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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JULIANO DA ROSA COMIDA E ARTE: A FORMAÇÃO DE CHEF DE COZINHA EM CURITIBA (1960-2007) CURITIBA 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

JULIANO DA ROSA

COMIDA E ARTE: A FORMAÇÃO DE CHEF DE COZINHA EM CURITIBA

(1960-2007)

CURITIBA

2008

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JULIANO DA ROSA

COMIDA E ARTE: A FORMAÇÃO DE CHEF DE COZINHA EM CURITIBA

(1960-2007)

Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, do Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos.

CURITIBA

2008

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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, Edite e Ernani, por todo apoio e incentivo

dado não só na construção dessa pesquisa, mas principalmente por todo

período da graduação. A minha mãe por ser uma verdadeira guerreira e um

exemplo de como se deve superar obstáculos ao longo da vida e ao meu pai

por ser meu maior exemplo de comprometimento e dedicação profissional.

A minha namorada, amiga e conselheira Carol (A Lindíssima), por todo

apoio e companheirismo em todos os aspectos possíveis ao longo desses 13

meses em que estamos juntos.

A minha irmã, Mariana, que foi fundamental na formação da pessoa que

sou e que é uma mistura positiva de nossos pais.

A minha avó, Nelci, pelas infinitas horas de oração dedicada a mim e

aos conselhos sábios e prudentes.

Ao meu orientador, Prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos, por

toda a contribuição que foi, indiscutivelmente, essencial para o término dessa

pesquisa.

Ao Prof. Dr. Antonio César, grande responsável pelo ponta-pé inicial

desse trabalho, assim como pelas suas férteis sugestões e “puxões de orelha”.

A minha mudança residencial que me trouxe inspiração para produzir

esse trabalho.

Aos amigos de Pontal pelas intermináveis horas em reuniões

descontraídas regadas a muita cerveja.

Aos amigos da Reitoria por importantes momentos no convívio

acadêmico.

Ao Glorioso, a quem recorri nas horas em que não me julgava capaz de

elaborar este trabalho.

E a todos os que torceram pelo sucesso e finalização deste projeto.

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E agora, José? A festa acabou

(...)

Carlos Drummond de Andrade

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SUMÁRIO

RESUMO .................................................................................................................VI

ABSTRACT .............................................................................................................VIII

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1: HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA ............................................................... 6

1.1 A HISTORIOGRAFIA DA ALIMENTAÇÃO .......................................................................6

1.2 CURITIBA: CRESCIMENTO ECONÔMICO, POPULACIONAL E MODERNIZAÇÃO .........11

CAPÍTULO 2: EVOLUÇÃO DA GASTRONOMIA E A ARTE NA COZINHA ....................... 15

2.1 EVOLUÇÃO GASTRONÔMICA.............................................................................. 15

2.2 COZINHA COMO ARTE ...............................................................................................22

CAPÍTULO 3: INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS E A FORMAÇÃO DO CHEF ..................... 26

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................41

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 43

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RESUMO

A presente pesquisa tem como objeto de estudo o processo histórico, social e cultural de valorização do chef de cozinha, tomando como caso a experiência da Escola SENAC de Curitiba. Nesse sentido, acreditando-se que existe atualmente um aumento significativo na valorização do profissional da cozinha, uma verdadeira febre pela culinária e pela gastronomia, parto do princípio de que é fundamental estudar o seu principal representante. Pretende-se a partir daí, compreender a(s) causa(s) que levaram a essa repentina valorização, assim como traçar e identificar o perfil do cozinheiro dos anos 1960 e do profissional atual, além de descrever a evolução do processo histórico regional e nacional. Como fonte de estudo analisa-se os relatórios anuais gerais do SENAC de Curitiba referente ao “Curso de ensino profissional para a formação de pessoal de restaurante”. Esses relatórios contêm os objetivos do curso, suas disciplinas, o rendimento dos alunos, aprovações, desistências, reprovações, idade, escolaridade etc. O quadro teórico-metodológico que serve de apoio para realização dessa pesquisa é composto pelo trabalho de Nobert Elias, O processo civilizador: uma história dos costumes, na qual trabalha com a idéia de que a teatralização na partilha do alimento e o ritual à mesa são formas de distinção social.

Palavras-chave: História da Alimentação; Chef de cozinha; Curitiba.

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ABSTRACT

This research has as a study object the historical, social and cultural process of the valorization of the chef, taking the case of the experience of the school SENAC from Curitiba. In this matter, believing that there is today a significant increase at the valorization of the kitchen professional, a real culinary and gastronomical fever, I stand from the principal that studying it’s manly representative is a must. Aiming from that point on, to comprehend the cause(s) that took to this sudden valorization, as well as point and identify the profile of the cook from 1960 and the professional from nowadays, besides describing the evolution of the historical regional and national process. As a document of study will analyze the annual general reports of the SENAC from Curitiba referring to “Curse of professional teaching to the formation of restaurant staff”. This reports have the objectives of the curse, it´s subjects, approvals, cancellations, failures, ages, prior school records etc. The theory and methodology that serves as ground to the making of this research is utilizes from the work of Nobert Elias, The Civilizing Process: Sociogenetic and Psychogenetic Investigations, in witch he exposes the idea that the theatralization in the share of the food and the ritual at the table are was of social distinction.

Key-words: History of Alimentation; Kitchen Chef; Curitiba.

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INTRODUÇÃO

O trabalho proposto possui seu tema e objeto inserido na chamada

História e Cultura da Alimentação, campo de estudo relativamente novo dentro

da historiografia brasileira.

Tal campo tem como pressuposto a idéia de que comer não é

somente uma necessidade biológica, mas também um ato social no qual estão

embutidos representações e valores. Os gostos das sociedades e dos

indivíduos são, como defende Ariovaldo Franco, moldados pela cultura as

quais pertencem. “Os homens comem o que e como a sociedade os ensinou,

dessa maneira, a alimentação diz muito sobre a educação, a civilidade e a

cultura das sociedades”1. Como afirma Luís da Câmara Cascudo: “Comemos

não o substancial, mas o habitual, o lícito pela norma”2.

Paralelamente a ascensão do estudo da alimentação na História,

percebe-se um aumento significativo na valorização do profissional da cozinha.

A arte da culinária vem atraindo cada vez mais adeptos. Existem hoje diversas

revistas (Gula, Mesa Pronta, Claudia Cozinha, Alta Gastronomia, Água na Boca

etc.) e programas televisivos (Mesa para dois, Menu Confiança, Em casa com

Jamie Oliver etc.) que tratam apenas do universo da culinária e gastronomia.

Diversos cursos gastronômicos surgiram nos últimos anos. Temos, como

exemplo, o curso de chef de cozinha iniciado pelo Centro Europeu no ano de

2002 e o Espaço Gourmet de Curitiba iniciado no ano de 2005, além do curso

de gastronomia iniciado pela universidade PUC no ano de 2008.

Nesse sentido é interesse refletir sobre a imagem do chef de cozinha.

Se antes existia a figura do cozinheiro, agora se percebe que tal ocupação

transitou do campo de mera profissão para o campo da arte. O chef passa a

ser tido como um verdadeiro artista. A cozinha altera seus aspectos, não

possui mais como característica principal a nutrição, mas sim adota um novo

conceito: O gosto no sentido do bom gosto. Se antes os sentidos principais na

cozinha eram o olfato e o paladar, agora passa a ser o olhar. Assim, como

1 FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: Uma história da gastronomia. São Paulo: SENAC,

2001. p. 12. 2 CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. p. 28.

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quadros, pinturas e esculturas, a cozinha passa a ser um ateliê onde se

produzem verdadeiras obras de arte.

Para Maria Leonor de Macedo, o chef de cozinha deve ser um artista e

um administrador. Suas tarefas consistem em realizar compras de cada dia,

planejar os menus e distribuir o trabalho entre o pessoal da cozinha. Também

deve supervisionar a execução dos pratos. “O chef precisa, portanto, ter

sensibilidade artística, paladar muito apurado e também conhecimento de

todos os assuntos da cozinha”3.

Este ganho de evidência da gastronomia no cenário nacional se deve,

como defende Fernando Carvalho de Almeida, a dois principais fatores: a

gradativa absorção brasileira de valores europeus devido a abertura econômica

mundial dos anos 1990 e a entrada no Brasil de redes hoteleiras de nível

internacional. Ainda segundo Almeida, a profissão da gastronomia cresce à

medida que o Brasil investe no turismo, setor em franca expansão mas que

ainda carece de grandes investimentos4.

A proposta de se elaborar uma pesquisa em torno do chef de cozinha

– este como artista e o trabalho na cozinha como arte - se deve à busca em

compreender a(s) causa(s) que levaram a essa repentina valorização desse

profissional, o fato de ser um estudo inédito e original, assim como identificar o

perfil do cozinheiro dos anos 1960 e do profissional atual. A escolha desse

tema se deve também pela associação de duas grandes paixões: o gosto pela

História e pela gastronomia.

Como colocado então, o objeto de trabalho é o processo histórico,

social e cultural de valorização do chef de cozinha, tomando como estudo a

experiência da Escola SENAC de Curitiba. Se hoje existe uma verdadeira febre

pela cozinha, pela culinária e pela gastronomia, parto do princípio de que é

fundamental estudar o seu principal representante, o chef de cozinha, para

buscar compreender como e por que ocorreu a valorização desse profissional.

Para tanto pretendo traçar e identificar o perfil do cozinheiro dos anos 1960 a

3 LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. História da Gastronomia. Rio de Janeiro: Editora SENAC,

1998. p. 129/130. 4 Assessoria de Comunicação da Universidade do Sagrado Coração – USC. Disponível em:

http://www.usc.br/enfoque_online/agosto_2005/agosto_entrevista.htm Acesso em 2 de junho de 2008.

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partir da escola SENAC (primeiro curso de cozinha da cidade) e diferenciá-lo

do profissional atual. Segundo Fernando Carvalho de Almeida, o SENAC foi o

embrião dos cursos brasileiros de Gastronomia. Além deste objetivo central,

pretendo descrever a evolução do processo histórico regional e nacional.

Como colocado acima, parto do princípio de que a alimentação não

representa somente função biológica, mas também um retrato de uma

determinada cultura, representando hábitos e valores de um determinado povo.

Nesse aspecto simbólico do alimento, partindo também da idéia de que a arte

da culinária só é acessível a um restrito grupo de pessoas, entendo que o ritual

a mesa são formas de distinguir os diferentes grupos sociais, ou melhor, a

teatralização na partilha do alimento, o comportamento a mesa e os alimentos

a serem ingeridos se tornaram formas de distinção social. Com essa

valorização na elaboração das refeições, o cozinheiro, responsável pelas

inovações gastronômicas, obteve também uma valorização de sua função

perante a sociedade. Utilizando-se dessa concepção, adoto como referencial

teórico-metodológico a obra “O processo civilizador: uma história dos

costumes”5 de Nobert Elias. Nela o autor define e expõem o que é

comportamento civilizado do homem no Ocidente.

Segundo Elias, essa distinção social foi um reflexo de um conceito

ocidental denominado civilité6 que além de manifestar os fundamentos sociais

europeus, foi a base para a nova formação social – a sociedade cortês. As

modificações dos costumes foram causadas “devido à ascensão de elementos

burgueses na sociedade da época e as necessidades vistas pelas cortes em

criarem novos padrões de conduta para se distinguirem das outras camadas

sociais7”. O documento analisado por Elias é o pequeno tratado de Erasmo de

Roterdão - De civitate morum puerilium (Da civilidade dos costumes das

crianças) - que apareceu em 1530. Seu tratado trabalha o comportamento do

homem em sociedade, dessa maneira, Roterdão estrutura seu tratado em sete

capítulos: “o primeiro trata da condição decente e indecente de todo o corpo, o

segundo dos cuidados do corpo, o terceiro do comportamento no templo, o

5 ELIAS, Nobert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. 6 ELIAS, op. cit. p. 103 - 106. 7 ELIAS, op. cit. p. 109-111.

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quarto dos banquetes, o quinto das reuniões, o sexto dos divertimentos e o

sétimo do quarto de dormir”.

Pretendendo responder à problemática da pesquisa, utilizo-me como

fonte principal os relatórios anuais gerais do SENAC (Serviço Nacional de

Aprendizagem Comercial) de Curitiba a partir do ano de 1961. Esses relatórios

existem porque é dever da administração regional estadual elaborar um

relatório e enviá-lo à administração nacional do SENAC no final de todos os

anos, mencionando a situação de suas finanças, projetos, corpo docente,

estrutura, faturamento, admissão e demissão de funcionários, pautas de

reuniões etc.

São analisados os relatórios anuais no que se refere ao curso de

cozinheiro do SENAC, na época intitulado “Curso de ensino profissional para a

formação de pessoal de restaurante”. Nesses relatórios constam os objetivos

do curso, suas disciplinas, o rendimento dos alunos, aprovações, desistências,

reprovações, idade, escolaridade etc. Como colocado acima, os relatórios que

serão analisados datam a partir do ano de 1961, ano em que foi aprovada a

construção do restaurante-escola - projeto audacioso e pioneiro no Brasil.

Esses arquivos serão analisados com o intuído de identificar o perfil do

cozinheiro dos anos 60 e diferenciá-lo do cozinheiro atual. Dessa maneira,

perceber a partir dessa documentação o processo histórico, social e cultural de

valorização do Chef de Cozinha em Curitiba a partir da experiência da Escola

SENAC.

Tais arquivos se encontram conservados em bom estado em caixas

especiais no acervo do SENAC de Curitiba (Rua André de Barros, 750 Centro)

e foram disponibilizados mediante uma solicitação, assinada pelo orientador

Carlos Roberto Antunes, que esclarece os motivos e os objetivos da pesquisa.

Cada relatório anual possui cerca de 150 páginas. Além dos arquivos do

SENAC de Curitiba, pretendo utilizar fontes orais, mais especificamente

profissionais na área da cozinha.

O trabalho é dividido em três capítulos. O primeiro trata sobre dois

assuntos, inicialmente relato a tomada da alimentação como objeto dentro da

História, assim como a produção historiográfica mais marcante, internacional e

nacionalmente, desde a Escola dos Annales até as produções acadêmicas dos

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últimos anos. A segunda parte do primeiro capítulo relata as transformações

políticas, econômicas, culturais e sociais em Curitiba dos anos de 1940 a 1960,

década em que surge o primeiro curso de cozinha da capital paranaense.

O segundo capítulo refere-se a evolução da gastronomia e da

concepção da comida como expressão artística. Já no terceiro e último capítulo

ocorre a análise documental disponibilizada pelo SENAC assim como a

utilização de fontes orais. Nesse sentido, percebe-se a tentativa no

descobrimento do processo de valorização do chef de cozinha, assim como

características gerais na sua atuação.

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CAPÍTULO I

HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

1.1 A HISTORIOGRAFIA DA ALIMENTAÇÃO

A importância da alimentação é comumente associada à garantia de

sobrevivência dos seres vivos e ao cotidiano, por fazer parte da rotina de cada

indivíduo. “O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de

permanências e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências

na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos.

Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes

aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações”8. Partindo dessas

considerações, os estudos relacionados à História e Cultura da Alimentação,

entendem a comida e o comer como um universo no qual se preserva de forma

mais habitual e até mesmo afetiva, tradições sociais, sejam elas coletivas e ou

familiares9.

Dessa forma, a ampliação do conceito de cultura, principalmente no

âmbito da antropologia, contribuiu para que nos estudos da História da

Alimentação fosse acrescentada a análise do gosto alimentar, fator

fundamental para a ampliação da noção de alimento. Nesse contexto, o

alimento é tido mais do que como fonte de alimentação e nutrição, abrangendo

seu significado na experiência de vida individual e coletiva10.

No Brasil, a História da Alimentação tem encontrado cada vez mais

adeptos entre os historiadores, engajados nas novas e fecundas vias da

interdisciplinaridade, em que inéditos campos se abrem a todas as dimensões

cronológicas11.

8 SANTOS, C. R. A. dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates. Curitiba, n°. 42 p. 13, 2005. p. 12. 9 CORÇÃO, M. Os tempos da memória gustativa: Bar Palácio, patrimônio da sociedade curitibana (1930-2006). Curitiba, 2008. Dissertação (Mestrado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. p. 5. 10 Ibid., p. 4. 11 SANTOS, op. cit,. p. 5.

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A alimentação passou a ser objeto de estudo nas Ciências Humanas,

mais especificamente nos Annales, quando os historiadores Marc Block e

Lucien Fevre, representantes da Primeira Geração, pensaram em trabalhar a

história da alimentação como parte integrante da Encyclopédie Française de

Febvre, cuja foi publicada ao final da década de 193012.

Nesse contexto, os estudos a respeito da alimentação social abarcavam

uma exaustiva análise de fontes quantitativas associadas a questões de

estabelecimento de cidades. Já na segunda geração dos Annales, dois

trabalhos foram bastante representativos no tocante à questão alimentar: as

obras dos historiadores Fernand Braudel e Ernest Labrousse. O volume um da

obra de Fernand Braudel denominada Civilização material, economia e

capitalismo, publicada em Paris em 1979, enquadrou-se nos estudos da

História e Cultura Material; nela, o historiador francês dedicou um capítulo

inteiro aos gêneros alimentícios, como o trigo, o arroz e o milho, do século XV

ao XVIII, enquanto produtos representantes da vida cotidiana13.

Na seqüência, a tese de Ernest Labrosse de 1944, e que anos mais

tarde foi inserida na chamada História Quantitativa, abordou a respeito da crise

econômica francesa que se instaurou no século XVIII, em função de uma má

colheita, cujo reflexo negativo se estendeu do meio rural para os grandes

mercados e para a indústria14.

A partir da década de 1970, o interesse pela temática alimentar tomou

corpo15 e, no ano de 1974, a obra Faire de l’histoire, organizada por Jacques

Le Goff e Pierre Nora propôs pensar a História através de outros tipos de

história, dentre as quais a micro-história, em contraposição a uma história

absoluta do passado. Nessa perspectiva, historiadores como Jean-Louis

Flandrin e Jean-Paul Aron, passaram e se ocupar dos estudos sobre

alimentação, os quais têm apresentado significativo crescimento na própria

Academia francesa. Tendo resultado em publicações traduzidas no Brasil

12 BURKE, P. A Escola dos Annales (1929-1989). São Pauo: Editora da UNESP, 1997. p. 60. 13 BRAUDEL, F. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 89-236. 14 BURKE, op. cit,. p. 68. 15 CARVALHO, D. A. Das casas de pasto aos restaurantes: os sabores da velha Curitiba (1890-1940). Curitiba, 2005. Dissertação (Mestrado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. p. 01

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desde a década de 1990, estão as obras História da Alimentação, organizada

por Jean-Louis Flandrin e Massimo Montanari, A gastronomia francesa, de

Jean-Robert Pitte e a Invenção do restaurante, de Rebecca Spang. Ainda nos

anos 70, temos como destaque a obra de Jean-François Revel, Um banquete

de palavras, traduzida e publicada no Brasil em 1996, na qual o autor

persegue as duas faces da gastronomia – a popular e a erudita – e revela que

as grandes fontes da história da sensibilidade gastronômica são a literatura e a

arte. “Nesse sentido, para Revel, a cozinha é arte desde que s considere a

representação dos sabores. A cozinha, para o autor, é o universo onde

convivem intuição, sensibilidade, imaginação e criatividade, permitindo

múltiplas dimensões e integrações”16.

A Micro-história engendrada dentro da História Cultural, constiui

resultado de debate intelectual e historiográfico, nas quais os modelos de

história totalizante foram questionados e, revisados, surgindo como embate

crítico a então vigente história das mentalidades. A proposta deste tipo de

análise é reduzir a escala de exame, perceber tanto as mais discretas nuances

quanto a pluralidade do contexto espaço-tempo, avaliados de forma a fugir de

explicações generalizantes17. Essa nova escola traz como conquistas a

ampliação do documento histórico (antes só documentos oficiais serviam de

fonte, agora são de todos os tipos, documentos orais, estatísticas, curva de

preços, fotografias, filmes, receitas etc.) além o estudo de novos objetos (não

somente a alimentação, mas também o corpo, o gesto e as imagens).

No Brasil, as publicações e pesquisas desenvolvidas a respeito da

História da Alimentação são bastante pontuais ou inseridas num contexto mais

amplo de abordagem. Gilberto Freyre foi o primeiro autor a mostrar maior

preocupação com o tema, através da publicação de Açúcar18, em 1939.

Inovando no uso das fontes e na interpretação dessas, pela influência cultural

norte-americana do período, ela busca uma identidade nacional a partir da

civilização do açúcar no Brasil: a sacarocracia, que muito influenciou nos

hábitos alimentares brasileiros19. A obra de Sérgio Buarque de Holanda,

16 SANTOS, op. cit,. p. 14. 17 CORÇÃO, op. cit,. p. 6. 18 FREYRE, G. Açúcar. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 19 CORÇÃO, op. cit,. p. 7.

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Raízes do Brasil20, também enfoca perspectivas dos hábitos alimentares com

a inserção destes no espaço geográfico, social e à cultura material.

As contribuições de Buarque de Holanda e Freyre são relevantes na

medida em que representaram inovações na historiografia brasileira, a qual

passa a valorizar a própria cultura nacional em sentidos múltiplos. A percepção

desses autores está relacionada ao período da história brasileira em que se

convergia para o resgate, ou pode-se dizer, para a descoberta de uma cultura

nacional, na qual busca a compreensão da formação da identidade nacional,

abordando os aspectos culturais21.

Em 1967, Luís da Câmara Cascudo publica História da Alimentação

no Brasil22, uma imensa obra, a mais completa sobre o tema, escrita em dois

volumes tratando do cardápio indígena, dieta africana, ementa portuguesa e

cozinha brasileira. Nessa obra, Câmara Cascudo, sociólogo e folclorista

brasileiro, afirma “que todos os grupos humanos tem uma fisiologia alimentar. A

fidelidade do paladar, fixado através de séculos na continuidade alimentar é

uma permanente tão arraigada que já pode ser biológica”23. Ao longo de seus

estudos a respeito da cultura popular, Cascudo reuniu material para analisar os

hábitos alimentares cotidianos brasileiros, num contexto, acusado por ele, de

extrema mudança no cotidiano dos indivíduos, trazidas com as inovações da

crescente urbanização e o desenvolvimento de industrial alimentícia.

A partir de determinação das três raças formadoras brasileiras –

português, negro e índio – o autor traça determinadas influências de cada um

nos hábitos alimentares brasileiros. A obra publicada em 1967 constitui,

segundo o autor, uma tentativa sociológica da alimentação com base histórico-

etnográfica, sendo considerada por pesquisadores como Henrique Carneiro,

como pertencente ao campo sócio-folclórico24.

Entendendo que a comida desperta lembranças que permitem

reconstruir a memória, o que possibilita redefinir e reconstruir identidades,

temos o importante texto de Roberto Da Matta, Sobre o simbolismo da

20 HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. 21 CORÇÃO, op. cit,. p. 8. 22 CASCUDO, L. da C., História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1983. 23 SANTOS, op. cit., p. 17. 24 CARNEIRO, H. Comida e sociedade. Uma História da Alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003. p. 155-156.

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comida no Brasil, publicado em 198725. Da Matta defende a idéia de que a

comida tem o papel de destacar identidades e, conforme o contexto das

refeições elas podem ser nacionais, regionais, locais, familiares ou pessoais.

Em 1995, o prof. Dr. Carlos Roberto Antunes dos Santos publica

História da Alimentação no Paraná26, marco do início de estudos mais

centrados na perspectiva metodológica da História. Nessa publicação, Antunes

traça os dados de abastecimento alimentício do Paraná Província. Desde essa

pesquisa, Carlos Antunes tem feitos orientações do tema de História e Cultura

da Alimentação em pesquisa nos cursos de graduação e pós-graduação em

História na Universidade Federal do Paraná. Dentre esses trabalhos, podemos

colocar como exemplo as dissertações de Daniele Saucedo (sobre a fusão dos

espaços públicos e privado no Restaurante Bologna) e de Juliana Reinhardt

(sobre o fortalecimento da tradição proporcionado pela memória gustativa,

através da ingestão de pães e das bolachas produzidas e comercializadas pela

Padaria América, 1913), bem como as teses de Maria Cecília Pilla (sobre as

boas maneiras à mesa e seus desdobramentos) e a de Suely Amorim (sobre as

práticas alimentares infantis no Brasil).

Esses trabalhos compõem uma série de objetos de pesquisa que vêm

dispertando o interesse entre outros historiadores, sociólogos e nutricionistas,

no tocante à construção de projetos de pesquisa de caráter interdisciplinar na

História.

Tendo como foco principal pratos e receitas mais importantes e

populares de cada região, o livro Cozinha brasileira (com recheio de história),

de autoria do historiador Ivan Alves Filho, publicado em 2000, trata da

historicidade às cozinhas locais e regionais.

Ainda que exista alguma produção historiográfica no Brasil, seu volume

ainda é muito pobre se comparado com o ativo mercado editorial nos países

europeu.

25 SANTOS, op. cit., p. 18. 26 SANTOS, C. R. A. dos. História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Farol do Saber, 1995.

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1.2 CURITIBA: CRESCIMENTO ECONÔMICO, POPULACIONAL E

MODERNIZAÇÃO

Decorrente do grande aumento da participação na produção cafeeira

nas décadas de 1940 e 1960, o Estado do Paraná contraiu um grande aporte

de capitais, tendo condições suficientes para investir no desenvolvimento não

só da agricultura como também da indústria.

Nesse período, a expansão das fronteiras agrícolas paranaenses se

acentuou e promoveu a ocupação extensiva e intensiva de todas as regiões

interioranas do Estado, contribuindo para a formação de um perfil de

distribuição populacional mais equilibrado e disperso. Dessa forma, no início da

década de 1970, o município de Curitiba era o mais populoso do Paraná27.

O extrativismo e a agricultura foram, aos poucos, se desdobrando no

avanço agroindustrial e na implantação de um complexo metal-mecânico

composto por modernas indústrias de telecomunicações e mecânica, e de

elevada escala de produção, como a produção química, em especial o refino

de petróleo28. Nesse sentido, acontece uma união entre governo e iniciativa

privada para o aumento da produção agrícola e industrial, desenvolvendo um

planejamento regional muito superior aos existentes no Brasil.

Paralelamente a esse desenvolvimento econômico e político, além da

construção de um planejamento para a capital paranaense, Curitiba se

organizava em torno e interesses intelectuais, justificando a fama adquirida de

cidade universitária.

Em meados de 1940, a prefeitura deu início às atividades urbanísticas

de Curitiba. O planejamento urbano tomou por base o plano diretor criado a

partir da construção de Goiânia, pelo urbanista francês Alfredo Agache,

membro da Société Française des Urbanistes e autor de trabalhos similares no

Rio de Janeiro, em São Paulo e em Santos.

27 DANSKI, Mitzy Tannia Reichembach. História e Alimentação: O advento do fast food e as mudanças dos hábitos alimentares em Curitiba (1960-2002). Curitiba, 2007. Tese (Doutorado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. p. 61. 28 Ibid., p. 61.

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O Plano traçou diretrizes para o desenvolvimento da cidade,

fundamentadas em rigorosa técnica urbanística. Vale ressaltar que a

modernização urbana de Curitiba se fez num contexto nacional de “ascensão

das forças burocrático-militares e de fortalecimento da ideologia do

planejamento racional e, especialmente, da crença no poder da Arquitetura e

do Urbanismo no ordenamento do espaço e na transformação do

comportamento das camadas mais pobres da população”29. Curitiba passava

então, na década de 1950, de uma cidade modesta para uma verdadeira

capital com 600.000 habitantes.

As políticas de saneamento, povoamento e transporte foram seguidas

de investimentos e convênios na área de educação e cultura, que

compreendiam, entre outras medidas, a construção de centenas de escolas

primárias, bem como programas de orientação aos professores para suprir as

necessidades vigentes. Em Curitiba, a exemplo do que ocorria no mundo

ocidental do Pós-Guerra, para uma parte cada vez maior da população, a

infância passou a ser a idade de brincar e a escola substituiu o trabalho como

principal ocupação.

A idéia de modernização foi se sofisticando, empenhando-se ainda pelo

embelezamento e do aparelho cultural. Como coloca Dennison de Oliveira30,

datam dessa época obras como o Teatro Guaíra e a Biblioteca Pública. Além

disso, o novo Código de Posturas (1953) foi positivo para o avanço da

legislação municipal sobre o meio ambiente, quando dispôs, entre outras

coisas, sobre a abertura de logradouros públicos destruidores de cobertura

vegetal, controle sobre o destino do lixo, extração de areia etc. Para efeitos de

planejamento urbano, o final dos anos 1950 assistiu ainda à criação da

Comissão de Planejamento (COPLAC), cujo objetivo era controlar

espacialmente o desenvolvimento da cidade.

Além da movimentação cultural no âmbito regional, é necessário levar

em conta também, mudanças significativas de hábitos que vinham ocorrendo

no mundo, naquele momento pós-guerra, como a introdução da mulher no

trabalho, movimento que logo foi aderido no Brasil.

29 Ibid., p. 62. 30 OLIVEIRA, Dennison de. Curitiba e o Mito da Cidade Modelo. Curitiba, Editora da UFPR, 2000.

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Com o trabalho exigindo cada vez maior especialização, se afastando

cada vez mais do local de moradia dos indivíduos, com as mulheres fora de

casa concorrendo às vagas de trabalho, entre outras situações avindas da

modernização, os hábitos alimentares, sem dúvida, tenderiam a aderir modelos

mais práticos, temos como exemplo o advento do sanduíche31.

O nacionalismo e a industrialização passaram a ser a polêmica da

época, entre empresário, políticos e intelectuais, atingindo seu auge “na

vigência do governo Juscelino Kubitscheck (1956-1961), quando o

Desenvolvimentismo se tornou a ideologia oficial do Estado” 32.

Alguns autores, na década de 1960, se imbuíram da interpretação

política de que a cidade de São Paulo, em seu processo de industrialização,

passou a funcionar como uma metrópole econômica com estados

subordinados à sua volta. Com esse tipo de interpretação, insistiam na

independência do Paraná com relação á São Paulo, inspirando todas as

políticas de industrialização dos governos subseqüentes. Assim, o processo de

industrialização garantia o financiamento direto ao produtor, às custas de

investimentos públicos. “O preço a pagar foi a renúncia de qualquer pretensão

de se constituir um capitalismo autenticamente paranaense, bem como o

reforço dos monopólios de todo o tipo” 33. Esses, então, que vinham

gerenciando o processo de modernização e industrialização, primeiro por meio

da Teoria da Dependência seguida da guerra fiscal que acomete toda a

federação brasileira, são eles as elites políticas e econômicas se ergueram no

estado do Paraná, em especial, na cidade de Curitiba.

Acompanhando o crescimento econômico, a população crescia ano

após ano acirrando o processo de metropolização de Curitiba, e também os

desafios como meio ambiente, saúde, educação, segurança pública, afetando a

qualidade de vida tão fortemente edificada desde os anos 1960.

O aumento populacional vinha ocorrendo nos mais diversos lugares do

mundo e, vale lembra, nas décadas de 1950 e 1960 surge a teoria de que as

melhorias do ambiente e elevação da qualidade de vida são os principais

responsáveis pela queda da mortalidade da época, mesmo aceitando o papel

31 DANSKI, op. cit., p. 64. 32 OLIVEIRA, op. cit., p. 47. 33 Ibid., p. 95.

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importante de medidas médicas como, por exemplo, a vacinação da varíola,

que praticamente eliminou a doença, em Curitiba não foi diferente.

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CAPÍTULO II

EVOLUÇÃO DA GASTRONOMIA E A ARTE NA COZINHA

2.1 EVOLUÇÃO GASTRONÔMICA

Atualmente o que se percebe é um cuidado, um estudo cada vez mais

aprofundado na elaboração, criação e apresentação de pratos. Receitas são

criadas e aperfeiçoadas, ingredientes de diferentes regiões do globo são

experimentados e até mesmo os clientes são estudados e analisados

cuidadosamente para obterem uma satisfação plena no ritual, na cerimônia da

partilha do alimento.

Analisando dessa maneira, como colocado no capítulo anterior, logo fica

claro que o ato de comer representa muito mais que uma necessidade

fisiológica, nutricional. O ato de comer é, na verdade, um momento em que

coexistem diversos simbolismos e representações, envolvendo a manutenção

de tradições e tabus. A relação alimento e humanidade tornaram-se mais

complexa, rica, variada e cheia de exigências. “Cozinhar, provar, é por em jogo

os valores de uma civilização, quer honrando-os, celebrando-os, quer

criticando-os ou negando-os. Nenhuma substância que entra no corpo é

neutra, e todas estão sempre carregadas (...) de história individual e de história

coletiva”34.

Ir a um determinado restaurante, visualizar os ornamentos das mesas,

ouvir a música de fundo, o atendimento cordial dos garçons, a organização do

cardápio, a companhia presente, assim como os detalhes visuais do prato

escolhido e o seu sabor, tudo é determinante na apreciação ou não da refeição.

Nesse sentido, o ato de comer não se limite ao caráter gustativo, mas também

visual, auditivo, sensorial etc. “Não é apenas o sabor que é enaltecido na arte

de cozinhar (...), a alimentação também instiga a transformação do contumaz

em beleza, em deleite sensorial, para além do gustativo”35. Percebendo a

influência de tantos elementos na determinação da aceitação ou não de um

34 PINTO, Vera Lucia. A Última Ceia. Natal: Nordeste Gráfica, 2000. p. 19. 35 FRANCO, Ariovaldo. De caçador a gourmet: Uma história da gastronomia. São Paulo: SENAC, 2001. p. .57.

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prato e, principalmente, a necessidade que tem o chef em estar sempre tendo

que criar e aperfeiçoar pratos, buscando melhores sabores, visuais

impactantes e utilizando-se de ingredientes e insumos de qualidade, surge uma

indagação: Cozinha é Arte? Obviamente que sim. Na verdade o que vem

acontecendo é um aprimoramento de técnicas e métodos desenvolvidos ao

longo da história, ou melhor, desde a pré-história.

Inicialmente o que imperava era a necessidade, a humanidade

animalizada, lutando com outras espécies e contra si mesma pela posse dos

recursos alimentícios. Nessa etapa apenas necessitávamos dos alimentos,

tratava-se fundamentalmente de uma relação fisiológica. Era o nosso corpo

que nos guiava na busca de comida para sobreviver. Não tínhamos ainda o

conhecimento da gastronomia propriamente dita, queríamos apenas responder

aos anseios de nosso estômago. Foi a partir do cozimento que se estabeleceu

uma profunda diferença entre o homem e os animais. “Cozinhando, descobriu

que podia restaurar o calor natural da caça, acrescentar-lhe sabores e torná-la

mais digerível. Percebeu ainda que a cocção retardava a decomposição dos

alimentos, prolongando o tempo em que podiam ser consumidos (...),

identificava, assim, a primeira técnica de conservação”36.

A Grécia Clássica, mais especificamente no século IV a.C., teve um

número considerável de escritores que se dedicaram à gastronomia. A obra do

egípcio Athenaeus, produzida no século II d.C. e intitulada Deipnosophistai,

reúne observações sobre maneiras e costumes antigos, compiladas de

inúmeros autores, a maior parte do trabalho, porém, é dedicada aos alimentos,

às bebidas e à arte da mesa. Quem desempenhava a função de cozinheiro na

Grécia era o escravo. Conforme acontece o crescimento do apreço pela boa

mesa, a valorização da refeição, os melhores cozinheiros ascendiam sobre

todos os escravos da casa. Similarmente a Grécia, em Roma os escravos mais

hábeis na preparação e organização de banquetes tornavam-se figuras

importantes e estimadas nas casas patrícias. Possuir um bom cozinheiro era

símbolo de prestígio.

36 Ibid., p. 17.

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Durante a Idade Média, os mosteiros eram mais do que meros centros

de contemplação, tendo também a função de armazenamento de alimentos.

Com o desenvolvimento da jardinagem, favorecido pela vida monástica,

ocorreu o cultivo de várias espécies de frutas e legumes. Possuidores de ampla

informação sobre a fabricação de laticínios, os monges tiveram ainda função

importante no refinamento de vários tipos de queijos. As diferenças entre a

cozinha da Idade Média e as da Grécia Antiga e de Roma decorrem do fato de

que na primeira não se conhecia grande variedade de processos de cocção.

Somente no final do século XIII se redescobriu a arte dos guisados e molhos e

se recomeçou a utilizar o forno.

O reaquecimento comercial interno, assim como entre Ocidente e

Oriente possibilitou a evolução da culinária a partir da importação e assimilação

de novos ingredientes. As novidades gustativas e aromáticas trazidas pelos

cruzados assim como a expansão islâmica foram fatores decisivos para o

desenvolvimento de uma cozinha muito rica.

O Império português do século XV demonstrou seu poderio e forte

influência não somente na economia e no comércio, mas também nos

costumes dos povos colonizados. Em seus entrepostos introduziram alimentos,

como o milho e a batata-doce, que tiveram grande aceitação em muitas regiões

asiáticas.

Como coloca Franco, o intercâmbio de fontes de alimento,

intensificados pelos descobrimentos marítimos do século XV, representa o

ponto alto de um processo em marcha desde o neolítico, pelo qual algumas

plantas, fora de seus lugares de origem, passam por importantes mudanças

genéticas ao se adaptarem a novos solos e climas. “A história humana é

marcada pela troca intensa de alimentos e pela migração de plantas e de

animais”37.

A China possui uma vasta literatura referente a gastronomia que datam

quatro mil anos, sempre priorizando a elegância e a cerimônia da sua cozinha,

assim como o apreço pela leveza, pelo frescor natural dos ingredientes e pelo

uso moderado de gordura. Misturando alimentação e filosofia, no Japão a

37 Ibid., p. 120.

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refeição tradicional é simples e frugal. Evitam-se os congelados, preferindo

produtos da estação, este é um modo encontrado de estar em harmonia com

as forças que governam o universo.

Com o advento da Renascença e a invenção da imprensa, muitos livros

de cozinhas foram difundidos nas principais línguas da Europa Ocidental,

dentre eles: o livro de Platina de Cremona no século XVI, o Grand cuisinier de

toute cuisine e Il cortegiano. Muitos desses livros de cozinha não se limitavam

a apenas tratar da preparação de receitas ou pratos, mas também eram

verdadeiros manuais de conduta, tendo como objetivo ensinar padrões de

comportamento das camadas mais abastadas. Durante o período do

Renascimento, a cozinha e os cozinheiros italianos eram considerados os

melhores do mundo, sendo natural a importação dessa mão-de-obra

qualificada pelas outras cortes européias. Nesse sentido, os italianos foram

grandes inovadores em pastelaria e na preparação de geléias, compotas e

doces de frutas.

A partir do século XVII, tendo como nome principal a figura de La

Varenne, mestre cozinheiro da corte de Henrique IV, inicia-se o predomínio do

gosto francês pela Europa. Instruções sobre a preparação de molhos, técnicas

culinárias e regras para a seqüência de pratos são desenvolvidas na França e

traduzidas para as diferentes línguas européias. Durante o século XVII a

cozinha francesa valoriza o uso da manteiga e utiliza em menor escala

especiarias em favor de ervas frescas.

No reinado de Luís XIII e Luis XIV, ocorre um interesse maior pela

gastronomia, ocorrendo conseqüente valorização dos grandes cozinheiros.

Refeições tornaram-se espetáculos e promoveram-se recepções grandiosas.

Como coloca Franco: “Generaliza-se na França o interesse pela boa mesa.

Para os membros da nobreza e do novo mundo das finanças ter um cozinheiro

significava poder oferecer a seus convivas pratos que ele nunca tivessem

provado” 38.

A cozinha do século XVIII estava ainda imbuída do espírito alquimista,

da busca da “essência”, do “suco vital” que se oculta na intimidade dos

alimentos. Nessa época inicia-se a popularização dos restaurantes,

38 Ibid., p. 175.

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distinguindo-se dos cabarets, albergues e tavernas pela sua limpeza, espaço e

decoração aprimorada. Com eles, toda a sofisticação da cozinha que antes

estava restrita ao mundo aristocrático dos palácios abre-se a uma parcela

maior da sociedade. “O termo restaurant consta ter sido criado em 1765 por

Boulanger, no qual servia sopas quentes anunciadas como restaurants, ou

seja, restaurativos”39. Para o historiador Jean-Robert Pitte, o restaurante é

originalmente francês e surge desde o final do século XVIII40.

Por volta de 1770, Brillat-Savarin registra na sua obra o aprimoramento

do restaurante, pelo qual atesta a sua importância através das vantagens com

que esse comércio apresenta àqueles que passarão a freqüentá-lo, bem como

para a “ciência”, o que justifica da seguinte maneira:

1) Por esse meio, todo homem pode fazer sua refeição à hora que lhe convém, conforme as circunstâncias em que se vê colocado por seus negócios e seus prazeres. 2) Ele tem certeza de não ultrapassar a soma que resolveu destinar para sua refeição, porque sabe de antemão o preço de cada prato que lhe é servido. 3) Estando a conta de acordo com o seu bolso, o consumidor pode, à vontade, fazer uma refeição sólida, leve e exótica, regá-la com os melhores vinhos franceses ou estrangeiros, aromatizá-la com café moca e licores dos dois mundos, sem outros limites a não ser o vigor de seu apetite ou capacidade de seu estômago. O salão de um restaurante e o Éden dos gastrômonos. 4) O restaurante é também extremamente cômodo para os viajantes, os estrangeiros, para aqueles cuja família se encontra momentaneamente no campo, e para todos aqueles, em suma, que não têm cozinha em casa, ou estão momentaneamente privados dela.41

Com o advento da Revolução Francesa os restaurantes aumentaram em

número, o que teria ocorrido em função da morte ou mesmo fuga dos membros

da corte, o que fez com que seus respectivos cozinheiros – a partir de então

desempregados – passassem a disponibilizar seus serviços para um público

maior, ou seja, nos restaurantes42.

Ao longo do XIX, os estabelecimentos em geral se organizaram

efetivamente: os cafés passaram a ser conhecidos como “salões de chá”; as

39 Ibid., p. 197. 40 PITTE, J.-R. Nascimento e expansão dos restaurantes. In: FLANDRIN, J.-L.; MONTANARI, M. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 751. 41 SAVARIN, B. A fisiologia dos gosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 138. 42 PITTE, J.-R. A gastronomia francesa: história e geografia de uma paixão. Porto Alegre: L & P M, 1993. p. 99.

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tavernas que vendiam vinhos de baixa categoria desapareceram e as casas de

pasto e leiterias se propuseram a comercializar comidas caseiras por preço

acessível para as pessoas que precisavam se alimentar fora de casa, mas que

não podiam gastar muito com as refeições43.

A culinária francesa atinge seu apogeu no século XIX, a sofisticação e o

requinte a mesa são ainda maiores. Jean-Louis Flandrin enxerga os

restaurantes como locais cuja principal atividade é a “função gastronômica”, a

preocupação com a boa cozinha. Para ele o importante é o ato de apreciar a

comida, o paladar, embora o seu aumento em termos numéricos esteja

vinculado às mudanças de cunho cotidiano, que permitiram as pessoas deixar

de comer em casa para comer fora.

O final do século XIX e início do XX foram decisivos nas transformações

em todos os aspectos da sociedade, inclusive na cozinha. Como coloca

Hobsbawm44, é um período caracterizado pelo avanço dos meios de

transportes e dos sistemas de comunicação. Estes dois fatores, associado ao

turismo de luxo, permitiu que ingleses abastados passassem a desfrutar da

riviera francesa, permitindo a disseminação pela Europa do termo

restaurante45. Atrelado a isso está o advento da Revolução Científico-

Tecnológica, na qual ocorreram diversas descobertas que passaram a integrar

o cotidiano dos europeus e norte-americanos. Temos como alguns exemplos a

descoberta do fogão a gás (séc. XIX), geladeira doméstica e forno microondas,

ambos no século XX.

Atualmente os estudos no preparo de alimentos estão mais

aprofundados, promovendo o surgimento de novos conceitos e novas técnicas.

Temos como exemplo disso o surgimento da “Cozinha Fusão” e da “Cozinha

Molecular”. A primeira diz respeito ao intercâmbio de ingredientes para a

criação de novos pratos, ou seja, uma associação de insumos provenientes de

diferentes localidades do mundo formando um prato novo, já o segundo

trabalha com o aspecto químico/biológico da alimentação, as transformações e

43 CARVALHO, Deborah Agulham. Das casas de pasto aos restaurantes: os sabores da velha Curitiba (1890-1940) Curitiba, 2005. Dissertação (Mestrado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. p. 15. 44 HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: O breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 45 CARVALHO, op. cit., p. 16.

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reações químicas durante o processo de preparação dos alimentos. Ainda que

surjam novos conhecimentos e intercâmbios, percebe-se que existe uma forte

resistência entre os chefs mais antigos em aceitar novas técnicas e tendências.

Perguntado a alguns chefs sobre como compreendiam o advento da

“Cozinha Fusão”, alguns responderam: “Talvez seja um modismo, fruto da

globalização. Antigamente o intercâmbio entre diferentes culturas era muito

restrito. Hoje a globalização chegou a tal ponto que se sabe e se reproduz

culinária de diversos países (...). Ela (globalização) trouxe, além desse

verdadeiro intercâmbio gastronômico, a possibilidade de, a partir da mistura de

produtos e ingredientes do mundo todo, novos pratos e novos sabores.” Na

opinião de outro chef: “Acho interessante desde que não se perca também a

cozinha autêntica, de raiz. E sem grandes exageros”. Alguns acreditam que: “A

Cozinha Fusão é nova, tenho uma certa curiosidade. Não vejo problemas em

utilizá-la caso seja benéfica para a cozinha, mas acredito que nunca podemos

esquecer a cozinha clássica, a base e as técnicas francesas. É preciso manter

a tradição, as raízes”.

Indagados sobre a “Cozinha Molecular”, os chefs entendem que ela é: “o

resultado de questões do tipo: por quê a carne quando é frita, fica mais escura?

Ou seja, a cozinha molecular surgiu com o objetivo de explicar quimicamente

as transformações que ocorrem nos alimentos quando são preparados.” Para

outros ela representa somente uma linha da trabalho. Há quem enxergue com

reservas: “Existem muita badalação em torno desse tema, mas o que vai

prevalecer no final será a volta as origens”. Para Ferran Adrià, por muitos

considerado o melhor chef de cozinha da atualidade, o diálogo entre cozinha e

ciência é algo saudável.

Por fortuna, cada vez nos extrañamos menos al ver unidas estas dos palabras que hasta no hace mucho parecían tan alejadas: ciência y cocina. Lo cierto es que desde hace diez o quince años, cada vez han proliferado más los intentos por tender puentes entre ambas disciplinas, em principio tan diferentes por metodologia, utilidad y función social. (...) Dado que lãs reacciones que se producen en una cocina tienen (...) una base científica, es posible profundizar gracias a la ciencia en algunos de los fenómenos con los que cada día se encuentra el cocinero. Este diálogo no tiene por qué verse de manera peyorativa. Al contrario, para El cocinero, servirse de la ciencia no es sustituto de nada: ni de su intuición, ni de su sabiduría, ni de su domínio de

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oficio. Pero sí es uma herramienta más, que no se debe desdeñar, porque todo lo que puede ofrecernos no hace más que enriquecer nuestro conocimiento46.

2.2 COZINHA COMO ARTE

Atualmente é consenso de que cozinhar é uma forma de arte. Perguntada

a opinião dos profissionais que trabalham diariamente na cozinha, percebe-se

que são diferentes os argumentos que sustentam a gastronomia como

expressão artística, nesse sentido, o chef, responsável pela criação e

sofisticação dos pratos, é entendido como artista: “Entendo o chef como artista

porque nessa profissão é preciso criatividade, ter um “felling”, fazer novas

texturas, experimentar outros ingredientes, acompanhar novas tendências e ter

imaginação”. Em outra visão o chef representa um artista: “pois ele precisa

criar, como um artista, com os insumos disponíveis, fazendo com que o

alimento seja saboroso e também com belo visual”.

O chef Ferran Adrià, perguntado se considerava um artista, respondeu:

“Sou um cozinheiro que muitas pessoas acham que é um artista, pois foram ao

meu restaurante e dizem que tiveram uma experiência artística.” Perguntado se

cozinha é arte, Adrià respondeu: “Cada um decidirá, afinal, através de sua

experiência, se a cozinha é arte ou não. Como a pintura, a fotografia ou

qualquer outra coisa. A fotografia é arte quando se decide que ela é arte. Nem

toda fotografia é arte. Da mesma forma, acontece com a cozinha, onde há

momentos em que alguns decidirão que ela é arte e outros, que não, como em

qualquer outra disciplina.”

Para se ter uma noção de como a cozinha já é entendida como

expressão artística, temos como o exemplo a Documenta de Kassel,

considerada como um dos mais importantes pontos de encontro do mundo

sobre arte contemporânea, realizada de 5 em 5 anos na Alemanha. A última

edição do evento, realizada em 2007, contou com uma novidade, além da

produção artística de pintores, escultores e fotógrafos, ocorreu a participação

46 GOLOMBEK, Diego e SCHWARZBAUM, Pablo. El nuevo cocinero científico. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2007. p. 13.

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do chef catalão Ferran Adrià, levando para a exposição o menu de seu

concorrido restaurante “El Bulli”47.

Os pratos criados por Adrià são tratados como obras de arte por

“brincarem” com os sentidos de sua clientela. “O que se vê contradiz com o que

se saboreia. As fritas são de fato pedaços de abacaxi desidratado; a barrinha

de chocolate é de fato manteiga com sabor pistache; o legume é uma balinha:

a cavala é glorificada por meio de um banho espumante rosa”.

Nesse sentido, a gastronomia não permite que a imaginação encontre

limites, é preciso despertar a mente e torná-la um reino pensante, criativo e

sempre disposto a descobrir algo novo, é preciso viajar a um mundo surreal,

ousado e inusitado, ver o mundo como um vasto universo abstrato.

Não basta ser um cozinheiro, é preciso ser um químico, um cientista, um

alquimista, quem sabe até mesmo um pintor. Deixar que a alma se entregue a

um "renascimento", é como finalizar um prato buscando na sua essência algo

que lembre um "Da Vinci" ou um "Michelangelo", fazer do prato um quadro,

imaginando que ao finalizá-lo estará dando também o último toque do pincel na

tela. Para tanto é preciso ser um amante dedicado, assumir a paixão que se

tem pela cozinha.

Na tela, o artista mistura cores quentes, que carregam em si a

lembrança do calor, do fogo e nos conduzem a idéia de proximidade,

aconchego, com cores frias tradutoras do céu, da água, do gelo para

contemplar a sensação de leveza e transparência. Na arte da culinária,

também a cor é utilizada para produzir efeitos estéticos. Os livros culinários

medievais mostravam a preocupação com as cores; já os modernos, detinham-

se no que as cores revelavam sobre natureza dos alimentos. “Na Idade Média,

a identidade de numerosos pratos devia-se à cor tanto ou mais que aos

ingredientes que os compunham. É o caso do ‘manjar branco’, ‘ molho verde’,

‘alhada branca’, ‘alhos verdes’(...)”.48

O papel das cores era essencial e alguns ingredientes eram adicionados

especificamente com a função de colorir. “A busca cromática de que são

47 Açores 2010. Disponível em: http://acores2010.blogspot.com/2007/08/o-arrozal-do-artista-tailands-sakarin.html Acesso em 1 de novembro de 2008. 48 FLANDRIN, J.-L.; MONTANARI, M. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p. 488.

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testemunhas as receitas não resultava, de forma alguma, de uma fantasia

qualquer, muitas vezes qualificada de extravagante ou estranha, mas na

realidade refletia a condição cultural a que estava ligada a cor”49.

Mas, no universo alimentar, não só o estímulo visual é marcante. Outros

sentidos também são aclamados. Na mesa, há que se despertar o apetite

através do belo, da integração do homem com os elementos formadores da

natureza. Combinações cuidadosas: além das cores, devem dialogar texturas

múltiplas, temperaturas variadas, sabores diversos e perfumes delicados50.

Segundo Jean-François Revel, “a história da gastronomia é precisamente

uma sucessão de trocas, de conflitos, de desavença e reconciliações entre

cozinha comum e arte da cozinha. A arte é criação pessoal, mas a criação é

impossível sem uma base artesanal”51

Todas as operações de cozinha significam e celebram as modificações

trazidas à matéria: desenformar, corar, assar, fritar, escaldar, grelhar, ferver,

abafar e flambar. Cozinhar é agir especificamente no tempo; talhar, cortar,

amaciar, cinzelar, picar, amarrar, enfarinhar é agir no terreno da forma; soltar,

disfarçar, distender, moer, furar, encrespar, ligar, conservar é intervir nas

texturas; refogar, aferventar, refrescar, condimentar, temperar é querer produzir

efeitos sobre a cor, sobre a luz. Os cinco sentidos são, portanto, convocados

em sua totalidade e não solicitados parcialmente nem suscitados pela metade;

são interrogados num perfume, numa consciência, num sabor, numa impressão

visual. O cérebro inteiro está projetado na matéria assim variada,

diversificada.52

Cuidar bem da linha que se segue, como cuidamos da roupa que

vestimos, a gastronomia é um caminho generoso de técnicas clássicas que

muitas vezes recordam os pretos básicos de Channel, para tanto o artista da

cozinha precisa dominar a simplicidade, aprender e buscar as técnicas básicas

respeitando tudo que o tempo não apaga e não ofusca, e assim começar a

lapidar a sua própria personalidade, buscando uma identidade própria,

49LAURIOUX, Bruno. Cozinhas Medievais (séculos XIV e XV) In: FLANDRIN, História da Alimentação...,. p. 458. 50 ONFRAY, Michel. Filosofia do gosto. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 170. 51 REVEL, Jean-François. Um Banquete de Palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 40. 52 ONFRAY, op. cit., p. 171.

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moderna e contemporânea fazendo uma fusão do clássico com toques de

ousadia, assinando a sua marca e ditando as novas tendências.

O artista das panelas expressa nos pratos o real significado da liberdade,

valoriza a sua terra assim como o perfume que exala das flores comestíveis da

sua região, enriquece através do paladar as suas origens e de quem a vida

dedicou para que ela hoje existisse.

Vive uma inspiração constante, transforma um alimento em algo

inesquecível ao paladar, criando uma harmonia de sabores, sente como

poucos o poder de tocar a alma através do perfume das panelas.

Nesse sentido, fica claro que não é apenas o sabor que é enaltecido na

arte de cozinhar. A alimentação também instiga o homem à transformação do

contumaz em beleza, em deleite sensorial, para além do gustativo.

A gastronomia, enfim, é uma arte que desperta sentimentos, alimentando

sonhos e lembranças. Ela se apresenta como uma arte de preparar e servir

alimentos, que fascina, apaixona e provoca prazer aquele que a respeita em

toda sua complexidade.

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CAPÍTULO III

INSTITUIÇÕES EDUCACIONAIS E A FORMAÇÃO DO CHEF

Na cidade de Curitiba é visível o gradativo crescimento no setor

gastronômico, seja no número de restaurantes como na busca pela melhoria de

sua qualidade. Segundo Mitzy Tannia Reichembach Danski53, após uma série

de transformações econômicas, políticas e sociais na cidade de Curitiba a partir

dos anos 1960 (industrialização, urbanização, modernização e programas de

planejamento urbano), a capital paranaense se deparou com um grande

aumento populacional e comercial, fruto também das melhorias do ambiente e

da elevação da qualidade de vida. Tais transformações acabaram por

estabelecer um novo quadro social no qual as mulheres inseriram-se no

mercado do trabalho e o tempo dedicado a ele se tornou maior. Perante essa

realidade, o tempo que antes era dedicado ao preparo caseiro de alimentos

assim como o ritual à mesa foi sendo substituído por refeições mais rápidas

servidas fora do ambiente familiar.

Esse crescimento quantitativo e qualitativo no âmbito gastronômico

também é um reflexo direto do fato de que atualmente as pessoas estão

exigindo mais qualidade dos lugares onde se alimentam, buscando saber mais

sobre o mundo da cozinha, não somente na questão higiênica e das

propriedades dos alimentos, mas também sobre a arte de cozinhar. Revistas e

programas televisivos são criados com o objetivo principal de tratar do universo

da culinária e gastronomia. Novos cursos dedicados a cozinha são abertos e a

cada ano mais pessoas de todas as profissões e idades iniciam-se nesses

cursos. Utilizando-me da opinião de professores, coordenadores e alunos dos

principais cursos de cozinha da cidade, busquei compreender o porquê desse

processo de valorização da cozinha e do seu principal agente, o chef.

Primeiramente é necessário conceituar o termo “Chef” de cozinha,

quais seus deveres e responsabilidades. Na visão de Maria Leonor de Macedo,

53 DANSKI, Mitzy Tannia Reichembach. História e Alimentação: O advento do fast food e as mudanças dos hábitos alimentares em Curitiba (1960-2002). Curitiba, 2007. Tese (Doutorado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

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o chef de cozinha deve ser um artista e um administrador. Suas tarefas

consistem em realizar compras de cada dia, planejar os menus e distribuir o

trabalho entre o pessoal da cozinha. Também deve supervisionar a execução

dos pratos. “O chef precisa, portanto, ter sensibilidade artística, paladar muito

apurado e também conhecimento de todos os assuntos da cozinha”54. Segundo

todos os profissionais entrevistados, os cursos dedicados a área da cozinha

não formam chefs, mas sim cozinheiros, chefs não são formados por nenhum

curso, chefs são títulos que são conquistados pelos melhores cozinheiros, os

mais capacitados, dedicados e criativos.

Para compreender o porquê do processo de valorização do profissional

da cozinha, recorri aos cursos: Chef de Cuisine e Restaurateur do Centro

Europeu, Tecnologia em Gastronomia da Pontifícia Universidade Católica

(PUC) e Cozinheiro do Serviço Nacional de Aprendizagem (SENAC).

O SENAC é uma instituição privada criada no dia 10 de janeiro de 1946

pela Confederação Nacional do Comércio, tendo como objetivo principal a

educação e capacitação profissional na área comercial. Por ter sido a primeira

instituição a criar um curso destinando a área da cozinha no Paraná, considero

de grande importância analisar seus relatórios anuais, buscando reconstruir o

perfil de cozinheiro que a escola formava, para depois poder verificar as

mudanças e permanências ao longo dos anos. Nesse sentido julgo

fundamental analisar as inovações promovidas pelo SENAC na área da

gastronomia como, por exemplo, a construção do primeiro Restaurante-Escola

do Brasil. Esses relatórios existem porque é dever da administração regional

estadual elaborar um relatório e enviá-lo à administração nacional do SENAC

no final de todos os anos, mencionando a situação de suas finanças, projetos,

corpo docente, estrutura, faturamento, admissão e demissão de funcionários,

pautas de reuniões etc. Os relatórios lidos foram os referentes aos anos de

1961 (quando é aprovado o orçamento do Restaurante do Clube do Comércio

de Curitiba para a instalação do Restaurante-Escola SENAC) a 1990.

No relatório de 1962 consta a inauguração do Restaurante-Escola no dia

2 de fevereiro de 1962. Como o próprio relatório diz: “foi uma iniciativa nova e

54 LEAL, Maria Leonor de Macedo Soares. História da Gastronomia. Rio de Janeiro: Editora SENAC, 1998. p. 129/130.

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pioneira (...) com um sistema prático e objetivo de ensino” além de ter como

finalidade profissional “a formação de alunos menores para o ramo hoteleiro

(...)”. Nesse sentido percebe-se a originalidade na atuação do SENAC Paraná

ao estrear um curso novo e inédito no Brasil totalmente direcionado à cozinha.

O Restaurante-Escola estava situado na Escola Comercial SENAC de

Curitiba, localizada na Federação do Comércio do Paraná, Rua Pedro Ivo, 755.

Interessante notar que era um curso destinado a menores de idade (no

relatório constam fotos do banquete de inauguração do Restaurante-Escola).

Nesse primeiro ano abriu-se somente uma turma composta de 20 matriculados

dos quais ocorreu uma taxa de evasão de 8 alunos, 8 reprovações e somente 4

aprovações. Infelizmente nos relatórios não constam os dados dos estudantes.

Ainda neste mesmo documento consta que o nome do curso era “Ensino

Profissional para a Formação de Pessoal da Restaurante”, diferentemente de

hoje, quando existe o curso de cozinheiro, de cozinheiro auxiliar, garçom,

barman além de diversos outros cursos de pequena duração como

ornamentação de sobremesas, cortes de carnes etc. Podemos concluir que

esse curso de “Formação de Pessoal de Restaurante” fornecia noções mais

gerais e abrangentes se comparado com o curso de cozinheiro atual. Como

consta no relatório:

“Por ser um dos setores em que mais necessária se faz a participação de mão-de-obra qualificada, sobremodo numa cidade como Curitiba, cujo crescimento está a justificar iniciativas como essa (criação do curso). Ao lado do equipamento com que foi dotado o Restaurante, e como condição essencial para o seu funcionamento em termos de estabelecimento de ensino para as atividades do ramo, especial cuidado foi dispensado à seleção de pessoal realmente qualificado – gerente, pessoal administrativo e pessoal técnico – a fim de que os alunos do curso ali instalados pudessem, efetivamente, contar com recursos suficientes para o planejamento e a execução da aprendizagem requerida.”

Nesse trecho do documento fica claro o reconhecimento do

crescimento econômico da cidade de Curitiba assim como a necessidade de

uma mão-de-obra qualificada atuante na área de Restaurante. Além disso,

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percebe-se o investimento em infra-estrutura assim como na contratação de

profissionais capacidades para promoverem uma melhor instrução aos alunos.

O curso, segundo o documento, era dividido em dois setores: as

técnicas profissionais propriamente ditas e as noções complementares de

cultura geral. As técnicas profissionais seriam divididas em serviços de

cozinha, bar, recepção, ornamentação e etiqueta, além da parte referente às

atividades dos garçons. Já as noções complementares seriam divididas em

caligrafia, cálculo, higiene e relações humanas. Como mostra no documento de

1962:

“A partir da execução desse esboço, tornou-se necessário ministrar, além da parte profissional, uma suplementação de conhecimentos e cultura geral. Isso pelo fato de a grande maioria dos alunos recrutados não terem concluído o curso primário e não possuírem o lastro mínimo de conhecimentos que possam servir de suporte à fase técnica da sua aprendizagem.”

Com tal afirmação fica claro o fato de que o curso era destinado às

camadas mais humildes e populares, diferentemente do que vem acontecendo

atualmente quando os cursos de cozinha se tornam cada vez mais caros

tomando um caráter elitista. Vale lembrar que no período em questão o SENAC

não cobrava mensalidades de seus alunos, ao contrário, lhes fornecia

uniforme, calçado, alimentação e uma ajuda de custo. No relatório de 1963

consta a previsão da organização de um regime de internato para os jovens

alunos. Analisando os relatórios seguintes, percebe-se que tal projeto nunca

chegou a ser concretizado.

O documento de 1963 mostra que ao criar um curso dedicado à

formação de pessoal de cozinha, o SENAC tinha como objetivo:

“Formar e aperfeiçoar a mão-de-obra para habilidades hoteleiras. Esse novo núcleo de ensino profissional do SENAC procurou, antes de mais nada, recrutar o corpo discente entre menores que estivessem nas condições requeridas para a efetividade da aprendizagem programada (...). Somente um menor pôde ser encaminhado ao Restaurante-Escola.”

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Ainda segundo o relatório de 1963, esse novo ensino era uma

necessidade no ramo hoteleiro em vista do progresso econômico em que

Curitiba se encontrava.

No início do ano de 1964 consta o encerramento do curso de “Ensino

Profissional para a Formação de Pessoal da Restaurante” devido à “falta de

instalações adequadas”. O curso retornaria somente no ano de 1968 com a

construção de um novo Restaurante-Escola situado na nova sede do SENAC

Paraná, Rua André de Barros, 750 (sede atual), prédio inaugurado em 1966. O

curso passou por uma reformulação, passando de “Ensino Profissional para a

Formação de Pessoal da Restaurante” para “Curso de Qualificação Profissional

de Cozinheiro”. Percebe-se então uma especificação no curso, criando uma

categoria destinada somente na formação de cozinheiros.

“Realizou-se no dia 24 de abril a inauguração festiva do novo Restaurante-Escola SENAC, transcorrendo todas as solenidades com expressivo brilhantismo. Volta o SENAC Paraná, por conseguinte, a reeditar uma iniciativa pioneira de há alguns anos atrás, dando a Curitiba uma unidade de ensino profissionalizante de alto gabarito, destinada à formação e ao aperfeiçoamento de mão-de-obra especializada para o ramo hoteleiro.”

No relatório de 1969 consta a realização do Primeiro Congresso de

Alunos Cozinheiros, Garçons e barmen, realizado no Leme Palace Hotel, na

Guanabara. Neste ano surgem cursos novos como o de ajudante de

cozinheiro, além do curso de aperfeiçoamento para cozinheiro. A realização de

tal congresso pode ter sido causa de uma busca da classe hoteleiro no

aperfeiçoamento de técnicas e uma maior qualificação da profissão. A

inauguração dos cursos citados provavelmente foi fruto de uma maior procura

de pessoas interessadas nessa área.

Dos anos 1970 em diante o número de matriculados cresce

vertiginosamente em todas as áreas do SENAC. Algumas reestruturações e

projetos são elaborados, permitindo aos alunos um treinamento mais

qualificado além de melhorar o atendimento ao Restaurante-Escola assim

como o ensino dos estudantes. O interessante é que a partir daí o SENAC

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adota uma política de encaminhamento de seus alunos a empresas,

acompanhando-os através de fichas pelas quais se verificavam suas aptidões e

evolução no emprego. Nesta mesma década cria-se o Concurso de Alunos

Cozinheiros, garçons e Barmen. As provas consistiam em trabalhos de sala,

criação de prato, sobremesa e coquetel.

Nos anos 1980 o SENAC se encontra em diversos municípios

paranaenses, criando um Restaurante-Escola em Londrina e o Centro

profissional em Hotelaria em Foz do Iguaçu. A partir de 1980 os relatórios

tomam um caráter mais objetivo, substituindo as discrições e detalhes dos

cursos por gráficos que pouco ou nada dizem respeito sobre o curso de

cozinheiro.

Atualmente o SENAC possui um forte reconhecimento dos profissionais

da cozinha. No início de 2008 o curso de cozinheiro foi totalmente reformulado,

não somente as disciplinas como a própria cozinha, ampliando e modernizando

sua infra-estrutura.

O curso está dividido entre disciplinas teóricas e práticas: O Profissional

Cozinheiro no Mercado de Trabalho, carga horária de 28 horas, Saúde e

Segurança do Trabalho na Cozinha, 24 horas, Educação Ambiental, 8 horas,

Pesos, Medidas e Cálculo de Custos, 20 horas, Planejamento e Elaboração de

Cardápios e de Fichas Técnicas, 24 horas, Noções de Nutrição na

Gastronomia, 8 horas, Boas Práticas na Manipulação de Alimentos, 16 horas,

Hortaliças e Frutas, 16 horas, Técnicas de Corte de Hortaliças e Frutas, 20

horas, Preparações Compostas de Hortaliças e Frutas, 60 horas, Carnes, 16

horas, Pré-Preparo de Carnes, 44 horas, Pescados e Frutos do Mar, 12 horas,

Pré-Preparo de Pescados e de Frutos do Mar, 24 horas, Docerias, 58 horas,

Pastelaria, 38 horas, Bases da Cozinha, 48 horas, Preparações Quentes , 48

horas, À "La Carte", 88 horas e Prato do Dia, 88 horas, totalizando 688

horas/aula.

Dentro dessas disciplinas existem conteúdos pré-determinados a serem

trabalhados:

• O Profissional cozinheiro no mercado de trabalho: Ética Profissional,

Responsabilidade Social, Relacionamento Humano, Atendimento ao

cliente, Tipologia de clientes, Perfil do profissional cozinheiro,

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Fundamento de alimentos e bebida em turismo e hospitalidade, Funções

e atribuições das equipes de trabalho de cozinha, Organogramas e

fluxogramas em cozinhas e restaurantes, Gastronomia nacional e

internacional além de Cozinhas clássica, tradicional, contemporânea e

moderna;

• Saúde e Segurança do Trabalho na Cozinha: Instalações físicas e

equipamentos, Utensílios utilizados na cozinha (funções e

características), Acidentes de trabalho (conceito, causa e

conseqüências), Equipamentos de proteção individual (uniformes,

calçados, luvas etc.), Ergonomia e Primeiros socorros na cozinha;

• Educação Ambiental: Meio Ambiente (conceito, fatores prejudiciais e

preservação), Qualidade de Vida e Lixo (tipos, origem, tratamento,

coleta seletiva e descarte);

• Pesos, Medidas e Cálculo de Custos: Medidas caseiras e Unidades de

medida, Cálculo de frações e quantidades, Razão e proporção, Regra de

três simples, Porcentagem, Cálculo de custos e Uso de planilha na

elaboração de cardápios e cálculo de custos;

• Planejamento e Elaboração de Cardápios e de Fichas Técnicas:

Redação e elaboração de fichas técnicas, Gramática, Vocabulário

gastronômico, Planejamento, elaboração e “layout” de cardápios;

• Noções de Nutrição na Gastronomia: Classificação dos alimentos e

nutrientes, Diminuição do desperdício por meio da otimização no uso de

alimentos;

• Boas Práticas na Manipulação de Alimentos: Perigos químicos, físicos,

biológicos e alergênicos, Saúde e higiene do manipulador, Recebimento,

armazenamento e transporte de mercadorias e Pré-preparo, preparo e

comercialização de alimentos;

• Hortaliças e Frutas: Classificação de Hortaliças e frutas, características

sensoriais e higienização dos alimentos;

• Técnicas de Corte de Hortaliças e Frutas: “Mise en place”, Tipos de faca,

Técnicas de afiação e Cortes e nomenclaturas;

• Preparações Compostas de Hortaliças e Frutas: Conservas e compotas,

Anti-pasto, Manteigas compostas, Ervas e aromáticos, Molhos

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compostos para saladas, saladas simples, clássicas e compostas além

de Patês, “dips”, musses e canapés;

• Carnes: Identificação e classificação de carnes bovina, suína, caprina,

ovina, exóticas, de aves e miúdos, Critérios de aceitação e rejeição de

carnes e Embalagens (recebimento e armazenamento);

• Pré-Preparo de Carnes: Higienização e organização de utensílios,

equipamentos e locais de trabalho, Facas e utensílios para “boucher”,

Cortes e nomenclaturas e Preparação de marinadas e dessalgue de

carnes;

• Pescados e Frutos do Mar: Identificação e classificação de pescados e

frutos do mar e Critérios de aceitação e rejeição dos pescados;

• Pré-Preparo de Pescados e de Frutos do Mar: Cortes, técnicas de

limpeza e nomenclaturas de pescados e frutos do mar além de

Dessalgue de pescados e camarões;

• Docerias: Açúcares, Leite, Ovos na culinária e em docerias, Chocolate,

Molhos e caldas, “Sorbets” e sorvetes, Cereais e grãos, Docinhos e

bombons, Doces “light e diet”, Cremes, Musses e merengues;

• Pastelaria: Massas batidas, fermentadas, folhadas, líquidas, quebradiças

e Tortas;

• Bases da Cozinha: Sopas, Consomes, Molhos Básico e Derivados de

molhos básicos;

• Preparações Quentes: Batas, tubérculos e legumes, Grãos e cereais,

Massas, Técnicas culinárias para pratos protéicos, Pratos à “la carte” e

Forno combinado;

• À "La Carte": Sistema à “la carte” e Prática em cozinha;

• Prato do Dia: Preparação de eventos e cozinha regional.

Nesse sentido percebe-se que o curso de cozinheiro do SENAC

preocupa-se não somente com a prática na cozinha, mas também com todos

os aspectos existentes que giram em torno da profissão de cozinheiro, desde o

relacionamento entre profissionais e seus clientes até a consciência de higiene

e conscientização em relação ao desperdício.

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Ao término do curso, o SENAC não faz indicações dos alunos recém-

formados para restaurantes, o que existe é uma “Agenda de oportunidades” na

página da internet do SENAC Paraná, no qual são ofertados empregos e

estágios aos alunos.

Outra instituição, como a Escola de profissões e idiomas Centro Europeu

oferece, desde 2002, o curso de Chef de Cuisine e Restaurateur. Os alunos,

depois de formados, podem atuar como chef de cozinha e administrador de

restaurantes. As aulas, assim como no SENAC, são ministradas em cozinhas

didáticas, sendo o curso 70% prático e 30% teórico. O curso é, também,

direcionado para profissionais já da área que buscam se atualizar, sempre

trabalhando com novos conceitos e avanços da culinária nacional e

internacional.

O curso de caráter privado já foi indicado como um dos melhores do

Brasil pela revista Cláudia Cozinha e pela revista Veja, na edição de 18 de

maio de 2005. O grande diferencial do Centro Europeu é o fato de possuir um

Hotel-Escola próprio, assim como inúmeras parcerias com restaurantes e

hotéis. Esses convênios e parcerias possibilitam o oferecimento aos alunos que

obtiverem bons índices de aproveitamento no curso e sem custos adicionais,

estágios nas principais redes hoteleiras nacionais e internacionais e em

restaurantes de elevado nível.

No programa do curso estão as disciplinas: Conhecimento de

Mercadoria (verduras, legumes, aves, peixes, crustáceos, condimentos e ervas

aromáticas), Técnicas de “Mise en Place” de cozinha, Massas e recheios,

Métodos modernos de cocção, Procedimentos de controle e custos, Base de

cozinha, Formação de preços, Molhos especiais e compostos, Técnicas de

compra e abastecimento, Composição dos pratos, Planejamento nutricional de

cardápios, Cozinha clássica, Enogastronomia, Sobremesas e Patisserie,

Marketing de serviços gastronômicos, Técnicas de Garden Manger, Cozinha

criativa, Cozinha contemporânea, Higiene e Controles de Pontos Críticos de

Contaminação (APPCC), Técnicas de serviços em restaurante, Administração

de pessoal, Planejamento físico de cozinhas e Formação e fortalecimento de

equipes, totalizando 576 horas/aula.

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Analisando a grade disciplinar do curso de Chef de Cuisine e

Restaurateur do Centro Europeu, percebe-se um caráter mais teórico se

comparado com SENAC, este dando ênfase no caráter prático do curso

enquanto o Centro Europeu direcionando para uma área mais teórica e

administrativa. Outro aspecto que chama a atenção é a alta mensalidade

cobrada pelo curso, podendo-se perceber seu caráter elitista, sendo cursado

por uma minúscula parcela da sociedade.

A Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Curitiba começou a

disponibilizar no ano de 2008 o curso de Tecnologia em Gastronomia. Segundo

o programa curricular da instituição, a pessoa formada nesse curso estará

habilitada a trabalhar em qualquer área relacionada à Gastronomia, como

enõlogo, sommelier, restaurateur, cozinheiro, eventos, chef em casa entre

outras. Nesse sentido o profissional formado poderá atuar em hotéis, abrir seu

próprio negócio, bares, restaurantes, promoção de eventos gastronômicos e

atendimento de eventos domiciliares.

Totalizando uma carga horária de 1656 horas, o curso aberto pela PUC

é composto por cinco períodos dos quais estão divididos em diversas áreas do

conhecimento.

O curso é composto pelas disciplinas:

• Primeiro Período: História e Cultura da Alimentação, Identificação e

Seleção de Alimentos, Introdução ao Estudo da Gastronomia, Técnicas

de Serviço, Legislação e Controle Higiênico-Sanitário dos Alimentos,

Tópicos em Nutrição e Processamento de Alimentos, Layout e

Montagem de Cozinhas, Empreendedorismo e Gestão de Negócios em

Gastronomia, Tecnologia da Informação em Gastronomia e Processos

do Conhecer;

• Segundo Período: Técnicas Gastronômicas para Alimentos de Origem

Animal, Técnicas Gastronômicas para Alimentos Vegetais, Engenharia

de Cardápios e Cálculos em Culinária, Marketing em Gastronomia e

Cultura Religiosa;

• Terceiro Período: Gastronomia na Organização de Eventos, Confeitaria

e Panificação, Gerenciamento de Bebidas e Enologia, Gerenciamento

de Restaurantes, Gerenciamento de Pessoal e Filosofia;

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• Quarto Período: Cozinha Brasileira e Regional, Gastronomia Hospitalar,

Gastronomia Diet e Light, Ética, Língua Estrangeira Instrumental em

Gastronomia e Projeto comunitário;

• Quinto Período: Cozinha Internacional Mediterrânea, Cozinha

Internacional Diversificada, Cozinha de Finalização e Técnicas de

Decoração.

Nesse sentido, o curso busca ensinar não somente a elaboração de

pratos (prático e teórico), mas também fazer com que o aluno compreenda que

existem diferentes representações e simbologias em um mesmo alimento

perante diferentes culturas. Nesse sentido, o curso apresenta como uma de

suas características, ainda que de modo muito superficial, a

interdisciplinaridade, caráter que praticamente inexiste nos curso de cozinheiro

do SENAC, assim como o curso de Chef de Cuisine e Restaurateur do Centro

Europeu. Acredito que não basta somente saber como cozinhar o alimento,

mas também quando, como e com quem se come. Como coloca Carlos

Roberto Antunes dos Santos55, “o alimento constitui uma categoria histórica,

pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas

alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são

somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social,

pois constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e

situações.”

Buscando compreender quais foram os motivos pela valorização da

profissão do chef de cozinha na cidade de Curitiba, foram entrevistados

professores e coordenadores dos cursos mencionados, assim como

profissionais da área. Existe certo consenso entre os entrevistados de que se

atualmente existe uma valorização da profissão de cozinheiro, isso se deve em

grande medida pela influência da mídia. Segundo a diretora do curso de

Tecnologia em Gastronomia da PUC, professora Helena Maria Simonard

Loureiro, além do glamour e da busca por status social existe o modismo. “É

55 SANTOS, C. R. A. dos. A alimentação e seu lugar na História: os tempos da memória gustativa. História: Questões & Debates. Curitiba, n°. 42 p. 12, 2005.

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uma fase, assim como outras profissões tiveram as suas, atualmente existe a

fase da profissão de cozinheiro.” Na visão do chef Lutcho, professor do curso

de cozinheiro do SENAC, além do glamour dado pela mídia, essa valorização é

um reconhecimento da realidade, ou seja, as pessoas estão freqüentando mais

os restaurantes, exigindo novidades e maior qualidade dos pratos. Para o chef

Aílton, também professor na escola SENAC, as pessoas estão entendo o

resultado do trabalho feito na cozinha como arte, não mais como uma

necessidade nutricional.

Essa glamorização da profissão mostrada por revistas e programas de

televisão fez aumentar demasiadamente a procura das pessoas por cursos de

chef de cozinha. Perguntados sobre essa nova realidade na área da

gastronomia, os chefs entrevistados alertaram sobre as dificuldades na

profissão. “O fogão é para pouca gente. Não tem fogão para todo mundo, e

nem talento suficiente para os fogões que há por aí”, observa o renomado chef

Celso Freire, proprietário dos restaurantes Boulevard e Zea Maïs, em Curitiba,

e consultor do curso de Tecnologia em Gastronomia da PUC-PR. Freire, há 20

anos no ramo, diz que a profissão nunca esteve tão elitizada como hoje. “Todo

mundo acha que é fazer o curso e colocar aquela roupa que, quando eu

comecei, todo mundo tinha vergonha de usar e hoje ninguém quer tirar.”

Como observa o chef Lutcho, muitos dos alunos que entram no curso de

cozinheiro pelo SENAC logo desistem ao perceberem que a realidade na

cozinha é bem mais difícil do que aparece nos programas televisivos. Ainda

segundo Lutcho: “O começo é bem difícil, você fica até 15 horas de pé, na

frente do fogão, suando. Precisa limpar o chão e a louça. É um trabalho com

muita pressão, você depende dos outros e os outros de você. Existe também a

necessidade em se trabalhar contra o tempo, é preciso construir o prato em

menor tempo possível”.

Como afirma o chef Sandro Duarte, coordenador do curso do Centro

Europeu: “No restaurante, cozinhar é trabalho. É desgastante. Você está

comprometido em servir os outros, trabalha em datas festivas, no Natal e no

Ano Novo”. Ainda segundo Duarte: “O mercado está aquecido, mas em muitos

casos a remuneração não é adequada, a remuneração é extremamente baixa,

e a jornada de trabalho é estressante.”

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Segundo a historiadora Ana Paula Nadalini, mestranda em História da

Alimentação na Universidade Federal do Paraná: “São oito, nove horas em pé,

e tem que fazer todos os trabalhos, e ainda lavar a própria louça e a própria

roupa. Além disso, faz calor, são várias chamas acesas, e muita cozinha por aí

não tem nem janela. E aí você fica lá, suando, o dia inteiro”. Apesar do trabalho

árduo, os profissionais envolvidos com gastronomia afirmam que a atividade é

das mais gratificantes, principalmente depois que se obtém alguma

estabilidade. “A principal surpresa é o contato com o público e seus clientes, é

ver que você pode mudar o dia de uma pessoa com o seu restaurante e sua

comida. Isso é emocionante”, resume Geraldini Miraglia, da Oli. Ainda segundo

ela: gastronomia é um negócio muito bom, dos mais promissores, desde que

seja bem administrado. “Sendo levado direito, com a conta fechando, é um

ótimo negócio.”

Nessa realidade do profissional da cozinha, quais são as exigências

para o sucesso na profissão? Segundo a professora Helena Maria Simonard

Loureiro é necessário ter humildade em primeiro lugar. “É preciso ter

consciência de que para ser um profissional da cozinha, é necessário saber

que você nunca sabe tudo, que sempre vai aprender com outros profissionais,

sejam eles seus coordenados ou não.” Ainda segundo Simonard: “O chef

precisa conhecer todos os aspectos do seu ambiente de trabalho, não só no

sentido de preparar o alimento, mas compreender que tipo de vinho combina

com determinado alimento, ter uma visão nutricional do que prepara (sempre

evitando o excesso de gorduras, lipídios, açúcares etc.), higienização do

ambiente de trabalho além de ter criatividade para criar pratos.”

Na visão da chef e professora do Centro Europeu Solange Trevisan

Schneider: “Para se chegar a posição de chef é necessário disciplina, estudo e

dedicação. É preciso a doação integral por parte do aluno, além de

persistência, saber trabalhar em equipe, ser ativo, saber trabalhar sob

pressão.” O chef Lutcho entende a cozinha com uma orquestra, nesse sentido,

para o sucesso do conjunto, é necessário que todos os músicos, no caso, os

cozinheiros, devem estar afinados. “Se alguém está fora do ritmo do resto do

grupo, com certeza a produção dos pratos irá desandar”.

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Segundo o chef Aílton do Restaurante-Escola SENAC: “As habilidades

de um verdadeiro chef são a capacidade e vontade de pesquisar muito em

livros e revistas, além de ter a coragem de ir para a cozinha e se arriscar. “Leia,

pesquise e acompanhe as tendências. Vá para a cozinha, escolha um prato por

mês e tente fazê-lo umas duas ou três vezes por semana, depois no mês

seguinte mude para outro prato e assim vai. Para cozinhar tem que praticar”.

Perguntados sobre a diferença na formação e na atuação do chef de

cozinha atual comparado com o do passado, os professores apontaram

algumas diferenças, das quais se destacam as opiniões do chef Lutcho e da

professora Helena. Para Lutcho a diferença básica era que no passado (30

anos), o cozinheiro não tinha qualificação, pessoas sem qualquer experiência

eram empregadas. Começavam com cargos que exigiam pouco conhecimento

e prática e com o que aprendiam no trabalho acendiam na hierarquia da

cozinha até atingir a categoria de chef. “É preciso lembrar que a elitização

dessa profissão é muito recente, deixada de ser mal vista há poucos anos”,

afirma Lutcho. Para a professora Helena, a diferença está no fato de que

antigamente o sujeito que coordenava um grupo de cozinheiros já era

denominado chef. Atualmente o chef não pode se limitar no preparo de um

saboroso alimento. Ele necessita se informar de outras áreas, por exemplo, a

nutrição. “O chef precisa selecionar os melhores ingredientes, os mais

saudáveis, evitando a utilização de gorduras e açúcares. Dar esse valor e ter

essa visão de importância da saúde.” Para o professor Aílton: “O chef atual, ao

contrário do passado, tem que ter uma noção não somente no preparo do

alimento, mas também de outros conhecimentos. “O chef, além de cozinheiro,

precisa ser um administrador e um estudioso”.

Percebe-se então que esses chefs são bastante limitados a ambiente

da cozinha, restringindo-se somente ao preparo e a degustação dos pratos.

Eles não possuem uma visão maior, que saia do seu ambiente de trabalho. Se

atualmente, como coloca Santos, existe uma obsessão pela história da mesa,

fazendo com que a gastronomia saia da cozinha e passe a ser objeto de

estudo com a devida atenção ao imaginário, ao simbólico, às representações e

às diversas formas se sociabilidade ativa, os profissionais da área não estão

buscando a compreender esses diversos significados existem em um mesmo

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prato. Poucos são os chefs que além da idéia de como fazer e comer buscam

compreender quando, como, por quê e com quem se come. Deixando de lado

a oportunidade de associar e dialogar a prática da cozinha com outras áreas do

conhecimento.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho tratou do processo de valorização da profissão de

chef de cozinha na cidade de Curitiba entre os anos de 1960 e 2007. Para

tanto, foram analisados os relatórios anuais no que se refere ao curso de

cozinheiro do SENAC, na época intitulado “Curso de ensino profissional para a

formação de pessoal de restaurante”. Nesses relatórios constam os objetivos

do curso, suas disciplinas, o rendimento dos alunos, aprovações, desistências,

reprovações, idade, escolaridade etc. Iniciei a análise desses documentos a

partir do ano de 1961, ano em que foi aprovada a construção do restaurante-

escola em Curitiba - projeto audacioso e pioneiro no Brasil. Tentando identificar

o perfil do cozinheiro dos anos 60 e diferenciá-lo do cozinheiro atual, utilizou-se

também, entrevistas cedidas por professores e coordenadores da PUC,

SENAC e Centro Europeu, além de profissionais da área da cozinha.

A partir dessas entrevistas, das leituras feitas e das consultas às fontes,

chegou-se às seguintes conclusões:

• Para a maioria dos entrevistados, a procura pelo cargo de chef é fruto de

um glamour criado pela mídia, além de ser um modismo e uma forma de

ascender economicamente e socialmente;

• O glamour criado pela mídia em torno da cozinha fez surgir mitos e

inverdades sobre a realidade do início de carreira dos chefs;

• A cidade de Curitiba passa por um crescimento no setor gastronômico,

seja no número de restaurantes como na busca pela melhoria de sua

qualidade;

• Esse crescimento é reflexo direto do fato de que atualmente as pessoas

estão exigindo mais qualidade dos lugares onde se alimentam,

buscando saber mais sobre o mundo da cozinha, não somente na

questão higiênica e das propriedades dos alimentos, mas também sobre

a arte de cozinhar;

• Chef de cozinha é um título destinado e conquistado pelos cozinheiros

mais capacitados. O termo “chef” é um reconhecimento, cursos de

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gastronomia, como é o caso dos ofertados pela PUC, SENAC e Centro

Europeu, só formam cozinheiros;

• Antigamente o sujeito que coordenava um grupo de cozinheiros já era

denominado chef;

• As pessoas que ascendiam à categoria de chef eram pessoas sem

qualificação, começavam com cargos que exigiam pouco conhecimento

e com o que aprendiam na prática acendiam na hierarquia da cozinha;

• Atualmente o chef desempenha funções mais complexas em relação ao

passado. Se antes o chef era responsável somente pelo sabor,

atualmente ele desempenha outras funções além da necessidade em

dominar outros conhecimentos, por exemplo, administração e nutrição;

• Devido a necessidade em se ter criatividade, elaborar novas texturas,

experimentar novos ingredientes, acompanhar novas tendências e ter

imaginação, conclui-se que cozinhar é arte e o chef é um artista.

Do exposto, entendo que a presente pesquisa, inédita e original, tem

caráter multidisciplinar, contribuindo para o diálogo entre a História e outras

Ciências Sociais.

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