A CONTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A NARRATIVA MEXICANA MODERNA: A

IMAGINATURA DO TEMPO

BRUNO DA CRUZ FABER

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Mestre em Literaturas Hispânicas.

Orientador: Mariluci da Cunha Guberman

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

A contística de Carlos Fuentes e a Narrativa Mexicana Moderna:

a imaginatura do tempo

Bruno da Cruz Faber

Orientador: Mariluci da Cunha Guberman

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras

Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

necessários à obtenção do título de Mestre em Literaturas Hispânicas.

Examinada por:

_______________________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman – UFRJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Sônia Cristina Kapps Reis – UFRJ

_______________________________________________________________

Professor Doutor Antonio Ferreira da Silva Júnior – CEFET-Rio

_______________________________________________________________

Professora Doutora Maria Lizete dos Santos – UFRJ

_______________________________________________________________

Professora Doutora Debora Ribeiro Lopes Zoletti – UFRRJ

Avaliação: .....................................

Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2013.

FABER, Bruno C.

A constística de Carlos Fuentes e a Narrativa Mexicana Moderna: a imaginatura

do tempo / Bruno da Cruz Faber. – Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.

XIII, 235f.: il.; 31cm.

Orientador: Mariluci da Cunha Guberman

Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa de Pós-

Graduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), 2013.

Referências bibliográficas: p.141-145.

1. Carlos Fuentes. 2. Narrativa Mexicana Moderna. 3. Literatura da Revolução

Mexicana. 4. Tempo. I. Guberman, Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio

de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas

(Literaturas Hispânicas). III. Título.

RESUMO

A contística de Carlos Fuentes e a Narrativa Mexicana Moderna:

a imaginatura do tempo

Esta dissertação investiga a inserção do escritor mexicano Carlos Fuentes na

denominada Narrativa Mexicana Moderna e como a imaginação do tempo constitui

um elemento essencial em contos do escritor mexicano Carlos Fuentes. À luz dos

pressupostos da literatura memorialística, argumentamos que o tempo está

intimamente relacionado com a memória e junto com o mito estes três elementos

constituem uma tríade inextricável. Em consequência disso, analisamos os

procedimentos técnicos que Carlos Fuentes emprega nos seus contos para construir

essa cosmologia do tempo. Acrescentamos, também, que a memória a serviço da

ficção tenta reconectar as várias partes da realidade e construir o que Carlos Fuentes

denomina como real. Assim, averiguamos como a imaginação do tempo, aliada ao

mito e à memória, estrutura as narrativas dos livros de contos Los días enmascarados,

Cuentos sobrenaturales e Todas las familias felices.

Palavras-chave: Carlos Fuentes; Literatura da Revolução Mexicana; Narrativa Mexicana

Moderna; Tempo.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2013

Resumen

La cuentística de Carlos Fuentes y la Narrativa Mexicana Moderna:

la imaginatura del tempo

Esta tesis de maestría investiga la inserción del escritor mexicano Carlos Fuentes en la

denominada Narrativa Mexicana Moderna y cómo la imaginación del tiempo

constituye un elemento esencial en cuentos del escritor mexicano Carlos Fuentes. A la

luz de los presupuestos de la literatura memorialística, argumentamos que el tiempo

está íntimamente relacionado con la memoria y junto con o mito estos tres elementos

constituyen una tríada inextricable. A consecuencia de tal hecho, analizamos los

procedimientos técnicos que Carlos Fuentes emplea en sus cuentos para construir esa

cosmología del tiempo. Agregamos, también, que la memoria a servicio de la ficción

intenta reconectar las varias partes de la realidad y construir lo que Carlos Fuentes

nombra como real. Así, averiguamos cómo la imaginación del tiempo, aliada al mito y

la memoria, estructura las narrativas de los libros de cuentos Los días enmascarados,

Cuentos sobrenaturales y Todas las familias felices.

Palabras-clave: Carlos Fuentes; Literatura de la Revolución Mexicana; Narrativa

Mexicana Moderna; Tiempo.

RÍo de Janeiro

Febrero de 2013

SINOPSE

Análise da Narrativa Mexicana Moderna.

Estudo da Literatura da Revolução

Mexicana. Constatação do tempo como

elemento estruturador nos contos de Carlos

Fuentes.

Esta pesquisa foi integralmente financiada pela Coordenação

de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

DEDICATÓRIA

À Vida, pelas oportunidades dadas.

Ao México, por fazer-me descobrir uma nova vida.

A Carlos Fuentes, pela paixão compartida do México e da

Literatura.

AGRADECIMENTOS

Todo ato genesíaco tem o seu início, o primeiro cair das peças enfileiradas de

um dominó. Por isso, gostaria aqui de rememorar alguns eventos marcantes durante

minha trajetória. Divido em duas partes: peças-chaves do meu percurso acadêmico na

Faculdade de Letras da UFRJ e amigos que sempre estiveram comigo. Começando pelo

primeiro, eis o germe-fundador: os cursos de Teoria Literária ministrados pela profa.

Maria Lucia Guimarães de Faria, mais conhecida como Maluh. A ela devo o meu amor

pela literatura, pois foi ela que me iniciou no estudo avassalador da literatura.

Pergunto-me se por acaso eu não tivesse estudado com ela se eu teria seguido os

estudos literários. Aqui fica meu muito obrigado mais que especial a ti, Maluh.

Com o avançar dos períodos da graduação tive o privilégio de estudar com

professores que me engrandeceram, não só como estudioso, mas como pessoa.

Citando alguns: Luis Maffei (Poesia Portuguesa), Eucanaã Ferraz (Poesia Brasileira),

Ronaldes de Melo e Souza (Prosa Brasileira) e Manuel Antônio de Castro (Teoria

Literária). Não poderia deixar de mencionar a professora com quem realmente posso

dizer “aprendi espanhol” e que me devolveu o prazer pela língua espanhola e,

portanto, me influenciou de forma indireta aos estudos literários hispano-americanos:

Letícia Couto Rebollo. Não tenho nem palavras para agradecer o que fizeram por mim,

ainda que não saibam o que exatamente fizeram.

Em especial e em destaque, trago à esta seleção a profa. Mariluci da Cunha

Guberman. Se os já mencionados foram os responsáveis (direta ou indiretamente) pelo

meu caminhar em Literatura, Mariluci com certeza foi aquela que me arrebatou para

as veredas da literatura hispano-americana. Com ela aprendi o quão riquíssima é esta

literatura e com ela nasceu o desejo de estudá-la. E o fruto disto é a presente

dissertação, já pensada desde o tempo da iniciação científica. Muito obrigado pela

compreensão e carinho nesses quatro anos de convivência, seja eu como aluno ou

como orientando.

Por fim, não poderia deixar de lembrar e agradecer a dois professores que

conheci no curso de mestrado da UFRJ que me auxiliaram de forma crucial nesta

dissertação: a professora Cláudia Luna (Literatura Hispano-americana) e a professora

Angélica Soares (Teoria Literária).

Porém, essa minha trajetória não teria sido possível sem a presença de pessoas

alheias ao universo acadêmico. Sou eternamente grato a minha mãe, Maria da

Conceição, e a meu avô, José de Oliveira, pela paciência e pelo apoio desde a época da

graduação. Se cheguei aonde cheguei, foi por causa deles. Agradeço a meus amigos

Camila Pinheiro, Carolina Gomes e Úrsula Antunes por terem me aguentado durante

esse tempo.

Um agradecimento muito especial para Caio Castro, o melhor amigo, por ter se

responsabilizado pelas minhas coisas no Brasil enquanto passei uma instância no

México. Foi e é meu braço direito. Aproveitando que mencionei o México, não poderia

me esquecer do professor da UNAM, Jorge Muñoz Figueroa, que me auxiliou nos

estudos literários mexicanos.

E por último, o meu carinho em especial para Gabriel Franco Willword e Luis

Rodrigo Castro Macias. Vocês são dois que valem por muitos. Ninguém sofreu mais a

tensão da escrita da dissertação que vocês. Obrigado por sempre me apoiar e

reconfortar. Espero que ainda haja paciência para suportar-me no doutorado. Thank

you. Gracias.

Fiz este “percurso dedicatório” apenas para ilustrar bem que esta dissertação é

o resultado do trabalho de muitas mãos, de muita ajuda, de muita orientação etc. É

para eles que também dedico esta dissertação.

En el fondo es América misma que escribe su propia nueva, su novela, a través de la carta, el testimonio, las “historias veraderas”. […] la gran literatura hispanoamericana volverá reinteradamente a nutrirse de su propia tradición de cultura. El reconocimiento de sus tradiciones no es entre nosotros tarea libresca o erudita sino nuevo impulso hacia la experiencia viva, la aventura, la política o la mística. […] La lectura hermenéutica impone una mirada de conjunto que puede revelar las constantes de la novela latinoamericana. Para esa mirada de conjunto la primera constatación es la del mundo mítico-simbólico que si bien es convocado en la literatura por palabras, queda más allá de éstas y pertenece al fondo imaginario de la cultura. […] La analogía de los mitos hizo posible el sincretismo americano, importante para comprender el perfil de la cultura hispanoamericana. […] Hablaremos de una trasmodernidad americana para aludir al tiempo americano, a su cultura entretejida entre la contemplación y la acción. […] Las escrituras postulan a América como recomienzo de la Historia. América mismo es una novela.

Graciela Maturo (2010)

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SUMÁRIO

Introdução ...................................................................................................................... 16 Primeira Parte: Antecedentes da Prosa Mexicana Moderna - romantismo, realismo, naturalismo e modernismo ............................................................................................ 20 1. O romantismo mexicano: a supermacia do nacionalismo ......................................... 22

1.1. O romantismo plasmado nas pinturas .................................................................. 22 1.2. Primeira fase do romantismo literário ................................................................. 25 1.3. Segunda fase do romanstimo literário ................................................................. 28 1.4. Terceira fase do romanstimo literário .................................................................. 30 1.5. Recapitulando ...................................................................................................... 32

2. Realismo e Modernismo nas letras mexicanas: a musa vira-lata ............................... 33 2.1. Realismo/Naturalismo plástico ............................................................................ 33 2.2. Realismo/Naturalismo literário............................................................................ 34 2.3 Modernismo nas letras mexicanas ........................................................................ 35 2.4. México finessecular: do cosmos ao caos no Porfiriato ....................................... 37 2.5. Recapitulando ...................................................................................................... 39

Segunda Parte: Literatura da Revolução e Narrativa Mexicana Moderna: as letras mexicanas nos séculos XX e XXI ...................................................................................... 40 3. Pós-modernismo e Revolução Mexicana ................................................................... 42

3.1. Pós-modernismo: continuidade e divergência ..................................................... 42 3.2. Inquietude artística: a revolução no campo da arte plástica mexicana ................ 43 3.3. O Ateneu da Juventudade .................................................................................... 45 3.4. José Vasconcelos e sua revolução intelectual...................................................... 47 3.5. A mexicanidade como arte nacional: o movimento muralista ............................ 50 3.6. Recapitulando ...................................................................................................... 52

4. Da Narrativa da Revolução Mexicana à Narrativa Mexicana Moderna ..................... 53 4.1. A neo-escritura da Revolução Mexicana: Los de abajo, de Mariano Azuela ..... 55

4.1.1. Realismo crítico ............................................................................................ 56 4.1.2. A prosa como cronista da barbárie ............................................................... 57

4.2. Al filo del agua, de Agustín Yáñez: a obra inaugural da Narrativa Mexicana Moderna ...................................................................................................................... 63

4.2.1. Poética da Prosa Mexicana Moderna ........................................................... 63 4.2.2. A topografia espiritual em Al filo del agua .................................................. 68

4.3. Pedro Páramo e a mitografia rulfiana da morte .................................................. 71 4.3.1. Os dois eixos narrativos: a história do Pai e do Filho .................................. 72 4.3.2. A mitografia da morte .................................................................................. 74

4.4. Recapitulando ...................................................................................................... 80 Terceira Parte: A contística de Carlos Fuentes e a imaginatura do tempo .................... 82 5. A poética do conto em Carlos Fuentes ....................................................................... 85

15

5.1. O conto moderno ................................................................................................. 85 5.2. O fantástico .......................................................................................................... 88 5.3. Recapitulando ...................................................................................................... 91

6. A gênese do tempo mítico em Los días enmascarados ............................................. 92 6.1. A duplicidade da máscara nos contos: memória e esquecimento ........................ 93

6.1.1. Sobre o conceito de memória ....................................................................... 94 6.1.2. O tempo quadridimensional ......................................................................... 96 6.1.3. Da memória individual ................................................................................. 97 6.1.4. Da memória coletiva..................................................................................... 98 6.1.5. Das memórias e o tempo .............................................................................. 99

6.2. “Chac Mool” e a tríade inextricável mito-tempo-memória .............................. 101 6.3. A relação de interdependência entre Mito e Natureza ....................................... 108 6.4. "Tlactocatzine, del jardín del Flandes": a natureza subermegida no mito......... 109 6.5. Recapitulando .................................................................................................... 113

7. Cuentos sobrenaturales: a conjugação entre mito e história .................................. 115 7.1. Mito, história e ficção ........................................................................................ 115 7.2. O tesouro do passado: "Un fantasma tropical" e a (des)memória coletiva........ 118 7.3. Recapitulando .................................................................................................... 120

8. A dissonância poética do tempo em Todas las familias felices................................ 122 8.1. Cosmologia mesoamericana: a concepção do tempo ........................................ 122 8.2. O estatuto irônico da (in)felicidade: a desconstrução urdida nos contos .......... 126 8.3. Fragmentação espaço-temporam em "Una familia de tantas" ........................... 126 8.4. "Madre dolorosa": a árdua tarefa da desconstrução .......................................... 130 8.5. Memória fragmentadas em "El padre eterno": entre a lembrança e o esquecimento ............................................................................................................ 134 8.6. Recapitulando .................................................................................................... 137

Conclusão...................................................................................................................... 139 Referências bibliográficas ............................................................................................ 141

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Introdução

De la fusión de imaginación y literatura surge el término ‘imaginatura’, concepto que pretende repensar la relación entre ambas y señalar sus implicaciones socioculturales no ajenas a la memoria. No existe literatura sin imaginación, ni imaginación sin memoria, por lo que consideramos que la recuperación de acontecimientos a través de la ficción escrita, implica, a su vez, la reinterpretación y reinvención de un pasado que suele “actualizarse” con tono y color que reclama erigirse como “verdad”.

Carlos Huamán (2010)

Nesta dissertação nos propomos a estudar a constística do escritor mexicano

Carlos Fuentes à luz da teoria memorialística (Bosi, 1994; Bergson, 1999; Candau,

2010). Também a inserção do mesmo no contexto da Narrativa Mexicana Moderna.

Carlos Fuentes, por ter escrito muitos livros ao longo de sua vida, possui uma obra

muito vasta que não poderemos abarcar aqui em sua totalidade. Por isso,

selecionamos para analisar criticamente os contos do referido escritor mexicano

(“Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardín de Flandes”, “Un fantasma tropical”, “Una

familia de tantas”, “Madre dolorosa” e “El padre eterno”), além do fato de haver

pouca pesquisa referente a sua contística, principalmente aos livros escritos neste

século.

Ao longo de nossa pesquisa comprovaremos que o tempo é um elemento

essencial na poética de Carlos Fuentes. O próprio não o nega, uma vez que agrupou

todos os seus livros em um projeto que ele denominou de “La edad del tiempo”.1

Carlos Fuentes dividiu seus contos e romances (o escritor não incluiu os ensaios), à

semelhança de Agustín Yáñez, conforme pode ser verificada nas orelhas dos últimos

livros publicados pela editora Alfagua. O escritor mexicano agrupou alguns livros sob

um título, às vezes com o mesmo nome de algum livro ou com nome diferente.

Algumas divisões apenas comportam um livro e é este que dá nome à divisão feita por

Fuentes.

1 “A idade do tempo” (Tradução nossa).

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Nome da agrupação

Nome dos livros

01

El mal del tiempo

Aura Cumpleaños Una familia lejana

02

Tiempo de fundaciones

Terra nostra El naranjo

03

El tiempo romántico

La campaña La novia muerta El baile del Centenario

04

El tiempo revolucionário

Gringo viejo Emiliano en Chinameca

05 La región más transparente La región más transparente

06 La muerte de Artemio Cruz La muerte de Artemio Cruz

07 Los años com Laura Díaz Los años com Laura Díaz

08 La voltundad y la fortuna La voltundad y la fortuna

09

Dos educaciones

Las buenas conciencias Zona sagrada

10

Los días enmascarados

Los días enmascarados Constancia Instinto de Inez Carolina Grau

11

Fronteras del tiempo

Cantar de ciegos Frontera de cristal Todas las familias felices

12

El tiempo político

La cabeza de la hidra La Silla del Águila El camino de Texas

13 Cambio del piel Cambio del piel

14 Cristóbal Nonato Cristóbal Nonato

15

Crónicas de nuestro tiempo

Diana o la cazadora solitaria Aquiles o el guerrillero y el asesino Prometeo o el precio de la libertad

18

Para poder compreender a poética de Carlos Fuentes, isto é, sua cosmovisão

literária, dentro da Narrativa Mexicana Moderna, dividimos essa dissertação em três

partes. Na primeira parte estudamos os antecedentes literários da Prosa Mexicana

Moderna que a influenciaram: o romantismo, o realismo e o modernismo mexicano.

Assim, no primeiro capítulo faremos uma revisão da produção romântica e

constataremos a literatura sob a ideologia da independência do México. No capítulo

dois averiguaremos como se dá o passo do romantismo ao realismo e ao modernismo.

Com respeito à segunda parte do nosso trabalho, estudaremos no capítulo três

o pós-modernismo e a Revolução Mexicana. Esta mudará drasticamente o panorama

político, social, cultural e literário (Gallegos, 2010). Comprovaremos que é da

revolução que nasce o México Moderno e, por conseguinte, a Narrativa Mexicana

Moderna (Molano Nucamendi, 2011). No quarto capítulo assentaremos as bases que

formam a Literatura da Revolução Mexicana e de que forma essa literatura deslocou

todas as demais para a periferia da cultura literária vigente. De dita escola

analisaremos Los de abajo, de Mariano Azuela. Depois constataremos as profundas

mudanças nos romances Al filo del agua, de Agustín Yáñez e Pedro Páramo, de Juan

Rulfo. Com Yáñez veremos o início da Prosa Mexicana Moderna.

Na terceira parte da pesquisa, nos centraremos na figura de Carlos Fuentes. No

entanto, no capítulo cinco estudaremos o conceito de conto e de literatura fantástica

que serão fundamentais para entender a tessitura dos contos do referido escritor

mexicano. No sexto capítulo analisaremos a gênese do tempo mítico, isto é, como

Carlos Fuentes constrói o mito, associado ao tempo e à memória e aplicados nos

contos “Chac Mool” e em “Tlactozatzine, del Jardín de Flandes”. Também estudaremos

a relação dialética que há entre mito e natureza. Para tanto, faremos um breve estudo

das principais aportações ao conceito de memória e de mito.

No capítulo sete estudaremos a relação existente entre memória e história e de

que forma a memória poética busca a totalidade do real. A título de exemplificação,

aprofundaremos nosso tema em “Un fantasma tropical”. No último capítulo

averiguaremos como se faz a cosmologia indígena do tempo na tessitura dos contos

“Una familia de tantas”, “Madre dolorosa” e “El padre eterno”. Constataremos que, ao

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longo da terceira parte da pesquisa, a imaginação do tempo é o eixo central dos

referidos contos. Como não há literatura sem imaginação, buscamos compreender a

imaginatura do tempo nos contos do escritor Carlos Fuentes em consonância com seu

contexto literário.

Para delimitar bem o objeto de estudo desta dissertação, faz-se necessário

lançar mão das negativas, afirmar o que aqui não se pretende realizar e, por fim,

dizermos o que nos propomos a estudar. Primeiramente, não realizaremos um estudo

sobre toda a obra do escritor mexicano Carlos Fuentes. Escolhemos trabalhar com a

contística. Segundo, não estudaremos todos os contos deste escritor. Não se trata de

um estudo quantitativo. Aqui realizaremos um estudo sobre três livros de contos de

Fuentes: Los dias enmascarados, Cuentos sobrenaturales 2 e Todas las familias felices.

Terceiro, não abordaremos todos os contos dos livros supracitados.

Selecionamos aqueles que consideramos mais emblemáticos para o tema do nosso

estudo e que permitem um diálogo com outros contos de Fuentes. Ou seja,

selecionamos contos que fazem elo entre o tema do tempo e da imaginação na

construção doscontos do referido escritor: a imaginatura fuentiana. Quarto, o critério

empregado na seleção dos contos se deu na medida em que eles apresentavam

elementos míticos do pensamento pré-hispânico. Mas não iremos fazer uma análise

histórica ou social da mitologia pré-hispânica e nem tão pouco um estudo contrastivo

desses elementos, seja dos contos dentro de um livro ou inter-livros. Esta dissertação

realiza um estudo do entrelaçamento da imaginação do tempo do pensamento mítico

pré-hispânico com a tessitura poética dos contos fuentianos a partir das próprias

estratégias estabelecidas.

2 Este livro não se encontra presente na listagem que o próprio Carlos Fuentes realiza sobre sua obra por se tratar de um livro que agrupa contos anteriormente publicados. No entanto, para o referido livro, Fuentes escreveu dois novos contos que, até onde pudemos constatar, não se repete em nenhum outro livro de contos.

20

PRIMEIRA PARTE

ANTECEDENTES DA PROSA MEXICANA MODERNA - ROMANTISMO, REALISMO,

NATURALISMO E MODERNISMO

Todo gran escritor, todo gran crítico, todo gran lector, sabe que no hay libros huérfanos: no hay textos que no desciendan de otros textos.

Carlos Fuentes (2011, p.132)

No México do século XIX há um conglomerado de fatos políticos de suma

importância que afetarão o discurso e a produção literária da época. De acordo com a

pesquisadora Guadalupe Gómez-Aguado (2010), dito século possui como principais

características políticas (i) o movimento de Independência que abarca os anos de

1810-1821; (ii) o primeiro império que vai de 1822 a 1823; (iii) a disputa entre o

federalismo e o centralismo entre 1824 e 1846; (iv) a invasão dos Estados Unidos

iniciada em 1846 e, consequentemente, a perda de parte do território até então

mexicano dois anos depois; (v) a ditadura de Antonio López de Santa Anna entre 1852

e 1855; (vi) as Leis de Reforma promulgadas por Benito Juárez entre o período 1856-

1867; (vii) a reconstrução da República de 1867 a 1876 e, por fim, mas não menos

importante, (viii) o porfiriato que engloba desde a última data referida até 1910, ano

em que inicia a revolução mexicana que retira do poder a Porfirio Díaz.

Esta primeira parte da dissertação tem como meta estabelecer a herança sócio-

literário-cultural que influi na obra do escritor mexicano Carlos Fuentes e que pertence

à Prosa Moderna Mexicana. Nesta primeira parte, temos dois capítulos, o primeiro

referente ao contexto sócio-cultural da primeira metade do século XIX cuja corrente

literária vigente era o romantismo. No segundo capítulo abordaremos o estilo de

época predominante no final do século XIX, a saber, realismo/naturalismo e

modernismo. O estudo dessas épocas é importante para poder averiguar como Carlos

Fuentes absorve essa herança sócio-literária, isso se faz necessário porque

21

entendemos que os movimentos literários são confluências de estilos e pensamentos

entrelaçados com a cultura e o imaginário da época. Procuramos também rastrear os

pilares fundadores da Prosa Mexicana Moderna nos dois estilos literários

antecedentes, a saber: o quadro de costumes e o realismo, embora este seja para ser

criticado na denominada Narrativa da Revolução Mexicana.

22

O romantismo mexicano: a supremacia do

nacionalismo

Neste capítulo buscamos assentar as bases do movimento romântico mexicano.

Procuramos compreender quais as principais transformações que sucederam nesse

movimento no campo artístico e quais as principais aportações às futuras gerações de

escritores e poetas. Averiguaremos que, igualmente ao movimento insurgente em prol

da independência mexicana, os escritores da referida época estavam carregados da

ideologia libertária: escritores com a caneta em uma mão e a espada na outra. Antes

de entrarmos ao estudo literário, faremos um panorama da arte na época do México

Independente para que possamos vislumbrar através da pintura o que os escritores

tentavam representar com as palavras.

1.1. O romantismo plasmado nas pinturas

No México e em grande parte da América Hispânica temos durante o século XIX

como movimento literário predominante o Romantismo. Como apontam Valenzuela e

Rodríguez (2010), um fato importante no século XIX no que se refere às artes, em

especial às artes plásticas, é a fundação da Real Academia de San Carlos na Cidade do

México, porque “...foi um acontecimento fundamental para regular a formação

artística oficial de uma maneira profissional e sistemática” 3 (2010, p.186). A Academia

seguia os padrões neoclássicos em detrimento do até então barroco exuberante. No

entanto, com o movimento insurgente e a consolidação da Independência do México,

a Academia de San Carlos ficou à deriva uma vez que era apegada ao modelo

ideológico e econômico do período colonial.

A historiografia da arte mexicana se voltou, principalmente, para o estudo das

artes plásticas regionais de Jalisco e Puebla. Vemos neste contexto o florescimento da

3 No original: “fue un acontecimiento fundamental para regular la formación artística oficial de una manera profesional y sistemática”. (Tradução nossa)

1

23

pintura de retrato em que podemos citar como maiores ícones desse período a José

María Estrada, Rafael Aspeitia e Hermenegildo Bustos (1832-1907), este último como

maior expoente e cuja obra foi admirada por Diego Rivera. O principal recurso utilizado

por Bustos foi a pintura de costume. Esta técnica depois será reaproveitada pelo

Romantismo e pelo Realismo mexicano.

Outro fenômeno que sucedeu nessa época foi a impressão de álbuns

litográficos e revistas literárias ilustradas. Ainda de acordo com Valenzuela e Rodríguez

(2010, p.202), devido à Independência do México em relação à Espanha, “Tanto nos

álbuns quanto nas caricaturas se abordaram assuntos relacionados com a identidade

mexicana” 4. Por isso, entre as publicações realizadas nesse período podemos

destacar: El mosaico mexicano o colección de amenidades curiosas e instructivas

(1837), Monumentos de México, tomados del natural y litografiados por Pedro Gualdi:

pintor de perspectiva (1841), Álbum Mexicano. Periódico de Literatura. Artes y Bellas

Letras (1849), e Los mexicanos pintados por sí mismos. Tipos y costumbres nacionales

(1854).

Nessas obras “...é óbvia a idealização sobre seus objetos de representação, a

imitação da natureza pretende ser fiel, quase científica no caso das paisagens” 5

(VALENZUELA & RODRÍGUEZ, 2010, p.202). O curioso neste caso é que estas pinturas já

possuem marcas do romantismo – como se nota na idealização dos objetos – e do

realismo – na tentativa de fazer um retrato fiel da natureza. No entanto,

academicamente ainda não se pode falar de realismo porque este data da segunda

metade do século XIX. Mas podemos mencionar que o realismo começa a ganhar

corpo já na primeira metade do referido século.

Em 1843, graças aos decretos emitidos pelo ditador Antonio López de Santa

Anna, a Academia de San Carlos pôde ser resgatada. No obstante, ao ser reerguida a

Academia, mais uma vez, se mostra um tanto quanto defasada em relação com

contexto artístico mexicano. Enquanto, desde 1837, já se começa a produzir uma arte

romântica com tons realistas, cinco anos depois a Academia de San Carlos enfoca,

principalmente, no romantismo e em particular nos nazarenos.

4 No original: “Tanto los álbumes como en las caricaturas se abordaron asuntos relacionados con la identidad mexicana”. (Tradução nossa) 5 No original: “...es obvia la idealización sobre sus objetos de representación, la imitación de la naturaleza pretende ser fiel, casi científica en el caso de los paisajes”. (Tradução nossa)

24

A partir de 1855 surge o segundo grande momento da pintura paisagística.

Confome o estudo de Velenzuela e Rodríguez (2010, p.229): “...os projetos culturais e

as pessoas do meio artístico no México logo entenderam a necessidade imperiosa de

que na Academia de San Carlos se impulsionasse de maneira moderna a criação de

uma cátedra independente de paisagem” 6. Com a criação do curso independente de

paisagismo, a Academia conseguiu finalmente exprimir uma arte moderna dentro do

contexto sociocultural mexicano.

A princípio as obras tinham uma forte influência do idealismo romântico (que já

se produzia particularmente a partir de 1843), mas com o passar do tempo foi

ganhando tons mais naturalistas, o que já era de se esperar tendo em vista que esse

modelo de naturalidade era próprio “...de uma era mecanicista e da visão sobre o

progresso e o conhecimento científico no âmbito filosófico do positivismo” 7

(VALENZUELA & RODRÍGUEZ, 2010, p.221).

Este grupo de escultores paisagistas fundou o que atualmente se conhece como

a Escuela Mexicana del Paisaje. Como grande figura dessa Escola temos a José María

Velasco (1840-1912). Esse importante pintor conseguiu plasmar nas suas telas duas

tendências quase que antagônicas: o romantismo com os elementos teórico-práticos

do paisagismo clássico. Velasco é considerado um dos fundadores da Arte Mexicana

Moderna que abarcou até o período denominado Escuela Mexicana de Pintura

Contemporánea, uma vez que foi professor de alguns dos ícones do nacionalismo pós-

revolução como, por exemplo, Diego Rivera.

Até agora fizemos um panorama de como está configurada artisticamente a

primeira metade do século XIX no México. A título de recapitulação vimos que no início

desse século, ainda no México Colonial, temos a fundação da Academia de San Carlos,

responsável por determinar as diretrizes e a educação aos artistas plásticos de até

então. No seu início possuía um estilo muito neoclássico que sufocou o até então

fortemente presente, o barroco mexicano.

6 No original: “...los proyectos culturales y la gente del medio artístico en México pronto entendieron de la necesidad imperiosa de que en la Academia San Carlos se impulsara de manera moderna la creación de una cátedra independiente de paisaje”. (Tradução nossa) 7 No original: “...de una era mecanicista y de la visión sobre el progreso y el conocimiento científico en el ámbito filosófico del positivismo”. (Tradução nossa)

25

Com o início do movimento de independência e durante umas três décadas

depois, a Academia perdeu sua importância, uma vez que sempre esteve ligada à

aristocracia espanhola e sua ideologia. Com isso floresceu a pintura de retratos e os

quadros costumbristas, que ainda seriam utilizados no romantismo e no realismo.

A Academia San Carlos apenas volta à ativa no governo de Santa Anna. A partir

desse momento a Academia se volta para o romantismo de estilo mais religioso,

denominado pela historiografia plástica de nazareno. A partir de 1855 é que a

Academia dá um salto evolutivo e cria a cátedra de Paisagismo e dela surge um dos

maiores pintores mexicanos da história, José María Velasco, que reúne em suas obras

os estilos clássico e romântico. Velasco é precursor da Escola Mexicana de Pintura

Contemporânea. A partir da segunda metade do século XIX o romantismo começa a

entrar em declive e surge um novo estilo artístico: o naturalismo pictográfico.

1.2. Primeira fase do romantismo literário: resgate do passado distante e a criação da

identidade mexicana

Passemos agora a um panorama da Literatura Mexicana no que concerne ao

romantismo. Veremos que o romantismo mexicano se divide em três etapas

cronológicas: (i) resgate do passado pré-hispânico e colonial; (ii) críticas e denúncias do

antigo regime e (iii) o nacionalismo literário, que na verdade é um período de transição

ao realismo.

Ao voltar à primeira metade do século XIX, temos o início do movimento

romântico na América Hispânica. Como ressalta o ensaísta Imbert (2010a), justamente

pelo espírito nacionalista aflorado pelas guerras de independência, os países rejeitam

qualquer forma de influência da Espanha e passam a se espelhar na França, isso

porque ”a literatura não podia ser mais uma extensão da espanhola” 8 (CASTRO

MEDINA, 2010, p.291).

Ainda de acordo com Imbert (2010a), os hispano-americanos adotaram a

França como madrasta. Justamente nas primeiras obras românticas escritas nos países

de língua espanhola temos forte influência do romantismo francês. No entanto, por 8 No original: “la literatura no podía ser más una extensión de la española”. (Tradução nossa)

26

mais que os escritores e poetas quisessem, o costume de ter como referência a

Espanha não pôde ter sido deixado de lado por muito tempo, e com o passar do tempo

também encontramos uma maior influência do romantismo espanhol nos escritores

hispano-americanos.

O teórico Imbert (2010a) divide, didaticamente, o romantismo em duas fases:

uma antes e outra posterior ao ano de 1850. A primeira fase se caracteriza por um

grande vigor ideológico e estético e a segunda fase pelo declínio da ideologia

romântica e a transição em direção a uma literatura realista.

Ainda de acordo com o estudo de Imbert (2010a), as principais características

que conformam a literatura romântica são: (a) o espírito libertador a respeito das

autoridades do passado; (b) o autor romântico se sente o centro do mundo e ao

mesmo tempo criatura do mundo; (c) a afirmação da inspiração livre e espontânea; (d)

defesa dos direitos a uma língua americana; (e) a busca por uma sintaxe romântica que

expressasse a imprecisão do pensamento; (f) a aquisição de novos sentidos a respeito

dos gêneros literários; (g) a descrição de paisagens reais ao cenário narrativo para dar

um tom de “cor local”; (h) e especialmente nos países com forte presença indígena

quando temos a idealização do indígena.

Em relação ao contexto cultural mexicano, Castro Medina (2010, p.293)

assinala que um fato de extrema importância para as letras mexicanas foi a fundação

da Academia de Letrán em 1836 porque esta foi a responsável por implantar, a partir

de uma associação de escritores, uma literatura nacional: “...correspondeu à geração

da Academia de Letrán a ‘criação’ de uma literatura mexicana ou, se desejar, nacional

ou republicana” 9. Isto é, essa Academia foi responsável por “mexicanizar” a literatura,

emancipando-a.

Para conseguir alcançar tal objetivo, a Academia de Letrán se focou, de acordo

com Castro Mediana (2010), em elementos próprios da nacionalidade mexicana

(linguagem, tema, paisagens, costumes) que incorporaram à poética literária os três

componentes históricos do México: o indígena, o colonial e o republicano.

Segundo a historiografia literária mexicana, encontramos como escritores de

referência da primeira fase do romantismo mexicano a Ignacio Rodríguez Galván

9 No original: “...a la generación de la Academia de Letrán le correspondió la ‘creación’ de una literatura mexicana o, si se quiere, nacional o republicana”. (Tradução nossa)

27

(1816-1842), que representa duas das máximas da narrativa romântica mexicana

(Imbert, 2010a): (i) assuntos históricos e (ii) aventuras e lances de amor. De acordo

com Castro Medina (2010), o escritor Rodríguez Galván é considerado o primeiro

romântico mexicano, se bem que é mais conhecido por seus poemas que por sua

prosa.

Outro escritor que merece destaque é o zacatecano Fernando Calderón (1809-

1845) que tem sua obra marcada pela ironia que ele realiza sobre os excessos do

próprio romantismo. Poderíamos chamá-lo, de acordo com Castro Medina (2010), de

escritor romântico ou anti-romântico por sua comédia A ninguna de las tres. Em geral,

suas obras apresentam um nacionalismo libertário (Imbert, 2010a, p.262-263).

O romantismo mexicano, conforme já alertara Imbert (2010), em sua análise

das características da literatura romântica, vai em busca do ser indígena, porque “...é

com o romantismo que a literatura se abre à velha cultura indígena, se bem que a

porta que se abre é essa por onde entram e saem a fantasia, a improvisação e o

entusiasmo fácil” 10 (IMBERT, 2010a, p.265). Não obstante, “...o romance romântico

idealizou ao índio apresentando-lhe como personagem poético ou exótico ou lendário

ou histórico” 11 (IMBERT, 2010a, 265). É o caso do poeta José María Roa Bárcena

(1827-1908) que se inspirou nas lendas indígenas, na colorida vida popular, nas

paisagens mexicanas. Este fato é muito importante pois também será uma

característica da prosa moderna mexicana, no entanto, não mais o indígena como

idealizado, mas como símbolo do moderno.

A respeito da prosa romântica mexicana, encontramos como uma das principais

características o quadro costumbrista que, à diferença do século XVIII, assim se

apresenta: “o escritor está mais interessado na trama do romance do que no

ambiente. Além de que o tema e o ambiente lhe interessam mais do que a sátira

social” 12 (IMBERT, 2010a, p.279). Não podemos deixar de citar a Vicente Riva Palacio

(1832-1896), que reclama atenção dentro do romance histórico mexicano. Além do

10 No original: “...es con el romanticismo que la literatura se abre a la vieja cultura indígena, si bien la puerta que se abre es ésa por la que entran y salen la fantasía, la improvisación y el entusiasmo fácil”. (Tradução nossa) 11 No original: “...la novela romántica idealizó al indio presentándolo como personaje poético o exótico o legendario o histórico”. (Tradução nossa) 12 No original: “...el escritor está más interesado en la trama de la novela que en el ambiente. Además, tema y ambiente le interesan más que la sátira social” (Tradução nossa)

28

fato de que ele foi “[depois de Roa Bárcena] o fundador do conto mexicano” 13

(IMBERT, 2010a, p.281).

Havia uma disputa entre clássicos e românticos pela preferência do público

leitor mexicano. De acordo com um artigo publicado na revista El Mosaico Mexicano,

“Clássicos e românticos disputam hoje a porfia a preferência na república das letras.

[Clássicos] Suas obras são em comum relimadas e polidas, mas em troca disso estão

geralmente desnudas de entusiasmo” 14 (ANÓNIMO, 1837, p.285-286). Ainda segundo

o autor desconhecido, os românticos “se entregam exclusivamente a mãos da sua

imaginação e de seus sentimentos. [...] embora algumas vezes sejam incorretos,

também são comumente mais originais e mais ricos” 15.

1.3. Segunda fase do romantismo literário: crítica do passado recente e a disputa

entre liberais e conservadores

A partir de 1850, conforme observa Imbert (2010a), o romantismo começa a

entrar em declive porque os escritores passam a se preocupar mais com o romântico

que o estético, que foi a causa da ruptura provocada pelo romantismo alemão com a

tradição literária até então (ABRAMS, 2010). Segundo palavras do próprio ensaísta

Imbert (2010a, p.289), “o romantismo não tem já os brilhos teóricos de antes. [...] Faz-

se literatura romântica sem ostentar deliberadamente suas fórmulas estéticas” 16.

Embora a data de 1850 seja emblemática para Imbert (2010a), no México dois

eventos foram importantes para a manutenção da crítica romântica e das formulações

do quehacer literário: o Ateneu Mexicano e o Liceu Hidalgo. Devido à disputa entre

conversadores e liberais, estes últimos fundaram associações e agrupações para

difundir seus ideais. Por isso, em 1840 temos a criação do Ateneu Mexicano, fundado

13 No original: “[después de Roa Bárcena] el fundador del cuento mexicano”. (Tradução nossa) 14 No original: “Clásicos y românticos disputan hoy a porfía la preferencia en la república de las letras. [Clásicos] Sus obras son por lo común relimadas y pulidas, pero en cambio de eso están generalmente desnudas de entusiasmo”. (Tradução nossa) 15 No original: “...se entregan exclusivamente en manos de su imaginación y de sus sentimientos. […] aunque algunas veces sean incorrectos, también sean por lo común más originales y más ricos”. (Tradução 16 No original: “el romanticismo no tiene ya los brillos teóricos de antes. (...) Se hace literatura romántica sin ostentar beligerantemente sus fórmulas estéticas”. (Tradução nossa)

29

por Ángel Calderón de la Barca que tinha como principal objetivo “a discussão sobre o

papel, importância e utilidade da literatura” 17 (CASTRO MEDINA, 2010, p.311). Por

problemas políticos e econômicos o Ateneu Mexicano só perdurou por quatro anos.

No entanto, em 1850 o escritor e general José María Tornel funda o Liceu

Hidalgo, que possuía caráter institucional uma vez que sempre recebeu apoio do

governo e sua inauguração foi precedida pelo presidente da República mexicana, José

Joaquín Herrera. Com a ascensão de Porfirio Díaz ao poder, há o apaziguamento entre

a luta de liberais e conservadores, ou seja, de românticos e clássicos, e

consequentemente o Liceu Hidalgo perde seu foco e objetivo, fechando as portas

definitivamente em 1893.

Apesar do surgimento do Ateneu Mexicano e do Liceu Hidalgo, de fato se nota

uma mudança na produção literária da época e esta se deu devido aos fatores

históricos de grande importância que mudaram a história do país cujos “mexicanos

que viveram entre 1848 e 1867 foram atores e testemunhas de ações dramáticas” 18

(CASTRO MEDINA, 2010, p.307). Podemos destacar, segundo o estudo de Zoraida

(2010), (i) o império de Maximiliano, (ii) a restauração da república e a ditadura de

Santa Anna, (iii) a guerra e a perda de parte do território para os Estados Unidos, (iv) a

elaboração da Constituição de 1857 que acarretou (v) a Guerra da Reforma.

Estes fatos fizeram com que muitos escritores se dividissem entre a espada e a

pena para escrever. No meio deste jogo de reviravoltas políticas temos a dois atores

históricos: os conservadores e os liberais, e não é possível negar que esta luta pelo

poder influenciou as tendências literárias da época. Como verificamos em Castro

Medina (2010, p.310), “O gosto romântico servia como bandeira aos liberais enquanto

que a formação clássica era preferida pelos conversadores” 19.

No tocante à segunda fase romântica mexicana, na poesia encontramos a

poetas “chapados de tradição. A tradição era clássica de espírito virgiliano” 20 (IMBERT,

2010a, 290), conforme se pode notar em Los Murmullos de la selva, de Joaquín Arcadio 17 No original: “la discusión sobre el papel, importancia y utilidad de la literatura”. (Tradução nossa) 18 No original: “mexicanos que vivieron entre 1848 y 1867 fueron actores y testigos de sucesos dramáticos”. (Tradução nossa) 19 No original: “el gusto romántico servía como bandera a los liberales, mientras que la formación clásica era preferida por los conversadores”. (Tradução nossa) 20 No original: “chapados de tradición. La tradición era clásica de aliento virgiliano”. (Tradução nossa)

30

Pagaza (1839-1918). No campo da prosa encontramos já a formação de uma literatura

mais realista, que ao invés da romântica “foi reduzindo mais e mais o voo da fantasia.

À filosofia romántica da história sucedeu o positivismo” 21 (IMBERT, 2010a, p.308), o

qual no contexto histórico mexicano se encaixa na ideologia do governo ditatorial de

Porfirio Díaz.

A segunda fase romântica mexicana se deve ao apelo político dos escritores

envolvidos, não mais para fundar e criar a nacionalidade mexicana, voltando-se ao pré-

hispânico, mas agora temos a liberais e conservadores escrevendo obras de críticas

mútuas (Castro Medina, 2010). Podemos citar neste contexto a dois grandes

escritores: José María Lafragua (1813-1875) e Luis de la Rosa (1804-1856), ambos

usaram o quadro costumbrista em suas narrações, cujo fundo crítico era questionar as

atrocidades do antigo regime, neste caso, controlado pelos conservadores.

Igualmente concernente à segunda fase, encontramos o romance de folhetim.

La hija del judio, escrita por José Turrisa, anagrama de Justo Sierra O’Reilly (1814-1861)

e publicada entre primeiro de novembro de 1848 e 25 de dezembro de 1849, é

considerada o primeiro romance de folhetim. Novamente encontramos um tom crítico

ao antigo regime, porque toda a obra “É uma argumentação em favor da separação de

Yucatán, por isso, para distanciar-se do passado opressor e do anárquico presente que

obrigava ao nosso país a aceitar a derrota e a perda do território perante Estados

Unidos” 22 (CASTRO MEDINA, 2010, p.317). Chamamos atenção para o quadro

costumbrista, que pouco a pouco, passará de estratégia romântica a artifício do

movimento realista.

1.4. Terceira fase do romantismo literário: exaltação do presente e o nacionalismo

positivista

21 No original: “fue reduciendo más y más el vuelo de la fantasía. A la filosofía romántica de la historia sucedió el positivismo”. (Tradução nossa) 22 No original: “Es una argumentación a favor de la separación de Yucatán, por eso, para alejarse del pasado opresor y del anárquico presente que obligaba a nuestro país a aceptar la derrota y la pérdida del territorio ante Estados Unidos”. (Tradução nossa)

31

Por fim, para concluir o romantismo mexicano, passemos a sua terceira fase.

Esta fase está intrinsecamente relacionada com o lado político mexicano, mais que as

anteriores. Explicamo-nos: a primeira fase advém do espírito libertário provocado pela

Guerra de Independência. Esse inquietamento literário foi suprimido pela estética

romântica, mas ainda assim teve influência alemã, inglesa, francesa e espanhola. A

segunda fase veio do confrontamento (armado e literário) entre liberais e

conservadores; no entanto, essa fase importou o modelo do romance de folhetim,

mantendo o quadro costumbrista como recurso estético. Por sua vez, a terceira fase

foi marcada pelo porfiriato, sendo o pensamento positivista e as obras praticamente

escritas a mando de Porfirio Díaz, como veremos mais adiante.

De acordo com Elisa Speckman (2010, p.209), o Porfiriato, período que vai de

1876-1911, sob o poder do ditador Porfirio Díaz, marca uma importante etapa da

história mexicana, porque “foi tal seu domínio sobre a vida pública nacional que o

referido período histórico leva seu nome: o Porfiriato, também conhecido como o

Porfirismo. Nenhum outro período de nossa história se identicia com o nome de seu

governante” 23, ou seja, Porfirio Díaz.

Sua importância política se deu porque pôs fim aos constantes que o país vivia

em constantes conflitos políticos por causa da disputa entre conservadores e liberais

pelo poder. Porfirio, representante dos liberais, manipula a máquina política e eleitoral

e consegue reeleições sucessivas, tornando-se assim um clássico ditador. Porfirio era

adepto do pensamento positivista e isso se vê refletido em suas obras e atitudes

políticas.

A política de Porfirio chega até os intelectuais da época, influenciando inclusive

a literatura desse período espelhada em seus ideais. Conforme destaca Castro Medina

(2010, p.323), entre 1867 e 1889 “O romance ganhou importância como forma de

reconhecimento e afirmação de valores nacionais” 24. Podemos caracterizar essa

época, conforme Martínez (2010), como “concórdia nacionalista”. O romance passa a

ser o veículo de transmissão do espírito nacionalista inflamado pela filosofia

23 No original: “Fue tal su dominio sobre la vida pública nacional que dicho periodo histórico lleva su nombre: el Porfiriato, también conocido como el Porfirismo. Ningún otro periodo de nuestra historia se identifica con el nombre de su gobernante”. (Tradução nossa) 24 No original: “la novela cobró importancia como forma de reconocimiento y afirmación de valores nacionales”. (Tradução nossa)

32

positivista: “O romance foi o gênero que permitiu imaginar o país de acordo com os

seus sentimentos patrióticos e ideais liberais” 25 (CASTRO MEDINA, 2010, p.328). Esta

etapa romântica, a terceira, é a que marca a transição do romantismo para o realismo

mexicano.

Um escritor que representa esta transição do romântico ao realista é Ignacio

Manuel Altamirano (1834-1893) que em seu romance El Zarco apresenta concessões

românticas, tais como o jogo de simetria e idealização dos bons e maus personagens,

mas que na verdade é uma obra realista, porque não existe a vinculação do estado de

ânimo dos personagens com a natureza, não usa a cor local, lança mão da ironia e da

moral da época. Os temas desse romance, como as demais obras do período realista

no México, são o caciquismo, o militarismo, o clericalismo, a burocracia, a corrupção, a

politiqueira, dentre outros (Imbert, 2010a, p.312).

1.5. Recapitulando

De forma sintética, vimos que o romantismo mexicano se divide em três fases,

a primeira caracterizada por transformações ideológicas e o resgate do passado

indígena como berço da identidade mexicana. A segunda fase já é marcada pela

disputa entre políticos e escritores liberais e conservadores, mas que ainda mantém

viva a crítica literária do fazer poético (Academia de Letrán e Liceu Hidalgo). Por fim, a

terceira fase se caracteriza pelo nacionalismo e pelo positivismo, frutos do regime

ditatorial de Porfirio Díaz e que começa a apresentar traços mais realistas que

românticos, ou seja, trata-se de uma fase de transição.

O que queremos destacar deste período romântico, no que concerne ao

México, é (i) a busca de uma nova estética; (ii) a defesa da língua americana; (iii) a

criação de uma sintaxe romântica e (iv) os primeiros sinais da representação do

indígena dentro do campo literário. Atentamos para o fato de que esses quatro

elementos de alguma forma estarão presentes na gênese da narrativa mexicana

moderna.

25 No original: “La novela fue el género que le permitió imaginar al país de acuerdo com sus sentimientos patrióticos e ideas liberales”. (Tradução nossa)

33

Realismo e Modernismo nas letras

mexicanas: a musa vira-lata

Com o aparente apaziguamento político no México, vimos que a última fase do

romantismo mexicano estava em prol da ideologia positivista do regime autoritário de

Porfirio Díaz. No entanto, essa “farsa artística” não foi apreciada por todos os

intelectuais da época e, de tal fato, surgiram obras que denunciam o que o porfiriato

quis ocultar. Em tom de protesto, surgem os movimentos realista e modernista. Ao

invés de se atentarem às paisagens exuberantes ou à vida cotidiana dentro do lar, os

escritores e poetas pertencentes a estes movimentos literários vão voltar seus olhos

para a rua: lugar onde transitam a luxúria e a pobreza. Sai de cena a musa palaciana e

entra a musa vira-lata.

2.1. Realismo/Naturalismo plástico

Nesta seção apontaremos resumidamente para a força do realismo nas artes

visuais. Como vimos, durante o positivismo houve a exaltação dos elementos pátrios

que (con) formavam o imaginário da identidade nacional. Manuel Ocaranza (1841-

1882) foi um dos pintores que refletiu esse pensamento positivista. De acordo com

Valenzuela e Rodríguez (2010, p.242), este pintor seguiu “a exigência do entorno

histórico-artístico pelo desenvolvimento do gênero costumbrista contemporâneo” 26.

O quadro Flor de colibrí marca bem esse momento de transição, em que já se nota os

motivos relacionados aos códigos morais próprios do fim do século XIX, mas ao mesmo

tempo apresenta traços emotivos e sentimentais.

De grande importância para a época foi o pintor mexicano José Obregón (1838-

1902) que tentou imprimir uma história e uma memória oficiais com o fim de

impulsionar os projetos culturais que o governo liberal queria legitimar. Por isso há em

26 No original: “la exigencia del entorno histórico-artístico por el desarrollo del género costumbrista contemporáneo”. (Tradução nossa)

2

34

suas obras, como El descobrimiento del pulque, temas pré-hispânicos, como forma de

forjar uma identidade nacional.

2.2. Realismo/Naturalismo literário

Antes de iniciar este estudo, fazemos uma ressalva: o realismo e o modernismo

no México tiveram poucos anos como movimento literário vigente, porque com o

advento da Revolução Mexicana, em 1910, as produções artísticas e literárias se

transformariam. Quando nos detivemos no estudo do movimento realista,

constatamos que é um período de difícil compreensão, pois teve uma vida muito curta,

no México, enquanto estilo predominante (1890-1910), no entanto verificamos que

esse movimento continua presente até os dias atuais. Conforme o estudo de Imbert

(2010a), as duas tendências literárias vigentes por grande parte do século XIX,

clássicismo e romantismo, anulam-se mutuamente. Intelectuais cansados dessa carga

política, principalmente a da terceira geração romântica no México, caracterizada pelo

nacionalismo exacerbado, se voltam contra a idealização, seja ela clássica ou

romântica.

De fato, realismo e naturalismo não se diferenciam enquanto propostas

estéticas, mas ao contrário, “os termos realismo e naturalismo foram usados como

sinônimos no México” 27 (CASTRO MEDINA, 2010, p.352). Segundo Imbert (2010a), o

naturalismo criou flores sórdidas de estranha fealdade e que não poucas vezes

adentrou na estética modernista. Por isso há de ressaltar que concomitantemente ao

realismo temos, no México, a presença do modernismo. Igualmente surgiu por causa

do esgotamento literário que houve tanto por parte de românticos quanto de

clássicos.

No entanto, uma diferença crucial entre ambas as correntes literárias é que no

modernismo “o que conta é o sujeito-contemplador” 28 e no realismo “o que conta é o

objeto-contemplado” 29 (IMBERT, 2010a, p.439). Mas não devemos esquecer que as

27 No original: “los términos realismo y naturalismo fueron usados como sinónimo en México”. (Tradução nossa) 28 No original: “lo que cuenta es el sujeto-contemplador”. (Tradução nossa) 29 No original: “lo que cuenta es el objeto-contemplado”. (Tradução nossa)

35

duas escolas possuem clara influência da cultura literária francesa, porque o

Modernismo, como aponta Imbert (2010a), é a fusão do parnasianismo com o

simbolismo francês 30. Por outra parte, o realismo/naturalismo vem importado

diretamente da poética literária fundada por Émile Zola (1840-1902) na França e por

Leopoldo Alas y Ureña (Clarín) na Espanha. Percebemos que tanto o realismo quanto

o modernismo tem uma forte influência das correntes literárias francesas (o que já

percebemos desde o romantismo).

Uma característica da estética modernista na prosa, como destaca Imbert

(2010a), é a falta da presença de “cor local”, elemento fundamental do romantismo.

Podemos dizer que o realismo substituiu a cor local pela “cor temporal”. Agora o que

se busca é descrever e fazer uma análise crítica da sociedade e do mundo moderno

(apregoado por Porfirio Díaz se pensarmos no contexto mexicano). Segundo Imbert

(2010a), dos escritores realistas podemos destacar a Angel del Campo Micros (1868-

1908), com uma obra marcada pela presença de contos e narrações curtas de estilo

costumbrista, que já estudamos e é uma herança que veio do romantismo. Não

podemos deixar de mencionar o escritor Rafael Delgado (1853-1914), pois para

ele “...se bem que o romance é história e cópia exata da vida mexicana, não deixa de

ser cópia artística da verdade” 31 (CASTRO MEDINA, 2010, p.352).

2.3. Modernismo nas letras mexicanas

O modernismo, conforme vimos anteriormente, tem ecos do parnasianismo e

do simbolismo, daí a confusão do termo Modernismo, conforme assinala o

pesquisador Armando Pereira (2004, p.318), que “...surge em certa medida, de

pretender incluir numerosos movimentos finisseculares tanto hispânicos quanto

30 Na América Hispânica, o maior expoente do modernismo foi Rubén Darío (Oviedo, 2011; Imbert, 2010a). 31 No original: “...si bien la novela es historia y copia exacta de la vida mexicana, no deja de ser copia artística de la verdad”. (Tradução nossa)

36

europeus em uma caracterização unívoca e generalista que se denomine

Modernismo”. 32

Este estilo literário de certa forma retomou o espírito libertário do romantismo,

especificamente da sua origem, porque “...a poesia e outros gêneros como o conto e a

crônica retiraram as ataduras formais que lhes estorvavam para se incorporarem às

correntes que defendiam a arte pela arte” 33 (CASTRO MEDINA, 2010, p.353). Cabe

ressaltar que no que concerne ao contexto mexicano, o Modernismo não se opôs

frontalmente ao romantismo como o fez o movimento realista.

Embora, seja verdade, o Modernismo se inicia como um movimento contra os

excessos do romantismo. Também acresce o fato de que dentro do movimento

modernista cabia tanto o novo quanto o velho (Pereira, 2004). Vemos por exemplo

que, segundo Castro Medina (2010), na obra de Manuel Payno (1820-1894) temos a

presença de relatos carregados de sentimentalismo, de tom declamatório e de

digressões. Além do mais, este mesmo escritor retoma o recurso literário do quadro de

costumes.

Os poetas e escritores modernistas verdadeiramente agitaram as letras

mexicanas. Ao serem levados pelo tom cosmopolita e eclético, no México tornou-se

necessário a criação de associações e de revistas para discutir o papel da literatura

modernista. Uma das publicações mais importantes foi a Revista Azul, fundada em

maio de 1894, cuja origem esteve vinculada como caderno dominical do jornal El

Partido Liberal (Pereira, 2004). Seu impacto nas letras mexicanas foi grande,

principalmente, porque um dos seus redatores e fundadores foi o poeta Manuel

Gutiérrez Nájera, considerado o precursor do modernismo mexicano e também um

dos maiores poetas mexicanos do século XX.

Também de grande relevância foi a Revista Moderna: Arte y Ciencia, cuja

primeira publicação data de primeiro de julho de 1898. Ao total, esta revista alcançou

96 números e 16 tomos, sendo seu último ano de edição 1911, nos primeiros meses da

Revolução Mexicana. Cabe ressaltar que, segundo Pereira (2004, p.435), a Revista

32 No original: “...surge en cierta medida, de pretender incluir numerosos movimientos finiseculares tanto hispánicos como europeos en una caracterización unívoca y generalista que se denomine Modernismo”. (Tradução nossa) 33 No original: “...la poesía y otros géneros como el cuento y la crónica se quitaron las ataduras formales que les estorbaban para incorporarse a las corrientes que defendían el arte por el arte”. (Tradução nossa)

37

Moderna veio a ocupar o espaço deixado havia dois anos pelo findar da Revista Azul,

no entanto, “A Revista Moderna rompeu tacitamente com a união de literatura e

sociedade que havia adotado sua antecessora, a revista Azul” 34.

Justamente quando Manuel Caballero resolve publicar o que será a segunda

época da revista Azul (PEREIRA, 2004, p.397), cria-se um choque de ideologias literárias

e assim instaura-se a primeira polêmica literária do século XX no México entre a

segunda etapa da Revista Azul e a Revista Moderna, ambas reclamando para si a

autenticidade do movimento Modernista.

Sobre os escritores modernistas, de acordo com Imbert (2010a), podemos

destacar a Federico Gamboa (1864-1939) que já produzia romances experimentais que

estudavam seriamente a sociedade mexicana. Segundo Castro Medina (2010),

Gutiérrez Nájera (1859-1895) foi um dos expoentes da literatura modernista. Este

escritor criticava completamente o estilo romântico e a sua estética de se fechar sobre

si mesmo por causa do espírito nacionalista. Ele considerava que a aversão ao

estrangeiro havia sido contraproducente para a literatura não só mexicana, mas como

espanhola, dentre outras. De Gutiérrez Nájera cabe destacar a visão transmitida em

suas obras que ele tem da Cidade do México como cidade moderna, com o surgimento

da nova burguesia e dos novos espaços pelos quais a musa vira-lata passearia.

Chama-nos a atenção a preferência que os artistas têm pela rua, tanto realistas

como modernistas “...amam a cidade pecaminosa de cantina e bordéis” 35 (CASTRO

MEDINA, 2010, p.386). Por isso intitulamos este capítulo de “musa vira-lata”. Enquanto

a musa clássica morava no esplendor da cultura de referência greco-latina, a musa

romântica vivia nos grandes salões de festas e saraus. Por outro lado, a musa realista e

modernista se encontrava na rua, sem classe e estudos. Por isso havia de investigá-la.

2.4. México finissecular: do cosmos ao caos no Porfiriato

No fim do século XIX o México se encontrava em um regime autoritário sob a

governança de Porifirio Díaz. Os problemas enfrentados por Díaz em seus últimos anos

34 No original: “La Revista Moderna rompió tácitamente con la unión de literatura y sociedad que había adoptado su antecesora, la Revista Azul”. (Tradução nossa) 35 No original: “...aman la ciudad pecaminosa de cantina y burdeles”. (Tradução nossa)

38

de governo, conforme Matute (2010), obscureceram seus sucessos passados, criando

uma atmosfera de descontentamento por parte da sociedade civil que já clamava por

mudanças. Mas a mudança não chegava, porque Porfirio Díaz sempre era reeleito

através das fraudes eleitorais.

Segundo José Roberto Gallegos (2010), ainda que Porfirio Díaz tenha obtido

êxitos ao longo dos seus mandatos presidenciais, isso não foi suficiente para acalmar a

nação que se encontrava em condições de grande pobreza dentro de um contexto de

um país basicamente rural, o que resultou que “um asfixiante sistema político que não

se renovava” 36 (GALLEGOS, 2010, p.23), provocada pela sexta reeleição de Porfirio

Díaz (1904-1910), “foi o detonador que terminou por dividir a sociedade entre um

movimento democrático (anti-reeleicionista) e um conservador (o reeleicionista)” 37

(HERNÁNDEZ, 2000, p.19). A grande ironia é que o movimento democrático pacificou o

México no último terço do século XX.

Temos que ter em conta, como observa Hernández (2000), que esse

descontentamento não era algo recente, pois houve antecedentes para que os fatos

chegassem a tal ponto, como, por exemplo, a viva oposição política por parte dos

liberais constitucionalistas, os grupos protestantes, o clero católico renovado, os

anarcosindicalistas e o “reyismo”. Todo esse conjunto de fatores fez com que a eleição

de 1910 fosse tensa.

Chegada a data da eleição presidencial, junho de 1910, como era esperado,

Porfirio Díaz foi reeleito com a ajuda de fraude eleitoral. O outro candidato, Francisco

Ignacio Madero, tomado pela vontade de modificar a situação política do país, se

levanta em armas contra o Governo Federal com o “Plan de San Luis”. Este fato foi o

embrião da Revolução Mexicana: tudo começou com o movimento maderista

“antirreleccionista”.

A Revolução Mexicana irá modificar profundamente as estruturas políticas,

sociais, culturais e literárias. O modernismo e o realismo/naturalismo terão uma

brusca ruptura que resultou em uma escassa produção literária desses movimentos se

comparado com as longas décadas do romantismo mexicano. Sai de cena o

36 No original: “un asfixiante sistema político que no se renovaba”. (Tradução nossa) 37 No original: “fue el detonador que terminó por dividir la sociedad entre un movimiento democrático (el antirreeleccionista) y uno conservador (el reeleccionista)” (Tradução nossa)

39

modernismo, porque diante de um evento tão importante quanto a Revolução

Mexicana não houve espaço para enaltecer a cidade moderna. O que se descobriu foi

o México mostrando a sua outra face: a rural.

Tampouco há espaço para uma literatura tipicamente realista. Com o

desenrolar da Revolução, vários fatos viraram mentiras e várias inverdades tornaram-

se fatos reais. A noção de verdade e de realidade ficou defasada. Com isso, a literatura

realista também ficou defasada. A saída não foi mais descrever e criticar a realidade,

mas descrever e criticar o próprio conceito de verdade. Entra em cena o realismo

crítico e com ele se funda a Narrativa da Revolução Mexicana.

2.5. Recapitulando

Ao longo deste capítulo constatamos que a idealização romântica se agotou e

se tornou supérflua e política, o que fez com que escritores se agrupassem e

criticassem essa idealização. Desses movimentos surgem os intelectuais realistas, que

procuravam denunciar os delitos e as mentiras surgidas no porfiriato. Por outro lado,

os modernistas buscavam uma arte autônoma, livre das amarras sociais. Realistas e

modernistas brigavam entre si determinar o que realmente deveria ser considerada a

“vanguarda” intelectual do país. Ambas movimentos não conseguiram se livrar

suficientemente do social, e este colocou pesadas algemas em ambas as correntes: o

movimento revolucionário mudou drasticamente o destino de tudo no México

(Fuentes, 2009).

40

SEGUNDA PARTE

LITERATURA DA REVOLUÇÃO E NARRATIVA

MEXICANA MODERNA: AS LETRAS MEXICANAS

NOS SÉCULOS XX E XXI

Los héroes se convierten en monstruos, la leyendas en mitos y los mitos en novelas.

Christopher Domínguez (1996, p.12-13)

A narrativa mexicana antes da Revolução mexicana se encontrava sob a ótica

dos movimentos literários do realismo/naturalismo e do modernismo 38 e, embora se

conservasse partes destes horizontes poéticos após a revolução, a narrativa mexicana

começava a apresentar mudanças que resultariam em uma nova poética: a revolução

histórica provocaria uma revolução linguístico-cultural (Fuentes, 2011).

A revolução mexicana, afirma Carlos Fuentes no seu ensaio El espejo enterrado

(2009), desvela rostos que haviam sido ocultos no regime de Porfirio Díaz. Mostra a

face pobre, humilde e indígena, mas combatente, lutadora e desejosa de que o país

saiba de sua existência para não serem mais esquecidos. O encontro de Emiliano

Zapata e Pancho Villa não é só um encontro político-revoluciónario, mas também

sócio-cultural: o norte do México e o sul se conectam novamente depois de muitas

décadas (e até séculos) isolados.

Novos atores entram no cenário político e cada um deles leva consigo uma

visão do México e uma visão de verdade. Ou seja, o realismo/naturalismo já não

consegue suster-se por muito tempo porque quanto mais passa o tempo mais se

descobrem que há outras verdades e realidades. O poeta ou escritor tentará conectar

toda essa rede de realidades múltiplas e com isso acabará criando o romance total

38 Na primeira parte desta dissertação, o termo Modernismo, ao menos no México, é ao mesmo tempo generalizante e redutor uma vez que congrega dentro de si atitudes poéticas muito díspares entre si: parnasianos, simbolistas, decantentistas, dentre outros (Pereira, 2004). Não é demais lembrar que a Revista Azul e a Revista Moderna brigaram entre si pelo título de verdadeiros modernistas (Castro Medina, 2010; Pereira, 2004).

41

(SOSNOWSKI, 2010) 39. Desde então, surgem as denominadas Narrativas da Revolução

Mexicana (MOLANO, 2010). Porém, não podemos esquecer que o realismo continuou

vigente, mas agora elevado à categoria de realismo crítico (ZAVALA, 1991).

39 De acordo com o teórico Saúl Sosnowski (2010), o romance total se caracteriza por tentar compreender o evento narrado a partir de vários ângulos. Como exemplo, citamos o primeiro romance de Carlos Fuentes, La región más transparente, onde o

escritor tenta descrever através de vários personagens as transformações do espaço urbano da Cidade do México no período pós-revolucionário.

42

Pós-modernismo e Revolução Mexicana

…muy pronto, la Revolución se convirtió también en un fenómeno cultural

José Miguel Oviedo (2001, p.158)

3.1. Pós-modernismo: continuidade e divergência

De acordo com o estudo de José Miguel Oviedo (2001), o pós-modernismo é

fundamental para poder compreender os novos movimentos literários que surgem na

primeira metade do século XX. Entretanto, apesar do pós-modernismo ser um evento

importante no contexto das literaturas hispânicas, ele é pouco entendido,

primeiramente porque este termo pode ser interpretado de duas formas: (i) a fase de

crise e declínio do movimento modernista e (ii) a etapa posterior ao modernismo não

importando o estilo que seja. Outro motivo que nos aponta Oviedo (2001) é a

imprecisão dos teóricos em definir o ano em que irrompe o pós-modernismo: 1910

com o advento da Revolução Mexicana ou 1914 com o início da Primeira Guerra

Mundial.

No que concerne ao contexto mexicano, o pós-modernismo está

intrinsecamente conectado com a Revolução Mexicana, pese que a Revista Moderna,

máximo expoente do pensamento modernista à sua época, fechou as portas com o

estopim da revolução. Na sua última edição, de julho de 1911, acaba “desejando que

se reestabeleça a paz no país e que a revista possa renascer” 40 (PEREIRA, 2004, p.437),

vontade essa que nunca se concretizou. Com a queda da Revista Moderna e com o

surgimento da revolução, a literatura mexicana se abre frente a um novo horizonte.

Embora a literatura mexicana avance, ela continua atada ao modernismo.

40 No original: “deseando que se restablezca la paz en el país y que la revista pueda renacer”. (Tradução nossa)

3

43

É justamente esse caráter complexo do posmodernismo que Oviedo (2001,

p.12) destaca: “O posmodernismo é duas coisas ao mesmo tempo: um estilo literário

cujas fontes estão no modernismo, mas que se processam de modos diferentes” 41.

Por isso o pós-modernismo é continuidade e divergência – contínuo por causa da ainda

busca da arte pela arte e divergente porque “Os pós-modernistas querem menos

enfeite e mais substância” 42 (OVIEDO, 2001, p.13). O pós-modernismo, enquanto

ruptura, condena o uso do parnasianismo e passa a procurar outras formas de

expressar a arte pela arte, por isso afirma Oviedo (2001) que o pós-modernismo é o

precursor dos movimentos de vanguarda.

O pós-modernismo no México se reflete, como já vimos, principalmente pela

Revolução Mexicana que muda completamente os paradigmas da época. Como aponta

Gallegos (2010), nem toda revolta é uma revolução. Para que seja uma revolução é

preciso que os movimentos conjuntamente modifiquem profundamente a estrutura

sócio-político-econômico-cultural da época desde a sua base. Outro fator é que as

ações provoquem uma ruptura drástica, ao invés de uma reforma que pressuponha

uma transição paulatina. Diz-se revolução também pela ruptura abrupta e violenta

com o antigo regime. Por isso se considera a Revolução Mexicana como a primeira

revolução em continente americano (no quesito nomenclatura porque não se pode

esquecer dos movimentos de independência). Os fatos históricos alteraram o rumo da

narrativa mexicana.

3.2 Inquietude artística: a revolução no campo da arte plástica mexicana

El nacionalismo artístico mexicano surge con un interés de los pintores por abordar temáticas de la realidad social, para generar un arte autónomo y original que busca desprenderse de la imitación de modelos clásicos.

Ana M. Torres Arroyo (2010, p.95)

41 No original: “El posmodernismo es dos cosas distintas a la vez: un estilo literario cuyas fuentes están en el modernismo, pero que se procesan de modo diferente”. (Tradução nossa) 42 No original: “Los posmodernistas quieren menos adorno y más sustancia”. (Tradução nossa)

44

Como na política, a Arte no México seguia os padrões positivistas do regime de

Porfirio Díaz. Segundo Torres Arroyo (2010, p.96), “O positivismo foi a filosofia que os

liberais utilizaram para deixar de lado as explicações religiosas e metafísicas” 43. Em

seu afã de afrancesar o México, os intitutos nacionais de educação, inclusive das artes

plásticas, copiavam os modelos exportados pela Europa. Por tal motivo, afirma Torres

Arroyo (2010, p.99): “na Escola de Belas Artes se levavam ao cabo métodos de

aprendizagem anacrônicos e obsoletos” 44. Em suma: não se produzia, se reproduzia.

Contrariamente a este idealismo do porfiriato, em 1906 alguns intelectuais se

agruparam sob a gremiação Ateneo de la Juventud. Dito Ateneu cimentou as bases

culturais do século XX no México. Destaca-se por sua posição patriótica em defesa da

cultura e da arte local: “Com o fim de celebrar o primeiro centenário da

Independência, a associação organizou conferências sobre a obra de pensadores e

literatos latino-americanos” 45 (PEREIRA, 2004, p.41). Com a derrocada de Porfirio Díaz

e com o início da Revolução Mexicana, os ateneístas pensavam que, enfim,

conseguiriam transformar a mentalidade do mexicano tendo como base a educação –

isto, se pode dizer, foi o lev motiv da vida e obra do intelectual José Vasconcelos 46.

Na Escola de Belas Artes começava a haver uma micro-revolução por causa do

descontentamento crescente da metodologia da Escola, a ponto de Gerardo Murillo

(mais conhecido como Dr. Atl) liderar o movimento de renovação, porque ensinava

novas teorias estéticas que ele havia aprendido na Europa, tais como os movimentos

de vanguarda. Nesta arte experimental já se encontrava o embrião da pintura mural,

por isso que Justo Sierra, ministro da Instrução Pública, havia oferecido o anfiteatro da

Escola Nacional Preparatória (hoje denominada de Antiguo Colegio de San Indefonso)

para decorar os muros. Porém, isto teve que ser postergado, porque se instaurou a

revolução armada.

Embora houvesse em 1910 a interrupção do que seria o movimento muralista

mexicano, não houve interrupção da mudança que aconteceria no campo da arte. Os

43 No original: “El positivismo fue la filosofía que los liberales utilizaron para dejar de lado las explicaciones religiosas y metafísicas”. (Tradução nossa) 44 No original: “en la Escuela Nacional de Bellas Artes se llevaban a cabo métodos de aprendizaje anacrónicos y obsoletos”. (Tradução nossa) 45 No original: “Con el fin de celebrar el primer centenario de la Independencia, la asociación organizó conferencias sobre la obra de pensadores y literatos latinoamericanos”. (Tradução nossa) 46 Pensador que estudaremos mais detalhadamente a seguir.

45

protestos contra o método de ensino ultrapassado e inadequado continuaram e foram

se intensificando ao ponto de acontecer entre 1911 e 1913 a greve estudantil da

Academia, principalmente contra o seu então diretor Antonio Rivas Mercado, um

porfirista.

Após a saída de Rivas Mercado da direção da Academia de Belas Artes, o pintor

Alfredo Ramos Martínez se postula como novo diretor e termina com a greve dos

estudantes em troca da promessa de uma reformulação dos planos de estudo da

Academia, e assim o fez. E um dos seus atos de transformação do ensino da arte

plástica foi a criação, em 17 de outubro de 1913, da Escuela de Pintura al Aire Libre,

conhecida como Santa Anita (Torres Arroyo, 2010).

A partir de então começa a existir uma mudança de perspectiva pedagógica,

porque a Escola de Pintura ao Ar Livre proporcionava maior liberdade artística aos

alunos, porque eram os discentes que tinham a livre decisão de escolher o que pintar e

como pintar, sendo a única regra a de ser uma pintura espontânea (Torres Arroyo,

2010). Os estudantes eram motivados a pintar o que realmente vissem e assim a

paisagem nacional entra em cena novamente. A última vez tinha sido com José María

Velazco no romantismo mexicano, século XIX. A partir da Escola de Pintura ao Ar Livre

começamos a ter a mexicanidade como símbolo de autenticidade e de modernidade.

3.3 O Ateneu da Juventude

El Ateneo significa que un nuevo grupo de hombres habían estrada en escena, desplazando el influjo de los “científicos” que rodeaban a Porfirio Díaz hasta sus últimos días y señalando su crisis.

José Miguel Oviedo (2001, p.128)

Quando se pensa nas diretrizes culturais que o México tomou na primeira

metade do século XX não podemos nos esquecer do Ateneu da Juventude. Por isso há

que retomar um pouco esse tema, porque deste Ateneu surgiram governantes,

políticos, artistas, escritores e pensadores como Alfonso Reyes e José Vascoscelos, este

46

último foi o primeiro reitor da Universidade Nacional Autônoma do México e o

primeiro ministro do recém-criado Ministério da Educação Pública 47.

Como aponta José Miguel Oviedo (2001, p.128), “O Ateneu foi o crisol onde se

forja um brilhante grupo de ensaístas, pensadores, críticos e criadores mexicanos cuja

contribuição é decisiva [...] para o desenvolvimento intelectual do país moderno” 48. O

Ateneu foi fundado em 28 de outubro de 1909, já no fim da época do porfiriato, como

uma forma de posicionamento contrário à ideologia positivista do referido período.

Contra o pensamento burguês europeizante de Porfirio Díaz, os ateneístas possuíam

um espírito latino-americanista porque “houve preocupação pela mexicanidade y pelo

hispano-americano, assim como uma atitude de ‘cultura livre’” 49 (PEREIRA, 2004,

p.43). Ou seja, os integrantes do Ateneu tinham uma visão integradora da cultura

nacional e americana (Oviedo, 2001).

O Ateneu da Juventude também apoiou o movimento madeirista e a revolução

mexicana. O ato de vivenciar a revolução modificou para sempre o pensamento dos

ateneístas, fazendo com que os grandes intelectuais do país dessem uma nova direção

à crítica porque “a fluidez e a irracionalidade dos acontecimentos políticos desafiavam

todos os esquemas intelectuais para explicá-los” 50 (OVIEDO, 2001, p.129). Tal fato

marcou a decadência do estilo realista no México, pelo menos aquele herdado do fim

do século XIX.

A partir do advento político-cultural da Revolução Mexicana se abria um novo

horizonte: descobrimento, afirmação e questionamento. Isto é, o México descobria

outros rostos que o porfiriato havia ocultado, cada líder revolucionário afirmava o seu

direito de governar 51. O realismo tal qual se fazia até então passou a ser obsoleto,

47 Empregamos o termo “Ministério” por ser o correlato vocabular mais preciso. No entanto, no México, o presidente escolhe os secretários para ocupar as mais diversas Secretarias enquanto que no Brasil o presidente nomeia os ministros para ocupar os Ministérios. Mesma função, podemos dizer, mas nomenclaturas distintas. 48 No original: “El Ateneo fue el crisol en el que se forja un brillante grupo de ensayistas, pensadores, críticos y creadores mexicanos cuya contribuición es decisiva […] para el desarrollo intelectual del país moderno”. (Tradução nossa) 49 No original: “hubo preocupación por lo mexicano y hispanoamericano, así como una actitud de ‘cultura livre’”. (Tradução nossa) 50 No original: “la fuidez y la irracionalidad de los acontecimientos políticos desafiaban todos los esquemas intelectuales para explicarlos”. (Tradução nossa) 51 Principalmente no que se refere na segunda fase da revolução, a mais sangrenta, que compreende desde o assasinato de Francisco I. Madero e a homologação da Nova Constituição em 1917. Neste período temos Venustiano Carranza, Álvaro Obregón, Emiliano Zapata e

47

porque o cenário era a capital, México D.F., e os temas, baseados nos quadros de

costumes, eram típicos da burguesia ou dos trabalhadores presos a ela. Mas a face

rural mexicana ganhava expressão e já não era mais a realidade objetiva, e sim a

realidade questionada. Assim se inaugura o período denominado “Narrativa da

Revolução Mexicana” 52 tendo como primeiro pilar fundacional o realismo crítico

(Pereira, 2004).

3.4. José Vasconcelos e sua revolução intelectual

La rebelión de las armas no fue seguida de la rebelión de las conciencias.

José Vasconcelos (2009, p.40)

Antes de entrarmos na abordagem literária propriamente dita, precisamos

tratar do grande ensaísta mexicano que definiu o rumo do pensamento do México

Moderno: José Vasconcelos (1882-1959). De acordo com Oviedo (2001, p.143), “pode-

se dizer que sua ação cultural gerou mudanças tão profundas que suas consequências

ainda podem ver-se no México de hoje” 53. José Vasconcelos foi um dos integrantes do

Ateneu da Juventude e um dos mais críticos opositores do governo de Porfirio Díaz.

O ateneísta Vasconcelos sabia da profunda transformação pela qual o México

passava por causa da Revolução. Por isso, seu ativismo intelectual esteve, em um

primeiro momento a serviço dos ideais revolucionários porque “suspendida a luta

armada, cresce a necessidade da ‘reconstrução’ nacional” 54 (OVIEDO, 2011, p.144). E

sem sombra de dúvidas Vasconcelos foi um dos reconstrutores de lo mexicano 55, pois

como afirma Fernándes Flores (2011, p.17) “à revolução democrática de Francisco I.

Pancho Villa que brigavam entre si pelo controle da revolução e automaticamente da presidência mexicana (Matute, 2010). 52 Na verdade, a crítica clássica denomina de “Novela de la Revolución Mexicana”, no obstante, os escritores que adentraram nesse campo literário são só escreveram romances, mas também romances curtos (novelas cortas) e contos. Atualmente se tem denominado de “Narrativa de la Revolución Mexicana” para poder agrupar todos os gêneros literários da prosa (Oviedo, 2001). 53 No original: “puede decirse que su acción cultural generó cambios tan profundos que sus consecuencias todavía pueden verse en México de hoy”. (Tradução nossa) 54 No original: “suspendida la lucha armada, crece la necesidad de la ‘reconstrucción’ nacional”. (Tradução nossa) 55 A mexicanidade.

48

Madero e a revolução agrarista de Emiliano Zapata, seguiu a revolução cultural de José

Vasconcelos” 56. Seu pensamento inspira a primeira fase do movimento muralista

mexicano e também influi na ideia de lo mexicano como símbolo de lo moderno.

Restringindo-nos mais à produção ensaística de Vasconcelos do que a literária,

assinalamos uma de suas obras mais importantes e que melhor representa a sua

cosmovisão: La Raza Cósmica, publicada em 1925. Neste livro, como se pode esperar,

critica o pensamento positivista, chamando-o de “microideologia del especialista”

(VASCONCELOS, 2009, p.13). Sua teoria das quatro raças entra em consonância com o

darwinismo genético, a evolução da espécie humana está intrinsecamente relacionada

com a mestiçagem das raças. Para o referido pensador, no mundo existem quatro

raças: branca, negra, mongol e indígena. Esta última seria, para Vasconcelos (2009), o

melhor elo entre as demais raças e, como na teoria da evolução das espécies, a

miscigenação entre as espécies provocaria que as características negativas seriam

elimanadas em prol da evolução da espécie humana. A raça mestiça seria uma raça

superior.

A tendência natural, segundo Vasconcelos (2009, p.14), é que “A civilização

conquistada pelos brancos, organizada por nossa época, pôs as bases materiais e

morais para a união de todos os homens em uma quinta raça universal, fruto das

anteriores e superação de tudo o que passou” 57. Há que ter em mente que para esta

quinta raça, a raça cósmica, se necessita da união das quatro raças por ele distinguidas.

Dentre essas raças se encontra a indígena. Por isso na visão vasconceliana, lo indígena

necessita ser resgatado porque uma civilização não se constrói do nada.

Isso vai de encontro com a sua tese de que a civilização “se deriva sempre de

uma longa, de uma secular preparação e depuração de elementos que se transmitem e

se combinam desde os começos da História” 58 e justamente por tal motivo “resulta

torpe fazer começar nosso patriotismo com o grito de independência do padre

56 No original: “a la revolución democrática de Francisco I. Madero y la revolución agrarista de Emiliano Zapata, siguió la revolución cultural de José Vasconcelos”. (Tradução nossa) 57 No original: “La civilización conquistada por los blancos, organizada por nuestra época, ha puesto las bases materiales y morales para la unión de todas los hombres un una raza universal, fruto de las anteriores y superación de todo lo pasado”. (Tradução nossa) 58 No original: “se deriva siempre de una larga, de una secular preparación y depuración de elementos que se transmiten y se combinan desde los comienzos de la Historia”. (Tradução nossa)

49

Hidalgo” 59 (VASCONCELOS, 2009, p.16-17). Assim, de acordo com Vasconcelos, o

patriotismo mexicano deve vir da sua mais íntima origem, ou seja, a cultura pré-

colombiana. A valorização do indígena nesse cenário cultural será um tema recorrente

graças ao pensamento deste grande ensaísta e escritor que deixou sua marca na

história mexicana.

José Vasconcelos insiste em seu ensaio que há que perseguir “os rastros do

sangue derramado” 60 (2009, p.21). Para este pensador, no que concerne ao contexto

mexicano, se a raça branca foi a responsável por conectar a todas as outras raças, a

raça indígena seria a ponte perfeita entre as outras três raças (branca, negra e mongol)

por não ser tão diferente das demais. Lo indígena é o elo e dessa ligação surgirá uma

raça superior, uma raça definitiva, uma raça síntese, uma raça integral, ou seja, uma

raça universal: a raça cósmica.

Este imaginário de José Vasconcelos repercutirá na arte e na escrita do período

pós-revolucionário, porque estando os artistas ainda à procura de uma direção para a

arte, Vasconcelos lhes dará um rumo. Pensando em uma arte que pudesse educar as

massas, José Vasconcelos permitiu que fossem pintados os muros da Escola Nacional

Preparatória, onde se vê plasmada, ainda hoje, a cosmovisão vasconceliana no

muralismo mexicano. Portanto, começou neste momento o movimento muralista no

México já que seus primeiros passos, que iam ser dados em 1910 a revolução

postergou para onze anos depois. De forma sintética, Desmond (1996, p.192) afirma

que “Durante a década de 1920, os acontecimentos sociais e políticos do México

formaram as bases sobre as quais os pintores evoluiram em direção a uma arte

pública, com imagens pintadas com uma grande ênfase desde a profunda veneração

do idealismo e a experiência” 61. Por isso, afirma Desmond (1996), o muralismo

mexicano, de uma forma global, pode ser dividido em duas fases, a primeira em que há

a presença da visão filosófica de José Vasconcelos e a segunda fase que representa

uma arte didático-político-populista.

59 No original: “resulta torpe hacer comenzar nuestro patriotismo con el grupo de independencia del padre Hidalgo”. (Tradução nossa) 60 No original: “la huella de la sangre vertida”. (Tradução nossa) 61 No original: “Durante la década de 1920, los acontecimientos sociales y políticos de México formaron las bases sobre las cuales los pintores evolucionaron hacia un arte público, con imágines pintadas con un gran énfasis desde el profundo venero del idealismo y la experiencia”. (Tradução nossa)

50

3.5. A mexicanidade como arte nacional: o movimento muralista

Todo arte realmente importante en México [...] exige actividades concretas y definidas de la producción plástica basada en una observación directa de la dinámica de la lucha popular y en una justa apreciación de lotos los valores plásticos autónomos e internacionales que sean aprovechables.

Ana M. Torres Arroyo (2010, p.139)

É importante revisar brevemente o movimento muralista porque o que esses

artistas plásticos tentaram plasmar nos muros foi o que muitos escritores buscaram

escrever em seus livros. Para começar, conforme já mencionamos, o movimento

muralista mexicano se divide em duas etapas. Na primeira etapa os artistas ainda

procuravam um motivo para pintar tendo em vista as profundas modificações

provocadas pela Revolução Mexicana.

Diante de tanta violência, massacre e instabilidade política, a estética

parnasiana ou simbolista se encontrava supérflua nesse contexto (Pereira, 2004). Por

isso foi importante a visão e a influência de José Vasconcelos, porque permitiu que os

artistas tivessem um caminho para trilhar até que os pintores fizessem seu próprio

caminho e isso é o que marca a segunda fase do muralismo mexicano.

José Vasconcelos, conforme vimos em La Raza Cósmica 62, possuía uma ideia

filosófica e idealista do ser mexicano e de sua mestiçagem, por isso, embora os

pintores quisessem retratar o mexicano, esse era representado de uma forma

idealizada, o mexicano da primeira fase do muralismo não é o mexicano concreto da

segunda fase. Destacamos deste período o mural de Diego Rivera La Creación (1923)

em que encontramos uma confluência entre as estéticas italianas e bizantinas

(Desmond, 1996).

O mural expressa a justaposição entre o masculino e o feminino, portanto,

podemos dizer que o eixo central do mural é o dualismo. Encontramos figuras como

62 Embora o livro de Vasconcelos, La Raza Cósmica, fosse escrito em 1925 e o primeiro mural de Diego Rivera pintado em 1923, as ideias de Vasconcelos já eram conhecidas no meio intelectual mexicano tendo em vista de como integrante do Ateneu publicou vários artigos em que já continha essa cosmovisão do mestiço ibero-americano.

51

Adão, Eva e as musas gregas. Como se pode notar, Rivera nessa obra aborda temas de

caráter universal e com personagens alheios à realidade mexicana. No centro do mural

temos um homem moreno, talvez uma representação do mestiço ibero-americano

idealizado por José Vasconcelos no seu mais famoso ensaio.

De igual abstração temos o mural Los elementos (1922) de Alfaro Siqueiros.

Neste mural vemos a representação da imagem de um anjo rodeado pelos quatro

elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. Também em La Creación, de Rivera, o

mural Los elementos “se deriva mais da experiência e as lembranças europeias de

Siqueiros que de algo intrinsecamente mexicano” 63 (DESMOND, 1996, p.78). O mesmo

se pode dizer dos primeiros murais de José Clemente Orozco, como, por exemplo,

Maternidad (1971), no qual “a figura feminina de cabelo loiro e pele branca e o

menino rodado de figuras de anjos resulta anacrônica” 64.

Não obstante, esses três muralistas passaram por acontecimentos que

mudaram a perspectiva de todos eles, afastando-se dos ideais metafísicos e filosóficos

de Vasconcelos e aproximando-se à realidade social e histórica do México

revolucionário. A respeito de Diego Rivera, podemos comentar o mural La liberación

del peón, que plasma a figura de um peão despido e açoitado, sendo ajudado por dois

peões, enquanto um destes corta a corda e outro os observa. Neste mural já não

vemos personagens idealizados e com temáticas europeias, e sim peões que se

assemelham à realidade mexicana, assim como também a paisagem de fundo.

Percebe-se na obra de Rivera “o contraste entre a apologia da Revolução, seus

ideais e suas conquistas, e uma cáustica crítica de seus oponentes e detratores” 65

(DESMOND, 1996, p.148). Muitos desses serão plasmados por Rivera em seus murais

relacionados com a Revolução Mexicana, como La sangre de los mártires

revolucionarios fertilizando la tierra. Também haverá destaque em sua obra para

temas relacionados com o indígena e com o mundo pré-hispânico, como os murais

Tianguis e La fiesta del maíz, por exemplo.

63 No original: “se deriva más de la experiencia y los recuerdos europeos de Siqueiros que de algo intrínsecamente mexicano”. (Tradução nossa) 64 No original: “la figura femenina de cabello rubio y piel blanca y el niño rodeado de figuras de ángeles resulta anacrónica”. (Tradução nossa) 65 No original: “el contraste entre la apología de la Revolución, de sus ideales y logros, y una cáustica crítica de sus oponentes y detractores”. (Tradução nossa)

52

José Clemente Orozco igualmente transformará sua perspectiva artística em

direção a uma crítica social que se nota acentuadamente em seus próximos murais,

como em Ley y Justicia. Neste encontramos a figura quase tradicional da Justiça cega e

com a balança em suas mãos caminhando com um senhor em traje formal,

representando alguém com alto poder social e portando uma faca na mão. Orozco não

é indiferente ao tema da Revolução e também o pinta em seus murais, como em La

trinchera. A mestiçagem segue presente principalmente em seu mural Cortés y la

Malinche, retrato do primeiro casal espanhol-indígena que, historicamente deu início à

nação mexicana 66.

Dos três grandes muralistas, Alfaro Siqueiros foi o que artísticamente mais

avançou. Verifica-se em suas obras a influência das vanguardas europeias, como o

surrealismo, tão marcadamente presente em sua obra Entierro del obrero crucificado,

tema de crítica social. Mas Siquieros, assim como os demais, não aborda somente a

cidade, mas também o campo e o indígena como nos murais Madre campesina em

contraste com outro mural seu intitulado Madre proletaria.

3.6. Recapitulando

Em síntese, vimos que o muralismo mexicano se divide em duas fases:

vasconcelista e de poética suis-generis. A pintura mural buscou resgatar não só os

temas da Revolução Mexicana, mas também assuntos referentes à terra, ao indígena e

ao pré-colombiano. A Revolução Mexicana transformou em todos os sentidos a

sociedade mexicana e isso se refletiu na arte, tanto plástica quanto escrita. Finalizando

o estudo da arte plástica mexicana, verificamos que a greve estudantil da Academia de

San Carlos, a mudança ideológica dessa instituição, a criação da Escola de Pintura ao Ar

Livre e o surgimento do muralismo mexicano revelam como as mudanças foram

drásticas. Passemos agora ao estudo da Literatura da Revolução Mexicana.

66 Se formos para os dados históricos, talvez a primeira mestiçagem tenha sido a dos náufragos espanhóis anteriores a Hernán Cortés e que constituíram família entre os povos maias da península de Yucatán: Jerónimo (Gerónimo) de Aguilar e Gonzalo Guerrero (Bernal Díaz del Castillo, 2010).

53

DA NARRATIVA DA REVOLUÇÃO MEXICANA À

NARRATIVA MEXICANA MODERNA

(…) la novela de la Revolución Mexicana, que es la que renueva, transforma la prosa que se escribía en México y abre el camino a la nueva narrativa mexicana.

Edmundo Valadés (2008, p.220)

Hay una línea que va de Azuela (14.2.1.), pasa por Yáñez y llega a Rulfo (19.4.1.) y Fuentes (22.2.2.).

José Miguel Oviedo (2001, p.503)

Neste capítulo faremos uma breve cartografia do percurso da narrativa

mexicana a partir do advento da Revolução Mexicana. Conforme foi mencionado

anteriormente, as profundas transformações provocadas pela Revolução Mexicana

fará com que a própria literatura modifique seu perfil, provocando o descenso do

modernismo e do realismo/naturalismo surgidos no século XIX. Diversos críticos

apontam para a abertura de um novo movimento literário: a Literatura da Revolução

Mexicana. Primeiramente, cabe-nos explicitar o que se entende por este termo e quais

as suas subcategorias.

O termo mais difundido é Novela de la Revolución Mexicana 67 (Pereira, 2004),

no entanto o termo novela restringe demais a produção literária do período

supracitado porque em um primeiro momento exclui os demais gêneros literários. Por

isso alguns críticos têm ampliado o termo. Armando Pereira (2004) adota, por

exemplo, o termo Narrativa de la Revolución 68, porque esta denominação é mais

abrangente e, além dos romances, das novelas (novela corta) e dos contos, podemos

incluir as crônicas e a poesia. Este crítico ainda propõe outra categorização: Narrativa

de la Posrevolución 69. Em contra partida, para Jorge A. Muñoz (2012), melhor seria

67 Romance da Revolução Mexicana 68 Narrativa da Revolução Mexicana 69 Narrativa da Pós-revolução

4

54

nomear essa corrente literária de Literatura de la Revolución Mexicana 70 porque assim

seria possível incluir as novelas, os contos e até mesmo a poesia.

No entanto, Molano Nucamendi (2010) amplia e problematiza ainda mais o

termo porque, para este crítico, Literatura da Revolução é todo e qualquer texto que

tenha como contexto histórico da ficção a época correspondente ao processo

revolucionário. Portanto, desta definição já podemos traçar dois perfis de literatura da

revolução: aquela escrita durante a revolução e aquela escrita depois da mesma. Sob

essa ótica, podemos criar outra subdivisão: as narrativas da revolução podem ser

literaturas de testemunho ou não.

Em síntese, de acordo com Molano (2010), podemos classificar em três grandes

grupos a denominada Literatura da Revolução: (a) narrativa de testemunho, em que o

escritor, o narrador e o personagem são os mesmos; (b) narrativa da revolução, em

que o escritor que tenha vivenciado a revolução cria um narrador que conta a história

de um personagem revolucionário, isto é, o escritor se mascara por trás de um

narrador, ficcionalizando-se e eliminando os rastros de uma escrita testemunhal; e,

por fim, (c) narrativa sobre a revolução, neste caso, o escritor não presenciou os anos

revolucionários e escreve uma história tendo por base o que conhece sobre a

revolução, ou seja, narrativas reflexivas da Revolução.

Ainda segundo o estudo de Molano (2010), todas as narrativas da revolução

compartem várias características em comum. Podemos enumerar algumas, tais como

(i) o tom realista, que “tem como propósito oferecer uma versão dos fatos históricos”

71 (MOLANO, 2010, p. 187); (ii) a estética fragmentada, pois ao contrário do realismo,

não almeja apresentar uma visão global da revolução; (iii) tratamento original da

linguagem, geralmente manifestado na linguagem popular dos personagens; (iv) traço

vanguardista na medida em que usa técnicas inovadoras de outras culturas literárias;

(v) afirmação nacionalista, porque as obras “desencadeiam uma reflexão que conduz a

uma apreciação do que torna o México particular” 72 (MOLANO, 2010, p. 190), isto é, a

Literatura da Revolução Mexicana conflui para a conformação de uma identidade

70 Literatura da Revolução Mexicana 71 No original: “tiene como propósito ofrecer una versión de los hechos históricos”. (Tradução nossa) 72 No original: “desencadenan una reflexión que conlleva una apreciación de lo que hace particular a México”. (Tradução nossa)

55

mexicana. Outras caraterísticas são apontadas por Oviedo (2001): (vi) narrativa de

denúncia, (vii) de protesto e (viii) de caráter documental.

Retornando ao significativo estudo de Armando Pereira, que estabelece a

diferença entre a Narrativa da Revolução e a Narrativa da pós-revolução. A Narrativa

de la Revolución assim é definida: “Corrente de caráter épico e social herdeira da

tendência realista e da crônica, que sincretiza história e literatura” 73 (2004, p.332).

Esta definição é muito precisa e abarca os principais pontos que definem este tipo de

literatura. E a respeito da Narrativa de la Posrevolución, Armando Pereira (2004,

p.332) afirma que “Esta literatura surge uma vez terminado o movimento

revolucionário (...) Considera-se que é depois de 1940 quando se cria uma situação

literária nova” 74.

Armando Pereira (2004) aponta dois grandes fatores responsáveis por essa

transformação: (i) de ordem narrativo, o cenário ambientado à época da Revolução

Mexicana é apenas um fundo narrativo, ou seja, um pretexto para desenvolver temas

de ordem metafísico ou psicológico; (ii) de ordem estilístico, a literatura pós-revolução

utiliza técnicas da prosa moderna como o monólogo interior 75, o jogo de vozes

narrativas e temporais. Neste capítulo estudaremos três romances comumente

considerados Narrativa da Revolução: Los de abajo, de Mariano Azuela, Al Filo del

Agua, de Agustín Yáñez e Pedro Páramo, de Juan Rulfo. No que concerne à

categorização feita por Pereira (2004), apenas a primeira obra se enquadra na

Narrativa de la Revolución, já que as outras três se encaixam no perfil da Narrativa de

la Posrevolución.

4.1. A neo-escritura da revolução mexicana: Los de abajo, de Mariano Azuela

La revolución es el huracán, y el hombre que se entrega a ella no es ya el hombre, es la miserable hoja seca arrebatada por el vendaval… Mariano Azuela (2008, p.69)

73 No original: “Corriente de carácter épico y social heredera de la tendencia realista y de la crónica, que sincretiza historia y literatura”. (Tradução nossa) 74 No original: “Esta literatura surge una vez concluido el movimiento revolucionário (...) Se considera que es después de 1940 cuando se crea una situación literaria nueva”. (Tradução nossa) 75 Técnica esta que estudaremos posteriormente

56

4.1.1. Realismo crítico

A crítica literária tem contemplado o romance Los de abajo (publicado em

1915) de Mariano Azuela (1873-1952) como o fundador do novo movimento literário

mexicana proveniente do advento da Revolução Mexicana: Romance da Revolução 76.

Conforme estudado no capítulo anterior, com o passar do tempo os acontecimentos

da Revolução Mexicana provocaram a decadência da produção modernista e

realista/naturalista, perdendo a umportância no cenário mexicano. Por isso, tanto

Pereira (2004) quanto Molano (2010) apontam para o surgimento do realismo crítico.

Entende-se por realismo crítico a escola literária que critica o próprio realismo

porque questiona o próprio conceito de realidade. Parece um paradoxo, mas não é

difícil entender essa questão: as profundas transformações provocadas pela

Revolução, segundo Oviedo (2001, p.157) mudariam a percepção dos mexicanos sobre

seu país e sobre sua história, porque a Revolução mostrou “o melhor e o pior do

México, mas nos deu ao fim o seu verdadeiro rosto, oculto sob as capas da maquiagem

do porfirismo [...]: um país indígena, rural, ligado a tradições ancestrais, capturado por

suas próprias desigualdades sociais e econômicas” 77.

A “realidade” apresentada na primeira fase do realismo mexicano já não tinha

nada que ver com a difícil situação enfrentada naquele momento: a primeira fase do

realismo mexicano começa no fim do século XIX já contemporâneo do governo de

Porfirio Díaz conforme já estudamos no segundo capítulo. Ao criticar o que até então

se concebia como realidade, automaticamente se atacava de forma direta o

movimento realista. No entanto, o pensamento da época não permitia divagações nem

76 Já discutimos anteriormente as problemáticas dos termos Romance da Revolução, Narrativa da Revolução e Literatura da Revolução (isso sem considerar a também classificação feita por Armando Pereira de Narrativa da Pós-revolução). Para os efeitos desta dissertação, apenas abordaremos obras narrativas e dentro deste apartado apenas aos romances mencionados de Azuela, Yáñez e Rulfo. Por isso utilizaremos os termos “Romance da Revolução” ou “Narrativa da Revolução” se for o caso de incluir algum conto ou romance curto. 77 No original: “lo mejor y lo peor de México, pero nos dio al fin su verdadero rostro, ocultado bajo las capas de maquillaje del porfirismo (...): um país indígena, rural, ligado a tradiciones ancentrales, atrapado por sus propias desigualdades sociales y económicas”. (Tradução nossa)

57

coisas “supérfluas” na literatura, por isso decaíram o modernismo e o pós-

modernismo. E o realismo continuou, só que agora criticando a realidade apresentada

até então. Surgia o realismo crítico.

4.1.2. A prosa como cronista da barbárie

Vejamos como se aplica o conceito de realismo crítico no romance Los de

abajo. A narrativa de um modo geral se encontra em terceira pessoa, o que lhe dá um

grau de imparcialidade e de objetividade. No entanto, em algumas partes do livro a

narração não é explícita, mas sim subentendida. No capítulo VII da segunda parte do

livro temos uma narrativa entrecortada. Parece que há um sequestro de uma moça

por parte de Luis Cervantes para oferecê-la ao já então general Macias. Este capítulo

está subdivido: na primeira encontramos a tropa de guerrilheiros tentando decifrar o

que aconteceu, ou seja, como Camila, a jovem sequestrada, foi parar no

acampamento. Na segunda parte temos a Pintada, uma mulher guerrilheira e amante

do protagonista, que procura saber o que aconteceu pela boca de Camila, mas ela mal

consegue contar a história. Por fim, sabemos mais ou menos algo, mas não sabemos

de tudo. Essa marca rompe com o movimento realista do fim do século XIX.

A respeito do romance em si, ele foi publicado no Texas (EUA) em 1915 em

forma de folhetim para o jornal El Paso del Norte entre outubro e novembro do

referido ano. O livro foi escrito em três etapas, como aponta Oviedo (2001): (i) a

primeira compreende a estada de Azuela em Irapuato no estado de Guanajuato; (ii)

em dezembro de 1914 se translada a Guadalajara, no estado de Jalisco, junto com as

tropas villistas e aí continua a escritura do livro; (iii) e em 1915, em Chihuahua, escreve

a maior parte do livro e neste mesmo local o finaliza. No entanto, somente dez anos

depois o livro teve repercursão no México e foi considerada como a melhor obra

literária da Revolução: “Desde então o livro passou a ocupar um lugar central nas

letras mexicanas” 78 (OVIEDO, 2001, p.164).

78 No original: “Desde entonces el libro pasó a ocupar un lugar central en las letras mexicanas”. (Tradução nossa)

58

Revendo os temas essenciais à Literatura da Revolução que nos apresenta

Molano (2010), verificamos que Los de abajo se encaixa dentro do perfil literário

porque (i) possui um tom realista, marcado principalmente pela narração em terceira

pessoa que dá uma maior objetividade ao texto; (ii) o livro apresenta uma estética

fragmentada, citamos por exemplo o hiato de dias que há entre a segunda e a terceira

parte do livro, além de fragmentações em níveis mais profundos; (iii) tratamento

original da linguagem por inserir no romance fala típica popular como vemos em

“Güenos días le dé Dios, ña Fortuna...” (AZUELA, 2008, p.35); (iv) a obra possui traços

vanguardistas principalmente no que concerne aos personagens e suas peculiaridades

porque se assemelha a uma quadro fragmentado em que temos que montar; (v) e há a

afirmação nacionalista porque neste romance “está o México de Porfirio Díaz, o

México da Revolução e o México que surgiu da Revolução” 79 (IMBERT, 2010a, p.441).

Azuela não pretende fazer uma leitura da Revolução Mexicana, mas uma

releitura da mesma, porque foi este escritor que “mais que qualquer outro romancista

da revolução mexicana, levanta a pesada pedra da história para ver o que há ali

embaixo” 80 (FUENTES, 2011, p.111). O que se encontra abaixo é o inexplicável, porque

“a lógica do soldado é a lógica do absurdo” 81 (AZUELA, 2008, p.26). Em Los de abajo

encontramos a personagens vitimados, porque todos são vítimas dos sonhos e dos

pesadelos provocados pela Revolução Mexicana.

A revolução não foi feita só por pessoas de bem, mas também por assassinos

cruéis e covardes. No romance há a presença de ambos os perfis revolucionários, os

homens “admiravelmente armados e montados” 82 e o seu total oposto, porque alguns

dos “chamados revolucionários não eram senão bandidos agrupados agora com um

magnífico pretexto para saciar sua sede de ouro e de sangue” 83 (AZUELA, 2008, p. 32-

33). Um dado importante que Oviedo (2001) demonstra é que Los de abajo poderia ser

considerado em certa medida como um romance da terra (como são as obras do

79 No original: “está el México de Porfirio Díaz, el México de la Revolución, el México que surgió de la Revolución”. (Tradução nossa) 80 No original: “más que cualquier un otro novelista de la revolución mexicana, levanta la pesada piedra de la historia para ver qué hay allí abajo”. (Tradução nossa) 81 No original: “la lógica del soldado es la lógica del absurdo”. (Tradução nossa) 82 No original: “admirablemente armados y montados”. (Tradução nossa) 83 No original: “llamados revolucionarios no eran sino bandidos agrupados ahora con un magnífico pretexto para sacir su sed de oro y de sangre”. (Tradução nossa)

59

venezuelano Rómulo Gallegos e do colombiano José Eustasio Rivera). Mas com um

adendo: necessitamos acrescentar o fator político.

Oviedo (2001, p.168) aponta essa característica porque no romance há uma

forte presença telúrica se observamos os personagens: “são seres atados à pobre terra

que lhes dá o magro sustento, vivas emanações de um âmbito natural e em estado

selvagem, onde não mudou nada durante século e que agora é o cenário de grandes

acontecimentos históricos” 84. Os campos se esvaziam e homens sem rosto passam a

ocupar o papel de protagonistas históricos e literários.

O romance está dividido em três partes: (i) a primeira compreende os primeiros

vinte e um capítulos, (ii) os próximos quatorze capítulos configuram a segunda parte

do romance; (iii) e a terceira parte está conformada com os últimos sete capítulos do

livro. A unidade do romance se faz de acordo com os movimentos realizados por

Demetrio Macías, o protagonista. A primeira parte do livro pode ser dividida em

quatro segmentos: (i) o romance se inicia com a fuga de Demetrio de Limón em

direção às montanhas (capítulo um ao quatro), (ii) depois a história transcorre em uma

humilde casa e é lá que Demetrio conhece Luis Cervantes (capítulo cinco ao quinze);

(iii) o personagem principal agora marcha a Fresnillo e aí se une com outra força

revolucionária (capítulos dezesseis e dezessete), (iv) por fim termina a primeira parte

quando Demetrio recupera Zacatecas (capítulo dezoito ao vinte e um).

A respeito da segunda parte do livro, pode ser subdividida pelos movimentos

realizados pelo protagonista da narração, Demetrio Macias: (i) do primeiro capítulo ao

quarto capítulo da segunda parte encontramos a tropa de revolucionários em uma

pequena estância no povoado de Zacatenca, após a conquista do mesmo no capítulo

anterior; (ii) do capítulo cinco ao capítulo oito, os guerrilheiros marcham a Moyahua,

terra do cacique Mónaco, que é amigo de Demetrio Macias. Embora pela amizade não

permitisse o saque da casa do seu amigo Mónaco, o protagonista ordena a queima da

propriedade sem um motivo aparente; (iii) o terceiro movimento acontece quando

eles vão a Jalisco a perseguir os “orozquistas”, que são as tropas aliadas de Pascual

Orozco, ou seja, aqui já encontramos a disputa interna pelo poder entre os próprios

84 No original: “son seres atados a la pobre tierra que les da el magro sustento, vivas emanaciones de un ámbito natural y en estado salvaje, donde no ha cambiado nada durante siglos y que ahora es el escenario de grandes acontecimientos históricos”. (Tradução nossa)

60

revolucionários 85. Esses acontecimentos compreendem os capítulos nove e treze; (iv)

e o quarto deslocamento ocupa o último capítulo da segunda parte e narra a chegada

em Aguascalientes, onde haverá uma eleição não-oficial para eleger o novo presidente

uma vez que não reconhecem o golpe de estado dado por Victoriano Huerta.

Na terceira e última parte do livro, há somente dois deslocamentos, o que

chama muito a atenção em comparação com as duas partes anteriores. Na verdade,

como aponta Oviedo (2001), a última parte do livro funciona como epílogo em que

explica o que acontece depois de terminada a segunda fase da revolução já que se

encontram derrotados os líderes agrários Emiliano Zapata e Pancho Villa. O primeiro

capítulo da terceira parte se inicia com a carta de Luis Cervantes a Venancio, seu amigo

e companheiro de batalha. Neste episódio já se nota a dissolução de parte do exército

revolucionário de Demetrio Macias. Luis de Cervantes que se encontrava no Texas

(Estados Unidos) pede para que Venancio vá com ele e juntos possam construir um

negócio, já que a Revolução já não se encontra mais rentável. Encontramos nesse

trecho uma clara crítica aos chamados revolucionários, porque na verdade estão mais

para mercenários segundo a narrativa de Azuela.

Quando a tropa do protagonista recebe a carta, eles estão em marcha rumo a

Juchipila e nesse povoado são rejeitados pela população porque, na verdade, os

revolucionários muitas das vezes estavam lutando a seu favor e contra o povo. A

estância em Juchipila permanece em dois capítulos, do quarto ao quinto capítulo. O

último movimento de Demetrio Macias na verdade é um retorno às origens: quase

dois anos da saída do protagonista para lutar na Revolução, ele regressa para rever sua

esposa e seu filho, que nem mais o reconhece. No capítulo sete da terceira parte, que

é o último da narrativa, encontramos novamente o protagonista em uma batalha,

praticamente perdida porque todos os seus homens estavam mortos e ele, ferido,

segue atirando contra os federais.

Fazendo um contraste na macro-estrutura do livro, isto é, das suas partes,

vemos que a segunda parte do livro é um contrapeso em relação à primeira. Se nos

primeiros capítulos percebemos o tom vitorioso provocado pelos sucessos militares

85 Apesar da obra ter cunho realista, Mariano Azuela menciona raramente ao longo da narrativa em qual período da revolução a história se desenrolada. Neste trecho verificamos que a Revolução se encontra na sua segunda fase, que compreende após o assassinato de Francisco I. Madero. De acordo com Matute (2010), essa é a fase mais sangrenta da Revolução Mexicana.

61

empreendidos por Demetrio Macías, na segunda parte encontramos o desencanto

provocado pela corrupção e pela matança desnecessária. Na terceira parte, que

funciona como epílogo, mostra a derrota e o vazio provocados pela revolução nos

personagens. Fim da revolução e todos têm de voltar à vida como era antes: sonhos

mortos e vontades insaciadas.

Esse sentimento de vazio é impulsionado pelo sentimento de inércia, porque a

maioria dos revolunários, como denuncia Azuela, está isenta de ideais (Imbert, 2010a).

Por isso torna-se uma crítica irônica aos personagens Luis Cervantes e Alberto Solís,

intelectuais que quiseram participar da revolução, mas que suas ideias não penetraram

na revolução: ideais não matam tão eficazmente quanto uma bala. Intelectuais de

mãos atadas e revolucionários de ideias atadas. Não à toa a imagem-princips

(Bachelard, 1997), ou seja, a imagem poética que condensa todo o conteúdo do livro, é

a fumaça que Alberto Solís vislumbra (AZUELA, 2008, p.79):

Seu sorriso voltou a vagar seguindo às espirais de fumaça dos rifles e do pó de cada casa derrubada e cada teto que se afundava. E acreditou ter descoberto um símbolo da revolução naquelas nuvens de fumaça e naquelas nuvens de pó que fraternalmente subiam, se abraçavam, se confundiam e se apagavam.

86

De igual forma Mariano Azuela nos dá uma imagem-princips dos

revolucionários, já no final da narrativa quando Demetrio volta para sua casa e sua

esposa pede que ele fique e abandone o campo de batalha. O protagonista não

responde, não precisava responder. Sua esposa então lhe pergunta (AZUELA, 2008,

p.148):

- Por que ainda lutam, Demetrio? Demetrio, as sobrancelhas muitos juntas, pega distraído uma pedrinha e a

86 No original: “Su sonrisa volvió a vagar siguiendo a las espirales de humo de los rifles y la polvareda de cada casa derribada y cada techo que se hundía. Y creyó haber descubierto un símbolo de la revolución en aquellas nubes de humo y en aquellas nubes de polvo que fraternalmente ascendían, se abrazaban, se confundían y se borraban”. (Tradução nossa)

62

lança ao fundo do canhão. Mantem-se pensativo vendo o desfiladero, e diz: - Olha essa pedra como já não para...

87

Uma pedrinha lançada no vazio, eis a imagem do revolucionário: uma luta

muito das vezes sem sentido por homens que não sabem o que estão fazendo. Por isso

afirma o narrador do livro: “Se uma pessoa traz um fuzil nas mãos e as cartucheiras

cheias de tiros, com certeza é para lutar. Contra quem? Em favor de quem? Isso nunca

importou a ninguém” 88 (AZUELA, 208, p.135).

Por tal razão é que no romance de Azuela estamos diante de uma “crítica do

espectro histórico que se desenha sobre o conjunto de seus personagens” 89

(FUENTES, 2011, p.118). Em Mariano Azuela não há mito, há uma viagem de retorno às

origens que não leva a nada. O que há é desencanto e desilusão. O que há é uma

fumaça de pólvora e de fogo que queima tudo: as casas, os homens, a alma humana e

a revolução. Ao final, a revolução só dá benefício aos “de arriba” 90, pois para os de

abaixo “acabou a revolução, e acabou tudo” 91 (AZUELA, 2008, p.48). Mariano Azuela é

um marco para a narrativa mexicana. Ele é um dos precursores da prosa mexicana

moderna por justamente romper com o realismo até então vigente e fazer uma crítica

às verdades até então impostas. Segundo Fuentes (2011, p.121), “Graças a ele se pôde

escrever romances modernos no México” 92.

No que se refere ao tema desse nosso estudo, é graças a Mariano Azuela que se

abre um novo ciclo literário no México e isso se dá pela renovação do realismo

provocada pelas profundas transformações ocurridas com a Revolução Mexicana.

Além do mais, vemos que o indígena começa a entrar em cena na narrativa mexicana.

Sua estreia, como abordamos no primeiro capítulo, se deu na primeira fase do

romantismo mexicano, no entanto, como apontou Imbert (2010a), sua caracterização

87 “-¿Por qué pelean ya, Demetrio? / Demetrio, las cejas muy juntas, toma distraído una piedrecita y la arroja al fondo del cañón. Se mantiene pensativo viendo el desfiladero, y dice: / - Mira esa piedra como ya no se para…” (Tradução nossa) 88 No original: “si uno trae un fusil en las manos y las cartucheras llenas de tiros, seguramente que es para pelear. ¿Contra quién? ¿En favor de quienes? ¡Eso nunca le ha importado a nadie!” (Tradução nossa) 89 No original: “crítica del espectro histórico que se diseña sobre el conjunto de sus personajes”. (Tradução nossa) 90 “de cima” (Tradução nossa) 91 No original: “se acaba la revolución, y se acabó todo”. (Tradução nossa) 92 No original: “Gracias a él se ha podido escribir novelas modernas en México”. (Tradução nossa)

63

era idealista e afastada da realidade. Com o realismo e o modernismo, entrou em cena

a Cidade do México, surgiram narrativas cosmopolitas. Com o advento da Revolução

Mexicana a faceta rural e indígena cobrou sua presença, entretanto ocorreu de forma

paulatina. Já no próximo romance a ser estudado veremos que lo mexicano aparece

aprofundado em Los de abajo, mas verdadeiramente foi com Juan Rulfo que o

romance surgiu com sua carga máxima.

4.2 Al filo del agua, de Agustín Yáñez: a obra inaugural da Narrativa Mexicana Moderna

La conformidad es la mejor virtud en estas gentes que, por lo general, no ambicionan más que ir viviendo, mientras llega a la hora de una buena muerte. Entienden la existencia como un puente transitorio, a cuyo cabo todo se deja.

Agustín Yáñez (2008, p.12)

4.2.1. Poéticas da Prosa Mexicana Moderna

Vimos que o romance Los de abajo de Mariano Azuela deu início à Narrativa da

Revolução Mexicana, com estilo predominante do realismo crítico. No entanto, é com

Agustín Yáñez (1904-1980) e seu romance mestre Al filo del água, publicado em 1947,

que se inauguram as bases da Narrativa Mexicana Moderna. Como estudamos na

parte introdutória deste capítulo, Armando Pereira (2004) divide em duas etapas esse

período literário: Narrativa da Revolução e Narrativa da Pós-revolução, esta se

iniciando a partir de 1940 e tendo justamente uma das obras precursoras a Al filo del

agua. Como apontou este crítico, com o passar do tempo o realismo crítico vai

decaindo do gosto literário dos novos narradores, que passam a incorporar novas

técnicas narrativas. Por isso, expõe Carlos Fuentes (2011), encontramos uma ruptura

definitiva do realismo, além da implementação de inovadoras técnicas narrativas,

como o monólogo narrado e as múltiplas vozes narrativas que dão uma visão coletiva

do todo, mas nunca definitiva.

64

Averiguando a aplicabilidade do romance Al filo del agua na Narrativa da

Revolução Mexicana, retornaremos às caraterísticas dadas por Molano (2010): (i)

possui um tom parcialmente realista, apenas quando a narrativa se encontra em

terceira pessoa, o que nem sempre ocorre; (ii) o livro apresenta uma estética

fragmentada, mas no que tange ao psicológico, não nas ações dos personagens; (iii)

não há tratamento original da linguagem, apenas de estratégias discursivas; (iv) a obra

possui traços vanguardistas ao usar recursos como a refletorização; (v) e há a

afirmação nacionalista porque esta obra “é a pedra de fundação de uma topografia

espiritual do México” 93 (DOMÍNGUEZ, 1996, p.1014).

Como podemos perceber no enumerado acima, o romance de Agustín Yáñez já

não se encaixa perfeitamente nos padrões da Narrativa da Revolução. Por isso com

Yáñez temos o início da intitulada Narrativa Mexicana Moderna, como apontam os

teóricos e críticos (Oviedo, 2001; Imbert, 2010; Molano, 2010; Fuentes, 2011).

Portanto, cabe-nos então caracterizar o que se entender por Narrativa Mexicana

Moderna e quais as suas características. Primeiramente, segundo o nosso

posicionamento crítico, o que Pereira (2004) denomina como Narrativa da Pós-

revolução nós qualificamos como Narrativa Moderna. As características apontadas por

Pereira (2004) vão de encontro com as expostas pelos críticos supracitados. Por isso,

retornaremos um tema apontado por Pereira (2004): estas narrativas foram escritas

após a fase sangrenta da revolução, como foi o caso de Los de abajo. A Revolução

Mexicana apenas serviu apenas de pano de fundo para o desenvolvimento de temas

psicológicos e filosóficos.

Portanto, há que repensar nas bases que sedimentam a construção da

denominada Nova Narrativa Mexicana, que ainda de acordo com Molano (2010) são:

(i) novo papel do narrador; (ii) pontos de vistas diversos; (iii) monólogo interior; (iv)

refletorização; (v) fluxo de consciência; (vi) jogo com o tempo narrativo; (vii)

fragmentação da história narrada; (viii) inclusão do fantástico e do simbólico; (ix)

justaposição de planos narrativos e (x) papel ativo do leitor. No que se refere à obra

que comentaremos de Yáñez, nem todos os pontos serão abordados, mas é a obra que

93 No original: “es la piedra de fundación de una topografia espiritual de México”. (Tradução nossa)

65

influenciou as futuras narrativas modernas, cujo destaque está para a obra de Juan

Rulfo que preencherá todos os requisitos acima mencionados.

O realismo (crítico ou não) deixa de ser um recurso empregado, ao menos na

narrativa de Yáñez e em futuras obras da Narrativa Mexicana Moderna. Um dos

melhores exemplos em El filo del agua se encontra no capítulo cinco que pertence à

parte “Los Días Santos”, no qual o escritor lança mão de uma técnica narrativa

moderna: o monólogo narrado. Entendemos esse procedimento como o ato do mundo

psíquico do personagem, expresso na forma de narrador. Não é o narrador contando

ao leitor o que se passa na mente do protagonista, mas o narrador dando voz ao

personagem e ele próprio relatando-nos sua psique. De acordo com o crítico Ronaldes

de Melo e Souza (2010, p.11), “o monodiálogo é a forma ficcional em que se

representa o drama do personagem cindido consigo mesmo. A enunciação

monodialógica de um eu dividido entre duas vozes que lhe tumultuam a interioridade

anímica e o empuxam em direções contrárias”.

No mencionado capítulo, o povoado se encontra em sua liturgia católica que

rememora os atos bíblicos da Semana Santa culminando com a crucificação de Cristo

na Sexta-Feira da Paixão e a ressurreição no Domingo de Páscoa. Um dos personagens,

Luis Gonzaga, foi suspenso dessa festividade pelo padre Abundío por ter participado

de uma reunião espírita. Gonzaga, como ex-seminarista, irritado por não poder

participar da liturgia, realiza ele próprio na sua casa a encenação religiosa. Mas antes

de realizar essa cerimônia, o personagem se volta contra o padre: “Acusarei-o (…). E

agitarei o povo contra ele. Chega de tirania clerical!. Chega de obscurantismo!” 94

(YÁÑEZ, 2008, p.98).

O narrador, cindido sobre si mesmo, não sabe o que fazer, o que pensar e como

proceder. Mas ao fim, acaba ele mesmo repetindo a missa, o que demonstra que no

povoado por mais que se faça a crítica aos eventos, acaba-se por perpetuar a mesmice.

Entretanto, o narrador não nos conta essa parte da história, ela é contada pelas

orações em latim e ações imitativas realizadas por Luis Gonzaga. Temos uma narrativa

filtrada pelas ações e pensamentos de um personagem (YÁÑEZ, 2008, p.112):

94 No original: “¡Lo acusaré (...). Y agitaré al pueblo en su contra. ¡Basta de tirania clerical! ¡Basta de oscurantismo!”(Tradução nossa)

66

Ele gostaria de ir aos Ofícios, mas não dará seu braço a torcer. E se contentará em ler e imaginar a Missa dos Pré-santificados. Flectamus genua. Que sobre todas as outras ambicionava celebrar – talvez pelo seu ritual extraordinário –, quando pretendeu o sacerdócio. Levate. E ainda o faz pretendê-lo. As velas amárelas, apagadas; o altar, desnudo. Flectamus genua. O sacerdote com os ministros, profundamente prostados. Levate. No silêncio fúnebre, um canto surdo, sem título, sem resposta. Flectamus genua. Levate. E o diálogo de ministros e coro: Passio Domini Nostri Iesu Christi secundun Ioanem. Imitando as vozes, Luis canta: - Quem quaeritis? – Reponderunt ei. – Iesum Nazarenum…

95

Por tal motivo, José Miguel Oviedo (2001, p.504) em seu estudo afirma que em

Al filo del água “a ação externa, um tanto relaxada, importa menos que o que ocorre

dentro dos protagonistas” 96. O drama que se representa em suas memórias não é

individual, mas sim social. No povoado retratado por Agustín Yáñez, a ação quase não

transcorre, diferente do romance aqui anteriormente estudado, em que as ações e

deslocamentos narrativos têm estrita relação com as atitudes do protagonista. Mais

que drama de ações, o que busca Yáñez é o drama de paixões, ou seja, de

sentimentos. Para que isso seja possível, o escritor recorre à técnica narrativa da

refletorização.

Segundo o estudo de Ronaldes (2010, p.189), “a mediação dialética requer a

interação de dois mediadores, que são o narrador e o refletor ou o personagem que

reflete os eventos”, ou seja, o narrador anula-se na narrativa, não emite opinião,

apenas empresta sua voz de contador para o personagem contar os eventos segundo

sua ótica. Na obra Al filo del agua, encontramos capítulos narrados em terceira pessoa

(narrador) e em primeira pessoa (personagem). Não se pode dizer que o narrador é um

dos personagens da narrativa porque os discursos em primeira pessoa compreendem

mais de um personagem, às vezes a mudança de perspectiva se dá em um mesmo

95 No original: “Le gustaría ir a los Oficios; pero no dará su brazó a torcer. Y se contenta con leer e imaginar la Misa de Presantificados. Flectamus genua. Que sobre

todas las otras ambicionaba celebrar – quizá por su rito extraordinario –, cuando pretendió el sacerdocio. Levate. Y aún lo hace pensar en pretenderlo. Las velas amarrillas, apagadas; el altar, desnudo. Flectamus genua. El sacerdote con los ministros, profundamente prostados. Levate. En el silencio fúnebre, un canto sordo, sin título, sin respuesta. Flectamus genua. Levate. Y el diálogo de ministros y coro: Passio Domini Nostri Iesu Christi secundun Ioanem. Imitando las voces, Luis canta: -

Quem quaeritis? – Reponderunt ei. – Iesum Nazarenum…”. (Tradução nossa)

96 No original: “la acción externa, un tanto laxa, importa menos que lo que ocurre dentro de los protagonistas”. (Tradução nossa)

67

capítulo. Tal é o caso do capítulo seis que compõe a terceira parte da narrativa

intitulada “Ejercicios de Encierro” 97. Nesta parte da obra os personagens se preparam

para o ritual católico da Semana Santa. Assim, inicia-se o capítulo VI da mencionada

obra de Yáñez (2008, p.58):

Na segunda-feira, o dia todo meditaram no pecado; na terça-feira, na morte; na quarta-feira, no juízo final; na quinta-feira, no inferno; na sexta-feira, na paixão do Nosso Senhor e na parábola do filho pródigo, que foi – esta – da última distribuição da noite. Se levantavam às cinco e media da manhã, entrevam na capela para a meditação, às quinze para às seis, e seguia a missa [...]

98

Como percebemos, todo este trecho está narrado em terceira pessoa: o

narrador nos conta como os personagens se comportam, e como pensam e agem. Em

páginas posteriores o narrador segue descrevendo as emoções dos personagens:

“Passada a reação de pavor, o senhor Román Capistrán, já bem acordado, sentiu-se

completo” 99 (YÁÑEZ, 2008, p.61). Entretanto, umas linhas mais e percebemos a

mudança de foco narrativo, porque de uma narrativa em terceira pessoa (objetiva)

passamos à voz narrativa plural (nós) e, finalmente, chega à primeira pessoa

(subjetiva), como vemos neste fragmento (YÁÑEZ, 2008, p.63):

Era um dia de domingo – pensa, examinando-se, Francisco Legaspi –; seriam como as três da tarde, hora de voltar ao rancho, quando Pedrinho Ruiz, o tropeiro, nos encontrou, que vinha ao parecer pela rua San Antonio e nos disse que melhor déssemos uma volta pela rua de cima, porque aqui, na esquina do Pabellón Nacional estava Gumersindo bêbado, muito impertinente, apontando com uma pistola, que ninguém haveria de passar por ali, mais que qualquer outro motivo, pela curiosidade, não lhe dei importância e segui meus passos, ruas acima; não demorei em ouvir os cantos e os gritos desentoados do bêbado [...]

100 [grifos nossos]

97 “Exercícios de Fechamento” (Tradução nossa) 98 No original: “El lunes, todo el día, meditaron en el pecado; el martes, en la muerte; el miércoles, en el juicio; el jueves, en el infierno; el viernes, en la pasión de Nuestro Señor y en la parábola del hijo pródigo, que fue objeto – ésta – de la última distribución de la noche. / Se levantaban a las cinco y media de la mañana, entraban a capilla, para la meditación, a los tres cuartos para las seis, y seguía la misa […]”

(Tradução nossa)

99 No original: “Pasada la reacción de pavor, don Ramón Capistrán, ya bien despierto, se sentió colmado” (Tradução nossa)

68

Percebemos claramente a mudança de perspectiva no ato de narrar marcada

pelos grifos que destacamos: pronome pessoal do caso oblíquo (nos) e verbos

conjugados na primeira pessoa do singular (“hice”, “seguí” e “tardé”). Temos, então, a

narrativa pelo viés do narrado e pelo viés dos personagens. Uma leitura depurada da

obra nos aponta para uma conclusão: quando o escritor quer expressar a psique do

personagem o realiza através da refletorização e quando o escritor quer narrar a

memória coletiva do povoado lança mão do narrador em terceira pessoa. Por isso

afirma Oviedo (2001, p.504): “o narrador vai criando um verdadeiro grande

personagem coletivo: o povoado” 101.

Vimos até aqui que Agustín Yáñez introduz técnicas novas à narrativa que se

produzia até então. A mudança foi drástica, porque quebrou todos os laços que havia

com o realismo, não há mais objetividade, e sim o psicodrama dos personagens de Al

filo del agua, dos personagens individuais e do personagem coletivo: o povoado. Para

conseguir tal fato, Yáñez utiliza dois procedimentos inovadores e inerentes à prosa

moderna: (i) o monólogo narrado ou monodiálogo e (ii) a refletorização.

4.2.2. A topografia espiritual em Al filo del agua

Uma vez já esclarecido dois dos grandes procedimentos técnicos usados por

Agustín Yáñez, vamos ao estudo da trama em si de Al filo del agua. O próprio autor

explica o título da obra em um espécie de prólogo do livro: “Al filo del agua é uma

expressão camponesa que significa o momento de iniciar a chuva, e – em sentido

100 No original: Era un día de domingo – piensa, examinándose, Francisco Legaspi -; serían como las tres de la tarde, hora de volver al rancho, cuando Pedrito Ruiz, el arriero, nos encontró, que venía de cómo por San Antonio y nos dijo que mejor diéramos un rodeo por la calle de arriba, porque acá, en la esquina del Pabellón Nacional estaba Gumersindo, borracho, muy impertinente, moneando con una pistola, que nadie había de pasar por allí, más que por todo, por la curiosidad, no le hice caso a Pedrito y seguí mis pasos, calles arriba, no tardé en oír los cantos y los gritos desentonados del borracho […]” (Tradução nossa) 101 No original: “el narrador va creando un verdadero gran personaje colectivo: el pueblo”. (Tradução nossa)

69

figurado, muito comum – a iminência ou o princípio de um evento” 102. Esta explicação

nos é fundamental para poder entender a poética da história narrada. Mencionamos

anteriormente que as ações realizadas pelos personagens são mínimas: todo o livro

conta, fundamentalmente, a história da liturgia católica arcaica de um povoado

perdido no tempo e no espaço: “esse povoado sem categoria, de estranho nome e sem

referência nos mapas da República” 103 (YÁÑEZ, 2008, p.48).

O povoado se encontra perdido no tempo porque na verdade o tempo não

passa. O ar que paira sobre o povoado, graças à mente criadora de Yáñez, é que o

povoado está na iminência de algo que nunca acontece e por tal motivo as ações dos

personagens marcam um grande ciclo que se repetem ad infinitum. Por isso na

primeira parte do livro, intitulada “Acto Preparatorio”, encontramos as seguintes

definições para os personagens do livro (2008, p.3-13):

Povoado de mulheres enlutadas. [...] Pessoas e ruas abortas. [...] No coração dos aldeãos o igual hermetismo. [...] Povoado sem festa. [...] Povoado fechado. Povoado de mulheres enlutadas. Povoado solene. (...) Povoado conventual. [...] ouvi-lhes cantar em corda de gemido uma canção profana. [...] Povoado de eterna quaresma. [...] Povoado de almas. [...] Povoado de tremidas vozes. [...] Povoado seco.

104

Há um quê de romantismo no fragmento supracitado porque nele encontramos

uma correspondência entre homem e paisagem, especificamente no romance de

Yáñez, entre a população e o povoado. O enredo está ambientado em um povoado do

estado de Jalisco a inicio do ano de 1909, quando estoura a Revolução Mexicana. No

entanto, a população se encontra alheia a esses fatos, porque, como afirmamos

anteriormente, o tempo não passa e na mentalidade coletiva os personagens se

102 No original: “Al filo del agua es una expresión campesina que significa el momento de iniciarse la lluvia, y – en sentido figurado, muy común – la inminencia o el principio de un suceso”. (Tradução nossa) 103 No original: “ese pueblo sin categoría, de extraño nombre y sin referencia em los mapas de la República”. (Tradução nossa) 104 No original: “Pueblo de mujeres enlutadas. [...] Gentes y calles absortas. [...] En el corazón de los aldeaños el igual hermetismo. [...] Pueblo sin fiestas. [...] Pueblo cerrado. Pueblo de mujeres enlutadas. Pueblo solemne. [...] Pueblo conventual. [...] se les oye cantar en cuerda de gemido una canción profana. [...] Pueblo de eterna cuaresma. [...] Pueblo de ánimas. [...] Pueblo de tembladas voces. [...] Pueblo seco.”. (Tradução nossa).

70

encontram no século XIX porque temem a invasão dos liberais contra a Igreja Católica

da época, por causa das Leis de Reforma realizada por Benito Juárez entre 1854 e 1876

(Zoraida, 2010): “vai correndo o rumor de que vêm as tropas do governo a vigiar o

cumprimento das Leis de Reforma e impedir as procissões. O povoado se excita, queria

opor-se a mão armada” 105 (YÁÑEZ, 2008, p.105).

Como nada é eterno, por mais que possa parecer, finalmente irrompe algo

novo nesse povoado esquecido por todos: a invasão das tropas revolucionárias. Com

essa invasão, que acontece justamente no último capítulo, termina a narrativa.

Justamente porque para este autor não importam as ações em si, mas os dramas

internos dos personagens. Em Al filo del agua não importa o que acontecerá com o

povoado com a invasão das tropas, o que importa é a experiência litúrgica dos

capítulos anteriores e como isso se reflete em seus espíritos. Uma era chega ao fim e

outra começa.

Recapitulando o estudo de Al filo del agua, Agustín Yáñez rompe de vez o

realismo porque a narrativa se centra no drama das paixões. Para conseguir tal feito,

este escritor lança mão da técnica narrativa da refletorização e do monodiálogo. A

liturgia católica rege a vida dessa pequena população esquecida no espaço e no

tempo. Como Azuela, não se trata de um romance cosmopolita, trata-se de traçar uma

cartografia espiritual dos povos afastados da metrópole e como a fé, muitas vezes,

está repleta de paganismo, como relatado em algumas partes da obra de Yáñez.

Novamente temos a mexicanidade como tema estrutural de um livro, representada

nesta obra pelo sincretismo religioso da época colonial. Pouco a pouco os narradores

vão adentrando mais fundo no coração do mexicano: dos guerrilheiros aos povoados

ancestrais. Neste ambiente surgirá a obra que Carlos Fuentes (2011) qualifica como o

melhor romance mexicano de todos os tempos: Pedro Páramo, de Juan Rulfo.

105 No original: “va corriendo el rumor de que vienen tropas del gobierno a vigilar el cumplimiento de las Leyes de Reforma e impedir las procesiones. El pueblo se excita, quisiera oponerse a mano armada”. (Tradução nossa)

71

4.3 Pedro Páramo e a mitografia rulfiana da morte

Cálmase. Ya lo sentirá más fuerte cuando lleguemos a Comala. Aquello está sobre las brasas de la tierra, en la mera boca del Infierno. Juan Rulfo (2005, p.8)

A complexidade da obra de Juan Rulfo (1918-1986) não será abordada aqui em

sua plenitude, apenas iremos situá-la no campo da Narrativa Mexicana Moderna,

averiguar que pontos ele herda de seu antecessor Agustín Yáñez, cuja obra estudamos

na seção anterior, e quais as suas principais técnicas empregadas pela geração futura,

mais especificamente a de Carlos Fuentes, a quem estudaremos detalhadamente na

terceira parte deste trabalho. José Miguel Oviedo (2002, p.68) define Rulfo como “uma

figura absolutamente central no romance mexicano deste século e um dos grandes

mestres da narrativa hispano-americana” 106. E Rulfo publicou apenas duas obras: o

livro de contos El llamo en llamas (1953) e o romance Pedro Páramo (1955). Faremos

um pequeno estudo da última obra mencionada.

As obras de Juan Rulfo se encaixam perfeitamente no perfil elaborado por

Molano Nucamendi (2010) a respeito da Narrativa Mexicana Moderna: (i) em Pedro

Páramo encontramos um novo papel do narrador, que na verdade são dois

narradores: um morto e um desconhecido; (ii) pontos de vistas diversos, na verdade

temos confrontamentos provocados pela refletorização narrativa; (iii) monólogo

interior, principalmente no que se refere às inquietudes de Pedro Páramo e de seu

filho Juan Preciado; (iv) refletorização porque a narrativa se divide em dois eixos

narrativos distintos; (v) fluxo de consciência que quebra com a linearidade narrativa;

(vi) jogo com o tempo narrativo uma vez que Rulfo utiliza recursos como o flashback;

(vii) fragmentação da história narrada, pois como mencionamos, há dois eixos centrais;

(viii) inclusão do fantástico e do simbólico, inclusive essa é uma das marcas principais

da poética narrativa rulfiana; (ix) justaposição de planos narrativos, que em Pedro

Páramo se realiza em dois eixos temporais: presente e passado; e (x) papel ativo do

leitor que necessita unir as duas narrativas contadas.

106 No original: “una figura absolutamente central en la novela mexicana de este siglo y uno de los grandes maestros de la narrativa hispanoamericana”. (Tradução nossa)

72

Em Juan Rulfo, destaca Oviedo (2005, p.69), temos “o fim do romance

revolucionário como crônica e com uma posição ou julgamento histórico claramente

estabelecido” 107. Diferente de Yáñez, em que as ações são menos importantes que as

emoções, em Pedro Páramo temos os dois elementos completando-se porque na

verdade se trata de duas narrativas a princípio autônomas, mas co-dependentes, uma

narrativa nutrindo a outra como a famosa imagem de ouroboros. Em seguida

estudaremos os procedimentos técnicos e a estrutura do romance Pedro Páramo.

4.3.1. Os dois eixos narrativos: a história do Pai e do Filho

Uma primeira pergunta fazemos a respeito do livro: por que se intitula “Pedro

Páramo”? A resposta é simples: o livro está composto de sessenta e nove capítulos que

se dividem em dois eixos narrativos: a história de Juan Preciado e a história de Pedro

Páramo. Apesar de o livro iniciar-se com a história de Juan Preciado, o principal foco

narrativo é de Pedro Páramo, pai de Juan Preciado, isso porque a narrativa de Pedro

Páramo engloba um total de quarenta e cinco capítulos e a narrativa de Juan Preciado

abarca um total vinte e quatro capítulos.

Examinemos um por um os procedimentos técnicos empregados por Juan Rulfo

em Pedro Páramo. Primeiramente analisaremos o narrador desta obra. Diferente de

Mariano Azuela e Agustín Yáñez, Juan Rulfo utiliza dois narradores que contam duas

histórias distintas, mas que por sua vez se alimentam reciprocamente. Conforme já

mencionamos anteriormente, vinte e quatro capítulos é a história de Juan Preciado e

quarenta e cinco narram a trama de Pedro Páramo.

O primeiro narrador nos é conhecido: “Vim a Comala porque me disseram que

aqui vive meu pai, um tal Pedro Páramo” 108 (RULFO, 2005, p.5), essas são as primeiras

palavras do romance. A partir desse fragmento averiguamos uma narrativa em

primeira pessoa, que neste caso engloba o narrador da história e o protagonista. Trata-

se da história de Juan Preciado que está à procura de seu pai, Pedro Páramo. Toda essa

107 No original: “el fín de la novela revolucionaria como crónica y con una posición o juicio histórico claramente establecidos”. (Tradução nossa) 108 No original: “Vine a Comala porque me dijeron que acá vivía mi padre, un tal Pedro Páramo”. (Tradução nossa)

73

narrativa se encontra contada desde a perspectiva do presente: o narrador Juan

Preciado não nos conta os eventos narrados ao mesmo tempo em que eles ocorrem,

mas tempos depois: Juan Preciado realiza um exercício de rememorização.

Realizando uma leitura linear do romance, como se fosse uma primeira leitura,

no sexto capítulo do livro encontramos eventos narrados distintos ao que contava Juan

Preciado, isso ocorre porque houve a mudança de narrador e de eixo narrativo: nesse

momento o que se conta é a história de Pedro Páramo e eventos anteriores aos

narrados por Juan Preciado, porque Pedro Páramo já havia falecido, isso foi uma das

primeiras coisas que descobriu Juan Preciado ao chegar em Comala. Porém, essa

informação não nos é dada diretamente, porque o primeiro recorte narrativo de Pedro

Páramo em Juan Preciado ocorre entre os capítulos seis e oito, e justamente na

penúltima linha do oitavo capítulo temos a pista de a quem se refere essa narrativa: “-

Pedro! – lhe gritaram – Pedro!” 109 (RULFO, 2005, p.17).

Como podemos perceber no fragmento anterior, Pedro Páramo não conta a sua

história, essa segunda narrativa se dá em terceira pessoa, ou seja, o narrador e o

personagem são entidades literárias distintas. Aqui Juan Rulfo utiliza elementos

técnicos modernos como o monólogo narrado 110, como averiguamos em “Pensava em

você, Susana. Nos parques verdes” 111. O narrador abre espaço para a projeção do

pensamento do personagem, sabemos o que ele sente ou pensa por sua própria voz.

Igualmente observamos o uso da refletorização112 que se torna evidente porque temos

dois eventos distintos contados por narradores diferentes.

Em Pedro Páramo, se por um lado, se observa o ponto de vista de Juan

Preciado sobre Comala, uma narrativa próxima do presente; por outro lado se observa

o ponto de vista de Pedro Páramo sobre esse mesmo povoado, uma narrativa do

passado. Os procedimentos supracitados criam pontos de vistas diversos, em que se

tentam complementar a realidade. Uma versão abrangente da realidade será um dos

temas importantes para a prosa a partir de 1950 113.

109 No original: “-¡Pedro! – le gritaron -. ¡Pedro!”(Tradução nossa) 110 Cuja breve explicação teórica apresentamos no apartado anterior. 111 No original: “‘Pensaba en ti, Susana. En las lomas verdes’”. (Tradução nossa) 112 No aparto anterior fizemos uma discussão sobre o referido procedimento. 113 No referido período teremos a escrita dos chamados romances totais, como qualifica Sosnowski (2010)

74

O fluxo de consciência é o principal responsável pela ruptura da linearidade

narrativa, porque a consciência narrativa dos dois narradores aponta para direções

opostas. Enquanto na narrativa contada por Juan Preciado temos a história do

protagonista e a sua procura por saber histórias do seu pai em Comala, na narrativa

contada em terceira pessoa temos a história de como Pedro Páramo tornou-se cacique

de Comala, as atrocidades cometidas, a má-educação dada a seu filho Miguel Páramo

e como Pedro Páramo se apaixonou pela louca Susana.

Justamente por usar dois narradores que contam duas histórias diferentes,

Juan Rulfo consegue realizar um jogo com o tempo narrativo. Apesar das duas

narrativas se situarem no passado, a história de Pedro Páramo se encontra anterior à

de Juan Preciado e por causa disso cria-se o efeito de flashback. Se vemos por outro

ângulo, a história de Pedro Páramo é a predominante na obra e, por tal detalhe, o livro

assim se intitula. Por tanto, ao invés de olharmos a narrativa de Pedro Páramo como

flashback por ter como ponto de partida a história de Juan Precido, podemos fixar

como eixo central a narrativa de Pedro Páramo e assim a história de Juan Preciado

torna-se flashforward, ou seja, ao invés de mostrar fatos passados, apresenta fatos

futuros. Constata-se, assim, que em Pedro Páramo temos a justaposição de planos

narrativos.

Cabe ao leitor associar as duas histórias, conectá-las e averiguar que no fundo

se tratam da mesma história: uma narrativa é espelho da outra, não obstante, apenas

se entende uma ao olhar a outra. Juan Rulfo não nos apresenta uma visão total da

realidade narrativa, nos apresenta de forma fragmentada em dois eixos narrativos.

Essa novidade de Rulfo revoluciona a Narrativa Mexicana Moderna, que já havia se

iniciado com Agustín Yáñez na obra já estudada Al filo del agua. Passemos agora ao

estudo da interdependência narrativa das duas histórias e constataremos que o mito é

o elo de união de ambas.

4.3.2. A mitografia da morte

Lo que pasa con estos muertos viejos es que en cuanto les llega la humedad comienzan a moverse. Y despiertan.

Juan Rulfo (2005, p.84)

75

Muitos críticos, tais como Christopher Domínguez (1996), José Miguel Oviedo

(2005), Anderson Imbert (2010b), Molano Nucamendi (2010) e Carlos Fuentes (2011),

apontam para um dado em comum na obra de Juan Rulfo: a tentativa de resgate dos

mitos pré-hispânicos. Não só como mera menção, mas também empregando-os de tal

forma que os mitos fazem parte da gênese do livro. No caso de Pedro Páramo, a

simbiose entre as duas narrativas se dá pelo mito. Se a história de Juan Preciado e de

Pedro Páramo, em um primeiro momento, são os dois eixos narrativos fundamentais,

em um estudo mais aprofundado verifica-se que os dois verdadeiros eixos centrais do

livro são o mito e a linguagem (Fuentes, 2011).

Como esclarece Oviedo (2005), na obra Pedro Páramo encontramos duas

inovações técnicas: (i) a fragmentação do tempo narrativo e (ii) a percepção

mistificadora do mundo real. As duas se complementam e assim podemos estabelecer

um sentido narrativo à obra. Por isso afirma Carlos Fuentes (2011, p.135): “[Pedro

Páramo] é um romance extraordinário, entre outras coisas, porque se gera a si

mesmo, como romance mítico” 114. O fio condutor da narração é o mito, mas um mito

de vida e de morte, de aniquilação e renovação, mito que se remonta ao imaginário

pré-hispânico, como vemos na obra maia Popol Vuh (Anônimo, 2010) e na lenda dos

Cinco Sóis Astecas (Franch, 2008). A narrativa em Pedro Páramo possui ar fúnebre, por

tal razão José Miguel Oviedo (2005) qualifica a obra de uma narrativa ultratumba e,

por outro, lado Fuentes (2011, p.127) declara que “Para Juan Rulfo a cronotopia

americana, o encontro do tiempo e do espaço, não é rio nem selva nem cidade nem

espelho: é uma tumba” 115.

Deve-se esclarecer que os mitos presentes na referida obra não somente se

referem à cosmovisão pré-colombiana, mas também a diversos outros mitos de outras

culturas. José Miguel Oviedo (2005) destaca algum deles: ao principiar o romance,

temos a história de Juan Preciado em busca do seu pai Pedro Páramo. Esta cena nos

recorda um dos arquétipos clássicos - a Telemaquia de Odisséia – cujo tema se centra

114 No original: “[Pedro Páramo] es una novela extraordinaria, entre otras cosas, porque se genera a sí misma, como novela mítica”. (Tradução nossa) 115 No original: “Para Juan Rulfo la cronotopía americana, el encuentro de tiempo y espacio, no es río ni selva ni ciudad ni espejo: es una tumba”. (Tradução nossa)

76

na busca de Telêmaco por seu pai Ulisses. A citação que abrimos o primeiro tópico do

estudo da obra rulfiana, narra a ida de Juan Preciado a Comala, que na descrição se

apresenta como a boca do inferno nos faz lembrar de outro mito: a descida de Orfeu

ao inferno. Ainda nos dois primeiros capítulos há a presença do personagem tropeiro

que conduz o protagonista Juan Preciado a Comala, ou seja, ao “inferno”, à

semelhança de Virgilio em A Divina Comédia.

Como o nosso trabalho se centra no imaginário pré-hispânico como

composição literária e símbolo de modernidade narrativa, analisaremos as relações

que há em Pedro Páramo com os mitos pré-hispânicos. Condensando a história do

livro, chegamos a um paradoxo: o que dá vida aos personagens narrados é a morte. Na

história de Pedro Páramo os personagens estão vivos e na história de Juan Preciado

estão mortos, mas mortos com vida. E nem o narrador-protagonista Juan Preciado

escapa à morte: ele conta a sua história à sua amiga vizinha de tumba Dorotea, ambos

mortos. Um personagem é fundamental nas duas histórias – na de Juan Preciado e de

Pedro Páramo –: o murmúrio.

Poderíamos classificar o murmúrio como um elemento, mas se assim fosse

também deveríamos denominar igualmente o povoado que estudamos em Al filo del

agua. Se nesta obra a população conforma um personagem coletivo, como Oviedo

(2001) mencionou, no romance analisado de Juan Rulfo, à semelhança, podemos

classificar o murmúrio, porque é ele quem interage, influencia e direciona as ações dos

personagens. O murmúrio nada mais é que a lamúria dos mortos: “Parece um uivo

humano, mas não para ser de nenhum humano” 116 (RULFO, 2005, p.93).

Também constatamos, no décimo primeiro capítulo do livro e no capítulo de

número sete da narrativa de Juan Preciado, um curto diálogo entre o narrador-

protagonista e a personagem Eduviges que lhe oferecera sua casa para acolhê-lo

(RULFO, 2005, p.26):

116 No original: “Parece ser un aullido humano, pero no parece ser de ningún ser humano” (Tradução nossa)

77

- Escutou alguma vez a lamúria de um morto?, perguntou a mim - Não, dona Eduviges. - Melhor assim.

117

Ironicamente, a conversa estabelecida entre Juan Preciado e Dona Eduviges já é

uma conversa com os mortos. Entretanto, só saberemos desse detalhe em capítulos

posteriores, mais especificamente no capítulo dezesseis do livro e no nove da história

de Pedro Páramo em que o padre Rentería se lembra de um fato passado (RULFO,

2005, p.33): “Ainda tenho frente aos meus olhos o olhar de María Dyada, que veio me

pedir que salvasse a sua irmã Eduviges” 118. A salvação nesse caso é da alma, porque

Eduviges havia se suicidado. Os murmúrios ou ecos dos mortos se fazem sentir por

todo Comala, como percebe a personagem Damiana Cisneros, já morta, em uma

conversa com Juan Preciado (RULFO, 2005, p.44):

- Este povoado está cheio de ecos. Tal parece que se estivessem presos no oco das paredes o debaixo das pedras. Quando se caminha, sente-se que vão te pisando os passos. Ouve-se lamúria. Risadas. Umas risadas já muito velhas, como cansadas de rir. E as vozes já desgastadas pelo uso. Tudo isso se ouve. Penso que chegará um dia em que estes sons se apaguem.

119

Ao longo da obra, os murmúrios passam a ser cada vez mais frequentes ao

ponto de já ser possível escutar músicas: “Ruído. Vozes. Rumores. Canções distantes”

120 (RULFO, 2005, p.49). O personagem-narrador Juan Preciado, de tanto interactuar

com esses murmúrios, enfim crê realmente nos fantasmas. Não apenas isso, mas a

interactuação passa a outro nível como se observa no capítulo trinta e cinco do livro

que é o capítulo dezoito da narrativa de Juan Preciado (RULFO, 2005, p.61):

117 No original: “- ¿Has oído alguna vez el quejido de un muerto?, me preguntó a mí. / - No, doña Eduviges. / - Más te vale”. (Tradução nossa) 118 No original: “Todavía tengo frente a mis ojos la mirada de María Dyada, que vino a pedirme salvara a su hermana Eduviges”. (Tradução nossa) 119 No original: “Este pueblo está lleno de ecos. Tal parece que estuvieran encerrados en el hueco de las paredes o debajo de las piedras. Cuando caminas, sientes que te van pisando los pasos. Oyes crujidos. Risas. Unas risas ya muy viejas, como cansadas de reír. Y voces ya desgastadas por el uso. Todo eso oyes. Pienso que llegará el día en que estos sonidos se apaguen”. (Tradução nossa) 120 No original: “Ruido. Voces. Rumores. Canciones lejanas” (Tradução nossa)

78

Saí à rua para procurar ar, mas o calor que me perseguia não se descolava de mim. É que não havia ar, só a noite entorpecida e quieta, acalorada pela canícula de agosto. Não havia ar. Tive que absorver o mesmo ar que saía de minha boca, o detendo com as mãos antes de que fosse embora. Sentia-o ir e vir, cada vez menos; até que se fez tão fino que se filtrou em meus dedos para sempre. Digo para sempre.

121

O narrador-protagonista desmaia e quando recobra a consciência, já se

encontra enterrado em um túmulo ao lado de Dorotea, a quem lhe conta a sua

história. Portanto, só percebemos, na metade do livro, a verdadeira história

escamoteada pela primeira leitura do romance: Juan Preciado, morto e vivo ao mesmo

tempo, conta a sua história a sua vizinha de túmulo, Dorotea (RULFO, 2005, p.62):

- (...) De não haver tido ar para respirar essa noite de que falas, nos haveriam faltado forças para te levar e além para te enterrar. E você já percebe, te enterramos. - Tem razão, Doroteo. Você disse que se chama Doroteo? - Dá o mesmo. Embora meu nome seja Dorotea. Mas dá o mesmo. - É certo, Dorotea. Mataram-me os murmúrios.

122

Por que há seres do outro mundo viventes? Quem são eles? A explicação se

encontra no segundo eixo narrativo do livro: a história de Pedro Páramo.

Superficialmente, o que se conta aqui é a história do amor irrealizado entre o coronel

123 de Comala, Pedro Páramo, e sua amada Susana. Nestes fragmentos também

sabemos sobre a mãe de Juan Preciado, Dolores Preciado, mas que apenas Pedro

121 No original: “Y es que salí a la calle para buscar el aire; pero el calor que me perseguía no se despegaba de mí. / Y es que no había aire; sólo la noche entorpecida y quieta, acalorada por la canícula de agosto / No había aire. Tuve que sorber el mismo aire que salía de mi boca, deteniéndolo con las manos antes de que se fuera. Lo sentía ir y venir, cada vez menos; hasta que se hizo tan delgado que se filtró entre mis dedos para siempre. / Digo para siempre.” (Tradução nossa) 122 No original: “ - (…) De no haber habido aire para respirar esa noche de que hablas, nos hubieran faltado las fuerzas para llevarte y contimás para enterrarte. Y ya ves, te enterramos. - Tienes razón, Doroteo. ¿Dices que te llamas Doroteo? - Da lo mismo. Aunque mi nombre sea Dorotea. Pero da lo mismo. - Es cierto, Dorotea. Me mataron los murmullos.” (Tradução nossa) 123 Em espanhol, o termo é “cacique”. Refere-se ao líder político de um povoado que conseguiu esse posto por meio das armas. No contexto histórico do romance de Rulfo, Pedro Páramo é filho de um revolucionário que arrebatou para si o comando de Comala. Com a morte do pai, Pedro Páramo assume o controle desse povoado.

79

Páramo se casou com ela por causa do dinheiro de Dolores e assim poder possuí-lo e

pagar as dívidas dele.

Bartolomé San Juan, pai de Susana, há muito havia percebido como de verdade

era Pedro Páramo: “É, segundo eu sei, a pura maldade. Isso é Pedro Páramo” 124

(RULFO, 2005, p.89). A narrativa de Pedro Páramo se situa na fase mais sangrenta da

Revolução Mexicana, assim como o romance de Azuela que estudamos: “Chegaram

uns feridos a Comala. (...) Parece que se encontraram com umas pessoas que se

declaram villistas” 125 (RULFO, 2005, p.108). Mas no romance o que menos importa é o

contexto histórico, ele apenas serve de pano de fundo para justificar a presença de

Pedro Páramo no poder de Comala. Justamente por essa tirania, o povo desse

povoado sofreu muito, porque Pedro Páramo governava com mão de ferro: impiedoso

e inflexível, muitos morreram por sua causa e os que não morreram, sofreram direta e

indiretamente a consequência de seus atos.

Por tal motivo, a população morta não tem descanso. Baseando-se na mitologia

asteca, como aponta Oviedo (2005, p.73), a morte não é o fim da vida: “A morte abre

as portas de outra vida superior, pois está em contato com a sacralidade” 126. Os

mortos, ainda vivos, habitam Comala. O próprio Pedro Páramo toma consciência desse

fato aos poucos. Com a morte de sua amada Susana, o coronel de Comala perde a

vontade de viver. Quer se vingar de Comala por esta terra ter matado a sua amada,

porque Pedro Páramo não aceita que sua própria culpa.

Ao fim da vida, já velho e cansado, Pedro Páramo perde as forças e vislumbra o

final, o que acontece no último capítulo do livro. Aqui podemos ver uma justaposição

narrativa: se o livro começa com a história do morto-vivo Juan Preciado, o filho; no

último capítulo temos o fim da história do vivo quase morto Pedro Páramo, o pai.

Pedro Páramo, às vésperas da morte, observa Comala e vislumbra “A terra em ruínas

estava na frente dele, vazia” 127 (RULFO, 2005, p.131). Por fim, Comala se congela no

124 No original: “Es, según yo sé, la pura maldad. Eso es Pedro Páramo”. (Tradução nossa) 125 No original: “Llegaron unos heridos a Comala. (...) Parece que se encontraron con unos que se dicen villistas”. (Tradução nossa) 126 No original: “La muerte abre las puertas de otra vida superior, pues está conectada con lo sagrado”. (Tradução nossa) 127 No original: “La tierra en ruinas estaba frente a él, vacía”. (Tradução nossa).

80

tempo, assim como o coração do coronel Pedro Páramo: “Logo seu coração se detinha

e parecia como se também se detivesse o tempo. E o ar da vida” 128 (RULFO, 2005,

p.131). Assim morre Pedro Páramo nas mãos de outros revolucionários que invadem

Comala.

A meneira pela qual Pedro Páramo vê Comala pela última vez é a maneira pela

qual vê seu filho, Juan Preciado, quando este chega a Comala, narrada na ultratumba

por sua vizinha de morte Dorotea: “Depois de atravessa uns morros, baixamos cada

vez mais. Tínhamos deixado o ar quente lá encima e íamos-nos fundindo no puro calor

sem ar. Tudo parecia estar na espera de algo” 129 (RULFO, 2005, p.8). A descida de Juan

Preciado foi mais funda: não só desceu em direção a Comala, mas também desceu à

morte e da morte à vida. Os murmúrios mataram Juan Preciado. Veio o silêncio. Mas

todo silêncio é o principio do som. Pode-se dizer que o silêncio é o som em emanência

de vir. Como acontece com a morte, ela é a emanência da vida.

Juan Rulfo, através dessa magnífica obra, acrescentou de maneira brilhante

inovações técnicas à Narrativa Mexicana Moderna. Graças a Rulfo temos novos

leitores e novos escritores. E na próxima parte do nosso trabalho comprovaremos que

Carlos Fuentes é um herdeiro literário de Juan Rulfo. Mas antes disso precisamos

rememorar o que estudamos até agora da Prosa Mexicana Moderna.

4.4. Recapitulando

Começamos o quarto capítulo apresentando a Narrativa da Revolução

Mexicana, que rompe com o tradicional realismo e funda o realismo crítico no México,

conforme vimos na obra inaugural desse movimento literário: Los de abajo, de

Mariano Azuela. A seguir a obra estudada foi Al filo del agua, de Agustín Yáñez e a

128 No original: “De pronto su corazón se detenía y parecía como si también se detuviera el tiempo. Y el aire de la vida”. (Tradução nossa). 129 No original: “Después de transtumbar unos cerros, bajamos cada vez más. Habíamos dejado el aire caliente Allá arriba y nos íbamos hudiendo en el puro calor sin aire. Todo parecía estar en la espera de algo”. (Tradução nossa)

81

enquadramos dentro da Narrativa Mexicana Moderna, herdeira direta da Narrativa da

Revolução Mexicana. Destacamos dois procedimentos técnicos fundamentais

aplicados nesse romance: a refletorização e o monólogo narrado. Igualmente é

importante recordar que o realismo já não importa nesta narrativa: mais vale o que

passa dentro do personagem do que passa fora. Por último, analisamos Pedro Páramo,

de Juan Rulfo. Este escritor conseguiu ir mais fundo que Yáñez: estabeleceu dois eixos

narrativos codependentes para a compreensão do romance - a justaposição de planos

narrativos é uma das contribuições mais importantes feitas por Rulfo.

A respeito do lo mexicano como símbolo do moderno, no primeiro romance,

Los de abajo, constatamos a presença popular no romance, o que não acontecia antes,

no porfiriato, porque os romances ou eram cosmopolitas que reforçando a ideia de

modernidade que o governo positivista de Porfirio Díaz tentou imprimir ou eram

cosmopolitas que criticavam justamente a modernidade e o positivismo. A tentativa de

resgate do mexicano arcaico, antigo, começa a ter mais ênfase com a obra Al filo del

agua, conforme estudamos anteriormente. Mas é com Juan Rulfo e o uso da

cosmovisão pré-hispânica como elemento formal e estruturador do seu romance

Pedro Páramo que a mexicanidade passa a ser expressa como moderna. Algo

semelhante como aconteceu nas artes plásticas, conforme vimos no capítulo anterior.

Na próxima parte do nosso estudo, averiguaremos como Carlos Fuentes se tornou

herdeiro da Narrativa Mexicana Moderna e como o pensamento indígena mexicano

influi na obra deste escritor.

82

TERCEIRA PARTE

A CONSTÍSTICA DE CARLOS FUENTES E A IMAGINATURA DO TEMPO

Así, la novela crea un nuevo tiempo para los lectores. El pasado es rescatado

de los museos; el futuro, de convertirse en una inalcanzable promesa

ideológica. La novela convierte el pasado, en memoria, y el futuro, en deseo.

Pero ambos ocurren hoy, en el presente del lector que, leyendo, recuerda y

desea.

Carlos Fuentes (2012b, p.204)

A citação inicial nos é fundamental para poder compreender o pensamento de

Carlos Fuentes. Embora este pensador mexicano tenha escrito um número

considerável de livros de contos (Los días enmascarados, de 1954; Cantar de ciegos, de

1964; La frontera de cristal, de 1995; Todas las familias felices, de 2006; Cuentos

naturales, de 2007; Cuentos sobrenaturales, de 2007; Carolina Grau, de 2011; etc) em

nenhum de seus vários ensaios ele aborda a poética do conto, apenas a poética do

romance (La nueva novela hispanoamericana, de 1969; Cervantes o la crítica de la

lectura, de 1976; Valiente mundo nuevo, de 1990; Geografía de la novela, de 1993; La

gran novela latinoamericana, de 2011, dentre outros). No entanto, podemos afirmar

que a visão que Carlos Fuentes tem sobre o romance é a mesma que aplica em seus

contos. Por isso selecionamos a citação que abre os estudos da terceira parte.

Como percebemos, Fuentes afirma que o romance necessariamente estabelece

três temporalidades que são simultâneas e codependentes: o passado, o presente e o

futuro. O passado porque todo romance conta sobre algo e esse algo no momento da

leitura passa a ser passado, ainda que a narrativa use tempos verbais do futuro.

Especialmente para o romance hispano-americano, declara Fuentes (2012b, p.205)

que “O romance diz o que a história não disse, esqueceu ou deixou de imaginar” 130. O

ensaísta mexicano estabelece a superioridade do romance (e por extensão, da

130 No original: “La novela dice lo que la historia no dijo, olvidó o dejó de imaginar”. (Tradução nossa)

83

literatura em geral) em relação à história porque “O romance é uma re-introdução do

ser humano na história” 131 (FUENTES, 2012b, p.209).

Cabe recordar que a historiografia se divide em duas etapas: pré-história e

história, cujo ponto divisor é o surgimento da escrita. Ou seja, a história é aquilo que

se deixou registrado na escrita, por outro lado, a literatura é aquilo que ficou

registrado na memória, mas que (atualmente) contamos por meio de escrita: “A

imaginação e a linguagem, a memória e o desejo, são não somente a matéria viva do

romance, senão o lugar de encontro de nossa humanidade inacabada” 132 (FUENTES,

2012b, p.211). Aqui está um ponto chave do pensamento fuentiano: humanidade

inacabada, que em seus contos, como veremos, se reflete em personagens dissociados

com seu tempo. Carlos Fuentes não concebe ao ser humano como algo definido, mas

em vias de sê-lo, mas nunca se completa, porque no fim de toda a vida temos a morte:

“uma vida não basta. Necessitam-se múltiplas existências para integrar uma

personalidade” 133 (FUENTES, 2012b, p.196). Este é o problema com o qual o ser

humano se depara todos os dias.

O problema da finitude do ser é, para Carlos Fuentes (2012b, p.211), um dos

temas essenciais do romance, porque “o romance é uma perpétua re-definição do ser

humano como problema” 134. O romance então, semelhante ao que será nos contos de

Fuentes, deve refletir esse problema, ou seja, a literatura e o homem são um e o

mesmo. Chega-se a esta conclusão porque se a literatura está sobre o tripé presente-

passado-futuro, o homem se encontra na mesma condição. E como o homem é um ser

incompleto e a literatura também, uma vez que tenta demonstrar a complexidade

humana o faz por meio de um único sistema, a linguagem. De acordo com Fuentes

131 No original: “La novela es una re-introducción del ser humano en la historia”. (Tradução nossa) 132 No orriginal: “La imaginación y el lenguaje, la memoria y el deseo, son no sólo la materia viva de la novela, sino el sitio de encuentro de nuestra humanidad inacabada”. (Tradução nossa) 133 No original: “Una vida no basta. Se necesitan múltiples existencias para integrar una personalidad”. (Tradução nossa) 134 No original: “la novela es una perpetua re-definición del ser humano como problema”. (Tradução nossa)

84

(2012b, p.213) “A fatalidade da linguagem é depender de um meio sucessivo e

irreversível, a palavra” 135.

Tanto o homem quanto a literatura (e a arte em geral) tentam desvencilhar-se

dessa fatalidade, que na literatura é a finitude e no homem é a morte. Se a morte é a

interrupção do instante presente e a nossa permanência no passado, a memória é uma

forma de transladar-nos para o futuro: nossa memória resgata, do esquecimento,

acontecimentos e pessoas do passado e os atualiza no presente, projetando-os para o

futuro. Na literatura, a palavra, ao romper o silêncio da folha em branca, nasce em

plenitude, mas ao ser totalmente escrita, morre no mesmo espaço em branco: a

finitude da palavra se encontra nos dois espaços em branco que a permeiam. Porém,

se essa palavra é forte o suficiente para fixar-se na memória do leitor, ela ainda seguirá

vivendo. Temos horror ao esquecimento, por isso que, declara Fuentes (2012b, p.196),

“Querer sobreviver a todo preço é a maldição do vampiro que nos habita” 136.

Para não nos extendermos muito, constataremos nos próximos capítulos como

Carlos Fuentes funda essa problemática do homem incompleto e finito na sua

contística. Também estudaremos como o passado e o futuro formam parte dos

personagens fuentianos. Para tanto e para exemplificar o nosso tema de estudo,

selecionamos três livros de contos: Los días enmascarados, Cuentos sobrenaturales e

Todas las familias felices para exemplificar o nosso tema de estudo. O estudo de todos

os seus livros de contos e de todos os contos em si ultrapassaria os limites impostos

para uma dissertação. Não faremos uma análise quantitativa, mas qualitativa, que a

partir do horizonte teórico estudado nesta dissertação, pode servir para análises

posteriores dos demais contos. Antes, porém, necessitamos abordar sobre o tema da

poética do conto e do fantástico (capítulo 5), da inserção de Carlos Fuentes na

Narrativa Mexicana Moderna para poder, por fim, estudarmos os contos do referido

escritor mexicano (capítulos 6 ao 8).

135 No original: “La fatalidad del lenguaje es depender de un medio sucesivo e irreversible, la palabra”. (Tradução nossa) 136 No original: “Querer sobrevivir a todo precio es la maldición del vampiro que nos habita”. (Tradução nossa)

85

A poética do conto em Carlos Fuentes

El cuento es un palacio de palabras donde se encuentran el escritor y el lector. Uno produce y el otro consume.

Enrique Anderson Imbert (2008, p.146)

Primeiramente, há que aclarar que nosso objetivo aqui não é teorizar a respeito

do conto, mas apontar alguns aspectos que o definem, de acordo com alguns teóricos

e críticos, e que estes mesmos aspectos se fazem presente na escrita dos contos de

Carlos Fuentes. Outro fator que é importante ressaltar é que o conto, em si, dissipado

de gênero literário, é impossível de datar porque, como afirma Herbet Ernest Bates

(2008, p.133), o conto “passou pelo mito e pela lenda, a fábula e a parábola, a anedota

e o esboço, e está aparentado inclusive com o que um cronista provinciano chamaria

‘boa piada’” 137. Por isso nosso estudo se baseia no denominado conto moderno.

5.1. O conto moderno

Temos ainda que esclarecer que, embora restringimos o estudo ao conto

moderno, há uma variedade extensa de definições possíveis dentro da literatura

especializada. Abordaremos alguns estudos sobre tal tema. De acordo com Cristina

Peri-Rossi (2008), o conto moderno caracteriza-se pela (i) consciência da multiplicidade

do eu, (ii) desintegração do espaço e do tempo como unidades fixas, (iii) capacidade de

simbolização, (iv) desconfiança perante a lógica e a razão como forma única de

conhecimento, (v) e o onírico, ou inconsciente, como epifania da realidade. Conforme

veremos na análise dos contos de Carlos Fuentes, todos esses elementos se

enquadram nas suas narrativas breves.

137 No original: “ha pasado por el mito y la leyenda, la fábula y la parábola, la anédocta y la semblanza, el esbozo, y está aparentado incluso con lo que un cronista provinciano llamaría ‘buen chisme’”. (Tradução nossa)

5

86

Se existe uma comparação plausível entre o conto e outra forma de arte esta

seria com a pintura e com a poesia. Com a pintura porque geralmente o conto “não

representa mais que uma cena” 138 (PERI-ROSSI, 2008, p.73) isso porque o que é

significativo no conto não é o que acontece, mas “a maneira de sentir, pensar, viver

esses fatos, isto é, sua interpretação” 139 (PERI-ROSSI, 2008, p.74). Ou seja, o

significativo do conto é como ele é narrado, não necessariamente o que se narra. Daí

provém sua semelhança com o poema. Para alcançar essa carga emocional, o escritor

lança mão da ambiguidade como provocação e estímulo da imaginação. Ainda segundo

Peri-Rossi (2008), o conto, enquanto relato, difere-se do romance porque este

desenvolve várias situações justapostas que passam uma ideia de tempo sucessivo e

aquele esgota, por intensidade, uma única situação. Isto é, o tempo no romance

predominantemente é sucessivo e o tempo no conto é em sua essência simultâneo.

Percebemos que para caracterizar o conto moderno Peri-Rossi (2008) vai desde

o mais “estrutural” (os elementos essenciais que perfaz o conto) ao mais “sublime” (as

sensações implicadas dentro do conto). Isso é inevitável, porque como afirma Nadine

Gordimer (2008), o conto, igual que o romance, nutre-se da experiência humana e

ambos têm por função comunicar essa experiência. Por tal razão, Guillermo Samperio

(2008, p.104) assim define o conto: “o conto é um relato breve que remove à

profundidade o espírito do leitor, deixando-lhe uma marca indelével e perdurável em

sua existência” 140, isso porque, segundo o mesmo, o conto é um gênero aparentado

da poesia, porque compartilha a brevidade do poema à rigidez estética do conto.

Ainda de acordo com Guillermo Samperio (2008), todo conto, assim como toda obra

de arte, gera um conflito interno e esse conflito tem que ser sentido pelo leitor.

Seria extenuante continuar a definir o conto e isso ultrapassaria o nosso foco

de estudo. Apenas para concluir este tema, nos referiremos ao estudo de Marco Tulio

Aguilera Garramuño (2008). Para ele, a obra de arte e o ser humano se fundam e se

complementam a tal ponto que já não podemos diferenciá-los, por isso que uma obra

138 No original: “no representa más que una escena”. (Tradução nossa) 139 No original: “la manera de sentir, pensar, vivir esos hechos, es decir, su interpretación”. (Tradução nossa) 140 No original: “el cuento es un relato breve que remueve a la profundidad el espíritu del lector, dejándole una marca indeleble y perdurable en su existencia”. (Tradução nossa)

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de arte impacta a uma pessoa, ou seja, na obra de arte se vê o humano e isso nos

choca. Justamente por tal fato é que os teóricos supracitados apontam o conto, o

romance, a literatura ou a arte como o “sentir, pensar e viver os fatos” (Peri-Rossi,

2008), a “comunicação da experiência humana” (Gordimer, 2008), “conflito”

(Samperio, 2008).

Ainda de acordo com Aguilera Garramuño (2008, p.250), “Cada contista, queira

ou não, imprime seu carimbo em seus contos. Sua arte é o resultado de uma

percepção particular e originalíssima do mundo” 141. Assim, cada escritor instala dentro

do seu conto a sua própria lógica. E isso nos leva a uma interrogante, com base em

Aguilera Garramuño (2008, p.250):

Mas o que é que une Cortázar a Poe, a Borges, a Rulfo, a Leônidas Andreiev, a Bradbury? Digamos, provisionalmente, que não o sabemos, deixemos a pergunta aberta e nos conformemos em afirmar que a única definição do conto é o conto mesmo. O conto não existe, existem os contos.

142

O melhor caminho para estabelecer uma poética do conto, não seria uma

definição, seria comparar os contos e tentar descobrir o seu denominar comum. No

estudo de Aguilera Garramuño (2008, p.251), um dos encantos provocados pelos

contos é “deixam um eco na mente do leitor, como um sino que segue ressoando” 143.

Outra característica apontada pelo ensaísta é que todo bom conto concebe o seu

próprio mundo e através dele, de certa forma, ensina-nos a viver porque cada relata

defende uma concepção do mundo, uma posição perante a vida. Outro marco é o

caráter inesgotável da sua leitura, pois a cada nova leitura não só se reitera o prazer da

leitura, mas também se abrem novos horizontes antes não percebidos. Ainda, um bom

conto deve fazer com que o leitor confronte sua vida e sua imaginação.

141 No original: “Cada cuentista, quiéralo o no, imprime su sello en sus cuentos. Su arte es el resultado de una percepción particular y originalísima del mundo”. (Tradução nossa) 142 No original: “Pero, ¿qué es lo que une a Cortázar con Poe, a Borges con Rulfo, a Leónidas Andreiev con Baldburry? Digamos, provisionalmente, que no lo sabemos, dejemos la pregunta abierta y conformémonos con afirmar que la única definición del cuento es el cuento mismo. El cuento no existe, existen los cuentos”. (Tradução nossa) 143 No original: “que dejan un eco en la mente del lector, como una campana que sigue resonando”. (Tradução nossa)

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Aguilera Garramuño (2008, p.255) também afirma que o conto “resume um

universo, o comprime em uma passa apertada, densa, contida que, como a forma de

um átomo, deve estalar diante dos olhos do leitor e revelar amplos espaços” 144. Para o

nosso estudo dos contos de Carlos Fuentes, os estudos aqui assinalados de Perri-Rossi

(2008) e Aguilera Garramuño (2008) foram significativos para analisar criticamente a

poética de Carlos Fuentes.

5.2. O fantástico

lo fantástico es un camino perfecto para revelar tal extrañeza, para contemplar la realidad desde un ángulo de visión insólito.

David Roas (2011, p.14)

Cabe-nos agora fazer algumas considerações sobre o conto fantástico e para

tanto nos centraremos nas reflexões de David Roas (2011) sobre a literatura fantástica.

Para o ensaísta, o fantástico tem estrita relação com a realidade, pelo menos com a

(suposta) realidade sentida/percebida/acreditada pelo leitor. Um texto que possa

parecer impossível, não quer dizer que seja fantástico: “a simples presença do

impossível não implica obrigatoriamente que uma obra deva ser considerada

fantástica” 145 (ROAS, 2011, p.45). Um exemplo que podemos citar é a literatura da

Idade Média permeada por monstros, bruxas e seres fantásticos que formavam parte

da crendice popular e que, portanto, não eram vistas como relatos fantásticos, senão

como relatos reais. Por isso afirma David Roas (2011, p.111) que “o leitor reconhece e

se reconhece no espaço representado no texto” 146.

Um conto fantástico nos dias atuais tem que levar em conta a visão de

realidade que o leitor tem. A literatura fantástica depende do seu leitor imaginário ou

144 No original: “resume un universo, lo comprime en un una masa apretada, densa, contenida que, como la fuerza del átomo, debe estallar antes los ojos del lector y revelar amplios espacios”. (Tradução nossa) 145 No original: “la simple presencia de lo imposible no implica obligatoriamente que una obra deba ser considerada fantástica”. (Tradução nossa) 146 No original: “el lector reconoce y se reconoce en el espacio representado en el texto”. (Tradução nossa)

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inferido, porque senão não consegue produzir o efeito desejado: “o fantástico vai

depender, sempre por contraste, do que consideramos como real” 147 (ROAS, 2011,

p.15). O fantástico questiona a Razão como único paradigma explicativo fundamental

da realidade. Aponta David Roas (2011) que, desde o advento do Racionalismo do

século XVIII, a literatura tem dado o apoio ou a recusa de tal modelo único de

interpretação da realidade. A literatura que acolheu essa ideia incorporou os conceitos

de mimese e verossimilhança. Por outro lado, o romantismo lutou contra o

racionalismo do século XVIII, pois afirmavam que tanto a intuição quanto o imaginário

também eram ferramentas hábeis para o estudo da realidade.

Mas a “virada de mesa” viria dois séculos depois, como aponta David Roas

(2011). No século XX, a física quântica veio desmantelar todos os conceitos que

tínhamos da realidade. Para começar, porque nada do que vemos concretamente na

verdade é concreto, mas sim partículas de átomos em alta velocidade comprimidos

numa rede de forma que lhe confere a consistência de sólido. Ou seja, os olhos não

conseguem abarcar toda a realidade, há muitas coisas acontecendo que não nos

damos conta: há outra(s) realidade(s) sob essa nossa realidade aparente. Além disso,

declara David Roas (2011), em um experimento físico com partículas o científico

intervém no experimento, ou seja, ao simplesmente iluminar o experimento, as

partículas de luz influenciam as partículas estudadas. Por conclusão de tal dado se

pode afirmar que “a interação do observador modifica a realidade” 148 (ROAS, 2011,

p.22).

Assim, a literatura a partir da segunda metade do século XX tem recusado

piamente o contrato mimético, como declara Roas (2011, p.30) “[a obra literária] não

se remite à realidade, e sim se baseia em sua própria ficcionalidade” 149. Temos assim a

ficção como questionamento da realidade e vimos nesta assertiva, ao longo desta

pesquisa, sua repercursão nas letras mexicanas: (i) no romantismo temos a recusa da

realidade imediata, entra em ação a idealização e a procura pela identidade nacional,

147 No original: “lo fantástico va a depender siempre, por contraste, de lo que consideremos real”. (Tradução nossa) 148 No original: “la interación del observador modifica la realidad”. (Tradução nossa) 149 No original: “[la obra literaria] no se remite a la realidad, sino que se basa en su propia ficcionalidad”. (Tradução nossa)

90

(ii) no realismo e no naturalismo temos como eixo central a realidade no estatuto da

mimese, (iii) no modernismo a literatura funde duas escolas: a parnasiana e a

simbolista, que determina seu caráter mais onírico que realista, (iv) no realismo crítico,

que advém com a Revolução Mexicana, temos que os narradores assumem o papel de

cronista da barbárie e tentam reproduzir o que de fato ocorre no campo de batalha, (v)

por fim vimos a Narrativa Mexicana Moderna, fruto da Narrativa da Revolução

Mexicana, que passa a ter um caráter mais subjetivo, o contexto histórico passa a ser

fundo narrativo (Yáñez) e com Rulfo temos a inserção do imaginário pré-hispânico

mexicano.

Justamente com Juan Rulfo e Carlos Fuentes virão à tona os contos fantásticos,

uma vez que ambos escritores usam o fantástico para “desestabilizar esses limites que

nos dão segurança, problematizar essas convicções coletivas antes descritas,

definitivamente, questionar a validez dos sistemas de percepção da realidade

comumente admitidos” 150 (ROAS, 2011, p.35), dito de outra forma, a função básica do

relato fantástico é trans-tornar nossa percepção da realidade. Mas justamente aí

reside o paradoxo do relato fantástico: ele tem por função criticar a realidade, mas

depende fundamentalmente dela para criar o relato fantástico, porque como vimos

anteriormente, o leitor tem que se reconhecer no texto para que possa ocorrer um

efeito fantástico. Por isso a declaração de David Roas (2011, p.37) de que “o fantástico

recombina e inverte a realidade, mas não escapa deste, senão que estabelece com ele

uma relação simbiótica ou parasitária”. 151

Pelo exposto, quanto maior for esse “realismo” maior efeito causará o

fantástico sobre o narrador e/ou personagens e/ou leitores. Para criar tal efeito de

“realidade”, muitos escritores têm empregado nas suas narrativas tramas baseadas no

cotidiano. David Roas (2011) aponta algumas estratégias para se conseguir o efeito

fantástico no relato: (i) que o relato seja apresentado de forma autêntica, ou por meio

de testemunho ou como um documento verídico, (ii) a refletorização narrativa, ou

150 No original: “desestabilizar esos límites que nos dan seguridad, problematizas esas convicciones coletivas antes descritas, en definitiva, cuestionar la validez de los sistemas de percepção de la realidad comúnmente admitidos”. (Tradução nossa) 151 No original: “lo fantástico recombina e invierte lo real, pero no escapa de este, sino que establece con él una relación simbiótica o parasitaria”. (Tradução nossa)

91

seja, o narrador passa a ver o enredo narrado pela ótica de um ou mais personagens,

(iii) a narração polifônica, que consiste o narrador dá vozes aos personagens, (iv) o

jogo de ambiguidades, dentre outros recursos.

5.3. Recapitulando

Começamos o capítulo afirmando que o conto, enquanto ato de relatar algo, é

impossível de ser rastreado e que não nos competiria fazer tal estudo, por isso nos

centramos no conto moderno. Destacamos o estudo de Peri-Rossi (2008) como

fundamental para entender a poética de Carlos Fuentes porque este se enquadra

dentro das características definidas pela ensaísta. No entanto, há que ter em mente

que cada conto transmite um universo particular de um escritor, como afirma Aguilera

Garramuño (2008) e, portanto, nosso estudo se apliacará basicamete à contística de

Carlos Fuentes.

E a respeito do relato fantástico vimos, de acordo com o ensaísta David Roas

(2011), que o fantástico depende da realidade, primeiro porque se necessita criar um

ambiente narrativo em que o leitor reconheça e se reconheça, porque senão o

narrador de antemão suspeitará do texto e não acreditará no relato, depois porque

uma vez construída essa percepção do real, é necessário destruí-la com o objetivo de

fazer com que o leitor questione o seu próprio conceito de realidade. Veremos a seguir

que Carlos Fuentes emprega os mitos pré-hispânicos para atacar essa “realidade

comum”.

92

A gênese do tempo mítico em Los días enmascarados

No puede haber presente vivo con un pasado muerto

Carlos Fuentes (2012, p.277)

Neste capítulo estudaremos a poética que perfaz o livro de contos Los días

enmascarados, a primeira obra de Carlos Fuentes, publicada em 1954. Nossa análise se

pauta na afirmativa do escritor e ensaísta mexicano de que a América hispânica é uma

utopia, mas não no sentido do senso comum, e sim no seu sentido etimológico: u-

topus, ou seja, um não-lugar. Mas este não-lugar está entrelaçado com um não-tempo

(FUENTES, 1997). Realizando um levantamento sobre os elementos presentes na

contística de Fuentes, nota-se a clara influência dos mitos pré-hispânicos na narrativa,

criando assim tempos múltiplos e realidades diversas, formando uma cosmovisão de

um mundo complexo, distinto, porém não antagônico entre si. Isso acontece porque,

segundo o próprio Fuentes (1998a, p.55), a escrita poética propõe “ao mesmo tempo

múltiplas verdades antagônicas, uma visão realmente dialética da vida” 152.

Percebemos, durante esta pesquisa, que na produção literária de Carlos

Fuentes há um diálogo entre o presente e o passado, principalmente no que se refere

à memória coletiva do México Antigo, a cultura mesoamericana 153. Como declara o

referido escritor e ensaísta (FUENTES, 1994, p.203): “A cultura indígena do México,

capturada pelo tempo, serva do tempo, libera a si mesma, mediante a imaginação, a

obra de arte, o costume vital, se convertendo em ama (amante) do tempo” 154. A partir

do exposto, podemos afirmar que Carlos Fuentes busca compreender o presente

152 No original: "a un mismo tiempo múltiples verdades antagónicas, una visión realmente dialéctica de la vida". (Tradução nossa) 153 Este termo possui um sentido espaço-temporal compreendido entre o norte do México e o norte da América Central no que se refere ao tempo anterior da Conquista da América (ÁVILA ALDAPA, 2008). 154 No original: “La cultura indígena de México, capturada por el tiempo, sierva del tiempo, se libera a sí misma, mediante la imaginación, la obra de arte, la costumbre vital, convirtiéndose en ama (amante) del tiempo". (Tradução nossa)

6

93

tendo como base o passado. Ademais, se nota que na constística deste escritor

mexicano a literatura está fundada com o mito, ao qual se tenta resgatar por meio da

memória coletiva, apresentando assim o “passado-mítico”, porque “o tempo

mexicano, antigo e novo, está dentro desta velha memória” 155 (FUENTES, 1994, p.

208).

Portanto, pode-se afirmar que na obra de Carlos Fuentes se constata que tanto

o tempo quanto a memória são intrínsecos ao mito, formando assim uma tríade

inextricável. Por tal motivo, este trabalho pretende demonstrar como o imaginário

hispano-americano, em específico o do México, está subscrito na verdade poética da

memória-mítica de um tempo que é outro; formando, assim, uma cosmovisão

fuentiana. Selecionamos dois contos do escritor mexicano para realizarmos uma

análise crítica que nos abra horizontes sobre sua poética. Dentre os seis contos que

fazem parte do livro Los días enmascarados, selecionamos dois: “Chac Mool” e

“Tlactocatzine, del jardin de Flandes”. Primeiramente vamos rever os estudos críticos

sobre a memória e depois vamos aplicá-los aos referidos contos.

6.1. A duplicidade da máscara nos contos: memória e esquecimento

El arte de la memoria supone la utilización recurrente del bisturí del olvido.

Ricardo Forster apud Vicente Robalino (2010, p.43)

Chama-nos a atenção o título do livro “Los días enmascarados”. A pergunta que

nos inquieta é por quê o uso especifico da palavra “enmascarado”. Carlos Fuentes

poderia ter usado, talvez, o vocábulo “oculto” ou “desaparecido”, ou qualquer outro

do gênero. Mas empregou uma palavra derivada de “máscara”. Intriga-nos o título

porque a máscara por si só é um objeto intrigante. Los días enmascarados: o emprego

específico desta palavra põe em evidência o pensamento do escritor mexicano,

pensamento esse que se basea na dialética, assim quando se pensa na máscara. Tal

155 No original: "el tiempo mexicano, antiguo y nuevo, está dentro de esta vieja memoria". (Tradução nossa)

94

objeto apresenta duas faces: a face de dentro e a face de fora. Portanto, a máscara

não é somente a parte de fora ou a parte de dentro, ela compreende as duas

conjuntamente, dentro e fora, formando uma dialética da totalidade.

Esse pensamento vai de encontro com o pensamento de Patrick Charaudeau

(2008, p.5) que afirma que a máscara

...é o símbolo da identificação, a tal ponto de nela se confundirem o ser e o parecer, a pessoa e a personagem, tal como no teatro grego. Não há mais oposição entre o verdadeiro e o falso, o autêntico e o artifício, o vivido e o representado. Não há mais apenas um ser congelado em um momento de verdade, que faz unir a contingência do aqui-agora e a imutabilidade de uma natureza.

A máscara mostra a dualidade do ser: o que mostra e o que oculta. Da mesma

forma podemos aplicar essa dinâmica na memória: o que se lembra e o que se

esquece. O ato de rememorar e de esquecer é intrínseco à memória. E é da memória

que provem nossa concepção de realidade. A seguir faremos um recorrido pela teoria

memorialística.

6.1.1. Sobre o conceito de memória

Em última instância, é pela memória que o ser humano se configura como um ser passível de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que se estabelece a possibilidade de vigência da unidade.

Antonio Jardim (2005, p.124)

Na mitologia grega, as musas surgiram por vontade de Zeus para criar uma

força/entidade que iria “registrar a façanha [derrotar Cronos] na própria memória do

tempo” (PESSANHA, apud JARDIM, 2005, p.127). Aqui já encontramos uma diferença

entre tempo e memória, em que esta passa a ser, no mínimo, a condição de

possibilidade da constituição de um tempo que se confronta para além de um tempo

95

imediato. Ou seja, a memória torna-se o gérmen propiciador do tempo: sem a

memória não conseguiríamos apreender o passar do tempo.

Se as musas (memória) foram criadas para atualizar Zeus, assim, a memória é

uma atualização do ser. A memória poética, portanto, não é linear, um continuum, mas

um permamente fundante, ou seja, funda o homem no mundo. A memória,

compreendida desse modo, passa a representar a possibilidade de estabelecimento da

cultura. Em outras palavras, o tempo poetológico (em contraposição a cronológico)

tem como base a memória, que é, por excelência, um formador do mundo.

Até agora refletimos sobre o conceito de memória e tempo, entretanto, outro

conceito pode ser relacionado com ambos. Os gregos, segundo Jardim (2005),

entendiam a verdade por meio da palavra “aletheia” (ἀλήθεια), cuja raiz do nome é

“lete” (λήθε), que significa “esquecimento”. A esta raiz soma-se o “alfa privativo”, ou

seja, a verdade, compreendida a partir dessa interpretação, é como o des-

esquecimento / memória. A verdade, neste sentido, não é mais uma mera constatação,

mas sim um fruto desse processo fundante que é a memória. Neste perfil, se um mito

está subscrito na cultura de um povo, ele faz parte da realidade pertencente àquele

povo, àquela cultura.

A memória, portanto, não é um recorte da realidade, ela é uma unidade dos

invisíveis. A memória é o nexo do que é, do que já existe, ou ainda não existe. Ela é a

realização do que é antes mesmo de existir. Assim, o que faz distinguir recordação de

memória é que aquela é ter “presente no espírito” e esta é o constituir dos sentidos, é

“a potencialização da densidade do real” (JARDIM, 2008, p.157).

Assim, a memória é a condição de possibilidade de se estabelecer um todo

complexo temporal-espacial como unidade. Do mesmo modo como ocorreu com a

verdade, a memória passa a ser tomada como a razão do que foi, do que é, ou, em

especial, do que será. Ou seja, a memória, em última instância, aciona a própria

dinâmica da verdade quando entendida originalmente como des-velamento (des-

esquecimento).

96

6.1.2. O tempo quadridimensional

...futuro, passado e presente subsistem simultaneamente

Heidegger (1979, p.260)

O filósofo e ensaísta Emmanuel Carneiro Leão já havia atentado para a perda

da memória nos dias de hoje, a perda desta força dinamizadora. No artigo “O

Esquecimento da Memória” (LEÃO, 2003) há a denuncia de que a memória individual,

aquela que fixa conteúdos perceptivos; a memória coletiva, que é a experiência de

participação e a memória histórica, aquela que celebra a continuidade das

transformações e as consagras para o futuro. Esses conceitos contemplam algumas

ações, como: reter fatos, conservar dados e repetir padrões de combinação e

derivação. Esquecem-se da memória criativa, que é articulada tanto pela memória do

passado quanto pela memória do futuro e que, em conjunto, propicia a gênese da

participação do homem no mundo.

Podemos então, a partir das considerações acima, chegar à conclusão que o

tempo não é somente tripartição entre passado-presente-futuro, pois, partindo desta

compreensão tripartida do tempo, este é entendido como “o fluir da sucessão da

sequência de ‘agoras’” (HEIDEGGER, 1979, p.266) – um tempo calculado/cronológico.

Entretanto, há um presentificar que une estas três dimensões, ou seja, presente,

passado e futuro não são sucessivos, mas simultâneos. O que une em presença e em

ausência essas três dimensões é a memória, articulada pela dinâmica da memória do

passado e da memória do futuro. Portanto, o tempo, assim concebido, é

quadridimensional. Em que, verdadeiramente, a memória é a quarta dimensão quando

se trata da enumeração aqui feita, pois esta é a primeira, isto é, “o alcançar que a tudo

determina” (HEIDEGGER, 1979, p.265)

97

6.1.3. Da memória individual

A atividade da memória que não se inscreve em um projeto do presente não tem carga identitária e, com mais frequência, equivale a nada recordar.

Joël Candau (2011, p.149)

Saindo de um campo teórico ontológico, mas continuando no âmbito

metafísico, Bergson (1999) se propõe a uma teorização a respeito da memória. Como o

seu estudo é longo, apenas iremos nos apropriar de dois termos propostos pelo

filósofo francês. Para este há dois tipos de memória, a saber: a memória-hábito e a

imagem-lembrança. A primeira se refere aos hábitos costumeiros adquiridos ao longo

da vida. São ações realizadas em automático, que não passam por uma reflexão por

parte da memória. Partindo dessa premissa Ecléa Bosi (1994, p.11) afirmará que “A

memória-hábito faz parte de todo o nosso adestramento cultural”. Já o antropólogo

Joël Candau denominará de protomemória, porque é uma “memória de baixo nível”

(2011, p.21), pois introjetada no ser, tem caráter repetitivo e habitual, muitas das

vezes incorporada de valor social não questionado.

Candau afirma que “O habitus depende, em grande parte, da protomemória”

(2011, p.22). Entretanto, o antropólogo nos chama a atenção para o seguiente: “O

habitus como experiência incorporada é uma presença do passado – ou no passado – e

não a memória do passado” (2011, p.23). Enquanto ação repetitiva não questionada,

não podemos afirmar que é uma memória em si, porque o sujeito não percebe que

lembra. Por isso não se trata de uma memória do passado, apenas da presença do

mesmo. No conto “Chac Mool”, de Carlos Fuentes, nada será questionado até chegar o

ponto-chave do conto. Somente a partir de uma ação ativa do sujeito teremos a

memória e a representação da mesma (a metamemória).

Ao voltar a Bergson (1999), temos a segunda categoria de memória, que é a

imagem-lembrança. Esta funciona como um ato de revelação, porque conecta vários

elementos e deles extrai um sentido um tanto quanto transcendental. Isso acontece

porque, conforme Bosi (1994, p.11) a “imagem-lembrança traz à tona da consciência

um momento único, singular, não repetido, irreversível, da vida”. A teoria bergsoniana

98

tem como base a memória pura, ou seja, tudo o que foi vivido e experimentado é

“arquivado” no nosso espírito podendo vir à tona a qualquer momento, pois “toda

lembrança ‘vive’ em estado latente, potencial” (BOSI, 1994, p.14).

Contra esta continuidade da memória, Gaston Bachelard (1988) propõe a teoria

do repouso, dialetizando o conceito de memória, afirmando que esta é constituída de

lembrança e de esquecimento simultaneamente, pois só pode ser lembrado aquilo que

foi esquecido e só pode ser esquecido aquilo que foi lembrado. Como afirma a

pesquisadora Angélica Soares (2009, p.13), a memória é uma “permanente tensão

entre lembrar e esquecer, pensada aqui como um dos pilares do nosso dinamismo

existencial”.

6.1.4. Da memória coletiva

É que a história, com efeito, assemelha-se a um cemitério onde o espaço é

medido e onde é preciso, a cada instante, achar lugar para novas sepulturas.

Maurice Halbwachs (1990, p.55)

Seguindo nossa trajetória de discussão, passaremos do ontológico e metafísico

para a teoria psicossocial. De acordo com Maurice Halbwachs (1990, p.21), “não

podemos pensar em nós mesmo, senão pelos outros e para os outros”, ou seja, “o

homem se caracteriza essencialmente por seu grau de integração no tecido das

relações sociais”. Halbwachs afirma, portanto, que ninguém lembra por si próprio,

nossas lembranças estão conectadas com as dos outros, denominadas pelo teórico

como “as testemunhas”. Não nos lembramos de tudo, mas as testemunhas lembram

por nós e nunca se lembram exatamente aquilo que ocorreu.

Semelhante ao pensamento de Bachelard (1988), nossa memória é composta

de lembrança e esquecimento e muito do que esquecemos é “preenchido” pela

imaginação, pois “para algumas lembranças reais junta-se assim uma massa compacta

de lembranças fictícias” (HALBWACHS, 1990, p.28). De encontro a este pensamento,

99

Angélica Soares (2009, p.27) afirma que “na ação de lembrar contamos com a

imaginação, porque os fatos não se revivem, reconstroem-se, recriam-se nos

descontínuos e lacunares movimentos temporais da rememoração”.

Para esta pesquisa chamamos a atenção para a seguinte proposição de

Halbawachs (1990, p.31): “Há pessoas de quem dizemos que estão sempre presente

(...) Uma espécie de instinto vital lhes ordena desviar seu pensamento de tudo aquilo

que poderia distraí-las do que as preocupa atualmente”. Isto é, pessoas que só vivem o

presente e mal recordam do seu passado, assim, pouco a pouco se distanciam do que

eram inicialmente, uma vez que, para Candau (2011), tanto a memória enquanto

passado quanto a metamemória enquanto representação que cada um faz do seu

passado que definem a nossa identidade. Somos o que somos pelo que lembramos e

pelo que esquecemos e a forma como “costuramos” esta colcha de retalhos que é a

memória.

6.1.5. Das memórias e o tempo

Conforme fomos discutindo ao longo deste trabalho, a memória pode ser

estudada por vários ângulos. Sintetisando, toda memória é social, uma vez que

depende sempre dos indivíduos e dos ambientes com os quais interagimos.

Entretanto, o ato de lembrar é sempre pessoal/individual. Ainda que haja testemunhas

que relatem situações que não nos lembramos, nada garante que elas virão à tona. Em

cada indivíduo a memória realiza o seu trabalho. Sobre os trabalhos individuais da

memória, vimos que em Bergson (1999) ela pode ser manifesta em (i) memória-hábito

e (ii) imagem-lembrança. Já para Candau (2011) temos três tipos de realizações: a (i)

protomemória, que vem de encontro com a definição de memória-hábito proposta por

Bergson (1999), a (ii) memória em si, composta de esquecimento e de recordações, e a

(iii) metamemória, que é a representação da própria memória e esta representação

como a formadora de nossa identidade.

100

Vimos também que a memória está entrelaçada necessariamente com o tempo

e que a condição sine qua non da apreensão do tempo é a memória, sem esta não é

possível conceber a ideia de tempo. Segundo Heidegger (1979), o tempo é

quadridimensional: passado, presente, futuro e memória como quarto eixo, que

agrupa os três anteriores formando assim não um tempo linear, mas um tempo

concomitante. O esquecimento total, portanto, seria um ato de perda de identidade,

similar à morte, pois segundo Eliade (2010, p.109) "A fonte de Letes, o ‘esquecimento’,

faz parte integrante do reino da morte”.

O tempo, assim, não é concebido como uma linha que contem um começo e

um final, mais bem como um círculo, que embora tenha início e fim, eles estão

interligados, apagando desse modo essas fronteiras e criando uma perfeita

continuidade dos acontecimentos. Mircea Eliade constata que o pensamento que

predomina nessas concepções cósmico-mitológicas é "a repetição cíclica do que existiu

antes, ou seja, o eterno retorno" (1992, p.79).

Em Carlos Fuentes, especialmente, não se trata de uma narrativa de tempo

cíclico, esta ideia é apenas o ponto de partida; pois o escritor elimina as divisões do

tempo em "passado", "presente" e "futuro", constituindo tempos concomitantes. Na

contística do escritor mexicano este tema é muito recorrente. Como afirma Gonzalo

Celorio, em seu capítulo dedicado a Fuentes, “Os círculos do tempo é um subtítulo que

invoca o mito do eterno retorno” 156 (CELORIO, 2008, p.94), porque para este mesmo

crítico, na obra de Carlos Fuentes, “o tempo, aí, não transcorre, é” 157 (2008, p.95).

Na acepção de Guyau (2010, p.145) “A arte deve imitar a lembrança”, pois “Sua

finalidade deve ser a de exercitar, como ela, a imaginação e a sensibilidade”. Passemos

agora para o estudo do conto “Chac Mool” às luzes do horizonte teórico aqui

discutido.

156 No original: "Los círculos del tiempo es un subtítulo que evoca el mito del eterno retorno". (Tradução nossa) 157 No original: "el tiempo, ahí, no transcurre; es". (Tradução nossa)

101

6.2. “Chac Mool” e a tríade inextricável mito-tempo-memória.

[...] hasta qué grado siguen vivas las formas cosmológicas de un México perdido para siempre y que, sin embargo, se resiste a morir y se manifiesta, de tarde en tarde, a través de un misterio, de una aparición, de un reflejo.

Carlos Fuentes (2012a, p. 7)

Em “Chac Mool”, o conto que abre as narrativas do referido livro, temos a

história de Filiberto, protagonista do conto que morre ao começar a história. A morte

de Filiberto só é explicada quando se aproxima do final do conto, segundo a

informação encontrada no transcurso da narrativa. O conto inicia-se com a voz do

primeiro narrador, que surge para transportar o corpo do protagonista do lugar do

falecimento, Acapulco, até a casa do mesmo. Desse narrador, conforme se avança na

leitura do conto, percebe-se que ele é amigo de Filiberto.

O amigo/narrador, ao revirar os pertences do morto, encontra o diário de

Filiberto. A partir desse momento, o atual narrador, amigo de Filiberto, dará voz ao

citado diário do protagonista, o qual irá tornar-se o segundo narrador. O primeiro e o

segundo narrador se alternarão na narrativa do conto. Em questão de estrutura

narrativa, portanto, temos dois narradores, um vivo e outro morto, e saberemos o que

se passou com o falecido protagonista através do seu diário, encontrado pelo primeiro

narrador e amigo do protagonista.

Neste momento, o encontro do amigo do protagonista com o diário do mesmo,

encontramos a memória de dois integrantes do conto: a do amigo de Filiberto e a do

próprio Filiberto, presente no relato autobiográfico – o diário. Segundo Benjamin

(2008), a vida se constitui pelas lembranças, isto é, a vida lembrada. Ora, o diário é

uma forma de representação da vida lembrada, pois só se escreve o que se lembra –

como fragmentos da memória – não exatamente o que se viveu. E o narrador amigo

de Filiberto, no decorrer da história, irá questionar as “memórias” do diário a partir do

seu conhecimento de mundo (ou seja, a partir de sua “memória”). Entretanto, cabe

ressaltar que memória não só é o que se lembra, isto é, o consciente, mas também o

inconsciente, pois tudo o que experenciamos nessa vida fica retido em nós, ainda que

não percebamos.

102

O primeiro fragmento do diário começa assim: “Hoy fui a arreglar lo de mi

pensión. El licenciado, amabilísimo. Salí tan contento que decidí gastar cinco pesos en

un café” (FUENTES, 2012a, p.11). Como se nota, trata-se de lembranças rotineiras, do

dia-a-dia. Não à toa assim termina o referido fragmento: “¿Cinco pesos? Dos de

propina” (FUENTES, 2012a, p.12). No que se refere à criação do conto fantástico,

segundo vimos em David Roas (2011), a presença do diário é fundamental para de

certa forma objetivar a narrativa e dar um caráter testemunhal à trama, o que faz com

que o leitor creia em um primeiro momento no que se lê. Ademais, a descrição de

eventos rotineiros é, igualmente, importante, conforme apontamos anteriormente,

para a credibilidade do texto. Esta primeira parte do diário é o que Bergson (1999)

denomina de memória-hábito, pois se trata de ações adquiridas pela repetição, que

não passa pelo crivo crítico da memória, como ainda aponta Candau (2011).

Continuando com a trama do conto, Filiberto, ao beber o café, começa a

rememorar fatos do passado, agora sim uma memória de fato, pois começa a refletir

sobre os eventos rememorados. Afirma o protagonista que nestas memórias

“desfilaron los años de las grandes ilusiones [...]. Sentí la angustia de no poder meter

los dedos en el pasado [...]” (FUENTES, 2012a, p.12). Já se percebe por esse fragmento

que o protagonista é um ser em dissonância com o seu passado. O elo entre o

presente e o passado se encontra fragmentado, corrompido, desestabilizado.

Filiberto, através de seu diário, continua a narrar as suas lembranças. No

segundo fragmento surge na história, por um breve instante, Pepe, um amigo do

protagonista, que elabora uma hipótese significativa “si yo no fuera mexicano, no

adoraría a Cristo” (FUENTES, 2012a, p.13). Ou seja, na concepção de Pepe, Cristo e

México têm laços profundos. O personagem ainda cita Huitzilopochtli 158 como um

deus do passado. Isto é, atualmente, para os mexicanos, deus é Cristo; no México do

passado pré-hispânico, deus era Huitzilopochtli. Aqui percebemos a inferência da

cultura ocidental europeia, pelo viés da época da colonização, que se fundamenta pelo

parâmetro da comparação excludente, isto é, sou adorador de Cristo, ainda que seja

mexicano, pois vivo (me identifico) no presente, sou presente por não ser passado.

158 Deus do sol na cultura asteca, a quem este povo oferecia o sangue dos guerreiros capturados em batalhas (Ávila Aldapa, 2008).

103

Recordemos agora a divagação de Filiberto afirmando que em sua memória

desfilava um passado de ilusões. Mas se o passado era ilusório, como é que se

encontra o presente (se por ser mexicano adora a Cristo)? Nota-se, então, que há um

problema identitário na história, porque a memória não conecta passado com

presente e assim não projeta um futuro. A estrutura quadridimensional proposta por

Heidegger (1979) se encontra defasada no conto, pois o protagonista tem vivido uma

vida de enganos, conforme ele a posteriori afirmará.

O protagonista Filiberto nos conta que tinha um hobby, que consistia em

“aflicción, desde joven, por ciertas formas del arte indígena mexicano” (FUENTES,

2012a, p.14). E seu último desejo de compra era a aquisição de uma réplica de Chac

Mool, deus do panteão maia, existente também em outras culturas e religiões de

Mesoamérica. Ao obtê-lo, o protagonista guarda a estátua do Chac Mool no porão, um

lugar escuro, como o próprio Filiberto reconhece. E não poderia ser de outra forma,

porque o passado (figurado como Chac Mool) na vida de Filiberto está presente no

fundo do porão, lugar destinado às coisas velhas (Benjamin, 2008).

Ao dia seguinte, Filiberto se vê com problemas no encanamento da casa

fazendo com que a água escorra até o porão. Após o conserto da tubulação, advém

uma forte chuva que inunda o porão, cobrindo de lama a estátua do Chac Mool.

Depois de tirar o musgo da estátua, Filiberto percebe que com o passar do tempo o

Chac Mool não volta à consistência de pedra, mas se apresenta como a “textura de la

carne” (FUENTES, 2012a, p.18). Filiberto declara: “siento que algo circula por esa figura

recostada” (FUENTES, 2012, p.20).

Agora é importante que comentemos um pouco sobre essa divindade. De

acordo com o estudo de Thompson (1987, p.394),

“Os Chacs, ou Chaacs, deuses maias que simbolizam a chuva, recebem mais orações e oferendas , em um contexto pagão, que nenhum outro ser sobrenatural. [...] Seu culto é muito antigo[...] Chac Mool é representado por uma figura reclinada, de considerável tamanho, com os joelhos para cima, e em geral com uma chapa no estômago, que se supõe que seja para oferenda.”

159

159 No original: “Los Chacs o Chaacs, dioses mayas que sinbolizan la lluvia, reciben más oraciones y ofrendas, en un contexto pagan, que ningún otro ser sobrenatural. [...] Su culto es

104

O amigo de Filiberto volta a assumir a voz da narração somente para dizer-nos

que a partir do dia 25 de agosto a letra de Filiberto tinha mudado muito, a tal ponto,

que “parecía escrita por otra persona” (FUENTES, 2012a, p.17). Continuando com a

leitura do diário, percebemos agora o quão perturbado Filiberto se encontrava,

fazendo reflexões sobre a realidade. Primeiramente, notam-se espaçamentos maiores

entre os fragmentos do diário. Nestes fragmentos, o protagonista comenta que algo

por ser natural se passa por real. Filiberto declara (FUENTES, 2012a, p.19-20):

…todo es tan natural; y luego, se cree en lo real… pero esto lo es, más que lo creído por mí. […] Si un hombre atravesara el Paraíso en un sueño, y le dieran una flor como prueba de que había estado allí, y si al despertar encontrara esa flor en su mano… ¿entonces, qué…? Realidad: cierto día la quebraron en mil pedazos, la cabeza fue a dar allá, la cola aquí, y nosotros no conocemos más que uno de los trozos desprendidos de su gran cuerpo. Océano libre y ficticio, sólo real cuando se le aprisiona en un caracol. Hasta hace tres días, mi realidad lo era al grado de haberse borrado hoy: era movimiento reflejo, rutina, memoria, cartapacio. Y luego, como la tierra que un día tiembla para que recordemos su poder, o la muerte que llegará, recriminando mi olvido de toda la vida, se presenta otra realidad que sabíamos que estaba allí, mostrenca, y que debe sacudirnos para hacerse viva y presente.

Neste fragmento encontramos a metamemória, pois o narrador começa a

questionar a si próprio e seu entorno, sendo este questionar o verdadeiro trabalho da

memória, como vimos em Candau (2001): um confrontamento da sua representação

do seu passado com o seu presente. O verdadeiro passado vai sendo aos poucos

alertado ao longo do conto, porque ocorreram “coisas inusitadas”: “(o Chac Mool)

había cambiado de color en una noche”, “hay dos respiraciones en la noche”, “el

cuarto olía a horror, a incienso y sangre” (FUENTES, 2012a, p. 20). Na noite anterior a

estas reflexões, o protagonista conta que acendeu a luz do porão e encontrou o Chac

Mool, de pé e sorridente. Neste trecho, tem-se um aparente embate: o passado

ressurge no presente (passado versus presente). E começa a chover...

muy antiguo [...] Chac Mool es representado por una figurilla reclinada, de considerable tamaño, con las rodillas para arriba, y en general con una placa en el estomago, que se supone que sea para ofrendas”. (Tradução nossa)

105

O amigo de Filiberto retoma a narrativa expressando que havia rumores de

loucura por parte Filiberto e que por isso havia sido demitido do trabalho. Ou seja, o

atual narrador justifica de que tudo o que ocorreu com seu amigo não é da ordem da

realidade, e sim da loucura. Para provocar e rejeitar essa dicotomia, Carlos Fuentes

resolve fundir essas duas realidades no conto, ou melhor dito, por meio das reflexões

anteriores, Carlos Fuentes revela que não há esta dicotomia, o passado não anula o

presente nem vice-versa; o presente se funda com o passado, o presente é presente

por ser atualizado pela memória, pelo passado; somos hoje esta unidade que a

memória construiu. Parte da memória do passado pré-colombiano do México ressurge

nos dias atuais: o passado atualizando o presente. Temos aqui uma lembrança que

conecta situações, vivifica-as, pois tem um sentido singular e jamais repetido: a

imagem-lembrança.

Voltando à narrativa do conto, Chac Mool e Filiberto, o “aparente passado” e o

“aparente presente”, passam a morar na mesma casa. Entretanto, as anotações de

Filiberto saltam no tempo, quase um mês, pois ele só voltou a escrever no seu diário

em final de setembro. Filiberto comenta a fúria do deus maia com o mercador que lhe

vendeu, pois o havia untado com molho de ketchup para se passar por divindade

asteca, enquanto em verdade ele era maia. Isto é, utilizar-se do passado e moldá-lo

para ser útil ao presente, ainda que este passado forjado não seja verídico.

Com o passar do tempo na narrativa, o Chac Mool passa a assumir o controle

total sobre a casa e sobre a vida de Filiberto. O deus maia passa a dormir na cama do

protagonista e este a dormir na sala. Ademais, com a estiagem Filiberto tem que ficar

molhando a casa, trabalhando para o deus. Filiberto confessa “soy su prisionero [...]. El

Chac Mool está acostumbrado a que se le obedezca, desde siempre y para siempre; yo,

que nunca he devido mandar, sólo puedo doblegarme ante él” (FUENTES, 2012a, p.23-

24). Isto é, o passado ao “pseudo-ressurgir” no presente passa a controlá-lo, pois o

presente (Filiberto) nunca dominou o passado, mas o passado (Chac Mool) domina e

determina/atualiza o presente.

Entretanto, no desenrolar da narrativa, o Chac Mool passa a se interessar por

coisas do presente a ponto de obrigar, por exemplo, que Filiberto o ensine a usar

106

sabonete e loções de barba. E o protagonista nota algo curioso nesse processo de

modernização do passado: “hay algo viejo en su cara que parecía eterna” (FUENTES,

2012a, p.26). O passado (a memória) é grandioso por não ser cronológico, isto nos

leva a reflexão que o passado não pode se construir nem se modificar no presente,

pois assim se desfigura da memória.

Cansado dessa situação de serventia e de cárcere com o Chac Mool, Filiberto

decide partir de casa enquanto o deus maia faz uns passeios noturnos atrás de animais

para saciar a sua fome. E ainda deixa escrito no diário um desafio ao deus: “a ver

cuanto dura sin mis baldes de agua” (FUENTES, 2012a, p.26). Neste momento a

narrativa se torna cíclica, pois retoma exatamente os acontecimentos do início do

conto, terminando o diário de Filiberto e, consequentemente, o amigo do protagonista

voltando a narrar.

Perante tal história inacreditável, o amigo de Filiberto confessa: “...pretendi dar

coherencia al escrito, relacionarlo con exceso de trabajo, con algún motivo

psicológico” (FUENTES, 2012a, p.26). Entretanto, por mais razões que buscasse, ele

não consegue encontrar argumentos para explicar. O amigo de Filiberto nunca

conseguiria encontrar explicações humanas para o que leu, pois o narrado está muito

além da mera compreensão racional do homem. Aqui justamente jaz o truque da

narrativa fantástica, conforme vimos em David Roas (2011).

A narrativa prossegue com a chegada do cadáver e do amigo de Filiberto a casa

deste. Antes que o amigo colocasse a chave na porta, esta se abriu e “apareció un

indio amarillo” (FUENTES, 2012a, p.27). O atual narrador tenta explicar a situação, no

entanto, o “índio” interrompe sua fala e declara “No importa, lo sé todo. Dígale a los

hombres que lleven el cadáver al sótano” (FUENTES, 2012a, p.27). E assim termina o

conto, com um tom de dúvida no ar. Quem é o “índio” e como sabia de antemão a

morte de Filiberto? Notemos que ironia há nesse final, porque se antes era a estátua

de Chac Mool que estava no porão, agora quem se encontra aí é o cadáver do próprio

Filiberto, destinado a cair no esquecimento. Observemos um dado curioso: Filiberto foi

morto na água, o símbolo dos chacs, isto é, Filiberto morreu como oferenda ao Chac

Mool.

107

Ao final, o passado não morre com o fim da narrativa, ou melhor, sugere que

ainda que “despercebido” ele está entre nós, é a nossa reminiscência e por mais que

queiramos deixá-lo para trás, ele se faz presente no dia-a-dia, pois é este que nos

atualiza e nos funda no mundo. Realizando uma síntese sobre como Carlos Fuentes

recupera ao longo do conto a memória coletiva pré-colombiana do México,

encontramos como primeiro referencial a conversa de Pepe com Filiberto e a alusão a

Huitzilopochtli. Depois quando o próprio Filiberto confessa sobre o seu hobby de

colecionar peças de arte indígena do México. A terceira recuperação ocorre pelo

ressurgimento do Chac Mool através da estátua comprada por Filiberto.

Entretanto, o processo de “encarnação” é lento, pois Carlos Fuentes permite

que o leitor vá descobrindo pouco a pouco, através dos diversos sinais presentes no

conto, como: o problema no encanamento, as fortes chuvas, a inundação do porão,

além de sinais mais incisivos como os gemidos noturnos que Filiberto ouvia. Outro

sinal de “encarnação” é quando a letra de Filiberto muda drasticamente a partir do dia

25 de agosto. Outra referência a essa memória coletiva se dá quando se cita o nome

de Tláloc, o deus da chuva asteca.

O retorno do deus maia Chac Mool surge aqui como forma de vingança

paulatina e surpreendente. Carlos Fuentes introduz um ato fantástico no meio da

narrativa, que até aquele momento estava no âmbito no normal/cotidiano. A ideia do

retorno permite ao escritor resgatar simbolicamente a mitologia indígena do passado e

situá-la no mundo contemporâneo. Quando isso se estabelece na narrativa, o

protagonista Filiberto começa a refletir sobre o que é ilusão e o que é real e, assim, a

vida dele parece revelar-se plena de sentido. A verdadeira recuperação do passado e

da história (neste conto referente ao México) ocorre quando ela transcende do papel

(o relato autobiográfico de Filiberto) e passa a fazer parte do que somos hoje, do que

nos define e do que nos caracteriza (no caso do conto, o “tornar a ser mexicano”), ou

seja, a nossa unicidade. O que resta escolher, como Filiberto fez, é se a verdade

pertence ao plano do “real” ou ao plano do ficcional, da imaginação.

108

6.3. A relação de interdependência entre Mito e Natureza

O mundo em que reina a lonjura e o outrora, de um modo se pode dizer que está ele dentro de nós, de outro modo dizer se pode que estamos nós dentro dele.

Eudoro de Souza (1995, p.07)

Para continuarmos o estudo dos contos aqui propostos, faz-se necessário saber

o que é mito e como ele é compreendido. O mito, ao longo do tempo foi se

descaracterizando do seu sentido original, passando a ser entendido de modo geral

como alegorias que demonstram a relação do homem com o divino. O mitólogo

Eudoro de Souza rejeita essa concepção simplista do mito. No prefácio ao livro

Mitologia II: História e Mito (Souza, 1995, p.01), Fernando Bastos declara: “O mito não

é uma alegoria, mas tautegoria 160. O mito não é uma representação fantasiosa de uma

incapacidade da razão. O mito é tautegoria, relato simbólico das origens, sendo a

sensibilidade (e não a razão ou a inteligibilidade) seu vetor cognitivo”. Isto é, o mito na

verdade não é uma simples metáfora ou alegoria, mas uma forma de pensamento do

espírito humano, uma expressão de uma experiência intensamente vivida, com sua

realidade intríseca. Assim, o conceito de mito desmente o pensamento racionalista, o

mito como alegoria, ou seja, como representação. Para explicar a estrutura intrínseca

do mito, Eudoro de Souza (1995) emprega dois termos que nos farão compreender a

cosmovisão do mito: a lonjura e o outrora, justificando assim que o mito-poético é da

ordem da presença do passado que está além de qualquer distância e tempo.

De acordo com o mitólogo, “a lonjura é a indimensionável dimensão do espaço

– que não é espaço – de um além horizonte” (SOUZA, 1995, p.05) e o outrora seria “a

indimensionável dimensão do tempo – que não é tempo – de um além horizonte”

(SOUZA, 1995, p.06). Portanto, a partir de tais conceitos, pode-se afirmar que o mito é

da ordem do transobjetivo, pois está além do passado e da distância. Observemos que

160 De acordo com M. H. Abrams (2010), este termo foi proposto por Schelling justamente contra a ideia de mito como alegoria. Mito tautegônico seria a expressão espiritual de uma experiência altamente vivida, com uma realidade suis generis, manifestação unitária da vida e do pensamento.

109

o mito está fundado em uma dimensão de um não-lugar e de um não-tempo. O mito,

assim, é u-topus, definição dada por Carlos Fuentes ao continente americano.

Ainda de acordo com Eudoro de Souza, mito e natureza são inseparáveis e,

como esse realismo transobjetivo, “duas naturezas não são dois ‘aspectos’ da mesma

natureza, não são duas formas de parecer, mas duas modalidades de ser, não a de ser

o mesmo, mas a de uma vez ser uma de outra vez, ser outra” (SOUZA, 1995, p.35). Dito

de outra forma, mito e natureza não são o mesmo, se encontram na dupla face de uma

mesma moeda, que embora tenham duas faces, compõem uma unidade. Por isso,

pode-se dizer que o mito “mitifica a natureza” e a natureza “naturaliza o mito”.

Portanto, a natureza já é mítica, desde sempre e por isso ao londo da história tem

surgido cultos à chuva, ao sol, à terra, etc.

O mito e a memória, justamente por serem da ordem da lonjura e do outrora,

são abordados somente por intervenção da memória poética, que reúne o homem

com o divino-natural. Assim, o mito seria a linguagem da transcendência do sensível,

enquanto “mítico, sensibilidade e natureza são co-naturais” (SOUZA, 1995, p.53). A

natureza mítica-sensível reavivada pela memória que a resgata do tempo linear é um

tema recorrente na contística de Carlos Fuentes, como o próprio autor afirma (1998b,

p.67): "un pasado muerto quiere pasar por presente vivo y mitificaciones en las que un

presente vivo recupera, también, la vida del pasado".

6.4. Tlactocatzine, del jardin de Flandes: a natureza submergida no mito

En México, es fácil desplazarse simultáneamente en el tiempo y en el

espacio.

Carlos Fuentes (2012c, p.41)

O terceiro conto da coletânea Los días enmascarados é “Tlactozatzine 161, del

Jardín de Flandes” e nessa narrativa o escritor mexicano continua com a poética da

memória que presentifica o passado e re-atualiza o presente (conforme já visto no

161 É um termo náhuatl que significa “amado meu” (Matos Moctezuma, 2012).

110

estudo sobre o conto “Chac Mool”). Em “Tlactozatzine, del Jardín de Flandes”, o

protagonista declara, por meio de um diário, que trabalha como vigia em uma velha

mansão desabitada. Novamente temos a presença do diário como artifício narrativo,

que imprime confiança no leitor e, por meio desse procedimento, captura o leitor na

trama narrativa (David Roas, 2011).

A mansão, por si só, é um enigma: “19 Sept. ¡El licienciado Brambilla tiene cada

idea! Ahora acaba de comprar esa vieja mansión del Puente de Alvarado, suntuosa

pero inservible, construida en tiempos de la Intervención Francesa” (FUENTES, 2012a,

p.34). Chamam-nos a atenção os adjetivos empregados para caracterizar a mansão:

velha, suntuosa e inservível. Conforme vimos no conto anterior, Carlos Fuentes

emprega muitas vezes a representação de um objeto simbolizando o abstrato.

Conforme veremos no transcurso da análise deste conto, novamente teremos o

resgate dos mitos mesoamericanos. Portanto, a casa, simbolicamente, representa o

próprio México, mas não o atual, e sim o México Antigo, porque a casa é antiga. Se a

casa é suntuosa, por extensão o México pré-hispânico também o é, e os dois não têm

serventia. A casa não tem serventia porque está abandonada, e o passado glorioso

pré-colombiano também, de acordo com a narrativa de Carlos Fuentes.

O protagonista é designado pelo licenciado para que cuide da mansão por um

tempo, assim relatada pelo protagonista em vinte de setembro: “Menos de

veinticuatro horas entre estos muros, que son de una sensibilidad, de un fluir que

corresponde a otros litorales, me han inducido a um reposo lúcido” (FUENTES, 2012a,

p.37). Conforme percebemos, a mansão transmite algo para o nosso protagonista,

embora não saiba dizer exatamente o que seja, que se define pela sensibilidade a

ponto de deixá-lo em um descanso atento, o que por si só é uma afirmação paradoxal.

No entanto o narrador-protagonista não sabia o que lhe esperava ao entrar no

jardim da mansão, sentia a sensação de estar no centro pungente do todo: “Si ya en la

casa rozaba la epidermis de otro mundo, en el jardín me pareció llegar a sus nervios.

Esas siluetas de memoria, de inmicencia [...]” (FUENTES, 2012a, p.38). O jardim, que

simboliza a Natureza, se encontra mitificado. E desta natureza mitificada surgirá um

ser mítico. Mais uma vez há recorrência da chuva, cuja água purifica o espaço do

111

presente-histórico da narrativa, transformando-o, simbolicamente, no espaço do

passado histórico do México pré-colombiano. Assim, o jardim vai se transformando ao

longo da chuva.

Em 21 de setembro o narrador, ao observar o jardim, relata o seguinte

(Fuentes, 2012a, p.39-40):

Luego, sentí el ruido sordo, el zumbido que parecía salir de sí mismo, y levanté la cara. En el jardín, casi frente a la mía, otra cara, levemente ladeada, observaba mis ojos. Un resorte instintivo me hizo saltar hacia atrás. La cara del jardín no varió su mirada, intransmisible en la sombra de las cuencas. Me dio la espada, no distinguí más que su pequeño bulto, negro y encorvado, y escondí entre los dedos mis ojos.

De novo, no meio do cotidiano (vigiar uma casa), brota um acontecimento

inesperado: a presença de uma entidade no jardim. E o narrador segue narrando que,

ao dia seguinte a chuva continuava e novamente ele encontrou essa “outra cara”

(Fuentes, 2012a, p.40-41),

Estaba dormitando en el sillón, frente a la ventana, cuando me despertó la intensidad del olor a siempreviva. Sin vacilar; clavé la vista en el jardín – allí

estaba. […] Era una viejecita… tendría ochenta años, cuando menos, ¿pero

cómo se atrevía a entrar, o por dónde entraba? Mientras desprendía las flores, la observé: delgada, seca, vestía de negro. […] Solo pude distinguir los labios, sin sangre, que con el color pálido de su carne penetraban en la boca recta, arqueada en la sonrisa más leve, más triste, más permanente y desprendida de toda motivación. Levantó la vista; en sus ojos no habían ojos… era como si un camino, un paisaje nocturno partiera de los párpados arrugados, partiera hacia dentro, hacia un viaje infinito en cada segundo.

Este fragmento é de suma importância para a compreensão do conto, por isso

tivemos que transcrevê-lo quase em sua totalidade. Nele temos uma intensa carga

simbólica. Partamos do início: o protagonista é arrebatado do seu estado de

sonolência pelo cheiro forte de uma flor, cujo nome é “sempre-viva”. Não à toa temos

esse nome específico: a casa desabitada sempre esteve viva, a “outra cara” sempre

está viva e o México Antigo sempre estará vivo. Se não percebemos a vivacidade deles,

é porque estamos adormecidos e precisamos acordar.

112

O narrador ao sentir a presença da “outra cara”, que ainda não sabia se tratar

de uma anciã, acorda e a vislumbra no jardim catando flores. Já sem medo, como

acontecera na primeira vez que a viu, começa a analisá-la: idade, corpo e roupa. Por

sua descrição, poderíamos afirmar, resumidamente, que se trata de uma anciã magra

de roupa preta. Enquanto a vê, o narrador pensa em uma explicação lógica para a

aparição dessa mulher: trata-se de uma invasora, que pulou os muros ou entrou por

uma porta desconhecia para o protagonista. Mas nenhum argumento poderia explicar

o que viu o narrador ao olhar a cara da anciã: olhos que conduziam ao infinito, dois

buracos escuros, que transportavam o narrador mais além daquele espaço físico-

temporal onde se encontravam. Por fim a anciã desapareceu na chuva.

O protagonista, uma vez controlado seu medo, planeja comunicar-se com a

anciã, para tanto, o autor cria toda uma atmosfera de fantástico: a aparição e o

desaparecimento sem explicação da anciã, o piano toca melodias sozinho que cessam

quando se aproxima o narrador. Fatos inexplicáveis começam a questionar o conceito

de realidade que o protagonista tem. Conta-nos o narrador que no dia 23 de setembro

tentou abordar a anciã, para tanto, ao vê-la dando saltos no ar como se fosse uma

criança, o narrador atravessa uma barreira que nunca antes havia posposto: a porta

que dá acesso ao jardim. Adentra-o, então (Fuentes, 2012a, p.42-43):

Exactamente, no sé qué sucedió; senti que el cielo, que el aire mismo bajaban un peldaño, caían sobre el jardín; el aire se hacía monótono, profundo, y todo ruido se suspendía. La anciana me miró, su sonrisa siempre idéntica, sus ojos extraviados en el fondo del camino; abrió la boca, movió los labios: ningún sonido emanaba de aquella comisura pálida; el jardín se comprimió como una esponja, el frío metió sus dedos en mi carne…

Um contato direto na primeira tentativa não foi possível, pode-se dizer que o

tempo e o espaço se condensaram em um único tempo, em um instante, quando o

protagonista e a anciã estavam frente a frente, no centro da lonjura e do outrora. A

pressão do céu foi tão intensa no narrador, que nem mesmo pôde escutar o que a

anciã dizia. Ele desmaia e somente no dia seguinte acorda sem saber como foi parar na

poltrona da biblioteca.

113

Por fim o narrador consegue ter um contato direto com essa anciã: “y la

anciana me tomó de las manos, las besó, su piel apretó la mia. Lo supe por revelación:

sus manos en las mías, no tocaba sino viento pesado y frío […]” (FUENTES, 2012a,

p.44). Quando consegue escutar a voz da anciã, o narrador percebe que sua voz é

“coagulada, eco de las sangres vertidas que aún transitan en cópula con la tierra”

(FUENTES, 2012a, p.44). Encontra-se nessa descrição a tríade homem-natureza-

memória, pois a anciã representa o homem, mas não o homem de hoje, e sim o da

lonjura e do outrora, reavivada pela memória ao se entrelaçar com a natureza, pois a

voz dela [quem? da memória?] trazia o sangue vertido por aqueles que morreram no

passado, desde a sangrenta conquista do México. A anciã, então, declara ao

protagonista que tanto ela como ele formam um só, presos a essa terra, pois “ya

estamos juntos para siempre, los dos en este castillo” (FUENTES, 2012a, p.45).

6.5. Recapitulando

Nos dois contos aqui estudados de Los días enmascarados, é notória a busca

incessante de Carlos Fuentes, em sua obra, ao repensar o papel do imaginário indígena

pré-colombiano, para que os leitores percebam a realidade além do que se imagina

saber, e que o tempo flui entre passado e presente mais do que se pensa: Chac Mool

não é uma divindade do passado; nem a mansão, que plasma a anciã e que, por sua

vez, simboliza o passado. Eles representam a fundação [mito de fundação] do que

somos hoje.

O escritor mexicano, assim, quebra com a ideia ocidental do tempo e da

realidade. Isso vai de encontro com a citação que abrimos nesta análise crítica de

“Chac Mool”, em que o México Antigo resiste à morte, se manifesta por meio de um

mistério e de uma aparição, como é o caso desses dois contos de Carlos Fuentes aqui

analisados. Nos dois casos temos o “rapto” do presente: a morte de Filiberto e o

narrador de “Tlactocatzine, del jardin de Flandes” que é capturado pela anciã. No

114

primeiro conto vimos principalmente o papel da memória na construção da narrativa

e, no segundo, a conjunção entre mito e natureza.

Pelo que vimos em “Chac Mool” e “Tlactocatzine, del jardin de Flandes”, ambos

os contos se enquadram dentro da literatura fanástica, porque “...o fantástico se

constrói a partir da convivência conflitiva da realidade com a impossibilidade” 162

(ROAS, 2011, p.45). Para conseguir o efeito fantástico, conforme destacamos

anteriormente, nas duas narrativas, Carlos Fuentes reproduz o universo extraliterário

do leitor, para que ele possa se encaixar dentro do conto. A inserção de elementos

cotidianos faz com que a erupção do fantástico seja sentida intensamente na obra.

Para que o leitor “acredite” no que está sendo narrado, o autor emprega, em ambos os

casos, o relato autobiográfico em forma de diário, ou seja, através do testemunho os

narradores tentam convencer o leitor.

Por tudo o que vimos neste capítulo, verificamos que Carlos Fuentes faz parte

da denominada Narrativa Mexicana Moderna e que, igual a Juan Rulfo, incorpora a

cosmologia mesoamericana em sua poética. O pensamento do México Antigo é visto

como símbolo de modernidade, pelo menos de inserção do homem mexicano na

sociedade moderna, porque não se pode querer ir adiante sem reviver o passado. O

critério de seleção de ambos os relatos levou em conta os próprios títulos dos contos,

pois já era visível a presença do passado pré-hispânico.

No próximo capítulo continuaremos a investigar os vestígios do México Antigo,

mas fazendo um degradê desse imaginário. Nos contos já estudados é fácil perceber a

influência do imaginário pré-hispânico, no mínimo se nota nos títulos e nos

personagens. A seguir analisaremos os contos em que a ideia segue presente de forma

mais sutil, sem títulos com deuses ou expressões indígenas.

162 No original: “...lo fantástico se construye a partir de la convivencia conflictiva de lo real y lo imposible”. (Tradução nossa)

115

Cuentos sobrenaturales: a conjugação entre mito e história

México es el retrato de una creación que nunca reposa porque aún no

concluye su tarea.

Carlos Fuentes (2012b, p.189)

Gostaríamos de fazer uma pequena observação sobre o título da obra: Cuentos

Sobrenaturales. Ao nosso juízo e a partir do horizonte teórico até aqui discutido, não

quer se referir a algo que não seja natural, mas para algo que é mais que natural. Ou

seja, trata-se de um universo fantástico perfeitamente natural, porém além da

percepção que temos do “natural”. Novamente temos uma dialética: natural e

fantástico são dois e um ao mesmo tempo, assim como há a reversibilidade do tempo,

há uma reversibilidade de conceitos e ideias na obra de Carlos Fuentes.

7.1. Mito, História e Ficção

Cecília Graña, em seu estudo sobre a nova narrativa hispano-americana (2010,

p.681), afirma que com o boom surge outro tipo de romance que contém “...um tipo

de realismo no qual a história se une ao mito” 1. Ou seja, embora a utopia europeia

esteja morta, o u-topus do pensamento indígena pré-colombiano segue existindo.

Carlos Fuentes (1994) nos afirma que a história é construída sobre a visão dos

vencedores e que, assim, a história só tem uma percepção da realidade, uma única

perspectiva.

Portanto, o escritor quer resgatar simbolicamente parte desta memória

perdida, a memória dos vencidos e criar uma obra totalizadora, com a qual nos torna

1 No original: "...un tipo de realismo en el que la historia se une al mito". (Tradução nossa)

7

116

conscientes da verdadeira história. Isso acontece porque, segundo Carlos Fuentes

(1998b, p.18),

... criaram uma convenção representativa da realidade que pretende ser totalizante, assim que [o escritor] inventa uma segunda realidade, uma realidade paralela, finalmente um espaço para o real, através de um mito no qual se possa reconhecer tanto a metade oculta, mas não por isso menos verdadeira, da vida, como o significado e a unidade do tempo disperso.

2

Então, “História e ficção se propõem nestes casos como meio de conhecimento que se

articulam em diferentes níveis; servem para desenterrar leis para agregar-lhes algum

sentido às origens e, em última instância, para responder à incerteza do futuro.” 3

(SOSNOWSKI, 2010, p.754).

Observemos que dois termos, em princípio antagônicos (história e ficção), são

agora complementares para a constituição total da realidade do Novo Mundo, ou seja,

a América. Se a história é a construção de uma parte dos fatos acontecidos e a ficção é

recontar a outra parte da história que ficou esquecida, então temos uma dialética

entre os dois termos, pelo que a história passa a ser o imaginado e a ficção o real. A

imaginação do real cria, então, uma nova utopia, que a nova narrativa tentará

restaurar.

No entender de Carlos Fuentes (1998b, p.30), “Inventar uma linguagem é dizer

tudo o que a história calou” 4. Restringindo-nos ao contexto mexicano, alguns

escritores se apoiam no mito para recontar essa outra parte da história. A cultura pré-

2 No original: “...crearon una convención representativa de la realidad que pretende ser totalizante en cuanto [el escritor] inventa una segunda realidad, una realidad paralela, finalmente un espacio para lo real, a través de un mito en el que se puede reconocer tanta la mitad oculta, pero no por ello menos verdadera, de la vida, como el significado y la unidad del tiempo disperso”. (Tradução nossa) 3 No original: "Historia y ficción se proponen en estos casos como medios de conocimiento que se articulan en diferentes niveles; sirven para desentrañar leyes, para adjudicarles algún sentido a los orígenes y, en última instancia, para responder a la incertidumbre del futuro." (Tradução nossa) 4 No original: “Inventar un lenguaje es decir todo lo que la historia ha callado”. (Tradução nossa)

117

hispânica segue enraizada na cultura dos povos mexicanos integrando, assim, o

imaginário mexicano.

O escritor Carlos Fuentes realiza em sua obra um jogo entre a consciência e a

memória, em que esta passa a funcionar como o princípio formador de nossa

consciência. Portanto, a literatura mexicana, especificamente a moderna, tenta

resgatar a memória dos vencidos, o substrato indígena, para mostrar que a ficção é tão

real como a história e, assim, fazer-nos conscientes plenamente. Por isso a palavra

poética se parece a “relevação”, porque traz à tona essa “verdade oculta”, porque

como afirma Fuentes (1998b, p.85),

...só a palavra vertida [palavra poética, ficção] pode descolorar isso que se passa por ‘realidade’ para nos mostrar o real: o que a ‘realidade’ consagrada oculta: a totalidade escondida ou mutilada pela lógica convencional [a história] (por não dizer: de conveniência). A palavra vertida é a palavra inimiga.

5

Pelas considerações até aqui feitas, encontramos uma dialética entre memória

e ficção, onde há “...um duplo movimento entre a história e a ficção que se propõem

como ficcionalização da história” 6, como afirma Saúl Sosnowski (2010, p.766) em

relação à obra de Carlos Fuentes. Além do mais, acrescenta que “...só é possível aceder

à verdade história mediante a imaginação” 7 (SOSNOWSKI, 2010, p.768). Melhor dito,

como afirma o personagem Alejandro de um conto de Fuentes (1964, p.59): “O mundo

exterior e o mundo da obra de arte são iguais” 8. Ou nas próprias palavras de Carlos

Fuentes (1994, p.77): “a literatura fantástica latino-americana tem um problema e é

5 No original: “…sólo la palabra vertida [palabra poética, ficción] puede descolorar eso que pasa por 'realidad' para mostrarnos lo real: lo que la 'realidad' consagrada oculta: la totalidad escondida o mutilada por la lógica convencional [la historia] (por no decir: de conveniencia). La palabra vertida es la palabra enemiga”. (Tradução nossa) 6 No original: "...un doble movimiento entre la historia y la ficción en que se proponen como ficcionalización de la historia". (Tradução nossa) 7 No original: "...solo es posible acceder a la verdad histórica mediante la imaginación". (Tradução nossa) 8 No original: "El mundo exterior y el mundo de la obra de arte son iguales". (Tradução nossa)

118

que se torna literatura realista em alguns anos” 9. O veículo para essa ficção, conforme

anteriormente dito, é o mito em muitos casos. De acordo com Fuentes (1998b, p.20):

“o romance é mito, linguagem e estrutura” 10.

7.2. O tesouro do passado: Un fantasma tropical e a (des)memória coletiva

Y yo que era un muchachito curioso, pero así, reventando de curiosidad,

decidí aclarar el misterio de una vez por todas.

Carlos Fuentes (2007, p.125)

“Un Fantasma Tropical” trata da história de uma casa cuja única moradora “era

una mujer anciana que ya no salía nunca” e que “guardaba tesoros incalculables y

joyas finísimas en rincones secretos de su casa blanca”. (FUENTES, 2007, p.123). Com o

passar do tempo essa senhora nunca mais foi vista e as pessoas acreditavam que

estaba morta: “Como nadie la veía desde hacia diez años, la gente empezó a darla por

muerta. Y como nadie reclamaba su herencia, todos decidieron que el cuento de las

joyas era perfectamente fantástico, que la señora sólo tenía bisutería” (FUENTES,

2007, p. 123).

Tempos depois, com o contínuo pasar do tempo, essa história se tornou lenda,

porque “los más viejos decían haberla visto de joven” e não sabiam “si es que la señora

invisible de verdad se había muerto” (FUENTES, 2007, p.123). Segundo Maurice

Halbwachs (1990), as testemunhas já não mais atestam, o que leva a uma desmemoria

coletiva: se ninguém viu o que aconteceu, desacredita-se e já não é mais capaz de

resgatar a memória individual. Aqui temos um exemplo claro de que com o tempo a

história muda, às vezes, se “ficcionaliza” e através da ficção se pode tentar ascender a

uma verdade: a verdade poética.

9 No original: “la literatura fantástica latinoamericana tiene un problema y es que se vuelve literatura realista en unos cuantos años". (Tradução nossa) 10 No original: “la novela es mito, lenguaje y estructura”. (Tradução nossa)

119

O narrador do conto “Un Fantasma Tropical” é um jovem de doze anos que

provavelmente não viveu na mesma época da “lenda” e quer entrar na misteriosa casa

para comprovar se o que diz a “lenda” é verídico, se há ou não tesouros na casa. Ao

entrar na casa o narrador percebe que “entraba una luz que no era de la noche,

aunque tampoco de la mañana. Una luz propia, me dije, sólo de esta casa. Esas cosas

pasan en el trópico” (FUENTES, 2007, p.125). Carlos Fuentes uma vez mais se utiliza do

fantástico ao pôr a casa iluminada por uma luz desconhecida. O imaginado, o

desconhecido é a estratégia do narrador do conto, que ao provocar o leitor faz com

que ele raciocine e tente dar uma coerência ao fato: Prosseguindo com a história do

conto, o narrador-protagonista raciocina que “el mejor lugar para esconder algo es el

lugar más obvio, el más visible, que de tan visible se vuelve invisible” (FUENTES, 2007,

p.126). Aqui podemos retomar nossa discussão sobre a memória: ela é a que resgata a

história “invisível” (mito) por sobre a visível (história), a que põe em evidência aquilo

que nos atravessa e não nos deixa perceber a realidade. Voltando à narrativa, o

narrador por fim encontra o tesouro escondido dentro de um dicionário falso na

biblioteca (FUENTES, 2007, p.126):

Lo abrí y era lo que yo esperaba. Un libro hueco, una simple caja que abrí sin respirar apenas. Allí estaban las joyas de la vieja dama. Metí la mano para sacar la que más brillaba y allí debí conformarme. Pero ustedes ya saben lo que es la codicia cuando no hay conciencia y volví a meter la mano. Sólo que esta vez había allí otra mano que se me adelantó, tomó la mía con fuerza y me obligó a soltar el collar de perlas y mirar hacia la dueña de la mano helada, descarnada, que con tanta fuerza oprimía la mía.

O insólito novamente prorrompe na narrativa. Carlos Fuentes cria um clima de

suspenso no leitor em relação ao que vai acontecer, porque indica que algo incomum

ocorreu: “Metí la mano para sacar la que más brillaba y allí debí conformarme”

(FUENTES, 2007, p.126). O insólito não é o aparecimento da mão em si, mas da forma

que é percebida pelo narrador: “mano helada, descarnada” (FUENTES, 2007, p.126).

Mas um dado estranho ainda seria notado pelo narrador (FUENTES, 2007, p. 127):

Era un hombre. Calvo, anciano, macilento, maloliente. Pero vestía como mujer. Un traje largo, antiguo, con botones, cerrado hasta el cuello, una corbatilla que fue blanca, mugrosa, amarilla, y el camafeo de una mujer

bellísima, antigua, viva, muerta… ¿Quién sabe?

120

Nota-se aqui uma transformação: a mão ganha corpo, de homem passa a

mulher (ou de mulher passa a homem?), de morto passa a vivo (será?). O que é

realmente importante é que o narrador não duvida do que vê, mas do que não

consegue enxergar. Porém o narrador consegue trazer a joia que primeiro roubara e a

leva a um joalheiro judeu para que calcule o seu valor, descobrindo que a mesma não

tem valor algum. Por fim, o protagonista declara: “Agradézcame, que nuestras noches

van a ser largas y mañana quién sabe si sigamos vivos...” (FUENTES, 2007, p.127).

7.3 Recapitulando

Continuando o estudo sobre Carlos Fuentes, dissertamos sobre como o mito, a

história e a ficção ganham corpo na contística deste escrito mexicano. Ficção e história

não são termos antagônicos, mas complementares. Uma vez que a escrita é a história

e a visão parcial da realidade a partir dos vencedores, a ficção procura complementar

essa parcialidade da realidade com a visão dos vencidos e, assim, cria uma visão

totalizadora e integradora do que Fuentes denominou como o real.

O conto agora estudado, “Un fantasma tropical”, também se encaixa no rol da

literatura fantástica, porque cumpre com seu papel fundamental de questionar o

nosso conceito de realidade. Novamente Carlos Fuentes convence o leitor de que se

trata de algo real, porque reproduz o universo do leitor implícito e segue empregando

o artifício do testemunho para que seja mais crível a história, só que dessa vez por

meio de narrativa direta, sem diário ou anotações escritas dos personagens.

Ao partir para o campo do simbólico, em “Un fantasma tropical”, a casa

representa o mito, o tempo que é outro, mas que ainda é tempo e pertence ao nosso

tempo. Dentro deste tempo da lonjura e do outrora existem tesouros, mas que hoje

em dia não passa de lenda. E o narrador-protagonista, igual a um escritor, quer entrar

121

nesse reino do “proibido”. O escritor invade o tempo, invade a memória e invade a

história para ver o que há de oculto e, quando encontra, não se contenta com pouco e

quer mais. Porém esse mais não é possível, há tesouros que ficam guardados para

sempre, faz parte da sua magia. No entanto, esse pedaço de tesouro conquistado,

raptado do passado quando é trazido para o presente não vale muita coisa. O passado

é para ser vislumbrado, não saqueado. Mas o escritor quer trazer essa prova de que

esteve no “além”. Não representa muito, porém permite que a obra possa ser

estudada em busca da restauração desse verdadeiro tesouro.

Embora uma análise por esse viés pudesse ser realizada nos contos anteriores,

quisemos priorizá-lo no conto “Un fantasma tropical”, publicado em 2007, para que a

crítica literária sobre Carlos Fuentes não se restrinja ao século passado. Mas o que

queremos realmente comprovar é que desde o seu primeiro livro de contos, Los días

enmascarados (1954), Carlos Fuentes segue com a poética da memória e do mito

como composição artística.

E o nosso estudo segue um esquema de afunilamento inverso, ou seja,

partimos do mais específico no que se refere à tríade mito-tempo-memória e

aportamos ao mais geral. No próximo capítulo estudaremos três contos de Carlos

Fuentes em que não aparece qualquer ser sobrenatural ou insólito, mas que apresenta

o rastro do imaginário do pensamento pré-hispânico mexicano. Avancemos.

122

A dissonância poética do tempo em Todas las familias felices

La defensa del tiempo es por todo ello la defensa de la cultura y de la manera de vivirla en la historia. Esa defesa tiene un sitio. Se llama el presente, aquí y ahora. Porque el pasado ocurre hoy, cuando recordamos. Y el futuro ocurre también hoy, cuando deseamos.

Carlos Fuentes (2012b, p.277)

A cada novo capítulo do estudo da obra narrativa de Carlos Fuentes,

constatamos que o pensamento pré-colombiano se encontra enraízado nos mais

diferentes níveis narrativos. O último livro do nosso estudo, Todas las familias felices,

averiguaremos a concepção do tempo mesoamericano como eixo estruturador de

todos os contos do referido livro: é sobre esse conceito que todas as narrativas vão

girar explícita o implicitamente.

8.1. Cosmologia mesoamericana: a concepção do tempo

A nova linguagem hispano-americana é, conforme Carlos Fuentes (1998a, p.09),

“uma busca constante de nossa identidade nacional, mestiça, herdeira por sua vez da

civlização indígena e da civilização espanhola” 11. Portanto, a América reclama para si

uma identidade verdadeiramente americana. O mito indígena americano é uma de

suas marcas identitárias, sua raiz, muito anterior à chegada dos conquistadores. É

justamente isso que afirma Rojas, personagem do conto “Fortuna lo que ha querido”:

"la raíz helada y bárbara de la escultura indígena [...] la originalidad de México, el

margen mínimo pero absoluto de nuestras vidas, es lo que no ha sido tocado por el

Occidente" (FUENTES, 1964, p.52-53).

11 No original: “una búsqueda constante de nuestra identidad nacional, mestiza, heredera a la vez de la civilización indígena y de la civilización española”. (Tradução nossa)

8

123

Não é necessário que a narrativa seja sobre um mito, basta somente que a

gênese da composição literária esteja em conformidade com o pensamento pré-

hispânico 12. Isso é o que passa com a noção de tempo que contitui as narrativas de

Carlos Fuentes. O tempo cíclico já se fazia presente na cosmogonia mesoamericana,

como nas culturas maias, mexicas, olmecas, mixtecas, otomís, dentre outras (Ávila

Aldapa, 2008). Para eles, havia pelo menos dois calendários complementares que eram

usados simultaneamente e se conectavam em um ciclo de cada cinquenta e dois anos.

Chegamos, então, a uma interrogante: o que é o tempo e como este é percebido?

Referindo-se à primeira pergunta, Regina Schöpke (2009) realiza um extenso

estudo sobre o tempo e suas diferentes percepções ao longo da história. A priori, a

pesquisadora questiona se o tempo seria o correlato da morte (Schöpke, 2009, p.10):

“seria mesmo o tempo apenas um carrasco, um inimigo de todo ser vivo e de tudo o

que existe, aquele que sentencia todos à morte inexorável?”. Se isto é verdade, a

morte não seria apenas um castigo, senão também uma liberação, porque de acordo

com Schöpke (2009, p.11) o tempo “também é considerado o responsável pela

geração de todas as coisas e é igualmente aquele que nos liberta das dores e aflições”.

No entanto, o principal para a nossa discussão é que “não é possível pensar a

ideia das três dimensões (o presente, o passado e o futuro) como existindo

plenamente e por si mesma. Enfim, é preciso que um instante deixe de existir para que

outro ocupe o seu lugar” (SCHÖPKE, 2009, p.13). Esta concepção do tempo é uma

invenção do Ocidente para tentar deter o tempo a partir de uma medida, cuja base é a

duração das coisas. Daí, percebemos que o tempo não passa, mas que “as coisas”

passam (o fruto nasce, madura e morre, por exemplo). Porém, em nenhum momento,

nesta ideia de tempo apreendemos o tempo.

Em resumo, uma das teses de Schöpke (2009) sobre o presente é o “estar vivo

no mundo” e, assim, enquanto uma pessoa vive, toda a sua existência é um presente

por excelência. No entanto, o presente é transpassado por instantes, o que evidencia o

passar do tempo e estabelece o “antes” e o “depois”. Isto é, o viver é um eterno

presente que está constituído por pequenos instantes que criam o parâmetro de

12 Como exemplo, podemos citar Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez e Pedro Páramo, de Juan Rulfo.

124

sucessão no tempo. O instante instaura uma anterioridade e uma posterioridade com

algum evento e isso cria um passado e um futuro dentro do presente da existência.

Porém, este presente é uma parte de um continuum de presentes anteriores, ou seja,

há um macropresente e um micropresente. O micropresente, como já abordamos, está

conectado ao viver e o macropresente é a reunião de micropresentes. Como afirma

Schöpke (2009, p.131), “o passado e o futuro só existem em relação ao corpo e com

esse presente, que não passa de um ‘agora’ dos corpos. Em poucas palavras, o

presente é a própria existência”.

Essa hipótese vai de encontro ao pensamento de Gaston Bachelard (2007, p.91)

quando declara que “pelo próprio fato de vivermos, pelo próprio fato de amarmos e

de sofrermos, estamos inscritos nos caminhos do universal e do permanente”. O viver

é o que nos faz estar no tempo presente, mas o presente só é assim porque antes

houve outros presentes, presentes-passados que fundaram o presente-atual. Passado

e presente, então, se articulam intimamente, já que ambos passam a ser um e dois ao

mesmo tempo.

Portanto, pode-se dizer que esse presente existencial foi fundado por outros

presentes, já passados, que são da ordem do outrora e da lonjura. Agora uma pergunta

nos é latente: como esses micropresentes estão inter-relacionados formando, assim,

um macropresente? O laço entre os presentes é a memória, que não nos permite

esquecer os fatos passados e, portanto, esses fatos seguem vivos na memória

individual e/ou coletiva. Isto é, ainda que já passados, através da memória eles são

“vivificados” e passam a ser presente, não o mesmo presente que o nosso atual, mas

um presente que forma parte daquele.

Desse modo, “a memória desempenha um papel fundamental. Através da

rememoração, da anamnesis, há uma liberação da obra do tempo” (ELIADE, 2010,

p.83). O passado-lonjura é resgatado pela memória que o faz “passado-presente” e

nos dá forma para o futuro. Por meio da memória, “nada muere por completo”, afirma

Carlos Fuentes (1994, p.206). O passado não morre, é vivificado, ou seja,

presentificado pela memória.

125

Quando falamos do tempo, falamos de uma das ideias comuns relacionadas a

ele, a morte, como vimos anteriormente em Schöpke (2009). Porém, o tempo não é a

morte, mas sim o esquecimento, como pontualmente observa Mircea Eliade (2010,

p.109): “A fonte de Letes, o ‘esquecimento’, faz parte integrante do reino da morte”.

A memória do passado cria os mitos, que são a experiência vital do sagrado – a

natureza em si mesma já é divina, como já estudamos em Eudoro de Sousa (1995) –

cria realidades, verdades e significações (Eliade, 2010) que transcendem o passado-

lonjura e cria, portanto, um presente contínuo, formado de passados e presentes, não

justapostos, mas em perfeita harmonia de coexistência. O futuro também forma parte

do micropresente, mas com uma pequena diferença do sentido comum que se tem

sobre o futuro: “O futuro não é o que vem em nossa direção, mas sim na direção em

que nos dirigimos” (Guyau apud BACHELARD, 2007, p.54).

Então, se o tempo pode ser compreendido como um macropresente, que é

uma reunião de micropresentes inter-relacionados na memória, não há sentido

estabelecer um início e um fim únicos para o tempo. Isto é, o tempo não é concebido

como uma linha que tem um começo e um fim, e sim como um círculo, que embora

tenha um início e um fim, eles estão interligados, apagando as fronteiras e criando

uma perfeita continuidade dos acontecimentos. Mircea Eliade (1992, p. 79) constata

que o pensamento que predomina nessas concepções cósmico-mitológicas é “a

repetição cíclica do que existiu antes, ou seja, o eterno retorno”.

Especialmente em Carlos Fuentes, não é que toda a sua obra seja uma narrativa

cíclica, o que acontece é que esta ideia é apenas o ponto de partida: o escritor

mexicano elimina as divisões do tempo “passado”, “presente” e “futuro”, constituindo

o que já nos referimos como macropresente. Já estudamos esse apagamento de forma

bem marcada nos contos “Chac Mool”, “Tlactocatzine, del jardin de Flandes” e menos

marcado em “Un fantasma tropical”. Passaremos agora ao estudo de três narrativas da

coletânea Todas las familias felices, originalmente publicada em 2006.

126

8.2. O estatuto irônico da (in)felicidade: a desconstrução urdida nos contos

Todas las familias felices se asemejan, cada familia infeliz lo es a su manera.

León Tolstoi apud Carlos Fuentes (2006, p.09)

Como em todos os livros de Carlos Fuentes que temos pesquisado e analisado,

Todas las familias felices apresenta uma dualidade provocada pela ironia entre o título

do livro e o conteúdo dos contos, previamente indicada pela epígrafe do livro que

aparece citada no início deste tópico. O singular que caracteriza cada família é sua

infelicidade. Ou seja, viver autenticamente é ir contra algumas práticas sociais que

procuram uniformizar o pensamento e as atitudes. A dialética pode-se estabelecer da

seguinte forma: feliz é a família infeliz, porque é singular; infeliz é a família feliz,

porque é comum.

O livro contém dezesseis contos e acompanha cada conto um coro. Desses

contos, nós selecionamos três, que se inserem na poética do tempo de Carlos Fuentes.

Se nos contos anteriores “garimpamos” a mito-poética fuentiana, em Todas las

familias felices necessitaremos escavar. Veremos que os três contos selecionados, em

maior ou menor grau, estão fundados na cosmogonia do macropresente. Comecemos

pelo primeiro conto do livro: “Una familia de tantas”.

8.3. Fragmentação espaço-temporal em Una familia de tantas

"¿Cómo se rechaza el pasado sin renegar del porvenir?"

Carlos Fuentes (2006, p.35).

Em “Una familia de tantas” temos a história da família Pagán, constituída por

quatro integrantes: o pai, Pastor; a mãe, Elvira; a filha, Alma; e o filho, Abel.

Praticamente é o estereótipo da família perfeita: um casal que tem um casal de filhos,

127

que um dia substituirão os pais quando estes morrerem. Porém nesta história estamos

mais para o caso da família im-perfeita.

A respeito da estrutura narrativa, o conto está dividido em partes, cada parte

corresponde a um personagem e toda a história está sob sua ótica, o que na verdade

corresponde à técnica da refletorização que já estudamos em Al filo del agua, de

Agustín Yáñez. Além da refletorização, temos o monólogo narrado, porque não só

observamos pela ótica do personagem, mas também pelo próprio pensamento do

personagem. Cada fragmento relatado é um parágrafo e estes vão se justapondo e

criando uma digressão narrativa, porque os temas e os ambientes mudam de acordo

com a perspectiva do personagem.

Sobre a história em si, um dado nos chama a atenção já no primeiro parágrafo

do texto, que corresponde à refletorização do pai Pastor, é que eles não moram em

“una gran mansión pero si una vivienda decente. Una relíquia de la lejana época

‘aztequista’ de la ciudad de México, cuando los arquitectos nacionalistas de los años

treinta les dio por construir casas con aspecto de pirámides indias.” (FUENTES, 2006,

p.12).

A filha vive no “cume”, na parte estreita e distante da casa e da vida cotidiana

da família e a sua volta, porque essa personagem vive em outra realidade, aqui

representada pela internet. Assim temos vida real versus vida virtual. O detalhe

curioso é a vida virtual representada pela parte superior da casa-pirâmide, a parte

mais perto do céu, mais próxima do “supramundo”, não à toa o nome da personagem

é “Alma”.

No entanto, a referida personagem “hizo un esfuerzo por acomodarse en el

mundo” (FUENTES, 2006, p.14), mas definitivamente não se integrava na sociedade.

Alma percebeu que para se “acomodar” no mundo teria que ser mais uma mera cópia

(Fuentes, 2006, p.14-15):

Un día reunió a las cinco compañeras de una función de beneficencia y se vio idéntica a ellas, todas igualitas entre sí, toda diferencia borrada. Eran clones la una de la otra. No tenían más destino que ser idénticas entre sí sin nunca ser idénticas a sí mismas, parecerse en la inmovilidad y luego desaparecer, jubiladas por la edad, los kilos o una media negra corrida.

128

Na tentativa de ser diferente, abandona o emprego e torna-se aeromoça,

depois de um tentativa de estupro em um voo noturno: “Por eso Alma se retiró de

toda actividad mundana y se instaló en el piso alto de la casa de sus padres con todo el

aparato audiovisual que de allí en adelante sería su universo seguro, cómodo y

satisfecho”. (FUENTES, 2006, p.15).

No térreo habitam os demais membros da família, mais perto da terra, do

“inframundo”. Talvez por isso seja a parte da família que mais passa por problemas. O

pai, trabalhador exemplar, uma vez pediu a seu chefe um aumento porque trabalhava

honestamente. Mas Pastor Pagán não contava com a reação do chefe: “Para el patrón,

todos eran corruptibles. […] ¿Cómo pretendía Pastor Pagán ser la excepción? El jefe

Barroso debió reír para sus adentros. Pastor no cometió la falta de pedir tajada,

cometió la falta de declararse honrado.” (FUENTES, 2006, p.18).

Na lógica do patrão, quando Pastor Patrán se apresentou como honesto,

acusou todos os demais como desonestos. Para Barroso, isso era uma falta de respeito

aos demais colegas de trabalho que comprometia o trabalho em equipe. Então, Pastor

foi demitido. Nota-se claramente a ironia de Carlos Fuentes neste ponto: a

honestidade nada vale, os valores estão invertidos. Por sua vez, o filho dele, Abel, sabe

muito bem disso. Não pensa duas vezes e ocupa a vaga deixada por seu pai.

Assim, o filho representa a continuidade do pai, embora possuam caráteres

diferentes: “lo insertaba en una secuela de actos desconocidos en la que el trabajo del

hijo era continuación del trabajo del padre.” (FUENTES, 2006, p.24). O filho quer

distanciar-se do pai, quer ser outro, viver outra vida: não a honesta e pobre do pai,

mas a desonesta, rica e cheia de luxo: “Después de todo, había escalado del mostrador

a la gerencia en menos de lo que canta un gallo” (FUENTES, 2006, p.24).

O filho nega o pai e a vida do pai constantemente. Porém, como seria possível

construir um futuro negando o passado? Como o narrador do conto pergunta:"¿Cómo

se rechaza el pasado sin renegar del porvenir?" (FUENTES, 2006, p.35). Abel Pagán

obtém o dinheiro, mas segue infeliz: “La medida de su ambición era constantemente

129

frustada por la abundancia de su êxito.” (FUENTES, 2006, p.25). Ao final, os dois

terminam desempregados, o filho como cópia do pai, compartilhando o mesmo

distinto: “Aunque no seas culpable, deberás expiar los pecados de tu padre.”

(FUENTES, 2006, p.27).

É preciso presentificar o passado, e a memória é um bom meio para essa

realização. Esta é a base, o que constitui o nosso presente e sustento do nosso porvir.

Como o filho quis esquecer o passado e, como vimos a morte como sinônimo de fim,

Abel “mata” seu futuro e, assim, termina sem trabalho e sem esperança igual a seu pai.

Pai e filho, descontinuamente contínuos: “ni el padre ni el hijo dominaban sus propias

vidas. Pastor carecía de energía. Abel tampoco tenía voluntad.” (FUENTES, 2006, p.28).

Mas ninguém na família é tão singular quanto a mãe deles, Elvira.

A matriarca da família, ao contrário do filho, vive no passado, na época em que

cantava na danceteria onde conheceu o seu atual marido. Ela sempre executou o

“ritual” de voltar à discoteca para sentir-se jovem e, assim, anular os efeitos que o

presente traz com o passar do tempo, ou seja, a velhice: “El bolero nos propone

amantes. Algunos son fatales. Viven esperando que cambie la suerte o venga la muerte

como bendición.” (FUENTES, 2006, p.20).

Mas quem quer viver só no passado, esquece de viver o presente. Então, a mãe

vivia tentando “Esconder la probable melancolía. Sepultar el indeseable desasosiego.”

(FUENTES, 2006, p.41). Elvira levava seu marido “a los bares con la ilusión de que no

había ‘antes’ nunca sino siempre puro ‘ahorita’.” (FUENTES, 2006, p.41). Há um

problema com Elvira, porque conforme já estudamos, o tempo não pode ser a negação

do passado, como fez o filho, nem tampouco a negação do presente, como acontece

com a mãe.

Em suma, nesse conto encontramos quatro personagens deslocados no tempo

e no espaço. Primeiramente, a história do pai, que por ser honesto foi demitido. Isso

repercute no filho, que não quer ser a continuidade do pai, negando-o

completamente. No entanto, ao negar o pai nega o passado que este representa. Não

é de forma gratuita que o nome do personagem seja Abel, personagem bíblico do livro

130

de Gênesis, que é morto por seu irmão Caim. Na verdade, Abel Pagán já se encontra

morto em vida.

Por outro lado, a mãe nega o presente e vive no passado. Renunciar o presente

é tão grave quanto renunciar o passado. Por fim, temos a filha que vive em outro

tempo, o tempo cibernético, por isso ela vive afastada da família. No conto, há a

desarmonia de uma família que não sabe viver em conformidade com o seu

micropresente, porque não o quer conectar com o macropresente. Portanto, um

passado sem presente é uma ilusão e um presente sem passado é um desengano.

8.4. Madre dolorosa: a árdua tarefa da reconstrução

Vivimos en constante encuentro de lo que no somos, es decir, con lo diferente. Descubrimos que sólo una identidad muerta es una identidad fija. Todos estamos siendo.

Carlos Fuentes (2012b, p.327)

O próximo conto do nosso estudo é “Madre Dolorosa”. A respeito da estrutura

narrativa, se tratam de cartas trocadas entre a senhora Vanina e José Nicasio. A

princípio não se sabe o porquê deles escreverem as cartas, mas ao longo da narrativa a

história é revelada. Esse intercâmbio de vozes narrativas é uma forma de digressão,

igual ao conto anterior. Justamente porque no conto temos dois personagens que

escrevem um ao outro, temos dois narradores em primeira pessoa conversando sobre

uma personagem em comum. Principiemos por analisar o personagem José Nicasio:

nasceu em uma comunidade indígena de Oaxaca, um dos estados mais pobre do

México, e com o tempo foi reconhecido como um grande pintor. Frequentava a alta

sociedade e até chegou a viver nos Estados Unidos. Por outro lado, a senhora Vanina é

de uma família europeia, que procurou refúgio no México por causa da Guerra Civil

espanhola.

O tema das cartas é Alessandra, filha da senhora Vanina: “¿Quién era mi hija?

No sé por donde empezar a contarle.” (FUENTES, 2006, p.113). Esta escreve a José

131

Nicasio contando sobre sua filha, para que ele a conheça... Conheça a pessoa a quem

assassinou. Por isso Elvira emprega o verbo no pretérito para se referir a sua filha:

“era”, já não é mais. Aqui outro dado: José Nicasio encontra-se preso nos EUA. Neste

conto se divisa o racismo, mas ao invés do tradicional. Comumente se espera que, no

México, o indígena seja quem sofra racismo, na verdade sofrem como o próprio José

Nicasio afirma “Nos gritan ¡indio! o nos gritan ¡prieto! cuando se vienen con nosotros.”

(FUENTES, 2006, p.123). A senhora Vanina não tem nenhum preconceito, como a

própria afirma em "Todos descendemos de otros. Todos venimos de otra parte.”

(FUENTES, 2006, p.113). O preconceito vem por parte de José Nicasio, no entanto, este

surgiu do preconceito que ele sofreu antes.

José Nicasio reconhece que Alessandra não tinha nenhum preconceito, como o

personagem afirma: “Era consciente de las hipocresías de nuestra sociedad y las

rechazaba.” (FUENTES, 2006, p.125). Mas isso não bastou, ao entardecer José Nicasio

matou Alessandra em Monte Albán. Aqui podemos fazer um breve comentário: Monte

Albán é um sítio arqueológico do estado de Oaxaca e que foi o berço das civilizações

pré-hispânicas zapotecas e mixtecas (Ávila Aldapa, 2008). Pode-se afirmar que há um

mito de sacrifício em relevo: um sacrifício humano praticado por um indígena.

Ambos os personagens-narrados, José Nicasio e a senhora Vanina, querem

saber o porquê da morte e através das cartas vão rememorando episódios passados

tentando montar esse quebra-cabeça. A primeira indagação que a mãe dolorosa

pergunta ao assassino é o motivo dele estar em Monte Albán se ele vivia nos Estados

Unidos: “Cuéntenme, ¿por qué estaba usted allí?” (FUENTES, 2006, p.114). José

Nicasio responde que já sentia nostalgia do seu povoado e por isso regressou. Porém,

ao estar de volta (FUENTES, 2006, p.117)

…me miraron con tanto rencor unos, avaricia otros, distancia los más señora, que decidí ya nunca volver al lugar de dónde salí. Pero ¿puede uno cortarse para siempre de sus raíces? ¿No nos queda algo que duele, como dicen que sigue doliendo un brazo amputado...? No podía regresar a mi pueblo. Podía solamente regresar a las ruinas de mi pueblo y desde allí contemplar serenamente a un mundo que era mío pero que ya no me reconocía.

132

Há elementos muito significativos no fragmento supracitado. José Nicasio não

contava que seu povoado iria rejeitá-lo, mas isso ocorreu porque de certa forma o

protagonista rejeitou a seu povo, pois ao subir socialmente foi afastando-se de suas

origens: “Tengo un corazón impaciente, señora. Subí, dejé detrás mi pueblo y mi gente

y esto me hace sentirme culpable, a decir verdad.” (FUENTES, 2006, p.122). Porém, o

próprio José Nicasio afirma que é impossível se separar totalmente de sua origem. Essa

é uma observação muito importante: cada um pode traçar o caminho que quiser e

puder, mas não pode desvencilhar-se de si próprio. E José Nicasio não conseguiu fugir

de si mesmo, do preconceito do qual sempre vivera.

Neste momento, trataremos de Alessandra, a assassinada. Assim descreve sua

mãe, a senhora Vanina: “Alessandra no participaba, no hacía amigos, vivía encerrada

en un globo de cultura.” (FUENTES, 2006, p.119). Alessandra é uma personagem de

berço, amante das artes e da filosofia que se sentia deslocada no mundo. Um tanto

diferente de José Nicasio, conforme observa senhora Vanina em carta a José Nicasio:

“Combatir la comodidad es más difícil que pelear con la penuria. Usted tenía que

lograr lo que no tenía. Ella tenía que alejarse de lo que ya tenía.” (FUENTES, 2006,

p.119).

Ainda de acordo com a senhora Vanina em carta dirigida ao assassino,

Alessandra “Era consciente de las hipocrisías de nuestra sociedad y las rechazaba”.

Segundo a mãe, não sendo José Nicasio atacado pelo racismo, ele foi atacado pelo

sexo: “Usted, usted no pudo despertar el deseo de mi hija. Usted, usted, aunque jamás

lo admita, deseó esa tarde a mi hija. Usted le hizo sentir que el sexo de un hombre la

amenazaba. Usted quería ser amado por una mujer que no lo deseaba.” (FUENTES,

2007, p.128). Seria a lógica diante da morte sem sentido de Alessandra, uma joven

bonita de classe média diante de um índio feio, como José Nicasio se refere a si

próprio. No entanto, o que levou à morte de Alessandra foi o medo que sentiu ao olhar

nos olhos de José Nicasio e perceber a incompletude da sua existência (FUENTES,

2006, p.30):

¿Me absuelve de mi incapacidad para pasarle la simpatía de mis ojos a la amargura de mis labios? Su hija me miró, señora, y yo hubiera querido decirle: “Sufro porque no puedo ayudar a nadie. (…) ¿qué voy a darles a los mexicanos mestizos que me detestan porque les recuerdo que en parte son

133

indios y corren el peligro que regresar a la tribu? ¿Qué puedo darles a los gringos que me usan de excusa para sentirse humanitarios? Soy cuota en todas partes, nunca un ser entero: ¿una cuota, una cantidad entre dos partes, nunca un ser entero?

O medo sentido por Alessandra, ao vislumbrar a inquietude de José Nicasio,

desperta a fúria do índio, como ele próprio afirma (FUENTES, 2006, p.131): “puedes

sentir lo que quieras de mi, repugnancia física, desprecio social, discriminación racial,

pero no sientas miedo, miedo no, por favor, por vida tuya, no me tengas miedo, si me

sigues mirando con miedo no podré soltarte […]”. Por fim Alessandra morre

estrangulada pelas mãos de José Nicasio.

A senhora Vanina por fim chega à seguinte conclusão: “Él te mató por miedo a

sí mismo, a su esfuerzo por salir de la oscuridad. Lo traicionaste con tu rechazo, hija.

[…] Viviré transformando tu muerte en mi reconciliación con el mundo que me dejaste

al morir” (FUENTES, 2006, p.135). Mas o mais importante é que a senhora Vanina

deduz que tudo na vida é um processo, é um desenvolvimento, inclusive do ser

humano. A existência é um mero instante suspenso entre dois nadas, conforme afirma

Gaston Bachelard (2007). Eis o fragmento crucial do conto para o nosso horizonte

teórico (FUENTES, 2006, p.133-134):

Somos libres porque nos movemos. Salimos de una herida que se llama la soledad y viajamos a otra herida que se llama la muerte. Hay un cruce de caminos entre el punto de partida y el puerto de llegada. En ese carrefour, mi niña adorada, encontramos siempre al otro, al que no es como nosotros, y nos vemos obligados a entender que si nos movemos y nos encontramos, debemos amarnos a partir del contraste.

Em síntese, vimos no conto que duas pessoas, a partir de suas próprias

memórias, tentam reconstruir um fato histórico, no caso, o assassinato de Alessandra.

As duas testemunhas, segundo a teoria memorialística, colocam em contraste duas

ideias de mundo: a da família de imigrantes europeus de classe média e a do indígena

José Nicásio que conseguiu subir na vida em troca de esquecer o passado, seu povoado

e sua gente. Justamente por tentar se esquecer de seu passado, que não foi possível,

José Nicasio é pego em fúria ao vislumbrar um olhar que o rejeita não pelo o que ele é,

134

mas pelo o que ele não é, ou seja, o que Alessandra viu foi um José Nicasio incompleto

e ver-se assim nos olhos de Alessandra foi o que enfureceu o seu assassino. A

incompletude de José Nicasio assustou a completude de Alessandra.

Portanto, o tempo interfere diretamente na vida de uma pessoa: como há

dimensões do tempo, há dimensões do ser. A existência só se dá através do tempo.

Entre as duas pontas do nada (“o que já não é” e “o que ainda não é”) está a nossa

árdua tarefa de construirmos e reconstruirmos. No caso do conto, tanto o assassino

quanto a mãe precisam reconstruir a vida deles, porque nesse vai-e-vem da vida, nesse

cruzamento, houve um embate.

8.5. Memórias fragmentadas em El padre eterno: entre a lembrança e o

esquecimento

El artista trata de reunir todo lo disperso. No importo el tema, dolor, muerte, nacimiento, revolución, poder, orgullo, vanidad, sueño, memoria, voluntad.

Carlos Fuentes (2012b, p.29)

O último conto de Todas las familias felices a ser estudado, nesta pesquisa, se

intitula “El padre eterno”. Trata-se da história de uma família rica formada pelo pai – o

dono da fortuna – e por suas três filhas, que se chamam Augusta, Genara e Julia. A

narrativa está composta de superposição de diálogos das filhas na (re)construção da

memória do pai. Para conseguir esse efeito, Carlos Fuentes lança mão das técnicas da

refletorização e do monólogo narrado. O conto gira em torno da reunião das três irmãs

por ordem testamentária (FUENTES, 2006, p.389-390):

Durante los diez años de que sigan de mi muerte, ustedes me velarán cada aniversario de mi nacimiento en el mismo humilde lugar donde nací: un viejo garaje junto al parque hundido. Esta es mi voluntad testamentaria. Quiero que recuerden de dónde viene la fortuna que heredarán. Desde abajo. Gracias al esfuerzo. […] No me importa lo que hagan durante el resto del año. […] Ahora van a sentir que heredar es algo más que un privilegio. Es una recompensa. No una lismona. […] Ya saben mi condición. Hagan lo que quiera pero no se casen. […] Y no tengan hijos.

135

A história do conto ocorre basicamente quando as três irmãs estão por velar

seu pai no último ano da década imposta. Ali as três irmãs já se encontram afastadas

uma da outra:

Las tres hermanas – Julia, Genara y Augusta – acuden al llamado del padre el día del aniversario. Durante el resto del año, ni se ven ni se hablan. Genara hace alfarería. Julia toca violín. Solo Augusta dirige un banco […]. Aunque no se busquen entre sí, las une el hecho de ser hijas del mismo padre y hacen lo que hacen para demostrarle al padre que ellas no necesitan de la herencia.

No velório as filhas falam, cada uma a seu modo, de suas vidas com relação ao

pai, o que gera conflitos, porque “cada una, en estos momentos, hace una de las dos

cosas. Recuerda o elimina memorias” (FUENTES, 2006, p.393). Todas moraram com o

pai até a data de falecimento do patriarca, no entanto, cada uma delas tem uma

representação diferente sobre o pai. E de certa forma é esse o desejo verdadeiro do

pai: “Él se encargó de no ser una pura memoria pía. Esta cerimonia anual lo mentiene

vivo.” – reflexiona Augusta (FUENTES, 2006, p.391).

A mais velha, Augusta, é a desobediente e tem uma visão tirana do seu pai, vê-

lo como aquele responsável por dificultar-lhes a vida sempre, inclusive depois de sua

morte: “‘Papá nos engaña. Siempre nos engañó. El engaño es su profesión’.”

(FUENTES, 2006, p.391). O método rigoroso do pai de educar faz com que a mais velha

diga: “- Yo diría que un padre puede ser una madre perversa.” (FUENTES, 2006, p.395).

Augusta se sentia incômoda com a herança moral do pai.

Genara é a que vê as atitudes do pai com um fim de ensinamento, embora as

lições aprendidas fossem ao contrário das que o pai queria. Genera é a típica filha que

não “bate-boca”, mas tampouco abaixa a cabeça: “¿Cómo iba a decirle al padre

‘papacito lindo’, como la hipócrita de la Julia, si no lo creia? No, no era floja. Evitaba

contradecir al padre, llenar sus expectativas respecto al cariño que merecía.”

(FUENTES, 2006, p.393).

136

E, por fim, a caçula Juliana “había sido la niña mimada y luego la defensora de

la imagen del padre” (FUENTES, 2006, p.409). Ainda segundo o narrador, “Julia se

sentía distinta. Devota del padre. Caso semejante a lo que la madre fue en vida. No lo

sabía. No conoció a mamá.” (FUENTES, 2006, p.400). De acordo com Genara, “Juliana

era buena por conveniencia, porque quería irse al cielo, cuando en realidad la gente

buena es la más numerosa población del infierno. Ser bondadosa puede engañar a

Dios pero no al Diablo” (FUENTES, 2006, p.397).

O mais importante desse conto, a nosso ver, é justamente esse jogo de imagens

que cada uma tem do pai, como um jogo de espelhismo, cada uma vê um reflexo, mas

nunca o total. O mesmo acontece com a realidade, como afirma Carlos Fuentes

(1998a, p.93): “Si la realidad se ha vuelto plurívoca, la literatura la reflejará sólo en la

medida en que obligue a la propia realidad a someterse a lecturas divergentes y a

visiones desde perspectivas variables”.

Isso acontece, entre outros fatores, porque temos noções da realidade com

base em experiência vividas, ou seja, não do entendimento desse instante, mas de

instantes anteriores que formam o passado que coabita no micropresente e que

também faz parte do macropresente. Assim, “o indivíduo é a expressão não de uma

causa constante, mas de uma justaposição de lembranças incessantes fixadas pela

matéria e cuja ligação não passa, ela própria, de um hábito que sobrepõe a todos os

demais.” (Gaston Roupnel apud BACHELARD, 2007, p.70).

Se ninguém apreende a realidade em sua totalidade (pois a apreendemos por

meio de instantes passados), como surge essa consciência da realidade? Aqui entra o

papel da memória, aquela que liga os instantes e, portanto, nos dá uma ideia de tempo

e, consequentemente, a noção de realidade. Este é o ponto-chave do conto: cada irmã

possui uma memória distinta do pai, assim cada uma apreendeu uma face dele.

Deduzimos, a partir da seguinte interrogante: “-¿Qué diferencia hay entre lo que era y

lo que fue? - La diferencia entre la conciencia y la memoria.” (FUENTES, 2006, p.408).

Um dos exemplos mais crassos da reconstrução da memória do pai se dá

quando Genara comenta (FUENTES, 2006, p.402):

137

- [...] Porque viéndolo bien, papá era algo tan simple como su olor a agua de colonia. - Olía a incienso – dijo insolente Augusta.- A tabaco, sonrió Julia. - A sudor – insistió Augusta –. A sudor agrio. - Era un hombre correcto, ceremonioso – pestañeó Julia. - Tieso, pretencioso – hizo una mueca Augusta. - ¿Muy trabajador? – inquirió Julia. - Hacía trabajar a los demás y se aprovechaba de ellos – dijo antipática Augusta.

Nessas reuniões não somente havia a (re)construção da memoria do pai, mas a

(re)construção das próprias irmãs: “Es cierto: había en estas reuniones anuales una

latente voluntad de consolación. Que las tres, tan diferentes entre sí, recordasen que

al cabo eran hermanas. Acaso las unía, con máscaras disímiles, la original y originario,

el poderoso y eterno padre.” (FUENTES, 2006, p.399). Ao fim da vigília, cada uma toma

para si as suas lembranças e fantasmas e partem em busca da herança.

8.6. Recapitulando

Começamos este capítulo abordando o estatuto irônico da ironia que perfaz

todos os contos da coletânea de contos Todas las familias felices. Nos contos

selecionados, averiguamos que a infelicidade dos personagens se encontra na

dissonância dos mesmos com seu tempo. Em “Una familia de tantas” temos a história

da família Pagán, todos infelizes porque todos os personagens negam o tempo e, ao

negar ao tempo, negam a si próprios. A filha nega o tempo presente e se refugia no

mundo virtual. O filho nega o passado porque nega o pai. A mãe nega o presente

porque não aceita mais ser jovem. Todos estão com sua humanidade inacabada

(Fuentes, 2012b).

“Madre dolorosa” narra a construção da memória dos últimos instantes de vida

de Alessandra, que foi morta pelo indígena José Nicasio porque este vivia em angústia

consigo mesmo por ter negado seu passado e seu povoado. O medo provocado em

Alessandra quando ela vislumbrou a angústia no olhar de Nicasio foi o que motivou o

138

indígena a matar Alessandra. Verifica-se nesta trama também a questão da

humanidade inacabada. No conto “El padre eterno” há um conflito entre as memórias

individuais e a memória coletiva das irmãs. As testemunhas (Halbwachs, 1990) tentam

chegar a um denominador comum sobre a memória que cada um tem do pai e, na

verdade, pode-se dizer que esse foi o objetivo do pai com a ordem testamentária tão

exótica: manter-se vivo na mente das filhas.

Todas compartem, segundo a teoria bergsoniana, a memória-hábito, ou seja, a

lembrança sobre hábitos rotineiros. No entanto, o que diferencia as irmãs é a

memória-lembrança, pois cada irmã experimentou de forma diferente a convivência

com o singular pai. As irmãs, em suas recordações, durante as reuniões familiares,

lançavam mão da metamemória (Candau, 2010), a representação da própria memória

e que constrói nossa identidade, no caso do conto, a identidade entre as irmãs e o

próprio pai delas.

Vimos que a linguagem de Carlos Fuentes abarca o complexo entendimento do

tempo, isto é, o tempo como elemento constituidor da sua produção literária. No

entanto, o tempo está intrinsecamente relacionado à memória, porque somente

através dela percebemos o passar do tempo.

139

Conclusão

Nesta dissertação, tivemos como proposta investigar a concepção do tempo na

constística do escritor mexicano Carlos Fuentes. Constatamos que o tempo, em sua

produção artística, é um elemento fundamental, tanto o tempo experimentado pelos

personagens quanto a conceção do tempo na trama narrativa. Ao justificar a inserção

de Carlos Fuentes na Narrativa Mexicana Moderna, como herdeiro de Mariano Azuela,

Agustín Yáñéz e Juan Rulfo, foi porque Carlos Fuentes, à semelhança desses escritores,

recupera o imaginário mítico mesoamericano como um símbolo de modernidade. Os

referidos escritores escreveram obras modernas porque antes de qualquer de tudo

escreveram sobre o México.

Carlos Fuentes e Juan Rulfo atingiram profundamente o pensamento pré-

hispânico e resgataram-no simbolicamente. Na obra fuentiana, comprovamos que este

pensamento representado pelo mito é recuperado pela memória. E eis aqui a

engrenagem do tempo: uma meta-memória - em palavras de Candau (2010) - funda a

identidade do ser. A memória, em Carlos Fuentes, é responsável por resgatar,

literariamente, o passado da ordem da lonjura e do outrora - em termos de Sousa

(1995) – que é representado pelos mitos pré-hispânicos. Só se vive plenamente quem

atualiza o seu presente com o passado para construir um futuro.

Por isso, foi necessário voltarmos um século antes de Carlos Fuentes, porque é

justamente no século XIX em que os pensadores se propõem a estabelecer e estudar o

passado mexicano, mais especificamente o pré-hispânico, que na época da Conquista e

Colônia foi renegado (Gómez-Aguado, 2010). O que destacamos no primeiro capítulo

foi a busca de uma nova estética; tengo como base a defesa da língua americana e a

criação de uma sintaxe romântica.

Já no início do século XX temos um evento que transformará o que até então

era o México: o movimento revolucionário que mudaria drasticamente o destino do

país. No campo artístico, decai as escolas realistas e modernistas, surge na pintura o

Movimento Muralista Mexicano e na literatua a escola denomidana de Literatura da

140

Revolução Mexicana. Da barbárie que surgiram escritores como Mariano Azuela, que

buscou ser um cronista da barbárie. É da aniquilação que surge o novo: a Narrativa

Mexicana Moderna.

O marco fundador dessa nova escola é Agustín Yáñez com o seu romance Al filo

del agua. A Prosa Mexicana Moderna incorporará técnicas de outras culturas literárias,

tais como a refletorização e o monólogo narrado. Por tanto, a produção literária da

época passa a se preocupar com o drama das paixões, não mais o drama das ações.

Paixões e mitos mexicanos é o que constatamos na obra Pedro Páramo, de Juan Rulfo.

A mexicanidade passa a ser o símbolo da Narrativa Mexicana Moderna. Averiguamos

que Carlos Fuentes foi um herdeiro dessa nova escola.

Nos seis contos analizados nesta pesquisa, chegamos a conclusão que o escritor

mexicano, quebra com a ideia ocidental do tempo e da realidade. Nos contos de Los días

enmascarados verificamos o rapto do presente. Em “Chac Mool” constatamos que o eixo

central da narrativa é a questão do tempo alidado ao mito e em “Tlactocatzine, del jardin de

Flandes” averiguamos a relação de interdependência que se estabelece entre mito e

natureza. Por sua vez, em “Un fantasma tropical”, de Cuentos sobrenaturales,

estudamos a complementariedade que existe entre mito e história. Ao fim e ao cabo,

comprovamos que a memória é o eixo central que articula os conceitos de tempo,

mito, ficção e história.

Na última parte desta pesquisa averiguamos como o pensamento pré-hispânico

mexicano é o articulador da trama narrativa em Todas las familias felices. Verificamos

nos contos analizados criticamente que todos os personagens em questão estão em

dissonância com a ideia do tempo complexo, isto é, não articulam devidamente o

passado, o presente e o futuro. Personagens que só vivem no presente ou que só

vivem no passado não são capazes de construir um futuro.

Constatamos que nos contos de Carlos Fuentes o retorno do tempo-lonjura,

explícito ou implicitamente na trama, está relacionado com a concepção de mito: mito,

tempo e memória criando um tripé de composição artística. A problemática da

memória leva ao questionamento do ser. Foi o que estudamos em “Chac Mool”,

“Tlactozatzine, del Jardín de Flandes”, “Un fantasma tropical”, “Una familia de tantas”,

“Madre dolorsa” e “El padre eterno”.

141

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