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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA GEOMETRIA E CIÊNCIA, UMA CORRELAÇÃO RELEVANTE: ESTUDO ACERCA DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE AS MUDANÇAS NO STATUS DA GEOMETRIA E AS INFLEXÕES NA CIÊNCIA Gadafy de Matos Zeidam Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, sob orientação do Prof. Dr. Gérson Albuquerque de Araújo Neto, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. TERESINA-PI, JULHO/2012.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

GEOMETRIA E CIÊNCIA, UMA CORRELAÇÃO RELEVANTE: ESTU DO ACERCA DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE AS MUDANÇAS NO STATUS DA

GEOMETRIA E AS INFLEXÕES NA CIÊNCIA

Gadafy de Matos Zeidam

Dissertação apresentada ao Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, sob orientação do Prof. Dr. Gérson Albuquerque de Araújo Neto, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia.

TERESINA-PI, JULHO/2012.

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS MESTRADO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

GEOMETRIA E CIÊNCIA, UMA CORRELAÇÃO RELEVANTE: ESTU DO ACERCA DA CORRESPONDÊNCIA ENTRE AS MUDANÇAS NO STATUS DA

GEOMETRIA E AS INFLEXÕES NA CIÊNCIA

Gadafy de Matos Zeidam

TERESINA-PI, JULHO/2012.

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Gérson Albuquerque de Araújo Neto, pela valiosa orientação e palavra amiga.

Aos Professores da Banca Examinadora, pela qualificação e

oportunidade para aprimorar o trabalho.

Aos familiares mais próximos, pela compreensão diante da ausência e incentivo diante do cansaço.

Aos colegas da Receita Federal do Brasil, pela licença concedida

para a escrita da dissertação.

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RESUMO

O presente trabalho tem o objetivo de indicar a relevância da correlação entre geometria e ciência. O cumprimento deste objetivo requer que se destaque não apenas o protagonismo da geometria especulativa de Tales na gênese de uma episteme especial, caracterizada por leis gerais, preditivas e verdadeiras, a qual ocorreu entre os gregos, mas, principalmente, destacando-se que as mudanças no status dos axiomas geométricos correspondem a inflexões na ciência. Portanto, após dividir a ciência em três grandes concepções teóricas, pode-se estabelecer a correspondência entre cada concepção da ciência (antiga → moderna → contemporânea) e sua geometria peculiar (dedutiva → descritiva → convencional). A relevância não pode ser desprezada, posto que as duas inflexões na ciência apresentam uma similitude assombrosa, marcada por três etapas distintas: o Esforço Geométrico, a Inflexão e a Virada Física.

Palavras-Chave: Ciência. Geometria. Inflexão.

ABSTRACT

This paper intends to indicate the relevancy of the interconnection between Geometry and Science. The fulfillment of this purpose demands not only branching the Thales speculative geometry’s main role in the genesis of a special episteme, characterized by general, predictive and true laws, which happened among Greek, but mostly branching the correspondence between changes of geometric axioms status and science inflections. Therefore, after divide science into three great theoretical conceptions, we can set the correspondence between each science conception (old → modern → contemporary) and its peculiar geometry (deductive → descriptive → conventional). The relevancy can’t be neglected, since the two science inflections are amazing similar and composed of three distinct steps: Geometrical Effort, Inflection and Physical Turn.

Keywords: Science. Geometry. Inflection.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO......................................................................................................................1

2. A GEOMETRIA EUCLIDEANA E A PRIMEIRA INFLEXÃO........................................17

2.1. A HERANÇA DOS ANTIGOS.........................................................................................20

2.2. SALVAR OS FENÔMENOS............................................................................................37

2.3. A PRIMEIRA INFLEXÃO................................................................................................49

3. AS GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDEANAS E A SEGUNDA INFLEXÃO.......................70

3.1. O QUINTO POSTULADO................................................................................................74

3.2. O CONVENCIONALISMO GEOMÉTRICO...................................................................86

3.3. A SEGUNDA INFLEXÃO..............................................................................................109

4. CONCLUSÃO....................................................................................................................126

5. REFERÊNCIAS..................................................................................................................136

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1. Pirâmide Seccionada do Papiro de Moscou. Página 2.

Figura 2. Pirâmide Seccionada Geral. Página 2.

Figura 3. Representação Geométrica do Cosmos de Anaximandro. Página 22.

Figura 4. Papiro de Ahmes. Página 24.

Figura 5. Cosmos Geocêntrico Esférico. Página 35.

Figura 6. Laçada do Planeta Marte. Página 40.

Figura 7. Epiciclo, Deferente e Equante – Sistema Geocêntrico Excêntrico. Página 44.

Figura 8. Sistema Heliocêntrico de Copérnico. Página 46.

Figura 9. Versão Original de Euclides (esq) e a Equivalente de Playfair (dir) para o Quinto Postulado. Página 52.

Figura 10. Incompatibilidade entre o Postulado das Paralelas e o Mundo Esférico Finito. Página 53.

Figura 11. Paralaxe Estelar e Translação Terrestre. Página 55.

Figura 12. O Cosmos Infinito de Digges. Página 56.

Figura 13. A Primeira Inflexão. Página 57.

Figura 14. Os Sólidos Platônicos (Tetraedro, Cubo, Octaedro, Dodecaedro e Icosaedro). Página 63.

Figura 15. O Postulado das Paralelas. Página 74.

Figura 16. Proposição I.29 dos Elementos. Página 75.

Figura 17. Estampas de Bruno na Obra 160 Artigos Contra Matemáticos e Filósofos Contemporâneos. Página 82.

Figura 18. Quadrilátero de Saccheri. Página 85.

Figura 19. O Espaço Geométrico Elíptico (esq) e Hiperbólico (dir). Página 85.

Figura 20. O Experimento Mental de um Mundo Não-Euclideano. Página 89.

Figura 21. Vinci x Escher: o Clássico e o Exótico sob Convencionalismo. Página 92.

Figura 22. Coordenadas Polares x Coordenadas Cartesianas. Página 93.

Figura 23. Objetos Topológicos Homeomórficos na Geometria Analysis Situs. Página 96.

Figura 24. Representação do Campo Elétrico como Linhas de Força. Página 102.

Figura 25. A ‘Ciência Total’ como um Campo de Forças. Página 102.

Figura 26. A Segunda Inflexão. Página 109.

Figura 27. A Marcha Contínua da Ciência. Página 117.

Figura 28. Sistemas de Coordenadas Inerciais. Página 119.

Figura 29. A Imagem da Ciência de Duhem-Poincaré e as Duas Inflexões. Página 125.

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1 INTRODUÇÃO

A aventura humana no planeta caracterizou-se, desde o início, por uma intensa

investigação da realidade natural. Kneller (1978) cita o medo e o assombro como as emoções

primordiais para a busca de uma representação racional da realidade natural pelos cientistas:

os desastres provocam o medo, que é aliviado pelo reconhecimento de uma ordem, que

promove o assombro.

A busca de tal representação, com linguagem, método e comunidade próprios, também

não significou que a humanidade tivesse abandonado outras formas de representação da

realidade natural. Estas também contam com linguagens, métodos e comunidades peculiares.

Linguagem ordinária, tentativa e erro, e leigos parecem ser a linguagem, o método e a

comunidade próprios do senso comum. O que caracterizaria, então, a ciência?

Diante de outras formas de representação da realidade natural (a arte, a religião, o

mito, o senso comum, a adivinhação etc.), é forçoso reconhecer dois atributos essenciais

presentes no conhecimento científico: a pretensão de coerência integral e o caráter mediato de

suas leis.

Portanto, ao expressar uma formulação de sua representação da realidade natural, o

cientista quer dizer essencialmente duas coisas. Primeiro, que essa fórmula decorre de uma

regularidade de extensão e de sucessão fundamentadas: é uma fórmula geral e preditiva que

pode ser aplicada de forma mediata. Segundo, que essa fórmula está inserida em um contexto

que se pretende integralmente coerente, mesmo que tal pretensão implique em um sacrifício

expiatório.

O caráter preditivo da fórmula científica pode ser bem ilustrado pelo trecho final do

Papiro de Moscou (c. 1850 a.C.), um legado dos matemáticos egípcios para o cálculo do

volume da pirâmide quadrada seccionada, expresso por ‘você vai encontrá-lo correto’:

Se lhe é dito: uma pirâmide seccionada de altura 6, bases 4 e 2. Eleve ao quadrado este 4, resulta 16. Dobre o 4, resulta 8. Eleve ao quadrado o 2, resulta 4. Adicione o 16, o 8 e o 4, resulta 28. Pegue a terça parte de 6, resulta 2. Pegue o 28 duas vezes, resulta 56. Veja, é 56. Você vai encontra-lo correto1. (DUNHAM, 1990, p.3, tradução nossa).

1 “If you are told: A truncated pyramid of 6 for the vertical height by 4 on the base by 2 on the top. You are to square this 4, result 16. You are to double 4, result 8. You are to square 2, result 4. You are to add the 16, the 8, and the 4, result 28. You are to take a third of 6, result 2. You are to take 28 twice, result 56. See, it is 56. You will find it right.”

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Figura 1. Pirâmide Seccionada do Papiro de Moscou

A fórmula científica, além do caráter preditivo, destacado no final do ‘Papiro de

Moscou’, apresenta um caráter generalizante, que dá simplicidade e concisão ao cálculo do

volume da pirâmide seccionada: V = ⅓h . (a2 + a.b + b2).

Figura 2. Pirâmide Seccionada Geral

Não obstante a linguagem caricata, uma interessante formulação geral e preditiva pode

ser destacada da leitura de Aristófanes, na comédia ‘As Nuvens’, quando Sócrates

fundamenta suas razões ao afirmar que a chuva provém das nuvens e não de Zeus: “E vou dar

provas disto. Você já viu algum dia cair chuva sem haver nuvens no céu?” (ARISTÓFANES,

2000, p. 37), diz o cientista.

Nota-se, portanto, um claro apelo de generalização e predição que acompanha as

fórmulas científicas. Resta aos cientistas, dos antigos aos contemporâneos, fundamentar a

regularidade de extensão (generalização) e de sucessão (previsão) e transmutar suas fórmulas

em leis, que passam a descrever, então, a harmonia da natureza com uma pretensão de

coerência integral.

Claro que, além de leis gerais e preditivas, existem outras formas de representação da

realidade natural. Algumas têm até aplicação geral e uso mediato, mas, sem fundamentação,

não passam de fórmulas a leis, e carecem assim da pretensão de um contexto de coerência

integral. Pode-se exemplificar com o senso comum do pescador. Ele sabe que o barco é

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estabilizado na correnteza quando remado da popa, e não da proa, mas não fundamenta tal

fórmula, apenas reconhece uma regularidade de coexistência e sucessão, uma fórmula geral e

preditiva, mas não uma lei. Esta fórmula não tem pretensão de um contexto de coerência

integral e convive com a crença de que o barco pode ser virado, em noites de lua cheia, pelo

Cabeça-de-Cuia2.

Outras formas de representação da realidade natural, como a adivinhação, têm

aplicação apenas singular e imediata, como a constante no livro de Jonas, o profeta fujão, que

chamado a anunciar em Nínive, resolve fugir, embarcando para Társis. Sucede uma grande

tempestade que apavora a todos, pois o navio está a ponto de naufragar:

E eles diziam uns aos outros: ‘Vinde, lancemos sortes para saber por causa de quem nos acontece esta desgraça’. Eles lançaram as sortes e a sorte caiu sobre Jonas. E lhe disseram então: ‘Conta-nos qual é a tua atividade e de onde vens, qual é a tua terra e a que povo pertences’. Ele lhes disse: ‘Sou hebreu e temo a Javé, o Deus do céu, que fez o mar e a terra’. (Jn 1, 7-9).

Assim, recorrendo à adivinhação para a investigação de um fenômeno natural, o

homem realiza uma tentativa de representar a realidade natural, não através de fórmulas do

senso comum ou leis científicas, ambas generalizantes e preditivas, diferenciadas pela

pretensão de coerência integral destas últimas, mas de forma imediata e ocasional, resultando

dessa imagem a decisão de lançar Jonas ao mar.

Há uma diferença substancial entre o caráter mediato do conhecimento científico e o

caráter imediato de outras formas de representação da realidade natural. Enquanto aquele irá

revelar as falhas das teorias científicas, que são testadas em várias situações, este poderá

sempre recorrer a mecanismos do tipo deus ex machina3 para livrar-se de situações

embaraçosas. De fato, se construímos um conhecimento de forma imediata, as várias

situações de teste de suas formulações propiciam ocasiões diversas para legitimações ad hoc.

A ‘impureza’ do lançador poderia justificar, por exemplo, o não abrandamento da

tempestade após o lançamento do sorteado Jonas ao mar. Realizado novo sorteio, por um

lançador ‘puro’, o não abrandamento da tempestade poderia ser justificado, agora, pela

injustiça praticada contra o primeiro sorteado, que foi sacrificado de forma injusta, numa

sequência infinita de legitimações salvadoras e econômicas. 2 Lenda piauiense. Trata da estória de um pescador, de nome Crispim, que ao retornar para casa após uma pescaria mal-sucedida, agride e mata sua mãe com um osso de boi, que lhe fora preparado por ela como forma alternativa de jantar. Antes de morrer, a mãe imputa-lhe a maldição de transformar-se em um monstro de cabeça disforme, condenado a viver nas águas do rio Parnaíba. 3 Para Karl Reinhardt (1997), são duas as características essenciais do deus ex machina: o desfecho salvador e o não desatar de nenhum nó que não precise ser desatado, seja pela atuação de um deus personificado no palco, seja por um ato ordenado pelo deus.

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O conhecimento imediato funda-se, portanto, ou num acaso favorável ou numa

sequência infinita de explicações nascidas da ocasião, legitimadoras de toda e qualquer

ocorrência de eventos singulares. No primeiro caso, poder-se-ia pensar que o assombro do

acaso e não o da regularidade poderia ter impulsionado a humanidade rumo à magia e não à

ciência de leis gerais e preditivas.

Poincaré (1995, p.8) adverte, porém, que “a maravilha eterna é o fato de não haver

milagres a todo instante”, e o milagre do acaso cede à força da regularidade. Ao contrário do

capricho, existe uma harmonia do mundo, que pode ser descrita de forma fundamentada

através de leis coerentes. O cientista, então, abandona o assombro fugaz do acaso e seus

mecanismos de correção do tipo deus ex machina, e busca descrever a harmonia da natureza

num contexto de coerência integral, através de leis gerais e preditivas, motivado pelo

assombro da regularidade.

Alan Chalmers (1994) destaca que, se tomarmos exemplos incontestáveis do

conhecimento científico, como a geometria euclideana ou a mecânica newtoniana, não é

difícil avaliar a generalidade das afirmações ali contidas. O autor prossegue afirmando que tal

conhecimento difere daquele de uso imediato, ou artesanal, que os chineses, por exemplo,

praticavam com a bomba da espinha dorsal do dragão, um sistema de irrigação tradicional que

variava de uma circunstância para outra, presumivelmente como resultado da experiência

prática dos que a utilizavam:

No século XVIII, em sua Arquitetura hidráulica, De Belidor submeteu essa bomba a uma análise geométrica e mecânica e apresentou uma explicação geral de seu funcionamento. Com auxílio da análise de De Belidor, é possível especificar-se a forma ideal do palete para uma determinada circunstância. Enquanto os chineses tradicionais possuíam o conhecimento artesanal baseado na experiência prática, o tratamento de De Belidor constituía um conhecimento científico. (CHALMERS, 1994, p.42).

Descrevendo a regularidade da natureza através de fórmulas gerais e preditivas

fundamentadas, os cientistas expressam, através de leis, a harmonia da natureza. Estas leis,

que não têm os atributos do desfecho salvador e do desatar de nós, têm a pretensão de um

contexto de coerência integral não pelo deus ex machina, mas através do sacrifício.

De acordo com o tipo de sacrifício que mantém o contexto de coerência integral, as

leis científicas podem ser identificadas em três classes: leis sacras ou contexto antigo, leis

universais ou contexto moderno, e leis imperfeitas ou contexto contemporâneo. Mais

importante do que reconhecer as classes conforme a disposição para o sacrifício, o objetivo

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deste trabalho é identificar a correlação bastante interessante que existe entre o contexto de

leis científicas (sacro, universal, imperfeito) e a concepção de geometria correspondente.

Ao percorrer a história da ciência, desde o seu nascedouro entre os físicos milésios,

passando pelos modernos e chegando à ciência contemporânea, pode-se não apenas constatar

a íntima relação entre geometria e ciência4, mas estabelecer uma correlação filosófica

relevante entre a geometria dedutiva e o contexto antigo de leis sacras, entre a geometria

descritiva e o contexto moderno de leis universais, e entre a geometria convencional e o

contexto contemporâneo de leis imperfeitas.

A pretensão de coerência integral é traço característico da ciência. A comunidade de

cientistas antigos, em um contexto de leis sacras, praticou o sacrifício expiatório do novo, seja

pela ruptura, seja pela cessação. No contexto de leis universais, a comunidade de cientistas

modernos, por sua vez, pratica o sacrifício expiatório do antigo, taxando de pré-científicas as

teorias anteriores. Já a comunidade de cientistas contemporâneos dispõe-se ao sacrifício

expiatório da própria certeza, inaugurando o contexto de leis imperfeitas:

Na física, o século XIX estava prestes a terminar de maneira triunfal: Lorde Kelvin lamentava que os físicos dos anos vindouros nada teriam a fazer, exceto fechar um programa de pesquisas já quase terminado. Para ele, restavam apenas algumas sombras, e elas estavam justamente na teoria da luz. Foi então que várias descobertas de peso vieram alterar a face das coisas: no dia 14 de dezembro [de 1900], em Berlim, Max Planck leu na Physikalische Gesellschaft um trabalho que hoje pode ser considerado a certidão de nascimento da mecânica quântica; e, pouco depois, em um pequeno artigo de três páginas, Einstein introduzia uma nova concepção do espaço e do tempo. A física das partículas e a física celeste viam-se renovadas quase simultaneamente. Sem simplificar, pode-se associar quatro nomes a essa mutação na ciência: os de Mach, Boltzmann, Planck e Einstein. Os dois primeiros pertenciam ao século XIX; os outros dois, ao século XX. No que diz respeito a Poincaré, foi ele quem lançou os fundamentos, em Méthodes nouvelles de la mécanique celeste, da teoria determinista do caos, recentemente desenvolvida. (SAINT-SERNIN, 1998, p.48 e 49).

Nesse sentido, a vanguarda dos escritos de Poincaré5, no início do século XX, é

marcante, já que o filósofo propõe uma nova descrição do caráter preditivo da ciência:

Assim, graças à generalização, cada fato observado nos faz prever um grande número de outros; mas não devemos nos esquecer de que só o primeiro é seguro, de que todos os outros são prováveis. Por mais sólida que nos possa parecer uma previsão, não estamos nunca, absolutamente seguros

4 Segundo Saint-Sernin (1998, p.50 e 51), “Pierre Duhem, na obra A Teoria Física, de 1906, aclama a intuição geométrica como o plus necessário às leis empíricas de forma a transformar uma mera coleção artificial em um sistema simples, ordenado, lógico e não fragmentado”. 5 ‘A Ciência e a Hipótese’, o primeiro livro de filosofia da ciência de Henri Poincaré, é de 1902. Seguem ‘O Valor da Ciência’, de 1905, ‘Ciência e Método’, de 1908, e, postumamente, ‘Pensamentos Finais’, de 1911.

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de que, se nos propusermos a verificá-la, a experiência não a venha desmentir. Mas, frequentemente, a probabilidade de acerto é bastante grande para que possamos nos sentir satisfeitos. Mais vale prever sem certeza do que absolutamente não prever. (POINCARÉ, 1985, p.117).

Ou seja, para Poincaré, talvez se tenha que modificar o caráter preditivo da lei

científica, contido no final do Papiro de Moscou, de ‘you will find it right’ para ‘you will find

it probably right’. É uma revolução no modo de pensar ciência, que passa de previsões certas,

descritas pela universalidade de leis necessárias, a previsões prováveis, descritas por leis

imperfeitas e provisórias. De Newton a Poincaré, contudo, não há perda do horizonte da

generalidade, da predição e, especialmente, do contexto de coerência integral, que acompanha

a ciência, de suas leis sacras até suas leis imperfeitas.

Para Poincaré, portanto, a incerteza passa a integrar, sem desnaturar, a tecedura do

relevo de generalidade e previsibilidade da ciência. Bondi (1997) ressalta que as falhas

reveladas das teorias científicas contêm dois aspectos importantes. O primeiro é que a

falibilidade da ciência não significa a sua invalidade:

Se uma teoria tem sido testada em várias situações, então sabemos que existe um universo de conhecimento – conhecimento empírico – adequadamente descrito pela teoria. É verdade que o aumento na precisão das medidas ou a aplicação da teoria em outra área, diferente daquela em foi estabelecida, deverá realçar suas falhas. Mas isto não significa que a teoria seja totalmente inválida e que não possa ser utilizada dentro do contexto no qual foi estabelecida. (BONDI, 1997, p.6).

E o segundo aspecto diz respeito ao próprio progresso da ciência, que tem relação com

o progresso da tecnologia, a partir do acesso a fatos antes inacessíveis:

Falei anteriormente da refutação como o agente essencial do progresso científico, mas por que podemos refutar hoje o que não podíamos no passado? A resposta é que hoje podemos realizar experimentos muito mais precisos, relacionando fatos que eram inacessíveis no passado. Isto é possível graças ao progresso tecnológico. Assim, o progresso da tecnologia é uma condição absolutamente essencial para o progresso da ciência. (BONDI, 1997, p.7).

Mas, se é normal falar de falibilidade em ciência após Poincaré, é preciso destacar que

a concepção anterior revela a infalibilidade como atributo do conhecimento científico, seja em

bases dogmático-qualitativas, como na ciência antiga, seja em bases experimental-

matemáticas, já na ciência moderna.

Na ciência antiga, com base em dogmas de autoridade, novos postulados eram

rejeitados como não científicos (Hípaso6 e Giordano Bruno chegaram a ser martirizados). Na

6 Conta-se que Hípaso demonstrou a incomensurabilidade entre o lado de um quadrado e sua diagonal (o número irracional), e foi lançado em alto mar por seus pares.

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ciência moderna, com base em dados experimentais matematicamente equacionados, a ciência

rejeita suas antigas leis:

A nova posição do pensamento que corresponde a uma libertação da razão da sua atitude dogmática e dos limites e contaminações que esta lhe impõe, alcançou pois em Galileu a sua nítida formulação metódica, e não só isso, mas realizou-se concretamente na construção de uma ciência que permanecerá como fundamento e modelo de todo o saber científico. (BANFI, 1992, p.41).

Nota-se, portanto, a partir da ‘Revolução Científica’7, uma primeira grande inflexão

no modo de conceber a ciência. Antes, a ciência buscava preservar a sua coerência integral

através de um sistema fechado, rejeitando o novo como algo transgressor. Depois dela, a

ciência busca purificar o seu sistema aberto, rejeitando o antigo, que se torna não-científico.

Em comum aos contextos antigo e moderno de ciência, o fato de que ambas as rejeições se

firmam numa concepção de verdade enquanto certeza por correspondência.

Seja a antiga certeza dogmático-qualitativa, cuja transgressão revela-se profana ao

atingir leis que decifram o ‘porquê’ da realidade natural, seja a nova certeza experimental-

matemática, que rejeita o que até então foi dito, até que se alcance uma leitura matemática

universal e necessária dos dados experimentais, ou, em outras palavras, leis empíricas de

formato matemático, que decifram o ‘como’ da realidade natural.

Nesta primeira inflexão, tem-se a substituição de um contexto de leis sacras, que não

podem ser profanadas, tal qual o dizer de Hefesto, (Prometeu Acorrentado, v.45 e 46):

“quiseste transgredir um direito sagrado dando aos mortais as prerrogativas divinas”

(ÉSQUILO, 2004, p.16), por um contexto de leis necessárias, que predizem com certeza, tal

qual o vaticínio de Prometeu, (Prometeu Acorrentado, v.133 e 134): “não sei antecipadamente

todo o futuro?” (ÉSQUILO, 2004, p.20).

É preciso, contudo, ir além e reconhecer uma segunda inflexão no modo de conceber a

ciência, quando ela deixa de predizer com certeza, como que advertida por Io, (Prometeu

Acorrentado, v.1012 e 1013): “não deves acenar com doces esperanças para logo depois

mudar e desdizê-las” (ÉSQUILO, 2004, p.50).

A cada contexto de leis científicas – sacro, antigo ou hefestiano; universal, moderno

ou prometeico; imperfeito, contemporâneo ou ioético – corresponde um status para os

axiomas geométricos: dedutivo, descritivo ou convencional. O presente trabalho não tem a

7 A expressão é de Alexandre Koyré, e compreende o período entre 1543 (De revolutionibus, de Nicolau Copérnico) a 1687 (Principia, de Newton), quando ocorreu a separação entre física e metafísica.

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pretensão de tratar esta correlação como prova de conexão causal direta, incorrendo no

raciocínio post hoc ergo propter hoc8, mas reconhecer que existe uma correlação relevante

entre geometria e ciência.

Uma relação de nascedouro, por assim dizer. Quando os homens elevaram a vista para

o céu estrelado, e reconheceram, na orbe celeste, a regularidade do movimento de alguns

astros, chamados ‘errantes’ (ou planetas), ousaram transformar este assombro em uma nova

forma de representar a realidade natural, desafiando o medo dos desastres naturais. A

geometria foi a ferramenta para a descrição da regularidade da orbe celeste, e a ciência, a

nova leitura dos fenômenos da orbe terrestre:

Por nossa parte, falemos assim da vista como causa desse benefício; a divindade inventou a visão e no-la concedeu para que, contemplando as revoluções da inteligência no céu, as utilizemos para as revoluções de nosso próprio pensamento que lhes são aparentadas, conquanto as nossas sejam desordenadas, e aquelas, imperturbáveis, e também para que depois de compreendermos tais movimentos e de alcançarmos a certeza natural do raciocínio, possamos reproduzir as revoluções absolutamente invariáveis da divindade e impor ordem nos movimentos aberrantes de nosso íntimo. (Timeu, 47b-c).

De Hefesto a Io, passando por Prometeu, há um Leitmotiv no percurso da ciência: as

leis sacras, necessárias ou imperfeitas tentam desvendar o mistério da natureza e estabelecer

uma relação adequada entre o dito e o observado, formulando uma teoria do dado observável.

Segundo o pré-socrático Heráclito, fragmento 123 de Diels, “a natureza ama esconder-se9”

(BORNHEIM, 2001, p.43). É preciso reconhecer, também, que os homens ficam fascinados

pela harmonia, e através da ciência, buscam a desvelar a harmonia do cosmos através de leis

gerais, preditivas e verdadeiras:

Sorrisos, apertos de mão, refeições, moda, jardins, quadros, presentes, distintivos, silêncios, bandeiras, paradas, carnavais, velórios, casamentos – objetos da imaginação dos quais não se pode perguntar: são verdade? Porque se trata de objetos-testemunhos de lealdades, amores, pelos quais oferecemos alianças e solicitamos solidariedade. Aqui a verdade não circula... Mas não é isso que o cientista deseja. Deseja construir um discurso que fale não sobre si, mas sobre o mundo, discurso que só tem sentido em virtude de sua possibilidade de ser a verdade. (ALVES, 2010, p.178).

São leis que tentam, enfim, decifrar a regularidade dos fenômenos. O cientista, antigo,

moderno ou contemporâneo, busca, em sua atividade, construir, adequadamente, a imagem da

realidade referida por Bacon (1973, p.85): “tudo o que é digno de existir é digno de ciência,

8 Do latim: ‘depois disto, logo, por causa disto’. 9 Na advertência sobre a obra, Bornheim esclarece que a numeração é a mesma adotada por Diels (Die Fragmente der Vorsokratiker, Hermann Diels e Walther Kranz, 8a edição, 3 vols., Berlim, 1956).

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que é a imagem da realidade” (Novum Organum, Livro I, Aforismo CXX). Vale perguntar-se

se tal busca teria iniciado sem esta íntima relação entre realidade e regularidade:

Henri Poincaré perguntava se a ciência teria nascido, se o homem não houvesse podido contemplar no céu o desenrolar tranquilo e ordenado da marcha dos astros. Nuvens eternas, como as que encobrem o firmamento de Vênus, não teriam obscurecido o espírito e o coração? (OMNÈS, 1996, p.45).

A meu parecer, a vista é para nós causa do maior benefício imaginável, porque nenhuma palavra da presente dissertação acerca do universo jamais poderia ter sido enunciada, se nunca tivéssemos contemplado os astros nem o sol nem o céu. Realmente, foi a vista do dia e da noite, dos meses e das revoluções dos anos, dos equinócios e dos solstícios que nos levou a descobrir o número, deu-nos a noção do tempo e os meios de estudar a natureza do todo. (Timeu, 47a-b).

Mas, ‘que é a verdade?10’. Uma solução cômoda para a questão é desviar-se dela.

Assim fez Pôncio Pilatos, que saiu sem esperar uma resposta. O cientista, ao contrário, não se

desvia da questão, mas vai ao encontro dela na busca de regularidades para desvendar os

mistérios da realidade natural. O seu empenho é “explicar os fenômenos, preservá-los, isto é,

revelar a realidade subjacente, revelar sob a aparente desordem do dado imediato, uma

unidade real, ordenada e inteligível” (KOYRÉ, 1982, p.82).

O cientista pode até, no contexto da descoberta, elaborar teorias de forma não

metodológica, pois de fato não existe um método para a elaboração de uma teoria científica.

Galileu defendeu a ideia, em seu tempo muito difícil de ser empiricamente confirmada, de que

objetos de massas diferentes caem à mesma velocidade, ou seja, contrariamente a Aristóteles,

que a velocidade de queda independe da massa.

Galileu admitiu que a forma ou a densidade afetavam a velocidade da queda no ar. Quando mais velho, afirmou que um floco de lã e um pedaço de chumbo cairiam juntos no vácuo. Com bombas de vácuo, inventadas por volta de 1650, cientistas comprovaram a afirmação de Galileu. Em 2 de agosto de 1971, o astronauta da Apollo 15 David R. Scott fez esse experimento na Lua, transmitido ao vivo pela televisão. Os telespectadores na Terra viram uma pena e um martelo caírem lado a lado na superfície sem ar da Lua. O coronel Scott comentou: ‘Isto prova que o senhor Galileu estava certo’11. (MACLACHLAN, 2008, p.25).

Mas, uma vez que o discurso científico tenha sido elaborado, o contexto da

justificação impõe o abandono de todo apelo ou interesse religioso, estético, ético, utilitário,

imaginativo ou material que o cientista possa ter utilizado na formulação de seu discurso, pois

ele deve ser metodicamente testado. “Em oposição ao contexto da descoberta, local não

10 A pergunta foi tomada emprestada de Pôncio Pilatos (Jo 18, 38). 11 O vídeo está disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=KDp1tiUsZw8>, sob o título Hammer vs Feather – Physics on the Moon: Galileo and Apollo 15.

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metodológico do nascimento das teorias, define-se aqui o contexto da justificação: os

métodos pelos quais testamos um discurso a fim de ver se ele, eventualmente, nos dá

conhecimento da realidade” (ALVES, 2010, p.178).

Ou seja, enquanto o poeta não tem obrigação de submeter o seu discurso a testes de

verificação, de forma a decidir-se sobre a possibilidade de tomá-lo como verdadeiro, o

cientista, ao elaborar suas leis gerais e preditivas, deve, no contexto de justificação, submetê-

las a tais testes. Um interessante conto de Oscar Wilde pode ser tomado como a imagem de

um discurso construído com forte apelo estético. Nada impede que tal discurso possa ter sido

formulado por um cientista que, no contexto de descoberta, pode traduzir a realidade de forma

tão fantasiosa quanto um poeta. A diferença entre o cientista e o poeta reside, pois, não

exatamente na gênese dos discursos, mas na sua justificação, já que a poesia, ao contrário da

ciência, cessa quando participa do jogo da verdade12. Para Copérnico, está claro que o

cientista não pode deixar de empenhar-se em inquirir a verdade:

E, conquanto saiba estarem distantes do juízo do vulgo <remotas à iudicio vulgi> os pensamentos de um homem de filosofia <hominis philosophi cogitationes> — pois que o empenho <studium> deste é inquirir a verdade <veritatem...inquirere> em todas as coisas <omnibus in rebus> na medida em que <quatenus> isso é permitido por Deus à razão humana <id à Deo rationi humanæ permissum est> —, julgo <censeo>, entretanto, que opiniões totalmente alheias à retidão <alienas prorsus à rectitudine opiniones> devam ser evitadas <fugiendas> (COPÉRNICO, 2008, p.260).

Inquirir a verdade e evitar as opiniões alheias à retidão. Os pensamentos e a atividade

de um cientista estão distantes do juízo do vulgo, que, muitas vezes, não compreende sua

imagem da realidade. É uma atividade que pode conduzir a extremos, que vão da glória dos

Sete Sábios ao escárnio de As Nuvens, da menção na Aeropagitica de John Milton ao Index

Librorum Prohibitorum, da escrita cada vez mais complexa ao embuste de Alan Sokal.

12 O poeta vivia no campo, entre prados e bosques. Porém, todas as manhãs ele ia à grande cidade que ficava a muitas milhas de distância, envolvida em névoas tristes, no topo das colinas. Todas as tardes ele regressava. E à luz indecisa do crepúsculo, crianças e adultos juntavam-se à sua volta a fim de ouvi-lo narrar as coisas maravilhosas que ele vira naquele dia nos bosques, no rio e no topo das colinas. E ele lhes contava como os pequeninos faunos escuros o espreitavam dentre as folhas verdes do bosque. Contava-lhes também como o grande centauro o encontrava no alto da colina e, sorrindo, galopava, envolvido em nuvens de pó. Estas e muitas outras coisas maravilhosas o poeta narrava às crianças e aos adultos quando se reuniam a sua volta, todas as tardes, enquanto as sombras se adensavam à aproximação do crepúsculo cinzento. Contou-lhes histórias maravilhosas de coisas surpreendentes criadas pelo seu espírito, porque o tinha pleno de lindas fantasias. Um dia, porém, o poeta, regressando da cidade grande através dos bosques, viu, de fato, os pequeninos faunos escuros espreitando-o dentre as folhas verdes. E quando se dirigiu para o lago, as nereidas de cabelos esverdeados emergiram da água cristalina e cantaram para ele ao som de suas harpas. E também quando alcançou o topo da colina, o grande centauro galopou sorrindo, envolvido em nuvens de pó. Naquela tarde quando, ao pálido crepúsculo, os adultos e as crianças se juntaram a ele para ouvir as coisas maravilhosas que vira naquele dia, o poeta lhes disse: - Hoje nada tenho para lhes contar; não vi coisa alguma. Isto porque, naquele dia, pela primeira vez na sua vida, ele os vira de fato e, para um poeta, a fantasia é a realidade e a realidade nada significa.

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O diálogo abaixo, entre um jovem cidadão de Atenas e um discípulo de Sócrates,

constante da comédia As Nuvens ilustra esta tensão:

DISCÍPULO: Há pouco tempo uma lagartixa atrapalhou uma indagação transcendental dele.

STREPSIADES: E como aconteceu isto? Me conte!

DISCÍPULO: Quando Sócrates observava a lua para estudar o curso e as evoluções dela, no momento em que ele olhava de boca aberta para o céu, do alto do teto uma lagartixa noturna, dessas pintadas, defecou na boca dele.

STREPSIADES: Que delícia! Uma lagartixa despejou toda a merda dela na boca escancarada de Sócrates! (ARISTÓFANES, 2000, p.22).

Mesmo diante de tantos extremos a que se submete a atividade do cientista, sua

pretensão é descrever a imagem da realidade (seja através de leis sacras, necessárias ou

imperfeitas) com os atributos de generalização, predição e verdade. Contudo, há uma grande

mudança no modo de conceber o verdadeiro entre os antigos e modernos em relação aos

contemporâneos. Os cientistas antigos concebem a verdade como algo certo numa base

qualitativo-dogmática, enquanto os modernos, numa base experimental-quantitativa. Já entre

os contemporâneos, Poincaré (1995, p.7) propõe que, na ciência, “a verdade que nos é

permitido entrever não é exatamente o que a maioria dos homens chama por esse nome”.

A ciência é imagem da realidade e, para os contemporâneos, a ciência acolhe a

verdade de uma imagem, mesmo se fatos posteriores a revelarem falsas. A ciência passa,

portanto, de necessária, como os modernos a concebiam, a imperfeita. Uma metodologia

errada de construção da imagem da realidade? Uma reposta apressada diz que sim. Poincaré

(1995, p.9) ensina que não, já que “não se deve crer, pois, que as teorias antiquadas foram

estéreis e vãs”.

Não é preciso, portanto, desdizer ou condenar o que já foi feito no passado, posto que

os cientistas dispõem de sistemas conceituais e instrumentos de observação que são próprios

de seu tempo, e são estes que estão à disposição dos cientistas na tarefa de organizar os fatos

observáveis, mesmo que o amanhã os julguem precipitados ou ingênuos:

Cada século zombava do anterior, acusando-o de ter generalizado precipitadamente e com excessiva ingenuidade. Descartes se apiedava dos Ionianos; por sua vez, Descartes nos faz sorrir; sem dúvida nenhuma, nossos filhos rirão de nós. (POINCARÉ, 1985, p.115).

A explicação do movimento do corpo por Descartes, no Discurso do Método (1637),

pela transmissão de ‘espíritos animais’, gerados no coração, e deslocados do cérebro aos

músculos através de dutos (os nervos), foi logo refutada pela verificação de Jam

Swammerdam de que um músculo se contrai, sem aumentar de volume, pela ação de um

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nervo cortado, fenômeno por ele batizado de ‘irritação’, num processo que não envolve o

coração, mas unicamente o cérebro.

Entre uma e outra imagem da realidade, tem-se um instrumento disponível a

Swammerdamm em sua tarefa de organizar os fatos observáveis – o microscópio, não

disponível a Descartes. A Holanda, onde Descartes (entre 1628-1649) e Swammerdamm

(1637-1680) viveram, era o local mais adiantado na indústria de fabricação de lentes em toda

a Europa. Lá foi desenvolvido o primeiro microscópio, o tubo de Janssen (1590), que

revolucionou a biologia. “Mas, foi somente em 1650, que os microscópios tiveram sua

qualidade melhorada a ponto de poderem ser de alguma utilidade para o estudo das minúcias

dos organismos vivos”. (ASIMOV, 1993, p.278).

Em 1658, após o aperfeiçoamento dos microscópios, o naturalista holandês Jan

Swammerdam descobriu os glóbulos vermelhos do sangue. Nos anos 1660, advêm suas

grandes descobertas na anatomia, na respiração e na função nervo-músculo, que pôs fim à

doutrina dos ‘espíritos animais’ cartesiana:

Nos anos 1660, Swammerdam fez grandes descobertas em anatomia (ele demonstrou a presença de válvulas nos vasos linfáticos), na respiração (o assunto de sua tese de doutoramento) e na função nervo-músculo (seu trabalho sobre o músculo de rãs pôs fim às ideias pré-científicas da ação nervosa decorrer de ‘espíritos animais’)13. Disponível em: <http://scienceworld.wolfram.com/biography/Swammerdam.html> Acesso em 23 de set de 2011. (tradução nossa).

Mas se o autor da contribuição acima, o professor da Universidade de Manchester e

estudioso de Swammerdam, Matthew Cobb, qualifica como ‘pré-científicas’ as ideias

cartesianas baseadas nos ‘espíritos animais’, assim o faz com base em uma concepção

moderna de ciência. Talvez se possa, então, resgatar o caráter científico da imagem da

realidade construída por Descartes, apoiando-se em Poincaré: leis gerais e preditivas

continuam sendo científicas, mesmo quando zombadas pela posteridade, porque a ciência é

imperfeita, provável (you will find it probably right) e não mais necessária, certa (you will

find it right):

A ciência prevê, e é porque prevê que pode ser útil, e servir de regra de ação. Sei bem que suas previsões são muitas vezes desmentidas pelo evento; isso prova que a ciência é imperfeita, e se acrescento que continuará sempre assim, estou certo de que esta é uma previsão que, pelo menos ela, jamais será desmentida. De qualquer modo, o cientista se engana com menos frequência do que um profeta que fizesse previsões ao acaso. Por

13 “In the 1660s, Swammerdam made major discoveries in anatomy (he demonstrated the presence of valves in the lymph vessels), in respiration (the subject of his doctoral thesis) and in nerve-muscle function (his work on the frog muscle put paid to pre-scientific ideas of nervous action being due to ‘vital spirits’)”.

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outro lado, o progresso é lento, mas contínuo, de modo que os cientistas, embora cada vez mais ousados, ficam cada vez menos decepcionados. É pouco, mas é o bastante (POINCARÉ, 1995, p.140).

Portanto, em que pese a superação de Descartes por Swammerdam, não é lícito

demarcar como pré-científico a teoria dos ‘espíritos animais’. Ambos buscaram organizar os

fatos empíricos com os conceitos e instrumentos de que dispunham, e se “é impossível para o

cientista contentar-se com a experiência nua” (POINCARÉ, 1985, p.115), eles, Descartes e

Swammerdam, organizaram os dados que lhe eram acessíveis pela experiência, elaborando,

cada um, uma imagem da realidade, à maneira de um construtor de casas, que organiza um

monte de pedras.

A organização dos fatos é, portanto, uma obrigação do cientista. Poincaré reconstrói a

alegoria baconiana da formiga, da aranha e da abelha (Novum Organum, Livro I, Aforismo

XCV), com uma nova, a da casa e do monte de pedras:

Os empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve para a teia. A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a transforma e digere. (BACON, 1973, p.69).

Fazemos ciência com fatos assim como construímos uma casa com pedras, mas uma acumulação de fatos não é ciência assim como não é uma casa um monte de pedras. (POINCARÉ, 1985, p.115).

E se a casa da ‘função nervo-músculo’ de Swammerdam é uma imagem da realidade

mais precisa do que a casa dos ‘espíritos animais’ de Descartes, isso não significa que esta

não é mais uma casa e apenas um monte de pedras, ou seja, que a nova imagem, mais precisa,

retire o status de ciência da imagem anterior, menos precisa. Para Poincaré (1995), a marcha

da ciência não se compara às transformações de uma cidade, mas antes, ocorre como a

evolução contínua de um ser vivo, que se desenvolve sem cessar, mas que um olho

experimentado pode reconhecer os vestígios do passado (o cérebro, por exemplo, tem um

papel na função motora tanto em Descartes como em Swammerdam):

Não devemos comparar a marcha da ciência com as transformações de uma cidade, onde os edifícios são demolidos para dar lugar às novas construções, mas sim com a evolução contínua dos tipos zoológicos que se desenvolvem sem cessar e acabam por tornar irreconhecíveis aos olhares comuns, mas onde um olho experimentado reencontra sempre vestígios do trabalho anterior dos séculos passados. (POINCARÉ, 1995, p.9).

Mesmo que a posteridade zombe da imagem da realidade anteriormente construída,

posto que precipitada ou ingênua, não lhe retira o status de ciência, já que “é impossível para

o cientista escapar das zombarias que prevê” (POINCARÉ, 1985, p.115). Quando os

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cientistas tiveram que decidir entre a teoria corpuscular (Gassendi-Newton) e a teoria

ondulatória (Hooke-Huygens) da luz, prevaleceu a teoria ondulatória, que explica de forma

mais simples e melhor a refração: a mudança na direção dos raios de luz que atravessam um

meio transparente mais denso do que o éter (o vidro ou a água, por exemplo) é provocada pela

redução da velocidade da onda luminosa.

Nesta teoria, a luz é uma onda, uma transferência de energia e não de substância. A

dificuldade da teoria é que ela implica na admissão da “existência de uma substância

hipotética, o éter, um meio transparente que permeia todo o Universo. O Universo está, por

assim dizer, imerso no éter”. (EINSTEIN; INFELD 2008, p.95). Como onda, a luz precisa de

um meio para propagar-se. Eram pré-científicos, então, os muitos cientistas que

compactuavam com a hipótese da existência do éter até sua sepultura definitiva, iniciada com

os experimentos de Michelson-Morley (1887), e concluída com o efeito fotoelétrico de

Einstein (1905), que lhe valeu o Prêmio Nobel de Física em 1921?

Não restam dúvidas, portanto, que os instrumentos de observação à disposição dos

cientistas são peças importantes na elaboração de novas teorias científicas, embora sejam

imprescindíveis apenas ao contexto de justificação das leis gerais e preditivas mais precisas.

Contudo os instrumentos de observação, por si só, não têm legitimidade para operarem

inflexões no modo de conceber a ciência.

Sejam os epiciclos, deferentes e equantes de Ptolomeu (que dispunha do astrolábio)

em relação às esferas adicionadas de Eudoxos e Callipos; seja a função nervo-músculo de

Swammerdam (que dispunha de microscópio mais potente) em relação aos espíritos animais

de Descartes; seja a conservação da massa14 de Lavoisier (que dispunha de uma balança mais

acurada) em relação ao flogístico de Sthal; sejam inúmeros outros exemplos que poderiam ser

garimpados na história da ciência – a precisão maior das leis científicas decorrentes de

instrumentos de observação mais acurados não significam inflexões na ciência.

As duas grandes inflexões, a primeira, quando a ciência passou de sacra a universal, e

a segunda, quando passou de universal a imperfeita, não são frutos de instrumentos de

observação mais precisos, mas verdadeiras transmutações teóricas que reformulam a

14 “Embora não tenha sido o primeiro a enunciá-lo, e nem o tenha fundamentado experimentalmente, Lavoisier supôs que esse princípio fosse válido para qualquer reação química em um sistema fechado, utilizando-o como ferramenta para a investigação e a teoria química. De fato, desde antes de Lavoisier (na chamada época pré-clássica da química), já se tinha atenção para as proporções de massa em processos químicos, ainda que de maneira empírica e em casos isolados como, por exemplo, nos trabalhos de Johann Baptist van Helmont (1577-1644) com a prata”. (AFONSO; SILVA 2004, p.1021).

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concepção do que é ciência, e que são acompanhadas por uma concepção de geometria

própria de cada período da ciência:

a) A ciência sacra, hefestiana ou antiga corresponde ao período da geometria

dedutiva, quando não há identidade entre o espaço geométrico euclideano e

o espaço real, descrito enquanto cosmos esférico e finito;

b) A ciência necessária, prometeica ou moderna corresponde ao período da

geometria descritiva, quando há identidade entre o espaço geométrico

euclideano e o espaço real, descrito enquanto espaço absoluto newtoniano;

c) A ciência imperfeita, ioética ou contemporânea corresponde ao período da

geometria convencional, quando a descoberta das geometrias não-

euclideanas põe em xeque o estatuto de necessidade dos axiomas de

Euclides, em especial, do Quinto Postulado.

Desde o seu berço em Mileto, como fruto da conjunção entre o conceito originário e

grego de phýsis e uma geometria dedutiva e descolada da realidade, a ciência nascente sofre

duas profundas inflexões. A primeira, com os modernos, quando o cosmos esférico finito será

substituído pelo universo infinito homogêneo, quando a geometria euclideana deixa de ser

dedutiva e passa a ser descritiva. E a segunda, com os contemporâneos, quando novas leituras

geométricas do espaço põem em xeque o estatuto de universalidade e necessidade da própria

ciência, já num contexto de geometria convencional.

Na primeira inflexão, ocorre a superação da cosmologia antiga, das esferas celestes do

espaço finito centralizado na Terra pela infinitude de um espaço sem formas privilegiadas. A

geometria euclideana passa a ser a leitura necessária de um espaço uniforme, homogêneo e

isotrópico15 e, como consequência, a ciência crê na possibilidade de edificação de um projeto

científico nos moldes dos Elementos, de Euclides (simples, coerente e perfeito), onde todo um

conjunto de proposições possa ser demonstrado a partir de um número restrito de leis, válidas

para o espaço unificado dos mundos supra e sublunar.

Na segunda inflexão, o impacto das geometrias não-euclideanas como uma leitura

antes impossível do espaço absoluto, quando a perda da conexão necessária entre a geometria

euclideana e o espaço experimental corresponde a uma nova concepção teórica da ciência,

que passa de moderna à contemporânea. Poincaré revela este divórcio:

15 Poincaré (1985) esclarece tais caracteres: uniforme (contínuo e infinito); homogêneo (todos seus pontos são idênticos entre si); isotrópico (todas as retas que passam por um mesmo ponto são idênticas umas às outras).

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Se o espaço geométrico fosse um quadro imposto a cada uma de nossas representações, consideradas individualmente, seria impossível que nós representássemos uma imagem fora desse quadro, e não poderíamos modificar em nada a nossa Geometria. Mas não é isso o que acontece. A Geometria não é senão o resumo das leis que segundo as quais se sucedem essas imagens. Nada impede, então, que imaginemos uma série de representações, absolutamente iguais às nossas representações comuns, mas que se sucedam de acordo com leis diferentes daquelas com as quais estamos habituados. (POINCARÉ, 1985, p.63).

A nova ciência contemporânea mostra, enfim, seus primeiros sinais em Ciência e

Hipótese, de 1902. Já não há mais como construir uma imagem simples, econômica e

inexorável da realidade, a essentiae imago de Bacon. Por outro lado, a geometria, euclideana

e não-euclideanas continuam coerentes, mas com axiomas indiferentes à realidade, uma

convenção adotada por ser “mais vantajosa para a espécie; ou, em outras palavras, a mais

cômoda” (POINCARÉ, 1985, p.78). Como descrever, então, a ciência? Negativamente,

enquanto atividade caracterizada de três impossibilidades: contentar-se com a experiência nua

(deve-se buscar a generalidade); escapar das zombarias que prevemos (mesmo que nossas

predições sejam apenas prováveis); ir, de uma vez, até o fim (ou seja, as leis científicas são

imperfeitas).

Fugir destas impossibilidades é “desconhecer completamente o verdadeiro caráter da

ciência” (POINCARÉ, 1985, p.115). Nesse sentido, Poincaré, cientista com contribuições em

diversas áreas do conhecimento, membro eleito de diversas sociedades científicas

internacionais de seu tempo e matemático por nascimento16, é um filósofo da ciência

privilegiado e pioneiro, pois percebe a alvorada de um novo tempo na ciência, decorrente do

impacto das novas geometrias recém-descobertas. Para Poincaré (1985), uma geometria não é

verdadeira, é vantajosa segundo uma convenção de comodidade de extensão, que é própria de

uma espécie (a nossa disposição corporal), e de sucessão, que se dá de acordo com as

condições do mundo exterior (como as imagens se sucedem para nós).

Assim, não há de se falar mais em uma geometria descritiva ou de um projeto

axiomático em ciência que pudesse descrever cabalmente todo o universo de fenômenos

observáveis. A proposta desta dissertação é mostrar não apenas como geometria e ciência

estão intimamente ligadas, mas como as duas inflexões teóricas no modo de conceber a

ciência são acompanhadas de uma concepção específica de geometria, numa correlação que

não se pretende confundir como uma conexão causal direta, do tipo post hoc ergo propter

hoc, mas que é impossível deixar de ser destacada.

16 “O indivíduo nasce matemático, não se torna matemático”. (POINCARÉ, 1995, p.13)

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2 A GEOMETRIA EUCLIDEANA E A PRIMEIRA INFLEXÃO

O objetivo deste capítulo é percorrer o itinerário das leis gerais, preditivas e

verdadeiras e destacar como um novo contexto de leis científicas, que passa de leis sacras a

leis universais, tem relação com uma mudança conceitual na geometria euclideana, que passa

de dedutiva a descritiva. De Hefesto (a ciência dos antigos), que não admite que os homens

possam comungar com o fogo divino, a Prometeu (a ciência dos modernos), que sabe

antecipadamente todo o futuro, há uma inflexão teórica no modo de conceber a ciência.

É uma inflexão que parte de uma premissa fundamental, qual seja, o ambiente cultural

renascentista, que livra o homem da peia escolástica e da tutela qualitativa baseada em

dogmas de autoridade, fazendo-o expandir os limites do espaço cosmológico e do próprio

pensamento. Com tal impulso de partida, que envolve não apenas a renovação na ciência, mas

a derrocada de toda a ordem medieval, com a renovação da arquitetura, música, literatura,

economia, pintura, natureza e até dos próprios limites geográficos até então conhecidos17, são

estabelecidas as condições para a possibilidade de a razão humana descrever o universo

segundo uma nova concepção teórica, de cunho universal.

Em tal ambiente, a razão enfatiza teorias apoiadas na matemática, substituindo a

mentalidade qualitativa medieval. Como atesta Galileu (1983, p.106), na obra O Ensaiador,

de 1623, “opor-se à geometria é negar abertamente a verdade”. Portanto, mais do que uma

inovação metodológica, já que a ciência moderna certamente reformulou o método científico,

que passa a basear-se na observação, verificação e descrição simplificada dos fenômenos,

ocorre uma verdadeira inflexão teórica no modo de conceber a própria ciência.

Certamente, uma nova metodologia é condição necessária, pois, de acordo com Bacon

(1973, p.23), o “intelecto não regulado e sem apoio é irregular e de todo inábil para superar a

obscuridade das coisas” (Novum Organum, Livro I, Aforismo XXI), mas não suficiente para

promover a primeira inflexão. De acordo com Koyré (1982, p.77), as grandes revoluções

científicas “são fundamentalmente revoluções teóricas, cujo resultado não foi a melhoria da

conexão entre elas e os ‘dados da experiência’, mas a aquisição de uma nova concepção da

realidade profunda subjacente àqueles ‘dados’”. Neste aspecto, Einstein, no Prefácio ao

Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas de Mundo, de Galileu, é esclarecedor:

17 A arte se renovou pela redescoberta dos clássicos e pelo estudo científico do corpo humano e do mundo natural. A exploração de novos continentes e a Reforma são elementos que impulsionam a confiança no homem. A ascensão econômica da burguesia implica no estabelecimento de uma nova ordem, mais universal, posto que as fronteiras são obstáculos ao comércio, e menos provincial, encarcerada nos limites do feudo.

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Tem sido geralmente sustentado que Galileu tornou-se o pai da ciência moderna por substituir o método especulativo, dedutivo pelo empírico, experimental. Eu acredito, contudo, que esta interpretação não se sustenta diante de um escrutínio mais aprofundado. Não há método empírico sem conceitos e sistemas especulativos; e não há pensamento especulativo cujos conceitos não revelem, em uma investigação mais profunda, o material empírico de onde eles se originam. (...) Além do mais, os métodos experimentais à disposição de Galileu eram tão imperfeitos que somente a mais corajosa especulação poderia, talvez, superar as lacunas dos dados empíricos (Por exemplo, não havia meios de medir o tempo com precisão inferior a um segundo)18. Disponível em: <http://milestones.buffalolib.org/books/books/dialogo/impact.htm> Acesso em 26 de set de 2011. (tradução nossa).

Assim, o campo da ciência moderna, livre de dogmas de autoridade, necessita não

somente de novos instrumentos para a semeadura (como o telescópio, o microscópio, a régua

de cálculo logarítmico, o relógio de pêndulo, a balança de cutelo, dentre outros), não somente

de uma nova metodologia de semear (o novo método científico), mas, sobretudo, de novos

semeadores. Seres confiantes em sua capacidade de desvendar a verdade19 e de expressá-la na

forma de leis universais, que passam a descrever a realidade de um universo infinito e

homogêneo, a partir da reformulação de noções fundamentais:

A substituição do cosmo finito e hierarquicamente ordenado do pensamento antigo por um universo infinito e homogêneo implica e impõe a reformulação dos princípios básicos da razão filosófica e científica, bem como a reformulação de noções fundamentais, como a de movimento, de espaço, do saber e do ser. Eis porque a descoberta de leis muito simples, como a lei da queda dos corpos, custou a grandes gênios esforços tão prolongados, nem sempre coroados de êxito. (KOYRÉ, 1982, p.12).

Após a primeira inflexão, a essentiae imago moderna é uma descrição do cosmos que

não mais se subordina a dogmas qualitativos, como o que pressupõe o cosmos em forma de

esfera, que é a forma mais conveniente e natural (segundo a metafísica platônica), ou como o

que pressupõe o movimento circular uniforme dos astros em decorrência da natureza eterna da

substância sensível do mundo supralunar (segundo a metafísica aristotélica).

Formulando esses princípios [observação, experimentação, regularidade matemática], Galileu estruturou todo o conhecimento científico da natureza e abalou os alicerces que fundamentavam a concepção medieval do mundo. Destruiu a ideia de que o mundo possui uma estrutura finita,

18 “It has often been maintained that Galileo became the father of modern science by replacing the speculative, deductive method with the empirical, experimental method. I believe, however, that this interpretation would not stand close scrutiny. There is no empirical method without speculative concepts and systems; and there is no speculative thinking whose concepts do not reveal, on closer investigation, the empirical material from which they stem. (…) Moreover, the experimental methods at Galileo’s disposal were so imperfect that only the boldest speculation could possibly bridge the gaps between the empirical data. (For example, there existed no means to measure times shorter than a second)”. 19 “O homem é visto por Bruno como um ser privilegiado que reflete em si a totalidade do Universo e é capaz, portanto, de penetrar-lhe todos os segredos” (PESSANHA, 1983b, p.XII).

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hierarquicamente ordenada e substituiu-a pela visão de um universo aberto, indefinido e até mesmo infinito. Em lugar de conceber o mundo como dividido em duas partes, uma superior, constituída pelo céu, e a outra inferior, a Terra em que vive o homem, mostrou que os objetos físicos devem ser concebidos como sendo da mesma natureza e tratados de modo idêntico, pelo menos por aqueles que desejam conhecer cientificamente o universo. Pôs de lado o finalismo aristotélico e escolástico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir desígnios superiores; e mostrou que a natureza é fundamentalmente um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como afirmara Demócrito na Antiguidade. Demonstrou o engano do espírito puramente lógico e dedutivo da filosofia aristotélico-escolástica, quando aplicado à explicação dos fenômenos físicos. E mostrou, finalmente, que ‘o livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos’ e que, ‘sem um conhecimento dos mesmos, os homens não poderão compreendê-lo’. (PESSANHA, 1983a, p.97).

A essentiae imago moderna é uma descrição do universo por meio de leis simples e

universalmente válidas. Quando desvendadas, estas leis têm a pretensão de dar conta de todos

os fenômenos naturais segundo um mesmo princípio. Um exemplo bastante clarificador desta

pretensão nos é dado pela unificação da explicação das marés, da revolução da Lua em torno

da Terra, e da revolução da Terra em torno do Sol, através da gravitação universal, por

Newton.

Galileu tentou explicar as marés combinando os movimentos diários e anuais da Terra. Se o efeito que ele supõe de fato existe, é ínfimo. A explicação aceita das marés baseia-se na atração gravitacional da Lua e do Sol, que difere para oceanos e terra firme. Para vir à tona, essa explicação teve de esperar o trabalho de Isaac Newton sobre a gravidade, desenvolvido em fins do século XVII. A grande virtude da ideia de Galileu está no fato de que, para ele, o movimento do oceano não depende de nenhuma força misteriosa da Lua. Galileu queria que sua explicação fosse inteiramente mecânica. (MACLACHAN, 2008, p.33).

O divórcio entre Física e Metafísica está consumado. Newton oferece uma explicação

de como o movimento das marés ocorre, descreve matematicamente o seu modelo, e sabe que

tal explicação se deve pela atuação de uma força que atua à distância. Por que esta forma de

atuação? Tal questão, essencial para um cientista antigo, não deve ser considerada por um

cientista moderno.

Pois a ciência, para Newton, deve almejar a libertação de tudo o que não provém dos

fenômenos, conforme expresso no Principia: “não construo nenhuma hipótese; pois tudo que

não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as hipóteses, quer

metafísicas ou físicas, não têm lugar na filosofia experimental” (NEWTON, 1996b, p.258).

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2.1 A HERANÇA DOS ANTIGOS

Todas as civilizações antigas (Pré-Colombianos, Egito Antigo, Mesopotâmia, Hindus,

Chineses, Gregos etc.) têm vestígios que comprovam a observação e a compreensão do céu.

Segundo Bronowski (1992, p.189), “rudimentos de astronomia existem em todas as culturas,

de forma que podemos inferir fazerem parte das preocupações de todos os povos primitivos

do mundo”. A razão mais clara é a importância do calendário no estabelecimento de ciclos

para semeadura e colheita, uma ordem fundamental para a produção agrícola, base do

sedentarismo da raça humana.

Tomando-se as investigações sistemáticas da natureza empreendidas pelos gregos e

pelos chineses, observa-se um aspecto comum. Ambas, de forma independente, buscaram

fundamentar um porquê para a realidade observada. Assim, tanto a teoria grega dos quatro

elementos fundamentais (fogo, terra, ar e água) quanto a teoria chinesa das cinco fases (água,

fogo, madeira, metal, terra) e dois pólos (yin, yang) têm um forte apelo metafísico, o qual não

encobre, de modo algum, importantes descobertas realizadas por tão afastados cientistas.

Gregos e chineses fizeram observações interessantes acerca do céu observado.

Empédocles de Agrigento (c. V a.C.), por exemplo, afirmou que “a Lua interrompe os raios

do Sol quando passa por ele, projetando sombra sobre a Terra20”. Anaxágoras de Clazomena

(na mesma época), nos diz que “o Sol empresta à Lua a sua Luz21”. Entre os chineses, “na

última metade do século I a.C., Ching Fang escreveu: ‘a lua e os planetas são Yin; eles têm

forma mas não têm luz. Isto eles recebem apenas quando o sol os ilumina’22”. (NEEDHAM,

1995, p. 227, tradução nossa).

Em que pese as mesmas observações e a mesma fundamentação metafísica para o

porquê dos fenômenos da natureza, as ciências grega e chinesa tomaram rumos bastante

distintos. De acordo com Kneller (1978), os chineses tinham álgebra, mas pouca geometria:

Devido a isso, a sua astronomia teórica não se desenvolveu. Ao contrário da geometria grega, que representou os movimentos dos corpos celestes em espaço tridimensional, as técnicas algébricas chinesas não subentendiam qualquer hipótese física particular. Por isso, a despeito de volumosos registros, careciam de uma teoria adequada do firmamento. (KNELLER, 1978, p.16).

20 Fragmento 42 de Diels. (BORNHEIM, 2001, p.73). Ver nota 11. 21 Fragmento 18 de Diels. (BORNHEIM, 2001, p.96). Ver nota 11. 22 “In the latter half of the –Ist century Ching Fang wrote: ‘The moon and the planets are Yin; they have shape but no light. This they receive only when the sun illuminates them’”.

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De fato, enquanto a ciência dos pré-socráticos caminhou, com a geometria, rumo à

generalização, os chineses, com a álgebra, caminharam para a singularidade. A lamentação do

matemático chinês Yang Hui (c. 1275), que criticou fortemente seus predecessores pela

utilização de uma metodologia problema a problema, é reveladora deste diagnóstico:

No século XIII, contudo, algumas mentes foram ficando muito insatisfeitas com os métodos predominantemente empíricos sobre os quais a ciência da agrimensura tinha sido baseada. Em seus dois livros, Hsu Hu Chai Chhi Suan e Suan Fa Thung Pien Pên Mo, ambos de 1275, Yang Hui criticou fortemente Li Shun-Feng e Liu I, que se contentaram em usar métodos sem elaborar suas origem teórica (yuan) ou princípio (chin). ‘Os homens do passado’, ele disse, ‘mudaram o nome de seus métodos de problema a problema, então como nenhuma explanação específica foi dada, não há meios de falar sobre sua origem ou base teórica’23”. (NEEDHAM, 1995, p.104, tradução nossa).

Ou seja, mesmo que os chineses tenham legado à humanidade os quatro grandes

inventos (fabricação de papel, impressão24, compasso e pólvora), foram os pré-socráticos que

estabeleceram, com a generalização, as bases para a futura ciência moderna. De fato, a

Revolução Científica ocorreu efetivamente na Europa Ocidental, herdeira da ciência

generalizante dos antigos gregos, e não na China, onde seus astrônomos dispunham de um

rico acervo de novas25, cometas, posições estelares e outras observações celestes, mas

careciam de uma teoria que pudesse representar de uma forma geral este rico acervo de

informações singulares.

Foi a Grécia de Anaximandro, importante cientista de Mileto, portanto, que legou à

posteridade uma deslumbrante concepção geométrica do cosmos. Segundo Jaeger (2001,

p.203), “o conceito de cosmos constituiu até nossos dias uma das categorias essenciais de toda

concepção do mundo, embora nas modernas interpretações científicas tenha gradualmente

perdido o sentido metafísico original”. A perda do sentido metafísico original do cosmos nas

concepções seguintes, no universo infinito e homogêneo dos modernos, ou no espaço relativo

23 “In the +13th century, however, some minds were becoming very dissatisfied with the mainly empirical methods on wich the science of surveying had been based. In his two books Hsu Hu Chai Chhi Suan e Suan Fa Thung Pien Pên Mo, both about +1275, Yang Hui strongly criticised Li Shun-Feng and Liu I, who had been content to use methods without working out their theoretical origin (yuan) or principle (chin). ‘The men of old’, he said, ‘changed the name of their methods from problem to problem, so that as no specific explanation has given, there is no way of telling their theoretical origin or basis’”. 24 “Sabemos que a imprensa surgiu na China, muito antes que Gutenberg movesse sua primeira prensa. Entretanto, é importante destacar que o alfabeto ocidental, com poucas letras, mas uma possibilidade infinita de combinações, foi decisivo para o crescimento desta tecnologia na Europa, mais rapidamente que na China, uma vez que a escrita chinesa é composta de aproximadamente 60.000 ideogramas”. (FREIRE, 2006, p.8). 25 “Uma nova é uma estrela que aumenta sua luz e energia até um milhão de vezes em poucos dias e depois, passados alguns meses ou anos, retorna à sua anterior obscuridade. Uma grande nova pode emitir tanta energia quanto o Sol em 10.000 anos. De fato, se o Sol se tornasse uma nova, a Terra seria destruída em poucas horas ou dias. Nas últimas centenas de anos foram observadas umas 30”. (KNELLER, 1978, p.16).

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do fator de Lorentz dos contemporâneos, não significa, contudo, que a imbricada relação entre

geometria e cosmos/universo/espaço se tenha desfeito.

A concepção da Terra e do mundo em Anaximandro é uma vitória do espírito geométrico. É o símbolo visível da monumentalidade proporcional, própria do pensamento e da essência total do homem arcaico. O mundo de Anaximandro é construído segundo rigorosas proporções matemáticas. O disco terrestre da concepção homérica não passa de uma representação ilusória. Na realidade, o caminho diário do Sol do Oriente para o Ocidente passa por baixo da Terra, de modo a reaparecer no Oriente, seu ponto de partida. O mundo não é, assim, uma meia esfera, mas uma esfera completa, em cujo centro se situa a Terra. São circulares não só o caminho do Sol, mas também o da Lua e das estrelas. O círculo do Sol é o mais exterior e mede 27 vezes o diâmetro da Terra. O círculo das estrelas fixas é o mais baixo. O texto que nos serve de testemunho está danificado neste lugar; no entanto é evidente que esse círculo atinge 9 vezes o diâmetro da Terra. E o diâmetro da Terra tem 3 vezes a sua altura, pois a Terra tem a forma de um cilindro achatado. Não se apóia numa base sólida nem cresce para o ar, como uma árvore, a partir de raízes invisíveis e profundas. Está suspensa no espaço do mundo. Não é a pressão do ar que a sustenta. Conserva-se em equilíbrio porque se acha, de ambos os lados, a igual distância da esfera celeste. (JAEGER, 2001, p.198 e 199).

Figura 3. Representação Geométrica do Cosmos de Anaximandro

Uma tal representação do cosmos, de viés geométrico, com proporções definidas em

múltiplos de três, e que pressupõe o equilíbrio da Terra por estar situada numa posição

central, privilegiada em relação às esferas celestes, revela um grau de especulação teórica

entre os gregos pré-socráticos que não encontra similitude na sociedade chinesa, possuidora,

não obstante, de dados consideráveis acerca de fenômenos celestes observados, mas sem

registros de uma sistematização teórica generalizante de tal acervo:

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Sabemos que os chineses fizeram a distinção entre estrelas e planetas e, por isso, reconheceram o comportamento de muitos corpos celestes. É um povo que fez a observação e registro duma supernova26 no ano de 1054 d.C. O fenômeno foi registrado com tal precisão que é possível saber que: a estrela que na altura foi vista a explodir deu origem à conhecida hoje como a nebulosa do caranguejo. Os antigos chineses, observadores ancestrais do céu, conseguiam também prever eclipses e os seus registros astronômicos mais antigos remontam ao século XIII a.C. (MORAIS, 2010, p.32).

Outra civilização com muita tradição na observação e registro de fenômenos celestes,

além da grega e da chinesa, era a babilônica. Mas, assim como os chineses, os babilônios não

possuíam uma imagem geométrica dos movimentos celestes, e a ligação entre os cálculos

aritméticos e as observações dos planetas advinha da manipulação complexa de operações

numéricas:

Eles possuíam técnicas matemáticas para lidar com cálculos envolvendo números grandes e operações complicadas. Faziam uso de séries de sequências, composta de números que aumentavam ou diminuíam de maneira constante. Puderam, assim, calcular o movimento diário do Sol e da Lua através do zodíaco e prever o surgimento da lua nova (que indicava o começo de um novo mês). Eram capazes, também, de prever eclipses lunares e a possibilidade de eclipses solares. Tais predições eram baseadas não em modelos geométricos dos corpos celestes, mas em procedimentos inteiramente aritméticos, ou seja, em cálculos de tabelas construídas a partir de observações registradas. O interessante é que todas as constantes numéricas foram calculadas de maneira engenhosa para fornecer as periodicidades e resultados quantitativamente acurados, sem a intervenção de qualquer modelo ou figura geométrica. (PIRES, 2008, p.12 e 13).

Contudo, a história da ciência indica que para compreender melhor a infinidade de

coisas que se apresentam são necessárias redução e ordem. O cientista deve ordenar os fatos

através de uma teoria, um quadro da realidade que dê conta dos fenômenos, sua essentiae

imago. Com a geometria, portanto, a ciência grega dispôs de uma ferramenta teórica que a

habilitou, mais do que a chineses e babilônios, a transcender os fenômenos observados e

expressá-los segundo leis gerais. Uma questão importante que precisa ser levantada advém do

reconhecimento da geometria no Egito antigo. Por que os egípcios, que possuíam a geometria,

não promoveram então o nascimento da ciência de leis gerais?

26 “Estrelas que aumentam sua luminosidade centenas de milhares de vezes são denominadas supernovas e podem ficar mais brilhantes que toda a galáxia em que se encontram. Isso possibilita sua observação mesmo a grandes distâncias. [...] A escala de magnitude é uma escala logarítmica que representa aproximadamente a sensação do olho humano; as estrelas mais brilhantes foram classificadas como de magnitude 1 e as mais fracas visíveis a olho nu, em condições excelentes, teriam magnitude 5 ou 6. A diferença entre as magnitudes corresponde a um acréscimo de 2,5 na escala de intensidade. Com a instrumentação atual é possível observar estrelas de magnitude 24 ou 25, sendo usados números reais para expressar seu valor mais corretamente. Para diferenciar das estrelas mais brilhantes, estende-se a escala para valores negativos. Sirius, a estrela mais brilhante do céu noturno tem magnitude -1,7; a supernova de 1054 teria atingido magnitude –4.” (LIVI, 1987, p.100).

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Os Papiros de Moscou (c. 1850 a.C.) e de Ahmes (c. 1650 a.C.) demonstram a

presença da geometria no Egito antigo bem antes dos milésios (Tales previu o eclipse solar de

585 a.C.). Do primeiro pariro, destacou-se o cálculo do volume da pirâmide seccionada27. Do

segundo, considerado o mais importante pela extensão de conhecimentos matemáticos

legados e também conhecido por Papiro Rhind28, pode-se destacar como os egípcios ensinam

a calcular a área do círculo: “sem justificar, ele diz que tal área é igual à área de um quadrado

cujo lado é 8/9 do diâmetro do círculo” (GARBI, 2010, p.14).

De fato, comparando-se o valor da área do círculo obtida pela fórmula de cálculo da

constante do Papiro de Ahmes e, modernamente, aproximando-se o valor de π para 3,1416, os

resultados são incrivelmente próximos, com uma diferença da ordem de 0,6%.

• Papiro de Ahmes: Área do Círculo = (8/9 x Diâm)2 = (64/81) x (2 x Raio)2 = (64/81) x

4 x Raio2 = 3,1605 x Raio2

• Modernamente: Área do Círculo = π x Raio2 = 3,1416 x Raio2

Figura 4. Papiro de Ahmes

Analisando, porém, a geometria egípcia constante nos Papiros, e comparando-a à

futura geometria dos gregos, pode-se concluir, tal como Cajori (2007, p.43), que os egípcios

“levaram a geometria não mais além do que o absolutamente necessário para os seus desejos”,

ou, como Garbi (2010, p.12), que eles desenvolveram sua matemática de forma “indutiva,

basicamente para finalidades práticas como a Agrimensura, a Arquitetura e as obras de

irrigação”. 27 Ver figura 1. 28 Homenagem ao egiptólogo escocês Alexander Henry Rhind, que comprou o papiro no Egito em 1858.

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Esse faraó (Sesóstris) realizou a partilha das terras, concedendo a cada egípcio uma porção igual, com a condição de ser-lhe pago todos os anos certo tributo; se o rio carregava alguma parte do lote de alguém, o prejudicado ia procurar o rei e expor-lhe o ocorrido. O soberano enviava agrimensores para o local, para determinar a redução sofrida pelo terreno, passando o proprietário a pagar um tributo proporcional ao que restara. Eis, ao que me parece, a origem da geometria, que teria passado do Egito para a Grécia. (Heródoto apud GARBI, 2010, p.12).

Portanto, se há consenso entre os historiadores da matemática de que os gregos

buscaram no Egito seus conhecimentos de geometria, também é preciso destacar que, com os

gregos, a geometria eleva-se de um patamar de metodologia aplicada na resolução de

problemas de agrimensura para um patamar de teorização especulativa, ou, em outras

palavras, os gregos promoveram o descolamento da geometria de sua gênese experimental.

Assim, enquanto o Papiro de Ahmes “reúne 85 problemas de Aritmética e Geometria,

e mostra, sem justificação, como resolvê-los” (GARBI, 2010, p.13), o Sumário Eudemiano29

atribui a Tales, o fundador da escola física milesiana, cinco teoremas de geometria elementar,

puramente teóricos:

i. Um círculo é bisseccionado por qualquer diâmetro:

ii. Os ângulos da base de um triângulo isósceles são congruentes:

29 Segundo Cajori (2007, p.44), “uma história completa da geometria e astronomia gregas durante este período [das primitivas escolas de Tales e de Pitágoras], escrita por Eudemo, um aluno de Aristóteles, perdeu-se no tempo. Era muito bem conhecida por Proclo, que, em seus comentários sobre Euclides, nos deixou um breve apanhado da matéria. Este resumo é a nossa mais confiável informação a respeito. Vamos nos referir frequentemente a esse texto usando o título Sumário Eudemiano”.

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iii. Os ângulos opostos pelo vértice são congruentes:

iv. Dois triângulos são congruentes se eles têm um lado e dois ângulos

congruentes:

v. Um ângulo inscrito em um semicírculo é um ângulo reto:

Em resumo, a partir da escola jônica, de tradição geométrica, fundada por Tales, os

gregos elevam a geometria e esta passa a descolar-se da realidade para adquirir um estatuto

próprio, com conceitos, abstrações e teoremas. Kant, no prefácio da segunda edição da Crítica

da Razão Pura descreve uma série de iluminações, acontecimentos fundadores que põem a

razão humana rumo à ciência, dentre os quais, a revolução empreendida por Tales na

matemática30.

30 “Após mencionar de passagem a lógica, em que o entendimento prescinde dos conteúdos do conhecimento, Kant evoca três iluminações, uma de natureza matemática, outra física, e a terceira metafísica, a elas associando simbolicamente vários nomes: o de Tales para a primeira, os de Galileu, Torricelli e Stahl para a segunda, e finalmente o seu para a terceira, que ele compara à revolução realizada na astronomia por Copérnico”. (SAINT-SERNIN, 1998, p.11).

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Um novo e grande impulso é dado pela escola italiana31, fundada por Ferecides, que

tem em Pitágoras sua maior expressão. De acordo com Garbi (2010, p.30), “os pitagóricos

fizeram, também, importantes descobertas no campo da Aritmética, quase sempre com o

auxílio de figuras geométricas. Aliás, a Aritmética grega foi muito influenciada por ideias

geométricas”. Para Cajori (2007, p.47), com Pitágoras, “a geometria estava intimamente

ligada a sua aritmética. Ele foi particularmente admirador das relações geométricas extraídas

da expressão aritmética”.

No Protágoras 343a-b, Platão faz referência aos Sete Sábios, homens que se

destacaram por sua sabedoria e que, por isso, desfrutavam de grande prestígio junto aos

antigos gregos: “Tales, de Mileto; Pítaco, de Mitilene; Biante, de Priene; nosso Solão;

Cléobulo, de Lindos; Misão, de Queneu; e o lacedemônio Quilão, que é tido como o sétimo

do grupo”. (PLATÃO, 2002, p.95).

Segundo Diógenes Laêrtios (2008, p.23), em Vidas I.40, “Dicáiarcos apresenta quatro

nomes sempre aceitos, constantes da lista – Tales, Bías, Pítacos e Sôlon”. Esta é uma

informação bastante ilustrativa do apreço da sociedade grega, altamente politizada e

judicializada, para com a geometria, pois, dentre os sábios consensuais, além dos políticos

Bías de Priene, Pítacos de Mitilene, e Sôlon de Atenas, encontra-se um geômetra: Tales de

Mileto.

A busca de um fundamento originário para os fenômenos (os chineses também o

buscavam, mas sem geometria) e a geometria (os egípcios a possuíam, mas apenas para

aplicações práticas), são os fatores que levaram os milésios pré-socráticos, e não os egípcios

ou os chineses, a infundirem uma tendência especulativa ao pensamento, provocando o

nascimento da ciência enquanto discurso sobre a realidade através de leis generalizantes:

Com efeito, se admitíssemos uma certa concepção ultrapositivista e ultrapragmática da ciência e do trabalho científico, certamente deveríamos dizer que foram os babilônios que começaram. Realmente, eles observaram

31 Diógenes Laêrtios (2008, p.16), em Vidas I.13, afirma que “na realidade a filosofia teve uma origem dupla, começando com Anaxímandros e com Pitágoras. O primeiro foi discípulo de Tales, enquanto Pitágoras recebeu lição de Ferecides. Uma das escolas filosóficas chamou-se iônica porque Tales, um milésio e portanto um iônio, instruiu Anaxímandros; a outra chamou-se italiota por causa de Pitágoras, que filosofou a maior parte de sua vida na Itália”. Adiante (p.23 e 24), Vidas I.43 e 44, segue trecho de uma carta conservada de Tales a Ferecides, que comprova as viagens de Tales ao Egito e o apego ao lar do fundador da Escola Italiota: ‘Com efeito, certamente eu e Sôlon de Atenas não seríamos nada sensatos se, após haver navegado até Creta para dar sequência a nossas indagações lá, e até o Egito para conversar com os sacerdotes e astrônomos, não viajássemos até onde estás (com tua anuência, Sôlon também irá). Tu, ao contrário, és de tal maneira apegado ao lar que raramente visitas a Iônia e não sentes vontade de ver estrangeiros. Nesse ínterim, espero eu, deves estar dedicando-te somente a escrever, enquanto nós, que jamais escrevemos coisa alguma, viajamos por toda a Hélade e a Ásia’”.

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os céus, fixaram as posições das estrelas e organizaram os respectivos catálogos, anotando, dia a dia, as posições dos planetas. Se isso é feito cuidadosamente durante séculos, chega-se, no fim das contas, a ter catálogos que revelarão a periodicidade dos movimentos planetários e oferecerão a possibilidade de prever, para cada dia do ano, a posição das estrelas e dos planetas que serão reencontrados cada vez que se olhar para o céu. O que é muito importante para os babilônios, pois, dessa previsão das posições de planetas depende, pelos caminhos da astrologia, uma previsão dos acontecimentos que se darão na Terra. Assim se a previsão e a predição equivalem a ciência, nada é mais científico do que a astronomia babilônica. Mas se se vir no trabalho científico sobretudo um trabalho teórico e se se acreditar – como é o meu caso – que não há ciência onde não há teoria, rejeitar-se-á a ciência babilônica e dir-se-á que a cosmologia científica dá seus primeiros passos na Grécia, pois foram os gregos que, pela primeira vez, conceberam e formularam a exigência intelectual do saber teórico: preservar os fenômenos, isto é, formular uma teoria explicativa do dado observável, algo que os babilônios jamais fizeram. (KOYRÉ, 1982, p.82).

Possuindo uma forte tendência especulativa, os gregos elevaram a matemática de um

patamar de metodologia aplicada na solução de problemas cotidianos, como os enfrentados

pelos agrimensores do faraó, para a forma de uma teoria abstrata, generalizante e

simplificada, no sentido de “reunir coisas que à primeira vista parecem diferentes, na

esperança de sermos capazes de reduzir o número de coisas diferentes e, assim, compreendê-

las melhor” (FEYNMAN, 2005, p.53); ou no sentido de distinguir, utilizando a terminologia

de Poincaré (1985), uma casa de um monte de pedras.

Em vez de uma pirâmide seccionada específica, como a do Papiro de Moscou (Figura

1), uma pirâmide geral (Figura 2). Em vez de um cabedal babilônico de fórmulas aritméticas

sobre o movimento dos planetas, uma descrição geométrica do cosmos empreendida por

Anaximandro. A ciência nascente grega possibilita a geometrização do cosmos, que ocorreu

na antiga Milésia, e não no Egito, na Babilônia ou na China32:

Essa geometrização do universo físico acarreta uma transformação geral das perspectivas cosmológicas; consagra o advento de uma forma de pensamento e de um sistema de explicação sem analogia no mito. Para exemplificar, Anaximandro localiza a terra, imóvel, no centro do universo. Acrescenta que se ela permanece em repouso nesse lugar, sem ter necessidade de nenhum suporte, é porque está a igual distância de todos os pontos da circunferência celeste e não tem nenhuma razão para ir para baixo mais que para cima, nem para um lado mais que para outro. Anaximandro situa, pois, o cosmos num espaço matematizado constituído por relações puramente geométricas. (VERNANT, 2008, p.130 e 131).

32 De acordo com Needham (1995), os astrônomos chineses compunham um serviço governamental, ao contrário dos gregos, filósofos particulares. Isto não significa que apenas estes últimos buscavam a verdade, mas que, aos primeiros não parecia necessário que o cosmos tivesse que ser expresso em uma forma altamente teórica e geométrica, que foi característica dos gregos. Para os chineses, as observações celestes serviam antes para o prognóstico de negócios do Estado do que para a especulação teórica.

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Há de se reconhecer, portanto, a capacidade de generalização teórica dos gregos, cujo

pensamento irá transcender a mera observação dos fenômenos observados em busca de uma

ordem. Esta busca é a grande obsessão da filosofia grega: “estabelecer um discurso que

falasse sobre a natureza íntima das coisas, a qual permanece a mesma em meio à

multiplicidade de suas manifestações”. (ALVES, 2010, p.45). Um discurso teórico

(generalizante e preditivo) dos fenômenos, que encontra suporte em duas pilastras

fundamentais sobre as quais se apoiou a nascente ciência grega: phýsis e geometria.

Com efeito, “pensando a phýsis, o filósofo pré-socrático pensa o ser, e a partir da

phýsis pode então aceder a uma compreensão da totalidade do real”. (BORNHEIM, 2001,

p.14).

No conceito grego de phýsis estavam inseparáveis as duas coisas: o problema da origem – que obriga o pensamento a ultrapassar os limites do que é dado na experiência sensorial – e a compreensão, por meio da investigação empírica, do que deriva daquela origem e existe atualmente. (JAEGER, 2001, p.196).

Por seu turno, a geometria “se trata de um conhecimento do que existe sempre33, mas

não do que nasce e morre logo”. (PLATÃO, 1996, p.65).

Se fosse experimental, ela seria só aproximativa e provisória. E que aproximação grosseira! A Geometria seria, unicamente, o estudo dos movimentos dos sólidos; mas, na realidade, ela não se ocupa dos sólidos naturais; seu objeto são certos sólidos ideais, absolutamente invariáveis, que são uma imagem simplificada e bem distante dos nossos sólidos reais. (POINCARÉ, 1985, p.67).

Portanto, a conjunção entre phýsis, que inclui a questão do fundamento originário, e

geometria, enquanto conhecimento do que é eterno e imutável, são os fatores determinantes

para o nascimento da ciência física milésia:

Os físicos pesquisam de onde e por que caminho o mundo veio a ser. Mas essa reconstrução genética explica a formação de uma ordem que se encontra agora projetada num quadro espacial. Um ponto deve ser aqui fortemente sublinhado. A dívida dos milésios para com a astronomia babilônica é incontestável. Dela tomaram as observações e os métodos que, segundo a lenda, teriam permitido a Tales predizer um eclipse; devem-lhe também instrumentos como o gnómon, que Anaximandro teria levado a Esparta. O restabelecimento dos contatos com o Oriente revela-se, esta vez ainda, de uma importância decisiva para o desenvolvimento de uma ciência

33 A República, Livro VII, 527b: τοῦ ἀεί ὄντος. (tou aeí óntos). O sentido não é propriamente o ‘do que existe sempre’, mas o ‘do que é sempre’: o ser próprio da realidade inteligível, aídios kaí akínetos, eterno e imutável. Nos comentários de Bernard Piettre, a nota 63 ressalta a dignidade da matemática para a ciência: “A aritmética impulsiona a alma para a essência e as Ideias, ao permitir, sobretudo, conceber realidades ‘unas’, que são os números. A geometria impulsiona a alma para a essência e as Ideias, ao permitir, principalmente, conceber seres ‘eternos’ (como o são as Ideias): o quadrado, o triângulo, o círculo etc., cujas definições e propriedades são imutáveis”. (PLATÃO, 1996, p.65).

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grega em que as preocupações de ordem astronômica desempenharam um papel considerável. E, no entanto, por seu aspecto geométrico, não mais aritmético, por seu caráter profano, livre de toda religião astral, a astronomia grega coloca-se, desde o primeiro momento, num plano diferente do da ciência babilônica de que se inspira. Os jônios situam no espaço a ordem do cosmos; representam a organização do universo, as posições, as distâncias, as dimensões e os movimentos dos astros, segundo esquemas geométricos. (VERNANT, 2008, p.129 e 130).

A essentiae imago do cosmos por Anaximandro é, pois, uma proposta ousada para

quem não dispunha de instrumentos de observação e de medição além do gnómon34 e do

relógio de água conhecido como clepsidra35, e do acervo de observações de outras

civilizações. Tal ousadia é fruto do espírito grego, cujo pensamento, a partir do conceito

originário de phýsis e da geometria, vai além da experiência sensorial para a especulação de

uma teoria generalizante sobre o cosmos.

Uma tal teoria há de dar conta do problema da origem e da essência das coisas, mas

exige, por seu turno, a adesão a uma proposta que fundamenta a ordem do cosmos – a água, o

apeíron, o ar são as opções da física milesiana. Desta adesão, que tem um sentido mais

metafísico do que físico (numa separação que os antigos não promoviam), deriva a íntima

relação, que é característica da ciência antiga, entre cosmos e comunidade jurídica das coisas,

que caracteriza o contexto de leis sacras.

Nesta forma – se a encararmos do ponto de vista moderno – parece esboçar-se a ideia prodigiosa de uma legalidade universal da natureza. Mas não se trata de uma simples uniformidade do fluxo causal, no sentido abstrato da nossa ciência atual. O que Anaximandro formula com suas palavras é mais uma norma universal do que uma lei da natureza no sentido moderno. O conhecimento desta norma do acontecer da natureza tem um sentido religioso imediato. Não é uma simples descrição de fatos, mas uma justificação da natureza do mundo. O mundo revela-se como um cosmos, isto é, como uma comunidade jurídica das coisas. (JAEGER, 2001, p.202).

A herança dos antigos, dos gregos em especial, foi, então, uma epistéme que submeteu

a realidade aparente do mundo sensível ao pensamento teórico, mas que implicou numa

concepção de cosmos enquanto comunidade jurídica das coisas. Uma concepção nascida da

especulação generalizante, mediante a conjunção de phýsis e geometria, mas que passa a

exigir, doravante, a adesão a um fundamento metafísico do “porquê” da ordem das coisas.

34 Gnómon: “é o mais antigo instrumento astronômico que se conhece. Consiste numa haste longa e afinada, colocada verticalmente ao solo, cuja sombra permite a determinação da posição do Sol”. (MORAIS, 2010, p.30). 35 Clepsidra: “marcador de tempo formado por um recipiente cheio de água, com um pequeno orifício pelo qual o líquido se escoa lentamente, fazendo com que seu nível desça através de uma escala feita na parede do recipiente, que marca o tempo”. (MORAIS, 2010, p.30).

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Nesse sentido, o contexto da ciência antiga é o contexto de leis sacras, o contexto

hefestiano. É um contexto que tem a pretensão de coerência integral mediante o sacrifício

expiatório do novo, do desmedido, pois “negligenciar as ordens de um pai é falta cuja punição

é muito dura36” (ÉSQUILO, 2004, p.15). Do cientista antigo, a ciência exige métis37, um tipo

de inteligência previdente, apropriada à ordem da comunidade jurídica das coisas.

No que diz respeito à concepção de cosmos enquanto comunidade jurídica das coisas,

possuidora de uma estrutura de legalidade, percebe-se o quanto a ciência nascente é tributária

da mitologia, em especial, conforme Brandão (2001), da estrutura métron-hybris-némesis,

restauradora da harmonia do cosmos mitológico, e que passa a ser utilizada pelos cientistas

antigos na defesa de pretensão de coerência integral do discurso científico sacro.

Ora, essa estrutura normativa que se impõe à ciência antiga, derivada da adesão a um

fundamento originário mais metafísico do que físico para o cosmos, pode ser comparada à

adesão ao Quinto Postulado na geometria euclideana, que tem um sentido também metafísico,

pois não há compatibilidade física entre tal postulado e o cosmos esférico finito da

cosmologia antiga, restando pois o caráter dedutivo e não descritivo da geometria no contexto

da ciência de leis sacras.

Em Euclides, vemos atuar, pela primeira vez na história do pensamento, o propósito de fazer com que os princípios primeiros sobre os quais se dará a dedução sejam poucos, simples, e sua proveniência seja mais a contemplação e a reflexão do que a material e a instrumental. Propósito efetuado, mas não enunciado, porque nunca nos Elementos encontramos os propósitos enunciados, nem explicados os princípios diretores. (LEVI, 2008, p.93).

Ou seja, na defesa do métron, da coerência do discurso científico do cosmos, uma

hybris, a não adesão a uma proposta metafísica fundamental, implica em némesis, a

necessidade de ruptura para a manutenção da coerência atacada. De modo similar, a coerência

do sistema geométrico euclideano, depende da adesão a um postulado (o Postulado das

Paralelas) metafísico, já que é impossível a identidade entre o espaço real e o espaço

geométrico no cosmos esférico finito.

O cosmos, assim como a geometria euclideana, possui uma harmonia intrínseca e uma

legalidade estruturante que dependem da adesão a um fundamento metafísico para a sua

coerência dedutiva. Jaeger (2001) leciona que partindo da ideia de harmonia chega-se à

consciência do aspecto estrutural da legalidade cósmica. 36 Hefesto, in Prometeu Acorrentado, versos 22 e 23. 37 Métis “provém de uma raiz verbal que significa ‘medir’, o que pressupõe ‘cálculo, conhecimento exato’. Este sentido se conservou em métron, ‘medida’”. (BRANDÃO, 1997, p.121).

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A harmonia exprime a relação das partes com o todo. Está nela implícito o conceito matemático de proporção que o pensamento grego se figura em forma geométrica e intuitiva. A harmonia do mundo é um conceito complexo em que estão compreendidas a representação da bela combinação dos sons no sentido musical e a do rigor dos números, a regularidade geométrica e a articulação tectônica. É incalculável a influência da ideia de harmonia em todos os aspectos da vida grega dos tempos subsequentes. (JAEGER, 2001, p.207).

Não partilhar da adesão metafísica implica violar a comunidade jurídica das coisas,

seria como macular a coerência dedutiva da geometria euclideana. O pitagórico Hípaso, tendo

demonstrado, mediante ‘reductio ad absurdum38’, que a raiz quadrada de dois não é um

número racional, ou seja, existem números irracionais, aqueles que não podem ser expressos

como a razão de dois inteiros, foi abandonado em alto-mar por seus pares e morreu afogado.

O relato, do qual não se pode extrair a certeza histórica como a do ocorrido com Giordano

Bruno, é revelador, contudo, do mecanismo métron-hybris-némesis da ciência de leis sacras.

Outro aspecto que destaca o contexto sacro da ciência antiga é o florescimento de

tantas escolas concomitantes em Atenas. A Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles, o

Jardim de Epicuro e o Pórtico de Zenão, para ficar entre as principais, são escolas que

desenvolvem, cada qual, num esquema de ruptura, uma física (e também uma antecedente

metafísica) peculiar, que busca ordenar o cosmos sob diferentes fundamentos.

Para os platônicos,

a interpretação habitual da solução de Platão era pressupor que as exigências de conhecimento aplicam-se com certeza apenas a um mundo ideal, distinto do mundo natural em que vivemos, de modo que, por exemplo, a geometria constitui um conhecimento genuíno de um mundo de cubos e triângulos ideais e assim por diante – a que, na melhor das hipóteses, os objetos circulares e triangulares do mundo real correspondem de maneira muito rudimentar. (CHALMERS, 1994, p.46).

Já, para os aristotélicos,

a distinção entre o movimento essencial e o acidental recai na noção de um cosmos ordenado, esférico e centrado na Terra, sendo movimentos essenciais aqueles que servem para manter esta ordem. Não é oferecido nenhum método sistemático para se estabelecer a existência e o caráter desta ordem. Em geral, ela se baseava nos pressupostos comuns da época, como a imobilidade da Terra e a distinção entre o reino terrestre e o celestial. (CHALMERS, 1994, p.48).

Enquanto que, para os epicuristas,

38 Reductio ad absurdum, do latim ‘redução até o nível de absurdo’. “O significado primário da expressão é técnico em lógica, pelo qual se prova a verdade de uma afirmação supondo-se, pelo bem do argumento, que ela é falsa, e mostra que essa suposição – de que a afirmação é realmente falsa – leva a uma contradição”. (WARBURTON, 2011, p.172).

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excluídos o Demiurgo que é Razão transcendente e a Necessidade com a sua razão imanente, não restam senão o Casual e o Fortuito, que são o irracional. E o cosmo epicurista fica inteiramente entregue a esse irracional. Epicuro, não Demócrito, é o filósofo que verdadeiramente “pôs o mundo por acaso”. Assim o cosmo deixa de ser a realização de um modelo inteligível no sensível, devido à bondade de um Demiurgo, ou aquela admirável ordem constituída pelo movimento causado pela perfeição de um Deus. A antítese entre a cosmologia epicurista e a do Timeu platônico ou a do Tratado sobre o Cosmo aristotélico (ou a que se pode extrair dos exotéricos de Aristóteles) não poderia ser mais radical. (REALE, 1994, p.186).

E, com os estóicos,

uma vez negada a transcendência platônico-aristotélica, Deus se admitido como existente, devia ser necessariamente imanentizado e identificado com o cosmo e com a natureza. Como veremos melhor na exposição da física, os estóicos são os primeiros panteístas, isto é, os primeiros filósofos que identificaram Deus e a Natureza com plena consciência teórica dos pressupostos e corolários que essa identificação comporta. (REALE, 1994, p.268).

Eis, portanto, a herança dos antigos, dos gregos em especial: a ciência nascente, como

um discurso de leis gerais, preditivas e verdadeiras, desenvolve-se em um contexto sacro.

Platônicos, aristotélicos, epicuristas e estóicos desenvolvem, cada qual, uma física peculiar,

uma descrição do cosmos enquanto comunidade jurídica das coisas. São descrições que

implicam ruptura a partir da não adesão ao fundamento metafísico que impõe a harmonia

intrínseca, a estrutura normativa e a coerência dedutiva de sua teoria física.

A concepção do cosmos enquanto comunidade jurídica das coisas será mantida pelos

cientistas medievais. Uma mudança substancial, contudo, será promovida no fundamento39

para a ordem do cosmos – a ideia grega de harmonia será substituída pela ideia medieval de

hierarquia. Na harmonia, há de se falar de primazia: da água para Tales, do número para

Pitágoras, ou do Uno, para Platão. Na hierarquia, tem-se não apenas primazia, mas

superioridade:

Ele é grande não no sentido espacial, como se diria dos corpos, mas no sentido em que quanto maior é, mais digno e melhor é, como acontece com a sabedoria. E, desde que não pode haver nada sumamente grande se não é sumamente bom, decorre que deve existir um ser que, igualmente, é o maior e o melhor, isto é, sumamente superior a todas as coisas. (ANSELMO, 2005, p.16).

39 “Os pensadores gregos anteriores a Platão tinham pregado o seu princípio supremo – quer se tratasse da causa primigênia material fonte da vida, quer do espírito que guiava o mundo – simplesmente como Deus ou como ‘o divino’. Desde o primeiro momento que a filosofia grega dirigiu a sua atenção para a natureza (physis) da realidade ou do existente. Foi aqui que nasceu o que hoje costumamos denominar ciência. Mas desde o século XIX há a tendência cada vez maior a perder de vista, em face deste aspecto, a função religiosa da filosofia grega, ou, pelo menos, a considerar esta solene roupagem como a simples casca do ovo”. (JAEGER, 2001, p.873).

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Se, entre os gregos, o contexto sacro da harmonia permitiu o florescimento de diversas

cosmologias, de múltiplas essentiarum images, cada uma com seu fundamento primaz, a

partir dos medievais, o contexto sacro da hierarquia admite apenas um único discurso

adequado do cosmos: a essentiae imago geocêntrica, de orientação platônico-aristotélica,

posto que não há mais um fundamento primaz (um dentre outros, com basileía ou realeza

relativa), mas o fundamento superior (o que tem tyrannís ou realeza absoluta): o Uno

agostiniano da patrística, que é sucedido pelo Motor Imóvel tomista da escolástica.

O mecanismo métron-hybris-némesis da ciência sacra medieval será radicalizado e,

em vez de ruptura, cessação: outras cosmologias não são apenas afastadas, mas perseguidas e

condenadas por instrumentos do tipo anathema, bulla, imprimatur, index, Inquisitio, nihil

obstat etc. Na ruptura da ciência antiga clássica, tem-se a ciência enquanto convivência de

diversos sistemas que desvelam o cosmos (verdade como alétheia), ao passo que, na cessação

da ciência antiga medieval, a ciência apresenta-se como o único discurso adequado do cosmos

(verdade como adequatio). A pergunta de Pôncio Pilatos transfere-se do grego clássico (Ti

estin alétheia;) para o latim medieval (Quid est veritas?)40.

Há de se reafirmar que, seja entre os clássicos ou os medievais, o contexto da ciência

antiga é o contexto sacro, o contexto de descrição do cosmos enquanto comunidade jurídica

das coisas. A diferença é a radicalização do mecanismo de métron- hybris-némesis, a partir de

novas categorias: hierarquia, superioridade e cessação (realeza absoluta) em vez de harmonia,

primazia e ruptura (realeza relativa).

Na ciência medieval, não há possibilidade de um desvelamento alternativo do cosmos,

pois a adequada descrição geocêntrica platônico-aristotélica cessa outras descrições. Por esta

razão, Giordano Bruno, ao defender a concepção de um Universo infinito, ilimitado e em

movimento, onde a Terra não ocupa mais uma posição central e privilegiada, foi queimado,

junto com suas obras, pela Inquisição.

A descrição de Bruno, que incorpora elementos das físicas epicurista (a infinidade dos

mundos) e estóica (o monismo panteísta) afronta a ciência oficial em dois aspectos

fundamentais: a finitude esférica do cosmos e a diferença de substância entre os mundos supra

e sublunar. 40 É impossível deixar de citar Heidegger (2000), e sua conferência Sobre a Essência da Verdade. Porém, não é objetivo deste trabalho desenvolver a discordância da tese aqui assumida de que alétheia e adequatio são características do contexto da ciência sacra, sendo a primeira marcada pela ruptura e a última, pela cessação. Para Heidegger, alétheia é abertura e adequatio, fechamento. Nesta dissertação, somente ocorrerá abertura na ciência contemporânea, com a verdade por coerência a substituir a verdade por correspondência, presente entre os antigos e os modernos.

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Em linhas sumaríssimas, de Platão, no Timeu 33b, a ciência medieval mantém a ideia

de que Deus “torneou o mundo em forma de esfera, por estarem todas as suas extremidades a

igual distância do centro, a mais perfeita das formas e mais semelhante a si mesma”

(PLATÃO, 2001, p.69). Já a diferença entre os mundos supra e sublunar provém de

Aristóteles, em especial o Livro XII da Metafísica, quando a ciência medieval incorpora a tese

da tripartição da substância: supra-sensível, sensível eterna (mundo supralunar) e sensível

perecível (mundo sublunar).

Figura 5. Cosmos Geocêntrico Esférico

No tratado Sobre o Céu, Aristóteles desenvolve a tese de que, entre os sensíveis, os

corpos celestes são atos limitados por uma matéria simples (éter), enquanto os terrestres são

atos limitados por uma matéria composta (terra, água, ar, fogo). Se o simples é mais perfeito

do que o composto, o corpo celeste é mais perfeito do que o terrestre. Dentre os movimentos

simples, o circular é o mais perfeito. Dentre os formatos simples, a esfera é o mais perfeito.

Logo, mediante dedução, o movimento e o formato dos corpos celestes são, necessariamente,

o movimento circular e o formato esférico.

Concluindo, pode-se afirmar que a conjunção do conceito originário de physis, onde a

questão da origem é intrínseca, e de uma geometria milésia, desenvolvida por Tales em sua

forma abstrata, promoveu o nascimento da ciência de leis generalizantes entre os gregos

clássicos. A descrição do cosmos grego, a partir da noção fundamental de ordem harmônica,

enquanto comunidade jurídica, será incorporada pelos medievais, que radicalizarão o

mecanismo métron-hybris-némesis, transmutando a harmonia para hierarquia.

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Em um contexto de leis sacras, clássico ou medieval, a comunidade exige a adesão a

um fundamento de ordem metafísica, que tem a mesma natureza (dedutiva) do Quinto

Postulado para a geometria euclideana. A diferença entre a ciência antiga clássica e a antiga

medieval encontra-se no grau de realeza do fundamento metafísico: relativo (basileía) para os

clássicos, absoluto (tyrannís), para os medievais.

A ciência de leis sacras diferencia-se em grau, mas não em natureza. Uma inflexão no

modo de conceber a ciência hefestiana será promovida quando da mudança do status da

geometria euclideana de dedutiva para descritiva. De fato, no contexto clássico, antigo ou

medieval, estão presentes categorias que se diferenciam apenas no grau, mas não em sua

natureza: harmonia/hierarquia; primazia/superioridade; ruptura/cessação.

Assim, enquanto a ciência antiga clássica apresenta-se através de vários conjuntos

coexistentes de leis generalizantes (como as físicas de Platão, Aristóteles, Epicuro ou Zenão),

que não se excluem e podem ter até elementos em intersecção, mas onde cada conjunto

apresenta a sua metafísica, o seu theós, a sua visão do primaz; a ciência antiga medieval, por

sua vez, apresenta-se através de um único conjunto de leis generalizantes, qual seja, o cosmos

platônico-aristotélico: esférico, finito e trissubstancial, que se fundamenta no Uno patrístico

ou no Motor Imóvel escolástico, o superior, o que tem realeza absoluta (tyrannís), e que não é

apenas um primaz, o que, dentre outros, tem realeza relativa (basileía).

Na basileía, visões de outros primazes considerados são permitidas. A inscrição ‘To

Agnósto Theo’, referida por São Paulo (At, 17:23) no dativo-masculino-singular,

provavelmente estava no plural41. Entre os clássicos, não há de se falar ‘ao deus

desconhecido’, mas ‘aos deuses desconhecidos’: ‘tois agnóstois theois’ (ao ápeiron de

Anaximandro, ao uno de Platão, ao motor imóvel de Aristóteles etc.).

41 “Para a grande problemática inerente a essa inscrição (que provavelmente tinha um plural e não o singular ‘deus desconhecido’), para suas relações com as concepções religiosas orientais e judaicas e para a análise das numerosas documentações paralelas, remeto ao fundamental E. Norden, Agnostos Theos, Leipzig 1923, 31-124” (TOSI, 2000, p.672 e 673).

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2.2 SALVAR OS FENÔMENOS

A radicalização da concepção clássica do cosmos, que se traduz pela diferença de grau

das categorias clássicas (harmonia, primazia, ruptura) em relação às categorias medievais

(hierarquia, superioridade, cessação), irá constituir o contexto tirânico de leis sacras. No

contexto hefestiano radicalizado, a ciência passa da convivência de diversos sistemas que

desvelam o cosmos (verdade como alétheia) a um único discurso adequado do cosmos

(verdade como adequatio), a descrição cosmológica platônico-aristotélica.

Tal radicalização operada na ciência não seria possível sem a forte tutela de uma

instituição que dominasse a cena cultural da Europa Medieval. Da Teologia ao senso

comum42, tudo trazia a marca da tutela cultural da Igreja Católica.

Também na vida intelectual, a influência da Igreja se fez sentir; se, por um lado, o monopólio do saber permitiu o controle da veiculação do conhecimento, por outro, permitiu o controle da produção de conhecimento. Ao produzir conhecimentos, uniu-se o saber greco-romano aos dogmas cristãos, buscando-se dar, assim, uma fundamentação sólida às doutrinas do cristianismo. Toda a vida intelectual ficou subordinada à Igreja: a teologia, a filosofia e a ciência traziam, umas mais, outras menos explicitamente, a marca da religião. (ANDERY ET ALLI, 2007, p.142).

A grande marca da ciência medieval é, em uma concepção de cosmos enquanto

comunidade jurídica, estabelecer a noção de verdade enquanto adaequatio, por cessação de

outras descrições físicas alternativas. Heidegger (2000) destaca o caráter dual de tal

conformidade, apontando, de um lado, que a verdade exige a conformidade entre uma coisa e

o que dela se presume, e, de outro, a conformidade entre o que é significado pela enunciação e

a coisa.

A dualidade da adaequatio medieval decorre da fé cristã e da ideia teológica segundo

a qual as coisas, criaturas de Deus, correspondem à ideia previamente concebida pelo

intellectus divinus, ou seja, as coisas estão conforme o que delas se presumem. Igualmente, o

intellectus humanus, concebido por Deus, irá realizar a adequação do que enuncia com a

coisa, pois os homens têm, de acordo com São Pedro, por licença divina, ta pánta pros zoen

kai eusébeian, “tudo o que contribui para a vida e para a virtude” (2Pd, 1:3).

42 “A personalidade de cada santo era ainda mais intensificada pela função especial que cabia a cada um deles: recorria-se àquele para a cura de uma certa doença. Normalmente, a fonte dessa especialização se encontrava num detalhe da lenda do santo ou em um atributo conferido a ele em uma de suas representações, como, por exemplo, no caso de Santa Apolônia, que teve os dentes arrancados no seu martírio e portanto era invocada em casos de dor de dente”. (HUIZINGA, 2010, p.275).

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Tanto a significatio rerum quanto a significatio intellectum são consideradas por Abelardo como duas funções de um termo, distintas mais pela intensidade da ação do que pela qualidade do fim. A primeira procura ser um espelho da res, a outra tem como finalidade a de comunicar os conceitos legitimados pela res. (CELLA, 1993, p.67).

Os dois mundos da cosmologia geocêntrica platônico-aristotélica, o sensível perecível

(sublunar) e o sensível eterno (supralunar)43 parecem estar conforme o que delas se presume

pelo Intelecto Divino. Como está descrito no Apocalipse, “apareceu em seguida um grande

sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa

de doze estrelas” (Ap, 12:1). Ou seja, a Mulher revestida do sol, que os teólogos identificam

com Nossa Senhora (daí a iconografia Mariana com a medialuna sob os pés), pertence ao

mundo supralunar aristotélico (os pés sobre a lua e cabeça sob a esfera das estrelas): é uma

mulher (sensível), mas imperecível (imaculada).

Para entendermos as ideias de Aristóteles sobre o movimento precisamos ter antes uma noção de suas ideias sobre Cosmologia, que ele descreve no tratado Do Céu. Ele considerava o cosmos dividido em duas regiões qualitativamente diferentes, governadas por leis diferentes. Para ele o Universo era uma grande esfera, dividida em uma região superior e uma região inferior. A região inferior, chamada de terrestre, ou sublunar, ia até a Lua. Essa região era caracterizada por nascimento, morte e mudanças de todos os tipos. Além da Lua estava a região celeste. A física celeste e a física terrestre eram ambas parte da filosofia natural, mas eram regidas por leis diferentes. (PIRES, 2008, p.39).

Outro aspecto adequado do cosmos instituído pelos medievais é a sua simplicidade.

Enquanto os movimentos do mundo sublunar são compostos, incoerentes, imperfeitos e

descontínuos, o movimento do mundo supralunar é simples, harmônico, perfeito e contínuo.

Depois de formar os corpos de todos eles, a divindade colocou-os nos circuitos em que se move a revolução do Outro, sete corpos em sete órbitas: a lua, no primeiro e mais próximo da Terra; o sol, no segundo, acima da terra; depois a estrela matutina e a consagrada a Hermes, em círculos diferentes, que se movimentam com velocidade igual a do sol, mas dotadas de poder contrário ao dele. Essa a razão de se alcançarem uns aos outros, o sol, a estrela de Hermes e a matutina. Timeu, 38c-38d. (PLATÃO, 2001, p.74 e 75).

Para Aristóteles, os movimentos celestes correspondem ao movimento que se espera

da substância sensível eterna, que é simples, o que confere um critério puramente qualitativo à

43 “Hay tres clases de substancias. Una es sensible, que se divide en eterna y corruptible. Ésta é admitida por todos; por ejemplo, las plantas y los animales. La otra es la eterna, cuyos elementos es necesario inquirir, ya sea uno ya varios. La tercera es inmóvil, y de ella dicen algunos que es separable; y unos la dividen en dos, mientras que otros incluyen en una misma naturaleza las Especies y las Cosas matemáticas, y otros sólo admiten las Cosas matemáticas. Las dos primeras pertenecen al dominio de la Física (pues implican movimiento); pero la tercera corresponde a otra ciencia, si no hay ningún principio común a todas ellas”. Metafísica, Livro XII, 1069a-b. (ARISTOTELES, 1990, p.599 e 600)

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física aristotélica44. A correspondência entre simplicidade e eternidade, que são atributos

divinos45, encontra-se no movimento circular. Portanto, segundo a concepção qualitativa da

física aristotélica, os planetas (de substância natural eterna) têm, a priori, um movimento

circular46.

Definido o movimento, cabe aos astrônomos47 proporem modelos matemáticos

destinados a ‘salvar os fenômenos48’, ou seja, modelos que preservem o movimento circular,

necessário segundo a fundamentação metafísica do contexto de leis sacras (de acordo com o

‘porquê’ do cosmos), mas que, ao mesmo tempo, sejam preditivos, ou seja, que forneçam um

modelo adequado ao movimento dos planetas. Segundo Duhem (1984, p.7):

O objetivo da Astronomia é definido aqui com extrema clareza; esta ciência combina movimentos circulares e uniformes para fornecer um movimento resultante semelhante ao movimento dos astros; quando suas construções geométricas associam a cada planeta um movimento equivalente àquele que é revelado pelas observações, seu objetivo foi atingido, pois suas hipóteses salvaram as aparências.

Contudo, a cosmologia geocêntrica platônico-aristotélica, do cosmos esférico finito

composto por planetas que descrevem movimentos circulares uniformes, apresenta alguns

fenômenos ‘não salvos’. Dentre estes, observáveis a ‘olho nu’, pois os antigos não dispunham

de lunetas ainda, podem ser citados, dentre outros: a variação da velocidade dos planetas, que

ora pareciam acelerar, ora frear49; a laçada, que é a mudança na direção da órbita do planeta; a

44 “Puesto que hemos distinguido tres clases de substancias, dos naturales y una inmóvil, hay que decir acerca de esta última que tiene que haber una substancia eterna inmóvil. Las substancias, con efecto, son los entes primeros, y si todas fuesen corruptibles, todas las cosas serían corruptibles. Pero es imposible que el movimiento se genere o corrompa (pues, como hemos dicho, ha existido siempre), ni el tiempo. Pues no podría haber antes ni después si no hubiera tiempo. Y el movimiento, por consiguiente, es continuo en el mismo sentido que el tiempo; éste, en efecto, o bien es lo mismo que el movimiento o es una afección suya. Pero el movimiento no es continuo, excepto el movimiento local, y de éste, el circular”. Metafísica, Livro XII, 1071b. (ARISTOTELES, 1990, p.615) 45 “(...) meu Deus, que sois admiravelmente simples e imutável”. (AGOSTINHO, 1996, p.117). “Pode-se dizer dele, com razão, que existe de maneira simples, absoluta e perfeita”. (ANSELMO, 2005, p.66). “Também daqui se infere que o primeiro dentre os seres deve ser, por necessidade, totalmente simples”. (AQUINO, 1996, p.158). 46 “(...) há otras translaciones eternas, que son las de los planetas (pues el cuerpo que se mueve circularmente es eterno e incesante en su movimiento; esto ya quedó explicado en la Física)”. Metafísica, Livro XII, 1073a. (ARISTÓTELES, 2000, p.628). 47 “Para averiguar cúantas son las translaciones hay que acudir a la más afín a la Filosofía entre las ciencias matemáticas, es decir, a la Astronomía; ésta, en efecto, estudia una substancia sensible, pero eterno, mientras que las otras no estudian ninguna substancia; por ejemplo, la Aritmética y la Geometría”. Metafísica, Livro XII, 1073b. (ARISTÓTELES, 2000, p.629). 48 A expressão é tomada de Pierre Duhem, de seu clássico “Sózein ta phenómena: Ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu”, de 1908, com tradução brasileira por Roberto A. Martins. 49 Os planetas estão em movimento elíptico em torno do Sol. Isto implica que o módulo (intensidade) de sua velocidade orbital não é constante, aumentando quando o planeta está mais próximo do Sol, que ocupa um dos focos da elipse, e diminuindo quando o planeta está mais distante. A variação do módulo da velocidade de um planeta (que aparenta acelerar ou frear) contradiz o caráter uniforme do movimento circular de Aristóteles. Há de considerar-se também que o observador na Terra está em movimento, ou seja, existe uma velocidade relativa do planeta em relação ao observador terrestre.

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variação de brilho dos planetas, como se eles se aproximassem ou afastassem da Terra50; a

órbita irregular e aparentemente não eterna dos cometas51; e as explosões celestes decorrentes

de novas e supernovas, contradizendo o caráter imperecível do mundo supralunar52.

As primeiras tentativas de aperfeiçoar o sistema de centro fixo na Terra (ou sistema

geocêntrico homocêntrico) ocorreram para salvar o fenômeno conhecido como laçada, que é a

mudança de direção do planeta. De fato, o movimento circular uniforme ao longo de uma

órbita em volta da Terra é incompatível com o movimento mais rápido ou mais devagar e até

mesmo parando e mudando de direção (laçada) de alguns planetas.

Figura 6. Laçada do Planeta Marte (observar que, em relação às estrelas fixas, o observador na Terra percebe a mudança na direção do movimento entre nov/dez e entre jan/mar)

Na tentativa de salvar a laçada dos planetas, “geômetras, como Eudoxos e Callipos,

combinavam teorias matemáticas por meio das quais podiam ser descritos e previstos os

movimentos celestes, enquanto que os observadores julgavam o grau de concordância entre as

previsões do cálculo e os fenômenos naturais” (DUHEM, 1984, p.104). Eudoxos foi um

excelente matemático53, que introduziu o sistema de múltiplas esferas, no que foi aprimorado

50 Se o planeta mantém uma distância fixa em relação à Terra, que ocupa o centro fixo do sistema geocêntrico de Aristóteles, não há como explicar a diferença de luminosidade dos planetas, decorrente da variação da distância do planeta, afastamento ou aproximação, em relação à Terra, já que, na circunferência, todos os pontos estão equidistantes do centro. 51 Os cometas, até para os antigos, não descrevem órbitas circulares em volta da Terra. 52 Novas e supernovas são fenômenos raros que contradizem o caráter eterno e não perecível do mundo supralunar aristotélico. Vide notas 24 e 25. 53 Garbi (2010, p.50) ressalta que a ele “coube a eterna onda de reformular a teoria das proporções de modo a levar em conta a existência dos irracionais”, e adiante (p.52), “tão ou mais importante do que sua Teoria das Proporções foi o tratamento dado por Eudóxio ao chamado Método da Exaustão”. Para Cajori (2007, p.58), ele “fez inteligente e frequente uso do método de exaustão, do qual foi provavelmente o inventor. Um comentarista sobre Euclides, talvez Proclo, diz ainda que Eudoxos praticamente inventou tudo que está no quinto livro de Euclides”. Diôgenes Laêrtios (2008, p.249 e 250), Vidas, Livro VIII-8, o inclui entre os pitagóricos, uma escola matemática francamente aritmética.

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por Callipos, que sacrificou ainda mais a generalidade geométrica em prol da previsibilidade,

incluindo mais esferas ao sistema geocêntrico homocêntrico.

Uma passagem da Metafísica (Livro XII, 1073a-1074a), revela que Aristóteles

reconhece a adição de esferas de Eudoxos e Callipos como uma forma de ‘explicar os

fenômenos54’, uma adição legítima e necessária à Física do mundo sensível supralunar, que é

uno em enunciado (só há movimento circular), mas não em número (há muitas esferas). Com

isso, a física aristotélica permanece submetida à metafísica, à prioridade do ato sobre a

potência, à prioridade do “primeiro motor, que é imóvel, é uno em enunciado e em número55”.

Para Reale (2001, p.148), em que pese a divergência quanto ao grau de maturidade das

ideias aristotélicas presentes no Livro XII da Metafísica56, “todos os livros, implícita ou

explicitamente, preparam e supõem o Λ”. Isso significa que o Livro Lambda é o fundamento

de toda a ciência da substância supra-sensível, e também de toda a ciência das substâncias

sensíveis, posto que a Metafísica é a ciência dos primeiros princípios e causas57.

Vale ressaltar, contudo, que apenas uma leitura extemporânea da ciência antiga

(clássica ou medieval) pode conceber uma separação entre física (ciência do sensível) e

metafísica (ciência do supra-sensível), pois, para os antigos, a epistéme do cosmos é una

enquanto investigação do ser em sua totalidade, o ser da substância sensível (perecível ou

eterna) e o ser da substância supra-sensível. Com isso, pode-se dizer que, entre os antigos, as

questões relativas à ‘Física’ e à ‘Metafísica’ são postas em conjunto e não de forma separada,

o que somente ocorrerá após a primeira inflexão.

No sistema geocêntrico homocêntrico de Aristóteles, a Terra ocupa o centro das

esferas orbitais dos planetas, que têm suas laçadas salvas pelo acréscimo sucessivo de esferas:

um esforço aritmético em sacrifício da simplicidade geométrica, uma espécie de regresso, por

assim dizer, aos antigos babilônicos, de forte tradição aritmética, como o pitagórico Eudoxos:

54 “Pero es necesario, para que todas juntas puedan explicar los fenómenos”. Metafísica, Livro XII, 1074a. (ARISTÓTELES, 2000, p.632). 55 “Por consiguiente, el primer Motor, que es inmóvil, es uno en enunciado y en número”. Metafísica, Livro XII, 1074a. (ARISTÓTELES, 2000, p.635). 56 “Tradicionalmente, era considerado como livro que continha a cúpula e o coroamento do sistema metafísico. Bonitz começou a considerá-lo como um tratado independente dos outros livros. Jaeger o considerou uma conferência, contendo o primeiro pensamento metafísico aristotélico, portanto, muito antigo, com exceção do capítulo 8, que seria uma inserção (fora de lugar) contendo as reflexões do último Aristóteles. Alguns estudiosos seguidores do método genético sustentaram, enfim, que Λ é dos últimos livros compostos da Metafísica”. (REALE, 2001, p.147). 57 “Por todo lo dicho, corresponde a la misma Ciencia el nombre que se busca. Pues es preciso que ésta sea especulativa de los primeros principios e causas”. Metafísica, Livro I, 982b. (ARISTÓTELES, 2000, p.13 e 14).

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Eudoxos afirmou que o movimento do sol e da lua58 envolve, num caso ou outro, três esferas, a primeira (a mais externa) destas sendo a das estrelas fixas, a segunda executando um movimento giratório no círculo que divide o zodíaco em duas partes e a terceira girando dentro de um círculo que está inclinado obliquamente sobre o zodíaco. Mas o círculo no qual a lua se move está inclinado num ângulo maior do que aquele em que o sol se move. E Eudoxos afirmou que o movimento dos planetas, em cada caso, envolvia quatro esferas, e que destas a primeira e a segunda são idênticas às duas primeiras mencionadas (pois a esfera das estrelas fixas é a que move todas as outras esferas, e a esfera seguinte – a qual tem seu movimento no círculo que divide o zodíaco em duas partes iguais, é comum a todos os planetas); a terceira esfera de todos os planetas tem seus pólos no círculo que divide o zodíaco em duas partes iguais, enquanto a quarta esfera move-se no círculo inclinado para o equador da terceira. Quanto à terceira esfera, embora os demais planetas disponham de seus próprios pólos, Vênus e Mercúrio possuem os mesmos pólos. Callipos supôs o mesmo arranjo das esferas de Eudoxos, quer dizer, do ponto de vista da ordem de seus intervalos. Mas, quanto ao número delas, embora tenha atribuído a Júpiter e Saturno o mesmo número de esferas que Eudoxos, pensou que deviam ser adicionadas mais duas esferas para o sol e a lua – se quiséssemos dar uma explicação ao fenômeno – e uma para cada um demais planetas. Metafísica, Livro XII, 1073b. (ARISTÓTELES, 2006, p.307 e 308).

A complexidade aritmética que as esferas adicionais de Eudoxos e Callipos irão

imprimir ao sistema homocêntrico como tentativa de salvar os fenômenos contradiz com a

simplicidade dos primeiros arranjos especulativos que a geometria grega legou à cosmologia.

É como se a conjunção entre phýsis e da geometria, que propiciou o nascimento da ciência

entre os gregos clássicos e que lançou as sementes da generalidade, estivesse suspensa em

nome dos fenômenos, do caráter preditivo do conhecimento científico.

Uma tentativa mais geométrica de salvar os fenômenos será o desenvolvimento do

sistema geocêntrico excêntrico por dois cientistas filiados à Escola de Alexandria59, uma

cidade do Egito helenizado após as conquistas macedônicas, e então, a grande metrópole

cultural de sua época. Esta tentativa irá novamente resgatar a generalidade, sem prejuízo do

caráter preditivo necessário ao discurso científico.

58 As traduções da Metafísica (latim, inglês, espanhol e português) não conservam os nomes gregos originais dos planetas: Sol (Hélio, o fogo), Lua (Selene, a luz da noite), Mercúrio (Hermes, o rápido), Vênus (Afrodite, a bela), Marte (Ares, o rubro), Júpiter (Zeus, o maior), Saturno (Cronos, o velho). 59 Segundo Cajori (2007), após as conquistas macedônicas, Alexandria passa a ser o maior centro de ensino e cultura da Antiguidade. O grande expoente da Escola de Alexandria, pelo legado e influência de sua obra sobre os alexandrinos, foi Euclides, autor do monumental Elementos (publicado entre 330 e 320 a.C.). Pertencem ainda à Escola, entre outros gigantes da ciência, Arquimedes (287?-212a.C.), o astrônomo Hiparcos, que estabeleceu a teoria dos epiciclos e excêntricos (entre 161a.C. e 127a.C.), e Cláudio Ptolomeu, que fez observações astronômicas entre 125d.C. e 151d.C.

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O sistema geocêntrico excêntrico de Hiparcos60 e Ptolomeu61, além de salvar o

fenômeno da laçada, também salva os fenômenos da diferença de brilho, e representa um

avanço, em termos de generalidade e previsão, ao sistema geocêntrico homocêntrico das

esferas adicionais de Eudoxos e Callipos:

Assim, encontramos em Platão uma fórmula muito clara das exigências e dos pressupostos da astronomia teórica: reduzir os movimentos dos planetas a movimentos regulares e circulares. Programa que é executado por seu discípulo Eudoxos e aperfeiçoado por Callipos. Com efeito, eles substituem o movimento irregular dos astros errantes por movimentos bem ordenados de esferas concêntricas, isto é, encaixadas umas nas outras. (...) Agora, voltemos aos que tentaram representar os movimentos celestes como resultantes de um encaixe de esferas, girando umas dentro das outras. Com exceção de um fenômeno, que não se explica razoavelmente – é muito importante ver a atenção dada pelos gregos à necessidade de explicar verdadeiramente um fenômeno – a saber, a variação na luminosidade dos planetas, que ora eram muito brilhantes, ora não o eram, fato que só se podia explicar admitindo mudanças em suas distâncias em relação à Terra, eles se saíram muito bem. Foi esse fato que tornou necessária a invenção de uma nova teoria explicativa, teoria dita dos epiciclos e das excêntricas, que foi elaborada sobretudo pela Escola de Alexandria, por Apolônio, Hiparcos e Ptolomeu (KOYRÉ, 1982, p.82 e 83).

O maior mérito do sistema geocêntrico excêntrico foi, entretanto, resgatar a comunhão

entre phýsis e geometria e, assim, estancar a adição de esferas. A complexidade aritmética de

Eudoxos-Callipos poderia ter sido o rumo tomado pela astronomia, com adições sucessivas de

esferas ao sistema geocêntrico homocêntrico, sacrificando a generalidade em prol da predição.

Com Eudoxos, são “ao todo 27 esferas”. (PIRES, 2008, p.49). “Callipos, discípulo de

Eudoxos, aumentou o número de esferas para 34. A função das esferas auxiliares era gerar os

movimentos celestes observados”. (PIRES, 2008, p.49). A comunhão entre a predição dos

fenômenos e a generalidade na ciência deve-se à genialidade geométrica dos alexandrinos,

que empreenderam “um dos maiores esforços do pensamento humano” (KOYRÉ, 1982, p.84).

No século II d.C. Cláudio Ptolomeu construiu um modelo astronômico geocêntrico, compatível com os dados experimentais disponíveis então, em que adotava uma série de hipóteses a respeito do movimento dos planetas, admitindo para cada planeta a composição de um movimento de revolução (epiciclo) em torno de um certo ponto, que, por sua vez, descrevia uma trajetória circular (deferente) em torno de um outro centro. Ptolomeu admitiu que a Terra não se situava no centro do círculo deferente dos planetas. (PORTO e PORTO, 2008, p.3).

60 “Hiparcos de Nicéia na Bitínia foi o maior astrônomo da Antiguidade. Fez observações astronômicas entre 161 e 127aC, e estabeleceu indutivamente a famosa teoria dos epiciclos e excêntricos”. (CAJORI, 2007, p.77). 61 Ptolomeu viveu em Alexandria e já dispunha do astrolábio, “inventado uns dois séculos antes” (ASIMOV, 1993, p.138), um instrumento científico que determina a latitude dos corpos celestes. Sua obra, originalmente escrita em grego sob o título ‘Mathematike Syntaxis’, foi preservada pelos árabes, que a traduziram por ‘Al-Majisti’, que significa o grande, um epíteto para o tratado astronômico ptolomaico. O Almagesto foi difundido muito mais tarde na Europa, com a tradução latina direta do árabe após a conquista da cidade moura de Toledo.

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Figura 7. Epiciclo, Deferente e Equante – Sistema Geocêntrico Excêntrico

No sistema geocêntrico excêntrico, a Terra não ocupa o centro ‘A’ das órbitas

deferentes dos planetas, mas está deslocada (em posição excêntrica). Os epiciclos são

pequenas órbitas circulares descritas pelos planetas em torno do centro ‘C’, que percorre a

órbita deferente. Os epiciclos explicam a laçada: o laço ocorrerá sempre que o planeta orbitar

no epiciclo dentro do deferente.

A variação do brilho dos planetas decorre do afastamento ou aproximação do planeta

em relação à Terra, tanto devido à órbita do planeta no epiciclo (quando o planeta está dentro

do deferente, o brilho é mais intenso), quanto devido ao deslocamento do centro ‘C’ do

epiciclo ao longo da órbita deferente, pois não há equidistância da órbita deferente em relação

à Terra excêntrica, mas em relação ao centro ‘A’.

Outro importante aspecto do sistema excêntrico é que o centro do epiciclo move-se

com velocidade angular constante em relação ao equante (o ponto ‘Q’ oposto à Terra em linha

reta passando pelo centro ‘A’ do deferente). Isso significa que há variação da velocidade

orbital do planeta, que fica mais rápido quanto mais distante o centro ‘C’ do epiciclo está em

relação ao equante ‘Q’.

Portanto, o sistema geocêntrico excêntrico salva a variação da velocidade orbital e a

variação da luminosidade dos planetas, fenômenos sem predição no sistema geocêntrico

homocêntrico. Assim, o sistema excêntrico explica de forma mais simples mais fenômenos

(além da laçada, as variações de velocidade e luminosidade) do que o sistema homocêntrico.

Nesse sentido, pode-se dizer que o sistema excêntrico é uma tentativa mais aperfeiçoada de

‘salvar os fenômenos’ (mais simples e com mais fenômenos salvos), e esse será o rumo

definitivo que os cientistas modernos irão tomar.

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Ou seja, em vez de aumentar o caráter preditivo em prejuízo da generalidade, a

geometria da Escola de Alexandria irá reverter esta tendência, naquilo que Koyré (1982)

considera um dos maiores esforços do pensamento humano. O geocentrismo excêntrico de

Hiparcos e Ptolomeu aumenta a predição sem sacrifício da simplicidade.

Contudo, a cosmologia excêntrica, desenvolvida por Hiparcos e Ptolomeu até o século

II d.C. em Alexandria, só chegará à Europa, após a conquista de Toledo dos mouros em 1085,

na tradução latina de Cremona, de 1175. Logo, considerando a periodização tradicional da

História da Europa, que marca o início da Idade Média em 476 d.C. (desintegração do

Império Romano do Ocidente) e seu fim em 1453 (tomada de Constantinopla), tem-se o

reinado absoluto do sistema geocêntrico homocêntrico platônico-aristotélico por muitos

séculos de ciência medieval, até a alternativa do modelo geocêntrico excêntrico, a partir da

difusão da versão latina conhecida como Almagesto.

Não obstante a simplificação geométrica promovida pelo modelo excêntrico, o modelo

homocêntrico, com a Terra ocupando uma posição central e privilegiada, continuará

concorrente com o sistema excêntrico após o Almagesto, nos séculos derradeiros da ciência

medieval. O critério de não-superação é puramente qualitativo: se duas físicas são capazes de

salvar os fenômenos, uma mais complexa (Eudoxos-Callipos), de viés aritmético, e outra mais

simples (Hiparcos-Ptolomeu), de viés geométrico, permanece a que estiver de acordo com o

critério metafísico de que a Terra não pode estar deslocada do centro ‘A’ da órbita circular do

deferente (ressaltando que a divisão metafísica-física é extemporânea à ciência antiga). Nesse

sentido, Tomás de Aquino (1225-1274) é fulminante:

Do que vimos expondo até aqui conclui-se necessariamente que as coisas que só podem ser produzidas por criação procedem diretamente de Deus. É manifesto que os corpos celestes só podem ser produzidos por criação. Pois na verdade não se pode dizer que se originaram de alguma matéria preexistente, visto que, se assim fora, seriam geráveis, corruptíveis e passíveis de mudanças contrárias, o que não acontece, conforme se pode depreender do seu movimento circular. Efetivamente, os corpos celestes caracterizam-se pelo movimento circular, e o movimento circular não admite contrário. Segue-se, por consequência, que os corpos celestes foram criados diretamente por Deus. (AQUINO, 1988, p.97).

As primeiras contestações medievais ao sacrifício da simplicidade, exigido pela

cosmologia aristotélica através dos acréscimos de esferas de Eudoxos e Callipos, serão

promovidas pelo inglês Guilherme de Ockham (1288-1348), para quem a explicação mais

simples é provavelmente mais correta do que as mais complexas. Uma navalha de fazer a

barba deve ser passada sobre uma explicação, de forma a reduzir ao menor número possível

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as suposições necessárias para conceber uma explicação. A navalha de Ockham é um

argumento francamente favorável à cosmologia excêntrica do Almagesto.

Trilhando o caminho da simplicidade, uma tentativa ainda mais radical de

simplificação da descrição cosmológica será empreendida por Copérnico (1473-1543),

quando o Sol passa a ser o centro do cosmos, o que pressupõe o movimento da Terra. Na obra

De Revolutionibus, publicada em 1543, o cientista propõe o heliocentrismo, que vem a ser um

modelo mais aperfeiçoado de salvar os fenômenos celestes, ou seja, “as aparências, isto é, os

dados da observação relativa aos diversos planetas, se achavam explicados, pelo menos em

parte, por um único fator, a saber, o movimento da Terra”. (KOYRÉ, 1982, p.87).

A inovação de seu sistema, contudo, não foi deslocar a Terra do centro do Universo (o

que o sistema geocêntrico excêntrico de Ptolomeu já fizera), ou pressupor o movimento da

Terra, pois, antes dele, Nicola de Cusa (1401-1464). O mérito de Copérnico foi continuar no

caminho da simplificação geométrica, o modelo preferencial de salvação dos fenômenos

celestes, inaugurado por Ptolomeu em contraposição à salvação aritmética da tradição

homocêntrica, que caminha rumo à complexidade.

O sistema heliocêntrico, através do movimento relativo dos planetas em relação a um

observador na Terra, avança na simplificação geométrica ao livrar o cosmos de Ptolomeu dos

incômodos equantes e excêntricos. Sem equantes, os corpos celestes recuperam o movimento

circular uniforme; sem excêntricos, a exata simetria das partes em relação ao todo volta a

vigorar, como na descrição original do cosmos geométrico de Anaximandro. O heliocentrismo

é, portanto, um modelo mais geral e mais preditivo do que os sistemas geocêntricos,

homocêntrico ou excêntrico, e marca, definitivamente, o triunfo da geometria na Cosmologia.

Figura 8. Sistema Heliocêntrico de Copérnico

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A obra De Revolutionibus foi publicada no ano da morte de Copérnico, que relutou em

publicar suas conclusões62. Sua obra contém um Prefácio bastante esclarecedor sobre as

intenções do autor, do próprio Copérnico, e uma Advertência, chamada ‘Ao Leitor Sobre as

Hipóteses Desta Obra’, de autoria de Andreas Osiander (1498-1552).

No Prefácio, Copérnico (2008, p.264) se insurge contra os homocêntricos e

excêntricos, pois “se as hipóteses por eles assumidas não fossem falazes <fallaces>, tudo que

delas se segue sem dúvida seria verificado. Embora, porém, sejam obscuras <obscura> estas

coisas que digo agora, tornar-se-ão, entretanto mais patentes <apertiora> em seu lugar”.

Copérnico é extremamente cauteloso ao assumir o movimento da Terra. Proclama a

obscuridade das coisas que diz, mas tem certeza de que, após sua exposição, elas tornar-se-ão

<apertiora> (grau comparativo neutro plural), ou seja, mais abertas, no sentido de mais

patentes, mais acessíveis, menos obstruídas.

O autor não emprega o adjetivo ‘verdadeiro’ <verus>, mas ‘aberto’ <apertus>.

Copérnico parece utilizá-lo com o mesmo sentido dado por Cícero ao falar do ‘céu sempre

aberto e desobstruído dos Assírios’ (Div.1,1,2): “caelum ex omni parte patens atque

apertum”. Portanto, a pretensão do De Revolutionibus não é fazer uma descrição verdadeira

<verum> do cosmos, mas uma descrição mais acessível <apertius>, donde, a partir da

cogitação sobre o movimento da Terra, possam ser extraídas demonstrações mais firmes do

que a dos geocêntricos (excêntricos ou homocêntricos) a respeito das revoluções dos corpos

celestes:

Donde, pois, aproveitei a ocasião <occasionem nactus> e comecei também eu a cogitar a respeito da mobilidade da Terra <de terræ mobilitate cogitare>. Embora parecesse opinião absurda <quamvis absurda opinio videbatur>, entretanto, porque sabia <quia sciebam > que a outros antes de mim já fora concedida esta liberdade de forjar <concessam libertatem ut fingerent> os círculos que quisessem <quoslibet circulos> para demonstrar os fenômenos dos astros <ad demonstrandum phænomena astrorum>, estimei ser-me também facilmente permitido experimentar <facile permitti, ut experirem> se, posto algum movimento da Terra <posito terræ aliquo motu>, poderiam ser encontradas <inveniri possent> demonstrações mais firmes <firmiores demonstrationes> do que as daqueles outros a respeito da revolução dos orbes celestes <in revolutione orbium coelestium>. (COPÉRNICO, 2008, p.265).

Se a sua abordagem é cautelosa (uma descrição mais acessível, não a verdadeira), o

seu objetivo é claro: aumentar a simplicidade do cosmos, pois a “forma do mundo e a exata

simetria de suas partes é a coisa principal que eles não conseguiram encontrar nem inferir”.

62 “Hesitei por muito tempo comigo mesmo se daria a lume meus comentários” (COPÉRNICO, 2008, p.260).

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(COPÉRNICO, 2008, p.263). Para o cientista polonês, homocêntricos e excêntricos

descreveram o cosmos como alguém que “tomasse, de diversos lugares, pés, cabeça, e outros

membros, pintados até mesmo de maneira perfeita, mas sem comparação com um corpo

único, de modo algum correspondendo reciprocamente entre si, de sorte a compor com eles

mais um monstro do que um homem”. (COPÉRNICO, 2008, p.263 e 264).

A descrição do cosmos como um monstro sem harmonia é motivo de inquietação para

Copérnico, pois deve prevalecer “uma razão mais certa dos movimentos da máquina do

mundo – que para nós foi composta pelo melhor e mais regular artífice de todos”.

(COPÉRNICO, 2008, p.264). E esta razão é geométrica, pois nada parece ser mais certo do

que a Geometria, que se apresenta, nos Elementos, como um corpo coerente de proposições

construído a partir de um número relativamente pequeno de definições, postulados e noções.

Portanto, em aproximadamente 400 anos, desde a versão latina do Almagesto (1175),

passando por Ockham (1288-1348) e Cusa (1401-1464), ao heliocentrismo do De

Revolutionibus (1543), a geometria se consolida como a razão dos movimentos da máquina

do mundo. Não obstante o esforço geométrico, ainda não há condições para a primeira

inflexão, quando a ciência passa do contexto hefestiano para o contexto prometeico, pois a

métis dos cientistas medievais ainda dispõe do talento de Osiander (1498-1552), que irá

esclarecer na Advertência ao De Revolutionibus os exatos termos da cautela de Copérnico

acerca da essencial distinção entre uma descrição mais acessível <apertius> e uma descrição

verdadeira <verum> do cosmos.

Não duvido de que certos estudiosos – em consequência da divulgação da notícia sobre a novidade das hipóteses desta obra, que estipula ser a Terra móvel e, ainda, o Sol imóvel no centro do universo – tenham-se fortemente chocado e julguem que não convém conturbar disciplinas liberais já há tanto tempo bem estabelecidas. Na verdade, se quisessem examinar o caso com exatidão, descobririam que o autor desta obra nada cometeu que mereça repreensão. Com efeito, é próprio do astrônomo compor, por meio de uma observação diligente e habilidosa, o registro dos movimentos celestes. E, em seguida, inventar e imaginar as causas dos mesmos, ou melhor, já que não se podem alcançar de modo algum as verdadeiras, quaisquer hipóteses que, uma vez supostas, permitam que esses mesmos movimentos sejam corretamente calculados, tanto no passado como no futuro, de acordo com os princípios da geometria. Ora, ambas as tarefas foram executadas com excelência pelo autor. Com efeito, não é necessário que essas hipóteses sejam verdadeiras e nem mesmo verossímeis, bastando apenas que forneçam cálculos que concordem com as observações. (OSIANDER, 2008, p.253).

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2.3 A PRIMEIRA INFLEXÃO

O esforço geométrico empreendido à cosmologia medieval entre 1175 e 1543

recupera, por assim dizer, a linhagem original da ciência nascente milésia, fruto da comunhão

entre phýsis e geometria, da qual o cosmos geométrico de Anaximandro é o primogênito.

Contudo, para Copérnico, prevalece a distinção, utilizando a terminologia de Abelardo, entre

a descrição verdadeira, que tem significatio rerum, e uma descrição geométrica, que tem

apenas significatio intellectum.

Para Abelardo, de acordo com Cella (1995), embora o significado tenha a sua

legitimação e fundamentação no real, existem significações imperfeitas, ou seja, que não

precisam de correspondência com o real, possuindo significantia per se. Para Osiander, é este

o sentido da descrição apertius de Copérnico: o heliocentrismo não tem correspondência com

o real, mas comunica uma ficção matemática útil.

Os astrônomos foram rápidos em reconhecer a importância da obra de Copérnico. Poucos deles se dispuseram a aceitar a ideia de que a Terra gira em torno do Sol. Percebiam, contudo, que as ferramentas teóricas que Copérnico desenvolvera eram úteis para o cálculo das posições dos planetas e estavam prontos a aceitar a ideia da Terra em movimento como uma ficção matemática útil. (MORRIS, 1998, p.49).

A ficção matemática útil consistia em eleger a razão geométrica como a razão mais

certa dos movimentos celestes. Retomando o caminho de Anaximandro, da descrição

geométrico-milésia do cosmos, que foi desviado pelas esferas adicionais de Eudoxos e

Callipos (uma solução aritmético-pitagórica para aumentar a predição da cosmologia

platônico-aristotélica), a opção copernicana pela geometria passa, inegavelmente, pelo

impacto das traduções árabes do Almagesto, de Ptolomeu, e dos Elementos, de Euclides.

De fato, o século XI marca a conquista de dois importantes bastiões mouros na

Europa, Toledo e Sicília. A tradução latina de Cremona do Almagesto provém da conquista da

cidade espanhola de Toledo. A tradução dos Elementos provém da conquista da Sicília, e a

geometria foi logo incorporada aos cursos das universidades italianas, berço da Renascença.

Talvez mais significativa foi a conquista cristã da Espanha e da Sicília mouras. A grande cidade espanhola de Toledo passou para os Cristãos em 1085, e a Sicília foi conquistada poucos anos depois. Quando os europeus entraram nestes territórios derrotados, eles encontraram os livros e documentos dos árabes conquistados. Com um inimaginável mundo de conhecimento em mãos e o talento para estudá-lo à sua conveniência, os europeus começaram a descobrir não apenas o saber acadêmico de seus adversários islâmicos, mas de seus ancestrais clássicos. O efeito foi

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dramático. Boa parte do impacto dos clássicos – obras de Platão, Aristóteles e, claro, Euclides – foi sentido nas recentes universidades da Itália. A primeira foi fundada em Bolonha, em 1088, e outras logo surgiram em Pádua, Nápoles, Milão etc. Mais um século ou dois, o clima intelectual na Itália levantou das profundezas medievais em direção às alturas do que agora chamamos Renascença63. (DUNHAM, 1990, p.131 e 132, tradução nossa).

Cumpre destacar que duas pilastras do esforço geométrico (Cusa e Copérnico)

estudaram em universidades italianas. Cusa (1401-1464), “alemão de origem, mas italiano por

formação, estudou especialmente em Pádua” (REALE; ANTISERI, 1990, p.61) e Copérnico

(1473-1543) “estudou em Bolonha, não apenas direito canônico, mas também astronomia”

(REALE; ANTISERI, 1990, p.217). É inegável, portanto, a influência da geometria

euclideana na renovação do ambiente cultural europeu e na eclosão do heliocentrismo.

Segundo Reale e Antiseri (1990), Copérnico possuía, entre seus livros, além de tábuas de

posições estelares64, os Elementos de Euclides.

Outro importante aspecto é que a tyrannís da ciência sacra, que perdura de Ptolomeu,

no séc. II d.C., à difusão da tradução do Almagesto, do latim para o árabe após a conquista de

Toledo, mil anos depois, coincide com o eclipse da obra monumental de Euclides na Europa.

Ou seja, além do domínio da Igreja Católica exercido na cultura medieval (que implicou na

eleição oficial da cosmologia platônico-aristotélica e no ocaso de outras físicas clássicas65), a

falta da geometria entre os cientistas medievais contribuiu, certamente, para a cessação de

novas físicas alternativas, onde a geometria pudesse salvaguardar a previsão das leis

científicas sem prejuízo da generalidade.

63 “Perhaps more significant was the Christian conquest of the Moors in Spain and Sicily. The great Spanish city of Toledo fell to the Christians in 1085, and Sicily was conquered a few years later. When the Europeans entered these defeated territories, they found the books and documents of the vanquished Arabs. With an unimagined world of knowledge at their fingertips and the ability to study it at their leisure, the Europeans began to discover the scholarship not only of their Islamic adversaries but of their classical ancestors. The effect was dramatic. Much of the impact of these classics – works by Plato and Aristotle and of course Euclid – was felt in the emerging universities of Italy. The first was found at bologna in 1088 and others soon followed at Padua, Naples, Milan, and elsewhere. Over the next century or two, the intellectual climate in Italy rose from its Medieval depths toward the heights we now call Renaissance. 64 “Isso é testemunhado também pelos livros que adquiriu nesse período e que chegaram até nós: os Elementos de Euclides, na edição veneziana de 1482; a Astrologia de Abenragel, publicada em 1485; as Tábuas Afonsinas (as tábuas dos movimentos planetários, que Afonso X de León e Castella mandou elaborar no século XIII), editadas em 1492; as Tábuas das Direções e das Projeções, de Giovanni Muller – o de Régio Monte –, na edição de 1490”. (REALE; ANTISERI, 1990, p.214). 65 Físicos clássicos já apontaram o movimento da Terra. Segundo Copérnico (2008, p.264 e 265), “encontrei, enfim, primeiro em Cícero, que Nicetas sentia <sensisse> que a Terra se move. Em seguida, também em Plutarco, descobri que alguns outros foram dessa opinião <ea fuisse opinione>, cujas palavras, para serem óbvias a todos, agradou-me transcrever aqui: ‘uns [afirmaram] a Terra estar parada, ao passo que o pitagórico Filolau [afirma] que ela orbita em um círculo ao redor do fogo’”.

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Nesse sentido, Elementos de Euclides desempenha papel protagonista na retomada da

ratio geométrica que culmina com o heliocentrismo de Copérnico. Não que uma inflexão

tenha sido promovida, pois a ciência contida no De Revolutionibus ainda é sacra, mas já

apresenta uma inovadora tentativa de conciliar a geometria, enquanto aplicação de ‘uma razão

mais certa dos movimentos da máquina do mundo’, com a hipótese qualitativa dos

movimentos circulares, a preferida de Deus, ‘o melhor e mais regular artífice de todos’.

Copérnico, naturalmente, utiliza de modo pleno as técnicas matemáticas elaboradas por Ptolomeu – uma das maiores realizações da mente humana (no sentido técnico da palavra, Copérnico é um ptolomaico) –, mas vai buscar inspiração antes dele, antes de Aristóteles, remonta à idade áurea de Pitágoras e Platão. Cita Heráclides, Ecfanto e Hiquetas, Filolaos e Aristarco de Samos; e segundo Rético, seu discípulo e porta-voz, foi ‘seguindo Platão e os pitagóricos, os maiores matemáticos daquela era divina, que [ele] julgou que a fim de determinar as causas dos fenômenos cumpria atribuir movimentos circulares à Terra esférica. (KOYRÉ, 1986, p.37).

Portanto, a geometria euclideana resgata a simplicidade perdida pelas esferas

adicionais de Eudoxos e Callipos, sem prejuízo da previsão necessária para salvar os

fenômenos. O encanto dos Elementos é a fortaleza de um edifício coerente de 465

proposições, que versam sobre geometria plana, geometria espacial e teoria dos números,

dispostas em 13 livros, com fundamento em algumas proposições fundamentais, divididas em

definições, postulados e noções comuns. Em que pese o ostracismo da obra na Europa

Medieval até o século XI, Dunham (1990) considera os Elementos, excetuando a Bíblia, o

livro mais influente na constituição do pensamento ocidental. Já para Asimov (1990), é o

melhor livro de estudos já escrito, sendo usado até hoje em formas mais ou menos

modificadas nos currículos escolares regulares.

O Livro I dos Elementos66 começa com 23 definições. Iniciando pela definição de

ponto, que é “aquilo de que nada é parte” (Definição 1), seguem as definições de linha, reta,

ângulo, plano, círculo etc. A última (Definição 23) estabelece que “paralelas são retas que,

estando no mesmo plano, e sendo prolongadas ilimitadamente em cada um dos lados, em

nenhum se encontram”.

Após as definições, ainda no Livro I, Euclides estabelece que fique postulado:

• 1: “traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto”;

66 Tomou-se por base a edição brasileira estabelecida por Irineu Bicudo, com tradução direta do grego: São Paulo, Unesp, 2009. Referências adicionais têm por base a edição de Sir Thomas Little Heath (New York, Dover, 1956), disponível em <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0086>, sendo sempre destacadas.

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• 2: “também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta”;

• 3: “com todo centro e distância, descrever um círculo”;

• 4: “serem iguais entre si todos os ângulos retos”;

• 5: “caso uma reta, caindo sobre duas retas, faça os ângulos interiores e do mesmo

lado menores do que dois retos, sendo prolongadas as duas retas, ilimitadamente,

encontrarem-se no lado no qual estão os menores do que dois retos”.

O Quinto Postulado é conhecido por Postulado das Paralelas. Sua versão mais famosa

é a de Playfair67. As versões de Euclides (os segmentos de reta AB e CD, quando

prolongados, irão encontrar-se pelo lado direito, pois a soma dos ângulos ‘m’ + ‘n’ é menor

do que dois retos) e de Playfair (dados a reta ‘r’ e o ponto ‘P’, só é possível traçar uma única

reta paralela a ‘r’ passando por ‘P’) para o Quinto Postulado são apresentadas abaixo:

Label1 Plano α

Figura 9. Versão Original de Euclides (esq) e a Equivalente de Playfair (dir) para o Quinto Postulado.

Após os cinco postulados, Euclides apresenta cinco noções comuns68:

• 1: “Coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si”69;

• 2: “Se iguais são adicionados a iguais, os totais são iguais”70;

• 3: “Se iguais são subtraídos de iguais, os restantes são iguais”71;

• 4: “Coisas que coincidem entre si são iguais entre si”72;

• 5: “O todo é maior do que a parte”73.

67 Em homenagem ao matemático escocês John Playfair (1748-1819). Versões equivalentes ao Quinto Postulado, contudo, remontam a Proclo, ainda no século V. “In modern textbooks it appears in a different version that was first formulated by Proclus in the 5th century”. (STAHL, 1993, p.27). 68 Tomou-se a edição de Heath (1956), pois a edição brasileira apresenta 9 (nove) noções comuns. 69 “Things which are equal to the same thing are also equal to one another”. 70 “If equals be added to equals, the wholes are equal”. 71 “If equals be subtracted from equals, the remainders are equal”. 72 “Things which coincide with one another are equal to one another”. 73 “The whole is greater than the part”.

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A geometria euclideana constitui-se, então, em um modelo perfeito de conhecimento,

pelo rigor da prova das demonstrações e pela simplicidade do pequeno número de princípios.

Mas, em uma geometria dedutiva, própria da ciência sacra, o Quinto Postulado apresenta uma

descrição apertius do espaço real, mas não a descrição verum: não há compatibilidade real

entre o Quinto Postulado e o mundo esférico e finito.

O Postulado das Paralelas é, portanto, uma adesão metafísica a um fundamento capaz

de preservar a harmonia interna, a estrutura normativa e a coerência dedutiva do espaço

geométrico. Como o apeíron de Anaximandro, o Uno de Platão ou o Motor Imóvel de

Aristóteles, o Quinto Postulado pressupõe uma adesão metafísica, a saber, “um espaço

infinito e contém, pois, no espírito do tempo, uma hipótese cosmogônica oculta”. (OMNÈS,

1996, p.74).

De fato, conceber um espaço esférico e finito implica reconhecer a falta de identidade

entre o espaço real e o espaço geométrico, a partir da Definição 23 de Euclides: ‘retas

paralelas são retas que, pertencendo a um mesmo plano, não se encontram mesmo se

prolongadas indefinidamente em ambas as direções’. Vale dizer, se não há espaço além da

esfera das estrelas, pode-se pensar na existência de infinitas retas paralelas a uma reta ‘r’, que

podem ser construídas passando por um ponto ‘P’ fora desta reta.

Limite do Cosmos

Figura 10. Incompatibilidade entre o Postulado das Paralelas e o Mundo Esférico Finito.

Em outras palavras, enquanto houver cosmos esférico e finito, prevalece a tese de

Osiander de que o heliocentrismo de Copérnico é apenas uma ficção matemática útil, uma

descrição mais acessível do cosmos, mas não a descrição verdadeira. O que importa

reconhecer, contudo, é que a volta da geometria euclideana no ambiente da ciência sacra

tirânica da Europa, mesmo que ainda meramente dedutiva, implicou na eclosão de uma nova

‘P’

‘r’

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física, heliocêntrica e não geocêntrica (homocêntrica ou excêntrica), que é capaz salvar mais

fenômenos sem prejuízo da generalidade, e este é rumo definitivo da ciência.

É o próprio Copérnico que reconhece ser a sua descrição apenas apertius, e não

verum. De fato, o heliocentrismo é uma tentativa geométrica de recuperar a simetria

sacrificada pelos epiciclos, deferentes e equantes do geocentrismo excêntrico de Ptolomeu,

sem prejuízo da previsibilidade dos fenômenos, a partir do movimento da Terra. E, assim,

através do movimento relativo dos outros planetas, “coligir <ut inde colligi possit> em que

medida podem ser salvos os movimentos e as aparências <quatenus motus & apparentiæ

salvari possint> dos outros astros e orbes, se comparados ao movimento da Terra <si ad terræ

motus conferantur>” (COPÉRNICO, 2008, p.266).

Para o cientista polonês, é a finitude do cosmos que tem significatio rerum. Segundo

Koyré (1986, p.40), Copérnico “nunca nos afirma que o mundo visível, o mundo das estrelas

fixas, seja infinito, mas apenas que é imensurável (immensum)”.

Temos de admitir a evidência: o mundo de Copérnico é finito. Além disso, parece do ponto de vista psicológico bastante normal que o homem que deu o primeiro passo, o de deter o movimento da esfera das estrelas fixas, hesitasse antes de dar o segundo, o de dissolvê-la num espaço ilimtado; bastava a um só homem mover a Terra e aumentar o mundo a ponto de torna-lo incomensurável – immensum. Pedir-lhe que o tornasse infinito seria realmente demais. (KOYRÉ, 1986, p.41).

Quando comparado ao infinito, o universo imenso de Copérnico, com estrelas a uma

distância imensurável, ainda é um universo tão pequeno quanto o universo clássico grego,

onde Ícaro aproxima-se do Sol utilizando asas de cera. Segundo Koyré (1986, p.42), “não nos

aproximamos do universo infinito aumentando as dimensões do nosso mundo. Podemos

torná-lo tão grande quanto quisermos; isto não nos situa em nada mais perto da infinitude”.

A imensidão do cosmos, contudo, é uma hipótese assumida por Copérnico para

explicar o movimento da Terra e a falta de paralaxe estelar. Se nosso planeta gira ao redor do

Sol, as estrelas deveriam apresentar paralaxe74, mas nenhuma delas apresentava: ou a Terra

era fixa ou a distância das estrelas era tão grande em comparação com o movimento orbital

74 Paralaxe é a diferença na posição aparente de um objeto fixo, quando observado em momentos distintos por um observador em movimento. Rival (1997) credita ao inglês James Bradley a confirmação da paralaxe estelar da estrela Gama do Dragão, em 1729. Ou seja, apenas no século XVIII, houve a demonstração experimental do movimento da Terra. Segundo Asimov (2000), apenas no século XIX, com telescópios mais potentes, foi possível efetivamente o cálculo da paralaxe estelar. O primeiro cálculo, da estrela da Alfa de Centauro (a estrela mais próxima a Terra), foi realizado pelo britânico Thomas Henderson (1798-1844), indicando a astronômica distância de 4,3 anos-luz. A primeira publicação, contudo, foi a do alemão Wilhelm Bessel (1784-1846), da paralaxe da estrela 61 Cisne, em 1838, indicando 6 anos-luz. Foi a demonstração experimental de como o Sistema Solar é um ponto no espaço em comparação até com as estrelas mais próximas.

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terrestre que os instrumentos de observação até então disponíveis não permitiam a

confirmação da paralaxe estelar.

De acordo com Copérnico, para um observador na Terra, a distância das estrelas é tão

grande, que a noção de profundidade se perde. É como se as estrelas estivessem todas

localizadas em uma esfera fixa muito distante, e a paralaxe não pudesse ser calculada.

Somente tal hipótese (um cosmos immensum), puramente teórica, é capaz de sustentar a

coerência dedutiva de um sistema que contém o movimento da Terra ao redor do Sol. Sendo

assim, não é de admirar que Tycho Brahe (1546-1601), posteriormente a Copérnico (1473-

1543), portador das melhores observações celestes até então e não observando a paralaxe

estelar, tenha ‘corrigido’ o heliocentrismo com a imobilidade da Terra.

Figura 11. Paralaxe Estelar e Translação Terrestre

O cosmos imenso de Copérnico não é, absolutamente, um cosmos infinito, o que leva

a duas conclusões: primeira, o Quinto Postulado continua a ser apenas uma hipótese

matemático-metafísica; segunda, não há identidade entre o espaço real e o espaço geométrico,

ou seja, a geometria euclideana é apenas dedutiva. Sem o espaço infinito, portanto, quando a

geometria deixa de ser apenas dedutiva e passa a ser descritiva, não ocorre a inflexão da

ciência hefestiana em prometeica, posto que o Esforço Geométrico (Almagesto, Ockham,

Cusa e Copérnico) produz apenas uma ficção matemática útil no De Revolutionibus.

Não tardou, porém, para que o inglês Thomas Digges (1546-1595), o primeiro a

divulgar o heliocentrismo na Inglaterra, compreendesse a necessidade de um cosmos aberto,

de um espaço infinito onde as estrelas não poderiam estar presas na última esfera do mundo,

mas dispostas infinitamente além dela. Em 1576, Digges apresenta um esboço do cosmos

infinito, quando a ultima sphera mundi é, pela primeira vez, atravessada.

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Figura 12. O Cosmos Infinito de Digges.

O passo seguinte foi dado por Giordano Bruno (1548-1600), que mantém o cosmos

infinito em sua obra Sobre o Infinito, o Universo e os Mundos, de 1584. A obra é composta de

cinco diálogos, precedidos de uma epístola preambular contendo os argumentos de cada um

deles. Bruno não é um cientista, mas “um metafísico cuja visão do mundo é avançada em

relação à ciência de seu tempo” (KOYRÉ, 1982, p.90).

Nenhum dos sentidos nega o infinito, visto que não o podemos negar, pelo fato de não compreendermos o infinito com os sentidos; mas, como os sentidos são compreendidos por ele e a razão vem confirmá-lo, somos obrigados a admiti-lo. [...] Portanto, pelo que vemos é necessário afirmar o infinito, porque nenhuma coisa nos ocorre que não seja terminada por outra, e não temos experiência de nenhuma que seja terminada por si mesma. (BRUNO, 1983, p.5).

Se o caminho para a Primeira Inflexão foi sendo preparado pelo esforço geométrico

(Do Almagesto, em 1175, ao De Revolutionibus, de 1453), quando a geometria se consolida

como a ratio do cosmos, é preciso reconhecer que, somente após o cosmos infinito de Digges

(1576) e Bruno (1584), a geometria euclideana deixa de ser dedutiva e passa a ser descritiva.

Em outras palavras, o espaço geométrico euclideano não é somente uma descrição apertius do

cosmos mas a descrição verum do universo: a legitimação do Postulado das Paralelas num

espaço infinito implica na identidade entre o espaço real e o espaço geométrico.

O espaço infinito é a confirmação, pela realidade, da leitura euclideana do espaço,

incluindo o Postulado das Paralelas. Esta mudança do status da geometria, de dedutiva à

descritiva, é fundamental para a substituição do contexto hefestiano de leis sacras pelo

contexto prometeico de leis universais. É o Mito de Euclides, portanto, o catalizador da

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Virada Física que se segue à primeira inflexão, através das obras de Tycho Brahe (1546-

1601), Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630) e Newton (1642-1727).

O que é o Mito de Euclides? É a crença de que os livros de Euclides contêm verdades sobre o universo que são claras e indubitáveis. Partindo de verdades auto-evidentes, e procedendo por prova rigorosa, Euclides chega ao conhecimento que é certo, objetivo e eterno. Mesmo agora, parece que a maioria das pessoas instruídas acredita no Mito de Euclides. Até o meio ou o fim do século XIX, o mito era intocável. Todos acreditavam nele. Ele tem sido o maior fundamento para a metafísica, ou seja, para a filosofia que procurou estabelecer alguma certeza a priori sobre a natureza do universo75. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.363, tradução nossa).

Portanto, mais extenso do que a Revolução Científica, tradicionalmente apontada

como o período compreendido entre De Revolutionibus (1543) e o Principia (1687), de

mudança da ciência medieval para a ciência moderna, a Primeira Inflexão vai de 1175 a 1687,

e compõe-se do Esforço Geométrico (Almagesto, Ockham, Cusa e Copérnico), do Mito de

Euclides (Digges, Bruno), e da Virada Física (Tycho, Galileu, Kepler e Newton).

A substituição do contexto hefestiano de leis sacras pelo contexto prometeico de leis

universais implica, pois, reconhecer três etapas:

1) A eleição da ratio geométrica (Esforço Geométrico);

2) A superação da dicotomia apertius x verum (Mito de Euclides);

3) O estabelecimento da física quantitativa (Virada Física).

Mito de Euclides

Contexto Hefestiano Contexto Prometeico

Esforço Geométrico Virada Física

Figura 13. A Primeira Inflexão

75 “What is the Euclid myth? It is the belief that the books of Euclid contain truths about the universe wich are clear and indubitable. Starting from self-evident truths, and proceeding by rigorous proof, Euclid arrives at knowledge wich is certain, objective, and eternal. Even now, it seems that most educated people believe in the Euclid myth. Up to the middle or late nineteen century, the myth was unchallenged. Everyone believed it. It has been the major support for metaphysical philosophy, that is, for philosophy wich sought to establish some a priori certainty about the nature of the universe”.

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O protagonismo da Primeira Inflexão deve ser creditado a ankylométis76 prometeica de

Digges e Bruno. Foram eles os cientistas que romperam com a métis medieval, com o

profundo respeito hefestiano ao cosmos esférico e finito. Após o infinito, a geometria

euclideana não é mais meramente dedutiva, mas também descritiva, superando a dicotomia

apertius x verum presente em Copérnico.

O trabalho dos cientistas da Virada Física foi, a partir de então, solapar os

fundamentos da autoridade qualitativa da física aristotélica dos mundos sub e supralunar:

1) Tycho Brahe (1546-1601) observou o caráter perecível da substância sensível

eterna do mundo supralunar pelas observações sobre a Supernova de 157277, publicadas na

obra De Nova Stella (1573). Além disso,

Em 1577, apareceu um cometa brilhante no céu e Tycho observou-o cuidadosamente. Pelas noções gregas, era um fenômeno atmosférico e, sendo assim, deveria ter uma grande paralaxe. Tycho não encontrou nenhuma, porém, o que significava que o cometa estava mais distante do que a lua. Foi mais um golpe contra a astronomia grega. (ASIMOV, 2000, p.226).

2) Galileu (1564-1642) constatou que um corpo não submetido a uma força externa

permanece parado ou com a mesma velocidade ao longo de uma linha reta. Esta nova

formulação é frontalmente oposta à física aristotélica, que relaciona força e movimento, de

forma que um corpo em movimento chega à imobilidade quando a força que o impele não

mais pode agir de modo a deslocá-lo. Também merecem destaque seus estudos sobre as

manchas solares, que lhe custaram a visão nos derradeiros anos de vida, e que representam um

duro golpe à física qualitativa.

As manchas solares, na verdade, não foram descobertas no século XVII. Devido ao tamanho que podem atingir, de fato são visíveis até a olho nu,

76 O verso 48 de Os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, apresenta este epíteto para Prometeu: o ankylométis, o que tem a métis retorcida. Mary de Camargo Neves Lafer, nos comentários à obra, é esclarecedora: “Zeus é o pai dos homens e dos deuses, e é o soberano. Toda a Teogonia nos conta ‘como’ ele chegou a esse lugar entre os deuses e ‘por que’ ele lá está. Prometeu é ‘ankylométis’, habilidoso na arte de tramar. Ele tem a métis retorcida, o que faz dele especialmente habilidoso e com isso desafia Deus”. (HESÍODO, 2008, p.63). 77 “Uma supernova, como a que apareceu em 1054, brilhou na constelação de Cassiopeia, no céu do norte, em novembro de 1572. A supernova de 1054 passara despercebida pelos europeus, mas os tempos tinham mudado. Um jovem astrônomo dinamarquês, Tycho Brahe (1546-1601), geralmente conhecido por seu primeiro nome, observou a nova estrela cuidadosamente, noite após noite. Quando a viu pela primeira vez, brilhava mais do que Vênus, mas foi gradualmente apagando-se até que, em março de 1574, não mais podia ser vista. Tycho observara-a durante 485 dias. Os gregos acreditavam que o céu (diferentemente da Terra) fosse perfeito e imutável. Qualquer coisa no céu que parecesse mudar (ou mover-se por uma rota que não fosse regular e previsível), não podia fazer parte do céu, pensavam, e sim fazer parte da atmosfera imperfeita da Terra. Isto incluía as nuvens, estrelas cadentes e os cometas. A nova estrela, por ser um fenômeno temporário, deveria fazer parte da atmosfera também, mas embora Tycho tentasse determinar sua paralaxe, não conseguiu detectar nada. A nova estrela devia estar além da Lua, pertencendo portanto ao firmamento, possivelmente localizada em um local muito distante. A noção de perfeição celestial e de sua imutabilidade estava destruída”. (ASIMOV, 2000, p.223).

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olhando-se o sol no entardecer ou através de um vidro enfumaçado. De fato, as manchas solares tinham sido observadas no mundo greco-romano, como também na China. Todavia, tinham sido interpretadas, geralmente, como provocadas pelo movimento dos planetas em conjunção com o Sol. Ainda em 1607, Kepler, observando uma dessas ‘manchas’, a tinha tomado por Mercúrio. O motivo de tal interpretação era, geralmente, a convicção de que o Sol, como corpo perfeito e incorruptível, não podia ter verdadeiras manchas ou imperfeições em sua superfície. O que foi feito pela primeira vez no século XVII, especialmente por intervenção de Galileu (e num segundo momento) de Scheiner, foi a interpretação dessas manchas solares como fenômenos pertencentes à superfície do Sol, com o consequente início de um estudo verdadeiramente científico delas. (FANTOLI, 2008, p.135 e 136).

3) Kepler (1571-1630) enunciou que as órbitas planetárias descrevem elipses, com o

Sol ocupando um dos centros (1ª Lei). A elipse afronta a necessidade do movimento circular

uniforme do mundo supralunar. Numa órbita elíptica, os planetas variam a sua velocidade

orbital, aumentando-a quando se aproximam do Sol e diminuindo-a quando se afastam, de

forma a preservar a igualdade dos espaços varridos pelos raios vetores dos planetas em

direção ao Sol (2ª Lei). As duas primeiras leis constam no livro Astronomia Nova, de 1609.

Posteriormente, na obra Harmonias do Mundo, de 1619, Kepler estabelece a harmonia das

órbitas dos planetas, que se relacionam matematicamente segundo uma razão entre o

quadrado dos períodos orbitais e o cubo das distâncias médias em relação ao Sol (3ª Lei).

Assim, no prefácio da Astronomia Nova, ele insiste na necessidade dessa unificação entre a física celeste e a física terrestre, no fato de que o Sol não é simplesmente o centro do mundo, limitando-se a iluminá-lo, e deixando funcionar, fora e independentemente dele, os mecanismos motores dos planetas, cada um completo em si mesmo, mas deve exercer uma influência física sobre os movimentos dos astros. (KOYRÉ, 1982, p.88).

4) Newton (1642-1727) publica em 1687 a célebre obra Philosophiae Naturalis

Principia Mathematica, ou Principia, explicando os movimentos celestes com base na força

de atração que os corpos astronômicos exercem-se mutuamente, uma força inversamente

proporcional ao quadrado da distância entre eles. A Lei da Gravitação Universal sepulta

definitivamente a física qualitativa aristotélica e postula, com grande vigor, o caráter universal

e necessário de uma lei científica.

O mesmo tipo de força externa é reconhecido no movimento de uma pedra que cai no ar e na revolução a Lua em sua órbita, a saber, a da atração dos corpos materiais pela Terra. Newton reconheceu que os movimentos de pedras que caem, da Lua e dos planetas são manifestações muito especiais de uma força universal de gravitação que atua entre dois corpos quaisquer. Em casos simples, o movimento pode ser descrito e predito com a ajuda da matemática. Em casos remotos e extremamente complicados, envolvendo a ação de muitos corpos entre si, uma descrição matemática não é coisa

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simples, mas os princípios fundamentais são os mesmos. (EINSTEIN e INFELD, 2008, p.35).

A Primeira Inflexão na ciência é, pois, profundamente marcada não apenas pela

geometrização do pensamento ocidental ou pela Virada Física, mas sobretudo pela mudança

do status da geometria euclideana, que passa de dedutiva à descritiva. O Esforço Geométrico

implica na redescoberta da geometria enquanto descrição apertius do espaço. O Mito de

Euclides corresponde à identidade entre o espaço real e o espaço geométrico, que passa a ser

verum. A Virada Física consagra a nova visão de um universo infinito a substituir o cosmos

enquanto comunidade jurídica. Doravante, os mundos sub e supralunar serão unificados por

uma nova física, por leis que descrevam o ‘como’ da natureza em termos de causa eficiente,

sem apelar a um ‘porquê’, a um fundamento que organize a diversidade dos elementos em

termos de causa finalística.

A mudança do status da geometria de dedutiva à descritiva corresponde, pois, ao

expurgo da causa final aristotélica da ciência moderna. A ênfase na causa eficiente irá

produzir, em consequência, uma visão determinista (ou prometeica) da natureza em

substituição à antiga visão teleológica (ou hefestiana) do cosmos. No dizer de Olsen (2006,

p.674, tradução nossa), “a razão para a degeneração da ideia de causa na nascente ciência

moderna foi a redução da realidade, promovida por Descartes [1596-1650] e outros, a

categorias matemáticas, ao que pode ser medido matematicamente78”.

O ideal de Laplace (1749-1827) resume bem o espírito científico prometeico79: o

conhecimento dos menores elementos implica no conhecimento do todo. O universo da

ciência moderna (matemático, infinito, não-centralizado e sem propósito) não carece mais de

um telos fundamental que sustente a harmonia intrínseca, a estrutura normativa e a coerência

dedutiva do cosmos da ciência sacra. As concepções científicas distinguem-se: o cosmos

hefestiano implica a adesão a um primaz ou superior, a uma metafísica; o universo prometeico

impõe a constatação da matemática enquanto correspondente simbólico.

Se, como Laplace, você não acha que a divindade é uma hipótese necessária, você pode colocar a questão deste modo: o universo se expressa naturalmente na linguagem da matemática. A força da gravidade diminui com o quadrado da distância; os planetas orbitam em torno do Sol em

78 “The reason for the degeneration of the idea of causation in early modern science was Descartes’ and others’ reduction of reality to mathematical categories, to what can be measured mathematically”. 79 É preciso destacar o contra-ponto de um importante cientista moderno, Pascal (1623-1662), no contexto da ciência universal: “escrever contra os que aprofundam demais as ciências. Descartes. Não consigo perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda a sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôde evitar fazer com que Ele desse um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do quê, não precisa mais de Deus. Descartes: inútil e certo”. (PASCAL, 2005, p.51).

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elipses; a luz viaja em linha reta, ou assim se pensava até Einstein. A matemática, nesta visão, tem evoluído precisamente como um correspondente simbólico do universo80. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.76, tradução nossa).

Uma apenas é a geometria da ciência sacra ou universal, e ela está estruturada sob

duas perspectivas. A diferença é que, enquanto a geometria euclideana é dedutiva, o Quinto

Postulado é uma hipótese matemática que precisa ser ‘assumida’ para a constituição de um

todo coerente de proposições. Em correspondência, a ciência hefestiana apóia-se na

investigação das causas ou princípios primeiros com ênfase em seu aspecto finalístico (ou

teleológico), o qual também precisa ser pressuposto para a constituição de um corpus coerente

de proposições.

A observação de Aristóteles era que a causa eficiente era útil na explicação de qualquer objeto, mas que estruturas compostas de partes heterogêneas tinham também que ser abordadas através de seus fins, através da causa final. [...] Em casos onde todas as partes são homogêneas, nós talvez precisemos considerar apenas explicações mecânicas e materiais. Mas a heterogeneidade do heterogêneo não pode ser explicada por ou derivada simplesmente da homogeneidade. Deve estar presente algum novo princípio além da causa material para explicar a origem da heterogeneidade81. (OLSEN, 2006, p.671, tradução nossa).

Após o Mito de Euclides, a geometria euclideana torna-se descritiva. O Quinto

Postulado não é mais uma hipótese matemática, mas uma leitura necessária do espaço real.

Num espaço infinito, onde há identidade entre o espaço real e o espaço geométrico, a

geometria é um constituinte da própria natureza, em termos de estrutura e não apenas de

objetos82. Em correspondência, na ciência prometeica, o universo infinito passa a ser descrito

através de uma estrutura matemática. As leis gerais, preditivas e verdadeiras da ciência

moderna são tão simples, claras e fecundas que, a exemplo da geometria (agora descritiva),

são universais e necessárias.

80 “If, like Laplace, you don’t think that deity is a necessary hypothesis, you can put it in this way: the universe expresses itself naturally in the language of mathematics. The force of gravity diminishes as the second power of the distance; the planets go around the sun in ellipses; light travels in a straight line, or so it was thought before Einstein. Mathematics, in this view, has evolved precisely as a symbolic counterpart of the universe”. 81 “Aristotle’s observation was that efficient causality was useful in the explanation of any object, but that structures composed of heterogeneous parts had also to be approached through their ends, through final causality. […] In cases where all the parts are homogeneous, we perhaps need to consider only mechanical and material explanations. But the heterogeneity of the heterogeneous cannot be explained by or derived simply from homogeneity. There must be present some new principle beyond material causality to explain the origin of heterogeneity”. 82 Indubitavelmente, os antigos proclamaram a existência de objetos matemáticos, numa tradição que remonta a Pitágoras e que influenciou a hipótese cosmológica da harmonia das esferas, presente em Platão e Aristóteles através do geocentrismo homocêntrico. Se é certo, portanto, que os objetos matemáticos tem significatio rerum atque significatio intellectum para os antigos, a questão que se põe é se proclamaram a existência da estrutura geométrica in toto, considerando a palavra ‘existência’ como o que pode ser ‘descoberto’, mas não pode ser ‘inventado’. Nesse sentido, apenas após o Mito de Euclides, a leitura geométrica euclideana do universo infinito deixa de ser inventada para ser descoberta.

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O nascimento da ciência cartesiana é sem dúvida uma vitória decisiva do espírito. Todavia, uma vitória trágica: neste mundo infinito da ciência nova, não há lugar para o homem nem para Deus. Do mesmo modo, já não é no mundo, esse silêncio eterno dos espaços infinitos, mas na alma que precisamos de procurar Deus. É no estudo da alma que a filosofia vai doravante basear-se. A estrutura do mundo não implica qualquer finalidade e não se explica por um fim. Resulta das leis matemáticas do movimento. (KOYRÉ, 1963, p.67).

Sobre a crescente geometrização do pensamento, pode-se distinguir, na Virada Física

duas fases que se distinguem pela crescente universalização da estrutura geométrica através

da admissão do espaço infinito. Enquanto Tycho e Kepler tomam a geometria como a

essentiae imago do universo, Galileu e Newton elevam-na e tomam-na como uma estrutura

intrínseca a toda filosofia natural. Ora, estas fases correspondem justamente à admissão do

espaço infinito e à substituição do immensum pelo infinito, que derroga o cosmos e proclama

o universo. De fato, Galileu e Newton admitem o espaço infinito, enquanto Tycho e Kepler

ainda não.

“Tycho foi de longe o melhor astrônomo de sua época. Levou a astronomia a olho nu

até seus limites. Aperfeiçoou quase todas as observações astronômicas importantes e calculou

a duração do ano com precisão de menos de um segundo”. (MORRIS, 1998, p.55). Não

admitiu, porém, o movimento da Terra. Tinha razões físicas e uma hipótese admitida (não cria

no immensum de Copérnico): tentou observar a paralaxe estelar para comprovar a translação

terrestre; não a comprovando e admitindo que as estrelas não estivessem muito distantes,

deduziu que a Terra era estática. Era copernicano, contudo, na opção geométrica de sua

descrição cosmológica geo-heliocêntrica, cinematicamente equivalente ao heliocentrismo.

Não posso deixar de mencionar Tycho Brahe, cujo sistema astronômico, que deveria surgir antes do de Copérnico, é um exato equivalente deste último, com a diferença de que Tycho Brahe admite que a Terra é imóvel e que o Sol, com todos os planetas girando em torno dele, gira em torno da Terra. Que razões teria ele para assim retroceder em relação a Copérnico? Creio que ele foi levado por dois tipos de considerações, de naturezas bem diferentes: de um lado, suas convicções religiosas, que não lhe permitiam aceitar uma doutrina contrária às Santas Escrituras e, de outro lado, a impossibilidade de admitir o movimento da Terra do ponto de vista físico. Assim, ele insiste nas objeções físicas contra esse movimento, no que aliás tem perfeita razão: as objeções físicas contra o movimento da Terra eram irrefutáveis antes da revolução científica do século XVII. (EINSTEIN e INFELD, 2008, p.35).

Kepler é um geométrico assumido em suas duas descrições cosmológicas. A primeira,

uma brilhante conjectura das seis esferas heliocêntricas dispostas segundo a circunscrição dos

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cinco sólidos platônicos (tetraedro, cubo, octaedro, dodecaedro e icosaedro83), consta na obra

Mistérios do Cosmos (1595), que foi enviada a Tycho. A obra valeu-lhe o convite para

trabalhar com o astrônomo e foi fonte de inspiração para a segunda descrição, constante na

obra Astronomia Nova (1609), que apresenta as órbitas elípticas, maravilhoso fruto da ratio

geométrica aplicada aos dados astronômicos coletados por Tycho (aos quais teve acesso pleno

somente após a prematura morte deste, em 1601).

Acreditando que o Universo era regido por leis matemáticas e afirmando que a Geometria fazia parte da mente de Deus, Kepler buscava uma roupagem matemática com que vestir suas observações do Sistema Solar. Convicto de que a quantidade de planetas (seis, à época84) não era uma simples coincidência mas algo enraizado na Geometria, em 9 de julho de 1595, julgou haver encontrado a explicação: as órbitas dos planetas situavam-se sobre seis esferas separadas entre si por cinco poliedros regulares, cada um circunscrito à esfera anterior e inscrito na seguinte. Maravilhado com tal conjectura, que hoje nos parece infantil, publicou um livro cujo longo nome é atualmente abreviado como Mysterium Cosmographicum (Mistérios do Cosmos). Ali defendia o heliocentrismo e propunha seu modelo de órbitas circulares, percorridas com velocidades constantes. Uma cópia do livro foi enviada a Galileu e outra ao astrônomo dinamarquês Tycho Brahe. (GARBI, 2010, p.172 e 173).

Figura 14. Os Sólidos Platônicos (Tetraedro, Cubo, Octaedro, Dodecaedro e Icosaedro).

Galileu talvez tenha sintetizado, como nenhum outro, o novo espírito reinante na

filosofia natural após o Mito de Euclides, ao afirmar que a natureza está escrita na língua

matemática. Ainda que prostrado diante dos cardeais do Santo Ofício, obrigado a abjurar suas

ideias, foi capaz de sussurrar que a Terra se move, tal era sua crença no heliocentrismo85.

83 No Timeu, 55d-55c, Platão descreve os cinco poliedros perfeitos, cada um correspondendo a um elemento. O primeiro, o tetraedro corresponde ao fogo. O segundo, o octaedro, ao ar. O terceiro, o icosaedro, à água. O quarto, o cubo, à terra. O quinto, o dodecaedro, ao éter. 84 A Lua já não era um planeta no heliocentrismo. 85 O heliocentrismo foi declarado falso e errôneo pela Igreja. A obra de Copérnico, De Revolutionibus, integra o Index Librorum Prohibitorum em 1616. Obrigado a abjurar suas ideias em 1633, “os partidários de Galileu afirmaram que, ao se levantar da posição de joelhos diante dos cardeais, ele teria sussurrado: ‘E pur, si muove’ (‘Entretanto, ela si move’)”. (GARBI, 2010, p.176).

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A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível entender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto. (GALILEU, 1983, p.119).

Com Newton, a ciência de leis universais alcança a sua expressão definitiva. “As leis

são postuladas para terem validade universal, aplicáveis não somente ao Sol e à Terra, mas a

Marte e Vênus e todos os outros planetas, cometas e satélites86”. (DAVIS; HERSH;

MARCHISOTTO, 2003, p.83 e 84, tradução nossa). Para o poeta Alexander Pope, apud

Garbi (2010, p.214), “A natureza e suas leis jaziam escondidas nas trevas: disse Deus, ‘Faça-

se Newton’, e tudo foi luz87”.

Dizer-nos que todas as espécies de coisas estão dotadas de uma qualidade específica oculta pela qual ela age e produz efeitos manifestos, não é dizer nada; mas derivar dois ou três princípios gerais do movimento a partir dos fenômenos, e depois disso nos dizer como as propriedades e ações de todas as coisas corpóreas se seguem desses princípios manifestos, seria um grande passo em filosofia, apesar de que as causas desses princípios não foram ainda descobertas. E, portanto, não tenho escrúpulos em propor os princípios de movimento acima mencionados, sendo eles de uma extensão muito geral, e deixar suas causas serem descobertas. (NEWTON, 1996, p.296).

Portanto, há uma incorporação progressiva do espaço infinito à ciência após o Mito de

Euclides. Segundo Koyré (1982), Tycho e Kepler não o admitiam: o primeiro se insurge

contra o immensum de Copérnico, que lhe parece absolutamente inadmissível; já o segundo se

vê obrigado a estender o Universo apenas o necessário para explicar a ausência de paralaxes

das estrelas fixas, sem admitir a sua infinidade. Galileu o admite reservadamente88, e Newton

o afirma, com toda a autoridade de seu gênio científico.

“Escrevendo ao clérigo inglês Richard Bentley em 1692, Newton argumentou em favor de um universo infinito. Se o universo fosse finito, disse ele, a gravidade faria toda a matéria do universo se acumular em seu

86 “The laws are postulated to be of universal validity, applying not only to the sun and the earth, but to Mars and Venus and all the other planets, comets and satellites”. 87 “Nature and nature’s laws lay hid in night: God Said, ‘Let Newton be’, and all was light”. 88 “No Diálogo, Galileu afirma que não havia sido provado se o universo era infinito ou finito. Declara então estar disposto a aceitar um universo finito para efeito de argumentação. Em seguida, o assunto é rapidamente abandonado. No entanto, numa carta que escreveu em 1639 a Fortunio Liceti, professor da Universidade de Pádua, Galileu se expressou de um modo diferente. Nessa carta, afirmou novamente não acreditar que a questão pudesse ser conclusivamente resolvida. E então acrescentou que pessoalmente se inclinava pela ideia de um universo infinito” (MORRIS, 1998, p.61 e 62). “Galileu, que, como veremos, chegou à República Veneta quase ao mesmo tempo em que Bruno era expulso, dirigindo-se à trágica conclusão de sua vida, deve ter sentido o perigo dessa sombra projetada sobre a teoria copernicana por Bruno, que, embora genial pensador, jamais fora um homem de ciência, muito menos um astrônomo. Não é, pois, sem significado que Galileu jamais tenha-se referido a ele em seus escritos, (...)”. (FANTOLI, 2008, p.55 e 56).

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centro. Num universo infinito, por outro lado, todo corpo individual experimentaria forças gravitacionais em todas as direções. Se a matéria estivesse mais ou menos uniformemente distribuída, essas forças seriam mais ou menos iguais, e ela não seria atraída em nenhuma direção particular89”. (MORRIS, 1998, p.64).

Alguns anos após ter enunciado a Lei da Gravitação Universal, em 1687, Isaac Newton correspondeu-se com o teólogo Richard Bentley, capelão do bispo de Worcester, na Inglaterra. Bentley estava preparando uma série de palestras sobre as novas descobertas de Newton, baseadas no tema ‘Como a estrutura do Universo pode ser gerada apenas pelas mãos de Deus’. [...] Bentley perguntou a Newton como um Universo finito, regido pela lei da gravidade, onde todos os objetos estão em constante atração mútua, não implode, com todos os corpos se concentrando em seu centro. Newton respondeu que o Universo não era finito, mas infinito, já que era criação de um Deus onisciente e onipresente, como infinitos poderes. Nesse Universo infinito, manifestação da glória divina, um número infinito de corpos se posicionava de modo a cancelar as atrações em direções opostas. Caso houvesse algum distúrbio, Deus interferiria a fim de restabelecer o equilíbrio universal. (GLEISER, 1999, p.109 e 110).

Se a Primeira Inflexão pudesse ser escrita na forma de uma saga religiosa, já que

somente a Bíblia está tão presente no pensamento ocidental quanto a geometria euclideana, os

Elementos seriam o Livro Sagrado; Almagesto, Ockham, Cusa e Copérnico, os Profetas;

Digges, o Precursor; Bruno, o Redentor; Tycho e Kepler, Discípulos; Galileu, o Apóstolo; e

Newton, o primeiro Papa. A primeira encíclica da nova ciência de leis universais seria esta:

Até aqui explicamos os fenômenos dos céus e de nosso mar pelo poder da gravidade, mas ainda não designamos a causa desse poder. É certo que ele deve provir de uma causa que penetra nos centros exatos do sol e planetas, sem sofrer a menor diminuição de sua força; (...) Mas até aqui não fui capaz de descobrir a causa dessas propriedades da gravidade a partir dos fenômenos, e não construo nenhuma hipótese; pois tudo que não é deduzido dos fenômenos deve ser chamado uma hipótese; e as hipóteses, quer metafísicas ou físicas, quer de qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia as proposições particulares são inferidas dos fenômenos, e depois tornadas gerais pela indução. Assim foi que a impenetrabilidade, a mobilidade e a força impulsiva dos corpos, e as leis dos movimentos e da gravitação foram descobertas. E para nós é suficiente que a gravidade realmente exista, aja de acordo com as leis que explicamos e que sirva abundantemente para considerar todos os movimentos dos corpos celestiais e de nosso mar. (NEWTON, 1996b, p.258 e 259).

A ciência universal corresponde, pois, a uma geometria descritiva (quando a existência

da estrutura geométrica in toto a partir da identidade entre o espaço real e o espaço

geométrico pôde ser propugnada). Deste modo, a ciência prometeica também expurga o

caráter analítico da causalidade (material, formal, eficiente e final), que a ciência hefestiana

89 “Em 1721, Edmond Halley, famoso por ter traçado a órbita do cometa homônimo, argumentou que, em um Universo infinito com um número infinito de estrelas, o céu noturno jamais seria escuro, mas sim claro como o dia!”. (GLEISER, 1999, p.110).

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enfatizava em seu aspecto finalístico (ou teleológico), para tornar a causalidade uma relação

de sucessão temporal, enfatizando, doravante, o seu aspecto eficiente (ou determinista).

É certo que houve um incremento nos instrumentos de medição, os quais permitiram a

observação de fenômenos pelos modernos antes ocultos aos antigos. Mas a Primeira Inflexão

não decorre de instrumentos de medição mais precisos. Aliás, é preciso ressaltar que o

contexto de descoberta é indiferente a um referencial metodológico, imprescindível apenas

para o contexto de justificação de uma teoria. Marca a Primeira Inflexão uma correspondência

relevante com a mudança do status da geometria euclideana, de dedutiva à descritiva.

É a partir do Mito de Euclides que se pode observar um novo modo de conceber as leis

gerais, preditivas e verdadeiras, que de sacras passam a universais. Com o Mito de Euclides,

ocorrem a superação do cosmos normativo pelo universo matemático, e o divórcio definitivo

entre Física (que se ocupará do ‘como’, ou da causa eficiente) e Metafísica (que passa a se

ocupar do ‘porquê, ou da causa final).

Se tais disciplinas possuíam uma ligação íntima para os hefestianos, de forma a manter

a harmonia intrínseca, a estrutura normativa e a coerência dedutiva do contexto científico, os

prometeicos irão separá-las, substituindo a estrutura normativa pela estrutura geométrica. O

novo universo, infinito, não-centralizado e sem propósito, através da matemática, preserva a

sua harmonia e a sua coerência, independentemente de uma finalidade. Enfatizando o aspecto

eficiente (ou determinista) da causalidade, a ciência universal realiza, pois, o sonho

prometeico de ‘saber antecipadamente todo o futuro’ (Prometeu Acorrentado, v.133 e 134).

A unificação de fenômenos diversos sob uma generalização poderosa traz consigo o

poder do assombro diante de certezas cada mais inexoráveis90:

Em boa medida, a importância da teoria de Newton reside em sua abrangência. Explica uma grande quantidade de fenômenos aparentemente distintos. Antes de Newton, Kepler tinha estabelecido as leis que regem o movimento planetário e Galileu expressou uma lei sobre a queda dos corpos. As leis de Kepler e Galileu pareciam de alcance diverso até que a teoria de Newton as englobou, e elas passaram a explicar muitos outros fatos. (SALMON, 2002, p.72).

Não se trata de as afirmações de Galileu, Kepler, Boyle e Huygens91 se encontrarem esquecidas ou a complexidade do desenvolvimento pré-

90 Na Introdução desta dissertação, o assombro é descrito como uma emoção primordial que move a investigação da realidade natural. Ele decorre do reconhecimento de uma ordem, e é tanto maior quanto maior a ordem reconhecida, no sentido de que mais fenômenos diversos são unificados sob uma mesma generalização. A mais importante crítica acerca da possibilidade da certeza, contudo, foi a estabelecida por David Hume (1711-1776), “segundo o qual nenhum raciocínio no indicativo pode engendrar uma conclusão no imperativo” (BOUDON, 2010, p.11).

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newtoniano da ciência totalmente ignorado, mas sim de estes homens serem vistos como precursores do verdadeiro fundador da ciência moderna tendo, cada um deles, tido vislumbres parciais da verdade. Acima de tudo, Newton definira um método de ciência definitivo e infalível, quando outros se tinham limitado a tactear esperançosamente em busca de verdades particulares. (HALL, 1988, p.484).

No contexto moderno, “a perspectiva newtoniana da natureza era, na verdade,

duplamente rigorosa, pois não só era solidamente baseada na indução a partir da experiência

como possuía, no seu desenvolvimento, o rigor da argumentação matemática” (HALL, 1988,

p.485). Em tal contexto, a pretensão de coerência integral se dá com o sacrifício do antigo,

que passa a ser considerado pré-científico diante da fortaleza harmônica e dedutiva da

estrutura geométrica que sustenta o contexto científico universal.

Vale registrar, contudo, o ceticismo teórico de Hume92 (1711-1776) como uma crítica

radical e profunda à conexão entre causalidade eficiente e certeza93. Para Hume, “a reflexão

nada acrescenta de essencial ao que trazem os fatos” (OMNÈS, 1996, p.95), já que “nenhum

raciocínio no indicativo pode engendrar uma conclusão no imperativo” (BOUDON, 2010, p.

11).

Vem, então, algo que parece nos concernir ainda mais: as leis que as ciências descobrem, com o auxílio da experiência, apenas revelam a existência de uma ‘conexão inseparável e inviolável dos fatos entre si’. Essas leis são apenas resumos dos fatos. Assim, os fatos estão na origem de nossa representação do mundo, de nossa linguagem, e isso é possível porque eles têm uma regularidade suficiente para permitir que a razão e a linguagem sejam úteis. Essa regularidade é descrita da melhor forma pelas leis enunciadas pelas ciências, que, no entanto, nada acrescentam a um mero resumo dos fatos. (OMNÈS, 1996, p.95).

91 Galileu (1564-1642) estabeleceu a Lei da Queda dos Graves; Kepler (1571-1630), as Três Leis dos Movimentos Planetários; Boyle (1627-1691), a Lei da Compressão dos Gases; e Huygens (1629-1695), a Lei da Força Centrípeta, equivalente à 2ª Lei de Newton aplicada ao movimento circular. 92 Segundo Fogelin (2007), é preciso distinguir entre o ceticismo teórico, estabelecido sob o princípio de que ‘não há fundamentos racionais para juízos do tipo A’, e o ceticismo normativo ou prescritivo, estabelecido sob o princípio de que ‘não se deve assentir a juízos do tipo A’. Para o autor, Hume é um cético teórico radical, que, entretanto, não recomenda a suspensão do juízo. O argumento é de que não há nada de errado em ter crenças para os quais não há justificação teórica, pois as crenças não estão sob controle e que, portanto, recomendações a seu respeito são vãs. Nas palavras do autor (p.118), “a ideia central de Hume parece ser essa: se a crença fosse fixada por processos de raciocínio, então o argumento cético recém apresentado levaria todos aqueles que o consideraram a um estado de suspensão total da crença. De fato, em nosso gabinete, essas reflexões céticas podem chegar muito perto de induzir esse estado extremo. Contudo, quando retornamos aos afazeres da vida diária, nossas crenças ordinárias voltam rapidamente a nós e nosso estado prévio nos atingirá agora (talvez com tremor remanescente) como divertido. Mas essa restauração da crença não é questão de raciocínio e, portanto, não pode ser explicado com base em qualquer teoria tradicional de formação de crença, em que se supõe que a mente chega a suas crenças por um processo de raciocínio. A teoria causal de formação de crença do próprio Hume não sofre desse embaraço. Ele, contudo, não tenta mostrar que sua perspectiva é única a esse respeito”. 93 Para Olsen (2006, p.674), “what happened in the modern period was the degeneration of this analytical idea of causation as temporal succession Hume was so easily to criticize. The ‘cause’ that fell under Hume’s criticism had no more logical relation to its ‘effect’ than our habit of observing that one comes before the other”.

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Coube a Kant (1724-1804) o melhor enfrentamento ao ceticismo teórico de Hume. O

preço pago é alto e representa uma série limitação às aspirações prometeicas de uma ciência

que tudo antecipa, ou que tudo conhece. Com efeito, a Crítica da Razão Pura, admite, ao lado

da existência de um conhecimento a priori (transcendental ou independente da experiência e,

portanto, verdadeiro, eterno e universal), a distinção entre os ‘noumena’, as coisas em si, que

não podem nunca ser conhecidas, e os ‘phenomena’, as aparências, que são tudo o que se

pode expressar acerca das coisas em si.

Ele [Kant] distinguiu dois tipos de conhecimento a priori. O ‘analítico a priori ’ é o que nós sabemos ser verdadeiros por análise lógica, pelo significado usual dos termos em seu uso. Kant, como os racionalistas, acreditou que nós também possuímos outro tipo de conhecimento a priori, que não é simplesmente truísmo lógico. Este é o ‘sintético a priori’. Nossas intuições de tempo e espaço, de acordo com Kant, são exemplos deste conhecimento. Ele explica sua natureza a priori pela constatação de que estas intuições são propriedades inerentes da mente humana. Nosso conhecimento de tempo está sistematizado na aritmética, que é baseada na intuição de sucessão. Nosso conhecimento de espaço está sistematizado na geometria. [...] As verdades da geometria e aritmética são impostas sobre nós pela maneira que nossas mentes funcionam; isto explica porque elas são supostamente verdadeiras para todos, independente da experiência. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.367, tradução nossa).

Com a Filosofia Transcendental, Kant propõe-se a investigar “como e até que ponto

pode o entendimento conhecer sem recorrer à experiência” (OMNÈS, 1996, p.97), ou,

utilizando a terminologia kantiana, o “nosso modo de conhecimento de objetos na medida em

que este deve ser possível a priori”. (KANT, 1996, p.65). Daí o estabelecimento das

representações a priori da sensibilidade: as intuições puras do espaço e tempo, que

correspondem à geometria e aritmética, ou à extensão e sucessão.

Geometria é uma ciência que determina sinteticamente e mesmo assim a priori as propriedades do espaço. Que deve ser, pois, a representação do espaço para que seja possível um tal conhecimento dele? O espaço tem que ser originariamente intuição, já que de um simples conceito não se podem extrair proposições que ultrapassem o conceito, coisa que acontece na Geometria (Introdução, V). Mas essa intuição tem que ser encontrada em nós a priori, isto é, antes de toda a percepção de um objeto, portanto, tem que ser intuição pura e não empírica. (KANT, 1996, p.74 e 75).

O tempo é uma representação necessária subjacente a todas intuições. Com respeito aos fenômenos em geral, não se pode suprimir o próprio tempo, não obstante se possa do tempo muito bem eliminar os fenômenos. O tempo é, portanto, dado a priori. Só nele é possível toda a realidade dos fenômenos. Estes podem todos em conjunto desaparecer, mas o próprio tempo (como a condição universal da sua possibilidade) não pode ser suspenso. (KANT, 1996, p.77).

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As intuições do espaço e do tempo são uma leitura kantiana dos mesmos conceitos

estabelecidos por Newton, nos Principia.

O espaço absoluto, por sua natureza, sem nenhuma relação com algo externo, permanece semelhante e imóvel; o relativo e certa medida ou dimensão móvel desse espaço, a qual nossos sentidos definem por sua situação relativamente aos corpos, e que a plebe emprega em vez do espaço imóvel, como é a dimensão do espaço subterrâneo, aéreo ou celeste definida por sua situação relativamente à terra. (NEWTON, 1996, p.24 e 25).

O tempo absoluto, verdadeiro e matemático flui sempre igual por si mesmo e por sua natureza, sem relação nenhuma com coisa externa, chamando-se com outro nome ‘duração’; o tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida sensível e externa de duração por meio do movimento (seja exata, seja desigual), a qual vulgarmente se usa em vez do tempo verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o ano. (NEWTON, 1996, p. 24).

A ciência moderna ainda suspira após Hume, apesar de Kant já ter apontado, com os

noumena, com o que não pode ser conhecido, uma certa moderação em suas pretensões

prometeicas. Kant impõe, de fato, uma interdição em matéria de ontologia, já que podemos

captar apenas um aspecto das coisas (phenoumena), mas não a realidade última das coisas.

Sua interdição foi solenemente ignorada por idealistas e materialistas, os quais proclamaram,

tal como Prometeu, “digo o futuro e também digo o meu desejo” (Prometeu Acorrentado, v.

1232).

O idealismo deixou que o espírito subjugasse o entendimento e, amalgamando-o com a razão, legitimou a apropriação, por esta, da terra da história e dos sonhos. Decidindo sobre a identidade das ideias e do real, o materialismo acreditou ter confirmado que o espírito e a matéria tinham a mesma natureza. [...] Idealismo e materialismo partilhavam uma ambição: acabar com a interdição kantiana em matéria de ontologia. (SAINT-SERNIN, 1998, p.28).

Não tarda, contudo, para que o desenvolvimento de outras geometrias corresponda a

uma Segunda Inflexão teórica no modo de conceber a ciência, que passa do contexto

prometeico de leis universais para o contexto ioético de leis imperfeitas, restabelecendo,

talvez, os limites que Kant procurara dar à razão humana, mas que idealistas e materialistas,

firmemente apoiados em uma certeza prometeica das leis científicas, procuraram esquecer.

Mas este é o assunto que será abordado no próximo capítulo.

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3 AS GEOMETRIAS NÃO-EUCLIDEANAS E A SEGUNDA INFLEXÃ O

O objetivo deste capítulo é percorrer o itinerário das leis gerais, preditivas e

verdadeiras e destacar como um novo contexto de leis científicas, que passa de leis universais

a leis imperfeitas, apresenta uma correlação relevante com a descoberta das geometrias não-

Euclideanas. De Prometeu (a ciência dos modernos), que sabe antecipadamente todo o futuro,

a Io (a ciência dos contemporâneos), que adverte para o não aceno com doces esperanças,

para logo depois mudá-las e desdizê-las, há uma segunda inflexão teórica no modo de

conceber a ciência.

Por volta de 1800, as ideias do Iluminismo já eram conhecidas em toda parte. As sementes lançadas por Descartes, Galileu e Newton já tinham germinado. O ar vibrava com uma nova confiança intelectual e fé na razão humana e na ciência. Pela primeira vez desde os filósofos jônicos e da escola de Alexandria, o universo era considerado compreensível. Já estavam bem estabelecidas as sociedades científicas fundadas anteriormente, muitas delas com o apoio de déspotas esclarecidos. Além dessas sociedades e das antigas universidades, novas instituições de saber avançado haviam sido fundadas para atender às muitas necessidades de uma sociedade crescentemente complexa. (O’SHEA, 2009, p.86).

A identidade entre o espaço real e o espaço geométrico, após a substituição de um

cosmos normativo pelo universo matemático, a partir do espaço infinito de Digges e Bruno,

que ocasiona o Mito de Euclides, corresponde, na ciência, a um contexto de leis universais (os

Principia, de Newton, são de 1687) e, na filosofia, à assunção da existência de conhecimento

sintético a priori (a primeira edição da Crítica da Razão Pura, de Kant94, é de 1781), a

exemplo dos axiomas geométricos de Euclides, dentre os quais, o Quinto Postulado.

Independentemente de sua forma axiomática, compreendida como sendo a maneira mais perfeita de se apresentar o conteúdo de toda e qualquer ciência, a geometria de Euclides era também encarada como sendo aquela que naturalmente correspondia à natureza. Os objetos naturais, do mesmo modo que as relações existentes entre eles, seguiam a forma estabelecida pelos axiomas e teoremas da geometria euclideana. (KALIMUTHU, 2009, p.17).

94 “Em Kant, e pela convicção de seus discípulos, é claro que a sua concepção do espaço exclui qualquer eventualidade de um espaço irrepresentável, por exemplo, não euclidiano. Aliás, essa exclusão é que deveria levar Gauss, alguns anos mais tarde, a calar suas interrogações sobre a geometria do espaço, para não provocar a ‘ira dos beócios’. Um espaço-tempo como o de Einstein, cujas propriedades de curvatura são determinadas pela matéria que ele contém, ou seja, pelos ‘objetos’, contrapõe-se ainda mais a todos os postulados de Kant”. (OMNÈS, 1996, p.99).

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Contudo, no século XIX95, o desenvolvimento das geometrias não-euclideanas, cujo

protagonismo pode ser creditado, sem que injustiças maiores sejam praticadas, a Gauss (1777-

1855), Lobachevsky (1792-1856), Bolyai (1802-1860) e Riemann (1826-1866), revolucionou

a geometria, com repercussões sobre a teoria do conhecimento. De fato, novas geometrias

colocam em xeque o estatuto de necessidade da intuição pura do espaço kantiano. Como

consequência, o kantismo enquanto resposta ao ceticismo de Hume perde o seu vigor.

Conforme exposto no capítulo anterior, observou-se que, na Primeira Inflexão, a

superação de um cosmos normativo por um universo matemático implicou no pleonasmo do

primaz ou do superior como justificação do ‘porquê’ acerca do discurso da essentiae imago da

natureza. Um corolário de tal constatação foi o empobrecimento da noção de causalidade, que

presente na ciência sacra com ênfase na finalidade, passa a ressaltar apenas o aspecto eficiente

na ciência universal.

Com efeito, já entre os universais, coube à geometria descritiva, enquanto constituinte

estruturante da natureza (e do próprio pensamento humano), substituir a causa finalística da

ciência sacra. Na ciência moderna, cabe à geometria revelar que a natureza possui uma

coerência e uma harmonia próprias da axiomática, restando aos cientistas a descoberta das

explicações últimas da natureza96. Enquanto discurso da explicação do ‘como’ da natureza, a

ciência universal assume, pois, um caráter determinista, passando a aspirar o dom prometeico

de saber antecipadamente todo o futuro.

Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que se vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo. [...] O determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar. (SANTOS, 2010, p.31).

Entretanto, novas geometrias entram em cena e o debate apertius vs verum constante

no Prefácio de Copérnico ao De Revolutionibus volta à tona. Naquela época, ainda durante o

Esforço Geométrico que antecedeu a Primeira Inflexão, o heliocentrismo de Copérnico fora

apresentado apenas como uma descrição cosmológica mais patente97 (mas não a verdadeira)

95 “In 1829, Nikolai Ivanovich Lobachevsky published an account of acute geometry in an obscure Russian journal, Kazan Messenger”. (KALIMUTHU, 2009, p.20). 96 Popper (1975, p.392), em Conjecturas e Refutações, chama esta tese de Essencialismo: “As melhores teorias, as verdadeiramente científicas, descrevem as ‘essências’ ou as ‘naturezas essenciais’ das coisas – as realidades que estão por trás das aparências. Tais teorias não precisam nem são suscetíveis de uma explicação ulterior: elas são as explicações últimas e encontra-las é o objetivo final do cientista”. 97 “Pois, se as hipóteses por eles assumidas [geocêntricos excêntricos e homocêntricos] não fossem falazes, tudo o que delas se segue sem dúvida seria verificado. Embora, porém, sejam obscuras estas coisas que digo agora, tornar-se-ão mais patentes em seu lugar”. (COPÉRNICO, 2008, p.264).

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do cosmos normativo, como um cálculo matemático mais consistente98. O debate apertius vs

verum está na base do Instrumentalismo99, a tese segundo a qual o discurso científico não

pode ter a pretensão de descrever verdadeiramente a realidade física, mas apenas a de

enunciar hipóteses que permitam cálculos que concordem com as observações. De acordo

com Andréas Osiander, na sua Advertência ao De Revolutionibus, intitulada Ao Leitor sobre

as Hipóteses desta Obra:

Permitamos, pois, que junto com as antigas, em nada mais verossímeis, façam-se conhecer também essas novas hipóteses, tanto mais por serem elas mais ao mesmo tempo admiráveis e fáceis, e por trazerem consigo um enorme tesouro de doutíssimas observações. E que ninguém espere da astronomia algo de certo no que concerne a hipóteses, pois nada disso procura ela nos oferecer; para que, tomando por verdadeiro algo que foi para outro uso imaginado, não venha a sair desse estudo mais estulto do que nele entrou. Salve! (OSIANDER, 2008, p.254).

Eis as duas posições extremas, de um lado o Essencialismo, de outro, o

Instrumentalismo. Na Primeira Inflexão, ocorreu que o primeiro eclipsou o segundo. Na

Segunda Inflexão, contudo, as geometrias não-euclideanas reacendem o debate apertius vs

verum. Seria a Relatividade apenas um cálculo matemático mais consistente para a descrição

do universo? Ou, em sentido oposto, a Relatividade e as geometrias não-euclideanas que a

acompanham têm significatio rerum e descrevem verdadeiramente o espaço físico curvo100?

É inegável reconhecer que uma geometria não-euclideana é um sistema axiomático101

(consistente, completo e econômico), mas isso revigora um novo Essencialismo? Por outro

lado, admitindo-se, como Poincaré (1985, p.70), que “a geometria euclideana não tem nada a

98 “Assim, não quero esconder de vossa Santidade que nada mais me moveu a pensar a respeito de uma outra maneira de calcular os movimentos das esferas do mundo senão que entendi que os próprios Matemáticos não são consistentes consigo próprios ao investigá-los [tais movimentos]”. (COPÉRNICO, 2008, p.262). 99 A denominação também é de Popper, em Conjecturas e Refutações. Loparic (2008) prefere Ficcionalismo. Para Popper (1975) o Instrumentalismo é a concepção de ciência de Andreas Osiander (1498-1552), autor da Advertência ao De Revolutionibus; do Cardeal Bellarmino (1542-1621), um dos inquisidores de Giordano Bruno; e do Bispo Berkeley (1685-1753), para quem a Mecânica de Newton não passava de um instrumento conveniente para o cálculo e predição dos fenômenos. 100 “Às crenças ingênuas dos antigos, para os quais o mundo era limitado, substituiu o Renascimento a ideia de um Universo infinito no espaço e no tempo, contendo uma infinidade de astros. Se refletirmos um momento sobre essas duas ideias opostas, elas nos parecerão igualmente inconcebíveis. [...] Como compreender um espaço que em todas as direções é um abismo sem fim? Como compreender, ao contrário, um espaço limitado, sem que exista exteriormente senão o Nada absoluto? [...] Um Universo de tipo Riemanniano seria finito, se bem que não limitado, e escaparia à dificuldade apontada. A teoria da relatividade concebe a matéria como índice da curvatura do Universo: resta ver se essa curvatura é tal que o espaço físico se possa fechar sobre si mesmo”. (COSTA, M., 1995, p.92 e 93). 101 “Em muitos casos, a prova de consistência de uma teoria A pode ser reduzida à da consistência de outra, B, da seguinte maneira: dentro da teoria B, elabora-se um modelo de A, ou seja, escolhe-se um sistema conveniente, S, de objetos de B, de tal forma que para esse sistema sejam satisfeitas as proposições primitivas de A; S constitui, assim, um modelo da teoria A. Então, constata-se imediatamente que se B for consistente, A também o será. Por este processo, por exemplo, Beltrami e Klein provaram a consistência da geometria plana não-euclidiana de Lobatchewski, construindo um modelo dela por meio da geometria euclidiana”. (COSTA, N., 2008, p.54).

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temer de novas experiências”, isso significa admitir um novo Instrumentalismo? Qual é,

portanto, a natureza dos axiomas geométricos após as geometrias não-euclideanas?

Convenções, juízos sintéticos a priori ou verdades experimentais? Em correspondência às

repercussões epistemológicas das novas geometrias, convém atestar uma Segunda Inflexão na

ciência. Na lição de Bachelard,

[...] a partir de Euclides e durante dois mil anos, a geometria recebe sem dúvida acréscimos numerosos, mas o pensamento fundamental permanece o mesmo, e pode-se crer que este pensamento geométrico fundamental é o fundo da razão humana. É sobre o caráter imutável da arquitetura da geometria que Kant funda a arquitetônica da razão. Se a geometria se divide, o kantismo só pode ser salvo inscrevendo princípios de divisão na própria razão, abrindo o racionalismo (BACHELARD, 1984, p.100).

Poincaré, em A Ciência e Hipótese, de 1902, irá questionar a natureza dos axiomas

geométricos frente às novas geometrias. Suas questões dirigem-se tanto a Kant, para quem os

axiomas são juízos sintéticos a priori, quanto a Mill, para quem os axiomas eram verdades

experimentais. Poincaré (1985, p.54) não irá apenas contrapor Kant e Mill, afirmando que “os

axiomas geométricos não são, pois, nem juízos sintéticos a priori, nem fatos experimentais”,

mas também pontuar com importantes debatedores da Filosofia Contemporânea, dentre os

quais foram destacados o Círculo de Viena, Thomas Khun e Quine.

Paralelamente à Geometria, o panorama científico também passa por modificações,

seguindo-se, após o Convencionalismo, uma Segunda Virada Física. Neste Capítulo,

procurar-se-á demonstrar a relevância da correlação entre a ciência contemporânea e o novo

status da geometria, que passa de descritiva a convencional.

No campo da ciência pura, o deslumbramento com a mecânica newtoniana levou Laplace a declarar, no fim do século XVIII, que ele seria capaz de determinar a evolução do Universo se conhecesse a posição e as velocidades iniciais de todas as partículas de matéria, dispensando a hipótese da existência de Deus. O erro óbvio do entusiasmo de Laplace era a suposição de que a lei de Newton resumisse toda a física. Igualmente pretensiosa foi a ideia de que era possível enquadrar toda a história na capacidade de previsão humana. É a doutrina do determinismo histórico, ou historicismo, sugerida por Hegel e fervorosamente encampada por Karl Marx. (SIMONSEN, 1994, p.118).

É fato bem conhecido por todos aqueles que se interessam por História da Ciência que, ao final do século XIX, tanto as ciências naturais (Física, Química e Biologia), quanto às ciências exatas (Matemática e Lógica), sofreram profundas modificações, que acarretaram, não somente um enriquecimento do conteúdo destas mesmas ciências, mas também, e principalmente, a necessidade de uma reavaliação de seus fundamentos epistemológicos. (VIDEIRA, 1997, p.3).

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3.1 O QUINTO POSTULADO

É consenso entre os matemáticos que o Quinto Postulado revela-se como o aspecto

especialmente problemático do longo reinado de Euclides sobre o pensamento ocidental

(CAJORI, 2007; DAVIS; HERSH; MARCHISSOTTO, 2003; DUNHAM, 1990; GARBI,

2010; KALIMUTHU, 2009; LEVI, 2008; RAVINDRAN, 2007). Também conhecido como o

Postulado das Paralelas, ele consta no Livro I dos Elementos102, logo após as definições e os

primeiros quatro postulados:

Se duas retas (BB’ e CC’) pertencentes a um mesmo plano são cortadas por outra

(AA’), e se a soma dos ângulos internos (D + E) de um lado é menor do que dois ângulos

retos (180º), então as retas cortadas, quando prolongadas, irão encontrar-se neste lado, cuja

soma dos ângulos internos é menor do que dois ângulos retos.

Figura 15. O Postulado das Paralelas

A escrita original de Euclides para o Quinto Postulado é muito destoante da escrita dos

quatro primeiros postulados103. Não é um postulado evidente, pois envolve muitas definições

(reta, ângulo, ângulo reto), uma operação aritmética (soma) e uma comparação. Um sistema

axiomático deve ser consistente, completo e econômico. Seus princípios (definições,

postulados ou noções comuns), dos quais serão efetuadas as demonstrações das demais

proposições, devem ser simples e naturalmente evidentes.

102 As referências aos Elementos, de Euclides, serão feitas preferencialmente por Bicudo, São Paulo, 2009; subsidiariamente por Heath, New York, 1956. 103 Os outros quatro postulados são: 1) traçar uma reta a partir de todo ponto até todo ponto; 2) também prolongar uma reta limitada, continuamente, sobre uma reta; 3) com todo centro e distância, descrever um círculo; 4) serem iguais entre si todos os ângulos retos. “The form of statement of the postulate is long and awkward compared with that of the others, and its obviousness thereby lessened”. (LEWIS, 1920, p.16).

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O Livro I dos Elementos, que apresenta os fundamentos de sua geometria, contém 23

definições, 5 postulados, 5 noções comuns104 e 48 proposições. “As definições, noções

comuns e postulados são tomados como os pontos de partida a partir dos quais outras

afirmações, chamadas de proposições, são demonstradas segundo rígidas regras lógicas”.

(O’SHEA, 2009, p.69). Certamente, o Postulado das Paralelas não é um bom princípio, pois

mais parece uma proposição do tipo teorema105 do que um postulado.

Euclides tinha consciência disso, tanto que parece postergar a aplicação do Quinto

Postulado. Apenas na Proposição I.29, Euclides recorre ao Quinto Postulado106: “A reta [t],

caindo sobre as retas paralelas [a//b], faz tanto os ângulos alternos iguais entre si quanto o

exterior igual ao interior e oposto e os interiores e no mesmo lado iguais a dois retos”.

Figura 16. Proposição I.29 dos Elementos

Devido a sua escrita não-econômica, o Quinto Postulado esteve sob suspeita de muitos

matemáticos, que criticaram-no na estética e na técnica. Esforços significativos foram feitos

na tentativa de demonstrar ou que sua escrita era imprópria (várias versões equivalentes foram

propostas de maneira mais econômica), no contexto da geometria euclideana dedutiva, ou que

seu conteúdo era redundante (o postulado era logicamente necessário e poderia ser

demonstrado), no contexto da geometria euclideana descritiva.

104 Segundo Heath (1956). A tradução de Bicudo (2009) apresenta 9 noções comuns. 105 “Como se pode perceber, há uma disparidade entre alguns postulados com relação ao modo como são enunciados. Vê-se que alguns são formulados como comandos, ordens, e outros possuem um caráter descritivo, explanatório. Estas diferenças se fazem notar também nas proposições demonstradas a partir deles. Aquelas que se assemelham a comandos são chamadas problemas, e as proposições descritivas são chamadas teoremas. A primeira proposição do primeiro livro é um exemplo de problema (Prop. I,1: ‘Construir um triângulo equilátero sobre uma linha reta finita dada’); e a sexta proposição do mesmo livro é um exemplo de teorema (Prop. I,6: ‘Se em um triângulo dois ângulos são iguais entre si, então os lados opostos aos ângulos iguais também serão iguais entre si’)”. (VAZ, 2009, p.167). 106 “If the order is significant, it indicates that the author did not at first intend to include this among the postulates, and that he finally did so only when he found that he could neither prove it nor proceed without it”. (LEWIS, 1920, p.16).

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A crítica estética se dá no contexto do cosmos esférico finito, da geometria dedutiva,

enquanto a técnica inicia-se com os árabes, que incorporaram o infinito hindu à matemática

ocidental. Em 1868, já no contexto da geometria convencional, Beltrami demonstra

finalmente a independência do Quinto Postulado frente aos outros axiomas de Euclides,

cessando em grande parte a atenção dos matemáticos para provar o Quinto Postulado a partir

dos outros quatro.

A incompatibilidade entre o espaço real (cosmos esférico finito) e o espaço

geométrico já foi objeto de comentário desta dissertação (cf. Figura 10). Portanto, a menos

que se defenda a tese um tanto quanto remota de que um matemático do quilate de Euclides

não partilhava da cosmologia prevalente de seu tempo, platônico-aristotélica, esta

incompatibilidade sugere a especulação de um espaço infinito, geometricamente possível

(com significatio intellectum), mesmo que fisicamente impossível (sem significatio rerum).

Como não se sabe nada de Euclides como pessoa, a primeira possibilidade [assumir que o matemático Euclides rejeitava a cosmologia prevalente dos filósofos, ou seguia uma filosofia que sustentava ser o cosmos sem limite] não pode ser totalmente excluída; mas isso, no máximo, explicaria por que ele escreveu assim, não por que seu trabalho foi tão amplamente aceito e considerado adiante sem objeções neste aspecto pelos comentadores posteriores – nem por Ptolomeu, que de acordo com Proclo foi crítico da consideração do Quinto Postulado enquanto postulado, nem por Proclo, ele mesmo um platonista, nem por Simplício, o aristotélico. Devemos acrescentar que a mais renomada cosmologia infinita – a de Epicuro – era unida a um entendimento de geometria provavelmente muito ingênuo a alguém mais versado em matemática107. (HOYRUP, 2000, p.19, tradução nossa).

De fato, se não há espaço além da ultima sphera mundi, somente a hipótese teórica de

um espaço geométrico infinito pode suportar que o Quinto Postulado seja enunciado. Parece

claro para Aristóteles o conhecimento de uma formulação matemática muito próxima ao

Postulado das Paralelas encontrado em Euclides108, o que significa que os fundamentos da

geometria euclideana já estavam bem estabelecidos ao tempo da física platônico-aristotélica

de um cosmos esférico finito, ou seja, Euclides tinha em mente, uma geometria dedutiva e não

descritiva.

107 “Since we know nothing of Euclid as a person, the first possibility cannot be totally excluded [assume that Euclid the mathematician rejected the prevalent cosmology of the philosophers, or followed a philosophy which held the cosmos to be without limit]; but this would at most explain why he wrote as he did, not why his work was so widely accepted and called forth no objections from later commentators on this account – neither from Ptolemy, who according to Proclos was critical of taking the fifth postulate as a postulate, nor from Proclos the Platonist himself, nor from Simplicios the Aristotelian.We may add that the most renowned infinite cosmology – that of Epicuros – was coupled to an understanding of geometry that was probably much too naive to appeal to anybody versed in mathematics”. 108 Sabe-se apenas que Euclides é posterior a Platão (427-347 a.C.) e anterior a Arquimedes (287-212 a.C.).

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Se nos lembrarmos de que Pitágoras supunha que as estrelas estavam presas a uma esfera celeste e que outros pensavam que não há espaço para além dessa esfera, podemos imaginar que belo tema de controvérsia era aquele. O postulado de Euclides supõe, com efeito, um espaço infinito e contém, pois no espírito do tempo, uma hipótese cosmogônica oculta. (OMNÈS, 1996, p.74).

Nossa abordagem não retira dos matemáticos a sua ciência, por refutar a existência atual do infinito na direção do acréscimo, no sentido da intransponibilidade. De fato, eles não precisam do infinito e não fazem uso dele. Eles apenas postulam que linhas retas finitas possam ser produzidas tão longas quanto eles desejem109. (Physics, Book III, Part 7, by Hardie and Gaye, disponível em <http://classics.mit.edu/Aristotle/physics.html>, tradução nossa).

Vale ressaltar que a geometria grega, numa tradição que remonta à escola jônica, com

Tales de Mileto, ao contrário da tradição geométrica egípcia, foi descolada da realidade, da

resolução de problemas de agrimensura, e tornada abstrata a partir de teoremas gerais

descritos com objetos ideais (mesmo que reais enquanto integrantes de uma realidade

inteligível). Tais objetos, mesmo que intuitivamente próximos da realidade sensível, a ela não

pertencem, pois não existem sólidos ou figuras rigorosamente perfeitos, ou geométricos. Para

os gregos, era inegável a sua realidade metafísica enquanto objetos singulares, o que não

significa a realidade de uma geometria in toto enquanto constituinte do cosmos.

A natureza de um ponto – a origem simples e auto-evidente da geometria – é em si um mistério: é possível que um ponto ‘não tenha dimensão’, exceto se for um ponto metafísico, e como ele pode ocupar ‘lugar’ se o espaço ainda não foi criado de seu desdobramento? Claramente deve haver uma diferenciação precisa entre física e metafísica, entre ideia e expressão, mesmo que ambas estejam entrelaçados por uma única realidade110. (CRITCHLOW, 1983, p.7, tradução nossa).

Nesse sentido, não é de estupeficar que Euclides possa ter incorporado o Quinto

Postulado enquanto hipótese metafísica necessária de seu sistema geométrico, sem

correspondência com a realidade cosmológica própria da ciência antiga. Antes do infinito, não

há como tentar promover uma crítica técnica ao Postulado das Paralelas, cabendo tão somente

críticas estéticas. Aristóteles, nos Primeiros Analíticos, obra que talvez preceda, em muito, à

sistematização da geometria por Euclides através dos Elementos, foi o mais perspicaz dos

antigos, ao declarar que é impossível demonstrar a existência das paralelas, havendo

necessidade apenas de sua incorporação teórica à geometria dedutiva grega.

109 “Our account does not rob the mathematicians of their science, by disproving the actual existence of the infinite in the direction of increase, in the sense of the untraversable. In point of fact they do not need the infinite and do not use it. They postulate only that the finite straight line may be produced as far as they wish”. 110 “The nature of a point – the simple, self-evident origin of geometry – is one such mystery: is it possible that a point ‘has no dimension’, except that it be a metaphysical point, and how can it occupy ‘place’ if space has not yet been created from its unfolding? Clearly there has to be a precise differentiation between physical and metaphysical, between idea and expression, yet both are embraced by one reality”.

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Por exemplo, se alguém quer provar A através de B, e B através de C, mas C é de tal modo que será provado por meio de A (então resulta que aqueles que deduzem desta maneira provam A através dele mesmo). Isto se dá justamente com aqueles que tentam provar que existem paralelas; para eles não ocorre que eles mesmos assumem premissas tais que não é possível demonstrar que não existem paralelas111. (Prior Analytics, 65a2-7, tradução nossa).

Em outras palavras, antes da identidade entre o espaço real e o espaço geométrico,

como física (o cosmos esférico finito) e metafísica (o espaço geométrico infinito), ideia (o

objeto especulado pela geometria) e expressão (o objeto desenhado) possuem uma

diferenciação precisa, mesmo que compondo uma única realidade, qualquer aversão ao

Quinto Postulado é estética.

Assim, tomando por base o testemunho de Aristóteles, o que os antigos fizeram foi

tentar reposicionar o Quinto Postulado à categoria de teorema, buscando demonstrá-lo

mediante a sua substituição por outro postulado, mais econômico, o qual, por sua vez,

implicitamente, admitia a hipótese do paralelismo, ou seja, ‘assumindo uma premissa tal que

não é possível demonstrar que não existem paralelas’.

Após a incorporação do infinito ao universo, que ocorre inicialmente com os árabes,

através da religião e da matemática hindus, e somente após alguns séculos à Europa, com

Digges e Bruno, o Quinto Postulado deixa de ser uma hipótese assumida para o espaço

geométrico para constituir-se um estruturante do próprio espaço real. Dessa constatação, surge

a necessidade de demonstrar que ele é decorrência lógica da geometria euclideana (crítica

técnica), sem que para tanto, outro axioma hipotético mais econômico precisasse ser assumido

(crítica estética). A crítica técnica representa as inúmeras tentativas daquela demonstração, e

dela resultará o desenvolvimento das novas geometrias, as não-euclideanas.

A palavra axioma ou postulado, numa visão remota, significava uma verdade auto-evidente ou universalmente aceita, uma verdade aceita sem prova. Numa geometria dedutiva, o axioma funciona como um alicerce sobre o qual conclusões posteriores são baseadas. Numa geometria descritiva, o axioma funciona como uma declaração verdadeira e acurada do mundo das experiências espaciais. O primeiro entendimento persiste, o último teve que ceder112. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.242, tradução nossa).

111 “For example, if someone should prove A through B and B through C, but C were of such a nature as to be proved by means of A (for it results that those who deduce in this way prove A through itself). This is just what those people who think they draw proofs that there are parallels do; for they do not notice that they themselves take the sorts of premises which it is not possible to demonstrate if there are no parallels”. 112 “The word axiom or postulate, in an earlier view, meant a self-evident or a universally recognized truth, a truth accepted without proof. Within deductive geometry, the axiom functions as a cornerstone on wich further conclusion are based. Within descriptive geometry, the axiom functions as a true and accurate statement of the world of spatial experiences. The former view persists; the latter has had to give way”.

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Portanto, a crítica estética propõe a substituição da versão original do Quinto

Postulado por uma versão mais econômica, mais próxima a um princípio. Além da versão já

apresentada de Playfair (cf. Figura 9), existem muitas versões equivalentes113, as quais

procuram simplificar a escrita de Euclides, tornando-a mais apropriada esteticamente. Dentre

as mais importantes114 as versões de Possidônio, Ptolomeu e Proclo:

• Retas paralelas são equidistantes (Possidônio);

• Duas retas cortadas por uma transversal não serão paralelas de um lado, se do

outro também não forem (Ptolomeu);

• Uma reta que corta uma das paralelas, cortará a outra (Proclo).

A crítica técnica, ao contrário da estética, não procura substituir o Quinto Postulado

por uma versão mais econômica, mais apropriada a um princípio. Num contexto geométrico

descritivo (e não mais puramente dedutivo), o espaço infinito não é mais uma hipótese

teórica, mas uma declaração verdadeira e acurada do mundo das experiências espaciais. Nesse

sentido, o Quinto Postulado deve decorrer logicamente dos outros princípios informadores da

geometria euclideana.

As primeiras críticas técnicas ao Quinto Postulado provêm dos árabes115, os quais,

após formação de seu império, abrangendo territórios do oriente ao ocidente, desenvolveram a

matemática mediante contribuições da geometria grega e da aritmética hindu. Após a morte

de Maomé (632), em apenas um século, o território já se estendia da Índia à Espanha,

varrendo o Mediterrâneo oriental e o norte da África. Em 732, o rei dos francos, Carlos

Martel, derrotou-os e pôs fim à expansão árabe na Europa.

Territórios no oriente e no ocidente, aliada a uma elite que reconheceu o valor da

ciência dos súditos, propiciou aos árabes unir a ciência grega, predominantemente geométrica,

113 “Dizer que o quinto postulado é equivalente ao postulado de Playfair significa que podemos provar o postulado de Playfair se aceitarmos os cinco postulados de Euclides, e, reciprocamente, se aceitarmos os quatro primeiros postulados de Euclides e o postulado de Playfair, podemos provar o quinto postulado como teorema”. (O’SHEA, 2009, p.264). 114 “Early attempts at proof usually took the form of a change in the definition of parallels, or the substitution, conscious or unconscious, of a new assumption. Neither of these methods resulted in satisfaction to any but their inventors; for the definitions usually concealed an assumption, and the new postulates were no more obvious than the old. Posidonius, quoted by Proclus, defines parallels as lines everywhere equidistant. […]. Ptolemy says that two lines on one side of a transversal are no more parallel than their extensions on the other side; […] This is another way of saying that through a point but one parallel to a given line can be drawn, which is exactly Euclid's postulate. Proclus himself assumes (with some concealment) that if a line cuts one of two parallels it cuts the other, which is again postulate 5”. (LEWIS, 1920, p.16). 115 “Os árabes também ficaram obcecados com o quinto postulado e tentaram deduzi-lo dos outros postulados ou simplesmente substituí-lo por outra coisa. Debalde. Mas eles introduziram muitas novas técnicas matemáticas que simplificavam os cálculos e tornaram a álgebra independente da geometria”. (O’SHEA, 2009, p.83).

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à matemática hindu, com notável e avançada aritmética. “O simbolismo numérico, a ciência

dos números e a álgebra atingiram na Índia um alto grau de perfeição bem acima do que tinha

sido alcançado na Grécia” (CAJORI, 2007, p.134). Dos hindus, portanto, chega ao Ocidente,

através dos árabes, o “sistema posicional de numeração de base dez, empregando dez

símbolos, um dos quais o zero”. (GARBI, 2010, p.136).

Entremeados com as ciências de origem grega, porém, havia elementos procedentes das tradições iraniana e indiana. Já no século IX, o matemático al-Khwarazmi (c.800-47) escrevia sobre o uso de números indianos – os chamados arábicos – em cálculos matemáticos. Essa mistura de elementos é significativa. No momento em que os califas abácidas juntavam as terras do oceano Índico e do Mediterrâneo numa única área comercial, também as tradições gregas, iranianas e indianas eram reunidas, e afirmou-se que, ‘pela primeira vez na história, a ciência tornou-se internacional em larga escala’. (HOURANI, 2001, p.92).

Segundo Cajori (2007, p.156), “os primeiros autores traduzidos em árabe foram

Euclides e Ptolomeu, isto aconteceu durante o reinado do famoso califa Harun al-Rashid”, que

reinou de 786 a 809. Segundo Hourani (2001), os califas abácidas (749-1258), que tinham por

capital Bagdá, estimularam – num fenômeno raro – o trabalho de tradução das obras

científicas e filosóficas dos povos subjugados. Para tanto, fez-se necessária a ampliação dos

recursos da língua árabe, e parte importante nisso foi desempenhada pelo maior dos

tradutores, Hunayn ibn Ishaq (808-873).

De acordo com Kalimuthu (2009), há uma extensa lista de críticos técnicos, de origem

árabe, ao Quinto Postulado, podendo ser citados: Ibn al-Haytham (965-1039), que fez a

primeira tentativa de provar o Postulado das Paralelas por contradição; Omar Khayyám

(1050-1123), que fez a primeira tentativa de formular um postulado não-euclideano como

uma alternativa ao Quinto Postulado; e Nasir al-Din al-Tusi (1201-1274), que escreveu a obra

Discussão que Remove Dúvida sobre Linhas Paralelas (1250), apresentando críticas

detalhadas do Postulado das Paralelas.

O filho de Nasir al-Din, Sadr al-Din (também conhecido por ‘Pseudo-Tusi’) escreveu um livro sobre o assunto em 1298, baseado nos últimos pensamentos de Nasir al-Din, que apresentou um dos mais antigos argumentos em prol de uma hipótese não-euclideana equivalente ao Postulado das Paralelas. (...) Seu trabalho foi publicado em Roma em 1594 e estudado por geômetras europeus. Esta obra marcou o ponto de partida para o trabalho de Saccheri sobre o assunto116. (KALIMUTHU, 2009, p.20, tradução nossa).

116 “Nasir al-Din’s son, Sadr al-Din (sometimes known as ‘Pseudo-Tusi’), wrote a book on the subject in 1298, based on Nasir al-Din’s later thoughts, which presented one of the earliest arguments for a non-Euclidean hypothesis equivalent to the parallel postulate. (…) His work was published in Rome in 1594 and was studied by European geometers. This work marked the starting point for Saccheri’s work on the subject”.

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Somente no espaço infinito, quando o espaço geométrico deixa de ser hipotético, é

possível fomentar críticas técnicas (e não puramente estéticas) ao Quinto Postulado, o que

supõe um ambiente cultural familiar ao infinito. Este ambiente não era grego, mas hindu, e os

árabes, ao tentar conciliar o infinito da aritmética hindu ao rigor dedutivo da geometria grega,

foram os primeiros a tentar estabelecer significatio rerum ao Postulado das Paralelas.

No artigo Concepts of Space, Time and Consciousness in Ancient India, o professor

Subhash Kak (1998) escreveu acerca da cosmologia contida nos Vedas, textos representativos

da tradição cultural indiana antiga, cujas compilações remontam a pelo menos três mil anos:

Existem muitas passagens nos textos Védicos sobre o universo infinito, enquanto ao mesmo tempo a distância finita até o sol é explicitamente mencionada (Kak, 1998a-d). Aditi, a grande mãe dos deuses, é a personificação do conceito de infinito. Um famoso mantra fala de como ao tirar infinito do infinito permanece o infinito. Isto indica que as propriedades paradoxais da noção do infinito eram conhecidas117. (KAK, 1998, p.3, tradução nossa). Disponível em: <http://arxiv.org/PS_cache/physics/pdf/9903/9903010v2.pdf> Acesso em 06/dez/2011.

Boyer (1943), no artigo An Early Reference to Division by Zero, distingue o

tratamento da divisão por zero entre o grego Aristóteles, que reconheceu geometricamente a

impossibilidade da divisão por zero, pensada exatamente como a impossível divisão da linha

pelo ponto, e o indiano Bhaskara, que, no século XII, estabeleceu um tratamento aritmético da

divisão por zero:

É esclarecedor comparar estas passagens de Aristóteles com a proposição excessivamente alardeada sobre a divisão por zero dada por Bhaskara: ‘Proposição: Dividendo 3. Divisor 0. Quociente 3/0. Esta fração, na qual o denominador é zero, é denominada uma quantidade infinita. Nesta quantidade, que consiste daquela que tem zero como seu divisor, não há alteração, mesmo que muito seja inserido ou extraído;’118. (BOYER, 1943, p.490, tradução nossa).

O que importa deste pequeno interlúdio acerca da crítica técnica árabe ao Postulado

das Paralelas é estabelecer o duplo papel do infinito para a geometria. O infinito é, sem

dúvida, o protagonista da mudança do status da geometria euclideana de dedutiva à descritiva,

que corresponde à Primeira Inflexão teórica na ciência (de hefestiana à prometeica).

117 “There are several statements in the Vedic texts about the universe being infinite, while at the same time the finite distance to the sun is explicitly mentioned (Kak, 1998a-d). Aditi, the great mother of the gods, is a personification of the concept of infinity. A famous mantra speaks of how taking infinity out of infinity leaves it unchanged. This indicates that paradoxical properties of the notion of infinity were known”. 118 “It is illuminating to compare these passages from Aristotle with the much vaunted statement on the subject of division by zero given by Bhaskara: ‘Statement: Dividend 3. Divisor 0. Quotient the fraction 3/0. This fraction, of which the denominator is cipher, is termed an infinite quantity. In this quantity consisting of that wich has cipher for its divisor, there is no alteration, though many be inserted or extracted’”.

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Mas ele é também, paradoxalmente, o fermento da crítica técnica ao Quinto Postulado,

para as incontáveis tentativas de demonstração de sua necessidade lógica em uma geometria

descritiva, a qual se revelará infrutífera e que irá desembocar no desenvolvimento das

geometrias não-euclideanas. Quando Poincaré questiona a natureza dos axiomas geométricos

a partir das novas geometrias, a mudança do status da geometria, de descritiva à

convencional, corresponde a uma Segunda Inflexão na ciência (de prometeica à ioética).

De fato, em uma Europa herdeira do pensamento de Aristóteles, que comparou o

inconcebível infinito à absurda divisão da linha119 por um ponto, o infinito será pensado, em

bases metafísicas, apenas em 1584, por Giordano Bruno, e não há como fugir da influência da

arte, ciência e filosofia árabe em seu pensamento:

Galileu Galilei sempre tentou separar a teologia da ciência; mas lamentavalmente para ele, houve um predecessor que não. Giordano Bruno era um ávido estudante de ciência e filosofia islâmica. Bruno argumentou não apenas que Copérnico estava certo – a Terra move-se ao redor do Sol – mas que havia muitos outros sistemas planetários iguais ao nosso. Infinitos deles nos universos, todos igualmente submetidos a Deus, removendo completamente a Igreja do sistema cosmológico120. (AHMAD, 2000, p.34, tradução nossa).

Bruno desenhou cerca de 75 arabescos, uma estampa árabe caracterizada pelo

entrecruzamento de figuras geométricas e biomórficas, em dois de seus mais importantes

tratados matemáticos, Articuli centum et sexaginta adversus huius tempestatis mathematicos

atque philosophos, de 1588, e De triplici minimo et mensura, de 1591.

Figura 17. Estampas de Bruno na Obra 160 Artigos Contra Matemáticos e Filósofos Contemporâneos

119 Nos dias atuais, a familiaridade com o infinito nos habilita a uma leitura extemporânea dos Elementos. Assim, pensamos uma linha ou uma reta como abstrações geométricas intuitivamente infinitas, quando, na realidade, as definições contidas em Euclides são refratárias ao infinito: “E linha é comprimento sem largura” (Definição 2). “E linha reta é a que está posta por igual com os pontos sobre si mesma”. (Definição 4). 120 “Galileo Galilei always tried to separate the theology from the science; but unfortunately for him, he had a predecessor who did not. Giordano Bruno was an avid student of Islamic science and philosophy. Bruno argued not only that Copernicus is right – the earth goes around the sun – but that there are many other planetary systems like ours. Infinite numbers of them in universes, all equally under the God, removing the Church completely from the cosmological system”.

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Mais do que uma função decorativa, os arabescos indicam a influência do pensamento

árabe em Giordano Bruno, que introduz o infinito na Europa com pelo menos quinhentos anos

de atraso em relação aos islâmicos. Através dos arabescos, pode-se compreender como o

infinito, fundamental para que o cosmos normativo cedesse ao universo matemático, é

também a fonte primaz de inspiração para uma geometria livre do paralelismo euclideano.

As estampas árabes, uma arte não-icônica liberta das proporções ideais renascentistas,

desfazem a concepção de Le Corbusier121 acerca de uma estética matemática da natureza, uma

visão que bem expressa o poder da geometria euclideana (dedutiva ou descritiva, ambas

possuem igual rigor dedutivo e harmonia intrínseca) na cultura ocidental, como se pode

destacar na seguinte frase do arquiteto – ‘o acaso não tem lugar na natureza’.

Ao contrário da estética renascentista, marcadamente euclideana, a estética árabe

reflete conteúdos derivados não apenas da cultura grega refratária ao infinito (a cristalização

na forma geométrica), mas também da hindu familiar ao infinito (a força formativa que desfaz

a simetria euclideana). Na obra Islamic Patterns, an Analytical and Cosmological Approach,

Keith Critchlow defende uma interessante tese acerca da arte islâmica:

A arte islâmica é predominantemente um equilíbrio entre a forma geométrica pura e aquilo que pode ser chamado de forma biomórfica fundamental: uma polarização que tem valores associados aos quatro atributos filosóficos e experimentais: frio e seco – representando a cristalização na forma geométrica – e quente e úmido – representando as forças formativas por trás da forma vegetativa e vascular. O primeiro aspecto reflete as faces de uma jóia, a pureza do floco de neve e as flores congeladas de simetria radial; o outro, o flanco brilhoso de um cavalo transpirante, o movimento silencioso de um peixe encurvando seu caminho na água, o desdobrar das folhas da parreira e o desabrochar da rosa.122. (CRITCHLOW, 1983, p.8, tradução nossa).

121 Segundo Le Corbusier (1948 apud LOACH, 1998, p.185, grifo nosso), “for the artist, mathematics does not consist of the various branches of mathematics. It is not necessarily a matter of calculation but rather of the presence of a sovereign power; a law of infinite resonance, consonance, organisation. Rigour is nothing other than that which truly results in a work of art, whether it be a Leonardo drawing, or the fearsome exactness of the Parthenon (comparable in the cutting of its marble even with that of machine-tools), or the implacable and impeccable play of construction in the cathedral, or the unity in a Cézanne, or the law which determines a tree, the unitary splendour of roots, trunk, branches, leaves, flowers, and fruit. Chance has no place in nature. Once one has understood what mathematics is – in the philosophical sense – thereafter one can discern it in all its works. Rigour, and exactness, are the means behind achieving solutions, the cause behind character, the rationale behind harmony”. 122 “Islamic art is predominantly a balance between pure geometric form and what can be called fundamental biomorphic form: a polarization that has associative values with the four philosophical and experimental qualities of cold and dry – representing the crystallization in geometric form – and hot and moist – representing the formative forces behind vegetative and vascular form. The one aspect reflects the facets of a jewel, the purity of the snowflake and the frozen flowers of radial symmetry; the order the glistening flank of a perspiring horse, the silent motion of a fish winding its way through the water, the unfolding and unfurling of the leaves of the vine and rose”.

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Portanto, se os árabes fizeram as primeiras críticas técnicas ao Quinto Postulado a

partir do século X, quando incorporaram o infinito da cosmologia védica ao seu ambiente

cultural, foram os matemáticos europeus que, despertando para a sua problemática após a

Primeira Inflexão, quando se faz premente demonstrar a verdade necessária do Quinto

Postulado enquanto constituinte do universo infinito, desenvolveram as geometrias não-

euclideanas no século XIX.

Quando o século XVIII dedicou-se ao trabalho inconcluso da prova do postulado das paralelas, encontramos a maioria dos gigantes dessa época atacando o inimigo dos geômetras com um senso mais veemente de que sem vitória não poderia haver paz. Assim d’Alembert, pelo fim do século, ainda pôde referir-se ao estado da teoria das paralelas como ‘o escândalo da geometria elementar’. Klugel em 1763 examinou trinta demonstrações do postulado. Ele foi talvez o primeiro a expressar dúvida acerca de sua demonstrabilidade. Lagrange, de acordo com De Morgan, em cerca de 1800, quando da apresentação de um memorial sobre paralelas para a Academia Francesa, interrompeu sua leitura com a exclamação, ‘Eu tinha que ter pensado mais sobre isso’ e removeu seu manuscrito123. (LEWIS, 1920, p.18, tradução nossa).

Falhando as tentativas de demonstração direta, uma nova etapa foi iniciada por

reductio ad absurdum. Entre as críticas mais notáveis, deve ser citada, obrigatoriamente, a do

jesuíta Girolamo Saccheri124 (1667-1733), que negou o Quinto Postulado como premissa e

tentou demonstrar uma contradição a partir dessa pressuposição. Sua tentativa é conhecida

como ‘Quadrilátero de Saccheri’.

Saccheri trabalha com um quadrilátero ABCD que tem ângulos retos em A e B e no qual AD = BC. Isto é agora conhecido na geometria axiomática como um quadrilátero de Saccheri. Deve-se ressaltar que na geometria euclideana AD será paralelo a BC e isto faz ambos os ângulos em D e C ângulos retos. Mas Saccheri, não assumindo o Quinto, conclui que ele tem realmente três opções: 1) Os ângulos em C e D são ambos ângulos retos; 2) Eles são ambos ângulos obtusos; 3) Eles são ambos ângulos agudos125. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.244, tradução nossa).

123 “When the eighteenth century took up the unfinished business of proving the parallel postulate, we find most of the giants of those days attacking the enemy of geometers with an even keener sense that without victory there could be no peace. Yet d'Alembert toward the close of the century could still refer to the state of the theory of parallels as "the scandal of elementary geometry." Klugel in 1763 examined thirty demonstrations of the postulate. He was perhaps the first to express doubt of its demonstrability. Lagrange, according to De Morgan, in about 1800, when in the act of presenting to the French Academy a prepared memoir on parallels, interrupted his reading with the exclamation, "II faut que j'y songe encore," and withdrew his manuscript”. 124 De acordo com Kalimuthu (2009), o quadrilátero de Saccheri foi primeiramente formulado por Omar Khayyám no final do século XI. 125 “Saccheri works with a quadrilateral ABCD wich has right angles at A and B and in wich AD = BC. This is now known in axiomatic geometry as a Saccheri quadrilateral. It should be noted that within Euclidean geometry AD will be parallel to BC and this makes the angles at D and C both right angles. But Saccheri, not taking the Fifth, concludes that he really has three options: 1) The angles at C and D are both right angles; 2) They are both obtuse angles; 3) They are both acute angles”.

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Figura 18. Quadrilátero de Saccheri

A primeira hipótese de Saccheri, intuitivamente mais próxima de nossa experiência

sensorial do espaço, equivale à geometria euclideana. A segunda hipótese, a dos ângulos

obtusos, equivale à geometria não-euclideana de Riemann, conhecida como geometria elíptica

(onde a soma dos ângulos internos do triângulo é maior do que dois retos). A terceira

hipótese, a dos ângulos agudos, equivale à geometria não-euclideana de Lobachevsky,

conhecida como geometria hiperbólica (onde a soma dos ângulos internos do triângulo é

menor do que dois retos). Saccheri, contudo, mantém-se fiel a seu propósito de demonstrar a

contradição a partir da negação do Quinto Postulado, que o desvia das geometrias não-

euclideanas para a assunção de algo vago acerca da natureza das linhas retas126.

Figura 19. O Espaço Geométrico Elíptico (esq.) e Hiperbólico (dir.)

Mas uma nova etapa na geometria veio a ser instaurada. Se, até então, Euclides

reinava absoluto sobre o pensamento ocidental, as diversas tentativas frustradas de prova do

Quinto Postulado permitiram a descoberta de geometrias alternativas, possuidoras de igual

força axiomática. Observa-se uma nova inflexão na ciência, que passa de prometeica a ioética.

Há correlação relevante? É preciso, antes de responder tal questão, investigar a contundente

crítica de Poincaré à formulação kantiana dos axiomas geométricos enquanto juízos sintéticos

a priori. 126 “He makes three hypotheses which were recognized later to correspond to the elliptic, Euclidean and hyperbolic geometries. But at the end of his work, in order to exhibit a contradiction when Euclid's postulate is denied, he is forced to make use of a somewhat vague and unacceptable assumption about ‘the nature of a straight line’”. (LEWIS, 1920, p.19).

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3.2 O CONVENCIONALISMO GEOMÉTRICO

Após as geometrias não-euclideanas, fica patente investigar a natureza dos axiomas

geométricos. Seriam eles juízos sintéticos a priori, como postula Kant? Neste caso, como

pode acontecer que a remoção do Quinto Postulado conduza a geometrias tão consistentes

quanto a euclideana? Seriam eles verdades experimentais? Neste caso, como pode ocorrer que

não se tenham submetido a uma contínua revisão? São estas as questões enfrentadas por

Poincaré ao propor que os axiomas geométricos são convenções.

Se fosse possível deduzir o postulado de Euclides127 dos outros axiomas, é evidente que, negando-se o postulado e admitindo os outros axiomas, seríamos levados a consequências contraditórias; então, seria impossível apoiar em tais premissas uma Geometria coerente. Ora, foi precisamente o que fez Lobatchevsky. Ele supõe, no início, que: ‘Pode-se fazer passar por um ponto várias paralelas a uma reta dada’. No mais, ele conserva todos os outros axiomas de Euclides. Dessas hipóteses, deduz uma série de teoremas entre os quais é impossível assinalar qualquer contradição e constrói uma Geometria cuja lógica impecável não fica nada a dever à Geometria de Euclides. Os teoremas são, sem dúvida, muito diferentes daqueles com os quais estamos acostumados e, de início, não deixam de nos desconcertar um pouco. Assim, a soma dos ângulos de um triângulo é sempre menor do que dois ângulos retos, e a diferença entre essa soma e dois ângulos retos é proporcional à superfície do triângulo. (POINCARÉ, 1985, p.46).

De fato, até as novas geometrias, as autoridades de Kant e da geometria euclideana

descritiva eram tamanhas que, provavelmente, foram causas para Gauss não ter publicado

nada acerca do Quinto Postulado. Não somente a ciência (a física de Newton – séc. XVII, a

química de Lavoisier – séc. XVIII, e a biologia de Darwin – séc. XIX), mas também a

filosofia (o idealismo e o materialismo pós-Kantianos), o direito (a criminologia de Cesare

Lombroso128), e até a literatura (o naturalismo de Émile Zola e de Aluísio de Azevedo129)

transpiram uma pretensão prometeica (esta inabalável certeza no saber antecipadamente todo

o futuro), que caracteriza a ciência moderna e o seu viés determinista.

Entre os séculos XVII e XIX, os homens de ciência consideravam em geral que o conhecimento científico era tão límpido que dispensava uma crítica epistemológica. Ou equivalentemente que, a ser feita, essa crítica poderia arrumar-se em poucas laudas. As matemáticas, operando por demonstração sobre princípios evidentes, revelavam aspectos necessariamente verdadeiros

127 Na sua versão mais difundida (Playfair): “por um ponto, só existe uma paralela a uma reta dada”. 128 Cesare Lombroso (1835-1909) escreveu sua obra principal, L’uomo Deliquente, em 1876. Nela o jurista italiano defende a tese de que é possível reconhecer o criminoso nato a partir de características físicas peculiares, os stigmata. 129 Émile Zola (1840-1902) e Aluísio de Azevedo (1857-1913) procuram em suas obras realçar cientificamente os fatores determinantes para a ação humana. Influenciados por Darwin, acreditavam que tais fatores resultavam da combinação entre hereditariedade e meio-ambiente social.

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das coisas. Por exemplo, que a soma dos ângulos dum triângulo tinha de ser 180º. As ciências naturais, observando e classificando, registravam propriedades e faziam ressaltar aspectos estruturais que, não tendo embora a necessidade das matemáticas, eram verdades de facto do nosso mundo. Por exemplo, que é conveniente definir ‘peixe’ por um conjunto de características que as baleias não verificam. A química, tendo descoberto que os corpos são feitos de moléculas e as moléculas de átomos, proporcionava o conhecimento das estruturas profundas e indicava a maneira de transformar moléculas umas nas outras, gerando até substâncias que a natureza não tinha ainda produzido. A física estudava os femómenos mais gerais e mais fundamentais da natureza; a observação e a experimentação tinham-lhe permitido averiguar que esses fenómenos obedecem a leis quantitativas rigorosas; a expressão matemática de tais leis inculcava o determinismo e permitia a previsão. Todo o edifício do conhecimento científico parecia construído sobre a rocha e ao abrigo de qualquer crise. Os grandes princípios estavam definitivamente apurados, havia só o que prosseguir. (RODRIGUES, 1990, p.IX-X).

Uma tal concepção de ciência ocorre após o Mito de Euclides, quando a geometria

euclideana muda o seu status de dedutiva para descritiva. A geometria deixa então de ser

apenas um edifício harmônico e coerente mediante adesão a um postulado metafísico para

tornar-se constituinte da natureza e do próprio pensamento. A ciência moderna desfaz a

necessidade sacra de uma causalidade final aristotélica (ou de qualquer outro fundamento

metafísico, primaz ou superior) para a organização racional das leis gerais, preditivas e

verdadeiras. A geometria, através da axiomática, ensina que a natureza também tem os seus

princípios universais. Mário Bunge, no Prefácio à obra Lendo Euclides, de Beppo Levi, é

esclarecedor acerca do ideal axiomático, que tanto influenciou o pensamento ocidental, da

ciência à literatura, passando pelo Direito:

Mais precisamente, Euclides introduziu explicitamente o formato (também chamado método) axiomático, que consiste em começar listando os conceitos básicos e os postulados – ou seja, ideias não deriváveis de outras ideias no mesmo sistema – e derivar (definir ou deduzir) os demais a partir deles. A axiomática serve de parâmetro para a organização racional e econômica de qualquer corpo de conhecimentos, sejam matemáticos, físicos, econômicos, filosóficos ou outros. Spinoza, por exemplo, a utilizou em sua grande obra Ética. Hoje, os filósofos a empregam para esclarecer, sistematizar e provar ideias em qualquer ramo da filosofia (LEVI, 2008, p.8).

E, por algum tempo, acreditou-se que os axiomas científicos estavam definitivamente

apurados. Na Física, as três leis de Newton; na Química, a lei de conservação da massa de

Lavoisier; na Biologia, a seleção natural de Darwin. Estas leis pareciam ser a expressão dos

axiomas fundamentais da natureza, assegurando à ciência moderna a realização de seu ideal

prometeico: saber antecipadamente todo o futuro.

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Mas eis que surgem novas geometrias. Elas não abalam o ideal axiomático, mas

embaraçam sobremaneira a filosofia transcendental kantiana130. As geometrias não-

euclideanas sugerem, talvez, que a assunção kantiana de uma intuição sensível do espaço, que

deve ser necessariamente lido através da geometria euclideana, tenha um caráter mais

teológico do que racional. Poincaré, em A Ciência e a Hipótese, irá questionar exatamente

como é possível a existência de geometrias não-euclideanas e a tese kantiana de que a

representação originária do espaço é intuição a priori.

O espaço é essencialmente uno; o múltiplo nele, por conseguinte também o conceito universal de espaços em geral, repousa apenas sobre limitações. Disso segue-se que, no tocante ao espaço, uma intuição a priori (não empírica) subjaz a todos os conceitos do mesmo. Assim todos os princípios geométricos, por exemplo, que num triângulo a soma de dois lados é maior do que o terceiro lado, jamais são derivados dos conceitos universais linha e triângulo, mas sim da intuição, e isso a priori com certeza apodítica. (KANT, 1996, p.74).

A prescrição kantiana da certeza apodítica de uma intuição a priori do espaço pela

geometria euclideana resulta, por reductio ad absurdum, na conclusão de que a negação do

Quinto Postulado implicaria em uma geometria não consistente, implicaria apagar a luz acesa

por Tales, que elevou a matemática tateante dos egípcios à “trilha que se tinha de seguir, e

assim o caminho seguro de uma ciência estava encetado e traçado para todos os tempos e

distâncias infinitas”. (KANT, 1996, p.36).

Mas o fato de as geometrias não-euclideanas serem possíveis enquanto sistemas

consistentes que não observam o Quinto Postulado implica em sério abalo ao estatuto

kantiano a priori da geometria de Euclides. De acordo com Kant, negar a geometria

euclideana é o mesmo que afrontar a racionalidade humana, pois a geometria descritiva é, ela

própria, constituinte estrutural da intuição pura do espaço, assim como a aritmética, da

intuição pura do tempo.

É preciso, pois, conciliar Kant e as novas geometrias131. Uma alternativa é a mudança

no status da geometria, que passa de descritiva à convencional. Segundo Poincaré (1985,

130 “[...] Kant develops what he calls a ‘transcendental’ philosophical theory of our human cognitive faculties – in terms of ‘forms of sensible intuition’ and ‘pure concepts’ or ‘categories’ of rational thought. These cognitive structures are taken to describe a fixed and absolutely universal rationality – common to all human beings at all times and in all places – and thereby to explain the sense in which mathematical natural science (the mathematical physics of Newton) represents a model or exemplar of such rationality”. (FRIEDMAN, 2002, p.172). 131 Poincaré rejeita que os axiomas da geometria constituam juízos sintéticos a priori. Ele, contudo não nega a existência destes, dentre os quais o raciocínio por recorrência, próprio da aritmética. “[...] tomemos um verdadeiro juízo sintético a priori, por exemplo, o seguinte, de cujo papel preponderante falamos no capítulo primeiro: se um teorema é verdadeiro para o número 1, se demonstramos que é verdadeiro para n+1, contanto que o seja para n, ele será verdadeiro para todos os números inteiros positivos”. (POINCARÉ, 1985, p.53).

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p.54), “nenhuma geometria pode ser mais verdadeira do que outra; o que ela pode, é ser mais

cômoda”. Para ilustrar sua tese, o cientista francês propõe, em A Ciência e a Hipótese, um

interessante experimento mental, ‘O Mundo Não Euclideano’132. Nele, a sucessão de imagens

obedece a leis diferentes das nossas, o que conduz seus habitantes a adoção de uma geometria

não-euclideana. Dado o seguinte mundo hipotético:

a) encerrado numa grande esfera;

b) com temperatura maior no centro e que diminui à medida em que se afasta dele,

chegando ao zero absoluto quando se atinge a esfera limite;

c) cuja temperatura em um ponto é proporcional a R2-r2, onde ‘R’ é o raio da esfera e

‘r’, a distância entre o ponto considerado e o centro da esfera;

d) onde todos os corpos têm o mesmo coeficiente de dilatação, de forma que tanto

um ser quanto uma régua irão diminuir proporcionalmente à sua temperatura;

e) onde quem ou o que seja transportado de um ponto para outro estabeleça

imediatamente equilíbrio calorífico com seu novo meio.

Nessas condições, um objeto móvel se tornará cada vez menor quanto mais se

aproximar da esfera limite. É um mundo infinito para seus habitantes, pois quando eles se

deslocam do centro à periferia (como na parte esquerda da figura abaixo), tornam-se cada vez

mais frios e menores, de forma que eles jamais alcançam a esfera limite133.

Figura 20. O Experimento Mental de um Mundo Não-Euclideano

132 A descrição completa está em A Ciência e a Hipótese (POINCARÉ, 1985, p.63-65) e envolve também a hipótese de que, nesse mundo, a luz atravessa meios diversamente refringentes, com índice de refração inversamente proporcional a R2-r2. Deste modo, os raios de luz não serão mais retilíneos, mas circulares. É uma hipótese interessante para que os seres desse mundo pudessem também postular (como os modernos fizeram com a geometria euclideana) sua geometria não-euclideana como constituinte da própria natureza. 133 Este experimento mental leva em conta a composição de uma magnitude (tempo ou espaço) em indivisíveis infinitesimais, o que foi rejeitado por Aristóteles (Física, VI. 9). Para a refutação dos paradoxos de Zenão, o da composição do tempo, proposto em ‘A Flecha Voadora’, e o da composição do espaço, proposto em ‘Aquiles e a Tartaruga’, Aristóteles recorre à aversão própria da cultura grega ao infinito (e ao infinitesimal).

r’ r r r

R r

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Nesse mundo não-euclideano (confira a parte direita da figura acima), um

deslocamento a ‘r’ constante (linha isotérmica pontilhada) representa uma ‘reta não-

euclideana’: o deslocamento de um corpo rígido, “posto por igual com os pontos sobre si

mesmo” (linha reta134, Definição 4 de Euclides). Por outro lado, um deslocamento a ‘r’

variável (linha tracejada) indicaria uma linha não-reta: o deslocamento de um corpo

deformável, que se dilata e se contrai conforme a variação de ‘r’ (o corpo se dilata num

primeiro momento, quando ‘r’ aumenta, e depois se contrai, quando ‘r’ diminui).

Se a nossa geometria habitual convenciona uma reta como a linha definida por pares

ordenados (x,y) que, num dado sistema referencial (o eixo das coordenadas ‘x’ paralelo à

reta), observe a seguinte regra: ∂y/∂x = zero135; a geometria destes estranhos seres iria

descrever uma ‘reta não-euclideana’ como a linha definida por pares polares136 (r,θ) que, num

dado sistema referencial (a coordenada ‘r’ tomada em relação ao centro do mundo),

observasse a seguinte regra: ∂r/∂θ = zero. Matematicamente, as seguintes equivalências entre

os mundos poderiam ser estabelecidas:

Linha Mundo

Euclideano Propriedade

Mundo

Não-Euclideano Propriedade

Reta

∂y/∂x = zero

∂r/∂θ = zero

Curva ∂y/∂x diminui e

depois aumenta

∂r/∂θ diminui e

depois aumenta

Se esses seres estabelecem uma Geometria, ela não será, como a nossa, o estudo dos movimentos de nossos sólidos invariáveis, mas a das mudanças de posição que eles terão assim distinguido e que não passam dos ‘deslocamentos não-euclideanos’: será a Geometria não-euclideana. Desse modo, seres como nós, cuja educação se fizesse num mundo como o que descrevemos, não teriam uma Geometria igual à nossa. (POINCARÉ, 1985, p.65).

134 A definição de reta para Poincaré (1985, p.51) é “pode acontecer que o movimento de uma figura invariável seja tal que todos os pontos de uma linha pertencente a essa figura permaneçam imóveis enquanto todos os pontos situados fora dessa linha se movimentam. Essa linha será chamada uma reta”. 135 Lê-se ‘∂y/∂x’ como a primeira derivada de ‘y’ em relação a ‘x’. Igualmente ‘∂r/∂θ’ como a primeira derivada de ‘r’ em relação a ‘θ’. É um operador matemático fundamental do Cálculo, e relaciona a variação entre magnitudes submetidas a um diferencial mínimo, infinitesimal ou limite. Sua descoberta foi, talvez, o objeto da maior contenda científica de todos os tempos. “O cálculo foi descoberto quase simultaneamente por dois homens trabalhando independentemente um do outro: Isaac Newton, um cientista inglês, e Gottfried Wilhelm Leibniz, um filósofo alemão. A contenda entre eles teve não apenas implicações filosóficas, religiosas e diplomáticas, mas também diversos outros desdobramentos interessantes”. (HELLMAN, 1999, p.64). 136 Uma exposição sucinta de um sistema de coordenadas polares em comparação a um sistema de coordenadas cartesianas é apresentada na Figura 22.

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Pode-se observar que a descrição desse estranho mundo é feita com base na linguagem

de nossa geometria habitual, num intercâmbio hipotético de termos. Quando a geometria

assume um status convencional, a sua validade não se dá pela semântica de seus termos (a

correspondência entre os símbolos e os objetos denotados), no sentido de estarem eles de

acordo com alguma propriedade da razão ou de que a experiência possa decidir se eles são

verdadeiros ou falsos. A validade de uma geometria convencional é atestada pela sua sintaxe,

ou seja, pela coerência das regras que delimitam os arranjos simbólicos.

Com a evolução da matemática, especialmente com relação à geometria, o método axiomático tornou-se cada vez mais rigoroso, chegando a um alto grau de perfeição lógica nas últimas décadas do século passado, com Pasch, Peano, Pieri etc. Pode-se dizer que o método adquiriu seu estado quase definitivo com a publicação do livro Grundlagen der Geometrie, de Hilbert, de 1899. [Numa concepção formalista da matemática], o matemático pode estudar qualquer sistema simbólico, admitindo-se que o sistema não encerre contradições, isto é, que no sistema não se possa provar uma proposição e, ao mesmo tempo, sua negação137. (COSTA, N., 2008, p.50-51 e 53).

O Convencionalismo esvazia, portanto, o status descritivo da geometria, no sentido de

que ela nem pode impor-se a nós, por decreto divino ou por pré-formatação de nossa

racionalidade, nem nós podemos decidir, com base na experiência ou na observação, sobre a

sua verdade. Uma geometria será apenas uma convenção, adotada segundo critérios de

simplicidade e de corporificação138.

Poincaré (1985) não nega que a experiência exerça um papel importante na gênese da

geometria, mas ela serve apenas como um guia para a escolha da geometria mais cômoda,

sem que possa exercer qualquer imposição, pois a geometria, definitivamente, não é uma

ciência experimental139. Nas palavras do cientista francês:

137 A crítica de Kurt Gödel ao Formalismo se dá em 1931. Segundo o seu Teorema da Incompletude, ou toda axiomática da aritmética é consistente e incompleta (em qualquer axiomática consistente da aritmética existem sentenças indecidíveis, aquelas que, nem elas, nem suas negações, são demonstráveis na axiomática adotada), ou é completa e inconsistente (a prova de ausência de contradição de uma axiomática da aritmética não pode ser realizada apenas com os recursos da axiomática adotada). 138 Este é um interessante aspecto, não desenvolvido por Poincaré em sua obra filosófica, mas de importância capital para a filosofia contemporânea, quando o ‘leão falante’ de Wittgenstein passa a contrapontear a tese da linguagem não-corporificada de Descartes. Voltando a Poincaré, este aspecto de corporificação parece estar ligado à Geometria Projetiva, desenvolvida no Renascimento a partir dos conceitos de ‘ponto de fuga’ e ‘perspectiva’. Ela foi formalizada pioneiramente por Girard Desargues (1591-1661) em sua teoria geométrica das cônicas, mas somente foi estabelecida definitivamente por Jean Victor Poncelet (1788-1867), na obra Traité des Propriétés Projectives des Figures, de 1822. A geometria projetiva se funda na noção de linha reta. Três características marcantes são: a) ela é desenvolvida apenas com a utilização de uma régua não graduada; b) duas figuras são equivalentes por projetividade; c) duas retas sempre se encontram. 139 “Se fosse experimental seria, unicamente, o estudo dos movimentos dos sólidos; mas, na realidade, ela não se ocupa dos sólidos naturais; seu objeto são certos sólidos ideais, absolutamente invariáveis, que são uma imagem simplificada e bem distante dos nossos sólidos reais. O conceitos desses corpos ideais é fruto de nosso espírito e a experiência funciona como uma mola que nos impele a elaborá-lo”. (POINCARÉ, 1985, p.67).

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Ora, a Geometria euclideana é e continuará sendo a mais cômoda: 1º) Porque é a mais simples; e isso não se deve aos nossos hábitos mentais somente, ou a alguma intuição direta que tivéssemos do espaço euclideano; ela é mais simples por ela própria, assim como um polígono do primeiro grau é mais simples do que um polígono do segundo grau; as fórmulas da Trigonometria Esférica são mais complicadas do que as da Trigonometria Retilínea, e elas assim pareceriam a um analista que ignorasse sua significação geométrica. 2º) Porque ela está de acordo com as propriedades dos sólidos naturais, que têm características semelhantes às de nosso olho e de nossos membros e com os quais construímos nossos instrumentos de medida. (POINCARÉ, 1985, p.54).

Certamente, no caso do experimento mental do mundo não-euclideano de Poincaré,

povoado por seres e objetos submetidos a uma lei de variação de temperatura, os seus

habitantes descreveriam uma reta como o deslocamento isotérmico a ‘r’ constante (uma curva

segundo a nossa geometria habitual). A partir desta e de outras definições, de algumas noções

comuns e de postulados, convencionariam sua geometria não-euclideana, certamente mais a

esses estranhos seres do que a geometria euclideana.

Com isso, não se quer dizer, como Kant, que eles seriam incapazes de desenvolver

uma geometria euclideana, mas que aquela, por simplicidade, seria convencionada

preferencialmente. Pode-se até imaginar que, nesse estranho mundo, Mauritis Cornelius

Escher (1898-1972), o apreciador das geometrias não-euclideanas, seria celebrado como um

artista clássico, por aplicar a geometria habitual à arte, tal como em Limite Circular I (à

esquerda). Por outro lado, Leonardo da Vinci (1452-1519), o mestre do Renascimento, não

passaria de um artista exótico, apreciador de uma estranha geometria, como a constante em O

Homem Vitruviano (à direita).

Figura 21. Escher x Vinci: o Clássico e o Exótico sob Convencionalismo

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Outro experimento mental bastante interessante seria o de imaginar seres dotados de

membros não-retilíneos. Tais seres iriam preferir, certamente, por aspectos de corporificação,

uma notação mediante coordenadas polares à notação por coordenadas cartesianas. Ao

desenvolver uma geometria projetiva, teriam por base o compasso e não a reta. O que para os

seres humanos dotados de membros retos é naturalmente complicado, como demonstrado por

Mohr e Mascherani em seu trabalho acerca da geometria projetiva por compasso, seria algo

comodamente simples para esses seres curvilíneos:

A geometria plana dos primeiros seis livros dos Elementos, de Euclides, pode ser descrita como a geometria de linhas e circunferências: suas ferramentas são a régua (não graduada) e o compasso. Uma notável descoberta foi feita independentemente pelo geômetra dinamarquês Georg Mohr (1640-1697) e pelo italiano Lorenzo Mascherani (1750-1800). Eles provaram que nada é perdido se descartarmos a régua e utilizarmos apenas o compasso. Por exemplo, dados quatro pontos A, B, C, D, nós até podemos construir o ponto onde as retas AB e CD se encontram com os meios de desenho; mas tal procedimento é extremamente complicado. É natural perguntar o quanto permanece se, ao contrário, nós descartarmos o compasso e usarmos a régua140. (COXETER, 2003, p.1, tradução nossa).

Figura 22. Coordenadas Polares x Coordenadas Cartesianas

140 “The plane geometry of the first six books of Euclid’s Elements may be described as the geometry of lines and circles: its tools are the straight-egde (or unmarked ruler) and the compasses. A remarkable discovery was made independently by the Danish geometer Georg Mohr (1640-1697) and the Italian Lorenzo Mascherani (1750-1800). They proved that nothing is lost by discarding the straight-edge and using the compasses alone. For instance, given four points A, B, C, D, we can still construct the point where the lines AB and CD would meet if we had the means to draw them; but the actual procedure is quite complicated. It is natural to ask how much remains if we discard the compasses instead, and use the straight-egde alone”.

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Portanto, resta concluir que, segundo o Convencionalismo de Poincaré, os axiomas da

geometria não são juízos sintéticos a priori, como postulava Kant. A filosofia de Kant

encontra-se embaraçada? Segundo Hagar (2008, p.80, tradução nossa), “muitos filósofos

importantes tem avaliado a filosofia da geometria de Kant ao longo de todo o último século

[Charlie D. Broad, Rudolf Carnap, Lewis Beck, Jonathan Bennett, Philip Kitcher, Charles

Parsons e Michael Friedman], mas opiniões a respeito do impacto das geometrias não-

euclideanas sobre ela divergem141”. A melhor postura talvez seja a de considerar que as

geometrias não-euclideanas eram estranhas ao kantismo, de forma que o caráter euclideano do

espaço era uma assunção natural diante da crença moderna na Geometria Euclideana

descritiva, que inclui a impossibilidade lógica da negação do Quinto Postulado.

Se tal postura parece confortável nos dias atuais, é preciso lembrar que, antes da

Segunda Inflexão, quando a ciência ainda nutria suas pretensões prometeicas, qualquer

movimento intelectual de ‘abertura’ da racionalidade científica era passível de despertar a ‘ira

dos beócios’. Após o Convencionalismo, quando a ciência passa de moderna à

contemporânea, posições como a de Brittan (1978, p.68, tradução nossa) – “Kant e Aristóteles

são, na minha compreensão, os dois maiores filósofos ocidentais. Eles são, além do mais, os

únicos dois filósofos, de meu conhecimento, cujas ideias, em geral, parecem ter sido

decisivamente refutadas pelo desenvolvimento científico142” – podem ser mais toleradas.

Mas ainda resta a segunda questão: seriam os axiomas geométricos verdades

experimentais? Após o Mito de Euclides143, houve a crença de que o Quinto Postulado passara

de hipótese matemática necessária à coerência da axiomática euclideana para uma verdade

descritiva acerca do universo. Stuart Mill (1806-1873), em sua obra filosófica mais

importante, Sistema de Lógica, de 1843, chega a propor uma teoria empirista da matemática,

sob forte influência do status descritivo da geometria euclideana:

§4. (Esses primeiros princípios da geometria – que são axiomas – são verdades experimentais). Resta indagar, qual é o fundamento de nossa crença em axiomas – qual é a evidência sobre a qual eles assentam? Eu respondo, eles são verdades experimentais; generalizações a partir da observação. A proposição ‘duas linhas retas não podem delimitar o espaço’, ou em outras palavras, ‘duas linhas retas que se encontraram uma vez, não

141 “Many important philosophers have evaluated Kant’s philosophy of geometry throughout the last century, but opinions with regard to the impact of non-Euclidean geometries on it diverge”. 142 “Kant and Aristotle are, in my view, the two greatest western philosophers. They are also the only two philosophers, to my knowledge, whose views often seem to have decisively refuted by development in science”. 143 “What is the Euclid myth? It is the belief that the books of Euclid contain truths about the universe wich are clear and indubitable”. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.363).

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se encontram mais, mas continuam a se afastar’, é uma indução da evidência de nossos sentidos144. (MILL, 1974, p.231, tradução nossa).

Contudo, a descoberta das geometrias não-euclideanas leva a duas interpretações

acerca da tese empirista de Mill145. A primeira a fortalece, ao admitir-se que o experimento de

Michelson-Morley é um experimentum crucis que abala o Quinto Postulado, tornando-o

suscetível à revisão experimental, de forma que as novas geometrias se constituem em uma

leitura descritiva revisada do espaço146. A segunda a enfraquece, e esta é a posição de

Poincaré (1985), para quem é preciso admitir que o espaço representativo, experimental, é

diferente do espaço geométrico, convencional.

Para Poincaré (1985, p.56), o espaço geométrico: “1º- é contínuo; 2º- é infinito; 3º-

tem três dimensões; 4º- é homogêneo, quer dizer, todos seus pontos são idênticos entre si; 5º-

é isótropo, isto é, todas as retas que passam por um mesmo ponto são idênticas umas às

outras”. Diferentemente, o espaço representativo é “o quadro de nossas representações e

sensações”.

Assim, o espaço representativo, sob a sua tripla forma, visual, tátil e motora, é essencialmente diferente do espaço geométrico. [...] Nossas representações não são senão a reprodução de nossas sensações, logo, só podem ser colocadas no mesmo quadro que nossas sensações, isto é, no espaço representativo. Representarmos os corpos exteriores no espaço geométrico nos é tão impossível quanto, para um pintor, pintar, sobre uma tela plana, objetos com suas três dimensões. O espaço representativo não passa de uma imagem do espaço geométrico, imagem deformada por uma espécie de perspectiva, e só podemos representar esses objetos fazendo-os obedecer às leis dessa perspectiva. Logo, não representamos os corpos exteriores no espaço geométrico, mas raciocinamos sobre esses corpos, como se estivessem situados no espaço geométrico. (POINCARÉ, 1985, p. 58-59).

144 “§4. (Those first principles of geometry that are axioms are experimental truths) It remains to inquire, what is the ground of our belief in axioms – what is the evidence on wich they rest? I answer, they are experimental truths; generalizations from observation. The proposition, Two straight lines cannot inclose a space – or, in other words, Two straight lines wich have once met, do not meet again, but continue to diverge – is an induction from the evidence of our senses”. 145 “A recent attempt to return to an empiricist philosophy of mathematics is the book by Lehman (1979) [Introduction to the Philosophy of Mathematics], which is influenced by the realism of Hilary Putnam”. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.365). 146 Este experimento foi realizado em 1887, com o objetivo de detectar a influência do éter na propagação dos raios luminosos. “Se fosse possível estabelecer o éter como sistema de referência absoluto, a ideia de espaço absoluto poderia ser salva. Aliás, um dos experimentos mais importantes que se fizeram com esse objetivo, o experimento de Michelson-Morley, foi interpretado por Lorentz nesse sentido, em 1904. Sua interpretação satisfazia todas as exigências da física. De acordo com Lorentz, como se sabe, todo corpo em movimento em relação ao éter imóvel (ou espaço absoluto) experimenta uma certa contração na dimensão paralela ao movimento. Porém o experimento de Michelson-Morley foi interpretado por Einstein em moldes totalmente diversos, contrários à ideia do espaço absoluto; interpretado assim, serviu de ponto de partida para o desenvolvimento da teoria da relatividade”. (JAMMER, 2010, p.186). Somente uma visão distorcida do pensamento de Einstein colocaria sua concepção de geometria entre Mill e Quine, que concebem os axiomas geométricos como verdades experimentais, quando, talvez, o mais sensato é colocá-la entre Poincaré e Schlick, que concebem os axiomas geométricos como convenções.

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Em seu último livro filosófico, publicado em 1913147, Últimos Pensamentos, Poincaré,

através da geometria Analysis Situs148, que se diferencia da geometria métrica (fundada na

noção de distância) e da geometria projetiva (fundada na noção de linha reta), faz a defesa de

seu espaço geométrico convencional. “A proposição fundamental da Analysis Situs é que o

espaço [geométrico] é um continuo de tres dimensões”. (POINCARÉ, 1924, p.50).

Figura 23. Objetos Topológicos Homeomórficos na Geometria Analysis Situs

Conforme o experimento mental do mundo não-euclideano, seres com as mesmas

capacidades sensoriais que as nossas, educados em um mundo com propriedades físicas

peculiares, seriam levados por seu espaço representativo sui generis a convencionar uma

geometria diferente da nossa. Seria esta a geometria verdadeira? Para o Convencionalismo,

ela seria apenas a mais cômoda, pois a experiência, que se realiza no espaço representativo,

apenas guia a escolha da geometria mais cômoda, sem que possa decidir sobre sua verdade.

Ou seja, a geometria é insensível à verdade experimental: uma boa geometria é uma

geometria consistente. Como há tradutibilidade entre as geometrias, dado o homeomorfismo

dos espaços geométricos149, “é impossível descobrir, no empirismo geométrico, um sentido

racional”. (POINCARÉ, 1985, p.73).

147 Publicação póstuma, pois Poincaré nasceu em 1854 e faleceu em 1912. 148 Analysis Situs é o título de um importante paper de Poincaré, publicado em 1895 no Journal de l’École Polytechnique. Ele é considerado o marco inicial do estudo sistemático da Topologia, o ramo da Matemática que trata das propriedades qualitativas dos objetos topológicos que, sob certos tipos de deformação, mantêm-se invariáveis. “N’essa disciplina, duas figuras são equivalentes todas as vezes que se puder passar de uma para outra mediante uma deformação contínua, qualquer que seja, aliás, a lei d’essa deformação, desde que ella respeite a continuidade. Assim, um círculo é equivalente a uma ellipse ou mesmo a uma curva fechada qualquer, mas não é equivalente a um segmento de recta, porque esse segmento não é fechado; uma esphera é equivalente a uma superfície convexa qualquer; não o é a um toro, porquanto n’um toro ha um orifício e n’uma esfera elle não existe”. (POINCARÉ, 1924, p.48). 149 Stump (1991), no artigo Poincaré’s Thesis of the Translatability of Euclidean and Non-Euclidean Geometries, critica a pretensão de tradutibilidade entre as geometrias. Seu argumento é que a tese de Poincaré tem uma base mais matemática do que meta-matemática: os espaços geométricos são homeomórficos, ou seja, existe uma função contínua que relaciona um espaço ao outro que possui uma função inversa contínua. O isomorfismo topológico dos espaços geométricos euclideano e não-euclideano é um reflexo na geometria de sua concepção de ciência gradual, da marcha da ciência idêntica à evolução de um tipo zoológico darwiniano pré-saltacionista.

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Assim sendo, uma dada geometria não é nem mais, nem menos verdadeira do que uma outra qualquer. A questão sobre a veracidade de uma geometria, ou seja, a sua correspondência com fatos empíricos, é desprovida de sentido porque não é cabível que certos fatos existam numa geometria de tipo euclideano e não existam, por exemplo, numa outra definida por uma métrica riemaniana. O fato experimental não é nem euclideano, nem riemaniano; em outros termos, o fato experimental é heterogêneo à linguagem empregada para exprimi-lo. Resumindo: a existência do fato experimental, assim como a do mundo exterior, é independente da linguagem utilizada para compreendê-lo. No que diz respeito aos fatos da natureza, uma geometria pode ser somente mais cômoda do que uma outra, exprimindo mais facilmente, mais concisamente, um mesmo grupo de fenômenos. Essa ideia acerca da possibilidade da existência de uma multiplicidade de leituras de um mesmo fato experimental ocupa um lugar de relevância em seu pensamento epistemológico. Além disso, ela está relacionada a uma outra ideia, igualmente importante, a de ser factível traduzir uma proposição de uma geometria A numa outra geometria B, nada impedindo, pois, que se construa um dicionário entre diferentes geometrias. (VIDEIRA, 1997, p. 6-7).

A tese da tradutibilidade das geometrias (que se apóia na proposição fundamental da

Analysis Situs) é duramente criticada por Stump (1991), para quem o homeomorfismo entre

os espaços geométricos euclideano e não-euclideano é uma convenção e não, propriamente,

uma intuição150. Esta ressalva é do próprio Poincaré (1924, p.81): “Mas há uma Analysis

Situs de mais de tres dimensões; não digo que seja uma sciencia facil. Tendo-lhe dedicado

muitos esforços, pude convencer-me das difficuldades que apresenta; mas, emfim, essa

sciencia é possivel e exclusivamente repousa na analyse” .

O caráter essencial do raciocínio por recorrência é que ele contém, condensados, por assim dizer, numa única fórmula, uma infinidade de silogismos. [...] A ideia na qual se baseia o raciocínio por recorrência pode ser colocada sob outras formas; podemos dizer, por exemplo, que em uma coleção infinita de números inteiros diferentes, existe sempre um que é menor do que todos os outros. [...] Essa regra não pode, também, nos vir da experiência; o que a experiência nos pode ensinar é que a regra é verdadeira para os dez, os cem primeiros números, por exemplo; ela não pode atingir a série indefinida dos números, mas, unicamente, uma porção mais ou menos longa, porém sempre limitada, dessa série. Ora, se só se tratasse disso, o princípio de contradição bastaria; ele nos permitiria, sempre, desenvolver tantos silogismos quanto quiséssemos. É somente quando se trata de abarcar

150 Ao contrário de Hilbert, que é o maior dentre os adeptos do Formalismo como fundamento da Matemática, Poincaré filia-se ao Intuicionismo. Se, por um lado, rejeita o sintético a priori enquanto axioma geométrico, por outro, assume a categoria kantiana na Aritmética, através da indução completa, ou ‘raciocínio por recorrência’; e, na Álgebra, com a ‘Teoria de Grupo’. Concilia seu intuicionismo ao convencionalismo geométrico, com a redução da extensão da noção de grupo do Programa Erlangen (A Ciência e a Hipótese, de 1902, é posterior ao Programa Erlangen, de 1872). Isto pelo fato de haver apenas uma Aritmética (a extensão da indução é completa) e mais de uma Geometria (a extensão do grupo é particular): “o objeto da Geometria é o estudo de um ‘grupo particular’, mas o conceito geral de grupo preexiste no nosso espírito, pelo menos potencialmente. Ele se nos impõe, não como forma de nossa sensibilidade, mas como forma de nosso entendimento”. (POINCARÉ, 1985, p.67). A terceira grande filiação matemática é o Logicismo de Frege e Russell. Para uma abordagem introdutória ao tema, ver Costa, N. (2008).

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uma infinidade de silogismos numa única fórmula, é somente diante do infinito que esse princípio fracassa. É, também, nesse caso, que a experiência se torna impotente. Essa regra, inacessível à demonstração analítica e à experiência, é exatamente o tipo de juízo sintético a priori. Por outro lado, não se pensaria em ver nele uma convenção, como no caso de alguns dos postulados da Geometria (POINCARÉ, 1985, p. 28).

Para Stump (1991), a preocupação epistemológica principal de Poincaré é assegurar a

cumulatividade da ciência, a não-ruptura do progresso científico. De fato, para um

gradualista, cada nova teoria é importante para o progresso da ciência, pois os dados

empíricos comparados a uma teoria são como um ‘monte de pedras’ comparados a uma

‘casa’. Antigas casas, entretanto, não são demolidas impiedosamente para dar lugar às novas,

mas, ao contrário, existe uma evolução contínua, como a de um ser vivo, onde um olhar mais

atento é capaz de reconhecer os vestígios dos ancestrais. Sua concepção de ciência envolve,

portanto, um progresso gradual e cumulativo de teorias, sem as demolições de uma ciência

revolucionária do tipo kuhniano.

Para Poincaré (1995, p.9), não se pode comparar a marcha da ciência “com as

transformações de uma cidade, onde os edifícios são demolidos para dar lugar às novas

construções, mas sim com a evolução contínua dos tipos zoológicos que se desenvolvem sem

cessar”. A evolução contínua é uma tese derivada do sucesso da Seleção Natural151, de

Darwin (1809-1882), e foi encampada não apenas por Poincaré, mas, segundo Videira (1997),

por eminentes físicos, como Ludwig Boltzmann (1844-1906) e Ernst Mach (1838-1916).

A função bicontínua do homeomorfismo da Analysis Situs compõe, portanto, mais um

aspecto da concepção de ciência de Poincaré, que se desenvolve segundo uma marcha

contínua, e que irá culminar na sua tese da tradutibilidade, ou do ‘invariante universal’: tanto

um experimento escrito em linguagem euclideana pode ser reescrito em uma linguagem não-

euclideana, como, especialmente, o inverso. “Ele [Poincaré] defende que nós poderíamos

151 Vale ressaltar que, originalmente, a ‘Seleção Natural’ pendia para o gradualismo de Lamarck em contraposição ao saltacionismo da criação específica. A revisão empírica da teoria de Darwin é conhecida por ‘Equilíbrio Pontuado’. Segundo Hall (1999, p.115 e 116), “o próprio Huxley [Thomas Henry Huxley, um cientista altamente respeitado que tinha feito importantes contribuições em zoologia, geologia e antropologia, fora escalado para defender a Origem das Espécies por meio da Seleção Natural em 1860, em um debate com o Bispo Samuel Wilberforce, durante o encontro de 1860 da Associação Britânica para o Progresso da Ciência] nunca acreditou no processo darwiniano de seleção natural. Há outros que também argumentaram contra a seleção natural e ofereceram uma variedade de alternativas para explicar o mecanismo de variação. Com uma única exceção, nenhuma dessas alternativas se manteve. A exceção é o saltacionismo, que envolve saltos na evolução. Huxley já havia questionado a insistência de Darwin no gradualismo: pequenas mudanças que, somando-se, produzem finalmente as grandes diferenças entre as espécies. Nisto Huxley pode ter tido razão. Em nossa própria época, o muito respeitado biólogo evolucionista Stephen Jay Gould e seu colega Niles Eldridge propuseram sua própria versão da concepção saltacionista, que eles chamam ‘Equilíbrio Pontuado’. Gould, entretanto, nota cuidadosamente que esse saltacionismo de modo algum nega a integridade básica da seleção natural”.

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continuar a usar a geometria euclideana na Física sem problemas, de forma que estamos aptos

a reescrever em uma estrutura de Euclides qualquer experimento que pareça provar que o

mundo é de Lobatchevsky152”. (STUMP, 1991, p.639, tradução nossa).

Já que o enunciado de nossas leis pode variar com as convenções que adotamos, e que essas convenções podem modificar até mesmo as relações naturais dessas leis, há no conjunto dessas leis alguma coisa que seja independente dessas convenções, e que possa, por assim dizer, desempenhar o papel de um invariante universal? Introduziu-se, por exemplo, a ficção de seres que, tendo sido educados num mundo diferente do nosso, teriam sido levados a criar uma geometria não-euclideana. Se esses seres fossem transportados para o nosso mundo, observariam as mesmas leis que nós, mas iriam enuncia-las de um modo inteiramente diferente. Na verdade, haveria ainda alguma coisa de comum entre os dois enunciados, mas é porque esses seres ainda não diferem de nós o bastante. Podemos imaginar ainda seres ainda mais estranhos, e a parte comum entre os dois sistemas de enunciados encolherá cada vez mais. Irá ela encolher assim, tendendo para o zero, ou restará um resíduo irredutível, que seria então o invariante universal procurado? (POINCARÉ, 1995, p.154).

A resposta do filósofo francês é que, se os seres fictícios não forem tão

extravagantes153, existe a possibilidade de tradução e a existência de um invariante. Para

Poincaré (1995, p.156), “traduzir é precisamente destacar esse invariante. Assim, decifrar um

documento criptográfico é procurar o que, nesse documento, permanece invariante quando se

permutam as letras”.

É fácil então perceber qual é a natureza desse invariante, e uma palavra nos bastará. As leis invariantes são as relações entre os fatos brutos, enquanto as relações entre os ‘fatos científicos’ permanecem sempre dependentes de certas convenções. (POINCARÉ, 1995, p.156).

O cientista não pode criar fatos brutos, eles se impõem. A liberdade dos cientistas

consiste em adotar certas convenções que facilitem a expressão de fatos brutos em fatos

científicos. Dados: B = fato bruto, que é invariante; A = fato científico de B expresso pela

ciência antiga; M = fato científico de B expresso pela ciência moderna; C = fato científico de

B expresso pela ciência contemporânea. Pode-se inferir que se B ≡ A; B ≡ M e B ≡ C, logo é

possível a tradutibilidade entre A ≡ M ≡ C, o que sustenta a tese de Poincaré acerca da marcha

contínua da ciência.

152 “He [Poincaré] holds that we could continue to use Euclidean geometry in physics no matter what, so he must be able to rewrite in a Euclidean framework any experiment which seems to prove that the world is Lobachevskian”. 153 Poder-se-ia conceber o ‘leão falante’ de Wittgenstein (1975, p.220) como um exemplo de ser extravagante? “Se um leão pudesse falar, não poderíamos compreendê-lo”. Poincaré (1995, p.155 e 156), contudo, não advoga nenhum nexo que relacione uma sensibilidade especial a uma lógica distinta: “E então, se não levarmos tão longe a extravagância, se só introduzirmos seres fictícios com sentidos análogos aos nossos e sensíveis às mesmas impressões, e que, por outro lado, admitem os princípios de nossa lógica, poderemos concluir então que sua linguagem, por mais diferente que possa ser da nossa, será sempre suscetível de ser traduzida”.

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Por acreditar na conversão da linguagem científica de outrora na linguagem de hoje

(claro que certos fatos brutos eram invisíveis aos cientistas de outrora, daí o caráter

cumulativo da ciência), Poincaré apresenta a marcha da ciência como um incremento contínuo

de teorias, tal qual a evolução de um tipo zoológico. Esta tese, fortemente apoiada no

gradualismo de Darwin, sofrerá um importante questionamento em 1962, com a publicação de

A Estrutura das Revoluções Científicas, de Thomas Khun (1922-1966), que intercala o

continuum da ‘ciência normal’ com rupturas da ‘ciência revolucionária’.

Assumindo a tese de Poincaré, ou seja, que relações métricas não são factuais, segue que nós podemos reescrever uma teoria física usando a geometria de Euclides tanto quanto usando a geometria de Lobachevsky e expressar os mesmos fatos. Poincaré também afirma que o inverso é verdadeiro, e por causa de sua vontade em provar que a ciência é cumulativa, o inverso é o mais importante para ele154. (STUMP, 1991, p. 657, tradução nossa).

Não se pode, portanto, deixar de promover o relevante debate entre Poincaré e Kuhn,

ou entre Inflexão e Revolução. De um lado, a Seleção Natural de Darwin (o gradualismo) e a

Analysis Situs (o homeomorfismo topológico) fazem de Poincaré um defensor do continuum

na ciência. Sua tese do ‘invariante universal’, ou da possibilidade de tradução entre diferentes

linguagens científicas, é diametralmente oposta à incomensurabilidade dos paradigmas de

Kuhn, defensor da ruptura revolucionária em ciência.

Kuhn sustentava que os paradigmas são incomensuráveis. Isso significa que eles não podem ser traduzidos uns nos outros, pelo menos não de maneira completa e talvez não em absoluto; a incomensurabilidade também implica tanto em perdas como ganhos explicativos, e nenhum sistema comum de medidas para dizer quando os ganhos são maiores que as perdas; a incomensurabilidade entre os paradigmas passa por seu vocabulário observacional e priva-nos de uma posição neutra de paradigmas a partir da qual podemos avaliar paradigmas rivais. O resultado é uma visão da ciência não como uma sucessão de explicação mais e mais completas de uma gama mais ampla e profunda de fenômenos, tampouco como a expansão contínua do poder preditivo e da precisão sobre a mesma gama de fenômenos. Antes, a história da ciência parece-se mais com a história dos costumes, ou dos regimes políticos, que se sucedem uns aos outros não por causa de seus méritos cognitivos, mas por causa das mudanças no poder político e na influência social. (ROSEMBERG, 2009, p. 221).

A reflexão epistemológica promovida pelo Convencionalismo de Poincaré não tem

apenas Kuhn como debatedor. A questão acerca da natureza dos axiomas geométricos

(convenções, juízos sintéticos a priori ou verdades experimentais) tem um alcance

154 “Assuming as Poincaré’s does that metric relations are not factual, it follows that we can rewrite a physical theory using Euclidean geometry as one using Lobachevskian geometry and express the same facts. Poincaré also claims that the converse is true and, because of his desire to prove that science is cumulative, it is the converse that is most important to him”.

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epistemológico muito denso e pode-se também citar W. V. O. Quine (1908-2000) como um

debatedor respeitável. Utilizando o vocabulário de Quine, a questão acerca da natureza dos

axiomas geométricos poderia ser reformulada com os seguintes termos: a geometria pertence

à região central da ‘ciência total’, este campo de força155 cujas condições de contorno são

constituídas pela experiência?

Antes de prosseguir, é interessante analisar o conceito físico de campo de força.

Proposto originalmente por Faraday (1791-1867), Quine irá trazê-lo para a Filosofia. A noção

de campo visa a substituir a ideia de uma ação à distância, que integra a Mecânica

Newtoniana. Antes de Faraday, a força (eletromagnética ou gravitacional) era imaginada

como atuando através do espaço, com intensidade inversamente proporcional ao quadrado da

distância. A semelhança entre a lei de Newton (1643-1727), à esquerda, para a força

gravitacional, e a de Coulomb (1736-1806), à direita, para a força elétrica, traduz o sucesso da

Mecânica Clássica entre os modernos, por realçar seu aspecto universal.

Faraday irá propor (em substituição à noção de força como uma ação à distância), que

a força elétrica156 distribui-se no espaço segundo um esquema de linhas de força. Assim, dado

um ponto qualquer, pode-se determinar o vetor Força Elétrica: a sua direção, o seu sentido e a

sua intensidade. Em uma linha de força do campo, a sua direção e o sentido apresentam-se

constantes. A intensidade das forças (E1, E2 e E3) irá diminuir conforme se afasta da carga

elétrica. A Figura 24 fornece um diagrama de linhas de força como imaginado por Faraday.

155 A noção de campo foi introduzida pelo físico experimental inglês Michael Faraday (1791-1867). Para Pires (2008, p.272 e 273), “Faraday não gostava do conceito de ação à distância. Para visualizar as forças agindo entre as cargas elétricas, ou entre ímãs, imaginou que o espaço entre elas era cheio de ‘algo’ que pudesse puxar ou empurrar [...]. Faraday chamou de campo ao conjunto de linhas de força, mas ele não deu uma definição precisa para este termo, que só veio a ser formalizado, algum tempo depois, com Maxwell”. James Maxwell (1831-1879), excelente matemático, expressou a intuição física de Faraday em forma matemática. O título de seu primeiro artigo relevante, ‘Sobre as Linhas de Força de Faraday’, publicado em 1856, fornece uma mostra da influência de Faraday em sua teoria do Eletromagnetismo. Para Pires (2008, p.285), “Maxwell definiu o campo eletromagnético como aquela parte do espaço que contém e envolve corpos em condições elétricas ou magnéticas. Ele pode ser preenchido por qualquer tipo de matéria: a matéria ordinária ou uma substância etérea que enche todo o espaço e permeia todos os corpos, e é capaz de ser colocado em movimento e de transmitir esse movimento de uma parte para outra. Disse explicitamente que a teoria por ele apresentada é uma alternativa para a ação de forças atuando à distância”. 156 Para Pires (2008, p.275), Faraday “tentou também estabelecer através de experiências se havia uma conexão entre gravidade e eletricidade. Depois de descrever alguns experimentos concluiu que ‘aqui terminam minhas tentativas por agora. Os resultados foram negativos. Eles não abalam minha crença na existência de uma relação entre gravidade e eletricidade, embora eles não forneçam uma prova de que tal relação existe’”.

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Figura 24. Representação do Campo Elétrico como Linhas de Força, por Faraday

Quine utiliza a imagem de um campo de força para a sua analogia com a ‘ciência

total’. Num campo elétrico uniforme, por exemplo, a região central é estável, ou seja, as

linhas de força apresentam-se equidistantes e paralelas (o significado físico é que a

intensidade, a direção e o sentido da força elétrica atuante em uma carga elétrica na região

central do campo é constante; o significado filosófico é que os enunciados centrais são

estáveis e pouco sensíveis à revisão experimental). Nas extremidades, ao contrário, as linhas

de força não são nem equidistantes e nem paralelas (o significado físico é que a intensidade, a

direção e o sentido da força elétrica atuante em uma carga elétrica na região periférica do

campo é variável; o significado filosófico é que os enunciados periféricos são instáveis e mais

suscetíveis à revisão experimental).

Figura 25. A ‘Ciência Total’ como um Campo de Forças

Placa Elétrica

Enunciados Periféricos

Placa Elétrica

Enunciados Centrais

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Para Quine, a ‘ciência total’ comporta-se como um campo de força cujas condições de

contorno são dadas pela experiência: tende a manter estável seus enunciados centrais (menos

sujeitos à revisão experimental) e a variar seus enunciados periféricos (mais sensíveis à

revisão experimental). Nesta imagem, pode-se resumir os dois dogmas do empirismo:

• como em um campo, os enunciados científicos estão de tal forma interconectados,

que não podem enfrentar, individualmente, o tribunal da experiência, senão

enquanto corpo organizado (Dogma do Reducionismo157);

• mesmo a região central do campo, composta por linhas de força paralelas e

equidistantes, pode ser reajustada, ou seja, até os enunciados centrais da ciência

total estão sujeitos à revisão experimental (Dogma da Analiticidade).

Voltando à questão proposta, acerca da natureza dos axiomas geométricos: serão

verdades experimentais? Neste caso, sendo um tipo de enunciado central da ‘ciência total’,

estariam, mesmo que mais resistentes, não totalmente imunes à revisão experimental? Parece

que as considerações precedentes, fortemente apoiadas em Mill e Quine, conduzem a uma

precipitada resposta afirmativa, como se os dois dogmas de Quine não pudessem ser

apartados [Dogma 1 (Analiticidade) ↔ Dogma 2 (Reducionismo)]158.

Friedman (2002), em Kant, Kuhn, and the Rationality of Science, um dos filósofos

contemporâneos que empreendem uma leitura de reabilitação da doutrina do espaço de Kant,

após o impacto da descoberta das novas geometrias159, aborda a questão, filiando-se a Mill e

Quine, por sua defesa que a Teoria da Relatividade, quando as geometrias não-euclideanas

aplicadas à natureza resultaram em concepções não-newtonianas de espaço, tempo e

movimento, é especialmente reveladora de um ‘Holismo Radical’160. Assim, mesmo uma das

crenças mais centrais da ‘ciência total’, dentre as quais o Quinto Postulado de Euclides, não

está imune a uma ‘experiência recalcitrante’:

Se a geometria euclideana, de uma só vez, o autêntico modelo de conhecimento racional ou a priori da natureza, pode ser empiricamente

157 Esta tese é de Pierre Duhem (1861-1916), exposta em A Teoria Física: seu Objeto e sua Estrutura, de 1906. 158 “O dogma do reducionismo, mesmo em sua forma atenuada, está intimamente ligado a outro dogma – o de que existe uma separação entre o analítico e o sintético”. (QUINE, 1975, p.251). 159 “Kant’s doctrine concerning space and geometry, as developed in the Inaugural Dissertation and in the ‘Transcendental Aesthetic’ of the Critique, is threefold: (1) space is the a priori form of pure intuition; (2) geometrical judgements are a priori and synthetic; (3) the metric of humanly intuited space is Euclidean and the propositions of Euclidean geometry are synthetic and are known a priori. The criticism that is raised against Kant as a consequence of the discovery of non-Euclidean geometries hinges upon the assumption that there is a logical relation between these three doctrine, i.e., that (1) and (2) imply (3)”. (HAGAR, 2008, p.80). 160 “This kind of strongly holism picture of knowledge is most closely identified with the work of W.V.Quine”. (FRIEDMAN, 2002, p.172).

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revisada, então o argumento segue: tudo é, em princípio, empiricamente revisável. Nossas razões para adotar um ou outro sistema de geometria ou mecânica (ou, até mesmo, de matemática mais geral ou de lógica) são, no fundo, do mesmo tipo que as considerações puramente empíricas que sustentam qualquer outra parte de nossa teoria total da natureza. Resta-nos uma forma holística radical de empirismo ou naturalismo, na qual a própria distinção entre componentes racionais e empíricos de nosso sistema total de conhecimento científico deve ser abandonado161. (FRIEDMAN, 2002, p.272, tradução nossa).

Portanto, a questão acerca da natureza dos axiomas geométricos, tema de reflexão do

pensador perspicaz que foi Poincaré, é de fundamental importância para o estabelecimento da

correlação relevante entre o novo status da geometria e a nova ciência contemporânea. Três

são as alternativas: juízos sintéticos a priori, convenções ou verdades experimentais? Após as

geometrias não-euclideanas, houve uma crítica profunda à doutrina kantiana do espaço. O

Convencionalismo é a posição teórica de Poincaré, apresentada de uma forma mais acessível

ao grande público na obra A Ciência e a Hipótese, de 1902, mas comunicada à Sociedade

Matemática da França, no ano de 1887162.

O Convencionalismo Geométrico de Poincaré é fortemente abraçado por Albert

Einstein (1879-1955). É a alternativa epistemológica que predomina no início do século XX,

diante da incompatibilidade entre a descoberta das geometrias não-euclideanas e o caráter

necessário da categoria kantiana a priori do espaço (que se fundamenta sobre a assunção de

que o espaço físico possui uma estrutura euclideana).

A questão da ‘verdade’ das diversas proposições geométricas nos leva, portanto, de volta à questão da ‘verdade’ dos axiomas. Ora, há muito se sabe que esta última pergunta não pode ser respondida pelos métodos da geometria e, mais do que isso, que ela não tem sentido nenhum. Não podemos nos interrogar se é verdade que por dois pontos passa uma única reta. Podemos apenas dizer que a Geometria de Euclides trata de figuras, por ela chamadas de ‘retas’, às quais atribui a propriedade de serem determinadas univocamente por dois de seus pontos. O conceito de ‘verdadeiro’ não se aplica aos enunciados da geometria pura, porque com a palavra ‘verdadeiro’ nós costumamos, em última análise, designar a correspondência com um objeto ‘real’; porém, a geometria não se ocupa com a relação entre seus conceitos e os objetos da experiência, mas apenas com os nexos lógicos desses conceitos entre si. (EINSTEIN, 1999, p.11 e 12).

161 “If Euclidean geometry, at one time the very model of rational or a priori knowledge of nature, can be empirically revised, so the argument goes, then everything is in principle empirically revisable. Our reasons for adopting one or another system of geometry or mechanics (or, indeed, of mathematics more generally or of logic) are at bottom of the very same kind as the purely empirical considerations that support any other part of our total theory of nature. We are left with a strongly holistic form of empiricism or naturalism in which the very distinction between rational and empirical components of our total system of scientific knowledge must itself be given up”. 162 A comunicação foi publicada no Bulletin de la Societé Mathématic de France (n.15, de 1887), sob o título “Sur les Hypothèses Fondamentales de la Geómétrie”.

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Portanto, diante da incompatibilidade suscitada entre a kantismo e as geometrias não-

euclideanas, o Convencionalismo Geométrico é, prima facie, a alternativa epistemológica

predominante (que influenciou sobremaneira os pensadores do Círculo de Viena163 e sua

rejeição de um conhecimento sintético a priori na concepção científica do mundo164), pelo

menos até 1919165, quando a comprovação experimental da Teoria da Relatividade Geral de

Einstein revigora a alternativa epistemológica dos axiomas geométricos enquanto verdades

experimentais.

Utilizando o vocabulário de Moritz Schlick166 (1882-1936), a quem foi dedicado o

Manifesto do Círculo de Viena, A Concepção Científica do Mundo, não seriam os axiomas da

geometria apenas ‘definições disfarçadas’? Neste caso,

a descrição física da natureza não é vinculada a nenhuma geometria em particular e nenhuma intuição pode prescrever que nós devamos estabelecer que tal descrição em uma axiomática euclideana seja a correta, como tampouco que ela a seja em uma das axiomáticas não-euclideanas. Nós selecionamos – no começo, instintivamente, em tempos mais recentes, deliberadamente – quais axiomas irão conduzir às leis físicas mais simples. Em princípio, contudo, nós poderíamos ter escolhido outros axiomas se estivéssemos dispostos a pagar o preço de formulações mais complicadas para as leis da natureza. Portanto, fundamentalmente, a escolha de axiomas é deixada ao nosso arbítrio. E isto quer dizer que eles [os axiomas] são definições167. (SCHLICK, 2002, p. 354, tradução nossa).

163 Ouelbani (2009, p.7) aponta a discussão do Convencionalismo presente já no Primeiro Círculo de Viena: “remontando a mais ou menos 1908, o primeiro círculo era composto principalmente por três não filósofos que são [Hans] Hahn, matemático, [Philipp] Frank, físico, e [Otto] Neurath, economista e sociólogo, cujas preocupações concentravam-se nos problemas suscitados pela filosofia machiana e pelo convencionalismo francês de Poincaré e Duhem. Eles discutiam problemas de filosofia das ciências e de metodologia, assim como problemas políticos”. 164 “It is precisely in the rejection of the possibility of synthetic knowledge a priori that the basic thesis of modern empiricism lies. The scientific world-conception knows only empiric statements about things of all kinds, and analytical statements of logic and mathematics” – The Scientific World Conception, in The Scientific Conception of the World: The Vienna Circle. 165 No artigo A Prova Cearense das Teorias de Einstein, Jean Einsenstaedt e Antônio Augusto Passos Videira escrevem: “Ao lançar, no início do século, a teoria da relatividade, Einstein previu que a luz sofreria desvios quando passasse perto de corpos de grande massa. Como a comprovação desse efeito dependia de um objeto com massa suficiente para causar um desvio perceptível, o cientista teve a ideia de fotografar estrelas distantes que estivessem próximas da borda do Sol, o que só é possível em um eclipse total, e comparar as imagens com outras, das mesmas estrelas, obtidas à noite, para verificar se estas mudavam de posição. A história das tentativas de fazer essas fotografias registra vários fracassos, mas em 1919, em eclipse observado no Ceará, astrônomos ingleses mediram o desvio, consagrando Einstein definitivamente”. (EINSENSTAEDT; VIDEIRA 1995, p.24). 166 Segundo Ouelbani (2009, p.7 e 8), “quanto ao segundo círculo, ele se constituiu em torno de M. Schlick, o único titular de uma cátedra de filosofia na Universidade de Viena, em 1929. É especialmente a esse círculo de Schlick, que ele próprio chamava de ‘Wiener Kreis’, que nos referimos quando falamos do Círculo de Viena, especificamente porque os membros do primeiro círculo também faziam parte dele”. 167 “The physical description of nature is not tied to any particular geometry and no intuition dictates that we must base such a description on the Euclidean axiom system as the only correct one, nor, of course, on any of the non-Euclidean systems either. We select – in the beginning instinctively, in more recent times deliberately – those axioms that lead to the simplest physical laws. In principle, however, we could have chosen other axioms if we were willing to pay the price of more complicated formulations of the laws of nature. Thus fundamentally the choice of axioms is left to our discretion. And this means that they are definitions”.

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A rejeição à concepção kantiana dos axiomas geométricos enquanto juízos sintéticos a

priori é um traço comum do Convencionalismo Geométrico e do Círculo de Viena. Contudo,

enquanto Poincaré admite a existência de tal tipo de conhecimento como fundamento da

Aritmética (sendo exemplo o ‘raciocínio por recorrência’, que é o raciocínio matemático por

excelência168), os neopositivistas o rejeitam completamente.

A própria possibilidade da ciência matemática parece uma contradição insolúvel. Se essa ciência só é aparentemente dedutiva, de onde lhe vem esse perfeito rigor que ninguém pensa em pôr em dúvida? Se, pelo contrário, todas as proposições que ela enuncia se podem deduzir uma das outras pelas regras da Lógica Formal, como é que a Matemática não se reduz a uma imensa tautologia? [...] O caráter essencial do raciocínio por recorrência é que ele contém, condensados, por assim dizer, numa única fórmula, uma infinidade de silogismos. [...] É somente quando se trata de abarcar uma infinidade de silogismos numa única fórmula, é somente diante do infinito que esse princípio [da identidade] fracassa. É também nesse caso, que a experiência se torna impotente. Essa regra, inacessível à demonstração analítica e a experiência, é exatamente o tipo de juízo sintético a priori. (POINCARÉ, 1985, p.21, 26 e 28).

Para o Círculo de Viena, pode-se admitir tão somente dois tipos de proposições

genuínas, as proposições analíticas a priori e as proposições sintéticas a posteriori. O

sintético a priori tem natureza metafísica, de onde sobressai a marcante oposição entre o

intuicionismo de Poincaré e o logicismo de Frege e Russell169 (que exerceu forte influência

sobre o Círculo), como escrito no Manifesto, na parte sobre os Fundamentos da Aritmética170.

A concepção de Matemática como essencialmente tautológica, que é baseada nas investigações de Russell e Wittgenstein, é também defendida pelo Círculo de Viena. É digno de nota que tal concepção é oposta não somente ao apriorismo e intuicionismo, mas também ao empirismo antigo (por exemplo, S. Mill), que tentou, por assim dizer, derivar Matemática e Lógica de um modo experimental-indutivo171. (Foundations of Arithmetic, in The Scientific Conception of the World: The Vienna Circle, tradução nossa).

168 A demonstração de Leibniz para 2+2=4 consiste em estabelecer definições: (a) 2=1+1; (b) 3=2+1; (c) 4=3+1. Logo, (I) 2+2=2+1+1 Def.(a); (II) 2+1+1=3+1 Def.(b); (III) 3+1=4 Def.(c); portanto, 2+2=4 c.q.d. Para Poincaré (1985, p.23), “não se pode negar que esse raciocínio seja puramente analítico. Mas, façam essa pergunta a um matemático. ‘Não é uma demonstração propriamente dita, ele responderá, é uma verificação’. Nós nos limitamos a aproximar, uma da outra, duas definições puramente convencionais e constatamos a sua identidade, não aprendemos nada de novo. A verificação difere da verdadeira demonstração precisamente porque é estéril. E é estéril porque a conclusão não é senão a tradução das premissas em uma outra linguagem. A verdadeira demonstração é, ao contrário, fecunda porque sua conclusão é, de certo modo, mais geral que as premissas”. 169 Para os subscritores do Manifesto do Círculo de Viena, os leading representatives da Scientific World-Conception são Albert Einstein, Bertrand Russell e Ludwig Wittgenstein. 170 Frege, na obra Os Fundamentos da Aritmética, alerta para a lacuna da demonstração de Leibniz, que consiste na transformação de 2+(1+1) em (2+1)+1 de (I) 2+2=2+1+1 para (II) 2+1+1=3+1. 171 “The conception of mathematics as tautological in character, wich is based on the investigations of Russell and Wittgenstein, is also held by the Vienna Circle. It is to be noted that this conception is opposed not only to apriorism and intuitionism, but also to the older empiricism (for instance of j, S. Mill), wich tried to derive mathematics and logic in an experimental-inductive manner as it were”. – The Scientific World Conception, in The Scientific Conception of the World: The Vienna Circle.

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Outro ponto dissonante entre Poincaré e o Círculo de Viena diz respeito aos

fundamentos da Física, especificamente acerca do problema das convenções: será a

experiência capaz de mudar as ‘definições implícitas’, os axiomas, ou ela é capaz apenas de

mudar as ‘definições coordenadas’, as relações entre os objetos da realidade e os axiomas?

Originariamente, o maior interesse do Círculo de Viena estava no método da ciência empírica. Inspirado nas ideias de Mach, Poincare e Duhem, os problemas de transcrever a realidade através de sistemas científicos, especialmente através de sistemas de hipóteses e axiomas, foi discutido. Um sistema de axiomas apartado de toda aplicação empírica pode primeiramente ser considerado como um sistema de definições implícitas; isto equivale a dizer que os conceitos que aparecem nos axiomas são fixados, ou, por assim dizer, definidos, não a partir de seu conteúdo, mas de suas mútuas relações através dos axiomas. Um tal sistema de axiomas obtém um significado para a realidade apenas pela adição de definições adicionais, chamadas ‘definições coordenadas’, que estabelecem que objetos da realidade estão sendo considerados como membros do sistema de axiomas. O desenvolvimento da ciência empírica, qual seja, representar a realidade por meio de um conjunto de conceitos e julgamentos tão simples e uniformes quanto possíveis, pode agora seguir de um de dois modos, como a história mostra. As mudanças impostas pela nova experiência podem mudar ou os axiomas ou as definições coordenadas. Aqui nós tocamos o problema das convenções, particularmente abordado por Poincaré172. (Foundations of Physics, in The Scientific Conception of the World: The Vienna Circle, tradução nossa).

Contudo, o êxito da Teoria da Relatividade Geral de Einstein, o que demandou um

longo e difícil processo, que se estende desde a observação astronômica do eclipse solar de

1919 à descoberta dos quasares na década de 60 do século XX, com a utilização de

telescópios mais avançados (aqui, mais uma vez, verifica-se que instrumentos de observação

mais potentes são importantes para o contexto de justificação, mas pouco relevantes para o

contexto de descoberta) parece dar um rumo ao problema apontado pelo Círculo de Viena,

estabelecendo que a experiência pode tanto as ‘definições coordenadas’ quanto as ‘definições

implícitas’, donde a prevalência inicial do Convencionalismo no início do século XX passa a

ceder à Verdade Experimental como resposta ao problema da incompatibilidade entre o

kantismo e as novas geometrias. 172 “Originally the Vienna Circle's strongest interest was in the method of empirical science. Inspired by ideas of Mach, Poincare, and Duhem, the problems of mastering reality through scientific systems, especially through systems of hypotheses and axioms, were discussed. A system of axioms, cut loose from all empirical application, can at first be regarded as a system of implicit definitions; that is to say, the concepts that appear in the axioms are fixed, or as it were defined, not from their content but only from their mutual relations through the axioms. Such a system of, axioms attains a meaning for reality only by the addition of further definitions, namely the 'coordinating definitions', which state what objects of reality are to be regarded as members of the system of axioms. The development of empirical science, which is to represent reality by means of as uniform and simple a net of concepts and judgments as possible, can now proceed in one of two ways, as history shows. The changes imposed by new experience can be made either in the axioms or in the coordinating definitions. Here we touch the problem of conventions, particularly treated by Poincare” – The Scientific World Conception, in The Scientific Conception of the World: The Vienna Circle.

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O sucesso da Teoria da Relatividade e o consenso desta teoria na comunidade

científica irão influenciar não apenas Quine e Friedman, mas toda uma filosofia da ciência do

século XX que tangencia o Convencionalismo para ressaltar a Ciência Total: a possibilidade

de a experiência modificar não apenas as ‘definições coordenadas’, mas também as

‘definições implícitas’, parece a única resposta ao problema supra-citado, como que apagando

o Convencionalismo.

Isto conduz, em relação à questão da natureza dos axiomas geométricos, à

consideração de tomá-los enquanto verdades experimentais. É uma posição que parece

reveladora da miopia dos muitos que, deslumbrados com a física de Einstein, deixaram de

enxergar a geometria de Einstein, exposta de maneira explícita e direta na famosa conferência

de 1921 diante da Academia Prussiana de Ciência, Geometria e Experiência.

A geometria (G) não predica nada acerca do comportamento das coisas reais, mas somente a geometria juntamente com a totalidade das leis físicas (P) pode fazê-lo. Empregando símbolos, podemos dizer que somente a soma (G) + (P) está sujeita à verificação experimental. Assim, (G) pode ser escolhida arbitrariamente, bem como partes de (P); todas essas leis são convenções. Tudo que é necessário para evitar contradições é escolher o restante de (P) de tal modo que (G), juntamente com a totalidade de (P), estejam de acordo com a experiência. (EINSTEIN, 2005, p.668).

Os diversos diálogos aqui propostos, com Kuhn (Marcha Contínua x Ruptura

Revolucionária), Quine (Convencionalismo x Ciência Total) e o Círculo de Viena

(Intuicionismo x Empirismo Lógico), mesmo que apresentados de forma panorâmica, são

reveladores do protagonismo de Poincaré para a filosofia do século XX.

Na próxima seção, será abordada a relevância da correlação entre o novo status da

Geometria e a Segunda Inflexão teórica na Ciência. O primeiro e decisivo passo foi dado: os

axiomas geométricos passam de estatuto ontológico da natureza a meras convenções de

linguagem. Aqui, definitivamente, pode-se estabelecer que o Mito de Euclides está para a

Primeira Inflexão, como o Convencionalismo Geométrico está para a Segunda.

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3.3 A SEGUNDA INFLEXÃO

No fim do século XIX e início do século XX, em paralelo às novas geometrias,

algumas mudanças teóricas na ciência começam a se delinear, as quais culminarão,

inevitavelmente, em uma Segunda Inflexão, quando a ciência prometeica, que sabe

antecipadamente todo o futuro, torna-se ioética, um caminhar sem fim. Por que é relevante

relacionar, novamente, Geometria e Ciência, pontuando a mudança no status daquela com a

inflexão desta? A resposta que se propõe parte das similitudes entre a Primeira e a Segunda

Inflexão, em especial, pelas três etapas que as caracterizam: o Esforço Geométrico, a Inflexão

e a Virada Física.

Convencionalismo Geométrico

Contexto Prometeico Contexto Ioético

Geometrias Não-Euclideanas Relatividade

Figura 26. A Segunda Inflexão

Para enfrentar este desafio, é importante ressaltar dois aspectos fundamentais desta

dissertação. Primeiramente, tem-se procurado demonstrar que, sem o risco de um erro do tipo

post hoc ergo propter hoc, não há condições para o estabelecimento de uma conexão causal

entre a mudança do status da geometria (dedutiva → descritiva → convencional) e as

inflexões da ciência (antiga → moderna → contemporânea).

O segundo aspecto a ser destacado é a oposição entre Inflexão e Revolução. Poincaré

destaca o caráter contínuo e cumulativo da marcha da ciência, que se assemelha à evolução de

um ser vivo, gradual e contínuo, em oposição à evolução das cidades, onde casas são

derrubadas para dar lugar a outras. Aquela é a evolução do tipo Marcha Contínua, onde as

mudanças conceituais se operam mediante inflexão. Esta é a evolução do tipo Ruptura

Revolucionária, como a defendida por Thomas Kuhn e sua tese da incomensurabilidade de

paradigmas.

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Voltando ao primeiro aspecto, afirmar que a geometria euclideana dedutiva não é

causa da ciência antiga, ou que a geometria euclideana descritiva não é causa da ciência

moderna, ou, ainda, que as geometrias não-euclideanas não são causa da ciência

contemporânea, não significa, em absoluto, que a condição inversa possa ser estabelecida, ou

seja, que ‘experiências recalcitrantes’ possam ter refundado o status dos axiomas geométricos.

De modo algum é lícito estabelecer que a ciência antiga tenha sido responsável pelo

status dedutivo da geometria euclideana entre os sacros. Tampouco que a ciência moderna

tenha sido a responsável pelo status descritivo da geometria euclideana entre os universais.

Muito menos que a ciência contemporânea seja responsável pelo status convencional da

geometria entre os imperfeitos.

Afinal, que experimentum crucis foi vivenciado por Tales, considerado o pai da

geometria teórica? Experimentais eram os egípcios. Foi este o povo que, por necessidade de

medir a terra para fins de cobrança dos tributos devidos ao faraó, em uma economia fundada

na agricultura de terras férteis às margens do rio Nilo, desenvolveu uma matemática aplicada

(sem paralelo entre os chineses, os hindus, os babilônicos ou os maias173) que os gregos

chamaram de ‘medida da terra’. Contudo, não foram os egípcios experimentais, mas os

milésios pré-socráticos, imbuídos de um espírito fenomenalmente especulativo174, que a

elevaram de seu caráter agrimensor para um patamar teórico.

E qual o experimentum crucis vivenciado por Bruno? Sua concepção de universo

infinito moderno (que substitui o cosmos normativo antigo) foi um passo decisivo para o Mito

de Euclides, quando a geometria passa de dedutiva a descritiva. Contudo, sua filosofia tem

pouquíssima base física, podendo-se apenas extrair de suas estampas a profunda influência da

estética árabe (a influência de um pensamento familiar ao infinito através da aritmética

hindu). E foi a metafísica de Bruno (e não os olhos de Thyco Brahe ou as lunetas de Galileu)

que anunciou a infinitude do universo.

Portanto, assim como não se pode procurar as experiências recalcitrantes que

fundaram a geometria euclideana dedutiva ou a geometria euclideana descritiva, também não

173 “Estes documentos [manuscritos maias], habitualmente denominados Códigos de Dresden, Paris e Madri, comprovam que o desenvolvimento dos Maias em assuntos aritméticos e astronômicos era equivalente ou mesmo superior ao de outras civilizações ocidentais contemporâneas. Um dos bons exemplos disto é o fato de terem conhecido o conceito do zero muito antes da sua utilização na Europa”. (HOCHLEITNER, 1994, p.8). 174 Diógenes Laêrtios (2008, p.21), em Vidas, Livro I.33, conta a seguinte anedota acerca de Tales: “certa vez, quando era levado para fora de casa por uma velha serviçal para observar as estrelas, Tales caiu numa vala, e seu grito de socorro levou a velha a dizer: ‘Como pretende, Tales, tu, que não podes sequer ver o que está à tua frente, conhecer tudo acerca do céu?’”.

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é correto buscar o experimentum crucis que abalou os axiomas da geometria euclideana. Sob

um ponto de vista estritamente matemático, as geometrias não-Euclideanas são desenvolvidas

ao longo da primeira metade do século XIX, por Gauss (1777-1855), Lobachevsky (1792-

1856), Bolyai (1802-1860) e Riemann (1826-1866), portanto anteriores à formulação da

Teoria da Relatividade Geral (1915), e bem anteriores à primeira comprovação experimental

desta teoria pela prova cearense de 1919.

A premissa fundamental da TRG é que a força da gravidade pode ser interpretada como sendo resultado da curvatura do espaço (e do tempo, algo que vamos deixar de lado por ora). Imagine uma criança brincando com bolinhas de gude em uma mesa. A trajetória natural das bolinhas é uma linha reta. Agora imagine que a superfície da mesa é feita de um material elástico e que colocamos uma bola de chumbo no centro da mesa. A presença da bola de chumbo irá deformar a geometria da mesa. A presença da bola de chumbo irá deformar a geometria da mesa, fazendo com que ela se torne encurvada. Quando as bolinas de gude passarem perto da bola de chumbo, suas trajetórias irão se desviar de uma linha reta. E, se elas passarem bem perto da bola de chumbo, cairão dentro do ‘buraco’. (GLEISER, 1999, p.94 e 95).

Sob uma perspectiva histórica, é conveniente recordar ainda que, durante o Império

Árabe, quando a geometria grega do ocidente, refratária ao infinito, foi unida à aritmética

hindu do oriente, familiar ao infinito, pulularam as primeiras críticas técnicas ao Quinto

Postulado, base das geometrias não-euclideanas. Deve-se, então, procurar um experimentum

crucis entre os antigos hindus para justificar o que possa ter abalado a atávica crença humana

no cosmos finito, formada e consolidada por sucessivas gerações familiares a um limite azul

no céu?

Tal intento não parece muito crível. Na verdade, ao comparar a ciência oriental e a

ocidental, pode-se dizer que a ciência hindu, de caráter mais teorético-especulativo, está para

a chinesa, mais prático-experimental, como a grega está para a egípcia. É mais plausível supor

que, num contexto de descoberta (que não se submete à disciplina metodológica), o infinito

possa ter ocorrido a um sábio védico através de um exercício espiritual175 do que por um

experimento qualquer.

Agora em relação à divisão de uma quantidade definida por zero, o quociente de tal divisão foi denominado ‘khacheda’ por Brahmagupta e ‘khahara’ por Bhaskara II. De acordo com Bhaskara II, ‘khabhajito rasih khaharah syat’, que significa que uma quantidade ter zero como divisor é

175 “Os samanas ensinavam muita coisa a Sidarta e ele aprendia numerosos métodos de separar-se do eu. Trilhava a senda da desindividualização, através da dor, através do tormento voluntário e do triunfo sobre o sofrimento, sobre a fome, a sede, o cansaço. Desindividualizava-se, mediante a meditação, tirando do seu espírito toda e qualquer representação, até deixá-lo vazio. Aprendia a percorrer esse e outros caminhos, saindo inúmeras vezes do próprio eu e conservando-se no não-eu, horas e dias a fio”. (HESSE, 2003, p.19).

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‘khahara’. De acordo com o comentador Ganesa, ‘kharara’ é uma quantidade ilimitada tão extensa que não pode ser determinado quão grande é, que significa que ela é uma quantidade infinita. Também ‘khahara’ ± k = ‘khahara’, que é imutável, onde k é qualquer quantidade definida. [...] Em relação à natureza de ‘khahara’, Bhaskara efetuou seu próprio comentário no Prijaganita: em ‘khahara’ não existe alteração seja o que possa ser inserido ou extraído, da mesma forma que a mudança não tem lugar no infinito e imutável deus, no período de destruição ou criação de mundos apesar de numerosas ordens de existentes serem incorporados ou desenvolvidas176. (MALLAYYA, 1997, p.320, tradução nossa).

“Poincaré afirmou que o estético mais do que o lógico é o elemento dominante da

criatividade matemática177”. (DAVIS; HERSH; MARCHISOTTO, 2003, p.184, tradução

nossa). Tal afirmação é por demais reveladora de seu intuicionismo178, e reforça a assunção de

que os contextos de descoberta e o de justificação mantêm relações bem distintas com a

experiência.

Como acontece que existam pessoas que não entendam Matemática? Se a Matemática invoca apenas as regras da Lógica, tais como aquelas aceitas por todas as mentes normais; se sua evidência é baseada em princípios comuns a todos os homens, e que ninguém poderá negar sem ser louco, como sucede serem tantas pessoas aqui refratárias? [...] Em uma palavra, minha memória não é ruim, mas ela seria insuficiente para fazer-me um bom jogador de xadrez. [...] Uma demonstração matemática não é simplesmente uma justaposição de silogismos, mas silogismos colocados em uma certa ordem, e a ordem nos quais estes elementos são colocados é muito mais importante do que os elementos em si mesmos. [...] Sabemos que este feeling, esta intuição da ordem matemática que nos faz predizer harmonias e relações escondidas, não pode ser possuída por qualquer um. [...] De fato, o que é a criação matemática? Ela não consiste em fazer novas combinações com entidades matemáticas já conhecidas. Qualquer um poderia fazê-lo, mas as combinações decorrentes seriam infinitas em

176 “Now pertaining to division of a definite quantity by zero, the quotient of such division has been termed khacheda by Brahmagupta and khahara by Bhaskara II. According to Bhaskara II, khabhajito rasih khaharah syat wich means that a quantity having zero divisor is a khahara. According to the commentator Ganesa khahara is such a large unlimited quantity that it cannot be determined how great it is, which means that it is an infinite quantity. Also khahara ± k = khahara, which is unaltered, where k is any definite quantity. […] Regarding the nature of khahara, Bhaskara has made his own remark in Prijaganita that in khahara there is no alteration whatsoever may be inserted or extracted as no change takes place in the infinite and immutable god, at the period of destruction or creation of worlds though numerous orders of beings are absorbed or put forth”. 177 “Poincaré asserted that the aesthetic rather than the logical is the dominant element in mathematical creativity”. 178 Um dos maiores contendores de Poincaré, intuicionista, é, sem dúvida, Bertrand Russell, logicista. A contenda entre os matemáticos se dá, principalmente, na rejeição do sintético a priori por Russell, que critica o ‘raciocínio por recorrência’ (no que exercerá forte eminência sobre o Círculo de Viena). Convém destacar, contudo, que a primeira obra filosófica do inglês, An Essay on the Foundations of Geometry, de 1897 (repudiada posteriormente pelo autor), apresenta uma surpreendente defesa da natureza a priori do espaço pelo jovem Russell de vinte e cinco anos. Em My Philosophical Development, de 1959, Russell irá confessar a irrelevância de sua obra inicial antes da influência do atomismo lógico de Peano: “There is one major division in my philosophical work: in the years 1899-1900 I adopted the philosophy of logical atomism and the technique of Peano in mathematical logic. This was so great a revolution as to make my previous work, except such as was purely mathematical, irrelevant to everything that I did later. The change in these years was a revolution; subsequent changes have been the nature of an evolution”. (RUSSELL, 1995, p.9).

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número e a maioria delas absolutamente sem interesse. Criar consiste precisamente em não fazer combinações inúteis, mas em fazer aquelas que são úteis e que são apenas uma minoria. [...] Portanto, é esta sensibilidade estética que desempenha o papel da delicada seiva de que falei, e que suficientemente explica por que alguém em que a falta nunca será realmente um criador179. (POINCARÉ, 1929, p.383-385-386-392, tradução nossa).

Claro que, após a descoberta, que ocorre no contexto não submetido à disciplina

metodológica (seja pelo senso estético ou até mesmo ético, como no caso da religião hindu),

cabe aos cientistas, já no contexto de justificação, dar um adequado tratamento metodológico

à teoria proposta180. Assim também, pode-se pensar nos Elementos como um adequado

tratamento à intuição de Tales.

De maneira similar, após as geometrias não-euclideanas, desenvolvidas na primeira

metade do século XIX, coube a Felix Klein (1849-1925), através do ‘Programa Erlangen181’,

em 1872, que propõe um tratamento generalizante às novas geometrias a partir da noção de

simetria; e a David Hilbert (1862-1943), através da obra ‘Fundamentos da Geometria’, em

1899, que consolida o método axiomático, promover as novas geometrias de mera

excentricidade lógica a um corpo conceitual profícuo de aplicações e pesquisas pelas

comunidades matemática e científica.

179 How does it happen there are people who do not understand mathematics? If mathematics invokes only the rules of logic, such as are accepted by all normal minds; if its evidence is based on principles common to all men, and that none could deny without being mad, how does it come about so many persons are here refractory? […] In a word, my memory is not bad, but it would be insufficient to make me a good chess-player. […] A mathematical demonstration is not a simple juxtaposition of syllogisms, it is syllogisms placed in a certain order, and the order wich these elements are placed is more important than the elements themselves. […] We know that this feeling, this intuition of mathematical order, that makes us divine hidden harmonies and relations, can not be possessed by every one. [...] In fact, what is mathematical creation? It does not consist in making new combinations with mathematical with mathematical entities already known. Any one could do that, but the combinations so made would be infinite in number and most of them absolutely without interest. To create consists precisely in not making useless combinations and in making those wich are useful and which are only a small minority. [...] Thus it is this special esthetic sensibility which plays the role of the delicate sieve of which I spoke, and that sufficiently explains why the one lacking it will never be a real creator”. 180 Boyer (1943) compara o geométrico Aristóteles, grego, para quem é logicamente impossível dividir uma determinada quantidade por zero (seria como dividir uma reta por um ponto), com o aritmético Bhaskara, hindu, para quem a divisão de uma determinada quantidade por zero é denominado infinito, onde não há alteração, mesmo que algo seja inserido ou extraído. 181 Felix Klein se encontrava na Universidade de Erlangen, quando, aos 23 anos, sua dissertação inaugural Observações Comparativas sobre a Pesquisa Geométrica Recente, propôs o tratamento das novas geometrias através da Teoria de Grupos. Após o Programa Erlangen, as geometrias não euclideanas deixaram de ser tratadas como mera curiosidade lógica para se integrarem definitivamente à ciência matemática. Para Klein, uma geometria é o estudo das propriedades do espaço que se mantêm invariáveis quando sujeitas a um certo grupo de transformações. Assim, por exemplo, a geometria euclideana é aquela em que duas figuras simétricas são as que podem ser transformadas uma na outra por uma isometria, ou seja, por uma transformação geométrica que preserva as distâncias. A influência de Klein sobre Poincaré é marcante, em especial, sob dois aspectos: 1º- a noção de grupo que, no Convencionalismo, constitui-se em uma forma própria de nosso entendimento (um sintético a priori); 2º- a simetria é fundamento do homeomorfismo na Analysis Situs.

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Portanto, os axiomas geométricos nunca dependeram, não dependem e nem

dependerão de experimentos para a sua formatação, e muito menos de instrumentos de

observação para a sua demonstração experimental. Aliás, qualquer tentativa de prova ou de

revisão experimental dos axiomas geométricos é totalmente desprovida de sentido. Na época

da geometria dedutiva, o objetivo de Euclides é justamente o oposto: “apresentar de modo

sistematizado os objetos da geometria, a fim de evitar os problemas de se proceder

empiricamente nesta ciência”. (VAZ, 2009, p.172).

Mesmo na época da geometria descritiva, a pretensão da ciência moderna não foi a

demonstração experimental do Quinto Postulado, mas sua elevação à categoria de decorrência

lógica do corpus geométrico. Assim, o Postulado das Paralelas passaria de mera hipótese

matemática assumida para a validade axiomática da geometria dedutiva a uma verdade

necessária do corpus geométrico descritivo. A postulação da existência da geometria

euclideana descritiva in toto decorre da certeza de que ela é um constituinte estrutural da

própria natureza, que Descartes e Kant tornarão do próprio pensamento.

A importância de tal análise da história dos axiomas geométricos está em estabelecer,

como paralelo, que as inflexões da ciência são também teóricas e não práticas. Assim, talvez

seja melhor pensar que, em vez de um experimentum crucis a abalar toda a rede de

enunciados que compõe a ciência, inclusive os axiomas geométricos, é a ciência que já estava

inflectida em seus enunciados centrais para interpretar o experimento dito crucial.

Portanto, qualquer experiência já nasce inserida em uma rede com enunciados centrais

próprios da ciência de seu tempo: sacra, universal ou imperfeita. Afirmar que os enunciados

centrais da ciência são imunes à revisão experimental não significa dizer que eles são imunes

à revisão teórica. O espantoso é observar que as revisões teóricas da ciência

(sacra→universal→imperfeito) correspondem, na geometria, à mudança do status de seus

axiomas (dedutivo→descritivo→convencional).

Quanto ao segundo aspecto, é importante ressaltar que o termo ‘Inflexão’ foi preferido

ao termo ‘Revolução’ para ressaltar a marcha contínua, não-revolucionária, da ciência. Não se

pode simplesmente conceber que a revisão teórica de todo um corpo de enunciados ocorra

sem que tal processo demande um longo período, caracterizado por três etapas distintas: a

Preparação, marcada por um Esforço Geométrico, a Inflexão propriamente dita, e a

Legitimação, marcada por uma Virada Física.

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A parábola é a curva que melhor se presta à descrição do movimento inflectivo. Ela

apresenta, no ascendente (antes da Inflexão, ou seja, na Preparação), uma curva que se inicia

acentuada e que se vai amenizando à medida que se aproxima da Inflexão. O comportamento

é o contrário no descendente (após a Inflexão, ou seja, na Legitimação), uma curva que se

inicia amena e que se vai acentuando à medida que se afasta da Inflexão. Este comportamento

da curva parabólica, no ascendente e no descendente, bem descreve as fases do Esforço

Geométrico, que se situa antes de cada Inflexão (geometria dedutiva → geometria descritiva

→ geometria convencional), e da Virada Física, que ocorre logo após a Inflexão (física

qualitativa → física quantitativa → física relativística).

Na Primeira Inflexão, por exemplo, indicou-se o período entre o Almagesto, a tradução

latina dos Elementos na Europa, em 1175, e o De Revolutionibus, a obra capital de Copérnico,

em 1543, como o do Esforço Geométrico. A curva ascendente da parábola, que inicia

acentuada e vai-se amenizando, simboliza o esforço, inicialmente acentuado e paulatinamente

amenizado, na difusão da geometria euclideana descritiva pelos cientistas.

No Primeiro Esforço Geomérico, é a geometria que vai transmutando de dedutiva,

como inicialmente concebida por Euclides, a descritiva, como finalmente defendida por

Copérnico, que acreditava fielmente na descrição de órbitas circulares. Entre o Almagesto e

Copérnico, situam-se as contribuições intermediárias e essenciais de Ockham e Cusa.

De maneira muito similar, na Segunda Inflexão, o período do Esforço Geométrico

situa-se entre o receio de despertar o clamor dos beócios, de Gauss, entre 1813-1831182, e a

defesa da dissertação Sobre as Hipóteses que Constituem os Fundamentos da Geometria, de

Riemann, em 1854. A curva da parábola, que inicia acentuada e vai amenizando, simboliza o

esforço, inicialmente acentuado e paulatinamente amenizado, na difusão da geometria não-

euclideana entre os cientistas.

Gradualmente, à medida que Gauss mergulhava mais e mais profundamente em sua geometria peculiar, ele convenceu-se de que não havia contradição lógica. Além disso, ele começou a considerar que estava desenvolvendo não uma geometria inconsistente, mas apenas uma geometria alternativa, em suas palavras, uma geometria ‘não-euclideana’. Gauss disse o mesmo em

182 “O fato é que, depois de muito esforço na tentativa de reduzir o quinto postulado a uma decorrência dos anteriores, a partir de certo ponto ele passou a admitir a possibilidade lógica de se construir outras geometrias em que o conceito de paralelismo fosse diferente daquele assumido por Euclides. Cartas escritas entre 1813 e 1831 mostram que ele deduzira, sem encontrar contradições, vários teoremas daquilo a que inicialmente chamou de Geometria Anti-Euclideana, depois Geometria Astral e, finalmente, Geometria Não-Euclideana. [...] Entretanto, para evitar polêmicas ou por ainda recear que seus raciocínios contivessem alguma falha, ele nada publicou e sempre pedia o máximo de confidencialidade a seus correspondentes quando escrevia sobre o assunto”. (GARBI, 2010, p.340).

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uma carta privada de 1824: ‘A hipótese de que a soma dos ângulos internos de um triângulo é menor do que 180° conduz a uma geometria curiosa, muito diferente da nossa, mas perfeitamente consistente, que eu tenho desenvolvido para minha completa satisfação’. Isto foi uma confirmação empolgante. Todavia Gauss, universalmente reconhecido como o principal matemático de seu tempo, não publicou suas descobertas. [...] Em uma carta de 1829 a um confidente, Gauss observou que não tinha planos ‘... de trabalhar suas muito extensas pesquisas para publicação, e talvez elas nunca apareçam enquanto estiver vivo, pois eu temo o clamor dos beócios se eu expuser minha opinião em voz alta’183. (DUNHAM, 1990, p.55, tradução nossa).

No Segundo Esforço Geométrico, é a geometria que vai transmutando de descritiva,

em um relutante Gauss, a convencional, como finalmente modelado por Riemann, ao incluir a

hipótese da soma dos ângulos internos de um triângulo maior do que 180° dentre as possíveis

geometrias não-euclideanas. Entre Gauss e Riemann, situam-se as contribuições

intermediárias e essenciais de Lobatchevsky e Bolyai.

O segundo postulado de Euclides afirmou que qualquer reta poderia ser estendida em uma linha reta, mas não era isto simplesmente afirmar que nunca se alcançaria o fim de uma linha? Riemann poderia facilmente imaginar o caso onde linhas – algo como círculos – são de comprimento finito, mas não tem ‘fim’. [...] Quando Riemann reexaminou a geometria sob a tese de linhas finitas, mas ilimitadas, a contradição para o caso dos triângulos maiores de 180° desaparecia. Consequentemente, ele desenvolveu um outro tipo de geometria não-euclideana, uma em que a soma dos ângulos de um triângulo é maior do que 180°.184 (DUNHAM, 1990, p.57, tradução nossa).

Quanto à Primeira Virada Física, que implica no estabelecimento da Física

Quantitativa, indicou-se como marcos inicial e final, as obras de Tycho Brahe e Newton,

respectivamente. A curva da parábola, que inicia amena e vai-se acentuando, simboliza a

legitimação, inicialmente amena e paulatinamente acentuada, da geometria descritiva na

ciência. Tycho Brahe, a olho nu, não conseguiu constatar a paralaxe estelar para provar o

movimento da Terra, e firmemente ancorado na certeza de uma posição central e privilegiada

183 “Gradually, as Gauss delved more and more deeply into this peculiar geometry, he became convinced that no logical contradiction existed. Rather, he began to sense that he was developing not an inconsistent geometry but just an alternative one, a ‘non-Euclidean’ geometry, in his words. Gauss said as much in a private letter of 1824: ‘The assumption that the sum of three angles is less than 180° leads to a curious geometry, quite different from ours, but thoroughly consistent, wich I have developed to my entire satisfaction’. This eas a bretahtaking statement. Yet Gauss, universally regarded as the foremost mathematician of his day, did not publicize his findings. […] In a letter to a confidant, Gauss observed that he had no plans ‘… to work up my very extensive researches for publication, and perhaps they will never appear in my lifetime, for I fear the howl of the Boeotians if I speak my opinion out loud’”. 184 “Euclid’s second postulate asserted that a straight line could be continued in a straight line, but was this not asserting simply that one never reached the end of a line? Riemann could easily imagine the case where lines – somewhat like circles – are of finite length yet have no ‘end’. […] When Riemann reexamined geometry under the assumption of unbounded but finite lines, the contradiction to a a triangle’s exceeding 180° diappeared. Consequently, he developed another kind of non-Euclidean geometry, one in which the angles of a triangle sum to more than two right angles”.

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da Terra, surpreende a cosmologia com sua concepção geo-heliocêntrica185. As contribuições

intermediárias e essenciais de Galileu e Kepler irão desembocar na maneira de Newton

descrever os fenômenos da natureza, da queda da maçã ao movimento de translação da Terra,

ou seja, a totalidade dos fenômenos pode ser explicada através de leis universais e

necessárias, que promulgam explicações causais e não finalistas do universo.

De maneira muito similar, na Segunda Inflexão, o período da Virada Física situa-se

entre a Hipótese da Contração, de Fitzgerald-Lorentz, entre 1892-1895186, e a elaboração da

Teoria da Relatividade Geral, de Einstein, em 1915. A curva da parábola, que inicia amena e

vai-se acentuando, simboliza a legitimação, inicialmente amena e paulatinamente acentuada,

da geometria convencional na ciência, que passa, evidentemente, pelas contribuições

intermediárias e essenciais de Duhem e da Relatividade Especial.

MARCHA CONTÍNUA DA CIÊNCIA

Mito de Euclides Convencionalismo

Contexto Hefestiano Contexto Prometeico Contexto Ioético

Esforço Geométrico Virada Física Esforço Geométrico Virada Física

Figura 27. A Marcha Contínua da Ciência

185 Para Poincaré (1995), as afirmações de que a Terra está imóvel e o Sol gira a seu redor, ou, ao contrário, de que o Sol está imóvel e a Terra gira a seu redor, são cinematicamente equivalentes. Claro que a segunda afirmação é mais verdadeira na medida em que evidencia, além de relações cinemáticas verdadeiras, relações dinâmicas verdadeiras. “Não, não há espaço absoluto; portanto, das duas proposições contraditórias – ‘a Terra gira’ e ‘a Terra não gira’ –, uma não é cinematicamente mais verdadeira do que a outra. Afirmar uma negando a outra, no sentido cinemático, seria admitir a existência do espaço absoluto. Mas se uma nos revela relações verdadeiras que a outra nos dissimula, poderemos, contudo, considerá-la como fisicamente mais verdadeira do que a outra, já que tem um conteúdo mais rico. Ora, quanto a isso não cabe nenhuma dúvida. [...] No sistema de Ptolomeu, os movimentos dos corpos celestes não se podem explicar pela ação de forças centrais; a mecânica celeste é impossível. As relações íntimas que a mecânica celeste nos revela entre todos os fenômenos celestes são relações verdadeiras; afirmar a imobilidade da Terra seria negar essas relações, portanto seria enganar-se”. (POINCARÉ, 1995, p.171). 186 Segundo Asimov (1993), a Hipótese da Contração, proposta inicialmente, pelo físico irlandês George Fitzgerald, em 1892, consiste em uma explicação para os resultados aparentemente contraditórios do experimento de Michelson-Morley em 1887, concebidos para predizer os efeitos sobre a luz do movimento da Terra através do éter. Em 1895, o físico holandês Hendrik Lorentz, chegou, de forma independente e com um tratamento matemático mais consistente, às mesmas conclusões de Fitzgerald.

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Investigar a Segunda Virada Física, quando a física quantitativa cede ludar à física

relativística, conduz à constatação da total improcedência quanto à afirmação de que um

experimento recalcitrante é capaz de abalar todo o sistema de enunciados da ciência, inclusive

os centrais. Pode-se afirmar que são as geometrias não-euclideanas que assolam a vanguarda

da ciência contemporânea (o Esforço Geométrico precede a Virada Física), e não o contrário.

O experimento de Michelson-Morley, de 1887, é prova desta constatação. Inicialmente

concebido para atestar o movimento da Terra em relação ao éter, até então o meio admitido

pelos físicos como necessário para permitir a propagação da luz187, já que a teoria ondulatória

da luz (Huygens) prevalecera sobre a teoria corpuscular (Newton), terminou por revelar-se em

um dos fracassos mais fecundos da ciência.

A teoria da relatividade especial surgiu como uma maneira de explicar os fatos do eletromagnetismo. É uma história um tanto curiosa. No século XVIII e início do século XIX, a teoria da eletricidade estava inteiramente dominada pela analogia newtoniana. Duas cargas elétricas se atraem se forem de tipos diferentes, uma positiva e outra negativa, mas se repelem se forem do mesmo tipo; em ambos os casos, a força varia segundo o inverso do quadrado da distância, como no caso da gravitação. Essa força era concebida como uma ação à distância, até que Faraday, mediante alguns experimentos notáveis, demonstrou o efeito do meio interveniente. Faraday não era nenhum matemático, e foi James Clerk Maxwell quem primeiro deu uma forma matemática aos resultados que ele sugeriu. Além disso, Clerk Maxwell deu razões para que se pensasse que a luz é um fenômeno eletromagnético, consistindo em ondas eletromagnéticas. Passou-se portanto a poder considerar que o meio para transmissão da luz era o éter, que havia muito era considerado o meio de transmissão da luz. (RUSSELL, 2005, p.67).

A comunidade científica passou então a procurar uma maneira de comprovar os

efeitos do movimento relativo do éter em relação à Terra. Tal movimento deveria causar

alguma interferência na propagação da luz. A tentativa de Michelson-Morley consistia, então,

em buscar tal comprovação, através de um aparelho especialmente desenvolvido e chamado

de interferômetro. Para tanto, era preciso conciliar dois princípios físicos, a lei da propagação

da luz em linha reta e com uma velocidade constante, e o princípio de relatividade de Galileu:

187 A teoria hoje aceita, formulada por Einstein em 1905, e comprovada experimentalmente em 1911, por Compton, propugna que a luz tem uma natureza dual. Para alguns fenômenos (reflexão, refração v.g.), ela se comporta como partícula, para outros (emissão, absorção), ela se comporta como partícula. O annus mirabili de Einstein (1905) foi marcado pela publicação de artigos que revolucionaram a Física, entre os quais, o da Relatividade Especial e o do Efeito Fotoelétrico. Ao ser laureado, em 1921, com o Nobel, a Academia fez questão de justificar a láurea concedida pelas contribuições na Física Teórica, mas, especialmente, pelo efeito fotoelétrico, que explicava a natureza dual da luz como onda-partícula. É importante destacar como é possível que teorias antes excludentes no contexto da ciência universal, podem conviver no contexto da ciência contemporânea.

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em sistemas de referências inerciais (em repouso ou em movimento retilíneo uniforme), os

eventos estão reciprocamente considerados segundo a velocidade relativa entre ambos.

Figura 28. Sistemas de Coordenadas Inerciais

De acordo com Galileu, dado um sistema de referência O’ que se move com

velocidade ‘v’ em relação a O, tem-se que um par de coordenadas (x, y, z) em repouso em

relação a O está-se movendo com velocidade ‘-v’ em relação ao sistema de referência O’, ou

seja, x = x’ – vt; y’ = y; z’ = z. Este é o princípio de relatividade de Galileu, e pode ser

entendido através de um passeio de carro: uma criança, no interior do automóvel em

movimento com velocidade ‘v’ (o seu sistema de referência O’, o carro), ao observar uma

árvore em repouso (em relação ao sistema de referência O, a Terra), conclui que a árvore está-

se afastando na direção contrária com velocidade ‘-v’.

Portanto, qualquer evento que ocorra em um sistema de referência inercial pode ser

transformado em relação a um outro sistema de referência inercial, e vice-versa. Um evento

ocorrido em O, com coordenadas espaciais e temporal (x, y, z, t), pode ser transformado em

um evento em O’ (x’ – vt’, y’, z’, t’), donde: x = x’ – vt; y = y’; z = z’ e t = t’. Estas são as

Transformações de Galileu, válidas na mecânica clássica para quaisquer sistemas de

referências inerciais.

O problema é que os resultados medidos no interferômetro de Michelson-Morley, no

que Asimov (1993) considera o maior ‘fracasso’ na história da ciência, foram negativos: ou se

abandona o princípio da relatividade de Galileu ou a lei de propagação da luz. Como resolver

este dilema? Diante deste dilema, parece ser inevitável abrir mão ou do princípio de relatividade ou da simplicidade da lei da propagação da luz no vácuo. O leitor que acompanhou com atenção as considerações anteriores certamente esperará que o princípio de relatividade, que à nossa mente se apresenta como natural e simples, e como quase inelutável, seja mantido, e que a lei da propagação da luz no vácuo seja substituída por uma lei mais complicada porém compatível com o princípio da relatividade. No entanto, o desenvolvimento da física teórica mostra que este caminho não é viável. Com efeito, os estudos pioneiros de H. A. Lorentz sobre os fenômenos eletrodinâmicos e ópticos em corpos em movimento mostraram que as experiências neste terreno conduzem necessariamente a uma teoria dos fenômenos eletromagnéticos que tem como consequência inevitável a

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constância da velocidade da luz no vácuo. Por isso, os teóricos mais eminentes estavam mais inclinados a abandonar o princípio da relatividade, apesar de não se haver encontrado um único fato experimental que estivesse em contradição com este princípio. Aqui entrou em cena a Teoria da Relatividade. Por uma análise dos conceitos físicos de tempo e de espaço demonstrou-se que não existe incompatibilidade entre o princípio da relatividade e a lei da propagação da luz. (EINSTEIN, 1999, p.23 e 24).

Ou seja, a Teoria da Relatividade Especial não decorreu de um experimento crucial.

Na verdade, o fracasso do experimento de Michelson-Morley conduziu a várias tentativas de

‘salvar os fenômenos’. Segundo Asimov (1993), foram consideradas, dentre outras, a hipótese

de que a Terra fosse imóvel em relação ao éter, como se arrastasse o éter com ela. Uma

explicação matemática consistente foi dada por Lorentz em 1895, mas era preciso dar um

significado físico para este fator matemático intruso, que mais parecia uma hipótese ad hoc, o

fator de contração (1 – v2/c2)½.

Nosso problema, quando formulado com precisão, assume a forma seguinte: quais são os valores x’, y’, z’, t’ de um evento em relação a O’, quando são dadas as grandezas x, y, z, t deste mesmo evento em relação a O? As relações devem ser escolhidas de tal forma que satisfaçam à lei da propagação da luz no vácuo para um mesmo raio luminoso (na verdade, para todos) em relação a O e em relação a O’. [...] este problema é resolvido por meio das equações [abaixo]. Este sistema de equações é designado pelo nome de ‘Transformações de Lorentz’. (EINSTEIN, 1999, p.32 e 33).

Ao analisar as ‘Transformações de Lorentz’, observa-se que as ‘Transformações de

Galileu’ constituem um caso particular daquelas, ou seja, quando a velocidade do sistema de

referência ‘v’ é desprezível em relação à velocidade da luz ‘c’, de aproximadamente 300.000

(trezentos mil) km/s, os quocientes v/c2 e v2/c2 são desprezíveis: toda a mecânica clássica

continua excepcionalmente válida, e x = x’ – vt; y = y’; z = z’ e t = t’ constituem uma

excelente aproximação.

A velocidade de translação do planeta Terra é de aproximadamente 30 (trinta) km/s,

que é absurdamente alta (mais de 100.000km/h), mas incrivelmente pequena diante da

velocidade da luz (0,01% de c). Assim, analisar a dinâmica de corpos no planeta Terra,

considerando-o como um sistema de referência inercial, significa desprezar fatores da ordem

de 30/(300.000)2, que é igual a 0,000000000333... ou 3,33...x10-10, e de 302/(300.000)2, que é

igual a 0,00000001 ou 10-8.

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A Mecânica Clássica continua verdadeira diante da Teoria da Relatividade Especial?

A velocidades ‘v’ relativamente pequenas à velocidade da luz ‘c’, parece óbvio que sim.

Outra pergunta interessante seria: a Teoria da Relatividade Especial é fisicamente mais

verdadeira do que a Mecânica Clássica? Segundo Poincaré (1995), parece que sim, na medida

que uma teoria física é tanto mais verdadeira quanto mais relações verdadeiras evidencia.

Assim, não cabe nenhuma dúvida de que a Teoria da Relatividade Especial, por evidenciar

relações antes obscuras à Mecânica Clássica, é fisicamente mais verdadeira, já que tem um

conteúdo mais rico188.

Consideremos o movimento diurno aparente das estrelas e o movimento diurno dos outros corpos celestes e, por outro lado, o achatamento da Terra, a rotação do pêndulo de Foucault, a giração dos ciclones, os ventos alísios, e o que mais sei eu? Para o adepto de Ptolomeu, todos esses fenômenos não tem qualquer ligação entre si; para o de Copérnico, são engendrados por uma mesma causa. Ao dizer que a Terra gira, afirmo que todos esses fenômenos têm uma relação íntima, e isso é verdadeiro, e isso permanece verdadeiro, embora não haja e não possa haver espaço absoluto. Isto quanto à rotação da Terra em torno de si mesma; o que dizer de sua revolução em torno do Sol? Aqui ainda, temos três fenômenos que, para o adepto de Ptolomeu, são absolutamente independentes e que, para o de Copérnico, são relacionados à mesma origem; são os deslocamentos aparentes dos planetas na esfera celeste, a aberração das estrelas fixas, a paralaxe dessas mesmas estrelas. Será por acaso que todos os planetas admitem uma desigualdade cujo período é de um ano, e que esse período é precisamente igual ao da aberração, e ainda precisamente igual ao da paralaxe? Adotar o sistema de Ptolomeu é responder que sim; adotar o de Copérnico é responder que não; é afirmar que há uma ligação entre os três fenômenos, e isso também é verdadeiro, embora não haja espaço absoluto. No sistema de Ptolomeu, os movimentos dos corpos celestes não se podem explicar pela ação de forças centrais; a mecânica celeste é impossível. As relações íntimas que a mecânica celeste nos revela entre todos os fenômenos são relações verdadeiras; afirmar a imobilidade da Terá seria negar essas relações, portanto seria enganar-se. (POINCARÉ, 1995, p.171).

A mesma pergunta deve ser feita a respeito da Teoria da Relatividade Especial: ela

continua verdadeira diante da Teoria da Relatividade Geral? O problema fundamental da TRE

é que o Princípio da Inércia formulado por Galileu (sem a ação de uma força externa, um

corpo permanece em repouso ou em movimento retilíneo uniforme) só é válido para sistemas

de referências inerciais (em repouso ou em movimento retilíneo uniforme). Como refundar,

então, a mecânica, de modo que as equações da nova física sejam válidas para todo sistema de

referência, qualquer que seja o estado de movimento em que o mesmo se encontre?

188 O Valor da Ciência, de Poincaré, e A Teoria da Relatividade Especial, de Einstein, são de 1905, sendo, portanto, impossível para Poincaré tomar a Mecânica Clássica e a Relatividade Especial para ilustrar como uma teoria física é mais verdadeira do que outra (na medida em que evidencia mais relações verdadeiras entre as coisas). Poincaré cita Ptolomeu e Copérnico, os quais, mutatis mutandi, podem ser substituídos por Newton e Einstein.

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Para Einstein, a solução está em admitir-se que, em relação a um sistema de referência

acelerado (ou não-galileano), a trajetória de um raio luminoso não é mais uma reta, ou seja,

sob um campo gravitacional, os raios luminosos irão descrever linhas curvas. Como aplicar a

lei empírica de que os raios de luz se propagam em linha reta? Admitindo-se como Einstein,

que a geometria prática do Universo é não-euclideana, ou seja, uma reta não é uma reta do

espaço geométrico euclideano.

Atribuo uma importância especial a essa concepção de geometria que acabei de expor, pois sem ela eu teria sido incapaz de formular a teoria da relatividade. Sem ela, a seguinte reflexão teria sido impossível: num sistema de referência em rotação relativamente a um sistema inercial, as leis concernentes à disposição dos corpos rígidos não correspondem às regras da geometria euclideana, por causa da contração de Lorentz; assim, se admitirmos os sistemas não-inerciais como estando em pé de igualdade, devemos abandonar a geometria euclideana. (EINSTEIN, 2005, p.667).

Contudo, os efeitos gravitacionais na Terra sobre a luz são desprezíveis, de modo que

a curvatura dos raios de luz é extremamente suave189. A TRE continua verdadeira diante da

TRG? Em campos gravitacionais pequenos, parece óbvio que sim. Assim, em nosso planeta,

com campo gravitacional desprezível para que se possa considerar a curvatura na propagação

dos raios luminosos, segundo a TRG, e com velocidade desprezível para que se possa

considerar os efeitos da contração de Lorentz sobre o espaço e o tempo, segundo a TRE, a

Mecânica Clássica é uma física excepcionalmente aproximada de nossa realidade.

Com efeito, só pode ocorrer uma curvatura dos raios luminosos quando a velocidade de propagação da luz variar com a posição. Poder-se-ia então pensar que, com esta conclusão, a Teoria da Relatividade Especial, e com ela, a Teoria da Relatividade em si, estaria refutada. Tal coisa não acontece. O que se pode concluir é apenas que a Teoria da Relatividade Especial não pode ter pretensões a um domínio de validade ilimitado; seus resultados valem apenas na medida em que a influência dos campos gravitacionais sobre os fenômenos (por exemplo, os fenômenos luminosos) possa ser desprezada. (EINSTEIN, 1999, p.65).

Portanto, dizer que a TRG é fisicamente mais verdadeira do que a TRE, e que esta é

fisicamente mais verdadeira do que a Mecânica Clássica, no contexto da ciência imperfeita,

tem um sentido totalmente diverso do que poder-se-ia inferir sob o contexto da ciência

universal. Entre os universais, a pretensão de coerência integral se dá mediante o sacrifício do

antigo. Entre os imperfeitos, vestígios das teorias físicas ultrapassadas são encontrados nas

novas teorias desenvolvidas, que caminham incessantemente rumo a generalizações cada vez

mais abrangentes.

189 A comprovação da TRG se deu com a observação dos efeitos do campo gravitacional do Sol (muito mais forte do que o da Terra) sob a luz, por meio de fotografias no eclipse total do Sol de 30 de maio de 1919, tiradas na cidade cearense de Sobral, no evento conhecido como a Prova Cearense da Teoria da Relatividade Geral.

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O maior ensinamento da Segunda Virada Física é este: uma teoria física, no contexto

da ciência contemporânea, não pode ter a pretensão de descrever cabalmente a natureza.

Segundo Einstein (1999, p.66), “este é o mais belo destino que uma teoria física pode ter:

quando ela abre caminho para o estabelecimento de uma teoria mais ampla, na qual continua a

viver como um caso particular”. Uma boa teoria científica é aquela, então, que se apresenta

como um caso particular de uma teoria mais geral (aqui, a noção de grupo190 se faz presente).

Haverá fim para a caminhada da ciência rumo a uma teoria geral, preditiva, verdadeira

e definitiva? Poincaré (1985) responde que não. Na ciência, é impossível ir, de uma vez, até o

fim. Também é impossível escapar das zombarias que se prevê. “Uma lei experimental está,

sempre, sujeita à revisão; devemos estar preparados para vê-la, algum dia, substituída por uma

lei mais precisa” (POINCARÉ, 1985, p.85). Se existe uma marcha contínua e sem fim rumo a

teorias mais gerais, qual é então o valor objetivo da ciência contemporânea?

Portanto, quando nos perguntamos qual é o valor objetivo da ciência, isso não quer dizer ‘A ciência nos faz conhecer a verdadeira natureza das coisas?’. Quer antes dizer ‘Ela nos faz conhecer as verdadeiras relações entre as coisas?’. [...] Quando, pois, uma teoria científica pretende nos ensinar o que é o calor, a eletricidade ou a vida, está condenada de antemão; tudo o que pode nos dar é apenas uma imagem grosseira. Portanto, é provisória e caduca. Sendo a primeira pergunta fora de propósito, resta a segunda. [...] Para compreender o sentido dessa nova pergunta, é preciso reportar-se ao que dissemos sobre as condições da objetividade. Essas relações têm um valor objetivo? Isso quer dizer: essas relações são as mesmas para todos? Serão as mesmas para aqueles que virão depois de nós? É claro eu não são as mesmas para o cientista e para o ignorante. Mas pouco importa, pois se o ignorante não as vê imediatamente, o cientista pode chegar a fazer com que ele as veja mediante uma série de experiências e raciocínios. O essencial é que há pontos sobre os quais todos aqueles que estão a par das experiências feitas podem entrar em acordo. A questão é saber se esse acordo será durável, e se persistirá entre nossos sucessores. Podemos nos perguntar se as associações que a ciência de hoje faz serão confirmadas pela ciência de amanhã. Para afirmar que isso ocorrerá, não podemos invocar nenhuma razão a priori; mas é uma questão de fato, e a ciência já viveu o bastante para que, interrogando sua história, possamos saber se os edifícios que ela ergue resistem à prova do tempo, ou se são apenas construções efêmeras. Ora, o que vemos? À primeira vista, parece-nos que as teorias só duram um dia, e que se acumulam ruínas sobre ruínas. Um dia nascem, no dia seguinte estão na moda, no outro dia se tornam clássicas, no terceiro dia estão obsoletas e no quarto são esquecidas. Mas se prestarmos mais atenção, veremos que o que assim sucumbe são as teorias propriamente ditas, aquelas que pretendem ensinar o que são as coisas. Mas há nelas algo que quase sempre sobrevive. Se uma delas nos faz conhecer uma relação verdadeira, essa relação é definitivamente adquirida, e a

190 Este é o fundamento da Teoria de Grupo. O quadrado é um caso específico do retângulo, que é um caso específico do quadrilátero, que é um caso específico do polígono, que é um caso específico de linhas poligonais, que etc. (a generalização caminha de modo a evidenciar cada vez mais relações verdadeiras).

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encontraremos sob um novo disfarce nas outras teorias que virão sucessivamente reinar em seu lugar. (POINCARÉ, 1995, p.167 e 168).

Eis, portanto, o sentido do verdadeiro para a ciência contemporânea: revelar não a

natureza das coisas, mas as relações entre as coisas, as que persistem como vestígios para as

teorias futuras. O que seria a verdade, então, para o cientista contemporâneo que continua a

realizar o seu mister de descrever a realidade mediante leis gerais, preditivas e verdadeiras?

Não mais a correspondência entre verbum e res, como postularam os antigos e os modernos,

mas a coerência entre logos e rerum relationes, doravante entre os contemporâneos.

Portanto, a inflexão teórica da ciência prometeica em ioética seria menoscabada se a

contribuição essencial de Pierre Duhem (1861-1916) na Virada Física, acerca do Dogma do

Reducionismo191, exposto no clássico La Theorie Physique: son Objet et sa Structure, de

1906, fosse ignorada. Ressalte-se que a utilização da terminologia de Quine não significa a

defesa de sua posição, exposta em Dois Dogmas do Empirismo, de que o Dogma do

Reducionismo suporta claramente o Dogma da Analiticidade.

A posição aqui defendida, de que Analiticidade e não-Reducionismo são conceitos

plausíveis na ciência encontra apoio em Herburt (1959), que defende a tese de que o

argumento de Duhem (é impossível pôr em teste uma proposição empírica isolada) não

suporta a posição tomada por filósofos (especialmente Quine e Morton White), que rejeita a

distinção entre enunciados analíticos e sintéticos192. Não é desatinada, portanto, a busca de

uma fronteira entre enunciados analíticos (incluídos os axiomas geométricos) e sintéticos,

mesmo que mantida a imagem de ciência enquanto campo de forças, empregada por Quine

como símbolo do argumento de Duhem.

191 É o próprio Quine que se faz tributário de Duhem e de White. Publicado originalmente em 1951, Dois Dogmas do Empirismo teve uma segunda edição revisada em 1961. Na primeira edição (1951), a primeira nota de rodapé, logo após o título Two Dogmas of Empirism é uma homenagem a Morton White, no original: “Much of this paper is devoted to a critique of analyticity which I have been urging orally and in correspondence for years past. My debt to the other participants in those discussions, notably Carnap, Church, Goodman, Tarski, and White, is large and indeterminate. White's excellent essay ‘The Analytic and the Synthetic: An Untenable Dualism’ in John Dewey: Philosopher of Science and Freedom (New York, 1950), says much of what needed to be said on the topic; but in the present paper I touch on some further aspects of the problem. I am grateful to Dr. Donald L. Davidson for valuable criticism of the first draft”. Na segunda edição (1961), logo após uma explanação sobre o Dogma do Reducionismo, consta a seguinte nota de rodapé: “This doctrine was well argued by Pierre Duhem, La Theorie physique: son objet et sa structure (Paris, 1906): 303-328. Or see Armand Lowinger, The Methodology of Pierre Duhem (New York: Columbia University Press, 1941): 132-140”. Disponível em <http://www.ditext.com/quine/quine.html>, acesso em 08.abr.2012. 192 A posição de Herburt é apresentada em The Analytic and the Synthetic: the Duhemian Argument and some Contemporary Philosophers: “Does the Duhemian argument support the position taken by contemporary philosophers who – like W. V. O. Quine and M. White – reject the distinction between analytic and synthetic statements? […] The conclusion is that the Duhemian line of reasoning does not support the contention of philosophers who reject the distinction between analytic and synthetic statements”. (HERBURT, 1959, p.104).

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Ora, uma vez que a geometria axiomática, por si mesma, não contém afirmações relativas à realidade que pode ser experimentada, mas somente pode fazê-lo em combinação com leis físicas, deve ser possível e razoável preservar a geometria euclideana, qualquer que seja a natureza da realidade. Pois, caso se manifestem contradições entre a teoria e a experiência, podemos decidir modificar as leis físicas em vez de modificar a geometria axiomática euclideana. Se rejeitarmos [contudo] a relação entre o corpo praticamente rígido e a geometria [euclideana], não nos libertaremos facilmente da convenção de que a geometria euclideana deve ser preservada como sendo a mais simples. (EINSTEIN, 2005, p.667).

A imagem da ciência imperfeita, de Duhem-Poincaré, apresenta, portanto, dois pontos

fundamentais, que a distinguem da imagem de Quine-Kuhn:

• A marcha da ciência (sacra→universal→imperfeita) é contínua, ocorrendo

inflexões e não rupturas revolucionárias. Vestígios de teorias anteriores, mais

específicas, são encontrados nas teorias novas, mais abrangentes.

• A geometria euclideana, puramente analítica, continua preservada após a Segunda

Inflexão. A Relatividade não derrogou o Quinto Postulado de Euclides. Os

axiomas geométricos se mantêm como convenções insensíveis à experiência. O

que muda é o seu status (dedutivo→descritivo→convencional).

Figura 29. A Imagem da Ciência de Duhem-Poincaré e as Duas Inflexões

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4 CONCLUSÃO

O objetivo desta dissertação foi destacar a relevância da correlação existente entre

geometria e ciência. Asseverar uma relação do tipo causa-efeito é correr o risco de um erro do

tipo post hoc ergo propter hoc. Negar, contudo, que as duas inflexões na ciência

(hefestiana→prometeica→ioética) correspondem a mudanças no status dos axiomas

geométricos (dedutivo→descritivo→convencional) não parece razoável.

Uma analogia pode bem servir para diferenciar uma relação direta de causa-efeito de

uma correlação relevante. Alguns estados do sul-sudeste dos Estados Unidos (Texas,

Lousiana, Mississipi, Alabama, Tennesse, Geórgia etc.) têm um histórico de preconceito

contra negros. Nesses estados, o Evolucionismo foi fortemente rejeitado enquanto teoria

científica, chegando ao cúmulo de leis proibindo o ensino desta teoria193. Assim, mesmo que

não se possa inferir que o Criacionismo seja a causa do preconceito racial nestes estados

americanos, pode-se tentar indicar a relevância da correlação entre o histórico de preconceito

e a proibição do ensino do Evolucionismo.

O paralelo do exemplo acima com o conteúdo deste trabalho é válido, portanto, para

clarificar aonde se quer chegar nesta dissertação: enaltecer a relevância da correlação entre

geometria e ciência, fazendo corresponder a três grandes períodos da ciência (sacro, universal,

imperfeito) três concepções de geometria (dedutiva, descritiva, convencional), sem pretender,

com isso, inferir que a geometria dedutiva tenha sido a causa da ciência sacra, ou que a

geometria descritiva tenha sido a causa da ciência universal, ou ainda que a geometria

convencional tenha sido a causa da ciência imperfeita.

Investigando o nascimento da ciência entre os antigos, observou-se que, dentre tantas

civilizações com acervos de observações astronômicas, a descrição da natureza mediante leis

gerais, preditivas e verdadeiras deu-se entre os gregos. Um acaso geográfico? Um capricho

divino? Uma consequência política? Uma conjunção histórica? Todas as questões podem (e

merecem) ser investigadas. Do ponto de vista epistemológico, contudo, procurou-se respaldar

a tese de que a comunhão entre o conceito originário de physis, tão caro à cultura grega, e a

193 Paradigmático é o ‘Scopes Trial’, o julgamento ocorrido em 1925 envolvendo o professor John Thomas Scopes e o Estado do Tennesse. Conhecido informalmente como ‘O Julgamento do Macaco’, consistiu na acusação de violação, por parte do Professor Scopes, de uma lei estadual que proibia o ensino do Evolucionismo. Scopes fora condenado por um júri a pagar uma multa. As apelações a cortes superiores foram essenciais para promover um debate federal acerca do que pode ser proibido ou não em matéria educacional. Há ótimas versões para o cinema, sob o título de ‘Inherit the Wind’.

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geometria descolada de suas aplicações práticas, como a desenvolvida por Tales, foi

determinante para o nascimento da ciência entre os físicos milésios.

Os chineses, como os gregos, observaram os movimentos da orbe celeste, dispondo de

um rico acervo de anotações relativas aos astros. Como os gregos, também recorreram a um

fundamento originário, metafísico, para os fenômenos naturais. Contudo, sem a geometria,

não foram capazes de uma representação geométrica do cosmos, como a que nos foi legada

por Anaximandro, discípulo de Tales.

O conhecimento dos chineses estava mais baseado numa metodologia problema a

problema do que propriamente em uma generalização teórica. É bastante ilustrativo o

exemplo da bomba hidráulica ‘espinha dorsal do dragão’, um sistema de irrigação tradicional

que variava de uma circunstância para outra, e que foi submetida a uma análise geométrica e

mecânica apenas no século XVIII, por De Belidor, que apresentou uma teoria geral de seu

funcionamento.

Voltando o olhar para os babilônios, acreditando que a ciência seja apenas predição,

sem generalização, deve-se fazer justiça a este povo que, abençoado com uma visão do

‘caelum ex omni parte patens atque apertum194’, dispôs, provavelmente, do mais rico acervo

de observações celestes, fixando as posições das estrelas, organizando catálogos e prevendo a

posição dos planetas. Tudo isso graças a engenhosos cálculos aritméticos! Contudo,

acreditando que não há ciência sem generalização, pode-se afirmar que, entre os babilônios,

na falta de uma teoria explicativa que pudesse reunir tantos dados, não houve ciência.

Portanto, a geometria está intimamente ligada ao nascimento da ciência. Por que então

a ciência nasceu na Jônia e não no Egito? Os Papiros de Moscou (c. 1850 a.C.) e de Ahmes (c.

1650 a.C.) revelam a presença da geometria entre os egípcios bem antes dos gregos. Contudo,

neste povo, a geometria não passou de uma ferramenta matemática com finalidades práticas

de agrimensura. Na Jônia, Tales elevou a geometria a um patamar especulativo e puramente

teórico sem paralelo nos povos antigos, e por isso, a ciência tem uma gênese grega, onde a

geometria é dedutiva, e não uma gênese egípcia, onde a geometria é prática.

Dois caracteres marcam o nascente discurso científico, os quais serão preservados

pelos antigos, modernos e contemporâneos, mesmo após as duas inflexões: o uso mediato de

suas leis, que se relaciona com a generalidade e a previsão, e a pretensão de coerência

integral, que se relaciona com a verdade.

194 A expressão é de Cícero, no De Divinationes: ‘o céu sempre aberto e desobstruído’.

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O senso comum pode também fazer o uso mediato de suas formulações, como no caso

do pescador que sabe dever remar na popa do barco, mas esta crença convive naturalmente

com a lenda do Cabeça-do-Cuia, e não há pretensão de coerência integral e nem disposição

para o sacrifício. A adivinhação tem pretensão de coerência integral, como no caso dos

lançadores de Jonas ao mar, mediante o acréscimo de legitimações ad hoc, mas não há como

fazer uso mediato de tantas combinações.

De acordo com a disposição para o sacrifício, o contexto de leis científicas será antigo,

moderno ou contemporâneo. As leis gerais, preditivas e verdadeiras da ciência sacra são

marcadas por uma profunda herança dos antigos: o cosmos enquanto comunidade jurídica. Ao

cientista antigo se requer, para a manutenção da coerência integral do discurso científico, a

adesão a um fundamento metafísico que sustenta a harmonia interna, a estrutura normativa e a

coerência dedutiva de todo o sistema descritivo do cosmos, que não é apenas uma mera

descrição do ‘como’, mas do ‘porquê’ da realidade, que inclui o supra-sensível.

O cientista antigo, clássico ou medieval, é marcado pela disposição ao sacrifício

expiatório do ‘novo’, de forma que a pretensão de coerência integral de seu discurso seja

preservada. Entre os clássicos, o instrumento é a ruptura, posto que o fundamento metafísico

tem realeza relativa (ou basileía). Entre os medievais, o instrumento é a cessação, posto que o

fundamento metafísico tem realeza absoluta (ou tyrannís). O pitagórico Hípaso e Giordano

Bruno são marcos desse tempo.

A correlação do discurso científico hefestiano com a geometria dedutiva é, então,

marcante. Na ciência antiga, é preciso aderir a uma hipótese metafísica que sustenta a

harmonia do cosmos (o apeíron de Anaximandro, o Motor Imóvel de Aristóteles, o Deus dos

medievais etc.). Na geometria dedutiva, é preciso assumir a hipótese do Quinto Postulado,

dada a incompatibilidade entre o Postulado das Paralelas e o Cosmos Esférico Finito: de fato,

por um ponto ‘P’, podem ser traçadas infinitas retas que não cruzam com a reta ‘r’, e não

apenas uma única (ver Figura 10).

Contudo, mesmo o contexto sacro das leis científicas, que guarda um profundo

respeito ao ‘porquê’ do cosmos, deve observar a previsão de fenômenos. Não bastam leis

gerais e verdadeiras, é preciso que elas sejam preditivas. Quando os dados observáveis das

errantium stellarum começaram a afrontar as generalizações da cosmologia geocêntrica, dois

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foram os caminhos para ‘sózein ta phenómena195’: um aritmético, com o acréscimo sucessivo

de esferas adicionais por Callipos e Eudoxos, para a manutenção da cosmologia geocêntrica

homocêntrica, ou seja, aquela que mantém a Terra no centro das órbitas dos planetas, e outra

geométrica.

E foi a geometria da Escola de Alexandria, de Hiparcos e Ptolomeu, num dos maiores

empreendimentos da razão científica, que, através dos equantes e epiciclos, deslocando a

Terra do centro da órbita deferente, resgatou a previsão das leis científicas sem o prejuízo da

generalidade que a solução das esferas adicionais (cada vez mais adicionadas) parecia

empreender. O Almagesto, obra fundamental de Ptolomeu sobre cosmologia, que chegará à

Europa apenas após a conquista do bastião mouro de Toledo, em 1085, e a tradução para o

latim, em 1175, marca o início do Esforço Geométrico que antecede a Primeira Inflexão.

O Primeiro Esforço Geométrico compreende as contribuições do Almagesto, Ockham,

Cusa e, finalmente, Copérnico, com o De Revolutionibus, de 1543. Movia o cientista polonês

uma profunda crença na razão geométrica, nas órbitas circulares em torno do Sol, mas,

principalmente, a certeza de que sua ficção matemática, fortemente geométrica, era útil para

salvar os fenômenos, ou seja, para calcular as posições dos planetas. Ao mover a Terra,

mesmo admitindo que sua descrição era apenas apertius e não verum, Copérnico acompanha

o rumo definitivo das leis científicas: salvar fenômenos com a manutenção da generalidade,

preservando o contexto de coerência integral.

A verdade, contudo, não necessitará mais de uma adesão metafísica a um primaz ou a

um superior para a manutenção da coerência do discurso científico. É a própria geometria

euclideana, após o Mito de Euclides, que passando de dedutiva à descritiva, garante a

coerência da ciência moderna. Rompidos os limites do cosmos normativo por Digges e

Bruno, a identidade entre o espaço real e o espaço geométrico conduz à certeza de que os

axiomas de Euclides são verdades claras e indubitáveis (incluindo o Quinto Postulado) acerca

do próprio universo – um espaço infinito, descentralizado e sem propósito.

O cientista universal separa, pois, a Física da Metafísica. Aquela passa a encarregar-se

da causalidade em seu aspecto eficiente. Esta passa a ocupar-se da causalidade em seu aspecto

finalístico. O que antes se fazia necessário diante de um cosmos normativo, quando Física e

Metafísica compunham uma mesma investigação da realidade, doravante irão tomar caminhos

distintos, afastando-se pouco a pouco.

195 Expressão clássica em Filosofia da Ciência, tomada de Pierre Duhem, de sua obra “Salvar os Fenômenos: Ensaio sobre a Noção de Teoria Física de Platão a Galileu”, de 1908.

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Como não perceber uma Primeira Inflexão teórica na ciência, que passa de sacra a

universal? Ela se compõe de três etapas: uma fase de preparação, ou Esforço Geométrico; a

Inflexão propriamente dita; e uma fase de legitimação, ou Virada Física.

PRIMEIRA INFLEXÃO

Preparação: A eleição da ratio geométrica (Esforço Geométrico);

Almagesto – Ockham – Cusa – Copérnico

Inflexão: A superação da dicotomia apertius x verum (Mito de Euclides);

Digges – Giordano Bruno

Legitimação: O estabelecimento da física quantitativa (Virada Física).

Tycho Brahe – Galileu – Kepler – Newton

Tycho, Galileu, Kepler e Newton irão solapar as bases qualitativas da física

aristotélica, iniciando pela teoria tripartite da substância, sensível (perecível sublunar e eterna

supralunar) e suprasensível. A nova stella de Tycho, a supernova de 1572 que brilhou e

apagou, pertencia com certeza a um mundo supralunar perecível, pela falta de paralaxe. As

manchas solares de Galileu, que lhe custaram a vista nos derradeiros anos de vida,

comprovavam que há imperfeição no supralunar. As elipses de Kepler, que salvam a órbita de

Marte196, não prejudicam a simplicidade geométrica. Por fim, a gravitação universal de

Newton unifica os fenômenos terrestres e astronômicos sob a batuta da gravitação universal.

Após o Mito de Euclides, ocorreu, efetivamente, uma Virada Física, que estabelece a

física quantitativa em substituição à física qualitativa aristotélica. Newton passa a definir os

limites da ciência moderna, ao propugnar que tudo que não é deduzido dos fenômenos deve

ser chamado de hipóteses, e ‘hypothesis non fingo’. É suficiente que a gravidade explique o

‘como’ dos fenômenos, e isto basta ao cientista universal, que não deve se ocupar em

desvendar ou reverenciar o ‘porquê’ desta causa, que penetra nos centros exatos do Sol e dos

planetas, e que explica desde os fenômenos do céu até a queda de uma maçã.

196 Pode-se medir a excentricidade de uma órbita elíptica, comparando-se o afélio (a maior distância do planeta ao Sol) e o periélio (a menor distância do planeta ao Sol). Elipses excêntricas apresentam divergências significativas entre o afélio e o periélio, enquanto elipses suaves, o contrário. O planeta Vênus tem uma órbita praticamente circular, e nunca foi problemático para os astrônomos antigos: seu afélio é de 108 milhões de Km, e o periélio é de 107 milhões de km. Marte, ao contrário, revelou-se uma pedra no sapato dos cientistas antes de Kepler, incluindo Tycho: tem um afélio de 245 milhões de km, e o periélio de 203 milhões de km.

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Contudo, ao enfatizar o aspecto eficiente da causalidade em detrimento do aspecto

finalístico, uma grande crítica nasce à pretensão prometeica do cientista moderno. Qual a

consistência da conexão entre causalidade eficiente e certeza para que os prometeicos

propugnem saber antecipadamente todo o futuro? Em outras palavras, como um raciocínio no

indicativo pode engendrar uma conclusão no imperativo?

Coube a Kant, com o sintético a priori, fornecer as respostas que o espírito geométrico

dos cientistas modernos esperava ouvir. Assim como o Quinto Postulado era uma verdade

necessária e universal acerca do espaço real, as leis científicas eram verdades necessárias e

universais acerca dos fenômenos da realidade, que está representada segundo formas a priori

de nossa sensibilidade, as intuições puras do espaço e tempo.

E qual a relevância da correlação entre Geometria e Ciência? Claro que não houve um

mero acaso geográfico para que a ciência de leis gerais, preditivas e verdadeiras tenha

desabrochado entre os jônios herdeiros de Tales e não entre chineses, babilônicos, egípcios ou

maias. Entretanto, a resposta não se concentra apenas na relação entre a gênese de tal episteme

e a geometria grega, que tem natureza umbilical, mas também na observação de que as

mesmas etapas que constituem a Primeira Inflexão, quando a ciência passa de sacra a

universal (Esforço Geométrico-Inflexão-Virada Física), parecem repetir-se na Segunda

Inflexão, quando a ciência passa de universal a imperfeita.

SEGUNDA INFLEXÃO

Preparação: As geometrias não-euclideanas (Esforço Geométrico);

Gauss – Lobatchevsky – Bolyai – Riemann

Inflexão: A perda da crença na ordem universal da natureza (Convencionalismo);

Poincaré

Legitimação: O estabelecimento da relatividade (Virada Física).

Fitzgerald/Lorentz – Duhem – Relatividade Especial – Relatividade Geral

Em que pese a contribuição da matemática árabe com as primeiras críticas técnicas ao

Quinto Postulado, as quais somente foram possíveis pela união da geometria grega à

aritmética hindu, familiar ao infinito, e que constituem-se no fermento da descoberta das

geometrias não-euclideanas, esta pode ser creditada, sem maiores injustiças, a Gauss,

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Lobatchevsky, Bolyai e Riemann, no Segundo Esforço Geométrico que precede o

Convencionalismo.

Na ciência antiga, quando a geometria é dedutiva, florescem inúmeras críticas

estéticas ao Postulado das Paralelas (Possidônio, Ptolomeu e Proclo). Estas propõem a

substituição do Quinto Postulado por uma versão mais econômica, que não se parecesse tanto

com uma proposição do tipo teorema e se aproximasse mais da escrita simples dos outros

quatro postulados. Esta tentativa não passou despercebida por Aristóteles, que, nos Primeiros

Analíticos, confirma a circularidade de tal pretensão, quando a prova da existência das

paralelas é obtida mediante a assunção de premissas tais, onde é impossível negar a existência

das próprias paralelas.

Na ciência moderna, contudo, o ambiente é outro. O infinito encontra-se incorporado

ao espaço real, que se identifica com o espaço geométrico após o Mito de Euclides. Neste

ambiente, florescem não apenas críticas estéticas, mas críticas técnicas, que buscam

demonstrar a necessidade lógica do Postulado das Paralelas. O fracasso de tal projeto resulta

no desenvolvimento de novas geometrias. Estas quase nos foram legadas por Saccheri, que

preso a uma concepção moderna de mundo, não desenvolveu o seu quadrilátero, preferindo

defender a sua demonstração mediante reductio ad absurdum, deduzindo uma contradição da

negação do Quinto Postulado.

O Segundo Esforço Geométrico inicia-se com Gauss que, temendo o ‘clamor dos

beócios’, preferiu silenciar diante das polêmicas vindouras de tão inusitada geometria, uma

afronta a Kant e que certamente iria macular sua boa fama de ‘Príncipe dos Matemáticos’.

Lobatchevsky, por sua vez, publica suas descobertas acerca de uma geometria imaginária em

um obscuro jornal científico russo, o Mensageiro Kazan, que tem pouca ou nenhuma

repercussão na Europa.

Bolyai, filho de um professor de matemática que fora aluno de Gauss, era, além de

brilhante matemático, militar, violinista e um excelente esgrimista. Desafiou e venceu 13

oficiais militares sob a condição de que após cada duelo pudesse executar uma peça em seu

violino. Nada publicou além de um apêndice memorável de 26 páginas em um trabalho do

pai. Deixou, contudo, muitos manuscritos. Coube a Riemann, aluno de Gauss, uma

dissertação profunda acerca das Geometrias Não-Euclideanas, através da distinção entre

‘ilimitado’ e ‘extensão infinita’ e da noção de métrica à topologia. A partir de Riemann, as

novas geometrias deixaram de ser mera curiosidade matemática para serem estudadas,

aprofundadas e consideradas pela comunidade científica.

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Após o Segundo Esforço Geométrico, Poincaré, com o Convencionalismo, irá

questionar a natureza dos axiomas geométricos: seriam eles juízos sintéticos a priori,

verdades experimentais ou convenções? Tal pergunta se faz necessária diante da aparente

incompatibilidade entre o kantismo e as novas geometrias. Mas ela tem um alcance

epistemológico muito denso, que reverbera, dentre outros debatedores, em Kuhn (Marcha

Contínua x Ruptura Revolucionária), Quine (Convencionalismo x Ciência Total) e no Círculo

de Viena (Intuicionismo x Empirismo Lógico), para ficar entre os citados nesta dissertação.

Mesmo sem romper totalmente com Kant, devido a sua filiação ao intuicionismo

aritmético, já que Poincaré admite o ‘raciocínio por recorrência’ como um verdadeiro juízo

sintético a priori, a resposta do filósofo francês aponta para o caráter convencional dos

axiomas geométricos, que não são juízos sintéticos a priori e, muito menos, verdades

experimentais. No primeiro caso, a negação do Quinto Postulado conduziria, por reductio ad

absurdum, a um corpo teorético inconsistente, o que não se verifica nas geometrias não-

euclideanas, tão consistentes quanto à euclideana.

Quanto à questão de assumir que os axiomas geométricos são verdades experimentais,

o Convencionalismo leciona que uma geometria não se ocupa da semântica entre os termos

simbólicos e a realidade, numa relação de correspondência, mas da sintaxe das regras que

delimitam os arranjos simbólicos, num ambiente de coerência. Nesse sentido, não há

geometrias verdadeiras e falsas, mas consistentes e inconsistentes. O experimento mental do

mundo não-euclideano proposto por Poincaré conduz à conclusão de que a experiência é

apenas um guia que indica qual a geometria mais cômoda a ser convencionada, mas nunca um

a priori, de forma a decidir que geometria é mais verdadeira do que outra.

O Convencionalismo marca posição frente a três temporais (no sentido do alcance de

suas obras) da Filosofia Contemporânea: Kuhn, com sua Ruptura Revolucionária, irá

contrapor-se à tese da Marcha Contínua; Quine, com sua Ciência Total, irá contrapor-se à tese

de que os axiomas geométricos são convenções insensíveis a experiências; e o Círculo de

Viena, com seu Empirismo Lógico, irá contrapor-se à tese de que o sintético a priori é

possível na Aritmética.

Como na Primeira Inflexão, verifica-se, na Segunda Inflexão, uma Segunda Virada

Física, quando a física quantitativa cede lugar à física relativística. Contudo, é possível

reconhecer os vestígios das teorias passadas nas teorias seguintes, pois a evolução da ciência

se dá como a evolução de um ser vivo, e não como o progresso das cidades.

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As novas teorias podem ser comparadas às anteriores, mas não no sentido de que

aquelas são verdadeiras e estas, falsas, como um cientista moderno ousaria proferir, mas no

sentido de que aquelas são mais verdadeiras do que estas. A Teoria da Relatividade Geral, por

exemplo, não derroga a Teoria da Relatividade Especial. Esta, por sua vez, não invalida a

Mecânica Clássica. Este é o mais belo destino de uma boa teoria científica, a antiga continua

como um caso particular da seguinte.

Assim, em nosso planeta, a Mecânica Clássica continua como uma aproximação

excepcionalmente válida dos fenômenos dinâmicos, já que nem a velocidade de translação de

nosso sistema referencial é suficientemente alta para que o fator de contração de Lorentz

possa ser considerado, segundo a TRE; nem o campo gravitacional a que estamos submetidos

é suficientemente forte para que a curvatura dos raios luminosos possa ser considerada,

segundo a TRG.

Logo, na ciência contemporânea, as teorias seguintes são apenas mais verdadeiras do

que as anteriores, pois o sentido, antigo e moderno, de que a verdade está circunscrita à

correspondência entre verbum e res, cede vez ao sentido contemporâneo de que há maior

verdade quando a coerência entre logos e rerum relationes açambarca relações antes ocultas à

teoria passada.

A experiência do salto da pulga talvez possa clarificar a evolução da ciência e o

sentido contemporâneo da verdade para o cientista imperfeito. Ela se encontra no clássico As

Nuvens, de Aristófanes.

DISCÍPULO: Há pouco tempo Sócrates perguntou a Cairefon quantas vezes o tamanho de suas patas uma pulga salta (ela tinha picado Cairefon na sobrancelha e pulado até a cabeça de Sócrates).

STREPSIADES: E como ele mediu o pulo?

DISCÍPULO: De uma maneira muito engenhosa. Ele derreteu cera e em seguida, pegando a pulga, pôs a cera nas duas patas dianteiras dela; quando a cera esfriou formou as botas da Pérsia nas patinhas da pulga; depois mediu a distância com elas.

STREPSIADES: Quanta finura de espírito! (ARISTÓFANES, 2000, p.22).

Para Poincaré, a ciência falha quando se propõe a estabelecer a semântica dos

símbolos. Assim, é claro que o conceito de espaço muda entre a ciência sacra e a ciência

imperfeita. Nesse sentido, pode-se perceber a intradutibilidade dos conceitos científicos,

aqueles que quiseram estabelecer a correspondência entre verbum e res. Contudo, quando a

ciência se propõe a clarificar a sintaxe das relações simbólicas, ela se apresenta como um

campo fértil de vestígios.

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Como deixar de perceber a noção de métrica, algo que persiste na ciência antiga,

moderna ou contemporânea: seja a ‘bota da Pérsia’ do cientista antigo, seja o ‘diferencial’ de

Newton do cientista moderno, seja a ‘congruência’ de Riemann do cientista contemporâneo?

Claro que, como a ‘bota da Pérsia’ de Sócrates e o ‘diferencial’ de Newton permanecem como

casos particulares da congruência de Riemann, a ciência contemporânea é mais verdadeira do

que a moderna, que, por sua vez, é mais verdadeira do que a antiga, no sentido de que, agora,

mais relações são clarificadas.

Haverá fim para a caminhada da ciência, de forma que o conjunto de leis gerais,

preditivas, verdadeiras se torne definitivo? Talvez não, mas esta é uma questão muito

complicada para ser respondida por dois advérbios. Poincaré admitiu que pelo menos esta

previsão, a de que a ciência continuará a sua caminhada ioética sem fim é definitiva.

O objetivo desta dissertação, contudo, não é responder a questão acima, mas destacar a

relevância da correspondência entre Geometria e Ciência. Ela pode ser atestada não somente

pela correspondência entre a Geometria Dedutiva e a Ciência Sacra, entre a Geometria

Descritiva e a Ciência Universal, e entre a Geometria Convencional e a Ciência Imperfeita,

mas também pela similitude de etapas nas duas Inflexões da Ciência.

A imagem de Ésquilo é apropriada. O cientista antigo, hefestiano, nutre um profundo

respeito às coisas do pai. O cientista moderno, prometeico, nutre uma típica pretensão de

conhecer antecipadamente todo o futuro. O cientista contemporâneo, ioético, substitui a

pretensão de Prometeu pela desilusão de Io, que admite a zombaria diante das doces

esperanças acenadas e logo depois desditas.

A ciência imperfeita, tal como Io em Prometeu Acorrentado, percorre um caminho

sem fim197. Quem poderá, contudo, descartar uma nova inflexão teórica na ciência? As

Geometrias Smarandache, ainda em estudo, parecem sugerir um novo status para os axiomas

geométricos, de convencional a híbrido. Segundo Kuciuk e Antholy (2003), um axioma é dito

‘Smarandachely denied’ se o axioma se comporta pelo menos, de duas maneiras distintas, em

um mesmo espaço (válido e inválido, ou somente inválido, mas de modos distintos). Uma

Geometria Samarandache é aquela que possui pelo menos um axioma não-smarandacheano, e

serve para a leitura de espaços heterogêneos.

Estaríamos pondo um fim à correria desatinada de Io, ou acelerando-a?

197 Io cumpre uma correria desatinada, fugindo de um moscardo que a pica incessantemente e que fora mandado por Hera, em mais uma de suas vinganças de ciúmes.

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