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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Centro de Letras e Artes
Programa de Pós-Graduação em Teatro
Miguel Vellinho Vieira
ILO KRUGLI E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO ESPAÇO POÉTICO PARA O TEATRO INFANTIL NO BRASIL
Rio de Janeiro
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - MESTRADO
ILO KRUGLI E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO ESPAÇO POÉTICO PARA O TEATRO INFANTIL NO BRASIL
por
Miguel Vellinho Vieira
Orientadora: Professora Doutora Evelyn Furquim Werneck Lima
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Teatro.
Rio de Janeiro
2008
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___________________________________________ Vieira, Miguel Vellinho Título: subtítulo / Miguel Vellinho Vieira; Orientadora: Professora Doutora Evelyn Furquim Werneck Lima. – Rio de Janeiro: UNIRIO, Departamento de Letras e Artes, 2008. Xp. 129 p. 1. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Letras e Artes. Inclui referências bibliográficas.
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Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Ilo Krugli, razão da existência deste trabalho.
Agradeço pelo artista que é; por ter aberto caminhos de rara beleza em nossos
palcos; por formar gerações e gerações de artistas que compartilham o ideal de que
a criança pode ser tratada com respeito e inteligência. Este caminho foi algo que eu
mesmo pude constatar em 1976, quando descobri o quanto o teatro pode ser
maravilhoso, ao assistir à peça que analiso nas páginas a seguir. Definitivamente, era
aquele o mundo que eu queria para mim.
Agradeço imensamente à minha mãe, Helena Vellinho Vieira, por todo o seu
amor e também por sempre ter me apoiado e incentivado. Sem isso, eu jamais teria
chegado aqui.
A Alexandre Santos, pelo seu apoio e dedicação infinitos, vitais para a
conclusão desta pesquisa.
Às minhas irmãs, Angela e Regina, pela ajuda e torcida nas horas certas.
Agradeço à minha orientadora, Evelyn Furquim Werneck Lima, que me
conduziu por uma trilha de leituras e descobertas que levarei por toda a minha vida.
Sua atenção e determinação rigorosas foram portos seguros com os quais pude
contar durante todo o período de realização desta dissertação. Sua alegria e seu
carinho ajudaram-me a aproveitar melhor este momento.
Às professoras Ana Teresa Jardim Reynaud e Beatriz Vieira de Resende, pela
preciosa atenção e suporte dados generosamente em minha banca de qualificação.
Aos professores Walder Virgulino e Tania Brandão, raros e felizes encontros
dos quais tive o prazer de desfrutar durante minha permanência no Programa de
Pós-Graduação em Teatro.
Aos professores Lídia Kosovski e Valmor Beltrame – o Nini –, que se
dispuseram a ler e analisar este trabalho, participando de minha banca de defesa de
dissertação. Meu carinho e meu eterno agradecimento por participarem deste
momento tão importante de minha vida profissional.
Obrigado a Angela Leite Lopes, pela grande amiga e incentivadora que é.
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Agradeço aos meus colegas de mestrado, pelo companheirismo e pelos novos
vínculos que aqui nasceram e que irão se propagar para muito além dos anos em
que estivemos aqui reunidos. Ao colega Eduardo Vaccari, por revelar-se um
verdadeiro amigo, por sua atenção e carinho e pelos planos profissionais futuros que
nasceram deste encontro. A Claudia Petrina, por ter se mostrado uma grande
parceira. A Monica Menezes por seu carinho e companheirismo. A Andrea Elias, ao
Magela e ao Vicente.
Muito obrigado a Silvia Aderne, por fornecer farto material de seus arquivos,
fundamentais para a construção deste trabalho.
A Magda Modesto, por sua sabedoria e pela perspicácia nos pontos mais
relevantes do tema aqui proposto.
Por fim, agradeço imensamente aos meus companheiros de vida, minha
família, a família PeQuod: Liliane Xavier, Marise Nogueira, Marcio Nascimento, Marcio
Newlands, Mário Piragibe, Sérgio Saboya e Sílvio Batistela, pela infinita paciência e
confiança. Em especial ao grande parceiro Carlos Alberto Nunes, pelo seu amparo,
força e companheirismo sem fim.
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“Debaixo da água tem terra... Debaixo da terra tem água. Dentro de cada criança
existe um homem de olhos abertos para o mistério de crescer da noite para o dia e
do dia para a noite. Dentro de cada homem existe uma criança recolhida numa
sombra de crepúsculo que teima em evocar...”eu era”...”
Ilo Krugli
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO
CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE TEATRO
PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – MESTRADO
VIEIRA, Miguel Vellinho. Ilo Krugli e a construção de um novo espaço poético para o Teatro infantil no Brasil. 2008. 129 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008. Resumo
Por geralmente ser considerado uma arte menor, o Teatro feito para crianças
no Brasil carece de estudos aprofundados a seu respeito; no entanto, não lhe faltam
grandes autores e encenadores, bem como importância artística e cultural. Exemplo
disso é o objeto deste trabalho, a peça História de lenços e ventos, escrita e dirigida
por Ilo Krugli em 1974. Esta dissertação se propõe a sinalizar a relevância histórica
desse espetáculo para a trajetória das Artes Cênicas no país. Para tanto,
pesquisaram-se diversas fontes documentais, a fim de reconstituir um aspecto do
panorama do Teatro e do Teatro infantil dos anos 1970; fez-se a análise icono-
semiológica de um conjunto de fotos da montagem, a partir de metodologia
desenvolvida pela professora doutora Evelyn Furquim Werneck Lima, tendo por base
os estudos de Erwin Panofvsky e Tadeusz Kowzan; entrevistou-se Krugli de acordo
com a metodologia aplicada pela professora Verena Alberti no livro História Oral – A
experiência do CPDOC e estudou-se o texto da peça. Como resultado, constatou-se
que Krugli e seu espetáculo constituem, de fato, marcos da História do Teatro, por
sua significativa contribuição para a melhoria da qualidade e da poética das peças
encenadas para crianças. Com isso, estabelece-se mais um sólido ponto de
referência para uma futura valorização acadêmica do Teatro infantil e para a
organização formal de sua História.
Palavras-chave: Teatro infantil. Dramaturgia e encenação. Teatro nos anos 70.
Teatro brasileiro.
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ABSTRACT
Usually considered as a smaller art, in Brazil, the Theater for children has not been
deeply studied, until recently. However, there are great playwrights and directors of
artistic and cultural importance, as pointed out in this research about the play History
of handkerchiefs and winds, written and directed by Ilo Krugli in 1974. This
dissertation intends to point out the historical relevance of this particular spectacle in
the Scenic Arts of the country. In order to accomplish the investigation several
documental sources were researched to reconstitute the Theater for children in the
years 1970. Evelyn Lima’s icono-semiological methodology has been applied to
analyze a group of pictures of the play, and Krugli and some actors were interviewed
in the basis of Verena Alberti´s methods for oral history. As result, it was verified
that Krugli and his show constitute, in fact, one mark of the History of Theater in
Brazil, for its significant contribution to the improvement of the quality and to the
poetics of the plays staged for children.
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Sumário
INTRODUÇÃO...............................................................................................9
1. De volta ao reino da desigualdade: um aspecto do Teatro infantil nos
anos 1970 ...................................................................................................16
1.1. Sobre Elias Kruglianski ................................................................................21
1.2. A situação teatral carioca nos anos 1970 ......................................................25
1.3. Um vento forte sobre o Rio .........................................................................31
1.4. Sobre a história ..........................................................................................33
2. Uma análise icono-semiológica de História de lenços e ventos ............37
2.1. Aspectos gerais de encenação .....................................................................39
2.2. Se é de papel... – Conotações em cena ........................................................56
2.3. A indumentária – Moda e ideologia ..............................................................64
3. A poética Krugliana – Dramaturgia e encenação ...................................72
3.1. Mapeamento estético, conceitual e histórico .................................................75
3.2. Sobre a peça e sobre a cena .......................................................................78
CONSIDERAÇÔES FINAIS...........................................................................90
Referências bibliográficas .........................................................................96
APÊNDICE A: Sinopse de História de lenços e ventos...............................103
ANEXO A: Texto de História de lenços e ventos........................................106
ANEXO B: Ficha técnica da primeira montagem de História de lenços e
ventos (1974) ...........................................................................................128
ANEXO C: Entrevista com Ilo Krugli (CD em wave)..................................129
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INTRODUÇÃO
Este trabalho nasceu da constatação de que a obra de Ilo Krugli - batalhador
incansável do Teatro para todas as idades-, não foi objeto de nenhum estudo que se
debruçasse sobre seus procedimentos e estética. Sua contribuição foi significativa
para a melhoria da qualidade e da poética das peças encenadas com o propósito
primeiro de dirigir-se à criança. O interesse pela investigação nasceu também,
obviamente, devido à profunda admiração que tenho por esse profissional que, em
meio a tantos impedimentos e cerceamentos, pôde fazer brotar um trabalho tão
original, vivo e de grande alcance de público. Foi este o objetivo maior do trabalho,
feito: para apontar a pioneira trajetória de Krugli e propagar ainda mais suas tantas
qualidades ainda não estudadas. Sua entrega e amor à profissão, mesmo depois de
tantos anos passados de sua estréia em 1972, mostram uma coerência e uma
profundidade só encontradas nos grandes mestres. Ilo, sim, é um grande mestre.
Este trabalho também é um resgate da minha memória e das inúmeras
vivências que tive na presença de meu objeto de pesquisa, em uma linha de tempo
que nasce ainda na minha infância, ao assistir a História de lenços e ventos em
1976, no interior do Rio Grande do Sul. Aquele encontro com o maravilhoso, com um
universo de cores intensas e de grande movimentação, ficou guardado para sempre
em minha vida e, creio, tornou-se, anos mais tarde, a mola propulsora para que eu
adentrasse esse mesmo universo.
Dez anos mais tarde, já no Rio de Janeiro, ao dar aulas no Centro Integrado
de Cultura – (CIC ) no CIEP de Ipanema, entrei em contato com Sílvia Aderne, atriz
fundadora do Teatro Ventoforte e intérprete da personagem Chuva, entre tantas
outras, na primeira montagem de História de lenços e ventos. O encontro, que se
iniciou como sendo entre professor e coordenadora, abriu-se para muitos lados que
envolvem admiração e amizade em iguais proporções.
Alguns anos mais tarde, tive a oportunidade de rever, aqui no Rio de Janeiro,
a remontagem histórica de História de lenços e ventos dentro de um projeto de
ocupação fomentado pelo Instituto Brasileiro de Arte e Cultura – IBAC, atual
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FUNARTE, do Teatro Cacilda Becker, pelo grupo Hombú, nascido dos remanescentes
do Ventoforte que ficaram nesta cidade. Naquela apresentação, em 1991, vi já com
olhos de profissional uma beleza e poesia que permaneciam intactas. A história,
contada casualmente e que se transforma em uma grande saga pela liberdade,
reavivou minha memória e profundos sentimentos, difíceis demais para serem
explicados aqui.
Ainda no curso de Interpretação realizado nesta instituição, tomei contato,
como aluno, com Sílvia Heller, outra atriz da primeira montagem que também
reativou canais adormecidos da minha infância.
O ano de 1992 trouxe a oportunidade de ver in loco o trabalho desse diretor,
por eu ter sido selecionado para uma vivência de algumas semanas com o Teatro
Ventoforte, em São Paulo. Nessa vivência, pude verificar como ocorrem as
construções quase ao acaso e que geram plots e argumentos para serem encenados,
experiência complementada recentemente com depoimentos de Ilo colhidos por mim
para esta dissertação.
A partir dos desenhos realizados durante a oficina, nasceram histórias que
repetiam símbolos arquetípicos que Krugli costurou ao longo do trabalho de
laboratório, revelando novas histórias ao avesso, novos caminhos para histórias
tantas vezes já contadas. A propriedade e o manuseio de material tão etéreo
fizeram-me ver que Krugli trabalha em um nível de excelência que era fruto de anos
de estudos, leituras e experimentos. Os dias que passei morando no Teatro
Ventoforte tornaram-se referência para qualquer processo de montagem que eu
construa hoje em dia, tal era a profundidade e a pertinência de seus propósitos.
Nos anos seguintes, ao me mudar para São Paulo, minha convivência com Ilo
passou para outro patamar, aproximando-nos ainda mais. Aquele artista - antes visto
por mim apenas como um ídolo-, agora era um colega de ofício, com quem eu
compartilhava as mesmas expectativas e preocupações inerentes à classe teatral.
Em 2000, ao prestar concurso para o Programa de Pós Graduação em Teatro
desta instituição, retomei o contato com Sílvia Aderne, por quem fui presenteado
com todo o seu arquivo da época do Ventoforte, para que a construção do projeto e
do pensamento aqui exposto tivesse início.
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Finalmente, no ano passado, ao retornar à cidade de São Paulo para realizar a
entrevista anexa a este trabalho, revi Ilo, ainda com a mesma grandeza e
simplicidade que lhes são características. Refiz as costuras do tempo em duas tardes
de profunda reflexão sobre o fazer teatral, fruto de longas conversas com ele. Ouvi
novas histórias, novos caminhos que desfazem rapidamente a idéia de que esse
diretor esteja parado no tempo. O alcance e a amplitude de sua obra são
imensuráveis.
Espero, com este trabalho, contribuir para que uma nova história, uma história
recente do Teatro brasileiro, comece a ser contada e estudada. Uma história que tem
a criança como protagonista, vista como um ser completo e pleno de todos os seus
direitos.
Indo mais longe, atrevo-me a dizer que muito do meu trabalho atual,
realizado na Cia. PeQuod – Teatro de Animação, na qual atuo como diretor artístico,
aqui no Rio de Janeiro, sobretudo no que diz respeito ao meu útimo espetáculo, Peer
Gynt, de Ibsen, nasce a partir de observações e procedimentos usados por Krugli em
suas encenações. Em nossa montagem de Peer Gynt, por um ato de coragem e
liberdade, abrimos mão da neutralidade que há anos aterroriza qualquer profissional
que se dedica ao Teatro de animação; misturamo-nos aos bonecos em cena, sem
distinção de importância entre uns e outros, criando diálogos novos com a tradição
do Teatro de bonecos e novas camadas de significação ao texto do autor norueguês,
escrito há tanto tempo. Não há dúvida hoje de que existe na concepção de Peer Gynt
um germe oriundo dos jardins do Teatro Ventoforte.
Motivado, portanto, por tantas lembranças e diante de um grande vazio sobre
o tema, tenho como objetivo principal nesta pesquisa reunir elementos e analisar um
ponto específico de mudança de tom no contato com a criança, ocorrido nos palcos
cariocas em 1974.
Esta reflexão tem como base as inúmeras fontes documentais que reuni
através dos anos e que me permitiram formular questões e propor alguns
desdobramentos que considero fundamentais. São reportagens, críticas
especializadas publicadas na imprensa, filipetas, cartazes, programas de espetáculos
e, sobretudo, as imagens fotográficas aqui analisadas. Em um âmbito maior está a
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vontade de iniciar um grande mapeamento do Teatro infantil feito no país, pois é de
minha vontade que este trabalho venha a instigar novos pesquisadores a iluminar
esse caminho.
Desta forma, no primeiro capítulo, DE VOLTA AO REINO DA DESIGUALDADE:
UM ASPECTO DO TEATRO INFANTIL NOS ANOS 1970 reconstituí um panorama do
Teatro e do Teatro infantil nos anos 1970, entendendo as implicações causadas pela
ditadura militar vigente no país desde 1964. A partir de uma acurada pesquisa
realizada na Biblioteca Nacional e nos arquivos da FUNARTE, consegui montar um
quadro aprofundado da situação da produção teatral, sobretudo no que se refere ao
ano de 1974, data da estréia de História de lenços e ventos. Nesse capítulo, são de
vital importância as declarações de Yan Michalski, quem, sem surpresa, mostra-se o
observador mais atento daquele panorama, seja no calor do momento em suas
críticas e na sua coluna semanal no Jornal do Brasil, seja em suas considerações
posteriores editadas em livro anos depois.
Em paralelo a Michalski, os apontamentos de Maria Lúcia Pupo, Maria Helena
Kühner, Ana Maria Machado e Heloísa Buarque de Hollanda permitiram criar uma
rede teórica de grande utilidade para material ainda tão disperso. Ainda nesse
capítulo, apresento parte das atualizações formais trazidas por Krugli, bem como
discorro sobre sua trajetória artística ainda na Argentina até o momento da estréia
do espetáculo que funda o Teatro Ventoforte. Por fim, apresento uma análise das
principais críticas dedicadas ao espetáculo, visando um entendimento maior do que
foi a recepção da montagem quando de sua estréia.
Em UMA ANÁLISE ICONO-SEMIOLÓGICA DE HISTÓRIA DE LENÇOS E
VENTOS, título do segundo capítulo desta pesquisa, procurei tratar de um conjunto
de quinze imagens da montagem, utilizando como ferramenta a metodologia
desenvolvida por minha orientadora, a professora doutora Evelyn Furquim Werneck
Lima, quem propõe um amálgama entre a iconologia e a semiologia, tendo por base
os estudos de Erwin Panofvsky e Tadeusz Kowzan para o estudo de imagens de
espetáculos teatrais. Para esse capítulo, foram fundamentais as imagens cedidas
pelo Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC da Fundação Nacional de Arte –
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FUNARTE e do arquivo do Centro Brasileiro para o Teatro da Infância e Juventude –
CBTIJ, ambos com sede nesta cidade.
Esse momento do trabalho foi realizado também a partir de entrevista que fiz
com Krugli em dezembro de 2007, em seu espaço de trabalho, o Teatro Ventoforte,
em São Paulo, facilitada graças ao Programa de Pós Graduação em Teatro desta
instituição, cuja contribuição foi decisiva. Todas as informações foram previamente
checadas pelo autor para um maior rigor do trabalho, o que possibilitou um maior
aprofundamento dos elementos visuais e plásticos utilizados no espetáculo. Ainda
sobre a entrevista, saliento que segui rigorosamente a metodologia aplicada pela
professora Verena Alberti em seu livro pioneiro História Oral – A experiência do
CPDOC, publicado pela Fundação Getúlio Vargas.
Nesse ponto, foi bastante interessante aproximar Krugli de Kurt Schwitters,
dadaísta alemão do início do século XX que, como Ilo, investe na poética do objeto
encontrado. Da mesma forma, pude localizar determinados procedimentos e práticas
que, por sua repetida utilização, impõem-se como características marcantes da
encenação e da poética krugliana, nas quais a simplicidade e a poesia sugerem
profundas cisões em todos os elementos constitutivos da cena.
Fora isso, os inúmeros referenciais icônicos encontrados em um grupo de
fotos pequeno - mas não menos importante-, são uma sugestão para
aprofundamentos e novos desdobramentos que esta pesquisa pode oferecer.
Finalmente, no terceiro capítulo A POÉTICA KRUGLIANA - DRAMATURGIA E
ENCENAÇÃO, realizo um último procedimento de análise sobre os aspectos
primeiramente do texto impresso da montagem e também sobre as últimas
considerações que se podem estabelecer sobre sua montagem. Partindo de uma
aproximação do estudo pioneiro de Heloísa Buarque de Hollanda sobre os novos
aspectos da poesia surgidos nos anos 1970, pude constatar um alinhamento estético
que faz de Ilo um propagador dessas atualizações formais no Teatro infantil.
A permanência de Krugli no cenário artístico até os dias de hoje balizam-me
para concluir que suas expiências cênicas abriram um novo espaço no que tange à
construção de um caminho inusitado e de um novo sentido que o Teatro pode
oferecer às gerações mais novas. Entendo que hoje o Ventoforte é uma grande
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árvore com centenas de ramificações que nasceram, justamente, quando da partida
de Ilo para São Paulo. Os remanescentes que no Rio de Janeiro ficaram
transformaram-se em um novo braço de trabalho, o grupo Hombú, que há mais de
30 anos desenvolve um trabalho que dialoga com Krugli constantemente, seja na
direção de espetáculos, seja em parcerias, seja em projetos que englobam as duas
companhias, comprovando que os vínculos artísticos, mesmo passados tantos anos,
ainda alinham-se esteticamente. Da mesma maneira, ainda no Rio de Janeiro, outros
contemporâneos continuam a desenvolver projetos artísticos que bebem nas
mesmas fontes, como, por exemplo, o grupo Navegando, capitaneado pela diretora
Lúcia Coelho, uma das primeiras alunas do diretor ainda na Escolinha de Arte do
Brasil. Em São Paulo, já são uma infinidade de grupos e grandes profissionais que
nasceram sob os galpões do Ventoforte. Particularmente, Krugli é responsável pela
vinda de outro argentino para o Brasil, Osvaldo Gabrieli, diretor e artista plástico que,
ainda na primeira metade da década de 1980, refez os parâmetros do Teatro de
animação no país ao fundar a companhia XPTO.
No ano em que se celebram os sessenta anos da estréia de O Casaco
Encantado, de Lúcia Benedetti, marco inaugural do Teatro infantil no Brasil, esta
pesquisa sobre as transformações propostas por Krugli décadas depois, estabelece
uma proposta de demarcação da História do Teatro infantil no Brasil. Trata-se,
conforme demonstrado nesta dissertação, de uma história feita de paixão e que
ainda hoje é injustamente vista como uma atividade menor dentro do panorama das
Artes Cênicas. No entanto, nosso Teatro para crianças nasceu dentro das melhores
condições e teve a atriz Henriette Morineau, já consagrada na época, como a “bruxa
desastrada” do texto de Benedetti em sua estréia.
Esta pesquisa, portanto, pretende servir de ferramenta para entender um dos
capítulos de maior poesia e liberdade ocorridos nesta curta trajetória de sessenta
anos do Teatro infantil no Brasil e reafirmar a existência e a grandeza de uma
história que começou com Benedetti, passou por Maria Clara Machado, grande
fomentadora e figura de maior expressão do Teatro infantil, e que tem na figura de
Ilo Krugli uma excelência artística rica em inteligência, profundidade e sensibilidade,
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a qual propõe, através de uma intensa teatralidade, uma viagem interior rumo ao
crescimento e ao auto-conhecimento do ser humano.
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1. DE VOLTA AO REINO DA DESIGUALDADE1: UM ASPECTO DO
TEATRO INFANTIL NOS ANOS 1970
“Teatro infantil não pode ser visto como um segmento isolado.
Deve ser, antes de mais nada, Teatro.
E, como tal, parte do processo cultural de todo um povo”.
Ana Maria Machado
O quadro desalentador em que se encontrava o Teatro para crianças no início
dos anos 1970 era reflexo do desalento maior vivido por todos aqueles que faziam
Teatro num período de diminuição das atividades democráticas no país. Em um dos
mais importantes documentos sobre a atividade teatral daquele momento, o crítico
de Teatro Yan Michalski (1979:08-09) dá conta de que
O teatro foi erigido em inimigo público número um; mas dizer que foi erigido um dos inimigos públicos mais declarados, e, por conseguinte, tratado com sistemática desconfiança, hostilidade e não raras vezes com brutalidade, é constatar uma verdade histórica inegável.
Em uma época na qual houve uma drástica redução da produção teatral,
quando vozes dissonantes como as de Cacilda Becker (1921-1969) e Oduvaldo
Vianna Filho (1936-1974) tragicamente se calaram e a televisão se instaurou como
um substitutivo glamourizado dessa atividade, o Teatro brasileiro sofreu danos
irreparáveis.
Se, durante os anos 1960, a efervescência de grupos como o Arena, o Oficina
e o Opinião renovou o público das salas de espetáculos, ao aproximar-se de uma
juventude sedenta por novidades, na década seguinte, essa mesma juventude
assistiu ao desmonte do sistema teatral. Hoje, décadas depois, pode-se assinalar que
exatamente naquele momento o Teatro foi alijado da sociedade brasileira,
1 O título deste capítulo faz referência ao livro No Reino da Desigualdade, de Maria Lúcia de Souza B. Pupo, editado pela Editora Perspectiva.
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transformando-se em uma arte “para poucos”, hermética e distanciada da vida
nacional.
Segundo Heloísa Buarque de Hollanda (2004:70-1), o tema ganha novos
contornos e profundidade ao salientar que
O circuito fechado e viciado em que a classe média informada juntava-se para falar do ‘povo’ não produzia mais efeito. Era preciso pensar a própria contradição das pessoas informadas, dos estudantes, dos intelectuais, do público.
Esse desmonte obviamente paralisou, se não finalizou prematuramente, a
pesquisa dos mais importantes grupos teatrais daquele momento – os citados acima,
com exceção do Oficina –, transformando radicalmente o panorama teatral da época.
As buscas por novas estéticas e novas poéticas que estavam sendo experimentadas
e também absorvidas na década anterior deram lugar a uma cena comportada,
tímida e – por que não? – reprimida. É Michalski novamente quem consegue definir a
situação kafkiana em que vivia a classe teatral ao refletir que
O que causa perplexidade em primeiro lugar é a flagrante desproporção entre, por um lado, as energias gastas pelo Sistema, o calibre dos cartuchos por ele usados nesta campanha repressiva e, por outro, a possível periculosidade do objeto reprimido. (1979:10).
Obviamente, o teatro destinado ao público infantil também não poderia
escapar dessa crise, que, no entanto, se dá não só por limitações de um regime de
governo autoritário, mas por algo de igual gravidade. É o que aponta Maria Lúcia
Pupo (1991:148) em um dos mais aprofundados estudos sobre tal segmento teatral
naquele período
Nossa dramaturgia infantil oferecia, na década de setenta, um modelo pobre e cristalizado de conhecimento do ser humano. A análise indicou que ela tendia a colaborar para a manutenção de privilégios de ordem social, ao subestimar ou ignorar o tratamento de temas que, de algum modo, incitassem ao questionamento tanto das relações entre os homens, quanto das instituições por eles criadas. Este quadro fica mais claramente delineado ao se ressaltar que os textos tendem à apresentação de respostas fechadas para as questões que levantam. Conseqüentemente, esta dramaturgia infantil contribuía de modo
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inevitável para a formação de uma visão de mundo que consagra a ordem social vigente como a única possível.
Naquele momento de esgotamento dos antigos enredos, acordava-se também
para uma das principais causas dessa crise. Clóvis Levi, crítico de teatro infantil, em
texto publicado no jornal O Globo resume com veemência que “nossos autores não
conhecem suficientemente psicologia infantil; e ignoram quase tudo sobre a criança
de hoje.”2 E vai além ao apontar a produção desse setor como óbvia, sem
criatividade e maniqueísta. No entanto, causa-lhe espécie o quanto essa dramaturgia
apresentava-se velha, “cheias de pieguice, carregadas de diminutivos e repletas de
didatismos e moralismos extremamente discutíveis”.3
Em uma outra seara da Cultura e nascido na década de 1960, o Tropicalismo4
dava vazão a toda uma criação artística que voltava valorizar elementos da produção
cultural que, em períodos anteriores – como no Modernismo de 1922 –, já havia
sofrido uma reflexão, só que agora, no calor de uma grande crise nacional, o projeto
tropicalista se estruturava de forma emergencial. Heloísa Buarque de Hollanda
(2004:64), na obra pioneira sobre a produção poética e marginal dos anos 1970,
ressalta que:
A preocupação com a atualização de uma linguagem “do nosso tempo”, já presente no concretismo, passa, a partir do Tropicalismo, a ser aprofundada e relacionada a uma opção existencial. O fragmento, o mundo despedaçado e a descontinuidade marcam definitivamente a produção cultural e a experiência de vida tanto dos integrantes do movimento tropicalista, quanto daqueles que nos anos imediatamente seguintes aprofundaram essa tendência (...).
Essa “atualização” formal, portanto, parece-nos não ter atingido os principais
porta-vozes de um Teatro destinado às novas gerações, presos a fórmulas ou
enrijecidos dentro de parâmetros que os impediam de avançar em experimentações
2 Xerox, sem data. Fonte: Biblioteca da Funarte, Rio de Janeiro, RJ. 3 Xerox, sem data. Fonte: Biblioteca da Funarte, Rio de Janeiro, RJ. 4 Movimento estético-musical surgido em decorrência da confluência das vanguardas artísticas dos anos 1960 e de sua aproximação com a cultura pop nacional e estrangeira. Sua configuração mais visível se dá na aproximação de manifestações tradicionais da cultura brasileira com experimentações estéticas radicais. Comportamental, político e social, influenciou a música popular, o cinema e as artes plásticas em geral na década seguinte.
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dramatúrgicas e de encenação. Nem mesmo em um momento de absoluta
polarização político-cultural, os autores mais representativos desse setor sequer
esboçavam qualquer curiosidade em rever aspectos da cena que já vinham sendo
revistos em outros segmentos das artes cênicas, tais como na cenografia de Lina Bo
Bardi idealizada para a montagem de Na selva das cidades de Brecht e encenada por
José Celso, em 19695.
Havia, enfim, um novo “sentimento do mundo”, que, por razões obscuras, não
contaminou aqueles que estavam preparando tanto novas platéias, quanto novos
talentos. Essa dissociação pode ser percebida, por exemplo, n’O Tablado, escola
informal de Teatro mantida desde os anos 1950 pela autora e diretora Maria Clara
Machado.
Ao empreender uma análise aprofundada desse caso, Michalski (1986: 70) vê
na trajetória d’O Tablado
Uma certa conotação de espírito aristocrático e conservador, pouco atento às peculiaridades da realidade brasileira, à evolução do teatro mundial e à possibilidade de conquista de novas faixas de público, além daquelas que espontaneamente se identificavam com a linha do grupo desde a sua fundação.
Não há como negar o aspecto pioneiro de Maria Clara Machado e seu O
Tablado, e há uma contrapartida extremamente favorável à sua produção
dramatúrgica. No entanto, não é possível ocultar o progressivo isolamento d’O
Tablado, também observado por Michalski como se estivesse em uma “torre de
marfim” alheia ao fluxo extremamente dinâmico do movimento teatral. É
interessante notar que, concomitante à entropia d’O Tablado, Peter Brook, do outro
lado do Atlântico, vindo de uma tradicional carreira de diretor shakespereano, foi
capaz de proclamar, quando de sua montagem intitulada Teatro de Crueldade,
realizada a partir de fragmentos de Antonin Artaud, que
Estamos apresentando nosso programa numa época em que todas as convenções teatrais são contestadas e não existem mais regras. Nosso grupo, por sua vez, pôs de lado enredo, estrutura, personagens, técnica, ritmo, final apoteótico, grande cena, clímax dramático,
5 Ver LIMA, Evelyn Furquim Werneck. O espaço cênico de Lina Bo Bardi: uma poética antropológica e surrealista. ARTcultura n. 15, 2007.
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partindo da premissa de que, em 1965, a confusão e complexidade de nossas vidas devem levar-nos a questionar todas as formas tradicionais.6
É nesse panorama que surge a figura de Elias Kruglianski, mais conhecido
como Ilo Krugli, argentino que, depois de percorrer quase toda a América do Sul
vivenciando esse novo “sentimento de mundo” libertário e contestatório, desembarca
no Brasil ainda nos anos 1960. Juntamente com Pedro Domingues (1936-2004),
funda nos anos 1970 o Teatro de Ilo e Pedro, que se torna uma das maiores
referências do Teatro de bonecos no Rio de Janeiro. Na década seguinte, passa a
ganhar mais destaque ao realizar, a partir de 1974, encenações e textos que,
segundo Pupo (1991:24), estão
Em consonância com uma noção mais contemporânea de teatro, assumem às últimas conseqüências a fragilidade e o caráter efêmero e mutante da própria representação teatral. A incorporação dessa visão de teatro se traduziu em termos de dramaturgia pela criação de textos que, ao invés de se configurarem como peças acabadas, se apresentam sob forma de roteiros de improvisação a serem necessariamente desenvolvidos pelos emissores do espetáculo.
A citação acima está especificamente relacionada neste projeto ao texto e à
encenação de História de Lenços e Ventos, montagem realizada por Ilo Krugli em
1974 que deu origem ao seu grupo, o Teatro Ventoforte. Os procedimentos e a
poética que Krugli traz para a cena do Teatro infantil do Rio de Janeiro dialogam com
os avanços empreendidos pela vanguarda teatral a partir dos anos 1960. Ele
recupera o sentido do jogo cênico em prol de tudo que nele há de “invenção,
imprevisto e transformação”7, aproximando-se, assim, do jogo espontâneo da
criança.
Esse diferencial faz de Krugli um criador que manuseia com propriedade tanto
as histórias mais longínquas da infância, quanto os pressupostos de Brecht e
Grotowski, que era, naquele período, a voz instauradora de uma nova ordem do
fazer teatral. Neste sentido, os espetáculos de Krugli podem perfeitamente ser
6 BROOK, Peter, O Ponto de Mudança – Quarenta anos de experiências teatrais, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1994. Pág. 87 7 Idem, 24
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pareados com os de José Celso Martinez Correa – a partir da montagem de O Rei da
Vela em 1967, com o seu grupo, o Oficina –, bem como os do Living Theatre e do
Bread and Puppet, grupos estrangeiros que mais investigaram a cena teatral daquele
momento, dando à luz uma nova dramaturgia.
Em todos esses exemplos, a Contracultura é o elemento unificador que
instigava criadores de todo o mundo a buscar um novo modo de atingir o
espectador, através da desconstrução dos elementos cenográficos, dramatúrgicos,
interpretativos e de toda e qualquer espécie de recurso teatral existente. As opções
estéticas de Krugli nascem exatamente daí: da Contracultura, do movimento hippie e
da sua leitura mais genuinamente brasileira, o Tropicalismo.
Mais do que realocar a obra e o legado de Krugli no fazer teatral brasileiro,
buscar-se-á observar a partir de textos de Heloisa Buarque de Hollanda e Didier
Plassard como as encenações de Ilo traduziram-se em fragmentos e mesmo
estilhaços de um momento de afunilamento das liberdades. Além disso, procurar-se-
á demonstrar que essa cena despedaçada, fragmentada, abriu novos e virginais
caminhos para quem se dedica ao Teatro para crianças, reinventando um novo canal
de comunicação que não se detém apenas ao território da palavra. Assim, este
trabalho aponta para um estudo sobre a dramaturgia e a encenação de Ilo Krugli a
partir de uma análise icono-semiológica do espetáculo História de Lenços e Ventos e
que encontra-se publicada pela Editora Didática e Científica desde 2000 como parte
da Coleção Vertentes Teatrais, organizado pelo pesquisador e crítico de Teatro
infantil Carlos Augusto Nazareth.
1.1. Sobre Elias Kruglianski
Nascido Elias Kruglianski em 1930, em Buenos Aires, Argentina, Ilo era filho
de imigrantes operários poloneses e teve formação autodidata. Ainda jovem, teve
seu primeiro contato com o Teatro através das encenações organizadas pelos
imigrantes, através das quais conheceu as dramaturgias russa, alemã e polonesa,
focos das montagens feitas por essas associações, que difundiam a sua língua e a
sua cultura em terras platenses. Trabalhou como operário de litografia numa fábrica
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de cerâmicas, freqüentou vários ateliês de desenho e pintura na capital portenha e,
por fim, participou de um grupo de Teatro de bonecos que durante anos se
apresentou no Teatro La Mascara e na Organização Latinoamericana de Teatro
(OLAT). Com esse grupo inicial, rapidamente apresentou-se não só em Buenos Aires,
mas nas cidades da periferia, bem como no norte da Argentina.
O jovem Elias, portanto, é mais um fruto da passagem histórica de Garcia
Lorca por Buenos Aires8, que fomentou o trabalho de artistas plásticos, artesãos e
escritores para a criação do Teatro de bonecos argentino, uma vez que ele tinha seis
anos na época. Um dos mais destacados artistas que travaram contato com Lorca foi
Javier Villafañe, célebre titiritero portenho, que inspirou o pequeno Elias através de
espetáculos e livros de textos para bonecos:
Eu tinha oito anos quando a professora do primário me ensinou a fazer bonecos. Ela me deu de presente um livro de um poeta e titeriteiro Javier Villafañe. Ele percorreu toda a América Latina, inclusive o Brasil, fazendo principalmente teatro para crianças. Foi a partir daí que eu comecei a fazer bonecos. (...) A grande brincadeira era fazer teatro mesmo. Lembro que fazia um espetáculo chamado O Príncipe Feliz. Só na adolescência é que eu descobri que o autor era Oscar Wilde.9
Em 1958, como muitos jovens que repetiram o gesto de Che Guevara, Krugli
inicia uma viagem com Pedro Domingues, seu parceiro no Teatro Cocuyo, por vários
países da América Latina, apresentando-se em muitas cidades bolivianas, em
pequenos povoados indígenas da Cordilheira dos Andes, nas vilas ao redor do lago
Titicaca e nas comunidades quetchuas. Em Cuzco, permanece durante quase um ano
vivendo de apresentações e inicia um trabalho paralelo de educação artística com
crianças indígenas e mestiças, sendo até hoje visível em seu trabalho essa
aproximação com as culturas autóctones do continente sul-americano. Em suas
8 Durante os anos de 1933 e 1934, Federico Garcia Lorca se instala em Buenos Aires a convite da atriz Lola Membrives e da Sociedade Amigos del Arte em função da estréia de Bodas de Sangue na capital argentina. Lá, através de encontros e pequenas apresentações, fomenta uma nova geração de titiriteros, que seguiriam sua forma poética de narrativa. 9 Entrevista fornecida ao Centro Brasileiro para o Teatro da Infância e Juventude – CBTIJ. Ver wwww.cbtij.org.br
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encenações, percebe-se uma mistura muito bem dosada de padrões visuais
característicos dessas culturas.
Conseqüentemente, aqui no Brasil, seu interesse pelas comunidades indígenas
brasileiras se reflete na montagem de Mistério das Nove Luas, muito antes da
conscientização sócio-política do elemento indígena que emergiu na década de 1970.
Também aqui, sua aproximação com a cultura afro-brasileira torna-se fonte de
inspiração para a ritualização de seu teatro, seja nos figurinos, que se assemelham
aos de divindades africanas, seja na forte percussão, repleta de instrumentos
musicais encontrados nessas manifestações.
A chegada de Ilo ao Brasil em 1961 se deu graças ao artista plástico Augusto
Rodrigues, que o convidou para ministrar cursos na Escolinha de Arte do Brasil. Uma
vez estabelecido no país, Krugli lecionou ainda no curso de musicoterapia do
Conservatório Brasileiro de Música, entre tantas outras atividades que realizou, como
palestras e oficinas em centenas de cidades do país. Entre o ano de sua chegada e
1970, manteve, juntamente com Pedro Domingues, o Teatro de Ilo e Pedro, uma
companhia de Teatro de bonecos que servirá como balão de ensaio para as
encenações que viriam na década seguinte e que o fariam despontar como diretor. O
repertório daquela época ainda dialogava com a tradição do Teatro de bonecos, em
que os bonecos de luva10 e de fios11 eram destaques. Um espetáculo importante
desse período foi a produção da ópera El Retablo de Maese Pedro, de Manuel de
Falla, criado para a Sala Cecília Meirelles, com cenários e direção de Gianni Ratto e
direção musical e regência de Isaac Karabitchevski. De 1970 a 1973, cria e dirige o
Núcleo de Atividades Criativas (NAC) ainda em parceria com Pedro Domingues e com
a musicista Cecília Conde.
Como artista plástico, Ilo Krugli participou por duas vezes consecutivas da
Bienal Internacional de São Paulo, nas edições de 1968 e 1970. Ainda na década de 10 Comumente chamado também de fantoche, pode ser classificado como uma manipulação interna, já que a mão do manipulador se insere numa estrutura maleável, feita de pano, que possui três extremidades rígidas (mãos e cabeça), podendo ser de madeira, isopor, papier machê, entre outras possibilidades. Com medidas aproximadas em torno de trinta centímetros, esse tipo de manipulação tradicionalmente requer um anteparo para que a cena se estabeleça, este chamado de empanada. 11 A manipulação de bonecos de fios, habitualmente conhecidos como marionetes, é aquela que se dá a partir de uma estrutura geralmente de madeira, a qual chamamos de avião, de onde partem os fios que se prendem a inúmeras partes de um boneco rígido articulado. A movimentação se estabelece, portanto, a partir da movimentação dos fios, graças à gravidade.
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1960, travou contato com a doutora Nise da Silveira, com quem participou
ativamente de seus estudos sobre Carl Gustav Jung. Por mais de dez anos de
trabalho, esteve junto dessa pesquisadora, editando também a revista Quartênio.
Não há como negar que esse intenso período dos estudos psicanalíticos influenciados
por Jung serviu de base para toda a fundamentação do Teatro de Krugli, em um
momento posterior. Suas investigações sobre a criança, “a raiz arcaica do homem”12,
se estabelecem através de estudos que unem o inconsciente coletivo, a formação
arquetípica e relações análogas comuns entre os homens.
Em 1972, depois de anos de burilamento em oficinas que coordenou desde
sua chegada ao Brasil, Krugli volta aos palcos para apresentar o espetáculo História
de Um Barquinho, sua primeira experimentação formal que se estabeleceria nos anos
seguintes, já como fundador do Ventoforte. A montagem foi vencedora de
importantes prêmios nas categorias de Melhor Espetáculo Infantil, Melhor Direção e
Melhor Música. Um hiato o leva ao Chile, onde cria o grupo Manos às vésperas do
golpe de estado que derrubou Allende. Nessa curta estada de oito meses, produziu
por lá uma versão de História de Um Barquinho. Com a derrocada da democracia no
Chile e o dramático desaparecimento de alguns membros desse grupo, Ilo decide
retornar ao Brasil. Vale lembrar, inclusive, que o golpe de estado ocorreu em
setembro de 1973, apenas seis meses antes da concepção de História de Lenços e
Ventos.
No início de 1974, Krugli é convidado para participar do Festival de Teatro
Infantil e de Bonecos, organizado pelo Teatro Guaíra, em Curitiba, PR, juntamente
com Pernambuco de Oliveira, Aldomar Conrado e Maria Helena Kühner, entre outros.
Em semanas, prepara um espetáculo para apresentar no evento: História de Lenços
e Ventos. Presente ao festival como crítica de Teatro infantil do diário carioca Jornal
do Brasil, a autora Ana Maria Machado volta ao Rio de Janeiro entusiasmada com o
que vira na capital paranaense. O encontro, que teve foco sobre a formação de
platéia, seleção e criação de textos e temas mais específicos desse segmento teatral,
como o maniqueísmo como eixo central da dramaturgia destinada às crianças, serviu
12 FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais - Anos 70. Campinas, Editora da UNICAMP, 2000, pág. 174.
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também para sinalizar o espetáculo inédito de Krugli como a grande promessa de
1974.
Após a estréia de História de lenços e ventos, em 1974, a vida de Krugli ganha
um novo ritmo, com a criação do Teatro Ventoforte, que produzirá ainda no Rio de
Janeiro os espetáculos Da Metade do Caminho Ao País do Último Círculo (1975),
Pequenas Histórias de Lorca (1976), Mistério das Nove Luas (1977) e Sonhos de Um
Coração Brejeiro Naufragado de Ilusão (1978). A partir de 1980, Krugli muda-se para
São Paulo, SP, onde mantém o Ventoforte até os dias de hoje.
1. 2. A situação teatral carioca nos anos 1970
Decididamente, o ano de 1974 não estava repetindo o marasmo dos anos
anteriores, em que a classe artística, premida por várias contingências, buscava
meios de driblar a crise econômica e, sobretudo, a Censura. Se, no segmento adulto,
o Rio de Janeiro assistia ao clássico instantâneo de Guarnieri Um Grito Parado no Ar,
à contemporaneidade de um Tchekov na montagem de Jorge Lavelli para A Gaivota
e a um novo texto de Nélson Rodrigues, que havia dez anos não lançava uma nova
obra dramática e que, em O Anti-Nélson Rodrigues, revertia toda a expectativa, o
teatro infantil parecia estar acordando para a percepção de que aquela criança dos
anos 1970 estava apta a receber mais e novas temáticas que a distanciavam das
antigas histórias, que por si sós já eram velhas, como aponta Maria Helena Kühner
(1973:10), dramaturga e grande especialista no assunto, que soube captar com mais
precisão as tais transformações ao afirmar que
Já está começando a existir uma nova criança, isto é, a criança formada no contato direto com uma realidade que entra em sua casa diretamente pela tevê, pelos jornais e revistas e que não espera mediação dos pais e professores, como acontecia anteriormente, para criarem entre ela e o mundo um anteparo que, muitas vezes, eram também antolhos. Essa nova criança, mais exposta mas também mais solicitada, dando muito mais de si, amadurecendo mais cedo, vendo seu equilíbrio a cada instante pressionado por um dado novo que ela tem que absorver e integrar, não é uma criança que se possa satisfazer com textos com uma visão tradicional do mundo. Sua própria fantasia tem outros móveis, sua visão de mundo é muito mais ampla. Escrever para ela supõe tentar conhecê-la e ver as coisas pelo
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seu ângulo de visão, ter uma noção de que sua realidade é hoje outra e afeta sua linguagem e sua maneira de pensar e sentir.13
Essa observação também se faz presente em um artigo14 de Ana Maria
Machado:
Pela primeira vez, em muito tempo, as últimas semanas têm mostrado alguns problemas de queda de freqüência em certos teatros da zona sul que se especializaram em apresentar peças infantis de péssimo nível em mesquinhas montagens comerciais.
Os pais, os responsáveis e os professores nas escolas subitamente atenderam
ao apelo de Machado no sentido efetivo de entender o teatro não como um
passatempo, mas como uma experiência estética pela qual a formação do indivíduo
está eminentemente ligada.
Observando os números, percebe-se que aquele ano demonstrou uma intensa
produção no teatro infantil. Nada menos que setenta e nove montagens15 estiveram
em cartaz durante o ano, com uma média de 14,5 opções por semana, resultado,
entretanto, da alta rotatividade de produções de baixa qualidade. Este número,
consideravelmente alto para os padrões da época, acabava por igualar-se às opções
do teatro adulto, sinalizando que o segmento infantil entrava em um processo de
popularização. Em paralelo, a participação quase solitária de Ana Maria Machado
como crítica de Teatro infantil no Rio de Janeiro naquele período foi fundamental
para a orientação do público carioca, que ainda não tinha veículos próprios para uma
boa seleção dos espetáculos em cartaz. Visto como passatempo, o Teatro infantil
naquele contexto ainda igualava-se a outras instâncias apenas recreativas dedicadas
à infância.
Em um exame mais detalhado, a produção carioca desse segmento era
dominada por inúmeras montagens de clássicos infantis que se caracterizavam pela
13 Teatro Infantil em Debate, Cadernos de Teatro, no. 59, out/nov/dez de 1973, Publicações O Tablado, Rio de Janeiro, RJ. 13. Teatro Infantil – Uma Boa Safra Apesar do Mau Tempo, Jornal do Brasil, 27 de agosto de 1974. 15 Número obtido a partir de pesquisa realizada na Biblioteca Nacional, onde se analisou todas as edições do Jornal do Brasil publicadas em 1974, a fim de se chegar a uma lista completa das peças infantis levadas aos palcos cariocas naquele ano.
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extrema pobreza de recursos. Histórias como as de Chapeuzinho Vermelho e de
Pinóquio ganhavam a cena de modo extremamente redutor, se comparado ao texto
original, transformado agora em histórias moralistas de teor rançoso. Esta
observação faz coro com Maria Lúcia Pupo ao afirmar que
Seguidamente os autores teatrais fazem a ação de suas peças decorrer dentro de um contexto cujo caráter mágico não é assumido até as suas últimas conseqüências. Ao nível das intenções do autor, parece existir uma tentativa de utilizar elementos mágicos mantendo uma pretensa crítica em relação a eles. (1991:53-4)
Portanto,
A magia, então, é visivelmente empobrecida e freqüentemente desacreditada pelas próprias personagens. Embora questionada, ela continua sendo, porém, o cerne da trama, o que acarreta como resultado, um texto que não se sustenta nem como fantástico, nem como aniquilamento do fantástico. (1991:54)
Pois essa questão – do texto – foi o ponto de partida para uma discussão da
produção teatral do Rio de Janeiro, e que acompanhava as preocupações do Teatro
adulto, às voltas com os rigores da Censura Federal, visto que desde o
estabelecimento do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em 1968, a classe
artística havia se transformado em um alvo preferencial da Polícia Federal. Dezenas
de textos e montagens se viram impedidas de chegar ao palco, muitas vezes na
véspera da estréia, desmantelando muitos produtores teatrais que arcavam sozinhos
com todos os prejuízos.
Pois seis anos após a instituição do Ato, a classe teatral começava a olhar
para outros caminhos, na tentativa de encontrar novos pontos de contato com seu
público. Se, por um lado, Um Grito Parado no Ar se mostrava como um ponto de
resistência, os clássicos se transformaram em um veículo para o pleno exercício da
profissão sem significar um alheamento aos dias que corriam. É o caso da montagem
de Coriolano, de Shakespeare, que o ator Paulo Autran produziu e na qual atuou,
buscando em um dos textos mais políticos do autor inglês um espelho para o que
ocorria naquele momento.
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De igual maneira, a dramaturgia destinada às crianças estava na pauta do dia
da classe teatral carioca, sendo Maria Clara Machado, Maria Helena Kühner e Ana
Maria Machado as porta-vozes de tal discussão, que buscava uma melhoria na
qualidade dos espetáculos oferecidos às crianças, uma vez que uma irresponsável
conjunção de produtores, diretores e atores descobriu nesse segmento das Artes
Cênicas uma fonte de renda de facilidades incomparáveis.
Em pesquisa realizada nos jornais da época, pôde-se averiguar a presença
maciça desse Teatro de biscate – como bem intitulou Maria Clara Machado –, que
semanalmente renovava seu repertório no intuito de criar um público cativo e
constante. Assim, observa-se o caso de um diretor capaz de montar quatorze
espetáculos por ano, todos eles versões de histórias já consagradas e contos infantis
que ganhavam uma adaptação sem o menor critério. Segundo críticas de Ana Maria
Machado, os cenários e os figurinos muitas vezes eram encontrados mais de uma vez
em produções diferentes, uma prática que infelizmente ainda é observada nos dias
de hoje. Em outro caso, o nome do produtor era a voz de maior expressão,
eliminando a do diretor, responsável por pôr em cartaz nove produções ao longo do
mesmo ano. Era contra esse Teatro fácil e apelativo, com condições de produção
indigentes e que envergonhavam a própria classe teatral, que Ana Maria Machado foi
ganhando voz e se estabelecendo como a principal referência da época nesse
segmento teatral. No artigo já citado, esta crítica teatral analisa com acuidade aquele
momento que até então era notado apenas pela classe teatral. Ao expor o panorama
em duas páginas centrais do caderno cultural na edição dominical de um jornal de
grande circulação no Rio de Janeiro, ela acabou por chamar a atenção de uma
grande parcela da população consumidora de tal segmento do Teatro:
O Teatro Infantil carioca está vivendo agora alguns dos seus melhores dias dos últimos anos, com um surto de peças de qualidade que representam um instante raro no gênero, o que é especialmente paradoxal se for levado em conta o panorama geral do Teatro brasileiro neste momento de sua história. E se esta constatação pode parecer animadora, mas não deve servir de pretexto para entusiasmos que façam interpretar este fenômeno, talvez circunstancial e esporádico, como uma tendência forte e irreversível. Ou que ajudem a ofuscar, com o brilho instantâneo da atual temporada, os graves problemas que continuam pressionando o Teatro Infantil no Rio (...).
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30
Ainda assim, Ana Maria Machado não deixa de atentar para a responsabilidade
de pais e educadores, no sentido de estes serem os orientadores efetivos da
formação intelectual da criança, caso contrário, “corre-se o risco de desaparecerem
os resultados de todos os esforços que levaram ao momento como o atual.”
De volta aos números, das setenta e nove montagens que percorreram os
finais de semana de 1974, Ana Maria Machado recomendou apenas nove, revelando
o alto grau de indigência das opções oferecidas. Desses nove espetáculos, três
vinham da temporada anterior, correspondente ao ano de 1973. Portanto, apenas
seis montagens ganharam destaque em 1974. Dessas seis, duas eram de Maria Clara
Machado, que, após uma montagem de O Embarque de Noé, buscou na quarta e
arrojada montagem de Pluft, O Fantasminha uma cartada decisiva em um momento
de incipiente competição.
Maria Clara Machado viveu durante os anos 1970 um verdadeiro boom
mercadológico com a maciça publicação e edição – até em outros idiomas – de suas
peças, passando até por instâncias federais, com a distribuição das mesmas
publicações em todas as escolas e bibliotecas do país. Por outro lado, a principal
figura do teatro infantil naquele momento estava num período em que sua
dramaturgia, sempre patamares acima do restante da produção, também se
encontrava estagnada.
Nos anos 1950 e 1960, Maria Clara deu à luz a grande maioria do seu
repertório, digamos, “clássico”, como Pluft, O Fantasminha, Maroquinhas Fru-fru e
tantas outras peças. Ela adentrou a década de 1970 com a peçaTribobó City, escrita
em 1971 e só encenada em 1976, ainda buscando referenciais estranhos à nossa
cultura – no caso, a peça se passa no universo do faroeste. Maria Clara certamente
não soube se deixar contaminar por essa “nova sensibilidade” trazida pela
Contracultura no final da década anterior e que passou a transformar o panorama
não só teatral, mas de todos os segmentos da produção cultural e artística
acontecidos no país a partir da década de 1970. Motivos não faltam para o
estoicismo estético de Maria Clara. Diferentemente dos desgarrados de outros
tempos, que saíram d’O Tablado visando à profissionalização, como foram os casos
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do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) carioca, que “exportava” suas montagens
paulistas com elencos cariocas, e do significativo grupo que fundou o Teatro da
Praça16 em 1955. Cláudia de Arruda Campos afirma que
Essas gerações dos anos 60-70 já não são impelidas apenas, nem primordialmente, pelo desejo de profissionalização, mas por aspiração a rumos experimentais que não encontravam possibilidade de desenvolvimento no palco da Lagoa. Um Patronato não é exatamente um local para o desbunde. Uma casa conhecida pelo seu teatro infantil não é lugar para o amargo desencanto que marca o teatro jovem dos anos 70. (1998:39)
O tempo mostrará que Maria Clara Machado, apesar do seu talento como
dramaturga, vai cada vez mais se afastar das questões mais urgentes do segmento
infantil teatral e do Teatro em geral. Arruda Campos conclui que, sem ousadias e
concessões, Maria Clara e O Tablado seguiram durante décadas “desdobrando as
peças do jogo inventado na década de 50, procurando, apesar das medidas que
toma para enfrentar os novos tempos, manter algo da feição ‘anos dourados’ com
que nasceu” (1998:44). Nas décadas seguintes, O Tablado transformou-se em um
espaço de trânsito, incumbindo-se apenas em contar o número de artistas que
rumaram para a televisão. No entanto, o pioneirismo de Maria Clara Machado é
irrefutável.
Uma prova cabal de que aquele momento favorecia o Teatro infantil era o fato
de que as atenções para o segmento não se restringiam somente a quem fazia dele
seu maior foco de atenção. Yan Michalski, crítico de Teatro adulto do Jornal do Brasil
em 1974, muitas vezes utilizava seu espaço em prol de uma melhoria das condições
para os espetáculos infantis. Em 13 de janeiro, Michalski clamava por mais verbas
para o Teatro infantil através da Comissão Especial de Teatro, do Conselho Estadual
de Cultura, órgãos fomentadores das Artes Cênicas na época, que não tinham ainda
nenhuma política voltada para o público mirim.
16 O Teatro da Praça, companhia criada por ex-alunos de O Tablado surgida por volta de 1955 e que permaneceu viva até um pouco depois de 1960. Contava com um elenco estável em que se destacavam os nomes de Kalma Murtinho, Adriano Reys, Roberto de Cleto e Maria Sampaio e tinha como sede o atual Teatro Gláucio Gill, então chamado de Teatro da Praça, no bairro carioca de Copacabana.
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Michalski reclamava ainda da falta de visão de muitos empresários que
cobravam das produções infantis uma quantia oito vezes maior pelo aluguel de seus
teatros, em relação ao que cobravam das produções adultas. E apesar desse
disparate, os espetáculos infantis não podiam usar os refletores das casas, todos
destinados às peças apresentadas no horário noturno; tampouco tinham direito a
uma plena utilização do palco, pois também os cenários dos espetáculos adultos
eram intocáveis. Nessa estrutura marginal, muitas vezes a própria classe acabou por
endossar tal amadorismo de termos, reafirmando seu caráter pouco profissional. Não
somente dessa vez, mas também em outros momentos marcantes daquele ano,
Michalski se fará presente atentando para a melhoria da qualidade da programação
teatral, independentemente de a que fatia do público se destinasse.
1.3. Um vento forte sobre o Rio
Assim, naquele panorama de pouca invenção, a estréia de História de Lenços e
Ventos pode se caracterizar como um divisor de águas no Teatro infantil feito no Rio
de Janeiro e também no país. Tendo estreado em um espaço novo, a Sala
Corpo/Som do Museu de Arte Moderna, o MAM, no Rio de Janeiro, RJ, esse
espetáculo marca também a formação do grupo Teatro Ventoforte, que se
estabelece como principal eixo da carreira artística de Ilo Krugli no Brasil até os dias
de hoje.
Estreado em fins de maio de 1974, História de Lenços e Ventos torna-se
imediatamente o espetáculo mais falado do ano, transcendendo os limites que
separam o teatro adulto do infantil. Toda a classe teatral é despertada pelo fato de
que um grupo novo, eminentemente voltado para o público infantil, era a maior
novidade do ano no setor. Ana Maria Machado17 define o espetáculo como “um ato
de fé no teatro e na criança”, entre outras tantas declarações. Clóvis Levi18, crítico de
Teatro infantil no jornal O Globo na época, destaca a capacidade de História de
Lenços e Ventos “se aproximar tão violentamente da sensibilidade infantil”. O evento
17 MACHADO, Ana Maria. Um espetáculo fora se série. Jornal do Brasil, 25/05/1974. 18 LEVI, Clovis. História de lenços e ventos: uma experiência estética. O Globo, 21/02/1975.
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provoca tantas repercussões que acaba por levar também Yan Michalski19 a escrever
uma crítica na qual ressalta de sobremaneira a extrema vitalidade presente em cena,
afirmando que a encenação de Ilo Krugli era o melhor espetáculo em cartaz no Rio
de Janeiro em 1974: “o melhor, no sentido de ser o mais criativo e poético, e de
realizar com a maior coerência e inspiração a proposta teórica da sua concepção”.
Anos depois, em seu livro O Teatro sob Pressão, uma rápida análise do Teatro
brasileiro nos anos vividos sob a ditadura militar, Michalski não vai deixar de lembrar
de História de Lenços e Ventos como um dos maiores destaques vistos no ano de
1974, classificando o texto e encenação de “uma pequena obra-prima”.
Outros fatores irão acabar levando História de Lenços e Ventos para o centro
da discussão do fazer teatral no Rio de Janeiro naquele ano, e é novamente
Michalski quem anuncia um fato inédito até então. No início de ano, a ACCT,
Associação de Críticos Cariocas de Teatro, instituiu uma Recomendação Especial aos
espetáculos que tinham um grau de excelência em todos os âmbitos da produção.
Assim, Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de Fernando
Peixoto, uma produção do ano anterior e ainda em cartaz, foi a primeira
contemplada com tal menção. Logo a seguir, Michalski20 anunciava em sua coluna
que a ACCT concedia ao espetáculo de Ilo Krugli a Recomendação em caráter
extraordinário:
A concessão da distinção a um espetáculo infantil tem um sentido especial, pois comprova que a ACCT atribui a este setor da atividade teatral, geralmente amesquinhado pela leviandade artística com que costuma ser explorado. Quando aparece uma realização como História e Lenços e Ventos , inteligente, poética, inovadora e competentemente realizada em todos os seus aspectos, ela merece ser estimulada com a mesma intensidade com a qual são encorajados os melhores espetáculos adultos.
Esse fato veio a coroar o espetáculo de Ilo Krugli, que, àquela altura, realizava
já duas sessões diárias e, nas noites de sexta-feira, também sessões para adultos.
Novamente, Ana Maria Machado é quem sinaliza o efeito que essa recomendação
acabaria por gerar no âmbito do Teatro infantil carioca. Mais que isso, acenava ainda
19 MICHALSKI, Yan. O lenço Azulzinha e o personagem Papel. Jornal do Brasil. 07/06/1974. 20 MICHALSKI, Yan. “Lenços e Ventos” ganha recomendação. Jornal do Brasil, 13/06/1974.
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que o que estava em processo era a continuidade de um projeto artístico instaurado
por Maria Clara ao declarar que “sem dúvida que alguma coisa muito nova e
importante está acontecendo: o Tablado não é mais um batalhador solitário em sua
luta por um verdadeiro Teatro para as crianças.”
Em breve, a montagem se tornaria um dos espetáculos mais premiados
daquela temporada, reunindo os mais importantes prêmios dados à classe teatral na
época. Sua trajetória marcou definitivamente a carreira de Ilo Krugli e de seu grupo
Teatro Ventoforte, que o retomará em outras quatro remontagens destinadas a
percorrer o país durante muitos anos e a representar o Brasil em diversos festivais
internacionais.
1.4. Sobre a história
História de Lenços e Ventos fala especificamente sobre a trajetória de
Azulzinha, um pequeno lenço que se deixa levar pelo vento, e de sua prisão pelo Rei
Metal Mau. Há também o personagem Papel, um personagem heróico, que vai ao
encalço de Azulzinha para salvá-la. Como já se disse, esse pequeno argumento
nasceu basicamente da passagem conturbada de Krugli por aquele instante
dramático da política chilena. No Brasil, Krugli não encontraria um clima muito
diferente, mas, ainda assim, fez de seu espetáculo, essa história de desencontro, um
libelo contra o autoritarismo vigente e que, aproveitando-se da situação “marginal”
em que se encontrava o Teatro para crianças e, ao mesmo tempo, de seu momento
de berlinda para transcender os limites da história e tocar também os pais,
acompanhantes das crianças, que viram ali outras camadas para a mesma história.
Como o próprio Krugli afirma, foi das entranhas da encenação que emergiram uma
crítica não exatamente mordaz e feroz que, na mesma época, tanto se tentou levar
aos palcos, mas um fino sarcasmo e poesia que sempre lhe foram peculiares:
Eu tinha sido preso no Chile, tinha visto a morte de perto no golpe militar. Escrevi Lenços e Ventos em pouquíssimos dias para levar para o festival de teatro infantil de Curitiba. Mas eu me lembro quando apresentamos a peça no MAM, ela já era muito irônica. A gente
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começava o espetáculo escrevendo sempre o nome de um desaparecido no jornal. A luta com o Rei Metal era feita com teatro de sombra, e dizíamos: o corpo a corpo com o poder é impossível.21
Em uma análise mais detalhada do texto, vê-se claramente que todas essas
questões políticas estão apresentadas de forma muito subliminar. Azulzinha quer
aprender a voar e se deixa levar pelo Vento da Madrugada que vem junto com a
noite. Aqui a questão da noite é explicitada de forma bastante simbólica: “Porque
nas histórias os perigos sempre acontecem à noite” (KRUGLI. 2000:20), como diz um
dos personagens da peça.
O fato de Azulzinha querer se libertar e procurar outras paragens num
caminho que a deixe livre para escolher onde quer ficar é, na verdade, uma
decorrência de um tema que Krugli já havia desenvolvido num espetáculo anterior
chamado História de Um Barquinho22. Naquele espetáculo, Pingo I, o barquinho, vai
atrás de Irupê, uma flor que ele encontra nas águas de um rio e que é levada pela
correnteza. Pingo I encontra vários personagens/obstáculos em sua trajetória. As
ondas que ele enfrentava se transformaram agora nos ventos pelos quais Azulzinha
se deixa levar sem medir as conseqüências. No entanto, a trajetória de Azulzinha é
bem mais complexa, com episódios que permitem um maior desenvolvimento da
personagem: seu desejo de liberdade absoluta acaba por levá-la à Cidade Medieval e
lá se percebe prisioneira do Rei Metal Mau. Nesse momento, a figura de Papel ganha
contornos de herói, sendo imolado numa fogueira e depois refeito pelos atores do
espetáculo para o enfrentamento final com o Rei. No fim, Azulzinha e Papel retornam
para o quintal de onde um dia saíram para conhecer o mundo.
As proximidades existentes entre Pingo I e Irupê, de História de Um
Barquinho, e Azulzinha e Papel, de História de Lenços e Ventos, são muitas. No
entanto, o desencontro entre as duplas é o motor do conflito maior dos textos. Essa
busca do restabelecimento da dupla e, por conseqüência, de uma ordem muito
21 Citação não localizada. 22 História de um Barquinho foi criado como exercício de expressão para as mãos em 1963. Só foi realizado como espetáculo em 1972, no Rio de Janeiro, onde recebeu prêmios de melhor espetáculo do ano, melhor direção e melhor trilha musical. Em 1973 é encenado no Chile, em Santiago. A partir de 1974, com a criação do Teatro Ventoforte, este espetáculo passa a integrar o repertório do grupo.
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específica e individual acaba por ser o principal eixo das histórias que Krugli vai
desenvolver no futuro. O tema do reencontro, portanto, torna-se um fator bastante
recorrente em sua dramaturgia e que será re-elaborado de diversas formas nos
espetáculos seguintes.
A dramaturgia de Krugli recorre em muitas vezes a uma certa narratividade
que vai construindo o espetáculo. Diferentemente da figura dos apresentadores e
dos narradores tão comuns no teatro infantil nos seus primórdios, o intérprete se
dividia entre a ação e a narração, dando contornos inovadores ao fluxo da cena. Em
História de Lenços e Ventos parte-se de uma estrutura muito simples de uma história
que vai sendo narrada e que aos poucos começa a ser elaborada no palco, como se
a história surgisse naquele instante. Tudo parece ser criado naquele momento, na
concretude da cena. Durante toda a encenação, há um trânsito entre o que está
sendo vivido na história e o que está acontecendo no palco em determinado
instante:
Azulzinha – Eu também podia aproveitar as correntezas. Lá vem uma. (Ela voa e cai num balde, fazendo um grande barulho: “tchibum”, que traz os atores de volta à cena. Retiram Azulzinha do balde, toda molhada.) Ator 1 – Agora vai ser difícil, a Azulzinha ficou toda molhada. Ator 2 – Bota ela para secar na corda e vamos esperar. Ator 3 – Não! Não vamos esperar não! Ator 4 – Agora podíamos fazer como se faz nos filmes: passamos para outro lugar, fazemos uma outra cena que ninguém sabe onde é, e entram personagens que ninguém sabe quem são, e de onde vem aquilo! É o que chamamos de suspense!
Esses pequenos procedimentos, muitos deles oriundos do Teatro épico e de
outras manifestações mais avançadas em termos dramatúrgicos, fazem com que
Krugli se afaste dos demais autores infantis, que se encontravam alienados das
proposições que o Teatro absorvera ao longo do século XX. Mais que isto, ele faz da
escrita um momento que acontece depois da experimentação em cena, acenando
para seus pares que se dedicavam ao teatro feito para crianças, no qual o jogo e a
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força das relações que ocorrem sobre o palco eram agora fatores fundamentais para
a construção de uma nova abordagem, inovando na comunicação que o teatro
deveria estabelecer com a criança.
Em um primeiro momento, percebe-se uma outra forma de utilização da
palavra, que, diferentemente da grande maioria da produção desse setor, privilegia,
em muitos momentos, uma proximidade com a poesia. Este aspecto é acentuado
durante as encenações, devido, sobretudo, a uma interpretação que ganha tons de
poesia declamada e, por conseqüência, a cena se distancia de quaisquer aspectos
realistas tradicionais. Porém, é nos conteúdos temáticos que se encontram as
grandes inovações trazidas por Krugli. Não há como não tecer paralelos com o
momento que o país, e mesmo o mundo, atravessava – um momento de restrições,
privações e limitações. O tom intensamente libertário de Histórias de Lenços e
Ventos traz para a cena do Teatro infantil uma discussão que até então se dava,
quando possível, no horário adulto dos teatros.
Na montagem seguinte de Krugli, Da Metade do Caminho ao País do Último
Círculo, a discussão se desdobra no trio de protagonistas, que enfrentam guerras,
são presos, sentem saudade da terra natal, trazem a questão da nacionalidade e da
fronteira e da delimitação de terras para aquela nova criança que vivia, ainda que
subliminarmente, em um mundo que acirrava suas polarizações sócio-políticas. E, por
fim, em Mistério das Nove Luas, as mesmas discussões da peça anterior são revistas
em um tom que se aproxima das tradições populares do Brasil.
Ao demarcar o final de sua análise em 1976, Pupo comprova esse momento
de renovação da linguagem teatral para crianças ao afirmar que
É, portanto, no final do período analisado que se evidenciam os esforços de afirmação de uma dramaturgia que, embora apresentada em horário convencionalmente reservado às crianças, se propõe a interessar a todo e qualquer público.
Ou seja, é somente na segunda metade da década de 1970 que surgem obras
que possibilitam mais de uma leitura e que, segundo a autora, “é uma das
prerrogativas inerentes à obra artística plenamente realizada”.
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2. UMA ANÁLISE ICONO-SEMIOLÓGICA DE HISTÓRIA DE LENÇOS E
VENTOS
“Toda grande imagem tem um fundo onírico insondável e
é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal coloca cores
particulares”
Gaston Bachelard
Neste capítulo serão apresentadas e analisadas as imagens recolhidas durante a
pesquisa para verificação e comprovação da renovação cênica estabelecida por Ilo
Krugli no espetáculo História de Lenços e Ventos. Esta amostragem compõe-se de
duas fotos do acervo do CBTIJ (Centro Brasileiro da Infância e Juventude), oito fotos
cedidas pelo CEDOC/FUNARTE (Centro de Documentação da Fundação Nacional das
Artes) e seis fotos escaneadas do livro Grupos Teatrais - Anos 70, de autoria de
Sílvia Fernandes, editado pela UNICAMP. Das duas primeiras fontes, foram obtidas
imagens da primeira montagem do espetáculo, de 1974, que será o foco principal de
análise, uma vez que as fotos do livro de Fernandes são provavelmente de uma
remontagem feita pelo próprio Krugli em 1980, já com um elenco paulistano.
Como método de análise, será utilizado processo semelhante ao desenvolvido
pela pesquisa institucional Estudos do Espaço Teatral, coordenado pela professora
doutora Evelyn Furquim Werneck Lima23 e que, a partir de um amálgama das teorias
desenvolvidas por Tadeusz Kozwan24, Erwin Panofsky25 e Patrice Pavis26, gerou um
procedimento de análise intitulado icono-semiológico. Sua utilidade no
23 LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Relatório Final. Elaboração de uma metodologia de análise da história da cena com base na iconologia e na semiologia – 3ª. Etapa do projeto Estudos do espaço teatral, 2007. 24 KOZWAN, Tadeusz. O signo no teatro. In: O signo teatral: a semiologia aplicada à arte dramática (org Luiz Arthur Nunes e allii). Porto Alegre, Globo, 1977. 25 PANOFSKY, Erwin. O significado das Artes Visuais, São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. 26 PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos, São Paulo, Editora Perspectiva, 2005.
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desenvolvimento deste trabalho tornou-se imprescindível quando, a partir de
Georges Duby em Objets et méthodes de l’histoire culturelle, Lima acentua que, em
uma investigação no campo da história da cultura, não é aconselhável privilegiar
apenas os dados quantitativos, mas também utilizar variados tipos de fontes, pois
acredita que “o que é fluido e pouco transformável em estatísticas pode ser o mais
importante”. A partir desse conceito, aliado ao que Chartier chama de “espírito do
tempo”, características estéticas, filosóficas e psicológicas de uma época, a
montagem de História de lenços e ventos será analisada em cada um dos seus
elementos constitutivos da cena em uma relação dialógica com a época. O que
importa, na verdade, é como Krugli soube captar o zeitgeist daquele momento,
traduzi-lo não só poeticamente em cena, mas traduzi-lo para uma platéia virginal
àqueles novos padrões de encenação.
As fotografias reunidas aqui serão tomadas como signos, na concepção de F. De
Saussure, tão bem resumida por Malcolm Barnard27:
Para Saussure, o signo compõe-se de duas partes. Essas partes são denominadas de “significante” e de “significado”. Saussure preocupa-se coma linguagem, e para ele “significantes” são a parte física dos signos, são os sons, ou os formatos das palavras. O “significado” é o conceito mental a que se refere o significante. É o sentido do significante. Juntos, eles formam o signo.
Sendo assim, partir-se-á de meras descrições do que cada fotografia denota
como significantes para se chegar ao que elas conotam como significados. De acordo
com Barnard28:
Denotação é chamada, às vezes, de uma primeira ordem de significação ou sentido. É o sentido literal de uma palavra ou imagem, o que Fiske sugere como o “sentido óbvio, do senso comum” (Fiske 1990: 85-6). (...) A conotação é por vezes chamada de uma ordem secundária de significação ou sentido. Pode ser descrita como sendo as coisas que a palavra ou imagem fazem a pessoa pensar ou sentir, ou as associações que uma palavra ou imagem incitam em alguém.
27 BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2003. p. 122. 28 Idem. p. 125-128.
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40
2.1. Aspectos gerais da encenação
Figura 1: Aspecto geral da cena. (Fonte: CEDOC-Funarte)
O que primeiro será discutido é o que se percebe na Figura 1 e que
repetidamente foi encontrado nas críticas sobre o espetáculo, reflete uma única
palavra: simplicidade. Neste sentido, é interessante observar a crítica de Carlos
Ernesto de Godoy29, passados seis anos da estréia da peça, quando a montagem
chega à cidade de São Paulo. O crítico ressalta que “o difícil em arte é ser simples. E
que simplicidade é justamente o que faltava ao gênero”. Com isso, Godoy enfatiza o
que, na época da estréia, em 1974, Clovis Levi30 elogiava ao dizer que “a riqueza
maior de História de lenços e ventos está na sua capacidade de deslumbrar de modo
29 GODOY, Carlos Ernesto de. Um brinquedo. Revista Visão, número 22. 07/07/1980 30 LEVI, Clovis. Op. cit.
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41
simples”, opinião ecoada também por Michalski31, que, ao observar outro lado da
questão, destacou que a montagem “foi feita com meios de produção extremamente
modestos” e que “com inteligência, sensibilidade e muito pouco dinheiro pode-se
fazer teatro da melhor qualidade”. Portanto, ao voltarmos novamente para a Figura
1, temos uma amostragem de como o espaço cênico foi concebido de modo a situar
a história, que se passa em um quintal. Em um plano mais ao fundo do palco,
observam-se grandes panejamentos que tanto anunciam os varais de roupa do plano
mais à frente do público, como também podem ser vistos como um esfacelamento e
um rebatimento dos panos do varal que se espalham pelo céu; ou mesmo um céu
feito de panos; ou mesmo um esboço de céu. Em um plano mais à frente, já na área
destinada também aos atores, percebem-se mais varais de roupas, estes em escala
natural, feitos de cordas e bambus, exatamente como ainda pode ser observado em
casas afastadas das grandes cidades. Note-se bem que não há ali qualquer releitura
ou estilização desses varais, o que reforça a idéia de uma cena híbrida em que
estilização e não-estilização convivem em harmonia e que materiais artesanalmente
construídos dialogam em pé de igualdade com elementos industrializados, como se
verá adiante. A utilização de materiais baratos e mesmo encontrados na natureza
pode conotar um primeiro indício de uma recusa de uma cenografia feita nos moldes
tradicionais e que, portanto, o espaço de representação entendido como um quintal
serve exemplarmente para uma cena que é construída e desconstruída aos olhos do
público. Ora, o quintal, espaço da infância que é, possibilita o estabelecimento do
jogo e dos muitos jogos de cena que a peça propõe: os lenços transformados em
personagens, os varais que se tornam fronteiras de uma cidade, uma folha de jornal
velho transformada em herói.
Cabe ressaltar que essa não-conformidade não está estabelecida apenas no
campo da Cenografia, mas em todos os segmentos da cena, aproximando-se de um
espaço poético que se originou nas de experiências da vanguarda teatral que
eclodiram a partir dos anos 1960 e que ganhavam adeptos a cada dia. Por outro
lado, é claro que essa experimentação cênica não chegou aos limites extremos das
propostas espaciais mais radicais daqueles tempos. É evidente a demarcação entre
31 MICHALSKI, Yan. Op. cit.
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42
palco e platéia, ou seja, os limites entre atores e público estão claramente
estabelecidos em uma semi-arena e, embora haja uma busca de integração entre
palco e platéia, ela é perseguida e atingida em outros níveis do espetáculo.
Quanto à situação do intérprete em cena, um dado denotado nas figuras 1 e 2
é a presença de Krugli ao centro do espaço e em relação direta com a platéia,
reafirmando a ausência da quarta parede. Esta ausência conota uma interpretação
que também se biparte em “uma contação de história”, afirmando o caráter narrativo
e épico da peça e o aspecto dramático que tradicionalmente é familiar. Como última
observação à situação de Krugli nesta foto, é visível também o aspecto de líder que o
diretor representava para aquele grupo de atores, captado pelo foco bem delineado
da cena em que a maior parte do elenco presente observa-o com atenção.
O figurino e a composição gestual dos atores dessa cena serão analisados
adiante.
Figura 2: Aspecto geral da cena (Fonte: CEDOC/Funarte)
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43
Na figura 2, é possível observar outros elementos cenográficos que constituem
o espetáculo, sobretudo a resolução criada para a Caixa Estratosférica, signo de
grande importância na história de Krugli. Quando Azulzinha já está nos domínios do
Rei Metal Mau, este relata para ela a perfeição com que foi construído o castelo onde
vive, declarando que “Aqui ninguém entra, nem pássaros, nem ventos, nem papéis,
nem nuvens, nem nada só você”. Em seguida, ele manifesta sua vontade de casar-se
com Azulzinha. Para tal, decide realizar um torneio, uma vez que “nenhum cavaleiro
que se preze, ou rei, ou sei lá, pode ganhar sua dama sem lutas”. Assim convoca os
soldados para que tragam todos os lenços de todos os quintais para assistir ao
torneio. Só que isso encobre uma trama mais maquiavélica que pretende transformar
todos os lenços em bandeiras da Cidade Medieval. Nesse momento, a figura de um
guarda aparece em cena para convocar todos os lenços a entrar na Caixa
Estratosférica. Trata-se, como se vê nas fotos e em rubrica do texto, de uma caixa
de papelão que desce dos urdimentos do teatro, manipulada em cena pelos próprios
atores e que, depois de guardados todos os lenços, é suspensa novamente. Mais
uma vez, com elementos de grande simplicidade, o dispositivo é construído com uma
caixa velha de papelão, cordas (elemento existente nos varais, que aqui encontra
mais uma função em cena) e provavelmente roldanas. A conjunção desses
elementos novamente conota o caráter lúdico e de brincadeira de quintal que
perpassa toda a montagem. Porém, o signo mais interessante dessa imagem está
nas mãos de Sílvia Aderne, atriz à direita de Ilo Krugli. Ela segura um objeto de
confecção industrial, um balde de plástico, que convive com outros elementos
criados especificamente para esse espetáculo. Aqui se entende que o caráter lúdico
da encenação, que buscava contar uma história com o que houvesse à mão, não
implicava uma pureza estética absoluta. Acertadamente, a convivência entre o
industrializado e o artesanal se dava sem distinção. Vê-se também essa mesma
convivência no canto direito da foto, onde folhas de jornal são usadas como base
para que se pinte a representação simbólica de um sol, mais ao fundo, ou mesmo
estendidas no varal, como se observa mais à frente.
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44
Figura 3: O Papel e o Guarda-chuva (Fonte: CEDOC/Funarte)
O jornal pode ser considerado um capítulo à parte nessa encenação, tal a
gama de significações que está implícita na utilização desse material em cena. Mais
que isso, a presença do papel permite transbordamentos que transcendem à obra
em si. O próprio Ilo diz: “O jornal, nesta época, a gente lia, e a gente sabia que
estava censurado”32. Há uma série de ironias e velado sarcasmo no decorrer de toda
a encenação em relação a esse meio de comunicação, como a fala abaixo:
Ator 1: - Agora que os lenços estão dormindo, nós vamos ter que trabalhar, mas antes vamos ver no jornal qual é o tempo que vai fazer esta noite... É porque trabalhamos ao ar livre e pode chover, até granizo, ter ventanias, tempestades. É no jornal que se sabe de tudo. Bom... De quase tudo. 33
No entanto, a gênese da utilização do jornal em cena se dá através de uma
observação muito subjetiva e peculiar do seu cotidiano, em que o material
descartado pode conotar uma carga expressiva se aliado a forças alheias à sua
32 KRUGLI, Ilo. Entrevista ao autor. 33 KRUGLI, Ilo. Op.cit.
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45
constituição. Krugli revela que era no abandono das folhas de jornal ao vento que se
encontrava potencialmente o eixo principal do roteiro que estava criando:
E na praia, sendo que de manhã eu trabalhava, dava aula, então era à tarde, claro que (nos) finais de semana a gente ia ver-se cedo. Então, de manhã o pessoal traz os jornais, lê jornal e depois deixa e à tarde fica aí abandonado, já sem mais ninguém, às vezes estava amassado e eu vi esse jornal com vento, ele rolando na areia. E acho que surge nesse momento o papel, não é?
Esse enunciado revela mais de um autor e encenador que não se intimidava
em utilizar material aparentemente tão pobre e descartável. Essa inexistência de
escrúpulos de tal ordem força-nos a aproximar Krugli de um outro artista de um
outro momento da Modernidade. O alemão Kurt Schwitters (1887-1948) também
utilizava papéis descartados, investindo na liberdade de expressão, na liberdade
natural das crianças e na contestação do já estabelecido. Artista do primeiro
momento do Dadaísmo34, Schwitters usava em suas colagens bilhetes de ônibus
jogados fora, jornais velhos e restos de embalagens, com clara oposição à cultura
burguesa. Segundo Gombrich35, “era certamente desejo desses artistas tornar-se
como que crianças pequenas e fazer pouco caso da solenidade e pomposidade da
Arte com A maiúsculo”. Essa ação, a de tornar-se criança novamente, Krugli soube
resolver de forma acertada e, sobre o palco, recriou um espaço “mágico” da infância,
o quintal, para retornar a ela. Gaston Bachelard36, ao referir-se aos espaços solitários
da nossa infância, estabelece que esses espaços são indeléveis a nós e que,
portanto, são constitutivos do ser adulto e que a eles voltamos em sonhos noturnos,
e completa:
Esses redutos têm valor de concha. E, quando vamos ao fundo dos
labirintos do sono, quando tocamos as regiões do sono profundo,
conhecemos talvez repousos ante-humanos. O ante-humano atinge
34 Movimento artístico extremamente libertário e contestador que emergiu na Alemanha em 1916 e tem como figuras-chave Marcel Duchamp, Tristan Tzara, Hans Arp, Max Ernst e o próprio Kurt Schwitters. 35 GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985. p. 476-7 36 BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 2003. p. 29
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46
aqui o imemorial. Mas, no próprio devaneio diurno, a lembrança das
solidões estreitas, simples, comprimidas, são para nós experiências do
espaço reconfortante, de um espaço que não deseja estender-se, mas
gostaria, sobretudo, de ser possuído mais uma vez.
Em G.C. Argan37, a questão da reutilização de materiais saídos da realidade
ganha implicações mais profundas. Ele vê, primeiramente, uma reavaliação profunda
na superfície do quadro, que se torna agora suporte para algo bem além da pintura.
A colagem (collage), segundo Argan, dava ao quadro um caráter que permitia agora
“uma construção cromática sobre o suporte da superfície”38. Nessa arriscada
aproximação entre o dadaísta alemão e Krugli, em seu modo de relatar a origem do
emprego do jornal em cena, vê-se claramente esta possível filiação artística nas
palavras de Argan ao concluir que:
As coisas recolhidas e combinadas por Schwitters, no quadro que vem
compondo, foram descartadas pela sociedade por não servirem mais,
por terem cumprido suas funções; nem assim deu-se ela ao trabalho
de destruí-las, pois, para a sociedade “de consumo”, a realidade se
divide entre o a-consumir e o consumido. Não há nada de lastimável
ou patético no gesto de recolhê-las, e não porque este venha a revelar
alguma sua beleza secreta e ignorada. Mas, por serem coisas “vividas”,
comporão no quadro, com outras coisas igualmente “vividas”, uma
relação que não é a consecutio lógica de uma função organizada, e sim
a trama intrincada e, no entanto, claramente legível da existência. Ou,
talvez, do inconsciente que, como motivação profunda, determina o
fluxo incoerente da vida cotidiana.39
37 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. 38 Idem. p.305. 39 Idem. p. 360.
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47
Figura 4: The A Book, Kurt Schwitters (1942)
De volta a H.E. Gombrich40, é ele quem permite relacionar o artista alemão do
início do século XX ao diretor argentino radicado no Brasil nos anos 1960. O
historiador da arte afirma que “a atração da ‘antiarte’ foi irresistível para muitos
jovens estudantes de arte e, na década de 1960, os críticos começaram a falar a
respeito do ‘neodadaísmo’.” Coincidentemente, o mesmo momento marcou a
chegada de Krugli ao Brasil e o início das investigações que o libertaram da
empanada tradicional. “Contudo”, finaliza Gombrich, “não é o rótulo que importa,
evidentemente, mas a sutileza e o talento que podem participar nessas montagens
de objetos descartados”. Neste aspecto, portanto, é fácil entender que a carga de
signos existentes naquele material impediu-o de buscar utilizar-se de uma folha
40 GOMBRICH, E. H.. Op. Cit,. p. 477.
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48
branca, limpa e impoluta – e nada o impediria de fazê-lo. Havia ali – o que se
percebe mais claramente nas figuras 3 e 6 – uma necessidade de estabelecer um
“novo papel” para o jornal, em um diálogo claro com Schwitters, que estabeleceu um
novo paradigma nas Artes Plásticas ao investir na simplicidade de meios e no
aproveitamento criativo dos materiais descartados.
Na figura 5, além do personagem Papel, ainda pode-se ver um outro, o
Guarda-chuva, em mais um exemplo de convívio do industrializado com o artesanal.
Nesta cena, o Papel pede ajuda a um velho guarda-chuva para que o proteja de uma
tempestade. O que salta aos olhos nessa imagem é a manutenção física do
intérprete que está manipulando esses dois personagens, ora transformado em
objetos animáveis, ou até – por que não? – manipuláveis aos olhos da audiência. É
Krugli quem certamente dá vida aos dois personagens simultaneamente e, mais uma
vez, cabe ressaltar que esse tipo de manipulação de bonecos – digamos assim, por
ora – era algo avançadíssimo para os palcos brasileiros naquela época, uma vez que
ainda reinava a hegemonia do manipulador oculto da platéia. Portanto, essa
dessacralização do boneco, ou mesmo do objeto manipulado, é outro dado distintivo
dos avanços que Krugli propunha em sua encenação.
Figura 5: Krugli e o boneco (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70. Editora
da UNICAMP, Campinas, 2000.)
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49
O dado mais interessante relativo à figura 5 está, portanto, no fato de que os
únicos bonecos como tradicionalmente os conhecemos aparecem somente na
primeira cena do espetáculo. Explica-se: História de lenços e ventos não começa com
o mote da partida de Azulzinha. Na verdade, há um outro espetáculo, de bonecos,
que deveria ser apresentado. Já havia uma história pronta a ser contada. Porém,
Manuel e Manuela, protagonistas dessa história, depois de danças, perseguições e
gags típicas do tradicional Teatro de bonecos, decidem encerrar-se em uma mala,
que Krugli manuseia na foto, finalizando bruscamente o evento teatral. O motivo
dado pelos dois bonecos é o de que eles descobriram que há atores de verdade que
irão compartilhar o espetáculo com eles. Diante disso, a dupla, indignada, resolve
abortar a apresentação trancando-se na mala. Desse corte abrupto que se dá aos
primeiros minutos de História de lenços e ventos, nasce a necessidade de contar
uma nova história, que terá de ser feita “de improviso”, com o material encontrado
naquele quintal, o que estiver à mão. É da reunião desses elementos que será
montada e contada uma nova história.
Krugli deixa explícita sua desistência e abandono das formas mais tradicionais
do Teatro de bonecos em prol de novos elementos expressivos sem, contudo,
abandonar a linguagem do boneco. Sua busca se dá, mesmo até muito tempo antes,
com História de um barquinho, onde essa questão também acontece às claras. Mas,
digamos, essa despedida do boneco como tradicionalmente o conhecemos é
mostrada em História de lenços e ventos como um marco de um novo momento do
trabalho de Krugli como encenador e autor. É preciso reinventar o boneco, ampliar
suas possibilidades, para dar conta de um novo repertório em que novas questões
possam ser discutidas e toda uma nova gama de significados possa ser alcançada.
Mas voltemos à cena do Papel e do Guarda-chuva. Nela, Krugli também
investe em uma fragmentação do que comumente era entendido como boneco, uma
vez que este deveria possuir características antropomórficas. O personagem Papel
constitui-se unicamente de uma folha de jornal que, depois de algumas dobras, para
criar uma volumetria próxima à de um rosto humano, ganha apenas olhos e boca
simbólicos, pintados durante a encenação. Enquanto isso, o Guarda-chuva já nasce
dentro de um conceito que no Teatro de animação tem o nome de Teatro de
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50
objetos, uma vertente ou mesmo técnica surgida durante os anos 1970 na Europa,
definida pelo deslocamento de função de um objeto de uso doméstico ou familiar
que assume um novo papel e “passa para o mundo das formas, dos signos e dos
símbolos” 41. Ou seja, o objeto abandona sua função primeira e torna-se sujeito de
uma ação, adquirindo alma e personalidade próprias. É o que se pode observar na
recente montagem de O Avarento, de Moliére, pela companhia espanhola Tàbola
Rassa, em que os personagens são representados por diferentes tipos de torneiras.
As torneiras, que possuem uma grande diversidade de modelos, são adequadas cada
uma a um personagem do autor francês. Obviamente, o tesouro do protagonista,
que no original eram moedas de ouro, passa também por um deslocamento
semiótico, tornando-se, neste caso, água. Como se vê, o Teatro de objetos se
estabelece como um jogo intelectual que pede entrega e generosidade da platéia;
mais até: provoca um exercício mental na audiência, que reprocessa todo o seu
referencial cultural acumulado.
De volta a Krugli, na cena acima descrita, o Guarda-chuva adquire novas
conotações, sem, no entanto, deixar de ser um guarda-chuva. Ele ganha novas
camadas de significação quando colocado em cena. Infelizmente, não foi encontrado
nenhum registro fotográfico que desse conta do personagem Azulzinha, que tratava-
se apenas de um lenço azul também manipulado às vistas do público. Para
aprofundar mais ainda a questão, é interessante ressaltar as palavras do diretor
italiano Sergio Diotti quando diz que:
O autor-intérprete intervém sobre o palco num universo de objetos que têm invadido o território da existência. Mas esta contaminação, apocalíptica em certos aspectos, impõe também a presença arquetípica do objeto na esfera do comportamento humano. Uma forma inanimada, fabricada industrialmente, inutilizada depois de haver pertencido ao mundo, segue provocando numerosos impulsos afetivos, mecanismos simbólicos e criativos.42
41 AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas. São Paulo, EDUSP, 1993. p. 213 42 DIOTTI. Sergio. Absolutamente moderno. In Puck, no. 5. Bilbao: Concha de la Casa, 1992 apud BELTRAME, Valmor. Reflexões sobre a dramaturgia no teatro de animação para crianças. In O Teatro dito infantil. Org. Maria Helena Kühner. Editora Cultura em Movimento, Blumenau, 2003.
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51
Figura 6: Papel e Guarda-chuva (Fonte: CEDOC/Funarte)
Em outra imagem desta mesma cena (Figura 6), podemos observar de outro
ângulo o aspecto verdadeiramente rudimentar da encenação. Aqui vê-se claramente
que a montagem também poderia se dar em espaços não-convencionais, como é o
caso dessa sala. É visível a ausência de qualquer equipamento de iluminação,
revelada pelo teto comum de qualquer espaço fora do prédio teatral. Essa
simplicidade de meios, porém, passa ao largo do que se poderia conotar como
pobreza estética. A cenografia comumente criada para espetáculos para crianças
durante os anos 1970 ainda se dava no campo do figurativismo, salvas raríssimas
exceções. Esse espaço da memória de um quintal propõe resoluções e mobilidade de
montagem que tornaram História de lenços e ventos um espetáculo que também
poderia se dar fora do teatro, devido, sobretudo, a essa maleabilidade de seus
elementos cenográficos. Esse fato, crucial dentro de uma perspectiva que se propõe
a entender Krugli como o iniciador de novas relações que ocorrem com a criança no
âmbito teatral, provavelmente foi decisivo para o êxito da montagem. Foi Krugli
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52
quem percebeu que a criança poderia estar presente em inúmeros projetos culturais
que não dispunham de um teatro propriamente dito. História de lenços e ventos se
amoldava aos espaços, porque se estabelecia através de um jogo que se dava
através das aparências, sem diminuir a inteligência do público primeiro ao qual se
destinava.
As próximas três fotografias serão analisadas conjuntamente, por mostrarem
uma mesma cena e revelarem o que Yan Michalski definiu como “caleidoscópio das
imagens concretas e abstratas que ocupam nosso campo visual num constante
vaivém”43. Para chegar à Cidade Medieval, Papel, agora dotado das vestes de um
cavaleiro típico das histórias de aventuras, adornado em cena pelos próprios atores,
sugere que a única forma de alcançar rapidamente seu destino é ir voando. Assim,
um ator propõe “fazer” Vento da Madrugada, o que, conseqüentemente, faz virar a
Caixa Estratosférica e derruba todos os lenços que estavam presos. Em liberdade, os
atores festejam o feito e os lenços são jogados para cima, criando um ritual de
libertação. Ora, ao analisarmos a cena congelada pelo registro fotográfico, tem-se a
impressão real de que o suposto “caleidoscópio” verdadeiramente se materializou em
cena, pois, observando os lenços fixos no ar com sua imensa gama de cores, um
caráter onírico se estabelece nesse momento do espetáculo, que, sobretudo, valoriza
o caráter efêmero do fenômeno teatral. A composição imagética de cena se dá por
uma questão de segundos, e a presença do ator como compositor visual da cena é
de grande responsabilidade, por caber a ele a montagem da mesma, intimamente
implicada na força, no ritmo, no preenchimento adequado do espaço, no equilíbrio e
na harmonia estabelecida entre os outros atores da montagem. Cabe aqui criar um
paralelo entre o estabelecimento fugaz da celebração da liberdade e o artifício
também fugaz com que ela pode se fixar em cena. A celebração, apesar de festiva e
alegre, é frágil, pois não consegue se estabelecer em cena de um modo, por assim
dizer, mais estático e “definitivo”. Ou seja, a conotação de liberdade não se dá por
nenhuma alteração física da cena, e sim por uma marcação realizada pelos atores.
No entanto, pode-se entender perfeitamente que liberdade é essa que está em jogo
no momento seguinte, quando, dos lenços jogados ao léu, surge a figura de um
43 MICHALSKI, Yan. Art. cit.
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53
Dragão, denotando os tradicionais dragões japoneses usados em celebrações de final
de ano no extremo Oriente.
Em um dos momentos mais marcantes e criativos do espetáculo – do qual,
infelizmente, não foi localizado nenhum registro fotográfico –, a figura do Dragão se
estabelece novamente através do jogo dos atores e lenços para combater o Rei
Metal Mau. A idéia de que o coletivo é capaz de se impor e se sobrepor à figura de
um rei de más intenções pôde ser subliminarmente entendida por grande parte da
platéia, graças ao deslocamento das individualidades dos atores em cena para um
outro corpo, maior e de maior força.
Figura 7: A libertação dos lenços (Fonte: CEDOC/FUNARTE)
A figura 7 denota ainda outra peculiaridade de extrema importância nesse
momento do espetáculo: um ator de violão em punho, localizado na extrema
esquerda e na parte inferior da foto. Trata-se de Beto Coimbra, um dos fundadores
do Ventoforte e autor de grande parte das canções que permeiam Histórias de
lenços e ventos, juntamente com Caique Botkay e o próprio Krugli. A presença em
cena desse ator-músico se dá de forma bastante heterodoxa para os padrões do
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Teatro infantil e até mesmo do Teatro adulto, uma vez que ele está inserido na
trama da história, não em algum canto do cenário que fosse dedicado aos músicos,
prática até hoje não totalmente resolvida nos nossos palcos. Assim, mais uma vez
podemos observar que tipo de ator Krugli priorizava em suas montagens, sempre
repletas de música e canções. É necessário cantar e tocar instrumentos e, mais
ainda, entender a importância da música executada ao vivo pelos próprios
intérpretes, por haver um componente de forte ritualização da cena, dado bastante
comum na obra de Krugli. Ao ser indagado sobre essa questão, Krugli irmana-se com
a tradição do Teatro popular para justificar essa proximidade do músico à sua cena:
Você está fazendo a alegoria da nossa santidade... Mas no concreto poderíamos dizer que não nos permitimos entrar com música gravada no espetáculo (alguma vez já aconteceu), o que é normal em muitos espetáculos e eu nem discuto isso como algo ruim para o teatro, mas a gente tem a nossa história, em nossos espetáculos sempre há música ao vivo, o músico participando do espetáculo quase com a mesma força que o ator desde o início com o Beto Coimbra e o Caíque Botkay. Dessa forma é um elemento vivo, que vem do teatro religioso, do teatro artesanal, do teatro medieval, os saltimbancos, a commedia dell’arte, da própria natureza do teatro. Só agora, coitadinhos, que os músicos foram expulsos do teatro. Eles foram expulsos até dos espetáculos de dança. É tudo gravado, dá tristeza ver grandes grupos se apresentando e ser tudo gravado. Que história é essa? Quando tudo tem que ir junto, uma função de expressão, senão a música permanece no espaço em outro nível de sensibilidade, ela aconteceu três anos atrás em um estúdio de gravação e os bailarinos estão dançando neste momento em São Paulo. Isto pode parecer exagero, delírio de apreciação mas é real que a gravação foi feita em Nova York, Londres ou na Suiça e os bailarinos estão aqui com seu suor, seu peso físico, com uma disposição que tem a ver com o momento, não está acontecendo junto... 44
Essa elaboração estética e até mesmo ética do artista cênico faz Krugli afinar-
se com os principais reformadores do Teatro ocidental a partir dos anos 1960. Mas
aqui, particularmente, ele requalifica a figura do ator do Teatro infantil. Para o
diretor do Ventoforte, é necessária uma qualidade muito específica de intérprete, que
irá lidar com sensibilidades em formação, indo contra a corrente da pequena
multidão que exercia o Teatro infantil como tábua de salvação para o artista
44 Catálogo do evento Ventoforte, 10 anos de vida. INACEN/FUNARTE, Rio de Janeiro, 1984. p. 20.
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desempregado, algo que a própria Maria Clara Machado, um ano antes da estréia de
História de lenços e ventos, classifica em um debate organizado e registrado pelo
periódico Cadernos de Teatro como “um verdadeiro crime”45, ao observar um
verdadeiro desserviço que estava em prática no Rio de Janeiro, afetando não só a
classe artística, por permitir que artistas sem preparo técnico algum entrassem em
cena, mas sobretudo no que diz respeito ao contato dele com a criança, vítima de
uma conjunção irresponsável de diretores e produtores sem escrúpulos.
Figura 8: A libertação dos lenços (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70.
Editora da UNICAMP, Campinas, 2000.)
As fotografias 8 e 9 são de uma remontagem feita por Krugli em 1980 e, no
entanto, em nada destoam da primeira montagem, de 1974. Na figura 8, observa-se,
como já dito acima, o vigor do ator na construção da celebração pela liberdade dos
lenços. Não só o vigor, mas também a significativa alegria observada em seus rostos
dá a exata medida do caráter festivo desse momento. A alegria nasce do reencontro;
que nasce do rever alguém que havia muito não se via; alegria de estar junto 45 Teatro infantil em debate. In Cadernos de Teatro, número 59. O Tablado, Rio de Janeiro, 1973. p. 8.
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novamente. Por uma estranha e feliz coincidência, é possível observar com clareza
que nas fotos 8 e 9, fotos da remontagem de 1980, o elenco estampa uma alegria e
um sorriso que não são encontrados nas imagens 1, 2 e 14, da primeira encenação
de História de lenços e ventos, em 1974. Na primeira montagem, os rostos estão
duros e raramente é encontrado algum sorriso. Percebe-se nas figuras 1 e 2 uma
atenção e uma contenção da máscara do ator, das quais não há registro na
montagem de 1980, período posterior ao regime autoritário imposto no Brasil a partir
de 1964. Obviamente, a quantidade disponível de imagens do espetáculo é mínima
para confirmar tal dado; no entanto, trata-se de algo que não deixa de causar
estranheza, visto que na amostragem aqui estudada há imagens de uma mesma
cena feitas nas duas montagens, com diferenças bem marcantes em relação à
expressão facial do intérprete.
Figura 9: A libertação dos lenços (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70.
Editora da UNICAMP, Campinas, 2000.)
Outro ponto que serve também como leitura interpretativa destas imagens, que
implica em inúmeras camadas de significação, é a figura do Sol pintada em um
jornal, observado no canto direito das fotos 8 e 9. Nota-se que na foto 2, da
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montagem de 1974, o jornal aparece ainda não pintado. Obviamente, essa marcação
sempre existiu no espetáculo, mas, ao elevar as imagens retidas do espetáculo como
signos, é possível entender por que a captação do jornal com um sol pintado aparece
somente nos registros de 1980. Por fim, cabe ainda ressaltar nessas imagens de
1980 que as capacidades expressivas do material usado parecem ir até o ponto
máximo. O que era anseio em 1974 vira realidade em 1980: uma grande festa.
2.2. Se é de papel... - conotações em cena
Uma cena visualmente importante de História de lenços e ventos e que, por
sorte, teve registro fotográfico é o momento em que chove, quando o Papel se
molha. O estabelecimento da cena se dá a partir de uma narração feita por um dos
atores, que diz:
As nuvens estão cobrindo o céu. Foi ficando escuro, escuro até que começou a chover... O Papel foi ficando molhado, quase se desmanchando. Se continuar chovendo, o nosso herói não vai conseguir salvar Azulzinha. Se protege, Papel.46
Nesse momento, inicia-se uma canção e, segundo a rubrica, “uma atriz,
triste, faz ‘chover’ sem parar, com uma lata cheia de furos, como se fosse um
regador velho; a água cai numa bacia velha”.47 Porém, o dado mais significativo
dessa conjunção de elementos que se dá em cena fica por conta da canção que é
entoada nesse momento e que subliminarmente suscita novas camadas de
interpretação. Diz a canção:
Se é de papel Voa no céu Se é de metal Brilha na mão Se é de jornal Me faz chorar Não é por mal Me faz chorar
46 KRUGLI, Ilo. Op. cit. 2000. p. 35. 47 Idem, p.36.
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O que se vê nas fotografias 9 e 10 é exatamente o momento em que se dá a
canção. Percebe-se novamente que, por trás da figura central da foto (Krugli, o
jornal e a atriz), há duas outras atrizes que corporalmente sublinham a cena com a
utilização de grandes bandeiras que, provavelmente, buscavam simbolizar as nuvens
que trazem a chuva. É interessante perceber, principalmente na foto 9, a
expressividade corporal das atrizes que manipulam as bandeiras, ritualizando não só
o gesto, mas a própria cena.
Figuras 10 e 11: Se é de papel (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70.
Editora da UNICAMP, Campinas, 2000.)
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Novamente, também é observada aqui a utilização de materiais
industrializados que, após interferências, ganham novos recursos expressivos. A
chuva nasce de uma caneca de metal, ou mesmo de uma leiteira, com o uso da água
propriamente dita, e não de algo que a represente. Sobre esse ponto do espetáculo,
em que o deixar-se levar pela história está em questão, e o jogo teatral e o aspecto
lúdico estão em evidência máxima, Clovis Levi indaga:
(...) o que seria mais criativamente teatral? Uma chuva obtida através de apuradas técnicas, ou a simplicidade e riqueza daquela chuva feita na cara de todos com uma lata furada? É nesta concepção cênica que o espetáculo se aproxima tão violentamente da sensibilidade infantil.48
Ao mesmo tempo, isso faz com que a cena ganhe um ar ritualístico ao
aproximar-se de imagens recorrentes da iconografia religiosa ocidental, que tem na
figura do batismo de Jesus uma situação bastante próxima à do posicionamento dos
atores na figura 11. Nesta tela de Murillo (Figura 12), observa-se que a posição de
Cristo é à esquerda do quadro, replicada por Krugli e Papel nas fotografias 10 e 11.
48 LEVI, Clovis. História de Lenços e Ventos: uma experiência estética. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1975.
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60
Da mesma forma, a atriz que manipula a chuva coloca-se do centro para a direita da
cena e repete o posicionamento de João Batista, figura à direita. É possível até
aproximar as bandeiras manipuladas pelas atrizes ao fundo da cena com os seres
alados (anjos e Espírito Santo, representado pela pomba branca ao centro) que
povoam a parte superior do quadro.
Figura 12: El Bautismo de Cristo (1688), de Murillo. Catedral de Sevilla, Espanha.
Inúmeras leituras ainda podem ser descritas a partir de uma interpretação
subjetiva dos elementos que constituem essa cena. Friamente, pode-se ler a ação
como a de uma mulher que derrama água sobre um jornal, retirando as
características básicas da constituição do papel. À medida que o jornal absorve a
água, ele torna-se frágil e incapaz de manter suas propriedades originais.
Analogicamente, portanto, é possível estabelecer um paralelo entre a vida, ou
mesmo a integridade física do ser humano, e o material papel, frágil herói dessa
aventura e, conseqüentemente, entender que a vida pode ser frágil como um papel.
Mas, como se sabe que não se trata de um papel qualquer, e sim de uma folha de
jornal, a equação eleva-se para um outro tom ao nos confrontarmos com a massiva
perseguição política que tal veículo de comunicação sofreu a partir da instauração da
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Lei de Segurança Nacional, em 1967, que visava, sobretudo, “coibir o direito de
informar, o direito de criticar e o direito de discordar”.49 Esta leitura fica ainda mais
clara nos versos “se é de jornal / me faz chorar”, em que é possível cotejar tanto
com o cerceamento da imprensa quanto das próprias notícias que estariam escritas
e, principalmente, daquelas que, mesmo sendo notícias, não deveriam chegar ao
leitor.
Em uma outra conotação, pode-se lembrar que a água sempre trouxe consigo
um caráter de renovação e de purificação. Em Propp50, encontram-se dois caminhos
antagônicos no uso do elemento água nas histórias que ganharam os séculos. Fala-
se da “água da morte”, que deve ser aspergida sobre o morto para que ele possa
executar a passagem para o reino dos mortos, e da “água da vida”, que, dentre
outras qualidades, permite que ele retorne à vida. Associadas a essas duas
“qualidades” do elemento, estão a “água da força” e a “água da fraqueza”, que
podem ser ingeridas pelo herói antes da batalha. Em História de lenços e ventos, o
Papel não só enfrenta a água, como também é imolado em cena, mais tarde. Então,
podemos entender a utilização da água mais como um ritual de iniciação desse
personagem que sai pelo mundo atrás de Azulzinha. Portanto, a evocação com as
imagens do batismo de Jesus poderia servir como a interpretação de um herói que
inicia a sua jornada em busca de um ideal (aqui representado por Azulzinha). Um
outro elemento complementar com a cena do batismo, nas fotografias 10 e 11, é a
emblemática presença de uma bacia, colocada abaixo para reter a água e que, por
sua formatação, remete às pias batismais encontradas no interior das igrejas.
Interessante é perceber que outro deslocamento aconteceu a essa bacia, que
convive harmonicamente com a idéia de quintal de casa, varais de roupa, roupas
para lavar etc. Aqui ela tem sua função deslocada para um ambiente que agora é
sagrado e de contrição.
49 Brasil: nunca mais – Um relato para a história. Editora Vozes, Petrópolis, 1986. p. 144. 50 PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Martins Fontes, São Paulo, 2002.
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Figura 13: O gesto pré-expressivo de Krugli (Fonte: CEDOC/FUNARTE)
Em uma imagem (Figura 13) relativa a uma cena que acontece no início do
espetáculo – mas que também se relaciona com a água –, em que os atores
recolhem os objetos para contar a história, um dos intérpretes interpela com a frase
“E a água?”. Krugli mergulha as mãos em concha em uma bacia cheia de água,
eleva-as acima do corpo e diz: “A água está aqui”, deixando escorrer o líquido pelas
mãos. Na imagem que registra essa passagem, ainda é possível visualizar o quanto
há de expressividade no gesto e no olhar de Krugli e o quanto ela passa a acumular
de signos ao afastar-se da gestualidade cotidiana. Esse caráter pré-expressivo da
cena krugliana, reflete o que Eugenio Barba entende como “o nível que se ocupa
com o como tornar a energia do ator cenicamente viva, isto é, com ou como o ator
pode tornar-se uma presença que atrai imediatamente a atenção do espectador”51
51 BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Editora Hucitec/UNICAMP, São Paulo-Campinas, 1995. p. 188.
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A expressão que Klugi imprime a cada gesto, ou mesmo à grande maioria da
marcação gestual do espetáculo, confere um tom solene que diferencia essa
produção do grande quadro de montagens que passavam ao largo de qualquer
experimentação desse tipo. No entanto, esse caráter ritualístico da montagem não
foi um entrave na comunicação com o seu público principal. Pelo contrário, a
estranha mescla de espontânea brincadeira de faz-de-conta de quintal e o rigor
formalista de um diretor atento às transformações de linguagem que o Teatro vivia
naqueles tempos fazia de História de lenços e ventos um intrincado jogo referencial,
que sensibilizava não só as crianças, como também os adultos. Na fotografia 13, vê-
se que o nível pré-expressivo de Krugli, ajudado obviamente por uma correta
máscara facial, eleva o gesto cotidiano a uma região ancestral, arquetípica, capaz de
resgatar na audiência sensações há muito tempo inexploradas, graças a uma
excessiva exposição do corriqueiro e do gesto pequeno em cena infantil. Ao elevar as
mãos em concha acima do corpo e deixar cair a água, Krugli também replica ou
anuncia a cena da chuva, mas de uma forma ainda descontextualizada. O registro
não deixa de ser sugestivo ao congelar uma imagem que caracteriza aquele
momento e que está intimamente relacionado à trama do espetáculo, permeado de
manifestações climáticas: são ventos, chuva, noite, dia etc.
Figura 14: O gesto (Fonte: Acervo CBTIJ)
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Na Figura 14, verificam-se novamente dois procedimentos amplamente
usados. O primeiro diz respeito ao gesto solene, afastado do realismo, que se pode
observar na atriz que está em primeiro plano na foto. Seu porte e o manuseio do
lenço compõem uma figura com uma grandeza e imponência acima do que pode ser
caracterizado por um tipo comum na cena infantil. Não se trata, também, de um tipo
que possa parecer arrogante ou algo do gênero. Há verdadeiramente uma
construção corporal nela, que a aproxima do universo da dança, e isso acaba por
fazer todo o sentido ao se reconhecer que grande parte do elenco original de História
de lenços e ventos trazia contribuições pessoais ligadas ou à música, ou à dança, ou
à expressão corporal.
Em outro plano da análise, percebe-se novamente a formação de uma meia-
lua por onde os intérpretes se distribuem e se deslocam para o fundo, a fim de abrir
espaço para o personagem de maior evidência na cena em questão. Visto também
nas fotografias 1 e 2, esse procedimento tratava de gerar equilíbrio, foco e espaço
para a realização da cena. O que pode não parecer nenhuma novidade, em se
tratando de um elenco razoavelmente grande, pode, ao mesmo tempo, novamente
desvencilhar a cena de qualquer realismo e reiterar a idéia de que os atores no palco
se distribuem para contar uma história. Semelhantes a um coro lírico, eles se
estabelecem na periferia da cena, para que os intérpretes de maior importância a
executem com maiores possibilidades espaciais.
O manuseio de lenços, por vezes de tamanhos grandes, certamente deve ter
imposto uma distribuição da cena que permitisse o aproveitamento total da
expressividade desse material. Portanto, faz sentido uma distribuição que se arma e
desarma em meia-lua. Outro dado interessante nesta imagem é que é possível
observar como se dava a operação dos lenços como personagens da ação. Suspenso
por uma das mãos do ator, a figura se estabelecia pelo comprimento do tecido
utilizado no lenço; logo, deduz-se que o personagem ou a figura estaria
antropomorficamente de pé.
No entanto, sua expressividade e sua presença ativa na cena se davam pelo
agitar das mãos do intérprete, que imediatamente rompe com qualquer proximidade
com a figura humana. São lenços, não é preciso lembrar, mas dotados de
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sentimentos humanos, dos melhores sentimentos, diga-se da passagem. Se
observarmos a cena friamente, vê-se, portanto, um grupo de pessoas que agitam
lenços concomitantemente às suas falas. Esse gesto, o de acenar lenços, está
intimamente ligado à conotação de despedida, ao ato de despedir-se de alguém.
Assim, subliminarmente, outra imagem arquetípica percorre a montagem do início ao
fim – de uma sucessão infinita de despedidas entre os intérpretes. Não é preciso
recapitular a gênese da montagem, nascida da fuga inesperada de Krugli do Chile,
após a derrubada de Allende. Esse caráter de um eterno partir, de ir-se, de retirar-
se, amarra a história e dialoga com ela o tempo todo, uma vez que temos uma
personagem, Azulzinha, que deixa seus outros amigos lenços em um quintal e parte
carregada pelos ventos, na sua ânsia por voar. Atrás dela sai o Papel, que também
se despede. Talvez um dos grandes achados da montagem seja que, mesmo
permeada de belas a alegres canções, ela carrega uma velada tristeza, que tanto os
adultos como os mais jovens puderam entender para criar associações diversas. Com
o olhar distanciado de hoje, não há como negar que História de lenços e ventos é
fruto dos intensos acirramentos ideológicos nascidos a partir dos anos 1960.
2.3. A indumentária – moda e ideologia
Na figura 15, a seguir, vê-se claramente a proposta de figurino idealizado para
o espetáculo pelo diretor. Observa-se, à primeira vista, um verdadeiro
reprocessamento da roupa comum utilizada, que, por suas qualidades, possibilitam
uma maior liberdade de movimento. No entanto, cabe a pergunta: por que não usar
roupas feitas exclusivamente, manualmente, para o espetáculo? Por que não utilizar-
se de malhas de dança, uma vez que o movimento do intérprete era prioridade? A
resposta pode estar no mesmo diálogo que foi observado em relação aos adereços
do espetáculo, em que o industrializado criava vínculos novos com o material
produzido especialmente para o espetáculo, ou mesmo recriado em cena.
Basicamente, o figurino se compõe de uma camiseta – claramente escolhida ao
acaso – e uma calça larga com um corte um pouco abaixo dos joelhos, o que
provavelmente facilita as constantes trocas de nível espacial do espetáculo. A
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caracterização do intérprete ainda é complementada por uma pintura facial, que
cobre todo o rosto do ator com uma base branca e delineada por novos traços de
expressão, e cabelos soltos ou presos, de acordo com a época, e que
inevitavelmente remetem ao estilo hippie, bastante em voga naquele momento.
A principal característica do que pode se entender por moda hippie está em
uma mescla de tendências das roupas indianas – no tamanho, comprimento ou
corte, sendo a bata indiana um dos modelos mais copiados dos anos 1970 – e nas
montagens, também de influência oriental, que se compunham através de bordados
e costuras de diversos tecidos, verdadeiros patchworks; nas vestes ciganas,
sobretudo nos cortes das saias, nos coletes masculinos, nas barras das calças, que
recebiam apliques de tecidos de variadas cores e padrões; na chamada moda
camponesa, lançada por Laura Ashley (1925-1985), que reintroduziu os tecidos
estampados com flores, as blusas bufantes com bordados e fitinhas. É interessante
notar o caráter não-conformista dessas tendências. De um lado, temos o
orientalismo, que invadiu o mundo cultural ocidental naquela época também pela
culinária, pela medicina milenar, pela ioga e demais procedimentos que se tornaram
conhecidos como alternativos. Por outro lado, o modo de vida cigano influenciou
essa mesma geração pelo nomadismo característico, pela sua posição contrária à
propriedade privada, pelo modo festivo próprio dos ciganos, pela música e pelos
instrumentos musicais de pequeno porte e fáceis de carregar, como violões, violinos
e flautas.
Finalmente, o tom romântico da vida afastada dos grandes centros urbanos se
filia às outras duas tendências também como negação à ordem estabelecida. Não por
acaso, é nesse momento que também o crochê volta à moda com força total, seja
nos coletes, nas saias, toucas, blusas e até mesmo nos biquínis, reiterando o tom
hand made e o “faça você mesmo” daquela época, que propõe novas relações com o
material industrializado, adequando-o com bordados, miçangas, lantejoulas, patches
e debruns. Esse modo subversivo de relacionar-se com o material fornecido pelo
sistema liga-se ao que Michel de Certeau52 fala sobre os modos de fazer como
52 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – Artes de fazer. Petrópolis, Editora Vozes, 1999.
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estratégias ou táticas de ação como o último reduto de produção que “se insinua
ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos
próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem
econômica dominante”.53 Essa transgressão é encontrada largamente em toda a obra
de Krugli, sobretudo quando associamos o que ele chama de manualidades às
inúmeras interferências e práticas empregadas na construção de seus espetáculos.
No entanto, especificamente a indumentária do espetáculo em questão chama a
atenção às aproximações com a moda e com tudo que ela traz a reboque, sobretudo
no enunciado de M. Barnard54, quando aborda a questão da moda e do bricolage a
partir das observações de Lévi-Strauss sobre o caráter de pós-modernidade existente
no ofício do bricoleur, que une e reitera mais uma vez – no caso de Krugli – a
questão do fragmento em cena:
O bricolage, portanto, se utiliza de “restos e sobras” de acontecimentos, “miudezas e quiquilharias”, “evidência fossilizada da história de um indivíduo ou de uma sociedade”, para suas construções. Suas construções presentes são sempre tiradas de coisas que já tinham sido usadas no passado: bricolage é a “contínua reconstrução extraída dos mesmos materiais”, materiais que já tinham sido usados no passado. Conseqüentemente, bricolage envolve a contínua recombinação de elementos. Esses elementos podem ser de número finito, mas são sempre “permutáveis, isto é, capazes de manterem-se em sucessivas relações com outras entidades”. Uma alteração nas relações em que qualquer elemento existe afetará todos os elementos da estrutura e modificará o significado de cada um deles.55
Nada muito diferente do que foi visto na aproximação de Krugli e Schwitters,
mas que aqui, em outro elemento constitutivo da cena, ganha novas implicações e
subtextos.
53 Idem, p.39. 54 BARNARD, Malcolm. Moda e Comunicação, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2003. p.247. 55 As citações entre parênteses pelo autor são do livro The Savage Mind, (1966) de Lévi-Strauss, editado em Londres pela Weidenfeld and Nicolson.
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68
Figura 15: Moda e comportamento em cena (Fonte: CEDOC/FUNARTE)
Na fotografia acima, vemos os atores como se apresentam no início do
espetáculo, pois ainda carregam consigo vários lenços presos à cintura, que logo são
retirados para dar prosseguimento à história de Papel e Azulzinha. Essa montagem
de lenços presos imprime uma silhueta próxima à das saias ciganas, tão comuns
naquela época; e a variedade de cores e padrões dos lenços realça ainda mais esta
aproximação. Outro dado característico da época e que também está refletido na
foto é o caráter unissex do figurino. Unissex é outra daquelas palavras lançadas pela
moda nos anos 1970, para indicar que determinado produto poderia ser usado tanto
pelo homem quanto pela mulher. Nascido ainda na década anterior e fruto dos
intensos movimentos em prol da igualdade de direitos entre homens e mulheres e
também de um realinhamento dos papéis sexuais e comportamentais, o termo
unissex, corruptela de unic sex, traz também à berlinda uma androginia até então
pouco explorada na cultura ocidental. Os grandes ícones daquele momento, como
Mick Jagger, vocalista da banda inglesa Rolling Stones, e o cantor David Bowie,
ajudaram a propagar um novo tipo de comportamento e sintagma visual, que
quebravam de vez com os padrões masculinos que até então se entendiam como
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únicos. Aqui no Brasil, concomitante ao aparecimento do Ventoforte, um outro grupo
vindo da música tratou de avançar e climatizar ao calor dos trópicos essa nova
proposta comportamental, os Secos & Molhados, cujos integrantes, liderados pelo
cantor Ney Matogrosso, apresentavam-se com trajes que misturavam todos os
elementos de figurinos citados até aqui, indistintamente. Porém, a grande marca da
banda eram os rostos pintados de branco com desenhos em torno dos olhos, em
negro. O impacto que o grupo causou no ambiente comportado e – por que não? –
reprimido da família brasileira da época não foi suficiente para mantê-los ainda por
muito tempo na mídia, encerrando suas atividades dois anos depois do seu boom.
Não por acaso, embora Krugli conteste (vide entrevista anexa), a utilização da
pintura facial se faz presente na caracterização dos intérpretes de História de lenços
e ventos e tem, segundo seu diretor, origem nas apresentações do mímico Marcel
Marceau (1923-2007) vistas ainda na Argentina, mas também nas pinturas corporais
de tribos indígenas do norte da Argentina e Bolívia. Ou mais ainda, na sua infância:
“Quando pequeno, nos pintávamos com terra”.56 Porém, Krugli também cita as
mesmas fontes de Ney Matogrosso57 quando se refere às pinturas chinesas corporais
da Ópera de Pequim. Segundo Ney, suas principais influências na criação das
pinturas estavam no Teatro Kabuki e na Ópera de Pequim. Ou seja, ainda que
reprocessado, digerido e transformado, não há como negar o orientalismo também
presente na cena krugliana.
A camiseta, também naquela época, passa por uma supervalorização, ao se
tornar uma veste unissex adaptando-se, no calor da hora, à customização reinante.
Levá-la à cena também era um ato de certa ousadia, pois se apresentava como um
material “pobre”, mais um elemento a dialogar também com a falsa pobreza de
materiais tão ricos de expressividade escondidos por toda a extensão do palco.
Vistos dessa maneira, pode parecer que aquele figurino ainda é uma roupa de
trabalho, ou mesmo uma roupa de ensaio à espera de um figurino final. Observa-se,
inclusive, que todos os atores estão de pés descalços, prática recorrente na dança, o
que aqui enfatiza o despojamento do intérprete que está focado, sobretudo na
56 KRUGLI, Ilo. Entrevista ao autor. 57 MATOGROSSO, Ney, Entrevista inédita ao autor, 2000.
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70
liberdade de movimentos. Também esta prática dialoga com o desbunde dos
tropicalistas, Gal Costa e Maria Bethânia principalmente, que se apresentavam em
seus shows geralmente descalças. Não por acaso, as práticas das religiões afro-
brasileiras influenciaram enormemente as carreiras dos primeiros tropicalistas, e
sabe-se que Krugli, fascinado pelas expressões míticas encontradas no panteão dos
orixás, também abraça a religião pouco depois de sua chegada ao Brasil.
Para finalizar, os cabelos apresentam um grupo bem significativo da moda
daquela época, em todas as mais variadas tendências. Na extrema direita, temos um
casal que se olha. Ela traz consigo um volumoso cabelo preso por duas tranças, que
liberam o rosto e prendem-se na parte de trás da cabeça, uma acentuada inspiração
romântica. Já ele apresenta um cabelo conhecido como black power, visual típico da
classe baixa negra norte-americana que ganhou visibilidade também naquele
momento, graças ao movimento político Panteras Negras e de sua figura de maior
destaque, Angela Davis, ativista política que sofreu inúmeras perseguições políticas
no início da década de 1970. Ao lado dele, vemos o ator Beto Coimbra com longo e
escorrido cabelo, tornando-se a figura de maior androginia em cena. Entre ele e
Krugli (ao centro), encontramos a atriz Sílvia Heller, que opta por um cabelo preso e
dividido ao meio. Ilo também se apresenta de cabelos soltos e com um corte maior
do que o padrão adotado na época. Na extrema esquerda, as atrizes Alice Reis e
Sílvia Aderne repetem os cabelos soltos, mas sempre com a preocupação de não
cobrir ou fechar o rosto.
Esse grupo de atores, essa massa corporal reunida na foto, também remete a
outras três manifestações que geraram e ditaram várias contribuições aqui
encontradas: os espetáculos musicais Hair, Godspell e Jesus Cristo Superstar. Hair
teve sua primeira montagem brasileira ainda em 1969, dois anos depois de sua
estréia mundial em Nova York, e fez tanto sucesso que sua carreira estendeu-se até
1972, com longas excursões pelo país. Na peça, um grupo de hippies levava à cena a
apologia da cultura do paz e amor em uma discussão que liga o uso de drogas com a
eminência da Guerra do Vietnã. Já Godspell e Jesus Cristo Superstar, ambas
estreadas em 1970, elevadas à tela no início da década e que reprocessam os
evangelhos do Novo Testamento em forma de musical, com inúmeros anacronismos
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e deslocamentos temporais recontam a vida de Cristo em um tom genuinamente
hippie. Não há como negar a força e a influência desses espetáculos, que se
tornaram icônicos no que diz respeito aos aspectos comportamentais – aqui incluídos
o vestuário – e musicais. O despojamento do figurino e sua variação de cores
traziam à cena, portanto, uma liberdade de expressão que libertou o Teatro infantil
das amarras da literalidade e da falta de poesia no que toca à criação de figurinos
para espetáculos desse segmento das Artes Cênicas, entendendo que mais que
retratar, evocar pode ser a chave para encontrar o elo com a criança em formação
naquele momento.
Figura 16: A interpretação dividida: Papel e máscara (Fonte: CEDOC/FUNARTE)
A partir da evocação operada acima, podemos observar também na Fotografia
14 como Krugli, ao pintar o rosto de branco e aplicar alguns contornos de outras
cores, aproxima-se do seu personagem Papel. Tal operação envolve sutileza,
compreendendo que seu papel, ou personagem, pode ser entendido como uma
redução ou mesmo uma simplificação do seu rosto.
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Essa ligação remete primeiramente ao que já foi explanado neste capítulo
sobre a fragmentação do que se entende por personagem teatral, que aqui se vê
bipartido, e também pode-se entender essa ruptura como mais um dos
procedimentos oriundos do Teatro épico que ganhou espaço na cena moderna a
partir de Bertolt Brecht. Como se sabe, o encenador e dramaturgo alemão organizou
e criou uma metodologia para um Teatro de pretensões épicas em que o ator não
estava necessariamente vinculado ao seu personagem, cabendo até criticá-lo em
cena. É sabido também que é tendência natural do Teatro de animação estabelecer
cisões como essas encontradas por Krugli, não, evidentemente, em História de
lenços e ventos, mas burilada ao longo dos anos e colocada em prática pela primeira
vez alguns anos antes, com História de um barquinho. Porém, na montagem inicial
do Teatro Ventoforte, o que se vê é um mergulho ainda mais radical na proposta de
desconstrução da cena em todos os segmentos do fenômeno teatral e, ainda assim,
aliado a elementos de poesia, humor e ironia ao comunicar-se com o seu público
abrindo mão de maniqueísmos, reduções e toda espécie de mecanismos que
tratassem a criança como um ser que necessitava apenas de entretenimento. O salto
qualitativo que o Teatro infantil viveu na década seguinte é a prova cabal de que era
possível ampliar o repertório de quem fazia Teatro infantil. Era possível transformar
um espaço dominado pelo paródico e pelo divertimento puro e simples em uma
manifestação que pode ser mais profunda, intensa e de grande valor na construção
da identidade humana.
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3. A POÉTICA KRUGLIANA – DRAMATURGIA E ENCENAÇÃO
Neste capítulo, as atenções estarão evidentemente voltadas para a estrutura
final do espetáculo História de lenços e ventos, nascido de um roteiro prévio depois
desenvolvido em improvisações durante o período de ensaios. Assim, a análise terá
seu foco no registro final do processo, quando de seu registro formal em papel.
Sobre esse ponto, ainda será travado um cotejamento sobre as duas versões
distintas do texto, a saber: uma versão datilografada e sem qualquer indicação de
data encontrada nos arquivos do Centro de Documentação da FUNARTE; e outra
editada em livro em 2000 pela Editora Didática e Científica, incluída na coleção
Vertentes Teatrais, organizada pelo jornalista e dramaturgo Carlos Augusto Nazareth.
Há diferenças nem tão sutis entre as duas versões. Em primeiro lugar, a
edição em livro traz apenas uma rápida menção introdutória sobre a cena dos
bonecos Manoel e Manuela, que se recusam a fazer a história e trancam-se na mala,
gerando então a história propriamente dita dos lenços e ventos. Sem as falas dos
dois bonecos, o leitor é conduzido de antemão à falsa idéia de que a peça começa
com os atores preparando a história principal, quando, na verdade, a inusitada
resolução metalingüística apresentada logo no início do espetáculo - uma verdadeira
discussão sobre a função e a forma que o “boneco” contemporâneo pode ter-, é
transformada sem qualquer razão aparente em uma simples didascália. Essa é a
mais grave incorreção da edição que, entretanto, apresenta “falas” não disponíveis
no texto datilografado e que certamente não chegaram ao público em 1974, como a
que se refere à censura imposta pela imprensa:
Ator – Agora que os lenços estão dormindo, nós vamos ter que trabalhar, mas antes vamos ver no jornal qual é o tempo que vai fazer esta noite... É porque trabalhamos ao ar livre e pode chover, até granizo, ter ventanias, tempestades. É no jornal que se sabe de tudo. Bom... De quase tudo.
No texto datilografado, a ironia final é substituída por outro tom que
subliminarmente elabora uma paráfrase do que é visto na fala acima:
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Ator – Agora que estão dormindo, nós vamos ter que trabalhar. Mas antes vamos ver no jornal qual o tempo que vai fazer esta noite? Porque como trabalhamos ao ar livre pode chover, granizar, ter tempestade. (com medo) Não posso nem acreditar, é melhor não dizer nada...
Afora uma ou outra troca de palavras, o final do enunciado, que se conclui ser
dado após um folhear qualquer no jornal, tanto explicita uma ameaça qualquer que
irá adentrar na história quanto o “nada a dizer” ou a ausência do que deve ser
notícia; ou mesmo a idéia de que, diante do que se lê nos jornais, é melhor
permanecer calado. Essa inversão de tom e de final de enunciado gera dois finais de
cena extremamente diferentes, mostrando, sobretudo, que a palavra, em Krugli, é a
principal geradora da ação, não o contrário.
Diante do “é melhor não dizer nada” dito pelo ator, as falas a seguir, extraídas
da versão de 1974, são propulsoras para as novas ações que serão executadas pelo
restante do elenco. Assim temos:
DIVIDIDO ENTRE OS ATORES - (COM MEDO) Não posso acreditar, é melhor não dizer nada... Eu não vou dizer nada. - Eu não vou dizer nada; vou tirar a poeira das escadas. - E eu vou enxugar a chuva das janelas. - E eu vou tampar as fechaduras para não entrar fumaça. - E eu vou cortar as sombras das vidraças. - E eu vou tirar a névoa dos telhados. (os lenços vão embora)
Diferentemente do texto datilografado, o livro editado traz a seguinte
seqüência da mesma cena:
(Ficam em volta de um jornal estendido numa corda.) Ator 2 – Aqui não diz nada sobre o tempo. Se aqui não falar nada, não vai ter graça. Ator 3 – É que o que vem agora é muito perigoso!
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Ator 4 – Então eu vou tirar a poeira das escadas. Ator 1 – Eu vou enxugar a chuva das janelas! Ator 2 – Eu vou cortar as sombras das vidraças. Ator 3 – E eu vou varrer a névoa dos telhados. Ator 4 – Eu vou tomar banho de sereno.
Obviamente, deve-se entender o texto teatral como algo orgânico e passível
de mudanças até seu registro final impresso. Porém, não deixa de ser curioso que o
que aparece como impedimento em 1974 (o “não dizer nada”) gera uma série de
ações propostas pelos próprios atores para que a história possa se desenvolver. Na
versão publicada do texto, há uma visível falta de conexão causal entre as falas, o
que, por outro lado, investe na qualidade poética dos enunciados.
É da própria natureza do texto teatral ser flexível, uma vez que a sua
finalidade é a expressão oral de um elenco de atores. Sobre o registro impresso de
peças teatrais, Chartier58 aponta que:
Tanto a produção do texto quanto a construção de seus significados dependem de momentos diferentes de sua transmissão: a redação ou o texto ditado pelo autor, a transcrição em cópias manuscritas, as decisões editoriais, a composição tipográfica, a correção, a impressão, a representação teatral, as leituras. É neste sentido que se podem entender as obras como produções coletivas e como o resultado de ‘negociações’ com o mundo social. Estas ‘negociações’ não são somente a apropriação e linguagens, de práticas ou de rituais. Elas remetem, em primeiro lugar, às transações, sempre instáveis e renovadas, entre a obra e a pluralidade de seus estados.
Assim, antes mesmo de propor um estudo sobre as condições disponíveis de
escrita sobre os dois registros da obra de Krugli, o interesse maior está na
construção encadeada (ou não) da palavra, especificamente em História de lenços e
ventos. Interessa-me, sobretudo, investigar que contribuições e atualizações de
linguagem esta peça de Ilo Krugli proporcionou para o Teatro brasileiro,
58 CHARTIER, Roger. Do palco à página – Publicar teatro e ler romances na época moderna – séculos XVI-XVIII. Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2002. p. 10-11.
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considerando em especial que foi escrita e encenada durante um período de
autoritarismo político, onde as “negociações” citadas por Chartier foram necessárias.
3.1. Mapeamento estético, conceitual e histórico
Historicamente, História de lenços e ventos pode ser enquadrada naquele
grupo de obras teatrais que, a partir dos anos 1970, inicia um processo de
pulverização do espaço e do tempo e de demais elementos constitutivos da cena.
Não é por acaso que a grande obra dramática do período, Rasga Coração, de
Oduvaldo Viana Filho (1936-1974), encenada pela primeira vez em 1979,
testemunho não só do autor, mas de uma geração inteira, já lança proposições
dramatúrgicas nesse sentido, distanciando-se do grosso da produção da época.
Segundo José Arrabal59, ao avaliar o projeto dramatúrgico do autor em
questão, ele se distingue de seus contemporâneos como
O único a considerar e reconhecer pouco a pouco cada vez mais – conforme nos indicam suas últimas entrevistas – a validade de certas experiências de vanguarda na busca por uma afirmação não naturalista da escritura cênica.
Dessa forma, Arrabal propõe um novo olhar sobre o que até então se entendia
com falência da dramaturgia e mesmo a morte do texto. Reavaliando os avanços
lançados na década anterior, os esfacelamentos espaço-temporais são vistos,
portanto, como um novo elemento de uma nova dramaturgia que nascia no final da
primeira metade da década de 1970. É a partir desse pequeno avanço formal que se
pode iniciar um mapeamento da atualização que a dramaturgia feita no país sofre
entre demarcações sócio-políticas, como o início de um período menos duro da
ditadura militar, e estéticas, como a consolidação do pós-modernismo, ainda naquela
década.
Krugli certamente encontra-se em uma posição solitária dentro do segmento
do Teatro infantil, ao entender e reprocessar para o seu público essas novas
59 ARRABAL, José. Anos 70: momentos decisivos da arrancada. In Anos 70 – Teatro. Europa Editora Gráfica e Editora, Rio de Janeiro, 1979-1980. p. 9.
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adequações, preocupando-se não exatamente com “o que narrar?”, mas passando
para outro nível de discussão dramatúrgica ao pensar em “como narrar?”. Essa
disposição conceitual faz com que Krugli não encontre, em um primeiro momento,
nenhum colaborador que também invista em uma reavaliação do que estava sendo
dito para a criança e como. Entre o mero entretenimento e a contemplação
reducionista da realidade que cerca o universo infantil, a proposta desse encenador o
coloca numa situação virginal na história recente do Teatro brasileiro.
Ainda cabe acrescentar também o dado da construção e registro desse texto,
nascido a partir de improvisações propostas pelo diretor, originadas da possibilidade
de contar uma história a partir dos objetos. Segundo Krugli:
(...) no primeiro dia eu mostrei para os atores com que material eu pensava trabalhar. Tinha alguns bonecos, tinha o Manuel e a Manuela, tinha alguns outros bonecos, e tinha alguns panos e tinha lenços, e tinha pedaços de papel de seda, e tinha folhas de jornal, e tinha pedaços de metal, e de alumínio. E aí comecei a trabalhar. Comecei o dia trabalhando, procurando um conteúdo para cada material. Os bonecos, bonecos. Os outros, um conteúdo. Descobrir qual era, vamos dizer, o que poderia ser expressado através deles...60
Como se vê, as condições de materialização do texto são dadas após o
levantamento das cenas e seus encaixes finais, como a inclusão das canções, por
exemplo. Esta observação se faz pertinente, pois afasta Krugli de qualquer
compromisso dedicado apenas ao texto, ou à sua autoralidade. O que houve na
montagem do espetáculo foi uma construção executada por muitas vozes, amarradas
por Krugli de acordo com as necessidades da história em questão.
As contribuições deixadas por Bertolt Brecht (1898-1956), um dos grandes
pilares da renovação teatral ocorrida no século passado, são bastante visíveis em
Krugli. Um dos maiores exemplos está justamente nas cisões espaço-temporais
sugeridas já por Büchner (1813-1837), ainda no auge da propagação do Romantismo
alemão pela Europa. Ainda que não totalmente compreendido em sua época, o
legado deixado por esse autor, sobretudo no que diz respeito à peça-rascunho
Woyzeck, deu aos expressionistas do fin-de-siécle o caminho para a renovação da
60KRUGLI, Ilo. Entrevista ao autor.
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cena teatral. Premidas também pela invenção do Cinema e pelas novas
possibilidades de encenação surgidas a partir do advento da luz elétrica, as Artes
Cênicas trilharam caminhos inusitados, que pouco a pouco as afastaram do
naturalismo vigente.
Se com os simbolistas a palavra ganha novas implicações, reaproximando a
cena da poesia – aqui entendida como uma maior elaboração formal dos enunciados
em detrimento de uma mera ação causal –, em Brecht se estabelece uma nova
teatralidade que só existe como realidade cênica, dissolvendo toda e qualquer
possibilidade de entendimento da cena com um recorte da vida. Este dramaturgo
passa a povoar sua cena com tabuletas explicativas, reavalia a importância do coro
em novas estruturas dramáticas, rediscute o ofício do ator ao redesenhar os
caminhos com que a personagem deve ou não dialogar com o seu intérprete e, por
fim, redimensiona a cena pulverizando-a de qualquer certeza espaço-temporal.61
Brecht é destacado por Krugli como uma de suas maiores influências. Mais que isso:
Brecht talvez tenha sido uma de suas primeiras experiências com o Teatro, visto que
Krugli se lembra de ter assistido, ainda criança, às representações de textos do autor
alemão encenadas por grupos de judeus russos que traziam para Buenos Aires os
ventos da nova renovação cênica européia. Assim, as constantes rupturas que são
encontradas ao longo de História de lenços e ventos podem estar ligadas ao
descompromisso do fluxo narrativo introduzido por Brecht.
Por outro lado, a ritualização da cena krugliana também retoma as práticas
nascidas da (re)descoberta de Antonin Artaud (1896-1948), nos anos 1960, por
grupos e diretores que, inspirados nos rompimentos sociais e comportamentais
daquela época, propõem um diálogo com Artaud no sentido de ressacralizar a cena
como um modo de retomar as afinidades dionisíacas da arte teatral, desaparecida
sob os escombros da ânsia civilizatória nascida no século XIX. 62
Foi desse caldo de influências que se formaram as condições favoráveis ao
florescimento do trabalho de Krugli.
61 BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 62 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo.
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3. 2. Sobre a peça e sobre a cena
No que pode ser entendido como o prólogo da peça, os personagens Manoel e
Manuela apresentam uma série de peripécias próprias da manipulação de luva e
terminam por se recusarem a continuar o espetáculo. Diante desse fato, os atores
resolvem reunir os diversos elementos de cenário que encontram naquele quintal e
indagam à platéia: “Será que com estes jornais velhos se pode fazer teatro?” e “E
esta bacia com água – será que serve para fazer teatro?” ou mesmo “Já viu alguma
história com guarda-chuva velho?” Todas estas perguntas, mais do que um mero
início de espetáculo, denotam uma verdadeira carta de intenções que propõe um
novo olhar sobre o material descartado e mesmo “pobre” que é levado à cena para
ganhar nova funcionalidade. Esta talvez seja a grande questão de História de lenços
e ventos, ao inserir o lúdico no cotidiano, sem necessitar de um excessivo
investimento nos elementos constitutivos da cena.
O fenômeno teatral passa a acontecer com a naturalidade própria de um jogo
de crianças, através de regras, como as desses enunciados, que passam a adquirir
um caráter de estatuto da cena em andamento, querendo verdadeiramente testar
quais são os limites expressivos dos objetos. Até que ponto é possível adequá-los a
um novo universo, onde o deslocamento de função dá aos mesmos uma finalidade
diferente da sua original. O segundo momento dessa equação está em descobrir
como se dá a recepção e a aceitação do público. De que maneira essa mudança de
função faz com que seja aceita pela platéia?
Não bastasse o alto nível das músicas criadas especialmente para o
espetáculo, a canção entra na peça como um agente transformador, uma outra
qualidade de expressão artística que surge para imprimir uma passagem menos
abrupta entre um estágio e outro. Imediatamente após aquelas falas iniciais, o
elenco inicia uma grande composição cenográfica, em que os objetos são distribuídos
pelo espaço, já preparando visualmente a cena. Na seqüência, é encontrado, entre
tantos objetos deixados no quintal, um violão, que passa a ser utilizado justamente
para criar um outro nível dramático, permitindo a entrada dos objetos-personagens
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em cena. Esse recurso, portanto, se estabelece como um elemento de transformação
do estado inicial da cena.
Pode-se verificar também, ao longo do texto, que as canções estão localizadas
em lugares de câmbio e que necessitam de uma nova informação do que virá a
seguir. A canção Lá vem a noite obviamente preconiza o início da fase noturna do
espetáculo; Soldado Medieval introduz um novo personagem em cena; Vento da
Madrugada anuncia o desaparecimento de Azulzinha, e assim por diante. Portanto, a
canção – em um pareamento muito próximo à utilização das songs brechtianas –
entra na estrutura dramática como introdutora de um novo componente da história
ou para apresentar uma nova situação cênica. Segundo Jean Jacques Roubine63, a
canção “se faz ouvir para marcar as quebras, para designar o espetáculo como uma
manifestação teatral”. Tal mecanismo dramatúrgico interfere na cena de uma
maneira extremamente poética, pois liberta o intérprete do gestual cotidiano,
deslocando-o para um estado expressivo que induz o corpo do ator a agir de uma
nova forma de acordo com o andamento da canção.
Ainda segundo Roubine, sobre as proposições trazidas por Brecht, a música
tem a função de “romper a unidade da imagem cênica, despsicologizar o
personagem opondo-lhe uma contradição; enfim destruir todos os efeitos do real
eventualmente induzidos pelo espetáculo”.64 Além disso, também passa para o
espectador uma outra construção formal da palavra que propõe uma nova relação
com a obra e com a sua própria capacidade de elevar-se a outro estágio de
contemplação do espetáculo.
Uma das características mais visíveis em todo o texto é uma construção formal
em que o encadeamento das frases, sempre acumulativas, parte do cotidiano e
desagua no fantástico, como é possível observar no exemplo abaixo:
AZULZINHA – Ai, eu queria tanto voar! VERMELHINHA – E eu queria voar alto com as nuvens!
63 ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982. p 140. 64 Idem, p. 141.
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AMARELINHA – E eu queria rodar com todos os redemoinhos! FLOREADO – E eu queria me agitar como uma grande floresta em tempestade! LISTRADO – E eu como uma tempestade numa grande floresta! TRANSPARENTE – E eu queria passar pelo céu como se fosse um
cometa!
Observe também este outro exemplo:
Ator 4 - E agora faremos um cavalo. Ator 1 - Não, um camelo. Ator 2 - Um besouro eletrônico. Ator 3 - Um tigre de oito patas. Ator 4 - Um leão voador. Ator 1 - Não, é melhor um dragão de cores. Um dragão de cores e amores.
Em todos os casos, há um claro afastamento da fala cotidiana, privilegiando
uma estrutura que possibilita vôos de linguagem incomuns até então no Teatro
infantil. Essas estruturas, espalhadas ao longo de toda a peça, indicam uma
preocupação de Krugli por uma nova construção verbal, em que o poético adentra a
cena também pela palavra, independentemente das explorações visuais e cênicas já
observadas no capítulo anterior. Havia, portanto, uma clara intenção de um
distanciamento do real, sem, contudo, abandonar definitivamente as estruturas dos
contos infantis. Na peça História de lenços e ventos são os objetos que assumem a
natureza de heróis, vilões e mocinhas e vê-se claramente uma estrutura bastante
convencional – o herói que parte para libertar a mocinha indefesa –, mas revirado
pelo avesso.
Somados a estas células poéticas, há ainda outros tipos de rupturas
encontradas ao longo do texto. A narratividade que se estabelece em contraponto
com o fluxo dramático da peça busca claramente retomar a atenção da platéia, seja
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para acrescentar um dado novo à história, seja para comentar ironicamente algo que
a história apresenta. No primeiro caso, temos:
Ator 1 - Mas agora é momento de fazer entrar na história um novo personagem. Ator 2 - Ele não é de seda. Ator 3 - Também não é de pano. Ator 4 - Nem de papelão. Ator 1 - Nem de papel celofane transparente. Ator 2 - Nem de corda. Ator 3 - Nem de metal brilhante. Ele é de jornal.
O que se vê acima é a apresentação do personagem Papel, por meio de uma
espécie de eliminação das possibilidades à disposição do elenco. O autor, por
eliminação, propõe qual material poderá constituir um novo componente da história
em questão – todos os outros materiais já estão comprometidos com algum
elemento anterior à entrada desse novo personagem.
No segundo caso de narratividade que permeia o texto, encontra-se, portanto:
Ator 1 – Mas vai ter tantos perigos nesta história. Para continuarmos contando vamos esperar a noite. Ator 2 - Porque nas histórias os perigos sempre acontecem de noite... (Escurece a cena)
Não há como negar o grau de intercontextualidade existente nesses dois
enunciados que sugerem subliminarmente a periculosidade daquele momento –
daquele momento da vida nacional, bem entendido.
Uma das maneiras mais interessantes de driblar a Censura surgida naquele
período foi encampada pelo diário carioca Jornal do Brasil, claramente em
contraposição ao regime, que apresentava sempre em seu cabeçalho, com poucas
palavras, as condições climáticas do dia. Em 14 de dezembro de 1968, dia seguinte à
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instauração do Ato Institucional nº. 5, fator que tornou ainda mais dura a repressão
ditatorial, esse periódico usou seu espaço destinado à previsão do tempo para
informar e comentar, de forma velada, as conseqüências do AI-5: “Tempo negro.
Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes
ventos.”65 Tal ousadia não foi notada de imediato pelos censores e entrou para a
História. Desta forma, não há como ignorar a sutileza existente no texto de Krugli,
talhado de frases que podem apresentar leituras diferentes por parte dos dois tipos
de público – pais e filhos – que a montagem congregava:
Ator 1 - O prognóstico para hoje e amanhã é de chuvas esparsas e ventos moderados de norte a sul. Ator 2 - Só vai ter ventos moderados. Ator 3 - Não gosto de histórias de ventos moderados... (Saem chateados até o fundo do quintal) Ator 4 – É, eles têm toda razão do mundo, ventos moderados não dá, a última vez que estive numa história de ventos moderados foi muito ruim, ou é vento pra valer ou melhor nada.
Vale também ressaltar, no último enunciado dessa citação, que o ator, ao
mencionar a última vez em que esteve “numa história de ventos moderados”, não
apenas agrega para si o fato de ele ser um agente criador de histórias, reafirmando
o seu papel ativo na criação da cena e da história, como também se pode entender
história como fragmento de vida, uma passagem vivida em sua existência. A
sobreposição de camadas aqui reunidas desloca Krugli das citações metafóricas ou
simbólicas e reitera o aparecimento da discussão da teatralidade na seara infantil em
um diálogo que se estabelece também com os pais das crianças, ampliando a força
do jogo, aberto agora de forma triangular.
Somados à inquietante fragilidade dos lenços, à mercê das alterações
climáticas e do dia e da noite, há ainda, no enredo da história, outros elementos que
reforçam a idéia de uma liberdade débil, a preencher a trama com fronteiras,
65 VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988. p. 288-289.
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delimitações, impedimentos, atualizando a questão da territorialidade do conto
infantil, agora visto sob a mira de guardas e chancelas. Esta questão, das
delimitações espaciais, é encontrada e bastante aprofundada nos espetáculos
seguintes de Krugli, sobretudo em Da metade do caminho ao país do último círculo.
Em primeiro lugar, a vigilância, bastante explorada pelo personagem Rei Metal Mau,
reproduz aspectos e práticas recorrentes do período ditatorial brasileiro, tendo a
Caixa Estratosférica como exemplo mais claro de um lugar isolado para onde eram
levados os indivíduos indesejáveis, local que deveria ficar oculto, longe da vista dos
outros; no caso, fora deste mundo, do nosso mundo, na estratosfera, onde são
aprisionados todos os lenços do quintal.
Afora isso, há ainda em História de lenços e ventos um dado de grande
repercussão no eixo do enredo e que qualquer espectador da montagem jamais
esqueceu: a imolação do personagem Papel. Para o crítico Yan Michalski66:
Um dos pontos altos do espetáculo é o momento em que um pedaço de papel, que todos fomos convencidos a aceitar como um personagem chamado Papel, é imolado numa fogueira. Todos nós sofremos na própria carne a morte desse pedacinho de papel magicamente transformado em personagem. Mas a maneira poética pela qual esta morte é cenicamente proposta faz com que o sofrimento não se transforme em desespero: o personagem Papel morreu queimado, mas antes disso já vimos que basta um novo pedacinho qualquer de papel para criar um novo personagem chamado Papel. Tão querido quanto o primeiro Papel.
Ainda que tenha resistido às primeiras intempéries, Papel sucumbe às ordens
do Rei Metal Mau, de que é necessário “limpar, ordenar, arrumar a Cidade Medieval.
Que tudo brilhe, que tudo seja duro, firme e espelhado. Que não fique em volta do
castelo nenhuma folha seca, nenhum papel velho.” E, em um golpe cênico de grande
força dramática, o Papel é queimado em cena aberta. Essa ação, polissêmica por sua
natureza, rompe, primeiramente, com a questão da própria história, do próprio
enredo da peça, que abdica de um protagonista – pelo menos a princípio – e induz o
público a realizar uma nova operação para entender quem então poderá seguir com
a história e salvar Azulzinha. Também é impossível deixar de pensar novamente nas
66 MICHALSKI, Yan. Art. cit.
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práticas cruéis exercidas por governos totalitários ao longo da história ocidental,
sobretudo os mecanismos de extinção daqueles que não se enquadram nas
prerrogativas estabelecidas pelo regime. Essa “limpeza” ordenada pelo antagonista
da peça remete-nos a muitos atos sangrentos que repetidamente assombraram o
mundo durante o século passado.
Por fim, Krugli ainda propõe na cena uma reiteração das capacidades
expressivas do material papel, que, em uma aproximação com o fogo, altera-se
definitivamente, o que dá a entender que o personagem perdeu a vida. Porém, como
Michalski aponta, um outro papel pode assumir seu lugar, sobretudo pela
interferência e interlocução do mesmo ator que atuava como Papel, trazendo o
personagem de volta à história, não magicamente, mas teatralmente.
Outro elemento a ser considerado é a figura do dragão, imagem recorrente no
universo dos contos de fadas. Ele surge em cena através de uma interferência feita
pelos atores, ao amarrar todos os lenços que foram libertados da Caixa
Estratosférica. Com uma configuração próxima à dos dragões chineses67, entra em
cena o elemento que irá acompanhar Papel até o Rei Metal Mau, um dragão feito dos
lenços libertados. Muito mais do que representar a idéia de que “a união faz a força”,
mas não excluindo essa questão, a decisão de incluir um dragão na história mostra,
primeiro, um alinhamento de Krugli à tradição do conto infantil, tão freqüentemente
povoado desse tipo de elemento fantástico. Mostra também, por sua configuração
física no palco, a transculturalidade da cena, que lança mão, sem distinção, de
diversas influências culturais, amarrando-as pelas capacidades de impacto e
expressão que poderão dar ao espetáculo.
Segundo Vladimir Propp, ao tentar entender a fisiologia do dragão, ele relata
que “o dragão é um ser com diversas cabeças. O número de cabeças varia:
geralmente são três, seis, nove ou doze, mas também podem ser cinco ou sete. Esta
67 Os dragões chineses, constituídos por uma cabeça esculpida e que abriga no seu interior uma pessoa que irá conduzir a sua trajetória; acoplada à cabeça está um tecido de grande comprimento capaz de acolher um número considerável de pessoas que, dispostas em fila indiana, reproduzem o corpo de dragão e seguem as orientações de deslocamento de espaço propostas por quem está na cabeça.
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é uma característica fundamental, constante, obrigatória do dragão.”68 Parece que
esta mesma premissa ditou os primeiros versos da canção do Dragão na peça:
Vamos fazer um dragão de muitas cabeças para poder esta história terminar uma cabeça, oito cabeças dez cabeças, doze cabeças chega, já é demais.
Ainda é possível fazer inúmeras associações entre a configuração física do
dragão e a canção; no entanto, mais interessante é tentar esmiuçar as possíveis
ligações existentes para justificar a presença do dragão no final de História de lenços
e ventos. Um aspecto possível está ligado à questão da vingança, uma vez que esse
ser está associado ao fogo e lança chamas pela boca. O fogo que extinguiu o
primeiro Papel pode agora ameaçar o projeto do Rei Metal Mau.
Curiosamente, Krugli reserva para o embate final uma outra apropriação da
cultura oriental, ao realizar o duelo do rei com a sua própria sombra, uma vez que
nenhum outro adversário se apresentou para o combate. Assim temos:
REI – Eu acho que vou lutar com a minha própria sombra. Preparem-se todos,
toquem os tambores que o torneio vai começar. Em guarda, minha sombra, ei de
vencer ainda que te perca. Toma, toma! (Luta com sua sombra. Aparece a sombra
do papel). De quem é essa sombra que aí se apresenta?
PAPEL – Essa sombra é minha. REI – Quem é você? PAPEL – Eu sou o Papel Coração de Celofane. REI – Ousas me enfrentar?
68 PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Martins Fontes, São Paulo, 2002. p. 260.
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PAPEL – Eu não, é a minha sombra que ousa. (As duas sombras lutam, a do Papel vence e desaparece a sombra do Rei. Isto se fará com dois refletores apagando-se a sombra do Rei) REI – Minha sombra foi vencida, estou sem sombra. Agora lutarás com os meus soldados.
Como se vê, a cena se utiliza da linguagem do Teatro de sombras, comum em
todo o Oriente, para encerrar o conflito existente entre os dois lados opostos. Porém,
é curioso como aqui também pode se levantar uma possível interpretação de que o
embate com o poder não pode acontecer às claras. Mesmo óbvio, não deixa de
suscitar essa possibilidade, transferindo para as sombras e, por conseqüência, para a
imaterialidade dos personagens o desfecho da obra. Sem a sua sombra e sem seus
soldados, derrotados pelo dragão, é permitido ao Rei ficar em seu castelo, “Mas
longe do quintal!”, como os atores enfaticamente acrescentam, sugerindo, assim,
mais uma vez, a idéia de nação dada ao quintal. Conforme afirma Bachelard69, “é no
plano do devaneio, e não no plano dos fatos que a infância permanece em nós viva e
poeticamente útil.” Krugli recupera no palco seu quintal de infância, refaz o seu
quintal, em uma tentativa de encontrar-se como cidadão de algum país. Reabitar
oniricamente e poeticamente esse quintal dá a Krugli a chance de reatar vínculos
com a sua própria terra e com a sua própria história.
O último ponto a ser considerado aqui visa a cobrir as opções de Krugli no que
tange à encenação de História de lenços e ventos e que recai, particularmente, sobre
um entendimento e representação de mundo que se encontra aos pedaços. Para
discorrer sobre esse assunto, é de grande valor o livro Impressões de Viagem – CPC,
vanguarda e desbunde:1960/70, de Heloísa Buarque de Hollanda, sobre as
características e peculiaridades da produção poética da década de 1970, no qual
observou uma desagregação do sujeito poético nascida de um mundo em crise de
significados. Tal crise gera o estilhaçamento desse mesmo eu. Assim, o mundo se dá
a partir de inúmeros fragmentos; e a poesia, antes voltada especificamente para as
considerações desse eu, completo e único, vê-se agora em meio a uma tentativa de
69 BACHELARD, Gaston, Op. cit. p.35.
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entender conscientemente essas rupturas e fazer delas objeto de um novo material
poético. Segundo H. B. de Hollanda70:
O fragmento, o mundo despedaçado e a descontinuidade marcam definitivamente a produção cultural e a experiência de vida tanto dos integrantes do movimento tropicalista quanto daqueles que nos anos imediatamente seguintes aprofundam esta tendência (...).
A essa observação, H. B. de Hollanda ainda enfatiza que “o fragmento do real
bruto é redimensionado e redimensiona os recortes vinculados à tradição teórica e
cultural. É desse confronto que tira sua força.”71 Esse esfacelamento, fruto daquela
época, pôde ser observado em todos os elementos constitutivos da cena, analisado
ao longo do capítulo anterior. Porém, a sintonia que é possível estabelecer com H. B.
de Hollanda é exatamente quando Krugli propõe na concretude da cena o
rompimento do eu, unitário, aqui representado pela unidade do personagem. Em um
caminho nunca trilhado pelo Teatro para crianças, Krugli cinde o “eu” indissolúvel do
personagem para apresentá-lo “aos pedaços”, em uma clara alusão à impossibilidade
de entender um personagem como Papel apenas na sua completude como papel.
Essa desistência, como já foi dito, se dá aos primeiros minutos do espetáculo,
quando os bonecos voltam para a mala e recusam-se a executar seus papéis. É
dessa impossibilidade que nasce uma nova forma de expressão, rompida em sua
unidade constituinte. O exemplo mais claro disso está na resolução cênica proposta
por Krugli, em que se dá igual peso ao Papel – o personagem em si – e ao ator que
o manipula/interpreta. Essa cisão revela um profundo questionamento sobre a
localização do personagem no espaço cênico e sua materialidade enquanto
fenômeno artístico. É no atrito destas duas realidades, a do ator que interpreta o
Papel, e a folha de jornal que representa o Papel, que se encontra a maior riqueza
de História de lenços e ventos, ao recriar um jogo tantas vezes já visto e imprimir
agora uma regra nova, capaz de propor outros diálogos com a tradição teatral e
70 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem – CPC, vanguarda e desbunde:1960/70. Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 2005. p.64.
71 Idem, p. 88.
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equacioná-la ao sabor de um tempo que exige uma nova comunicação com a platéia,
seja pela forma, seja pelo conteúdo.
Se antes a celebração de um espetáculo, digamos, com bonecos se dava pela
graça e beleza de sua movimentação, agora ela perdeu o foco e reafirma as
qualidades também expressivas de quem o manipula. Este deslocamento do objeto
manipulado para o diálogo deste com quem o manipula faz de Krugli, em 1974, um
desbravador solitário nesse novo campo do Teatro de animação. As relações
heterogêneas nascidas entre um ator e um objeto manipulado e que dividem o
mesmo personagem revelam, portanto, um novo arcabouço de investigações do
personagem e da cena que Krugli repisou durante todo o restante da década em
suas montagens posteriores, embebido pelo espírito do experimentalismo
característico tanto de seus processos quanto de sua época.
Não se pode deixar de salientar também que a palavra “papel”, em teatro, é
sinônimo de “personagem”. E Papel, na história, é mesmo um personagem. Ao ver
no palco um ator manipulando uma folha de jornal, o público assistia, literalmente, à
arte de dominar um personagem, um ator a usar seu talento e sua técnica para
interpretar seu papel. Ao mesmo tempo, ficava clara a diferenciação entre um e
outro, sem lugar para o naturalismo. O espetáculo se assumia, mais uma vez, como
faz-de-conta e como “fazer teatral”, dando espaço para reflexões diversas e
profundas, mas sem prejudicar a compreensão por parte daqueles que não se
dessem conta disso.
Reiterando o aspecto da cisão do personagem e do próprio eu cênico e
salientando que essa cisão propicia o florescimento de um teatro com tendências
épicas, Didier Plassard72 nos diz que:
O acento então existente sobre a atividade de produção da narração, tanto quanto para a própria narração, introduziu ao espetáculo teatral
72 PLASSARD, Didier. La traversée des figures. Revista PUCK – La marionnette et les autres arts, ano 1, no. 4. Charleville-Mezières: Institut International de la Marionnette, 1991. pp 57-60. apud PIRAGIBE, Mário. Anexo B. Papel, tinta, madeira, tecido... - Um estudo da conjugação de elementos dramatúrgicos e espetaculares no teatro contemporâneo de animação: a experiência da Companhia PeQuod. 2007. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Programa de Pós Graduação em Teatro (PPGT) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
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um funcionamento dividido, uma dinâmica de trocas entre contar e representar, que carrega o teatro à fronteira da narrativa.
Essa região nebulosa do teatro contemporâneo ainda instiga Krugli com a
mesma inquietude e ousadia vistas já nos anos 1970. De lá para cá, a principal voz
do Teatro Ventoforte adensou e problematizou ainda mais essas relações, como o
que foi visto em Victor Hugo, onde está você?, espetáculo criado em 2004 a partir da
obra Os Miseráveis, do autor francês, o que definitivamente permite desfazer a idéia
de que o diretor estacionou no tempo. Os esfacelamentos nessa montagem se
redimensionam e se reagrupam. Mas a pulverização do personagem ainda está
claramente em processo de evolução. Krugli nunca será pós-dramático, pois é
constitutiva desse gênero a perda do encadeamento narrativo e, portanto, ele nunca
abrirá mão do caráter fabular de suas encenações. Porém, seu jogo ainda se
estabelece e se refaz na inconstância do sujeito, na transitoriedade da voz ativa do
personagem e, sobretudo, na recusa da forma bem acabada e concluída. O teatro de
Krugli, longe de ser passadista, ainda está à espera de uma conclusão.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe concluir, inicialmente, que 1974 foi um ano especialmente fértil e
peculiar para a vida cultural do Rio de Janeiro. Este ponto de partida é importante
para entender a inserção de Ilo Krugli e seu Teatro Ventoforte nesse quadro e
salientar que o fenômeno gerado a partir da estréia de História de lenços e ventos
não está vinculado a qualquer tipo de escassez de produção, visto que aquele
período foi rico em quantidade e qualidade de montagens teatrais. A peça foi, sim,
fruto de um ambiente de intensa busca de formas de comunicação com a platéia, o
que, neste caso, envolve também aspectos ligados a o que dizer e o que camuflar
sob a vigilância da Censura e do próprio regime que a mantinha.
Na esfera oficial73, há um profundo remanejamento de forças que
contribuíram sensivelmente para um arejamento das pressões sofridas pela classe
teatral naquele momento, gerando um panorama renovado nos palcos nacionais, o
que eleva o ano de 1974 a um ponto muito acima dos anos anteriores, apontado por
Michalski como o ano de uma sensível melhoria nos aspectos plásticos e visuais dos
espetáculos, constituindo uma significativa contribuição para uma maior “beleza e
poesia estética das encenações”74.
Já na esfera de produção, observa-se uma internacionalização do cardápio de
atrações teatrais do país, que recebeu espetáculos estrangeiros de alta qualidade,
como o Yerma, de Garcia Lorca, com direção de Victor Garcia, interpretado pela
bailarina Núria Espert.
73 Neste ano observamos a posse do ex-governador do Paraná Ney Braga no Ministério da Educação e Cultura, em cuja gestão o Teatro obteve mais recursos e atenção do que vinha recebendo até então. Houve também a nomeação do produtor Orlando Miranda à direção do Serviço Nacional de Teatro – SNT –, o que reanimou toda a classe artística por sua seriedade de propósitos, por sua capacidade de gerir recursos e por modernizar e dinamizar um orgão até então estagnado pela administração confusa, omissa e ineficiente de Felinto Rodrigues Neto.
74 MICHALSKI, Yan. O Teatro sob Pressão - Uma Frente de Resistência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.p.60.
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Há também a proposta de novas práticas, como a da atriz e produtora Tereza
Rachel, que convida o argentino exilado em Paris Jorge Lavelli para dirigir uma
encenação de A Gaivota, de Tchecov.
No campo da dramaturgia, 1974 ainda viu Nélson Rodrigues lançar uma nova
obra teatral – o Anti-Nélson Rodrigues –, depois de um silêncio de dez anos.
No âmbito das montagens marcantes, destacam-se o Somma, de Amir
Haddad, que dividia o mesmo espaço de representação com o Ventoforte, na sala
Corpo/Som do Museu de Arte Moderna; Um grito parado no ar, de Fernando Peixoto,
e ainda Ensaio Selvagem, de José Vicente, levado à cena por Rubens Correa e Ivan
de Albuquerque. Neste último caso, cabe lembrar a onipresença do cenógrafo Luis
Carlos Ripper, que em muito contribuiu para a maturação estética e visual que
fundamentou a visualidade da cena teatral carioca. O trabalho de Ripper nas
montagens históricas do Teatro Ipanema, a destacar Hoje é dia de rock, montado
em 1971, é o início de um novo olhar para a visualidade do espaço cênico, que
certamente permite abrir um diálogo com as inovações que Ilo trouxe para a seara
do público infantil.
Esse mesmo ambiente renovado ainda vai gerar dois coletivos teatrais. O
primeiro, o Grêmio Dramático Brasileiro, liderado por Aderbal Jr., hoje conhecido
como Aderbal Freire-Filho, responsável por lançar um autor de grande personalidade,
Flávio Márcio, com a montagem de Reveillon. O segundo, liderado por Hamilton Vaz
Pereira, e jocosamente intitulado Asdrúbal Trouxe O Trombone, trouxe para o Teatro
um frescor e um descompromisso típicos da juventude desbundada carioca, com
ousadia e despretensão, tendo sua trajetória iniciada com uma montagem de um
clássico de Gogol, O inspetor geral.
Esse pequeno panorama serve para mostrar que, apesar das intempéries,
aquela temporada espelha uma retomada da produção teatral, visivelmente mais
profunda em experimentações visuais e plásticas, ampliando os horizontes da
cenografia e do figurino em nossos palcos. Se 1974 tivesse sido pobre nesse sentido,
talvez até se pudesse reduzir a importância de História de lenços e ventos, visto que
qualquer trabalho artístico acima da média tende a ser supervalorizado quando vem
à tona em um período de fraca produção. Mas esse, definitivamente, não é o caso.
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Assim, História de lenços e ventos figura entre os destaques daquele ano,
independentemente da faixa etária do público a que se destinavam. Suas inovações
e avanços de linguagem discorridos nesta pesquisa apontam para um
redirecionamento do que e como deve ser dito para o público mais jovem. Em
primeiro lugar, tem-se uma história que combina elementos de alta poesia com uma
temática cara ao regime então vigente, a liberdade. Além disso, trazia para o público
infantil uma leitura agridoce da contracultura, emergida em todos os meios de
expressão artísitca a partir da década de 1960. Portanto, imbuídos de uma aura
hippie, os atores do Ventoforte trouxeram para as matinês um novo modo de fazer
teatro – no que se refere a invenção, imprevisibilidade e transformação –, ao investir
no jogo como eixo de sustentação dramática. Se, por um lado, isso fragilizava a
linearidade do enredo, por outro enriquecia os aspectos simbólicos e conotativos.
Além disso, percebe-se ainda como forte influência daquela cultura emergente
o acentuado investimento expressivo do corpo, que em Krugli se apresenta por meio
de procedimentos que investem na figura do ator-manipulador aparente e, portanto,
atento às exigências não só da boa manipulação, como também da adequada
colocação espacial – neutralizada ou não – desse ator. Esse estado expressivo,
nascido do corpo do ator, é transferido para objetos de aparente pouca
expressividade como, por exemplo, lenços e jornais. Interessado nisso, Krugli ainda
propõe uma revisão da questão da unidade do personagem que, ao apropriar-se da
linguagem do Teatro de Animação, apresenta personagens cindidos em sua
representação, colocando em xeque alguns dos mais importantes elementos que
constituem o fenômeno teatral, a unidade do personagem.
Esses desnudamentos ocorrem também em outras instâncias da cena, levando
o espectador a uma reeducação do seu olhar. Krugli se apropria de caracteres
arquetípicos para construir a sua cena, como se, tal qual um fundo falso, ela
escondesse em sua aparente simplicidade um aprofundado conhecimento das Artes
Cênicas e do infindável cabedal iconográfico que ele absorveu com o passar dos
anos.
Ainda sobre a questão da reavaliação da expressividade corporal nessa
montagem, cabe lembrar que as inúmeras canções existentes na peça tratam de
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elevar o corpo a um outro estado energético e a outra qualidade de movimento que
foge dos aspectos cotidianos e que, por fim, estabelece um diálogo nascido na
Contracultura, em que propõe uma maior ritualização do corpo e do movimento.
Por todas essas razões, esta pesquisa buscou verificar se História de lenços e
ventos, montagem inaugural do Teatro Ventoforte, pode ser considerada como uma
nova demarcação na História do Teatro para crianças feito no Brasil. Devido às
diversas linhas de expressão e comunicação apresentadas, sobretudo em sua
encenação, verificadas a partir de procedimentos de estudo semiológico e
iconológico, pode-se entender que Krugli reavaliou os critérios com que as
montagens para crianças conquistavam seu público. Afastando-se das simplificações,
dos maniqueísmos e de equivocados julgamentos morais, o diretor desestruturou a
cena e acrescentou-lhe recortes, rasgos e esfacelamentos. A esta constatação foram
de extremo valor as considerações levantadas por Heloísa Buarque de Hollanda, que
entende o fragmento e a descontinuidade como expressão maior daquela geração.
Sua contribuição serviu de caminho para que fosse possível encontrar um diálogo
entre Krugli e outros tantos nascidos naquela crise, que tem como expressão de
maior repercussão o Tropicalismo.
A partir de tal verificação, é possível entender Krugli, assim como a maioria
dos grandes criadores de produtos culturais – seja na música popular, seja na poesia
– como mais um observador e tradutor de um mundo esfacelado, cindido, e que,
portanto, não pode mais ser compreendido em sua totalidade. Esse espírito
fragmentário dominou a época, graças, sobretudo, à polarização sócial e política que
fez da década de 1970 um dos períodos mais tristes do século passado. Essa pode
ser a maior influência de Krugli, por apresentar uma cena aos pedaços, com
imbricações épicas, com canções e música ao vivo executada no interior da cena,
com figurinos, cenários e adereços que refletem um esfacelamento de uma unidade
“burguesa”. E, no entanto, uma unidade maior, dificilmente explicada, trata de
reorganizar tais elementos dispersos sob as asas de uma poética ora dura, ora plena
de magia.
História de lenços e ventos pode ser encarada como a entrada bem-sucedida
de uma maior carga simbólica dos elementos da cena em detrimento de enredos
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paródicos ou replicantes de conteúdos vindos da literatura infantil. Mais ainda, essa
montagem introduz o aspecto do risco na seara do Teatro infantil, entendido aqui
como ato de experimentação real, como intromissão e readequação das estruturas
internas da narrativa apropriada às crianças que comprovadamente foram bem
sucedidas e que contribuíram em muito para o afastamento da idéia de um teatro
infantil como um entretenimento. Portanto, merece uma reavaliação acadêmica no
sentido de entender a existência de um projeto de desenvolvimento de linguagem
destinado ao público infantil, o que deve ser entendido como parte da História do
teatro brasileiro.
Os inúmeros frutos advindos dessa longa história fazem crer que a sua gênese
libertária ainda se propaga não só no eixo Rio-São Paulo, mas por todo o Brasil e até
fora dele. A prova disso está na atualidade dos trabalhos desenvolvidos hoje em dia
pelos primeiros integrantes do elenco de 1974:
- Beto Coimbra continua à frente do Grupo Hombú, nascido do Teatro
Ventoforte, com 30 anos de existência. Atuando em várias frentes, seja como
produtor, seja como ator ou compositor e diretor musical com uma trajetória repleta
de sucessos e premiações importantes;
- Caíque Botkay é hoje uma das principais referências sobre musicalidade na
cena teatral carioca, atuando, como ator, compositor e diretor musical, em um
grande quantidade de espetáculos desde 1974, com os mais importantes diretores
do período. Seu campo de atuação se ampliou consideravelmente por ele participar
de outras frentes de atuação da área cultural, com destaque para seu status de
membro efetivo do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, órgão consultivo
ligado à Secretaria de Cultura do Estado. Foi inúmeras vezes agraciado com os mais
importantes prêmios destinados à classe teatral. Atualmente prepara uma nova trilha
musical para A pena e a lei, de Ariano Suassuna, o próximo espetáculo de Krugli, a
estrear no primeiro semestre de 2008;
- David Tygel fundou no final dos anos 1970 o grupo vocal Boca Livre, de
muitos sucessos na década seguinte e recentemente de volta à atividade. Além
disso, assinou a trilha sonora de mais de trinta longas-metragens a partir dos anos
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1980, afirmando seu nome também na área cinematográfica ao ganhar muitos
prêmios internacionais.
- Alice Reis continuou suas atividades no Grupo Hombú e em outras
produções teatrais, como atriz e também como autora. Após um período dedicado à
televisão em diversos programas em várias emissoras, hoje é professora do Centro
de Artes de Laranjeiras – CAL.
- Arnaldo Marques segue seu trabalho como ator em numerosas produções na
cidade do Rio de Janeiro e, desde 1990, tem seu nome ligado ao do Grupo Hombú,
seguindo uma premiada trajetória artística;
- Richard Roux, ator radicado na França, atua hoje em vários projetos de
intercâmbio cultural entre os dois países, com destaque para uma iniciativa
financiada pelo governo francês de criação de um Dicionário de Teatro Brasileiro, a
ser publicado naquele país;
- Sílvia Heller atua hoje como professora da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde também desenvolve projetos de teatro em
espaços não-convencionais e ligados a temáticas do corpo e da política;
- Silvia Aderne tornou-se uma das maiores atrizes dedicadas ao Teatro infantil,
recebendo uma numerosa quantidade de prêmios já desde seu trabalho no
Ventoforte, passando por sua extensa trajetória do Grupo Hombú, do qual é uma das
fundadoras. As qualidades interpretativas e corporais desta atriz de setenta anos
chamaram a atenção dos fundadores do Cirque du Soleil, que a convidaram em 2005
para atuar em uma montagem em Las Vegas, Estados Unidos, afastando-a
temporariamente das atividades do Hombú até o presente momento.
A pluralidade dessas trajetórias, todas repletas de grandes êxitos profissionais,
atesta também a reavaliação ética proposta pelo diretor do Ventoforte, que apostava
em um ator com qualidades diferenciadas para lidar com a criança, qualidades estas
que hoje se verificam como ousadia, sensibilidade e um comprometimento
inquebrantável com o seu ofício.
Finalmente, cabe destacar que o nome de Ilo Krugli é um referencial de
grande solidez, pronto para servir a novos e futuros estudos sobre a evolução da
cena infantil no Brasil.
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APÊNDICE A: Sinopse de História de tempos e ventos
Com a entrada do público, os atores trazem para o palco todos os materiais
que irão fazer parte da encenação. Indagam, então, à platéia questões como “Será
que com estes jornais velhos se pode fazer Teatro?” e “Já viu alguma história com
um guarda-chuva velho?”. Enquanto fazem as perguntas, ocorre a montagem da
cena, que sugere um quintal com muitos varais e panos pendurados. Em um
prólogo, os atores encontram uma mala com bonecos e resolvem fazer Teatro com
eles. No entanto, os bonecos se recusam a representar e trancam-se por dentro da
mala, obrigando os atores a se encarregarem de fazer o espetáculo. A partir daí, os
atores buscam encontrar outros objetos para montar sua peça. Panos e lenços
acabam por assumir os papéis principais da história. Cada ator apresenta seu
personagem, na forma de lenços tirados de seus próprios figurinos. Cada lenço ou
pano apresenta seus desejos e traços de personalidade. Azulzinha, por exemplo,
quer apenas voar. Ela, junto com outros lenços, chega à conclusão de que, para
voar, é preciso que haja vento.
Com a chegada da noite, indicada por uma canção, os lenços aguardam com
ansiedade pelos ventos que ela traz. Os lenços “adormecem” e os atores assumem a
cena, buscando em um jornal informações sobre o tempo. “É no jornal que se sabe
de tudo. Bom... De quase tudo”, conclui um ator. Então, preparam-se para o pior, já
que, “nas histórias, os perigos sempre acontecem de noite”.
Enquanto tenta aprender a voar, Azulzinha encontra-se com Branquinho, um
guardanapo do varal da casa vizinha. Ao seu lado, ela descobre que existem
diferenças entre os dois. Branquinho, por exemplo, tem um monograma que o
impede de ser confundido ou mesmo perdido. Ao tentarem voar, ela cai em um
balde e molha-se toda. Azulzinha é retirada pelos atores e a história é deslocada
para outro lugar, “como se faz nos filmes”, diz um ator. E eis que uma canção
introduz o personagem do Soldado Medieval.
Azulzinha, agora seca, mais uma vez indaga pelo vento. Os atores contam a
ela sobre a existência do Vento da Madrugada e aconselham-na a dormir, já que ele
não é um vento qualquer. Quando passa o Vento da Madrugada, voam todos os
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105
lenços e panos, lançados pelos próprios atores durante uma canção. Ao amanhecer,
o elenco se depara com a bagunça causada pelo vento, mas, sobretudo pela
ausência de Azulzinha. Os atores ficam tristes, mas um deles traz a solução para que
a história possa continuar: “É o momento certo para fazer entrar na história um novo
personagem”. E assim, com uma folha de jornal, surge o personagem Papel, que sai
em busca de Azulzinha. Ele pede para que os atores soprem para que ele saia
voando para encontrá-la. Ao olhar para o quintal, ele tinha visto que “os lenços
ficaram brincando de roda, como fazem todas as tardes, só que um pouco mais
tristes, porque Azulzinha não estava. E quando os amigos não estão, a gente fica um
bocado triste”.
Aparece o Soldado Brilhante. Os lenços se escondem. Atores se indagam
sobre o paradeiro de Azulzinha. Uma Nuvem diz que um lenço azul sobre um céu
azul “não dá contraste”. Papel sugere então que apareçam muitas nuvens “para
fazer o contraste”. Os atores adentram o palco com muitas bandeirinhas,
representando nuvens. Com tantas delas, cai uma forte chuva que ameaça molhar o
Papel e impedir que ele siga atrás de Azulzinha. Mas ele consegue fugir para outro
quintal e encontra o Guarda-Chuva, que o protege da chuva. Ao final da tempestade,
Papel segue sua trajetória. Finalmente, ele a encontra dormindo sobre uma nuvem.
Ele a chama de volta, para reencontrar seus amigos que ficaram no quintal, mas ela
insiste em querer seguir aprendendo a voar. Ao avistar uma cidade brilhante, ela
deixa-se levar pelos ventos. Papel tanta impedir, já que ela ruma à Cidade Medieval.
Antes que ele consiga reverter sua decisão, Azulzinha é capturada por um soldado.
Atores introduzem ao Papel e ao público a Cidade Medieval: “Faz muito tempo que
aqui nada muda, tudo é igual, tem um grande tédio, um tédio medieval”, diz um
deles.
Já no castelo do rei, Azulzinha queixa-se por ter sido roubada. O rei afirma
que ela foi confundida com um dos seus inimigos, mas garante que será bem
tratada. No final da cena, ele esclarece que irá casar-se com Azulzinha e que ela
nunca mais sairá de lá. Assim, ele manda preparar um torneio para legitimar a posse
de sua dama. Convoca todos os lenços de todos os quintais para se apresentarem à
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106
Caixa Estratosférica. Todos os lenços são guardados nela pelos atores, para em
seguida ser suspensa sobre o palco.
Papel chega à Cidade Medieval, mas é impedido de entrar. Quando quase
desistia de encontra-la, um ator o convence a entoar uma das canções que eles
cantavam no quintal. Ao ouvir a música, Azulzinha aparece numa janela. Papel tenta
fugir em sua companhia, mas ela o informa que todos os lenços estão aprisionados
na Caixa Estratosférica e que serão transformados em tapetes, cortinas e bandeiras
para a cerimônia de casamento. Ela pede então que ele volte, pois novamente já
escurece. Subitamente, o Papel é amassado pelo ator que o manipula.
O Rei ordena para que os soldados limpem toda a cidade para o dia do
torneio. Assim o Papel é capturado e queimado. Os atores olham estáticos para as
cinzas do Papel. Alguns sugerem um final triste para a história e pedem para que o
público vá embora. No entanto, um deles lembra que são eles que estão inventando
a história e que, portanto, podem fazer um novo Papel “muito melhor, muito mais
forte”. O personagem então ressurge, agora com mãos, braços, coração, elmo e
capa. Transformado em um cavaleiro, Papel parte de novo em busca de Azulzinha.
Porém, falta-lhe um cavalo. Os atores libertam os lenços aprisionados e criam um
dragão para levá-lo à Cidade Medieval. Ao conseguir atravessar as barreiras do
castelo, ele chega ao torneio, que até agora não conseguiu um oponente para o Rei
Metal Mau. Através de recursos do Teatro de sombras, a sombra do Papel luta com a
sombra do Rei e sai-se vencedora. Papel e Azulzinha finalmente estão juntos e se
deixam levar pelo Vento da Madrugada, pelo Vento do Pólo Norte, pelo Vento da
Manhã, pelo vento de todo o mundo.
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107
ANEXO A: Texto da peça História de lenços e ventos
HISTÓRIAS DE LENÇOS E VENTOS
DE ILO KRUGLI
PERSONAGENS Manuela Manuel Boneco 1 Boneco 2 Atores Cavalo Sapo Azulzinha Vermelhinha Amarelinha Floreado Listrado Transparente Azulão Amarelão Alaranjado Vermelhão Ator A B Um Papel Nuvem Guarda-Chuva Galinha Telefonista Rei O Guarda Cartaz Soldados Metal Mal
HISTÓRIAS DE LENÇOS E VENTOS
De Ilo Krugli
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108
O público vai entrando e os atores se aproximam das crianças pedindo para
eles se sentarem perto. Depois, começam a fazer entrar no palco todos os materiais
do espetáculo. Continuam as aproximações com o público, mostrando os objetos
com a preocupação de se saber qual o uso que vai se dar aos objetos do espetáculo.
Fazendo perguntas, tais como: “Será que com esses jornais velhos pode-se fazer
teatro?” “Já viu alguma história com um guarda-chuva velho?” etc. Tudo isso muito
rápido, até formar o quintal. Objetos jogados à direita, uns varais, panos grandes
pendurados etc.
Um dos atores entra com uma mala. Ela é aberta: surpresa com os bonecos
que tem dentro. Um ator diz: Vamos começar o espetáculo: Eu começo. Vocês
fazem música e batem palmas também.
MANUELA – Já começou o teatro? Ah, então vou chamar o Manuel, porque nós
sempre dançamos juntos. Ei, Manuel! (Grita) (Se escuta a voz de Manuel: “Estou
botando o nariz.” Assim vaias vezes. “Estou botando as orelhas”. “Estou botando os
sapatos” Manuel entra e se abraçam.)
MANUEL – Manuela!
MANUELA – Manuel!
MANUEL – Vamos chamar os outros.
MANUELA – Vamos! Eu vou por aqui.
MANUEL – Não, Manuela!
MANUELA – Porque?
MANUEL – Não posso dizer.
MANUELA – Então eu vou.
MANUEL – Não, não vai. (Todos pedem pra ele falar. Todo este diálogo é comentado
pelos atores que fazem música.)
MANUEL – (tremendo) Manuela, lá, os dois passos daqui...
MANUELA – Lá onde? (com muito movimento)
MANUEL- Manuela, isto aqui é o teatro e esta aqui é a longa estrada da vida que
passa pelo teatro, ou talvez a longa estrada do teatro que passa pela vida.
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109
MANUELA – E porque você se mexe tanto?
MANUEL – Porque estou fazendo expressão corporal, mas agora eu vou continuar
sem expressão corporal dizendo tudo em forma psicológica, dizendo tudo com o
olhar; me olha fixo Manuela.
MANUELA – Estou olhando Manuel.
MANUEL – Então vamos olhar também para o público. E nesta estrada da vida, a
dois passos daqui, que há um poço.
MANUELA – Não faz mal, eu vou.
MANUEL – Vou fechar os olhos. Não quero nem ver.
MANUELA – Um passo. (Manuel treme) Um e meio. (Manuel treme) E dois. (Cai)
MANUEL – Bem que eu avisei, e agora não posso salva-la, tenho que continuar o
espetáculo, apesar de tudo. Vou chamar os outros! (Entram o cavalo e o sapo.
Pedem música de sapo e cavalo, e perguntam aos atores que estão fora o que eles
estão fazendo.)
ATORES – Estamos fazendo teatro, ora que pergunta!
BONECOS – Então não somos nós quem vamos fazer?
CAVALO – Eu vou chamar o Manuel.
SAPO – Vamos chamar o Manuel. (Ator aparece e pede música de encontro e
desencontro. Entram de costas os bonecos.)
BONECO 1 – (Esbarrando no outro) Ah! É você.
B 2 – Sou eu, sim.
B 1 – Como?
B 2 – Que você perguntou?
B 1 – Se é você?
B 2 – E eu respondo, sou eu.
B 1 – Não. Eu sou eu.
B 2 – Não. Não você é você e eu sou eu.
Continuam, trocam de lugar depois perguntam aos atores e se confundem com nós,
vocês, nosco e vosco e vão embora aborrecidos. Entra o Manuel: procura o poço
várias vezes, por fim se aborrece com o público e diz: Agora vem o momento mais
importante do espetáculo, esta cena se chama “Manuel, o Salvador”.
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110
MANUEL – Vocês pensam que eu não sei onde está o poço? Sabem quem faz
poços neste teatro? Sou eu. Estudei vinte anos, sou doutor em poços. E Manuela
estudou quinze anos, é professora de caída em poços. Sobe Manuela.
MANUELA – Não posso subir, está escuro!
MANUEL - Sobe pela escada! Por favor, músicos, façam música de Manuela subindo
escada. (Se aborrece com os músicos e pede em lugar dessa música de caminhão
etc.) (Manuela sobe até aparecer a cabeça de quase anjo).
MANUEL – Sobe mais.
MANUELA – Não posso.
MANUEL – Por que?
MANUELA - Acabou a escada.
(Ele ajuda a puxa-la pra cima mas fica muito alto, puxa pra baixo fica baixo demais
etc. Manuela acaba caindo de novo no poço.)
MANUEL – Manuela, sobe pelo elevador. (Se escuta ruído de elevador e se vê
Manuela subindo através do pano). Onde você esta Manuela?
MANUELA – Estou no quarto andar.
MANUEL – Esse elevador não serve, este aqui é o quinto andar. Desce e sobe de
qualquer forma. (Ela desce e sobe segurada pela mão do titereteiro).
MANUEL – Ah, isso é “qualquer forma” Então vamos dançar. (Começam a dançar.
Entram o sapo e o cavalo; Falam ao ouvido de Manuel. A seqüência com bonecos
será interrompida porque o sapo e o cavalo convencem Manuel e os outros a não
trabalharem. O ator sai com a mala detrás do pano e diz:)
ATOR – Eles estão fechados lá dentro. Se fecharam com chave. Vamos ter que fazer
o espetáculo sem eles. Mas com o que vamos fazer o espetáculo? (Começam a
procurar até que se descobre um lenço no violão e a partir daí vão achando muitos
outros entre as roupas e os objetos e vão pendurando todos. Isto tem que funcionar
como um jogo mágico.)
MÚSICA
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111
Eu sou de seda
Eu sou de pano
Sou bordada de lua
Eu sou de chita
Eu sou de lã
sou dura engomada
de flor floreada
Sou uma bandeira
uma saia rodada
lencinho pequeno
de espirro e de mágua
- Era uma vez um pano vermelho brilhante
- Era uma vez um pano amarelo quadrado
- Era uma vez um quadrado de papel desenhado
- Era uma vez um desenho colorido num lenço quadrado
- Era uma vez um quadrado cheio de bolas
- Era uma vez uma bola cheia de quadrados
- Era uma vez um papelão de papel celofane transparente e era uma vez um coração
de metal
- Era uma vez, era uma vez, era uma vez...
- Era uma vez um quintal onde passavam todas as correntezas e todos os ventos
- Onde todas as chuvas, e as bolas, e todas as folhas secas, e às vezes até neve
- Era um quintal onde voavam todas as pipas e as nuvens e as borboletas e os
passarinhos e até aviões
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112
AZULZINHA – Ai, eu queria tanto voar!
VERMELHINHA – E eu queria voar alto com as nuvens!
AMARELHINHA – E eu queria rodar com todos os redemoinhos!
FLOREADO – E eu queria me agitar como uma grande floresta em tempestade!
LISTRADO – E eu como uma tempestade numa grande floresta!
TRANSPARENTE – E eu queria passar pelo céu como se fosse um cometa!
TODOS – DE ONDE VEM O VENTO?
AZULÃO – O vento vem do fundo do mar.
AMARELÃO – Não é do mar, não; o vento vem das montanhas altas.
ALARANJADO – Não, é das grandes cidades. Eu soube que em São Paulo tem uma
fábrica de vento.
AMARELÃO – Deve ser vento enlatado.
VERMELHÃO – O vento vem do céu. Tudo que voa anda pelo céu?
TODOS - Tudo que voa pelo céu. É, tudo que voa anda com o vento.
AZULZINHA – Ai, eu queria tanto voar! Será que tem vento hoje?
TODOS – Será que vai ter vento hoje?
AZULÃO – Não sei, hoje ainda não li o jornal. É lá que se sabe se vai ter vento ou
chuva. Mas, olha, com vento é preciso ter cuidado; tem alguns ventos muito fortes
,fortíssimos. O vento da Meia-Noite já fez voar um lençol até a Bahia. E o vento da
Madrugada levou uma telha e uma camisa ao deserto de Saara. E o vento do fim de
semana fez voar uma cama, com travesseiro e tudo.
TODOS OS LENCINHOS – Ai, que medo!
OS LENÇOS – Fiquem quietinhos e durmam, que se o vento chegar a gente avisa –
Se chegar um vento bom a gente avisa.
ATOR – Os lencinhos pequenos dormiram. Um, no chão; outro numa caixa. Um outro
junto a garrafa, outro no varal.
OS LENÇOS – Agora que estão dormindo nós vamos ter que trabalhar. Mas antes
vamos ver no jornal qual o tempo que vai fazer esta noite? Porque como
trabalhamos ao ar livre pode chover, granizar, ter tempestade. (com medo) Não
posso nem acreditar, é melhor não dizer nada...
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113
DIVIDIDO ENTRE OS ATORES
- (com medo) Não posso nem acreditar, é melhor não dizer nada...Eu não vou dizer
nada
- Eu não vou dizer nada; vou tirar a poeira das escada.
- E eu vou enxugar a chuva das janelas
- E eu vou tampar as fechaduras para não entrar fumaça
- E eu vou cortar as sombras das vidraças.
- E eu tirar a névoa dos telhados. (Os lenços vão embora).
ATOR – É, os lenços não querem dizer nada sobre o tempo. A gente também não vai
dizer nada, senão não vai ter graça.
ATOR – O que vem agora é muito perigoso.
ATOR – Mas vai ter tantos perigos nesta história...Para continuar contando vamos
esperar a noite.
(Começa a escurecer)
Lá vem
Lá vem a noite
e vem de capa preta
traz uma estrela grande
Lá vem
Lá vem a noite
e vem trazendo o vento
com três luas redondas
Brincando no sereno
ATOR – Onde vai você, Azulzinha?
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114
AZULZINHA – Vou andar pelo varal para ver se aprendo a voar. Está escuro, não se
vê nada. (entra pelo outro lado o BRANQUINHO; eles se vêem de longe e começam
a tremer assustados)
A – Quem é você?
B – Eu sou o Branquinho. Você tem medo?
A – É claro, eu pensei que você fosse o Gasparzinho, ou o Pluft, ou o fantasma da
ópera.
B – Eu sou o guardanapo do dono da casa vizinha, depois do jantar me dobraram e
me deixaram pertinho da janela. Aí eu aproveitei e me deixei cair.
A – Você sabe voar?
B – Não, e aproveito as correntezas. Mas sempre volto para a minha casa; me
devolvem quando vêem que eu tenho um monograma.
A – O que é um monograma?
B – É o nome do dono da casa. Bordadinho em letras de ponto cheio, é isso que é
monograma.
A – Eu não tenho monograma.
B – Lá em casa todos temos. Minha mãe é pano de pratos e tem até alça. Meu pai é
toalha de rosto e nele está escrito “bom-dia”. Minha prima é cortina de tergal e
balança o dia inteiro na sala de jantar. E meu avozinho é capacho e nele está escrito
“limpe os pés e seja bem-vindo” e a minha prima é fronha. Olha, eu já vou, vou
aproveitar esta correnteza, lá vou eu... (vai embora)
AZULZINHA – Eu também podia aproveitar as correntezas. Lá vem uma. (ela cai num
balde de água e sai toda molhada).
ATORES – Agora vai ser difícil, a azulzinha ficou toda molhada.
- Bota ela pra secar na corda e vamos esperar. Não. Não vamos esperar não!
- Agora podíamos fazer como se faz nos filmes: passamos pra outro lugar, fazemos
outra cena que ninguém sabe onde é, e entram personagens que ninguém sabe
quem são, e de onde vêem, é aquilo que se chama suspense! (Todos pegam lâminas
de metal e começam a fazer ruídos com a Música Medieval)
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115
Ele é grande, ele é forte
ele é brilante
é soldado que voa
do país distante
ele é grande, ele é forte
não tem vida nem morte
ele é grande ele é mau
ele é medieval
UM – É o vento?
TODOS – Não, é.
UM – São trovoadas?
TODOS – Não, não são.
UM – É tempestade?
TODOS – Não, é.
UM – É máquina?
TODOS – Também não. (em suspense) É gente? Não é
UM – É uma guerra? Pode ser.
- Olha, a Azulzinha já está seca. A gente continua esta cena depois.
- É. É depois que vamos continuar o suspense.
AZULZINHA – A correnteza só me fez cair no balde. É melhor esperar o vento. Será
que tem vento esta noite?
TODOS – (Como dizendo um segredo) – Tem o vento da madrugada. É o jornal deu
essa notícia. – Azulzinha é melhor você ir dormir.
AZULZINHA – EU QUERO APRENDER A VOAR...
Mas quem voa agora não é um vento qualquer, é o vento da madrugada. (Música do
vento da madrugada. Voam todos os panos e papéis)
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116
O vento da madrugada
nunca chega só
numa mão traz o sol
na outra um beija flor
ele é misterioso
mas não é medroso
Já fez voar um rato, um gato
uma escada, um telhado
mas que vento guloso
ele não é medroso
ele traz o sol
ATORES – O Vento da Madrugada já passou. Acabou a noite. Ele deixou o sol.
(pendura um papel com o sol)
- Será que ainda temos todos os lenços para continuar a história? Vamos ver.
- Verdinho. (recolhem os lenços e vão dando nome a eles de acordo com a cor)
TODOS – Azulzinha? Azulzinha? (chamam pra todos os lados)
- Deve ter sido o vento da madrugada.
- É, a última vez que eu a vi, ela estava no varal.
- A última vez que eu a vi, ela estava caindo no laguinho.
- Vamos ler o jornal? Deve ter notícias sobre o que aconteceu de madrugada.
(TRAZEM UM JORNAL)
- Na noite passada, repentinamente, sem avisar, nos quintais dessa cidade soprou
intempestivamente o Vento da Madrugada. O Vento da madrugada causou alguns
danos; derrubou árvores e levou para o ar folhas de papel, telhas, sinos, ninhos,
camisas e também diversos objetos não identificados.
- A Azulzinha deve estar dentre os objetos não identificados.
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117
- Vamos ler o resto. Pode ser que o vento da Madrugada volte com ela.
- O prognóstico para hoje e amanhã é de chuvas esparsas e ventos moderados de
norte a sul.
TODOS – Só vai ter ventos moderados... Não gosto de histórias de ventos
moderados... (Saem chateados até o fundo do quintal) É eles tem toda razão do
mundo, ventos moderados não dá, a última vez que estive numa história de ventos
moderados foi muito ruim, ou é vento pra valer, ou melhor nada.
- Mas agora é momento de fazer entrar na história um novo personagem.
- Ele não é de seda.
- Também não é de pano.
- Nem de papelão.
- Nem de papel celofane transparente.
- Nem de corda.
- Nem de metal brilhante. Ele é de jornal.
(Um ator rasga a metade de uma folha de jornal, faz uma dobra vertical para
segurar e outro pinta os olhos e a boca no papel.)
PAPEL – Meu nome é papel. Eu sei voar, andar, girar pelo ar, às vezes eu ando aos
trancos e barrancos. Eu tenho altos e baixos. Mas o importante é chegar aonde a
gente quer chegar. Eu gosto de todas as cores e as coisas deste quintal. Eu vou
procura-la. Amanhã o jornal terá notícias alegres. Hoje os ventos serão moderados,
mas eu vou conseguir voar. Eu já disse que eu tenho altos e baixos. Façam um vento
moderado para mim (os outros sopram forte) Eu disse moderado. (Os atores detrás
do varal se despedem agitando lenços) E foi assim que eu voei, voei mas no quintal
os lenços brincaram de roda como fazem todas as tardes, só que um pouco mais
tristes pois faltava a amiga deles, a Azulzinha. É quando os amigos não estão com a
gente fica bastante triste.
MÚSICA A AZULZINHA
Da cor do céu
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118
da cor do céu
da cor do teu olhar
a roda nasce
a roda gira
aqui no meu quintal
Se é muito azul
se é muito azul
no branco vai clarear
da cor do céu
a roda gira
aqui no meu quintal
- E o papel foi embora. Chegou outro personagem estranho. Não é do quintal. (O
Soldado Brilhante aparece; Música do soldado Medieval; voa ameaçador, inspeciona
tudo e se retira. Os lenços se escondem. Esta cena pode se repetir)
- Para onde será que ele voa?
- Para onde será que ele vai?
- E a Azulzinha, que voa sozinha pelos ares...
- Mas a Azulzinha não era a única que andava sozinha pelo ar. O papel também e a
todo mundo perguntava: Você viu a Azulzinha? E nada da Azulzinha. (Passa uma
nuvem) Ei, Nuvem, você viu passar a Azulzinha? Ela saiu voando hoje de madrugada.
Com o vento da madrugada.
- Hum, hum, não sei. Como ela é?
PAPEL – Pequena, de seda, da cor do céu.
NUVEM – Hum, hum, não sei. Acho que vi, acho que não vi. Vai ser difícil achar se
ela é da cor do céu.
PAPEL – Por que?
![Page 120: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp072140.pdf · Milhares de livros grátis para download. 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO](https://reader034.vdocuments.com.br/reader034/viewer/2022052407/5b1d9d1b7f8b9a64508b9ba4/html5/thumbnails/120.jpg)
119
NUVEM – Porque não da contraste.
PAPEL – Ah! Então vamos fazer entrar muitas nuvens para fazer contraste (entram
bandeirolas de papel de seda)
ATOR – As nuvens foram cobrindo, cobrindo, o céu foi ficando escuro e começou a
chover. O Papel foi ficando todo molhado, quase se desmanchando. Se continua
chovendo, nosso herói não vai conseguir salvar a Azulzinha. Se protege Papel!
MÚSICA DO PAPEL
Se é de papel
voa no céu
se é de metal
brilha na mão
se é de jornal
me faz chorar
não é por mal
me faz chorar
(A chuva é feita numa bacia com água e uma lata furada)
- E o papel foi se proteger noutro quintal, e nesse quintal tinha também outros
personagens que estavam voando no céu, sozinhos.
A GUARDA CHUVA – Que tristeza, ai, estou toda quebradinha! Solta, desmanchada,
desparafusada. Esse vento da madrugada quase me mata! Vou dar um telefonema e
entrar para conserto. (Se arma um telefone com duas latas e cordas segurado de
cima por duas pessoas.)
PAPEL – Me ajude, deixa eu ficar aqui, senão essa chuva me desmancha, também
não vou conseguir achar a Azulzinha.
GUARDA CHUVA – Você está muito molhado, fica aqui até a chuva parar. Eu vou dar
um telefonema. Alo, alo. É do Observatório.
GALINHA – É sim do Observatório.
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120
GUARDA CHUVA – Quem é que fala.
GALINHA – A Galinha Observatriz!
GUARDA CHUVA – A Galinha! Você está observando tudo direito.
GALINHA – Estou observando tudo, mas quem é que fala.
GUARDA CHUVA – Sou eu a guarda-chuva.
GALINHA – Como vai...
GUARDA CHUVA – Muito mal o Vento da Madrugada quase me mata, estou toda
desparafusada.
GALINHA – Que pena.
GUARDA CHUVA – Olha aqui, a chuva vai continuar muito tempo?
GALINHA – Estão anunciadas chuvas intensas no período.
GUARDA CHUVA – E que é que eu vou fazer?
GALINHA – Eu posso te ajudar, assim que a chuva parar eu telefono e aviso.
GUARDA CHUVA – Obrigada, me telefona. (para a telefonista) mande a conta para o
quintal. Papel a gente vai voar ainda um pouco até a chuva passar.
ATOR – A chuva parou?
ATOR QUE FAZ A CHUVA – Já parei!
GALINHA – Alô, alô! Quer chamar a guarda chuva.
TELEFONISTA – Alô, quer falar com Guarda Chuva de que?
GALINHA – Com o Guarda Chuva Fonseca.
GUARDA CHUVA – Ah, sou eu mesma. Alô, alô! Quem é que fala.
GALINHA – Sou a Galinha Observatriz. Boas notícias pra você.
GUARDA CHUVA – Boas notícias. Quais?
GALINHA – A chuva já parou.
GUARDA CHUVA – Parou, eu não tinha reparado, obrigado, obrigada, você é muito
eficiente, você é muito gentil.
GALINHA – Não tem porquê. Lembranças para sua família.
GUARDA CHUVA – Igualmente. (para a telefonista) Ela é muito educada, muito
gentil! Papel, agora você continua sozinho, mas quando você quiser volta aqui no
meu quintal.
PAPEL – Adeus, guarda-chuva, obrigada pela sua ajuda.
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121
GUARDA CHUVA – Nós somos teus amigos.
ATOR – E o Papel começou a subir, a subir. Cada vez mais alto, e as nuvens
passavam, mas sem ninguém. De repente viu lá de cima, dormindo esticada numa
nuvem, a Azulzinha.
PAPEL – Azulzinha!
AZULZINHA – Quem me chama!
PAPEL – Sou eu, Papel, do jornal lá do quintal. Volta, vem comigo. Os outros estão
muito tristes desde que você saiu de madrugada.
AZULZINHA – Ah, eu estou aprendendo a voar.
PAPEL – Não vai longe, não. A gente pode voar por cima do quintal.
AZULZINHA – Ah, não quero voltar ainda. Olha, lá no horizonte vejo a cidade
brilhante; eu quero ir até lá. (aparece um Soldado Voador. Música do Soldado
Medieval)
PAPEL – Já sei quem era ele! Ele é lá da cidade brilhante, da cidade Medieval.
Cuidado Azulzinha, cuidado! (O soldado rouba a Azulzinha) A Azulzinha foi roubada!
(chega uma nuvem fazendo barulho de carro)
PAPEL – Este aqui é um personagem tecnológico. Que número você é?
NUVEM – 123. Circular quintal-cidade medieval.
PAPEL – Ah, então me leva até a cidade medieval.
ATORES – E o ônibus levou o Papel até a cidade Mediveal
- A cidade Medieval é uma cidade brilhante, linda, de metal e cristal. Lá dentro é
tudo arrumado, tem o Castelo medieval; la mora o rei Metal Mal.
- Vocês têm que ver: é tudo certo e arrumado. Não é como o quintal. Nem os ventos
entram lá.
- Faz muito tempo que lá nada muda, tudo é igual, tem um grande tédio, um tédio
Medieval.
(Aparece a cidade. O Rei Metal Mal anda em linha reta, marcando ângulos, cruzando
com seus soldados. Chega o Soldado e deixa a Azulzinha em frente do Rei.)
AZULZINHA – O senhor é que é o Rei desta cidade? Sabe que eu gostei dela de
longe agora eu gosto muito mais. Eu só não gostei foi ser roubada pelo seu soldado.
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122
REI – Ele deve ter confundido com algum inimigo. Meus soldados são obedientes e
não deixam ninguém se aproximar desta cidade. Mas você pode ficar tranqüila,
alegre, satisfeita.
AZULZINHA – Eu já estou muito alegre, estou morrendo de alegria.
REI – Você será muito bem tratada. Poderá andar por toda a cidade e morar no
Castelo Perfeito, sem perigos.
AZULZINHA – É bonito o Castelo! É tudo tão perfeito!
REI – É bonito, perfeito, e sem perigos. Aqui ninguém entra: nem pássaros, nem
ventos, em papéis, nem nuvens, nem nada. Só você.
AZULZINHA – Nem pássaros, nem nuvens, nem ventos?
REI – É, só você! Sabe, eu vou casar com você!
AZULZINHA – Casar comigo!
REI – É você vai ficar aqui. Para sempre.
AZULZINHA – Mas ficar aqui, sem voar, sem nunca mais voltar ao quintal?
REI – Isso mesmo, mas vou organizar antes um grande torneio. Nenhum cavaleiro
que se preze, ou rei, ou sei lá, pode ganhar sua dama sem lutar. Ah, é claro que aqui
na cidade Medieval ninguém será mais forte nem tão perfeito guerreiro como eu.
Soldados, tragam todos os lenços de todos os quintais. Assistirão ao torneio e depois
ficaram com a Azulzinha e se transformarão em bandeiras da Cidade Medieval!
O GUARDA – (anuncia) Por ordem do Rei Metal Mal do Castelo Perfeito. Todos os
lenços de todos os quintais terão de se apresentar e entrar na caixa Estratosférica,
para dirigir-se nela até a Cidade Medieval. (música suave) “Eu sou de seda...” (Desce
uma caixa de papelão e todos os lenços são guardados nela, que novamente é
subida até o alto. O papel chega na cidade e fala com um cartaz pendurado na
porta.)
PAPEL – Posso entrar?
CARTAZ – Aqui você não entra. Aqui só entram os moradores do Castelo Perfeito,
quer dizer os perfeitos do castelo perfeito.
PAPEL – E você? É também perfeito?
CARTAZ – Ah, eu sou um cartaz. Um cartaz giratório. Anuncio o próximo torneio,
onde o Metal Mal vai ganhar a Azulzinha para casar.
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PAPEL – Ah, é? Então vou lutar, vou participar do torneio e levar a Azulzinha para o
quintal.
CARTAZ – (rindo) Você não é medieval, você não tem armadura, nem cavalo, nem
escudo.
PAPEL – É, não tenho, não sou, não sei lutar...
CARTAZ – E ainda que tivesse tudo isso, você não entraria. Aqui só entra metal,
cristal, ouro, prata, seda, renda, veludo, brilhantina, purpurina, lamê, laquê, acrílico.
É melhor voltar.
PAPEL – (falando para si mesmo) É melhor voltar. Sou apenas um papel.
OS OUTROS – Não, não volta, trata de falar com ela aqui de fora.
PAPEL – Mas como ela vai saber que eu estou aqui fora?
OS OUTROS – A gente canta, a gente toca música do quintal, ela escuta e aparece.
(Tocam e cantarolam da Cor do Céu)
PAPEL – (olha para todos os lados enquanto ela não aparece) Ela não aparece, ela
não escuta!
AZULZINHA – (na janela) Papel!
PAPEL – Azulzinha, você se lembra de mim? Você não se esqueceu?
AZULZINHA – Eu me lembro, eu me lembro! Você é o jornal lá do quintal!
PAPEL – Azulzinha, desce que eu quero falar com você. (Azulzinha desce, usa uma
corda como escada, mas fica do lado oposto do Papel). Azulzinha, eu vou te salvar.
AZULZINHA – Agora vai ser muito difícil. E para que voltar ao quintal? Os outros
lenços estão aprisionados lá na Caixa Estratosférica. Serão bandeiras, cortinas,
toalhas, tapetes, nunca mais voaram. Nunca mais vão chegar com as ventanias e o
ar. Volta, Papel, já está escurecendo e acho que o tempo vai esfriar.
ATOR – E o Papel foi embora. Será que volta sozinho para o quintal? Eu estou muito
preocupado com o fim desta história: A Azulzinha ficará para sempre no Castelo
Medieval? E vejam o que está dizendo o Rei Metal Mal aos seus soldados.
REI – Soldados, amanhã será o torneio. Temos que limpar, ordenar, arrumar a
Cidade Medieval. Que tudo brilhe, que tudo seja duro, firme e espelhado. Que não
fique em volta do castelo nenhuma folha seca, nenhum papel velho.
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124
SOLDADOS – As ordens serão cumpridas, vamos já! (Os soldados saem limpando
tudo. O papel passa voando e eles tentam pegá-lo, desaparecem todos. Parecerá
que o Papel foi aprisionado, mas ele volta e chama os amigos).
PAPEL – Guarda-chuva, Galinha Pintada, Violão, me ajudem, estou muito triste. Os
guardas estão queimando todos os papéis em volta do castelo e eu queria voltar ao
quintal, mas estou cansado.
TODOS – Fica aqui descansando, nós vamos vigiar. (Os amigos ficam vigiando, mas
um soldado pega o Papel e o queima. O soldado vai embora).
ATORES – Cuidado! É tarde demais...
– E agora? Queimaram o papel. A Azulzinha ficou lá na Cidade Medieval e o quintal
ficou sem cores, sem lenços. (Um dos atores fala com a mala de bonecos) Estão
vendo? Tudo por culpa de vocês. Se não fossem vocês nós teríamos aqueles
espetáculos bonitos e fizemos esta história triste. Tudo podia ser mais alegre.
- Você acha que é tão triste?
- É sim, porque o Papel foi destruído e não sabemos como vai ser o final.
- Eu acho que a história acabou, (Ao público) Podem ir embora.
- Assim deste jeito acabou. E não é a primeira vez que a história deste jeito.
- Mas quem é que está inventando esta história? Não somos nós? Quem foi que fez o
Papel? Não foi a gente?
- É, eu dobrei o papel.
- Eu pintei os olhos e a boca.
- Então trás os jornais, vamos fazer um papel muito melhor. Muito mais forte.
- É que ele vai ter que participar do torneio, bota corpo, bota mãos, e um coração
transparente de celofane, para que se veja tudo que se passa dentro.
- É melhor botar um também de metal, já que ele vai lutar contra o Metal Mal! E por
baixo com celofane e por cima um de metal. (Toda esta ação deve ser realizada
procurando que seja ampliada a discussão com o público). Essa lata vai ser o elmo!
PAPEL – Obrigada, vou salvar a Azulzinha! E o meu cavalo?
- Nem de cavalo, nem de ônibus ele chegaria, pois o torneio vai ser hoje, ele tem
que ir voando.
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ATOR – Espere aí, tive uma idéia! (Para o público) Os guardas guardaram o lenço lá
em cima, lá na Caixa Estratosférica.
- A gente faz um vento da madrugada. E faz jogar, sair e desamarrar. (Soltam a
Caixa Estratosférica e fazem cair os lenços)
- E agora faremos um cavalo.
- Não, um camelo.
- Um besouro eletrônico.
- Um tigre de oito patas.
- Um leão voador.
- Não, é melhor um dragão de cores. Um dragão de cores e amores. (Fazem um
dragão cantando a Música do Dragão com todos os lenços presos num pano com
pregadores de varal e uma máscara no meio com formato de dragão).
Vamos fazer um dragão
de muitas cabeças
para poder esta história terminar
uma cabeça, oito cabeças
dez cabeças, doze cabeças
chega, já é demais.
Vamos fazer um dragão
de uma cabeça
com um par de asas lindas para voar
quatro asas, sete asas, oito asas, vinte asas
chega, já é demais.
Vamos fazer um dragão
de uma cabeça
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126
com um par de asas lindo para voar
oito pontas, doze pontas, quinze pontas, vinte pontas
chega, já é demais.
Vamos fazer um dragão
de uma cabeça
e um par de asas lindo para voar,
dez pontas, muitas cores,
língua de fogo, mil calores
chega, já é demais.
ATOR – E o Papel, com esse elmo, com esse coração, montado num dragão voltou
para a Cidade Medieval para tentar salvar a Azulzinha.
CARTAZ – Quem é você?
PAPEL – Papel Coração de Celo... Quase que eu digo, Papel Coração de Metal. (Para
o público) Mentira, meu coração é de papel de celofane mesmo.
CARTAZ – Pode entrar e esperar que comece pelo torneio.
METAL MAL – É dia do torneio e ainda não se apresentou ninguém para lutar
comigo, já estão todos com medo de mim! Há,há,há. Mas ei de lutar e ganhar como
Rei e Cavaleiro Medieval que sou. Se for preciso, lutarei contra minha própria
sombra.
(Um ator bota uma máscara de metal e segura uma trombeta com estandarte).
CARTAZ – Hoje, aqui neste lugar na grande Cidade Medieval, o grande Rei Metal
Mal, do Castelo Perfeito, lutará com o primeiro cavaleiro que se apresentar. O
vencedor casará com a Azulzinha do quintal.
ATOR – Primeiro cavaleiro.
CARTAZ – Não tem!
ATOR – Segundo cavaleiro.
CARTAZ – Não tem!
ATOR – Terceiro, quarto etc etc etc.
CARTAZ – Não tem!
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127
REI – Eu acho que vou lutar com a minha própria sombra. Preparem-se todos,
toquem os tambores que o torneio vai começar. Em guarda, minha sombra, ei de
vencer ainda que te perca. Toma, toma! (Luta com sua sombra. Aparece a sombra
do papel). De quem é essa sombra que aí se apresenta?
PAPEL – Essa sombra é minha.
REI – Quem é você?
PAPEL – Eu sou o Papel Coração de Celofane.
REI – Ousas me enfrentar?
PAPEL – Eu não, é a minha sombra que ousa. (As duas sombras lutam, a do Papel
vence e desaparece a sombra do Rei. Isto se fará com dois refletores apagando-se a
sombra do Rei)
REI – Minha sombra foi vencida, estou sem sombra. Agora lutarás com os meus
soldados.
PAPEL – Eu não, meu dragão é quem vai lutar!
(A luta começa e o dragão vai vencendo todos os soldados. Música do Dragão)
PAPEL – Ainda queres continuar a luta comigo? Já estás sem soldado, sem sombra.
REI – Eu sou apenas um boneco, um rei de Metal, eu deixarei sair a Azulzinha, mas
deixe-me ficar aqui no meu castelo.
ATORES – Mas longe do quintal! Bem longe do quintal. (Procura a Azulzinha)
Azulzinha! Azulzinha!
AZULZINHA – Papel!
PAPEL – Azulzinha, a gente vai voltar para o quintal!
AZULZINHA – Com o vento da madrugada!
ATOR – Não, com o vento do Pólo Norte.
- Com o vento da manhã.
- Com o vento de todo mundo!
TODOS – Com o vento de todo o mundo! (Acaba o espetáculo misturando duas
músicas: Primeiro Tempo de lenços e ventos e a segunda Se é de papel.)
Tempo de lenços e ventos
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Tempo de lenços e ventos
São muitas histórias contadas
Ai! Bate no bumbo bumbo
É tempo de lenços e ventos
Ai! Treme e respira violão
Roda roda – Moinho
Roda roda – A Cor
Roda roda – A cantiga
Roda roda – Amor
É tempo de lenços e ventos
Ai! Bate cora – Coração
Não é máquina é gente que canta
Ai! Treme e respira violão
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129
ANEXO B: Ficha técnica da primeira montagem de História de lenços e
ventos (1974)
HISTÓRIA DE LENÇOS E VENTOS
Autor: Ilo Krugli
Direção geral: Ilo Krugli
Cenários e figurinos: Ilo Krugli
Músicas: Beto Coimbra e Caíque Botkay
Direção musical: David Tygel
Elenco: Alice Reis, Arnaldo Marques, Beto Coimbra, Caíque Botkay, Ilo Krugli, Richard
Roux, Silvia Aderne, Sylvia Heller
Produção: Teatro Ventoforte Ltda.
Data de estréia: fevereiro de 1974 no Festival de Teatro Infantil de Curitiba.
Temporada de estréia no Rio de Janeiro na sala Corpo/Som do Museu de Arte
Moderna/MAM
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ANEXO C: Entrevista com Ilo Krugli (arquivo em wave)
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