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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO Centro de Letras e Artes Programa de Pós-Graduação em Teatro Miguel Vellinho Vieira ILO KRUGLI E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO ESPAÇO POÉTICO PARA O TEATRO INFANTIL NO BRASIL Rio de Janeiro 2008

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Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

Centro de Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Teatro

Miguel Vellinho Vieira

ILO KRUGLI E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO ESPAÇO POÉTICO PARA O TEATRO INFANTIL NO BRASIL

Rio de Janeiro

2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO - MESTRADO

ILO KRUGLI E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO ESPAÇO POÉTICO PARA O TEATRO INFANTIL NO BRASIL

por

Miguel Vellinho Vieira

Orientadora: Professora Doutora Evelyn Furquim Werneck Lima

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teatro do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Teatro.

Rio de Janeiro

2008

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___________________________________________ Vieira, Miguel Vellinho Título: subtítulo / Miguel Vellinho Vieira; Orientadora: Professora Doutora Evelyn Furquim Werneck Lima. – Rio de Janeiro: UNIRIO, Departamento de Letras e Artes, 2008. Xp. 129 p. 1. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Departamento de Letras e Artes. Inclui referências bibliográficas.

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente a Ilo Krugli, razão da existência deste trabalho.

Agradeço pelo artista que é; por ter aberto caminhos de rara beleza em nossos

palcos; por formar gerações e gerações de artistas que compartilham o ideal de que

a criança pode ser tratada com respeito e inteligência. Este caminho foi algo que eu

mesmo pude constatar em 1976, quando descobri o quanto o teatro pode ser

maravilhoso, ao assistir à peça que analiso nas páginas a seguir. Definitivamente, era

aquele o mundo que eu queria para mim.

Agradeço imensamente à minha mãe, Helena Vellinho Vieira, por todo o seu

amor e também por sempre ter me apoiado e incentivado. Sem isso, eu jamais teria

chegado aqui.

A Alexandre Santos, pelo seu apoio e dedicação infinitos, vitais para a

conclusão desta pesquisa.

Às minhas irmãs, Angela e Regina, pela ajuda e torcida nas horas certas.

Agradeço à minha orientadora, Evelyn Furquim Werneck Lima, que me

conduziu por uma trilha de leituras e descobertas que levarei por toda a minha vida.

Sua atenção e determinação rigorosas foram portos seguros com os quais pude

contar durante todo o período de realização desta dissertação. Sua alegria e seu

carinho ajudaram-me a aproveitar melhor este momento.

Às professoras Ana Teresa Jardim Reynaud e Beatriz Vieira de Resende, pela

preciosa atenção e suporte dados generosamente em minha banca de qualificação.

Aos professores Walder Virgulino e Tania Brandão, raros e felizes encontros

dos quais tive o prazer de desfrutar durante minha permanência no Programa de

Pós-Graduação em Teatro.

Aos professores Lídia Kosovski e Valmor Beltrame – o Nini –, que se

dispuseram a ler e analisar este trabalho, participando de minha banca de defesa de

dissertação. Meu carinho e meu eterno agradecimento por participarem deste

momento tão importante de minha vida profissional.

Obrigado a Angela Leite Lopes, pela grande amiga e incentivadora que é.

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Agradeço aos meus colegas de mestrado, pelo companheirismo e pelos novos

vínculos que aqui nasceram e que irão se propagar para muito além dos anos em

que estivemos aqui reunidos. Ao colega Eduardo Vaccari, por revelar-se um

verdadeiro amigo, por sua atenção e carinho e pelos planos profissionais futuros que

nasceram deste encontro. A Claudia Petrina, por ter se mostrado uma grande

parceira. A Monica Menezes por seu carinho e companheirismo. A Andrea Elias, ao

Magela e ao Vicente.

Muito obrigado a Silvia Aderne, por fornecer farto material de seus arquivos,

fundamentais para a construção deste trabalho.

A Magda Modesto, por sua sabedoria e pela perspicácia nos pontos mais

relevantes do tema aqui proposto.

Por fim, agradeço imensamente aos meus companheiros de vida, minha

família, a família PeQuod: Liliane Xavier, Marise Nogueira, Marcio Nascimento, Marcio

Newlands, Mário Piragibe, Sérgio Saboya e Sílvio Batistela, pela infinita paciência e

confiança. Em especial ao grande parceiro Carlos Alberto Nunes, pelo seu amparo,

força e companheirismo sem fim.

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“Debaixo da água tem terra... Debaixo da terra tem água. Dentro de cada criança

existe um homem de olhos abertos para o mistério de crescer da noite para o dia e

do dia para a noite. Dentro de cada homem existe uma criança recolhida numa

sombra de crepúsculo que teima em evocar...”eu era”...”

Ilo Krugli

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – UNIRIO

CENTRO DE LETRAS E ARTES ESCOLA DE TEATRO

PROGRAMADE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO – MESTRADO

VIEIRA, Miguel Vellinho. Ilo Krugli e a construção de um novo espaço poético para o Teatro infantil no Brasil. 2008. 129 f. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Programa de Pós-Graduação em Teatro, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2008. Resumo

Por geralmente ser considerado uma arte menor, o Teatro feito para crianças

no Brasil carece de estudos aprofundados a seu respeito; no entanto, não lhe faltam

grandes autores e encenadores, bem como importância artística e cultural. Exemplo

disso é o objeto deste trabalho, a peça História de lenços e ventos, escrita e dirigida

por Ilo Krugli em 1974. Esta dissertação se propõe a sinalizar a relevância histórica

desse espetáculo para a trajetória das Artes Cênicas no país. Para tanto,

pesquisaram-se diversas fontes documentais, a fim de reconstituir um aspecto do

panorama do Teatro e do Teatro infantil dos anos 1970; fez-se a análise icono-

semiológica de um conjunto de fotos da montagem, a partir de metodologia

desenvolvida pela professora doutora Evelyn Furquim Werneck Lima, tendo por base

os estudos de Erwin Panofvsky e Tadeusz Kowzan; entrevistou-se Krugli de acordo

com a metodologia aplicada pela professora Verena Alberti no livro História Oral – A

experiência do CPDOC e estudou-se o texto da peça. Como resultado, constatou-se

que Krugli e seu espetáculo constituem, de fato, marcos da História do Teatro, por

sua significativa contribuição para a melhoria da qualidade e da poética das peças

encenadas para crianças. Com isso, estabelece-se mais um sólido ponto de

referência para uma futura valorização acadêmica do Teatro infantil e para a

organização formal de sua História.

Palavras-chave: Teatro infantil. Dramaturgia e encenação. Teatro nos anos 70.

Teatro brasileiro.

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ABSTRACT

Usually considered as a smaller art, in Brazil, the Theater for children has not been

deeply studied, until recently. However, there are great playwrights and directors of

artistic and cultural importance, as pointed out in this research about the play History

of handkerchiefs and winds, written and directed by Ilo Krugli in 1974. This

dissertation intends to point out the historical relevance of this particular spectacle in

the Scenic Arts of the country. In order to accomplish the investigation several

documental sources were researched to reconstitute the Theater for children in the

years 1970. Evelyn Lima’s icono-semiological methodology has been applied to

analyze a group of pictures of the play, and Krugli and some actors were interviewed

in the basis of Verena Alberti´s methods for oral history. As result, it was verified

that Krugli and his show constitute, in fact, one mark of the History of Theater in

Brazil, for its significant contribution to the improvement of the quality and to the

poetics of the plays staged for children.

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Sumário

INTRODUÇÃO...............................................................................................9

1. De volta ao reino da desigualdade: um aspecto do Teatro infantil nos

anos 1970 ...................................................................................................16

1.1. Sobre Elias Kruglianski ................................................................................21

1.2. A situação teatral carioca nos anos 1970 ......................................................25

1.3. Um vento forte sobre o Rio .........................................................................31

1.4. Sobre a história ..........................................................................................33

2. Uma análise icono-semiológica de História de lenços e ventos ............37

2.1. Aspectos gerais de encenação .....................................................................39

2.2. Se é de papel... – Conotações em cena ........................................................56

2.3. A indumentária – Moda e ideologia ..............................................................64

3. A poética Krugliana – Dramaturgia e encenação ...................................72

3.1. Mapeamento estético, conceitual e histórico .................................................75

3.2. Sobre a peça e sobre a cena .......................................................................78

CONSIDERAÇÔES FINAIS...........................................................................90

Referências bibliográficas .........................................................................96

APÊNDICE A: Sinopse de História de lenços e ventos...............................103

ANEXO A: Texto de História de lenços e ventos........................................106

ANEXO B: Ficha técnica da primeira montagem de História de lenços e

ventos (1974) ...........................................................................................128

ANEXO C: Entrevista com Ilo Krugli (CD em wave)..................................129

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INTRODUÇÃO

Este trabalho nasceu da constatação de que a obra de Ilo Krugli - batalhador

incansável do Teatro para todas as idades-, não foi objeto de nenhum estudo que se

debruçasse sobre seus procedimentos e estética. Sua contribuição foi significativa

para a melhoria da qualidade e da poética das peças encenadas com o propósito

primeiro de dirigir-se à criança. O interesse pela investigação nasceu também,

obviamente, devido à profunda admiração que tenho por esse profissional que, em

meio a tantos impedimentos e cerceamentos, pôde fazer brotar um trabalho tão

original, vivo e de grande alcance de público. Foi este o objetivo maior do trabalho,

feito: para apontar a pioneira trajetória de Krugli e propagar ainda mais suas tantas

qualidades ainda não estudadas. Sua entrega e amor à profissão, mesmo depois de

tantos anos passados de sua estréia em 1972, mostram uma coerência e uma

profundidade só encontradas nos grandes mestres. Ilo, sim, é um grande mestre.

Este trabalho também é um resgate da minha memória e das inúmeras

vivências que tive na presença de meu objeto de pesquisa, em uma linha de tempo

que nasce ainda na minha infância, ao assistir a História de lenços e ventos em

1976, no interior do Rio Grande do Sul. Aquele encontro com o maravilhoso, com um

universo de cores intensas e de grande movimentação, ficou guardado para sempre

em minha vida e, creio, tornou-se, anos mais tarde, a mola propulsora para que eu

adentrasse esse mesmo universo.

Dez anos mais tarde, já no Rio de Janeiro, ao dar aulas no Centro Integrado

de Cultura – (CIC ) no CIEP de Ipanema, entrei em contato com Sílvia Aderne, atriz

fundadora do Teatro Ventoforte e intérprete da personagem Chuva, entre tantas

outras, na primeira montagem de História de lenços e ventos. O encontro, que se

iniciou como sendo entre professor e coordenadora, abriu-se para muitos lados que

envolvem admiração e amizade em iguais proporções.

Alguns anos mais tarde, tive a oportunidade de rever, aqui no Rio de Janeiro,

a remontagem histórica de História de lenços e ventos dentro de um projeto de

ocupação fomentado pelo Instituto Brasileiro de Arte e Cultura – IBAC, atual

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FUNARTE, do Teatro Cacilda Becker, pelo grupo Hombú, nascido dos remanescentes

do Ventoforte que ficaram nesta cidade. Naquela apresentação, em 1991, vi já com

olhos de profissional uma beleza e poesia que permaneciam intactas. A história,

contada casualmente e que se transforma em uma grande saga pela liberdade,

reavivou minha memória e profundos sentimentos, difíceis demais para serem

explicados aqui.

Ainda no curso de Interpretação realizado nesta instituição, tomei contato,

como aluno, com Sílvia Heller, outra atriz da primeira montagem que também

reativou canais adormecidos da minha infância.

O ano de 1992 trouxe a oportunidade de ver in loco o trabalho desse diretor,

por eu ter sido selecionado para uma vivência de algumas semanas com o Teatro

Ventoforte, em São Paulo. Nessa vivência, pude verificar como ocorrem as

construções quase ao acaso e que geram plots e argumentos para serem encenados,

experiência complementada recentemente com depoimentos de Ilo colhidos por mim

para esta dissertação.

A partir dos desenhos realizados durante a oficina, nasceram histórias que

repetiam símbolos arquetípicos que Krugli costurou ao longo do trabalho de

laboratório, revelando novas histórias ao avesso, novos caminhos para histórias

tantas vezes já contadas. A propriedade e o manuseio de material tão etéreo

fizeram-me ver que Krugli trabalha em um nível de excelência que era fruto de anos

de estudos, leituras e experimentos. Os dias que passei morando no Teatro

Ventoforte tornaram-se referência para qualquer processo de montagem que eu

construa hoje em dia, tal era a profundidade e a pertinência de seus propósitos.

Nos anos seguintes, ao me mudar para São Paulo, minha convivência com Ilo

passou para outro patamar, aproximando-nos ainda mais. Aquele artista - antes visto

por mim apenas como um ídolo-, agora era um colega de ofício, com quem eu

compartilhava as mesmas expectativas e preocupações inerentes à classe teatral.

Em 2000, ao prestar concurso para o Programa de Pós Graduação em Teatro

desta instituição, retomei o contato com Sílvia Aderne, por quem fui presenteado

com todo o seu arquivo da época do Ventoforte, para que a construção do projeto e

do pensamento aqui exposto tivesse início.

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Finalmente, no ano passado, ao retornar à cidade de São Paulo para realizar a

entrevista anexa a este trabalho, revi Ilo, ainda com a mesma grandeza e

simplicidade que lhes são características. Refiz as costuras do tempo em duas tardes

de profunda reflexão sobre o fazer teatral, fruto de longas conversas com ele. Ouvi

novas histórias, novos caminhos que desfazem rapidamente a idéia de que esse

diretor esteja parado no tempo. O alcance e a amplitude de sua obra são

imensuráveis.

Espero, com este trabalho, contribuir para que uma nova história, uma história

recente do Teatro brasileiro, comece a ser contada e estudada. Uma história que tem

a criança como protagonista, vista como um ser completo e pleno de todos os seus

direitos.

Indo mais longe, atrevo-me a dizer que muito do meu trabalho atual,

realizado na Cia. PeQuod – Teatro de Animação, na qual atuo como diretor artístico,

aqui no Rio de Janeiro, sobretudo no que diz respeito ao meu útimo espetáculo, Peer

Gynt, de Ibsen, nasce a partir de observações e procedimentos usados por Krugli em

suas encenações. Em nossa montagem de Peer Gynt, por um ato de coragem e

liberdade, abrimos mão da neutralidade que há anos aterroriza qualquer profissional

que se dedica ao Teatro de animação; misturamo-nos aos bonecos em cena, sem

distinção de importância entre uns e outros, criando diálogos novos com a tradição

do Teatro de bonecos e novas camadas de significação ao texto do autor norueguês,

escrito há tanto tempo. Não há dúvida hoje de que existe na concepção de Peer Gynt

um germe oriundo dos jardins do Teatro Ventoforte.

Motivado, portanto, por tantas lembranças e diante de um grande vazio sobre

o tema, tenho como objetivo principal nesta pesquisa reunir elementos e analisar um

ponto específico de mudança de tom no contato com a criança, ocorrido nos palcos

cariocas em 1974.

Esta reflexão tem como base as inúmeras fontes documentais que reuni

através dos anos e que me permitiram formular questões e propor alguns

desdobramentos que considero fundamentais. São reportagens, críticas

especializadas publicadas na imprensa, filipetas, cartazes, programas de espetáculos

e, sobretudo, as imagens fotográficas aqui analisadas. Em um âmbito maior está a

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vontade de iniciar um grande mapeamento do Teatro infantil feito no país, pois é de

minha vontade que este trabalho venha a instigar novos pesquisadores a iluminar

esse caminho.

Desta forma, no primeiro capítulo, DE VOLTA AO REINO DA DESIGUALDADE:

UM ASPECTO DO TEATRO INFANTIL NOS ANOS 1970 reconstituí um panorama do

Teatro e do Teatro infantil nos anos 1970, entendendo as implicações causadas pela

ditadura militar vigente no país desde 1964. A partir de uma acurada pesquisa

realizada na Biblioteca Nacional e nos arquivos da FUNARTE, consegui montar um

quadro aprofundado da situação da produção teatral, sobretudo no que se refere ao

ano de 1974, data da estréia de História de lenços e ventos. Nesse capítulo, são de

vital importância as declarações de Yan Michalski, quem, sem surpresa, mostra-se o

observador mais atento daquele panorama, seja no calor do momento em suas

críticas e na sua coluna semanal no Jornal do Brasil, seja em suas considerações

posteriores editadas em livro anos depois.

Em paralelo a Michalski, os apontamentos de Maria Lúcia Pupo, Maria Helena

Kühner, Ana Maria Machado e Heloísa Buarque de Hollanda permitiram criar uma

rede teórica de grande utilidade para material ainda tão disperso. Ainda nesse

capítulo, apresento parte das atualizações formais trazidas por Krugli, bem como

discorro sobre sua trajetória artística ainda na Argentina até o momento da estréia

do espetáculo que funda o Teatro Ventoforte. Por fim, apresento uma análise das

principais críticas dedicadas ao espetáculo, visando um entendimento maior do que

foi a recepção da montagem quando de sua estréia.

Em UMA ANÁLISE ICONO-SEMIOLÓGICA DE HISTÓRIA DE LENÇOS E

VENTOS, título do segundo capítulo desta pesquisa, procurei tratar de um conjunto

de quinze imagens da montagem, utilizando como ferramenta a metodologia

desenvolvida por minha orientadora, a professora doutora Evelyn Furquim Werneck

Lima, quem propõe um amálgama entre a iconologia e a semiologia, tendo por base

os estudos de Erwin Panofvsky e Tadeusz Kowzan para o estudo de imagens de

espetáculos teatrais. Para esse capítulo, foram fundamentais as imagens cedidas

pelo Centro de Documentação e Pesquisa – CEDOC da Fundação Nacional de Arte –

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FUNARTE e do arquivo do Centro Brasileiro para o Teatro da Infância e Juventude –

CBTIJ, ambos com sede nesta cidade.

Esse momento do trabalho foi realizado também a partir de entrevista que fiz

com Krugli em dezembro de 2007, em seu espaço de trabalho, o Teatro Ventoforte,

em São Paulo, facilitada graças ao Programa de Pós Graduação em Teatro desta

instituição, cuja contribuição foi decisiva. Todas as informações foram previamente

checadas pelo autor para um maior rigor do trabalho, o que possibilitou um maior

aprofundamento dos elementos visuais e plásticos utilizados no espetáculo. Ainda

sobre a entrevista, saliento que segui rigorosamente a metodologia aplicada pela

professora Verena Alberti em seu livro pioneiro História Oral – A experiência do

CPDOC, publicado pela Fundação Getúlio Vargas.

Nesse ponto, foi bastante interessante aproximar Krugli de Kurt Schwitters,

dadaísta alemão do início do século XX que, como Ilo, investe na poética do objeto

encontrado. Da mesma forma, pude localizar determinados procedimentos e práticas

que, por sua repetida utilização, impõem-se como características marcantes da

encenação e da poética krugliana, nas quais a simplicidade e a poesia sugerem

profundas cisões em todos os elementos constitutivos da cena.

Fora isso, os inúmeros referenciais icônicos encontrados em um grupo de

fotos pequeno - mas não menos importante-, são uma sugestão para

aprofundamentos e novos desdobramentos que esta pesquisa pode oferecer.

Finalmente, no terceiro capítulo A POÉTICA KRUGLIANA - DRAMATURGIA E

ENCENAÇÃO, realizo um último procedimento de análise sobre os aspectos

primeiramente do texto impresso da montagem e também sobre as últimas

considerações que se podem estabelecer sobre sua montagem. Partindo de uma

aproximação do estudo pioneiro de Heloísa Buarque de Hollanda sobre os novos

aspectos da poesia surgidos nos anos 1970, pude constatar um alinhamento estético

que faz de Ilo um propagador dessas atualizações formais no Teatro infantil.

A permanência de Krugli no cenário artístico até os dias de hoje balizam-me

para concluir que suas expiências cênicas abriram um novo espaço no que tange à

construção de um caminho inusitado e de um novo sentido que o Teatro pode

oferecer às gerações mais novas. Entendo que hoje o Ventoforte é uma grande

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árvore com centenas de ramificações que nasceram, justamente, quando da partida

de Ilo para São Paulo. Os remanescentes que no Rio de Janeiro ficaram

transformaram-se em um novo braço de trabalho, o grupo Hombú, que há mais de

30 anos desenvolve um trabalho que dialoga com Krugli constantemente, seja na

direção de espetáculos, seja em parcerias, seja em projetos que englobam as duas

companhias, comprovando que os vínculos artísticos, mesmo passados tantos anos,

ainda alinham-se esteticamente. Da mesma maneira, ainda no Rio de Janeiro, outros

contemporâneos continuam a desenvolver projetos artísticos que bebem nas

mesmas fontes, como, por exemplo, o grupo Navegando, capitaneado pela diretora

Lúcia Coelho, uma das primeiras alunas do diretor ainda na Escolinha de Arte do

Brasil. Em São Paulo, já são uma infinidade de grupos e grandes profissionais que

nasceram sob os galpões do Ventoforte. Particularmente, Krugli é responsável pela

vinda de outro argentino para o Brasil, Osvaldo Gabrieli, diretor e artista plástico que,

ainda na primeira metade da década de 1980, refez os parâmetros do Teatro de

animação no país ao fundar a companhia XPTO.

No ano em que se celebram os sessenta anos da estréia de O Casaco

Encantado, de Lúcia Benedetti, marco inaugural do Teatro infantil no Brasil, esta

pesquisa sobre as transformações propostas por Krugli décadas depois, estabelece

uma proposta de demarcação da História do Teatro infantil no Brasil. Trata-se,

conforme demonstrado nesta dissertação, de uma história feita de paixão e que

ainda hoje é injustamente vista como uma atividade menor dentro do panorama das

Artes Cênicas. No entanto, nosso Teatro para crianças nasceu dentro das melhores

condições e teve a atriz Henriette Morineau, já consagrada na época, como a “bruxa

desastrada” do texto de Benedetti em sua estréia.

Esta pesquisa, portanto, pretende servir de ferramenta para entender um dos

capítulos de maior poesia e liberdade ocorridos nesta curta trajetória de sessenta

anos do Teatro infantil no Brasil e reafirmar a existência e a grandeza de uma

história que começou com Benedetti, passou por Maria Clara Machado, grande

fomentadora e figura de maior expressão do Teatro infantil, e que tem na figura de

Ilo Krugli uma excelência artística rica em inteligência, profundidade e sensibilidade,

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a qual propõe, através de uma intensa teatralidade, uma viagem interior rumo ao

crescimento e ao auto-conhecimento do ser humano.

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1. DE VOLTA AO REINO DA DESIGUALDADE1: UM ASPECTO DO

TEATRO INFANTIL NOS ANOS 1970

“Teatro infantil não pode ser visto como um segmento isolado.

Deve ser, antes de mais nada, Teatro.

E, como tal, parte do processo cultural de todo um povo”.

Ana Maria Machado

O quadro desalentador em que se encontrava o Teatro para crianças no início

dos anos 1970 era reflexo do desalento maior vivido por todos aqueles que faziam

Teatro num período de diminuição das atividades democráticas no país. Em um dos

mais importantes documentos sobre a atividade teatral daquele momento, o crítico

de Teatro Yan Michalski (1979:08-09) dá conta de que

O teatro foi erigido em inimigo público número um; mas dizer que foi erigido um dos inimigos públicos mais declarados, e, por conseguinte, tratado com sistemática desconfiança, hostilidade e não raras vezes com brutalidade, é constatar uma verdade histórica inegável.

Em uma época na qual houve uma drástica redução da produção teatral,

quando vozes dissonantes como as de Cacilda Becker (1921-1969) e Oduvaldo

Vianna Filho (1936-1974) tragicamente se calaram e a televisão se instaurou como

um substitutivo glamourizado dessa atividade, o Teatro brasileiro sofreu danos

irreparáveis.

Se, durante os anos 1960, a efervescência de grupos como o Arena, o Oficina

e o Opinião renovou o público das salas de espetáculos, ao aproximar-se de uma

juventude sedenta por novidades, na década seguinte, essa mesma juventude

assistiu ao desmonte do sistema teatral. Hoje, décadas depois, pode-se assinalar que

exatamente naquele momento o Teatro foi alijado da sociedade brasileira,

1 O título deste capítulo faz referência ao livro No Reino da Desigualdade, de Maria Lúcia de Souza B. Pupo, editado pela Editora Perspectiva.

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transformando-se em uma arte “para poucos”, hermética e distanciada da vida

nacional.

Segundo Heloísa Buarque de Hollanda (2004:70-1), o tema ganha novos

contornos e profundidade ao salientar que

O circuito fechado e viciado em que a classe média informada juntava-se para falar do ‘povo’ não produzia mais efeito. Era preciso pensar a própria contradição das pessoas informadas, dos estudantes, dos intelectuais, do público.

Esse desmonte obviamente paralisou, se não finalizou prematuramente, a

pesquisa dos mais importantes grupos teatrais daquele momento – os citados acima,

com exceção do Oficina –, transformando radicalmente o panorama teatral da época.

As buscas por novas estéticas e novas poéticas que estavam sendo experimentadas

e também absorvidas na década anterior deram lugar a uma cena comportada,

tímida e – por que não? – reprimida. É Michalski novamente quem consegue definir a

situação kafkiana em que vivia a classe teatral ao refletir que

O que causa perplexidade em primeiro lugar é a flagrante desproporção entre, por um lado, as energias gastas pelo Sistema, o calibre dos cartuchos por ele usados nesta campanha repressiva e, por outro, a possível periculosidade do objeto reprimido. (1979:10).

Obviamente, o teatro destinado ao público infantil também não poderia

escapar dessa crise, que, no entanto, se dá não só por limitações de um regime de

governo autoritário, mas por algo de igual gravidade. É o que aponta Maria Lúcia

Pupo (1991:148) em um dos mais aprofundados estudos sobre tal segmento teatral

naquele período

Nossa dramaturgia infantil oferecia, na década de setenta, um modelo pobre e cristalizado de conhecimento do ser humano. A análise indicou que ela tendia a colaborar para a manutenção de privilégios de ordem social, ao subestimar ou ignorar o tratamento de temas que, de algum modo, incitassem ao questionamento tanto das relações entre os homens, quanto das instituições por eles criadas. Este quadro fica mais claramente delineado ao se ressaltar que os textos tendem à apresentação de respostas fechadas para as questões que levantam. Conseqüentemente, esta dramaturgia infantil contribuía de modo

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inevitável para a formação de uma visão de mundo que consagra a ordem social vigente como a única possível.

Naquele momento de esgotamento dos antigos enredos, acordava-se também

para uma das principais causas dessa crise. Clóvis Levi, crítico de teatro infantil, em

texto publicado no jornal O Globo resume com veemência que “nossos autores não

conhecem suficientemente psicologia infantil; e ignoram quase tudo sobre a criança

de hoje.”2 E vai além ao apontar a produção desse setor como óbvia, sem

criatividade e maniqueísta. No entanto, causa-lhe espécie o quanto essa dramaturgia

apresentava-se velha, “cheias de pieguice, carregadas de diminutivos e repletas de

didatismos e moralismos extremamente discutíveis”.3

Em uma outra seara da Cultura e nascido na década de 1960, o Tropicalismo4

dava vazão a toda uma criação artística que voltava valorizar elementos da produção

cultural que, em períodos anteriores – como no Modernismo de 1922 –, já havia

sofrido uma reflexão, só que agora, no calor de uma grande crise nacional, o projeto

tropicalista se estruturava de forma emergencial. Heloísa Buarque de Hollanda

(2004:64), na obra pioneira sobre a produção poética e marginal dos anos 1970,

ressalta que:

A preocupação com a atualização de uma linguagem “do nosso tempo”, já presente no concretismo, passa, a partir do Tropicalismo, a ser aprofundada e relacionada a uma opção existencial. O fragmento, o mundo despedaçado e a descontinuidade marcam definitivamente a produção cultural e a experiência de vida tanto dos integrantes do movimento tropicalista, quanto daqueles que nos anos imediatamente seguintes aprofundaram essa tendência (...).

Essa “atualização” formal, portanto, parece-nos não ter atingido os principais

porta-vozes de um Teatro destinado às novas gerações, presos a fórmulas ou

enrijecidos dentro de parâmetros que os impediam de avançar em experimentações

2 Xerox, sem data. Fonte: Biblioteca da Funarte, Rio de Janeiro, RJ. 3 Xerox, sem data. Fonte: Biblioteca da Funarte, Rio de Janeiro, RJ. 4 Movimento estético-musical surgido em decorrência da confluência das vanguardas artísticas dos anos 1960 e de sua aproximação com a cultura pop nacional e estrangeira. Sua configuração mais visível se dá na aproximação de manifestações tradicionais da cultura brasileira com experimentações estéticas radicais. Comportamental, político e social, influenciou a música popular, o cinema e as artes plásticas em geral na década seguinte.

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dramatúrgicas e de encenação. Nem mesmo em um momento de absoluta

polarização político-cultural, os autores mais representativos desse setor sequer

esboçavam qualquer curiosidade em rever aspectos da cena que já vinham sendo

revistos em outros segmentos das artes cênicas, tais como na cenografia de Lina Bo

Bardi idealizada para a montagem de Na selva das cidades de Brecht e encenada por

José Celso, em 19695.

Havia, enfim, um novo “sentimento do mundo”, que, por razões obscuras, não

contaminou aqueles que estavam preparando tanto novas platéias, quanto novos

talentos. Essa dissociação pode ser percebida, por exemplo, n’O Tablado, escola

informal de Teatro mantida desde os anos 1950 pela autora e diretora Maria Clara

Machado.

Ao empreender uma análise aprofundada desse caso, Michalski (1986: 70) vê

na trajetória d’O Tablado

Uma certa conotação de espírito aristocrático e conservador, pouco atento às peculiaridades da realidade brasileira, à evolução do teatro mundial e à possibilidade de conquista de novas faixas de público, além daquelas que espontaneamente se identificavam com a linha do grupo desde a sua fundação.

Não há como negar o aspecto pioneiro de Maria Clara Machado e seu O

Tablado, e há uma contrapartida extremamente favorável à sua produção

dramatúrgica. No entanto, não é possível ocultar o progressivo isolamento d’O

Tablado, também observado por Michalski como se estivesse em uma “torre de

marfim” alheia ao fluxo extremamente dinâmico do movimento teatral. É

interessante notar que, concomitante à entropia d’O Tablado, Peter Brook, do outro

lado do Atlântico, vindo de uma tradicional carreira de diretor shakespereano, foi

capaz de proclamar, quando de sua montagem intitulada Teatro de Crueldade,

realizada a partir de fragmentos de Antonin Artaud, que

Estamos apresentando nosso programa numa época em que todas as convenções teatrais são contestadas e não existem mais regras. Nosso grupo, por sua vez, pôs de lado enredo, estrutura, personagens, técnica, ritmo, final apoteótico, grande cena, clímax dramático,

5 Ver LIMA, Evelyn Furquim Werneck. O espaço cênico de Lina Bo Bardi: uma poética antropológica e surrealista. ARTcultura n. 15, 2007.

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partindo da premissa de que, em 1965, a confusão e complexidade de nossas vidas devem levar-nos a questionar todas as formas tradicionais.6

É nesse panorama que surge a figura de Elias Kruglianski, mais conhecido

como Ilo Krugli, argentino que, depois de percorrer quase toda a América do Sul

vivenciando esse novo “sentimento de mundo” libertário e contestatório, desembarca

no Brasil ainda nos anos 1960. Juntamente com Pedro Domingues (1936-2004),

funda nos anos 1970 o Teatro de Ilo e Pedro, que se torna uma das maiores

referências do Teatro de bonecos no Rio de Janeiro. Na década seguinte, passa a

ganhar mais destaque ao realizar, a partir de 1974, encenações e textos que,

segundo Pupo (1991:24), estão

Em consonância com uma noção mais contemporânea de teatro, assumem às últimas conseqüências a fragilidade e o caráter efêmero e mutante da própria representação teatral. A incorporação dessa visão de teatro se traduziu em termos de dramaturgia pela criação de textos que, ao invés de se configurarem como peças acabadas, se apresentam sob forma de roteiros de improvisação a serem necessariamente desenvolvidos pelos emissores do espetáculo.

A citação acima está especificamente relacionada neste projeto ao texto e à

encenação de História de Lenços e Ventos, montagem realizada por Ilo Krugli em

1974 que deu origem ao seu grupo, o Teatro Ventoforte. Os procedimentos e a

poética que Krugli traz para a cena do Teatro infantil do Rio de Janeiro dialogam com

os avanços empreendidos pela vanguarda teatral a partir dos anos 1960. Ele

recupera o sentido do jogo cênico em prol de tudo que nele há de “invenção,

imprevisto e transformação”7, aproximando-se, assim, do jogo espontâneo da

criança.

Esse diferencial faz de Krugli um criador que manuseia com propriedade tanto

as histórias mais longínquas da infância, quanto os pressupostos de Brecht e

Grotowski, que era, naquele período, a voz instauradora de uma nova ordem do

fazer teatral. Neste sentido, os espetáculos de Krugli podem perfeitamente ser

6 BROOK, Peter, O Ponto de Mudança – Quarenta anos de experiências teatrais, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1994. Pág. 87 7 Idem, 24

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pareados com os de José Celso Martinez Correa – a partir da montagem de O Rei da

Vela em 1967, com o seu grupo, o Oficina –, bem como os do Living Theatre e do

Bread and Puppet, grupos estrangeiros que mais investigaram a cena teatral daquele

momento, dando à luz uma nova dramaturgia.

Em todos esses exemplos, a Contracultura é o elemento unificador que

instigava criadores de todo o mundo a buscar um novo modo de atingir o

espectador, através da desconstrução dos elementos cenográficos, dramatúrgicos,

interpretativos e de toda e qualquer espécie de recurso teatral existente. As opções

estéticas de Krugli nascem exatamente daí: da Contracultura, do movimento hippie e

da sua leitura mais genuinamente brasileira, o Tropicalismo.

Mais do que realocar a obra e o legado de Krugli no fazer teatral brasileiro,

buscar-se-á observar a partir de textos de Heloisa Buarque de Hollanda e Didier

Plassard como as encenações de Ilo traduziram-se em fragmentos e mesmo

estilhaços de um momento de afunilamento das liberdades. Além disso, procurar-se-

á demonstrar que essa cena despedaçada, fragmentada, abriu novos e virginais

caminhos para quem se dedica ao Teatro para crianças, reinventando um novo canal

de comunicação que não se detém apenas ao território da palavra. Assim, este

trabalho aponta para um estudo sobre a dramaturgia e a encenação de Ilo Krugli a

partir de uma análise icono-semiológica do espetáculo História de Lenços e Ventos e

que encontra-se publicada pela Editora Didática e Científica desde 2000 como parte

da Coleção Vertentes Teatrais, organizado pelo pesquisador e crítico de Teatro

infantil Carlos Augusto Nazareth.

1.1. Sobre Elias Kruglianski

Nascido Elias Kruglianski em 1930, em Buenos Aires, Argentina, Ilo era filho

de imigrantes operários poloneses e teve formação autodidata. Ainda jovem, teve

seu primeiro contato com o Teatro através das encenações organizadas pelos

imigrantes, através das quais conheceu as dramaturgias russa, alemã e polonesa,

focos das montagens feitas por essas associações, que difundiam a sua língua e a

sua cultura em terras platenses. Trabalhou como operário de litografia numa fábrica

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de cerâmicas, freqüentou vários ateliês de desenho e pintura na capital portenha e,

por fim, participou de um grupo de Teatro de bonecos que durante anos se

apresentou no Teatro La Mascara e na Organização Latinoamericana de Teatro

(OLAT). Com esse grupo inicial, rapidamente apresentou-se não só em Buenos Aires,

mas nas cidades da periferia, bem como no norte da Argentina.

O jovem Elias, portanto, é mais um fruto da passagem histórica de Garcia

Lorca por Buenos Aires8, que fomentou o trabalho de artistas plásticos, artesãos e

escritores para a criação do Teatro de bonecos argentino, uma vez que ele tinha seis

anos na época. Um dos mais destacados artistas que travaram contato com Lorca foi

Javier Villafañe, célebre titiritero portenho, que inspirou o pequeno Elias através de

espetáculos e livros de textos para bonecos:

Eu tinha oito anos quando a professora do primário me ensinou a fazer bonecos. Ela me deu de presente um livro de um poeta e titeriteiro Javier Villafañe. Ele percorreu toda a América Latina, inclusive o Brasil, fazendo principalmente teatro para crianças. Foi a partir daí que eu comecei a fazer bonecos. (...) A grande brincadeira era fazer teatro mesmo. Lembro que fazia um espetáculo chamado O Príncipe Feliz. Só na adolescência é que eu descobri que o autor era Oscar Wilde.9

Em 1958, como muitos jovens que repetiram o gesto de Che Guevara, Krugli

inicia uma viagem com Pedro Domingues, seu parceiro no Teatro Cocuyo, por vários

países da América Latina, apresentando-se em muitas cidades bolivianas, em

pequenos povoados indígenas da Cordilheira dos Andes, nas vilas ao redor do lago

Titicaca e nas comunidades quetchuas. Em Cuzco, permanece durante quase um ano

vivendo de apresentações e inicia um trabalho paralelo de educação artística com

crianças indígenas e mestiças, sendo até hoje visível em seu trabalho essa

aproximação com as culturas autóctones do continente sul-americano. Em suas

8 Durante os anos de 1933 e 1934, Federico Garcia Lorca se instala em Buenos Aires a convite da atriz Lola Membrives e da Sociedade Amigos del Arte em função da estréia de Bodas de Sangue na capital argentina. Lá, através de encontros e pequenas apresentações, fomenta uma nova geração de titiriteros, que seguiriam sua forma poética de narrativa. 9 Entrevista fornecida ao Centro Brasileiro para o Teatro da Infância e Juventude – CBTIJ. Ver wwww.cbtij.org.br

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encenações, percebe-se uma mistura muito bem dosada de padrões visuais

característicos dessas culturas.

Conseqüentemente, aqui no Brasil, seu interesse pelas comunidades indígenas

brasileiras se reflete na montagem de Mistério das Nove Luas, muito antes da

conscientização sócio-política do elemento indígena que emergiu na década de 1970.

Também aqui, sua aproximação com a cultura afro-brasileira torna-se fonte de

inspiração para a ritualização de seu teatro, seja nos figurinos, que se assemelham

aos de divindades africanas, seja na forte percussão, repleta de instrumentos

musicais encontrados nessas manifestações.

A chegada de Ilo ao Brasil em 1961 se deu graças ao artista plástico Augusto

Rodrigues, que o convidou para ministrar cursos na Escolinha de Arte do Brasil. Uma

vez estabelecido no país, Krugli lecionou ainda no curso de musicoterapia do

Conservatório Brasileiro de Música, entre tantas outras atividades que realizou, como

palestras e oficinas em centenas de cidades do país. Entre o ano de sua chegada e

1970, manteve, juntamente com Pedro Domingues, o Teatro de Ilo e Pedro, uma

companhia de Teatro de bonecos que servirá como balão de ensaio para as

encenações que viriam na década seguinte e que o fariam despontar como diretor. O

repertório daquela época ainda dialogava com a tradição do Teatro de bonecos, em

que os bonecos de luva10 e de fios11 eram destaques. Um espetáculo importante

desse período foi a produção da ópera El Retablo de Maese Pedro, de Manuel de

Falla, criado para a Sala Cecília Meirelles, com cenários e direção de Gianni Ratto e

direção musical e regência de Isaac Karabitchevski. De 1970 a 1973, cria e dirige o

Núcleo de Atividades Criativas (NAC) ainda em parceria com Pedro Domingues e com

a musicista Cecília Conde.

Como artista plástico, Ilo Krugli participou por duas vezes consecutivas da

Bienal Internacional de São Paulo, nas edições de 1968 e 1970. Ainda na década de 10 Comumente chamado também de fantoche, pode ser classificado como uma manipulação interna, já que a mão do manipulador se insere numa estrutura maleável, feita de pano, que possui três extremidades rígidas (mãos e cabeça), podendo ser de madeira, isopor, papier machê, entre outras possibilidades. Com medidas aproximadas em torno de trinta centímetros, esse tipo de manipulação tradicionalmente requer um anteparo para que a cena se estabeleça, este chamado de empanada. 11 A manipulação de bonecos de fios, habitualmente conhecidos como marionetes, é aquela que se dá a partir de uma estrutura geralmente de madeira, a qual chamamos de avião, de onde partem os fios que se prendem a inúmeras partes de um boneco rígido articulado. A movimentação se estabelece, portanto, a partir da movimentação dos fios, graças à gravidade.

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1960, travou contato com a doutora Nise da Silveira, com quem participou

ativamente de seus estudos sobre Carl Gustav Jung. Por mais de dez anos de

trabalho, esteve junto dessa pesquisadora, editando também a revista Quartênio.

Não há como negar que esse intenso período dos estudos psicanalíticos influenciados

por Jung serviu de base para toda a fundamentação do Teatro de Krugli, em um

momento posterior. Suas investigações sobre a criança, “a raiz arcaica do homem”12,

se estabelecem através de estudos que unem o inconsciente coletivo, a formação

arquetípica e relações análogas comuns entre os homens.

Em 1972, depois de anos de burilamento em oficinas que coordenou desde

sua chegada ao Brasil, Krugli volta aos palcos para apresentar o espetáculo História

de Um Barquinho, sua primeira experimentação formal que se estabeleceria nos anos

seguintes, já como fundador do Ventoforte. A montagem foi vencedora de

importantes prêmios nas categorias de Melhor Espetáculo Infantil, Melhor Direção e

Melhor Música. Um hiato o leva ao Chile, onde cria o grupo Manos às vésperas do

golpe de estado que derrubou Allende. Nessa curta estada de oito meses, produziu

por lá uma versão de História de Um Barquinho. Com a derrocada da democracia no

Chile e o dramático desaparecimento de alguns membros desse grupo, Ilo decide

retornar ao Brasil. Vale lembrar, inclusive, que o golpe de estado ocorreu em

setembro de 1973, apenas seis meses antes da concepção de História de Lenços e

Ventos.

No início de 1974, Krugli é convidado para participar do Festival de Teatro

Infantil e de Bonecos, organizado pelo Teatro Guaíra, em Curitiba, PR, juntamente

com Pernambuco de Oliveira, Aldomar Conrado e Maria Helena Kühner, entre outros.

Em semanas, prepara um espetáculo para apresentar no evento: História de Lenços

e Ventos. Presente ao festival como crítica de Teatro infantil do diário carioca Jornal

do Brasil, a autora Ana Maria Machado volta ao Rio de Janeiro entusiasmada com o

que vira na capital paranaense. O encontro, que teve foco sobre a formação de

platéia, seleção e criação de textos e temas mais específicos desse segmento teatral,

como o maniqueísmo como eixo central da dramaturgia destinada às crianças, serviu

12 FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais - Anos 70. Campinas, Editora da UNICAMP, 2000, pág. 174.

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também para sinalizar o espetáculo inédito de Krugli como a grande promessa de

1974.

Após a estréia de História de lenços e ventos, em 1974, a vida de Krugli ganha

um novo ritmo, com a criação do Teatro Ventoforte, que produzirá ainda no Rio de

Janeiro os espetáculos Da Metade do Caminho Ao País do Último Círculo (1975),

Pequenas Histórias de Lorca (1976), Mistério das Nove Luas (1977) e Sonhos de Um

Coração Brejeiro Naufragado de Ilusão (1978). A partir de 1980, Krugli muda-se para

São Paulo, SP, onde mantém o Ventoforte até os dias de hoje.

1. 2. A situação teatral carioca nos anos 1970

Decididamente, o ano de 1974 não estava repetindo o marasmo dos anos

anteriores, em que a classe artística, premida por várias contingências, buscava

meios de driblar a crise econômica e, sobretudo, a Censura. Se, no segmento adulto,

o Rio de Janeiro assistia ao clássico instantâneo de Guarnieri Um Grito Parado no Ar,

à contemporaneidade de um Tchekov na montagem de Jorge Lavelli para A Gaivota

e a um novo texto de Nélson Rodrigues, que havia dez anos não lançava uma nova

obra dramática e que, em O Anti-Nélson Rodrigues, revertia toda a expectativa, o

teatro infantil parecia estar acordando para a percepção de que aquela criança dos

anos 1970 estava apta a receber mais e novas temáticas que a distanciavam das

antigas histórias, que por si sós já eram velhas, como aponta Maria Helena Kühner

(1973:10), dramaturga e grande especialista no assunto, que soube captar com mais

precisão as tais transformações ao afirmar que

Já está começando a existir uma nova criança, isto é, a criança formada no contato direto com uma realidade que entra em sua casa diretamente pela tevê, pelos jornais e revistas e que não espera mediação dos pais e professores, como acontecia anteriormente, para criarem entre ela e o mundo um anteparo que, muitas vezes, eram também antolhos. Essa nova criança, mais exposta mas também mais solicitada, dando muito mais de si, amadurecendo mais cedo, vendo seu equilíbrio a cada instante pressionado por um dado novo que ela tem que absorver e integrar, não é uma criança que se possa satisfazer com textos com uma visão tradicional do mundo. Sua própria fantasia tem outros móveis, sua visão de mundo é muito mais ampla. Escrever para ela supõe tentar conhecê-la e ver as coisas pelo

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seu ângulo de visão, ter uma noção de que sua realidade é hoje outra e afeta sua linguagem e sua maneira de pensar e sentir.13

Essa observação também se faz presente em um artigo14 de Ana Maria

Machado:

Pela primeira vez, em muito tempo, as últimas semanas têm mostrado alguns problemas de queda de freqüência em certos teatros da zona sul que se especializaram em apresentar peças infantis de péssimo nível em mesquinhas montagens comerciais.

Os pais, os responsáveis e os professores nas escolas subitamente atenderam

ao apelo de Machado no sentido efetivo de entender o teatro não como um

passatempo, mas como uma experiência estética pela qual a formação do indivíduo

está eminentemente ligada.

Observando os números, percebe-se que aquele ano demonstrou uma intensa

produção no teatro infantil. Nada menos que setenta e nove montagens15 estiveram

em cartaz durante o ano, com uma média de 14,5 opções por semana, resultado,

entretanto, da alta rotatividade de produções de baixa qualidade. Este número,

consideravelmente alto para os padrões da época, acabava por igualar-se às opções

do teatro adulto, sinalizando que o segmento infantil entrava em um processo de

popularização. Em paralelo, a participação quase solitária de Ana Maria Machado

como crítica de Teatro infantil no Rio de Janeiro naquele período foi fundamental

para a orientação do público carioca, que ainda não tinha veículos próprios para uma

boa seleção dos espetáculos em cartaz. Visto como passatempo, o Teatro infantil

naquele contexto ainda igualava-se a outras instâncias apenas recreativas dedicadas

à infância.

Em um exame mais detalhado, a produção carioca desse segmento era

dominada por inúmeras montagens de clássicos infantis que se caracterizavam pela

13 Teatro Infantil em Debate, Cadernos de Teatro, no. 59, out/nov/dez de 1973, Publicações O Tablado, Rio de Janeiro, RJ. 13. Teatro Infantil – Uma Boa Safra Apesar do Mau Tempo, Jornal do Brasil, 27 de agosto de 1974. 15 Número obtido a partir de pesquisa realizada na Biblioteca Nacional, onde se analisou todas as edições do Jornal do Brasil publicadas em 1974, a fim de se chegar a uma lista completa das peças infantis levadas aos palcos cariocas naquele ano.

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extrema pobreza de recursos. Histórias como as de Chapeuzinho Vermelho e de

Pinóquio ganhavam a cena de modo extremamente redutor, se comparado ao texto

original, transformado agora em histórias moralistas de teor rançoso. Esta

observação faz coro com Maria Lúcia Pupo ao afirmar que

Seguidamente os autores teatrais fazem a ação de suas peças decorrer dentro de um contexto cujo caráter mágico não é assumido até as suas últimas conseqüências. Ao nível das intenções do autor, parece existir uma tentativa de utilizar elementos mágicos mantendo uma pretensa crítica em relação a eles. (1991:53-4)

Portanto,

A magia, então, é visivelmente empobrecida e freqüentemente desacreditada pelas próprias personagens. Embora questionada, ela continua sendo, porém, o cerne da trama, o que acarreta como resultado, um texto que não se sustenta nem como fantástico, nem como aniquilamento do fantástico. (1991:54)

Pois essa questão – do texto – foi o ponto de partida para uma discussão da

produção teatral do Rio de Janeiro, e que acompanhava as preocupações do Teatro

adulto, às voltas com os rigores da Censura Federal, visto que desde o

estabelecimento do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), em 1968, a classe

artística havia se transformado em um alvo preferencial da Polícia Federal. Dezenas

de textos e montagens se viram impedidas de chegar ao palco, muitas vezes na

véspera da estréia, desmantelando muitos produtores teatrais que arcavam sozinhos

com todos os prejuízos.

Pois seis anos após a instituição do Ato, a classe teatral começava a olhar

para outros caminhos, na tentativa de encontrar novos pontos de contato com seu

público. Se, por um lado, Um Grito Parado no Ar se mostrava como um ponto de

resistência, os clássicos se transformaram em um veículo para o pleno exercício da

profissão sem significar um alheamento aos dias que corriam. É o caso da montagem

de Coriolano, de Shakespeare, que o ator Paulo Autran produziu e na qual atuou,

buscando em um dos textos mais políticos do autor inglês um espelho para o que

ocorria naquele momento.

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De igual maneira, a dramaturgia destinada às crianças estava na pauta do dia

da classe teatral carioca, sendo Maria Clara Machado, Maria Helena Kühner e Ana

Maria Machado as porta-vozes de tal discussão, que buscava uma melhoria na

qualidade dos espetáculos oferecidos às crianças, uma vez que uma irresponsável

conjunção de produtores, diretores e atores descobriu nesse segmento das Artes

Cênicas uma fonte de renda de facilidades incomparáveis.

Em pesquisa realizada nos jornais da época, pôde-se averiguar a presença

maciça desse Teatro de biscate – como bem intitulou Maria Clara Machado –, que

semanalmente renovava seu repertório no intuito de criar um público cativo e

constante. Assim, observa-se o caso de um diretor capaz de montar quatorze

espetáculos por ano, todos eles versões de histórias já consagradas e contos infantis

que ganhavam uma adaptação sem o menor critério. Segundo críticas de Ana Maria

Machado, os cenários e os figurinos muitas vezes eram encontrados mais de uma vez

em produções diferentes, uma prática que infelizmente ainda é observada nos dias

de hoje. Em outro caso, o nome do produtor era a voz de maior expressão,

eliminando a do diretor, responsável por pôr em cartaz nove produções ao longo do

mesmo ano. Era contra esse Teatro fácil e apelativo, com condições de produção

indigentes e que envergonhavam a própria classe teatral, que Ana Maria Machado foi

ganhando voz e se estabelecendo como a principal referência da época nesse

segmento teatral. No artigo já citado, esta crítica teatral analisa com acuidade aquele

momento que até então era notado apenas pela classe teatral. Ao expor o panorama

em duas páginas centrais do caderno cultural na edição dominical de um jornal de

grande circulação no Rio de Janeiro, ela acabou por chamar a atenção de uma

grande parcela da população consumidora de tal segmento do Teatro:

O Teatro Infantil carioca está vivendo agora alguns dos seus melhores dias dos últimos anos, com um surto de peças de qualidade que representam um instante raro no gênero, o que é especialmente paradoxal se for levado em conta o panorama geral do Teatro brasileiro neste momento de sua história. E se esta constatação pode parecer animadora, mas não deve servir de pretexto para entusiasmos que façam interpretar este fenômeno, talvez circunstancial e esporádico, como uma tendência forte e irreversível. Ou que ajudem a ofuscar, com o brilho instantâneo da atual temporada, os graves problemas que continuam pressionando o Teatro Infantil no Rio (...).

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Ainda assim, Ana Maria Machado não deixa de atentar para a responsabilidade

de pais e educadores, no sentido de estes serem os orientadores efetivos da

formação intelectual da criança, caso contrário, “corre-se o risco de desaparecerem

os resultados de todos os esforços que levaram ao momento como o atual.”

De volta aos números, das setenta e nove montagens que percorreram os

finais de semana de 1974, Ana Maria Machado recomendou apenas nove, revelando

o alto grau de indigência das opções oferecidas. Desses nove espetáculos, três

vinham da temporada anterior, correspondente ao ano de 1973. Portanto, apenas

seis montagens ganharam destaque em 1974. Dessas seis, duas eram de Maria Clara

Machado, que, após uma montagem de O Embarque de Noé, buscou na quarta e

arrojada montagem de Pluft, O Fantasminha uma cartada decisiva em um momento

de incipiente competição.

Maria Clara Machado viveu durante os anos 1970 um verdadeiro boom

mercadológico com a maciça publicação e edição – até em outros idiomas – de suas

peças, passando até por instâncias federais, com a distribuição das mesmas

publicações em todas as escolas e bibliotecas do país. Por outro lado, a principal

figura do teatro infantil naquele momento estava num período em que sua

dramaturgia, sempre patamares acima do restante da produção, também se

encontrava estagnada.

Nos anos 1950 e 1960, Maria Clara deu à luz a grande maioria do seu

repertório, digamos, “clássico”, como Pluft, O Fantasminha, Maroquinhas Fru-fru e

tantas outras peças. Ela adentrou a década de 1970 com a peçaTribobó City, escrita

em 1971 e só encenada em 1976, ainda buscando referenciais estranhos à nossa

cultura – no caso, a peça se passa no universo do faroeste. Maria Clara certamente

não soube se deixar contaminar por essa “nova sensibilidade” trazida pela

Contracultura no final da década anterior e que passou a transformar o panorama

não só teatral, mas de todos os segmentos da produção cultural e artística

acontecidos no país a partir da década de 1970. Motivos não faltam para o

estoicismo estético de Maria Clara. Diferentemente dos desgarrados de outros

tempos, que saíram d’O Tablado visando à profissionalização, como foram os casos

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do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) carioca, que “exportava” suas montagens

paulistas com elencos cariocas, e do significativo grupo que fundou o Teatro da

Praça16 em 1955. Cláudia de Arruda Campos afirma que

Essas gerações dos anos 60-70 já não são impelidas apenas, nem primordialmente, pelo desejo de profissionalização, mas por aspiração a rumos experimentais que não encontravam possibilidade de desenvolvimento no palco da Lagoa. Um Patronato não é exatamente um local para o desbunde. Uma casa conhecida pelo seu teatro infantil não é lugar para o amargo desencanto que marca o teatro jovem dos anos 70. (1998:39)

O tempo mostrará que Maria Clara Machado, apesar do seu talento como

dramaturga, vai cada vez mais se afastar das questões mais urgentes do segmento

infantil teatral e do Teatro em geral. Arruda Campos conclui que, sem ousadias e

concessões, Maria Clara e O Tablado seguiram durante décadas “desdobrando as

peças do jogo inventado na década de 50, procurando, apesar das medidas que

toma para enfrentar os novos tempos, manter algo da feição ‘anos dourados’ com

que nasceu” (1998:44). Nas décadas seguintes, O Tablado transformou-se em um

espaço de trânsito, incumbindo-se apenas em contar o número de artistas que

rumaram para a televisão. No entanto, o pioneirismo de Maria Clara Machado é

irrefutável.

Uma prova cabal de que aquele momento favorecia o Teatro infantil era o fato

de que as atenções para o segmento não se restringiam somente a quem fazia dele

seu maior foco de atenção. Yan Michalski, crítico de Teatro adulto do Jornal do Brasil

em 1974, muitas vezes utilizava seu espaço em prol de uma melhoria das condições

para os espetáculos infantis. Em 13 de janeiro, Michalski clamava por mais verbas

para o Teatro infantil através da Comissão Especial de Teatro, do Conselho Estadual

de Cultura, órgãos fomentadores das Artes Cênicas na época, que não tinham ainda

nenhuma política voltada para o público mirim.

16 O Teatro da Praça, companhia criada por ex-alunos de O Tablado surgida por volta de 1955 e que permaneceu viva até um pouco depois de 1960. Contava com um elenco estável em que se destacavam os nomes de Kalma Murtinho, Adriano Reys, Roberto de Cleto e Maria Sampaio e tinha como sede o atual Teatro Gláucio Gill, então chamado de Teatro da Praça, no bairro carioca de Copacabana.

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Michalski reclamava ainda da falta de visão de muitos empresários que

cobravam das produções infantis uma quantia oito vezes maior pelo aluguel de seus

teatros, em relação ao que cobravam das produções adultas. E apesar desse

disparate, os espetáculos infantis não podiam usar os refletores das casas, todos

destinados às peças apresentadas no horário noturno; tampouco tinham direito a

uma plena utilização do palco, pois também os cenários dos espetáculos adultos

eram intocáveis. Nessa estrutura marginal, muitas vezes a própria classe acabou por

endossar tal amadorismo de termos, reafirmando seu caráter pouco profissional. Não

somente dessa vez, mas também em outros momentos marcantes daquele ano,

Michalski se fará presente atentando para a melhoria da qualidade da programação

teatral, independentemente de a que fatia do público se destinasse.

1.3. Um vento forte sobre o Rio

Assim, naquele panorama de pouca invenção, a estréia de História de Lenços e

Ventos pode se caracterizar como um divisor de águas no Teatro infantil feito no Rio

de Janeiro e também no país. Tendo estreado em um espaço novo, a Sala

Corpo/Som do Museu de Arte Moderna, o MAM, no Rio de Janeiro, RJ, esse

espetáculo marca também a formação do grupo Teatro Ventoforte, que se

estabelece como principal eixo da carreira artística de Ilo Krugli no Brasil até os dias

de hoje.

Estreado em fins de maio de 1974, História de Lenços e Ventos torna-se

imediatamente o espetáculo mais falado do ano, transcendendo os limites que

separam o teatro adulto do infantil. Toda a classe teatral é despertada pelo fato de

que um grupo novo, eminentemente voltado para o público infantil, era a maior

novidade do ano no setor. Ana Maria Machado17 define o espetáculo como “um ato

de fé no teatro e na criança”, entre outras tantas declarações. Clóvis Levi18, crítico de

Teatro infantil no jornal O Globo na época, destaca a capacidade de História de

Lenços e Ventos “se aproximar tão violentamente da sensibilidade infantil”. O evento

17 MACHADO, Ana Maria. Um espetáculo fora se série. Jornal do Brasil, 25/05/1974. 18 LEVI, Clovis. História de lenços e ventos: uma experiência estética. O Globo, 21/02/1975.

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provoca tantas repercussões que acaba por levar também Yan Michalski19 a escrever

uma crítica na qual ressalta de sobremaneira a extrema vitalidade presente em cena,

afirmando que a encenação de Ilo Krugli era o melhor espetáculo em cartaz no Rio

de Janeiro em 1974: “o melhor, no sentido de ser o mais criativo e poético, e de

realizar com a maior coerência e inspiração a proposta teórica da sua concepção”.

Anos depois, em seu livro O Teatro sob Pressão, uma rápida análise do Teatro

brasileiro nos anos vividos sob a ditadura militar, Michalski não vai deixar de lembrar

de História de Lenços e Ventos como um dos maiores destaques vistos no ano de

1974, classificando o texto e encenação de “uma pequena obra-prima”.

Outros fatores irão acabar levando História de Lenços e Ventos para o centro

da discussão do fazer teatral no Rio de Janeiro naquele ano, e é novamente

Michalski quem anuncia um fato inédito até então. No início de ano, a ACCT,

Associação de Críticos Cariocas de Teatro, instituiu uma Recomendação Especial aos

espetáculos que tinham um grau de excelência em todos os âmbitos da produção.

Assim, Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri, com direção de Fernando

Peixoto, uma produção do ano anterior e ainda em cartaz, foi a primeira

contemplada com tal menção. Logo a seguir, Michalski20 anunciava em sua coluna

que a ACCT concedia ao espetáculo de Ilo Krugli a Recomendação em caráter

extraordinário:

A concessão da distinção a um espetáculo infantil tem um sentido especial, pois comprova que a ACCT atribui a este setor da atividade teatral, geralmente amesquinhado pela leviandade artística com que costuma ser explorado. Quando aparece uma realização como História e Lenços e Ventos , inteligente, poética, inovadora e competentemente realizada em todos os seus aspectos, ela merece ser estimulada com a mesma intensidade com a qual são encorajados os melhores espetáculos adultos.

Esse fato veio a coroar o espetáculo de Ilo Krugli, que, àquela altura, realizava

já duas sessões diárias e, nas noites de sexta-feira, também sessões para adultos.

Novamente, Ana Maria Machado é quem sinaliza o efeito que essa recomendação

acabaria por gerar no âmbito do Teatro infantil carioca. Mais que isso, acenava ainda

19 MICHALSKI, Yan. O lenço Azulzinha e o personagem Papel. Jornal do Brasil. 07/06/1974. 20 MICHALSKI, Yan. “Lenços e Ventos” ganha recomendação. Jornal do Brasil, 13/06/1974.

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que o que estava em processo era a continuidade de um projeto artístico instaurado

por Maria Clara ao declarar que “sem dúvida que alguma coisa muito nova e

importante está acontecendo: o Tablado não é mais um batalhador solitário em sua

luta por um verdadeiro Teatro para as crianças.”

Em breve, a montagem se tornaria um dos espetáculos mais premiados

daquela temporada, reunindo os mais importantes prêmios dados à classe teatral na

época. Sua trajetória marcou definitivamente a carreira de Ilo Krugli e de seu grupo

Teatro Ventoforte, que o retomará em outras quatro remontagens destinadas a

percorrer o país durante muitos anos e a representar o Brasil em diversos festivais

internacionais.

1.4. Sobre a história

História de Lenços e Ventos fala especificamente sobre a trajetória de

Azulzinha, um pequeno lenço que se deixa levar pelo vento, e de sua prisão pelo Rei

Metal Mau. Há também o personagem Papel, um personagem heróico, que vai ao

encalço de Azulzinha para salvá-la. Como já se disse, esse pequeno argumento

nasceu basicamente da passagem conturbada de Krugli por aquele instante

dramático da política chilena. No Brasil, Krugli não encontraria um clima muito

diferente, mas, ainda assim, fez de seu espetáculo, essa história de desencontro, um

libelo contra o autoritarismo vigente e que, aproveitando-se da situação “marginal”

em que se encontrava o Teatro para crianças e, ao mesmo tempo, de seu momento

de berlinda para transcender os limites da história e tocar também os pais,

acompanhantes das crianças, que viram ali outras camadas para a mesma história.

Como o próprio Krugli afirma, foi das entranhas da encenação que emergiram uma

crítica não exatamente mordaz e feroz que, na mesma época, tanto se tentou levar

aos palcos, mas um fino sarcasmo e poesia que sempre lhe foram peculiares:

Eu tinha sido preso no Chile, tinha visto a morte de perto no golpe militar. Escrevi Lenços e Ventos em pouquíssimos dias para levar para o festival de teatro infantil de Curitiba. Mas eu me lembro quando apresentamos a peça no MAM, ela já era muito irônica. A gente

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começava o espetáculo escrevendo sempre o nome de um desaparecido no jornal. A luta com o Rei Metal era feita com teatro de sombra, e dizíamos: o corpo a corpo com o poder é impossível.21

Em uma análise mais detalhada do texto, vê-se claramente que todas essas

questões políticas estão apresentadas de forma muito subliminar. Azulzinha quer

aprender a voar e se deixa levar pelo Vento da Madrugada que vem junto com a

noite. Aqui a questão da noite é explicitada de forma bastante simbólica: “Porque

nas histórias os perigos sempre acontecem à noite” (KRUGLI. 2000:20), como diz um

dos personagens da peça.

O fato de Azulzinha querer se libertar e procurar outras paragens num

caminho que a deixe livre para escolher onde quer ficar é, na verdade, uma

decorrência de um tema que Krugli já havia desenvolvido num espetáculo anterior

chamado História de Um Barquinho22. Naquele espetáculo, Pingo I, o barquinho, vai

atrás de Irupê, uma flor que ele encontra nas águas de um rio e que é levada pela

correnteza. Pingo I encontra vários personagens/obstáculos em sua trajetória. As

ondas que ele enfrentava se transformaram agora nos ventos pelos quais Azulzinha

se deixa levar sem medir as conseqüências. No entanto, a trajetória de Azulzinha é

bem mais complexa, com episódios que permitem um maior desenvolvimento da

personagem: seu desejo de liberdade absoluta acaba por levá-la à Cidade Medieval e

lá se percebe prisioneira do Rei Metal Mau. Nesse momento, a figura de Papel ganha

contornos de herói, sendo imolado numa fogueira e depois refeito pelos atores do

espetáculo para o enfrentamento final com o Rei. No fim, Azulzinha e Papel retornam

para o quintal de onde um dia saíram para conhecer o mundo.

As proximidades existentes entre Pingo I e Irupê, de História de Um

Barquinho, e Azulzinha e Papel, de História de Lenços e Ventos, são muitas. No

entanto, o desencontro entre as duplas é o motor do conflito maior dos textos. Essa

busca do restabelecimento da dupla e, por conseqüência, de uma ordem muito

21 Citação não localizada. 22 História de um Barquinho foi criado como exercício de expressão para as mãos em 1963. Só foi realizado como espetáculo em 1972, no Rio de Janeiro, onde recebeu prêmios de melhor espetáculo do ano, melhor direção e melhor trilha musical. Em 1973 é encenado no Chile, em Santiago. A partir de 1974, com a criação do Teatro Ventoforte, este espetáculo passa a integrar o repertório do grupo.

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específica e individual acaba por ser o principal eixo das histórias que Krugli vai

desenvolver no futuro. O tema do reencontro, portanto, torna-se um fator bastante

recorrente em sua dramaturgia e que será re-elaborado de diversas formas nos

espetáculos seguintes.

A dramaturgia de Krugli recorre em muitas vezes a uma certa narratividade

que vai construindo o espetáculo. Diferentemente da figura dos apresentadores e

dos narradores tão comuns no teatro infantil nos seus primórdios, o intérprete se

dividia entre a ação e a narração, dando contornos inovadores ao fluxo da cena. Em

História de Lenços e Ventos parte-se de uma estrutura muito simples de uma história

que vai sendo narrada e que aos poucos começa a ser elaborada no palco, como se

a história surgisse naquele instante. Tudo parece ser criado naquele momento, na

concretude da cena. Durante toda a encenação, há um trânsito entre o que está

sendo vivido na história e o que está acontecendo no palco em determinado

instante:

Azulzinha – Eu também podia aproveitar as correntezas. Lá vem uma. (Ela voa e cai num balde, fazendo um grande barulho: “tchibum”, que traz os atores de volta à cena. Retiram Azulzinha do balde, toda molhada.) Ator 1 – Agora vai ser difícil, a Azulzinha ficou toda molhada. Ator 2 – Bota ela para secar na corda e vamos esperar. Ator 3 – Não! Não vamos esperar não! Ator 4 – Agora podíamos fazer como se faz nos filmes: passamos para outro lugar, fazemos uma outra cena que ninguém sabe onde é, e entram personagens que ninguém sabe quem são, e de onde vem aquilo! É o que chamamos de suspense!

Esses pequenos procedimentos, muitos deles oriundos do Teatro épico e de

outras manifestações mais avançadas em termos dramatúrgicos, fazem com que

Krugli se afaste dos demais autores infantis, que se encontravam alienados das

proposições que o Teatro absorvera ao longo do século XX. Mais que isto, ele faz da

escrita um momento que acontece depois da experimentação em cena, acenando

para seus pares que se dedicavam ao teatro feito para crianças, no qual o jogo e a

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força das relações que ocorrem sobre o palco eram agora fatores fundamentais para

a construção de uma nova abordagem, inovando na comunicação que o teatro

deveria estabelecer com a criança.

Em um primeiro momento, percebe-se uma outra forma de utilização da

palavra, que, diferentemente da grande maioria da produção desse setor, privilegia,

em muitos momentos, uma proximidade com a poesia. Este aspecto é acentuado

durante as encenações, devido, sobretudo, a uma interpretação que ganha tons de

poesia declamada e, por conseqüência, a cena se distancia de quaisquer aspectos

realistas tradicionais. Porém, é nos conteúdos temáticos que se encontram as

grandes inovações trazidas por Krugli. Não há como não tecer paralelos com o

momento que o país, e mesmo o mundo, atravessava – um momento de restrições,

privações e limitações. O tom intensamente libertário de Histórias de Lenços e

Ventos traz para a cena do Teatro infantil uma discussão que até então se dava,

quando possível, no horário adulto dos teatros.

Na montagem seguinte de Krugli, Da Metade do Caminho ao País do Último

Círculo, a discussão se desdobra no trio de protagonistas, que enfrentam guerras,

são presos, sentem saudade da terra natal, trazem a questão da nacionalidade e da

fronteira e da delimitação de terras para aquela nova criança que vivia, ainda que

subliminarmente, em um mundo que acirrava suas polarizações sócio-políticas. E, por

fim, em Mistério das Nove Luas, as mesmas discussões da peça anterior são revistas

em um tom que se aproxima das tradições populares do Brasil.

Ao demarcar o final de sua análise em 1976, Pupo comprova esse momento

de renovação da linguagem teatral para crianças ao afirmar que

É, portanto, no final do período analisado que se evidenciam os esforços de afirmação de uma dramaturgia que, embora apresentada em horário convencionalmente reservado às crianças, se propõe a interessar a todo e qualquer público.

Ou seja, é somente na segunda metade da década de 1970 que surgem obras

que possibilitam mais de uma leitura e que, segundo a autora, “é uma das

prerrogativas inerentes à obra artística plenamente realizada”.

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2. UMA ANÁLISE ICONO-SEMIOLÓGICA DE HISTÓRIA DE LENÇOS E

VENTOS

“Toda grande imagem tem um fundo onírico insondável e

é sobre esse fundo onírico que o passado pessoal coloca cores

particulares”

Gaston Bachelard

Neste capítulo serão apresentadas e analisadas as imagens recolhidas durante a

pesquisa para verificação e comprovação da renovação cênica estabelecida por Ilo

Krugli no espetáculo História de Lenços e Ventos. Esta amostragem compõe-se de

duas fotos do acervo do CBTIJ (Centro Brasileiro da Infância e Juventude), oito fotos

cedidas pelo CEDOC/FUNARTE (Centro de Documentação da Fundação Nacional das

Artes) e seis fotos escaneadas do livro Grupos Teatrais - Anos 70, de autoria de

Sílvia Fernandes, editado pela UNICAMP. Das duas primeiras fontes, foram obtidas

imagens da primeira montagem do espetáculo, de 1974, que será o foco principal de

análise, uma vez que as fotos do livro de Fernandes são provavelmente de uma

remontagem feita pelo próprio Krugli em 1980, já com um elenco paulistano.

Como método de análise, será utilizado processo semelhante ao desenvolvido

pela pesquisa institucional Estudos do Espaço Teatral, coordenado pela professora

doutora Evelyn Furquim Werneck Lima23 e que, a partir de um amálgama das teorias

desenvolvidas por Tadeusz Kozwan24, Erwin Panofsky25 e Patrice Pavis26, gerou um

procedimento de análise intitulado icono-semiológico. Sua utilidade no

23 LIMA, Evelyn Furquim Werneck. Relatório Final. Elaboração de uma metodologia de análise da história da cena com base na iconologia e na semiologia – 3ª. Etapa do projeto Estudos do espaço teatral, 2007. 24 KOZWAN, Tadeusz. O signo no teatro. In: O signo teatral: a semiologia aplicada à arte dramática (org Luiz Arthur Nunes e allii). Porto Alegre, Globo, 1977. 25 PANOFSKY, Erwin. O significado das Artes Visuais, São Paulo, Editora Perspectiva, 1979. 26 PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos, São Paulo, Editora Perspectiva, 2005.

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desenvolvimento deste trabalho tornou-se imprescindível quando, a partir de

Georges Duby em Objets et méthodes de l’histoire culturelle, Lima acentua que, em

uma investigação no campo da história da cultura, não é aconselhável privilegiar

apenas os dados quantitativos, mas também utilizar variados tipos de fontes, pois

acredita que “o que é fluido e pouco transformável em estatísticas pode ser o mais

importante”. A partir desse conceito, aliado ao que Chartier chama de “espírito do

tempo”, características estéticas, filosóficas e psicológicas de uma época, a

montagem de História de lenços e ventos será analisada em cada um dos seus

elementos constitutivos da cena em uma relação dialógica com a época. O que

importa, na verdade, é como Krugli soube captar o zeitgeist daquele momento,

traduzi-lo não só poeticamente em cena, mas traduzi-lo para uma platéia virginal

àqueles novos padrões de encenação.

As fotografias reunidas aqui serão tomadas como signos, na concepção de F. De

Saussure, tão bem resumida por Malcolm Barnard27:

Para Saussure, o signo compõe-se de duas partes. Essas partes são denominadas de “significante” e de “significado”. Saussure preocupa-se coma linguagem, e para ele “significantes” são a parte física dos signos, são os sons, ou os formatos das palavras. O “significado” é o conceito mental a que se refere o significante. É o sentido do significante. Juntos, eles formam o signo.

Sendo assim, partir-se-á de meras descrições do que cada fotografia denota

como significantes para se chegar ao que elas conotam como significados. De acordo

com Barnard28:

Denotação é chamada, às vezes, de uma primeira ordem de significação ou sentido. É o sentido literal de uma palavra ou imagem, o que Fiske sugere como o “sentido óbvio, do senso comum” (Fiske 1990: 85-6). (...) A conotação é por vezes chamada de uma ordem secundária de significação ou sentido. Pode ser descrita como sendo as coisas que a palavra ou imagem fazem a pessoa pensar ou sentir, ou as associações que uma palavra ou imagem incitam em alguém.

27 BARNARD, Malcolm. Moda e comunicação. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2003. p. 122. 28 Idem. p. 125-128.

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2.1. Aspectos gerais da encenação

Figura 1: Aspecto geral da cena. (Fonte: CEDOC-Funarte)

O que primeiro será discutido é o que se percebe na Figura 1 e que

repetidamente foi encontrado nas críticas sobre o espetáculo, reflete uma única

palavra: simplicidade. Neste sentido, é interessante observar a crítica de Carlos

Ernesto de Godoy29, passados seis anos da estréia da peça, quando a montagem

chega à cidade de São Paulo. O crítico ressalta que “o difícil em arte é ser simples. E

que simplicidade é justamente o que faltava ao gênero”. Com isso, Godoy enfatiza o

que, na época da estréia, em 1974, Clovis Levi30 elogiava ao dizer que “a riqueza

maior de História de lenços e ventos está na sua capacidade de deslumbrar de modo

29 GODOY, Carlos Ernesto de. Um brinquedo. Revista Visão, número 22. 07/07/1980 30 LEVI, Clovis. Op. cit.

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simples”, opinião ecoada também por Michalski31, que, ao observar outro lado da

questão, destacou que a montagem “foi feita com meios de produção extremamente

modestos” e que “com inteligência, sensibilidade e muito pouco dinheiro pode-se

fazer teatro da melhor qualidade”. Portanto, ao voltarmos novamente para a Figura

1, temos uma amostragem de como o espaço cênico foi concebido de modo a situar

a história, que se passa em um quintal. Em um plano mais ao fundo do palco,

observam-se grandes panejamentos que tanto anunciam os varais de roupa do plano

mais à frente do público, como também podem ser vistos como um esfacelamento e

um rebatimento dos panos do varal que se espalham pelo céu; ou mesmo um céu

feito de panos; ou mesmo um esboço de céu. Em um plano mais à frente, já na área

destinada também aos atores, percebem-se mais varais de roupas, estes em escala

natural, feitos de cordas e bambus, exatamente como ainda pode ser observado em

casas afastadas das grandes cidades. Note-se bem que não há ali qualquer releitura

ou estilização desses varais, o que reforça a idéia de uma cena híbrida em que

estilização e não-estilização convivem em harmonia e que materiais artesanalmente

construídos dialogam em pé de igualdade com elementos industrializados, como se

verá adiante. A utilização de materiais baratos e mesmo encontrados na natureza

pode conotar um primeiro indício de uma recusa de uma cenografia feita nos moldes

tradicionais e que, portanto, o espaço de representação entendido como um quintal

serve exemplarmente para uma cena que é construída e desconstruída aos olhos do

público. Ora, o quintal, espaço da infância que é, possibilita o estabelecimento do

jogo e dos muitos jogos de cena que a peça propõe: os lenços transformados em

personagens, os varais que se tornam fronteiras de uma cidade, uma folha de jornal

velho transformada em herói.

Cabe ressaltar que essa não-conformidade não está estabelecida apenas no

campo da Cenografia, mas em todos os segmentos da cena, aproximando-se de um

espaço poético que se originou nas de experiências da vanguarda teatral que

eclodiram a partir dos anos 1960 e que ganhavam adeptos a cada dia. Por outro

lado, é claro que essa experimentação cênica não chegou aos limites extremos das

propostas espaciais mais radicais daqueles tempos. É evidente a demarcação entre

31 MICHALSKI, Yan. Op. cit.

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palco e platéia, ou seja, os limites entre atores e público estão claramente

estabelecidos em uma semi-arena e, embora haja uma busca de integração entre

palco e platéia, ela é perseguida e atingida em outros níveis do espetáculo.

Quanto à situação do intérprete em cena, um dado denotado nas figuras 1 e 2

é a presença de Krugli ao centro do espaço e em relação direta com a platéia,

reafirmando a ausência da quarta parede. Esta ausência conota uma interpretação

que também se biparte em “uma contação de história”, afirmando o caráter narrativo

e épico da peça e o aspecto dramático que tradicionalmente é familiar. Como última

observação à situação de Krugli nesta foto, é visível também o aspecto de líder que o

diretor representava para aquele grupo de atores, captado pelo foco bem delineado

da cena em que a maior parte do elenco presente observa-o com atenção.

O figurino e a composição gestual dos atores dessa cena serão analisados

adiante.

Figura 2: Aspecto geral da cena (Fonte: CEDOC/Funarte)

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Na figura 2, é possível observar outros elementos cenográficos que constituem

o espetáculo, sobretudo a resolução criada para a Caixa Estratosférica, signo de

grande importância na história de Krugli. Quando Azulzinha já está nos domínios do

Rei Metal Mau, este relata para ela a perfeição com que foi construído o castelo onde

vive, declarando que “Aqui ninguém entra, nem pássaros, nem ventos, nem papéis,

nem nuvens, nem nada só você”. Em seguida, ele manifesta sua vontade de casar-se

com Azulzinha. Para tal, decide realizar um torneio, uma vez que “nenhum cavaleiro

que se preze, ou rei, ou sei lá, pode ganhar sua dama sem lutas”. Assim convoca os

soldados para que tragam todos os lenços de todos os quintais para assistir ao

torneio. Só que isso encobre uma trama mais maquiavélica que pretende transformar

todos os lenços em bandeiras da Cidade Medieval. Nesse momento, a figura de um

guarda aparece em cena para convocar todos os lenços a entrar na Caixa

Estratosférica. Trata-se, como se vê nas fotos e em rubrica do texto, de uma caixa

de papelão que desce dos urdimentos do teatro, manipulada em cena pelos próprios

atores e que, depois de guardados todos os lenços, é suspensa novamente. Mais

uma vez, com elementos de grande simplicidade, o dispositivo é construído com uma

caixa velha de papelão, cordas (elemento existente nos varais, que aqui encontra

mais uma função em cena) e provavelmente roldanas. A conjunção desses

elementos novamente conota o caráter lúdico e de brincadeira de quintal que

perpassa toda a montagem. Porém, o signo mais interessante dessa imagem está

nas mãos de Sílvia Aderne, atriz à direita de Ilo Krugli. Ela segura um objeto de

confecção industrial, um balde de plástico, que convive com outros elementos

criados especificamente para esse espetáculo. Aqui se entende que o caráter lúdico

da encenação, que buscava contar uma história com o que houvesse à mão, não

implicava uma pureza estética absoluta. Acertadamente, a convivência entre o

industrializado e o artesanal se dava sem distinção. Vê-se também essa mesma

convivência no canto direito da foto, onde folhas de jornal são usadas como base

para que se pinte a representação simbólica de um sol, mais ao fundo, ou mesmo

estendidas no varal, como se observa mais à frente.

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Figura 3: O Papel e o Guarda-chuva (Fonte: CEDOC/Funarte)

O jornal pode ser considerado um capítulo à parte nessa encenação, tal a

gama de significações que está implícita na utilização desse material em cena. Mais

que isso, a presença do papel permite transbordamentos que transcendem à obra

em si. O próprio Ilo diz: “O jornal, nesta época, a gente lia, e a gente sabia que

estava censurado”32. Há uma série de ironias e velado sarcasmo no decorrer de toda

a encenação em relação a esse meio de comunicação, como a fala abaixo:

Ator 1: - Agora que os lenços estão dormindo, nós vamos ter que trabalhar, mas antes vamos ver no jornal qual é o tempo que vai fazer esta noite... É porque trabalhamos ao ar livre e pode chover, até granizo, ter ventanias, tempestades. É no jornal que se sabe de tudo. Bom... De quase tudo. 33

No entanto, a gênese da utilização do jornal em cena se dá através de uma

observação muito subjetiva e peculiar do seu cotidiano, em que o material

descartado pode conotar uma carga expressiva se aliado a forças alheias à sua

32 KRUGLI, Ilo. Entrevista ao autor. 33 KRUGLI, Ilo. Op.cit.

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constituição. Krugli revela que era no abandono das folhas de jornal ao vento que se

encontrava potencialmente o eixo principal do roteiro que estava criando:

E na praia, sendo que de manhã eu trabalhava, dava aula, então era à tarde, claro que (nos) finais de semana a gente ia ver-se cedo. Então, de manhã o pessoal traz os jornais, lê jornal e depois deixa e à tarde fica aí abandonado, já sem mais ninguém, às vezes estava amassado e eu vi esse jornal com vento, ele rolando na areia. E acho que surge nesse momento o papel, não é?

Esse enunciado revela mais de um autor e encenador que não se intimidava

em utilizar material aparentemente tão pobre e descartável. Essa inexistência de

escrúpulos de tal ordem força-nos a aproximar Krugli de um outro artista de um

outro momento da Modernidade. O alemão Kurt Schwitters (1887-1948) também

utilizava papéis descartados, investindo na liberdade de expressão, na liberdade

natural das crianças e na contestação do já estabelecido. Artista do primeiro

momento do Dadaísmo34, Schwitters usava em suas colagens bilhetes de ônibus

jogados fora, jornais velhos e restos de embalagens, com clara oposição à cultura

burguesa. Segundo Gombrich35, “era certamente desejo desses artistas tornar-se

como que crianças pequenas e fazer pouco caso da solenidade e pomposidade da

Arte com A maiúsculo”. Essa ação, a de tornar-se criança novamente, Krugli soube

resolver de forma acertada e, sobre o palco, recriou um espaço “mágico” da infância,

o quintal, para retornar a ela. Gaston Bachelard36, ao referir-se aos espaços solitários

da nossa infância, estabelece que esses espaços são indeléveis a nós e que,

portanto, são constitutivos do ser adulto e que a eles voltamos em sonhos noturnos,

e completa:

Esses redutos têm valor de concha. E, quando vamos ao fundo dos

labirintos do sono, quando tocamos as regiões do sono profundo,

conhecemos talvez repousos ante-humanos. O ante-humano atinge

34 Movimento artístico extremamente libertário e contestador que emergiu na Alemanha em 1916 e tem como figuras-chave Marcel Duchamp, Tristan Tzara, Hans Arp, Max Ernst e o próprio Kurt Schwitters. 35 GOMBRICH, E.H. A História da Arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1985. p. 476-7 36 BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 2003. p. 29

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aqui o imemorial. Mas, no próprio devaneio diurno, a lembrança das

solidões estreitas, simples, comprimidas, são para nós experiências do

espaço reconfortante, de um espaço que não deseja estender-se, mas

gostaria, sobretudo, de ser possuído mais uma vez.

Em G.C. Argan37, a questão da reutilização de materiais saídos da realidade

ganha implicações mais profundas. Ele vê, primeiramente, uma reavaliação profunda

na superfície do quadro, que se torna agora suporte para algo bem além da pintura.

A colagem (collage), segundo Argan, dava ao quadro um caráter que permitia agora

“uma construção cromática sobre o suporte da superfície”38. Nessa arriscada

aproximação entre o dadaísta alemão e Krugli, em seu modo de relatar a origem do

emprego do jornal em cena, vê-se claramente esta possível filiação artística nas

palavras de Argan ao concluir que:

As coisas recolhidas e combinadas por Schwitters, no quadro que vem

compondo, foram descartadas pela sociedade por não servirem mais,

por terem cumprido suas funções; nem assim deu-se ela ao trabalho

de destruí-las, pois, para a sociedade “de consumo”, a realidade se

divide entre o a-consumir e o consumido. Não há nada de lastimável

ou patético no gesto de recolhê-las, e não porque este venha a revelar

alguma sua beleza secreta e ignorada. Mas, por serem coisas “vividas”,

comporão no quadro, com outras coisas igualmente “vividas”, uma

relação que não é a consecutio lógica de uma função organizada, e sim

a trama intrincada e, no entanto, claramente legível da existência. Ou,

talvez, do inconsciente que, como motivação profunda, determina o

fluxo incoerente da vida cotidiana.39

37 ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. 38 Idem. p.305. 39 Idem. p. 360.

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Figura 4: The A Book, Kurt Schwitters (1942)

De volta a H.E. Gombrich40, é ele quem permite relacionar o artista alemão do

início do século XX ao diretor argentino radicado no Brasil nos anos 1960. O

historiador da arte afirma que “a atração da ‘antiarte’ foi irresistível para muitos

jovens estudantes de arte e, na década de 1960, os críticos começaram a falar a

respeito do ‘neodadaísmo’.” Coincidentemente, o mesmo momento marcou a

chegada de Krugli ao Brasil e o início das investigações que o libertaram da

empanada tradicional. “Contudo”, finaliza Gombrich, “não é o rótulo que importa,

evidentemente, mas a sutileza e o talento que podem participar nessas montagens

de objetos descartados”. Neste aspecto, portanto, é fácil entender que a carga de

signos existentes naquele material impediu-o de buscar utilizar-se de uma folha

40 GOMBRICH, E. H.. Op. Cit,. p. 477.

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branca, limpa e impoluta – e nada o impediria de fazê-lo. Havia ali – o que se

percebe mais claramente nas figuras 3 e 6 – uma necessidade de estabelecer um

“novo papel” para o jornal, em um diálogo claro com Schwitters, que estabeleceu um

novo paradigma nas Artes Plásticas ao investir na simplicidade de meios e no

aproveitamento criativo dos materiais descartados.

Na figura 5, além do personagem Papel, ainda pode-se ver um outro, o

Guarda-chuva, em mais um exemplo de convívio do industrializado com o artesanal.

Nesta cena, o Papel pede ajuda a um velho guarda-chuva para que o proteja de uma

tempestade. O que salta aos olhos nessa imagem é a manutenção física do

intérprete que está manipulando esses dois personagens, ora transformado em

objetos animáveis, ou até – por que não? – manipuláveis aos olhos da audiência. É

Krugli quem certamente dá vida aos dois personagens simultaneamente e, mais uma

vez, cabe ressaltar que esse tipo de manipulação de bonecos – digamos assim, por

ora – era algo avançadíssimo para os palcos brasileiros naquela época, uma vez que

ainda reinava a hegemonia do manipulador oculto da platéia. Portanto, essa

dessacralização do boneco, ou mesmo do objeto manipulado, é outro dado distintivo

dos avanços que Krugli propunha em sua encenação.

Figura 5: Krugli e o boneco (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70. Editora

da UNICAMP, Campinas, 2000.)

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O dado mais interessante relativo à figura 5 está, portanto, no fato de que os

únicos bonecos como tradicionalmente os conhecemos aparecem somente na

primeira cena do espetáculo. Explica-se: História de lenços e ventos não começa com

o mote da partida de Azulzinha. Na verdade, há um outro espetáculo, de bonecos,

que deveria ser apresentado. Já havia uma história pronta a ser contada. Porém,

Manuel e Manuela, protagonistas dessa história, depois de danças, perseguições e

gags típicas do tradicional Teatro de bonecos, decidem encerrar-se em uma mala,

que Krugli manuseia na foto, finalizando bruscamente o evento teatral. O motivo

dado pelos dois bonecos é o de que eles descobriram que há atores de verdade que

irão compartilhar o espetáculo com eles. Diante disso, a dupla, indignada, resolve

abortar a apresentação trancando-se na mala. Desse corte abrupto que se dá aos

primeiros minutos de História de lenços e ventos, nasce a necessidade de contar

uma nova história, que terá de ser feita “de improviso”, com o material encontrado

naquele quintal, o que estiver à mão. É da reunião desses elementos que será

montada e contada uma nova história.

Krugli deixa explícita sua desistência e abandono das formas mais tradicionais

do Teatro de bonecos em prol de novos elementos expressivos sem, contudo,

abandonar a linguagem do boneco. Sua busca se dá, mesmo até muito tempo antes,

com História de um barquinho, onde essa questão também acontece às claras. Mas,

digamos, essa despedida do boneco como tradicionalmente o conhecemos é

mostrada em História de lenços e ventos como um marco de um novo momento do

trabalho de Krugli como encenador e autor. É preciso reinventar o boneco, ampliar

suas possibilidades, para dar conta de um novo repertório em que novas questões

possam ser discutidas e toda uma nova gama de significados possa ser alcançada.

Mas voltemos à cena do Papel e do Guarda-chuva. Nela, Krugli também

investe em uma fragmentação do que comumente era entendido como boneco, uma

vez que este deveria possuir características antropomórficas. O personagem Papel

constitui-se unicamente de uma folha de jornal que, depois de algumas dobras, para

criar uma volumetria próxima à de um rosto humano, ganha apenas olhos e boca

simbólicos, pintados durante a encenação. Enquanto isso, o Guarda-chuva já nasce

dentro de um conceito que no Teatro de animação tem o nome de Teatro de

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objetos, uma vertente ou mesmo técnica surgida durante os anos 1970 na Europa,

definida pelo deslocamento de função de um objeto de uso doméstico ou familiar

que assume um novo papel e “passa para o mundo das formas, dos signos e dos

símbolos” 41. Ou seja, o objeto abandona sua função primeira e torna-se sujeito de

uma ação, adquirindo alma e personalidade próprias. É o que se pode observar na

recente montagem de O Avarento, de Moliére, pela companhia espanhola Tàbola

Rassa, em que os personagens são representados por diferentes tipos de torneiras.

As torneiras, que possuem uma grande diversidade de modelos, são adequadas cada

uma a um personagem do autor francês. Obviamente, o tesouro do protagonista,

que no original eram moedas de ouro, passa também por um deslocamento

semiótico, tornando-se, neste caso, água. Como se vê, o Teatro de objetos se

estabelece como um jogo intelectual que pede entrega e generosidade da platéia;

mais até: provoca um exercício mental na audiência, que reprocessa todo o seu

referencial cultural acumulado.

De volta a Krugli, na cena acima descrita, o Guarda-chuva adquire novas

conotações, sem, no entanto, deixar de ser um guarda-chuva. Ele ganha novas

camadas de significação quando colocado em cena. Infelizmente, não foi encontrado

nenhum registro fotográfico que desse conta do personagem Azulzinha, que tratava-

se apenas de um lenço azul também manipulado às vistas do público. Para

aprofundar mais ainda a questão, é interessante ressaltar as palavras do diretor

italiano Sergio Diotti quando diz que:

O autor-intérprete intervém sobre o palco num universo de objetos que têm invadido o território da existência. Mas esta contaminação, apocalíptica em certos aspectos, impõe também a presença arquetípica do objeto na esfera do comportamento humano. Uma forma inanimada, fabricada industrialmente, inutilizada depois de haver pertencido ao mundo, segue provocando numerosos impulsos afetivos, mecanismos simbólicos e criativos.42

41 AMARAL, Ana Maria. Teatro de Formas Animadas. São Paulo, EDUSP, 1993. p. 213 42 DIOTTI. Sergio. Absolutamente moderno. In Puck, no. 5. Bilbao: Concha de la Casa, 1992 apud BELTRAME, Valmor. Reflexões sobre a dramaturgia no teatro de animação para crianças. In O Teatro dito infantil. Org. Maria Helena Kühner. Editora Cultura em Movimento, Blumenau, 2003.

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Figura 6: Papel e Guarda-chuva (Fonte: CEDOC/Funarte)

Em outra imagem desta mesma cena (Figura 6), podemos observar de outro

ângulo o aspecto verdadeiramente rudimentar da encenação. Aqui vê-se claramente

que a montagem também poderia se dar em espaços não-convencionais, como é o

caso dessa sala. É visível a ausência de qualquer equipamento de iluminação,

revelada pelo teto comum de qualquer espaço fora do prédio teatral. Essa

simplicidade de meios, porém, passa ao largo do que se poderia conotar como

pobreza estética. A cenografia comumente criada para espetáculos para crianças

durante os anos 1970 ainda se dava no campo do figurativismo, salvas raríssimas

exceções. Esse espaço da memória de um quintal propõe resoluções e mobilidade de

montagem que tornaram História de lenços e ventos um espetáculo que também

poderia se dar fora do teatro, devido, sobretudo, a essa maleabilidade de seus

elementos cenográficos. Esse fato, crucial dentro de uma perspectiva que se propõe

a entender Krugli como o iniciador de novas relações que ocorrem com a criança no

âmbito teatral, provavelmente foi decisivo para o êxito da montagem. Foi Krugli

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quem percebeu que a criança poderia estar presente em inúmeros projetos culturais

que não dispunham de um teatro propriamente dito. História de lenços e ventos se

amoldava aos espaços, porque se estabelecia através de um jogo que se dava

através das aparências, sem diminuir a inteligência do público primeiro ao qual se

destinava.

As próximas três fotografias serão analisadas conjuntamente, por mostrarem

uma mesma cena e revelarem o que Yan Michalski definiu como “caleidoscópio das

imagens concretas e abstratas que ocupam nosso campo visual num constante

vaivém”43. Para chegar à Cidade Medieval, Papel, agora dotado das vestes de um

cavaleiro típico das histórias de aventuras, adornado em cena pelos próprios atores,

sugere que a única forma de alcançar rapidamente seu destino é ir voando. Assim,

um ator propõe “fazer” Vento da Madrugada, o que, conseqüentemente, faz virar a

Caixa Estratosférica e derruba todos os lenços que estavam presos. Em liberdade, os

atores festejam o feito e os lenços são jogados para cima, criando um ritual de

libertação. Ora, ao analisarmos a cena congelada pelo registro fotográfico, tem-se a

impressão real de que o suposto “caleidoscópio” verdadeiramente se materializou em

cena, pois, observando os lenços fixos no ar com sua imensa gama de cores, um

caráter onírico se estabelece nesse momento do espetáculo, que, sobretudo, valoriza

o caráter efêmero do fenômeno teatral. A composição imagética de cena se dá por

uma questão de segundos, e a presença do ator como compositor visual da cena é

de grande responsabilidade, por caber a ele a montagem da mesma, intimamente

implicada na força, no ritmo, no preenchimento adequado do espaço, no equilíbrio e

na harmonia estabelecida entre os outros atores da montagem. Cabe aqui criar um

paralelo entre o estabelecimento fugaz da celebração da liberdade e o artifício

também fugaz com que ela pode se fixar em cena. A celebração, apesar de festiva e

alegre, é frágil, pois não consegue se estabelecer em cena de um modo, por assim

dizer, mais estático e “definitivo”. Ou seja, a conotação de liberdade não se dá por

nenhuma alteração física da cena, e sim por uma marcação realizada pelos atores.

No entanto, pode-se entender perfeitamente que liberdade é essa que está em jogo

no momento seguinte, quando, dos lenços jogados ao léu, surge a figura de um

43 MICHALSKI, Yan. Art. cit.

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Dragão, denotando os tradicionais dragões japoneses usados em celebrações de final

de ano no extremo Oriente.

Em um dos momentos mais marcantes e criativos do espetáculo – do qual,

infelizmente, não foi localizado nenhum registro fotográfico –, a figura do Dragão se

estabelece novamente através do jogo dos atores e lenços para combater o Rei

Metal Mau. A idéia de que o coletivo é capaz de se impor e se sobrepor à figura de

um rei de más intenções pôde ser subliminarmente entendida por grande parte da

platéia, graças ao deslocamento das individualidades dos atores em cena para um

outro corpo, maior e de maior força.

Figura 7: A libertação dos lenços (Fonte: CEDOC/FUNARTE)

A figura 7 denota ainda outra peculiaridade de extrema importância nesse

momento do espetáculo: um ator de violão em punho, localizado na extrema

esquerda e na parte inferior da foto. Trata-se de Beto Coimbra, um dos fundadores

do Ventoforte e autor de grande parte das canções que permeiam Histórias de

lenços e ventos, juntamente com Caique Botkay e o próprio Krugli. A presença em

cena desse ator-músico se dá de forma bastante heterodoxa para os padrões do

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Teatro infantil e até mesmo do Teatro adulto, uma vez que ele está inserido na

trama da história, não em algum canto do cenário que fosse dedicado aos músicos,

prática até hoje não totalmente resolvida nos nossos palcos. Assim, mais uma vez

podemos observar que tipo de ator Krugli priorizava em suas montagens, sempre

repletas de música e canções. É necessário cantar e tocar instrumentos e, mais

ainda, entender a importância da música executada ao vivo pelos próprios

intérpretes, por haver um componente de forte ritualização da cena, dado bastante

comum na obra de Krugli. Ao ser indagado sobre essa questão, Krugli irmana-se com

a tradição do Teatro popular para justificar essa proximidade do músico à sua cena:

Você está fazendo a alegoria da nossa santidade... Mas no concreto poderíamos dizer que não nos permitimos entrar com música gravada no espetáculo (alguma vez já aconteceu), o que é normal em muitos espetáculos e eu nem discuto isso como algo ruim para o teatro, mas a gente tem a nossa história, em nossos espetáculos sempre há música ao vivo, o músico participando do espetáculo quase com a mesma força que o ator desde o início com o Beto Coimbra e o Caíque Botkay. Dessa forma é um elemento vivo, que vem do teatro religioso, do teatro artesanal, do teatro medieval, os saltimbancos, a commedia dell’arte, da própria natureza do teatro. Só agora, coitadinhos, que os músicos foram expulsos do teatro. Eles foram expulsos até dos espetáculos de dança. É tudo gravado, dá tristeza ver grandes grupos se apresentando e ser tudo gravado. Que história é essa? Quando tudo tem que ir junto, uma função de expressão, senão a música permanece no espaço em outro nível de sensibilidade, ela aconteceu três anos atrás em um estúdio de gravação e os bailarinos estão dançando neste momento em São Paulo. Isto pode parecer exagero, delírio de apreciação mas é real que a gravação foi feita em Nova York, Londres ou na Suiça e os bailarinos estão aqui com seu suor, seu peso físico, com uma disposição que tem a ver com o momento, não está acontecendo junto... 44

Essa elaboração estética e até mesmo ética do artista cênico faz Krugli afinar-

se com os principais reformadores do Teatro ocidental a partir dos anos 1960. Mas

aqui, particularmente, ele requalifica a figura do ator do Teatro infantil. Para o

diretor do Ventoforte, é necessária uma qualidade muito específica de intérprete, que

irá lidar com sensibilidades em formação, indo contra a corrente da pequena

multidão que exercia o Teatro infantil como tábua de salvação para o artista

44 Catálogo do evento Ventoforte, 10 anos de vida. INACEN/FUNARTE, Rio de Janeiro, 1984. p. 20.

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desempregado, algo que a própria Maria Clara Machado, um ano antes da estréia de

História de lenços e ventos, classifica em um debate organizado e registrado pelo

periódico Cadernos de Teatro como “um verdadeiro crime”45, ao observar um

verdadeiro desserviço que estava em prática no Rio de Janeiro, afetando não só a

classe artística, por permitir que artistas sem preparo técnico algum entrassem em

cena, mas sobretudo no que diz respeito ao contato dele com a criança, vítima de

uma conjunção irresponsável de diretores e produtores sem escrúpulos.

Figura 8: A libertação dos lenços (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70.

Editora da UNICAMP, Campinas, 2000.)

As fotografias 8 e 9 são de uma remontagem feita por Krugli em 1980 e, no

entanto, em nada destoam da primeira montagem, de 1974. Na figura 8, observa-se,

como já dito acima, o vigor do ator na construção da celebração pela liberdade dos

lenços. Não só o vigor, mas também a significativa alegria observada em seus rostos

dá a exata medida do caráter festivo desse momento. A alegria nasce do reencontro;

que nasce do rever alguém que havia muito não se via; alegria de estar junto 45 Teatro infantil em debate. In Cadernos de Teatro, número 59. O Tablado, Rio de Janeiro, 1973. p. 8.

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novamente. Por uma estranha e feliz coincidência, é possível observar com clareza

que nas fotos 8 e 9, fotos da remontagem de 1980, o elenco estampa uma alegria e

um sorriso que não são encontrados nas imagens 1, 2 e 14, da primeira encenação

de História de lenços e ventos, em 1974. Na primeira montagem, os rostos estão

duros e raramente é encontrado algum sorriso. Percebe-se nas figuras 1 e 2 uma

atenção e uma contenção da máscara do ator, das quais não há registro na

montagem de 1980, período posterior ao regime autoritário imposto no Brasil a partir

de 1964. Obviamente, a quantidade disponível de imagens do espetáculo é mínima

para confirmar tal dado; no entanto, trata-se de algo que não deixa de causar

estranheza, visto que na amostragem aqui estudada há imagens de uma mesma

cena feitas nas duas montagens, com diferenças bem marcantes em relação à

expressão facial do intérprete.

Figura 9: A libertação dos lenços (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70.

Editora da UNICAMP, Campinas, 2000.)

Outro ponto que serve também como leitura interpretativa destas imagens, que

implica em inúmeras camadas de significação, é a figura do Sol pintada em um

jornal, observado no canto direito das fotos 8 e 9. Nota-se que na foto 2, da

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montagem de 1974, o jornal aparece ainda não pintado. Obviamente, essa marcação

sempre existiu no espetáculo, mas, ao elevar as imagens retidas do espetáculo como

signos, é possível entender por que a captação do jornal com um sol pintado aparece

somente nos registros de 1980. Por fim, cabe ainda ressaltar nessas imagens de

1980 que as capacidades expressivas do material usado parecem ir até o ponto

máximo. O que era anseio em 1974 vira realidade em 1980: uma grande festa.

2.2. Se é de papel... - conotações em cena

Uma cena visualmente importante de História de lenços e ventos e que, por

sorte, teve registro fotográfico é o momento em que chove, quando o Papel se

molha. O estabelecimento da cena se dá a partir de uma narração feita por um dos

atores, que diz:

As nuvens estão cobrindo o céu. Foi ficando escuro, escuro até que começou a chover... O Papel foi ficando molhado, quase se desmanchando. Se continuar chovendo, o nosso herói não vai conseguir salvar Azulzinha. Se protege, Papel.46

Nesse momento, inicia-se uma canção e, segundo a rubrica, “uma atriz,

triste, faz ‘chover’ sem parar, com uma lata cheia de furos, como se fosse um

regador velho; a água cai numa bacia velha”.47 Porém, o dado mais significativo

dessa conjunção de elementos que se dá em cena fica por conta da canção que é

entoada nesse momento e que subliminarmente suscita novas camadas de

interpretação. Diz a canção:

Se é de papel Voa no céu Se é de metal Brilha na mão Se é de jornal Me faz chorar Não é por mal Me faz chorar

46 KRUGLI, Ilo. Op. cit. 2000. p. 35. 47 Idem, p.36.

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O que se vê nas fotografias 9 e 10 é exatamente o momento em que se dá a

canção. Percebe-se novamente que, por trás da figura central da foto (Krugli, o

jornal e a atriz), há duas outras atrizes que corporalmente sublinham a cena com a

utilização de grandes bandeiras que, provavelmente, buscavam simbolizar as nuvens

que trazem a chuva. É interessante perceber, principalmente na foto 9, a

expressividade corporal das atrizes que manipulam as bandeiras, ritualizando não só

o gesto, mas a própria cena.

Figuras 10 e 11: Se é de papel (Fonte: FERNANDES, Sílvia. Grupos Teatrais – Anos 70.

Editora da UNICAMP, Campinas, 2000.)

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Novamente, também é observada aqui a utilização de materiais

industrializados que, após interferências, ganham novos recursos expressivos. A

chuva nasce de uma caneca de metal, ou mesmo de uma leiteira, com o uso da água

propriamente dita, e não de algo que a represente. Sobre esse ponto do espetáculo,

em que o deixar-se levar pela história está em questão, e o jogo teatral e o aspecto

lúdico estão em evidência máxima, Clovis Levi indaga:

(...) o que seria mais criativamente teatral? Uma chuva obtida através de apuradas técnicas, ou a simplicidade e riqueza daquela chuva feita na cara de todos com uma lata furada? É nesta concepção cênica que o espetáculo se aproxima tão violentamente da sensibilidade infantil.48

Ao mesmo tempo, isso faz com que a cena ganhe um ar ritualístico ao

aproximar-se de imagens recorrentes da iconografia religiosa ocidental, que tem na

figura do batismo de Jesus uma situação bastante próxima à do posicionamento dos

atores na figura 11. Nesta tela de Murillo (Figura 12), observa-se que a posição de

Cristo é à esquerda do quadro, replicada por Krugli e Papel nas fotografias 10 e 11.

48 LEVI, Clovis. História de Lenços e Ventos: uma experiência estética. Jornal O Globo, Rio de Janeiro, 21 de fevereiro de 1975.

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Da mesma forma, a atriz que manipula a chuva coloca-se do centro para a direita da

cena e repete o posicionamento de João Batista, figura à direita. É possível até

aproximar as bandeiras manipuladas pelas atrizes ao fundo da cena com os seres

alados (anjos e Espírito Santo, representado pela pomba branca ao centro) que

povoam a parte superior do quadro.

Figura 12: El Bautismo de Cristo (1688), de Murillo. Catedral de Sevilla, Espanha.

Inúmeras leituras ainda podem ser descritas a partir de uma interpretação

subjetiva dos elementos que constituem essa cena. Friamente, pode-se ler a ação

como a de uma mulher que derrama água sobre um jornal, retirando as

características básicas da constituição do papel. À medida que o jornal absorve a

água, ele torna-se frágil e incapaz de manter suas propriedades originais.

Analogicamente, portanto, é possível estabelecer um paralelo entre a vida, ou

mesmo a integridade física do ser humano, e o material papel, frágil herói dessa

aventura e, conseqüentemente, entender que a vida pode ser frágil como um papel.

Mas, como se sabe que não se trata de um papel qualquer, e sim de uma folha de

jornal, a equação eleva-se para um outro tom ao nos confrontarmos com a massiva

perseguição política que tal veículo de comunicação sofreu a partir da instauração da

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Lei de Segurança Nacional, em 1967, que visava, sobretudo, “coibir o direito de

informar, o direito de criticar e o direito de discordar”.49 Esta leitura fica ainda mais

clara nos versos “se é de jornal / me faz chorar”, em que é possível cotejar tanto

com o cerceamento da imprensa quanto das próprias notícias que estariam escritas

e, principalmente, daquelas que, mesmo sendo notícias, não deveriam chegar ao

leitor.

Em uma outra conotação, pode-se lembrar que a água sempre trouxe consigo

um caráter de renovação e de purificação. Em Propp50, encontram-se dois caminhos

antagônicos no uso do elemento água nas histórias que ganharam os séculos. Fala-

se da “água da morte”, que deve ser aspergida sobre o morto para que ele possa

executar a passagem para o reino dos mortos, e da “água da vida”, que, dentre

outras qualidades, permite que ele retorne à vida. Associadas a essas duas

“qualidades” do elemento, estão a “água da força” e a “água da fraqueza”, que

podem ser ingeridas pelo herói antes da batalha. Em História de lenços e ventos, o

Papel não só enfrenta a água, como também é imolado em cena, mais tarde. Então,

podemos entender a utilização da água mais como um ritual de iniciação desse

personagem que sai pelo mundo atrás de Azulzinha. Portanto, a evocação com as

imagens do batismo de Jesus poderia servir como a interpretação de um herói que

inicia a sua jornada em busca de um ideal (aqui representado por Azulzinha). Um

outro elemento complementar com a cena do batismo, nas fotografias 10 e 11, é a

emblemática presença de uma bacia, colocada abaixo para reter a água e que, por

sua formatação, remete às pias batismais encontradas no interior das igrejas.

Interessante é perceber que outro deslocamento aconteceu a essa bacia, que

convive harmonicamente com a idéia de quintal de casa, varais de roupa, roupas

para lavar etc. Aqui ela tem sua função deslocada para um ambiente que agora é

sagrado e de contrição.

49 Brasil: nunca mais – Um relato para a história. Editora Vozes, Petrópolis, 1986. p. 144. 50 PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Martins Fontes, São Paulo, 2002.

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Figura 13: O gesto pré-expressivo de Krugli (Fonte: CEDOC/FUNARTE)

Em uma imagem (Figura 13) relativa a uma cena que acontece no início do

espetáculo – mas que também se relaciona com a água –, em que os atores

recolhem os objetos para contar a história, um dos intérpretes interpela com a frase

“E a água?”. Krugli mergulha as mãos em concha em uma bacia cheia de água,

eleva-as acima do corpo e diz: “A água está aqui”, deixando escorrer o líquido pelas

mãos. Na imagem que registra essa passagem, ainda é possível visualizar o quanto

há de expressividade no gesto e no olhar de Krugli e o quanto ela passa a acumular

de signos ao afastar-se da gestualidade cotidiana. Esse caráter pré-expressivo da

cena krugliana, reflete o que Eugenio Barba entende como “o nível que se ocupa

com o como tornar a energia do ator cenicamente viva, isto é, com ou como o ator

pode tornar-se uma presença que atrai imediatamente a atenção do espectador”51

51 BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Editora Hucitec/UNICAMP, São Paulo-Campinas, 1995. p. 188.

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A expressão que Klugi imprime a cada gesto, ou mesmo à grande maioria da

marcação gestual do espetáculo, confere um tom solene que diferencia essa

produção do grande quadro de montagens que passavam ao largo de qualquer

experimentação desse tipo. No entanto, esse caráter ritualístico da montagem não

foi um entrave na comunicação com o seu público principal. Pelo contrário, a

estranha mescla de espontânea brincadeira de faz-de-conta de quintal e o rigor

formalista de um diretor atento às transformações de linguagem que o Teatro vivia

naqueles tempos fazia de História de lenços e ventos um intrincado jogo referencial,

que sensibilizava não só as crianças, como também os adultos. Na fotografia 13, vê-

se que o nível pré-expressivo de Krugli, ajudado obviamente por uma correta

máscara facial, eleva o gesto cotidiano a uma região ancestral, arquetípica, capaz de

resgatar na audiência sensações há muito tempo inexploradas, graças a uma

excessiva exposição do corriqueiro e do gesto pequeno em cena infantil. Ao elevar as

mãos em concha acima do corpo e deixar cair a água, Krugli também replica ou

anuncia a cena da chuva, mas de uma forma ainda descontextualizada. O registro

não deixa de ser sugestivo ao congelar uma imagem que caracteriza aquele

momento e que está intimamente relacionado à trama do espetáculo, permeado de

manifestações climáticas: são ventos, chuva, noite, dia etc.

Figura 14: O gesto (Fonte: Acervo CBTIJ)

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Na Figura 14, verificam-se novamente dois procedimentos amplamente

usados. O primeiro diz respeito ao gesto solene, afastado do realismo, que se pode

observar na atriz que está em primeiro plano na foto. Seu porte e o manuseio do

lenço compõem uma figura com uma grandeza e imponência acima do que pode ser

caracterizado por um tipo comum na cena infantil. Não se trata, também, de um tipo

que possa parecer arrogante ou algo do gênero. Há verdadeiramente uma

construção corporal nela, que a aproxima do universo da dança, e isso acaba por

fazer todo o sentido ao se reconhecer que grande parte do elenco original de História

de lenços e ventos trazia contribuições pessoais ligadas ou à música, ou à dança, ou

à expressão corporal.

Em outro plano da análise, percebe-se novamente a formação de uma meia-

lua por onde os intérpretes se distribuem e se deslocam para o fundo, a fim de abrir

espaço para o personagem de maior evidência na cena em questão. Visto também

nas fotografias 1 e 2, esse procedimento tratava de gerar equilíbrio, foco e espaço

para a realização da cena. O que pode não parecer nenhuma novidade, em se

tratando de um elenco razoavelmente grande, pode, ao mesmo tempo, novamente

desvencilhar a cena de qualquer realismo e reiterar a idéia de que os atores no palco

se distribuem para contar uma história. Semelhantes a um coro lírico, eles se

estabelecem na periferia da cena, para que os intérpretes de maior importância a

executem com maiores possibilidades espaciais.

O manuseio de lenços, por vezes de tamanhos grandes, certamente deve ter

imposto uma distribuição da cena que permitisse o aproveitamento total da

expressividade desse material. Portanto, faz sentido uma distribuição que se arma e

desarma em meia-lua. Outro dado interessante nesta imagem é que é possível

observar como se dava a operação dos lenços como personagens da ação. Suspenso

por uma das mãos do ator, a figura se estabelecia pelo comprimento do tecido

utilizado no lenço; logo, deduz-se que o personagem ou a figura estaria

antropomorficamente de pé.

No entanto, sua expressividade e sua presença ativa na cena se davam pelo

agitar das mãos do intérprete, que imediatamente rompe com qualquer proximidade

com a figura humana. São lenços, não é preciso lembrar, mas dotados de

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sentimentos humanos, dos melhores sentimentos, diga-se da passagem. Se

observarmos a cena friamente, vê-se, portanto, um grupo de pessoas que agitam

lenços concomitantemente às suas falas. Esse gesto, o de acenar lenços, está

intimamente ligado à conotação de despedida, ao ato de despedir-se de alguém.

Assim, subliminarmente, outra imagem arquetípica percorre a montagem do início ao

fim – de uma sucessão infinita de despedidas entre os intérpretes. Não é preciso

recapitular a gênese da montagem, nascida da fuga inesperada de Krugli do Chile,

após a derrubada de Allende. Esse caráter de um eterno partir, de ir-se, de retirar-

se, amarra a história e dialoga com ela o tempo todo, uma vez que temos uma

personagem, Azulzinha, que deixa seus outros amigos lenços em um quintal e parte

carregada pelos ventos, na sua ânsia por voar. Atrás dela sai o Papel, que também

se despede. Talvez um dos grandes achados da montagem seja que, mesmo

permeada de belas a alegres canções, ela carrega uma velada tristeza, que tanto os

adultos como os mais jovens puderam entender para criar associações diversas. Com

o olhar distanciado de hoje, não há como negar que História de lenços e ventos é

fruto dos intensos acirramentos ideológicos nascidos a partir dos anos 1960.

2.3. A indumentária – moda e ideologia

Na figura 15, a seguir, vê-se claramente a proposta de figurino idealizado para

o espetáculo pelo diretor. Observa-se, à primeira vista, um verdadeiro

reprocessamento da roupa comum utilizada, que, por suas qualidades, possibilitam

uma maior liberdade de movimento. No entanto, cabe a pergunta: por que não usar

roupas feitas exclusivamente, manualmente, para o espetáculo? Por que não utilizar-

se de malhas de dança, uma vez que o movimento do intérprete era prioridade? A

resposta pode estar no mesmo diálogo que foi observado em relação aos adereços

do espetáculo, em que o industrializado criava vínculos novos com o material

produzido especialmente para o espetáculo, ou mesmo recriado em cena.

Basicamente, o figurino se compõe de uma camiseta – claramente escolhida ao

acaso – e uma calça larga com um corte um pouco abaixo dos joelhos, o que

provavelmente facilita as constantes trocas de nível espacial do espetáculo. A

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caracterização do intérprete ainda é complementada por uma pintura facial, que

cobre todo o rosto do ator com uma base branca e delineada por novos traços de

expressão, e cabelos soltos ou presos, de acordo com a época, e que

inevitavelmente remetem ao estilo hippie, bastante em voga naquele momento.

A principal característica do que pode se entender por moda hippie está em

uma mescla de tendências das roupas indianas – no tamanho, comprimento ou

corte, sendo a bata indiana um dos modelos mais copiados dos anos 1970 – e nas

montagens, também de influência oriental, que se compunham através de bordados

e costuras de diversos tecidos, verdadeiros patchworks; nas vestes ciganas,

sobretudo nos cortes das saias, nos coletes masculinos, nas barras das calças, que

recebiam apliques de tecidos de variadas cores e padrões; na chamada moda

camponesa, lançada por Laura Ashley (1925-1985), que reintroduziu os tecidos

estampados com flores, as blusas bufantes com bordados e fitinhas. É interessante

notar o caráter não-conformista dessas tendências. De um lado, temos o

orientalismo, que invadiu o mundo cultural ocidental naquela época também pela

culinária, pela medicina milenar, pela ioga e demais procedimentos que se tornaram

conhecidos como alternativos. Por outro lado, o modo de vida cigano influenciou

essa mesma geração pelo nomadismo característico, pela sua posição contrária à

propriedade privada, pelo modo festivo próprio dos ciganos, pela música e pelos

instrumentos musicais de pequeno porte e fáceis de carregar, como violões, violinos

e flautas.

Finalmente, o tom romântico da vida afastada dos grandes centros urbanos se

filia às outras duas tendências também como negação à ordem estabelecida. Não por

acaso, é nesse momento que também o crochê volta à moda com força total, seja

nos coletes, nas saias, toucas, blusas e até mesmo nos biquínis, reiterando o tom

hand made e o “faça você mesmo” daquela época, que propõe novas relações com o

material industrializado, adequando-o com bordados, miçangas, lantejoulas, patches

e debruns. Esse modo subversivo de relacionar-se com o material fornecido pelo

sistema liga-se ao que Michel de Certeau52 fala sobre os modos de fazer como

52 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano – Artes de fazer. Petrópolis, Editora Vozes, 1999.

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estratégias ou táticas de ação como o último reduto de produção que “se insinua

ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos

próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem

econômica dominante”.53 Essa transgressão é encontrada largamente em toda a obra

de Krugli, sobretudo quando associamos o que ele chama de manualidades às

inúmeras interferências e práticas empregadas na construção de seus espetáculos.

No entanto, especificamente a indumentária do espetáculo em questão chama a

atenção às aproximações com a moda e com tudo que ela traz a reboque, sobretudo

no enunciado de M. Barnard54, quando aborda a questão da moda e do bricolage a

partir das observações de Lévi-Strauss sobre o caráter de pós-modernidade existente

no ofício do bricoleur, que une e reitera mais uma vez – no caso de Krugli – a

questão do fragmento em cena:

O bricolage, portanto, se utiliza de “restos e sobras” de acontecimentos, “miudezas e quiquilharias”, “evidência fossilizada da história de um indivíduo ou de uma sociedade”, para suas construções. Suas construções presentes são sempre tiradas de coisas que já tinham sido usadas no passado: bricolage é a “contínua reconstrução extraída dos mesmos materiais”, materiais que já tinham sido usados no passado. Conseqüentemente, bricolage envolve a contínua recombinação de elementos. Esses elementos podem ser de número finito, mas são sempre “permutáveis, isto é, capazes de manterem-se em sucessivas relações com outras entidades”. Uma alteração nas relações em que qualquer elemento existe afetará todos os elementos da estrutura e modificará o significado de cada um deles.55

Nada muito diferente do que foi visto na aproximação de Krugli e Schwitters,

mas que aqui, em outro elemento constitutivo da cena, ganha novas implicações e

subtextos.

53 Idem, p.39. 54 BARNARD, Malcolm. Moda e Comunicação, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2003. p.247. 55 As citações entre parênteses pelo autor são do livro The Savage Mind, (1966) de Lévi-Strauss, editado em Londres pela Weidenfeld and Nicolson.

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Figura 15: Moda e comportamento em cena (Fonte: CEDOC/FUNARTE)

Na fotografia acima, vemos os atores como se apresentam no início do

espetáculo, pois ainda carregam consigo vários lenços presos à cintura, que logo são

retirados para dar prosseguimento à história de Papel e Azulzinha. Essa montagem

de lenços presos imprime uma silhueta próxima à das saias ciganas, tão comuns

naquela época; e a variedade de cores e padrões dos lenços realça ainda mais esta

aproximação. Outro dado característico da época e que também está refletido na

foto é o caráter unissex do figurino. Unissex é outra daquelas palavras lançadas pela

moda nos anos 1970, para indicar que determinado produto poderia ser usado tanto

pelo homem quanto pela mulher. Nascido ainda na década anterior e fruto dos

intensos movimentos em prol da igualdade de direitos entre homens e mulheres e

também de um realinhamento dos papéis sexuais e comportamentais, o termo

unissex, corruptela de unic sex, traz também à berlinda uma androginia até então

pouco explorada na cultura ocidental. Os grandes ícones daquele momento, como

Mick Jagger, vocalista da banda inglesa Rolling Stones, e o cantor David Bowie,

ajudaram a propagar um novo tipo de comportamento e sintagma visual, que

quebravam de vez com os padrões masculinos que até então se entendiam como

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únicos. Aqui no Brasil, concomitante ao aparecimento do Ventoforte, um outro grupo

vindo da música tratou de avançar e climatizar ao calor dos trópicos essa nova

proposta comportamental, os Secos & Molhados, cujos integrantes, liderados pelo

cantor Ney Matogrosso, apresentavam-se com trajes que misturavam todos os

elementos de figurinos citados até aqui, indistintamente. Porém, a grande marca da

banda eram os rostos pintados de branco com desenhos em torno dos olhos, em

negro. O impacto que o grupo causou no ambiente comportado e – por que não? –

reprimido da família brasileira da época não foi suficiente para mantê-los ainda por

muito tempo na mídia, encerrando suas atividades dois anos depois do seu boom.

Não por acaso, embora Krugli conteste (vide entrevista anexa), a utilização da

pintura facial se faz presente na caracterização dos intérpretes de História de lenços

e ventos e tem, segundo seu diretor, origem nas apresentações do mímico Marcel

Marceau (1923-2007) vistas ainda na Argentina, mas também nas pinturas corporais

de tribos indígenas do norte da Argentina e Bolívia. Ou mais ainda, na sua infância:

“Quando pequeno, nos pintávamos com terra”.56 Porém, Krugli também cita as

mesmas fontes de Ney Matogrosso57 quando se refere às pinturas chinesas corporais

da Ópera de Pequim. Segundo Ney, suas principais influências na criação das

pinturas estavam no Teatro Kabuki e na Ópera de Pequim. Ou seja, ainda que

reprocessado, digerido e transformado, não há como negar o orientalismo também

presente na cena krugliana.

A camiseta, também naquela época, passa por uma supervalorização, ao se

tornar uma veste unissex adaptando-se, no calor da hora, à customização reinante.

Levá-la à cena também era um ato de certa ousadia, pois se apresentava como um

material “pobre”, mais um elemento a dialogar também com a falsa pobreza de

materiais tão ricos de expressividade escondidos por toda a extensão do palco.

Vistos dessa maneira, pode parecer que aquele figurino ainda é uma roupa de

trabalho, ou mesmo uma roupa de ensaio à espera de um figurino final. Observa-se,

inclusive, que todos os atores estão de pés descalços, prática recorrente na dança, o

que aqui enfatiza o despojamento do intérprete que está focado, sobretudo na

56 KRUGLI, Ilo. Entrevista ao autor. 57 MATOGROSSO, Ney, Entrevista inédita ao autor, 2000.

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liberdade de movimentos. Também esta prática dialoga com o desbunde dos

tropicalistas, Gal Costa e Maria Bethânia principalmente, que se apresentavam em

seus shows geralmente descalças. Não por acaso, as práticas das religiões afro-

brasileiras influenciaram enormemente as carreiras dos primeiros tropicalistas, e

sabe-se que Krugli, fascinado pelas expressões míticas encontradas no panteão dos

orixás, também abraça a religião pouco depois de sua chegada ao Brasil.

Para finalizar, os cabelos apresentam um grupo bem significativo da moda

daquela época, em todas as mais variadas tendências. Na extrema direita, temos um

casal que se olha. Ela traz consigo um volumoso cabelo preso por duas tranças, que

liberam o rosto e prendem-se na parte de trás da cabeça, uma acentuada inspiração

romântica. Já ele apresenta um cabelo conhecido como black power, visual típico da

classe baixa negra norte-americana que ganhou visibilidade também naquele

momento, graças ao movimento político Panteras Negras e de sua figura de maior

destaque, Angela Davis, ativista política que sofreu inúmeras perseguições políticas

no início da década de 1970. Ao lado dele, vemos o ator Beto Coimbra com longo e

escorrido cabelo, tornando-se a figura de maior androginia em cena. Entre ele e

Krugli (ao centro), encontramos a atriz Sílvia Heller, que opta por um cabelo preso e

dividido ao meio. Ilo também se apresenta de cabelos soltos e com um corte maior

do que o padrão adotado na época. Na extrema esquerda, as atrizes Alice Reis e

Sílvia Aderne repetem os cabelos soltos, mas sempre com a preocupação de não

cobrir ou fechar o rosto.

Esse grupo de atores, essa massa corporal reunida na foto, também remete a

outras três manifestações que geraram e ditaram várias contribuições aqui

encontradas: os espetáculos musicais Hair, Godspell e Jesus Cristo Superstar. Hair

teve sua primeira montagem brasileira ainda em 1969, dois anos depois de sua

estréia mundial em Nova York, e fez tanto sucesso que sua carreira estendeu-se até

1972, com longas excursões pelo país. Na peça, um grupo de hippies levava à cena a

apologia da cultura do paz e amor em uma discussão que liga o uso de drogas com a

eminência da Guerra do Vietnã. Já Godspell e Jesus Cristo Superstar, ambas

estreadas em 1970, elevadas à tela no início da década e que reprocessam os

evangelhos do Novo Testamento em forma de musical, com inúmeros anacronismos

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e deslocamentos temporais recontam a vida de Cristo em um tom genuinamente

hippie. Não há como negar a força e a influência desses espetáculos, que se

tornaram icônicos no que diz respeito aos aspectos comportamentais – aqui incluídos

o vestuário – e musicais. O despojamento do figurino e sua variação de cores

traziam à cena, portanto, uma liberdade de expressão que libertou o Teatro infantil

das amarras da literalidade e da falta de poesia no que toca à criação de figurinos

para espetáculos desse segmento das Artes Cênicas, entendendo que mais que

retratar, evocar pode ser a chave para encontrar o elo com a criança em formação

naquele momento.

Figura 16: A interpretação dividida: Papel e máscara (Fonte: CEDOC/FUNARTE)

A partir da evocação operada acima, podemos observar também na Fotografia

14 como Krugli, ao pintar o rosto de branco e aplicar alguns contornos de outras

cores, aproxima-se do seu personagem Papel. Tal operação envolve sutileza,

compreendendo que seu papel, ou personagem, pode ser entendido como uma

redução ou mesmo uma simplificação do seu rosto.

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Essa ligação remete primeiramente ao que já foi explanado neste capítulo

sobre a fragmentação do que se entende por personagem teatral, que aqui se vê

bipartido, e também pode-se entender essa ruptura como mais um dos

procedimentos oriundos do Teatro épico que ganhou espaço na cena moderna a

partir de Bertolt Brecht. Como se sabe, o encenador e dramaturgo alemão organizou

e criou uma metodologia para um Teatro de pretensões épicas em que o ator não

estava necessariamente vinculado ao seu personagem, cabendo até criticá-lo em

cena. É sabido também que é tendência natural do Teatro de animação estabelecer

cisões como essas encontradas por Krugli, não, evidentemente, em História de

lenços e ventos, mas burilada ao longo dos anos e colocada em prática pela primeira

vez alguns anos antes, com História de um barquinho. Porém, na montagem inicial

do Teatro Ventoforte, o que se vê é um mergulho ainda mais radical na proposta de

desconstrução da cena em todos os segmentos do fenômeno teatral e, ainda assim,

aliado a elementos de poesia, humor e ironia ao comunicar-se com o seu público

abrindo mão de maniqueísmos, reduções e toda espécie de mecanismos que

tratassem a criança como um ser que necessitava apenas de entretenimento. O salto

qualitativo que o Teatro infantil viveu na década seguinte é a prova cabal de que era

possível ampliar o repertório de quem fazia Teatro infantil. Era possível transformar

um espaço dominado pelo paródico e pelo divertimento puro e simples em uma

manifestação que pode ser mais profunda, intensa e de grande valor na construção

da identidade humana.

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3. A POÉTICA KRUGLIANA – DRAMATURGIA E ENCENAÇÃO

Neste capítulo, as atenções estarão evidentemente voltadas para a estrutura

final do espetáculo História de lenços e ventos, nascido de um roteiro prévio depois

desenvolvido em improvisações durante o período de ensaios. Assim, a análise terá

seu foco no registro final do processo, quando de seu registro formal em papel.

Sobre esse ponto, ainda será travado um cotejamento sobre as duas versões

distintas do texto, a saber: uma versão datilografada e sem qualquer indicação de

data encontrada nos arquivos do Centro de Documentação da FUNARTE; e outra

editada em livro em 2000 pela Editora Didática e Científica, incluída na coleção

Vertentes Teatrais, organizada pelo jornalista e dramaturgo Carlos Augusto Nazareth.

Há diferenças nem tão sutis entre as duas versões. Em primeiro lugar, a

edição em livro traz apenas uma rápida menção introdutória sobre a cena dos

bonecos Manoel e Manuela, que se recusam a fazer a história e trancam-se na mala,

gerando então a história propriamente dita dos lenços e ventos. Sem as falas dos

dois bonecos, o leitor é conduzido de antemão à falsa idéia de que a peça começa

com os atores preparando a história principal, quando, na verdade, a inusitada

resolução metalingüística apresentada logo no início do espetáculo - uma verdadeira

discussão sobre a função e a forma que o “boneco” contemporâneo pode ter-, é

transformada sem qualquer razão aparente em uma simples didascália. Essa é a

mais grave incorreção da edição que, entretanto, apresenta “falas” não disponíveis

no texto datilografado e que certamente não chegaram ao público em 1974, como a

que se refere à censura imposta pela imprensa:

Ator – Agora que os lenços estão dormindo, nós vamos ter que trabalhar, mas antes vamos ver no jornal qual é o tempo que vai fazer esta noite... É porque trabalhamos ao ar livre e pode chover, até granizo, ter ventanias, tempestades. É no jornal que se sabe de tudo. Bom... De quase tudo.

No texto datilografado, a ironia final é substituída por outro tom que

subliminarmente elabora uma paráfrase do que é visto na fala acima:

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Ator – Agora que estão dormindo, nós vamos ter que trabalhar. Mas antes vamos ver no jornal qual o tempo que vai fazer esta noite? Porque como trabalhamos ao ar livre pode chover, granizar, ter tempestade. (com medo) Não posso nem acreditar, é melhor não dizer nada...

Afora uma ou outra troca de palavras, o final do enunciado, que se conclui ser

dado após um folhear qualquer no jornal, tanto explicita uma ameaça qualquer que

irá adentrar na história quanto o “nada a dizer” ou a ausência do que deve ser

notícia; ou mesmo a idéia de que, diante do que se lê nos jornais, é melhor

permanecer calado. Essa inversão de tom e de final de enunciado gera dois finais de

cena extremamente diferentes, mostrando, sobretudo, que a palavra, em Krugli, é a

principal geradora da ação, não o contrário.

Diante do “é melhor não dizer nada” dito pelo ator, as falas a seguir, extraídas

da versão de 1974, são propulsoras para as novas ações que serão executadas pelo

restante do elenco. Assim temos:

DIVIDIDO ENTRE OS ATORES - (COM MEDO) Não posso acreditar, é melhor não dizer nada... Eu não vou dizer nada. - Eu não vou dizer nada; vou tirar a poeira das escadas. - E eu vou enxugar a chuva das janelas. - E eu vou tampar as fechaduras para não entrar fumaça. - E eu vou cortar as sombras das vidraças. - E eu vou tirar a névoa dos telhados. (os lenços vão embora)

Diferentemente do texto datilografado, o livro editado traz a seguinte

seqüência da mesma cena:

(Ficam em volta de um jornal estendido numa corda.) Ator 2 – Aqui não diz nada sobre o tempo. Se aqui não falar nada, não vai ter graça. Ator 3 – É que o que vem agora é muito perigoso!

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Ator 4 – Então eu vou tirar a poeira das escadas. Ator 1 – Eu vou enxugar a chuva das janelas! Ator 2 – Eu vou cortar as sombras das vidraças. Ator 3 – E eu vou varrer a névoa dos telhados. Ator 4 – Eu vou tomar banho de sereno.

Obviamente, deve-se entender o texto teatral como algo orgânico e passível

de mudanças até seu registro final impresso. Porém, não deixa de ser curioso que o

que aparece como impedimento em 1974 (o “não dizer nada”) gera uma série de

ações propostas pelos próprios atores para que a história possa se desenvolver. Na

versão publicada do texto, há uma visível falta de conexão causal entre as falas, o

que, por outro lado, investe na qualidade poética dos enunciados.

É da própria natureza do texto teatral ser flexível, uma vez que a sua

finalidade é a expressão oral de um elenco de atores. Sobre o registro impresso de

peças teatrais, Chartier58 aponta que:

Tanto a produção do texto quanto a construção de seus significados dependem de momentos diferentes de sua transmissão: a redação ou o texto ditado pelo autor, a transcrição em cópias manuscritas, as decisões editoriais, a composição tipográfica, a correção, a impressão, a representação teatral, as leituras. É neste sentido que se podem entender as obras como produções coletivas e como o resultado de ‘negociações’ com o mundo social. Estas ‘negociações’ não são somente a apropriação e linguagens, de práticas ou de rituais. Elas remetem, em primeiro lugar, às transações, sempre instáveis e renovadas, entre a obra e a pluralidade de seus estados.

Assim, antes mesmo de propor um estudo sobre as condições disponíveis de

escrita sobre os dois registros da obra de Krugli, o interesse maior está na

construção encadeada (ou não) da palavra, especificamente em História de lenços e

ventos. Interessa-me, sobretudo, investigar que contribuições e atualizações de

linguagem esta peça de Ilo Krugli proporcionou para o Teatro brasileiro,

58 CHARTIER, Roger. Do palco à página – Publicar teatro e ler romances na época moderna – séculos XVI-XVIII. Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2002. p. 10-11.

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considerando em especial que foi escrita e encenada durante um período de

autoritarismo político, onde as “negociações” citadas por Chartier foram necessárias.

3.1. Mapeamento estético, conceitual e histórico

Historicamente, História de lenços e ventos pode ser enquadrada naquele

grupo de obras teatrais que, a partir dos anos 1970, inicia um processo de

pulverização do espaço e do tempo e de demais elementos constitutivos da cena.

Não é por acaso que a grande obra dramática do período, Rasga Coração, de

Oduvaldo Viana Filho (1936-1974), encenada pela primeira vez em 1979,

testemunho não só do autor, mas de uma geração inteira, já lança proposições

dramatúrgicas nesse sentido, distanciando-se do grosso da produção da época.

Segundo José Arrabal59, ao avaliar o projeto dramatúrgico do autor em

questão, ele se distingue de seus contemporâneos como

O único a considerar e reconhecer pouco a pouco cada vez mais – conforme nos indicam suas últimas entrevistas – a validade de certas experiências de vanguarda na busca por uma afirmação não naturalista da escritura cênica.

Dessa forma, Arrabal propõe um novo olhar sobre o que até então se entendia

com falência da dramaturgia e mesmo a morte do texto. Reavaliando os avanços

lançados na década anterior, os esfacelamentos espaço-temporais são vistos,

portanto, como um novo elemento de uma nova dramaturgia que nascia no final da

primeira metade da década de 1970. É a partir desse pequeno avanço formal que se

pode iniciar um mapeamento da atualização que a dramaturgia feita no país sofre

entre demarcações sócio-políticas, como o início de um período menos duro da

ditadura militar, e estéticas, como a consolidação do pós-modernismo, ainda naquela

década.

Krugli certamente encontra-se em uma posição solitária dentro do segmento

do Teatro infantil, ao entender e reprocessar para o seu público essas novas

59 ARRABAL, José. Anos 70: momentos decisivos da arrancada. In Anos 70 – Teatro. Europa Editora Gráfica e Editora, Rio de Janeiro, 1979-1980. p. 9.

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adequações, preocupando-se não exatamente com “o que narrar?”, mas passando

para outro nível de discussão dramatúrgica ao pensar em “como narrar?”. Essa

disposição conceitual faz com que Krugli não encontre, em um primeiro momento,

nenhum colaborador que também invista em uma reavaliação do que estava sendo

dito para a criança e como. Entre o mero entretenimento e a contemplação

reducionista da realidade que cerca o universo infantil, a proposta desse encenador o

coloca numa situação virginal na história recente do Teatro brasileiro.

Ainda cabe acrescentar também o dado da construção e registro desse texto,

nascido a partir de improvisações propostas pelo diretor, originadas da possibilidade

de contar uma história a partir dos objetos. Segundo Krugli:

(...) no primeiro dia eu mostrei para os atores com que material eu pensava trabalhar. Tinha alguns bonecos, tinha o Manuel e a Manuela, tinha alguns outros bonecos, e tinha alguns panos e tinha lenços, e tinha pedaços de papel de seda, e tinha folhas de jornal, e tinha pedaços de metal, e de alumínio. E aí comecei a trabalhar. Comecei o dia trabalhando, procurando um conteúdo para cada material. Os bonecos, bonecos. Os outros, um conteúdo. Descobrir qual era, vamos dizer, o que poderia ser expressado através deles...60

Como se vê, as condições de materialização do texto são dadas após o

levantamento das cenas e seus encaixes finais, como a inclusão das canções, por

exemplo. Esta observação se faz pertinente, pois afasta Krugli de qualquer

compromisso dedicado apenas ao texto, ou à sua autoralidade. O que houve na

montagem do espetáculo foi uma construção executada por muitas vozes, amarradas

por Krugli de acordo com as necessidades da história em questão.

As contribuições deixadas por Bertolt Brecht (1898-1956), um dos grandes

pilares da renovação teatral ocorrida no século passado, são bastante visíveis em

Krugli. Um dos maiores exemplos está justamente nas cisões espaço-temporais

sugeridas já por Büchner (1813-1837), ainda no auge da propagação do Romantismo

alemão pela Europa. Ainda que não totalmente compreendido em sua época, o

legado deixado por esse autor, sobretudo no que diz respeito à peça-rascunho

Woyzeck, deu aos expressionistas do fin-de-siécle o caminho para a renovação da

60KRUGLI, Ilo. Entrevista ao autor.

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cena teatral. Premidas também pela invenção do Cinema e pelas novas

possibilidades de encenação surgidas a partir do advento da luz elétrica, as Artes

Cênicas trilharam caminhos inusitados, que pouco a pouco as afastaram do

naturalismo vigente.

Se com os simbolistas a palavra ganha novas implicações, reaproximando a

cena da poesia – aqui entendida como uma maior elaboração formal dos enunciados

em detrimento de uma mera ação causal –, em Brecht se estabelece uma nova

teatralidade que só existe como realidade cênica, dissolvendo toda e qualquer

possibilidade de entendimento da cena com um recorte da vida. Este dramaturgo

passa a povoar sua cena com tabuletas explicativas, reavalia a importância do coro

em novas estruturas dramáticas, rediscute o ofício do ator ao redesenhar os

caminhos com que a personagem deve ou não dialogar com o seu intérprete e, por

fim, redimensiona a cena pulverizando-a de qualquer certeza espaço-temporal.61

Brecht é destacado por Krugli como uma de suas maiores influências. Mais que isso:

Brecht talvez tenha sido uma de suas primeiras experiências com o Teatro, visto que

Krugli se lembra de ter assistido, ainda criança, às representações de textos do autor

alemão encenadas por grupos de judeus russos que traziam para Buenos Aires os

ventos da nova renovação cênica européia. Assim, as constantes rupturas que são

encontradas ao longo de História de lenços e ventos podem estar ligadas ao

descompromisso do fluxo narrativo introduzido por Brecht.

Por outro lado, a ritualização da cena krugliana também retoma as práticas

nascidas da (re)descoberta de Antonin Artaud (1896-1948), nos anos 1960, por

grupos e diretores que, inspirados nos rompimentos sociais e comportamentais

daquela época, propõem um diálogo com Artaud no sentido de ressacralizar a cena

como um modo de retomar as afinidades dionisíacas da arte teatral, desaparecida

sob os escombros da ânsia civilizatória nascida no século XIX. 62

Foi desse caldo de influências que se formaram as condições favoráveis ao

florescimento do trabalho de Krugli.

61 BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 62 ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo.

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3. 2. Sobre a peça e sobre a cena

No que pode ser entendido como o prólogo da peça, os personagens Manoel e

Manuela apresentam uma série de peripécias próprias da manipulação de luva e

terminam por se recusarem a continuar o espetáculo. Diante desse fato, os atores

resolvem reunir os diversos elementos de cenário que encontram naquele quintal e

indagam à platéia: “Será que com estes jornais velhos se pode fazer teatro?” e “E

esta bacia com água – será que serve para fazer teatro?” ou mesmo “Já viu alguma

história com guarda-chuva velho?” Todas estas perguntas, mais do que um mero

início de espetáculo, denotam uma verdadeira carta de intenções que propõe um

novo olhar sobre o material descartado e mesmo “pobre” que é levado à cena para

ganhar nova funcionalidade. Esta talvez seja a grande questão de História de lenços

e ventos, ao inserir o lúdico no cotidiano, sem necessitar de um excessivo

investimento nos elementos constitutivos da cena.

O fenômeno teatral passa a acontecer com a naturalidade própria de um jogo

de crianças, através de regras, como as desses enunciados, que passam a adquirir

um caráter de estatuto da cena em andamento, querendo verdadeiramente testar

quais são os limites expressivos dos objetos. Até que ponto é possível adequá-los a

um novo universo, onde o deslocamento de função dá aos mesmos uma finalidade

diferente da sua original. O segundo momento dessa equação está em descobrir

como se dá a recepção e a aceitação do público. De que maneira essa mudança de

função faz com que seja aceita pela platéia?

Não bastasse o alto nível das músicas criadas especialmente para o

espetáculo, a canção entra na peça como um agente transformador, uma outra

qualidade de expressão artística que surge para imprimir uma passagem menos

abrupta entre um estágio e outro. Imediatamente após aquelas falas iniciais, o

elenco inicia uma grande composição cenográfica, em que os objetos são distribuídos

pelo espaço, já preparando visualmente a cena. Na seqüência, é encontrado, entre

tantos objetos deixados no quintal, um violão, que passa a ser utilizado justamente

para criar um outro nível dramático, permitindo a entrada dos objetos-personagens

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em cena. Esse recurso, portanto, se estabelece como um elemento de transformação

do estado inicial da cena.

Pode-se verificar também, ao longo do texto, que as canções estão localizadas

em lugares de câmbio e que necessitam de uma nova informação do que virá a

seguir. A canção Lá vem a noite obviamente preconiza o início da fase noturna do

espetáculo; Soldado Medieval introduz um novo personagem em cena; Vento da

Madrugada anuncia o desaparecimento de Azulzinha, e assim por diante. Portanto, a

canção – em um pareamento muito próximo à utilização das songs brechtianas –

entra na estrutura dramática como introdutora de um novo componente da história

ou para apresentar uma nova situação cênica. Segundo Jean Jacques Roubine63, a

canção “se faz ouvir para marcar as quebras, para designar o espetáculo como uma

manifestação teatral”. Tal mecanismo dramatúrgico interfere na cena de uma

maneira extremamente poética, pois liberta o intérprete do gestual cotidiano,

deslocando-o para um estado expressivo que induz o corpo do ator a agir de uma

nova forma de acordo com o andamento da canção.

Ainda segundo Roubine, sobre as proposições trazidas por Brecht, a música

tem a função de “romper a unidade da imagem cênica, despsicologizar o

personagem opondo-lhe uma contradição; enfim destruir todos os efeitos do real

eventualmente induzidos pelo espetáculo”.64 Além disso, também passa para o

espectador uma outra construção formal da palavra que propõe uma nova relação

com a obra e com a sua própria capacidade de elevar-se a outro estágio de

contemplação do espetáculo.

Uma das características mais visíveis em todo o texto é uma construção formal

em que o encadeamento das frases, sempre acumulativas, parte do cotidiano e

desagua no fantástico, como é possível observar no exemplo abaixo:

AZULZINHA – Ai, eu queria tanto voar! VERMELHINHA – E eu queria voar alto com as nuvens!

63 ROUBINE, Jean-Jacques. A Linguagem da Encenação Teatral 1880-1980. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982. p 140. 64 Idem, p. 141.

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AMARELINHA – E eu queria rodar com todos os redemoinhos! FLOREADO – E eu queria me agitar como uma grande floresta em tempestade! LISTRADO – E eu como uma tempestade numa grande floresta! TRANSPARENTE – E eu queria passar pelo céu como se fosse um

cometa!

Observe também este outro exemplo:

Ator 4 - E agora faremos um cavalo. Ator 1 - Não, um camelo. Ator 2 - Um besouro eletrônico. Ator 3 - Um tigre de oito patas. Ator 4 - Um leão voador. Ator 1 - Não, é melhor um dragão de cores. Um dragão de cores e amores.

Em todos os casos, há um claro afastamento da fala cotidiana, privilegiando

uma estrutura que possibilita vôos de linguagem incomuns até então no Teatro

infantil. Essas estruturas, espalhadas ao longo de toda a peça, indicam uma

preocupação de Krugli por uma nova construção verbal, em que o poético adentra a

cena também pela palavra, independentemente das explorações visuais e cênicas já

observadas no capítulo anterior. Havia, portanto, uma clara intenção de um

distanciamento do real, sem, contudo, abandonar definitivamente as estruturas dos

contos infantis. Na peça História de lenços e ventos são os objetos que assumem a

natureza de heróis, vilões e mocinhas e vê-se claramente uma estrutura bastante

convencional – o herói que parte para libertar a mocinha indefesa –, mas revirado

pelo avesso.

Somados a estas células poéticas, há ainda outros tipos de rupturas

encontradas ao longo do texto. A narratividade que se estabelece em contraponto

com o fluxo dramático da peça busca claramente retomar a atenção da platéia, seja

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para acrescentar um dado novo à história, seja para comentar ironicamente algo que

a história apresenta. No primeiro caso, temos:

Ator 1 - Mas agora é momento de fazer entrar na história um novo personagem. Ator 2 - Ele não é de seda. Ator 3 - Também não é de pano. Ator 4 - Nem de papelão. Ator 1 - Nem de papel celofane transparente. Ator 2 - Nem de corda. Ator 3 - Nem de metal brilhante. Ele é de jornal.

O que se vê acima é a apresentação do personagem Papel, por meio de uma

espécie de eliminação das possibilidades à disposição do elenco. O autor, por

eliminação, propõe qual material poderá constituir um novo componente da história

em questão – todos os outros materiais já estão comprometidos com algum

elemento anterior à entrada desse novo personagem.

No segundo caso de narratividade que permeia o texto, encontra-se, portanto:

Ator 1 – Mas vai ter tantos perigos nesta história. Para continuarmos contando vamos esperar a noite. Ator 2 - Porque nas histórias os perigos sempre acontecem de noite... (Escurece a cena)

Não há como negar o grau de intercontextualidade existente nesses dois

enunciados que sugerem subliminarmente a periculosidade daquele momento –

daquele momento da vida nacional, bem entendido.

Uma das maneiras mais interessantes de driblar a Censura surgida naquele

período foi encampada pelo diário carioca Jornal do Brasil, claramente em

contraposição ao regime, que apresentava sempre em seu cabeçalho, com poucas

palavras, as condições climáticas do dia. Em 14 de dezembro de 1968, dia seguinte à

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instauração do Ato Institucional nº. 5, fator que tornou ainda mais dura a repressão

ditatorial, esse periódico usou seu espaço destinado à previsão do tempo para

informar e comentar, de forma velada, as conseqüências do AI-5: “Tempo negro.

Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes

ventos.”65 Tal ousadia não foi notada de imediato pelos censores e entrou para a

História. Desta forma, não há como ignorar a sutileza existente no texto de Krugli,

talhado de frases que podem apresentar leituras diferentes por parte dos dois tipos

de público – pais e filhos – que a montagem congregava:

Ator 1 - O prognóstico para hoje e amanhã é de chuvas esparsas e ventos moderados de norte a sul. Ator 2 - Só vai ter ventos moderados. Ator 3 - Não gosto de histórias de ventos moderados... (Saem chateados até o fundo do quintal) Ator 4 – É, eles têm toda razão do mundo, ventos moderados não dá, a última vez que estive numa história de ventos moderados foi muito ruim, ou é vento pra valer ou melhor nada.

Vale também ressaltar, no último enunciado dessa citação, que o ator, ao

mencionar a última vez em que esteve “numa história de ventos moderados”, não

apenas agrega para si o fato de ele ser um agente criador de histórias, reafirmando

o seu papel ativo na criação da cena e da história, como também se pode entender

história como fragmento de vida, uma passagem vivida em sua existência. A

sobreposição de camadas aqui reunidas desloca Krugli das citações metafóricas ou

simbólicas e reitera o aparecimento da discussão da teatralidade na seara infantil em

um diálogo que se estabelece também com os pais das crianças, ampliando a força

do jogo, aberto agora de forma triangular.

Somados à inquietante fragilidade dos lenços, à mercê das alterações

climáticas e do dia e da noite, há ainda, no enredo da história, outros elementos que

reforçam a idéia de uma liberdade débil, a preencher a trama com fronteiras,

65 VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988. p. 288-289.

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delimitações, impedimentos, atualizando a questão da territorialidade do conto

infantil, agora visto sob a mira de guardas e chancelas. Esta questão, das

delimitações espaciais, é encontrada e bastante aprofundada nos espetáculos

seguintes de Krugli, sobretudo em Da metade do caminho ao país do último círculo.

Em primeiro lugar, a vigilância, bastante explorada pelo personagem Rei Metal Mau,

reproduz aspectos e práticas recorrentes do período ditatorial brasileiro, tendo a

Caixa Estratosférica como exemplo mais claro de um lugar isolado para onde eram

levados os indivíduos indesejáveis, local que deveria ficar oculto, longe da vista dos

outros; no caso, fora deste mundo, do nosso mundo, na estratosfera, onde são

aprisionados todos os lenços do quintal.

Afora isso, há ainda em História de lenços e ventos um dado de grande

repercussão no eixo do enredo e que qualquer espectador da montagem jamais

esqueceu: a imolação do personagem Papel. Para o crítico Yan Michalski66:

Um dos pontos altos do espetáculo é o momento em que um pedaço de papel, que todos fomos convencidos a aceitar como um personagem chamado Papel, é imolado numa fogueira. Todos nós sofremos na própria carne a morte desse pedacinho de papel magicamente transformado em personagem. Mas a maneira poética pela qual esta morte é cenicamente proposta faz com que o sofrimento não se transforme em desespero: o personagem Papel morreu queimado, mas antes disso já vimos que basta um novo pedacinho qualquer de papel para criar um novo personagem chamado Papel. Tão querido quanto o primeiro Papel.

Ainda que tenha resistido às primeiras intempéries, Papel sucumbe às ordens

do Rei Metal Mau, de que é necessário “limpar, ordenar, arrumar a Cidade Medieval.

Que tudo brilhe, que tudo seja duro, firme e espelhado. Que não fique em volta do

castelo nenhuma folha seca, nenhum papel velho.” E, em um golpe cênico de grande

força dramática, o Papel é queimado em cena aberta. Essa ação, polissêmica por sua

natureza, rompe, primeiramente, com a questão da própria história, do próprio

enredo da peça, que abdica de um protagonista – pelo menos a princípio – e induz o

público a realizar uma nova operação para entender quem então poderá seguir com

a história e salvar Azulzinha. Também é impossível deixar de pensar novamente nas

66 MICHALSKI, Yan. Art. cit.

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práticas cruéis exercidas por governos totalitários ao longo da história ocidental,

sobretudo os mecanismos de extinção daqueles que não se enquadram nas

prerrogativas estabelecidas pelo regime. Essa “limpeza” ordenada pelo antagonista

da peça remete-nos a muitos atos sangrentos que repetidamente assombraram o

mundo durante o século passado.

Por fim, Krugli ainda propõe na cena uma reiteração das capacidades

expressivas do material papel, que, em uma aproximação com o fogo, altera-se

definitivamente, o que dá a entender que o personagem perdeu a vida. Porém, como

Michalski aponta, um outro papel pode assumir seu lugar, sobretudo pela

interferência e interlocução do mesmo ator que atuava como Papel, trazendo o

personagem de volta à história, não magicamente, mas teatralmente.

Outro elemento a ser considerado é a figura do dragão, imagem recorrente no

universo dos contos de fadas. Ele surge em cena através de uma interferência feita

pelos atores, ao amarrar todos os lenços que foram libertados da Caixa

Estratosférica. Com uma configuração próxima à dos dragões chineses67, entra em

cena o elemento que irá acompanhar Papel até o Rei Metal Mau, um dragão feito dos

lenços libertados. Muito mais do que representar a idéia de que “a união faz a força”,

mas não excluindo essa questão, a decisão de incluir um dragão na história mostra,

primeiro, um alinhamento de Krugli à tradição do conto infantil, tão freqüentemente

povoado desse tipo de elemento fantástico. Mostra também, por sua configuração

física no palco, a transculturalidade da cena, que lança mão, sem distinção, de

diversas influências culturais, amarrando-as pelas capacidades de impacto e

expressão que poderão dar ao espetáculo.

Segundo Vladimir Propp, ao tentar entender a fisiologia do dragão, ele relata

que “o dragão é um ser com diversas cabeças. O número de cabeças varia:

geralmente são três, seis, nove ou doze, mas também podem ser cinco ou sete. Esta

67 Os dragões chineses, constituídos por uma cabeça esculpida e que abriga no seu interior uma pessoa que irá conduzir a sua trajetória; acoplada à cabeça está um tecido de grande comprimento capaz de acolher um número considerável de pessoas que, dispostas em fila indiana, reproduzem o corpo de dragão e seguem as orientações de deslocamento de espaço propostas por quem está na cabeça.

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é uma característica fundamental, constante, obrigatória do dragão.”68 Parece que

esta mesma premissa ditou os primeiros versos da canção do Dragão na peça:

Vamos fazer um dragão de muitas cabeças para poder esta história terminar uma cabeça, oito cabeças dez cabeças, doze cabeças chega, já é demais.

Ainda é possível fazer inúmeras associações entre a configuração física do

dragão e a canção; no entanto, mais interessante é tentar esmiuçar as possíveis

ligações existentes para justificar a presença do dragão no final de História de lenços

e ventos. Um aspecto possível está ligado à questão da vingança, uma vez que esse

ser está associado ao fogo e lança chamas pela boca. O fogo que extinguiu o

primeiro Papel pode agora ameaçar o projeto do Rei Metal Mau.

Curiosamente, Krugli reserva para o embate final uma outra apropriação da

cultura oriental, ao realizar o duelo do rei com a sua própria sombra, uma vez que

nenhum outro adversário se apresentou para o combate. Assim temos:

REI – Eu acho que vou lutar com a minha própria sombra. Preparem-se todos,

toquem os tambores que o torneio vai começar. Em guarda, minha sombra, ei de

vencer ainda que te perca. Toma, toma! (Luta com sua sombra. Aparece a sombra

do papel). De quem é essa sombra que aí se apresenta?

PAPEL – Essa sombra é minha. REI – Quem é você? PAPEL – Eu sou o Papel Coração de Celofane. REI – Ousas me enfrentar?

68 PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Martins Fontes, São Paulo, 2002. p. 260.

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PAPEL – Eu não, é a minha sombra que ousa. (As duas sombras lutam, a do Papel vence e desaparece a sombra do Rei. Isto se fará com dois refletores apagando-se a sombra do Rei) REI – Minha sombra foi vencida, estou sem sombra. Agora lutarás com os meus soldados.

Como se vê, a cena se utiliza da linguagem do Teatro de sombras, comum em

todo o Oriente, para encerrar o conflito existente entre os dois lados opostos. Porém,

é curioso como aqui também pode se levantar uma possível interpretação de que o

embate com o poder não pode acontecer às claras. Mesmo óbvio, não deixa de

suscitar essa possibilidade, transferindo para as sombras e, por conseqüência, para a

imaterialidade dos personagens o desfecho da obra. Sem a sua sombra e sem seus

soldados, derrotados pelo dragão, é permitido ao Rei ficar em seu castelo, “Mas

longe do quintal!”, como os atores enfaticamente acrescentam, sugerindo, assim,

mais uma vez, a idéia de nação dada ao quintal. Conforme afirma Bachelard69, “é no

plano do devaneio, e não no plano dos fatos que a infância permanece em nós viva e

poeticamente útil.” Krugli recupera no palco seu quintal de infância, refaz o seu

quintal, em uma tentativa de encontrar-se como cidadão de algum país. Reabitar

oniricamente e poeticamente esse quintal dá a Krugli a chance de reatar vínculos

com a sua própria terra e com a sua própria história.

O último ponto a ser considerado aqui visa a cobrir as opções de Krugli no que

tange à encenação de História de lenços e ventos e que recai, particularmente, sobre

um entendimento e representação de mundo que se encontra aos pedaços. Para

discorrer sobre esse assunto, é de grande valor o livro Impressões de Viagem – CPC,

vanguarda e desbunde:1960/70, de Heloísa Buarque de Hollanda, sobre as

características e peculiaridades da produção poética da década de 1970, no qual

observou uma desagregação do sujeito poético nascida de um mundo em crise de

significados. Tal crise gera o estilhaçamento desse mesmo eu. Assim, o mundo se dá

a partir de inúmeros fragmentos; e a poesia, antes voltada especificamente para as

considerações desse eu, completo e único, vê-se agora em meio a uma tentativa de

69 BACHELARD, Gaston, Op. cit. p.35.

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entender conscientemente essas rupturas e fazer delas objeto de um novo material

poético. Segundo H. B. de Hollanda70:

O fragmento, o mundo despedaçado e a descontinuidade marcam definitivamente a produção cultural e a experiência de vida tanto dos integrantes do movimento tropicalista quanto daqueles que nos anos imediatamente seguintes aprofundam esta tendência (...).

A essa observação, H. B. de Hollanda ainda enfatiza que “o fragmento do real

bruto é redimensionado e redimensiona os recortes vinculados à tradição teórica e

cultural. É desse confronto que tira sua força.”71 Esse esfacelamento, fruto daquela

época, pôde ser observado em todos os elementos constitutivos da cena, analisado

ao longo do capítulo anterior. Porém, a sintonia que é possível estabelecer com H. B.

de Hollanda é exatamente quando Krugli propõe na concretude da cena o

rompimento do eu, unitário, aqui representado pela unidade do personagem. Em um

caminho nunca trilhado pelo Teatro para crianças, Krugli cinde o “eu” indissolúvel do

personagem para apresentá-lo “aos pedaços”, em uma clara alusão à impossibilidade

de entender um personagem como Papel apenas na sua completude como papel.

Essa desistência, como já foi dito, se dá aos primeiros minutos do espetáculo,

quando os bonecos voltam para a mala e recusam-se a executar seus papéis. É

dessa impossibilidade que nasce uma nova forma de expressão, rompida em sua

unidade constituinte. O exemplo mais claro disso está na resolução cênica proposta

por Krugli, em que se dá igual peso ao Papel – o personagem em si – e ao ator que

o manipula/interpreta. Essa cisão revela um profundo questionamento sobre a

localização do personagem no espaço cênico e sua materialidade enquanto

fenômeno artístico. É no atrito destas duas realidades, a do ator que interpreta o

Papel, e a folha de jornal que representa o Papel, que se encontra a maior riqueza

de História de lenços e ventos, ao recriar um jogo tantas vezes já visto e imprimir

agora uma regra nova, capaz de propor outros diálogos com a tradição teatral e

70 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem – CPC, vanguarda e desbunde:1960/70. Rio de Janeiro, Aeroplano Editora, 2005. p.64.

71 Idem, p. 88.

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equacioná-la ao sabor de um tempo que exige uma nova comunicação com a platéia,

seja pela forma, seja pelo conteúdo.

Se antes a celebração de um espetáculo, digamos, com bonecos se dava pela

graça e beleza de sua movimentação, agora ela perdeu o foco e reafirma as

qualidades também expressivas de quem o manipula. Este deslocamento do objeto

manipulado para o diálogo deste com quem o manipula faz de Krugli, em 1974, um

desbravador solitário nesse novo campo do Teatro de animação. As relações

heterogêneas nascidas entre um ator e um objeto manipulado e que dividem o

mesmo personagem revelam, portanto, um novo arcabouço de investigações do

personagem e da cena que Krugli repisou durante todo o restante da década em

suas montagens posteriores, embebido pelo espírito do experimentalismo

característico tanto de seus processos quanto de sua época.

Não se pode deixar de salientar também que a palavra “papel”, em teatro, é

sinônimo de “personagem”. E Papel, na história, é mesmo um personagem. Ao ver

no palco um ator manipulando uma folha de jornal, o público assistia, literalmente, à

arte de dominar um personagem, um ator a usar seu talento e sua técnica para

interpretar seu papel. Ao mesmo tempo, ficava clara a diferenciação entre um e

outro, sem lugar para o naturalismo. O espetáculo se assumia, mais uma vez, como

faz-de-conta e como “fazer teatral”, dando espaço para reflexões diversas e

profundas, mas sem prejudicar a compreensão por parte daqueles que não se

dessem conta disso.

Reiterando o aspecto da cisão do personagem e do próprio eu cênico e

salientando que essa cisão propicia o florescimento de um teatro com tendências

épicas, Didier Plassard72 nos diz que:

O acento então existente sobre a atividade de produção da narração, tanto quanto para a própria narração, introduziu ao espetáculo teatral

72 PLASSARD, Didier. La traversée des figures. Revista PUCK – La marionnette et les autres arts, ano 1, no. 4. Charleville-Mezières: Institut International de la Marionnette, 1991. pp 57-60. apud PIRAGIBE, Mário. Anexo B. Papel, tinta, madeira, tecido... - Um estudo da conjugação de elementos dramatúrgicos e espetaculares no teatro contemporâneo de animação: a experiência da Companhia PeQuod. 2007. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Programa de Pós Graduação em Teatro (PPGT) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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um funcionamento dividido, uma dinâmica de trocas entre contar e representar, que carrega o teatro à fronteira da narrativa.

Essa região nebulosa do teatro contemporâneo ainda instiga Krugli com a

mesma inquietude e ousadia vistas já nos anos 1970. De lá para cá, a principal voz

do Teatro Ventoforte adensou e problematizou ainda mais essas relações, como o

que foi visto em Victor Hugo, onde está você?, espetáculo criado em 2004 a partir da

obra Os Miseráveis, do autor francês, o que definitivamente permite desfazer a idéia

de que o diretor estacionou no tempo. Os esfacelamentos nessa montagem se

redimensionam e se reagrupam. Mas a pulverização do personagem ainda está

claramente em processo de evolução. Krugli nunca será pós-dramático, pois é

constitutiva desse gênero a perda do encadeamento narrativo e, portanto, ele nunca

abrirá mão do caráter fabular de suas encenações. Porém, seu jogo ainda se

estabelece e se refaz na inconstância do sujeito, na transitoriedade da voz ativa do

personagem e, sobretudo, na recusa da forma bem acabada e concluída. O teatro de

Krugli, longe de ser passadista, ainda está à espera de uma conclusão.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cabe concluir, inicialmente, que 1974 foi um ano especialmente fértil e

peculiar para a vida cultural do Rio de Janeiro. Este ponto de partida é importante

para entender a inserção de Ilo Krugli e seu Teatro Ventoforte nesse quadro e

salientar que o fenômeno gerado a partir da estréia de História de lenços e ventos

não está vinculado a qualquer tipo de escassez de produção, visto que aquele

período foi rico em quantidade e qualidade de montagens teatrais. A peça foi, sim,

fruto de um ambiente de intensa busca de formas de comunicação com a platéia, o

que, neste caso, envolve também aspectos ligados a o que dizer e o que camuflar

sob a vigilância da Censura e do próprio regime que a mantinha.

Na esfera oficial73, há um profundo remanejamento de forças que

contribuíram sensivelmente para um arejamento das pressões sofridas pela classe

teatral naquele momento, gerando um panorama renovado nos palcos nacionais, o

que eleva o ano de 1974 a um ponto muito acima dos anos anteriores, apontado por

Michalski como o ano de uma sensível melhoria nos aspectos plásticos e visuais dos

espetáculos, constituindo uma significativa contribuição para uma maior “beleza e

poesia estética das encenações”74.

Já na esfera de produção, observa-se uma internacionalização do cardápio de

atrações teatrais do país, que recebeu espetáculos estrangeiros de alta qualidade,

como o Yerma, de Garcia Lorca, com direção de Victor Garcia, interpretado pela

bailarina Núria Espert.

73 Neste ano observamos a posse do ex-governador do Paraná Ney Braga no Ministério da Educação e Cultura, em cuja gestão o Teatro obteve mais recursos e atenção do que vinha recebendo até então. Houve também a nomeação do produtor Orlando Miranda à direção do Serviço Nacional de Teatro – SNT –, o que reanimou toda a classe artística por sua seriedade de propósitos, por sua capacidade de gerir recursos e por modernizar e dinamizar um orgão até então estagnado pela administração confusa, omissa e ineficiente de Felinto Rodrigues Neto.

74 MICHALSKI, Yan. O Teatro sob Pressão - Uma Frente de Resistência. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.p.60.

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Há também a proposta de novas práticas, como a da atriz e produtora Tereza

Rachel, que convida o argentino exilado em Paris Jorge Lavelli para dirigir uma

encenação de A Gaivota, de Tchecov.

No campo da dramaturgia, 1974 ainda viu Nélson Rodrigues lançar uma nova

obra teatral – o Anti-Nélson Rodrigues –, depois de um silêncio de dez anos.

No âmbito das montagens marcantes, destacam-se o Somma, de Amir

Haddad, que dividia o mesmo espaço de representação com o Ventoforte, na sala

Corpo/Som do Museu de Arte Moderna; Um grito parado no ar, de Fernando Peixoto,

e ainda Ensaio Selvagem, de José Vicente, levado à cena por Rubens Correa e Ivan

de Albuquerque. Neste último caso, cabe lembrar a onipresença do cenógrafo Luis

Carlos Ripper, que em muito contribuiu para a maturação estética e visual que

fundamentou a visualidade da cena teatral carioca. O trabalho de Ripper nas

montagens históricas do Teatro Ipanema, a destacar Hoje é dia de rock, montado

em 1971, é o início de um novo olhar para a visualidade do espaço cênico, que

certamente permite abrir um diálogo com as inovações que Ilo trouxe para a seara

do público infantil.

Esse mesmo ambiente renovado ainda vai gerar dois coletivos teatrais. O

primeiro, o Grêmio Dramático Brasileiro, liderado por Aderbal Jr., hoje conhecido

como Aderbal Freire-Filho, responsável por lançar um autor de grande personalidade,

Flávio Márcio, com a montagem de Reveillon. O segundo, liderado por Hamilton Vaz

Pereira, e jocosamente intitulado Asdrúbal Trouxe O Trombone, trouxe para o Teatro

um frescor e um descompromisso típicos da juventude desbundada carioca, com

ousadia e despretensão, tendo sua trajetória iniciada com uma montagem de um

clássico de Gogol, O inspetor geral.

Esse pequeno panorama serve para mostrar que, apesar das intempéries,

aquela temporada espelha uma retomada da produção teatral, visivelmente mais

profunda em experimentações visuais e plásticas, ampliando os horizontes da

cenografia e do figurino em nossos palcos. Se 1974 tivesse sido pobre nesse sentido,

talvez até se pudesse reduzir a importância de História de lenços e ventos, visto que

qualquer trabalho artístico acima da média tende a ser supervalorizado quando vem

à tona em um período de fraca produção. Mas esse, definitivamente, não é o caso.

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Assim, História de lenços e ventos figura entre os destaques daquele ano,

independentemente da faixa etária do público a que se destinavam. Suas inovações

e avanços de linguagem discorridos nesta pesquisa apontam para um

redirecionamento do que e como deve ser dito para o público mais jovem. Em

primeiro lugar, tem-se uma história que combina elementos de alta poesia com uma

temática cara ao regime então vigente, a liberdade. Além disso, trazia para o público

infantil uma leitura agridoce da contracultura, emergida em todos os meios de

expressão artísitca a partir da década de 1960. Portanto, imbuídos de uma aura

hippie, os atores do Ventoforte trouxeram para as matinês um novo modo de fazer

teatro – no que se refere a invenção, imprevisibilidade e transformação –, ao investir

no jogo como eixo de sustentação dramática. Se, por um lado, isso fragilizava a

linearidade do enredo, por outro enriquecia os aspectos simbólicos e conotativos.

Além disso, percebe-se ainda como forte influência daquela cultura emergente

o acentuado investimento expressivo do corpo, que em Krugli se apresenta por meio

de procedimentos que investem na figura do ator-manipulador aparente e, portanto,

atento às exigências não só da boa manipulação, como também da adequada

colocação espacial – neutralizada ou não – desse ator. Esse estado expressivo,

nascido do corpo do ator, é transferido para objetos de aparente pouca

expressividade como, por exemplo, lenços e jornais. Interessado nisso, Krugli ainda

propõe uma revisão da questão da unidade do personagem que, ao apropriar-se da

linguagem do Teatro de Animação, apresenta personagens cindidos em sua

representação, colocando em xeque alguns dos mais importantes elementos que

constituem o fenômeno teatral, a unidade do personagem.

Esses desnudamentos ocorrem também em outras instâncias da cena, levando

o espectador a uma reeducação do seu olhar. Krugli se apropria de caracteres

arquetípicos para construir a sua cena, como se, tal qual um fundo falso, ela

escondesse em sua aparente simplicidade um aprofundado conhecimento das Artes

Cênicas e do infindável cabedal iconográfico que ele absorveu com o passar dos

anos.

Ainda sobre a questão da reavaliação da expressividade corporal nessa

montagem, cabe lembrar que as inúmeras canções existentes na peça tratam de

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elevar o corpo a um outro estado energético e a outra qualidade de movimento que

foge dos aspectos cotidianos e que, por fim, estabelece um diálogo nascido na

Contracultura, em que propõe uma maior ritualização do corpo e do movimento.

Por todas essas razões, esta pesquisa buscou verificar se História de lenços e

ventos, montagem inaugural do Teatro Ventoforte, pode ser considerada como uma

nova demarcação na História do Teatro para crianças feito no Brasil. Devido às

diversas linhas de expressão e comunicação apresentadas, sobretudo em sua

encenação, verificadas a partir de procedimentos de estudo semiológico e

iconológico, pode-se entender que Krugli reavaliou os critérios com que as

montagens para crianças conquistavam seu público. Afastando-se das simplificações,

dos maniqueísmos e de equivocados julgamentos morais, o diretor desestruturou a

cena e acrescentou-lhe recortes, rasgos e esfacelamentos. A esta constatação foram

de extremo valor as considerações levantadas por Heloísa Buarque de Hollanda, que

entende o fragmento e a descontinuidade como expressão maior daquela geração.

Sua contribuição serviu de caminho para que fosse possível encontrar um diálogo

entre Krugli e outros tantos nascidos naquela crise, que tem como expressão de

maior repercussão o Tropicalismo.

A partir de tal verificação, é possível entender Krugli, assim como a maioria

dos grandes criadores de produtos culturais – seja na música popular, seja na poesia

– como mais um observador e tradutor de um mundo esfacelado, cindido, e que,

portanto, não pode mais ser compreendido em sua totalidade. Esse espírito

fragmentário dominou a época, graças, sobretudo, à polarização sócial e política que

fez da década de 1970 um dos períodos mais tristes do século passado. Essa pode

ser a maior influência de Krugli, por apresentar uma cena aos pedaços, com

imbricações épicas, com canções e música ao vivo executada no interior da cena,

com figurinos, cenários e adereços que refletem um esfacelamento de uma unidade

“burguesa”. E, no entanto, uma unidade maior, dificilmente explicada, trata de

reorganizar tais elementos dispersos sob as asas de uma poética ora dura, ora plena

de magia.

História de lenços e ventos pode ser encarada como a entrada bem-sucedida

de uma maior carga simbólica dos elementos da cena em detrimento de enredos

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paródicos ou replicantes de conteúdos vindos da literatura infantil. Mais ainda, essa

montagem introduz o aspecto do risco na seara do Teatro infantil, entendido aqui

como ato de experimentação real, como intromissão e readequação das estruturas

internas da narrativa apropriada às crianças que comprovadamente foram bem

sucedidas e que contribuíram em muito para o afastamento da idéia de um teatro

infantil como um entretenimento. Portanto, merece uma reavaliação acadêmica no

sentido de entender a existência de um projeto de desenvolvimento de linguagem

destinado ao público infantil, o que deve ser entendido como parte da História do

teatro brasileiro.

Os inúmeros frutos advindos dessa longa história fazem crer que a sua gênese

libertária ainda se propaga não só no eixo Rio-São Paulo, mas por todo o Brasil e até

fora dele. A prova disso está na atualidade dos trabalhos desenvolvidos hoje em dia

pelos primeiros integrantes do elenco de 1974:

- Beto Coimbra continua à frente do Grupo Hombú, nascido do Teatro

Ventoforte, com 30 anos de existência. Atuando em várias frentes, seja como

produtor, seja como ator ou compositor e diretor musical com uma trajetória repleta

de sucessos e premiações importantes;

- Caíque Botkay é hoje uma das principais referências sobre musicalidade na

cena teatral carioca, atuando, como ator, compositor e diretor musical, em um

grande quantidade de espetáculos desde 1974, com os mais importantes diretores

do período. Seu campo de atuação se ampliou consideravelmente por ele participar

de outras frentes de atuação da área cultural, com destaque para seu status de

membro efetivo do Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro, órgão consultivo

ligado à Secretaria de Cultura do Estado. Foi inúmeras vezes agraciado com os mais

importantes prêmios destinados à classe teatral. Atualmente prepara uma nova trilha

musical para A pena e a lei, de Ariano Suassuna, o próximo espetáculo de Krugli, a

estrear no primeiro semestre de 2008;

- David Tygel fundou no final dos anos 1970 o grupo vocal Boca Livre, de

muitos sucessos na década seguinte e recentemente de volta à atividade. Além

disso, assinou a trilha sonora de mais de trinta longas-metragens a partir dos anos

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1980, afirmando seu nome também na área cinematográfica ao ganhar muitos

prêmios internacionais.

- Alice Reis continuou suas atividades no Grupo Hombú e em outras

produções teatrais, como atriz e também como autora. Após um período dedicado à

televisão em diversos programas em várias emissoras, hoje é professora do Centro

de Artes de Laranjeiras – CAL.

- Arnaldo Marques segue seu trabalho como ator em numerosas produções na

cidade do Rio de Janeiro e, desde 1990, tem seu nome ligado ao do Grupo Hombú,

seguindo uma premiada trajetória artística;

- Richard Roux, ator radicado na França, atua hoje em vários projetos de

intercâmbio cultural entre os dois países, com destaque para uma iniciativa

financiada pelo governo francês de criação de um Dicionário de Teatro Brasileiro, a

ser publicado naquele país;

- Sílvia Heller atua hoje como professora da Universidade Federal do Estado

do Rio de Janeiro (UNIRIO), onde também desenvolve projetos de teatro em

espaços não-convencionais e ligados a temáticas do corpo e da política;

- Silvia Aderne tornou-se uma das maiores atrizes dedicadas ao Teatro infantil,

recebendo uma numerosa quantidade de prêmios já desde seu trabalho no

Ventoforte, passando por sua extensa trajetória do Grupo Hombú, do qual é uma das

fundadoras. As qualidades interpretativas e corporais desta atriz de setenta anos

chamaram a atenção dos fundadores do Cirque du Soleil, que a convidaram em 2005

para atuar em uma montagem em Las Vegas, Estados Unidos, afastando-a

temporariamente das atividades do Hombú até o presente momento.

A pluralidade dessas trajetórias, todas repletas de grandes êxitos profissionais,

atesta também a reavaliação ética proposta pelo diretor do Ventoforte, que apostava

em um ator com qualidades diferenciadas para lidar com a criança, qualidades estas

que hoje se verificam como ousadia, sensibilidade e um comprometimento

inquebrantável com o seu ofício.

Finalmente, cabe destacar que o nome de Ilo Krugli é um referencial de

grande solidez, pronto para servir a novos e futuros estudos sobre a evolução da

cena infantil no Brasil.

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Teatro Infantil – Ilo Krugli.Correio do Notícias, Curitiba, 15 de julho de 1978.

TEXTOS DE ESPETÁCULOS

FILHO, Ernesto de Albuquerque Santos. Sonhos de um Coração Brejeiro Naufragado de Ilusão (peça teatral) in Revista Mamulengo, No. 7, Rio de Janeiro, MEC/DAC/FUNARTE

KRUGLI, Ilo. Da “Metade do Caminho" ao "País do Último Círculo" in Cinco Textos para Teatro Infantil. Curitiba, Grafipar, 1975.

__________. Histórias de um Barquinho. (xerox) SBAT.

__________. História de Lenços e Ventos. (xerox) SBAT.

__________. História de Lenços e Ventos. Rio de Janeiro, Editora Didática e Científica, 2000.

__________. Pequenas Histórias de Lorca. (xerox) SBAT.

__________. Mistério das Nove Luas (xerox) SBAT.

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APÊNDICE A: Sinopse de História de tempos e ventos

Com a entrada do público, os atores trazem para o palco todos os materiais

que irão fazer parte da encenação. Indagam, então, à platéia questões como “Será

que com estes jornais velhos se pode fazer Teatro?” e “Já viu alguma história com

um guarda-chuva velho?”. Enquanto fazem as perguntas, ocorre a montagem da

cena, que sugere um quintal com muitos varais e panos pendurados. Em um

prólogo, os atores encontram uma mala com bonecos e resolvem fazer Teatro com

eles. No entanto, os bonecos se recusam a representar e trancam-se por dentro da

mala, obrigando os atores a se encarregarem de fazer o espetáculo. A partir daí, os

atores buscam encontrar outros objetos para montar sua peça. Panos e lenços

acabam por assumir os papéis principais da história. Cada ator apresenta seu

personagem, na forma de lenços tirados de seus próprios figurinos. Cada lenço ou

pano apresenta seus desejos e traços de personalidade. Azulzinha, por exemplo,

quer apenas voar. Ela, junto com outros lenços, chega à conclusão de que, para

voar, é preciso que haja vento.

Com a chegada da noite, indicada por uma canção, os lenços aguardam com

ansiedade pelos ventos que ela traz. Os lenços “adormecem” e os atores assumem a

cena, buscando em um jornal informações sobre o tempo. “É no jornal que se sabe

de tudo. Bom... De quase tudo”, conclui um ator. Então, preparam-se para o pior, já

que, “nas histórias, os perigos sempre acontecem de noite”.

Enquanto tenta aprender a voar, Azulzinha encontra-se com Branquinho, um

guardanapo do varal da casa vizinha. Ao seu lado, ela descobre que existem

diferenças entre os dois. Branquinho, por exemplo, tem um monograma que o

impede de ser confundido ou mesmo perdido. Ao tentarem voar, ela cai em um

balde e molha-se toda. Azulzinha é retirada pelos atores e a história é deslocada

para outro lugar, “como se faz nos filmes”, diz um ator. E eis que uma canção

introduz o personagem do Soldado Medieval.

Azulzinha, agora seca, mais uma vez indaga pelo vento. Os atores contam a

ela sobre a existência do Vento da Madrugada e aconselham-na a dormir, já que ele

não é um vento qualquer. Quando passa o Vento da Madrugada, voam todos os

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lenços e panos, lançados pelos próprios atores durante uma canção. Ao amanhecer,

o elenco se depara com a bagunça causada pelo vento, mas, sobretudo pela

ausência de Azulzinha. Os atores ficam tristes, mas um deles traz a solução para que

a história possa continuar: “É o momento certo para fazer entrar na história um novo

personagem”. E assim, com uma folha de jornal, surge o personagem Papel, que sai

em busca de Azulzinha. Ele pede para que os atores soprem para que ele saia

voando para encontrá-la. Ao olhar para o quintal, ele tinha visto que “os lenços

ficaram brincando de roda, como fazem todas as tardes, só que um pouco mais

tristes, porque Azulzinha não estava. E quando os amigos não estão, a gente fica um

bocado triste”.

Aparece o Soldado Brilhante. Os lenços se escondem. Atores se indagam

sobre o paradeiro de Azulzinha. Uma Nuvem diz que um lenço azul sobre um céu

azul “não dá contraste”. Papel sugere então que apareçam muitas nuvens “para

fazer o contraste”. Os atores adentram o palco com muitas bandeirinhas,

representando nuvens. Com tantas delas, cai uma forte chuva que ameaça molhar o

Papel e impedir que ele siga atrás de Azulzinha. Mas ele consegue fugir para outro

quintal e encontra o Guarda-Chuva, que o protege da chuva. Ao final da tempestade,

Papel segue sua trajetória. Finalmente, ele a encontra dormindo sobre uma nuvem.

Ele a chama de volta, para reencontrar seus amigos que ficaram no quintal, mas ela

insiste em querer seguir aprendendo a voar. Ao avistar uma cidade brilhante, ela

deixa-se levar pelos ventos. Papel tanta impedir, já que ela ruma à Cidade Medieval.

Antes que ele consiga reverter sua decisão, Azulzinha é capturada por um soldado.

Atores introduzem ao Papel e ao público a Cidade Medieval: “Faz muito tempo que

aqui nada muda, tudo é igual, tem um grande tédio, um tédio medieval”, diz um

deles.

Já no castelo do rei, Azulzinha queixa-se por ter sido roubada. O rei afirma

que ela foi confundida com um dos seus inimigos, mas garante que será bem

tratada. No final da cena, ele esclarece que irá casar-se com Azulzinha e que ela

nunca mais sairá de lá. Assim, ele manda preparar um torneio para legitimar a posse

de sua dama. Convoca todos os lenços de todos os quintais para se apresentarem à

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Caixa Estratosférica. Todos os lenços são guardados nela pelos atores, para em

seguida ser suspensa sobre o palco.

Papel chega à Cidade Medieval, mas é impedido de entrar. Quando quase

desistia de encontra-la, um ator o convence a entoar uma das canções que eles

cantavam no quintal. Ao ouvir a música, Azulzinha aparece numa janela. Papel tenta

fugir em sua companhia, mas ela o informa que todos os lenços estão aprisionados

na Caixa Estratosférica e que serão transformados em tapetes, cortinas e bandeiras

para a cerimônia de casamento. Ela pede então que ele volte, pois novamente já

escurece. Subitamente, o Papel é amassado pelo ator que o manipula.

O Rei ordena para que os soldados limpem toda a cidade para o dia do

torneio. Assim o Papel é capturado e queimado. Os atores olham estáticos para as

cinzas do Papel. Alguns sugerem um final triste para a história e pedem para que o

público vá embora. No entanto, um deles lembra que são eles que estão inventando

a história e que, portanto, podem fazer um novo Papel “muito melhor, muito mais

forte”. O personagem então ressurge, agora com mãos, braços, coração, elmo e

capa. Transformado em um cavaleiro, Papel parte de novo em busca de Azulzinha.

Porém, falta-lhe um cavalo. Os atores libertam os lenços aprisionados e criam um

dragão para levá-lo à Cidade Medieval. Ao conseguir atravessar as barreiras do

castelo, ele chega ao torneio, que até agora não conseguiu um oponente para o Rei

Metal Mau. Através de recursos do Teatro de sombras, a sombra do Papel luta com a

sombra do Rei e sai-se vencedora. Papel e Azulzinha finalmente estão juntos e se

deixam levar pelo Vento da Madrugada, pelo Vento do Pólo Norte, pelo Vento da

Manhã, pelo vento de todo o mundo.

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ANEXO A: Texto da peça História de lenços e ventos

HISTÓRIAS DE LENÇOS E VENTOS

DE ILO KRUGLI

PERSONAGENS Manuela Manuel Boneco 1 Boneco 2 Atores Cavalo Sapo Azulzinha Vermelhinha Amarelinha Floreado Listrado Transparente Azulão Amarelão Alaranjado Vermelhão Ator A B Um Papel Nuvem Guarda-Chuva Galinha Telefonista Rei O Guarda Cartaz Soldados Metal Mal

HISTÓRIAS DE LENÇOS E VENTOS

De Ilo Krugli

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O público vai entrando e os atores se aproximam das crianças pedindo para

eles se sentarem perto. Depois, começam a fazer entrar no palco todos os materiais

do espetáculo. Continuam as aproximações com o público, mostrando os objetos

com a preocupação de se saber qual o uso que vai se dar aos objetos do espetáculo.

Fazendo perguntas, tais como: “Será que com esses jornais velhos pode-se fazer

teatro?” “Já viu alguma história com um guarda-chuva velho?” etc. Tudo isso muito

rápido, até formar o quintal. Objetos jogados à direita, uns varais, panos grandes

pendurados etc.

Um dos atores entra com uma mala. Ela é aberta: surpresa com os bonecos

que tem dentro. Um ator diz: Vamos começar o espetáculo: Eu começo. Vocês

fazem música e batem palmas também.

MANUELA – Já começou o teatro? Ah, então vou chamar o Manuel, porque nós

sempre dançamos juntos. Ei, Manuel! (Grita) (Se escuta a voz de Manuel: “Estou

botando o nariz.” Assim vaias vezes. “Estou botando as orelhas”. “Estou botando os

sapatos” Manuel entra e se abraçam.)

MANUEL – Manuela!

MANUELA – Manuel!

MANUEL – Vamos chamar os outros.

MANUELA – Vamos! Eu vou por aqui.

MANUEL – Não, Manuela!

MANUELA – Porque?

MANUEL – Não posso dizer.

MANUELA – Então eu vou.

MANUEL – Não, não vai. (Todos pedem pra ele falar. Todo este diálogo é comentado

pelos atores que fazem música.)

MANUEL – (tremendo) Manuela, lá, os dois passos daqui...

MANUELA – Lá onde? (com muito movimento)

MANUEL- Manuela, isto aqui é o teatro e esta aqui é a longa estrada da vida que

passa pelo teatro, ou talvez a longa estrada do teatro que passa pela vida.

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MANUELA – E porque você se mexe tanto?

MANUEL – Porque estou fazendo expressão corporal, mas agora eu vou continuar

sem expressão corporal dizendo tudo em forma psicológica, dizendo tudo com o

olhar; me olha fixo Manuela.

MANUELA – Estou olhando Manuel.

MANUEL – Então vamos olhar também para o público. E nesta estrada da vida, a

dois passos daqui, que há um poço.

MANUELA – Não faz mal, eu vou.

MANUEL – Vou fechar os olhos. Não quero nem ver.

MANUELA – Um passo. (Manuel treme) Um e meio. (Manuel treme) E dois. (Cai)

MANUEL – Bem que eu avisei, e agora não posso salva-la, tenho que continuar o

espetáculo, apesar de tudo. Vou chamar os outros! (Entram o cavalo e o sapo.

Pedem música de sapo e cavalo, e perguntam aos atores que estão fora o que eles

estão fazendo.)

ATORES – Estamos fazendo teatro, ora que pergunta!

BONECOS – Então não somos nós quem vamos fazer?

CAVALO – Eu vou chamar o Manuel.

SAPO – Vamos chamar o Manuel. (Ator aparece e pede música de encontro e

desencontro. Entram de costas os bonecos.)

BONECO 1 – (Esbarrando no outro) Ah! É você.

B 2 – Sou eu, sim.

B 1 – Como?

B 2 – Que você perguntou?

B 1 – Se é você?

B 2 – E eu respondo, sou eu.

B 1 – Não. Eu sou eu.

B 2 – Não. Não você é você e eu sou eu.

Continuam, trocam de lugar depois perguntam aos atores e se confundem com nós,

vocês, nosco e vosco e vão embora aborrecidos. Entra o Manuel: procura o poço

várias vezes, por fim se aborrece com o público e diz: Agora vem o momento mais

importante do espetáculo, esta cena se chama “Manuel, o Salvador”.

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MANUEL – Vocês pensam que eu não sei onde está o poço? Sabem quem faz

poços neste teatro? Sou eu. Estudei vinte anos, sou doutor em poços. E Manuela

estudou quinze anos, é professora de caída em poços. Sobe Manuela.

MANUELA – Não posso subir, está escuro!

MANUEL - Sobe pela escada! Por favor, músicos, façam música de Manuela subindo

escada. (Se aborrece com os músicos e pede em lugar dessa música de caminhão

etc.) (Manuela sobe até aparecer a cabeça de quase anjo).

MANUEL – Sobe mais.

MANUELA – Não posso.

MANUEL – Por que?

MANUELA - Acabou a escada.

(Ele ajuda a puxa-la pra cima mas fica muito alto, puxa pra baixo fica baixo demais

etc. Manuela acaba caindo de novo no poço.)

MANUEL – Manuela, sobe pelo elevador. (Se escuta ruído de elevador e se vê

Manuela subindo através do pano). Onde você esta Manuela?

MANUELA – Estou no quarto andar.

MANUEL – Esse elevador não serve, este aqui é o quinto andar. Desce e sobe de

qualquer forma. (Ela desce e sobe segurada pela mão do titereteiro).

MANUEL – Ah, isso é “qualquer forma” Então vamos dançar. (Começam a dançar.

Entram o sapo e o cavalo; Falam ao ouvido de Manuel. A seqüência com bonecos

será interrompida porque o sapo e o cavalo convencem Manuel e os outros a não

trabalharem. O ator sai com a mala detrás do pano e diz:)

ATOR – Eles estão fechados lá dentro. Se fecharam com chave. Vamos ter que fazer

o espetáculo sem eles. Mas com o que vamos fazer o espetáculo? (Começam a

procurar até que se descobre um lenço no violão e a partir daí vão achando muitos

outros entre as roupas e os objetos e vão pendurando todos. Isto tem que funcionar

como um jogo mágico.)

MÚSICA

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Eu sou de seda

Eu sou de pano

Sou bordada de lua

Eu sou de chita

Eu sou de lã

sou dura engomada

de flor floreada

Sou uma bandeira

uma saia rodada

lencinho pequeno

de espirro e de mágua

- Era uma vez um pano vermelho brilhante

- Era uma vez um pano amarelo quadrado

- Era uma vez um quadrado de papel desenhado

- Era uma vez um desenho colorido num lenço quadrado

- Era uma vez um quadrado cheio de bolas

- Era uma vez uma bola cheia de quadrados

- Era uma vez um papelão de papel celofane transparente e era uma vez um coração

de metal

- Era uma vez, era uma vez, era uma vez...

- Era uma vez um quintal onde passavam todas as correntezas e todos os ventos

- Onde todas as chuvas, e as bolas, e todas as folhas secas, e às vezes até neve

- Era um quintal onde voavam todas as pipas e as nuvens e as borboletas e os

passarinhos e até aviões

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AZULZINHA – Ai, eu queria tanto voar!

VERMELHINHA – E eu queria voar alto com as nuvens!

AMARELHINHA – E eu queria rodar com todos os redemoinhos!

FLOREADO – E eu queria me agitar como uma grande floresta em tempestade!

LISTRADO – E eu como uma tempestade numa grande floresta!

TRANSPARENTE – E eu queria passar pelo céu como se fosse um cometa!

TODOS – DE ONDE VEM O VENTO?

AZULÃO – O vento vem do fundo do mar.

AMARELÃO – Não é do mar, não; o vento vem das montanhas altas.

ALARANJADO – Não, é das grandes cidades. Eu soube que em São Paulo tem uma

fábrica de vento.

AMARELÃO – Deve ser vento enlatado.

VERMELHÃO – O vento vem do céu. Tudo que voa anda pelo céu?

TODOS - Tudo que voa pelo céu. É, tudo que voa anda com o vento.

AZULZINHA – Ai, eu queria tanto voar! Será que tem vento hoje?

TODOS – Será que vai ter vento hoje?

AZULÃO – Não sei, hoje ainda não li o jornal. É lá que se sabe se vai ter vento ou

chuva. Mas, olha, com vento é preciso ter cuidado; tem alguns ventos muito fortes

,fortíssimos. O vento da Meia-Noite já fez voar um lençol até a Bahia. E o vento da

Madrugada levou uma telha e uma camisa ao deserto de Saara. E o vento do fim de

semana fez voar uma cama, com travesseiro e tudo.

TODOS OS LENCINHOS – Ai, que medo!

OS LENÇOS – Fiquem quietinhos e durmam, que se o vento chegar a gente avisa –

Se chegar um vento bom a gente avisa.

ATOR – Os lencinhos pequenos dormiram. Um, no chão; outro numa caixa. Um outro

junto a garrafa, outro no varal.

OS LENÇOS – Agora que estão dormindo nós vamos ter que trabalhar. Mas antes

vamos ver no jornal qual o tempo que vai fazer esta noite? Porque como

trabalhamos ao ar livre pode chover, granizar, ter tempestade. (com medo) Não

posso nem acreditar, é melhor não dizer nada...

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DIVIDIDO ENTRE OS ATORES

- (com medo) Não posso nem acreditar, é melhor não dizer nada...Eu não vou dizer

nada

- Eu não vou dizer nada; vou tirar a poeira das escada.

- E eu vou enxugar a chuva das janelas

- E eu vou tampar as fechaduras para não entrar fumaça

- E eu vou cortar as sombras das vidraças.

- E eu tirar a névoa dos telhados. (Os lenços vão embora).

ATOR – É, os lenços não querem dizer nada sobre o tempo. A gente também não vai

dizer nada, senão não vai ter graça.

ATOR – O que vem agora é muito perigoso.

ATOR – Mas vai ter tantos perigos nesta história...Para continuar contando vamos

esperar a noite.

(Começa a escurecer)

Lá vem

Lá vem a noite

e vem de capa preta

traz uma estrela grande

Lá vem

Lá vem a noite

e vem trazendo o vento

com três luas redondas

Brincando no sereno

ATOR – Onde vai você, Azulzinha?

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AZULZINHA – Vou andar pelo varal para ver se aprendo a voar. Está escuro, não se

vê nada. (entra pelo outro lado o BRANQUINHO; eles se vêem de longe e começam

a tremer assustados)

A – Quem é você?

B – Eu sou o Branquinho. Você tem medo?

A – É claro, eu pensei que você fosse o Gasparzinho, ou o Pluft, ou o fantasma da

ópera.

B – Eu sou o guardanapo do dono da casa vizinha, depois do jantar me dobraram e

me deixaram pertinho da janela. Aí eu aproveitei e me deixei cair.

A – Você sabe voar?

B – Não, e aproveito as correntezas. Mas sempre volto para a minha casa; me

devolvem quando vêem que eu tenho um monograma.

A – O que é um monograma?

B – É o nome do dono da casa. Bordadinho em letras de ponto cheio, é isso que é

monograma.

A – Eu não tenho monograma.

B – Lá em casa todos temos. Minha mãe é pano de pratos e tem até alça. Meu pai é

toalha de rosto e nele está escrito “bom-dia”. Minha prima é cortina de tergal e

balança o dia inteiro na sala de jantar. E meu avozinho é capacho e nele está escrito

“limpe os pés e seja bem-vindo” e a minha prima é fronha. Olha, eu já vou, vou

aproveitar esta correnteza, lá vou eu... (vai embora)

AZULZINHA – Eu também podia aproveitar as correntezas. Lá vem uma. (ela cai num

balde de água e sai toda molhada).

ATORES – Agora vai ser difícil, a azulzinha ficou toda molhada.

- Bota ela pra secar na corda e vamos esperar. Não. Não vamos esperar não!

- Agora podíamos fazer como se faz nos filmes: passamos pra outro lugar, fazemos

outra cena que ninguém sabe onde é, e entram personagens que ninguém sabe

quem são, e de onde vêem, é aquilo que se chama suspense! (Todos pegam lâminas

de metal e começam a fazer ruídos com a Música Medieval)

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Ele é grande, ele é forte

ele é brilante

é soldado que voa

do país distante

ele é grande, ele é forte

não tem vida nem morte

ele é grande ele é mau

ele é medieval

UM – É o vento?

TODOS – Não, é.

UM – São trovoadas?

TODOS – Não, não são.

UM – É tempestade?

TODOS – Não, é.

UM – É máquina?

TODOS – Também não. (em suspense) É gente? Não é

UM – É uma guerra? Pode ser.

- Olha, a Azulzinha já está seca. A gente continua esta cena depois.

- É. É depois que vamos continuar o suspense.

AZULZINHA – A correnteza só me fez cair no balde. É melhor esperar o vento. Será

que tem vento esta noite?

TODOS – (Como dizendo um segredo) – Tem o vento da madrugada. É o jornal deu

essa notícia. – Azulzinha é melhor você ir dormir.

AZULZINHA – EU QUERO APRENDER A VOAR...

Mas quem voa agora não é um vento qualquer, é o vento da madrugada. (Música do

vento da madrugada. Voam todos os panos e papéis)

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O vento da madrugada

nunca chega só

numa mão traz o sol

na outra um beija flor

ele é misterioso

mas não é medroso

Já fez voar um rato, um gato

uma escada, um telhado

mas que vento guloso

ele não é medroso

ele traz o sol

ATORES – O Vento da Madrugada já passou. Acabou a noite. Ele deixou o sol.

(pendura um papel com o sol)

- Será que ainda temos todos os lenços para continuar a história? Vamos ver.

- Verdinho. (recolhem os lenços e vão dando nome a eles de acordo com a cor)

TODOS – Azulzinha? Azulzinha? (chamam pra todos os lados)

- Deve ter sido o vento da madrugada.

- É, a última vez que eu a vi, ela estava no varal.

- A última vez que eu a vi, ela estava caindo no laguinho.

- Vamos ler o jornal? Deve ter notícias sobre o que aconteceu de madrugada.

(TRAZEM UM JORNAL)

- Na noite passada, repentinamente, sem avisar, nos quintais dessa cidade soprou

intempestivamente o Vento da Madrugada. O Vento da madrugada causou alguns

danos; derrubou árvores e levou para o ar folhas de papel, telhas, sinos, ninhos,

camisas e também diversos objetos não identificados.

- A Azulzinha deve estar dentre os objetos não identificados.

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- Vamos ler o resto. Pode ser que o vento da Madrugada volte com ela.

- O prognóstico para hoje e amanhã é de chuvas esparsas e ventos moderados de

norte a sul.

TODOS – Só vai ter ventos moderados... Não gosto de histórias de ventos

moderados... (Saem chateados até o fundo do quintal) É eles tem toda razão do

mundo, ventos moderados não dá, a última vez que estive numa história de ventos

moderados foi muito ruim, ou é vento pra valer, ou melhor nada.

- Mas agora é momento de fazer entrar na história um novo personagem.

- Ele não é de seda.

- Também não é de pano.

- Nem de papelão.

- Nem de papel celofane transparente.

- Nem de corda.

- Nem de metal brilhante. Ele é de jornal.

(Um ator rasga a metade de uma folha de jornal, faz uma dobra vertical para

segurar e outro pinta os olhos e a boca no papel.)

PAPEL – Meu nome é papel. Eu sei voar, andar, girar pelo ar, às vezes eu ando aos

trancos e barrancos. Eu tenho altos e baixos. Mas o importante é chegar aonde a

gente quer chegar. Eu gosto de todas as cores e as coisas deste quintal. Eu vou

procura-la. Amanhã o jornal terá notícias alegres. Hoje os ventos serão moderados,

mas eu vou conseguir voar. Eu já disse que eu tenho altos e baixos. Façam um vento

moderado para mim (os outros sopram forte) Eu disse moderado. (Os atores detrás

do varal se despedem agitando lenços) E foi assim que eu voei, voei mas no quintal

os lenços brincaram de roda como fazem todas as tardes, só que um pouco mais

tristes pois faltava a amiga deles, a Azulzinha. É quando os amigos não estão com a

gente fica bastante triste.

MÚSICA A AZULZINHA

Da cor do céu

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da cor do céu

da cor do teu olhar

a roda nasce

a roda gira

aqui no meu quintal

Se é muito azul

se é muito azul

no branco vai clarear

da cor do céu

a roda gira

aqui no meu quintal

- E o papel foi embora. Chegou outro personagem estranho. Não é do quintal. (O

Soldado Brilhante aparece; Música do soldado Medieval; voa ameaçador, inspeciona

tudo e se retira. Os lenços se escondem. Esta cena pode se repetir)

- Para onde será que ele voa?

- Para onde será que ele vai?

- E a Azulzinha, que voa sozinha pelos ares...

- Mas a Azulzinha não era a única que andava sozinha pelo ar. O papel também e a

todo mundo perguntava: Você viu a Azulzinha? E nada da Azulzinha. (Passa uma

nuvem) Ei, Nuvem, você viu passar a Azulzinha? Ela saiu voando hoje de madrugada.

Com o vento da madrugada.

- Hum, hum, não sei. Como ela é?

PAPEL – Pequena, de seda, da cor do céu.

NUVEM – Hum, hum, não sei. Acho que vi, acho que não vi. Vai ser difícil achar se

ela é da cor do céu.

PAPEL – Por que?

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NUVEM – Porque não da contraste.

PAPEL – Ah! Então vamos fazer entrar muitas nuvens para fazer contraste (entram

bandeirolas de papel de seda)

ATOR – As nuvens foram cobrindo, cobrindo, o céu foi ficando escuro e começou a

chover. O Papel foi ficando todo molhado, quase se desmanchando. Se continua

chovendo, nosso herói não vai conseguir salvar a Azulzinha. Se protege Papel!

MÚSICA DO PAPEL

Se é de papel

voa no céu

se é de metal

brilha na mão

se é de jornal

me faz chorar

não é por mal

me faz chorar

(A chuva é feita numa bacia com água e uma lata furada)

- E o papel foi se proteger noutro quintal, e nesse quintal tinha também outros

personagens que estavam voando no céu, sozinhos.

A GUARDA CHUVA – Que tristeza, ai, estou toda quebradinha! Solta, desmanchada,

desparafusada. Esse vento da madrugada quase me mata! Vou dar um telefonema e

entrar para conserto. (Se arma um telefone com duas latas e cordas segurado de

cima por duas pessoas.)

PAPEL – Me ajude, deixa eu ficar aqui, senão essa chuva me desmancha, também

não vou conseguir achar a Azulzinha.

GUARDA CHUVA – Você está muito molhado, fica aqui até a chuva parar. Eu vou dar

um telefonema. Alo, alo. É do Observatório.

GALINHA – É sim do Observatório.

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GUARDA CHUVA – Quem é que fala.

GALINHA – A Galinha Observatriz!

GUARDA CHUVA – A Galinha! Você está observando tudo direito.

GALINHA – Estou observando tudo, mas quem é que fala.

GUARDA CHUVA – Sou eu a guarda-chuva.

GALINHA – Como vai...

GUARDA CHUVA – Muito mal o Vento da Madrugada quase me mata, estou toda

desparafusada.

GALINHA – Que pena.

GUARDA CHUVA – Olha aqui, a chuva vai continuar muito tempo?

GALINHA – Estão anunciadas chuvas intensas no período.

GUARDA CHUVA – E que é que eu vou fazer?

GALINHA – Eu posso te ajudar, assim que a chuva parar eu telefono e aviso.

GUARDA CHUVA – Obrigada, me telefona. (para a telefonista) mande a conta para o

quintal. Papel a gente vai voar ainda um pouco até a chuva passar.

ATOR – A chuva parou?

ATOR QUE FAZ A CHUVA – Já parei!

GALINHA – Alô, alô! Quer chamar a guarda chuva.

TELEFONISTA – Alô, quer falar com Guarda Chuva de que?

GALINHA – Com o Guarda Chuva Fonseca.

GUARDA CHUVA – Ah, sou eu mesma. Alô, alô! Quem é que fala.

GALINHA – Sou a Galinha Observatriz. Boas notícias pra você.

GUARDA CHUVA – Boas notícias. Quais?

GALINHA – A chuva já parou.

GUARDA CHUVA – Parou, eu não tinha reparado, obrigado, obrigada, você é muito

eficiente, você é muito gentil.

GALINHA – Não tem porquê. Lembranças para sua família.

GUARDA CHUVA – Igualmente. (para a telefonista) Ela é muito educada, muito

gentil! Papel, agora você continua sozinho, mas quando você quiser volta aqui no

meu quintal.

PAPEL – Adeus, guarda-chuva, obrigada pela sua ajuda.

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GUARDA CHUVA – Nós somos teus amigos.

ATOR – E o Papel começou a subir, a subir. Cada vez mais alto, e as nuvens

passavam, mas sem ninguém. De repente viu lá de cima, dormindo esticada numa

nuvem, a Azulzinha.

PAPEL – Azulzinha!

AZULZINHA – Quem me chama!

PAPEL – Sou eu, Papel, do jornal lá do quintal. Volta, vem comigo. Os outros estão

muito tristes desde que você saiu de madrugada.

AZULZINHA – Ah, eu estou aprendendo a voar.

PAPEL – Não vai longe, não. A gente pode voar por cima do quintal.

AZULZINHA – Ah, não quero voltar ainda. Olha, lá no horizonte vejo a cidade

brilhante; eu quero ir até lá. (aparece um Soldado Voador. Música do Soldado

Medieval)

PAPEL – Já sei quem era ele! Ele é lá da cidade brilhante, da cidade Medieval.

Cuidado Azulzinha, cuidado! (O soldado rouba a Azulzinha) A Azulzinha foi roubada!

(chega uma nuvem fazendo barulho de carro)

PAPEL – Este aqui é um personagem tecnológico. Que número você é?

NUVEM – 123. Circular quintal-cidade medieval.

PAPEL – Ah, então me leva até a cidade medieval.

ATORES – E o ônibus levou o Papel até a cidade Mediveal

- A cidade Medieval é uma cidade brilhante, linda, de metal e cristal. Lá dentro é

tudo arrumado, tem o Castelo medieval; la mora o rei Metal Mal.

- Vocês têm que ver: é tudo certo e arrumado. Não é como o quintal. Nem os ventos

entram lá.

- Faz muito tempo que lá nada muda, tudo é igual, tem um grande tédio, um tédio

Medieval.

(Aparece a cidade. O Rei Metal Mal anda em linha reta, marcando ângulos, cruzando

com seus soldados. Chega o Soldado e deixa a Azulzinha em frente do Rei.)

AZULZINHA – O senhor é que é o Rei desta cidade? Sabe que eu gostei dela de

longe agora eu gosto muito mais. Eu só não gostei foi ser roubada pelo seu soldado.

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REI – Ele deve ter confundido com algum inimigo. Meus soldados são obedientes e

não deixam ninguém se aproximar desta cidade. Mas você pode ficar tranqüila,

alegre, satisfeita.

AZULZINHA – Eu já estou muito alegre, estou morrendo de alegria.

REI – Você será muito bem tratada. Poderá andar por toda a cidade e morar no

Castelo Perfeito, sem perigos.

AZULZINHA – É bonito o Castelo! É tudo tão perfeito!

REI – É bonito, perfeito, e sem perigos. Aqui ninguém entra: nem pássaros, nem

ventos, em papéis, nem nuvens, nem nada. Só você.

AZULZINHA – Nem pássaros, nem nuvens, nem ventos?

REI – É, só você! Sabe, eu vou casar com você!

AZULZINHA – Casar comigo!

REI – É você vai ficar aqui. Para sempre.

AZULZINHA – Mas ficar aqui, sem voar, sem nunca mais voltar ao quintal?

REI – Isso mesmo, mas vou organizar antes um grande torneio. Nenhum cavaleiro

que se preze, ou rei, ou sei lá, pode ganhar sua dama sem lutar. Ah, é claro que aqui

na cidade Medieval ninguém será mais forte nem tão perfeito guerreiro como eu.

Soldados, tragam todos os lenços de todos os quintais. Assistirão ao torneio e depois

ficaram com a Azulzinha e se transformarão em bandeiras da Cidade Medieval!

O GUARDA – (anuncia) Por ordem do Rei Metal Mal do Castelo Perfeito. Todos os

lenços de todos os quintais terão de se apresentar e entrar na caixa Estratosférica,

para dirigir-se nela até a Cidade Medieval. (música suave) “Eu sou de seda...” (Desce

uma caixa de papelão e todos os lenços são guardados nela, que novamente é

subida até o alto. O papel chega na cidade e fala com um cartaz pendurado na

porta.)

PAPEL – Posso entrar?

CARTAZ – Aqui você não entra. Aqui só entram os moradores do Castelo Perfeito,

quer dizer os perfeitos do castelo perfeito.

PAPEL – E você? É também perfeito?

CARTAZ – Ah, eu sou um cartaz. Um cartaz giratório. Anuncio o próximo torneio,

onde o Metal Mal vai ganhar a Azulzinha para casar.

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PAPEL – Ah, é? Então vou lutar, vou participar do torneio e levar a Azulzinha para o

quintal.

CARTAZ – (rindo) Você não é medieval, você não tem armadura, nem cavalo, nem

escudo.

PAPEL – É, não tenho, não sou, não sei lutar...

CARTAZ – E ainda que tivesse tudo isso, você não entraria. Aqui só entra metal,

cristal, ouro, prata, seda, renda, veludo, brilhantina, purpurina, lamê, laquê, acrílico.

É melhor voltar.

PAPEL – (falando para si mesmo) É melhor voltar. Sou apenas um papel.

OS OUTROS – Não, não volta, trata de falar com ela aqui de fora.

PAPEL – Mas como ela vai saber que eu estou aqui fora?

OS OUTROS – A gente canta, a gente toca música do quintal, ela escuta e aparece.

(Tocam e cantarolam da Cor do Céu)

PAPEL – (olha para todos os lados enquanto ela não aparece) Ela não aparece, ela

não escuta!

AZULZINHA – (na janela) Papel!

PAPEL – Azulzinha, você se lembra de mim? Você não se esqueceu?

AZULZINHA – Eu me lembro, eu me lembro! Você é o jornal lá do quintal!

PAPEL – Azulzinha, desce que eu quero falar com você. (Azulzinha desce, usa uma

corda como escada, mas fica do lado oposto do Papel). Azulzinha, eu vou te salvar.

AZULZINHA – Agora vai ser muito difícil. E para que voltar ao quintal? Os outros

lenços estão aprisionados lá na Caixa Estratosférica. Serão bandeiras, cortinas,

toalhas, tapetes, nunca mais voaram. Nunca mais vão chegar com as ventanias e o

ar. Volta, Papel, já está escurecendo e acho que o tempo vai esfriar.

ATOR – E o Papel foi embora. Será que volta sozinho para o quintal? Eu estou muito

preocupado com o fim desta história: A Azulzinha ficará para sempre no Castelo

Medieval? E vejam o que está dizendo o Rei Metal Mal aos seus soldados.

REI – Soldados, amanhã será o torneio. Temos que limpar, ordenar, arrumar a

Cidade Medieval. Que tudo brilhe, que tudo seja duro, firme e espelhado. Que não

fique em volta do castelo nenhuma folha seca, nenhum papel velho.

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SOLDADOS – As ordens serão cumpridas, vamos já! (Os soldados saem limpando

tudo. O papel passa voando e eles tentam pegá-lo, desaparecem todos. Parecerá

que o Papel foi aprisionado, mas ele volta e chama os amigos).

PAPEL – Guarda-chuva, Galinha Pintada, Violão, me ajudem, estou muito triste. Os

guardas estão queimando todos os papéis em volta do castelo e eu queria voltar ao

quintal, mas estou cansado.

TODOS – Fica aqui descansando, nós vamos vigiar. (Os amigos ficam vigiando, mas

um soldado pega o Papel e o queima. O soldado vai embora).

ATORES – Cuidado! É tarde demais...

– E agora? Queimaram o papel. A Azulzinha ficou lá na Cidade Medieval e o quintal

ficou sem cores, sem lenços. (Um dos atores fala com a mala de bonecos) Estão

vendo? Tudo por culpa de vocês. Se não fossem vocês nós teríamos aqueles

espetáculos bonitos e fizemos esta história triste. Tudo podia ser mais alegre.

- Você acha que é tão triste?

- É sim, porque o Papel foi destruído e não sabemos como vai ser o final.

- Eu acho que a história acabou, (Ao público) Podem ir embora.

- Assim deste jeito acabou. E não é a primeira vez que a história deste jeito.

- Mas quem é que está inventando esta história? Não somos nós? Quem foi que fez o

Papel? Não foi a gente?

- É, eu dobrei o papel.

- Eu pintei os olhos e a boca.

- Então trás os jornais, vamos fazer um papel muito melhor. Muito mais forte.

- É que ele vai ter que participar do torneio, bota corpo, bota mãos, e um coração

transparente de celofane, para que se veja tudo que se passa dentro.

- É melhor botar um também de metal, já que ele vai lutar contra o Metal Mal! E por

baixo com celofane e por cima um de metal. (Toda esta ação deve ser realizada

procurando que seja ampliada a discussão com o público). Essa lata vai ser o elmo!

PAPEL – Obrigada, vou salvar a Azulzinha! E o meu cavalo?

- Nem de cavalo, nem de ônibus ele chegaria, pois o torneio vai ser hoje, ele tem

que ir voando.

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ATOR – Espere aí, tive uma idéia! (Para o público) Os guardas guardaram o lenço lá

em cima, lá na Caixa Estratosférica.

- A gente faz um vento da madrugada. E faz jogar, sair e desamarrar. (Soltam a

Caixa Estratosférica e fazem cair os lenços)

- E agora faremos um cavalo.

- Não, um camelo.

- Um besouro eletrônico.

- Um tigre de oito patas.

- Um leão voador.

- Não, é melhor um dragão de cores. Um dragão de cores e amores. (Fazem um

dragão cantando a Música do Dragão com todos os lenços presos num pano com

pregadores de varal e uma máscara no meio com formato de dragão).

Vamos fazer um dragão

de muitas cabeças

para poder esta história terminar

uma cabeça, oito cabeças

dez cabeças, doze cabeças

chega, já é demais.

Vamos fazer um dragão

de uma cabeça

com um par de asas lindas para voar

quatro asas, sete asas, oito asas, vinte asas

chega, já é demais.

Vamos fazer um dragão

de uma cabeça

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com um par de asas lindo para voar

oito pontas, doze pontas, quinze pontas, vinte pontas

chega, já é demais.

Vamos fazer um dragão

de uma cabeça

e um par de asas lindo para voar,

dez pontas, muitas cores,

língua de fogo, mil calores

chega, já é demais.

ATOR – E o Papel, com esse elmo, com esse coração, montado num dragão voltou

para a Cidade Medieval para tentar salvar a Azulzinha.

CARTAZ – Quem é você?

PAPEL – Papel Coração de Celo... Quase que eu digo, Papel Coração de Metal. (Para

o público) Mentira, meu coração é de papel de celofane mesmo.

CARTAZ – Pode entrar e esperar que comece pelo torneio.

METAL MAL – É dia do torneio e ainda não se apresentou ninguém para lutar

comigo, já estão todos com medo de mim! Há,há,há. Mas ei de lutar e ganhar como

Rei e Cavaleiro Medieval que sou. Se for preciso, lutarei contra minha própria

sombra.

(Um ator bota uma máscara de metal e segura uma trombeta com estandarte).

CARTAZ – Hoje, aqui neste lugar na grande Cidade Medieval, o grande Rei Metal

Mal, do Castelo Perfeito, lutará com o primeiro cavaleiro que se apresentar. O

vencedor casará com a Azulzinha do quintal.

ATOR – Primeiro cavaleiro.

CARTAZ – Não tem!

ATOR – Segundo cavaleiro.

CARTAZ – Não tem!

ATOR – Terceiro, quarto etc etc etc.

CARTAZ – Não tem!

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REI – Eu acho que vou lutar com a minha própria sombra. Preparem-se todos,

toquem os tambores que o torneio vai começar. Em guarda, minha sombra, ei de

vencer ainda que te perca. Toma, toma! (Luta com sua sombra. Aparece a sombra

do papel). De quem é essa sombra que aí se apresenta?

PAPEL – Essa sombra é minha.

REI – Quem é você?

PAPEL – Eu sou o Papel Coração de Celofane.

REI – Ousas me enfrentar?

PAPEL – Eu não, é a minha sombra que ousa. (As duas sombras lutam, a do Papel

vence e desaparece a sombra do Rei. Isto se fará com dois refletores apagando-se a

sombra do Rei)

REI – Minha sombra foi vencida, estou sem sombra. Agora lutarás com os meus

soldados.

PAPEL – Eu não, meu dragão é quem vai lutar!

(A luta começa e o dragão vai vencendo todos os soldados. Música do Dragão)

PAPEL – Ainda queres continuar a luta comigo? Já estás sem soldado, sem sombra.

REI – Eu sou apenas um boneco, um rei de Metal, eu deixarei sair a Azulzinha, mas

deixe-me ficar aqui no meu castelo.

ATORES – Mas longe do quintal! Bem longe do quintal. (Procura a Azulzinha)

Azulzinha! Azulzinha!

AZULZINHA – Papel!

PAPEL – Azulzinha, a gente vai voltar para o quintal!

AZULZINHA – Com o vento da madrugada!

ATOR – Não, com o vento do Pólo Norte.

- Com o vento da manhã.

- Com o vento de todo mundo!

TODOS – Com o vento de todo o mundo! (Acaba o espetáculo misturando duas

músicas: Primeiro Tempo de lenços e ventos e a segunda Se é de papel.)

Tempo de lenços e ventos

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Tempo de lenços e ventos

São muitas histórias contadas

Ai! Bate no bumbo bumbo

É tempo de lenços e ventos

Ai! Treme e respira violão

Roda roda – Moinho

Roda roda – A Cor

Roda roda – A cantiga

Roda roda – Amor

É tempo de lenços e ventos

Ai! Bate cora – Coração

Não é máquina é gente que canta

Ai! Treme e respira violão

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ANEXO B: Ficha técnica da primeira montagem de História de lenços e

ventos (1974)

HISTÓRIA DE LENÇOS E VENTOS

Autor: Ilo Krugli

Direção geral: Ilo Krugli

Cenários e figurinos: Ilo Krugli

Músicas: Beto Coimbra e Caíque Botkay

Direção musical: David Tygel

Elenco: Alice Reis, Arnaldo Marques, Beto Coimbra, Caíque Botkay, Ilo Krugli, Richard

Roux, Silvia Aderne, Sylvia Heller

Produção: Teatro Ventoforte Ltda.

Data de estréia: fevereiro de 1974 no Festival de Teatro Infantil de Curitiba.

Temporada de estréia no Rio de Janeiro na sala Corpo/Som do Museu de Arte

Moderna/MAM

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ANEXO C: Entrevista com Ilo Krugli (arquivo em wave)

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