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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FOTO-ÍCONES DA ENCARNAÇÃO DO PÁTHOS À PERFORMANCE SOCIAL ISABEL STEIN Rio de Janeiro 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FOTO-ÍCONES

DA ENCARNAÇÃO DO PÁTHOS À PERFORMANCE SOCIAL

ISABEL STEIN

Rio de Janeiro

2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROESCOLA DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E CULTURA

ISABEL STEIN

FOTO-ÍCONES

DA ENCARNAÇÃO DO PÁTHOS À PERFORMANCE SOCIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Comunicação e Cultura, da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Comunicação e Cultura.

Orientação: Prof. Dr. Mauricio Lissovsky

Rio de Janeiro

2018

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

L819 Stein, Isabel.

Foto-ícones: da encarnação do Páthos à performance social / Isabel Stein. Rio de Janeiro, 2018.

144 f.

Orientador: Mauricio Lissovsky.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, 2018.

1. Fotografia. 2. Performance (Arte) . 3. Comunicação visual. I. Lissovsky, Mauricio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação. CDD: 770

Elaborada por: Adriana Almeida Campos CRB-7/4081

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Agradecimentos

A Mauricio Lissovsky, pela interlocução sempre muito inspiradora e por me mostrar como perseguir o que acredito, ainda que tal perseguição pareça ser, em um primeiro momento, caótica.

Ao meu namorado Felipe Xavier, sempre o primeiro a ler meus textos, pelas energias compartilhadas todos os dias, pelo suporte constante nos momentos mais turbulentos, pelas críticas tão importantes para esta pesquisa e pela resistência conjunta a tudo o que limita.

A Daniela Verztman, tão longe e tão perto, com quem compartilho momentos alegres há mais de uma década, pelo apoio, mesmo à distância, pelas conversas teóricas estimulantes e pelas dicas bibliográficas, que abriram muitos caminhos.

A Vijay Patel, que a um oceano de distância resolvia minhas dúvidas, pela ajuda nas traduções e pelas conversas produtivas nos últimos meses de escrita, que apontaram atraentes estradas futuras.

A Isabel Veiga, sempre disponível no meio da crise, acalmando meus ânimos tão naturalmente ansiosos, pela leitura cuidadosa e pelas contribuições pertinentes.

Às amigas da ECO Anna Bentes, Isabel Veiga e Flávia Meireles pelo intenso afeto durante essa jornada. Aos amigos da ECO Ricardo Duarte, Hermano Callou, Wilson Milani, Paulo Faltay, Arthur Frazão, Rodrigo Sombra e Pedro Pinheiro Neves, que durante esses dois anos estiveram presentes trocando experiências acadêmicas e, principalmente, de vida.

A Ana Heredia e a Dante Martins Teixeira, pela ajuda científica quando precisei cruzar a linha das humanas e colocar a ponta do dedo na zoologia.

A Paulo Vaz, pelo estímulo inicial para adentrar nesta aventura.

A Teresa Bastos, por ter aceitado gentilmente em participar de minha banca de qualificação e pelas contribuições importantes. A Leandro Pimentel por ter aceitado, com tanto interesse, em compor minha banca. A Ana Maria Mauad, cujo trabalho foi a inspiração para este estudo, por ter aceitado participar das bancas de qualificação e de conclusão, e pelas críticas, provocações e sugestões sem as quais esta pesquisa não seria esta pesquisa, mas outra, completamente diferente.

Aos meus pais, Cristina e Mauro Stein, pelo carinho e interesse constantes.

Aos funcionários e professores da ECO, pela atenção e pelas oportunidades que colaboraram com esta pesquisa.

À CAPES, pelo financiamento do mestrado.

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—————

Em especial, a Nina, minha cadela, que tantas vezes deitou a cabeça em meu colo enquanto eu escrevia, e cuja ausência na parte final deste percurso foi quase impossível de suportar.

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RESUMO

O presente estudo pretende sugerir a compreensão de fotografias icônicas como espaços para

performances sociais. A partir de análises transversais de quatro foto-ícones – Molotov Man,

The Burning Monk, Leap Into Freedom e uma fotografia do período da ditadura civil-militar

no Brasil – sugerimos que as trajetórias destas imagens incorporam e performam demandas de

caráter histórico-antropológico. Dessa forma, os foto-ícones são enredados em constelações

teóricas e visuais que objetivam pensar as possibilidades tanto estéticas como políticas dos

imaginários coletivos que eles compõem, e a complexidade visual dos desejos e das tensões

que eles acessam.

Palavras-chave: Foto-ícones; Performance social; Páthos; Cultura visual

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ABSTRACT

The present study intends to explore the understanding of iconic photographs as spaces for

social performances. From transversal analyzes of four photo-icons – Molotov Man, The

Burning Monk, Leap Into Freedom and a photograph of the period of the civil-military

dictatorship in Brazil – we suggest that the trajectories of these images incorporate and

perform historical-anthropological demands. In this way, these photo-icons are entangled in

theoretical and visual constellations that aim to think about the aesthetic and political

possibilities of the collective imaginaries composed by them, and the visual complexity of the

desires and tensions that they access.

Key words: Photo-icons; Social performance; Pathos; Visual culture

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Molotov Man 18

Figura 2 The Burning Monk 20

Figura 3 Fotografia de Kaoru Higuchi feita durante a Passeata dos Cem Mil 21

Figura 4 Leap Into Freedom 22

Figura 5 O exército em patrulha nas ruas 55

Figura 6 Apropriações de Molotov Man 61

Figura 7 Prancha do Atlas Mnemosyne: Pedagogo de Nióbidas e David 64

Figura 8 Molotov Man e David de Bernini 66

Figura 9 Vajrapani 69

Figura 10 Agni 69

Figura 11 Monge despeja gasolina em Thích Quảng Ðức 74

Figura 12 Thích Quảng Ðức morto 74

Figura 13 Thích Quảng Ðức em chamas 75

Figura 14 Tabela - Tempo messiânico, história empírica e ação revolucionária 85

Figura 15 Muros palestinos com diversas camadas de grafite 93

Figura 16 Grafite em Atenas 94

Figura 17 Anankê 107

Figura 18 Arame farpado na Guerra Hispano-Americana 109

Figura 19 Cão com máscara de gás 114

Figura 20 Cão mensageiro da Primeira Guerra Mundial 115

Figura 21 Sargento Stubby 116

Figura 22 Soldado em treinamento em Carrabelle Beach 117

Figura 23 Frango d’água empalado 121

Figura 24 Empalamentos de Vlad III 122

Figura 25 Imagem extraída do filme Kapò (Gillo Pontecorvo) 123

Figura 26 Refugiado sírio salta sobre cerca farpada entre a Síria e a Turquia 127

Figura 27 Hans Conrad Schumann alguns instantes antes do salto 128

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SUMÁRIO

Introdução 10

1. VIOLAR, VOAR, VOLATIZAR

1.1. AS IMAGENS SURGEM

1.2. A IMAGEM VIVA: USO, DOMESTICAÇÃO E SELVAGERIA

1.3. EMERGÊNCIA E PERFORMANCE

1.4. CORPO: A BUSCA DO PÁTHOS

1.5. DOS PODERES PROCESSUAIS

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2. FOTO-ÍCONES FLAMEJANTES: DO CONSUMO DE OXIGÊNIO PELOS QUE

ACREDITAM EM COMBUSTÃO

2.1. MOLOTOV-CLICK: DA DOMESTICAÇÃO DAS ARMAS

2.1.1. Como desenhar um alvo

2.1.2. Cristo, Pepsi, jeans e stickers: a mira infalível de Pablo “Bareta” Arauz

2.1.3. Um molotov contra Golias: a expulsão de Somoza do Vale de Elah

2.2. O HOMEM TRANSCENDE: NAS RUAS DE SAIGON, UM ROSTO DE

CINZAS

2.2.1. A fumaça eterna do martírio: caminhos de fogo e incenso entre Shan-yin e o

cruzamento Phan Dinh Phung - Le Van Duyet

2.2.2. De todos os fogos, o rosto

2.2.3. Morte e aliança: da incineração do Tio Sam

2.2.4. A trajetória de uma faísca: o Austin azul que interrompeu o trânsito

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3. PAREDES E SUBVERSÕES: QUANDO O CIMENTO VIRA TINTA, E O

ARAME, CARNE

3.1. ESTUDANTES ESCREVEM, GENERAIS AGRIDEM: O CORTE

CALIGRÁFICO DO VIDRO DOS CEM MIL

3.1.1. Crise e violação: intervenções espaciais

3.1.2. “Um animal fabuloso”: abalos sísmicos, o hábito de escrever e a perversão dos

muros

3.1.3. A recuperação do corpo perdido: ocupação mineral e descolonização biológica

3.1.4. O limbo, o escrivão e o estudante: da impossibilidade da escrita e da não

escrita

3.2. ARAME FARPADO, EUROPA CENTRAL: RASGANDO O UNIFORME E O

CÉU DE BERLIM

3.2.1. Das fazendas às trincheiras, das trincheiras aos campos, dos campos à cidade:

o crime, a guerra e a temperatura do metal

3.2.2. A coleira de Schumann: só se ganha asas no Ocidente

3.2.3. Aves, homens e o sobrenatural: ascendendo no campo gravitacional alemão ou

O Soldado Perseguido e Seus Algozes, Ainda

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89

89

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105

108

108

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Considerações finais 130

Referências bibliográficas 134

Referências literárias 143

Filmografia 144

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INTRODUÇÃO

Foto-ícones são imagens que condensam um acontecimento. São fotografias que

circulam no espaço público de forma peculiar. Elas são extremamente conhecidas, e remetem

a algum evento específico, através de relações associativas. No processo de apreensão destas

imagens, a memória coletiva é ativada imediatamente, remetendo ao evento de forma

instantânea. Os foto-ícones podem ser, portanto, uma manifestação ideal da dupla existência

das imagens, que retêm, mas também projetam: se, por um lado, são duradouras

sobrevivências sintomáticas de outras experiências, por outro, atuam de modo germinal na

movimentação de atores sociais, servindo como ambientes de encenação e experimentação do

espaço público, das relações histórico-antropológicas.

A participação do fotojornalismo na construção de um sentido histórico no século XX

é inegável. Diversos estudos preocuparam-se, através das mais diversas abordagens, em

mapear este cenário ao longo do século, e em investigar tanto a produção quanto a recepção

das imagens neste contexto. Outros trabalhos tiveram como foco a circulação dessas

fotografias na mídia, na tentativa de perceber os usos e as implicações discursivas que elas

carregam.

Apesar de ter como objeto fotografias que fazem parte do contexto fotojornalístico,

esta pesquisa, contudo, pouco se refere a ele. Ela não diz respeito, portanto, à participação

conjuntural das imagens em uma estrutura maior, a seu condicionamento a uma área

específica de conhecimento, às intenções que sua produção e uso carregam, e muito menos a

sua função narrativa em relação a qualquer acontecimento. Caminhando em outra direção,

elas são tratadas, antes, como imagens que se projetam, devido a uma força inerente a elas,

recuperando e prevendo outras imagens, outras vivências. Dessa forma, a circulação no

espaço público funciona, então, como condição de possibilidade para entender as capacidades

transformadoras que elas contêm, e as energias que lhes fundamentam.

Com estes objetivos em vista, parece viável afirmar que os foto-ícones demonstram

tais processos com bastante eficiência, uma vez que tornam-se modelos para performances

sociais e extrapolam sua própria existência, vazando, transbordando a si mesmos para fora de

seus limites tangíveis – voltando à questão inicial, sua existência fotojornalística, portanto,

mostra-se limitada. Assim, nesta pesquisa, serão analisadas quatro fotografias que vieram a

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ser o que se convencionou chamar de foto-ícones. São elas: Molotov Man (1979), The

Burning Monk (1963), Leap into Freedom (1961) e uma famosa fotografia da época da

ditadura civil-militar no Brasil, feita em 1968, de título desconhecido.

Os motivos para a escolha destas quatro imagens, especificamente, são bastante

arbitrários, mas, nem por isso, aleatórios. De fato, este conjunto de fotografias permite uma

análise muito funcional, em que pode-se traçar o ponto de interseção entre elas, mas, também,

as diferentes trajetórias que possuem.

As quatro imagens carregam um mesmo páthos, em linguagem warburguiana. Este

páthos, essa energia interna, diz respeito a potência transgressora, ou de transformação, que

elas contêm. Cada uma das fotografias figura o corpus – conceito que que Christopher Pinney

recupera de Roland Barthes, definido como aquilo que em uma fotografia “significa todas

aquelas generalidades normalizantes que esperamos que o real gere, mas que em sua

especificidade fotográfica não é capaz de gerar” (PINNEY, 2012, p. 143) – que carrega e do 1

qual é produto durante sua transformação em ícone. Porém, os processos responsáveis por

esta passagem são diversos. Aqui, são identificados quatro deles: replicação, impacto, síntese

e suspensão.

Portanto, a escolha destas imagens carrega, evidentemente, um traço subjetivo, em que

minhas próprias questões colocam-se e projetam-se nelas, recebendo acolhimento; mas,

também, um aspecto estratégico e metodológico, já que sua evidência como foto-ícones

manifesta-se de forma diferenciada em cada uma, possibilitando uma análise mais completa e

profunda dos processos envolvidos.

Ainda que três das quatro fotografias tenham sido feitas na mesma década, a

circulação delas se deu de maneira bastante diferenciada. Enquanto, por exemplo, The

Burning Monk tornou-se extremamente popular, virando até mesmo capa de álbum – o

primeiro da banda Rage Against the Machine, lançado quase trinta anos após o evento que

retrata –, a imagem de um estudante pintando as palavras “abaixo a ditadura” em um muro, no

Brasil, provavelmente é um foto-ícone somente dentro do país. Molotov Man apresenta uma

circulação bastante peculiar. A imagem, cujo nascimento aderiu sincrônica e perfeitamente ao

sucesso da Revolução Sandinista, tornou-se rapidamente um ícone na Nicarágua pós-

revolucionária; uma imagem que incorporava alguns valores recém conquistados (ao menos

Todas as traduções de citações em línguas estrangeiras foram feitas por mim.1

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assim acreditavam, então, os seguidores de Daniel Ortega). Com o tempo, esta imagem,

diferentemente das outras estudadas nesta pesquisa, passou a existir, quase que

exclusivamente, em suas infinitas apropriações – muitas vezes inconscientes. Assim, a

circulação de Molotov Man assume uma proporção imensa, mas a partir outras vivências,

outros espectros e outros corpos, de outrora e alhures. Já com alcance menor, temos a última

fotografia, Leap into Freedom, que prefigura, como ícone, a divisão da Alemanha durante a

Guerra Fria, mas que nunca chegou a tornar-se extremamente popular por tempo prolongado.

Esta dissertação é composta por três capítulos, além da conclusão: dois dedicados ao

estudo das fotografias, a partir se suas especificidades morfológicas, estéticas e discursivas; e

um capítulo inicial, em que serão estabelecidos o campo teórico, as particularidades históricas

e as questões a serem trabalhadas no resto do texto. Espera-se, com esta composição,

conseguir traçar problemas a partir das imagens, contextualizar o recorte proposto, e apontar,

ainda, possibilidades não exploradas nesta pesquisa.

No primeiro capítulo, os quatro foto-ícones são apresentados. Em seguida, é feito um

levantamento dos usos acadêmicos e não acadêmicos do termo foto-ícone, um mapeamento

das teorias que o cercam, e um aprofundamento nos campos de estudo em que elas estão

inscritas. Além disso, são explorados alguns estudos já existentes sobre foto-ícones, com o

objetivo de traçar a abordagem pretendida nesta pesquisa, em que alguns métodos e princípios

destes trabalhos serão recuperados e aplicados – mesmo que com algumas diferenças – e

outros, questionados, de forma a colaborar criticamente com as discussões sobre fotografias

icônicas e com as linhas de pensamento sobre imagens que as envolvem.

Nesse capítulo, pretende-se, ainda, sugerir algumas hipóteses que norteiam a pesquisa,

e explicitar algumas das motivações que a geraram. Nesse sentido, o pensamento de alguns

autores será destacado, como propostas de abordagens para o entendimento das fotografias em

questão como objetos histórico-antropológicos que servem como modelos para performances

sociais. Ao final do capítulo, é proposta uma análise das trajetórias das quatro imagens para se

tornarem ícones, que seriam geradas pelas capacidades já mencionadas: replicação, impacto,

síntese e suspensão. Com o objetivo de inscrever estes movimentos em um território mais

amplo e conceitual – uma vez que eles não aparecem subitamente, mas dentro de construções

de sentido específicas –, os termos são relacionados com as ideias de mímese, interrupção,

analogia e retenção, respectivamente.

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Os dois capítulos subsequentes, Foto-ícones flamejantes: do consumo de oxigênio

pelos que acreditam em combustão e Paredes e subversões: quando o cimento vira tinta, e o

arame, carne, serão guiados pelas próprias imagens que lhes servem de objetos. Eles

consistem em análises que sugerem como cada um dos processos citados acima colaboraram

para que a função ícone subsuma progressivamente a função índex de cada fotografia. Além

disso, o caráter performático das imagens servirá como porta de entrada para que se entenda

quais situações elas encenam e demandam, uma vez que circulam e vivem constantemente –

mesmo que meio século após sua emergência.

Cada um desses dois capítulos será dividido em dois subcapítulos, de modo que cada

fotografia forma um único subcapítulo. A divisão foi feita a partir de elementos visuais

presentes nas imagens: os materiais voláteis – o fogo e a bomba caseira, que figuram em The

Burning Monk e Molotov Man; e os materiais sólidos, como concreto, arame e cimento,

aparentes em Leap Into Freedom e no foto-ícone brasileiro. Além disso, outro fator agrupa

estas imagens em dois diferentes blocos: as primeiras foram feitas em contextos de guerras – a

guerra civil na Nicarágua e a Guerra do Vietnã –, e têm como marca uma reivindicação por

autonomia. Em ambos os casos, a dominação de um Estado (os EUA, nas duas situações)

sobre outro está implicada, gerando descargas opressoras. As segundas foram produzidas em

contextos extremamente conflituosos – a ditadura no Brasil e a divisão da Alemanha na

Guerra Fria – que, porém, não configuravam, especificamente, guerras. Ambas carregam um

desejo de liberdade explícito.

Em Molotov-click: da domesticação das armas, são propostas diversas formas de

identificação com a imagem, a partir do contexto político em que a fotografia se inscreve e de

seus elementos visuais. Molotov Man também é inserido em uma abordagem que pretende

apreender suas infiltrações em outras imagens, e vice-versa.

No subcapítulo O homem transcende: nas ruas de Saigon, um rosto de cinzas, o foto-

ícone The Burning Monk é analisado em uma abordagem que explora sua trajetória

recuperando um pouco da cultura visual do budismo, e propondo uma leitura a partir da teoria

de Hans Belting. Por fim, é sugerida uma análise que pensa os processos e a sobreposições

temporais na imagem.

Estudantes escrevem, generais planejam: o corte caligráfico do vidro dos cem mil é

centrado no foto-ícone da ditadura civil-militar brasileira. Através de uma abordagem que

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aproxima-se da antropologia, a fotografia é compreendida como um tropo visual. Também é

mostrado como seu potencial revolucionário, ou libertário, é condicionado à sua própria

ambiguidade.

Finalmente, em Arame farpado, Europa Central: rasgando o uniforme e o céu de

Berlim, a trajetória de um elemento visual da imagem conduz o texto. Uma abordagem que

propõe questionamentos éticos e transformações morfológicas aos objetos presentes na

fotografia a atualiza como problema contemporâneo.

Nas considerações finais, as discussões que decorreram o texto são situadas em

problemáticas mais abrangentes e atuais, definindo um posicionamento específico a respeito

das questões que envolvem as imagens, hoje. São apontados, também, temas que não foram

explorados na pesquisa, de modo a sugerir possibilidades para futuros estudos.

Com as análises aqui apresentadas pretende-se acrescentar camadas sensíveis às

apreensões destas imagens. Barthes constatou que sentia-se transpassado por aquilo que

“parte da cena, como uma flecha” (2015, p. 29), e adotou a palavra em latim que designava

“essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo” (BARTHES, 2015, p.

29). O fogo queima, e os materiais sólidos podem, sempre, arranhar, cortar, ferir.

Na introdução do livro Forensis: The Architecture of Public Truth (2014), publicado

pelo grupo Forensic Architecture, Eyal Weizman afirma que o objetivo do grupo é estabelecer

“uma relação entre a animação de objetos materiais e a reunião de coletivos políticos.” (2014,

p. 9), e afirma que “a política transformadora deve começar com questões materiais, assim

como o vórtice revolucionário lentamente se juntou ao redor das larvas na carne podre a bordo

do Potemkin.” (WEIZMAN, 2014, p. 11). Não é mera coincidência que o autor tenha

utilizado um episódio histórico que remete, inevitavelmente, a uma imagem do consagrado

filme de Eisenstein para produzir a analogia perfeita – o convite irrecusável e incontestável 2

para que o leitor acolha, ao menos de início, sua argumentação. Considerando a iconicidade

do filme em relação ao evento, a referência de Weizman levanta uma possível constatação: a

de que a encarnação – literal, nesse caso – da revolução passa por outro movimento de

incorporação, que faz com ela seja possível: sua transformação em imagem.

O primeiro dos cinco atos em que é dividido o filme Encouraçado Potemkin (1925), Men and Maggots, encena 2

a conhecida rebelião de 1905, na embarcação russa, cuja tripulação recusou-se a comer borscht (uma sopa de beterraba russa) feito com um pedaço de carne repleto de larvas. Na sequência do filme, o pedaço de carne assume simbolicamente a função catalisadora da revolução que virá a seguir.

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Partindo, portanto, destas premissas – apontadas, por sua vez, pelos elementos visuais

presentes nos foto-ícones – seguiremos com um recorte teórico que possibilita uma leitura

transversal de algumas dinâmicas sociais inscritas nas fotografias, de modo a “tecer nosso

mundo junto” (LATOUR, 1993, p. 3) – nosso mundo físico, nossas imagens, nossos processos

histórico-antropológicos – através das habilidades performáticas apresentadas por elas. O ar é

matéria-prima para incêndios; e se existem larvas no concreto, elas devem aparecer.

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1

VIOLAR, VOAR, VOLATIZAR

Esta é a história. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e

denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente. Ela reitera, um regime diferente, os mitos que se constroem sobre

um assassinato ou uma morte originária, e que fazem da linguagem o vestígio sempre remanescente de um

começo tão impossível de reencontrar quanto de esquecer.

– Michel de Certeau

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1.1. AS IMAGENS SURGEM

Nicarágua, julho de 1979. Próximo ao muro da sede da Guarda Nacional, um “clique”

de câmera produz um ícone. A fotografia intitulada Molotov Man (figura 1), produzida pela

fotógrafa Susan Meiselas, sofreu, ao longo dos anos, uma trajetória que indica sua

transformação em ícone. Durante um dos embates do evento que ficou conhecido como

Revolução Sandinista, Meiselas fotografou um homem chamado Pablo Arauz, enquanto

lançava uma garrafa de Pepsi cujo conteúdo era uma bomba caseira – conhecida como

coquetel molotov. Desde os primeiros anos da década de 1960, a Frente Sandinista de

Liberação Nacional (FSLN) fazia frente ao poder da família Somoza, que governava o país

com uma ditadura há décadas. Em 1979, um dia após o gesto de Meiselas, os sandinistas

conseguiram estabelecer um governo que durou onze anos.

A fotografia em questão simbolizou, na época, este momento: a virada histórica que

marcou o fim do governo de Anastasio Somoza Debayle e a tomada de poder pelos

revolucionários sandinistas. A imagem continha, desde o início, uma forte carga política,

sublinhada sobretudo pelo posicionamento ideológico da fotógrafa. A esse respeito, uma outra

fotografia pode ser citada. Ela foi feita instantes antes de Molotov Man, enquanto outro

homem acendia a bomba contida na garrafa de Pepsi que Arauz segura. Em segundo plano,

três homens armados observam. Dois deles encontram-se agachados, escondidos atrás de uma

pilha de sacos. Conclui-se que toda ação clandestina foi feita na presença da fotógrafa, e que,

portanto, a conhecida imagem do Molotov Man não foi meramente uma “captura” aleatória,

um “instante de sorte”, ou simplesmente um “estar no lugar certo na hora certa”. Meiselas não

só sabia que o evento aconteceria, como participava, ainda que sua arma, diferente da de seus

modelos, fosse ideológica. Com essa fotografia, fica explícita a confiança dos combatentes

revolucionários na fotógrafa-cúmplice.

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Figura 1 - Molotov Man

A fotografia The Burning Monk (figura 2) foi feita pelo fotógrafo de imprensa

Malcolm Browne, em 11 de junho de 1963, no Vietnã. No dia anterior, Browne e outros

correspondentes americanos ficaram sabendo que “algo importante” aconteceria na manhã do

dia seguinte em um importante cruzamento em Saigon, mais especificamente, em frente a

embaixada do Camboja – local que, como alguns afirmariam mais tarde, pode ter sido

escolhido como um ato de simpatia ao governo cambojano, que alguns meses antes havia

acusado o governo vietnamita de intolerância com budistas khmer.

Na hora e local anunciados, o monge Thích Quảng Đức sai de um carro, com outros

dois monges mais jovens, e, calmamente, senta em posição de lótus no meio da rua. Com a

ajuda de um de seus acompanhantes, que despeja nele o conteúdo de um galão de gasolina,

Quảng Đức protagoniza o ato de auto-imolação. O evento fazia parte de um protesto que teve

início em um pagode perto dali, que reunia mais de 350 monges em uma manifestação contra

as ações do presidente Ngô Đình Diệm – apesar de composto por maioria budista, o Vietnã do

Sul sofria, no ano de 1963, com um governo católico intolerante.

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O sacrifício foi consequência de um pacto selado com outro monge, do Vietnã do

Norte. Quando a crise que ficou conhecida como “crise budista” se agravou, a ação suicida foi

cobrada por monges de várias regiões do país. A prática não era novidade entre os budistas, e

casos haviam sido registrados no próprio Vietnã. Mas o martírio de Quảng Đức a mostrou de

forma visceral para pessoas que não tinham noção do que era o budismo, e muito menos de

suas práticas. Após o acontecimento, outros cinco monges atearam fogo em si mesmos no

Vietnã até o mês de outubro daquele ano, o último do governo de Diệm. A ação inspirou,

também, americanos que repetiram o gesto em protesto contra a Guerra do Vietnã. É valido,

ainda, lembrar que vários monges arderam em chamas pelos mais variados motivos, após este

fato – em quantidade muito maior do que se fossem levados a fazê-lo somente pela tradição

sacrificial.

Ao lembrar a tragédia da cena, Browne disse, anos depois, que continuou fotografando

o evento sem parar, pois isso parecia diminuir momentaneamente seu choque. Se para o

americano em missão profissional a imagem se apresentava como uma fuga, para quem vivia

situações semelhantes à daqueles budistas, era uma ferida necessária.

Parte da imprensa norte-americana não levou a sério a declaração do dia 10 de junho,

mas a fotografia em questão condensou, para o mundo ocidental – e o fez (e por isso o fez,

independentemente de suas qualidades formais) dentro das condições necessárias para que

fosse absorvida por ele –, aquela violência que mostrava no rosto uma outra violência, cujas

cicatrizes denunciava sem indulgência.

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Figura 2 - The Burning Monk

A fotografia do período da ditadura brasileira (figura 3) apresenta um aspecto

interessante: enquanto as biografias das outras imagens podem ser muito detalhada – se sabe

os pormenores da confecção de cada uma delas, os locais exatos em que foram feitas, e os

contextos para sua produção –, o foto-ícone brasileiro possui uma biografia muito mais turva.

Se tem pouco conhecimento do contexto exato de sua confecção, e seu autor, Kaoru Higuchi,

fotógrafo do Jornal do Brasil, quase nunca é mencionado. A única informação que se tem, de

fato, é que a imagem foi feita durante a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, que

aconteceu no dia 26 de junho de 1968, e que a parede em que o manifestante escreve faz parte

da fachada do Teatro Municipal.

Apesar da vaga informação disponível e da dificuldade em se determinar até mesmo

alguns fatos muito básicos a seu respeito, a fotografia é uma das mais conhecidas do período

da ditadura no Brasil, aparecendo, por exemplo, na mesma frequência que algumas imagens

célebres do conhecido Evandro Teixeira.

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Figura 3 - Fotografia de Kaoru Higuchi feita durante a Passeata dos Cem Mil

No começo da década de 1960, as pressões geradas por um país dividido levaram um

jovem a cometer um ato que mudaria radicalmente sua vida. Uma ação simultânea, a alguns

metros de distância, também marcaria a vida de um outro rapaz de mesma idade. Na tarde de

verão do dia 15 de agosto de 1961, o soldado Hans Conrad Schumann fez o que nenhum outro

soldado de fronteira da República Democrática Alemã havia feito: assumiu sua deserção

transpassando a barreira que dividia Berlim. Mas Schumann o fez através de um gesto que,

além de funcional (pois o colocaria de fato do outro lado da arbitrária fronteira), não poderia

ser mais plástico. Enquanto o soldado desertor atua em seu célebre salto sobre o arame que

viria a ser, eventualmente, o muro de Berlim, o fotógrafo Peter Leibing aciona sua câmera,

produzindo um resultado que manteve Schumann, para sempre, suspenso no céu berlinense.

Leibing já esperava pela ação e apontava sua câmera – curiosamente, uma Exakta,

produzida na Alemanha Oriental – para o soldado, em ângulo frontal. De seu local na

República Federal da Alemanha, ele podia escutar os gritos de estímulo dos soldados que

estavam por perto: “Komm’ rüber!” (uma expressão que significa “venha!”, em alemão). Do

outro lado do arame, a poucos metros de distância mas em um local virtualmente isolado e de

impossível alcance, Schumann preparava-se, apavorado, para sua cena. Ele havia conseguido

formular a situação ideal para a fuga, que estava planejada há alguns dias – o que ficou

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comprovado por alguns fatores, como, por exemplo, o estado de sua arma, que encontrava-se

vazia. Sabendo que ela provavelmente cairia durante o pulo – o que, de fato, aconteceu – o

soldado a esvaziou, imaginando que ela poderia disparar durante a queda. Depois de diversos

cigarros e caminhadas, que estão gravados em um filme, o salto, finalmente, acontece.

A fotografia que ficou conhecida mundialmente como Leap into Freedom (figura 4)

circulou em diversos jornais, naquela semana, e acabou tornando-se um ícone. Hoje, ela faz

parte de um arquivo da UNESCO. Quanto ao jovem – e agora famoso – Hans Conrad

Schumann, sabe-se que ficou por algum tempo em uma área de refugiados e depois foi

enviado para a Bavária, onde se estabeleceu – apesar das intensas pressões da Stasi, a polícia

secreta da RDA – até a sua morte, por suicídio, em 1998.

Figura 4 - Leap Into Freedom

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1.2. A IMAGEM VIVA: USO, DOMESTICAÇÃO E SELVAGERIA

Os estudos sobre fotografias icônicas estão inscritos, de uma maneira geral, dentro do

que se convencionou chamar de cultura visual. Situadas entre os campos da comunicação, da

história da arte e da antropologia, estas pesquisas focam, principalmente, na eloqüência visual

e retórica que certas imagens contêm. Normalmente, estes trabalhos colocam em diálogo os

elementos simbólicos das fotografias, a camada histórica em que elas foram produzidas, e sua

circulação no espaço público. Porém, nem sempre os autores que seguem esta linhagem –

mais facilmente identificada no contexto norte-americano, ainda que existam estudos

provindos de outros locais do mundo – limitam-se a análises de fotografias muito populares,

extremamente acessíveis a um público mais amplo. Muitas vezes, eles utilizam a categoria

ícone como referência para imagens relevantes dentro de um contexto bastante específico. É o

caso, por exemplo, do livro Photography and Memory in Mexico (2010), de Andrea Noble,

em que a autora procura padrões de identificação da população com a Revolução Mexicana a

partir das fotografias mais icônicas do evento, em 1910.

Como já foi comentado, pode-se perceber uma maior quantidade de trabalhos dentro

do contexto norte-americano. Para além deste traço regional, uma outra tendência – dessa vez

temporal – pode ser identificada: grande parte das pesquisas voltam-se para fotografias e

problemas do contexto da Guerra Fria. Os diversos motivos para este interesse localizado

pode render muitos debates. Talvez as transformações decorrentes do pós-guerra em diversas

regiões do mundo tenham demandado um tipo específico de modulação social, identitária e

política, onde a fotografia encontrou sua vocação sintética, iconológica. Ou talvez seja

possível que as próprias características vitais, corpóreas, das imagens produzidas neste

contexto reativem algumas feridas – mal cicatrizadas – que apontam para este momento, e

convoquem performances, futuros, sonhos, fazendo emergir a célebre pergunta de W. J. T.

Mitchell: “o que as imagens querem?” (2005). O autor explica o contexto em que sua

pergunta se inscreve:

Quando a questão do desejo é levantada, ela é geralmente localizada nos produtores ou nos consumidores de imagens, com a imagem tratada como uma expressão do desejo do artista ou como um mecanismo para provocar os desejos do espectador. [...] Eu gostaria de mudar o local do desejo para as imagens em si, e perguntar o que as imagens querem. (MITCHELL, 2005, p. 2)

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Provavelmente imbricadas entre os dois movimentos a que Mitchell se refere, esta

análise restringe-se em constatar que, de fato, muitas fotografias da época da Guerra Fria

ganharam uma espécie de aura (BENJAMIN, 1936). Muitas delas, afinal, acabaram por entrar

na classificação de foto-ícones. Dentre os trabalhos que compõem esta linha investigativa,

destaca-se, sem dúvida, o livro de Robert Hariman e John Louis Lucaites (cuja pesquisa com

foto-ícones é, provavelmente, a mais mais prolífica que se pode encontrar, dentro do tema),

No Caption Needed (2007), que será, ainda, aqui explorado.

Definir o que entende-se, nesta pesquisa, como performance faz-se necessário. O

termo foi utilizado por diversos autores, ao trabalhar com fotografias, com sentidos diferentes.

Aqui, utilizamos a abordagem de Elizabeth Edwards:

O potencial da ideia é uma libertação historiográfica se, como dispositivo heurístico, concordarmos que fotografias têm determinada agência na construção da história, permitindo que se tornem atores sociais, imprimindo, articulando e construindo campos de ações sociais (2001, p.17).

Interessa, também, ainda que em menor escala, a proposta feita por Márcio

Seligmann-Silva, uma vez que, com ela, o autor coloca em questão a própria ideia de

representação:

A foto é um testemunho de um presente e, como todo testemunho, oscila entre a possibilidade de representar um evento (testemunho como testis) e o colapso dessa representação (testemunho como superstes, sobrevivente). A partir dessa duplicidade aporética e sem solução o testemunho se transforma em performance: em ato mimético cujo momento catártico está sempre a ponto de sucumbir. (2014, p. 15)

Outra concepção a respeito de foto-ícones é a de Blake Stimson no livro The Pivot of

the World (2006), em que a performance fotográfica é analisada dentro do contexto da arte, e

não do fotojornalismo. Ao trabalhar com obras como a exposição The Family of Man (1955),

organizada por Edward Steichen, então diretor do MoMA em Nova York, e o ensaio Les

Américains (1958), de Robert Frank, também da mesma década, Stimson aponta na fotografia

uma posição de centralidade retórica, uma vez que ela seria intraduzível – a mais imediata das

linguagens. Ela teria ocupado, então, uma posição privilegiada na construção social identitária

norte-americana – espaço antes ocupado pela nação – entre as décadas de 1950 e 1980, em

que criou-se uma “subjetividade política global” (STIMSON, 2007), que, segundo o autor,

“renovou, momentaneamente, o sonho iluminista” (STIMSON, 2007, p. 3). Nesta esteira,

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encontram-se dois artigos de Eric Sandeen: The Family of Man at the Museum of Modern Art:

The Power of the Image in 1950s America, de título auto-explicativo, e The Family of Man in

Guatemala, que tem como foco explorar, através de um estudo das fotografias, as

instabilidades encontradas na Guatemala pós-revolucionária.

Mesmo quando o contexto não é o norte-americano, o período analisado,

curiosamente, tende a ser, também, a Guerra Fria. É o caso do texto Mrs. Petrov and the plug

uglies: an australian iconic press photograph and the Cold War, de Grahame Griffin, em que

o autor questiona se a Austrália poderia reivindicar sua participação na produção de

fotografias icônicas. E, em caso afirmativo, quais seriam elas e como se tornaram ícones.

Nesse sentido, a definição mais restrita de foto-ícone – como utilizada por Hariman e

Lucaites, por exemplo – não incluiria os objetos da pesquisa proposta por Griffin.

Com outra abordagem, Angela Lovelace propõe uma análise semiótica para examinar

cinco fotografias icônicas da Guerra do Vietnã. Essas, indubitavelmente, classificáveis como

foto-ícones. Uma delas é The Burning Monk. Lovelace, como Griffin, tem como objetivo

“determinar as qualidades comuns que uma fotografia pode ter, que lançaram essas fotos

específicas ao status de ícones.” (LOVELACE, 2010, p. 35).

Como resultado, a autora conclui que todas as cinco imagens possuem três

características determinantes: geram indignação emocional, incorporam uma sensação de

impotência e retratam a inocência. Tal conclusão não ecoa a tese de Hariman e Lucaites, que

trabalharam com quase as mesmas fotografias em seu livro. Dos três aspectos observados por

Lovelace, somente o primeiro dialoga com a concepção dos autores, que estipulam funções

assumidas pelos foto-ícones, chamando uma delas de “cenários emocionais” (que relaciona-se

com a característica “indignação emocional”, de Lovelace).

Dentre as quatro fotografias que compõem esta pesquisa, The Burning Monk foi,

certamente, a mais explorada em outros trabalhos. Ela é comentada por diversos autores e

recebe atenção exclusiva em alguns textos, como no artigo A Struggle to Contextualize

Photographic Images: American Print Media and the “Burning Monk”, em que Lisa M.

Skow e George N. Dionisopoulos trazem uma outra dimensão para a imagem: as disputas

semânticas que ela gerou na imprensa e sociedade americanas, uma vez que levanta tanto

questões da opressão religiosa – vivida pelos budistas no governo de Ngô Đình Diệm, no

Vietnã do Sul – quanto as relações com o próprio comunismo.

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Outra fotografia muito trabalhada é a clássica Raising the Flag on Iwo Jima (1945).

Duas versões divergentes da aparição desta imagem na mídia americana após o ataque de 11

de setembro podem ser destacadas: no trabalho de Hariman e Lucaites, que traçam sua

sobrevivência na famosa fotografia feita no Ground Zero, em 2001, a partir das

descontinuidades – principalmente das noções de coletividade e universalismo (este último

explorado também por Stimson); e de Meg Spratt, April Peterson e Taso Lagos, que entendem

a segunda fotografia – a do Ground Zero – como uma recuperação dos sentidos da primeira,

produzida em Iwo Jima. Nesse sentido, nesta pesquisa, investiremos sempre na tensão –

nunca resolvida – entre continuidade e ruptura, projeção e limite (ou opacidade), semelhança

e diferença.

No Brasil, poucos autores fizeram uso do termo. Ele é citado no início do artigo O

Sumiço da senzala: tropos da raça na fotografia brasileira, de Mauricio Lissovsky, e assume

centralidade no artigo Como nascem as imagens? Um estudo de história visual, de Ana Maria

Mauad, ainda que a autora enuncie “a possibilidade de se operar com a noção de foto-ícone

por outra perspectiva, a fim de retomar-se o projeto da história fotográfica.” (2014, p. 108).

Por “outra perpectiva” entende-se um posicionamento em relação às duas principais correntes

dos estudos sobre foto-ícones, personificadas por Hariman e Lucaites de um lado, e Blake

Stimson de outro. É interessante observar que também o artigo de Mauad tem como objeto

uma fotografia do período que movimenta a maior parte dos estudos sobre foto-ícones. É

válido comentar que o termo aparece, também, em outros textos da autora, como Os fatos e

suas fotos: dispositivos modernos na produção do acontecimento na contemporaneidade, em

que a noção de foto-ícone aparece atrelada à ideia de tempo atribuído.

Um termo semelhante pode ser encontrado no artigo Criando ícones: a construção da

imagem das guerras pelas fotos, de Vinicius Guedes Pereira de Souza, em que são analisadas

algumas imagens como a famosa fotografia de Robert Capa Loyalist Militiaman at the

Moment of Death (1936), que ficou conhecida, simplesmente, como The Falling Soldier. O

autor utiliza a expressão fotografias-símbolo para designar fotografias icônicas – de guerras,

neste caso.

Ainda dentro da temática das fotografias de guerra, Ulpiano Bezerra de Menezes

trabalha a iconização da fotografia de Capa a partir de uma abordagem muito pertinente para

esta pesquisa, que considera a materialidade das imagens, como trabalhada por Elizabeth

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Edwards, um fator primordial para qualquer análise histórico-antropológica. Nas palavras de

Edwards e Hart, que dialogam com antropólogos como Alfred Gell e Arjun Appadurai,

A materialidade se relaciona de maneira próxima à biografia social. Essa visão, que emergiu da virada material na antropologia nos últimos anos, argumenta que um objeto não pode ser totalmente compreendido a partir de um único aspecto de sua existência, mas que deve ser entendido como pertencente de um processo contínuo de produção, troca, uso e sentido. Assim, objetos são enredados e ativos nas relações sociais, e não são somente entidades passivas nesses processos (EDWARDS; HART, 2004, p. 4)

No artigo, Bezerra de Menezes repete a pergunta que parece assombrar a todos os que

investigam foto-ícones: “O que, enfim, na fotografia em exame, justificaria tal processo de

‘iconização’?” (BEZERRA DE MENEZES, 2002, p. 138). Neste caso, o processo de

iconização assume uma parte da biografia da imagem que ele, em sua proposta de trabalho

histórico com imagens, defende. Esta biografia seria marcada pela existência da imagem

dentro de um ciclo que é formado por quatro estágios: produção, circulação, consumo e ação.

A discussão levantada pela recuperação do conceito de Edwards leva a uma esfera

paralela dos estudos visuais: aquilo que Deborah Poole chamou de economia visual. Com esta

noção, a autora sublinha o valor de troca das imagens: “Esse modelo leva a análise para além

das ‘representações’, para focar no ‘valor de troca’ das imagens.” (EDWARDS; HART, 2004,

p. 5). Entendemos que a ideia de representação não seria aplicável em uma abordagem como

a nossa, mesmo se fosse possível isolar o conteúdo de uma imagem de suas particularidades

históricas e morfológicas.

Ainda na esfera dos autores brasileiros, Erika Zerwes, que trabalha, principalmente,

com a ideia de fotografia humanista, também explora o tema no artigo A fotografia ícone:

imagens de guerra icônicas e a cultura visual contemporânea. No texto, Zerwes dialoga com

Hariman e Lucaites, explorando a estética humanista de fotografias da década de 1930 e do

início da seguinte. A autora tem como objeto a mesma fotografia de Capa estudada por

Bezerra de Menezes, e uma imagem – Mulher em reunião sobre a divisão de terras (1936) –

feita por David Seymour Chim na Estremadura, também durante a Guerra Civil Espanhola.

Além da investigação acadêmica, encontra-se um uso cultural e mercadológico do

termo foto-ícone. A editora Taschen, por exemplo, publicou um livro com o título 50 Photo

Icons: The Story Behind The Pictures (2002), de Hans-Michael Koetzle, cuja descrição,

utilizada para fins comerciais, é a seguinte:

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Fotografias têm um modo estranho e poderoso de formatar nossa visão do mundo. As imagens de maior sucesso entram na nossa consciência coletiva definindo eras, fazendo história, ou tocando em algo tão fundamentalmente humano e universal que elas se tornam ícones ressonantes ao redor do mundo. (2002)

Ainda que próxima da definição utilizada em análises acadêmicas, esta descrição dos

foto-ícones, evidentemente, não carrega as diversas complexidades desenvolvidas por teóricos

da área da cultura visual, fotografia e afins.

Para além das possíveis discussões a partir destas tantas visões – e de outras mais, que

serão apresentadas ao longo do texto –, é pertinente que se marque a hipótese que norteia esta

pesquisa, e o motivo de sua existência: a repetição e o uso anulariam o elo entre palavra e

coisa (FOUCAULT, 2000), pois produziriam sua naturalização. De maneira extremante

simplificada, pode-se afirmar que isso é o que sugere Paul Ricoeur, ao procurar pela “vida”

das metáforas. Como o autor explicou em uma comunicação feita na França, em 1981,

A metáfora permanece viva durante o tempo em que continuamos a entender a incompatibilidade anterior, através da nova compatibilidade. É preciso que a nova aproximação encontre a resistência da categorização anterior para que a predicação continue a parecer “bizarra”: o trabalho de imaginação consiste precisamente na compreensão da tensão, não apenas entre o sujeito lógico e o predicado, mas entre a leitura literal e a leitura metafórica do mesmo enunciado. A apercepção do semelhante consiste em ver o mesmo apesar de..., e através do diferente, em compreender a proximidade na distância. (RICOEUR, 1981, p. 6)

A “vida”, então, estaria precisamente na consciência da separação, na não

naturalização da relação, que deve ser, para apresentar vitalidade, sempre “bizarra”. Isto é, de

certa maneira, também, o que Michel Foucault busca traçar ao fazer sua arqueologia das

ciências humanas, mostrando, nos primeiros capítulos do livro As Palavras e as Coisas

(2000), como uma funcionalidade científica, racional e tecida junto à ideia de representação

produziu um regime contratual, convencional, entre palavra e coisa, mundo e nome, Verbo e

humanidade (MONDZAIN, 2013, p. 155). Não é diferente com Walter Benjamin, que

denuncia o recalcamento da faculdade mimética, da magia, dentro da evolução da linguagem

– defesa que fica muito nítida no ensaio A Doutrina das Semelhanças. Mas é no mais

complexo Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem que ele explicitamente

profere: “o problema originário da linguagem será a sua magia.” (BENJAMIN, 1916, p. 54).

Para chegar a tal afirmação, Benjamin faz uma longa argumentação em que a imediatidade

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(que ele sugere chamar de mágica) de uma comunicação na linguagem das coisas, dos

objetos, seria o problema fundamental da teoria da linguagem.

A partir dessa exposição, sugerimos que os foto-ícones que serão analisados, apesar de

banalizados pela repetição e pelo uso, guardam algo de sua selvageria, acabam por gerar “o

despertar da intratável realidade” (BARTHES, 2015, p. 99) – ou das intratáveis forças;

energias inauditas do real.

No final de A Câmara Clara (2015), Roland Barthes descreve duas formas de

domesticação da fotografia: a arte e a repetição (generalização ou banalização) – como já foi 3

comentado, os foto-ícones encontrariam-se, a princípio, nesta última categoria de

conformação das imagens. O autor faz, em seguida, uma nítida cisão entre as duas formas que

a fotografia poderia assumir: louca e sensata. E acrescenta que ela tanto pode ser uma como

outra, mas nunca ambas ao mesmo tempo: “sensata se seu realismo permanece relativo,

temperado por hábitos estéticos ou empíricos (folhear uma revista no cabeleireiro, no

dentista); louca, se esse realismo é absoluto” (BARTHES, 2015, p. 98). Barthes termina o

livro declarando que cabe a ele – e, subentende-se, ao leitor também – escolher entre as duas

vias de tratamento da fotografia. Acrescentando um desafio às suas proposições, nos cabe

arrancar a loucura contida na sensatez. E, ainda, enxergar cada processo de domesticação

como, irremediavelmente, louco.

Hans Belting lança uma interessante abordagem sobre a domesticação da imagem pela arte, em seu intuito de 3

“devolver a imagem ao homem” (apud WOOD, p. 371). A arte seria responsável por alienar a imagem do corpo; e a marginalização de certas imagens, em oposição à valoração de outras (como arte), seria um efeito ideológico da própria História da Arte, comprometida com esta “triagem” arbitrária desde seus primórdios vasarianos.

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1.3. EMERGÊNCIA E PERFORMANCE

A célebre fotografia de Dorothea Lange, intitulada Migrant Mother (1936) é um foto-

ícone que merece destaque. Durante o período da Grande Depressão americana, na década de

1930, houve um intenso processo de migração de famílias com dificuldades financeiras para a

Califórnia, para regiões que ficaram conhecidas como pea picker camps (pea picker era o

apelido pejorativo que estes trabalhadores recebiam). Completamente dependentes de

trabalhos sazonais rurais, essas pessoas sofriam intensamente com as mudanças climáticas.

Enquanto voltava para casa, por uma estrada californiana, de um trabalho que durou

mais de um mês, Lange passou, no final do inverno de 1936, por uma placa que indicava uma

destas regiões em Nipomo. Quando já estava trinta quilômetros à frente, a fotógrafa resolveu

fazer a volta e retornar para a zona de migração, cujo terreno para colheita encontrava-se

congelado. Lá, conheceu e fotografou Florence Owens Thompson com seus filhos.

Pesquisas mostram que Migrant Mother é a fotografia que mais circulou no mundo.

Diversas apropriações e releituras foram feitas, nas quais pode-se ver diferentes versões da

mãe migrante, que acabou tornando-se um “modelo para imagens de desejo” (HARIMAN;

LUCAITES, 2007, p. 61). Na década de 1970, por exemplo, a imagem foi apropriada por uma

artista do movimento Panteras Negras, o que inscreveu, na imagem, o problema do racismo

nos EUA. Houveram versões, também, com “mães” asiáticas e hispânicas, que denunciavam

questões que envolvem imigrações ao redor do mundo. A imagem foi retirada de seu contexto

original para “montar acampamento” (MAUAD, 2014), nas palavras de Ana Maria Mauad,

em outras situações, como, por exemplo, na guerra no Kosovo, em 1998. Toda sua trajetória

mostra uma tendência, ou potência interna, para deslocar-se de índex da Depressão americana

para ícone, primeiramente, da sociedade norte-americana do entre-guerras, e depois, de

diversas injustiças sociais pelo mundo.

Outra fotografia que merece atenção é aquela que ficou conhecida como Napalm Girl

(1972). Na imagem de Huynh Công Út, vietnamita naturalizado nos Estados Unidos, uma

menina (Phan Thi Kim Phuc) corre de um ataque de napalm. Seu corpo nu e seu rosto em

desespero demonstram o impacto violento das ações americanas durante a Guerra do Vietnã.

É bem possível que ao pensar neste evento histórico muitas pessoas lembrem

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instantaneamente desta imagem, ainda que existam muitas outras, além de filmes, que o

representem.

Em ambos os casos, fica evidente a capacidade que essas fotografias possuem de

“condensação do tempo histórico em acontecimento” (MAUAD, 2014, p. 107). Esta produção

de acontecimento é a marca destas imagens, e o germe das possíveis análises delas como

participantes comunitárias da história. Mas explicitamos que aquilo que entendemos por

caráter indexical, ou indicial, da fotografia – aspecto ontológico, defendem alguns teóricos –

não a coloca como portadora de uma Verdade, nem como registro do Acontecimento. Ao

contrário, funciona como fluxo irredutível que permite sua magia: transmutação e

metamorfose dos materiais mundanos. O caráter anímico retraído e retido em qualquer corte

temporal (imagem fixa) tem vida própria.

Sobre a transmutação, ainda que conceituada de maneira bem mais específica, dentro

da ideia de aspectação, Mauricio Lissovsky afirma que:

A transmutação, como transformação que visa o aspecto polimorfo do mundo, representa um certo deslocamento do caráter indicial, testemunhal, dos demais aspectos da mudança na ordem das coisas. Ele nos abre o caminho, portanto, para uma outra ordem de transformações no coração do instante: as transformações do olho. (2008, p. 183)

Ao definir punctum e studium, dois conceitos fundamentais em sua teoria fotográfica,

Barthes atribui ao primeiro uma tensa relação entre o “campo” e o “fora de campo”,

argumentando que, uma vez que há punctum na fotografia, cria-se um campo cego. Um

“extracampo sutil”, então, “leva o espectador para fora de seu enquadramento” (BARTHES,

2015, p. 53) e, assim, ele conclui: “é nisso que essa foto me anima e eu a animo” (BARTHES,

2015, p. 53). O autor denuncia o caráter anímico, mas não chega ao âmago da questão

corporal, morfológica, das imagens.

Hans Belting, trilhando um outro caminho, mais centrado nos aspectos corporais – ou

corporificados – da existência das imagens, argumenta: “animamos as imagens, como se elas

vivessem ou como se nos falassem. A percepção da imagem, como ato de animação, é uma

ação simbólica” (2014, p. 23). Para ele, aliás, as imagens existem exclusivamente nessa

animação, no contato com alguém que lhes dão vida; então, uma imagem “só se torna

imagem, quando é animada pelo seu espectador” (BELTING, 2014, p. 44). Inscrito em uma

linhagem teórica da história da arte que trabalha com o conceito de imagem fora da ideia de

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representação, Belting investe, no livro Antropologia da Imagem (2001), nas relações entre

corpo e imagem. Para ele, o corpo é o local natural para imagens, que o habitam

constantemente. As imagens acontecem, então, não através do corpo, mas nele. O caráter

medial das imagens – sua única forma de existência – portanto, é “enraizada em uma analogia

do corpo” (BELTING, 2009, p. 3).

Seja por uma característica presente na imagem fotográfica, ou pela própria natureza

da percepção (e nesta pesquisa trabalha-se mais com esta concepção), parece ser possível

declarar que esta potência anímica – não ativa – funciona como retenção de durações, como

“um refluir do tempo para fora da imagem” (LISSOVSKY, 2008, p. 40), colocando a imagem

fotográfica sempre em uma espécie de limbo, em que passado e futuro são projeções nunca

atualizadas.

Sobre o aspecto metamórfico das imagens, é possível sugerir que tal flexibilidade se

relaciona com (mas não se traduz em) a capacidade de virar ícone . Em uma das trajetórias 4

trabalhadas nesta pesquisa, a da fotografia intitulada Molotov Man (1979), um homem lança

uma garrafa de coquetel molotov e transforma-se em humor, melancolia, stêncil. Seria

precisamente por ser uma parte que contém um todo (ideia próxima a da imagem como

mônada de Benjamin ), que a imagem se desfolha em possibilidades e vivências? Seria essa 5

uma habilidade quase xamânica, dada a partir de um cosmos interno que ela possui – “na

imagem abreviada do mundo que a mônada conserva dentro de si” (FREIRE, 2012, p. 8) –

permitindo personificações múltiplas? Se “cada ideia contém a imagem do

mundo” (BENJAMIN, 1984, p. 70), cada imagem contém o mundo.

As duas fotografias anteriormente citadas – Migrant Mother e Napalm Girl – foram

trabalhadas de forma minuciosa pelos norte-americanos Robert Hariman e John Louis

Lucaites. Os autores fazem uma definição muito precisa do termo foto-ícone, enquadrando

estas imagens dentro do contexto fotojornalístico do século XX e fazendo uma espécie de

tipologia aplicável a elas, que apresenta cinco campos semânticos nos quais qualquer uma

Ver os conceitos de transfiguração e metamorphosis no livro Imagem, ícone, economia: as fontes bizantinas do 4

imaginário contemporâneo (2013). Ainda que trabalhe com uma concepção muito específica de ícone, contextualizada dentro do momento de conflito entre a iconofilia e a iconoclastia, e da crise do iconoclasmo em Bizâncio, Marie-José Mondzain levanta diversas questões que podem ser transferidas para este estudo.

Em Origem do Drama Barroco Alemão (1984), Benjamin trabalha a noção de ideia como mônada (LEIBNIZ, 5

2016), sugerindo um monadismo, também, das imagens: “A representação da idéia impõe como tarefa, portanto, nada menos que a descrição dessa imagem abreviada do mundo.” (BENJAMIN, 1984, p. 70)

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delas atuaria simultaneamente: familiaridade estética, performance cívica, transcrições

semióticas, cenários emocionais, contradições e crises.

Sugerimos o acréscimo de um sexto terreno de ação dos foto-ícones, que estaria

necessariamente implicado em sua existência: o que diz respeito a cristalizações de desejos. É

possível que este seja, talvez, o aspecto menos aparente nessas fotografias, e por isso mesmo,

o mais sintomático. O movimento das imagens é duplo e reflexivo: projeções são amparadas,

e fluxos energéticos são projetados. Uma única imagem é projétil e anteparo, a um só tempo.

É desabrochar de lâminas cronotópicas e exposição de tecidos perfurados, em que rasgo e

preenchimento são consequências de sua própria existência. Heterocronia.

Ainda que extremamente racional e eficiente, a análise proposta por Hariman e

Lucaites visa, exclusivamente, o contexto norte-americano – recorte que os autores assumem

logo no início de seu livro No Caption Needed. A proposta deles é mostrar como fotografias

icônicas que circularam exaustivamente na mídia americana performam a passagem de uma

democracia liberal para um liberalismo democrático: “sucessivas imagens icônicas ao longo

do século XX revelam uma mudança, dentro da cultura pública, de normas de identidade

política mais democráticas para mais liberais.” (HARIMAN; LUCAITES, 2007, p. 13).

Para eles, os foto-ícones possuem a capacidade de agenciar ações cívicas, uma vez que

convocam algumas características da sociedade em detrimento de outras. Hariman e Lucaites

estão, evidentemente, sugerido uma crítica da sociedade de consumo capitalista, com as

especificidades norte-americanas, que incluem constantes tensões entre democracia e

satisfação pessoal, dever cívico e liberdade individual – como fica evidente quando enunciam

o problema que tentam apreender em seus estudos sobre as fotografias icônicas: “Um dos

dilemas no coração da política moderna é como negociar o equilíbrio entre autonomia

individual e governança coletiva, isto é, entre liberalismo e democracia.” (HARIMAN;

LUCAITES, 2007, p. 14).

Aqui, faz-se necessário contextualizar teoricamente os problemas propostos por estes

autores. Ao explorar as relações entre fotografia e história, Eduardo Cadava lembra a

percepção de Benjamin a respeito das fotografias como modelos para performance social:

Como Benjamin explica, é porque o pensamento histórico envolve ‘não somente o fluxo de pensamento, mas também sua estagnação’ que a fotografia pode se tornar um modelo para o entendimento da história, um modelo para sua performance. (1997, p. 20).

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Os foto-ícones trabalhados por Hariman e Lucaites seriam, portanto, um caso

particular deste processo, em que a “performance da história”, como nomeia Cadava, ganha

um rosto de responsabilidade cívica e social, a partir da ideia de stranger relationality – o 6

que joga a questão no cerne das discussões a respeito da alteridade – ainda que os autores não

entrem, de fato, neste conceito nem pela via antropológica, nem pela filosófica.

Além disso, a relação conflituosa entre público e privado, implicada na argumentação

de Hariman e Lucaites, já estava enunciada nos primeiros passos do que se pode chamar de

uma teoria fotográfica. Barthes, em sua tentativa de encontrar o que há de particular ou

essencial na Fotografia, no, hoje canônico, A Câmara Clara – o que situa o autor, portanto,

em um momento de inauguração deste campo teórico – apontou o problema como uma

propriedade geral da imagem fotográfica:

A leitura das fotografias públicas é sempre, no fundo, uma leitura privada. Isso é evidente no caso das fotos antigas [...] Mas isso também é verdade no caso das fotos que à primeira vista não têm qualquer vínculo, sequer metonímico, com minha experiência (por exemplo, todas as fotos de reportagem). Cada foto é lida como a aparência privada de seu referente: a idade da Fotografia corresponde precisamente à irrupção do privado no público, ou antes à criação de um novo valor social, que é a publicidade do privado: o privado é consumido como tal, publicamente. (2015, p. 82)

A partir do que foi exposto a respeito do termo, sugerimos uma noção menos restrita

do conceito foto-ícone, por acreditar que as imagens aqui trabalhadas funcionam como tal,

mas extrapolam, por vezes, o sistema classificatório de Hariman e Lucaites, bem como os

tipos de performances sociais que incorporam e convocam.

Dessa forma, nosso objetivo seria, então, a procura de um páthos transgressor,

transformador, aparente em vários foto-ícones, que ao atuarem na condensação do tempo em

acontecimento, deixam sobrar um excesso da energia inicial, de modo que qualquer

conformação destas imagens a discursos ou intenções específicas torna-se impossível. Nesse

sentido, é possível declarar que o páthos somente aparece de forma imediata; que ele existe

exclusivamente – como, para Benjamin, a verdade – com a morte das intenções, com a

interrupção das mediações.

Parece pertinente lembrar que encontra-se a noção de stranger dentro da tradição fenomenológica, na 6

construção do conceito de empatia (Einfühlung), trabalhado por autores como Edith Stein e Edmund Husserl. Embora Hariman e Lucaites não utilizem precisamente este conceito em sua análise, levantam questões que remontam, de alguma forma, a estes estudos.

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No livro Origem do Drama Barroco Alemão (1984), Benjamin trabalha com a ideia de

interrupção, conceito que aparece, também, em outros textos do autor, como no ensaio Sobre

o conceito de história. Ele defende uma concepção de verdade em que:

Como unidade no Ser, e não como unidade no Conceito, a verdade resiste a qualquer interrogação. Enquanto o conceito emerge da espontaneidade do entendimento, as idéias se oferecem à contemplação. As idéias são preexistentes. A distinção entre a verdade e a coerência do saber define a idéia como Ser (BENJAMIN, 1984, p. 51).

Para Benjamin, então, a verdade (e não cabe, aqui, uma especulação da natureza desta

“verdade”) aparece fugazmente, como uma centelha, sem agenciamentos: “A verdadeira

imagem do passado perpassa, veloz.” (BENJAMIN, 1987, p. 224). A aproximação com a

ideia de páthos funciona, então, desta forma – como se ele, “no bailado das idéias

representadas, esquiva-se a qualquer tipo de projeção no reino do saber. O saber é

posse.” (BENJAMIN, 1984, p. 51). Despossuídas – ou desterritorializadas, em linguagem

deleuziana –, porém encarnadas, ou incorporadas, essas imagens passam de transgressoras a

transcendentes, circulando entre três estágios que são simultâneos: aparição, vida e sobrevida.

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1.4. CORPO: A BUSCA DO PÁTHOS

Ao trabalhar com a ideia de Pathosformel (fórmula do páthos) de Aby Warburg,

Giorgio Agamben define o conceito como “cristais de memória histórica” (apud FELINTO,

2016, p. 22). Warburg estava em busca da partícula sobrevivente entre imagens não

contemporâneas. O afeto suscitado e depositado por e em cada imagem, ou obra, estaria

sempre imbricado nessa pós-vida (Nachleben) – que Warburg encontraria no gesto, ou no

movimento. Como Erick Felinto explica:

O projeto warburguiano consistia numa tentativa de mapear o que ele designou como Pathosfolmel, ou seja, as fórmulas expressivas que traduziam, em gestos e configurações faciais, os mais variados sentimentos e emoções. (2016, p. 22).

Dessa forma, cada gesto representado é necessariamente construído por imaginários,

que involuntariamente produzem o corpo do ser representado. Assim, corpo é memória. E as

imagens são, de certa forma, visionárias. Segundo Georges Didi-Huberman,

Não teria o tempo do contratempo o seu correspondente plástico, visual e corporal num dinamograma do contramovimento? E não constituiria a sobrevivência um sintoma nos movimentos da vida, como a contraefetuação que não é nem o totalmente vivo nem o totalmente morto, e sim o ouro gênero de vida das coisas que passaram e que insistem em nos assombrar? A essa grande pergunta – quais são as formas corporais do tempo sobrevivente? – responde o conceito, absolutamente central em Warburg, das “fórmulas de páthos”. (2013, p. 167)

Na abordagem das quatro fotografias trabalhadas nesta pesquisa, serão exploradas as

implicações dos corpos que figuram e centralizam as forças das imagens. De acordo com

Hans Belting, “quando formamos uma imagem no e com o nosso corpo, não é de uma

imagem deste mesmo corpo que se trata. O corpo torna-se então suporte da imagem, ou seja,

um meio.” (2014, p. 49). Assim, a imagem seria uma espécie de a priori, algo anterior a

aparência; uma existência incorpórea, ainda informe, que “tem sempre uma qualidade mental”

(BELTING, 2014, p. 43).

Portanto, as imagens estão sempre procurando um meio para hospedarem-se: são

“nômades, que alteraram o seu modo de vida consoante as culturas históricas, e utilizaram os

meios que cada época tem para oferecer como estações no tempo” (BELTING, 2014, p. 42).

Aparições.

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Como resume Susan Buck-Morss, no livro Imagem, ícone, economia: as fontes

bizantinas do imaginário contemporâneo (2013), Marie-José Mondzain faz o seguinte

movimento, que dialoga, ainda que a partir de outros repertórios, com as concepções de

Belting:

Marie-José Mondzain faz uma impressionante argumentação para explorar a centralidade do ícone para aquilo que é chamado de filosofia política de Bizâncio, de natureza cristã e imperialista, o que é expresso na economia visual da imagem. Ela descreve a economia cristã como uma “ciência de relações e termos relativos”, um conjunto de correspondências (e não equivalências) entre “realidades disjuntivas”, para as quais os ícones são a “estrutura comum”, tecendo retalhos para um todo, “como um único pedaço de pano”. (BUCK-MORSS, 2014, p. 178)

Ao construir o conceito de economia, extremamente importante para sua teoria da

imagem, Mondzain entende o ícone como um “instrumento racional e mágico” (2013, p. 92),

que teria uma função social específica. A autora afirma que na relação de encarnação que

produz o ícone, “a verdadeira carne, a que vive na fala e na imagem, não decorre da

aparência, mas do aparecer” (MONDZAIN, 2013, p. 93). São o que são em ato.

Defendendo, também, um processo de transferências e duplicações em que consistiria

a aparição das imagens, ainda que dentro de outros contextos e com objetivos diferentes dos

de Mondzain, Belting sugere a existência, entre corpo e imagem, de “uma condição de

perfeita substituição para o irrevogável objeto ausente, o corpo que um dia era vivo. A pessoa

morta troca seu corpo por uma imagem” (apud WOOD, 2004, p. 371), ou, em outras palavras,

esvazia-se, torna-se semelhante à sua própria imagem (MONDZAIN, 2013, p. 131).

Porém, ainda seguindo esta linha de raciocínio, de acordo com Mondzain, “o ícone

nos ensina que a economia dos olhares nunca substitui as pessoas em quem esses olhares

encontraram a carne sensível. [...] não se trata de representação” (2013, p. 127). Certamente,

nestas imagens com propriedades iconológicas, não se trata de representação, mas de

encarnação, ou incorporação. Vale, contudo, lembrar que este duplo criado escapa, como

trajetória, de qualquer determinismo colocado pelo corpo que o gerou: “o destino do referente

e o de sua imagem raramente coincidem” (BEZERRA DE MENZES, 2002, p. 142).

A partir da concepção de corpo como meio, e da ideia da passagem de um fluxo vital

entre corpo e imagem, Christopher S. Wood procura concluir o que seria aquilo que Belting

parece afirmar incessantemente: “toda imagem quer ser um lar para uma alma

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perdida.” (WOOD, 2004, p. 371) – e não seria essa uma possível resposta à pergunta de

Mitchell?

Como lares, ou invólucros, casulos, as fotografias aqui trabalhadas abrigam a quem?

Que almas povoam, incessantemente, os corpos presentes-ausentes – do monge, do

revolucionário, do estudante e do soldado? Se “ver implica ser visto” (MONDZAIN, 2013, p.

127), quantas vezes nos tornamos recipientes, espíritos perdidos, imagens e outros corpos, na

duração de um olhar – transfigurado pela carne (corpo), por sua vez, transfigurada pela

imagem (MONDZAIN, 2013, p. 127) – na fugacidade do confronto com o corte temporal

fotográfico?

Nesse sentido, Ana Maria Mauad propõe uma trajetória de uma fotografia icônica,

que, assim como as que compõem o corpus desta pesquisa, carrega o páthos transgressor.

Trata-se de uma fotografia feita por Marc Riboud, em 1967. Nela, uma jovem segura uma

flor, em gesto de oferenda, na frente de uma barreira de soldados armados. Naquele momento,

os absurdos da Guerra do Vietnã mobilizaram uma multidão de jovens a manifestarem-se nas

proximidades do Pentágono, em Washington.

Em seu argumento, Mauad remonta ao quadro renascentista A Anunciação (1472), de

Leonardo da Vinci e à obra de mesmo nome de Simone Martini e Lippo Memmi, feita no

século XIV. Com esse movimento, ela sublinha o comum tema cristão – figurado pelo Anjo

Gabriel, em pose de oferenda, e a Virgem Maria – explicitando os valores, naquele momento,

atribuídos a ele (tropos): a noção de espanto, a surpresa, a boa nova e a paz. Não por acaso,

este último era a pedra de toque (junto com o “amor”) da geração do protesto no Pentágono.

Ao mesmo tempo, a autora aponta para os processos miméticos que envolvem os estágios da

iconização (que aqui entendemos por: aparição, vida e sobrevida). Com esta análise, Mauad

mostra o seguinte processo:

Essa imagem nasce em um meio pictórico, mas se descola dele ganhando vida, novamente, na fotografia de Marc Riboud. Desta vez, animados não pela contemplação piedosa dos espectadores do século XIV, mas por uma opinião pública engajada contra a guerra que toma a imagem como bandeira desfraldada através do tempo, tornando-se um foto-ícone dos protestos pacíficos. (2014, p. 126)

Parece pertinente acrescentar que a autora propõe uma leitura do foto-ícone em

questão consideravelmente diferente das interpretações possíveis a partir das concepções de

Hariman e Lucaites, por exemplo, trazendo o ícone norte-americano, emergente durante a

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Guerra do Vietnã, para outros terrenos ideológicos e filosóficos. Contudo, a aderência entre as

duas visões existe e aparece nas abordagens que apontam para uma performatividade das

imagens enquanto espectros histórico-antropológicos.

Ao trabalhar com o deslizamento da imagem através do tempo – o que Hariman e

Lucaites não deixam de fazer, de forma um pouco mais tímida, ao evocar a Madonna na

análise de Migrant Mother, indicando o páthos cristão da imagem –, e evidenciando a

capacidade das imagens de “acamparem em corpos diferentes e se tornarem novas imagens

em novos processos de simbolização” (MAUAD, 2014, p. 115), a autora retoma o próprio

paradoxo dos foto-ícones, que são a encarnação máxima de um acontecimento, mas também,

ao mesmo tempo, a incorporação eterna de crises de outrora.

Os deslocamentos que estas imagens sofrem são infinitos e ininterruptos, o que pode

levantar as seguintes perguntas: O que sobra de uma imagem? Que imaginários ela compõe?

Que ações ela manifesta e projeta? Quantas outras crises são recuperadas e transmutadas

durante o instante de ação de uma câmera? Quantas futuras crises são anunciadas, também?

Nesse processo, a instabilidade de um momento desloca-se para fora dele mesmo para

transformar-se em cristal fotográfico – em uma intensificação da afirmação de Cadava:

“fotografia é o nome de um processo que, apreendendo e arrancando uma imagem de seu

contexto, trabalha para imobilizar o fluxo da história.” (1997, p. 20). Cadava discorre, a partir

desta afirmação, sobre alguns aspectos do pensamento de Benjamin que voltarão diversas

vezes neste texto: as ideias de interrupção e de retenção (arrest).

A partir deste cenário, a seguinte pergunta é possível: que relações se estabelecem

entre duas – ou mais – crises para que certa forma visual (ou figuração) emerja precisamente

nesses contextos? De acordo com Didi-Huberman,

Por ser tecida de longas durações e de momentos críticos, de latências sem idade e ressurgências abruptas, a sobrevivência acaba por anacronizar a história. Com ela, cai por terra qualquer noção cronológica de duração. Em primeiro lugar, a sobrevivência anacroniza o presente: desmente com violência as evidencias do Zeitgeist, esse ‘espírito de época’ em que tantas vezes se baseia a definição dos estilos artísticos. (2013, p. 70).

Se a relação entre dois sismos temporais for de resistência a algo que seria específico

em cada época, por que é justamente a crise o elo de anacronia – o que Linda Charne chamou

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de “buracos-de-minhoca para o futuro” (apud LUCIANO, 2011, p. 133)? Seria ela (a crise) o

único resto de uma experiência – a sobra? E o que restaria desta crise – sua incompletude?

Benjamin trabalha com a ideia de incompletude da história ao traçar seu materialismo

histórico, em uma construção que dialoga de forma nada convencional com Marx. O autor

defende um conceito de passado que é sempre inacabado, e que aponta, necessariamente, para

um futuro. Por isso, a possibilidade messiânica em cada centelha de tempo. A função do

historiador materialista seria, então, fixar uma imagem do passado. Certamente, é devido a

esta incompletude que o Anjo da História olha sempre para trás (BENJAMIN, 1987); e, de

fato, é nela que os foto-ícones agem como repositórios de demandas sociais e coletivas.

Então, no caso específico de momentos de transgressão, em que a explicitação de uma

crise não poderia ser mais evidente, e onde a performatividade (dos corpos em cena) é

condição primária da própria ação, pode-se trilhar, ainda, um outro caminho analítico, que se

cruza com a própria natureza da imagem fotográfica: a ideia de que o corpo é encenação

(consciente, ou não). O cruzamento está no fato de que qualquer fotografia é, em si, uma cena

sugerida, uma realidade imaginada (sobretudo as mais “realistas” ou documentais). 7

A diferença entre micro-evento e evento histórico, que explica esta afirmação, é

estabelecida de forma precisa por Christopher Pinney, ao traçar os limites entre corpo e

corpus. Em suas “teses” sobre fotografia, o antropólogo retoma uma questão de Barthes. Ele

explica que o argumento de Barthes consiste em afirmar que: “a particularidade do corpo não

pode gerar o corpus” (PINNEY, 2012, p. 144). Então, aquilo que se apresenta à câmera, o

corpo, a contingência, o “Isto” (This), ou evento, não pode dizer nada sobre um “algo a mais”,

para além da própria contingência. A especificidade de uma fotografia a impediria de

transcender, então, para um corpus. Um dos exemplos que Pinney sugere é uma fotografia de

Felice Beato, em que a arrumação dos objetos em cena (ossos, no caso) foi, provavelmente,

produzida pelo fotógrafo, com a intenção de reproduzir para a lente algo que havia ocorrido

cinco meses antes:

As fotografias de Beato [...] estavam sendo apresentadas como cenas impressionantes de eventos históricos, então esperamos que esta fotografia fosse

Esta noção é perfeitamente expressada em um comentário de Christopher Pinney sobre o estilo fotográfico 7

produzido em Gana: “A fotografia permite os ganeses a perambular através das ‘fronteiras entre ilusão, desejo e realidade’. As noções de ‘realidade’ evocam um domínio que não é visível ao olho humano, e é precisamente através de ‘linhas de fratura com a realidade ‘normal’ que o universo da fotografia ganesa revela toda sua riqueza e multiplicidade” (2012, p. 145).

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sobre aquele evento histórico, e não sobre o micro-evento de fazer a fotografia (PINNEY, 2012, p. 144).

O objetivo do autor com este exemplo é afirmar que, de fato, uma fotografia nunca

mente, uma vez que o micro-evento, ou pró-cênico, é sempre e necessariamente, positivo.

Nesse sentido, nosso interesse não é na identificação contingencial de uma imagem, nem

mesmo, especificamente, em uma defesa do referente, mas nas possíveis relações que se pode

construir entre micro-evento e evento histórico, fora das questões de representação.

A tensão entre “contingência soberana” – corpo –, e um “algo a mais” – corpus

(BARTHES, 2015) – é intensa e constante nas imagens aqui trabalhadas. Com um olhar

superficial, seria possível afirmar que nesta pesquisa projeta-se mais o corpus do que o corpo,

uma vez que, ao assumirem função performática, os foto-ícones incorporam “a generalização

que desejamos” (PINNEY, 2012, p. 144), mas isso seria ignorar todas as particularidades das

fotografias, que, aliás, fazem delas objetos únicos, singulares e de intensa circulação – essas

imagens “vem interpelar cada um de nós, um por um, fora de toda generalidade (mas não fora

de toda transcendência).” (BARTHES, 2015, p. 81). É na contingência – e a partir dela – que

ocorrem os processos associativos.

A partir da argumentação de Lissovsky em A Máquina de Esperar (2008), pode-se

concluir que a aderência ao referente defendida por Barthes e reafirmada por Pinney “não diz

apenas respeito a um incontornável realismo, mas também a uma certa tautologia entre

percepção e reconhecimento, a uma redundância do objeto nele mesmo.” (LISSOVSKY,

2008, p. 164). Portanto, aquilo que Pinney chamará de “pró-cênico” (aquilo que se apresenta à

câmera) traduz a relação metonímica que as fotografias mantêm com o evento.

Em seus conhecidos escritos sobre magia simpática, James Frazer descreve duas

maneiras de transferência mágica: por contiguidade ou contato, e por similaridade. Na

primeira forma, qualquer parte do alvo da magia, ou qualquer objeto que tenha entrado em

contato com ele, o substitui como receptor. Assim, os efeitos serão sentidos pelo corpo a que a

magia se dirige. No segundo tipo de magia simpática, é criado um duplo do corpo, à sua

semelhança. É ele, então, que recebe a magia; mas, da mesma forma que na primeira, os

efeitos são sentidos pelo referente vivo.

A partir disso, pode-se sugerir que qualquer foto-ícone é sustentado como tal tanto por

contiguidade ou contato, como por semelhança, similaridade. Como recorte do evento, mas

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assumindo sua totalidade, o foto-ícone é uma parte que contém um todo – metonímia,

continuum material. Ao mesmo tempo, devido às fortes habilidades para a condensação e a

projeção, torna-se um duplo desse acontecimento. E aí encontra-se seu caráter metafórico, sua

existência figurativa através da similitude. Não por acaso, como lembra Ricoeur, Paul Henle

entende o caráter figurativo da metáfora como icônico.

Com esta proposta, contudo, não pretende-se conformar as fotografias trabalhadas

nesta pesquisa a uma teoria da linguagem, ou a qualquer gramática, mas abrir um campo

interpretativo para que se possa perceber as inúmeras valências (LISSOVSKY, 2014) das

imagens:

Da “incerteza epistemológica” das fotografias, assinalada por Appadurai, ou da sua instabilidade como significante, decorrem o que poderíamos chamar de “valências” fotográficas, no sentido que esse termo assume na química clássica: os valores das afinidades entre as substâncias que determinam suas possibilidades combinatórias. (LISSOVSKY, 2014, p. 148)

As combinações feitas pelas fotografias que servem de objeto para esta pesquisa são

diversas, e os compostos gerados por elas, talvez, infinitos.

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1.5. DOS PODERES PROCESSUAIS

Com estas discussões em vista, pode-se mapear uma linhagem investigativa a respeito

dos foto-ícones mais próxima ao campo da história da arte, e uma que se insere dentro dos

estudos de retórica e dos discursos. A partir disso, é possível identificar um terreno, ainda, a

ser explorado: os diferentes processos pelos quais a iconicidade das imagens vai prevalecendo

sobre sua indicialidade. Dessa forma, proponho quatro potências que as conduzem para a

iconização: replicação, impacto, síntese e suspensão (talvez existam, evidentemente, outras;

ainda que sejam somente estas as categorias aqui trabalhadas). Estes poderes das imagens são

filiados aos conceitos de mímese, interrupção, analogia e retenção, respectivamente.

Cada fotografia analisada nesta pesquisa carrega, no mínimo, uma destas potências.

Ainda que elas contenham até mesmo as quatro capacidades, uma delas sempre sobressai,

produzindo uma trajetória muito particular e possibilitando o status de ícone. Para fins

investigativos, este trabalho irá priorizar a análise destas características mais aparentes em

cada uma das imagens: The Burning Monk tem sua performance social marcada pelo choque,

ou impacto; Molotov Man, pelo impressionante poder de replicação; Leap into Freedom, pela

suspensão; e aquela em que um jovem escreve as palavras “abaixo a ditadura” em um muro,

no Brasil, apresenta uma capacidade sintética incomum a muitas outras imagens,

incorporando semanticamente diversos sentidos que circulam no corpo social.

Estas duas últimas imagens, analisadas conjuntamente, abrem mais uma discussão que

rodeia os temas propostos até aqui. Apesar de construídas a partir de repertórios bastante

distintos, ambas carregam um mesmo tropo: as relações de oposição entre pessoas e

construções, em que estas últimas representam algum processo institucional disciplinar ou de

racionalização, sempre opressor em alguma medida. Como por exemplo, no caso das imagens

trabalhadas, a ditadura no Brasil e a divisão da Alemanha durante a Guerra Fria.

Os tropos seriam, então, imagens “capazes de garantir seu sentido independente do

tempo e do espaço” (LISSOVSKY, no prelo), e portanto, diferentes dos foto-ícones, “que

estão sempre vinculados a eventos específicos” (LISSOVSKY, no prelo). Mas, e se

procurarmos por tropos dentro dos foto-ícones? Seria esse um movimento contraditório ou

paradoxal? Afinal, não são os foto-ícones lugares privilegiados do clichê, cujo uso é

“verdadeiramente irresistível, na fotografia” (LISSOVSKY, no prelo)? Sugerimos, ainda, que

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o foto-ícone brasileiro carrega um outro tropo visual, que relaciona-se com a questão da

escrita.

Estas proposições que envolvem os tropos e os clichês remetem a uma outra questão

pertinente a qualquer estudo sobre fotografia, e à análise dos foto-ícones especialmente: os

processos miméticos nos quais essas imagens são fundadas – mímese de fundo, ou de corpus,

no caso. Mondzain argumenta que não há “arte isenta de artifício e que não resulte de um

pensamento mimético” (2013, p. 31), mas, seguindo a trilha de Belting na crítica à arte, a

frase poderia ser reformulada: não há imagem isenta de artifício e que não resulte de um

pensamento mimético. “Artística”, ou não. Nesse sentido, Belting defende o uso da palavra

Bild (que em alemão, pode significar tanto “figura”, como “imagem”), como uma noção mais

ampla, fazendo um contraponto à ideia de obra de arte.

Benjamin expôs, no ensaio A Doutrina das Semelhanças, o progressivo recalcamento

da faculdade mimética dentro da experiência humana. Ele mostra como um regime analógico,

sustentado pelo princípio da semelhança – necessária, evidentemente, à noção de mimesis –

norteava a compreensão do mundo pelos homens, e, portanto, todas as relações de causa e

efeito. Esta configuração é corrompida com a ideia de representação, cujo estabelecimento

Foucault explora exaustivamente, apresentando as condições de possibilidade para o

descolamento entre palavra e coisa, e situando este processo dentro do que chamou de

episteme clássica.

Com outras preocupações em mente, Michael Taussig aplica uma abordagem

antropológica ao conceito de mímese, sustentando o argumento, através de um exemplo

etnográfico que volta-se para uma população indígena panamenha, de que a própria faculdade

mimética produz alteridade. Como mostra Gilles Deleuze, em um campo muito mais abstrato,

a diferença é um caso da repetição (DELEUZE, 2000). Repetição gera diferença. O processo

mimético gera o outro.

A intensa replicação de Molotov Man, então, denunciaria – ou geraria – uma

multiplicidade de “outros”? O que está em questão no jogo de apropriações desta fotografia?

Por um lado, ela assume estas alteridades, coloca em movimento desejos que podem, ou não,

estar relacionados com o repertório original da imagem. Por outro, cada apropriação, ou cada

sobrevida (mesmo que seja involuntária), carrega o traço mimético. Pois como demonstram

tão eficientemente Benjamin e Taussig (e a antropologia, de uma forma geral), a mímese está

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no cerne da vivência humana. É o processo pelo qual todas as interações, em alguma medida,

são atravessadas.

Outra capacidade das imagens, o impacto, explica a persistência da imagem The

Burning Monk pois relaciona-se, diferentemente do exemplo anterior, não com uma faculdade

humana inata, uma forma de estar no mundo – como a replicação, ou mímese – mas com uma

possibilidade alternativa para o real, ou, em linguagem benjaminiana, com uma função

messiânica. Para Benjamin,

Pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. (1987, p. 231)

Ou, seria possível dizer, enquanto imagem? Na ideia de interrupção, estaria incluída,

então, uma “imobilização messiânica dos acontecimentos”, ou “oportunidade

revolucionária” (BENJAMIN, 1987, p. 231), que, como explica Lissovsky, geraria uma

percepção anterior ao reconhecimento. Como Lissovsky demonstra, a fotografia teria

assumido, dentro de uma tradição da arte e crítica associadas ao pensamento político da

esquerda – que aparece, por exemplo, nas vanguardas russas – uma função ideológica, por ser

capaz de causar estranhamento, instaurando novos pontos de vista, um “novo olho”:

O estranhamento quer renovar a visão, mas em sua base está a possibilidade de uma visão sem reconhecimento, de um prolongamento da percepção num antes do reconhecimento, uma distensão da própria percepção. (LISSOVSKY, 2008, p. 164)

A “interrupção estética”, então, criaria essa possibilidade de antecipação ao

reconhecimento. E aí residiria, portanto, o interesse de Benjamin em Bertolt Brecht, por

exemplo.

Fazendo um movimento de flexibilização na proposta de Benjamin, sugerindo um uso

menos instrumental, ou funcional, da interrupção, mas assumindo as instaurações que ela

estabelece, que oportunidades – revolucionárias em sentido mais estrito ou não – estariam

atualizadas em cada apreensão do homem que queima? Poderiam as chamas no rosto do

monge causarem um “tropeço” nos processos mentais associativos? É possível que esse efeito

de quebra seja o principal responsável por sua existência duradoura, por sua sobrevivência?

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O aspecto – que marca a trajetória de Leap Into Freedom – relaciona-se com a

interrupção; é um conceito muito próximo, também trabalhado por Benjamin. Trata-se do

efeito de suspensão, que está atrelado à ideia de retenção. Cadava associa a retenção ao

“efeito Medusa”, inerente à fotografia:

O olhar da Medusa protela a história na esfera da especulação. Produz um curto-circuito e, portanto, suspende a continuidade temporal entre um passado e um presente. Esta ruptura do presente possibilita a releitura e reescrita da história, a performance de outro modo de compreensão histórica, que seria a suspensão tanto da “história” como da “compreensão” (ou seja, o fim da história e da compreensão como os caminhos direcionais e teleológicos que sempre entendemos que eram). (1997, p. 59)

O autor continua, afirmando que “somente quando o olhar medusiano do materialista

histórico ou da câmera momentaneamente transfixar a história, pode a história como história

aparecer em seu desaparecimento” (CADAVA, 1997, p. 60). A contradição que Cadava aponta

– a de uma aparição que é percebida em seu desaparecimento – lembra uma imagem: o

horizonte. O horizonte seria, então, “aquela linha por trás da qual se abre no futuro um novo

espaço de experiência, mas um espaço que ainda não pode ser contemplado” (KOSELLECK,

2015, p. 311) – algo que não se alcança, que existe em sua própria condição efêmera. A

suspensão causada por Leap Into Freedom instaura um ambiente de possibilidades nunca

atualizadas.

O último dos poderes das imagens, a síntese, diz respeito à função simbólica dos

elementos figurativos daquela fotografia. Essa síntese é possível, somente, devido a uma

infinita sequência analógica entre aquilo que é visível na foto e o “invisível que lhe é

correlato” (LISSOVSKY, 2008, p. 21). Assim, a arma do estudante contra um Estado que não

pensa é a palavra. Nesse sentido, Ricoeur trabalha o processo analógico de metaforização – e

já foi proposto enxergar os foto-ícones a partir de relações tanto metonímicas quanto

metafóricas com o acontecimento – através de uma leitura de Paul Henle, em que o aspecto

propriamente figurativo da metáfora (e, evidentemente, é este que interessa a esta pesquisa)

tem caráter, precisamente, icônico. Assim, “o modo icônico de significar leva a pensar em

alguma coisa considerando alguma coisa semelhante” (RICOUER, 2000, p. 290), e

“metaforizar é ver qualquer coisa mais abstrata sob os traços mais concretos de qualquer coisa

diferente” (RICOUER, 1981, p. 7).

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Na síntese, portanto, o resultado final só é construído se há um compartilhamento de

repertórios prévios, que geram a força condensadora da imagem. No caso, esse repertório

incluiria o entendimento do que teria sido a ditadura no Brasil, as consequências desses

contexto para um estudante, para a população brasileira, a propriedade intelectual ferida pelo

governo militar brasileiro etc. Bezerra de Menezes, contudo, sugere que propostas (ou

intenções) e dados a respeitos das fotografias que se tornam ícones são insuficientes na

construção de um sentido histórico sobre elas. Para o autor, seria necessário, então, identificar

tradições visuais (estereótipos e tópoi visuais) que ativem os impactos previstos (BEZERRA

DE MENEZES, 2002, p. 143).

Os quatro foto-ícones apresentam trajetórias e performances muito distintas; mas

todos abrem, a partir de sua existência, um campo vasto em que ação e imaginário se

confundem inaugurando laboratórios de experimentação afetiva, estética e política daquilo

que entendemos como história.

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2

FOTO-ÍCONES FLAMEJANTES: DO CONSUMO DE OXIGÊNIO PELOS QUE ACREDITAM EM

COMBUSTÃO

Quando o fogo é assim tão poderoso, vira um outro ser. – Davi Kopenawa

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al fin alzando juntos el futuro, al fin transfigurados en sí mismos,

mientras la larga noche de la infamia se pierde en el desprecio del olvido.

– Julio Cortázar

2.1. MOLOTOV-CLICK: DA DOMESTICAÇÃO DAS ARMAS

2.1.1. Como desenhar um alvo

Bill Stewart. Durante o ano de 1979, este nome circulou intensamente pela imprensa

internacional. William D. Stewart era jornalista norte-americano da ABC News e estava há dez

dias em Manágua fazendo uma reportagem sobre a guerra civil travada entre revolucionários

Sandinistas e o governo ditatorial de Anastasio Somoza Debayle. Enquanto locomoviam-se

em uma van que viajava da periferia da capital para o centro da cidade, Stewart e sua equipe

técnica foram parados pela Guarda Nacional – a Guardia. Pensando que seria a atitude mais

efetiva, o jornalista decidiu sair do veículo para mostrar suas credenciais de imprensa. Um

vídeo , feito por Jack Clark, o cameraman da equipe que estava dentro da van, mostra os 8

seguintes acontecimentos: Stewart encontra-se no chão, abaixado, com militares da Guarda

Nacional à sua volta. Em seguida, um soldado gesticula algo que parece indicar uma ordem

para que o jornalista se deite. Stewart, então, recebe um chute na lateral direita do corpo. Após

alguma movimentação, este mesmo soldado aponta uma arma para o repórter, ainda deitado, e

atira. Bill Stewart é assassinado pelas mãos do Estado apoiado e mantido pelo governo de seu

próprio país.

Dia 16 de julho de 1979. A morte do repórter norte-americano ainda não havia

completado um mês. Susan Meiselas, fotógrafa associada à Magnum e abertamente simpática

ao movimento Sandinista, encontrava-se no país havia seis semanas. Durante esse tempo,

Meiselas fotografou diversas situações em diferentes locais na Nicarágua, mas foi nas

imediações de um dos últimos prédios da Guarda Nacional sob domínio da ditadura, em Estelí

– terceira maior cidade do país cujo bombardeio pela Guardia, durante a guerra civil, foi

intenso – que a fotógrafa produziu a imagem que se tornaria um ícone: Sandinistas at the

O vídeo citado pode ser encontrado neste endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?8

v=AwhCXqe6Vm0&has_verified=1

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walls of the Esteli National Guard headquarters, ou Molotov Man (figura 1), como ficou

conhecida.

Na fotografia em questão, pode-se ver, em primeiro plano, Pablo Arauz, conhecido

como “Bareta” (apelido que ganhou devido a uma jaqueta com o nome do personagem – um

detetive – de uma série de televisão, que por um irônico acaso era produzida pela ABC), com

duas armas: um fuzil FN FAL e uma bomba caseira do tipo coquetel molotov. Arauz, cuja

aparência – reforçada pela boina e pela camisa – lembra inevitavelmente a imagem

massificada de Ernesto Guevara, é fotografado durante o lançamento da bomba. Em segundo

plano, estão outros quatro revolucionários, dentre os quais, dois rostos podem ser vistos. Um

deles, agachado na frente da pilha de sacos que lhe serve como proteção, também se chama

Pablo – de acordo com o relato de Arauz em uma entrevista concedida a Joaquín Tórrez, para

uma reportagem do jornal El Nuevo Diário, em 2004. Pablo, em segundo plano, também

carrega uma arma de fogo (provavelmente, um fuzil do mesmo modelo). Atrás da pilha de

sacos, um tanque de guerra em posse dos Sandinistas aponta na direção de Bareta, que lembra

deste elemento com orgulho, vinte e cinco anos depois: “Nós estivemos naquela barricada por

vários dias; a Guardia não deixava o seu quartel e nós lhes fizemos várias baixas incluindo

um tanque que aparece na foto” (ARAUZ, 2004). Ao fundo da imagem, perto de um muro,

pode-se, ainda, identificar duas pessoas que caminham encurvadas – certamente, mais dois

revolucionários que, desprotegidos, locomovem-se com cuidado. Um deles, ao que parece,

segura uma grande arma. No chão, dezenas – talvez centenas – de cápsulas de balas podem

ser vistas. A bomba caseira, próxima ao centro da imagem, é, curiosamente, um elemento

absolutamente familiar: uma garrafa de Pepsi. O logotipo que mostra-se, colorido, para o olho

da câmera, é rapidamente percebido por qualquer observador, mesmo que desatento.

Ao verificar a trajetória de iconização desta fotografia, uma questão se coloca: como

uma imagem tão pouco familiar à população norte-americana (ocidental, em geral), tão

agressiva e explícita, com valores nitidamente rejeitados pela opinião pública, pôde se tornar

popular? Ainda que este processo tenha acontecido, neste caso, através de um forte fator

inconsciente – uma vez que as infinitas apropriações extrapolam o horizonte do racional –, se

tal trajetória se encontra no âmbito do ícone, é porque, necessariamente, a fotografia foi não

somente aceita, como muito bem acolhida. Que abstrações são feitas para que isto ocorra –

abstrações que não foram feitas na imagem? Se sugerirmos como referência, por exemplo, o

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famoso retrato de Guevara feito por Alberto Korda que foi iconizado a partir da arte em

monotipia de Jim Fitzpatrick, aquilo que está ausente é precisamente o que permitiu sua

popularização: “Che” parece quase neutro e nenhum elemento denuncia qualquer informação

sobre sua personalidade, salvo a pequena estrela comunista presente na boina.

Definitivamente, não é o caso de Molotov Man.

O “homem do molotov” – Pablo Arauz – teve a história de sua vida permeada pela

história dos movimentos revolucionários da esquerda latino-americana:

Seu pai, Pedro Antonio Arauz, era irmão de Blanca Arauz, esposa do general Sandino. Dom Pedro era secretário de Sandino e depois ficou amigo de Che e Fidel ao viver por 12 anos em Cuba. Seu irmão mais velho, Augusto, que foi morto pela Guardia em 1974, lutou com o exército cubano durante a invasão da Baía dos Porcos em 1961. (TÓRREZ, 2004)

O que faz, então, com que este personagem misture-se, também, com a história dos

meios, do liberalismo, do consumismo e da globalização?

O assassinato de Bill Stewart representou uma virada na opinião pública norte-

americana – e, portanto, na opinião pública internacional. Ainda que setores mais

conservadores enxergassem no movimento Sandinista uma forte ameaça comunista e

considerassem a emergente configuração política da Nicarágua como um perigo que poderia

ser exportado, a morte do jovem jornalista da ABC News era inconcebível. Em algum espaço

de suas mentes e corpos, essas pessoas, agora, nutriam sentimento nefasto pela ditadura que

em nada as havia atingido – até então. O assassinato de Juan Francisco Espinosa,

nicaraguense de vinte seis anos que era tradutor de Stewart, ocorrido na mesma ocasião,

contudo, não gerou muita comoção.

Como resposta ao “ato de barbárie que todas as pessoas civilizadas condenam”, nas

palavras do presidente norte-americano Jimmy Carter, a colaboração financeira à ditadura de

Somoza foi imediatamente cortada. O apoio da “terra dos livres” (land of the free ) a um 9

Estado assassino tornou-se insustentável. Porém, nem as decisões políticas e suas

consequências, nem o abalo na opinião pública explicam por que Molotov Man tornou-se um

foto-ícone. De diversas fotografias feitas durante os anos de conflito na Nicarágua, por que

esta? E como ocorreu essa trajetória?

Referência ao hino norte-americano, The Star-Spangled Banner.9

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A turbulência político-social aqui descrita não constitui algo imprevisível, nem este

processo é, em nenhuma hipótese, inusitado; desenha, somente, um campo sutil, mais

receptivo – ainda que inconsciente – para que o alvo de Arauz, invisível na imagem, se

inscrevesse vagamente a partir de olhos hostis ou, ao menos, indiferentes.

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A experiência no mundo ensaia-se na experiência da imagem.

– Hans Belting

2.1.2. Cristo, Pepsi, jeans e stickers: a mira infalível de Pablo “Bareta” Arauz

Bogdan Stefanescu, autor romeno que trabalha, principalmente, com temas que

envolvem nacionalismo, pós-comunismo e pós-colonialismo, sugere, através de uma teoria

que deriva de autores como Edward Said, Benedict Anderson e Homi Bhabha, a utilização

daquilo que chama de indexical master tropes (que pode ser traduzido como “tropos

dominantes indexicais”) para pensar formas de identificação nacional. O conceito foi criado a

partir de uma leitura de Kenneth Burke, para a categorização de quatro diferentes formas de

uma sociedade expressar, compreender e manifestar nacionalismo. Segundo Stefanescu, “os

tropos dominantes indexicais poderiam ser descritos como processos estruturantes profundos

que configuram nossas representações do eu coletivo e de seus outros(s) culturais(s).” (2017,

p. 13). O autor tem como foco a sociedade romena e o problemático legado identitário

deixado pelos anos de comunismo – principalmente aqueles após 1965, quando o país esteve

sob a violenta ditadura de Nicolau Ceaucescu.

De forma bastante didática e funcional, ainda que demasiadamente filiada a uma teoria

estrita da linguagem – e por isso, utilizada com muita cautela em relação ao objeto desta

pesquisa – Stefanescu sugere estes quatro modelos: indexicalidade antagonística (imaginando

a nação através da antítese); indexicalidade analógica (imaginando a nação através da

similitude); indexicalidade harmoniosa (imaginando a nação através da metáfora);

indexicalidade antinômica (imaginando a nação através da ironia). Dessa forma, analisaremos

alguns elementos visuais do foto-ícone a partir da proposta do autor, tentando encontrar

pontos de identificação da população ocidental, de uma forma geral, com a imagem, e,

também, as construções subjetivas que surgem em sua apreensão. Esse movimento desloca as

formas de identificação nacionalistas – de indivíduos com uma nação – propostas por

Stefanescu, para as formas de identificação afetivas (ainda que dependentes de referenciais e

discursos) da recepção – indivíduos que a apreendem Molotov Man – com a fotografia. Dessa

forma, sugerimos que alguns elementos visuais do foto-ícone geram distância, outros,

aproximação, e um deles, especificamente, cria uma espécie de curto-circuito na relação de

identificação.

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Evidentemente, a abordagem de Stefanescu possui um fundo filosófico-antropológico

que aponta para um problema que, de diferentes maneiras, sempre esteve no cerne das

questões inscritas pelas ciências humanas: a alteridade. A partir desta constatação, que

identificações são possíveis em Molotov Man? Como indivíduos sociais são construídos

durante sua apreensão? Quais noções, como pertencimento e identidade circulam entre

imagem, recepção, produção e performance?

Segundo o autor, a indexicalidade antagonística seria a mais comum, a mais

frequentemente identificável. De acordo com ele, “a antítese descreve o eu nacional como

contrário a um outro cultural designado – uma inversão no léxico de Hartog – e amplia as

diferenças entre a própria nação e as outras.” (STEFANESCU, 2017, p. 14). Em Molotov

Man, pode-se incluir alguns elementos visuais dentro deste processo associativo: a presença

das armas, as cápsulas de balas no chão, o tanque de guerra. Aqui estariam, afinal, todos os

indícios da guerra civil, de um estado de exceção. O caráter não familiar de Molotov Man,

portanto, a leva a este âmbito: naquele recorte de tempo e espaço, tanques e armas de fogo

fazem parte da paisagem. De acordo com Giorgio Agamben,

Entre os elementos que tornam difícil uma definição do estado de exceção, encontra-se, certamente, sua estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência. Dado que é o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, que é a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos. (2007, p. 13)

Embora o esforço de Agamben no livro Estado de Exceção (2003) seja voltado para a

configuração de um estado constante, muitas vezes não declarado, e mantido por Estados

democráticos – ao menos, conforme sua auto-definição – e, portanto, argumentado a partir de

situações muito mais sutis do que aquela na qual se inscreve Molotov Man, parece inevitável

voltar ao seu texto com o objetivo de mapear as condições primárias da exceção. Essa

condição presente visualmente na fotografia causa estranhamento e produz distância. Embora

este aspecto participe da configuração daquilo que o foto-ícone abarca como performance, ele

não explica seu sucesso como ícone.

A imagem, nesse sentido, parece cumprir aquilo que Meiselas uma vez declarou: “a

câmera é uma desculpa para estar em um lugar que você não pertence. Isso me dá tanto um

ponto de conexão quanto um ponto de separação” (MEISELAS, [19--?]). A fotógrafa

identifica precisamente os limites – que serão necessariamente borrados durante a apreensão

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da imagem – entre “eu” e “outro”. A mesma tensão entre proximidade e distância, ou ainda

mais radicalmente, entre imersão e observação, inerente ao processo de produção, estará

presente, também, na relação de recepção.

Nesse sentido, uma outra fotografia do conflito na Nicarágua pode ser apontada: uma

imagem (figura 5) escolhida por Roland Barthes para compor a seleção peculiar de A Câmera

Clara. A fotografia intitulada O exército em patrulha nas ruas (1979) foi feita pelo fotógrafo

holandês Koen Wessing no mesmo ano que Molotov Man. Barthes a descreve:

Eu folhava uma revista ilustrada. Uma foto me deteve. Nada de muito extraordinário: a banalidade (fotográfica) de uma insurreição na Nicarágua: rua em ruína, dois soldados com capacete em patrulha; em segundo plano, passam duas freiras. Essa foto me agradava? Me interessava? me intrigava? Nem mesmo isso. Simplesmente, ela exista (para mim). Compreendi logo que sua existência (sua “aventura”) tinha a ver com a copresença de dois elementos descontínuos, heterogêneos, na medida em que não pertenciam ao mesmo mundo (necessidade alguma de ir até o contraste): os soldados e as freiras. Pressenti uma regra estrutural (na medida de meu próprio olhar) e tentei de imediato verificá-la, examinando outras fotos do mesmo repórter (o holandês Koen Wessing): muitas dessas fotos me prendiam porque comportavam essa espécie de dualidade que eu acabava de detectar. (2015, p. 26)

Figura 5 - O exército em patrulha nas ruas

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Os elementos heterogêneos que Barthes destaca produzem, em quem apreende a

imagem, uma indexicalidade antagonística. O tropo visual ali é o mesmo que os elementos do

foto-ícone de Meiselas já aqui citados (armas, cápsulas de balas, tanque de guerra) geram,

ainda que em O exército em patrulha nas ruas ele apareça através de uma operação dialética

(a copresença de freiras e soldados). A ausência de processos indexicais mais complexos na

fotografia de Wessing talvez seja, precisamente, o aspecto responsável por aquilo que Barthes

declara faltar nela: punctum.

Portanto, dentro desta lógica, outros elementos visuais de Molotov Man geram o efeito

oposto ao estranhamento – nas palavras de Meiselas, conexão. Embora à primeira vista Arauz

personifique o guerrilheiro, a esquerda combativa, a típica luta existente nos países latino-

americanos durante algumas décadas do século XX (estigmas, inclusive, anacronicamente

corriqueiros até os dias atuais), ele não segue totalmente um estereótipo, e alguns fatores o

lançam em um terreno que não se situa fora do clichê, mas está povoado de afinidades morais,

estéticas, ou econômicas. Assim, Sobre a indexicalidade analógica, Stefanescu comenta:

Um tropo dominante indexical que representa a relação eu-outro de maneira não conflituosa é fundamentado na semelhança. Símile, um produto da imaginação analógica, constituiu tradicionalmente a estratégia retórica alternativa à identificação antitética. […] Representando o eu e o outro por similaridades, em vez de diferenças irreconciliáveis, o nacionalismo analógico emprega nossa razão [...] para desenvolver um senso de compatibilidade com o(s) outro(s) e um terreno comum que facilite a coabitação e a negociação de soluções. (STEFANESCU, 2017, p. 17)

A concepção deriva de um conceito criado por François Hartog: analogical collective

image, que é definida por Stefanescu como uma “construção que é um mecanismo cuja

finalidade é negociar a discrepância e tornar a alteridade mais acessível ao nosso

entendimento.” (2017, p. 19).

O objeto que, provavelmente, mais ganha atenção visual na imagem é um crucifixo

que Arauz leva no pescoço. O motivo de tal foco é explicado durante a entrevista já aqui

citada: “Esse era um rosário fosforescente de um companheiro que uma vez me pediu para

guardá-lo. Eu só o usava durante o dia, porque à noite era muito visível” (ARAUZ, 2004). O

material brilhante da cruz, portanto, gerava uma vocação para a centralidade.

Arauz não era um homem religioso, mas considerava o presente do amigo como uma

espécie de amuleto: “não sei nem por que o usava... talvez para buscar proteção.” (ARAUZ,

2004). Ainda que ele, como indivíduo, não possuísse envolvimento específico com a religião,

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as boas relações entre o catolicismo e o pensamento de esquerda têm certa tradição na

América Latina: a Teologia da Libertação deixou um forte legado. Na própria Nicarágua,

pôde-se verificar suas influências em uma experiência liderada pelo padre Ernesto Cardenal, a

partir de 1966. Solentiname, uma “comunidade utópica para escapar e resistir à ditadura de

Somoza” (SELEJAN, 2015, p. 151), foi descrita por Ileana Selejan desta forma:

Um arquipélago de 36 ilhas tropicais localizado para as margens sudeste do Lago Nicarágua, distante e independente do resto do país, com sua própria escola de pintura e escultura primitivistas, a comunidade era um lugar de refúgio para os revolucionários latino-americanos, artistas e intelectuais nos anos que antecederam a Revolução de 1978-79. Como experimento utópico, realizado mesmo em pequena escala, Solentiname desafiava seu status excepcional, impulsionado por imaginários transnacionais de resistência e esperança. Seu nome foi sussurrado pela resistência anti-Somoza dentro e fora da Nicarágua, alimentando futuras alternativas políticas e sociais, mesmo quando um movimento revolucionário comum ainda estava para tomar forma. (2015, p. 151)

A autora defende, ainda, que alguns ensaios fotográficos feitos em Solentiname foram

muito importantes na construção de uma cultura visual e da estética associada ao movimento

Sandinista: “Solentiname fornece um estudo de caso importante para entender o

desenvolvimento das raízes ideológicas subjacentes à produção da cultura material e visual na

Nicarágua revolucionária.” (SELEJAN, 2015, p. 152). Selejan foca, portanto, seu artigo War

in paradise: Solentiname and the Sandinista revolution na “participação da fotografia na

formação de identidades estéticas revolucionárias que acompanharam a ascensão da Frente

Sandinista de Liberação Nacional durante a década de 1970 até a década de 1980.” (2015, p.

152).

O adereço utilizado por Bareta reúne, nesse contexto, diversos sentidos conflitantes

ou, até mesmo, contraditórios. Enquanto associado à experiências como Solentiname, gera

uma força de contestação e resistência por parte de uma população que vive fora do contexto

das revoluções, mas que, apesar disso, sente-se impulsionada a assumir seus valores. Parte da

adesão à imagem vem da construção de um campo semântico sustentado pelo apoio

ideológico a movimentos desta natureza, e a consequente apropriação estética deles. Selejan

lembra, por exemplo, da visita clandestina de Julio Cortázar ao arquipélago, em 1976, que

gerou, pouco tempo depois, seu primeiro texto sobre a Nicarágua revolucionária: Apocalypse

in Solentiname, que mais tarde viria a fazer parte de uma coletânea publicada em apoio aos

Sandinistas.

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Por outro lado, o crucifixo carrega todo o sentido tradicional já estabelecido por sua

história milenar. A religião como moral e práxis, ou como instituição responsável pela

organização social e pela manutenção de uma ética hierárquica, encontra conforto no pequeno

objeto que brilha junto ao corpo de Pablo Arauz, mesmo que tal acolhimento fosse contrário

às suas convicções.

Outro elemento que merece atenção é o fuzil. Na parte inferior da arma, é possível

identificar um adesivo com a bandeira do Panamá, detalhe que é rememorado por Arauz em

conjunto com várias outras lembranças marcantes sobre os elementos visuais da imagem –

como, por exemplo, o fato de que três peças de suas vestimentas eram, na verdade, de amigos.

O objeto faz parte, portanto, de uma coleção de memórias afetivas. Aquilo que, a princípio,

não poderia ser mais impessoal recebeu um cuidado estético que se inscreve em um conjunto

de ações e hábitos de uma cultura considerada “jovem”. Enquanto jovens norte-americanos

colavam stickers em seus carros, janelas e guitarras, Bareta marcou seu fuzil com a cola da

soberania . 10

O último elemento visual que compõe esta parte da análise é o jeans que Arauz veste.

Apesar da origem operária, o jeans constituiu um símbolo do consumo e da estética

americano-ocidental desde a década de 1950, mas principalmente na década de 1970, quando,

em algumas sociedades, passou a representar explicitamente uma espécie de assimilação

estética. Como exemplo, pode-se citar um estudo sobre Bollywood e o cinema indiano, feito

pela antropóloga Clare M. Wilkinson-Weber:

Atores masculinos de filmes hindus – “heróis” ou estrelas, e alguns atores de apoio – começaram a usar jeans e jaquetas de denim nos filmes do início a meados dos anos 1970. No final da década de 1970, as estrelas femininas do cinema – “heroínas” – também o faziam. […] Jeans, quando apareciam, eram tipicamente significantes de personagens explorando novas formas de identidade e mobilidade social. […] Para os homens, os jeans eram uma extensão de um guarda-roupa de estilo ocidental […] Jeans em mulheres, por outro lado, eram uma atitude claramente transgressora. (2010, p. 53)

Foram nesses anos, também, que o jeans – após ter sido apropriado pela contra-cultura

na década anterior – ganhou forte apelo sexual, passando, portanto, ao longo da década, de

artigo associado à irreverência e à impostura a um imaginário de saúde, beleza e estilo de

Em 1977, através dos Tratados Torrijos-Carter, o Panamá passou a controlar a Zona do Canal do Panamá, sob 10

jurisdição exclusivamente norte-americana desde 1903. A bandeira panamenha, importante símbolo da luta pela soberania do país, esteve no centro de reivindicações e protestos desde a década de 1950.

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vida. Nesse sentido, a imagem de Pablo Bareta Arauz, o guerrilheiro encarregado da

confecção de bombas de contato, adornado por uma calça de modelo feminino – ele recodaria,

mais tarde, que “a calça que eu estava usando naquele dia era feminina, de uma parceira de

luta” (ARAUZ, 2004) – é significativa. Mesmo sem intenção, o personagem Molotov Man

performa, na foto, tanto um modelo político anti-opressivo, libertário, quanto outro, que quase

caminha na direção oposta – pois faz parte do circuito do capital e do consumo – que

corporifica desejos e fetiches.

O crucifixo, o fuzil que Arauz segura e seus jeans compõem um tropo – um campo de

identificação visual e subjetiva (indexicalidade analógica) – que sugere o estabelecimento de

uma afinidade inconsciente com o foto-ícone.

Por fim, há, ainda, um objeto que merece atenção no foto-ícone: a bomba caseira que

o revolucionário carrega – uma garrafa de Pepsi. O logotipo da Pepsi causa, evidentemente, a

sensação de familiaridade. Porém, aquele rótulo, deslocado de todo o resto da imagem,

representa, ali, antes uma inquietação do que o conforto – como deveria funcionar qualquer

commodity, qualquer mercadoria. Assim, este elemento está inscrito naquilo que Stefanescu

propõe como indexicalidade antinômica: “como um artifício indexical, a ironia prova-se tão

perturbadora quanto a metáfora uma vez que joga o eu cultural contra seu alterego apenas

para nos provocar com sua identidade paradoxal” (2017, p. 23). O autor também sugere que

A função retórica desse nacionalismo antinômico é balançar todas as certezas dogmáticas, com a noção perturbadora de uma coincidência entre o eu nacional e o outro cultural [...] Isso produz dramatizações paródicas de encontros entre eu/outro, inversões chocantes e reviravoltas inesperadas, dispersa a tensão nacionalista com um humor rápido. (STEFANESCU, 2017, p. 23)

Assim, as diversas camadas de significado que aquela garrafa contém, ao exibir tanto

seu rótulo como as chamas do molotov, ao encarnar tanto o anteparo quanto o projétil, ao

existir simultaneamente em sua versão mais sagrada e mais profana, explicita “a coexistência

de significados conflitantes ou incompatíveis, de perspectivas irreconciliáveis em uma única e

mesma fórmula discursiva” (STEFANESCU, 2017, p. 23).

Aliada dos Sandinistas, a garrafa de Pepsi será precisamente a ferramenta artesanal e

aparentemente impotente – frente o poder da ditadura – que a destruirá. Mas ao mesmo

tempo, cumpre missão suicida: no exato instante que o muro da Guarda Nacional for atingido,

a Pepsi, em perfeita sincronia com seu alvo, explodirá.

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Uma eletricidade que pouco a pouco se solta, uma chama que subitamente brota, uma força que erra, um

sopro que passa. Esse sopro encontra seres que pensam, cérebros que sonham, almas que sofrem, paixões que

ardem, misérias que gritam, e os carrega consigo. – Victor Hugo

2.1.3. Um molotov contra Golias: a expulsão de Somoza do Vale de Elah

Os processos de identificação com a fotografia explorados até aqui talvez expliquem,

em parte, sua iconicidade. Mas é necessário que se destaque um aspecto peculiar a respeito

desta imagem, que, talvez, seja o maior responsável por este processo. Molotov Man possui

um poder excepcional de replicação: o foto-ícone foi apropriado das mais diferentes formas, e

a reprodução figural do gesto é constante (figura 6). Não é incomum, inclusive, que as

apropriações – e ainda que elas nem sempre representem, de fato, releituras explícitas do foto-

ícone, remetem inevitavelmente a este imaginário – sejam mais populares do que a fotografia

de Meiselas. Não raro, pessoas que atestam o não conhecimento de Molotov Man demonstram

familiaridade com outras imagens – suas sobrevivências.

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Figura 6 - Apropriações de Molotov Man 11

Esta capacidade pode ser inscrita conceitualmente dentro daquilo que entende-se

antropológica e filosoficamente como mímese. Dentro da filosofia ocidental, o uso do termo

remonta a Aristóteles e passa, também, por discussões dentro do campo da arte. É, porém, a

abordagem antropológica que pontuará a discussão aqui proposta. Nesse sentido, Michael

Taussig investe em uma ideia de mímese como algo a partir do qual as relações humanas se

estabelecem e o próprio mundo é construído:

Então, como seria viver no mundo que perdemos, um mundo mimético em que as coisas tinham espírito-cópias, e a natureza podia então olhar para trás e falar com alguém através de sonhos e presságios, a natureza não sendo algo para ser dominado mas algo cedido ou magicamente performado, e as pessoas […] eram “nascidas como mímese”? (1993, p. 100)

Colagem feita a partir de imagens da Internet.11

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No livro Mimesis and Alterity (1993), o antropólogo desenvolve o argumento de que a

faculdade mimética é constituinte da noção de alteridade. Taussig tem como objeto os Cuna,

uma população indígena panamenha. Através de relatos, também, de outros pesquisadores que

trabalharam com a população, ele enuncia o problema: curiosamente, figuras de madeira

envolvidas em processos xamânicos de cura não são nada semelhantes aos indígenas – elas

têm uma aparência notadamente europeia. Possuem um fenótipo que não apresenta nenhuma

característica da América Central ou das proximidades. Além disso, as roupas e adereços

talhados também não encontram referência local; e ainda – frequentemente, as figuras são

vistas montando cavalos, prática nada típica entre os Cuna. Estas imagens despertam

inquietação pois levantam a seguinte constatação: o próprio processo mimético produz

alteridade. Diferença.

O recalcamento da faculdade mimética – ou a perda da magia do mundo, seu

desencantamento – apontado por Taussig ao longo de sua obra encontra eco em um estudo

bem mais antigo. No ensaio A doutrina das semelhanças, Walter Benjamin aproxima a

questão da semelhança à linguagem:

Nossa percepção não mais dispõe do que antes nos permitia falar de uma semelhança entre uma constelação e um ser humano. Não obstante, possuímos também um cânone, que nos aproxima de uma compreensão mais clara do conceito de semelhança extra-sensível. É a linguagem. (1987, p. 110)

Atribuindo tanto a alteridade quanto a linguagem à ideia de mímese, a partir das

elaborações de Taussig e Benjamin, respectivamente, o que se pode subtrair das experiências

miméticas sofridas pelo foto-ícone da Revolução Sandinista? Que novos nascimentos, que

revoluções germinais, são possíveis em cada operação dessa força sintomática? A própria

existência de Molotov Man inscreve-se nesse contexto e está imbricada na pós-vida

(WARBURG) de uma outra imagem. Benjamin concluiu que a natureza de um Então com um

Agora é imagística, e não temporal (1999). O Agora, nesse caso, desloca bruscamente um

jovem pastor incondicionalmente fiel a Deus.

Uma história bíblica descreve a vitória de David sobre o gigante Golias. Segundo a

narrativa do velho testamento, o rei Saul e seu povo – os israelitas – enfrentavam os filisteus

(povo que ocupava um território ao sul de Canaã), na região do Vale de Elah. Durante

quarenta dias, o gigante Golias foi enviado pelos filisteus para desafiar o rei Saul. A exigência

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era que algum combatente aceitasse uma batalha individual contra ele. David – rapaz ainda

jovem e de tamanho reduzido – então, aceita o desafio, e, ainda que sob relutância de Saul,

dirige-se para a batalha somente com algumas pedras e uma funda (espécie de estilingue).

Com um único lance, David atinge Golias na testa, que tomba. Assim, David corta a cabeça

do gigante com sua própria espada, e os filisteus, intimidados com a morte de seu herói,

abandonam o vale.

O tema tornou-se extremamente comum na arte. Dentre representações conhecidas,

destacam-se, por exemplo, a famosa escultura renascentista David (1501-1504) de

Michelangelo; dois quadros de Caravaggio, David e Golia (1600) e Davide con testa di Golia

(1610); e a escultura barroca David (1623-1624), de Gian Lorenzo Bernini. Esta última será,

junto com Molotov Man, nosso objeto de análise.

Assim como o personagem bíblico David, Pablo Arauz estava na iminência de fazer o

impossível; e sua aparição como imagem, sua figuração, pode ser vista através de um prisma

warburguiano. Ao comentar a obra de Aby Warburg, Georges Didi-Huberman explica a ideia

de sobrevivência:

As sobrevivências advém como imagens. […] Warburg desenvolveu toda a sua ideia das imagens sobreviventes na ótica – sempre nietzschiana – de uma genealogia das semelhanças, ou seja, de um modo autenticamente crítico de contemplar o devir das formas. (2013, p. 152)

Warburg chamou de Pathosformel (fórmula do páthos) esse devir das formas: “a essa

grande pergunta – quais são as formas corporais do tempo sobrevivente? – responde o

conceito, absolutamente central em Warburg, das ‘fórmulas do páthos’” (DIDI-HUBERMAN,

2013, p. 167). Horst Bredekamp explica que o conceito é, em si, uma tensão:

A ‘fórmula de páthos’ representa a aliança de duas componentes opostas: o páthos como reação corpórea, momentaneamente intensificada, de uma alma abalada; em face do ethos enquanto elemento caracterial constante, ao qual incumbe o controle das emoções como ‘fórmula’. Esta interseção, rica de conflitos, oferece o enquadramento para combinações sempre novas em que ambos os elementos, o páthos e também a fórmula, podem emergir distorcidos em si. (2015, p. 225)

Em uma das pranchas do Atlas Mnemosyne, projeto que continha uma “metodologia

da montagem que não levou esse nome” (MICHAUD, 2013, p. 10), Warburg explorou o tema

de David e Golias. Duas imagens que compõem a prancha em questão são: O Pedagogo de

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Nióbidas, uma cópia romana segundo um modelo grego, e David, de Andrea del Castagno, de

1450 (figura 7). Quando o historiador da arte montou seu Atlas, Molotov Man aguardava,

ainda, meio século para nascer. Mas poderia ele, figurando o mesmo gesto, compor a série de

imagens ao lado do Pedagogo e de David? Há ainda mais um indicativo de que sim: Didi-

Huberman filia a escolha temática de Warburg a uma tendência antiga: “a problemática das

fórmulas do páthos havia brotado de um interesse de Warburg, manifestado desde muito cedo,

por certos temas iconográficos, todos os quais pressupunham uma luta de morte” (2013, p.

225). Luta e (potência de, possiblidade de) morte são abundantes na fotografia de Meiselas.

Figura 7 - Detalhe de prancha do Atlas Mnemosyne: Pedagogo de Nióbidas e David

Outro aspecto importante do conceito formulado por Warburg seria o caráter

transitório dos gestos que sobrevivem: “a mais alta expressão patética situa-se na transição de

um estado para outro” (GOETHE apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 181). Philippe-Alain

Michaud também destaca esta propriedade, trazendo características visuais para os

movimentos transitórios:

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Não fora o corpo imóvel e bem equilibrado que tinha servido, como pretendia a história da arte winckelmanniana, de modelo para a imitação da Antiguidade, e sim o corpo tomado num jogo de forças não dominadas por ele, que o faziam aparecer com os membros retorcidos na luta ou dominadas pela dor, com os cabelos soltos e a roupa esvoaçando sob o efeito da corrida ou do vento (2013, p. 31).

Portanto, “o problema da ‘transmissão do antigo’” estaria “muito além do modelo da

‘imitação’” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 130):

O momento-intervalo, o momento que não é a posição da frente nem a de trás, o momento de não estase que se lembra das estases passadas e futuras e as antecipa, é isso que dá ao páthos uma chance de encontrar sua formulação mais radical (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 181).

Tanto a escultura de Bernini quanto Molotov Man encontram-se precisamente neste

estado privilegiado do páthos. O barroco, estilo artístico que apresentava Bernini como um

dos grandes nomes, aliás, já continha esta característica – a representação do movimento nos

corpos.

Etimologicamente, a palavra barroco “deriva da palavra para uma pérola de formato

irregular” (HILLS, 2007, p. 50). Didi-Huberman chamou a última parte de seu livro dedicado

à obra de Warburg de Epílogo do pescador de pérolas. Ali, ele defende a ideia de que o

historiador da arte alemão teria sido “um pesquisador do tipo pescador de pérolas” (DIDI-

HUBERMAN, 2013, p. 424). A exploração das conexões entre estes dois aspectos poderia,

talvez, ser prolífica para um estudo dentro dos labirintos da História da Arte, mas o que

interessa aqui, nesse sentido, é, pontualmente, a constituição morfológica do mineral: a

aparição figural das pérolas é, aos olhos humanos, uma formação naturalmente estética de um

sedimento. Dessa forma, o que encontramos como sedimento plástico em Molotov Man?

O páthos, essa energia sedimentar, flui de uma imagem a outra, da escultura barroca

para a fotografia com carga ideológica – e vice-versa – dentro de uma lógica anacrônica:

as imagens atraem a si o próprio conflito que deveriam resolver. No ornamento agitado e nas “fórmulas de páthos” não aparecem formas intactas e coerentes, mas seres que projetam a sua instável vida interior em mundos externos, periféricos. Os motivos que são o resultado da agitação motriz anímica da punição, da luta e do assombro, agem sob o modo aparentemente lúdico para poderem atuar como orientação, repositório e descarga. Ao proceder assim, propõem o modelo que permite o domínio e a compreensão das imagens globalmente influentes do presente. (BREDEKAMP, 2015, p. 230).

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Da condição afetiva de ambos – sua condição de impotentes lutadores que enfrentam a

impossibilidade da – à impressionante semelhança visual, que inclui a expressão do rosto, o

estado do cabelo, a torção do corpo, a ferramenta improvisada, o braço esticado, o ângulo de

abertura das pernas, o recipiente de munição preso ao corpo, e a curva que tanto o colar

quanto a faixa da bolsa fazem do pescoço ao torso, David e Pablo parecem fazer um único e

eterno movimento (figura 8). Arauz segura a cabeça decapitada de Golias enquanto David

recupera Estelí.

Figura 8 - Molotov Man e David de Bernini 12

Fonte da fotografia de David, de Bernini: http://totallyhistory.com/david/ 12

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There are always the sufferings Of birth, old age, illness, and death.

Such fires as these burn endlessly. – Trecho do Lotus Sutra

2.2. O HOMEM TRANSCENDE: NAS RUAS DE SAIGON, UM ROSTO DE CINZAS

2.2.1. A fumaça eterna do martírio: caminhos de fogo e incenso entre Shan-yin e o

cruzamento Phan Dinh Phung - Le Van Duyet

Fa-yü, Hui-shao, Seng-yü, Hui-yi, Wu-jan, Ching-ch’ao e Hung-chen são nomes de

monges budistas que atearam fogo em si mesmos. Estes são somente alguns dentre vários que

cometeram o ato de auto-imolação. Eles remontam à China medieval, mas estudos mostram

que ações similares puderam ser identificadas, ao longo dos séculos, também, na Índia.

Segundo Jan Yün-hua, “A maioria dos monges que queimaram até a morte foram

inspirados pela doutrina contida no Lotus Sutra” (1965, p. 246), mais especificamente pelo

capítulo Bhaisajyartija, que conta a história de Bodhisattva Bhaisajyartija , de onde pode ser 13

destacado este trecho, logo no início:

Tendo prestado homenagem ao Buda, ele emergiu do samādhi e pensou isto: Fiz uma homenagem ao Buda usando meu poder transcendente. Isto, no entanto, não é igual ao tributo de oferecer meu corpo ”. Durante um total de mil e duzentos anos, ele inalou a fragrância de madeira de sândalo, olíbano, incenso, cravo, madeira de aloés e árvores de cola e bebeu o óleo aromático das flores de campaka. Ele então ungiu seu corpo com pomada perfumada. Na presença do Buda Candrasūryavimalaprabhāsaśrī, ele cobriu seu corpo com uma divina peça de joalheria e com o óleo perfumado. Através de seu poder transcendente e votos ele incendiou seu corpo, que iluminou mundos iguais em número às areias dos oitenta koṭis dos rios Ganges. Ao mesmo tempo, todos os budas desses mundos o elogiaram, dizendo: “Esplêndido, esplêndido, ó filho de uma família virtuosa! Essa é a verdadeira perseverança. Isso é chamado a verdadeira oferenda do Dharma para o Tathagata. Não há comparação, mesmo que se paguem tributos com flores, perfumes, colares, incenso ardente, pós perfumados, unguentos, estandartes de seda divina, dosséis, perfumes de sândalo do litoral interno do monte Sumeru, e várias outras coisas como esta. Não existe comparação, mesmo se alguém oferecer o reino, a esposa e os filhos. Ó filho de uma família virtuosa, esta é a oferta suprema. Esta é a maior e melhor de todas as ofertas, porque você oferece o Dharma aos Tathagatas.” Tendo falado essas palavras, tudo ficou em silêncio. Seu corpo estava aceso há mil e duzentos anos. Após esse período, seu corpo se incinerou. Porque ele havia prestado homenagem ao Dharma assim, o Bodhisattva Sarvarūpasaṃdarśana renasceu após sua morte na terra do Buda Candrasūryavimalaprabhāsaśrī. Ele nasceu espontaneamente, sentado de pernas cruzadas na casa do rei Vimaladatta. (2007, p. 280)

Para que se entenda o trecho, é necessário que se explique algo que fica explícito ao longo do capítulo: 13

Bodhisattva Sarvarūpasaṃdarśana é Bodhisattva Bhaisajyartija.

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Apesar dos conceitos budistas que aparecem no texto, cuja compreensão não convém

explorar neste estudo, até mesmo porque tal tentativa seria infrutífera (e, talvez, até mesmo

desrespeitosa, ao buscar reduzir a experiência espiritual em algumas palavras de um texto

acadêmico produzido por alguém que não possui conhecimento a respeito do tema), é possível

entender que o texto descreve uma cena de auto-imolação, em que o corpo de Bodhisattva

Bhaisajyartija arde em chamas.

Ainda que com marcadas diferenças, a ação descrita no Lotus Sutra encontra eco e

sobrevive naquilo que serve de encenação para nosso objeto de pesquisa: Thích Quảng Ðức

oferece seu corpo em pleno século XX, e o recobre, da mesma forma que Bodhisattva

Bhaisajyartija, com um óleo – não perfumado, mas combustível, artigo comum e cotidiano na

sociedade automobilística do pós-guerra. Cercado fisicamente por uma população composta

por outros monges, admiradores, jornalistas ocidentais, fotógrafos e vietnamitas das mais

diversas posições políticas, mas talvez, também, pelos mesmos Budas de inúmeros mundos –

que em número equivalem a 800 milhões de vezes os grãos de areia do Rio Ganges – Thích 14

Quảng Ðức teve seu corpo de sessenta e sete anos completamente incinerado em poucos

minutos. A fotografia de Malcolm Browne (figura 2), entretanto, cumpre a função de

perpetuar as chamas, e assim, o monge do século XX poderá, talvez, queimar por mil e

duzentos anos, como aconteceu com o importante Bodhisattva Bhaisajyartija. Além disso, o

ato em resposta à intolerância do governo de Ngô Đình Diệm foi acompanhado, também, da

incineração dos incensos narrados pelos Budas de Bodhisattva Bhaisajyartija – as palavras de

Browne sobre suas sensações durante a situação foram estas:

O cheiro intenso de incenso. Eles produzem um cheiro muito forte, não um cheiro particularmente agradável, mas serve para apaziguar os ancestrais e tudo isso. Esse era o cheiro esmagador, exceto pelo cheiro de gasolina e diesel em chamas e o cheiro de carne queimada, devo dizer. (BROWNE, 2011)

O tropo da sacralização através do fogo, aliás, mostra-se presente em diversas

tradições. No próprio budismo, Vajrapani é um dos três bodhisattvas que simbolizam as

virtudes de Buda. Protetor dele e símbolo de seu poder, Vajrapani é comumente representado

com chamas que envolvem seu corpo (figura 9).

O koti designa uma quantidade, um koti equivale a dez milhões.14

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Figura 9 - Vajrapani 15

No hinduísmo, que tem origens comuns às do budismo – nas margens do Ganges, no

norte da Índia – Agni é a deidade védica do fogo, e está associada à ideia de transformação.

Ele também é representado com chamas ao redor do corpo (figura 10). Curiosamente, o mito

de origem de Agni é associado, muitas vezes, na cultura Indo-Europeia, a um pássaro, que

carrega o fogo dos deuses para a humanidade e some sem deixar vestígios. É inevitável,

portanto, lembrar da figura da Fênix, oriunda da mitologia grega: o pássaro milenar que entra

em combustão quando morre, renascendo das cinzas de seu predecessor.

Figura 10 - Agni 16

Colagem feita a partir de imagens da Internet.15

Colagem feita a partir de imagens da Internet.16

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Jan Yün-hua sugere, ainda, outros motivos para a existência da auto-imolação dentro

da tradição budista: a imitação de Bodhisattvas, a devoção, o descontentamento com a vida e

com o próprio corpo, o cumprimento de uma promessa, e o martírio. Considerando esta

classificação proposta pelo autor, é possível afirmar que, certamente, os dois últimos motivos

podem ser aplicáveis à ação de Quảng Ðức.

O protesto foi um evento produzido por diversos monges. Mas além disso, havia um

pacto pessoal entre Quảng Ðức e um colega do Norte do país. Os amigos haviam combinado

que ambos cometeriam suicídio, caso a relação do governo de Diệm com os budistas piorasse.

Quando nove pessoas foram assassinadas pelo governo durante um protesto feito pela

população budista, em resposta à proibição da bandeira da religião no dia do aniversário de

Siddhārtha Gautama – uma data importante no Budismo Maaiana –, Quảng Ðức decidiu

honrar seu compromisso.

O caráter político da ação, portanto, a lança no âmbito da martirização. Um aspecto

interessante sobre o martírio de Quảng Ðức que o diferencia de outros, feitos em tempos

remotos, é a dimensão de espetáculo que ele contém. Não restam dúvidas de que os monges

do Vietnã tinham consciência tanto do poder visual da imagem de um ser humano incendiado,

quanto da presença de correspondentes norte-americanos no país. Os manifestantes

convidaram, explicitamente, a mídia internacional ao anunciar, no dia anterior, que “algo

importante aconteceria” naquele local e horário.

Faisal Devji dedicou um capítulo de seu livro Landscapes of the Jihad (2005) às

relações entre mídia e martírio. Ainda que interessado em outro contexto, e inserido em uma

estrutura tecnológica e midiática muito diferente da de 1963, o texto de Devji pode contribuir

para a compreensão das tensões entre visibilidade, ética e política: “A representação do

martírio na mídia cria uma comunidade global cujo testemunho impõe certas

responsabilidades a seus membros.” (2005, p. 96).

Evidentemente, inúmeras discussões são possíveis a partir desta afirmação, e

voltaremos, ainda, a este tema; mas, antes, esta espécie de genealogia que faz Jan Yün-hua em

seu artigo Buddhist Self-immolation in Medieval China mostra-se interessante. O autor

reconta alguns casos de monges que “sacrificaram suas vidas por razões político-religiosas.

Tais homens eram monges que usaram o violento ato de autodestruição como protesto contra

a opressão política e a perseguição de sua religião.” (YÜN-HUA, 1965, p. 252). Isso seria

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muito diferente da auto-imolação feita com fins estritamente espirituais – pode-se citar, por

exemplo, os atos inscritos na tradição Taoísta, cujos monges que cometeram suicídio

almejavam a imortalidade. É válido comentar que nestes casos,

Sua motivação era, em certa medida, semelhante à dos hindus da índia. […] Essas motivações hindus para os suicídios religiosos eram a esperança de libertar a alma do renascimento, alcançar a terra de Brahma, nascer de novo em uma boa família, obter prazeres celestiais, etc. (YÜN-HUA, 1965, p. 254)

Pode-se perceber, a partir disso, outro tema comum em diversas tradições, que já foi

tangenciado aqui: o renascimento através do fogo, tornando este elemento visual, portanto, o

responsável por transformações, transmutações e metamorfoses. Com esta analogia em vista,

a proposta sugerida no primeiro capítulo a respeito do caráter transformador dos foto-ícones

analisados nesta pesquisa ganha uma encarnação visual.

Jan Yün-hua cita Tao-chi, o primeiro monge – de acordo com as informações

recolhidas até hoje – que cometeu um ato de auto-imolação em protesto contra perseguições

político-religiosas: na dinastia Chou (557-581), o imperador Wu propôs medidas anti-

budistas; em resposta, Tao-chi e sete outros monges fizeram greve de fome e morreram.

Durante a mesma dinastia, mas em outra região da China, o monge Ching-ai também fez um

ato de auto-imolação como protesto. Ele mutilou o próprio corpo diversas vezes e morreu no

ano de 579.

O último relato, porém, merece ser destacado para os objetivos desta pesquisa: um

século mais tarde, durante o período Ta-yeh (605-617), o monge Ta-chih, da região de Shan-

yin (hoje, província de Chekiang), protestou contra as atitudes do governo, que baniu budistas

e monges do território chinês. Yün-hua relembra o relato de um biógrafo do monge Ta-chih:

Embora o fogo o tivesse queimado, sua expressão permaneceu inalterada. Ele falou e sorriu como de costume. Às vezes ele cantava passagens sobre o Dharma e às vezes elogiava as virtudes do Buda. Ele pregou a Lei continuamente. Depois que seu braço foi queimado em cinzas, ele desceu da plataforma sozinho. Ele então se sentou em Samiidhi por sete dias e morreu em uma postura sentada. (1965, p. 254)

Alguns aspectos deste trecho se parecem assustadoramente com os relatos de quem

presenciou a cena eternizada na fotografia The Burning Monk. A expressão imutável e a

posição na hora da morte – “uma postura sentada” (embora não esteja explícito na descrição

da morte de Ta-chih, trata-se, também, provavelmente, da “posição de lótus”) – são

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características especialmente destacadas por aqueles que estavam presentes no cruzamento

entre as avenidas Phan Dinh Phung e Le Van Duyet, perto da embaixada do Camboja em

Saigon, na manhã do dia 11 de junho de 1963.

É impossível saber se Thích Quảng Ðức renasceu espontaneamente com as pernas

ainda cruzadas em algum local sagrado do planeta, da mesma forma que ocorreu, segundo a

narrativa do Lotus Sutra, com Bodhisattva Bhaisajyartija. Mas pode-se ter uma certeza: em

imagem, Thích Quảng Ðức renasce incessantemente desde então, em outros corpos, em

objetos visuais diversos, em sua própria imagem.

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A destruição dos seres não significa que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui, decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui, neste pequeno

lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Logo, água adormecida que exige de nosso olhar um

sobressalto perpétuo. As rosas depositadas pelo peregrinos na superfície da água ainda flutuam, e

começam a murchar. As rãs saltam de todos os lados quando me aproximo da beira d’água. Embaixo estão as

cinzas. – Georges Didi-Huberman

2.2.2. De todos os fogos, o rosto

Em uma entrevista feita em 2011 pela revista Time, Malcolm Browne, então com

oitenta anos, lembrou: “Eu tirei cerca de dez rolos de filme porque eu estava fotografando

constantemente” (BROWNE, 2011). Um ano depois, Browne morreu. Dos aproximadamente

dez rolos utilizados pelo fotógrafo, pouco mais ou pouco menos de dez fotos saíram na mídia

e ficaram conhecidas. Porém, de todas elas, a única que ganhou status de ícone (e, de fato, se

houvesse alguma outra, esta não seria um foto-ícone) foi The Burning Monk.

A seguinte pergunta, então, torna-se inevitável, e até mesmo trivial: por que esta, e não

qualquer outra imagem feita por Browne? O fotógrafo e o local eram os mesmos, e, portanto,

todas as condições de produção, também. Muitas vezes, o ângulo das fotografias é exatamente

o mesmo, como em uma imagem que mostra um monge mais jovem despejando gasolina em

Quảng Ðức (figura 11), naquela em que pode-se vê-lo já com o corpo morto caído no chão,

envolto em chamas (figura 12), e em uma outra, muito semelhante ao foto-ícone, que foi

tirada alguns instantes depois, pelo que pode-se deduzir pelas condições físicas de Quảng Ðức

(figura 13). Esta última, especialmente, corrobora a pergunta – o que, afinal, as diferencia?

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Figura 11 - Monge despeja gasolina em Thích Quảng Ðức (Malcolm Browne, 1963)

Figura 12 - Thích Quảng Ðức morto (Malcolm Browne, 1963)

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Figura 13 - Thích Quảng Ðức em chamas (Malcolm Browne, 1963)

Partindo do argumento de que os aspectos técnicos não são responsáveis pela

iconização da fotografia, um elemento, em especial, a torna mais eloquente – para utilizar o

termo de Robert Hariman e John Louis Lucaites – que as outras: esta é a única imagem em

que, após o fogo ter começado a agir sobre o corpo do monge, pode-se identificar, muito

nitidamente, as feições de seu rosto.

Nesse sentido, ao trabalhar com o conceito de máscara, Hans Belting afirma que “a

máscara é uma pars pro toto [parte pelo todo] da transformação do nosso próprio corpo em

imagem”. (2014, p. 49). Dessa forma, a máscara é metonímia da transmutação que ocorre com

o corpo quando se torna imagem.

A proposta, então, é enxergar o rosto vivo de Quảng Ðức como uma máscara, uma vez

que, na fotografia, ele cumpre precisamente a função social deste objeto. De acordo com

Belting,

A relação de reciprocidade que a máscara estabelece com o rosto não se pode reduzir à mera articulação entre ocultação (rosto) e revelação (novo rosto ou rosto mascarado). Analisando a questão do ponto de vista da intenção social, o rosto

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verdadeiro não é aquele que a máscara esconde, mas o que só a máscara gera. (2014, p. 51)

Dessa forma, ao performar a imagem do monge que queima, Quảng Ðức é o próprio

meio e, também, a imagem. Quem está ali já não é mais o homem que nasceu com o nome de

Lâm Văn Tức, em 1897, mas um duplo seu, que “na sua reconstrução social adquire uma

dupla existência, como meio e como imagem.”. (BELTING, 2014, p. 49). Já na década de

1920, alguns autores e críticos apontaram o caráter espectral da fotografia; no ensaio

Photography, Siegfried Kracauer afirma que “não é a pessoa que aparece na fotografia, mas a

soma do que pode ser deduzido dele ou dela. Aniquila a pessoa retratando-a e pessoa e retrato

convergem, a pessoa deixa de existir” (1993, p. 431).

Portanto, o rosto ainda vivo do monge passa, então, da ordem natural para a ordem

simbólica. E o fato de estar destacado do resto do corpo – ao resistir estranhamente ao fogo –

o leva, ainda mais, para o domínio da máscara.

Ao citar o trabalho de Thomas Macho sobre máscaras, Belting lembra o caso dos

“crânios de Jericó”: “Se nos crânios genuínos, que, na decomposição, perderam seu rosto, este

se reconstituir, com argila e pintura, surge então assim a disposição de um rosto que se torna

transmissível e manipulável como signo social.” (2014, p. 51). Quảng Ðức perderá,

inevitavelmente, seu rosto. Mas a fotografia antecipou-se em reconstituí-lo antes mesmo de

sua morte. À sua forma, o próprio ato fotográfico – uma guilhotina – como propõe Mauricio

Lissovsky, transfere vida ao objeto fotografado: “o átimo de segundo em que a cabeça se

desmembra do corpo, quando a vida finalmente se consuma, marca em cada rosto o seu

aspecto.” (LISSOVSKY, 2008, p. 64).

Michel Foucault termina o livro As Palavras e as Coisas afirmado que o homem é

uma invenção recente, e que, possivelmente, logo se desvanecerá, “como na orla do mar, um

rosto de areia” (2000, p. 536). Ou de cinzas. O que Foucault previa já encontrava ecos na

antropologia da década anterior, como François Hartog nos lembra ao comentar a obra de

Claude Lévi-Strauss: “o mundo iniciou sem o homem e terminará sem o homem” (2003, p.

26). Desde então, a antropologia tem traçado seu caminho precisamente nesta direção. Quảng

Ðức desaparecerá – assim como o “homem” demasiadamente antropocêntrico de Foucault

vem cumprindo sua profecia –3, mas seu rosto, cindido de seu corpo, será sempre um vivente,

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humanista ou não, flutuando pelo mundo, com a face distinguível entre as chamas de infinitos

fogos.

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el humo del aceite borra las imágenes. – Julio Cortázar

2.2.3. Morte e aliança: da incineração do Tio Sam

Reconstituído em fotografia, o rosto de Quảng Ðức pode corporalizar mais do que seu

próprio referente. A respeito da corporalização, Belting afirma que: “as imagens haviam sido

recipientes da corporalização, ao substituírem os corpos perdidos dos mortos.” (2014, p. 181).

O autor refere-se à relação entre imagem e morte, presente naquilo que chama de “primeiras

culturas”. Mas como este processo pode aparecer, com outras propriedades, em tempos mais

recentes?

Com o envio das fotografias para os Estados Unidos, e a intensa circulação de

informação característica do pós-guerra, seria possível que tenha surgido uma espécie de

aliança entre sujeitos dos dois continentes? Parte da população dos EUA desaprovava as

ações do governo no Vietnã. Estas pessoas, decepcionadas e frustradas com seu próprio país,

com sua própria referência de memória e pertencimento, enxergavam, em sua face, sangue e

morte. A terra da liberdade e da democracia havia cometido suicídio.

Sobre a ideia de aliança, Donna Haraway sugere, no quase humorístico e inflamado

Anthropocene, Capitalocene, Plantationocene, Chthulucene: Making Kin:

Uma maneira de viver e morrer bem como criaturas mortais [...] é unir forças para reconstituir refúgios, possibilitar uma recuperação e uma recomposição biológica-cultural-político-tecnológica parcial e robusta, que deve incluir o luto de perdas irreversíveis. (2015, p. 160)

O texto, escrito em 2015, tem em mente uma configuração política e social bastante

diferente da que podia-se encontrar na década de 1960; ainda assim, a autora parece pontuar

perfeitamente o processo que pode estar relacionado à iconicidade e à performance de The

Burning Monk.

A morte irreversível dos Estados Unidos transfere-se para a imagem de morte – ainda

não consumada – do monge. A imagem de Quảng Ðức é a máscara funerária da nação norte-

americana. O país, em seu leito de morte, já não mais aparenta traços humanos, humanitários

– e pode-se questionar, evidentemente, se algum dia chegou a apresentá-los: “Desde suas

origens, as democracias modernas mostraram tolerância perante uma certa violência política,

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inclusive ilegal” (MBEMBE, 2017, p. 33). A fisionomia perdida está perdurada no rosto fixo

de um homem de sessenta e sete anos. Desta forma, através de analogias entre corpo e meio e

de um processo antropológico intercontinental, duas mortes são enlutadas em The Burning

Monk.

A partir desta proposta, uma questão se coloca: Haraway sugere que “fazer alianças é

fazer pessoas” (2015, p. 161); mas teriam os espectadores norte-americanos – e ocidentais, de

uma forma geral – realmente produzido afeto pelas questões budistas do então Vietnã do Sul?

Ou estariam eles simplesmente chorando suas próprias mortes, frustrações e depressões,

instauradas a partir de um choque visual? Quais são, de fato, os páthos ali envolvidos? No

livro Políticas da Inimizade (2017), Achille Mbembe questiona:

Como reconhecer, através do rosto do inimigo que tentamos abater, mas cujas feridas podemos também sarar, um outro rosto de homem na sua plena humanidade e, portanto, semelhante ao nosso? (2017, p. 12)

Com esta discussão em vista, é possível trilhar a atuação dessa imagem enquanto

performance social. Ao trazer violentamente a morte como política, a fotografia encarna o

problema fundamental encravado no coração da democracia, um “paradoxo no seio desta

nação que, desde que nasceu, proclama a igualdade dos homens” (MBEMBE, 2017, p. 33):

uma política de morte. Assim, a imagem expõe toda a fragilidade de uma estrutura ideológica

que tenta parecer coerente. Segundo Mbembe,

A guerra […] não constitui apenas um meio para obter a soberania, mas também um modo de exercer o direito de matar. Se imaginarmos a política como uma forma de guerra, devemos interrogar-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte, ao corpo humano (em particular ao corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupam dentro da ordem do poder? (2017, p. 108).

Em relação ao corpo de Quảng Ðức, uma figuração política pode ser destacada: o

aspecto cindido de seu rosto remete, visualmente, aos poderes transcendentais de dois filhos

do Rei de Dharma, descritos no Lotus Sutra: “Eles andaram, levantaram-se, sentaram-se e

dormiram no ar, fazendo a água fluir da parte superior de seus corpos e soprando fogo da

parte inferior de seus corpos” (2007, p. 308).

As duas partes do monge dançam nos olhos dos que apreendem a matéria visual

estática em que ele se transformou. Elas parecem existir em tempos diferentes, em

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harmoniosa anacronia, e evidenciam o hiato existente entre a contingência do incêndio e o

porvir. Neste vácuo temporal, uma pequena brasa, uma centelha, um relampejo de energia, é

lançada involuntária e despretensiosamente do ar em combustão que envolve o monge para

fora do quadro: a oportunidade, a possibilidade messiânica de Benjamin.

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Sabemos que as sombras somos nós mesmos e nossa cultura de entulhos e abjeção.

– Márcio Seligmann-Silva

2.2.4. A trajetória de uma faísca: o Austin azul que interrompeu o trânsito

Neste momento, faz-se necessário voltar a uma pergunta feita no primeiro capítulo:

por que grande parte dos foto-ícones foram produzidos no contexto da Guerra Fria? Embora

esta pergunta pudesse estar em qualquer um dos outros capítulos, a escolha em mantê-la aqui

se deve a três fatores: The Burning Monk é o foto-ícone mais conhecido dentre os quatro

trabalhados nesta pesquisa, e talvez o único que se encontre dentro da definição mais ortodoxa

de foto-ícone (como a de Hariman e Lucaites), de modo que se a tentativa é de se encontrar

um padrão específico de emergência destas imagens, é justo que se faça isto a partir daquela

que não poderia ativar discussões classificatórias; além disso, dentre as quatro, ela é, também,

a que gera maior impulso moral – a ética está implicada, necessariamente, na imagem – de

modo que toda a discussão que se segue, encontra, ali, um campo vasto; por último, os temas

levantados no percurso desta hipótese levarão invariavelmente às questões que motivam a

análise da trajetória de iconicidade de The Burning Monk.

Hartog propõe uma leitura do pós-guerra em que o presente ocupa local de destaque.

No artigo Tempo, História e a Escrita da História: A Ordem do Tempo, o autor descreve

brevemente algumas formas de compreensão do tempo e da história em diferentes épocas, ou

regimes, como prefere denominar. O historiador constata, então, que o fim da guerra, o fim

das utopias, e a consequente crise da modernidade significou aquilo que chama de

presentismo: “o futuro ocupava cada vez menos lugar comparado ao presente, que cada vez

mais ganhava o primeiro plano: o presente e nada além do presente.” (HARTOG, 2003, p.

25). Sobre as décadas de 1960 e 1970, nas quais os quatro foto-ícones analisados aqui se

situam, ele afirma:

O slogan “Esqueça-se o passado” constitui a contribuição dos anos sessenta para este retiro no presente. Houve então uma estranha combinação entre utopia ou aspirações revolucionárias (assim de orientação para o futuro) com um horizonte estritamente limitado ao presente. “Tout, tout de suite” (Tudo, tudo agora) diziam os muros de Paris em maio de 1968. E logo depois, apareceu a formulação: “Sem Futuro”. Vieram desilusões, o fim das esperanças revolucionárias, a crise econômica de 1974, e com elas várias respostas, mais ou menos desesperadas ou por vezes cínicas: o presente, e nada além. (HARTOG, 2003, p. 27)

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Outros historiadores, como Peter Burke, por exemplo, também identificam uma virada

para o presente, um “abandono do passado” (BURKE, 1998), aproximadamente na mesma

época. Ao comentar a morte de Émile Durkheim e Max Weber, em 1917 e 1920,

respectivamente, Burke conclui: “Por várias razões, a próxima geração de teóricos sociais se

afastou do passado.” (1998, p. 11). O autor comenta, ainda, que nos séculos XVIII e XIX,

“grande parte da história era especulativa ou ‘conjetural’.” (BURKE, 1998, p. 13); e termina

afirmando que “a alternativa, inspirada na física e na biologia, era explicar esses costumes e

instituições por sua função social no presente.” (BURKE, 1998, p. 13).

Mas em que sentido esse presentismo, nomeado assim por Hartog e apontado,

também, por outros historiadores, estaria relacionado ao “fenômeno” dos foto-ícones? Seria a

falta de ambiguidade destas imagens, seu aspecto direto e – ao menos inicialmente –

superficial produto desta tentativa desesperada de amarrar o presente? De retê-lo visualmente

(não para o futuro, mas somente pelo ato de reter)? Ou seriam estas imagens uma espécie de

melancolia pela modernidade em crise, uma última aposta – a derradeira – em uma narrativa,

de certa forma, “moderna”, teleológica, moral, não desconstruída ou fragmentada, e mais

universalista, antes da entrada definitiva da década da identidade, que seria a de 1980

(HARTOG, 2003)? É pertinente comentar que se a segunda explicação for verdadeira, apesar

da tentativa de recuperar a modernidade, estes foto-ícones funcionam, antes, como sintomas

de sua crise.

O que quer The Burning Monk segurar? Que aspectos daquele presente deveriam estar

enquadrados – nos três sentidos: o literal; o que significa foco, seleção; e aquele que se refere

a uma direção específica, uma formatação? Ou o que diz a narrativa que a foto carrega sobre

sua época, tanto no sentido positivo, como no negativo – o que ela não é, ou se recusa a ser?

Como foi indicado no primeiro capítulo, sugerimos que The Burning Monk tenha se

tornado um foto-ícone através do intenso impacto (ou choque) que causa. Mas o que significa

isso, de fato? Que configurações mentais e sociais estão implicadas, e que processos são

ativados nesta iconização?

Ao comentar a ideia de choque nos textos de Walter Benjamin, Eduardo Cadava

pontua a evidência da teoria de Sigmund Freud no argumento do autor alemão. Cadava

explica resumidamente a experiência de choque na psicanálise e sua relação com o

pensamento de Benjamin:

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Confrontados por um acontecimento que nos paralisa pela magnitude de sua demanda, um acontecimento que reconhecemos como um perigo, nos afastamos do perigo através do processo de repressão: o perigo é de algum modo inibido e sua causa precipitante – o acontecimento, com suas percepções e idéias – é esquecido. Não totalmente apagado, contudo, o perigo do evento renova sua demanda e abre outro caminho para si, emergindo, sintomaticamente, como uma imagem do que aconteceu – como um retorno do que deveria ter partido – sem nossa aquiescência ou compreensão. [...] Como em Benjamin, o que caracteriza a experiência em geral – a experiência entendida em seu sentido estrito como a travessia de um perigo, a passagem por um perigo – é que ela não retém nenhum traço: a experiência experimenta a vertigem da memória, como uma experiência em que o que é experimentado não é experimentado. (CADAVA, 1997, p. 103)

Cadava termina o capítulo Shocks com uma possível pista para a resolução destas

perguntas – uma frase que apresenta adequação literal às questões propostas a partir da

fotografia do monge:

Durante o lampejo da câmera da mente – um momento em que, além de nós mesmos, não somos mais nós mesmos – experimentamos o choque de uma experiência que nos diz que a memória, toda lembrança das coisas passadas, registra, se é que registra alguma coisa, sua própria incapacidade, nossa própria imolação. (1997, p. 106)

Ainda sobre este curioso detalhe textual, é válido destacar a última frase de seu livro

Words of Light (1997): “Palavras de luz, correspondem à cremação de sua obra, uma

cremação em que a forma da obra – seu caráter suicida – atinge sua mais brilhante

iluminação, imolada na chama de sua própria crítica.” (CADAVA, 1997, p. 130). Ele refere-se

a obra e morte de Benjamin, retomando uma imagem criada pelo autor no ensaio As

Afinidades Eletivas de Goethe:

Se, por força de um símile, quiser-se contemplar a obra em expansão como uma fogueira em chamas vívidas, pode-se dizer então que o comentador se encontra diante dela como o químico, e o crítico semelhantemente ao alquimista. Onde para aquele apenas madeira e cinzas restam como objetos de sua análise, para este tão somente a própria chama preserva um enigma: o enigma daquilo que está vivo. Assim, o crítico levanta indagações quanto à verdade cuja chama viva continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a leve cinza do vivenciado. (BENJAMIN, 2009, p. 3)

O trecho elaborado por Cadava merece atenção pois nele aparece uma associação do

suicídio (também, no caso de Benjamin, um ato decorrente de certas configurações políticas –

as invasões e ocupações nazistas na Europa) com o fogo: ali, o suicídio é contemplado pelas

chamas. Chamas produzidas por sua própria crítica, por si mesmo, que só poderiam gerar

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palavras de luz. Curiosamente, a imolação do monge gerou uma imagem que nada mais é,

tecnicamente, do que luz: a fotografia.

Sobre suicídio e interrupção, Mbembe sugere, em uma abordagem menos estética:

o suicídio interrompe brutalmente qualquer dinâmica de submissão e qualquer eventualidade de reconhecimento. Acabar voluntariamente com a sua própria existência, matando-se, não é forçosamente desaparecer de si. É pôr voluntariamente fim ao risco de ser tocado por outrem e pelo mundo. É proceder ao desinvestimento que obriga o inimigo a fazer face ao seu próprio vazio. (2017, p. 83).

A ideia sugere uma biopolítica – nitidamente assumida por Quảng Ðức – e é

evidentemente filiada ao conceito de biopoder (FOUCAULT). Mas esta interrupção das

dinâmicas de poder encontra um correspondente no campo da teoria da história: uma

concepção do tempo em que o próprio conceito de história se dá a partir do encontro com algo

que ativa o passado, presente e futuro simultaneamente, a partir da ideia de rememoração

(Eingedenken) (BENJAMIN) – e nesse sentido, as fotografias de uma forma geral, e os os

foto-ícones em particular, mostram-se extremamente eficazes.

A cada apreensão do monge incendiado, algo ocorre no indivíduo que apreende, e

também, virtualmente, no mundo; pois “a história do indivíduo recapitula a do

cosmos.” (BUCK-MORSS, 1989, p. 243). Ou seja, a ontogênese segue a filogênese.

Susan Buck-Morss apresenta um diagrama bastante elucidativo a respeito das relações

entre tempo messiânico, história empírica, e ação revolucionária no pensamento de Benjamin

– e, portanto, a respeito da oportunidade que buscamos na imagem em questão (Figura 14):

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Figura 14 - Tempo messiânico, história empírica e ação revolucionária 17

Em sentido menos restrito (pois Benjamin estava nitidamente filiado à uma linhagem

marxista e preocupado com a expansão do fascismo), pode-se refletir sobre as “revoluções”

que a foto do monge gera a cada apreensão. Buck-Morss comenta, ainda:

Uma vez que a premissa messiânica não é um mito, mas historicamente “atual”, no sentido de que é realizável, a partir disso, pode-se dizer que o tempo existe em dois registros: como história secular, a sequência de eventos (catastróficos) que marcam o tempo humano sem preenchê-lo; e como um revolucionário “tempo de agora”, cada momento do qual é irradiada a verdadeira antecipação da redenção. (1989, p. 242)

Estaríamos todos procurando, a cada segundo, a cada possível partição de tempo – o

que nos leva logicamente, matematicamente, ao infinito – a redenção? Do que, exatamente?

Assunto, talvez, para a psicologia, para a filosofia, para arte, ou até mesmo para algo que não

é ciência nem se designa como “campo de conhecimento”, o que nos cabe, apenas, é a

seguinte proposição: nos intercâmbios corporais e analógicos entre “eu” e o “outro”, e tempo-

Tabela extraída do livro The dialectics of seeing: Walter Benjamin and the arcades project (BUCK-MORSS, 17

1989).

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espaciais entre dois instantes, duas durações , que ocorrem no ato de ver – ou seja, o próprio 18

impacto –, as chamas que imolam o monge, permitidas por mim, me consomem. Somos Ngô

Đình Diệm e Thích Quảng Ðức, simultaneamente.

Esta concepção do tempo, que “partindo do presente, traz o passado à atualidade do

presente” (HARTOG, 2003, p. 23), é pertinente para se tentar entender o que se passa nestas

imagens que remetem imediatamente a um acontecimento, os nódulos histórico-

antropológicos que elas mobilizam, e seu estabelecimento como emblemas da própria história.

Aqui, o que importa, como ressalta Lissovsky, não é a capacidade fotográfica de “fundar uma

narrativa, mas apenas esta dobra do futuro sobre o passado – dobra que torna possível referir-

se a um futuro implicado no passado como virtualidade deste.” (2008, p. 67).

Como lembra Hartog, “a imagem que melhor expressa esta operação é o raio de um

relâmpago: uma iluminação recíproca do passado e do presente, de um momento do presente

e um do passado, apenas por um segundo” (2003, p. 23). A faísca que saltou para fora da

imagem de Malcolm Browne nos ofusca por um instante nesta espacialização do tempo

(CADAVA, 1997, p. 63) – que é a imagem fotográfica –, bloqueando o próprio fluxo mental,

interrompido pelo movimento interrompido pela câmera (BERGSON, 1999) , de uma rua 19

interrompida por um carro e 350 pessoas, para que uma vida fosse publicamente interrompida.

Assim, “é o tempo que faz imagens de si mesmo” (KRACAUER, 1993, p. 424): nesse

emaranhado de interrupções, o tempo, ressuscitado por uma forma visual, vira história.

Visualmente, as duas temporalidades sobrepostas da fotografia encontram atualização

na presença do carro naquela cena – um Austin Westminster. Aquilo que não podia ser

apreendido por quem não esteve presente – a sobreposição de odores: o incenso e o cheiro da

carne incinerada em sua perturbadora contemporaneidade – cristaliza-se em matéria visual.

Através de um movimento incontornável na imagem que é, ao mesmo tempo, irônico

e enfático, o monge – encarnação máxima da tradição – é deslocado e imolado por um

moderno automóvel americano e o líquido de seu interior, respectivamente. O fluxo de vida

do carro, seu sangue, produz a morte do ser humano. Mas além desta relação nitidamente

Lissovksy defende, no livro A Máquina de Esperar (2008), que o instante pode ser remetido à duração, 18

contanto que se pense “o instante imanentemente, e não como uma exterioridade que se abate sobre o contínuo” (LISSOVSKY, 2008, p. 39). Isso não constituiria, conforme certas teorias apontam, uma contradição: “Fazer passar o camelo da duração pelo fundo da agulha do instante – passar o imóvel a partir do movimento – é um problema sutil, não um paradoxo.” (LISSOVSKY, 2008, p. 70)

Esta é a concepção de imagem fixa de Henri Bergson, e um bom exemplo para elucidá-la são as 19

cronofotografias de Étienne-Jules Marey e Eadweard Muybridge.

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opressora – aparente na própria imagem, onde o automóvel assume uma figura monstruosa,

como um predador na iminência de abocanhar os monges que se encontram em segundo

plano, ao fundo –, a cumplicidade do Austin com o ato é inegável. Além de funcionar como

transporte e bloqueio físico – os monges também o são, como é possível identificar em uma

das fotografias de Browne apresentadas aqui (figura 10), em que dois monges fazem gestos

com as mãos com o objetivo de afastar o público do ato –, o veículo também cede parte de seu

corpo para o protesto.

Expondo suas entranhas, ele é deixado em quadro, assim como o recipiente que

continha a gasolina. Ambos parecem ter sido esquecidos ali pelos manifestantes: formas

pontudas, objetos com indícios de uso, em estados não conclusivos – o capô aberto; o

recipiente inicialmente inerte mas firme (na fotografia The Burning Monk), em seguida,

tombado (figura 12), e finalmente, envolto nas chamas que o corpo do monge, ao cair,

espalhou (figura 11). Esta proposta é suspensa, contudo – colocando mais uma camada de

complexidade na imagem – através da análise da porta do automóvel, que na primeira foto da

sequência encontra-se aberta (figura 10), e nas outras, fechada. Por que o Austin exibe suas

vísceras, mas não seu estofado?

Na fotografia que mostra o corpo de Quảng Ðức caído (figura 11), é possível discernir

uma mão, já queimada, que se estende (em um gesto menos aleatório do que se pode esperar

da cena), em direção ao recipiente de combustível. O fogo, matéria dinâmica e democrática,

não responde à organicidade ou à falta dela: transmuta todos os seres que atinge.

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3

PAREDES E SUBVERSÕES: QUANDO O CIMENTO VIRA TINTA,

E O ARAME, CARNE

Sem a ilusão monumental, aos olhos dos vivos, a história não seria mais do que uma abstração.

– Marc Augé

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Estranho, misterioso consolo esse da escrita, às vezes perigosa, às vezes libertadora: o salto para fora das

fileiras dos assassinos. – Franz Kafka

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. – João do Rio

3 .1 . ESTUDANTES ESCREVEM, GENERAIS AGRIDEM: O CORTE

CALIGRÁFICO DO VIDRO DOS CEM MIL

3.1.1. Crise e violação: intervenções espaciais

Uma vez disse Glauber Rocha que “sem linguagem nova não há realidade nova”. A

célebre frase do cineasta referia-se explicitamente ao prolífico Cinema Novo, que marcou

intensa presença nos discursos democráticos que correram pela sociedade brasileira durante a

década de 1960. Glauber declarou o que, muitos anos depois, Bruno Latour proporia em uma

das últimas frases de sua mais importante obra: “Há momentos em que novas palavras são

necessárias para convocar uma nova configuração.” (1993, p. 145). Nesta mesma década,

exatos seis meses, vinte e quatro semanas e dois dias antes da promulgação do Ato

Institucional nº 5, uma demanda urgente em forma de linguagem é capturada pela lente de um

fotógrafo do Jornal do Brasil. Kaoru Higuchi, que nunca teve seu nome tão divulgado quanto

a imagem que produziu, foi responsável pela criação de um dos poucos foto-ícones do período

da ditadura civil-militar no Brasil (figura 3).

A partir de uma rápida busca por estes foto-ícones (ou, ao menos, por imagens

conhecidas, quando não icônicas), é possível identificar um padrão: quase todos apresentam

atores sociais muito semelhantes – o estudante, o artista, o jovem revolucionário; em contraste

com os militares, que aparecem sempre em atitudes violentas. Eles aparecem das mais

diversas formas: em protestos públicos, sofrendo repressão policial, sob julgamentos em

tribunais, ou, ainda, mortos , dentre outras situações típicas do período. Todos, afinal, 20

representam um importante sujeito social na disputa narrativa a respeito dos processos

Dado o pequeno número de fotografias icônicas do período, é necessário comentar que, de fato, a única 20

imagem consideravelmente conhecida, feita em tribunais da ditadura, é a do julgamento de Dilma Roussef – fotografia que, aliás, veio a ficar conhecida somente em 2012 – que na época era estudante de economia na Universidade Federal de Minas Gerais; e que as duas únicas fotos populares de vítimas fatais do regime se resumem àquela do jornalista Vladimir Herzog enforcado em sua cela, e uma imagem em que alguns jovens velam o corpo do estudante secundarista Edson Luís, assassinado no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro.

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históricos daqueles anos: ainda que seja possível identificar pontos de convergência dentre as

reivindicações e urgências das classes sociais envolvidas no processo de democratização do

país – principalmente em 1968, quando os efeitos dos eventos de Maio, na França, fizeram-se

presentes –, fica evidente certo protagonismo intelectual nas narrativas contra o regime.

Nesse sentido, este imaginário foi construído a partir de alguns fatores. Nos anos

anteriores ao golpe militar em 1964, alguns movimentos populares vinham ganhando força

política no Brasil. Em 1963, segundo o historiador Jorge Ferreira, “as greves duplicaram de

154 em 1962, para 302 em 1963” e as esquerdas partiram “para a estratégia de pressionar o

governo e de mobilizar os trabalhadores na rua” (FERREIRA, 2004a, p. 42). Isso, é evidente,

foi precisamente a configuração sócio-política que levou ao golpe. Como explicita Angélica

Lovatto:

Os anos 1950 e início dos 1960 constituíram-se num profícuo momento da cultura brasileira. […] Foram, portanto, anos de intensa efervescência política. Não por acaso, foi um período da história brasileira interrompido abruptamente, por força do golpe militar de 1964. (2011, p. 196)

Pode-se destacar, naquele momento, por exemplo, movimentos dentro do exército e da

marinha, e o movimento camponês, que mobilizava-se através das Ligas Camponesas. Em

relação a este último, o historiador Antônio Torres Montenegro afirma que

As Ligas Camponesas, por intermédio das redes criadas com a participação ativa do deputado socialista Francisco Julião e de aliados diversos como Antonio Callado, transformaram a luta dos trabalhadores rurais em tema nacional. Com a vitória da Revolução em Cuba, a partir de 1959, Julião e alguns setores em que este se apoiava começaram a construir uma forte identidade com aquele país. Nessa construção, o exemplo da China era, também, incorporado. O caminho revolucionário trilhado por esses dois países, predominantemente agrários, transformou-se em exemplo de futuro para o Brasil no discurso de Julião e de alguns segmentos da esquerda. Para os setores defensores do status quo, tais discursos, ao propugnarem a revolução, passaram a justificar a ruptura da ordem constitucional (2004, p. 404).

Nos primeiros anos da década de 1960, o movimento camponês aproximava-se da

intelectualidade brasileira e dos estudantes. Em 1961, a União Nacional dos Estudantes

(UNE), emitiu um documento em que

os líderes estudantis diziam que “as batalhas que ainda temos a travar pela escola pública, pela reforma universitária, pela consolidação da luta antiimperialista e anticapitalista do povo brasileiro, por uma ‘união operário-estudantil-camponesa’ cada vez mais efetiva, denunciam a opção irrecusável da luta universitária atual: ou o compromisso total com as classes exploradas ou a aliança com uma ordem social

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caduca e alienada. Não há meio termo”. Os estudantes da UNE radicalizavam a esquerda. As expressões “revolução” e “união operário-estudantil-camponesa” eram freqüentes em seus textos. (FERREIRA, 2004b, p. 186)

As movimentações dentro do exército também mostravam o diálogo com as

esquerdas, principalmente a partir dos sargentos:

No início dos anos 60, o sentimento nacionalista e reformista não circulava apenas entre setores da oficialidade das Forças Armadas, mas também entre os sargentos. Sobretudo com a crise política de agosto de 1961, eles entraram no cenário político como força atuante no campo da esquerda. O processo de politização, após a Campanha da Legalidade, foi crescente. Apresentando-se como o “povo em armas”, eles, afinados com as demandas de democratização que se abriam para os “de baixo”, aprofundaram suas reivindicações, como eleger e serem eleitos para cargos legislativos. Em seus clubes e associações, passaram a indicar candidatos ao Congresso Nacional – algo que na Constituição, como estava redigida, permitia interpretações dúbias, tanto a favor quanto contra a elegibilidade deles. Com o slogan “sargento também é povo”, diversos deles concorreram a cargos eletivos em vários estados. (FERREIRA, 2004b, p. 187)

Ferreira ainda afirma, nesse sentido, que “a aproximação dos sargentos com os

movimentos estudantil e sindical era, em 1963, uma realidade. […] Os discursos ressaltaram o

apoio às reformas de base e o repúdio ao imperialismo e ao FMI.” (2004b, p. 195); concluindo

o seguinte:

A aliança que se estabelecia entre o CGT, as Ligas Camponesas, a UNE, organizações de esquerda revolucionária e o movimento dos sargentos abria novas perspectivas para as lutas reformistas, nacionalistas e populares. Para militantes sindicais, estudantis e de esquerda, surgia a oportunidade de terem o que ainda faltava para o embate com os conservadores: militares em armas. (FERREIRA, 2004b, p. 187)

Uma rebelião feita pelos sargentos em Brasília, em setembro de 1963 assustou a

direita:

Se um grupo de sargentos e fuzileiros navais tomou a capital da República e prendeu os chefes dos poderes Legislativo e Judiciário, o que não poderia fazer a ala janguista do Exército, com seus generais e oficiais de média patente com comando de tropa? (FERREIRA, 2013, p. 124)

Assim, tanto as Ligas Camponesas, consideradas uma ameaça, quanto as organizações

dos sargentos – assim como outros movimentos das esquerdas – foram desarticuladas com o

golpe. A UNE, contudo, teve atuação significante até 1968. O Movimento Estudantil,

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portanto, ganha força e protagonismo nos primeiros anos da ditadura, em meio à

desarticulação de outros grupos da esquerda brasileira.

Desta forma, o imaginário composto pelas fotografias icônicas da ditadura, centrado

nos estudantes, encena este processo. Por outro lado, ele denuncia, também, outra dinâmica

subjetiva, que inscreve-se ao longo dos anos, a partir do final de 1968. A desarticulação do

Movimento Estudantil e a extinção da UNE, com a promulgação do AI-5, levou parte dos

estudantes a entrarem para a guerrilha. Como explica Angélica Müller,

A configuração do movimento modificou-se muito, com relação ao período anterior, devido às novas regras impostas pelo regime ditatorial. As lutas de massa, que invadiram as ruas em 1968, transformaram-se em reivindicações pontuais, dentro das universidades. (2010, p. 29)

Assim, a imposição institucional retirou dos estudantes sua principal e mais natural

arma. O protagonismo estudantil e intelectual nas representações da resistência performam,

portanto, uma melancolia em relação ao ME, e em relação à possibilidade de articulação

anterior a 1969. Esses sujeitos sociais, então, tornam-se o símbolo da resistência contra a

ditadura – de uma resistência idealizada (se não, um pouco romantizada), principalmente após

o fim do regime. O estabelecimento desta posição fez parte tanto das disputas narrativas que

circularam no período, como das tentativas póstumas de reconstrução dele.

Os foto-ícones da época, portanto, em sua função condensadora, aglutinam e reduzem

os processos históricos, e a fotografia em que esta análise é centrada o faz, especialmente,

com o ano de 1968. Ela inscreve-se, então, em um cenário que reúne este recorte histórico

específico e outros dois aspectos sócio-antropológicos que são facilmente perceptíveis como

tropos visuais: a escrita como atividade natural da razão, e a emergência de registros escritos

em locais públicos durante momentos de crise.

Diversos artigos sobre este segundo tema foram produzidos nos últimos anos. A crise

econômica na Grécia, a Revolução Egípcia de 2011 – que fez parte da Primavera Árabe – e a

opressão de palestinos na Cisjordânia por tropas israelenses, por exemplo, são temas de

recentes estudos acadêmicos, como os artigos Reading Revolution on the Walls: Cairo Graffiti

as an Emerging Public Sphere, de Ieva Zakareviciute; ‘Welcome to the civilization of fear’: on

political graffiti heterotopias in Greece in times of crisis, escrito por Yiannis Zaimakis; e The

Writing on the Walls: The Graffiti of the Intifada, de Julie Peteet. Inscrições na paisagem

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urbana de Atenas, principalmente, têm sido objetos de estudo de diversas pesquisas sobre

intervenções urbanas e protestos em espaços públicos.

Zakareviciute afirma que “ao pesquisar grafites durante os períodos de agitação e

turbulência, os antropólogos tendem a interpretá-lo através de uma teoria das táticas de

resistência para intervir nas relações de dominação.” (2014, p. 12). A ação de escrever em

paredes públicas, portanto, é entendida como um processo contra-hegemônico. Nesse sentido,

Peteet indica a dimensão intervencionista do grafite no contexto palestino (figura 15):

Para os palestinos, o grafite era uma intervenção em uma relação de poder. Como artefatos culturais, o grafite era um componente crítico de uma tentativa complexa e difusa de derrubar a hierarquia; eram vozes palestinas intervencionistas, e arquivos. Não eram vozes monolíticas, com certeza, mas polissêmicas, que agiam para registrar a história e para formar e transformar relações. Enquanto eles representavam, eles também intervinham. (1996, p. 140)

Figura 15 - Muros com diversas camadas de grafite. As letras “fth”, de Fatah, atravessam o mapa da Palestina 21

Imagem extraída do artigo Writing on the Walls: The Graffiti of the Intifada (PETEET, 1996).21

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Zaimakis, por outro lado, concentra-se, principalmente, em inscrever o grafite feito em

Atenas (figura 16) na esfera da crise, que seria entendida, nesse caso, como:

espaços sociais nos quais os escritos de grafite estão inseridos: conflitos políticos, condições de vida precárias, políticas autoritárias, manifestações de massa, coletividades anti-sistêmicas, acampamentos políticos e comunidades de arte. (2015, p. 375)

Figura 16 - Texto de inspiração revolucionária de esquerda ao lado do símbolo do partido de extrema direita grego Aurora Dourada 22

O autor também aponta para a dimensão material da ação: “escritores de grafite

negociam as paredes como uma geografia política alternativa” (ZAIMAKIS, 2015, p. 393),

portanto, “a política espacial permite que vozes políticas distintas transformem as dimensões

materiais da vida urbana em expressões visuais significativas” (ZAIMAKIS, 2015, p. 393).

Assim, ele defende uma abordagem em que

Imagem extraída do artigo ‘Welcome to the civilization of fear’: on political graffiti heterotopias in Greece in 22

times of crisis (ZAIMAKIS, 2015).

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os locais heterotrópicos do grafite político podem ser vistos como um espelho multidimensional de uma sociedade em crise [...] Mostram o desejo dos escritores de usar suas capacidades criativas para superar as condições materiais desfavoráveis de sua existência, construindo seus próprios locais contra-hegemônicos de representações alternativas nas paisagens urbanas. (ZAIMAKIS, 2015, p. 394)

Além disso, a presença de muros como suportes expressivos, definitivamente, povoa

nossos imaginários. Como exemplos, pode-se citar o Muro de Berlim, que teve intervenções

que datavam de diferentes épocas, constituindo “um tipo de imagem capaz de expressar a

presença e a atitude humanas e, ao mesmo tempo, representar uma cidade, uma ideia ou um

evento histórico específico” (IVANOVA, 2013, p. 147); e o Lennon Wall, em Praga, cujas

inscrições contra o governo comunista de Gustáv Husák foram motivo de conflitos entre

estudantes e policiais durante a década de 1980.

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Ao pôr-do-sol, Ti-yo fabricou uma casa de serpentes com a farinha e para lá levou as cobras. Todos

acorreram e jogaram farinha sagrada nelas, porém largaram os irmãos caçulas nos vales, depois retornaram

à kiwa das serpentes do mundo subterrâneo e para lá levaram todos os desejos dos homens.

– Cosmogenia Hopi

3.1.2. “Um animal fabuloso”: abalos sísmicos, o hábito de escrever e a perversão dos

muros

A marcação simbólica em paredes como resposta a turbulências, porém, não é

novidade na história da humanidade. No texto Writing on the walls: geological context and

early American spiritual beliefs, a sismóloga Susan Hough mapeia inscrições em pedras em

diversas regiões da Califórnia, produzidas por populações nativas norte-americanas. Segundo

ela, “a prática foi fortemente associada ao xamanismo” (HOUGH, 2007, p. 107). Com uma

abordagem de cunho tão arqueológico quanto antropológico – e com a preocupação geológica

que motivou a pesquisa – a cientista defende que “muitos desses lugares estão perto de partes

do estado especialmente ativas sismicamente” (HOUGH, 2007, p. 108). A argumentação

encaminha-se norteada pela seguinte pergunta: “é possível que os primeiros habitantes da

Califórnia tenham deixado uma mensagem na parede em resposta aos terremotos históricos da

Califórnia?” (HOUGH, 2007, p. 108).

Dois sítios arqueológicos analisados por Hough são especialmente interessantes como

chaves conceituais para a apreensão da inscrição urbana que compõe a cena registrada por

Higuchi: a região do Coso, que fica entre São Francisco e Los Angeles, próximo à fronteira

com o estado de Nevada; e a remota região de Surprise Tank, no meio do Deserto de Mojave.

Na região do Coso, as pedras encontradas revelam figuras que foram definidas como

“corpos antropomórficos padronizados” (PATTERSON apud HOUGH, 2007, p. 108), e que

foram associadas a figuras xamânicas cuja evocação produziria chuva. O fato, porém, gerou

curiosidade em alguns arqueólogos: “por que uma ‘imensa concentração de arte rupestre

xamânica de chuva’ seria encontrada dentro da Cordilheira de Coso, uma paisagem árida a

oeste do Death Valley, o local mais seco de Great Basin’” (HOUGH, 2007, p. 109)? O

arqueólogo David Whitley sugere uma explicação: a inversão simbólica. Ele afirma que

Os rituais simbólicos operavam no princípio da inversão. [...] o xamanismo viajou especificamente para esta região marcadamente árida para “encontrar o aspecto mais

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verdejante do sobrenatural e, a partir dessa experiência, fazer chover no mundo natural.” (WHITLEY apud HOUGH, 2007, p. 109)

Outro relato muito mais antigo assemelha-se a esse : durante sua experiência no 23

Novo México no final do século XIX, nas terras dos índios Hopi, o jovem Aby Warburg –

cuja obra foi atravessada de forma crucial por esta viagem, que, segundo Carlo Ginzburg,

teria sido uma “repentina decisão”, e um “‘desvio’, aparentemente” em seus estudos que

“influenciou sua interpretação acerca da Antiguidade clássica e do Renascimento” (1990, p.

43) –, intrigado com alguns rituais desta população, escreveu:

Trata-se de determinar os contornos de fenômenos que são impossíveis de captar de outra maneira, por serem inapreensíveis e flutuantes. […] A região é um deserto árido. A chuva só cai em agosto, acompanhada por violentas tempestades. Se ela não vier, todo o árduo trabalho de um ano da agricultura e da horticultura miseráveis dos índios (milho e pessegueiros) terá sido inútil. Se o relâmpago aparecer, a fome se afastará nesse ano. (WARBURG, 2013, p.263)

Em seu livro sobre Warburg, Georges Didi-Huberman recupera Charles Darwin como

um dos interlocutores do historiador da arte alemão – relação, de fato, já estabelecida por

outros autores, como Ginzburg, que filia as fórmulas do páthos ao livro The expression of the

emotions in men and animals (1872). Didi-Huberman chama de necessidade simbólica da

expressão aquilo que Darwin identificou nos gestos humanos. Assim, Darwin se referia à

expressão do pavor, por exemplo:

foi expresso de maneira quase idêntica à que conhecemos até hoje no ser humano, ou seja, através do tremor, dos pelos arrepiados, do suor frio, da palidez, dos olhos desmedidamente abertos, do relaxamento de um grande número de músculos e da tendência que o corpo experimenta a se encolher ou permanecer imóvel. (apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 203).

A partir dos estudos de Warburg, é possível levar, até certo ponto, a lógica darwiniana

para outros locus. Não seria possível pensar em uma necessidade simbólica da expressão a

partir de outros recortes, que não o tão somente biológico? A pergunta foi formulada pelo

autor já em suas anotações durante a viagem aos Estados Unidos:

A utilização de imagens – e aqui a ideia de imagem assume uma significação bastante ampla – para evocar a 23

chuva também encontra-se presente entre os ameríndios sul-americanos, como mostra um relato de Davi Kopenawa, xamã yanomami: “as pessoas também se queixam junto aos xamãs quando o tempo seco dura demais […]. Então, para pôr fim à seca, eles tratam de trazer de volta para a floresta o ser maléfico do tempo úmido, Toorori, que é também o dono da chuva. Para convidá-lo a retornar, enviam até ele os xapiri das cheias, das chuvas e do caos, que são as imagens dos seres maléficos Riori, Maari e Xivãripo.” (2010, p. 201).

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Como nascem as expressões verbais ou imagéticas, em função de que sentimento ou ponto de vista são elas conservadas nos arquivos da memória, e existem leis segundo as quais elas se depositam na memória ou escapam dela? (WARBURG, 2013, p.270)

Voltando à Califórnia, alguns quilômetros ao sul de Coso, as rochas de Surprise Tank

ecoam os raios da tempestade, que é anunciada, dessa vez, por cobras. Ali, as rochas

investigadas continham um tipo diferente de traço. Hough os descreve:

No sítio do Surprise Tank há uma notável concentração de motivos de “linhas onduladas”, com relativamente poucos símbolos, como ovelhas e xamãs [...]. Essas linhas onduladas são tanto verticais quanto horizontais. (2007, p. 109)

Com aspecto visual muito mais semelhante ao da escrita do que as figuras xamânicas

antropomórficas, as linhas sinuosas horizontais, porém, nada compartilham com ela em

termos ontológicos – possuem natureza absolutamente distinta: são antes analogias, e não

possuem relação contratual entre significante e significado. Contornos biomórficos, como

afirmou Warburg em suas anotações do Novo México.

Segundo a sismógrafa, “culturas antigas comumente usam ‘linhas onduladas’ para

representar cobras e serpentes; cobras e serpentes são, por sua vez, comumente associadas a

distúrbios geológicos.” (HOUGH, 2007, p. 109); fato que é lembrado também por Warburg,

ao analisar a dança da serpente de Oraibi:

O que há de comum entre o relâmpago e a serpente, que apresenta um máximo de movimentos e um mínimo de superfície, é a forma deles, seus movimentos misteriosos, sem ponto de partida ou de chegada manifestos, e seu caráter perigoso. (2013, p. 263)

Vale ainda lembrar a associação entre serpentes, fenômenos naturais e perigo:

Cobras e serpentes […] eram comumente associadas em muitas culturas antigas com inquietações dentro da terra. Nas lendas da cultura Mogollon no sul do Novo México e norte do México, a serpente com chifres é às vezes feroz e punitiva, e é creditada por causar inundações e terremotos. (HOUGH, 2007, p. 107)

Sobre a questão do perigo, Warburg sugere, ao comentar a dança da serpente de

Oraibi:

Quando alguém a segura na mão sob sua mais perigosa forma, a da cascavel, como efetivamente fazem os índios, e quando se deixa picar por ela sem em seguida matá-la, mas, ao contrário, soltando-a no deserto, é porque a força humana tenta

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compreender, segurando-a com as mãos nuas, aquilo que de fato escapa a suas técnicas de manipulação. (2013, p. 263)

O trecho ilustra a percepção sinteticamente descrita por Michael Taussig ao confessar

seu fascínio pelo trabalho de George Frazer: “eu quero me debruçar sobre essa noção da

cópia, na prática mágica, afetando o original a tal ponto que a representação compartilhe ou

adquira as propriedades do representado.” (1993, p. 47) . A escrita é, definitivamente, uma 24

técnica de manipulação. Manipulação da linguagem – de uma linguagem das coisas:

Não há evento ou coisa, tanto na natureza animada, quanto na inanimada, que não tenha, de alguma maneira, participação na linguagem, pois é essencial a tudo comunicar seu conteúdo espiritual. (BENJAMIN, 2011, p. 51)

Ao comentar o caráter silencioso do inanimado, Walter Benjamin aponta, também,

para a própria composição das coisas:

as línguas dos objetos são imperfeitas, e eles são mudos. Às coisas é negado o puro princípio formal da linguagem que é o som. Elas só podem se comunicar umas com as outras por uma comunidade mais ou menos material. Essa comunidade é imediata e infinita como a de toda comunicação linguística; ela é mágica (pois também há uma magia na matéria). (2011, p. 60)

No foto-ícone pode-se apreender, ainda, um segundo nível de manipulação: uma

intervenção material, física, de uma massa de concreto. Novamente, encontra-se nos relatos

de Warburg uma proposta elucidativa sobre a natureza desta relação:

considero o homem como um animal que manipula coisas, cuja atividade consiste em estabelecer ligações e separações. Isso o faz perder seu sentimento orgânico do eu, pois com efeito, a mão lhe permite apoderar-se de objetos concretos, que não têm sistema nervoso, pois são inorgânicos, mas que, mesmo assim, expandem seu eu inorganicamente. É essa a tragédia do ser humano, que, ao manipular as coisas, estende-se além de seu limite orgânico. (2013, p. 269)

Os índios Hopis e Mokis, do Novo México, portanto, precisavam incorporar a

serpente, pois através de processos miméticos como a dança de máscaras katchinas, acontecia

uma apropriação que resultava em metamorfose, a partir da qual a serpente deixava de ser

A língua inglesa possui duas palavras para “representação”: representation e depiction. No texto original, 24

Taussig utiliza “representation” neste trecho. A seguinte frase de Alfred Gell contribui para uma melhor definição de representação, evitando possíveis confusões oriundas da tradução: “the idol is not a ‘depiction’ of the god, but the body of the god in artefact-form” (“o ídolo não é uma ‘representação’ do deus, mas o corpo do deus em forma de artefato”) (GELL, 1998, p. 99).

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assustadora. Existem, também, representações gráficas deste processo: a cobra-relâmpago.

Este elemento da mitologia Hopi, aliás, explicita a “energia animal (cobra) e cósmica

(relâmpago)” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 191) presente nas linhas sinuosas de Surprise

Tank. Da mesma forma, as populações nativas da Califórnia tinham necessidade de interagir

com as rochas para lidar com os tremores do solo e com o clima desértico do oeste norte-

americano. Ambas, através do artifício, elaboravam suas crises.

Seria prudente lembrar, neste ponto, aquilo que Michel Foucault eficientemente

explorou há algumas décadas, em um de seus primeiros livros: o modelo representacional da

palavra escrita. Foucault afirma que “a partir da idade clássica, o signo é a representatividade

da representação enquanto ela é representável.” (FOUCAULT, 2000, p. 88). Dessa forma, a

frase escrita no Rio de Janeiro não poderia possuir nenhum “poder mágico”, uma vez que

nela, “palavra” e “coisa” (FOUCAULT, 2000) já não apresentam mais elo. O que acontece,

porém, não é isso.

Em uma crítica violenta a esta esterilidade do texto (histórico, neste caso), Michel de

Certeau proferiu que a escrita “tem o poder de reter o passado (enquanto que a ‘fábula’

selvagem esquece e perde a origem) […] Ela tem na mão a ‘espada’ que prolonga o gesto mas

não modifica o sujeito” (1982, p. 216). A transformação humana descrita por Warburg em

relação aos objetos, portanto, não estaria presente: “O poder que seu expansionismo deixa

intacto é, em seu princípio, colonizador. Ele se estende sem ser mudado.” (CERTEAU, 1982,

p. 216). O autor continua: “Não existe escrita senão onde o significante pode ser isolado da

presença” (CERTEAU, 1982, p. 216).

Mas, quando viva em imagem, quando presentificada espacialmente, não seria

possível uma recuperação desta força nas palavras? Não ficaria, neste caso, explícita a defesa

de Benjamin a respeito do recalcamento da faculdade mimética dentro da linguagem? De

acordo com Benjamin, “a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças,

no correr da história.” (1987, p. 112). Portanto, parece viável que o foto-ícone se inscreva,

precisamente, naquilo que Certeau afasta da palavra escrita e aproxima da palavra oral:

o significante não é destacável do corpo individual ou coletivo. […] A palavra é, aqui, o corpo que significa. O enunciado não se separa nem do ato social da enunciação nem de uma presença que se dá. (1982, p. 216)

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Talvez, então, seja possível dizer que lemos o texto “abaixo a ditadura” como o

astrólogo, e não como o colegial (BENJAMIN, 1987, p. 112); talvez, ali, as palavras sejam

como “astros, vísceras e acasos” (BENJAMIN, 1987, p. 112); e se isto ocorre, é devido à

operação fotográfica, que devolve àquelas palavras e àquela ação sua conexão com os

materiais mundanos.

A incorporação da inquietação física da Terra migra, portanto, para uma incorporação

de outra inquietação, dessa vez, política, em um “paralelismo entre filogênese e

ontogênese” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 190). A conclusão do artigo de Hough parece

refletir de forma literal uma percepção de Warburg destacada por Didi-Huberman: este

considerou tamanha a importância da imagem do sismógrafo na obra daquele, que dedicou

um subcapítulo do livro A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas

segundo Aby Warburg (2013) ao tema. Em Sismografia dos tempos moventes, Didi-Huberman

joga luz à declaração de Warburg a respeito de suas duas grandes referências: Friedrich

Nietzsche e Jacob Burckhardt, que seriam “como receptores de ondas mnêmicas”, e

“sismógrafos muito sensíveis” (WARBURG apud DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 108).

A analogia indicaria, então, “o caráter muito ameaçador, no fundo, dessa ‘vida

histórica’” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 112), e o historiador-sismógrafo seria

aquele que inscreve e transmite os movimentos invisíveis que sobrevivem, que são urdidos sob o nosso solo, que se aprofundam, que aguardam o momento – inesperado – de se manifestar subitamente. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 112)

Ao fazer esta analogia, contudo, Warburg faz, ainda, um segundo movimento: confere

caráter físico à história; lembra-nos que ela é topografia e paisagem, agência (GELL, 1998)

em forma material.

Pois é modelando o cenário urbano – sua physis – e violando um gigante inorgânico

que carrega o peso de um processo sistemático da exceção, com um composto heterogêneo –

ou um híbrido, como designaria Latour – de mão orgânica e spray inorgânico, que o

manifestante brasileiro fabula seu animal (WARBURG, 2013, p. 263).

A frase escrita no muro do Teatro Municipal não é representação ou signo de um

sujeito que se expressa, mas a evocação simbólica, um “elemento performativo” – nas

palavras de Julie Peteet – de uma urgência. Como nas rochas da região do Coso com suas

figuras antropomórficas, ao “fazer as pedras falarem” (PETEET, 1996, p. 144), o manifestante

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crava, na materialidade do deserto de pensamento que haviam se tornado as instituições no

Brasil, seus xamãs libertários. A fotografia, ao fixar esta ação, os mantém em ato; atraindo,

constantemente – e para sempre – a chuva redentora. Os xamãs eternamente expostos avisam

que ali, um dia, uma tempestade virá sem indulgência.

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A tinta, a gota de trevas com que o pensamento escreve, é o próprio pensamento.

– Giorgio Agamben

As derrotas constituem um sedimento, e o sedimento está vivo.

– Antonio Negri

3.1.3. A recuperação do corpo perdido: ocupação mineral e descolonização biológica

O foto-ícone de 1968 aponta para uma questão nada recete, porém, extremamente

atual: a dimensão política dos espaços. Marc Augé trabalhou esta ideia no livro Não-lugares:

introdução a uma antropologia da sobremodernidade (1992). Ao definir o que chamou de

lugar antropológico, o autor destaca as relações políticas e sociais inscritas no próprio

desenho das cidades; seja ele horizontal, na disposição das ruas e dos dispositivos de

circulação, ou vertical, nas construções arquitetônicas, nos monumentos – acidentes

propositais deste espaço. Estes lugares, para Augé, seriam

centros mais ou menos monumentais, sejam religiosos ou políticos, construídos por certos homens e que definem em contrapartida um espaço e fronteiras para lá dos quais outros homens se definem como outros, por referência a outros centros e a outros espaços (2005, p. 50).

O autor remete o efeito criado pelos monumentos nos indivíduos à sua característica

perene – ou, ao menos, à ilusão de perenidade:

o espaço social está eriçado de monumentos não diretamente funcionais, imponentes construções de pedra ou modestos altares de terra, perante os quais cada indivíduo pode ter o sentimento justificado de que, na maior parte dos casos, lhe são preexistentes do mesmo modo que lhe hão-de sobreviver. (AUGÉ, 2005, p. 53)

Em uma concepção que quase inverte o pensamento de Warburg a respeito das

extensões inorgânicas que o corpo orgânico produz ao manipular objetos, Augé concebe um

corpo humano territorializado . O corpo de Augé – ou, ao menos, a ideia de corpo a que ele 25

se refere – é entendido segundo um a priori instrumentalizado:

Podemos sem dúvida imputar este efeito mágico da construção espacial ao fato de o próprio corpo humano ser concebido como uma porção de espaço, com suas

A escolha da palavra de Deleuze e Guattari deve-se ao fato de que embora o antropólogo não faça referência, é 25

inevitável pensar na discussão levantada pelos filósofos.

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fronteiras, os seus centros vitais, as suas defesas e as suas fraquezas, a sua couraça e os seus defeitos. Pelo menos no plano da imaginação […], o corpo é um espaço compósito e hierarquizado que pode ser investido do exterior. (AUGÉ, 2005, p. 53).

A função destes espaços, seria, então, mediar indivíduo e sociedade – e aí estaria sua

dimensão política: “a simbólica política joga com estas possibilidades para exprimir a força da

autoridade que unifica e simboliza na unidade de uma figura soberana as diversidades internas

de uma coletividade social” (AUGÉ, 2005, p. 54). Assim, a linguagem política seria

“naturalmente espacial […] sem dúvida porque lhe é necessário pensar simultaneamente a

unidade e a diversidade” (AUGÉ, 2005, p. 56). O ato performático do foto-ícone se dá, em

imagem, a partir da noção do espaço e dos corpos dimensionais concretos como política, e de

uma concepção da disposição urbana em que “um edifício não é uma coisa estática. Pelo

contrário, sua forma está continuamente sob transformações” (WEISMAN, 2014, p. 14).

O problema que investe esta frase, porém, não acaba em sua constatação. Apesar de

muito bem delimitada, a questão da invisibilidade das relações entre indivíduos e construções

é dificilmente capturável. Nesse sentido, Bruno Latour e Albena Yaneva declararam que o

problema seria o contrário daquele que enfrentou Étienne-Jules Marey: “o problema com os

edifícios é que eles parecem desesperadamente estáticos. Parece quase impossível

compreendê-los como movimento, como voo, como uma série de transformações” (2008, p.

80). Assim, para tal exposição, seria necessário um equivalente ao canhão fotográfico de

Marey que fizesse o efeito oposto: mostrar o movimento no estático. Como os autores

afirmam, o dispositivo artificial, neste caso, seria uma teoria.

Mas, contrariando, de certa forma, a afirmação de Latour e Yaneva de que “o desenho

(ou a fotografia) de um edifício como objeto não diz nada sobre o ‘voo’ de um

edifício” (2008, p. 82), não seria possível que um dispositivo visual – um artifício – fizesse

precisamente este movimento? E se este dispositivo funcionasse exatamente como o canhão

de Marey, explicitando um infinito de movimentos implícitos, de temporalidades impossíveis

de se capturar de qualquer forma – pois se o canhão fotográfico mostra alguns estágios de um

movimento, deixa, necessariamente, de mostrar todos os possíveis outros.

Se a parede do Teatro Municipal é uma geografia intrinsecamente política e encontra-

se sob confisco, em sua forma monumental, ela espetaculariza a ditadura. Uma composição

química, porém, derrete seus contornos. Agora figura informe, é possível que se faça o resgate

de todos os corpos – vivos e mortos – que encontravam-se sob o cimento.

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Mas ainda é preciso, para que desse nascimento se enuncie um nascimento, isto é, o anúncio do regime

inventivo de todo acontecimento revolucionário, que a fábula não se torne um conto para crianças bem-

comportadas e para adultos que cochilam diante do abalo sísmico desse anúncio.

– Marie-José Mondzain

3.1.4. O limbo, o escrivão e o estudante: da impossibilidade da escrita e da não escrita

O próprio ato de escrever, lembra Giorgio Agamben, pressupõe há alguns milênios um

suporte modelável, ou modulável:

Na Grécia do século IV a.C., a escrita com tinta sobre uma folha de papiro não era a única prática corrente; mais comumente, sobretudo para uso privado, escrevia-se grafando com um estilete numa tabuinha coberta com um sutil estrato de cera. (2007, p. 12)

No breve livro de onde tais palavras foram retiradas, Agamben concentra-se em uma

análise filosófica do personagem Bartleby, de Herman Melville.

No livro de Melville, Bartleby é um escrivão que recusa-se a escrever, proferindo,

sempre que solicitado, sua preferência por não fazê-lo. A atitude insubordinada e

desconcertante de Bartleby gera verdadeira perturbação mental em seu contratante, o

advogado proprietário do escritório onde “trabalha” – que é, também, o narrador.

Através de um complexo percurso que passa de Aristóteles a Nietzsche, Agamben

defende que Bartleby seria a própria potência – a “tabuinha” de cera que ainda não apresenta

nenhum texto gravado a que Aristóteles teria feito referência ao “indagar acerca da natureza

do pensamento em potência e o modo como este passa ao ato de intelecção” (AGAMBEN,

2007, p. 12). Assim, assumindo todas as possibilidades positivas e negativas de sua existência

– “toda a potência de ser ou de fazer qualquer coisa é […] sempre também a potência de não

ser ou de não fazer.” (AGAMBEN, 2007, p. 13) – Bartleby, o estranho personagem, mantém-

se em constante abertura para o porvir: “cava uma zona de indiscernibilidade, de

indeterminação, que não para de crescer entre algumas atividades não-preferidas e uma

atividade preferível.” (DELEUZE, 1997, p. 83).

Não é difícil pensar na dimensão libertadora de tal análise proposta pelo filósofo.

Liberdade, no entanto, é precisamente o que o foto-ícone brasileiro convoca na

presentificação da escrita. Mas será somente esse mesmo desejo coletivo o responsável por

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sua iconicidade? Já foi sugerido, através de um breve percurso por alguns aspectos históricos,

o contexto em que o estabelecimento da intelectualidade como arma contra a ditadura civil-

militar no Brasil se inscreve.

Do manifestante – protagonista da imagem – é retirado o direito de expressar, de

escrever. Esta proibição é evidente, e a positividade da escrita onde ela não é possível segue a

mesma lógica da inversão simbólica proposta pelo arqueólogo David Whitley em relação à

rochas californianas. Porém, de modo radicalmente diferente de Bartleby, a este escrivão – o

estudante – não restam possibilidades negativas: sua possível existência está acoplada à não

liberdade existencial da necessidade da ação. Para Bartleby, a insubordinação era não

escrever, para o manifestante brasileiro, é o contrário. A tabuinha de escrever não pode não

ser escrita (AGAMBEN, 2007, p. 19), precisamente porque o acesso a ela está interditado.

Que função, então, assume este personagem ao cumprir o fardo que lhe é previamente

atribuído? Por que é precisamente esta prescrição aquilo que o encaminha para a libertação?

Deleuze afirma que seria exatamente este o motivo da loucura e da perturbação do advogado

– o chefe de Bartleby:

É o que o advogado percebe com terror: todas as suas esperanças de trazer Bartleby de volta à razão desmoronam, porque repousam sobre uma lógica dos pressupostos, segundo a qual um patrão ‘espera’ ser obedecido, ou um amigo benevolente, escutado. (1997, p. 85)

Se é natural que estudantes escrevam, que outras forças – além da demanda

democrática – estão agindo para que esta fotografia torne-se um ícone?

O processo sintético que a imagem produz acontece no sentido de reafirmar o lugar-

comum como a única saída para um destino diferente do de Bartleby: a prisão e a morte. Ele

é, de certa forma, disciplinador. A fotografia, portanto, assume tanto o desejo libertário como

um outro: aquele que assume a defesa de certa ordenação simbólica que categoriza seres e

funções.

Agamben lembra que Benjamin associou a antiga prática disciplinatória da cópia de

um mesmo texto inúmeras vezes ao eterno retorno, e conclui, a partir disso, que “a infinita

repetição daquilo que aconteceu abandona totalmente a potência de não ser.” (AGAMBEN,

2007, p.45). O verbo no passado, utilizado por Agamben, aponta para um caminho: ao

produzir a terceira cópia de palavras que demolem a ditadura naquele muro, o estudante-

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escrivão tenta transformar em acontecimento irreversível suas palavras, com uma língua que é

“ao mesmo tempo a promessa e o fantasma” (CERTEAU, 1998, p. 245). Na cosmogonia

órfica , a inevitabilidade é personificada por Anankê, que é representada quase sempre por 26

uma serpente (figura 17). A tempestade futura, fabulada naquele inverno, é, na verdade,

também pretérita.

Figura 17 - Anankê 27

O orfismo foi uma religião surgida na Grécia por volta do século VI a.C.26

Colagem feita a partir de imagens da Internet.27

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No céu, os cavalos têm asas. – Marie-José Mondzain

3.2. ARAME FARPADO, EUROPA CENTRAL: RASGANDO O UNIFORME E O CÉU

DE BERLIM

3.2.1. Das fazendas às trincheiras, das trincheiras aos campos, dos campos à cidade: o

crime, a guerra e a temperatura do metal

O problema do dispositivo aparente no foto-ícone conhecido como Leap Into Freedom

começa com as vacas de Illinois. Segundo Reviel Netz, o arame farpado foi inventado “para

impedir a movimentação de vacas” (apud BENNETT; ABBOTT, 2014, p. 568). Segundo Earl

W. Hayter, foi em DeKalb, uma cidade “localizada na borda das pradarias, onde os colonos se

expandiam para os amplos campos sem árvores do Oeste” (1939, p. 190), que a necessidade

deste tipo de cerca foi de fato sentida pela primeira vez. As primeiras patentes do produto

teriam sido registradas nesta cidade, no ano de 1874.

O caráter agressivo deste dispositivo foi denunciado desde os primeiros anos de uso.

Netz afirma que “sua função era baseada em violência” (apud BENNETT; ABBOTT, 2014, p.

568), e nas últimas décadas do século XIX, a Society for the Prevention of Cruelty to Animals

registrou diversas denúncias a respeito do uso dessa técnica de contenção de gado. O perigo

da cerca era tão explícito, que a discussão chegou a jornais locais – como uma matéria do

Denver’s Daily News de 1882 que dizia:

Seria um trabalho nobre se a [Humane Society] pudesse convencer o Legislativo a aprovar uma lei proibindo a construção de cercas de “arame farpado”. […] Se o homem que construiu a cerca tivesse um coração não tão duro como pedra, e pudesse ter visto aquele terrível massacre, ele teria solenemente jurado nunca mais construir uma cerca de arame farpado. (apud BENNETT; ABBOTT, 2014, p. 567)

Não somente tal juramento nunca foi proferido, como a condição espacial inumana

(AZOULAY, 2013) foi levada, precisamente, para dentro da sociedade humana. Foi em outro

movimento de expansão – dessa vez, não para o Oeste norte-americano – que o arame farpado

ascendeu a um posto de destaque na escala da violência mundial: aproximadamente meio

século depois das denúncias de crueldade animal nos Estados Unidos, ele entra nas trincheiras

da Primeira Guerra Mundial.

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Ainda que a utilização de arame farpado em batalhas tenha sido inaugurada anos antes

– na Guerra Hispano-Americana (1898) (figura 18) – foi a Primeira Guerra que, de fato,

construiu o imaginário do objeto no contexto de guerras. Assim, a cerca era colocada na frente

das trincheiras para retardar o inimigo, restringir sua mobilidade, conduzi-lo a zonas

vulneráveis e para desorganizar ataques.

Figura 18 - Arame farpado na Guerra Hispano-Americana 28

Na fotografia que ficou mundialmente conhecida como Leap Into Freedom (figura 4),

um soldado da República Democrática Alemã salta sobre um emaranhado de arame farpado

que virá a ser o Muro de Berlin. O jovem é Hans Conrad Schumann, que deserta do exército

da RDA. As pontas do metal que encontram-se abaixo da bota de Schumann, ainda que

tragam os imaginários descritos anteriormente, espetam ainda com mais intensidade uma

outra ferida que encontra encarnação visual: mais rapidamente do que para fazendas pecuárias

ou trincheiras com soldados vestindo máscaras de gás, o arame farpado nos transporta para o

norte de Berlim. O campo de concentração Sachsenhausen ficava localizado a apenas trinta e

Fonte: https://rarehistoricalphotos.com/technology-weapons-ww1/ 28

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cinco quilômetros do cruzamento entre a Bernauer Straße e a Ruppiner Straße, onde

Schumann efetuou seu pulo sobre o arame que foi fixado no chão no dia 13 de agosto de

1961, e na fotografia, três dias depois.

A figuração simbólica do arame farpado no imaginário dos campos de concentração é

evidente. O elemento foi intensamente explorado em filmes, fotografias, e em títulos de livros

e artigos acadêmicos, de forma que sua função original, a de demarcar e conter, encontra lugar

privilegiado no território das atrocidades humanas – contra humanos.

O foto-ícone feito pelo jovem Peter Leibing em 1961 performa demandas que eram,

ainda, uma herança enfadonha dos anos vividos há menos de duas décadas. A proximidade

temporal e física da Segunda Guerra Mundial – não por acaso, o foto-ícone foi feito na

Alemanha, que passava por um processo traumático enquanto precisava lidar com a culpa e a

responsabilidade pelos crimes de um passado recente – talvez tenha sido um fator decisivo na

transformação da fotografia em ícone.

A superação do obstáculo metálico de Schumann – aquele mesmo objeto que precisou

ser superado pelos presos dos campos de concentração nazistas – é, também, a superação do

país, e sua tão esperada redenção. Embora Georges Didi-Huberman, inspirado por Jean-Luc

Godard , tenha respondido o auto-questionamento “de que maneira pode uma imagem 29

‘salvar a honra’ de uma história?” (2008, p. 151) com um retumbante e ético “redenção não é

ressurreição” (2008, p. 151), é isso o que se procura nas imagens, e, muitas vezes, é isso o que

elas querem (MITCHELL, 2005).

Mas aquilo que a imagem performa, certamente, é muito mais do que o laboratório

traumático da Alemanha do pós-guerra, a “determinação de longa data do Ocidente – talvez,

mais precisamente, da Alemanha – para obstruir ou superar a memória do terror

nazista” (OGUIBE, 2003, p. 90). E um dos diversos caminhos performados por ela permite o

discurso ocidental durante a Guerra Fria. Ao explorar a ideia de fotografia humanista no

contexto da Segunda Guerra, Erika Zerwes comenta o trabalho de Hannah Arendt:

Após a Segunda Guerra Mundial, os Aliados tiveram dificuldades para julgar e punir os responsáveis pelas atrocidades cometidas nos campos. Hannah Arendt enfatiza que após a guerra, durante o julgamento de criminosos de guerra em Nuremberg, um novo arcabouço teórico teve que ser preparado para lidar legalmente não só com o

No capítulo Four pieces of film snatched from hell, do livro Images malgré tout (2003), o cineasta é citado na 29

epígrafe, com a seguinte frase: “mesmo arranhado até a morte, um simples retângulo de trinta e cinco milímetros salva a honra do real”.

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assassinato em massa cometido pelos nazistas, mas também porque seus alvos eram civis de várias nacionalidades, bem como devido à dura crueldade com que tal assassinato foi metodicamente posto em prática. Este novo conceito foi nomeado como crime contra a humanidade. (2016b, p. 434)

Uma vez que todo o imaginário simbólico do crime contra a humanidade está inscrito

a partir de um elemento visual da imagem – o arame farpado –, uma pergunta começa a ser

desenhada: se o tribunal de Nuremberg visou julgar os criminosos nazistas, quem seria o

responsável por aquela nova aberração nas ruas de Berlim? Quem teria feito a perversa

migração da grotesca barreira de espinhos dos campos de extermínio para a calçada da capital

alemã?

Robert Hariman e John Louis Lucaites sugerem que os foto-ícones se inscrevem,

necessariamente, em um contexto filosófico ocidental em que o fotojornalismo

subscreve a política liberal-democrática ao fornecer recursos para o pensamento e o sentimento que não estão registrados nas normas da racionalidade letrada que constituem o discurso da legitimidade política nas sociedades ocidentais (2007, p. 14).

Eles afirmam, também, que “democracia e liberalismo são ideias políticas que se

entrelaçaram profundamente no desenvolvimento da sociedade civil ocidental, e os termos

cobrem necessariamente uma série de significados” (HARIMAN; LUCAITES, 2007, p. 14 ).

Embora as condições encontradas nas imagens pelos autores para que elas se tornem ícones

sejam bastante restritas, e sua obra aborde exclusivamente foto-ícones norte-americanos, a

ideia de um liberalismo democrático como demanda para a performance visual da fotografia

Leap Into Freedom se aplica adequadamente.

Dessa forma, a construção de uma estrutura que limita as liberdades individuais e fere

o princípio democrático está atrelada a um regime anti-capitalista. Ainda que, evidentemente,

um aspecto não possua nenhuma relação ideológica com o outro, a imagem naturaliza tal

conexão.

Ao longo dos anos, o processo associativo entre o crime contra a humanidade e o

crime contra a individualidade (ou a liberdade) de Conrad Schumann não acontece, porém,

sem uma inversão: a ironia de que a nascente Antifaschistischer Schutzwall (Muro de Proteção

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Antifascista ), em seus primeiros dias de existência, remete – no foto-ícone – precisamente a 30

uma iconografia associada ao nazi-fascismo: o arame farpado. Brian Ladd afirma que

A RDA ofereceu sua ideologia oficial do antifascismo alemão – não olhando para a Alemanha velha ou para a Alemanha inteira, mas para a Alemanha melhor. […] A “muralha de proteção antifascista” tornou-se seu símbolo mais famoso. (1997, p. 31)

O foto-ícone reverte, portanto, o discurso oficial da República Democrática Alemã,

colocando seu símbolo ao avesso.

Ao referir-se aos primórdios do arame farpado, Hayter explica que “o arame daqueles

dias era afetado adversamente por temperaturas extremas; estalava no tempo frio e cedia no

calor” (1939, p. 189). Quase uma centena de anos depois, em outro continente, o arame

continua sendo morfologicamente alterado pela temperatura dos acontecimentos. O embrião

do Muro de Berlim – como “lascas de pele, carne germinando” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.

132) – conecta-se em um nível molecular com a frieza da Guerra.

Assim era chamado o Muro de Berlim pelas autoridades da República Democrática Alemã. 30

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É preciso brincar na vizinhança do desastre, como um funâmbulo qualquer.

– Marie-José Mondzain

3.2.2. A coleira de Schumann: só se ganha asas no Ocidente

Ao escrever sobre sua experiência ao visitar o Memorial de Auschwitz-Birkenau,

Didi-Huberman lembra um momento que compartilhou com um pássaro:

Eu caminhava rente aos arames farpados quando um passarinho veio pousar perto de mim. Bem ao lado, mas: do outro lado. Tirei uma foto, sem pensar muito, provavelmente tocado pela liberdade daquele animal que driblava as cercas. (2012, p. 106)

Mais uma vez, os problemas animais invadem a fotografia. Agora, são primeiramente

as questões equinas que se inscrevem; depois, as caninas; e por final, as dos animais voadores.

Humanos não voam, nem andam em quatro patas. Mas Conrad Schumann faz ambos.

Peter Leibing disse, em entrevista, que ficou horas com sua câmera direcionada para

Schumann, pois percebeu que algo aconteceria. O fotógrafo esperava, apontando a sua lente

para ele, a ação do soldado; assim como, do outro lado, um militar da Grenztruppen (a polícia

responsável pelo controle da fronteira oriental) certamente também aguardaria com a mira de

uma arma, caso soubesse o que ocorreria. Leibing disse que a existência da imagem foi

condicionada a sua própria experiência como fotógrafo – não fossem as competições

esportivas de hipismo em Hamburgo, o foto-ícone da Guerra Fria não teria sido produzido:

Eu tinha aprendido como [conseguir o timing certo fotografando cavalos] no Jump Derby em Hamburgo. Você tem que fotografar o cavalo quando ele sai do chão e pegá-lo enquanto ele chega à barreira. E então ele veio. Apertei o obturador e tudo acabou. (apud ROSS, 2016).

Em um contexto nada esportivo e violentamente bélico, outro animal costumava pular

sobre cercas – farpadas nesse caso, assim como a de Schumann. Durante a Primeira Guerra, o

uso de cães era extremamente comum (figura 19). O veterinário Boyd R. Jones lembra que

“animais – cavalos e cachorros – desempenharam um papel significativo nesse conflito.

Cavalos foram usados como cavalaria e para o transporte, mas o papel dos cães é muitas vezes

esquecido” (2015, p. 12). Jones afirma que o uso de cães em guerras remonta a tempos muito

antigos: os gregos, os persas, os egípcios e os romanos já utilizavam cachorros durante

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batalhas. Eles participaram, também, das guerras napoleônicas, da Guerra Civil Americana e

serviram como ameaça contra populações nativas na América durante a invasão espanhola. A

lista de cães que ganharam títulos em guerras é extensa: Bobbie recebeu uma medalha da

rainha Victoria em 1881; o famoso sargento Stubby foi promovido ao voltar para os EUA

após a Primeira Guerra, e até virou protagonista de um filme de animação em 2018 (Sgt.

Stubby: An American Hero); Chips recebeu três prêmios – Distinguished Service Cross, Silver

Star e Purple Heart – após a Segunda Guerra; o major Major foi promovido em 1942 e obteve

um enterro com honras militares. Estes são somente alguns cachorros dentre os muitos que

ganharam prestígio durante guerras.

Figura 19 - Cão com máscara de gás 31

Fonte: https://owlcation.com/humanities/War-Dogs-of-WWI-First-Great-European-War-World-War-31

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São, porém, os cães mensageiros da Primeira Guerra (figura 20) que nos interessam:

“os cães forneciam uma comunicação rápida e confiável entre as unidades. Cães eram alvos

menores de franco-atiradores e podiam viajar pelo terreno difícil” (JONES, 2015, p. 14). Estes

animais eram treinados para levar mensagens presas à coleira por distâncias muito longas. O

coronel Edwin H. Richardson, que escreveu um livro sobre o assunto, explica o processo:

Eles devem ser ensinados a viajar por estradas elevadas, entre caminhões e entre o tráfego, por vilarejos e por todo tipo de acampamento e tentação. Eles devem ser ensinados a não ter medo da água ou de quaisquer desigualdades no solo. Para ajudar os cães a superar todas essas dificuldades, todos os tipos de obstáculos artificiais são introduzidos na rota da jornada do cão, além daqueles que ele encontraria da maneira comum. Arame farpado, palanques, cercas, diques de água, nuvens de fumaça feitas por meios inofensivos etc., devem interceptar sua jornada de volta, e devem ser induzidos a superar essas dificuldades a qualquer custo, de uma forma ou de outra, por cima, através ou por baixo. A escolha é deixada ao cão, mas ele deve voltar. (apud ENSMINGER, 2011)

Figura 20 - Cão mensageiro da Primeira Guerra Mundial 32

O adestramento destes cães, portanto, não deixava margem para erros; “ensinados a

manter-se em seu lugar” (LISSOVSKY, 2017, p. 13) – o da fidelidade incondicional, da

docilidade, do subjugo e da domesticação – e assumindo eficientemente este fardo, eles, cães

fardados (figura 21), eram poderosas ferramentas de guerra. Seu treinamento, contudo, não

Fonte: https://www.gettyimages.co.nz/event/war-dogs-542955701#volume-2-page-124-picture-9-world-war-32

one-1914-1918-western-front-picture-id78948252

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diferia tanto assim do de tropas humanas do exército (figura 22). Utilizando o adestramento

contra o adestrador, Schumann deixa aparecer, na fotografia, as possibilidades libertadoras das

transformações morfológicas permitidas tão somente pelas imagens.

Figura 21 - Sargento Stubby 33

Fonte: https://www.theatlantic.com/photo/2014/04/world-war-i-in-photos-animals-at-war/507320/ 33

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Figura 22 - Soldado em treinamento em Carrabelle Beach, Flórida, 1943. 34

A relação entre imagem, iconicidade, guerra, e os limites entre homem e cão foi

apontada por Mauricio Lissovsky a partir de uma famosa fotografia de Robert Capa, feita em

1943, durante a invasão da Sicília. No foto-ícone em questão, um camponês siciliano fala a

um soldado norte-americano, “como alguém que dá ordens a seu cão de caça” (LISSOVSKY,

2017, p. 8). Caçadores ou mensageiros, os dois soldados – o americano e o alemão – têm

missões muito bem definidas.

Schumann, porém, segue o comando de quem? Lissovsky sugere que na fotografia de

Capa “é a ‘voz do dono’ que o sabujo americano escuta, desnudando assim essa operação que

desdobra e faz nascer em cada um de nós um anão e um gigante, um animal e um

humano” (2017, p. 9). O animal que brota em nós a partir de Leap Into Freedom possui dois

predicados – quase contraditórios. Por um lado, ele é selvagem, segue o instinto da auto-

preservação; ao fugir (como as vacas de Illinois) daquilo que lhe faz mal, ele coloca sua

Fonte: http://www.tallahasseemagazine.com/November-December-2015/How-Little-Lanark-Village-Helped-34

Save-the-World/

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própria existência como prioridade. Por outro, ele chega ao nível máximo de domesticação:

apesar de ter sido acusado de traição por alguns conterrâneos até o final de sua vida, o

soldado-cão na imagem, na verdade, foi fiel àqueles que possuíam a “voz de comando” mais

acertiva – e àqueles que lhe retribuiriam o ato de coragem com os mais agradáveis afagos. Ou,

ao menos, assim lhe foi prometido.

O caso do cão Satan é particularmente interessante. A escritora Mara Bovsun descreve

a situação:

Ao entregar sua mensagem através de uma das batalhas mais terríveis da guerra, um cão – Satan de Verdun – tornou-se o “mais famoso de centenas de cães mensageiros altamente treinados no front ocidental”, aos olhos de ninguém menos do que o autor Albert Payson Terhune. Satan era um cão de ligação francês. Esses cães foram treinados para levar mensagens, enroladas em latas em suas coleiras, indo e voltando entre os pontos, permitindo que os soldados continuassem conversando. Durante o cerco de Verdun, uma guarnição francesa estava presa em uma aldeia, com armas inimigas ao redor. Os soldados estavam prestes a perder a esperança, quando viram o que pensavam ser uma aparição no campo de batalha, como o Anjo de Mons. Parecia ser um cachorro, com asas e uma cabeça enorme com olhos de inseto, galopando em direção a eles. Quando a forma se aproximou, os homens perceberam que a imagem não era apenas muito real, mas alguém que eles conheciam muito bem. Era Satan. Quando o mensageiro de quatro patas estava quase chegando ao seu destino, ele cambaleou para o lado e caiu. “Uma bala alemã o encontrou”, escreveu Terhune. “Ele levantou, cambaleando e tonto. Por um instante, ele pareceu ter perdido o caminho. Então ele se estabeleceu naquela corrida constante novamente”. Outra bala rasgou sua perna, mas Satan não seria parado. Ele chegou ao seu destino e entrou em colapso. O que parecia ser olhos de insetos era uma máscara de gás, e as asas eram duas gaiolas contendo pombos-correio. (2007, p. 47)

Assim como Satan, que compensou a pata abatida com um par de asas que continha

mais pares de asas, Schumann ganha mais dois membros de tração – o que facilita seu salto.

Em sua “cinomorfose humana” (LISSOVSKY, 2017, p. 19), ele, como Satan, é também

ornitomorfo. Marie-José Mondzain lembrou que certa vez, Alan Badiou disse: “Há essa

tendência bem alemã de preferir, afinal, os pássaros em vez dos homens” (apud MONDZAIN,

2017, p. 59).

Ao adentrar o Secteur Français, um metamórfico Conrad Schumann leva consigo uma

mensagem, um anúncio. Satan, com a ironia de seu nome, foi visto como um próprio Anjo de

Mons . Mondzain afirma que “antigamente, ouvir o inaudito foi chamado de ‘anunciação’. A 35

bom entendedor um anjo disse: ‘salve’. ‘Salve’ é como a imagem anuncia sua chegada, antes

até que os olhos possam vê-la” (2017, p. 59). Ana Maria Mauad apontou a dimensão política

Existe um lenda da Primeira Guerra Mundial em que os Anjos de Mons teriam sido aparições que protegeram 35

membros do exército inglês na Batalha de Mons.

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da anunciação em fotografias de protestos no Brasil: “em tais imagens, meninas, meninos,

flores e policiais compuseram o quadro de uma anunciação – arcanjos Gabriel surgiram frente

às autoridades constituídas para trazer a boa nova” (2014, p. 121). A boa nova de Schumann

pende de seu pescoço. Ele saúda a liberdade, como um passarinho em Auschwitz. Porém,

“saudar não é salvar” (MONDZAIN, 2017, p. 60). O inaudito assume muitas formas e, por

vezes, elas são pontudas.

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Sem saber, o passarinho pousou entre a barbárie e a cultura.

– Georges Didi-Huberman

3.2.3. Aves, homens e o sobrenatural: ascendendo no campo gravitacional alemão ou O

Soldado Perseguido e Seus Algozes, Ainda

A Wilson Ornithological Society, fundada em 1888, publicou um relatório em

dezembro de 1973, que dizia:

Há numerosos relatos de empalamentos do morcego Lasiurus cinereus e especialmente do morcego vermelho (Lasiurus borealis) em farpas, geralmente do cordão superior, de cercas de arame. Além dos morcegos lasiurinos, foram relatados também empalamentos de um morcego de Indiana (Myotis sodalis) e de um morcego pequeno marrom (M. lucifugus). (EDEBURN, 2016, p. 478)

O mesmo documento reportava o empalamento de uma coruja, que teria ficado com a

asa esquerda presa a uma cerca de arame farpado na cidade de Mercer, Pennsylvania, e

informava que “as cercas de arame farpado nas proximidades dos pântanos parecem ser um

perigo particular para as aves que gostam de água” (EDEBURN, 2016, p. 478). Um outro

relato, da The American Midland Naturalist, em 1967, chamado An Indiana Bat Impaled on

Barbed Wire, descreve “um exemplo de um indivíduo de Myotis sodalis aparentemente auto-

empalado em uma cerca de arame farpado em Wayne Co., Indiana” (DEBLASE; COPE,

2015, p. 238). Ainda sobre morcegos, o Department of Zoology and Museum of Natural

History da Universidade de Illinois, registrou, na primavera de 1964, cinco casos de

empalamentos. Em um deles, “um morcego vermelho mumificado, Lasiurus borealis,

pendurado no arame superior de uma cerca de arame farpado […] foi empalado no outono

anterior” (LONG, 2015, p. 201). Outro caso descreve “um morcego Lasiurus cinereus,

encontrado empalado por sua ‘asa’ em uma cerca de arame farpado no Novo

México” (LONG, 2015, p. 201). Os cinco casos foram considerados “‘atos descuidados’ como

roçar os ramos e galhos de árvores. É possível que os morcegos tenham sido atraídos pelas

farpas, supondo que fossem presas” (LONG, 2015, p. 201). Há, ainda, informativos sobre

aves do tipo Rallus (frangos d’água) empaladas em cercas de arame farpado, em 1946: um

Clapper Rail, que, perto de Lexinton, Virginia, foi “pego no abdômen por um gancho em um

dos fios superiores de uma cerca de arame farpado e parece ter se debatido até a

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morte” (PETTINGILL, 2015, p. 591). E um King Rail, encontrado morto no Texas (figura

23), cujo “infortúnio poderia ter sido causado por voar cegamente contra a cerca enquanto

passava à noite de uma parte para a outra. Um golpe da asa contra as farpas ofensivas havia

sido suficiente para causar o empalamento” (PETTINGILL, 2015, p. 591).

Figura 23 - Frango d’água empalado 36

O próprio ato de voar, para estes animais, é a pré-condição para a dor. Um bater de

asas e a contração de alguns músculos que os tiram do chão são atravessados pela

possiblidade da morte. Judith Butler afirmou que “todo levante é um risco” (2017, p. 30).

Levantar-se é um risco. Saltar é um risco. O arame farpado está ali, na rota dos pássaros, na

Imagem extraída do relatório King Rail impaled on barbed wire (PETTINGILL, 2015).36

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rota de fuga do soldado da BePo (Bereitschaftspolizei) como a materialização do “ódio […] 37

contra aquelas e aqueles que se mantêm em pé, contra aquelas e aqueles que escapam do chão

pela simples força do salto” (MONDZAIN, 2017, p. 58).

A fotografia deixa uma questão em suspenso: será Schumann abatido como uma ave

que em pleno voo é enquadrada pela mira de uma arma? Seriam os próximos instantes os

últimos de sua breve vida, em que ele agonizaria como um ser empalado? Se houve um dia

um especialista em empalamentos humanos, esta pessoa foi Vlad III, mais conhecido como

Vlad Dracula, ou Vlad, O Empalador.

Vlad III foi rei da Valáquia (Romênia) durante alguns anos do século XV. Ele invadiu

a região enquanto o rei Vladislav II estava fora, em uma batalha contra o Império Turco-

Otomano. O novo monarca, então, ficou conhecido por praticar com frequência a cruel

punição: o empalamento (figura 24). Foram as histórias tenebrosas de sadismo que envolviam

Vlad, O Empalador, que inspiraram uma das mais conhecidas obras da literatura mundial: o

romance gótico Drácula, de Bram Stoker.

Figura 24 - Empalamentos de Vlad III 38

A Bereitschaftspolizei, conhecida como BePo, é uma polícia de ação rápida na Alemanha.37

Fonte: http://english.ohmynews.com/articleview/article_view.asp?no=194148&rel_no=1 38

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O ponto de interesse aqui é sua procedência. Parece bastante simbólico que o foto-

ícone da Guerra Fria traga, através de analogias visuais que geram processos associativos, um

imaginário cujo impiedoso protagonista é precisamente um autoritário governante romeno de

outrora. É válido lembrar que em 1961, a Romênia – então República Socialista da Romênia –

era um estado governado por Gheorghe Gheorghiu-Dej, do Partido Comunista Romeno, e

havia passado anos sob ocupação soviética recentemente, até o ano de 1958. Estaria o

Vampiro da Europa Oriental exportando seus métodos pouco civilizados para o resto do

mundo? Segundo o Ocidente, certamente, sim. E ele deveria ser contido.

O arame que prende o pássaro texano (figura 23) tem limite espacial – alguns metros,

ou quilômetros – mas sua extensão temporal é dificilmente mensurada. Entrando em uma

espiral anacrônica, ele perfura a diagonal de um conhecido plano da história do cinema e um

corpo feminino que jaze sobre ele (figura 25). O polêmico travelling de Kapò, trazido à luz

por Jacques Rivette com o texto De l’Abjection, publicado na revista Cahiers du Cinéma,

apenas dois meses antes de Peter Leibing disparar o obturador de sua câmera, foi recuperado

por diversos autores, dos quais, Serge Daney se destaca com o ensaio particularmente sensível

Le travelling de Kapo, de 1992.

Figura 25 - Riva se suicida no arame farpado

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A questão levantada por ambos autores é pontual, mas, ao mesmo tempo,

extremamente complexa. O movimento de câmera presente no filme feito em 1959 por Gillo

Pontecorvo carrega um crime do qual nunca conseguirá ser absolvido: a falta de ética – “os

travellings são uma questão moral” (GODARD, 1959). Rivette, em uma crítica violenta ao

referido plano, profere a acusação do diretor em tom condenatório:

Vejamos agora, em Kapò, o plano em que Riva se suicida, se jogando no arame farpado eletrificado: o homem que resolve, nesse momento, fazer um travelling para a frente para reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando cuidado para inscrever exatamente a mão levantada num ângulo do enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo desprezo (2009).

Do “suicídio” acidental de um morcego que é atraído pelo metal à representação

irresponsável do suicídio de uma mulher, reprovada tanto pelo cineasta quanto pelo crítico, o

problema da ética está implicado nas demarcações agressivas que inscrevem o controle da

circulação e da própria existência de vidas. E, evidentemente, ele está sempre implicado nas

imagens, como mostram Rivette e Daney de forma muito bem construída. Nesse sentido, em

relação ao controle do espaço, Ariella Azoulay afirma:

A imagem do soberano como fundador de cidades que importa arquitetos e engenheiros de longe para ajudá-lo a deixar sua própria marca no espaço é familiar para nós desde a história antiga. Algo desta dimensão do poder dominante é perpetuado em nosso tempo pelo direito do soberano de iniciar e construir monumentos que transformam o espaço urbano e o faz sem qualquer concorrência, contrato ou consentimento civil. (2002, p. 15)

No texto The (in)human spatial condition: a visual essay, a autora explora as relações

espaciais de poder em locais de ocupação israelense. Azoulay identifica três tipos de

intervenção no espaço palestino: construção, administração do movimento, e destruição.

Nessas relações,

tanto a construção […] como a destruição […] infligem danos permanentes à população local, interferem em sua capacidade de viajar para o trabalho, escola e clínicas médicas, e provocam resistência (AZOULAY, 2002, p. 16).

O título do artigo de Azoulay traz uma referência (assumida ao longo do texto): a

noção de condição humana de Hannah Arendt. O deslocamento do conceito de Arendt (do

contexto da Segunda Guerra – o totalitarismo, o Holocausto, os traumas – para a ocupação

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israelense) evidencia a aplicabilidade da ideia a qualquer situação de exceção. Como Erika

Zerwes comenta, sobre os prisioneiros dos campos, “várias descrições convergem em afirmar

que aquilo que o sistema dos campos de concentração lhes negou era seu status como seres

humanos.” (2016b, p. 434). Zerwes, então, cita Robert Antelme e Primo Levi, que apontaram

para para esta desumanização produzida pelos campos de concentração.

Nesse sentido, a complexa abordagem que Giorgio Agamben propõe a respeito do

muçulmano – aquele que “havia eliminado para sempre qualquer possibilidade de distiguir

entre o homem e o não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 55) –, e do processo de

dessubjetivação, cava uma zona de indefinição, uma “no man’s land” (AGAMBEN apud

PELBART, 2013, p. 55) naquilo que é chamado de ser humano, em “situações extremas”, ou

“situações-limite” (AGAMBEN, 2008).

Mas é a partir de uma outra cisão conceitual na humanidade do humano, proposta por

Agamben, que esta análise mais adequadamente se inscreve. No capítulo The Ban and the

Wolf de Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua (1995), o autor propõe:

O que permaneceu no inconsciente coletivo como um monstruoso híbrido de humano e animal, dividido entre a floresta e a cidade – o lobisomem – é, portanto, em sua origem, a figura do homem que foi banido da cidade. […] É, antes, um limiar de indiferenciação e de passagem entre animal e homem, physis e nomos, exclusão e inclusão: a vida do bandido é a vida do loup-garou, o lobisomem, que é precisamente nem homem nem besta, e que reside paradoxalmente dentro de ambos, enquanto pertencente a nenhum dos dois. (AGAMBEN, 1998, p. 70)

O autor continua com uma sugestão cuja conexão com o estudo proposto por Azoulay

pode ser desenhada:

A transformação em lobisomem corresponde perfeitamente ao estado de exceção, em que durante esse tempo (necessariamente limitado), a cidade é dissolvida e os homens entram em uma zona na qual eles não são mais distintos dos animais. (AGAMBEN, 1998, p. 71)

No artigo citado, Azoulay investiga cinco séries fotográficas, das quais, a abordagem

de duas mostram-se particularmente interessantes: em Types of Blockage e The Architecture of

Separation, a autora explora, através das imagens,

procedimentos pelos quais o regime de ocupação realmente produz uma desorientação do espaço em que a legibilidade e a coerência foram totalmente destruídas. […] Eles também mostram como esses procedimentos permitem aos palestinos apenas movimentos determinados, em meio a componentes

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“arquitetônicos” como lajes de concreto, partes de muros, cercas de arame farpado, barreiras plásticas e outros elementos que geram uma cartografia inteiramente nova. (AZOULAY, 2002, p. 18)

A partir desta proposta, ela apresenta “a sintaxe arquitetural de diferentes tipos de

pontos de bloqueio” (AZOULAY, 2002, p. 18) e como um “espaço fragmentado e bloqueado

[…] reorganiza o campo de visão, um campo que não pode mais ser

compartilhado” (AZOULAY, 2002, p. 19). Portanto, o tropo visual apresentado por Leap Into

Freedom convoca, ainda, um acampamento (MAUAD, 2014) no futuro: o presente. Ao

utilizar este termo, Mauad refere-se às

imagens que acampam em corpos pelos tempos, foto-ícones que relampejam acontecimentos, registros digitais que condensam o cotidiano. Os múltiplos tempos da imagem, em seus mais diversos suportes, meios e corpos, se revelam na experiência fotográfica. (2014, p. 131)

O páthos do foto-ícone pode ser verificado em fotografias atuais, que surgem de

“novas” formações arquitetônicas de controle (figura 26) – campos de refugiados, barreiras de

territórios ocupados. De acordo com Nicholas Mirzoeff,

Esses novos campos de detenção não são campos de extermínio. Longe de reivindicar uma solução final, tal campo coloca a própria idéia de uma solução em suspenso, mantendo seus internos invisíveis com o objetivo de esquecê-los. (2005, p. 121)

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Figura 26 - Refugiado sírio salta sobre cerca farpada entre a Síria e a Turquia (foto: Lefteris Pitarakis, 2015)

O autor continua, em uma aproximação com as questões da Guerra Fria:

A cultura de circuito fechado que emerge agora é um retorno reestruturado ao que Paul Edwards chamou de “o mundo fechado” da Guerra Fria na América. Edwards define o mundo fechado como uma metáfora emprestada do teatro, sugerindo um ambiente fechado artificial que, não obstante, é “radicalmente dividido contra si mesmo”. Assim, o sistema global contido da Guerra Fria, marcado por barreiras reais como o Muro de Berlim ou a Zona Desmilitarizada entre as duas Coréias, além de divisões metafóricas como a Cortina de Ferro, era também dividido em sua luta entre o capitalismo e o comunismo. (MIRZOEFF, 2005, p. 122)

Em sua nova figuração, o arame farpado encarna uma preempção doméstica que

torna as fronteiras que hoje são invisíveis para o capital global em barreiras para a força de trabalho global, sejam as barreiras invisíveis de vistos e passaportes, ou as barreiras físicas sendo construídas pelos EUA em sua fronteira com o México e por Israel nos territórios ocupados. (MIRZOEFF, 2005, p. 120)

Como Mirzoeff lembra, Michel Foucault já havia identificado que “a visibilidade é

uma armadilha” (MIRZOEFF, 2005, p. 124). No caso de Leap Into Freedom, ela pode ser a

armadilha que lança a imagem na esfera no ícone. Em uma busca por registros do pulo de

Schumann, é possível encontrar facilmente, pelo menos, mais uma fotografia (figura 27). Esta

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imagem, evidentemente, foi feita por outro fotógrafo, em outra posição. Mas quase ninguém a

conhece. O que faz com que o salto capturado por Leibing tenha sido “para a liberdade”,

enquanto esta mesma cena apreendida por outra câmera foi esquecida? Precisamente o salto.

Mondzain diz que “é o encontro com o outro que dá firmeza à curva do salto” (2017, p. 59). O

outro somos nós, aqueles atrás de um homem com uma câmera. Sem a chegada do outro lado,

a ação de Schumann não tem sentido. Não é isso, porém, o que iconiza a imagem.

Figura 27 - Conrad Schumann alguns instantes antes do salto (foto: Polizeihistorische Sammlung, Berlin)

Mondzain chama a atenção para um risco: “a lei da gravidade bem que gostaria de

desanimar os pássaros, os que riem, os dançarinos, os poetas” (2017, p. 55). Esse é, também,

o risco do salto. A autora, então, aproxima a questão do peso e da gravidade à arte de Marcel

Duchamp, citando uma descrição feita pelo artista da obra Le Grand Verre (1915-1923).

Se Schumann é eternizado, é porque encontra-se no ar. Através de uma operação que

não possui “nem entrada nem saída, mas somente o interminável jogo de suas

fabricações” (CERTEAU, 1998, p. 243), como uma máquina celibatária, um “receptáculo de

todas as aparições do possível” (MONDZAIN, 2017, p. 61), um horizonte em que a

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“satisfação (da vontade) […] é intensificada pelo retardo” (SCHOPENHAUER apud

THOMPSON, 2008, p. 168), ele permanece suspenso em um entre-lugar – ou, como sugeriu

Michel de Certeau em um comentário sobre o Le Grand Verre, um “não lugar do

acontecimento” (1998, p. 243) – onde é eternamente objeto de desejos nunca alcançados: ali,

ele é livre da Stasi, que o perseguiu por grande parte de sua vida; livre de autoridades da

República Federal da Alemanha, que o pressionaram durante anos por informações; e livre de

seu irônico futuro – um corpo vítima da gravidade, que pende, após um ato de suicídio, de

uma árvore em um pacífico jardim na Bavária. Não existem consequências, ainda. Schumann

não está a salvo, ainda. Não estamos fora de risco, ainda.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos dois capítulos desta dissertação que constituem as análises dos foto-ícones,

procurou-se perceber as performances sociais que eles assumem. Buscou-se entender estas

imagens em seus contextos histórico-antropológicos, sem desconsiderar seus aspectos

políticos e ideológicos, mas, sempre, dentro de uma concepção não restritiva de suas

capacidades performáticas. Assim, em todas as análises, pode-se destacar o deslocamento

dessas imagens por temporalidades anacrônicas e por labirintos compostos por outras

imagens.

A infinitude de caminhos a que esta pesquisa poderia ter levado talvez seja,

precisamente, sua marca mais característica. Uma vez que estas fotografias existem – e que

sua existência é atravessada por uma condição conciliadora (são, afinal, ícones) – suas

performances podem ser incessantes. Elas não assumem apenas estes trajetos, apontados neste

texto. Mas muitos outros, e estes também. A intenção, aqui, portanto, foi de arrancar-lhes, à

força, o fardo do discurso, do fotojornalismo, de seu estigma (que não é incorreto, porém) da

superficialidade. Pois elas são, antes de tudo, imagens. São, antes de tudo, imagens

fotográficas. Da falta de ambiguidade que – aparentemente – as cerca, tentou-se enxergar suas

contorções, suas distorções e suas metamorfoses.

W.J.T. Mitchell inseriu, dentro do que entende-se hoje como cultura visual, uma

crença nas imagens que neutraliza qualquer tendência iconoclasta contemporânea. Tal missão

parece ser urgente em um mundo que respira um oxigênio visual. O ceticismo a respeito disso

que entendemos como imagem, portanto, talvez configure uma fuga, um movimento covarde

e medroso que busca, ainda, uma espécie de “novo começo”, uma nova origem – pois a

história da humanidade (ou, quem sabe, do cosmos) é também a história das imagens – para

uma sociedade que pretende possuir controle sobre tudo, até mesmo sobre suas imagens.

Porém, imagens não podem ser controladas. Como Horst Bredekamp declarou, “o mundo não

pode ser entendido de forma adequada, se a questão das imagens não for clarificada” (2015, p.

9). Mas o que é clarificar essa questão? Aqui, entendemos esse movimento como um gesto de

“escovar a contrapelo” (BENJAMIN, 1987), jogando feixes de luz em suas entranhas.

Uma vez que “atitudes mágicas em relação às imagens são tão poderosas no mundo

moderno quanto nas chamadas ‘eras da fé’” (MITCHELL, 2005, p. 8) – e elas, talvez, sejam

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atualmente ainda mais mágicas do que antes, como Mitchell sugere em seguida – de que

forma nos sentimos feridos ou protegidos por ícones fotográficos que circulam no espaço

público? David Freedberg enunciou o problema nas primeiras linhas de The Power of Images:

Studies in the History and Theory of Response (1989):

As pessoas são sexualmente estimuladas por fotos e esculturas; elas quebram quadros e esculturas; elas os mutilam, choram diante deles e viajam por eles; são acalmadas por eles, agitadas por eles e incitadas à revolta. Elas agradecem por meio deles, esperam ser elevadas por eles, e são movidas para os mais altos níveis de empatia ou medo. Elas sempre responderam dessa maneira; elas ainda fazem (1989, p. 1)

Roland Barthes procurava aquilo que feria, como algo pontudo, em uma fotografia:

seu punctum; Aby Warburg buscava quase patologicamente uma energia que encontrava lugar

em diversas imagens: as fórmulas do páthos; Hans Belting estava atrás das trocas encarnadas

entre corpo e meio; Walter Benjamin enxergou as similitudes que o advento da fotografia

restabeleceu. Citando alguns dos autores centrais para a construção desta pesquisa, todos

investiram nas imagens com o objetivo de extrair-lhes um “algo a mais”. Ao longo deste

texto, buscou-se, através de abordagens teóricas diversas, fazer surgir destes foto-ícones suas

ranhuras, seus fantasmas, suas possessões e seus duplos.

A reflexão aqui feita a partir da vida das imagens tem como porta de entrada a teoria

formulada por Mitchell pois ela provoca, precisamente, um ponto – talvez cego, talvez

propositalmente vendado – desta pesquisa, que somente encontra conforto ao final. Se, hoje,

vivemos em um mundo visualmente saturado como nunca antes esteve, por que a escolha por

fotografias das décadas de 1960 e 1970?

A resposta trilha alguns caminhos. Um deles é indicado pelo título de um artigo de

Ana Maria Mauad: a questão não é quando, mas como nascem as imagens (MAUAD, 2014).

Pois temporalmente, elas continuarão nascendo constantemente. As quatro fotografias que

compõem o objeto desta pesquisa nascem, ressuscitam, emergem, a cada gesto, a cada sopro

revolucionário (em sentido estrito ou não, pois as revoluções podem possuir várias naturezas)

expirado pelos pulmões cujo tecido são elas. Como imaginários, são ativadas em sua morte

temporária para transmutarem-se em ação.

Outro caminho foi determinado por uma questão histórica que aponta para duas

perguntas. Como já foi comentado, existe uma concentração de foto-ícones no período da

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Guerra Fria – o que é muito curioso, uma vez que a proliferação das revistas ilustradas se deu

anos antes, nas décadas de 1930 e 1940. A partir da década de 1960, aliás, estas revistas

começaram a sair de circulação, devido à popularidade da televisão. A partir disso, pode-se

indagar: por que o período da Guerra Fria foi tão prolífico para o surgimento de foto-ícones?

E por que não encontramos com facilidade foto-ícones contemporâneos? Da segunda

pergunta, é possível deduzir que o número de foto-ícones não é proporcional ao número de

fotografias feitas no mundo. E os motivos para isso permanecem em suspenso, pois não se

enquadravam no recorte pretendido neste estudo – mas ficam à espera de exploração, bem

como uma análise daqueles foto-ícones que ainda emergem.

A primeira pergunta foi brevemente investigada ao longo do texto, mas carece, ainda,

de atenção. Pensar nas configurações nas quais um objeto é privilegiado como linguagem

extrapola o horizonte de uma compreensão meramente histórica. Reafirmar, porém, que as

condições de possibilidade para a existência de um evento qualquer nos dizem a respeito da

sociedade, dos sujeitos, e das relações de poder que o cercam seria, nesse momento das

ciências humanas, quase redundante – Foucault já é um cânone há algumas décadas. Mas,

nem por isso, menos urgente; principalmente quando estes elementos ainda encontram-se

ativos. Reinhart Koselleck conclui sua obra Futuro Passado (1979) afirmando que “a História

só poderá reconhecer o que está em contínua mudança e o que é novo se souber qual é a fonte

onde as estruturas duradouras se ocultam” (2015, p. 327). Desvelar, desnudar essas fontes não

é tarefa simples, e a contribuição desta pesquisa, nesse sentido, é absolutamente modesta: do

ponto de vista que nos cabe – dos estudos sobre imagens – sugerir nódulos visuais que

permitam olhares extensivos sobre o oculto.

Uma das sugestões de resposta para a pergunta em relação à Guerra Fria já foi exposta

em um dos capítulos desta dissertação: a ideia de que o presentimo – assim nomeado por

François Hartog – nestas décadas, observado por diversos historiadores, encontra

incorporação visual nestas fotografias imediatas e condensadoras de acontecimentos. Ainda,

no imediatismo destas imagens, talvez possa-se desenhar os limites ideológicos

demasiadamente duros daquele momento.

Koselleck lembra que “o tempo, como se sabe, de qualquer modo não pode ser

expresso a não ser em metáforas espaciais” (2015, p. 310). Poderiam estes foto-ícones

assumirem-se como tropo do próprio congelamento do conflito? Dessa forma, essas estases

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visuais corporificariam e encenariam as estases políticas da Guerra Fria. Seriam imagens,

afinal, que lutam por manter-se na superfície – sem sucesso, contudo. Pois denunciam,

sintomaticamente, o emaranhado de conflitos abjetos que sangram abaixo delas – como os

processos contra-hegemônicos nas periferias do planeta, apresentam, em seu devir, potenciais

invariavelmente libertários.

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RIO, João do. A alma encantadora das ruas. Rio de Janeiro: Coleção Biblioteca Carioca, 1995

Filmografia

Kapò (Gillo Pontecorvo, 1960)