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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA ALEXANDRE CAETANO Movimento Estudantil no Espírito Santo 1964/1968: da ditadura militar à reestruturação da Ufes Vitória - ES 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

ALEXANDRE CAETANO

Movimento Estudantil no Espírito Santo 1964/1968:

da ditadura militar à reestruturação da Ufes

Vitória - ES

2013

ALEXANDRE CAETANO

Movimento Estudantil no Espírito Santo 1964/1968:

da luta contra a ditadura à reestruturação da Ufes

Monografia apresentada como requisito para a conclusão do Curso de Graduação de História da Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação do Professor Doutor André Ricardo Valle Pereira.

VITÓRIA 2013

1

Sumário Introdução ............................................................................................................................................... 4

PRIMEIRA PARTE – A LUTA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL CAPIXABA ................................................... 7

1. O golpe militar, a reestruturação do ME capixaba e a conjuntura local ......................................... 7

2 – A esquerda e a disputa pelo DCE da Ufes ................................................................................... 11

3 - A Ufes como laboratório da reforma universitária da ditadura .................................................. 13

3.1 – O início da discussão e a aprovação do projeto ................................................................... 13

4- As mobilizações estudantis no Espírito Santo ................................................................................... 31

4.1 - Antecedentes ............................................................................................................................ 31

4.2 – A mobilização do Restaurante Universitário ........................................................................ 33

4.3 – As manifestações de 1968 .................................................................................................... 37

4.3 – A queda do Congresso de Ibiúna e a desarticulação do ME capixaba ................................. 40

4.3 – A esquerda no ME capixaba ................................................................................................. 44

SEGUNDA PARTE – A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .............................................................................. 51

1 - Literatura sobre o tema ................................................................................................................... 51

1.1 – O ME e o estudante enquanto categoria social ....................................................................... 51

1.2 - A esquerda e a leitura da realidade brasileira ......................................................................... 53

1.3 - Adam Przeworski, a definição de classe média e o individualismo metodológico ................... 54

1.4 – O ME em estados periféricos ................................................................................................... 62

2 - A Universidade, os estudantes e a classe média no período 1964-1968 ......................................... 63

3 – A Esquerda e a análise da realidade brasileira - 1964-1968 ........................................................... 68

5. O debate teórico ............................................................................................................................... 71

TERCEIRA PARTE – A ANÁLISE DE DUAS ENTREVISTAS ......................................................................... 75

1. Análise de entrevistas através do método da História Oral .......................................................... 75

1.1a - A trajetória de Antônio Caldas Brito ................................................................................... 76

1.1b - Tipo de memória ................................................................................................................. 80

1.1c - Temas ....................................................................................... Erro! Indicador não definido.

1.2.a– Perfil de José Maria Cola .................................................................................................... 89

1.2.b – Tipo de memória .................................................................... Erro! Indicador não definido.

1.2.c - Temas ...................................................................................... Erro! Indicador não definido.

Conclusão .............................................................................................................................................. 95

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................................. 98

ANEXO I ............................................................................................................................................... 102

ANEXO II .............................................................................................................................................. 119

2

ANEXO III ............................................................................................................................................. 146

ANEXO IV ............................................................................................................................................. 149

ANEXO V .............................................................................................................................................. 163

3

Introdução O objetivo desta monografia é tratar da configuração e dos eventos que marcaram o

Movimento Estudantil (ME) no Espírito Santo no período de 1964 a 1968, fase

conturbada da história política do país, também caracterizada por profundas

transformações econômicas e sociais, tanto em nível nacional como estadual.

Pretendemos, além resgatar vestígios da dinâmica e da organização estudantil

naquele período, tentar determinar até que ponto o movimento, num Estado

periférico como o Espírito Santo, pode ter sido caudatário do ME nacional, ignorando

ou subestimando questões específicas que marcavam a conjuntura regional.

Na década de 1960, o Espírito Santo sofreu um duro golpe em sua estrutura

econômica, em virtude da política do Governo Federal de erradicação dos cafezais,

com profundas conseqüências sociais e econômicas para o Estado. Na área do

ensino superior, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) passou por uma

reestruturação acadêmica e administrativa afinada com os princípios da Reforma

Universitária pretendida pela ditadura militar, ao mesmo tempo em que os

estudantes se mobilizavam contra os acordos celebrados pelo governo brasileiro,

através do Ministério da Educação e Cultura (MEC), com a agência norte-americana

United States Agency International Developmet (USAID), que se tornaram

conhecidos pela como acordos MEC-USAID1.

Pretendemos estabelecer até que ponto a reforma acadêmica da Ufes não passou

ao largo do ME local em função de sua ligação com a prática e as bandeiras

defendidas pelo movimento nacional e, mais especificamente, pelas correntes de

esquerda que atuavam em seu interior. Sabemos que a reestruturação por que

passou a Ufes no período analisado, alcançou a própria configuração física da

Universidade, que passou de uma espécie de federação de faculdades espalhados

pela Capital, para uma única instituição, dividida em Centros localizados em dois

campi, em Goiabeiras e Maruípe.

Da mesma forma nos interessa saber até que ponto a rebelião estudantil naquele

período, em especial no ano de 1968, com a realização de grandes manifestações e

1 De acordo com Luiz Antônio Cunha e Moacir de Góes (O Golpe da Educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 26), os Acordos MEC-USAID cobriram todo o espectro da educação nacional, isso é, o ensino primário, médio e superior, a articulação entre os diversos níveis, o treinamento de professores e a produção e veiculação de livros didáticos. Entre 1964 e 1968 foram firmados 12 acordos..

4

confrontos de rua, não expressou a insatisfação com o regime vindo muito mais da

classe média do que de outros setores sociais, que acabaram não se mobilizando.

Afinal, é evidente que uma insatisfação generalizada, que colocasse em questão a

ditadura, poderia muito bem ter concretizado o desejo da esquerda brasileira de

abertura de uma crise revolucionária, o que não aconteceu. Muito pelo contrário, o

ano de 1968 terminaria com o recrudescimento do regime de exceção, através da

decretação, no dia 13 de dezembro daquele ano, do Ato Institucional nº 5 (AI-5).

Temos o particular interesse em analisar, se a ampla reação dos estudantes contra

a ditadura naquela época, não refletiu mais os interesses e demandas da classe

média, aos quais os estudantes universitários daquela época estavam ligados

enquanto categoria social, alimentando o ME enquanto movimento social de

resistência ao regime e, posteriormente, a própria generalização da ação dos grupos

que lançaram a luta armada no Brasil, ao quais os jovens universitários constituiriam

o principal contingente. O último desafio é tentar estabelecer até que ponto existiu

uma identidade entre a vanguarda e o conjunto dos estudantes daquele período.

Pretendemos trazer para o âmbito do Espírito Santo uma indagação feita por João

Roberto Martins Filho, no livro Movimento estudantil e ditadura: 1964-1968,2 para

o ME no país: como se deu a participação do ME no processo político de 1964-

1968? Em nossa perspectiva de estudo, baseados na visão de Martins Filho e

Marialice Foracchi3, procuramos nos despir de qualquer tentação em dar ao

Movimento Estudantil o caráter épico que ele costuma receber em representações

construídas por seus atores e mesmo em muitos dos estudos e pesquisas dedicados

ao ME do período que analisamos. Para Martins Filho4 a “mitologia estudantil” é

resultado de uma reprodução ilusória localizada na própria autoimagem elaborada

pelas lideranças universitárias.

Baseado no conceito de categoria social de Nicos Poulantzas5, Martins Filho

apresenta os estudantes como compondo uma categoria social inserida na classe

média, o que faz com que sua situação de classe se torne um fator fundamental na

definição do caráter social de sua participação.

2 MARTINS FILHO, João. Movimento estudantil e ditadura militar: 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987. 3 FORRACHI, Marialice. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. 4 MARTINS FILHO, op. cit., p. 15. 5 Ibid., p.20

5

Para a realização deste trabalho, lançamos mão dos métodos da história oral, para

entrevistar diversas lideranças do movimento estudantil no período analisado.

Também pesquisamos jornais da época junto ao Arquivo Público Estadual (APE) e o

Arquivo Público do Município de Vitória. Nesse aspecto, enfrentamos um problema,

já que a única coleção completa dos matutinos que existiram naquele período no

Espírito Santo é a do jornal A Gazeta. Existem poucos e escassos exemplares do

jornal O Diário, que realizava uma cobertura maior sobre o Movimento Estudantil,

especialmente em 1968, até porque alguns militantes estudantis trabalhavam

naquela publicação.

Também realizamos junto à Diretoria de Apoio aos Órgãos dos Colegiados

Superiores (Daocs) da Ufes, uma pesquisa dos livros de atas de reuniões do

Conselho Universitário da instituição, bem como das decisões e resoluções

emanadas daquele órgão no período de 1963 a 1969.

Outra fonte importante foi livro do professor Ivantir Borgo, já falecido, Ufes: 40 anos6,

apesar de a obra ser totalmente baseado na leitura fria, diríamos metódica, de

documentos produzidos pela instituição. Por último, conseguimos cópias de algumas

poucas publicações das entidades estudantis da época e a ata do último congresso

da União Estadual dos Estudantes do Espírito Santo (UEE-ES), realizado em

outubro/novembro de 1966.

O cruzamento dessas diversas fontes no permitiu um quadro mais amplo de como

se deu a articulação da participação dos estudantes capixabas no político de 1964-

1968, especialmente no curso das transformações e da própria reestruturação da

Ufes. Evidentemente, não temos a pretensão de dar todas as respostas para as

questões que lançamos, mas pretendemos ao menos abrir o caminho para novas

pesquisas.

Nosso trabalho foi dividido basicamente em três partes. Na primeira parte

pretendemos estabelecer um panorama dos principais eventos que marcaram o

período assinalando suas especificidades e articulações. Dedicamos a segunda

parte à discussão sobre a fundamentação teórica do nosso trabalho. Finalmente, na

terceira, utilizando os métodos da história oral, analisamos a entrevistas de dois ex-

estudantes da Ufes que estudaram na Ufes naquele período. Um deles, militante do

6 BORGO, Ivantir A. UFES 40 anos de história. Vitória: UFES/ SPDC, 1995.

6

ME local, o outro, não era um ativista e nem acompanhava as ações do movimento.

Mas também não se enquadra no perfil do aluno “alienado”.

PRIMEIRA PARTE – A LUTA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL CAPIXABA 1. O golpe militar, a conjuntura local e a reestruturação do ME capixaba

O ME foi o primeiro dos movimentos sociais e populares do país a superar a

profunda desestruturação provocada pelo golpe civil-militar de 1º de abril de 1964,

que desencadeou um processo de perseguições, prisões, inquéritos policiais

militares (IPM´s), cassações de mandatos parlamentares, intervenções em

sindicatos e fechamento de entidades populares. Mesmo com a forte repressão,

ainda em 1964, poucos meses depois, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e

boa parte das entidades estudantis já haviam se reestruturado e começaram a

organizar a resistência à nova situação criada, que mergulharia o país em 21 anos

de regime de exceção, violência e arbítrio.

Nos próximos quatro anos, entre 1964 e 1968, até a decretação do AI-5, o ME se

constituiria na linha de frente da resistência dos movimentos populares contra a

ditadura militar no Brasil. No Espírito Santo não seria diferente. Depois de ter sua

sede invadida, a diretoria da UEE comandada pelo estudante de Odontologia Jaime

Lanna Marinho, preso após o golpe, foi afastada por uma intervenção decretada pelo

Conselho da entidade. Em uma nota oficial publicada no jornal A Gazeta, assinada

por representantes de sete Diretórios Acadêmicos, uma Junta Governativa foi

nomeada para dirigir a entidade, presidida pelo então presidente do DA da

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Fafi), Hégner Araújo7.

Três meses depois, a União Estadual dos Estudantes (UEE) realizou eleições para

escolher uma nova diretoria. Duas chapas participaram da disputa, uma com o

sugestivo nome de Primeiro de Abril, presidida pelo estudante de Direito José Carlos

Nascif; a outra de esquerda, encabeçada pelo estudante de Medicina José Monteiro

Netto, que venceu o pleito com 415 votos contra 338 votos dos oponentes de direita.

A chapa de Nascif ganhou apenas nas faculdades de Direito, Engenharia e na

Escola de Música8, perdendo nas outras seis.

7 NOTA oficial. A Gazeta. Vitória, pg. 03, 8 de abr. de 1964. 8 MONTEIRO ganha por 39 a 18 de José Nascif: UEE. Esquema 68. Vitória, pg. 1, jun. de 1964.

7

O pano de fundo em que se desenvolveram as mobilizações estudantis, no caso do

Espírito Santo, foram as transformações que marcaram o Estado nos anos 1960. Até

o início da década, a estrutura econômica do Espírito Santo era dominada pela

monocultura do café em pequenas propriedades. A maioria da população – cerca de

70% - vivia predominantemente na área rural. A crise da produção cafeeira no país,

que determinou a decisão do Governo Federal de erradicar os cafezais capixabas,

então considerados de baixa produtividade, teria conseqüências dramáticas para a

economia e a sociedade capixabas naquele período.

Apesar da importante atividade da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que

escoava a produção de minério de ferro pelo Porto de Vitória, a maior parte das

atividades de industrialização e comercialização existentes no Estado também

estavam ligadas à produção cafeeira e não escaparam aos efeitos da crise. Desde

o governo de Jones dos Santos Neves (1951-1955) existiam iniciativas que visavam

inserir o Espírito Santo no processo de modernização industrial, mas elas só

produziriam efeitos mais concretos no decorrer da década de 1970, com a

implantação dos chamados “Grandes Projetos” como a Samarco, a Aracruz Celulose

e a Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST).

Uma importante iniciativa para o desenvolvimento econômico do Estado naquele

período seria a inauguração pela CVRD, em 1966, do Porto de Tubarão e,

posteriormente, em 1969, da primeira usina de pelotização da empresa. No entanto,

apenas no final da década de 1960, se concretizaria a criação de mecanismos que

pudessem tornar realidade o sonho das elites dirigentes do Estado de

industrialização, como o Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo

(Funres) e o Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap), que

teriam grande importância nesse processo de transformação da base econômica do

Espírito Santo.

As mudanças econômicas ocorridas naquele período também resultariam em

transformações no perfil urbano da Grande Vitória. A crise da produção cafeeira

desencadeou um amplo fluxo populacional em direção à Grande Vitória, cujos

municípios não tinham infraestrutura para abrigar esse contingente de pessoas, o

que resultou na metropolização e no grande adensamento populacional da região

formada pelos municípios de Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica, com a

consequente criação de dezenas de novos bairros e a formação de grandes bolsões

de miséria.

8

No início da década de 1960, Vitória era uma pacata capital com pouco mais de 83

mil habitantes9. Entre os municípios que compõe a Grande Vitória, cuja população

total era de aproximadamente 210 mil habitantes, existiam muitos espaços

geográficos e populacionais que viriam a ser preenchidos no decorrer dos anos

seguintes.

Apesar de uma certa tradição de organização em algumas categorias, como

ferroviários e trabalhadores da área portuária, inclusive com a existência de

organismos de articulação sindical e de movimentos populares, como o Movimento

Intersindical Anti-arrocho (MIA), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o

Conselho Sindical e a Frente de Mobilização Social (FMP), no início da década de

1960 o movimento sindical e popular no Espírito Santo não era tão forte e articulado

como de Estados do país que passavam por um processo de industrialização e

urbanização mais intensos.

No caso do ensino superior do Espírito Santo, se o número de estudantes

universitários no país em relação ao país era pequeno, o que dizer de um Estado

que possuía uma população predominantemente rural e nenhum grande centro

urbano no início da década de 1960? De acordo com o estudo elaborado pela

Comissão de Planejamento da Ufes, entre 1962 e 1966, o número de inscritos no

vestibular da Ufes passou de 793 para 1.541 candidatos, um crescimento de

94,32%. O crescimento das vagas na Universidade foi bem menor, de 505 em 1962

para 670 em 1966, um total de apenas 32,67% e no qual está incluída a criação de

novos cursos10.

De 1.238 alunos matriculados em 1962, a Ufes passou para 2,071 matrículas em

1966, um crescimento de 67,28%11. De acordo com o mesmo estudo, para uma

população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de

1.343 milhão de habitantes (1964), o Espírito Santo tinha um índice de 1,18

estudantes por cada 1 mil habitantes, menor que a média nacional, que era de 1,4

para cada 1 mil estudantes12.

9 CASTIGLIONI, Aurélia H; BRASIL, Guntemberg H. Dinâmica populacional de Vitória. Vitória, s/d,; Disponível em: <http://www.vitoria.es.gov.br/arquivos/20110511_agendavix_populacao_resum.pdf.>. Acesso em 01 ago. 2013. 10 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO. CONSELHO UNIVERSITARIO. Plano de reestruturação da Universidade Federal do Espirito Santo, aprovado pelo Conselho Universitário, através da resolução n. 11, de 17 de julho de 1967.Vitória, s.d., p. 8 11 É preciso levar em conta que o curso de Medicina foi criado exatamente em 1962, além de outros cursos no âmbito da Fafi. 12 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO. CONSELHO UNIVERSITARIO. Op. Cit., p. 13.

9

A Universidade do Espírito Santo (UES), criada em 1954 pelo Governo do Estado,

seria federalizada em 1961, através da Lei Federal nº 3.868, de 30 de janeiro de

1961. De acordo com a mesma, constituiriam a então UES, mais tarde transformada

em Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) 13, as faculdades de Direito,

Ciências Econômicas, Belas Artes, Odontologia, Medicina, Educação Física, de

Filosofia, Ciências e Letras (Fafi) e a Escola Politécnica.

Com relação ao ME local, a UEE foi criada em 1951 por estudantes ligados a

posições conservadoras14. A hegemonia conservadora, conforme depoimento de

Jaime Lanna Marinho15, seria mantida até 1962, quando foi eleita uma diretoria

liderada pelo então estudante de Direito Dílton Lírio Neto16. De acordo com ele, foi o

momento em que se estruturaram junto ao ME no Estado, a Ação Popular (AP),

organização formada pela esquerda católica, a partir da Juventude Universitária

Católica (JUC), mais tarde evoluiria em direção ao marxismo e ao maoísmo, e o

Partido Comunista Brasileiro (PCB). Até então era tudo tranquilo. O Espírito Santo era ausente das grandes decisões do movimento estudantil. A partir de 62 em diante, o Espírito Santo começou a ser percebido em nível nacional. Tanto que, em 62, a própria UNE realizou uma reunião do seu conselho aqui. Foi uma revolução em termos de um Estado pequeno, sem expressão nacional, completamente sem voz ativa a nível nacional. Isso aconteceu porque a UNE sentiu que a diretoria da UEE daquela época tinha as mesmas ideias 17.

Depois do golpe de 1964, o movimento sindical capixaba ficou totalmente

destroçado. As entidades foram ocupadas pelos chamados “pelegos”, dirigentes

conservadores instalados nas diretorias dos sindicatos com o aval do Ministério do

Trabalho do regime militar. Como em boa parte do país, o movimento sindical

capixaba só voltaria a recuperar alguma influência no final da década de 1970, com

o surgimento das oposições sindicais e ascensão de dirigentes comprometidos com

uma nova visão de sindicalismo, mais sintonizado com a luta dos trabalhadores.

Também no Espírito Santo, como no resto do Brasil, caberia ao ME local capitalizar

o movimento de resistência ao regime.

13 Através da Lei nº 4.759, de 22 de agosto de 1965, a ditadura determinou que todas as Universidades mantidas pela União e vinculadas ao MEC sediadas na capitais dos Estados, deveriam ser qualificadas de Federais e ter a denominação do respectivo Estado. 14 O primeiro presidente da UEE foi Setembrino Pelissari, mais tarde prefeito biônico de Vitória por dois mandatos. Também fazia parte da diretoria, o ex-governador Elcio Alvares (DEM), atualmente exercendo mandato de deputado estadual. 15Jaime Lanna Marinho, presidente da UEE no período 1963/1964, entrevista em 10/11/1995. 16 Dilton Lírio Netto viria a ser mais tarde deputado estadual por três mandatos e presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) – 1987-1989. 17 Jaime Lanna Marinho, entrevista em 10/11/1995.

10

E, de fato, pode-se afirmar que o ME capixaba esteve muito ativo durante o período

compreendido entre 1964 e 1968. Embora enfraquecida pelo corte de verbas oficiais

e as condições de ilegalidade, que se agravaram com fechamento definitivo de sua

sede pela Delegacia de Ordem Pública e Social (Dops), em 1967, a UEE continuou

existindo até 1968. Seu último congresso foi realizado em 1966, quando foi eleito

presidente o estudante de Medicina Antônio Carlos Dall´Orto.

2 – A esquerda e a disputa pelo DCE da Ufes

O Diretório Central dos Estudantes (DCE) fazia parte da estrutura oficial da Ufes e

foi formado por estudantes de posições conservadoras em 196318. Seus estatutos

foram apresentados na reunião inaugural do Conselho Universitário da UES para

que fossem aprovados pelo colegiado19. Além da ligação orgânica com a estrutura

administrativa, o DCE não possuía maior representatividade e adotava uma linha

mais recreativa e assistencialista. Entre as atividades organizadas pela entidade

estava o concurso de Rainha Universitária, a Festa Junina Universitária e a Páscoa

Universitária. Não era pois uma referência para a mobilização dos estudantes. O DCE foi mantido sob controle de estudantes ligados à posições de direita até

1967, quando a esquerda conseguiu conquistá-la, assim mesmo através de uma

eleição indireta, numa chapa presidida pelo estudante de Direito, Carlos Magno

Gonzaga Cardoso, considerado de posições moderadas. O DCE havia ganhado

importância para esquerda já que, além de funcionar na legalidade, a entidade

possuía um patrimônio formado por duas salas localizadas no Edifício Sarkis, no

Centro de Vitória, e ainda recebia verbas da universidade. O fechamento definitivo

da sede da UEE20, localizada na Rua Washington Luís, colocada na ilegalidade,

seria um outro fator importante para essa tomada de decisão, já que na Ufes

estavam matriculados mais de 90% dos universitários do capixabas.

O depoimento de Perly Cipriano, então estudante de Odontologia e militante do PCB

ratifica essa posição da esquerda universitária. Como o tempo, vimos que a visão do DCE como instrumento da reitoria não era correta, porque enquanto aqui no Estado, nós deixávamos a entidade

18 O primeiro presidente do DCE foi o estudante Wallace Bresciani, que presidiria a entidade até novembro de 1964, quando se afastou da entidade e foi substituído por sua vice, Rita de Cássia Rezende, que anos mais tarde se tornou professora do curso de Pedagogia da Ufes. 19 O Conselho Universitário da UES federalizada foi instalado na sessão de 16 de abril de 1963. 2020 Seguindo o que previa o Decreto-Lei 228, de 28 de fevereiro de 1967, o patrimônio da UEE foi incorporado à Ufes.

11

meio de lado, nas mãos da direita, em outros Estados quase todos os DCE´s tinham um grande papel na mobilização dos estudantes, como era o caso da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), onde o DCE foi invadido pela polícia. Nós resolvemos concorrer na eleição de 1966 e participamos ativamente21

Mas mesmo contando na sua composição com dois ex-presidentes da UEE, Dilton

Lírio Neto e José Monteiro de Souza Netto, a esquerda fracassou em sua primeira

tentativa de ganhar o DCE. Nas eleições realizadas de forma direta, em maio

de1966, a chapa presidida pelo estudante de Engenharia Mário Petrochi, foi

fragorosamente derrotada pela da direita, liderada pelo estudante de Odontologia

Jorge Pires Encarnação.

Curiosamente, quem fazia parte da chapa de Encarnação, como diretor de Esportes,

era o futuro governador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – 1995-1998 - e então

estudante de Medicina Vitor Buaiz22. No ano anterior, Pires Encarnação havia

concorrido e perdido a eleição para o Departamento Estadual dos Estudantes (DEE) 23.

Com exceção de 1968, quando a luta em torno do preço das refeições do recém-

inaugurado Restaurante Universitário (RU) fez surgir a figura carismática do

estudante de Medicina César Ronald Pereira Gomes, que depois de se destacar

naquela mobilização, acabaria eleito presidente do DCE, os vestígios existentes não

parecem confirmar a imagem de um ME de massas e permanentemente mobilizado,

conforme dão a entender os depoimentos de boa parte dos militantes estudantis

daquela época.

E não parece ser só porque não havia um significativo número de estudantes

universitários no Espírito Santo. Naquela época, além da Ufes, existiam em Vitória

oferecendo cursos de nível superior a Faculdade de Serviço Social, mantida pelo

Senac, e a Faculdade de Teologia, ligada à Igreja Católica.

Voltando ao DEE, na eleição para a diretoria da entidade fantoche da ditadura, em

agosto de 1965, cuja participação era obrigatória para todos os estudantes

universitários, mesmo com o significativo número de votos nulos e em branco (687

21 Perly Cipriano, entrevista realizada em 22/08//1995. 22 Vitor Buaiz já havia feito parte de outra diretoria do DCE, de orientação também conservadora, na gestão 1963/1965, tendo representado a entidade numa sessão solene realizada pelo Conselho Universitário para homenagear o ministro da Saúde da ditadura, em 15/03/1965, conforme mostram as atas do colegiado. 23 O Departamento Nacional dos Estudantes (DNE) e os Departamentos Estaduais dos Estudantes (DEE´s) foram entidades criadas pela ditadura militar através da Lei 4.464/64, conhecida como Lei Suplicy de Lacerda, em referência ao Ministro da Educação do então marechal-presidente Castelo Branco, Flávio Suplicy de Lacerda, com o objetivo de tentar esvaziar a UNE e as Uniões Estaduais dos Estudantes (UEE´s). A tentativa fracassou e o único DEE que viria a se consolidar foi o do Rio Grande do Sul, que funcionou até 1979.

12

votos), 1.006 estudantes votaram nas duas chapas de direita que disputaram o

pleito. A chapa vencedora, liderada pelo estudante de Direito Tarcísio Sonegheti,

obteria 656 votos, contra 350 votos da chapa de Encarnação.

No mesmo mês de agosto de 1965, a direita também ganhou a eleição do Diretório

Acadêmico da Fafi24, com uma chapa liderada pelo estudante Frederico Seide, aluno

de certa idade, que inclusive já havia sido presidente da entidade anteriormente. Ele

derrotou a chapa de esquerda, cujo presidente era o então estudante Renato Viana

Soares, militante do PCB e que, mais tarde, seria presidente estadual do PSB e

candidato ao Senado Federal por duas vezes. No discurso de posse, Seide disse

que não concordava com o que chamava de “subversão”, razão para que ele

resolvesse se candidatar, mesmo sem condições de trabalho. E estamos falando de

uma faculdade que era dita como reduto da esquerda estudantil.

3 - A Ufes como laboratório da reforma universitária da ditadura

3.1 – O início da discussão e a aprovação do projeto

Apesar da grande mobilização do ME em todo Brasil contra os famigerados acordos

MEC-USAID, instrumentos que contribuíram para que ditadura militar estabelecesse

as bases para a Reforma Universitária, enfim efetivada com a edição da Lei nº

5.540, em 28 de dezembro de 1968, nos chama a atenção a falta de notícias acerca

de mobilizações estudantis concretas contra o fato da Ufes ter sido um dos

laboratórios da reforma universitária planejada pelo regime militar.

Aliás, o que nos parece é que ME local não se deu conta da dimensão do processo

de reestruturação que se desenvolvia dentro da Ufes, pois não se pode afirmar que

ela tenha sido feita de forma oculta. Publicações feitas pelas entidades estudantis e

os depoimentos de algumas de suas principais lideranças, mostram que eles tiveram

conhecimento do que se passava naquele momento. No jornal O Diário, em especial

nos anos de 1967 e 1968, artigos foram publicados sobre essa reestruturação.

É bem verdade que a discussão institucional sobre a reestruturação da Ufes

aconteceu no âmbito do Conselho Universitário e, na maior parte do período

analisado, a representação estudantil naquele órgão colegiado foi formado por

lideranças conservadoras. Mas nada impediria que as lideranças mais combativas

24 Localizada no Centro de Vitória, a Fafi reunia os cursos da área de Ciências Humanas e de licenciatura.

13

buscassem levar esse debate para o conjunto dos estudantes. As publicações a que

tivemos acesso tratam de forma apenas informativa o processo que tramitava nos

órgãos superiores da Universidade.

Na vanguarda da luta contra a ditadura, com uma avaliação da conjuntura política

nacional sobre uma crise insolúvel da ditadura militar25, os setores da esquerda local

parecem não ter sido capazes de traduzir esse discurso para a análise de situações

específicas, principalmente nos Estados periféricos, onde a mobilização era

diferente de Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Naquela época, a

representação estudantil no Conselho Universitário, de acordo com o estatuto da

Ufes, era formada pelo presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e um

representante estudantil eleito pelos estudantes.

Borgo registra que, em junho de 1966, a Ufes recebeu a visita de Rudolph P. Atcon,

técnico do USAID e autor de um célebre relatório sobre a situação do ensino

superior brasileiro, que recebeu o seu nome. Atcon foi posteriormente contratado

para elaborar um plano de reestruturação da universidade26. Através da Resolução

nº 17/67, de 24 de junho de 1966, o Conselho Universitário aprovou a criação de

uma Comissão de Planejamento, destinada a proceder a reestruturação da

Universidade, nos termos da Mensagem nº 06/66, do reitor Alaor de Queiroz Araújo,

de 21 de junho de 1966.

A senha estava dada para a contratação de Atcon. O artigo 2º da resolução

estabelecia que caberia ao reitor a designação ou contratação dos membros que

comporiam a Comissão, em número não superior a cinco pessoas, pelo período de

dois anos. Pelo artigo 3º, o reitor foi autorizado a destacar do fundo destinado à

Cidade Universitária, a importância de Cr$ 50 milhões para atender as despesas

iniciais dos estudos e planejamentos especificados na Mensagem nº 06/66, bem

como as que fossem necessárias ao seu adequado funcionamento.

A poderosa Comissão de Planejamento foi presidida pelo professor Ivan Ramos de

Medeiros (que faleceria em maio de 1967) e composta ainda por Marcello Antônio

Basílio, Stélio Dias e Manoel Ceciliano Sales de Almeida. Os dois primeiros, mais

tarde, viriam a ser secretários de Estado da Educação, o primeiro, de 1999 a 2002, o

segundo, de 1979 a 1982. Dias também seria deputado federal por dois mandatos,

25 REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense; [Brasília]: CNPq, 1990. 26 BORGO, op. cit., p. 74

14

primeiro pelo PDS e depois pelo PFL (1983 a 1991). Manoel Ceciliano de Almeida

foi reitor da Ufes de 1979 a 1982.

Atcon foi contratado pela Comissão de Planejamento para elaborar o projeto de

reestruturação, apresentado em dezembro de 196627, que serviu de base para os

estudos desenvolvidos pela Comissão. O Plano de Reestruturação Acadêmico-

Científica da Ufes, elaborado em cima da proposta do técnico do USAID, foi

entregue aos membros do Conselho Universitário na reunião realizada em 04 de

abril de 1967. O que nos chama a atenção para o “pioneirismo” da proposta da Ufes

é que, posteriormente, mesmo sem as alterações feitas pelo Conselho Universitário,

o projeto foi publicado no Rio de Janeiro e pela editora da Universidade Federal de

Santa Catarina28.

Através da Mensagem nº 04/67, de 04 de abril de 1967, o reitor Alaor de Queiroz

Araújo explicou que a nova estrutura acadêmico-científica se encontrava dentro do

espírito que norteava a política para o ensino superior preconizado pela ditadura

militar, através do Decreto-Lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, suplementado

pelo Decreto-Lei nº 252, de 28 de fevereiro de 196729. É importante destacar que os

dois decretos-lei foram editados depois que a Comissão de Planejamento já havia

sido criada pela Ufes e Atcon apresentado a sua proposta de reestruturação da

universidade.

No final de sua mensagem, Queiroz Araújo manifesta a sua confiança de que, num

esforço conjunto, pudessem ser dadas à Ufes, as diretrizes básicas para assegurar

o seu desenvolvimento. Já a Comissão de Planejamento, através do ofício nº

111/67, de 31 de março de 1967, anexado à mensagem e lido na mesma reunião do

Conselho Universitário, explicou como foi desenvolvido o trabalho de elaboração da

nova estrutura acadêmico-científico. Seus integrantes assinalaram que o

conhecimento prévio da estrutura vigente era parte fundamental de sua missão, a

fim de que pudessem, conscientes da problemática universitária, apresentar ao reitor

e ao órgão máximo da Ufes, um plano calcado nas reais necessidades do meio em

que a Universidade estava inserida e que viesse de encontro das aspirações dos

universitários capixabas e da comunidade espírito-santense.

27 Ibid., p. 75 28 ATCON, Rudolph. Proposta para a reestruturação da Universidade Federal do Espírito Santo. Florianópolis: Imprensa Universitária da UFSC, 1967. 29 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 04 de abril de 1967.

15

Assim pensando, a Comissão de planejamento fez o levantamento estatístico de toda a Universidade desde o ano de 1962, compreendendo: demandas e oferta de ensino, inscrições nos vestibulares e matrículas nas primeiras séries, atendimento escolar e graduação, relação professor-aluno, etc. De posse desses dados, procedemos a minuciosa análise, através de estudos comparativos entre as unidades de ensino existentes, e entre a Universidade Federal do Espírito Santo e as suas coirmãs localizadas nos diversos pontos do país30.

Para conhecer os custos reais da Ufes, a Comissão de Planejamento contratou o

economista Enyldo Carvalhinho, para que ele fizesse um levantamento de todas as

despesas da Universidade desde a sua federalização, em 1961, até o dia 31 de

dezembro de 1966, permitindo estabelecer o custo médio aluno-ano por unidade do

ensino. Prosseguindo o relato, a Comissão informa que, em paralelo ao trabalho de

diagnose, encomendou ao “conhecido e renomado técnico Rudolph P. Atcon”, um

anteprojeto de estrutura pedagógica, que após aceita por ela, passou a constituir o

arcabouço do Plano. Sobre o trabalho do técnico Atcon, a Comissão de Planejamento procurou ouvir as vozes mais categorizadas desta Universidade, promovendo seminários com professores e alunos, a fim de que houvesse franco debate sobre a tese apresentada. Do minucioso estudo procedido pela Comissão e dos entendimentos havidos com o pessoal desta e de outras universidades surgiu a necessidade de alguns ajustamentos que, entretanto não alteraram as linhas mestras do anteprojeto elaborado pelo professor Atcon31.

A Comissão assegura em seu documento que questionários foram distribuídos a

estudantes e professores a respeito da problemática universitária no qual ela teria

tido a oportunidade de “sentir” o pensamento dos universitários e aquilatar, através

de dados precisos, as deficiências da estrutura universitária daquela época. A não

ser que o relato da Comissão tenha sido totalmente falso, o processo de elaboração

do plano não foi feito de forma sigilosa ou escondida, mas teria mobilizado toda a

estrutura da Universidade. No entanto, é importante assinalar, encontramos no

projeto apenas dados relacionados ao número de professores que teriam respondido

os questionários. Não há nenhuma referência aos questionários de alunos32.

No final da mesma reunião de 04 de abril de 1968, o reitor Queiroz Araújo

determinou a distribuição do Volume I do Plano de Reestruturação Acadêmico-

Científico para os integrantes do Conselho Universitário e sugeriu a formação de

uma comissão, a ser integrada por um representante de cada Comissão

30 Ibid, id. 31 Ibid. id. 32 O então estudante da Escola Politécnica, José Maria Cola, disse nunca ter ouvido falar na reforma e nem se lembra de ter preenchido nenhum questionário relacionado ao tema.

16

Permanente do colegiado e do corpo discente. No entanto, um dos representantes

discentes, o conselheiro Rodrigo Loureiro Martins, sugeriu que o projeto fosse

apreciado na reunião seguinte e que os membros da Comissão de Planejamento

estivessem presentes, quando então seria verificada a necessidade ou não de

constituição de uma comissão.

Assim, o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica seria intensamente debatido

na sessão de 10 de abril de 1967. Mas, para se ter uma ideia de como essa

discussão se desenvolveu, talvez expressando o quadro de autoritarismo que vivia o

país na época, o conselheiro Filemon Tavares disse que o plano não podia ser

rejeitado, senão em pequenos detalhes, em virtude dos imperativos legais. A

preocupação dele era saber qual seria a etapa seguinte da reforma33.

O conselheiro João Soares de Mello disse que o que fora apresentado como plano

era, no seu entendimento, no sentido estrito, um organograma da futura

Universidade, que estava consubstanciado na legislação vigente, restando ao

Conselho Universitário apenas aprová-lo. O então presidente do DCE, Jorge

Augusto Pires Encarnação, ligado a posições de direita e estudante da Faculdade de

Odontologia, fez um questionamento tipicamente corporativista, indagando como se

faria a integração entre aquela unidade e a Faculdade de Medicina, embora

dissesse que concordava com a integração entre os dois cursos para a execução de

um trabalho em prol da Ciência e do desenvolvimento das duas faculdades.

O representante estudantil também questionou os membros da Comissão de

Planejamento sobre como ficaria a representação estudantil, pois embora o plano

previsse que seria seguida a legislação em vigor, a mudança da Universidade seria

radical e as leis, portanto, segundo ele, não seriam mais válidas para a Ufes34. Além

da demonstração de preocupação com a garantia da representação estudantil na

nova estrutura, comum às posições das lideranças estudantis da direita liberal

naquele período, a manifestação de Encarnação sobre a integração da Odontologia

e Medicina, mostra também de onde vinham as maiores preocupações e

resistências às propostas previstas no plano.

Os representantes estudantis se manifestariam ainda na reunião do dia 10 de abril

de 1967, mas sem questionar os fundamentos do projeto, seu formato ou os

métodos usados para a sua elaboração. O conselheiro Rodrigo Loureiro Martins

33 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 10 de abril de 1967. 34 Ibid., id.

17

defendeu a necessidade de representação estudantil no Conselho de

Coordenadores de Curso, cuja formação estava sendo proposta no Plano de

Reestruturação. Marcello Basílio, membro da Comissão de Planejamento,

respondeu que a representação seria feita na forma da lei e que o planejamento

proposto pelo plano deveria ser acompanhado do novo diploma básico da

Universidade, o estatuto da instituição.

Uma importante colocação foi feita pelo presidente da Comissão de Planejamento,

Ivan Ramos Medeiros, que morreria semanas depois, antes da aprovação do

documento pelo Conselho Universitário, o que a nosso ver, parece comprovar

natureza original do plano elaborado na Ufes no âmbito da reforma universitária

gestada pela ditadura. Segundo ele, embora os Decretos-Lei 55/66 e 252/67

tivessem sido publicados quando o plano já estava sendo impresso, a comissão

tivera o cuidado de verificar se o mesmo estava de acordo com os dispositivos

legais, chegando a uma conclusão “afirmativa”.

O debate sobre o anteprojeto prosseguiria na sessão do dia 12 de abril de 1968 do

Conselho Universitário35, quando os membros da Comissão de Planejamento

voltaram a responder aos questionamentos dos conselheiros, dessa vez

acompanhados também do economista Enyldo Carvalhinho, que prestou assessoria

à comissão. Na sessão seguinte36, o conselheiro Ademar Martins, diretor da

Faculdade de Direito, propôs que fosse nomeado um relator para o projeto do Plano

e que fosse dado um prazo de 20 dias para o recebimento de emendas e sugestões,

devidamente justificadas, que deveriam ser entregues por escrito ao relator. A

proposta foi aprovada e o conselheiro Emílio Roberto Zanotti foi indicado para ser o

relator do Plano.

Aproximadamente três meses depois, o conselheiro Emílio Roberto Zanotti

finalmente apresentou o seu parecer para o projeto e as 22 emendas apresentadas

por diversos setores da Universidade37. O maior número de emendas veio

exatamente das Faculdades de Medicina e Odontologia e expressavam a

preocupação e resistência desses setores à integração dos dois cursos no Centro de

Ciências da Saúde (CCS) proposta por Atcon. Com a eleição de uma nova diretoria

do DCE, no final de maio, a representação estudantil havia mudado, sendo agora

35 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de abril de 1967. 36 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 14 de abril de 1967. 37 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de julho de 1967.

18

formada por Carlos Magno Gonzaga Cardoso, novo presidente da entidade, e Jorge

Pires Augusto Encarnação, agora como representante discente. Na reunião, os

conselheiros definiram que o relatório sobre o Plano só seria discutido depois que

fossem discutidos e votados os pareceres sobre as emendas.

Em seu parecer, lido durante a sessão, Zanotti conclui que: 1º) O plano proposto atende os princípios e normas fixados pelos Decretos-Lei nº 53 e 252; 2º) É perfeitamente válida a estrutura pedagógica matério-cêntrica e a departamentalização da Universidade; 3º) Os órgãos de execução do ensino e da pesquisa em: unidades universitárias – representadas pelos Centros - e em subunidades – representadas pelos Departamentos – não contrariam as normas legais; 4º) Incluir as Artes nas áreas de conhecimento humano; 5º) A competência e atribuições dos órgãos colegiados serão estabelecidas no estatuto da Universidade; 6º) Os recursos financeiros disponíveis em cada orçamento destinados a obras serão aplicados em construções nas áreas que constituem o Campus Universitário. Nas instalações das atuais unidades que não irão ser transferidas para o campus, serão executadas apenas serviços de conserto, manutenção e pequenas obras, que pela sua natureza, sejam consideradas inadiáveis; 7º) A parte do Plano referente a nomeação e forma de indicação dos Diretores de Centros, à composição dos órgãos colegiados e a modalidade de escolha de seus membros, bem como a nomeação e escolha do Coordenador Geral e Coordenadores de Carreira será apreciada pelo Egrégio Conselho Universitário quando a ele for encaminhado o Projeto de Estatuto da Universidade; 8º) Os Centros, os Departamentos e todos os detalhes do Plano, exigirão uma organização adequada, uma perfeita e clara definição de funções e responsabilidade e um regime de autoridade bem definido para que a nova estrutura seja aplicada com pleno êxito; 9º) A Estrutura Acadêmico-Científica elaborada pela Comissão de Planejamento, fundamentada na ideia de uma Universidade contemporânea, estabelecida pelo Professor Atcon, é perfeitamente aplicável à Universidade Federal do Espírito Santo, podendo, com as alterações contidas nas conclusões anteriores, ser aprovado pelo Egrégio Conselho Universitário38.

A discussão e votação das emendas começaram na sessão de 12 de julho de 1967

e se estenderam por reuniões realizadas nos dias 14 e 17 de julho de 1967. Jorge

Augusto Pires Encarnação participou de todas elas, mas o presidente do DCE,

Carlos Magno Gonzaga, não esteve na primeira. No debate e conteúdo de algumas

emendas, mais uma vez se revela a preocupação dos professores das Faculdades

de Medicina e de Odontologia com a integração das duas unidades num único

Centro. A apreciação de três emendas, provenientes das duas faculdades, provocou

uma acalorada discussão nas reuniões dos dias 14 e 17 de julho, quando elas

acabaram sendo rejeitadas, por 10 votos a seis. Em síntese, elas tratavam da

conservação das faculdades existentes na época, ao invés de integrá-las em

38 Ibid., id.

19

centros, que era um ponto chave do projeto, junto com departamentalização e a

criação do sistema de créditos.

Respondendo à apreensão dos representantes das faculdades, em seu parecer

sobre as emendas, o conselheiro Zanotti esclareceu que a implantação da nova

estrutura da universidade deveria se processar de modo gradual e progressivo, em

função dos meios propícios à sua execução. “As atuais Escolas e Faculdades serão

mantidas no período de transição, devendo, entretanto, ser integradas

gradativamente na nova estrutura à proporção que for executada a implantação” 39.

Na sessão da manhã do dia 17 de julho de 1968, ao fazer a justificativa de seu voto

contrário às emendas, o presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, disse

que votava a favor do parecer, sem qualquer desejo de apagar escolas ou diminuir a

formação profissional de quem quer que fosse sendo favorável à preservação das

peculiaridades profissionais de cada área profissional. Conhecido por suas posições

moderadas, embora no DCE estivesse à frente de uma diretoria de esquerda, o líder

estudantil afirmou que entendia que, na forma como se vinha processando a

educação superior no país, os defeitos do plano eram superados pelas vantagens,

posição que recebeu o apoio de Jorge Augusto Pires Encarnação40.

Por sua vez, o conselheiro João Luiz Horta Araújo, representante da Faculdade de

Odontologia, que havia votado a favor das emendas e contra o parecer, justificou

seu voto alegando que a extinção de escolas e faculdades propostas pelo plano feria

frontalmente a lei. Uma posição que seria negada posteriormente quando, em

dezembro de 1968, o Plano foi referendado pelo ditador-presidente da época,

Marechal Artur da Costa e Silva.

Antes da votação das três últimas emendas, ainda na sessão da manhã de 17 de

julho, Carlos Magno Gonzaga questionou o relator do Plano, se existia algum prazo

para a execução do mesmo, para que fosse possível “preparar” o meio estudantil e,

caso fosse aprovado o plano, se as faculdades teriam obrigação de se adaptar a ele.

Zanotti respondeu que havia um prazo a ser cumprido, que dependia da tramitação

e aprovação do projeto nos órgãos superiores e que a adaptação das faculdades

seria feita de modo gradual e progressivo.

Na sessão do Conselho Universitário realizada na tarde de 17 de julho de 1967, os

conselheiros aprovaram o parecer do conselheiro Emílio Zanotti favorável ao Plano

39 Ibid., id. 40 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão da manhã de 17 de julho de 1967.

20

de Reestruturação, com o voto contrário apenas do conselheiro João Luiz Horta

Aguirre. O conselheiro justificou seu voto contrário, pela não aprovação das

emendas apresentadas por sua unidade, a Faculdade de Odontologia, e para ser

coerente com o ponto de vista apresentado pela unidade. Por sua vez, o

representante da congregação da Faculdade de Medicina, Thomaz Tommasi, outra

que se mostrava reticente em relação à proposta de fusão das duas faculdade no

CCS, pediu que fosse consignado em ata, por vontade do diretor da unidade,

professor Affonso Bianco, que a mesma faria “incontinente” a implantação do Plano

de Reestruturação, tão logo ele fosse transformado em decreto. Os dois

representantes estudantis, Carlos Magno Gonzaga Cardoso e Jorge Augusto Pires

Encarnação, votaram favoravelmente ao projeto.

No geral, as emendas aprovadas eram mais cosméticas e não alteraram nada de

substancial no plano. Na mudança mais importante, os conselheiros aprovaram a

emenda do conselheiro Nelson Abel de Almeida, que propunha a supressão do

Departamento de Educação do Centro de Estudos Gerais (CEG) e acrescentou o

Centro Pedagógico (CP) à estrutura de Centros que seriam constituídos. Foi definida

a mudança do nome dado por Atcon ao Centro de Ciências da Saúde para Centro

Biomédico (CBM). O Centro de Educação Física e Esporte passou a se chamar

Centro de Educação Física e Desporto (CEFD). O Centro de Ciências Sociais, por

decisão do Conselho Universitário, recebeu o nome de Centro de Ciências Jurídicas

e Econômicas (CCJE).

Uma emenda proposta pelo professor Ademar Martins, definiu que o Centro

Agropecuário, que ainda não havia sido criado, deveria ser localizado no interior, em

cidade a ser definida após estudos prévios, na época de sua instalação41. O mais

importante é que não há nenhum sinal ou referência de uma discussão mais

profunda da parte do ME ou dos estudantes sobre o projeto. Em nenhum momento,

os representantes discentes afirmaram ter trazido propostas discutidas com os

estudantes.

3.2 – 1968: O Plano de Reestruturação retorna à Ufes A discussão sobre o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica no âmbito da

Ufes não se encerrou em 1967. As lideranças estudantis teriam mais uma

41 Já na década de 1970, o Centro Agropecuário seria instalado no município de Alegre, na região sul do Espírito Santo.

21

oportunidade de discutir com a categoria e tentar se contrapor a ele. O Conselho

Universitário voltou a apreciar o projeto no ano seguinte, pouco mais de um ano

depois de sua aprovação pelo colegiado. Na sessão de 30 de Julho de 1968, a

primeira em que participava o novo presidente do DCE, César Ronald Pereira

Gomes, militante de Esquerda ligado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário

(PCBR), o reitor Alaor de Queiroz Araújo levou ao conhecimento dos conselheiros, o

conteúdo do Parecer nº 360/68, da Câmara de Ensino Superior do Conselho Federal

de Educação (CES/CFE), que decidiu que fosse baixado em diligência o processo

relativo ao Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico e a minuta de decreto que

se encontrava anexado para sanção do Presidente da República.

Além de César Ronald, no final de maio daquele ano, havia sido eleito como

representante discente no Conselho Universitário, o estudante de Direito José

Carlos Risk, que já havia participado de duas reuniões anteriores do colegiado.

Mostrando que havia pressa na apreciação dos questionamentos e pedidos de

esclarecimentos feitos pela CES/CFE, o reitor Alaor de Queiroz Araújo encaminhou

para o Conselho, além do parecer e da minuta do decreto, a Mensagem da Reitoria

nº 04/1968 e o relatório e voto do conselheiro Emílio Roberto Zanotti, definido com

relator da matéria42. Entre outras coisas, o parecer da CES/CFE questionava o processo de fusão das

faculdades e a extinção dos mandatos dos então diretores das unidades. Também

questionou o nome do Centro de Estudos Gerais (CEG), aspectos relacionados a

existência do Conselho de Coordenadores de Carreira e a menção, no anteprojeto,

da existência de órgãos suplementares, sem que fossem mencionados quais se

pretendiam criar.

Na introdução da mensagem enviada ao Conselho, onde já respondia a todos os

pedidos de esclarecimentos feitos pelo CES/CFE, o reitor foi preciso: “Como Vossas

Excelências poderão verificar, as observações feitas pelo Conselho Federal de

Educação não afetam (grifo nosso) a estrutura do Plano encaminhado pela Ufes, o

que vem demonstrar o acerto da decisão desse Egrégio Conselho em aprovar o

referido Plano” 43.

42 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 30 de julho de 1968. 43 Ibid. Id.

22

O interessante na mensagem do reitor Alaor de Queiroz Araújo é que ele revelou,

pela primeira vez, que um conselheiro do próprio CFE, Valnir Chagas44, havia sido

convidado pela reitoria para vir à Vitória analisar o Plano de Reestruturação

Acadêmico-Científico, tendo em vista o papel decisivo dele nas medidas de

reestruturação das universidades promovidas pela ditadura. O conselheiro, a pedido

de Araújo, elaborou o esboço do decreto para servir de orientação, quando da

apreciação do mesmo pelo CFE. O objetivo seria facilitar a aprovação do plano.

Em seu parecer, o relator do processo relativo ao pedido de diligência feito pelo

órgão federal, conselheiro Emílio Roberto Zanotti, que no ano anterior, havia

também relatado o Plano, destacou que as considerações feitas pelo relator do

projeto no CES/CFE não propunham modificações na nova estrutura da Ufes, mas

apenas apontava dúvidas sobre alguns pontos, sobretudo relacionados ao

anteprojeto de decreto elaborado pelo Valnir Chagas. Por isso, o conselheiro propôs

a aprovação na íntegra da mensagem do reitor Alaor de Queiroz Araújo.

Na discussão que se estabeleceu, até porque o anteprojeto de decreto nunca havia

sido discutido no Conselho Universitário, foi aprovada por maioria a proposta do

conselheiro João Soares de Mello para que fossem suprimidos os parágrafos do

artigo 6º do anteprojeto. O parágrafo primeiro, por exemplo, previa a fusão das

unidades a partir de quando, em cada caso, expirasse o mandato dos diretores de

cada faculdade e determinava quais deles concluiriam o mandato como diretor de

cada Centro criado com a fusão das escolas da estrutura antiga.

Já o parágrafo quarto, previa a nomeação provisória de diretores do CEG e do CP e

que o diretor da Fafi concluísse o mandato como diretor do primeiro. Os

conselheiros aprovaram, ainda por maioria, a proposta do conselheiro Céphas

Rodrigues de Siqueira, que alterava o caput do artigo 5º do anteprojeto do decreto,

que previa que seriam desvinculados de setores específicos de conhecimentos os

cargos de magistérios constantes no quadro único de pessoal da Ufes.

Mais uma vez, nesses casos, estavam em jogo interesses pontuais e específicos

das corporações das faculdades então existentes. O conselheiro Siqueira também

propôs que o nome do CEG fosse alterado para Centro de Estudos Gerais Básicos

(CEG-B), mas a proposta foi rejeitada pela maioria. Ao final da discussão, por

44 Raimundo Valnir Cavalcante Chagas (1921-2006), conselheiro do CFE de 1962 a 1976, foi um dos principais autores da reforma universitária de 1968 e também teve destacada participação na idealização e elaboração da Lei n.º 5.692/1971, que implantou a obrigatoriedade do ensino profissionalizante no antigo 2º grau. Um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB) lecionou por várias décadas na Faculdade de Educação.

23

unanimidade, com o voto dos representantes estudantis, o plenário do Conselho

Universitário decidiu que as novas propostas apresentadas para o anteprojeto de

decreto, fossem encaminhadas ao CFE como “sugestões”, com uma justificativa

mais precisa do motivo de ter sido escolhido o nome do CEG.

Na sessão seguinte do conselho, foi lido o expediente da reitoria que seria enviado

ao CFE, redigido de acordo com a decisão tomada pelo colegiado na reunião

anterior e contendo os esclarecimentos da Universidade ao Parecer nº 360/68. O

presidente do DCE, César Ronald, propôs que cópias do expediente fossem

distribuídas aos conselheiros, para que pudesse ser estudado por alguns dias. A

proposta foi aprovada pelo plenário e foi definido um prazo de sete dias para a

análise45. Parecia que, pela primeira vez, uma posição surgida de uma discussão

mais aprofundada, ao menos das lideranças estudantis, pudesse ser expressa na

tramitação do processo.

Ledo engano. Na sessão realizada em 19 de agosto de 1968, que não contou com

a presença de César Ronald, substituído pelo vice-presidente do DCE, José César

Leite, o expediente foi aprovado por unanimidade. No entanto, os conselheiros

Romualdo Gianórdoli, da Faculdade de Odontologia, e o representante estudantil

José Carlos Risk, expressaram-se, segundo a ata, contrariamente à redação do

parágrafo terceiro do artigo 3º do anteprojeto de decreto, que previa que o CBM

resultaria da fusão das faculdades de Odontologia e Medicina46.

Mais uma vez, como havia acontecido com as duas diretorias anteriores do DCE,

mesmo tendo uma orientação mais clara à Esquerda, a começar pelo próprio

presidente, não há nenhum indicativo de que tenha havido algum debate ou

discussão mais aprofundada sobre o projeto junto aos estudantes ou mesmo entre

as entidades estudantis. É bem verdade que, pode-se até relevar que, dessa vez, a

tramitação foi rápida e singular. Mas novamente a discussão que se estabeleceu,

não mudava a essência do Plano.

3.3 – A reforma da Ufes e a reação dos estudantes Mas e o acompanhamento do processo de reforma por parte dos estudantes? No

momento em que Rudolph Acton finalizava a minuta do Projeto de Reestruturação

Acadêmico-Científico da Ufes, em novembro de 1966, o XIII Congresso da UEE

45 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de agosto de 1968. 46 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 19 de agosto de 1968.

24

aprovou uma carta de princípios, no qual critica a Reforma Universitária da ditadura

e o Acordo MEC-USAID que, segundo o documento, estendia a intervenção

estrangeira para as universidades47. Entre os dias 03 e 10 de junho de 1967, o

Diretório Acadêmico (DA) da Fafi realizou a I Semana Estadual dos Estudos,

exatamente no período em que o Conselho Universitário aguardava emendas para a

votação do parecer sobre o Plano de Reestruturação. Como resultado do evento, o

DA produziu uma revista cultural, contendo as teses apresentadas e aprovadas na

semana sobre Mercado de Trabalho, Papel dos Centros de Estudos, Exames de

Suficiência, Faculdade de Filosofia e Realidade Nacional.

Não há nas 70 páginas da revista, uma única citação sobre o projeto de

reestruturação da Ufes. Não se pode dizer o mesmo quanto às referências aos

Acordos MEC-USAID e até sobre o “Plano Atcon”. Na tese sobre o Mercado de

Trabalho, apresentado pelo Centro de Estudos Pedagógicos, ao lado de uma crítica

à estrutura socioeconômica brasileira, “completamente ultrapassada historicamente” 48 e ao sistema educacional, dominado por escolas particulares, afirma-se que a

situação estaria mais seriamente ameaçada e se agravaria, não somente no plano

estadual, mas também nacional, com a adoção do acordo MEC-USAID. “O dito

acordo não somente visa colocar a educação totalmente nas mãos de particulares,

mas mais do que isso, subordinar-nos a uma cultura alienígena” 49. O plano de luta

proposta na tese, fala em “revogação do Acordo MEC-USAID50".

Na tese sobre a importância dos centros de estudos, apresentado por um grupo de

alunos do Centro de Estudos de Letras, propõe-se como meta “Pugnar por Reforma

Universitária que atenda às nossas necessidades e colabore o desenvolvimento

nacional”. Também se propõe a denúncia da política educacional do MEC, como

“política que visa elitizar cada vez mais as Escolas Superiores” e a luta contra o

acordo MEC-USAID, o “Plano Atcon” 51 e “qualquer tentativa nefasta ao interesse

47 UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES DO ESPÍRITO SANTO. Carta de Princípios do XIII Congresso da UEE-ES. Vitória, 3 nov. 1966. 48 CENTRO DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. O mercado de trabalho. Revista Cultural Fafi. Vitória, n. 01, p. 18, 1967. 49 Ibid., p. 19. 50 Ibid., p. 20. 51 O “Plano Atcon” a que se referem os autores, na verdade é um relatório elabora do em 1966, que recebeu o nome do técnico do USAID e que seria um dos documentos-base da Reforma Universitária da ditadura, junto com o Relatório da Comissão Meira Mattos (1967)

25

nacional”. Outra proposta é a formação de comissões de estudos sobre a reforma

universitária52.

Na tese apresentada sobre os exames de suficiência, pelo então estudante de

Pedagogia da Fafi, Renato Viana Soares, há mais uma referência genérica ao

Acordo MEC-USAID. Entre as medidas que, segundo Soares, tinham como objetivo

o “desincentivo” à formação de professores, estava a transformação de colégios

oficiais em fundações, o que subordinaria a educação nacional aos Ford e

Rockfeller53, segundo ele, como já estaria subordinada ao acordo MEC-USAID.

A tese “Faculdade de Filosofia e realidade brasileira”, apresenta a proposta de que

alunos da Fafi se unissem aos demais estudantes brasileiros, que denunciavam a

Reforma Universitária proposta pelo governo, uma vez que ela foi elaborada sob a

aprovação e dependência de um governo estrangeiro (Acordo MEC-USAID) e

“obediente ao Plano Atcon, que tem como características – privatização, elitização,

alienação e afastamento do estudante da vida nacional, tolhendo seu direito de

participação54". Isso quando se discutia na Universidade um projeto de

reestruturação elaborado pelo próprio Rudolph Atcon!

O DCE da Ufes, em agosto daquele mesmo ano, lançou o jornal da entidade,

portanto, depois que o projeto de reestruturação já havia sido aprovado pelo

Conselho Universitário. No entanto, ele é tratado de forma meramente informativa,

sem nenhum tipo de crítica ou uma análise mais aprofundada sobre seu conteúdo.

As páginas centrais do jornal são dedicadas à uma entrevista do reitor Alaor de

Queiroz Araújo, que fala, entre outras coisas, sobre a reforma da Ufes e a

participação estudantil, a construção da cidade universitária e o Acordo MEC-

USAID.

Ao ser perguntado sobre até que ponto o acordo MEC-USAID influiria na reforma da

Ufes, Queiroz Araújo afirmou que o acordo foi iniciado depois que a universidade

havia começado os estudos para a elaboração dos Planos de Reestruturação

Acadêmico-Científica e Física, e antes dos Decretos-lei 53/66 e 252/67. A esta altura já estamos com o projeto de Estrutura Acadêmico-Científico pronto e aprovado (grifos nossos) pelo Conselho Universitário. O Plano de Estrutura Física concluído e em fase de execução com os pavilhões a serem construídos no Campus em concorrência pública e outras providências a serem tomadas, como a reforma administrativa. Tudo agora feito com um mínimo de recursos financeiros e com o pessoal da nossa própria

52 IMPORTÃNCIA dos Centros de Estudos. Revista Cultural Fafi, Vitória, n. 01, p. 29-30, 1967. 53 SOARES, Renato Viana. Exames de suficiência, o que fazer? Revista Cultural Fafi, Vitória, p. 39, 1967 54 FACULDADE de Filosofia e realidade nacional. Revista Cultural Fafi, Vitória, p. 61, 1967.

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universidade. Assim, não vejo a como o Acordo possa influir, substancialmente, na Reforma da Universidade Federal do Espírito Santo, mas acrescento que, qualquer recurso que vier para somar a esse trabalho que, graças a Deus, já reputo irreversível e gigante, será bem recebido”.55

Ao se referir a aspectos básicos da reestruturação da Ufes, o reitor destacou

exatamente os pontos que fundamentaram a Reforma Universitária da ditadura,

como a necessidade de evitar dispersão e duplicação de recursos e meios e a

estruturação em departamentos. O ponto básico para a reforma da universidade seria a estruturação dos campos básicos do conhecimento humano, de maneira independente do controle das carreiras, ao mesmo tempo em que os integre em si de tal forma, que cada campo ajude o desenvolvimento todos demais, enquanto todos, em conjunto sirvam [ilegível] às finalidades da Universidade. Isto, decididamente, processado e equacionado, vai permitir, entre outras coisas, economizar os recursos materiais e humanos da Universidade, [ilegível] e concentrando todos os serviços afins num só lugar [ilegível) todos os professores do mesmo campo numa mesma unidade e todos os estudantes que vão cursar determinadas disciplina na unidade correspondente ao seu campo”. 56

Outros pontos nos chamaram atenção no jornal do DCE, cuja edição foi apreendida

ainda na gráfica pela Polícia Federal. Uma nota faz referência à uma conferência

proferida na Ufes pelo conselheiro do CFE, Valnir Chagas. Como vimos

anteriormente, Chagas foi convidado pelo reitor para analisar o Plano de

Reestruturação Acadêmico-Científico e, posteriormente, elaborou o esboço do

decreto para a apreciação do mesmo pelo CFE. É provável que o conselheiro

estivesse na Capital capixaba exatamente com esse objetivo.

No mesmo jornal, o DCE publicou, na íntegra, a Carta de Princípios do XXXIX

Congresso da UNE, realizado clandestinamente num convento em Vinhedo (SP),

que reafirma a luta contra o acordo MEC-USAID e a Reforma Universitária da

ditadura. Outra matéria, sobre a Semana do Estudante Secundário, realizada pela

União Municipal de Estudantes Secundaristas (Umes) de Vitória, faz referência à

uma conferência organizada pela entidade com o então senador Mário Martins

(MDB-RJ), que falou sobre os acordos do Brasil e os Estados Unidos que, segundo

a publicação, revelavam a invasão estrangeira que o Brasil estava sofrendo e a

“nossa total subordinação a interesses estranhos57".

Mas antes mesmo que o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico fosse

aprovado pelo Conselho Universitário, o jornal do DA da Fafi, publicado em março

55 CARDOSO, Carlos Magno Gonzaga; PIGNATON, Antônio. Alaor: O universitário é privilegiado neste país onde mais de 5 milhões crianças não tem escola. O universitário. Vitória, p. 5, ago. 1967. 56 Ibid. Idem, p. 4. 57 GOMES, Rubens Manoel Câmara. Semana da Umes foi um sucesso. O Universitário, p. 2, ago.1967.

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de 1967, entrevistou Stélio Dias, integrante da Comissão de Planejamento, para

falar sobre a Reforma Universitária. O tom da entrevista é, mais uma vez, apenas

informativo. Dias é questionado se a reestruturação da Reforma Universitária iria

resolver o problema do ensino superior e se existia um padrão de reforma para

todos os Estados. Sobre o conteúdo da reestruturação da Ufes, as perguntas se

referiram apenas à futura situação da Fafi. Não há questionamentos sobre processo

de forma mais amplo, que nem sequer foi criticado.

Mas e as lideranças do ME diante da reforma e de sua posição contra os acordos

MEC-USAID? Questionado sobre sua posição no Conselho Universitário, Carlos

Magno admite que votou a favor do plano de reestruturação da Universidade,

mesmo contrariando a posição de vários grupos que haviam apoiado sua eleição

para a presidência do DCE. Eu fui dos responsáveis, vamos dizer assim, pela modificação desse negócio. Hoje eu até revejo um pouco essa posição, talvez o voto tenha sido realmente errado, não só pelo problema político, mas porque talvez não fosse ideal essa situação de centros. Mas também não sei se o melhor era o esquema de faculdades, falando em termos de reestruturação. Sinceramente não sei. Rever é fácil, vinte anos depois, não é?58

O então estudante de Economia e diretor do DCE na gestão de Carlos Magno,

Antônio Caldas Brito, garante que houve discussão sobre o projeto e joga a

responsabilidade em cima do ex-presidente da entidade. Ele diz lembrar-se dessa

discussão no movimento, mas pondera que as lideranças estudantis não teriam

conseguido popularizar aquela bandeira, porque naquele momento havia um apoio

muito grande da imprensa à influência norte-americana. Ao ser perguntado se o

movimento não tinha tido a dimensão da reforma, Caldas Brito insistiu que ele não

teria tido é força. Além disso, segundo ele, Carlos Magno era uma liderança

conciliatória, que não teria levado a discussão para a diretoria, porque sabia que a

posição da maioria, que era ligada à posições de esquerda, seria contrária.

Sobre o voto favorável dos representantes estudantis mais combativos na discussão

de 1968, quando o plano havia retornado à Ufes, Caldas Brito atribui a posição à

possíveis pressões que eles estariam sofrendo, diante do ambiente repressivo que

se vivia na época, se referindo especificamente à César Ronald. Eu acredito que ele deve ter recebido pressões muito fortes para ter votado isso, porque sabia que nós, diretoria do DCE, sempre fomos contra. Uma das principais bandeiras do movimento. Acho que eles receberam uma pressão muito grande para votar favorável e o César, apesar de ser uma

58 Carlos Magno Gonzaga Cardoso, entrevista em 24/07/1995.

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liderança combativa muito forte, não sei se teve consciência da amplitude e de que podia ser realmente essa reforma do MEC-USAID59.

Já o ex-presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), José Cipriano da

Fonseca, garante que os estudantes fizeram manifestações contra os acordos

MEC/USAID e procuravam falar sobre ele, mas não se lembra de ter ouvido falar

sobre a presença de Rudolph Atcon no Espírito Santo. Com relação à votação feita

pelo Conselho Universitário, ele disse que a mesma deve ter acontecido no final de

196760, quanto ele já estava mais afastado do movimento de massas, já que fazia

parte do Comitê Central do PCBR e estava mais engajado na organização do

partido. No entanto, ele corrobora em parte a versão de Caldas Brito sobre Carlos

Magno. Eu me lembro de que houve uma fase de queimação muito grande com Carlos Magno e a própria esquerda começou a pichar. Talvez seja em função disso aí, agora eu não me lembro. Só lembro que houve uma fase em que ele entrou em desgraça com a esquerda. Eu acho que deve ser por isso. Me parece até que houve caso de agressão em reunião. Mas eu não me lembro de ter tido uma discussão específica sobre a vinda desse americano61.

O então estudante de Odontologia e ex-vice-presidente da UEE, Perly Cipriano, que

foi principal quadro do PCB até 1967, quando viajou clandestinamente para a União

Soviética, diz que os estudantes ligados à esquerda detectaram a presença de

Rudolph Atcon no Estado, mas que não tinham a dimensão dos acordos MEC-

USAID, apesar dessa ser uma das principais bandeiras da categoria. Ele se lembra

apenas da resistência que havia em relação à mudança das faculdades para o

campus de Goiabeiras62.

Por sua vez, Domingos Freitas Filho, que era ligado à Ação Popular (AP) e foi

presidente do DA da Fafi em 1968, diz que em sua faculdade, os estudantes tinham

preocupação em estudar documentos relativos à Reforma Universitária da ditadura e

com os rumos que o ensino iria tomar, com a implantação do sistema de créditos e

outras consequências dos acordos MEC-USAID.

Mas Freitas reconhece que, 90% dos estudantes, inclusive as lideranças, não

haviam lido nada sobre os acordos MEC-USAID e sequer sabiam do que se tratava. A gente, que era ligado à AP, principalmente o pessoal da Fafi, procurava organizar grupos de estudos sobre a reforma, trazia palestrantes, realizava

59 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012. 60 Na verdade, como expusemos anteriormente, o Plano de Reestruturação Acadêmica-Científico foi aprovado pelo Conselho Universitário da Ufes em julho de 1967. 61 José Cipriano da Fonseca , entrevista em 01/08/1995. 62 Perly Cipriano, entrevista em 03/08/1995.

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seminários e propunha disciplinas na estrutura da reforma universitária. Começamos a trabalhar contra o projeto de reforma universitária dentro dos conselhos e todas as instâncias da universidade63.

O ex-dirigente estudantil, hoje professor aposentado da Ufes, diz que teria sido

dispensado da representação estudantil, exatamente porque os estudantes haviam

começado a trabalhar dentro de todas as instâncias, contra a implantação do projeto

de reestruturação. De acordo com Freitas, quem trabalhou mesmo na elaboração do

plano dentro da universidade, foram Stélio Dias, Marcelo Basílio e Manoel Ceciliano

de Almeida. “O Atcon mesmo pouco aparecia. Essas eram as pessoas que estavam

preparando sua cama, para depois irem para Houston (EUA) fazer o seu doutorado

e voltar. Um assumiu a Universidade e o outro virou um político bastante

conservador. Aliás, os três sempre foram conservadores64”.

Renato Viana Soares, então aluno da Fafi e dirigente estudantil do PCB, foi outro

que disse que houve resistência por parte dos estudantes. Para Soares, o plano de

reestruturação foi um projeto piloto de reforma universitária dentro dos planos dos

acordos MEC/USAID. Mas, segundo ele, ao contrário do que aparenta, o movimento

teria reagido e, na época, denunciado o Plano Atcon, realizando inclusive debates

sobre o mesmo. Soares disse que tinha uma cópia do plano e também contou que

Rudolph Atcon não ficou no Espírito Santo. Ele veio e fez um contrato com a universidade. Era um piloto, fazer o campus de Goiabeiras e o detalhe chegou até à disposição das salas de aula. No CCJE, até recentemente, as salas ficavam de costas uma para a outras, para evitar qualquer tipo de aglomeração estudantil. Foi adotado o sistema de crédito e, está lá no plano dele, para quebrar o espírito de turma e de solidariedade entre os estudantes. E vai por aí afora, a instituição do ensino pago, acabar com a representação estudantil, tudo isso, naquela época, eram as teses que ele levantava65.

José Maria Cola, então estudante de Engenharia, que não participava da militância

estudantil, diz não ter sequer ouvido falado sobre um plano de reestruturação da

Universidade, nem mesmo da mudança do seu curso para o Campus de Goiabeiras, já que

a Escola Politécnica, naquela época, havia feito obras de ampliação. Sobre a discussão

sobre os acordos MEC-USAID ou a luta por mais verbas para educação, ele afirmou

que essa não era uma discussão que fazia parte do dia-a-dia dos estudantes da sua

faculdade, conhecida por ser um dos redutos dos setores mais conservadores do

ME.

63 Domingos Freitas Filho, entrevista em 10/11/1995. 64 Idem. 65 Renato Viana Soares, entrevista em 23/08/1995.

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Isso não era discutido pelos colegas não. Depois que você entra, quando está cursando o curso de Engenharia e levando a sério, não tem nem tempo para almoçar ou jantar, porque fica absorto mesmo com o estudo. Às vezes, a gente tinha que formar grupos para um ajudar o outro no entendimento. Era uma absorção total. E esses acordos, esses MEC-USAID, essas coisas, não me lembro de nossa turma ficar discutindo esses assuntos.66

A nova estrutura proposta pelo Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica da

Ufes seria referendada pelo presidente-marechal Artur da Costa e Silva, através do

decreto nº 63.577, de 08 de novembro de 1968, 20 dias antes da promulgação da

Lei 5.540/1968, que impôs a Reforma Universitária da ditadura. Como podemos

perceber, a Universidade capixaba já estava sintonizada com ela. A partir da

promulgação do decreto, a Ufes ganhou uma estrutura semelhante a que tem hoje,

com nove centros: CEG, CCJE, CBM, CP, CEFD, Tecnológico (CT), Artes e

Agropecuário.

Nos anos 1990, o CEG viria a ser dividido em dois outros: de Ciências Humanas e

Naturais (CCHN) e de Ciências Exatas (CE). O Centro Pedagógico e o CBM tiveram

as denominações alteradas passando a se chamar, respectivamente, Centro de

Educação (CE) e Centro de Ciências da Saúde (CCS) 67. A Universidade passou por

outras ampliações com a criação do Centro Universitário do Norte do Espírito Santo

(Ceunes), em São Mateus.

4- As mobilizações estudantis no Espírito Santo 4.1 - Antecedentes Da mesma forma, como ocorreu com relação ao Plano de Reestruturação

Acadêmica da Ufes, enquanto combatia o modelo econômico de desenvolvimento

da ditadura, não encontramos maiores vestígios que demonstrem que o ME local

estivesse empenhado ou mesmo sintonizado com realidade produzida pelas

transformações econômicas e sociais que se processavam no próprio Espírito

Santo.

Em setembro de 1967, os estudantes da Faculdade de Medicina entraram em greve

exigindo uma solução para a instalação de um hospital-escola para a faculdade. A

primeira turma de Medicina havia ingressado na Universidade em 1962 e até então a

faculdade não dispunha de um hospital-escola. As aulas práticas eram realizadas,

66 José Maria Cola, entrevista em 28/03/2013. 67 Diga-se de passagem que essa era a denominação original proposta no projeto de Atcon, mas que foi alterada pelo Conselho Universitário quando da votação do plano de reestruturação.

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através de convênios, em várias unidades, como a Santa Casa de Misericórdia e no

Hospital São Pedro, na Praia do Suá.

A greve foi decretada em 21/09/1967. Numa nota de esclarecimento distribuída

pelos estudantes e reproduzida nas atas do Conselho Universitário68, há anos vinha

se tentando a construção de um hospital-escola, mas que devido ao

“desentrosamento” entre os responsáveis pela construção, ela não havia sido

concluída69. Os estudantes reivindicavam o abandono da ideia de construção do

hospital-escola, cuja reformação, segundo eles, levaria de sete a 10 anos, e

apontavam como melhor solução a compra do Sanatório Getúlio Vargas ou mesmo

a sua doação por parte do governo do Estado.

A greve durou sete dias70 e serviu para acelerar as discussões no Conselho

Universitário e os entendimentos da Ufes com o governo do Estado para aquisição

do Sanatório Getúlio Vargas. O que chamou a atenção é que já havia um projeto de

adaptação para o uso das instalações do sanatório, cujo projeto havia sido

preparado por uma comissão formada no âmbito da Faculdade de Medicina, e da

qual fez parte o então presidente do CA de Medicina, Sérgio Pinheiro Ottoni. A

discussão de aquisição daquela unidade, portanto, já existia, mas vinha sendo

conduzida de forma morosa, um problema que foi resolvido pela providencial greve

dos estudantes71.

Numa tramitação muito mais acelerada, na sessão do Conselho Universitário de 4

de dezembro de 1967, foi aprovada a minuta de acordo com o governo do Estado

relacionado à cessão do Sanatório Getúlio Vargas para sua transformação em

hospital-escola72, o que se concretizou no início do ano seguinte, quando a

Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) aprovou a cessão.

68 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 25 de setembro de 1967. 69 No final, a construção desse hospital-escola jamais foi concluída e seu esqueleto, que ficava em Maruípe, foi implodido há alguns anos atrás. 70 Na sessão do Conselho Universitário de 10 de outubro de 1967, a pedido do então reitor em exercício, Décio Neves da Cunha, foi lido o texto de um abaixo-assinado dos estudantes de Medicina, datado de 27 de setembro anterior, comunicando a decisão de suspender o movimento, tendo em vista os contatos feitos com então governador do Estado, Christiano Dias Lopes Filho, e a solução apresentada pela reitoria para aquisição do Sanatório Getúlio Vargas pela Universidade. 71 O abaixo-assinado em que os estudante de Medicina comunicam a decisão de encerrar a greve, também reivindicava que, após a apresentação do anteprojeto preparado pela Faculdade de Medicina, que a matéria fosse apreciada em regime de urgência. A reunião para apreciação do projeto de utilização do sanatório foi marcada para dois dias depois. 72 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 14 de dezembro de 1967.

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4.2 – A luta em torno do preço do Restaurante Universitário Os estudantes capixabas ganhariam as ruas mesmo em 1968 e as mobilizações

representaram o surgimento da liderança carismática do estudante de Medicina

César Ronald Pereira Gomes, na luta desenvolvida contra os preços que a reitoria

da Ufes queria impor para as refeições a serem servidas no recém-inaugurado

Restaurante Universitário (RU) 73, localizado na Esplanada Capixaba, no começo da

Avenida Jerônimo Monteiro74.

Até o golpe militar de 1964, segundo seu depoimento 75, César Ronald teria tido uma

participação no Movimento Secundarista de Campos de Goitacazes (RJ) como

militante do PCB. Membro de uma família importante na cidade, depois do golpe

militar, ele teria se recolhido e ficou afastado da militância, mudando para Vitória em

1966, quando ingressou no curso de Medicina da Ufes. Segundo seu depoimento76,

ele teria começado a se reconectar com o ME em 1967, mas sua liderança

explodiria mesmo com a mobilização do RU77.

Até então, a Ufes não possuía um RU, mas apenas pequenos restaurantes nas

faculdades de Odontologia, Medicina e Engenharia, a maioria deles criados e

mantidos pelos esforços dos próprios estudantes e de seus DA´s. A polêmica

relativa aos preços das refeições começou depois que Conselho de Administração e

Funcionamento do RU (Cafru), criado para administrar o restaurante, votou a favor

do valor proposto pelos estudantes. O Cafru era formado por dois representantes

estudantis, dois representantes da reitoria e um dos ex-alunos (Rodrigo Loureiro

Martins), que só votava contra os estudantes.

O reitor Alaor de Queiroz Araújo, não acatou a proposta do Cafru e decidiu impor o

valor das refeições. O impasse acabou resultando numa greve. Não é possível saber

exatamente quantos dias durou o movimento, já que existem relatos diversos sobre

o episódio. Mas através da edição do dia 16 de março de 1968 do jornal O Diário,

73 O RU foi inaugurado em 01 de março de 1968, conforme registra notícia publicada no jornal O Diário (REITOR inaugura nova obra. O Diário, pg. 01, 02 mar. 1968). 74 O RU da Esplanada Capixaba foi fechado no início da década de 1980, com a inauguração do restaurante no campus de Goiabeiras. Posteriormente foi transformado por entidades culturais capixabas no que deveria ser a Casa da Cultura Capixaba, cujas obras jamais foram concluídas. Depois de sofrer um processo de esvaziamento, um desabamento ocorrido em parte do prédio facilitou o fechamento definitivo da Casa da Cultura, cujo prédio foi demolido há alguns atrás. 75 César Ronald Pereira Gomes, entrevista 29/10/1995 76 CAETANO, Alexandre et al. Revista Capixaba Agora, Vitória, n. 3, p. 04-13, fev. 1998. 77 Em algumas entrevistas que realizamos, como do ex-presidente da UEE, Antônio Carlos Dall´Orto, que também era estudante de Medicina, o nome de César Ronald antes de se tornar uma liderança estudantil é mais associado a estripulias e a fama de bonn vivant, veementemente negada por ele.

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ficamos sabendo que a Faculdade de Medicina78 e a Fafi79 haviam decretado a

paralisação em 15 de março de 1968. Naquele mesmo dia, os estudantes da Escola

Politécnica iriam realizar uma assembleia para decidir sua adesão ao movimento,

Na sessão do Conselho Universitário de 22 de março de 1968, sem a presença do

presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga Monteiro, o reitor Alaor de Queiroz

Araújo, se refere à greve pela não aceitação do preço imposto pela reitoria para o

RU e diz que “desde os primeiros entendimentos”, anteriores a greve, vinha

mantendo “diálogo” com os estudantes, tendo criado o Cafru, com representação

estudantil, e recebido uma comissão de estudantes em sua residência na praia, a

fim de que a matéria fosse debatida e encaminhada para uma solução ideal.

No entanto, segundo afirmou o magnífico reitor, sempre que a situação tendia a se

resolver “satisfatoriamente”, eram publicados boletins com “caráter de exigência”,

que para ele impediam uma solução rápida, já que por várias vezes ele havia

manifestado que não aceitaria receber exigências e nem decidir sob coação. “O

diálogo estaria sempre aberto para um debate inteligente e de bom senso”80,

assinalou.

O reitor agradeceu aos diretores das faculdades por terem comparecido à reitoria

para dar notícias do que se passava em suas unidades e solicitou que continuassem

a remeter os boletins de frequência e o registro de lançamento de frequência, da

forma como havia sido solicitado pela reitoria. “Finalizando, (o reitor) disse que

esperava já na próxima sessão estar o problema solucionado, tendo em vista já

haver recebido propostas sobre o preço a ser fixado para um entendimento”81.

O representante estudantil Jorge Augusto Pires Encarnação, que “furou” a greve,

afirmou que o presidente do DCE não havia podido comparecer à sessão, mas

assegurou que, se ele estivesse presente, ratificaria as palavras do reitor. O

conselheiro disse que acreditava que, não somente Carlos Magno, mas também os

Diretórios Acadêmicos, estariam envidando todos os esforços para que a situação

se resolvesse o mais rápido possível.

A greve voltaria à tona na sessão de 29 de março de 1968 do Conselho

Universitário, agora com a presença do presidente do DCE e um dia depois do

assassinato, no Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, do estudante

78 ENQUANTO estudantes de Medicina decretam greve reitor implanta hospital. O Diário, p. 01, 16 mar. 1968. 79 ESTUDANTES da Filosofia aderem a greve geral e já fizeram passeata. O Diário, p. 01, 16 mar. 1968 80 UFES-DAOCS. Livro de atas do Conselho Universitário. Sessão de 22 de março de 1968. 81 Ibid. Id.

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secundarista Édson Luiz de Souto e Lima. O reitor Alaor de Queiroz Araújo disse

que o movimento paredista dos estudantes se aproximava de uma solução, com os

alunos voltando às aulas. Ele manifestou sua confiança de que a frequência no RU

se normalizaria82, tendo a reitoria procurado um preço final definitivo baseado em

um percentual sobre o custo real da refeição83.

Mas inusitada foi a manifestação do presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga

Cardoso. Fazendo jus à sua fama de moderado e conciliador, o conselheiro

manifestou sua “satisfação pela justa maneira com que está se resolvendo o

problema do Restaurante Universitário através do esforço conjugado da reitoria e

dos estudantes” 84.

O impasse sobre os preços do Restaurante podem até ter sido superado naquele

momento, mas restariam os resquícios políticos entre os estudantes que chegariam

ao Conselho Universitário. Na sessão de 10 de maio de 1968, quase dois meses

depois, foi lido um ofício do DCE, datado de 29 de março de 1968 e assinado por

seu presidente, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, comunicando ao colegiado que o

Conselho de Representantes da entidade, formado por todos os Diretórios

Acadêmicos da Ufes, em reunião realizada no dia 19 de março anterior, ainda

durante a greve, havia decidido, por unanimidade, pela destituição e cassação do

mandato de Jorge Augusto Pires Encarnação da representação estudantil no

Conselho Universitário.

De acordo com a decisão, o Conselho de Representante considerou “procedentes”

as acusações contra o ex-presidente do DCE e conselheiro, tanto por sua “omissão

aos problemas atinentes à classe, quanto ao desprezo com que encarava as reais

necessidades estudantis”85. O curioso é que se a decisão havia sido tomada em 19

de março, Carlos Magno já tinha conhecimento dela na reunião do Conselho

Universitário realizado em 29 de março e nas que foram realizadas posteriormente,

mas não havia se manifestado antes sobre a mesma.

A posição do Conselho de Representantes do DCE provocou a ira de diversos

conselheiros, que saíram em defesa de Encarnação. O próprio reitor Alaor de

Queiroz Araújo disse que o representante estudantil havia dado todo o seu esforço e

capacidade para que o Restaurante Universitário fosse uma realidade e fizera parte

82 Os estudantes fizeram piquetes no RU durante a greve para impedir a frequência dos alunos. 83 UFES-DAOCS. Livro de atas do Conselho Universitário. Sessão de 29 de março de 1968 84 Ibid. Id. 85 Ibid. Livro de atas do Conselho Universitário. Sessão de 10 de maio de 1968.

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dos grupos de trabalho desde as primeiras iniciativas para construí-lo. Animado com

as intervenções de solidariedade, Encarnação afirmou que estava recebendo

naquele momento a comunicação oficial de sua destituição, uma vez que nada havia

recebido antes do DCE.

Pires Encarnação disse que, junto com mais dois colegas, havia sido cassado pelo

DA da Faculdade de Odontologia, por não querer participar de uma greve e por

defender o seu direito de liberdade individual de pensar que não deveria participar

do movimento. Certamente uma posição condizente com sua postura de direita, que

coloca sua posição individual acima dos interesses do conjunto da categoria. Como

não havia mesmo interesse dos conselheiros em aceitar a posição do Conselho de

Representantes do DCE, o reitor Alaor de Queiroz Araújo propôs que o processo

fosse enviado à Comissão de Legislação do colegiado, o que foi aprovado à

unanimidade, com o voto inclusive de Carlos Magno Gonzaga.

O plenário também decidiu que o representante estudantil destituído deveria

continuar sendo convocado para as reuniões do Conselho Universitário, até que

houvesse uma decisão sobre a matéria. O processo retornou ao colegiado ainda

antes do fim do mandato de Encarnação. Aparentemente tudo foi articulado para

tentar evitar que o episódio se transformasse numa mácula na trajetória de ex-

presidente do DCE no ME da Ufes86, sendo dois anos como membro do Conselho

Universitário, primeiro como presidente da entidade e depois como representante

estudantil.

A reunião do Conselho realizada no dia 27 de maio de 1968, a penúltima em que ele

e Carlos Magno Gonzaga Cardoso compareceram na condição de representantes

discentes no colegiado, foi transformada numa verdadeira sessão de desagravo ao

líder direitista. O parecer contra a cassação de Jorge Augusto Pires Encarnação,

que não precisou nem mesmo fazer uso da palavra, foi aprovado por 14 votos a um 87. Em seguida, depois de muitos discursos que enalteceram a sua trajetória como

liderança e representante estudantil, o ato de desagravo ao líder da direita estudantil

foi completado com a aprovação de proposta sua para que a Universidade adotasse

o brasão das armas de Vasco Fernandes Coutinho.

86 A trajetória de Jorge Augusto Pires Encarnação no ME começou no Diretório Acadêmico da Escola de Música. Em abril de 1964, logo depois do golpe, junto com os presidentes de outras entidades, ele assinou a nota do Conselho da UEE que decidiu destituir o presidente da entidade, Jayme Lanna Marinho. Depois, antes de presidir o DCE da Ufes na gestão 1966/1967, ele também integrou a diretoria anterior (1965/1966). 87 O único voto contrário foi do presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga Monteiro.

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4.3 – As mobilizações estudantis em 1968 O movimento contra o preço imposto pela reitoria resultou em passeatas e

manifestações. Piquetes foram organizados para impedir que alguém comesse no

novo RU. O impasse foi resolvido com um preço próximo ao reivindicado pelos

estudantes, mas a mobilização dos estudantes ganhou novo impulso quando, no dia

28 de março de 1968, o estudante secundarista Édson Luiz de Lima Souto foi

assassinado pela Polícia Militar (PM) no Restaurante do Calabouço, no Rio de

Janeiro (RJ),. A morte do estudante provocou uma onda de manifestações

estudantis por todo país, inclusive no Espírito Santo.

A maior manifestação seria realizada no dia 03 de abril de 1968, em frente ao RU,

depois de um ato fúnebre em memória do secundarista morto no Rio, realizada na

Catedral Metropolitana de Vitória. A manifestação havia sido autorizada pelas

autoridades da época, como o governador Christiano Dias Lopes e o temido

superintendente de Polícia Civil, José Dias Lopes, irmão do chefe do Executivo, que

mais tarde seria acusado de envolvimento com Esquadrão da Morte Capixaba88.

A cobertura de parte da imprensa capixaba nos dias anteriores à manifestação

mostra uma preocupação com a possibilidade de conflitos como os que estavam

acontecendo na capital do antigo Estado da Guanabara e em outras unidades da

Federação. No dia marcado para a manifestação, o jornal A Gazeta afirmou que o

movimento seria “viril”, mas pacífico.

No dia seguinte à manifestação, A Gazeta anunciou em matéria de capa:

“Veemência (com disciplina) no protesto dos estudantes” 89. De acordo com o jornal,

mais de 3 mil pessoas participaram da manifestação, um número expressivo para a

então pacata cidade de Vitória e para o número de estudantes universitários que o

Estado possuía na época.

A reportagem menciona um momento de tensão entre policiais e estudantes, no

obelisco que ficava próximo do Parque Moscoso, episódio também lembrado nos

depoimentos de várias lideranças estudantis da época, quando um estudante

(identificado nos depoimentos como sendo César Ronald) teria conseguido mexer

88 A existência do Esquadrão da Morte capixaba foi tornada pública em 1969, quando policiais civis envolvidos com a quadrilha procuraram o então 3º Batalhão de Caçadores (3º BC) para denunciar que presos comuns eram retirados das cadeias por policias e depois mortos e enterrados em areais na região da Barra do Jucu, em Vila Velha. O suposto envolvimento de José Dias Lopes foi denunciado pelo então jornalista e depois advogado Ewerton Guimarães. O caso foi apurado de forma polêmica por um delegado proveniente do Rio de Janeiro. Vários policiais civis foram presos e condenados, mas nenhum processo foi movido contra Dias Lopes. 89 VEEMÊNCIA (com disciplina) em protesto de estudantes. A Gazeta. Vitória, p. 1, 04 abr. 1968.

37

com os militares, ao afirmar em seu discurso que os policiais não usariam a violência

contra o povo, porque eles também faziam parte do povo e saberiam respeitar o

direito de reivindicar.

O jornal A Gazeta fala em três prisões naquele dia, duas delas teriam ocorrido no

aeroporto, mas simplesmente não informou o nome das pessoas presas. Nem na

edição do dia 04 de abril de 1968 e nem nos dias posteriores. Já o Jornal do Brasil,

que registrou a participação de pouco mais de 1 mil estudantes na mesma

manifestação, informou que no retorno da passeata do Restaurante Universitário

para a Praça Oito, foi preso José Aldo da Conceição, que dizia ter chegado em

Vitória um mês antes90.

Uma nova manifestação foi realizada no dia 06 de abril91, com a participação de

cerca de 2 mil estudantes. Só que, dessa vez, o caráter da manifestação foi bem

mais radical, com palavras de ordem como “Abaixo a ditadura” e “Abaixo o

imperialismo”, assim como a exigência de punição aos culpados pelo assassinato de

Édson Luiz de Lima Souto Lima e de mais dois estudantes mortos em Goiânia (GO),

em manifestações posteriores à execução do secundarista no Calabouço.

Uma bandeira estadunidense foi queimada nas escadarias do Palácio Anchieta e

houve confronto com policiais militares, que chegaram a prender César Ronald. O

líder estudantil foi arrancado das mãos da Policia pelos estudantes, que cercaram o

camburão no qual ele seria levado. A liderança de César Ronald nas manifestações,

o guindaria pouco depois à presidência do DCE, concorrendo em chapa única.

Ao contrário do ano anterior, a eleição foi direta, num processo organizado pelo

Conselho de Representantes da entidade para contornar o impedimento imposto

pelo Decreto Lei 228/1967, que previa a votação através do colégio eleitoral formado

pelos DA´s. Como a maioria das entidades estudantis estava sob controle ou

influência das correntes de esquerda, foi fácil organizar um processo no qual o

conselho apenas referendasse o resultado da consulta feita com todos os

estudantes.

Depois das eleições do DCE, César Ronald se incorporaria ao PCBR. Antes de dele,

as esquerdas não haviam ainda conseguido formar nenhuma liderança com

90 SITUAÇÃO nos Estados. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, p. 7, 04 abr. 1968 91 Em primeiro ficamos em duvida sobre a realização da manifestação no dia 06 de abril, embora ela tenho noticiada na primeira página da edição do jornal A Gazeta de 07 de abril de 1968, por se tratar de um sábado, dia em que até os dias de hoje as avenidas centrais da capital costumam estar vazias. Mas confirmamos a informação através da consulta ao arquivo do Jornal do Brasil (FREQUÊNCIA às aulas é cada vez maior. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 28, 07 abr. 1968).

38

influência, digamos, de massas – se é que se pode usar a expressão “massas” para

designar o contingente estudantil que existia na época no Espírito Santo. Mas,

apesar da sua liderança e carisma, pelo que já ouvimos em várias entrevista, parece

que algumas lideranças da época, mesmo alguns dos companheiros que militavam

em sua corrente, tinham restrições ao estilo e comportamento do jovem líder,

considerado pouco ortodoxo para os padrões da esquerda da época. As restrições

eram maiores por parte das lideranças ligadas à antiga AP, que mantinha posições

antagônicas às defendidas antes pelo PCB, e posteriormente pelo PCBR e as outras

organizações cuja matriz era o velho Partidão, como o Partido Comunista do Brasil

(PC do B) e as chamadas Dissidências Comunistas92.

Depois das manifestações de março e abril, recortes do jornal A Tribuna

encontrados no arquivo do Dops, mostram uma manifestação de estudantes da Fafi

no dia 15 de julho de 1968, para protestar contra prisão de dois colegas daquela

faculdade por militares do 3º BC93. A notícia fala de uma concentração em frente do

prédio da Fafi, que teve sua entrada bloqueada. Também relata que o reitor da Ufes,

Alaor de Araújo Queiroz, esteve no quartel para ter informações sobre os estudantes

presos. No dia seguinte, outro recorte do jornal A Tribuna noticia a continuidade da

mobilização dos estudantes94. Também anuncia que um habeas corpus em favor

dos estudantes havia sido impetrado no Tribunal de Alçada.

As prisões só apareceriam no jornal A Gazeta na edição de 18 de junho, com a

publicação de uma nota oficial do então comandante do 3º BC, coronel Armando R.

Menezes. No mesmo dia, o jornal O Diário publicaria uma matéria com manchete de

primeira página95, que conta que a ex-diretora da DA da Fafi, Maria Augusta

Feliciano da Silva, então uma militante da AP, estava presa no Rio de Janeiro e

respondia a um IPM. Junto com ela, foi preso o também estudante da Fafi e

bancário, Délio Merçon.

Na entrevista concedida ao autor, Maria Augusta não foi muito clara e não deu – ou

não quis dar - maiores esclarecimentos sobre o assunto96. De acordo com ela, a

prisão teria sido de resultado de uma série de “equívocos” da repressão, a partir da

92 Embora existam registro que o líder estudantil Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana dos Estudantes do Rio de Janeiro (UME-RJ), tenha estado no Espírito Santo durante o processo de preparação do Congresso da UNE de Ibiúna, não há indícios de que as Dissidências Comunistas tivessem representação no Espírito Santo. No entanto, o PCBR, que tinha expressiva militância no Estado, defendia propostas semelhantes 93 FILOSOFIA em pé de guerra. A Tribuna, Vitória, s. id., 15 de jun. 1968. 94 ESTUDANTES ainda protestam contra a prisão de colegas. A Tribuna, Vitória, s.id.,16 de jun. 1968. 95 MARIA Augusta está presa no Rio e responde a IPM. O Diário, p. 01, 18 de jun. 1968. 96 Maria Augusta Feliciano da Silva, entrevista em 31/09/1995

39

prisão num “aparelho” da AP no Rio de Janeiro, de um estudante que esteve no

Espírito Santo e que havia dado o nome dela e de Merçon. Eles foram presos,

interrogados no Rio e libertados depois de uma semana. Segundo ela, sem entregar

ninguém e nem revelar nada sobre a organização.

No dossiê aberto no Dops contra o então estudante de Medicina, Geraldo Fernandes

Pignaton,97 também encontramos o registo de uma outra greve dos estudantes da

Faculdade de Medicina. No dia 23 de agosto de 1968, o então jovem estudante

prestou declarações na delegacia sobre seu envolvimento no movimento.

4.4 – A queda do Congresso de Ibiúna e a desarticulação do ME capixaba

Em nível nacional, no segundo semestre o ME já vivia o início de um processo de

descenso, provocado pela repressão cada vez mais violenta do regime às

manifestações e passeatas dos estudantes, fenômeno reconhecido por algumas de

suas principais lideranças, como José Dirceu e Vladimir Palmeira98, quando em

outubro de 1968, sofreria um golpe ainda mais profundo, com a prisão de 900

lideranças estudantis na fracassada tentativa de realizar um congresso “clandestino”

da UNE, em um sítio localizado na pequena cidade de Ibiúna (SP).

Treze lideranças estudantis do Espírito Santo foram presas no congresso, entre elas

o presidente do DCE da Ufes, César Ronald Pereira Gomes99. A partir daí, o

movimento local sofreria um processo de rápida desestruturação. As prisões no

Congresso de Ibiúna provocaram aquele que parece ter sido o último suspiro do ME

local naquele ano, com a realização de uma manifestação de protesto no dia 15 de

outubro de 1968, em frente ao antigo prédio da Faculdade de Direito, localizada ao

lado da Escadaria Bárbara Lindenberg e muito próximo do Palácio Anchieta.

A manifestação foi duramente reprimida por policiais, sob o comando pessoal de

José Dias Lopes, já então secretário de Estado da Segurança Pública. No confronto

com a Polícia, foram presos os estudantes Júlio César Prates de Matos, Rubens

97 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL – (APES-DOPS) – Dossiê de Geraldo Fernandes Pignaton, cx. 39, Vitória, 1968. 98 DIRCEU, José e PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a Ditadura: o movimento contado por seus líderes. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 99 Além de César Ronald, foram presos os estudantes Agis Wilson Macedo (Direito), Areovaldo Costa de Oliveira (Direito), Domingos Freitas Filho (Fafi), Stela Maria Aurich da Silva (Escola de Serviço Social), Iran Caetano (Medicina), José Antônio Gorza Pignaton (Faculdade de Farmácia), José Honório Machado (Farmácia), Jussara Lins Martins (Engenharia), Luiz Cláudio Nogueira Muniz (Economia), Marcelo de Almeida Santos Neves (Engenharia), Marlene Amaral Simonetti (Escola de Serviço Social) e Ricardo Luiz Carvalho Gottardi (Odontologia).

40

Manoel Câmara Gomes100, Ana Olívia Sanchez Vargas, Paulo Eduardo Torre e

Ewerton Montenegro Guimarães, os dois últimos já falecidos. Novamente, o

protesto foi registrado nacionalmente pelo Jornal do Brasil101.

Na confusão, que se espalhou pelo Centro, em frente às antigas Lojas Cannes, na

Praça Costa Pereira, a estudante Zélia Stein, então noiva de César Ronald, deu uma

bolsada no rosto de José Dias Lopes, que ficaria célebre. O episódio criou uma

lenda corrente junto algumas lideranças da época, de que ela estaria carregando

pedras na bolsa, o que teria feito o secretário de Segurança Pública cair e, segundo

alguns depoimentos, até desmaiar. Não é bem assim, já que a existência de pedras

na bolsa foi negada pela própria Zélia Stein, em entrevista concedida à revista

Capixaba Agora102. Segundo Zélia, a bolsa era pequena e José Dias Lopes reagiu à

bolsada com perplexidade.

Zélia foi retirada rapidamente do local por Ewerton Guimarães, que a colocou dentro

de um carro que fazia parte do “dispositivo” de segurança da manifestação, indo se

esconder num sítio na então isolada região de Camburi. Pelo rádio, José Dias Lopes

prometia prender Zélia e desfilar pela cidade com César Ronald preso. Ela acabou

deixando a cidade, escondida no porta-malas de um carro, indo se encontrar com

César Ronald, que se encontrava preso em São Paulo103.

Os estudantes presos no Congresso de Ibiúna, com exceção de César Ronald que,

como todos os presidentes de DCE´s e UEE´s havia sido separado dos demais,

chegaram em Vitória no dia 18 de outubro de 1968. No mesmo dia, os estudantes da

Escola de Engenharia, considerada mais conservadora que outras faculdades,

decidiram fazer uma paralisação de 48 horas para protestar contra a prisão dos

colegas tanto no Congresso da UNE, como na manifestação realizada no dia 15 de

outubro 104. Por conta da prisão na manifestação contra a queda do Congresso de

100 Conhecido com Rubinho, Rubens Manoel Câmara Gomes era repórter do jornal O Diário, mas também militante do Movimento Secundarista, onde atuava como presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (UMES). 101 ESTUDANTES enganam a política em Brasília. Jornal do Brasil, p. 12, 16 out. 1968. O JB fala em três presos, enquanto O Diário registra seis. O problema é que não encontramos as edições do matutino capixaba da dia posterior à manifestação para poder checa a informação. Na edição de 19/10/1968, o jornal fala em seis presos. 102 HENRIQUES, Milson. Zélia Stein: se ficasse aqui, teria enlouquecido. Revista Capixaba Agora. Vitória, n. 1. p. 18, dez. 1997. 103 César Ronald foi libertado na véspera do AI-5 e entrou na clandestinidade, junto com Zélia Stein, que estava grávida. A filha de ambos nasceu nessas condições e, posteriormente, o casal ficou com a criança num aparelho onde estavam alojados outros militantes, até que César Ronald resolveu deixar a filha com os pais, em Campos dos Goitacazes. 104 EMOÇÃO na chegada dos estudantes presos em São Paulo. O Diário, Vitória, p. 1, 19 out. 1968.

41

Ibiúna, Júlio César Prates de Matos e Ewerton Montenegro Guimarães foram

enquadrados na Lei de Segurança Nacional e tiveram que responder a um IPM na 1ª

Auditoria Militar de Juiz de Fora.

Depois da manifestação, alguns estudantes foram convocados para prestar

esclarecimento no DOPS e junto ao 3º BC, como o presidente da UEE, Antônio

Carlos Dall´Orto. Ele afirma que, depois da manifestação contra a prisão dos

estudantes presos no Congresso na UNE, não havia mais clima para a militância. Quando eu cheguei lá (no 3º BC), vi muitas pessoas que também recebido a tal convocação. Lá eles tinham um tal de major Danilo, que me interrogou. Eu neguei que tivesse participado do ME ou da UEE, mas ele me disse que não havia como negar minha participação. Ele mostrou algumas fotos da missa em homenagem ao Édson Luiz, que haviam sido tiradas de dentro da Catedral de Vitória, em que eu estava sentado nas primeiras filas da igreja. Depois leu coisas que eu havia dito, mesmo em episódios menores. Vi logo que tinha um espião entre nós. Pior de tudo, foi quando trouxeram um cara amigo meu, chamado Winter, que estaria preso. Esse rapaz foi trazido de dentro de uma cela e colocado perto de mim. Perguntaram se eu era presidente da UEE e ele disse que sim e foi levado de volta. Para mim, foi tudo encenado, fiquei sabendo depois que se tratava de um informante deles. A gente continuou indo nesse negócio lá do Exército durante algum tempo105.

Em 13 de dezembro de 1968, a ditadura decretou o AI-5, que marcou o

recrudescimento definitivo do regime e a instalação de um clima de arbítrio propício

à prática do terrorismo de Estado. No início do ano seguinte, o DCE seria

definitivamente fechado. Na sessão do Conselho Universitário de 16 de janeiro de

1969, o representante estudantil José Carlos Risk, que mais tarde seria juiz do

trabalho, chegando a ocupar a presidência do Tribunal Regional do Trabalho do

Espírito Santo (TRT-ES), denunciou a invasão da sede do DCE pela polícia, com a

prisão do vice-presidente da entidade, José César Leite.

Segundo ainda a denúncia do acadêmico, mais de uma dezena de colegas

universitários estavam proibidos de sair de Vitória e eram obrigados a comparecer

três vezes por semana à Polícia Federal (PF) 106. Depois da reunião, cuja gravação

foi apreendida pela Polícia Federal, Risk foi preso e não voltou mais a comparecer

às reuniões do Conselho Universitário.

Em 22 de março de 1969, César Leite, que se encontrava no exercício da

presidência do DCE, encaminhou ao então reitor da Ufes, Alaor de Queiroz Araújo,

um ofício renunciando ao mandato de forma irrevogável. Os estudantes presos em

105 Antônio Carlos Dall´Orto, entrevista 16/07/1995 106BORGO, op. cit., p, 165-166. Vitória: UFES, SPDC, 1995, p. 165-166.

42

Ibiúna continuaram respondendo processo pela sua participação no congresso da

UNES, até que a Justiça Militar decidisse extinguir a sua punibilidade, em 1971.

Também foram abertos Inquéritos Policiais Militares (IPMs) para investigar

“atividades subversivas” em Vitória, a maioria dos quais não deu em nada.

Com o endurecimento da repressão, muitas lideranças se afastaram do movimento e

algumas poucas transferiram a militância para outros Estados, como foi o caso de

Jussara Martins, então vice-presidente da UEE e militante da AP, que em abril de

1969, foi presa e mais tarde expulsa da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ). Ela entrou na clandestinidade, mas em dezembro de 1970, seria presa

novamente em Belo Horizonte (MG) e barbaramente torturada.

Outros ingressaram na luta armada, como César Ronald, Zélia Stein e Perly

Cipriano. Os dois primeiros acabaram se exilando no Uruguai, enquanto Cipriano foi

preso em 1970, no Estado de Pernambuco, sendo condenado a 84 anos de prisão.

Ele seria solto apenas em 1979, com a decretação da anistia. José Cipriano chegou

a ir para o Piauí, mas acabou retornando e deixando a militância. Antônio Carlos

Dall´Orto, que também havia ingressado no PCBR, disse que a maioria dos

militantes debandaram quando foi colocada a questão do engajamento na guerrilha

rural, proposta defendida pelo partido O que me lembro, vagamente, é que houve um debate com o pessoal do PCBR, que era como se fosse uma convocação, para ver se a gente tinha interesse de participar da luta armada. Se quiséssemos, teríamos que sair e ir para outro lugar, fora do Estado. A maioria ou a totalidade não quis. Depois disso, ficou uma coisa no ar e ninguém mais se reuniu.

Outros ativistas, como o estudante de Medicina Iran Caetano, também preso no

Congresso de Ibiúna, ainda tentaram manter ativa a militância política, tanto que em

dezembro de 1972, quando foram presos todos os militantes e simpatizantes do

PCdoB no Espírito Santo, 18 deles eram estudantes da Ufes107. O fato é que ME

local só se recuperaria mesmo na segunda metade da década de 1970, com a

rearticulação de diretorias combativas nos DA´s e a reabertura do DCE da Ufes em

1978.

107 Em 1972, todos os militantes do PC do B no Espírito Santo foram presos, depois da delação do então dirigente regional do partido, Fued dos Santos. A delação de Fued desencadeou um processo de quedas que levou a morte de dirigentes do Comitê Central do PC do B, entre os quais Lincoln Cordeiro Oest e Lincoln Bicalho Roque, mortos entre dezembro de 1972 e 1973. Existem versões, como no livro Operação Araguaia, de que esse episódio e as mortes causadas por ele teriam ligação com repressão à Guerrilha do Araguaia, (MORAIS, Taís; SILVA, Eumano. Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. 3. ed., rev. São Paulo, SP: Geração Editorial, 2011)

43

Apesar de uma fracassada tentativa de reconstrução, em 1984, a UEE jamais

voltaria a funcionar. O prédio onde funcionava a sua sede, na Rua Washington Luiz,

foi demolido pela Ufes. A Casa dos Estudantes Capixaba (CEC) localizada em Bento

Ferreira, que também faz parte do patrimônio estudantil, funcionou por muitos anos

como um ginásio de esporte do Estado (DED).

Depois da Constituição Estadual de 1989, o ginásio foi “devolvido” aos estudantes,

mas acabou depredado e abandonado por falta de manutenção. Durante anos, se

manteve sob a nebulosa “administração”, de diretorias compostas por estudantes

ligados ao PC do B, até que recentemente, o imóvel foi reformado e cedido para a

Prefeitura Municipal de Vitória (PMV), voltando a funcionar como uma arena

esportiva.

4.3 – A esquerda no ME capixaba

As principais correntes políticas que atuaram no ME do Espírito Santo na década de

1960 foram, inicialmente, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista

do Brasil (PCdoB) e a Ação Popular (AP). Posteriormente, a partir de 1967, com as

cisões que atingiram os dois primeiros partidos, em função principalmente da

questão da luta armada, a maior parte dos seus militantes passaram a integrar,

respectivamente, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e a Ala

Vermelha do PC do B. Existem vagas referências à atuação no Espírito Santo da

Organização Marxista Revolucionária Política Operária (ORM-Polop), organização

que implodiu em 1968, dando origem a grupos da esquerda armada como a

Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). o Comando de Libertação Nacional

(Colina) e, posteriormente, na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-

Palmares). No entanto, não conseguimos identificar o nome de nenhuma militante

capixaba que estivesse ligado ao Polop, como era mais conhecido.

O PCB, conhecido como “Partidão”, foi criado em 1922. O partido viveu três curtos

períodos de legalidade até a definitiva redemocratização do país, em 1985, quando

enfim os partidos de esquerda clandestina puderam ter vida legal, desde que

cumprissem a legislação eleitoral vigente no país. De acordo com o livro Brasil:

nunca mais108, ao longo de sua história, o PCB sempre defendeu um programa de

transformações tendentes a desenvolver um capitalismo nacional, visto como um

108 Brasil: nunca mais. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 91-92.

44

pressuposto para futuras lutas em direção ao socialismo. Para tanto, de acordo com

o livro, seria necessário uma construção de uma aliança da classe operária e dos

camponeses com a burguesia nacional, em contraposição ao imperialismo e seus

aliados latifundiários.

Na década de 1960, segundo o livro, o PCB passou a propor, de forma cada vez

mais clara, uma transição pacífica para o socialismo, causa dos principais rachas do

partido. A partir de 1966, o PCB sofreu uma luta interna do qual surgiram vários

grupos dissidentes. O grupo considerado “ortodoxo” do Partidão, reunido em torno

do então secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, rejeitou a luta armada e

adotou uma linha de recuo político, vinculando-se ao Movimento Democrático

Brasileiro (MDB) para uma ação institucional legal. A ação do partido, considerada

moderada numa época de efervescência da discussão política na esquerda,

principalmente sobre a luta armada, fez com que o PCB perdesse prestígio entre os

estudantes. No Espírito Santo, praticamente todo o setor estudantil do PCB aderiu

ao PCBR.

O PCBR, por sua vez, tem suas origens em 1964, quando o seu principal dirigente,

Mário Alves, começou a se opor às posições de Luiz Carlos Prestes no Comitê

Central, formando a Corrente Revolucionária. A constituição formal do PCBR

ocorreu apenas em 1968. O estudante de Medicina e presidente da UEE, José

Cipriano da Fonseca, que era um dos principais dirigentes estudantis do PCB, junto

com seu primo, Perly Cipriano (que havia viajado para a União Soviética), integrou o

primeiro Comitê Central do PCBR, levando praticamente toda a militância estudantil

do Partidão para a nova organização.

O PCBR defendia a necessidade de reformular a linha tradicional do PCB de aliança

com a burguesia nacional, sem abraçar a bandeira da “Revolução Socialista” de

imediato, como propunha o Polop. O partido defendia a luta armada e via na área

rural o palco mais importante na luta por um “Governo Popular Revolucionário”109.

No entanto, o PCBR acabou não saindo das ações armadas urbanas que passou a

realizar a partir de abril de 1969. Além de José Cipriano da Fonseca, teriam sido

também militantes do PCBR em 1968, o então presidente do DCE, César Ronald

Pereira Gomes, e o presidente da UEE, Antônio Carlos Dall´Orto (que também

109 Ibid., p. 95.

45

passou pelo PCB), Zélia Merlusa Stein e outros. A Faculdade de Medicina foi

principal reduto, primeiro do PCB e, posteriormente, do PCBR.

O PCdoB foi formado por dissidentes do Partidão, que não aceitaram as mudanças

na linha programática definida pelo PCB a partir de 1958. Sob a liderança de ex-

integrantes do Comitê Central do PCB, como João Amazonas, Maurício Grabois e

Pedro Pomar, em fevereiro de 1962, foi realizada uma conferência de

“reorganização” do partido. PCdoB sempre disputou com o PCB o legado de

continuador histórico do partido fundado em 1922. Sob forte influência do

pensamento de Mao Tsé Tung durante boa parte da década de 1960, em termos de

estratégia, o PCdoB considerava que a luta revolucionária teria na área rural o mais

importante palco de luta, através de uma guerra sustentada, desde o início, por

contingentes populares, especialmente camponeses. Tratava-se das tradicionais

estratégias maoístas de “Cerco da cidade pelo campo” e “Guerra Popular

prolongada”, importadas para o Brasil.

Em termos de programa político, o PCdoB defendia a tradicional estratégia stalinista

de uma etapa “democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal” como preliminar

à luta pelo socialismo. O Brasil: nunca mais110, enfatiza que o PCdoB se distinguia

do PCB por defender pontos de vista mais à esquerda e formas de mobilização mais

radicais. Entre seus principais dirigentes no ME capixaba estavam Álvaro Pignaton,

Antônio Carlos Pimentel e, principalmente, Antônio Caldas Brito. Este último, em

1967, depois do Congresso da UNE de Vinhedo (SP), rachou com o partido e

organizou no Estado a Ala Vermelha do PCdoB

A Ala Vermelha do PC do B era uma organização maoísta e, como o PCdoB,

defendia que o centro da luta armada deveria ser o campo, através da formação do

exército popular e do cerco da cidade pelo campo. A organização surgiu de um

racha no PC do B em 1966, quando um grupo de militantes entendeu que o partido

não vinha desenvolvendo um trabalho efetivo para o desencadeamento da luta

armada. Tanto o PCdoB, como posteriormente a Ala Vermelha, tinham uma

importante influência na Faculdade de Economia.

A Ação Popular (AP) nasceu em 1962, como uma organização católica de esquerda,

composta por jovens cristãos provenientes principalmente da Juventude

110 Ibid., p. 97-99

46

Universitária Católica (JUC). Num primeiro momento, segundo o Brasil:nunca

mais111, se definiu como um movimento e não um partido, inspirando-se em ideias

humanistas de Jacques Maritain, Teilhard de Chardin, Emanuel Mounier e do Padre

Lebret. Foi, sem dúvida nenhuma, a corrente de esquerda mais influente do ME

durante a década de 1960.

Nos anos seguintes ao golpe militar de 1964, a AP foi aos poucos reorganizando sua

estrutura e, de 1965 a 1967, em meio a controvertidas polêmicas, caminhou para a

adoção do marxismo, se aproximando das ideias defendida por Mao Tsé-Tung. De

acordo com o livro Brasil: nunca mais, a partir desse período, a AP foi se

modificando até se caracterizar como uma organização maoísta típica, assumindo

uma linha política semelhante ao PCdoB.

No caso do Espírito Santo, o maior reduto da AP era a Fafi. Entre suas principais

lideranças estavam Jussara Martins, Domingos Freitas Filho, Maria Augusta

Feliciano Santos e outros. A transição para o marxismo e, em seguida para o

maoísmo, parece ter sido mais lenta no Estado. Uma das características na

composição da AP no Espírito Santo, conforme apontam várias lideranças da época,

era a grande presença de mulheres na corrente.

Martins Filho aponta que, durante o ano de 1968, ficaram patentes duas “posições”

(preferimos a definição de campos) divergentes sobre o papel a ser desempenhado

pelo ME naquela conjuntura112. O primeiro campo, expresso nas posições da AP

(que a partir de 1968, passou a contar com o apoio do PCdoB). O traço mais visível

da AP no período 1967-1968 era a defesa da luta política e nas ruas. Para essa

corrente, o papel do ME no pós-ditadura definia-se, acima de tudo, pela necessidade

de denúncia do ditadura e, simultaneamente, das forças do imperialismo que a

sustentava. Para atingir este fim, as lutas universitárias deveriam centrar-se nas grandes manifestações públicas, que marcariam sua presença na sociedade, procurando atrair, ao mesmo tempo, a ação das forças repressivas do Estado. Dessa maneira, os estudantes trariam, como contribuição decisiva ao movimento antiditatorial, o desmascaramento do caráter opressivo e violento do regime, obrigando os militares a “mostrarem as armas”, o que deveria propiciar o surgimento de uma consciência antiditatorial no seio das grandes massas.113

111 Ibid., p. 100-101 112 MARTINS FILHO, op. cit., p 172 113 Ibid., p. 173.

47

Nessa perspectiva, segundo o autor, a AP teria praticamente desprezado as lutas

educacionais, como eixo de mobilização estudantil. Nas assembleias, de acordo

com Martins Filho, seus militantes se distinguiam por invariavelmente defender

novas manifestações de rua, mesmo quando essas já mostravam sinais de

esgotamento como tática de luta.

No outro campo, estavam as posições de praticamente todas as outras correntes

com representação na vanguarda estudantil, com exceção do PCB, que a partir de

1967 seria marginalizado no plano da UNE por suas posições moderadas e de apoio

à luta institucional. Nesse grupo estavam todas as Dissidências Estudantis do PCB

(das quais as mais importantes eram da Guanabara e de São Paulo), o PCBR e

também o Polop. De acordo com Martins Filho, um dos pontos de união das

Dissidências Comunistas e do Polop no meio universitário, parece ter sido a

desconfiança frente ao papel dos setores sociais médios na revolução.

Dessas suspeita, se extraiu uma posição pelo papel auxiliar que estas correntes

conferiam ao ME, pois os estudantes não teriam condições, por si sós, de colocar

em xeque o regime. A tese fundamental que, segundo Martins Filho, seria a

proposta central desse campo seria a “luta específica”. Na sua perspectiva, o papel fundamental daquele movimento seria o de possibilitar o surgimento de uma consciência crítica no meio universitário de classe média. Para tanto, as lutas destas categoria deveriam se concentrar nos problemas que diziam respeito diretamente ao estudante: acima de tudo, a questão da universidade. Só a partir daí surgiriam as condições para a politização dos universitários, aproximando-os da perspectiva de apoio ao movimento dos trabalhadores114.

A expressão sintética de suas práticas, de acordo com Martins Filho, foi a dicotomia

estabelecida entre o trabalho sindical – amplo, gradual, destinado ao estudante

médio – e as práticas destinadas à vanguarda e à “massa avançada”, onde se

manifestou a influência das teses foquistas e militaristas. Dessa maneira, as

correntes situadas nesse campo, tenderam a transformar algumas de suas práticas

estudantis em “ensaios” para a preparação de forma de lutas “mais avançadas”. As

próprias ocupações de faculdades, resultado da reivindicação pela reforma

universitária, foram enfocadas pelo viés da luta armada. As táticas de comícios-

relâmpago, comissões de segurança e pichações se pautavam por critérios semi-

guerrilheiros.

114 Ibid., p. 175.

48

No Espírito Santo, as correntes políticas que atuavam no ME naquele período

parecem apresentar características atípicas. Se em nível nacional, o PCB e o

PCdoB eram organizações inimigas e se digladiavam, no Espírito Santo seus

militantes costumavam atuar de forma conjunta contra a AP, como ficou patente no

XIII Congresso da UEE, realizado em 1966, quando as duas correntes se uniram

para impedir que fosse aprovada a proposta do Movimento Contra a Ditadura

(MCD), defendida por aquela corrente115. A explicação para essa proximidade entre

os dois partidos no Espírito Santo, é muito simples: os seus principais militantes,

como José Cipriano da Fonseca, Renato Viana Soares, Perly Cipriano e Antônio

Caldas Brito moravam juntos numa mesma república, no Parque Moscoso, e eram

amigos pessoais. Era a célebre “República do 804”.

A predominância da visão católica na AP, pelo menos até 1968, é uma outra

explicação dada por Caldas Brito e José Cipriano da Fonseca. De acordo com

Caldas Brito, existia uma identificação marxista entre os militantes das duas

correntes. “Eu tenho a impressão que a aproximação nossa aqui, foi mais uma

questão pessoal mesmo e a identificação ideológica, porque a AP, apesar de na

ação se aproximar até mais da gente (PCdoB), tinha aquela restrição ideológica” 116.

A AP local também apresenta uma situação atípica, que vai além da lentidão maior,

em relação ao resto do país, na transição para o marxismo. Os militantes são

reticentes em falar sobre a sua ligação com a corrente117. Domingos Freitas Filho,

por exemplo, ex-presidente do DA da Fafi e diretor do DCE, que teve inclusive o

nome citado num IPM movido sobre as ações da AP no Espírito Santo, afirma que

representava a faculdade em algumas reuniões que tinham lideranças nacionais,

como Luiz Travassos e Vladimir Palmeira, mas nunca teve preocupação em saber

quem era da AP.

De acordo com a ex-liderança estudantil, eles tinham muita preocupação em

conhecer e discutir os documentos relativos à Reforma Universitária da época. “Esta

era a coerência do ME que eu participei: preocupar-se com a qualidade do ensino,

com os rumos que o ensino estava tomando com a implantação do sistema de

115 De acordo com os relatos de José Cipriano da Fonseca, Renato Viana Soares, Perly Cipriano e Antônio Carlos Dall´Orto, para impedir a aprovação do MCD os militantes do PCB e PCdoB prolongaram ao máximo a plenária final do congresso, até que eles tivessem maioria entre os delegados. José Cipriano da Fonseca, de forma irônica, conta que o objetivo era esperar o horário da missa, quando muitos delegados da AP teriam ido embora. Na votação, o MCD foi rejeitado. Outra manobra foi ocultar a ligação de Antônio Carlos Dall´Orto com o PCB, para que ele fosse eleito presidente da UEE, com apoio da AP, como se fosse independente. 116 Antônio Caldas Brito. Entrevista em 05/09/2012. 117 Talvez a AP capixaba não tivesse a mesma organicidade de outros Estados.

49

créditos e com as possíveis consequências do Acordo MEC-USAID” 118. Uma

posição que chega a ser irônica, diante da facilidade como foi aprovado na Ufes o

Projeto de Reestruturação Acadêmico-Científica.

Ao ser questionado sobre sua participação na corrente, Freitas Filho afirmou

inicialmente não saber quem era da AP. De acordo com ele, não havia um

conhecimento profundo e nem uma ligação que tivesse como consequência o

comprometimento com a luta armada em nível nacional e nem com o movimento de

derrubada do governo. Em nível local, tinham as lideranças, tinha um grupo, uma visão de universidade que achava que o eixo do ME tinha ser voltado para dentro. Esse era o eixo da AP e, nesse eu me enquadrei. E tinham aqueles que achavam que o ME tinha que estar ligado aos partidos políticos, portanto, à luta nacional maior, que era o outro movimento. Então, se a AP era esse movimento, tinha eu, Jussara, Heleninha, Antonieta, Alice e várias outra pessoas. A gente reunia os estudantes, fazia grupos de estudos nos sábados à tarde e nos domingos de manhã. Nos nossos momentos de lazer, a gente estava estudando, fazendo seminários e trazendo palestrantes, sempre discutindo a Reforma Universitária, que era o assunto do momento.

De acordo com ele, o eixo de quem era da AP era de conduzir o ME para dentro,

para discutir as questões específicas dos estudantes. A fala de Freitas Filho

contradiz totalmente a linha política da AP e as algumas das próprias propostas que

os militantes da corrente defenderam no Espírito Santo, como o MCD, em 1966, e,

posteriormente, a “aliança operário, camponesa e estudantil”, duramente criticada

pelas outras correntes.

O curioso é que a própria Jussara Martins, vice-presidente da UEE e considerada a

principal liderança da AP no Estado, em recente entrevista dada à Comissão da

Verdade da Ufes119, afirmou que era apenas “simpatizante” da organização, a qual

só teria ingressado de fato em 1969, quando estava no Rio de Janeiro. Maria

Augusta Feliciano que, como citamos acima, foi presa por sua suposta participação

na AP, também não foi muito clara sobre essa ligação. Essas posições nos trazem

mais perguntas do que respostas sobre a AP no Espírito Santo, que talvez

necessitem de uma outra pesquisa.

118 Domingos Freitas Filho. Entrevista em 10/11/1995. 119 MARTINS, Jussara. Entrevista concedida a Comissão da Verdade da Ufes, 2013.

50

SEGUNDA PARTE – A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1 - Literatura sobre o tema Os livros de João Martins Filho120 e Daniel Aarão Reis Filho121 são referências

fundamentais na orientação teórica do trabalho que nos propomos realizar. O

primeiro no que se refere à ME e a condição dos estudantes, o segundo na

discussão sobre a Esquerda naquele período. Partimos do fato de que não existe

uma bibliografia específica sobre o ME no Espírito Santo no período que estamos

analisando, entre 1964 e 1968. Os poucos trabalhos sobre o ME capixaba de que

temos conhecimento, tratam apenas de um período posterior à segunda metade da

década de 1970, marcado pela rearticulação do movimento e reconstrução do DCE-

Ufes.

1.1 – O ME e o estudante enquanto categoria social

No livro Movimento Estudantil e ditadura militar, Martins Filho parte de uma

indagação sobre como se deu a participação do ME universitário no processo

político brasileiro de 1964-1968122 para elaborar as suas hipóteses. Para o autor, a

atuação estudantil precisa ser analisada em conjunturas historicamente

determinadas, para que se possa compreender os diferentes conteúdos e formas

que assumem as mobilizações estudantis. Ele entende que não se pode perder de

vista o caráter concreto e específico das mobilizações estudantis em momentos

históricos diversos, o que nos parece ser uma perspectiva correta e que irá nos

orientar em nossa pesquisa.

Na parte inicial do livro, Martins Filho analisa criticamente diversos estudos que

contribuíram para a criação de uma espécie de “mitologia estudantil”,

frequentemente associada a uma auto-imagem construída no seio do próprio

movimento, que confere a atuação política dos estudantes um caráter genérico e

imutável, bem como conteúdos e objetivos permanentes123, que o reveste de uma

índole quase “naturalmente” revolucionária.

120 MARTINS FILHO, op. cit. 121 REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense; [Brasília]: CNPq, 1990. 122 MARTINS FILHO, Op. cit., p. 15. 123 Ibid., p. 17.

51

Baseado no conceito de Nicos Poulantzas124, Martins Filho apresenta os estudantes

como compondo uma categoria social inserida na classe média, o que faz com que

sua situação de classe se torne um fator fundamental na definição do caráter social

de sua participação. Para ele, a compreensão do comportamento político dos

estudantes não pode aferrar-se a um pressuposto da incompatibilidade das

reivindicações estudantis com os interesses de sua classe de origem. “Em outras

palavras, é preciso superar a idéia de que o radicalismo estudantil que, de quando

em quando, marca presença em nossa história, deva ter necessariamente um

caráter ‘revolucionário’, como têm afirmado vários autores” 125.

Não por acaso, ele vê na origem do radicalismo do estudante, especialmente na

década de 1960, os ressentimentos e as aspirações frustradas da classe média

ascendente. Não podemos esquecer que a tentativa significativa da classe média

brasileira de ascender socialmente através da educação de nível superior, naquele

momento, colidia com a política desenvolvida pelo regime militar de restrição a

expansão da oferta de vagas e destinação de vagas para as instituições públicas, ao

mesmo tempo em que sinalizava para a implantação do ensino pago.

Martins Filho ressalta que, no interior do próprio movimento, definem-se, dois níveis

de análise que estão interrelacionados, mas que possuem um grau significativo de

autonomia. Para o autor é necessário considerar, além das práticas de massa, a

especificidade das práticas e das orientações ideológicas que se configuram no nível

de direção do movimento. Assim, as práticas e as orientações do conjunto da categoria – da “massa” estudantil para conservar os termos do movimento – nem sempre se expressam diretamente e sem intermediações nas bandeiras levantadas por sua direção política. Este e outros fatores impedem que se tome apenas o nível de “vanguarda” como a expressão do próprio movimento. É preciso investigar, em cada caso, quais as reivindicações passíveis de suscitar apoio de massa, como se expresse esse apoio, quais as propostas e as táticas originárias da “vanguarda” que encontram respaldo na “massa”. Este e outros fatores impedem que se tome apenas o nível da “vanguarda” como expressão do próprio movimento126

Por reconhecer uma autonomia específica ao nível da vanguarda estudantil, Martins

Filho dedica um capítulo inteiro a questão da trajetória ideológica da liderança na

década de 1960, para entender os pressupostos políticos que fundamentaram as

propostas da esquerda entre os estudantes, especialmente no movimento de

124 Ibid., p.20. 125 Ibid., p. 23. 126 Ibid., p. 30-31

52

1968127. Para o autor, o projeto de reforma universitária da ditadura atacava

frontalmente os objetivos centrais e históricos do movimento universitário de classe

média, como a “abertura” das universidades aos setores médios através de

financiamento pelo Estado da expansão de matrículas.

1.2 - A esquerda e a leitura da realidade brasileira Daniel Aarão Reis Filho, ele mesmo ex-líder estudantil de 1968 e dirigente da

Dissidência Comunista da Guanabara, realiza uma análise mais detida sobre os

erros e a prática das direções de esquerda na década de 1960. A questão que

norteia o trabalho de Reis Filho é uma tentativa de explicação e compreensão das

constantes derrotas e os desencontros entre comunistas e a realidade social que

pretendiam transformar.

Para ele, os descompassos que marcam a trajetória dos grupos de esquerda –

derrotas políticas, desagregação orgânica, liquidação física - não se originam de

carências adjetivas, mas se explicam pelos fatores básicos de coesão que mantém

unidos e em ação as organizações comunistas, que ele denominou de “estados-

maiores revolucionários”.

Embora passe uma revista nos pontos que considera fracos nas organizações, ou

seja, a indigência teórica, o conhecimento superficial da realidade brasileira, o

fascínio pelos modelos internacionais e o flagelo da influência e da infiltração

pequeno-burguesas, para Reis Filho não são eles que convencem como causas

explicativas dos fracassos. É na dimensão mais interna da militância que ele busca

respostas para entender por que determinadas carências e desvios não foram

superadas e, por conseguinte, impediram o encontro entre revolucionários e a

revolução.

De acordo com Reis Filho, fatores de coesão, indispensáveis para o funcionamento

e fortalecimento das organizações comunistas, entre os quais ele lista os

pressupostos fundadores, a leitura legitimadora dos modelos internacionais, a

dinâmica antidemocrática, a estratégia da tensão máxima e a presença marcante

das elites intelectualizadas, debilitam e enfraquecem simultaneamente a capacidade

dos comunistas de manterem um contato e uma interação vivas e ágeis com o

processo histórico.

127 Ibid., p. 171-201.

53

Concluímos que os comunistas preparam-se para a revolução afastando-se da sociedade que pretendem revolucionar, adquirem coesão interna em troca do afrouxamento dos laços com a sociedade. É a lógica dos estados-maiores revolucionários: viver a revolução como um processo iminente, à espreita da oportunidade favorável. 128

Tratando do período entre 1964 e 1968, especialmente no último ano, Reis Filho

avalia que o protesto contra a ditadura se restringia à classe média e o que ele

chamou de “sua tradicional banda de música”, o movimento estudantil que, segundo

o autor, mostrou uma inegável força relativa, mas que não foi interpretada

corretamente por suas jovens lideranças.

A força relativa do movimento estudantil foi inegável. Enfrentou a lei e a polícia e soube estruturar-se como movimento social autônomo, com suas entidades representativas enraizadas nas universidades e nas faculdades, independentes do Estado e dos partidos políticos legais. Foi para as ruas, lutou, formou lideranças novas. Mas suas limitações eram muitas vezes ignoradas, talvez pela repercussão superdimensionada com que a imprensa noticiava as manifestações e protestos. Tratou-se de um cálculo de setores descontentes de nossas elites sociais pretendendo fazer do protesto estudantil um fator de pressão sobre o regime? O fato é que muitas jovens lideranças, e mesmo políticos mais experimentados, não souberam, freqüentemente, avaliar com frieza a força real do movimento. Daí para a retórica triunfalista foi quase sempre um passo que não poucos deram sem vacilar129.

Segundo ele, havia questões cruciais a serem consideradas e não o foram. Assim o

abismo existente entre as aspirações e possibilidades foram cobertos por uma

expectativa sem limites no papel da vanguarda.

1.3 - Adam Przeworski, a definição de classe média e o individualismo metodológico No texto A organização do proletariado em classe: o processo de formação de

classes o professor polonês de ciência política radicado nos Estados Unidos, Adam

Przeworski, publicado no livro Capitalismo e socialdemocracia130, sustenta uma

posição mais heterodoxa na discussão no âmbito do marxismo sobre o processo de

formação de classes e identidade do proletariado. Para o autor, as condições

econômicas, políticas e ideológicas estruturam conjuntamente a esfera das lutas que

têm como resultado a organização, desorganização e reorganização de classes.

128 REIS FILHO, op. cit., p. 19. 129 Ibidem, p. 65 130 PRZEWORSKI, Adam. A organização do proletariado em classes: o processo de formação de classe. In: Capitalismo e social democracia. São Paulo: Cia das Letras,1989. 54

De acordo com Przeworski, a análise de classes não pode se limitar às pessoas que

ocupam lugares no sistema de produção, já que uma consequência necessária do

desenvolvimento capitalista é que uma certa quantidade da força de trabalho

socialmente disponível não encontra emprego131. Assim, ele defende que os

processos de constituição de operários em classe estão indissoluvelmente

vinculados aos processos de organização da mão-de-obra excedente. Por isso,

segundo o autor, são possíveis diversas organizações de classes alternativas em

qualquer momento da história.

A espinha dorsal da primeira parte do artigo Przeworski é uma análise a crítica do

suposto “marxismo ortodoxo” expresso no livro Luta de Classes, escrito em 1892

pelo dirigente socialdemocrata alemão Karl Kautsky132, talvez o mais importante

pensador da social-democracia europeia do final do século XIX. Uma posição

mantida até a implosão da II Internacional, com a eclosão da Primeira Guerra

Mundial, quando a maioria dos partidos socialistas europeus (inclusive o Partido

Social Democrata alemão, do qual ele era um dos principais dirigentes) se colocou

patrioticamente ao lado de suas burguesias nacionais no conflito imperialista,

marcando um histórico divisor de águas para o movimento socialista, que se

consolidaria depois com a Revolução Russa de 1917 e, posteriormente, em 1919,

com a criação da Internacional Comunista.

O sociólogo polaco-americano rejeita a visão que considera o processo de formação

da classe como uma transição necessária e mecânica da classe-em-si para a

classe-para-si, no qual as relações econômicas são classificadas como objetivas e

todas as outras como pertencentes a esfera das ações subjetivas. Przeworski

aponta o que, a seu ver, são questões na formulação da “classe em si” definida ao

nível de “base”, simultaneamente objetiva e econômica, e “classe para si” como o

grupo na acepção sociológica do termo, a classe caracterizada pela organização e

pela consciência de solidariedade. Dadas essas categorias, o problema teórico e

prático passou a ser formulado em termos da transformação das relações de classe

“objetivas” (econômicas) em “subjetivas” (políticas e ideológicas). Para o autor, esse

tipo de formulação gera apenas duas respostas: determinista e voluntarista.

Na primeira, as relações objetivas necessariamente se transformam em relações

subjetivas, ou seja, as posições nas relações de produção tornam-se “refletidas” nos

131 Op. cit., p. 65-68; 132 Ibid., p. 68-86.

55

interesses e ações políticas expressos. Na resposta voluntarista, as condições

objetivas não conduzem espontaneamente “por si mesmas” à organização política

das classes, que se formam politicamente como resultado de uma intervenção

organizada de um agente externo, o partido133.

Przeworski discute o conceito de proletariado assinalado por Kautsky e afirma que

nem o dirigente socialdemocrata e nem Marx deduziram, a partir da teoria do

desenvolvimento capitalista de Marx, a consequência do mesmo para a evolução da

estrutura de classes. Segundo ele, a própria dinâmica do desenvolvimento

capitalista produz a fonte da ambiguidade do conceito do proletariado. Assim,

Przeworski assinala que o desenvolvimento capitalista transforma continuamente a

estrutura de lugares no sistema de produção e realização de capital, bem como em

outros modos de produção que passar a ser dominado pelo capitalismo. Mais precisamente, a penetração do modo de produção capitalista em todas as áreas de atividade econômica resulta na separação de vários grupos da propriedade dos meios de produção ou da efetiva capacidade de transformar a natureza em produtos úteis. Ao mesmo tempo, a crescente produtividade do trabalho diminui, em termos relativos, a utilização da força de trabalho pelos capitalistas. Em consequência, o processo de proletarização no sentido de separação dos meios de produção diverge do processo de proletarização no sentido da criação de lugares de trabalhadores produtivos. Essa divergência gera relações de produção capitalista, pois conduz exatamente à separação de pessoas de qualquer processo de produção socialmente organizado134.

O cientista político polaco-americano afirma que, em termos de criação de novos

lugares no interior da estrutura do capitalismo desenvolvido, o termo proletarização

não significa necessariamente a criação de novos lugares relativos ao trabalho

produtivo manual. De acordo com ele, os problemas da conceituação da estrutura

de classes resultam principalmente, apesar de não exclusivamente, do surgimento

de pessoas alternadamente denominadas de empregados de colarinho-branco,

operários não manuais, “ouvriers intellectuels”, empregados de serviços, técnicos e

“novas classes médias”.

Przeworski afirma que Kautsky, na década de 1890, não havia percebido nenhum

fator estrutural no aparecimento das “novas classes médias”, considerando todas as

atividades típicas da classe média formas efêmeras e marginais por meio das quais

133 Ibid., p. 71. 134 Ibid., p. 79.

56

as pessoas expulsas do processo de produção procuram escapar ao destino que

lhes impõe o desenvolvimento capitalista135 .

Para o autor, o termo “classe” denota uma classe de ocupantes de lugares e o

problema a ser analisado no contexto dessa problemática é saber como um grupo

de indivíduos ocupantes de lugares torna-se uma coletividade em luta para a

realização de seus interesses objetivos136. Essa formulação é, de acordo com ele, o

que torna tão incômodo o surgimento dos trabalhadores não manuais. A redefinição

das relações que determinam as bases objetivas da formação de classes é, sustenta

o cientista político, a única forma para que a presença de que esses trabalhadores

seja acomodada no contexto da formulação da problemática das classes.

Przeworski defende que, como agentes históricos, as classes não são determinadas

unicamente por quaisquer posições objetivas, nem mesmo as de operários e

capitalistas, porque constituem efeitos de lutas, e essas lutas não são determinadas

exclusivamente pelas relações de produção. Para ele, a formulação marxista

tradicional não permite raciocinar teoricamente sobre as lutas de classes, uma vez

são reduzidas a um epifenômeno ou as considera livres de determinação objetiva. (As classes) São estruturadas pela totalidade das relações econômicas, políticas e ideológicas, e produzem um efeito autônomo sobre o processo de formação de classes. Porém, se as lutas realmente produzem um efeito autônomo sobre a formação de classes, os lugares nas relações de produção, sejam quais forem, não mais podem ser considerados objetivos no sentido da problemática da “classe em si”, ou seja, no sentido de determinarem exclusivamente que classes emergirão como classes em luta. . Isso implica que as classificações de posições devem ser vistas como inerentes às práticas que resultam (podem resultar) na formação de classes. A própria teoria de classes deve ser considerada intrínseca a projetos políticos específicos.

Para Przeworski, as posições nas relações de produção, ou quaisquer outras

relações, são objetivas apenas na medida em que validam ou invalidam as práticas

de formação de classes e que tornam os projetos específicos realizáveis ou não. O

mecanismo de determinação, segundo ele, não é único, pois vários projetos podem

ser viáveis numa determinada conjuntura. “As classes são um efeito de lutas que

ocorrem em uma determinada fase do desenvolvimento capitalista. Devemos

compreender as lutas e o desenvolvimento em sua articulação histórica concreta,

como um processo” 137.

135 Ibid., p. 85 136 Ibid., p. 86 137 Ibid., p. 87.

57

O cientista político polonês-americano afirma que as classes são um elemento

anterior à história das lutas concretas e a realidade social não se evidencia

diretamente por meio dos nossos sentidos. De acordo com ele, Marx e Gramsci

afirmaram que é na esfera da ideologia que as pessoas tomam ciência das relações

sociais. “Aquilo que passam a acreditar e o que fazem é efeito de um longo

processo de persuasão e organização por forças políticas e ideológicas engajadas

em numerosas lutas pela realização dos seus objetivos” 138.

Assim, ele assinala que as classes são organizadas e desorganizadas em

consequência de lutas contínuas. Partidos que se pretendem representantes do

interesse geral, sindicatos, jornais, escolas, burocracia oficial, associações civis e

culturais, fábricas, exércitos e igrejas participam do processo de formação] de

classes no decorrer de lutas que dizem respeito fundamentalmente à própria divisão

da sociedade. “A luta ideológica é uma luta a respeito de classes antes de ser uma

luta entre classes” 139.

No entanto, Przeworski diz que o processo de formação de classes não se limita à

esfera ideológica, uma vez que as lutas políticas, organizadas de uma maneira

específica, também têm como efeito a própria forma de organização das lutas de

classes. As lutas econômicas, segundo ele, sempre aparecem historicamente em

sua articulação concreta na totalidade das lutas, sempre em uma forma moldada por

relações políticas e ideológicas. “O próprio direto de organizar-se é um efeito de

lutas que, por sua vez, estabelecem a forma da organização de classe. Portanto, a

organização de lutas econômicas não determinadas unicamente pela estrutura do

sistema de produção” 140 (p. 91).

Przeworski reafirma que as classes são formadas como efeitos de lutas e que o

processo de formação de classes é perpétuo. Elas são continuamente organizadas e

desorganizadas. A formação de classes é um efeito da totalidade das lutas, nas

quais diversos agentes históricos procuram organizar as mesmas pessoas como

membros de uma classe, como membros de coletividades definidas em outros

termos (negros, católicos, mulheres, etc.), às vezes como membros da sociedade.

O autor, no entanto, alerta para o fato de que a sociedade não é uma peça teatral,

na qual os portadores de relações sociais representam seus papéis, mas consiste

138 Ibid., p.90. 139 Idem. 140 Ibid., p. 91.

58

em conjunto de condições que determinam que cursos de ações produzem quais

consequências para as transformações sociais. As relações sociais são dadas para

um sujeito histórico, individual ou coletivo, como esferas de possibilidades e

estruturas de escolha. As classes não emanam das relações sociais, quer sejam relações econômicas isoladamente ou em combinação com todas as demais relações. Constituem efeitos de práticas, das quais o objeto é precisamente a organização, desorganização e reorganização de classes. As relações sociais são objetivas no que concerne aos processos de formação de classes apenas no sentido de que estruturam as lutas que têm como seu efeito potencial a formação de classes. 141

Para o autor polaco-americano, a dissociação do vínculo entre os operários e o

movimento fortalece a imagem de uma sociedade sem classes e diminui a

relevância da classe como base para a identificação coletiva. Isso, segundo o ele,

conduz ao ressurgimento de outras bases de identificação, sejam elas

fundamentadas na magnitude de renda, natureza do trabalho, religião, língua,

região, sexo ou raça. “Nesse sentido, o processo de organização das massas

desorganiza os operários” 142 (p. 98).

Ao mostrar que, em tempos normais da democracia capitalista, os movimentos da

classe operária devem tornar-se organizados como partidos eleitorais de massa que

não tratam de forma distinta os operários dos membros de outras classe, Przeworski

afirma que essa formulação enfatiza a descontinuidade da organização de classe.

De acordo com ele, as classes não são mais vistas como sujeitos históricas

contínuos. As lutas de classes, no sentido de lutas sobre formação de classes e de

lutas entre forças de classes organizadas, sempre ocorrem em conjunturas

específicas, alterando-se com a mudança das mesmas. “Portanto, as lutas de

classes não podem ser reduzidas a lutas entre classes ou em meio às classes. Ou,

em outras palavras, as classes em luta são um efeito de lutas sobre classes” 143.

Para Przeworski, as afirmações de que todos os conflitos que ocorrem em qualquer

momento da história podem ser compreendidos em termos históricos, se e somente

se, forem vistos como sendo efeitos da formação de classes e, por sua vez,

produzindo efeitos sobre essa formação, desempenham o papel de um postulado

metodológico.

141 Idem. 142 Ibid., p. 98. 143 Ibid., p. 99.

59

De acordo com ele, a condição impar da teoria de Marx, como o próprio pensador

alemão teria percebido, não está fundamentada na observação de que as

sociedades são divididas em classes, nem na declaração de que as sociedades

passam por transformações legais no decorrer da sua história, mas sim no postulado

que a luta de classes é o motor da história, ou seja, os conflitos concretos e os

desenvolvimentos de longo prazo afetam sistematicamente um ao outro.

Przeworski afirma que o ponto de partida para a análise da classe média deve ser a

dinâmica da acumulação capitalista, que gera força de trabalho excedente como

uma tendência de longo prazo, assim como gera repetidamente produto excedente

em ciclos de produção considerados isoladamente. O autor assinala que a força de

trabalho excedente é gerada quando o desenvolvimento capitalista,

simultaneamente, destrói outras formas de organização da produção e reduz a

necessidade relativa de mão-de-obra no sistema capitalista de produção144 O cientista político de origem polonesa também coloca em discussão o conceito de

trabalho produtivo e diz desconhecer que tipos de trabalho são necessários para a

produção das relações capitalistas. No entanto, ele afirma que, hoje em dia, está

menos propenso a acreditar, como Marx, que as relações capitalistas, não só de

produção, mas também legais e ideológicas, reproduzem-se “por si mesmas”, por

meras repetições de ciclos de produção. “Tendemos a julgar, portanto, que todas as

pessoas empregadas nos ‘aparelhos’ são realmente necessárias para a

continuidade da acumulação capitalista145”.

De acordo com Przeworski, o sistema de produção capitalista não estrutura as

formas de força de trabalho excedente. Ele gera força de trabalho excedente, mas

não a distribui em lugares a serem ocupados, deixando-a na condição de “serviçais”,

no sentido atribuído por Marx. A determinação de lugares, segundo ele, é limitada às

relações de produção amplamente concebidas, ou seja, todas as relações que são

necessárias para que ocorra à acumulação capitalista.

O autor assinala que, além das relações de produção amplamente concebidas –

distribuição, circulação, educação, legitimação, etc. –, não existem “lugares”,

posições estruturadas anteriormente às lutas de classes, e não há posições a serem

ocupadas. A força de trabalho excedente pode assumir a forma de emprego na

administração pública ou de aposentadoria antecipada. A forma de organização da

144 Ibid., p. 104. 145 Ibid., p. 106

60

força de trabalho não é determinada pelas relações de produção e sim constitui um

efeito direto de lutas de classes146.

Przeworski lista formas que pode assumir a força de trabalho excedente: 1) o

subemprego: ora, este é caracterizado pela baixa remuneração, falta de proteção

legal ou com regras flexibilizadas, informalidade em alguns casos, ilegalidade em

outros; 2) o exército industrial de reserva como definido por Marx, um fator regulador

de salários; 3) exclusão permanente do emprego por toda a vida do indivíduo; 4)

formas distribuídas ao longo da vida de determinados indivíduos, principalmente

instrução e aposentadoria; 5) distribuição ao longo do período de trabalho, em

termos de menos horas de trabalho, fins de semana prolongados, etc.147 (p. 110).

O autor assinala que uma quantidade variável de força de trabalho excedente em

diferentes sociedades capitalistas é mais ou menos permanentemente separada do

sistema de produção, especialmente nos Estados Unidos, onde coincide em grande

medida com critérios raciais. Parte da força de trabalho excedente é distribuída ao

longo da vida dos indivíduos, parte racionalmente distribuída ao longo do período de

trabalho de indivíduos específicos. Przeworski conclui afirmando que a mera

existência de força de trabalho excedente implica que a análise das sociedades

capitalistas atuais não deve se limitar aos lugares que são estruturados pelo sistema

de produção. Talvez convenha reiterar essa argumentação. Afirmei que (1) o sistema capitalista de produção estrutura os lugares de produtores imediatos, de organizadores do processo de trabalho e talvez daqueles que não se enquadram nessas categorias mas são necessários para a reprodução capitalista; (2) esse sistema de produção, ao logo de seu desenvolvimento e sob impacto indireto de lutas de classes, gera uma certa quantidade de força de trabalho excedente, mas não estrutura as formas de organização social dessa força de trabalho; (3) a força de trabalho excedente assuma formas que constituem um efeito direto de lutas148.

No final do artigo, Przeworski introduziu um pós-escrito no qual se refere ao método

escolhido para o estudo do processo de formação de classe, o individualismo metodológico (grifo nosso). No entendimento do autor, a vinculação entre as

relações sociais e comportamento individual é, a seu ver, o calcanhar de Aquiles do

marxismo. Para o sociólogo polonês-americano, as relações sociais devem ser

tratadas como estruturas de escolhas disponíveis aos agentes, e não como fontes

de padrões a serem internalizados e expressos em atos. As relações sociais

146 Ibid.,, p. 109-110 147 Ibid., p. 110 148 Ibid., p. 111.

61

constituem as estruturas com base nas quais os agentes individuais e coletivos,

deliberam sobre objetivos, percebem e avaliam alternativas e selecionam linhas de

ação.

De acordo com Przeworski, embora as relações sociais constituam uma estrutura de

escolhas segundo a qual os agentes fazem sua opção, essa opção pode alterar as

próprias relações sociais. “Estas não são independentes das ações humanas. Não é

nesse sentido que são “objetivas”. São objetivas, indispensáveis e independentes da

vontade individual apenas no sentido de constituírem as condições sob as quais as

pessoas lutam sobre transformar ou não suas condições149”.

Para Przeworski as classes também já não são um dado. A estrutura de classes,

segundo ele, já não pode ser interpretada unicamente a partir das relações de

propriedade, já que a estrutura de escolhas que resulta na formação de classes é

um produto de conflitos também na esfera política. O sociólogo polonês-americano

diz encontrar imensa dificuldade na compreensão da política em termos de conflito

de classes. Para ele, toda a dificuldade origina-se de considerar as posições de

classe como um dado a partir do qual se inicia a análise. Os indivíduos defrontam-se com escolhas, e uma delas pode ser tornar-se operário, outra cooperar com outros operários. Porém, realmente têm escolha, e devemos analisar toda a estrutura de opções como dada para os indivíduos, não para os operários. Pois pode acontecer de existirem condições sob as quais a sua escolha seja tornarem-se operários e cooperar com capitalistas contra outros operários, e o caráter de otimização de tal estratégia pode ser incompreensível se truncarmos o conjunto de escolhas considerando os indivíduos como operários natos150.

1.4 – O ME em estados periféricos Não é muito frequente encontrar trabalhos que tratam da especificidade do ME em

Estados periféricos, por isso, consideramos também importante a leitura do livro de

Justina Iva de A. Silva, referente ao movimento no Rio Grande do Norte no período

de 1960 a 1969151. No entanto, embora também reivindique o conceito de categoria

social de Martins Filho e a necessidade de que análise do movimento universitário

seja feito em conjunturas históricas determinadas152, a autora centra sua abordagem

na relação entre o movimento em seu Estado e o ME nacional, para ela uma forma

149 Ibid., p. 118. 150 Ibid., p. 119. 151 SIVA, Justina Iva de Araújo. Estudantes e política: estudo de um movimento (RN – 1960-1969). São Paulo: Cortez, 1989. 152 Ibid., p. 18

62

de resgate de sua memória, mas como se fossem quase complementares, como se

um fosse apenas extensão da configuração do outro.

Justina assinala a importância de não apenas enumerar fatos e atividades políticas

do ME, mas sim compreender o seu significado. No entanto, contraditoriamente,

principalmente no período seria o foco de seu trabalho, a autora não mergulha na

especificidade do movimento dentro do contexto local, naquilo que lhe seria próprio.

Os episódios que marcaram o movimento naquele período estão lá, mas a

especificidade está limitada aos eventos e não a sua dinâmica interna, nem mesma

o contexto político, econômico e social que marcavam o Rio Grande do Norte

naquele período.

2 - A Universidade, os estudantes e a classe média no período 1964-1968 Martins Filho afirma que a compreensão do comportamento político dos

universitários não pode aferrar-se ao pressuposto da incompatibilidade das

reivindicações estudantis com os interesses de sua classe de origem153. Para

explicar o engajamento do estudante no seu quadro de vinculação de classe,

Martins Filho afirma que, enquanto categoria social, o estudante tem como uma de

suas principais características, a transitoriedade, que ele define como um “vir-a-ser”,

que o configura como um “projeto de profissional”, que vê na carreira o seu próprio

projeto. As relações que ele passa a estabelecer com seu projeto de carreira

assumem importância fundamental na formação de sua consciência radical. Na origem do radicalismo do estudante estariam os ressentimentos e as aspirações frustradas da classe média ascendente. Ao tentar ultrapassar os limites que se antepõem à ascensão de sua classe, ele passa a ser o agente radical do processo de sua superação e seu desvinculamento se define como a busca por atingir o engajamento pequeno-burguês.154

Para Martins Filho, o movimento estudantil não está isento das contradições,

ambigüidades e vacilações que caracterizam o comportamento político das classes

médias que, se acrescidas de certas características específicas do meio estudantil,

como a abertura aos interesses e influências de outros grupos sociais, além de uma

particular flexibilidade, originária de sua condição transitória e particularidades do

espaço e do tempo estudantis, abre-se a possibilidade de entender porque uma das

alternativas do movimento é a aproximação com as classes populares155.

153 MARTINS FILHO, op. cit. p. 23. 154 Ibid., p. 27 155 Ibid., p. 28

63

Diante da posição de vinculação do caráter social da participação política dos

estudantes como categoria social à sua condição de classe, Martins Filho recorre

aos estudos de Décio Saes para analisar o comportamento político das classes

médias entre 1964 e 1968. De acordo com ele, um exame mais atento das posições

das camadas médias na conjuntura de militarização do Estado brasileiro no período

pós-golpe, começando pela alta classe média, mostra que, eliminada as motivações

mais imediatas de seu apoio à intervenção popular, com a contenção da agitação

popular e o afastamento da “ameaça” do comunismo, ela retomaria suas aspirações

por um regime liberal-democrático “puro”, livre das características de “massa” da

democracia populista, com hegemonia dos partidos liberais clássico, dos quais a

UDN era o modelo156.

Essas aspirações seriam frontalmente contrariadas pela política autoritária, que

destruiu o sistema partidário, inclusive a UDN, partido mais identificado com a

classes médias mais conservadoras, seguida de outras medidas que cerceariam a

manifestação da oposição liberal através dos instrumentos políticos que antes

dispunha. Saes aponta a existência de uma “consciência social dilacerada”, que

dividia a alta classe média entre a aprovação da economia e a condenação da

política, num quadro marcado por características crescentes de “ilusão política”, o

que não impediu que as organizações e entidades profissionais desses setores se

constituíssem em pólos de crítica constante ao autoritarismo, como depois ficaria

claro, com a participação da classe média liberal nas manifestações anti-ditatoriais

de 1968157.

O contexto pós-golpe, segundo Martins Filho, também não presenciaria a adesão da

classe média baixa à política do Estado e nem de suas disposições prévias,

populistas e estadistas, trazidas do período anterior. Atacadas em seus interesses econômicos diretos pela política de concentração de renda, privadas de seus meios tradicionais de pressão, com a neutralização do sindicalismo médio e em presença da anulação de outros elementos da legislação social populista, as baixas camadas médias caracterizariam a sua atuação política pelo apego nostálgico à imagem do “Estado protetor” da fase populista.158

De acordo com Saes159 o Estado Militar não só empobreceu as camadas médias

baixas, mas por suas práticas e estrutura, também lhes tirou a esperança, jamais

156 Ibid., p. 79 157 Ibid., p. 79. 158 Ibid., p. 80. 159 Ibid., idem.

64

desmentida pelo Estado populista, de concretização do progresso e do bem estar

social. Dessa maneira, o apoio à política autoritária, naquele período, iria se

restringir a um setor ainda minoritário das classes médias, ao que ele chamou de

“nova classe média”. Entretanto, as características desmobilizadoras do novo

sistema político não permitiriam que a nova classe média superasse a condição de

base potencial de apoio ao autoritarismo.

De acordo com Martins Filho, em contraste com a integração política que marcou o

período anterior ao golpe, a classe média passou a enfrentar uma progressiva

exclusão política, o que permitiria definir seu apoio à destruição do populismo como

um suicídio político. Para Saes, as manifestações “anti-ditatoriais” e “democráticas”

de 1968 constituem uma tentativa de retorno ao passado, um último grito de revolta

contra a exclusão política e de reivindicação do ‘direito’ à política160.

Martins Filho afirma que, no quadro mais amplo da exclusão política da classe média

após a destruição do populismo, o meio estudantil parece ter interpretado a

neutralização de seus instrumentos de reivindicação pelo regime como uma ameaça

à “democratização do ensino”. Essa análise é importante, já que na perspectiva do

autor, que entende que os aspectos políticos da estratégia militar para a

universidade é que se constituíram na motivação inicial do protesto estudantil, a

política educacional do Governo só aparecerá como tema central a partir de 1967, o

que para ele contraria a hipótese de um caminho linear e necessário da consciência

estudantil e do protesto estudantil, que deveria partir dos problemas específicos para

chegar às questões políticas mais gerais161.

Martins Filho situa a ascensão da esquerda e o declínio de influência das posições

liberais no ME - que haviam assumido um papel importante nos meses

subseqüentes ao golpe -, no quadro de fragilidade das posições liberais diante da

militarização do Estado pós-1964, pois os setores liberais da classe média viram-se

desprovidos do apoio organizacional e ideológico de que dispunham anteriormente,

isolando-se de seus tradicionais aliados da burguesia. Para ele, o endurecimento da

política repressiva e radicalização de massa, em 1966, seria o momento–chave que

marcou a decadência da influência liberal e ascensão da esquerda no ME162.

160 Ibid., p. 81. 161 Ibid., p. 103. 162 Ibid., p. 104.

65

No que se refere às aspirações da classe média em relação ao ensino superior,

Martins Filho assinala que os problemas da Universidade brasileira, expresso na

estrutura acadêmica baseada na cátedra vitalícia, na falta de equipamentos e

instalações, carência de vagas nas escolas públicas e currículos inadequados, que

já vinham vindo à tona no período final do período populista, não só não

encontraram solução como ainda se agravaram com a ditadura militar, diante da

drástica redução de verbas destinadas para a educação e, especialmente para as

universidades federais.

Segundo o Martins Filho163, as dotações orçamentárias para o Ministério da

Educação e Cultura (MEC) caíram de 11% para 7,7% do total do Orçamento da

União entre 1965 e 1968. Se entre 1965-1966, o ME havia se voltado basicamente

contra a estratégia repressiva do Estado, deixando para segundo plano as

reivindicações educacionais, a partir do início de 1967, o quadro de crise do

aparelho universitário voltaria à tona com vigor com a ruidosa crise dos

excedentes164, devido a incapacidade das universidades em absorver a crescente

demanda nos vestibulares.

Aliás, um problema que parece ter atingido também a Ufes, mas ainda não em que

dimensão, pois só o encontramos no depoimento de algumas poucas lideranças

daquele período165. Na reunião do Conselho Universitário de 04 de abril de 1967, o

reitor Alaor de Queiroz Araújo, comunica que foi convocado para se fazer presente,

junto com os diretores das Faculdades de Medicina e da Escola Politécnica, de um

reunião no MEC com todos os reitores das universidades federais, para tratar da

questão dos excedentes, por serem justamente as duas unidades as mais afetadas

pelo problema.

De acordo com o magnífico, ficou estabelecido que excedente seria, em verdade, o

vestibulando que, tendo atingido média para aprovação, não conseguiu se matricular

por falta de vaga e não uma série de comparações entre regimentos e nem

tampouco o sistema de classificação adotado na Guanabara, onde o problema era

mais grave, em que 0,001 chegou a ser considerado média de aprovação166. O reitor

prosseguiu seu relato, afirmando que a Presidência da República, através do

163 Ibid., p. 123. 164 Excedentes eram os estudantes que, aprovados nos vestibulares, não conseguiam vagas, devido a incapacidade das escolas em absorver a demanda. 165 É o caso, por exemplo, de Iran Caetano, que em 1967 ingressou no curso de Medicina. 166 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 04 de abril de 1967.

66

ministro da Educação, apresentou aos reitores uma minuta de convênio. Queiroz

Araújo não deu maiores detalhes sobre o que tratava o convênio, mas contou que o

então Ministro da Educação havia dito que o problema não deveria ser enfrentado

mais com uma solução de emergência, mas sim para ser estudado em uma

programação bem planejada.

Assim, como solução de curto prazo, ficou estabelecido que os estudantes da

Guanabara seriam matriculados naquela área, efetuando-se para os 900 excedentes

de Medicina, um segundo vestibular, em junho daquele ano, sendo os aprovados

absorvidos no Rio de Janeiro e, na inteira possibilidade de absorção, seriam

distribuídos pela diversas unidades da Federação. O Ministro ainda solicitou aos

reitores, a elaboração de um plano de expansão, para que o problema fosse

solucionado167.

A política educacional integradora dos governos populistas, segundo Martins Filho,

foi substituída pela contenção de verbas para a educação e quase paralisação dos

investimentos públicos para as universidades. Assim, no plano da universidade, a ausência de verbas e, consequentemente, de vagas, passa a ser uma das manifestações da situação mais geral de “exclusão política” dos setores sociais médios, no pós-64. Contrariando os interesses desses grupos, já nos primeiros anos do pós-golpe, o Estado deixou de financiar a expansão do ensino, política que se inseria no contexto mais amplo de suas novas funções como agência de concentração do capital e da estratégia de redução de gastos em áreas não diretamente produtivas168.

Para Martins Filho, o projeto de reforma universitária da ditadura atacava

frontalmente os objetivos centrais e históricos do movimento universitário de classe

média no Brasil. Em primeiro lugar, a “abertura” da universidade aos setores médios, através do financiamento pelo Estado da expansão das matrículas e, no nível mais geral, das expectativas médias de ascensão social via a aquisição de uma profissão de grau superior. O Estado militar recusou-se explicitamente a continuar a política de expansão e integração do ensino superior característica do período populista. Em segundo lugar, estreitamente relacionada ao primeiro, a reivindicação de participação nas decisões universitárias e de cogestão da Universidade, principal motivação da greve do início dos anos 60, por um terço. No pós-64, todas as decisões educacionais seriam encaminhadas sigilosamente e no restrito círculo de “técnicos” recrutados entre burocratas conservadores e os próprios militares169.

167 Ibid. 168 MARTINS FILHO, op. cit., p. 124. 169 Ibidem, p. 132

67

3 – A Esquerda e a análise da realidade brasileira - 1964-1968 Um estudo sobre o ME do período entre 1964 e 1968 não pode deixar de lado uma

análise sobre as posições da esquerda, que teve papel crucial na direção das

principais mobilizações ocorridas naquele período. Em um livro que analisa as raízes

dos encontros e desencontros que levaram a esquerda brasileira à derrota durante a

década de 1960, Daniel Aarão Reis170 dedica uma parte de seu trabalho também à

um inventário das posições e ações desenvolvidas por algumas organizações

comunistas no período entre 1964 e 1968. Infelizmente, não foram incluídas no seu

estudo as posições da Ação Popular (AP), corrente de esquerda católica que evoluiu

para o maoísmo e que manteria a hegemonia dentro do ME em boa parte da época,

o que é uma limitação para nosso trabalho, já que a AP possuía uma grande

importância no Movimento Estudantil local. .

Para Reis Filho, a esquerda brasileira enfrentou a complexa conjuntura que se

estenderia de abril de 1964 à edição do AI-5, fragmentada organicamente e

desarmada por concepções sumárias sobre a sociedade brasileira, recusando-se a

perceber a vitalidade e a capacidade de recuperação do capitalismo brasileiro, que,

protegido pela sombra armada pelos militares, preparava um novo ciclo de

crescimento171.

O autor passa em revista as posições das diversas organizações de esquerda172

sobre a crise do capitalismo brasileiro173, no qual tecem um quadro apocalíptico

sobre a falta de alternativas para a ditadura e a burguesia, como se a sociedade

brasileira fosse um barril prestes a explodir e a situação fosse mesmo de um

impasse sem saída para um desenvolvimento que se chocava contra limites

estruturais intransponíveis. Mas a realidade surpreendeu, desmanchando expectativas o capitalismo retomava o crescimento, o fantasma da crise catastrófica se afastava. Contudo, a esquerda comunista recusava a evidência de que o capitalismo definia e assumia novos caminhos. Por outro lado, negava contradições e nuances entre as classes dominantes. De fato, não se atribuiu nenhuma importância, ou nem se sequer se percebeu que a nova hegemonia do

170 REIS FILHO, Daniel, op. cit., p. 45-76 171 REIS FILHO, op. cit., p. 53. 172 No livro de Daniel Aarão Reis Filho são citadas posições e documentos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e suas dissidências (entre as quais o PCBR e a DI-GB), do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e suas dissidências (Ala Vermelha e Partido Comunista Revolucionário – PCR), da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (ORM-Polop) e Partido Operário Comunista (POC) e suas dissidências (Comandos de Libertação Nacional – Colina – e Vanguarda Popular Revolucionária – VPR). 173 REIS FILHO, op. cit., p. 54-57.

68

capital internacional e associado teria que passar pelo silenciamento e subordinação de forças políticas e institucionais consideráveis174.

Para falar das bases sociais que levariam uma parte considerável das esquerdas

dos anos de 1960 a mergulhar na luta armada, Reis Filho avalia que os comunistas

superestimavam a revolta do povo frente à política repressiva do regime militar. As

medidas repressivas haviam diminuído drasticamente a possibilidade de

participação ou influência das classes populares no processo político. Não faltavam

motivos para a insatisfação, mas as organizações comunistas pouco aprofundavam

as razões da pouca resistência oferecida no momento do golpe ou das dificuldades

objetivas que se colocavam ao processo de rearticulação dos trabalhadores. Com efeito, até a edição do AI-5, o movimento popular esteve praticamente sem ação. No biênio 1967-1968 algumas iniciativas puderam criar a impressão de retomada das lutas sociais urbanas: a formação do Movimento Intersindical Antiarrocho (MIA), pequenas manifestações em Porto Alegre, as greves ilegais em Contagem (Minas Gerais) e Osasco (São Paulo). Muitos quiseram ver nestes movimentos um sinal, um novo começo, e a comprovação de suas teses a respeito de uma iminente explosão rural175.

Mas para Reis Filho, na verdade o protesto se restringia às classes médias,

especialmente o Movimento Estudantil. Para ele, muitas questões políticas cruciais

não foram respondidas e algumas nem colocadas, mas as organizações comunistas

estavam decididas a passar à ação, embora as “massas” não parecessem estar

sintonizadas com os projetos e planos que eram formulados nos documentos

políticos. “O abismo existente entre aspirações e possibilidades seria coberto por

uma expectativa sem limites no papel da vanguarda. As organizações comunistas

tendiam a superdimensionar suas tarefas e responsabilidades176”.

Conforme assinala Reis Filho, ainda que com diferentes nuances, as organizações

comunistas avaliariam o AI-5 como prova do “isolamento” em que se encontrava a

ditadura. Um “golpe de desespero”, uma “medida desesperada”, enfim, uma

expressão da “debilidade” do regime, que sequer teria sido aprovada pelas classes

dominantes. Todas apontaram a “ineficácia” do ato, que tendia a agravar as

contradições entre as classes dominantes e não seria capaz de resolver nenhum

dos problemas colocados pela crise que passava o país177.

174 Ibid., p. 56-57 175 Ibid., p 63-64 176 Ibid., p. 64 177 Ibid., p. 69

69

Assim, as organizações comunistas da época chegaram à conclusão de que as

condições de luta seguiriam sendo favoráveis para as “massas”. De acordo com

Reis Filho, o destino da derrota comum aproximaria os comunistas e o que

impressiona é a defasagem entre suas propostas e a realidade viva do processo

social. Os comunistas previam uma situação catastrófica. Mas o capitalismo não vivia uma situação limite. O novo ciclo de desenvolvimento desmentiria as previsões de uma contradição insolúvel entre as “forças produtivas” e as “relações de produção”. Falhara também a idéia de que se aproximavam grandes lutas sociais. Nem luta armada, nem mesmo “choques violentos”. Os sismógrafos socais recusavam-se a registrar terremotos. Havia insatisfação, mas contidas por contratendências que jamais seriam estudadas e ainda hoje necessitam de melhor investigação178.

Os equívocos da esquerda naquele período, na avaliação de Reis Filho, atingiram

um ponto de condensação crítica por ocasião do AI-5, que não era uma medida de

defesa por parte de um governo acuado, como imaginavam as organizações de

esquerda, mas sim o início de uma ofensiva generalizada de um governo forte. Ao

analisar os postulados e mecanismo de coesão das organizações comunistas, que

para Reis Filho, estão na raiz da compreensão das constantes derrotas políticas da

esquerda, o autor assinala que os militantes raramente trabalhavam com estatísticas

ou fontes primárias, limitando-se a ler, quando o faziam, as obras mais divulgadas

em cada momento.

Se como afirmam Martins Filho e Reis Filho, as organizações de esquerda possuíam

uma leitura equivocada da realidade brasileira naquele momento histórico, não se

pode mesmo esperar que seus militantes estivessem atentos à realidade regional

em Estados periféricos como o Espírito Santo, especialmente na década de 1960,

quando praticamente não havia a produção de trabalhos que tivessem como foco a

realidade específica do Estado. O mais provável era que ela fosse ignorada, em

detrimento de uma visão nacional, ela mesma, contendo limitações e equívocos.

Antônio Caldas Brito, que foi dirigente estudantil do PCB e, posteriormente, da Ala

Vermelha, admitiu que não a discussão sobre a realidade regional praticamente não

existia. “A discussão nossa era sobre a realidade nacional. A realidade regional era

mais no sentido da organização, porque se tinha consciência que não se mudava

nada a partir de uma mudança política regional, a não ser do fortalecimento da

organização interna, das ações internas” 179.

178 Ibid., p. 72. 179 Entrevista Antônio Caldas Brito, 02/10/2012.

70

5. O debate teórico

Martins Filho e de Aarão Reis Filho foram as ferramentas fundamentais para a

análise que realizamos sobre o Movimento Estudantil na década de 1960. O

primeiro, analisando os estudantes enquanto categoria social vinculada à classe

média. O segundo, embora não negue o vínculo do ME com a classe média,

chegando a caracterizá-lo como a “tradicional banda de música da classe média”,

possui seu foco mais nos desencontros políticos e teóricos das organizações de

esquerda, numa análise que alcança também o aspecto cultura que atravessa a

elaboração política das mesmas.

Usamos Adam Przeworski para problematizar o objeto de nossa pesquisa, mesmo

sabendo que em seu texto ele se refere à classe trabalhadora num país avançado,

especialmente na Europa, Martins Filho e os autores que ele trabalhou, Nicos

Poulantzas, Décio Saes e Marialice Forrechi, possuem uma perspectiva mais

estruturalista, enquanto o autor polonês defende o que ele definiu como

individualismo metodológico, numa perspectiva pós-marxista.

Adotar o corte classe para análise, ainda que se admita as nuances da definição de

categoria social de Nicos Poulantzas, não significa que excluamos outras

possibilidades e critérios, principalmente depois que tivemos contato com o

paradigma dos Novos Movimentos Sociais, do qual ainda estamos longe de nos

aprofundar. Thompson, segundo Maria da Glória Gohn, afirmam que as classes se

formam nas luta. Surgem porque homens e mulheres, em relações produtivas

determinadas identificam seus interesses antagônicos e passaram a lutar, a pensar

e a valorar em termos de classe. Dessa maneira, de acordo com ela, na concepção

do historiador britânico, a formação de classe é um processo de auto confecção,

embora sob certas condições que são dadas180.

Poulantzas afirma em As classes sociais no capitalismo de hoje 181, que as classes

sociais significam para o marxismo, em um e mesmo movimento, contradições e luta

das classes: as classes sociais não existem a priori, como tais, para entrar

em seguida na luta de classe, o que deixaria supor que existiriam classes sem luta

das classes. As classes sociais abrangem as práticas de classe, "isto é, a luta das

classes, e só podem ser colocadas em sua oposição".

180 GHON, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 10 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 248 181 POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. 1975, p. 14

71

O próprio Przeworski cita Poulantzas e Gramsci por terem reconhecida que as

relações ideológicas e políticas são objetivas com respeito à lutas de classes182.

Ghon avalia que o conceito de classes sociais são uma forma, não a única, de

agrupar as ações dos homens183. Levamos em consideração esse conceito, mas

não quer dizer que consideramos que ela superada ou que ela refira-se apenas a

aspectos socioeconômicos, sem levar em conta outros determinantes. Poderíamos

analisar o Movimento Estudantil dentro de uma perspectiva de luta social, mas

consideramos que no caso estudado, o conceito de categoria social, pela sua

amplitude, se adequa ao nosso trabalho.

A predominância dos estratos médios entre os estudantes, especialmente a partir

de meados dos anos de 1950, como resultado colateral do processo de

desenvolvimento capitalista e das transformações porque passava o Brasil, a meu

ver, é um fato. Baseado em Poulantzas, Martins Filho afirma que a relação que os

estudantes mantém com o aparelho escolar e as condições particulares de sua

atuação política não permitem confundi-los com as classes em que se originam, o

que nos parece uma resposta a afirmação de que o comportamento do estudante

estaria baseado na sua condição enquanto tal.

De acordo com Martins Filho, a ação social dos estudantes guarda peculiaridades.

"as categorias sociais, por causa de sua relação com o os aparatos de Estado e com

a ideologia, podem apresentar a miúdo uma unidade própria, em que pese

pertencerem a classes diversas" 184. Assim, para ele, o movimento universitário é

uma manifestação particular e específica de certos interesses de classe, que devem

ser desvendados pela análise. Uma análise que leve em conta os aspectos

históricos.

No nosso entendimento, isso não contradiz totalmente a afirmação de que formação

da identidade grupal, em formato de classe ou outro qualquer, possui uma história,

em que as condições conjunturais são fundamentais e em que as estruturas

(econômicas, políticas e ideológicas) fornecem possibilidades sobre as quais os

indivíduos fazem opções. Só não consideramos que essas opções sejam aleatórias

e muito menos ilimitadas até, porque, caso contrário, teríamos dificuldades de

182 PRZERWORSKY, op. cit., p. 87 183 GHON, op. Cit., p.248. 184 POULANTZAS apud MARTINS FILHO, op. cit., p. 20.

72

entender porque um grupo ou categoria social faz opções semelhantes em

determinados momentos históricos.

Concordamos com Martins Filho quando ele afirma que a transitoriedade é uma das

principais características do estudante, que pode ser definido como um "vir-a-ser",

um agente social essencialmente voltado para a realização futura de uma condição

definitiva: a profissão. Não avaliamos que a maioria dos estudantes daquele período

era de classe média apenas porque o funil para o ensino superior diminuía o acesso

dos membros da classe trabalhadora.

Tenho o exemplo concreto dos meus próprios pais, que eram de classe média baixa,

que concluíram o ensino médio no final dos anos 1950, numa época em que as

pessoas não tinham expectativa de fazer o ensino superior. Para a maioria se

considerava praticamente terminada a formação, com a formação secundária. A

faculdade era para poucos, especialmente os que podiam pagar ou, através do seu

trabalho, sustentar os estudos.

Ir para a universidade era para poucos, porque existia a necessidade de se inserir

no mercado de trabalho, até como contribuição ao projeto familiar de ascensão

social. A crescente urbanização, como fruto do processo de industrialização e

diversificação da atividade econômica no Brasil, permitiu a ascensão e ampliação

dos setores médios da população, que viu na universidade um meio para tal, através

exatamente da qualificação para exercício das atividades profissionais que eram

exercidas por aqueles possuíam nível superior.

Não é arbitrária, do ponto de vista empírico, a afirmação de que a classe média

havia se tornado a maioria entre os estudantes universitários, tanto que Martins Filho

cita uma pesquisa publicada por Marialice Forrechi no livro A participação dos social

dos excluídos185 (1982, p. 52). Nem mesmo, e por causa disso mesmo, a pressão

por mais vagas nas universidades públicas, que haviam crescido continuamente até

1964, mas sofreram uma brutal contenção até 1968, servindo de combustível para a

agitação estudantil, juntamente com as más condições de ensino. Mostramos que,

no caso da Ufes, o número de candidatos ao vestibular cresceu, em apenas quatro

anos, passando de uma relação candidato/vaga de 1,57 em 1962, para 2,3, um

aumento de aproximadamente 50%

185 FORRACHI, Marialice. Estudante e política no Brasil in A participação social dos excluídos. São Paulo: Hucitec, 1982, p. 52.

73

Consideramos que a demanda por vagas na década de 1960 que estava nas

bandeiras do ME, e que em parte se revelou no movimento dos excedentes em

alguns cursos (fundamentalmente Medicina) em Estados como a Guanabara e o Rio

Grande do Norte, era uma reivindicação da classe média. Da mesma forma como a

entrada no ensino médio passou a ser expectativa da classe média baixa e

segmentos das classes populares que, até então, tinham seu horizonte limitado à

conclusão do antigo curso ginasial. É o caso do próprio ex-presidente Luiz Inácio

Lula da Silva (PT), para quem o diploma de ginásio foi motivo de orgulho para a

família em meados daquela década.

Entendemos que durante a década de 1960 e parte dos anos 1970, havia a

expectativa e procura de uma formação para entrar no mercado de trabalho, na

perspectiva da ascensão social. Isso explica, aliás, porque não foi apenas o Ensino

Superior que sofreu uma reforma. O mesmo foi feito com Ensino Médio, com a

implantação da educação profissionalizante obrigatória, através da lei 5.692/1971186.

Essa era uma forma de aliviar a pressão sobre as universidades públicas, ainda que

a política tenha resultado num fracasso retumbante. De acordo com Luiz Antônio

Cunha e Moacir de Góes187, a pressão pelo ensino superior, levou ao crescimento e

incentivo da rede privada por parte da ditadura.

Não temos elementos para afirmar categoricamente que, na década de 1960, a luta

por vagas teria mais a ver apenas com expectativas bem tradicionais de acesso ao

ensino superior com o objetivo de obter status. Não nos parece, pelo grande número

de alunos que vinha do interior para estudar nas universidades. Em nossa opinião, o

que se buscava era também ascender socialmente, como profissional liberal ou nas

atividades econômicas que tipificam os setores médios, já que muitos viravam

funcionários públicos de alto escalão, iam trabalhar ou formavam empresas e os que

se dedicavam mesmo à área de serviços, que teve um intenso incremento durante

as décadas de 1960 e 1970.

Não vemos em Martins Filho uma resposta meramente economicista na disputa de

hegemonia política entre os estudantes. Afinal, ele afirma que dentro do próprio

movimento estudantil, estão definidos dois níveis de análise que estão inter-

186 No Espírito Santo, o Governo do Estado bancou nos anos 1970, a criação das escolas polivalentes, um projeto chancelado pela USAID, que envolvia inclusive um modelo arquitetônicos para as unidades e pretendia oferecer a “preparação para o trabalho” para estudantes do antigo 1º grau. Eram projetos de escolas modelo, com laboratórios e cursos profissionalizantes, mas que também não deu certo. 187 CUNHA; GOES. Op. Citada.

74

relacionados, mas mantendo um significativo grau de autonomia. Para ele, é preciso

considerar, as "práticas de massas" e a especificidade das práticas e das

orientações ideológicas que se se configuram em nível de direção do movimento188.

Ou seja, nem sempre as práticas e as orientações do conjunto da categoria se

expressam diretamente ou sem intermediação nas bandeiras levantadas por sua

pretensa direção política. Não se pode tomar a vanguarda como expressão única do

movimento. Essa. para nós, é uma das questões chave. Não queremos afirmar que

os estudantes de 1960 deveriam ter esse ou aquele comportamento, até porque

estamos falando em nosso trabalho, prioritariamente, da vanguarda e das propostas

defendidas por ela naquele período.

Não trabalhamos com o conceito de categoria social como hipótese, mas nos

apropriamos dele para entender o ME num determinado momento histórico. Um dos

nossos objetivos é determinar se houve algum encontro das práticas e orientações

da direção política com o conjunto dos estudantes capixabas. Não estamos

analisando prioritariamente a condição do estudante da década de 1960, como fez

Marialice Forrechi, embora ela seja importante para o entendimento das práticas e

das articulações do ME naquele período histórico.

TERCEIRA PARTE – A ANÁLISE DE DUAS ENTREVISTAS 1. Análise de entrevistas através do método da História Oral Nesta parte do trabalho, utilizando os métodos da História Oral, procederemos a

análise das entrevistas de dois personagens do período em que analisarmos, O

primeiro é o economista Antônio Caldas Brito, líder estudantil e ex-dirigente da UEE

e do DCE da Ufes. O segundo é o engenheiro José Maria Cola, aluno de Engenharia

da Escola Politécnica entre 1967 a 1971, que apesar de não ter se engajado na

militância política, também não estava totalmente alheio aos fatos que ocorriam a

sua volta, pelo menos em sua faculdade, já que foi representante de turma e

participou do grupo de teatro da faculdade. Dividimos a análise em três partes: a

trajetória dos entrevistados, o tipo de memória e temas desenvolvidos a partir de

seus depoimentos.

188 MARTINS FILHO, op. cit., p. 30.

75

1.1a - A trajetória de Antônio Caldas Brito O economista Antônio Caldas Brito, nasceu em 1945, na cidade de Barras, no Piauí

(PI), filho de uma família de classe média, formada por nove irmãos, sendo seis

homens e três mulheres. Seu pai era advogado e a mãe dona de casa. O avô

paterno chegou a ser um grande proprietário de terras no Estado, mas perdeu tudo

quando decidiu investir na abertura de um frigorífico que não deu certo. O primo,

Francisco Chagas Caldas Rodrigues, foi governador do Piauí pelo PTB entre 1958 e

1962 189.

Um episódio ocorrido durante o governo do primo, conforme admite Chagas Brito,

teve muita influência na sua aproximação com a militância política. Em 1961, quando

da renúncia do presidente Jânio Quadros, Caldas Rodrigues se posicionou em favor

da posse do então vice-presidente João Goulart, contrariando a posição dos

militares e de setores de direita que queriam impedi-la, sob o pretexto de evitar o

risco de instalação de uma “república sindicalista” 190. Devido a essa posição, o

governador do Piauí teve ameaçado seu mandato e quase foi preso no Rio de

Janeiro191.

Entre 1962 e início de 1964, Caldas Brito foi militante do Movimento Secundarista,

tendo sido eleito dirigente da União Piauiense dos Estudantes Secundaristas e

diretor da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), tendo morado no

Rio de Janeiro durante um ano. Dos nove irmãos, apenas Brito e outros dois irmãos

vieram estudar no Sul do país.

Assim, convencido pelo irmão mais velho, Jose Caldas Brito, que havia se formado

em Direito e morava em Linhares, no início de 1964, o jovem Caldas Brito se fixou

189 De acordo com a versão de um blog piauiense (KAVERNA, Kenard. Francisco das Chagas Caldas Rodrigues. Texto disponibilizado em 08 fev. 2009. Disponível em <http://krudu.blogspot.com.br/2009/02/francisco-das-chagas-caldas-rodrigues.htm>. (Acesso em 05 out. 2012), o advogado Francisco da Chagas Caldas Rodrigues (1926-2009) teria feito um governo de “esquerda”. Já o Folha Online (EX-GOVERNADOR foi o primeiro indenizado do PI. Folha de São Paulo. São Paulo, 09 de fev.2009. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0902200919.htm>. Acesso em: 01 out. 2012) registra que o então governador apoiou a Reforma Agrária e usava o rádio para fazer os seus discursos, o que incomodava alguns setores. Depois de deixar o governo, Chagas Rodrigues se elegeu deputado e foi cassado pela ditadura militar em 1969. Em 2006 foi eleito senador pelo Piauí e deixou a vida pública depois que terminou o mandato, em 1994. 190 O episódio da renúncia de Jânio e a tentativa de impedir a posse de João Goulart, capitaneada pelos ministros militares, desencadeou em todo o país a Rede da Legalidade, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O impasse foi resolvido por uma solução de compromisso costurada no Congresso Nacional, com a instauração do parlamentarismo, que perdurou até 1963, quando um plebiscito decretou a volta do presidencialismo 191 Muito provavelmente por uma falha de memória, na lembrança de Caldas Brito o episódio se confunde com a posse de Caldas Rodrigues, mas a posse do petebista ao governo aconteceu mesmo em 1958, portanto três anos antes.

76

em Vitória. Aqui, foi estudar num cursinho pré-vestibular que funcionava na antiga

Faculdade de Economia da então Universidade do Espírito Santo (UES), onde

conheceu alguns militantes de esquerda no Estado, como José Guilherme Cortês e

Carlito Osório192. Também acompanhou mobilizações que aconteceram na época,

como o movimento pela encampação da Companhia Central Brasileira de Força

Elétrica (CCBFE).

Ainda como secundarista, participou dos eventos que marcaram o golpe militar de 1º

de abril no Espírito Santo, tendo participado da famosa vigília organizada por

estudantes na sede da UEE, no Centro de Vitória, invadida por policiais depois de

consolidada a vitória dos golpistas.

Em 1965, Caldas Brito ingressou na Faculdade de Economia, onde começou a

militar no Movimento Estudantil. Por influência do amigo Hélio Garcia, colega de

faculdade, entrou no Partido Comunista do Brasil (PC do B). Antes, segundo o relato

do entrevistado, ele era independente, embora tivesse tido aproximações com o

PCB e a Juventude Estudantil Católica (JEC) 193.

Ainda em 1965, Caldas Brito se tornou secretário geral da UEE, quando a diretoria

da entidade foi reorganizada e o estudante de Medicina José Cipriano da Fonseca,

mais conhecido como Zezinho Cipriano194, assumiu a presidência da mesma. No

final daquele ano, começou a trabalhar na Caixa Econômica Federal (CEF) e deixou

a casa do irmão, indo morar numa república na região do Parque Moscoso, no

Centro de Vitória, com Zezinho e Perly Cipriano e Renato Viana Soares, todos

militantes do PCB, no que ficou conhecida como “República do 804”.

Segundo ele, esse era o grupo básico, mas outros estudantes também moraram por

lá, como César Ronald Pereira Gomes, sem contar os que só passavam por lá, seja

para uma discussão política ou somente para dormir.

Em 1966, Caldas Brito foi eleito diretor do DCE da Ufes, na chapa encabeçada pelo

estudante de Direito, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, através de eleição indireta.

Em 1967, no Congresso da UNE realizado em Vinhedo (SP), em que participou

como delegado, Caldas Brito rompeu com o PC do B e ingressou numa dissidência

192 Dirigente regional do PC do B na época, décadas depois Carlito Osório seria fundador e dirigente no Espírito Santo do Partido de Mobilização Nacional (PMN). 193 Como já visto anteriormente, a inflexão à esquerda da JEC e da Juventude Universitária (JUC) no início da década de 1960, levou à criação da Ação Popular (AP), organização de esquerda católica que, posteriormente se inclinaria para o posições maoístas. 194 Ex-presidente da UEE e militante do PCB e posteriormente do PCBR, Zezinho Cipriano mora atualmente em Barra de São Francisco, onde é médico.

77

do partido, a Ala Vermelha do PC do B195, organização que defendia a luta armada

como forma de combate ao regime militar e que desenvolveu ações armadas entre

1969 e 1971

No ano seguinte, em 1968, Caldas Brito conta que ajudou a articular a chapa

encabeçada por César Ronald Pereira Gomes, que ganhou o DCE. Em dezembro

daquele ano, Chagas Brito se formou em Economia na Ufes. O paraninfo de sua

turma foi o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, que foi impedido de

celebrar uma missa na Catedral de Vitória em homenagem à formatura196. Na

colação de grau, realizada no mesmo dia em que foi editado o AI-5, em 13 de

dezembro de 1968, o orador da turma, o professor Rubens Vervolet Gomes197, foi

preso logo depois de proferir seu discurso.

Depois de formado, Caldas Brito continuou sua militância política na Ala Vermelha198

e abriu uma empresa de projetos, deixando o emprego na Caixa Econômica. Sua

empresa, segundo ele, era praticamente a única no Espírito Santo que fazia

projetos, porque ele havia feito curso nessa área no Ministério do Planejamento,

ainda quando era funcionário da Caixa.

No período posterior ao AI-5, com o recrudescimento da repressão, ele foi preso três

vezes. Em 1970, nas semanas anteriores às eleições daquele ano, junto com

dezenas de outras pessoas que pudessem ter alguma influência contra o partido da

ditadura, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) 199. Posteriormente, numa data que

ele não soube precisar, esteve preso na Polícia Federal e no então 3º Batalhão de

Caçadores (3º BC) 200. Nessa ocasião, os agentes da repressão o interrogaram para

saber onde estava Carlito Osório, que se encontrava foragido na clandestinidade.

Em março de 1971, Caldas Brito e outros 13 militantes da Ala Vermelha no Espírito

Santo foram presos, depois de delatados por Edgard de Almeida Martins, o Miro,

195 De acordo com Caldas Brito, ele entrou para a Ala Vermelha por uma “decepção com o PC do B”, que segundo ele, estava começando a relaxar na concepção de derrubar a ditadura através da luta armada. 196 De acordo com Caldas Brito, depois de participar da formatura dos estudantes de Economia da Ufes como paraninfo, Dom Hélder Câmara viajou para Belo Horizonte (MG) onde teria sido preso. 197 Rubens Vervolet Gomes (1921-2007), professor , economista e advogado, foi uma figura de destaque na esquerda trabalhista capixaba antes do golpe militar de 1964. Em 1966 criou o Colégio Brasileiro e, mais tarde, com a redemocratização do país, ajudou a reorganizar o PDT no Espírito Santo. 198 O entrevistado diz que os militantes da Ala Vermelha no Espírito Santo desenvolviam ações de apoio à luta armada, mas preferiu não dizer que ações seriam essa, citando apenas, por insistência do entrevistador, pichações e panfletagens. 199 A operação de prisão de pessoas que fossem ligada à posições de oposição ao regime teriam acontecido no Brasil inteiro. Segundo o relato do entrevistado, pelo menos 300 pessoas teriam sido presas no Espírito Santo, inclusive pessoas que moravam em cidades do interior. 200 Atual 38º Batalhão de Infantaria (38º BI), localizado na Prainha, em Vila Velha.

78

que teria sido preso no Rio Grande do Sul201 e, depois de torturado, entregou

militantes no Brasil inteiro202. De acordo com o relato do nosso entrevistado, o

militantes presos foram torturados no 3º BC e, posteriormente, transferidos para São

Paulo (SP) e enviados para a sede da Operação Bandeirantes (Oban) 203 e, de lá,

para o DOI-Codi204.

Depois de soltos, os militantes ficaram quase dois anos respondendo processo na

Auditoria Militar de São Paulo, onde tinham que se apresentar todo o mês. Dos 14

militantes presos, dois foram condenados205 e os outros absolvidos, entre o quais,

Caldas Brito, que diante da possibilidade de ser condenado, confessou que chegou

a pensar em cair na clandestinidade e deixar o país.

Depois da prisão em 1971, o economista deixou a militância organizada de

esquerda, mas continuou participando do Movimento Democrático Brasileiro (MDB)

e, posteriormente, do PMDB, do qual é filiado até hoje, exercendo até recentemente

a presidência do diretório municipal de Vila Velha. Nesse período, Caldas Brito

continuou com as atividades de sua empresa, desenvolvendo projetos para a

iniciativa privada destinados à captação de recursos junto ao Banco de

Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes).

Também foi assessor e diretor da empresa Patrimônio Imobiliária e sócio da

Patrimônio Investimentos. Na campanha eleitoral de 1982, Caldas Brito coordenou o

grupo de assessoramento do plano de governo do então candidato do PMDB à

eleições para governador daquele ano, Gerson Camata. No governo Camata (1983-

1987), o economista foi presidente do Bandes.

De acordo com um documento da Agência Brasileira de Inteligência do ano 2000, o

economista continuou sendo acompanhado pelos órgãos de “inteligência” até 1988,

201 Na verdade, Miro foi preso em 17 de janeiro de 1971, na cidade de São Paulo (SP) 202 No site Documentos Revelados (http://www.documentosrevelados.com.br/contato/mural-de-recados/), o ex-preso político Aluízio Palmar conta que Edgard de Almeida Martins havia sido militante do PCB e, posteriormente do PC do B e da Ala Vermelha. Dono de uma memória prodigiosa, depois de muito torturado, Martins teria feito um acordo com o comandante do DOI-Codi, Carlos Alberto Ustra, entregando em diversos Estados do Brasil militantes das três organizações, além do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e do MRM(?), dissidência a da Ala Vermelha),. No livro Combate nas trevas (GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática, 1998. p. 231) e em listas feitas por ex-presos políticos, Martins é acusado de ter se passado para o lado dos torturadores, se transformando em analista de informações, acusação veementemente negada pelo filho, Thaelmen de Almeida, que criou um blog dedicado defesa do pai (http://clandestinoedgard.blogspot.com.brl). 203 Organização paramilitar financiada por empresários dedicada ao combate às organizações de esquerda, que posteriormente foi incorporada ao DOI-Codi. 204 O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), foram órgãos de inteligência montados pela ditadura militar para combater a insurgência de esquerda e se tornaram também centro de torturas, onde dezenas de militantes morreram e outros “desapareceram”. 205 Os militantes condenados, segundo Caldas Brito, foram Jair Storch e Aristide

79

ano de promulgação da atual Constituição Federal, ano em que foi eleito membro da

Comissão Executiva do diretório estadual do PMDB. Posteriormente, ocupou vários

cargos públicos no Governo do Estado e nas Prefeituras Municipais de Serra e Vila

Velha. Atualmente Caldas Brito é diretor Administrativo de Financeiro do Instituto de

Previdência e Assistência Jerônimo Monteiro (IPAJM).

Antônio Caldas Brito, portanto, se trata de uma pessoa de origem de classe média,

já politizado antes de chegar ao Espírito Santo, onde entrou no PCdoB, passando

por um processo de radicalização, punição e abandono da militância revolucionária,

assumindo uma posição moderada de tipo progressista, que mantém até hoje.

1.1b - Tipo de memória

Nas duas entrevistas que realizamos com Antônio Caldas Brito, ficou claro para nós

que estávamos falando de uma memória de grupo. Em toda sua trajetória, ele se

coloca sempre como parte de um grupo em relação com as instituições sociais: os

militantes de organizações de esquerda e, posteriormente da luta armada, da

militância do Movimento Estudantil nos anos 1960 e dos que compuseram a

resistência ao golpe militar de 1964 e, posteriormente, à ditadura implantada no país

até o ano de 1985.

As lembranças do nosso entrevistado são, portanto, quase sempre de grupo,

embora nem sempre expressem com clareza e, digamos, sofisticação teórica, as

posições que defendiam os diversos grupos em que esteve ligado e dos quais foi

inclusive dirigente estadual, como o PC do B e a Ala Vermelha do PC do B. Por

vezes, ele recorre a digressões para apoiar posições e visões que defendeu ou falar

de episódios em que esteve envolvido, sem referências teóricas às mesmas, em

especial aos inspiradores dessas posições, como Karl Marx, Lênin ou Mao Tsé

Tung.

A memória dele, apesar dos problemas de formulação teórica, procura reconstruir a

trajetória dos grupos em que esteve inserido em projetos nacionais de derrubada da

ditadura militar e sua ação mais imediata no cotidiano da militância política. Da

mesma forma, também demonstra que a análise da realidade local, tanto no

Movimento Estudantil como em outras frentes de intervenção, não faziam parte do

processo maior de elaboração política da ação e intervenção política dos mesmos. A

referência sempre é nacional. Por isso, não é de se estranhar que ele diga em

80

determinado momento que, para eles, não havia diferença entre os representantes

do regime no Estado e em nível nacional. Em termos políticos, todos os representantes do Estado eram representantes da ditadura. O governador era nomeado, o prefeito também. Não havia diferença do ambiente nacional para o ambiente estadual. Não dá para você diferenciar um governador nomeado pela ditadura de um presidente da República. Então, todas as manifestações possíveis que a gente fazia, de trabalhadores, de estudantes, você incluía as reivindicações próprias, da classe, que não podia deixar de ser, principalmente porque a gente vivia naquela época, uma situação muito precária, em termos de universidade. Tudo também dentro do contexto nacional206

Portanto, avaliamos que estamos diante de uma memória Halbwachiana. Segundo o

teórico dessa visão, Maurice Halbwachs, a memória do indivíduo estabelece íntima

relação com as instituições sociais e, consequentemente, com o projeto coletivo207.

Para Halbwachs, a lembrança é motivada pelos outros e pelo presente. Para ele,

lembrar é refazer, reconstruir e repensar, com imagens e ideias de hoje, as

experiências do passado.

Percebemos, durante a entrevista dele, falhas de memória ao estabelecer as

lembranças daquele período, mas nada que comprometa o material que foi coletado.

Vimos, por exemplo, que em relação à uma entrevista que realizamos com o mesmo

Caldas Brito em 1995, que o economista já não se lembra de muitos episódios que

no relatou naquela época, como a realização do Congresso da UEE e as manobras

realizadas pelo PCB e PC do B para impedir que a AP aprovasse suas posições.

Também não se lembrou da greve dos estudantes realizada em março de 1968,

contra o preços estabelecidos pela reitoria da Ufes, para o recém-inaugurado

Restaurante Universitário (RU). Isso, apesar de ter sido um dos representantes

estudantis no Conselho de Administração e Funcionamento do RU (Cafru), que

definiu um valor de acordo com as reivindicações dos estudantis. A recusa do reitor

Alaor de Queiroz Araújo em aplicar a decisão foi que provocou a deflagração do

movimento.

Esse episódio, por exemplo, foi lembrado por ele numa entrevista que concedeu em

1978, para a extinta revista Agora. Da mesma forma que já são vagas as

lembranças do ex-líder estudantil de sua participação nas diretorias da UEE e do

DCE. Mas isso não significa que o entrevistado tenha omitido alguma informação,

até porque foi confrontado com os episódios e, por vezes, se mostrou surpreso e,

206 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, Anexo II, p. 134. 207 HALBWACHS, Maurice apud BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987.

81

em outros momentos, afirmou, sem muita convicção, que se lembrava dos

episódios.

1.1.c Temas

A duas entrevistas que realizamos com o ex-líder estudantil Antônio Caldas Brito

evocam diversos temas relacionados a história do Movimento Estudantil e da

Esquerda no Espírito Santo no período que estamos pesquisando, entre 1964 e

1968. Procuramos desenvolver alguns que nos parecem mais relacionadas ao tema

e às hipóteses que formulamos em nosso trabalho, já que nos propomos a tratar da

configuração e os eventos que marcaram o Movimento Estudantil (ME) no Espírito

Santo no período de 1964 a 1968.

Assim, nos parece importante situar a forma que o ME e as organizações tratavam a

realidade que se configurava no Estado em relação à conjuntura nacional. Outro

tema importante, vinculado ao primeiro é como o ME tratou a reestruturação da

Ufes, processo desencadeado a partir de 1966,. Afinal ela estava sintonizada com o

espírito dos Acordos MEC-USAID, cujo combate era uma das principais bandeiras

do movimento naquele período.

Também nos interessa entender, a partir das lembranças do nosso entrevistado,

como se expressava o ME em suas lutas específicas e em sua própria dinâmica,

analisando as principais manifestações ocorridas em 1968 e sua relação com outros

movimentos populares no contexto da luta contra ditadura.

Na primeira entrevista, realizada no dia 05 de setembro de 2012, Caldas Brito afirma

que nas organizações de esquerda que atuavam no Movimento Estudantil na época,

praticamente não existia discussão sobre a realidade local, que não era sequer

percebida, num momento em que o Espírito Santo passava por profundas

transformações econômicas e sociais. “A discussão nossa era sobre a realidade

nacional. A realidade regional era mais no sentido da organização, porque se tinha

consciência que não se mudava nada a partir de uma mudança política regional, a

não ser do fortalecimento da organização interna, das ações internas” 208.

Na segunda entrevista, em 02 de outubro de 2012, o entrevistado assinala que, para

os militantes da época, todos os representantes do Estado eram representantes da

ditadura, portanto não se via uma diferença do ambiente nacional para o ambiente

208 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I.. p. 117.

82

estadual, já que tanto o governador como o presidente da República era nomeado

pela ditadura militar. A luta central, então, era pela derrubada da ditadura. A relação

entre as lutas gerais e locais era feita de forma quase automática e mecânica,

ignorando suas nuances e especificidades, mas sempre levando em conta o

contexto nacional. Se você for fazer uma pesquisa sobre percepção que a gente tinha da situação estadual, era a mesma da nacional, porque não você fazia diferença sobre nossos representantes. Qual a diferença do (Christiano) Dias Lopes209, do Setembrino (Pelissari) 210? Eram todos representantes da ditadura, da direita. Para nós eram representantes da direita, até porque não poderia deixar de ser.211

Do ponto de vista do Movimento Estudantil especificamente, Caldas Brito definia o

ME no período entre 1964 e 1968 como um movimento que lutava por reivindicações

específicas, como as melhorias de condições de ensino, mas de muita consciência

política e, por isso, de luta contra a ditadura e pela volta da democracia. Não é bem

assim, já que nem sempre o discurso das lideranças correspondia à disposição da

massa estudantil para a ação. Basta ver a vitória do candidato da direita na eleição

do DCE realizada em 1966, na primeira vez em que a esquerda disputou a direção

da entidade.

Caldas Brito diz não se lembrar muito bem sobre o episódio, mas diz que talvez a

esquerda não estivesse mobilizada o suficiente para a disputa. Da mesma forma,

segundo, é que a chapa encabeçada pelo estudante de Medicina José Monteiro de

Souza Netto tivesse sido lançada em cima da hora. No entanto, a pesquisa que

fizemos nos arquivos de A Gazeta mostra que a chapa teve um importante apoio no

próprio jornal, através da coluna do jornalista Osvaldo Oleari, que dias antes do

pleito tratou de divulgá-la.

A característica de um movimento que refletia mais a insatisfação da classe média, à

qual os estudantes estão ligados como categoria social, a nosso ver é reforçada,

quando o entrevistado afirma que o ME conseguiu fazer grandes mobilizações, mas

talvez não tenha conseguido sensibilizar a sociedade como um todo. “Os

trabalhadores realmente, na minha visão, não tiveram a mesma capacidade de

209 Christiano Dias Lopes Filho (1927-2007) foi deputado estadual e governador biônico do Espírito Santo (1966-1970). Mais tarde, seria Procurador Geral do Estado durante o governo de Max Mauro (1987-2000). 210 Político capixaba, foi deputado estadual e líder na Assembleia Legislativa do então governador Francisco Lacerda de Aguiar (1963-1965) e, posteriormente, prefeito biônico de Vitória (1966-1970), nomeado pelo governador Christiano Dias Lopes Filho. 211 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I, p. 118.

83

mobilização que teve o Movimento Estudantil. O ME teve um papel bem mais

significativo do que até o movimento dos trabalhadores212”.

Num outro ponto da entrevista, o entrevistado lembra que os estudantes apoiavam

movimentos grevistas dos trabalhadores, citando uma greve de motoristas de ônibus

ocorrida na Grande Vitória, que teria resultado na demissão de cerca de metade

deles pelas empresas. Mas é preciso assinalar que não existem registros de outras

mobilizações dos trabalhadores.

De acordo com Caldas Brito, uma das bandeiras mais importantes do ME naquele

período, era a luta contra os acordos MEC-USAID. “Essas discussões se faziam

dentro das escolas, nas passeatas, em termos de conscientização dos estudantes

em relação aos acordos” 213. No entanto, ao ser questionado sobre a reforma

acadêmica realizada na Ufes, elaborada a partir de 1966, nos moldes daqueles

acordos e com a participação de Rudolph Acton, técnico do USAID posteriormente

aprovada no Conselho Universitário, com o voto inclusive de dirigentes do DCE na

época em que a entidade já era controlada pela esquerda, o entrevistado garantiu

que a liderança até teria percebido o que a reforma representava, mas não

conseguiu transmitir isso para os estudantes.

Caso isso se confirme, teríamos um exemplo da hipótese de Martins Filho de que as

práticas e orientações do conjunto da “massa estudantil”, nem sempre expressam

diretamente e sem intermediações nas bandeiras levantadas por sua direção política, já citada em nosso trabalho.214 Em 1967, quando a reforma acadêmica da

Ufes foi aprovada no Conselho Universitário, Caldas Brito fazia parte da diretoria do

DCE, liderada por Carlos Magno Gonzaga Cardoso, que junto com o ex-presidente

da entidade e naquela época representante estudantil, Jorge Augusto Pires

Encarnação, ligado à posições de direita, compunha a representação discente e

votou favorável à reforma.

O ex-dirigente estudantil diz lembrar-se dessa discussão no movimento, mas

pondera que havia um apoio muito grande da imprensa naquele momento à

influência norte-americana e eles não conseguiram popularizar aquela bandeira. Ao

ser perguntado se o movimento não tinha tido a dimensão da reforma, Caldas Brito

insistiu que ele não teria tido foi força. Além disso, segundo ele, Carlos Magno era

212 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, anexo II, p. 120. . 213 Ibid., p. 121 214 Martins Filho, op. cit., p. 30-31.

84

uma liderança conciliatória, que não teria levado a discussão para a diretoria, porque

sabia que a posição da maioria, que era ligada à posições de esquerda, seria

contrária.

No entanto, no ano seguinte, a discussão retornou ao Conselho Universitário, por

decisão do Conselho Federal de Educação (CFE), que solicitou que algumas

mudanças fossem feitas na proposta de nova estrutura para a Universidade,

aprovada finalmente em novembro e transformada em decreto poucos dias antes da

promulgação da Lei 5.540/1968, a reforma universitária da ditadura.

Nessa época, o presidente do DCE já era César Ronald Pereira Gomes, que

participava do Conselho Universitário junto com José Carlos Risk, o outro

representante discente. É bem verdade que, dessa vez, a tramitação foi mais rápida

e singular e não houve uma nova discussão, mais aprofundada sobre o projeto

reforma, mas os representantes estudantis votaram a favor e não se tem notícia de

que a reforma tenha sido discutida nem mesmo pelas lideranças do movimento.

Mais uma vez, a nossa hipótese é que as lideranças, dessa vez mais à esquerda,

não conseguiram fazer uma leitura sobre a realidade local fora do contexto nacional

como resultado da forma como essas questões eram tratadas pela correntes de

Esquerda, especialmente num Estado periférico. Caldas Brito atribui a posição dos

representantes estudantis mais combativos na discussão de 1968, à possíveis

pressões que estariam sofrendo, diante do ambiente repressivo que se vivia na

época, se referindo especificamente à César Ronald.

Outro aspecto relacionado à vinculação da dinâmica do ME local e da esquerda em

geral à dinâmica do movimento nacional, está relacionada à lembrança do

entrevistado das principais manifestações realizadas em 1968, ano do auge das

mobilizações estudantis contra a ditadura militar no período anterior à decretação do

AI-5.

Embora não se recorde do movimento contra os preços do RU, ele se lembra da

manifestação realizada pouco depois, para protestar contra o assassinato pela

polícia do estudante secundarista Édson Luiz de Lima Souto, ocorrida no dia 28 de

março de 1968, no Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro. Na ocasião da

passeata realizada pelos estudantes, depois de uma missa realizada na Catedral de

Vitória, Caldas Brito disse ter assumido o comando da manifestação, que lhe foi

passada por César Ronald, obrigado a se retirar para fugir da perseguição da

85

polícia, que queria prendê-lo. A passeata terminou em frente ao RU, no qual os

estudantes afixaram uma faixa dando o nome do estudante morto para o prédio.

A única manifestação daquele ano da qual o entrevistado se lembra em que houve

confronto com a polícia, foi exatamente a realizada em outubro de 1968, logo depois

da queda do Congresso de Ibiúna215. A manifestação foi na luta de combate à ditadura mesmo. Nós chegamos à Praça Oito, os ônibus pararam na Costa Pereira e na Praça Oito. Por coincidência, eu vinha no primeiro ônibus, desci e pedi aos ônibus para não abrirem ali na Praça Oito, só em frente ao Palácio, naquele ponto em frente ao Palácio. Aí subiram todos, a Faculdade de Direito funcionava ali, começaram os discursos dos estudantes. Por coincidência da vida, o próximo orador seria eu. Quando ia falar, o Ewerton pediu para falar. Ele subiu naquela mureta que tinha ali e, quando o Ewerton subiu a mureta e começou a falar - Ewerton sempre foi um bom orador, muito culto -, a polícia, com o (José) Dias (Lopes) à frente - eu acho que era o chefe de Polícia -, desceu do palácio correndo, batendo em todo mundo que estava ali. O objetivo era prender quem estava na liderança. Essa foi uma manifestação de muita pancadaria mesmo.216

De acordo com ele, até aquela manifestação, não havia muitas prisões e era muito

comum a liderança do movimento ser chamada para na Polícia Federal depois de

alguma manifestação, para prestar esclarecimentos, para saber quem estava

participando delas. Nas passeatas, segundo ele, a polícia chegava e o pessoal

corria e não havia o confronto, o que mudou nessa manifestação.

Entre os temas emergem na entrevista de Caldas Brito, foi a surpresa com que

setores populares e progressistas no Estado, e de resto de todo país, receberam o

golpe militar de 1º de abril de 1964, embora muito se falasse naquela possibilidade.

De acordo com ele, ninguém no Espírito Santo acreditava que o putsch pudesse

mesmo acontecer. O próprio governador Francisco Lacerda de Aguiar, segundo

Caldas Brito, teria afirmado que não havia nada217, numa reunião no Palácio

Anchieta que ele participou dias antes da deflagração do movimento golpista.

Essa posição de surpresa da esquerda e dos setores populares diante do golpe

precisa mesmo ser relativizada. Afinal, no dia 22 de março de 1964, o Comando

Geral dos Trabalhadores (CGT), publicou uma nota no jornal A Gazeta, alertando o

seu “dispositivo sindical” sobre a possibilidade de um golpe. No dia 25 de março, o

Sindicato dos Ferroviários lançou uma nota, também publicado em A Gazeta, em

solidariedade ao presidente João Goulart.

215 O entrevistado não lembrava da data e nem da motivação da manifestação, que foi protestar conta a prisão de 900 lideranças estudantis no malfadado Congresso de Ibiúna, inclusive 13 estudantes do Espírito Santo. 216 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, Anexo II, p. 126. 217 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2013, Anexo I, p. 104.

86

Por fim, na edição do dia 29 de março de 1964, numa nota publicada na primeira

página do mesmo jornal, o Conselho Sindical dos Trabalhadores do Espírito Santo

comunicava que havia decidido se manter em “assembleia permanente” e convocou

todas as entidades para que participassem de uma greve geral pela encampação da

CCBFE, marcada para o dia 03 de abril. Mais a frente, assinalava que, diante da

resolução do CGT, “continuaremos vigilantes e em condições de anteder a ordem

daquele organismo, contra o golpe, e de apoio ao presidente da Republica” 218.

O que podemos perceber é que a esquerda no Brasil e no Espírito Santo,

superestimava as suas forças e, por isso, não acreditava na possibilidade do golpe

se concretizar. Todo relato de Caldas Brito sobre a forma como se comportaram os

setores populares durante o golpe, mostra uma perplexidade diante da mobilização

militar. Todos esperavam a ação de um dispositivo militar que se mostrou ilusório. Acho que ainda foi muito importante nesse dia, a gente notar que o pessoal do porto, dos estivadores, que era um sindicato fortíssimo naquela época, também ficou de vigília, aguardando o que ia acontecer. Você vê o seguinte, não houve uma mobilização externa. Até os trabalhadores ficaram aguardando para ver o que acontecia. Me lembrou de que eu e o Roberto Cortês saímos da UEE e fomos lá, para saber o que estava acontecendo, se eles tinham mais alguma notícia, se tinha resistência no país, se não tinha. Eles também não sabiam nada. Sabiam tanto quanto nós sabíamos.219

No Espírito Santo, existiu uma atípica proximidade entre o PCB e o PC do B na

intervenção política no Movimento Estudantil do Espírito Santo. Afinal, os dois

partidos eram inimigos ferrenhos no cenário nacional e o PCdoB tinha mais

identidade com a AP, principalmente depois que essa última rompeu com suas

posições cristãs e fez uma transição para uma linha maoísta. No Estado o quadro

era completamente diferente. Nos diversos embates políticos do ME local, PCB e PC

do B, costumavam se unir contra a AP. Caldas Brito admite que a relação de

amizade entre os principais militantes dos dois partidos, que dividiam um

apartamento no Parque Moscoso a famosa “República do 804”, influi nessa

proximidade. Mas ele também sustenta que existia uma proximidade ideológica com

o marxismo, em oposição ao catolicismo da AP e da JUC220.

218 CONSELHO SINDICAL DOS TRABALHADORES DO ESPÍRITO SANTO. Nota ao Público. A Gazeta, p. 01, 29 mar. 1964. 219 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I, p. 105. 220 É possível que isso fosse verdadeiro em 1966, por exemplo, quando foi realizado o Congresso da UEE, já que o giro que levaria a AP em direção à posições maoístas ainda estava em curso. Além disso, é possível supor que esse processo tenha sido desigual pelo país, o que só será possível comprovar numa pesquisa sobre a própria história da AP no Espírito Santo.

87

Eu tenho a impressão, que isso deve ter acontecido pela aproximação pessoal que a gente tinha com Zezinho Cipriano e Perly. Era uma convivência pacífica interessante. Tinha amizade pessoal. Como o movimento estudantil tinha uma influência muito grande na área do PC do B, acho que gente fazia essa aproximação mais com o PCB do que com a AP. Talvez por essa identificação marxista que a gente tinha. [...] Eu tenho a impressão que a aproximação nossa aqui, foi mais uma questão pessoal mesmo e a identificação ideológica, porque a AP, apesar de na ação se aproximar até mais da gente, tinha aquela restrição ideológica.221.

Com relação a sua entrada na Ala Vermelha, uma dissidência do PC do B, Caldas

alega que rompeu por estar “decepcionado” com partido que, na sua opinião,

começava a “relaxar na concepção de derrubar a ditadura através da luta armada”.

No entanto, ele não é muito preciso ao falar sobre a diferença de concepções entre

as duas organizações. Da mesma forma que, perguntado se lembrava de qual era a

avaliação do PC do B sobre a realidade do país e da ditadura, ele disse apenas que

na visão do partido, a ditadura só cairia se fosse através da luta armada. “A gente

não tinha ilusão que eles iam entregar o poder [...] Não tínhamos nenhuma ilusão de

que, no diálogo, pudéssemos tirar os militares do poder. Eles saíram por causa do

problema econômico222”.

O ex-líder estudantil observou que o Livro Vermelho de Mao Tsé Tung era distribuído

para todos, mas perguntado se compartilhava as posições maoístas de cerco da

cidade pelo campo, ele afirmou apenas que o PC do B não tinha ilusões com a

concepção do foco guerrilheiro, que era defendida por outras organizações,

especialmente as surgidas de dissidências do PCB e da Polop.

De acordo com Caldas Brito, sua atuação mudou quando passou do PC do B para a

Ala Vermelha. Se antes, ela se dava mais em termos de movimento de massas, de

participação em greves e no Movimento Estudantil, passou a ser um movimento

mais de apoio no Estado ao movimento nacional em apoio à luta armada.

Com relação à liderança de César Ronald, na primeira entrevista o ex-dirigente

estudantil contou que ele foi lançado como candidato à presidente para evitar a

eleição da AP, porque era um grande orador e também para ganhar o voto feminino,

porque fazia o tipo “galã” 223. A AP, ou JUC como ele por vezes denomina a

organização, cuja origem foi realmente a esquerda católica, segundo o ex-líder

estudantil, era um movimento predominantemente feminino. Na segunda entrevista,

Caldas Brito acrescentou mais alguns elementos ao episódio.

221 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I, p. 112. 222 Ibid., id., p. 113 223 Idem.

88

Para atrair o voto dos estudantes da Fafi, onde era grande a influência da AP, além

do suposto charme de César Ronald, a aliança PCB-PC do B puxou para a vice-

presidência da entidade o estudante de Geografia José César Leite, que era não

ligado a nenhum grupo de esquerda. Foi uma decisão estratégica. Naquela época, a gente discutia quem iríamos trazer para botar na suplência de César Ronald, porque ele não era muito aceito pela AP, que tinha uma representação forte no movimento estudantil. E uma forma de trazer o pessoal da AP, foi botar o Cezinha, o César Leite, que era um cara que tinha muito bom relacionamento, jogava muito bem pingue-pongue (risos) acho que passava mais tempo na mesa de pingue-pongue, mas foi estratégico. Me lembro da gente discutindo isso com o Zezinho Cipriano. O César (Leite) morava ali no Parque Moscoso também, estava sempre com a gente lá no apartamento224.

No final, César Ronald foi candidato único e teve o voto da AP, mesmo com

restrições225. Caldas Brito diz não ter se candidatado para ser delegado do

emblemático Congresso da UNE em Ibiúna, quando cerca de 900 lideranças

estudantis foram presas. O então estudante, já como dirigente de uma organização

ligada à luta armada, afirma ter considerado “absurda” a realização de um congresso

clandestino onde os delegados eram eleitos de forma aberta e democrática, com os

nomes afixados nos murais das faculdades.

1.2.a– Perfil de José Maria Cola

O engenheiro civil José Maria Cola nasceu em 1948, em Santo Antônio e criado na

Praia do Canto, ambos bairros de Vitória. Filho de uma família de classe média, o

pai era um contador que virou funcionário público federal do Ministério de Viação e

Obras Públicas e a mãe dona de casa. Dos quatro irmãos, três homens e uma

mulher, dois viraram engenheiros, um médico e a última se formou em Belas Artes,

trabalhando atualmente como decoradora.

Cola estudou nas melhores escolas públicas da Capital nos anos 1950 e 1960

(Grupo Escolar Gomes Cardim e Colégio Estadual) e ingressou na antiga Escola de

Engenharia em 1967 e se formou em 1971. Nos quase 42 anos de formado,

trabalhou a maior parte do tempo na iniciativa privada. As experiências no setor

público são mais recentes, quando trabalhou nas secretarias de Estado da

Educação (Sedu) e Cultura (Secult), durante a administração do ex-governador

224 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, Anexo II, p. 129. 225 É preciso ressaltar que, como havia se destacado como líder estudantil nas manifestações contra o aumento no RU e o assassinato do estudante Édson Luiz de Souto Lima, César Ronald adquiriu um respaldo político difícil de ser batido.

89

Paulo Hartung (2003-2010). Começou a participar mais diretamente do sistema

formado pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea) e Conselho

Federal de Engenharia e Agronomia (Crea/Confea) a partir do ano 2000, quando se

tornou conselheiro, representando a Sociedade dos Engenheiros.

Depois de ocupar vários cargos e posições, atualmente ele é gerente operacional do

Crea, responsável pelos registros profissionais e de empresas na elaboração de

acervos técnicos e nas emissões e anotações de responsabilidades técnicas,

conhecidas como Art. De acordo com ele, a posição de classe média permitiu que

ele estudasse sem a necessidade de trabalhar. Tanto é verdade que, na época de

estudante, apesar da distância da Escola Politécnica à sua residência, na Rua do

Vintém, no Centro de Vitória, sempre almoçava em casa e pouco frequentou o

antigo Restaurante Universitário (RU).

Cola afirma que, no fundo, gostaria de ter feito Engenharia Eletrônica, que na época

só era oferecido em São Paulo. Como a única oportunidade que havia em Vitória era

a engenharia civil, com apoio integral da família, ele ingressou no curso da Ufes, se

especializando na área de cálculo estrutural para aplicação em edificações, tendo

começado a estagiar na Construtora Albamar quando ainda estava começando o

terceiro ano do curso.

De acordo com o engenheiro, ele foi criado no que ele chamou de “critério judaico”

e, por ser o mais velho entre os cinco irmãos, era considerado pelo pai como o

“burro de guia”, que tinha que dar o exemplo para os demais irmãos. “Meu pai me

dizia: ‘eu não tenho riqueza para deixar para você, mas a única coisa que ninguém

rouba de ninguém é a educação. Então você vai ter que se formar e tocar sua vida’” 226. Com isso, ele deixa claro que o projeto familiar e a expectativa da família em

relação ao curso universitário era a ascensão social através de uma profissão liberal

que era muito valorizada na década de 1960.

José Maria Cola não foi um militante do Movimento Estudantil na época em que era

universitário, mas também não se pode afirmar que tenha sido um aluno comum.

Afinal participava das atividades do Diretório Acadêmico da Escola Politécnica,

especialmente na área esportiva e cultural. Integrou o grupo de teatro da faculdade,

organizado pelo então presidente do DA, José Maria Nicolau, posteriormente

professor da Ufes e pró-reitor da Universidade na gestão do reitor Antônio Abi Zaid

226 José Maria Cola, entrevista 28/03/2013, Anexo III, p. 147..

90

(1983-1987). Em 1968, participou de duas montagens que fizeram sucesso na

época em Vitória, Vitória de setembro a Setembrino e Animais não desanimais, de

Milson Henriques, a segunda chegou a ser proibida pela censura.

1.2.b – Tipo de memória

Como com o economista Antônio Caldas Brito, ex-liderança estudantil da Ufes,

também realizamos duas entrevistas com o engenheiro José Maria Cola, que

demonstrou também representar uma memória de grupo. Afinal, ele se sempre se

coloca como parte e, inclusive, liderança de vários grupos do qual fez e ainda faz

parte: dos 135 alunos de seu curso de Escola de Engenharia e dos engenheiros

civis do Espírito Santo. Aliás, é muito forte o tom corporativista em seu discurso.

As lembranças do nosso entrevistado são de grupo, do qual ele quase sempre se

coloca exercendo um papel de liderança, ainda que essa liderança seja

conservadora. Apesar do tom quase diplomático e de afirmar que sempre procurou

circular por todas as posições para se chegar a um posicionamento comum do

grupo, José Maria Cola deixa escapar suas críticas ao pensamento de esquerda,

que aumentam de tom quando fala nos governos atuais do ex-presidente Luiz Inácio

Lula da Silva (PT) e da presidente Dilma Rousseff.

Quando se refere à ditadura militar, coloca a expressão entre aspas, embora

reconheça que excessos foram cometidos e até os condene. Suas posições não têm

uma referência teórica, mas são nitidamente conservadoras. Diante dessa avaliação,

entendemos que estamos diante de mais uma memória Halbwachiana, em que o

indivíduo estabelece íntima relação com as instituições sociais e,

consequentemente, com o projeto coletivo.

1.2.c - Temas Nos chama muita atenção a preocupação de José Maria Cola com status quo de sua

profissão. O engenheiro destaca a pompa cerimonial e o que representava se tornar

engenheiro na época em que se formou e condena como os atuais estudantes de

engenharia se portam, de forma excessivamente informal e despojada para ele.

91

A universidade era um lugar em que, naquela época pelo menos, o respeito ao professor tinha certo grau de importância. O comportamento do estudante universitário, tenho para mim, também era bem diferente. As nossas formaturas eram um negócio que parava Vitória. A minha formatura foi no Teatro Glória. Estava escrito lá no letreiro: Formatura de engenharia. O Glória era pequeno para tanta gente. A formatura era um ato tão solene, de uma pompa cerimonial muito alta. A gente saia dali convencido que realmente agora tínhamos mudado de vida. Hoje, não sei o que acontece, mas acho que virou corriqueiro esse negócio de ter diploma ou fazer um curso de Engenharia. Inclusive é questionado entre nós, engenheiros, porque perdemos muito assim, em termos até do comportamento na sala de aula, na escola. Você vê os alunos de engenharia indo de bermuda, camiseta, porque não tem um rito de que estamos fazendo uma transformação em nossa vida227.

Cola afirmou nas entrevistas de que nunca ouviu falar do Projeto de Reestruturação

Acadêmico-Científica, o que compromete tanto a visão de líderes do ME de que

discutiram ou contestaram o processo de reforma em curso na Ufes nos moldes dos

acordos MEC/USAID, quanto a afirmação da burocracia da universidade que a sua

elaboração foi precedida de um amplo debate com a comunidade acadêmica. Com

um detalhe, José Maria Cola se formou em 1971, quando a implantação da nova

estrutura estava em curso. O então estudante de Engenharia, diz nunca ter

participado e nem ouvido falar de qualquer discussão sobre o assunto. Ele inclusive,

criticou a adoção do sistema seriado e a mudança da escola para o campus de

Goiabeiras, que aconteceu depois que ele se formou.

[...] (as faculdades) estavam espalhadas. A Escola de Belas Artes era aqui na Praia do Suá, Direito ficava lá perto do Palácio. Filosofia ficava no prédio da Fafi. Ali, se não me falha a memória, antes era o Gomes Cardim, depois andou funcionando o Colégio Estadual. Em suma, era tudo espalhado por Vitória. Para juntar tudo, fizeram o campus. Nós, da Escola de Engenharia, pelo contrário, estávamos ampliando ali para fazer os diversos laboratórios. Tudo no maior refino, para depois abandonar aquilo tudo ali e ir para dentro do campus. Quer dizer, se a própria Escola de Engenharia tivesse permanecido ali onde estava talvez houvesse um ganho maior em termos de unidade dos próprios engenheiros228.

Nos parece interessante também como o engenheiro se refere à liderança que

exercia junto a sua turma, formada inicialmente por 135 alunos e que chegou com

85 na formatura, cinco anos depois. Uma situação que Cola reafirma em vários

momentos das entrevistas. De acordo com ele, para exercer essa liderança, ele

227 José Maria Cola, entrevista 28/03/2013, Anexo IV, p. 149. 228 Ibid., p. 154-155.

92

conta que procurava conversar antes com os líderes dos diversos grupos que

compunham a turma para então chegar a uma posição de consenso.

Cola destaca que a turma conseguiu uma união muito grande, que se mantém até

hoje. Tanto que, segundo o engenheiro, ele se reúnem a cada cinco anos. Bem

humorado, ele afirma que a frequência parece estar diminuindo, porque mais de 30

anos depois de formados, todos estão e alguns até já morreram. “Está surgindo a

ideia de fazer a reunião anual. Mas é uma turma que até hoje consegue se reunir e

trocar informações”, assinalou229.

Ao se referir ao ME e bandeiras de luta dos estudantes da época em que estudava

na Escola Politécnica, Cola mostra que não estava alheio ao que acontecia,

deixando transparecer uma visão que pode ser classificada de moderadamente

conservadora. De acordo com ele, na sua faculdade havia posições de esquerda e

direita, com predominância para aquelas de conteúdo conservadoras. Apesar disso,

o então estudante de Engenharia diz que não sabe se poderia se enquadrado em

alguma delas. “Sempre procurei ser uma pessoa independente, respeitando as

diferenças” 230.

Ao mesmo tempo, Cola afirma que não participava de manifestações, passeatas e

greves. Aliás, ele diz não se lembrar de nenhum movimento paredista na faculdade,

apesar de, como já foi citado nesta monografia, quando das prisões de estudantes

no Congresso de Ibiúna e na manifestação realizada em protesto contra as mesmas,

uma matéria publicada pelo jornal O Diário registrou que os estudantes da Escola de

Politécnica, decidiram em assembleia fazer dois dias de paralisação.

A “independência” não o impede de fazer críticas à extinta União Soviética e,

especialmente, aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Além disso, ele

afirma que é difícil mudar pessoas “ideologizadas”. De acordo com Cola, não havia

discussão entre os seus colgas sobre os acordos MEC/USAID ou questões

semelhantes, porque depois que o aluno estava fazendo e “levando a sério” o curso

de Engenharia, ele às vezes não tinha tempo nem para almoçar ou jantar, pois

ficava absorto nos estudo.

O engenheiro disse que não votava nas eleições do DCE e não se lembra dos

nomes de Carlos Magno Gonzaga Cardoso e nem César Ronald Pereira Gomes.,

que foram presidente da entidade O comportamento era diferente no que se refere à

229 Ibid. , p. 151 230 Ibid., id. .

93

representação estudantil na Escola Politécnica, onde participava das eleições do DA

e lembra-se dos nomes de alunos que presidiram a entidade, especialmente de José

Maria Nicolau, que presidiu o Diretório em 1968 e era conhecido por suas posições

conservadoras. Aliás, todos os outros presidentes, segundo ele, tinham perfil

semelhante. Cola se lembra de Jussara Martins e Marcelo Santos Neves, que

expoentes da esquerda na sua faculdade.

Ele inclusive elogia a primeira, segundo o ex-aluno da Politécnica, uma pessoa de

posições firmes, que sempre soube respeitar diferença. “Sem dúvida nenhuma, por

ser mulher, possivelmente ela deve ter sofrido muito Sem dúvida nenhuma, por ser

mulher, possivelmente ela deve ter sofrido muito”. Com relação à repressão

desencadeada pela ditadura, Cola disse que ficava penalizado com aquele tipo de

coisa, devido a “severidade”; “Conseguia se enxergar fantasma onde nós também

não víamos. Não se entende esses assuntos na profundidade, na necessidade de se

fazer determinadas, vou chamar assim, ações ou coisas bastante repressoras como

naquela época se levava. Era muita dureza.” 231.

231 Ibid., p. 159..

94

Conclusão Acreditamos ter demonstrado, com base nos depoimentos e documentos citados,

que o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico da Ufes foi elaborado por um

técnico do USAID e possui o espírito da Reforma Universitária promovida pela

ditadura. Mais do que isso, podemos afirmar que, como foi elaborado antes mesmo

da promulgação dos decretos-leis que orientaram a reestruturação das

universidades federais brasileiras, tudo nos leva a crer que Ufes acabou servindo

como um laboratório para a Reforma. Não por acaso, a estrutura prevista no projeto

é até hoje, 45 anos depois de sua promulgação, a coluna vertebral da Universidade.

Levantamos essa hipótese, não só por Atcon ter sido o autor do plano, mas pela

participação nele do conselheiro Valnir Chagas, que teve papel importante na

política da ditadura militar para educação superior e na elaboração da Lei

5.540/1968. Antes mesmo de ser aprovado pelo CFE e promulgado pelo Marechal

Artur da Costa e Silva, o plano foi publicado pela editora da Universidade Federal de

Santa Catarina232.

Outra informação nos chamou atenção e reforçou a nossa hipótese. Na sessão do

Conselho Universitário de 4 de abril de 1967, o reitor informou que, numa reunião

realizada no MEC, com a participação dos reitores das outras universidades

federais, a Ufes foi convidada, com outras quatro instituições federais de ensino

superior para integrar um plano piloto das universidades brasileiras, que seria

desenvolvido por uma Comissão Federal de Planejamento. Não podemos deixar de

fazer a ressalva que nenhuma informação a mais foi acrescentada.

Os depoimentos e documentos que conseguimos reunir parecem confirmar nossa

hipótese de que as lideranças estudantis, mesmo as mais à esquerda, não tiveram a

dimensão de que Ufes era um laboratório de uma reforma universitária nos moldes

propostos pela ditadura militar. Mesmo aqueles que sustentam que, teria havido sim,

uma resistência ao projeto. O Plano de Reestruturação Acadêmico-Cientifico, que

acabou sendo aprovado com certa facilidade, foi uma estrutura elaborada nas bases

dos odiados acordos MEC-USAID.

Ele foi discutido e aprovado no Conselho Universitário por duas vezes, na segunda

quando os representantes estudantis eram ligados à posições mais à esquerda, em

agosto de 1968. Ainda que se possa relevar o fato de que não houve não houve

232 De acordo com Catálogo da Biblioteca Central da Ufes, também existem no Setor de Coleções Especiais, cinco exemplares de uma edição publicada um ano antes no Rio de Janeiro.

95

uma discussão com a mesma profundidade do ano anterior, seu conteúdo não foi

levado ao conhecimento da massa estudantil e não parece ter havido da parte da

direção nenhuma discussão mais aprofundada sobre isso. Mas os documentos

estudantis produzidos na época e lideranças daquele período apontam a luta contra

o Acordo MEC-USAID como prioritária para o ME.

Algumas lideranças, como Domingos Freitas Filho, admitem que a maioria dos

estudantes não conheciam o conteúdo do acordo (na verdade eram 12 acordos).

José Maria Cola, que não era militante do ME, afirmou não ter participado sobre

qualquer discussão sobre o assunto. Nem sobre o acordo MEC-USAID e nem da

reestruturação da Ufes. Nas atas do Conselho Universitário, vimos mais destaque à

preocupação corporativista de algumas faculdades que seriam unificadas, como a

Odontologia e a Medicina, sobre uma discussão mais aprofundada do projeto de

reestruturação.

Como dissemos no início do nosso trabalho, um dos nossos objetivos era tratar da

configuração e os eventos que marcaram o Movimento Estudantil (ME) no Espírito

Santo no período de 1964 a 1968. O episódio da reforma acadêmico-científico da

Ufes é uma demonstração da dificuldade em estabelecer uma relação dialética entre

a conjuntura local e nacional numa leitura de realidade que leve em conta

necessidade de estabelecer uma estratégia que leve em consideração as

especificidades locais.

Percebemos na maioria dos depoimentos a análise da realidade local, tanto na

Universidade como do Estado, não eram prioridades no processo elaboração política

da ação e intervenção política dos militantes e suas organizações. A referência

sempre é nacional. Por isso, não é de se estranhar que ele diga em determinado

momento que, para eles, não havia diferença entre os representantes do regime no

Estado e em nível nacional.

Como vimos num depoimento, para os militantes de esquerda, todos os

representantes do Estado representavam a ditadura, já que tanto o governador

como o prefeito da Capital eram nomeados. Dessa maneira, não haveria diferença

do ambiente nacional para o estadual. Se você for fazer uma pesquisa sobre percepção que a gente tinha da situação estadual, era a mesma da nacional, porque não você fazia diferença sobre nossos representantes. Qual a diferença do (Cristiano) Dias Lopes, do Setembrino? Eram todos representantes da ditadura, da

96

direita. Para nós eram representantes da direita, até porque não poderia deixar de ser233.

Com relação à amplitude do movimento de oposição à ditadura militar, que fez com

que as correntes de esquerda vissem a possibilidade de abertura de uma crise

revolucionária que derrubasse a ditadura, se Reis Filho apontou a existência de

apenas duas greves operárias (em Contagem e Osasco), em 1968, o único

movimento de trabalhadores de que temos vaga referência no Espírito Santo entre

1964 e 1968, foi de uma greve de motoristas e trocadores de ônibus.

Se as esquerdas brasileiras acreditavam, como mostrou Reis Filho, que a ditadura

estava isolada e vivia uma crise incontornável, que levaria à sua inexorável

derrubada pela ação da vanguarda armada das massas, como veriam a realidade do

regime em outros rincões do país? Como admitiu Caldas Brito, que foi dirigente do

PCdoB e da Ala Vermelha, essa discussão não era feita. O conteúdo da

Reestruturação Acadêmico-Científica da Ufes e mesmos alguns aspectos que

envolvem a militância do ME daquele período certamente ainda merecerão outros

estudos.

Não pretendemos fazer qualquer julgamento, muito menos uma condenação, das

lideranças estudantis daquele período, até porque entendemos que eles cumpriram

um importante papel na resistência contra o regime militar e na luta pela

redemocratização do país. O que pretendemos é lançar as bases sobre a

capacidade da esquerda de fazer uma análise específica sobre a realidade local fora

do contexto nacional, especialmente em Estados periféricos como o Espírito Santo.

A bem da verdade, os fatos parecem demonstrar que a própria leitura da conjuntura

nacional por parte das correntes de esquerda acabou se mostrando equivocada.

233 Antônio Caldas Brito. Entrevista 02/10/2013. Anexo II, p.

97

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO I ENTREVISTA ANTÔNIO CALDAS BRITO - 05/09/2012

Como é que foi o início de sua militância no movimento secundarista no Piauí?

ANTONIO CALDAS BRITO - A gente tinha um grupo já discutindo os problemas

sociais. Faziam parte, o José Luiz Maia, que depois foi deputado federal lá pelo

Piauí; o Jesualdo Cavalcanti, que era do PCB, se formou no Piauí e foi presidente do

Tribunal de Contas do Estado. E a gente...

Você estudava num colégio? Isso foi em que ano mais ou menos?

ACB - Eu estudava no Colégio Diocesano, que corresponde aqui ao Colégio

Salesiano. Não me lembro exatamente o ano, no início dos anos 60. Entrei no

movimento, me tornei um dos diretores da União Piauiense dos Estudantes

Secundaristas (Upes).

Houve algum fato que te atraiu para o movimento? Na sua formação familiar, já havia alguma coisa que te atraísse para a militância ou foi no colégio que você foi despertando para a política?

ACB - Na minha família teve um episódio muito importante na minha vida. Um primo

nosso, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, era governador do Estado quando

houve o golpe, a tentativa de impedir a posse do João Goulart. Por coincidência, ele

estava no Rio e era do PTB. Ele fez um discurso apoiando a posse do João Goulart

e aí houve ordem de prisão para ele no Rio. Então ele viajou até o Ceará, o Governo

do Ceará deu garantias para ele tomar posse, voltar ao Piauí e assumir o governo.

Nós ficamos eu tinha nessa época uns, sei lá, 16-17 anos, a noite toda no palácio

ouvindo a Rede da Legalidade, noticiando, dizendo o que estava acontecendo. Para

mim, foi um dos episódios que marcou a minha vida. Cinco horas da manhã ele

chega e, na manhã seguinte, a polícia do Piauí garantiu a posse. Acho que esse foi

o primeiro incentivo a entrar no movimento pela democracia. Mas aí nós entramos,

fui diretor da União Piauiense dos Estudantes Secundaristas por dois mandatos.

Depois, participei de um congresso nacional da União Brasileira dos Estudantes

Secundarista (Ubes), no Rio Grande do Sul, e fui eleito para uma das diretorias da

entidade.

102

Você se lembra para qual das diretorias?

ACB - Acho que era uma diretoria sem muita importância, mas uma diretoria que me

permitiu vir para o Rio.

Isso aconteceu em 1962?

ACB - Por aí. Inclusive fiquei morando na Ubes, no Flamengo. Eu vim para o Espírito

Santo exatamente nesse período, em 1964, um mês antes de golpe.

Você já havia ingressado no PC do B naquela época?

ACB - Não, minha aproximação lá no Piauí era mais com o PCB.

Mas você ingressou no partido ou era só próximo?

ACB - Só próximo. Ingressar mesmo, eu ingressei no PC do B, mas já aqui no

Espírito Santo.

E como é que você veio parar no Espírito Santo?

ACB - O meu irmão mais velho formou-se em Minas - tenho dois irmãos formados

em Minas. Formou-se em Direito, José Caldas Britto, que foi Procurador Geral do

Estado. Um colega dele, daqui do Espírito Santo, também formado em Minas, foi

que o convidou para vir trabalhar aqui no Estado. Meu caminho também estava

praticamente tudo certo, era ir para Minas estudar, porque já tinha conhecimento, a

pensão que meu irmão tinha ficado.

Em Belo Horizonte?

ACB - Belo Horizonte. Eu me lembro de um episódio, chegando em casa, pensando

em fazer o vestibular, meu irmão disse: "não vai para Belo Horizonte que você não

vai gostar, porque é uma cidade num vale e o mineiro, na segunda cerveja, solta

uma caixa de foguete. Você vai para o Espírito Santo. Vai conhecer o Espírito Santo,

que você vai gostar, eu já estou morando lá". Aí eu vim. Inicialmente eu não tinha

nem terminado o secundário ainda. Vim para o Espírito Santo, fiquei umas férias

aqui e realmente eu gostei.

Foi em 1963 que você veio passar as férias?

103

ACB - No início de 1964.

Onde você ficou quando veio passear?

ACB - Quando vim passear, meu irmão estava morando em Linhares. Eu vim para

Linhares, depois para Vitória, Guarapari. Aí voltei para o Piauí, para terminar o meu

secundário e vim direto para cá para fazer o vestibular. Quando fui para o Rio,

estava no último ano, fiquei lá um ano antes de fazer vestibular, fazendo política. O

Rio era um lugar muito interessante, naquele movimento ali do Calabouço, que

juntava estudantes do Brasil inteiro. Não foi à toa que a ditadura acabou com aquilo

lá e fez uma praça. Era um grande símbolo do movimento estudantil. Muito antes do

golpe, já havia uma fermentação política fantástica. O pessoal da Ubes também

podia almoçar lá na Fafi. No Calabouço o pessoal da UNE ia mais fazer política, mas

fazia refeição no restaurante da Fafi, que ficava próximo e era melhor. O grande

centro de fermentação e agitação era no Calabouço.

Você chegou em Vitória, já era um militante político, qual sua impressão da Vitória daquela época?

ACB - Me lembro que teve um movimento pela estatização da empresa de energia e

eu fiz um cursinho pré-vestibular. Inclusive, um dos diretores era o José Guilherme

Cortês. Era um pessoal já bastante integrado com o movimento de esquerda daqui.

Aí eu conheci Carlito Osório. Era todo mundo muito mais velho, mas eram todos

ligados ao movimento. A minha maior integração ao movimento foi mais mesmo na

universidade, lá eu conheci o Perly, o Zezinho Cipriano. Inclusive, nós fizemos uma

república, que era o 804. A famosa 804, era eu, Perly, Zezinho Cipriano, Renato

(Soares). Aquele menino da Medicina morou lá pouco tempo. A base éramos nós. O

pessoal ia aparecendo, dormia lá. Tinoco (dos Anjos) morou lá com a gente.

Realmente era um núcleo interessante do movimento estudantil. E, nesta altura dos

acontecimentos, em plena resistência contra a ditadura, depois de 1964.

Mas nós estamos ainda antes do golpe. Você chegou aqui e teve o contato com essas pessoas. O movimento estudantil antes do golpe, qual o contato que você teve?

ACB - Eu estava no cursinho, entrei na universidade em 1965. A gente participou de

algum movimento ali na Praça Oito pela nacionalização da central elétrica.

104

A Central Brasileira de Força Elétrica, que era uma empresa canadense. ACB - Exatamente. Participei daquele movimento, tentando me entrosar com o

pessoal. O grande teste meu foi no golpe. Foi a resistência que a gente fez, eu era

secundarista ainda, estava no cursinho. Eu fui com o pessoal para a UEE.

Como é que foi esse dia 31 de março?

ACB - Foi um dia fantástico.

Como é que você tomou conhecimento do golpe?

ACB - Foi um negócio interessante, porque ninguém acreditava que ia haver o golpe.

Acho que nem o João Goulart. Tanto que na véspera do golpe, estava marcada uma

vinda do João Goulart aqui para assinar a nacionalização da Central Brasil de Força

Elétrica. Outra pessoa interessantíssima, aquele advogado eleitoral, o Antônio

Carlos Pimentel, era diretor do Grêmio do Estadual e, quase na véspera do golpe,

nós fomos lá no palácio conversar com o governador, o Chiquinho, e ele estava certo

que não tinha nada, não ia haver golpe.

Mas você foram com alguma entidade?

ACB - Eu acho que o Pimentel foi pela Uese (União Espírito-santense dos

Estudantes). E ele disse: "Não, não tem nada". Me lembro que, naquela época, a

gente ouvia o Repórter Esso ali na Praça Oito. Eu ouvi o discurso do João Goulart

nos Clube dos Sargentos ali, ele convocando os sargentos para resistir. Eu sei que,

no dia do golpe, nós passamos a noite toda lá na UEE. Me lembro que eu e o

Roberto Cortês, irmão do José Guilherme, saímos na chuva e fomos ao Sindicato

dos Estivadores. Os sindicalistas também estavam reunidos, aguardando. Fomos lá

para dar a notícia que o Miguel Arraes havia sido preso. A queda começou assim. E

voltamos para a UEE para saber o que estava acontecendo. Ficamos a noite toda.

Sai de lá de manhã, fui para a casa do meu irmão, que estava desesperado porque

não sabia o que estava acontecendo comigo. Ele falou comigo: "pode vir para casa,

porque não tem mais resistência não".

Houve nesse dia uma manifestação em frente ao Palácio Anchieta, onde inclusive o Chiquinho deu uma nota, que depois utilizada para dizer que ele

105

estava do lado do golpe. Você participou dessa manifestação?

ACB - Não, eu me lembro que houve a manifestação, mas não me lembro de ter

participado. Eu participei ativamente é do movimento dentro da UEE.

Bem, houve essa vigília na UEE. Segundo Perly Cipriano, houve um grupo que ficou até o final. ACB - Ficamos a noite toda, saí de lá umas 11 horas, no dia 1º.

No dia 02, porque a vigília foi do dia 1º para o dia 02, quando o golpe se consolidou. Segundo o Perly, depois o grupo saiu e a polícia invadiu a UEE. ACB - Quando ela chegou, ainda tinha umas pessoas. Ainda tinha, não sei se o

pessoal que trabalhava na UEE. Mas eu já tinha saído quando a polícia chegou.

Como o movimento se comportou no período posterior ao golpe? A UEE estava fechada, houve intervenção nela.

ACB - Acho que ainda foi muito importante nesse dia, a gente notar que o pessoal do

porto, dos estivadores, que era um sindicato fortíssimo naquela época, também

ficaram de vigília, aguardando o que ia acontecer. Você vê o seguinte, não houve

uma mobilização externa. Até os trabalhadores ficaram aguardando para ver o que

acontecia. Me lembrou que eu e o Roberto Cortês saímos da UEE e fomos lá, para

saber o que estava acontecendo, se eles tinham mais alguma notícia, se tinha

resistência no país, se não tinha. Eles também não sabiam nada. Sabiam tanto

quanto nós sabíamos.

E nos dias posteriores ao golpe? Houve prisões?

ACB - Nos dias posteriores ao golpe teve prisões. A resistência maior mesmo foi do

Movimento Estudantil. Inicialmente não houve uma repressão tão forte. Você

conseguiu fazer manifestações. Eu mesmo participei daquela marcha dos 100 mil.

Mas isso foi em 1968, vamos voltar para 1964. Houve o golpe e um movimento de desarticulação. Depois houve a rearticulação. Quando aconteceu o golpe, você já estava no PC do B?

ACB - Não, entrei depois do golpe.

106

Como foi sua entrada no PC do B? Você mesmo disse que era amigo do Perly e de outras pessoas ligadas ao PCB. Era contato do partido no Piauí, como é que você foi parar no PC do B?

ACB - Primeiro que eu sempre achei essa política do PCB muito confortável. O PCB

sempre divulgou a formação, o diálogo. Na verdade, eu estava muito mais do outro

lado. Na universidade eu conheci o Helinho, Hélio Garcia - Helinho hoje mora em

Colatina - e ele já era do PC do B. Antes de terminar o primeiro ano, no final do

primeiro ano, ele já foi para a clandestinidade, depois foi para a China e tal. A partir

desse contato com o Helinho, é que houve a minha aproximação com o PC do B.

Helinho fazia Economia também?

ACB - Fazia. Também havia um outro rapaz daqui, inteligentíssimo, primeiro lugar na

Escola de Engenharia do Rio de Janeiro, que foi assassinado, não me lembro o

nome e era contato do partido aqui234. A gente acabou entrando no PC do B,

chegamos a ser direção aqui e, num congresso da UNE, a gente saiu do PC do B e

entrou na Ala Vermelha.

Isso foi em 1967, a Ala Vermelha foi formada em 1967. Em 1964, o Hegner Araújo235 era interventor na UEE. Depois houve uma eleição, que elegeu o (José) Monteiro como presidente. Você participou desse processo? Você conheceu o Hegner na época em que ele era interventor?

ACB - Não, nós voltamos para a UEE com Zezinho Cipriano. Nós conseguimos um

parecer de que a UEE podia funcionar, conseguimos eleger uma nova diretoria, fazer

o CEU (Clube do Estudante Universitário).

Durante o ano todo de 1964, você ficou fazendo o cursinho? Ele funcionava aonde?

ACB - Ele funcionava dentro do prédio da Economia.

234 É possível que Caldas Brito esteja se referindo a Lincoln Bicalho Roque, militante do PC do B, morto em 1973, que estudou no Espírito Santo e depois se transferiu para o Rio de Janeiro, mas continuou fazendo a ligação com o partido no Estado. 235 Hegner Araújo foi professor da Ufes e sub-reitor de Assuntos Comunitários na gestão reitor José Antônio Abi Said (1984-1988). Estudante com posições de direita liberal, em abril de 1964, Hegner era presidente do DA da Fafi e foi nomeado interventor da UEE pelo Conselho de Entidades da mesma, em reunião realizada no dia 07 de abril de 1964.

107

Você lembra quais as pessoas que foram presas depois do golpe? Por exemplo, o Renato Soares236 me parece que foi preso. ACB - Não, ele foi preso mais depois. Logo depois do golpe, eu acho que não houve

muita prisão não, porque Ewerton Guimarães foi preso depois, em 1968. Nessa

época, eu me lembro que a gente era muito chamado na polícia, mais para dar

depoimento, mas prisão... A primeira grande prisão foi, acho que foi em 1970, nas

vésperas da eleição. Mais de 300 pessoas.

Você foi preso também?

ACB - Também. A ditadura prendeu todas as pessoas que pudessem ter influência.

Mais de 300 pessoas. Eu, Zezinho, (Sizenando) Pechincha237, José Costa238. Nós

tínhamos curso superior, ficamos presos na enfermaria e os demais em outros

lugares. Todo tipo de pessoas. Um velhinho que era do PCB também, ele até passou

mal lá. Prenderam gente que não tinha nada a ver. Me lembro que prenderam o

Moacir Brotas. Ficou com a gente, era médico em Colatina. Prenderam um monte de

gente, nós entramos e saímos sem saber por que. Não deram explicação. Nos

prenderam, botaram lá e, na véspera da eleição, soltaram todo mundo. De

Cachoeiro foi o (Gilson) Carone239 também.

Ficou todo mundo no 38º BI (Batalhão de Infantaria)?

ACB - Todo mundo ficou no 38º BI. Prenderam operário, estudante, jornalista,

prenderam quase 500 pessoas. Eu acho que aquilo ali foi uma tentativa de golpe,

porque até hoje não tem uma explicação. Acho que foi no Brasil inteiro. Teria que

pesquisar o que foi aquilo. Prenderam esse pessoal todo, prenderam dentro de

casa, nós ficamos ali junto e passou a eleição, soltou todo mundo. Bom, na época

eles não davam explicação para ninguém. Nunca ouvi nenhum comentário dessas

prisões. Acho que ficou um branco sobre isso. Todo mundo sabe que aconteceu.

Ninguém pesquisou porque aconteceu.

236 Líder estudantil ligado ao PCB, Renato Soares mais tarde seria professor da Ufes e presidente estadual do PSB, cargo do qual se afastou em 1995. Atualmente mora em Maceió, onde dá aulas na Universidade Federal do Alagoas (Ufal). 237 Advogado de posições progressistas, ligado ao antigo MDB, foi presidente do Vitória Futebol Clube, faleceu num acidente de carro no início dos anos de 1980. 238 Jornalista, assassinado no início dos anos de 1990. O crime nunca foi desvendado. 239 Médico foi vice-prefeito e prefeito de Cachoeiro de Itapemirim (1978-1982).

108

ACB - É, acho que foi um episódio interessante.

Vamos voltar lá, paralelamente à sua participação no ME, você trabalhava também? Você morava com seu irmão?

ACB - Eu trabalhava na Caixa Econômica. Eu entrei na Caixa no final do primeiro

ano ou início da minha faculdade. Antes da república do 804, eu morava com meu

irmão, na Praia do Canto.

Mil novecentos e sessenta e quatro foi um momento de rearticulação, em 1965 você entrou na faculdade, como foi isso?

ACB - Foi quando eu entrei no PC do B.

Esse período todo antes, você militou como independente?

ACB - Como independente.

Mas ainda com proximidade com o PCB ou crítico em relação ao partido?

ACB - Um pouco de crítica em relação ao PCB, porque no Piauí também, eu tinha

muito contato com o pessoal da Juventude Estudantil Católica (JEC), que eram

estudantes secundaristas. Esse pessoal veio para a JUC (Juventude Estudantil

Católica), que era a juventude universitária católica e depois a AP (Ação Popular).

Na AP foi a junção da Juventude Estudantil Católica secundarista e a JUC. A igreja

criou a Juventude Operária Católica (JOC), de onde saíram as comunidades de

base. A JOC juntou com a JEC e a JUC e deu a AP. Grande parte desse pessoal da

AP veio para o PC do B.

Lá no Piauí você tinha esse contato. ACB - No Piauí eu tinha o contato com o pessoal da JEC. Esse pessoal, por incrível

que pareça, era muito mais radical do que o PCB. Eu acho que daqui, dado essa

aproximação aqui, talvez eu fui criando uma consciência de ir para o PC do B. É um

negócio tão interessante esse raciocínio, grande parte desse pessoal da AP rompeu

com a igreja e foi para o PC do B240. Teve uma época em que houve um racha da AP

240 Na verdade, desde meados da década de 1960, a AP havia feito uma inflexão em direção ao maoísmo. Em 1971 passou a adotar o nome de Ação Popular Marxista e Leninista (APML). Em 1973, a maior parte da organização se incorporou ao PC do B. Os remanescentes, que não aceitaram a fusão, mantiveram a organização

109

e a maioria foi para o PC do B, porque eles estavam muito mais próximo do pessoal

da igreja, com uma resistência mais consistente do que o Pecezão. O PCB, desde

que houve esse racha da criação... criação não, da criação do PCB, porque o PC do

B sempre existiu. Quando se criou o PCB, já foi uma flexibilização da ideologia

marxista. Tanto que foi flexibilizando, até desaparecer. Hoje o que é o PCB? Hoje o

PCB virou o PPS. Eles foram se dissolvendo, renegando aos poucos a ideologia

marxista. Desapareceram. O que é o PPS?

Antes de entrar para o PC do B, você já se considerava marxista?

ACB - Eu acho que sim. Já lia, não estava organizado, mas conhecia todas as

teorias marxistas.

Então em 1965, você começou a estudar na faculdade e se engajou em algum movimento específico no ME?

ACB - Desde o primeiro ano, já havia toda uma formação. Eu comecei a participar do

Diretório Acadêmico. A nível do Diretório Acadêmico, a maioria dos estudantes não

são marxistas, então você começa com as reivindicações escolares: melhoria

escolar, professores, mudança de professores. Eu não sei se cheguei a participar de

alguma diretoria, mas eu já estava no Diretório, participando do Diretório.

Foi em 1965 que o Monteiro renunciou à presidência da UEE e o Zezinho (Cipriano) continuou. Ele era o único diretor que havia sobrado da diretoria eleita no ano anterior. Houve uma reorganização da diretoria, você se lembra disso?

ACB - Eu participei da diretoria com Zezinho Cipriano, era o secretário-geral.

Mas você lembra como foi a organização dessa diretoria? Não houve uma eleição, mas sim uma reorganização. ACB - É, acho que não houve uma eleição.

A UEE estava fechada?

ACB - Estava. Nós começamos a reorganização, reativamos o CEU, que era uma

até 1980, quando novamente a maioria decidiu pela diluição da APML no PT. Mais uma vez, um grupo minoritário insatisfeito, decidiu formar a Organização Comunista Democracia Proletária (OCDP).

110

forma de puxar gente para lá. Conseguimos uma verba não sei como, sei que nós

compramos um equipamento de som. Acho também que foi a última diretoria da

UEE, porque acho que houve outra intervenção na entidade.

A última diretoria foi a do (Antônio Carlos) Dall´Orto. ACB - Então é isso, Dall´Orto foi a última diretoria, depois da gente. Foi isso, nós

conseguimos, a partir dessa organização, fazer uma eleição. Dall´Orto está na Bahia

agora.

O DCE já existia naquela época. Você lembra como eram os dirigentes do DCE até a eleição do Carlos Magno (Monteiro)? A Rita Dias, o Bresciani. ACB - A Rita era de uma geração antes da nossa. Rita Dias, Vicente Finamore, esse

pessoal era de uma geração antes da nossa. Quando a gente entrou na

universidade, acho que eles estavam saindo. Eu participei, acho que não da diretoria

eleita, mas da nomeada do DCE, no ano que foi eleito aquele menino da Medicina, o

César Ronald.

Mas você participou da diretoria do Carlos Magno (Gonzaga Monteiro)?

ACB - Da do Carlos Magno também. Carlos Magno foi antes do César Ronald.

Participei com Carlos Magno da chapa, a do César Ronald eu acho que não cheguei

a participar da chapa. O César também não era organizado, mas nós lançamos o

nome dele, para evitar a eleição do pessoal da JUC. Havia uma disputa muito

grande entre o pessoal marxista, do PCB e PC do B, com o da Juventude Católica,

que era bem organizado também. A JUC era uma das forças significativas do

Movimento Estudantil. A grande base deles era a Fafi (Faculdade de Filosofia). É

engraçado, era movimento muito feminino, tinha mais mulheres do que homens.

Uma das lideranças, que hoje é de direita, era a Jussara Martins241.

Como era a Jussara Martins?

ACB - Jussara era uma das militantes mais radicais que eu conheci, altamente

participativa. Tanto que, foi do pessoal que partiu para a clandestinidade. Jussara

241 Jussara Martins Albernaz, líder estudantil na década de 1960, era principal liderança da AP e foi vice-presidente da UEE na gestão de Antônio Carlos Dall´Orto. Presa e torturada em 170, em Belo Horizonte (MG), atualmente é professora da Ufes e defende posições de Direita, renegando a sua militância de Esquerda.

111

sofreu muito. Hoje, se conversar qualquer coisa de esquerda com a Jussara, você

apanha. Até hoje eu não entendi o que aconteceu, a Jussara que eu conheci, não é

a de hoje. E era da JUC e, depois, da AP. Tem aquela menina Leite, também era da

Fafi. Maria Lúcia, que era uma liderança altamente participativa. O pessoal da JUC,

que à esta altura dos acontecimentos, acho que já estavam na AP, que estava

funcionando como uma organização... Mas eu estava contando o negócio da

eleição, o César Ronald era um orador fantástico e um cara tipo assim, bem liberal...

O que significa "liberal"?

ACB - Digamos que ele não era uma pessoa organizada, quer dizer, meio doidão.

Gostava de usar droga?

ACB - Usava droga (risos). E a gente lançou ele, exatamente para atrair o voto

feminino. Porque senão, acho que a JUC tinha maioria naquela época. Um episódio

muito interessante, uma das passeatas, foi quando nós demos o nome de Édson

Luiz ao Restaurante Universitário. Nós fomos à missa e descemos da Catedral em

passeata para o restaurante, lá no Centro. Descemos a escadaria, chegamos na

altura da Praça Oito, houve a notícia que a polícia estava ali para prender o César

Ronald. Então ele me chamou e disse: "Brito, toca a passeata, que eu vou sumir".

Então voltou, não sei para onde, para não ser preso. Eu toquei a passeata e, por

coincidência, tive a grande oportunidade de subir no poste ali em frente ao

restaurante, mandei abrir a faixa e nós demos o nome do restaurante de Édson Luiz,

que tinha sido morto no Calabouço.

Eu quero voltar lá atrás ainda. Entre 1965 e 1966, você esteve na diretoria da UEE, houve o congresso que elegeu o Dall´Orto presidente. O que você lembra desse congresso? Eu tenho a ata desse congresso, que foi você que fez. ACB - Eu lembro que a gente fez um movimento de mobilização nas faculdades. O

Dall´Orto era exatamente da Medicina, que naquela é época, você saindo da Fafi,

era o maior centro de estudantes politizados. Aí nós trouxemos o nome do Dall´Orto,

acho que depois ele nem terminou o mandato dele.

A UEE depois foi colocada na clandestinidade, não teve mais eleição, no ano seguinte e a sede foi fechada. Nesse congresso, num relato anterior, você

112

havia me dito que vocês haviam dado um golpe no pessoal da AP para eleger o Dall´Orto. Você lembra disso?

ACB - Não foi bem um golpe.

Porque pessoal da AP tinha maioria nesse congresso e ainda queria aprovar o Movimento Contra a Ditadura (MCD). Vocês, aliados o PCB e o PC do B, para não usar a palavra golpe, deram uma rasteira no pessoal da AP. Você lembra como foi isso?

ACB - Não me lembro assim não. Me lembro que a gente fez essa união, tanto na

eleição do Dall´Orto na UEE, como depois na de César Ronald no DCE. Está vendo,

acho que foi a primeira vez que o PCB e o PC do B se fundiram. Foi exatamente

essa divergência que a gente tinha o pessoal marxista, com o católico.

Eu acho curioso isso dai, porque, nacionalmente, o PC do B era mais próximo da AP, porque as duas organizações compartilhavam da concepção maoísta. Mas aqui, você, por exemplo, estava mais próximo do PCB, como é que era isso?

ACB - Eu tenho a impressão, que isso deve ter acontecido pela aproximação

pessoal que a gente tinha com Zezinho Cipriano e Perly. Era uma convivência

pacífica interessante. Tinha amizade pessoal. Como o movimento estudantil, tinha

uma influência muito grande na área do PC do B, acho que gente fazia essa

aproximação mais com o PCB do que com a AP. Talvez por essa identificação

marxista que a gente tinha. A AP depois se tornou marxista, quer dizer, parte da AP,

e se aproximou do PC do B. Eu tenho a impressão que a aproximação nossa aqui,

foi mais uma questão pessoal mesmo e a identificação ideológica, porque a AP,

apesar de na ação se aproximar até mais da gente, mas tinha aquela restrição

ideológica. O que acontece que com a AP, e ainda acontece hoje com o PT, porque

acho que esse movimento da AP chegou ao PT. Você vê que o PT tem muita

identificação com essa história. Tanto que o PT hoje é muito próximo do movimento

católico, desse movimento de comunidade de bases. O Lula é da mesma origem, da

mesma ala ideológica. O problema que vejo no PT, é que trata-se de um partido

mais dogmático. Não tem fundamento científico. Você pode até discordar do

marxismo, mas você não pode negar que tem um fundamento científico. Pelo menos

se pretende que tenha um fundamento científico. Como era o PTB, qual é o

113

fundamento científico que tem o PT? Luta por reformas? Quer chegar aonde? Se

você se aprofundar, não vai encontrar. Então, acho que isso fazia com que, naquela

época, que me aproximasse mais do pessoal do PCB do que da AP. Eu acho que o

PT até tem um trabalho muito interessante no país, mas muito com base sindical.

Eu acho interessante que, na outra entrevista que fizemos, tem mais de 10 anos, você falou muito desse congresso de 1966. ACB - É, porque foi um momento importante.

Mas hoje você não está lembrando. Por exemplo, contou que vocês seguraram o congresso até o horário da missa, para que o pessoal da JUC e da AP fossem para lá e aí vocês fizeram a votação do tal do MCD. Eles ficaram em minoria e vocês fizeram a votação. O Dall´Orto teria sido eleito, porque eles não sabiam que ele era do PCB. Você não se lembra disso?

ACB - Não... lembro, lembro, lembro. Eu não estou citando porque estou puxando

um negócio mais...

Pode falar de forma detalhado mesmo. Eu queria que você tentasse lembrar, qual era a avaliação que o PC do B tinha sobre a situação do país e da ditadura? Nos documentos das organizações da época, existia uma avaliação de que a ditadura não iria se sustentar por muito tempo. Como era a discussão que você participava na época?

ACB - Na nossa visão, na visão do PC do B, a ditadura só cairia se fosse através da

luta armada. A gente não tinha ilusão que eles iam entregar o poder. Eu acho talvez

por esse entendimento da gente, do PC do B, é que talvez ele cedessem. No caso

do Araguaia, do sequestro. Quando a gente fala em luta armada, não é quer dizer só

o caso do Araguaia. É o caso de ações urbanas. Não tínhamos nenhuma ilusão de

que, no diálogo, pudéssemos tirar os militares do poder. Eles saíram por causa do

problema econômico. Só entregaram o poder porque quebraram o país.

O PC do B naquela época tinha uma concepção que era próxima do maoísmo, como a proposta de cercar a cidade pelo campo. Você compartilhava dessa visão?

ACB - Duas discussões no movimento de esquerda naquela época: primeiro, foi a

114

questão do foco, do (Régis) Debray. Mas dentro do PC do B, nunca ninguém se

iludiu com aquilo não. Mas se discutiu muito essa ideia.

Você lia Mao naquela época? Havia um programa de leitura de Mao Tsé Tung?

ACB - O livrinho vermelho era distribuído para todos (Risos). Eu não sei, até hoje eu

acho, cada país tem sua realidade, que a China chegou a um momento de tamanho

atraso, de tamanho domínio externo, que talvez dificilmente eles chegariam ao que

chegaram hoje, se não tivessem feito a Grande Marcha. No Brasil isso não seria

possível, porque o Brasil é muito desigual. O modelo da China, a tentativa do

Araguaia, acho foi dentro dessa concepção. Mas alguns partidos que também

partiram para isso, não só o PC do B, nós estávamos na Ala Vermelha. Mas o PCBR

também entrou nessa. Acho que o PCBR entrou mais no negócio do foco. Mas a

nossa concepção não era essa. Mas acho que grande problema da esquerda

brasileira que teve um período, aí eu já estava fora do Movimento Estudantil, mas

continuava participando do partido, é que você chegou a conclusão que não dava

mais para o diálogo, que partiu todo mundo para a luta armada, começaram a se

formar pequenas organizações no Brasil. Aí você tem a Colina (Comando de

Libertação Nacional), da nossa amiga Dilma, tinha organização de esquerda com 10

pessoas, 20. As grandes organizações não conseguiram segurar o movimento. Acho

que aí foi o grande fracasso do movimento de esquerda no Brasil. Então foi fácil a

ditadura dominar. Você tinha não sei quantos grupos de esquerda, principalmente

voltado para a luta armada.

Você me falou que entrou para a Ala Vermelha em 1967. Como é que foi esse racha e como você esteve envolvido nele?

ACB - Quando eu entrei para a Ala Vermelha, foi mais por uma decepção com o PC

do B. O PC do B também estava começando a relaxar na concepção de derrubar a

ditadura através da luta armada. O PC do B só voltou à essa concepção depois da

Ala, acho que depois da entrada do pessoal da AP. O pessoal rachou com o PC do B

exatamente por isso. O pessoal que foi para a Ala Vermelha não saiu do PC do B.

Criou-se uma dissidência, mais realmente voltada para a luta armada. Foi num

momento em que estavam sendo criadas várias tendências, como a VAR-Palmares,

a Colina... não me lembro de todos os nomes não, mas foram muitas nesse período.

115

Como foi formada a Ala Vermelha aqui no Espírito Santo? Foi um grupo de militantes que entrou na Ala Vermelha?

ACB - Eu parti para a Ala Vermelha quando eu fui para um congresso. Esse último

congresso da UNE antes daquele Ibiúna (SP), em Vinhedo (SP). Naquele último

congresso a gente começou a discutir [...] tentar organizar a Ala Vermelha aqui e a

Ala Vermelha aqui ficou com um movimento grande.

Muita gente do PC do B daqui entrou na Ala Vermelha?

ACB - Era o pessoal do PC do B mesmo.

Mas foi a maioria?

ACB - Não, acho que não. Acho que entrou muito o pessoal mais jovem: eu, a

esposa do Amorim, Amorim, José Fernando Distefano... Nós tínhamos uma ala

também de operários. Eu tenho a impressão que, quando veio a prisão de todos nós,

acho que aqui a Ala Vermelha estava mais forte do que o PC do B.

A prisão aconteceu bem mais depois, em 1971. Você estava nessa prisão?

ACB - Estava. Eu fui para São Paulo, veio um avião nos buscar aqui.

Como foi essa prisão?

ACB - Antes dessa prisão, eu tinha tido aquela de 1970. Depois de 70, tive outra

prisão, em que eu dormi aqui na Polícia Federal, depois me levaram para o 3º BC

(Batalhão de Caçadores) e eu fiquei o dia todo lá. Fui interrogado dezenas de vezes,

e a única coisa que eles queriam saber, era onde estava o Carlito Osório. E eu

realmente não sabia onde estava Carlito Osório, que não era da Ala Vermelha. Ele

era do PC do B. E uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Me levavam, voltavam e

chamavam. Queriam saber, que eu sabia onde estava o Carlito Osório. À noite, eu

falei com o capitão: "Capitão, eu quero saber o seguinte: por que eu tenho que saber

onde está o Carlito?". "Você tem que saber onde está Carlito Osório, porque um

companheiro seu, que nós prendemos em Cachoeiro, falou que vocês almoçaram

num restaurante e o Carlito te entregou uns jornais de esquerda, do Partido

Comunista". A data era de cinco antes. Eu falei; "Capitão, você está querendo que

eu tenha uma memória fantástica. Primeiro o seguinte: eu era um líder estudantil,

pertencia a um Diretório Acadêmico, receber jornal do PCB, de esquerda, eu recebia

116

toda hora. Outra, não deve ter sido num restaurante. Eu era estudante, não

frequentava restaurante. Devia ser em alguma pensão. E o senhor está me dizendo

aqui a data, estou vendo que é de cinco anos atrás. Eu vou saber onde é que está o

Carlito, onde eu almocei com ele há cinco anos?". É muita pretensão. Por que

estava recebendo jornal? Jornal eu recebia toda hora, o pessoal entregava no

diretório, no meio da rua. Falei aquilo ali, o camarada ficou me olhando, olhando. Me

mandou embora. Quando dormi um dia na Polícia Federal, fiquei lá até a meia-noite,

me soltaram à meia noite, para saber onde estava o Carlito Osório. Carlito tinha

entrado na clandestinidade também, quer dizer eu não ia saber nunca onde ele

estava não tinha a mínima noção. E a terceira prisão foi essa que me levaram para

São Paulo, o pessoal da Ala Vermelha. Isso foi um companheiro nosso lá do Rio

Grande do Sul, que conhecia a gente, tinha contato, fazia reunião com a gente aqui.

Eles torturaram esse rapaz, era um cara histórico do PCB. Eles o carregaram pelo

Brasil inteiro, ele entregando pessoas. Com a gente ele foi muito suave, porque deu

o nome de todo mundo, mas disse que era um movimento que ele estava querendo

consolidar, um movimento aqui de esquerda contra a ditadura. Não falou que a gente

era de partido nenhum, eram os contato que ele tinha e que estava tentando formar

aqui um movimento contra a ditadura. Era eu, o Jair Storch, que também foi preso

com a gente, ele até já faleceu. Eu, Laurinha, Amorim, Jair, Fernando. Pegaram mais

dois operários no trabalho. Foram presas umas 10 pessoas e um avião veio nos

buscar aqui. Fomos torturados aqui.

Vocês foram torturados no 3º BC?

ACB - No 3º BC, fomos torturados aqui. Lá na Oban, pelo menos eu não fui

torturado. Tortura, só psicológica. Mas acho que a Laurinha e outros companheiros

acho que foram torturados. Como nesse episódio, nos colocaram todos nós, dentro

de uma mesma sala, eu consegui conversar com todo mundo e saber o que cada

um tinha colocado no depoimento e combinar uma versão igual para todo mundo.

Então todo mundo passou a dar uma mesma versão dos encontros aqui com esse

companheiro que nos deu o nome. Como todo mundo estava contando a mesma

história, a história virou verdadeira. Quando chegamos lá na Oban, eles acharam um

pessoal acusado de movimento armado mais quente que a gente aqui. Nesse

episódio, eu respondi processo. Nesse que eu tenho a ficha aqui do Dops.

117

Nessa época, em que você era do PC d B, depois da Ala Vermelha, existia nas organizações, discussão sobre a realidade do país como um todo. Mas cabia uma análise sobre a realidade do Espírito Santo ou essa discussão não existia?

ACB - Essa discussão praticamente não existia. A discussão nossa era sobre a

realidade nacional. A realidade regional era mais no sentido da organização, porque

se tinha consciência que não se mudava nada a partir de uma mudança política

regional, a não ser do fortalecimento da organização interna, das ações internas.

Eu digo isso porque o Espírito Santo estava passando por uma mudança muito grande, muita gente vindo do campo para a cidade, devido a erradicação dos cafezais, a organização não chegou a discutir ou nem percebia isso?

ACB - Nem percebia (risos).

E o Movimento Estudantil, por outro lado, que é uma outra dimensão, a discussão se pautava muito mais pela realidade nacional ou, por exemplo, a discussão especifica aqui do Espírito era só da ação?

ACB - O movimento estudantil começou a ser totalmente desarticulado a partir do

Projeto Rondon.

Mas isso já foi nos anos 70, vamos voltar para os anos 60. ACB - O movimento foi em ascensão até a queda do congresso de Ibiúna, a partir

daí ele começou a ser totalmente desarticulado.

Mas nesse período, de 1965 até 1968, quais foram os momentos e lutas desenvolvido que você considera que foram importantes... acho melhor a gente parar agora, porque vejo que você já está cansado. A gente continua depois.

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ANEXO II ENTREVISTA 2 - ANTÔNIO CALDAS BRITO - 02/10/2012

Na entrevista passada você falou que tinha um primo que foi governador no Piauí, qual era a posição de sua família no Estado? ANTÔNIO CALDAS BRITO - Era uma família de classe média. Meu pai era

advogado. Meu avô paterno chegou a ser um grande proprietário de terras, mas

morreu pobre, porque inventou de abrir um frigorífero e quando as pessoas resolvem

entrar num negócio que não tem domínio, a tendência é realmente ter insucesso.

Mas é uma família normal. O meu primo, Chagas Caldas Rodrigues, foi governador,

senador do MDB, teve o mandato cassado. Depois que teve o mandato cassado,

acho que não voltou mais à política.

Sua mãe trabalhava também? ACB - Não, minha mãe era do lar, naquela época era difícil as mulheres estudarem,

ela chegou a fazer até o ginásio. O pai dela tinha uma farmácia. Não me lembro se

era formado, mas tinha uma farmácia.

Vocês eram em quantos irmãos? ACB - Nós éramos em nove.

Quantos vieram para o Sul? ACB - Desses nove, seis homens e três mulheres, veio o mais velho, José Caldas

Brito, que formou em Minas. Depois veio para aqui para o Estado e foi Procurador

Geral do Estado. O outro irmão meu, que é administrador de empresas, foi para

Brasília, onde hoje ainda é funcionário do Ministério dos Transportes. Hoje ele está

cedido ao Ministério dos Esportes. E eu que vim para Vitória. Os outros meus irmãos

ficaram no Piauí mesmo.

Na entrevista passada, você falou que foi para Linhares e depois veio para cá. Em Linhares, você ficou com seu irmão ou ele morava em Vitória?

119

ACB - Meu irmão morava em Linhares. Quando veio de Minas, ele veio para

Linhares, como advogado. Morou lá por muito tempo, chegou a ser vereador, a

assumir a prefeitura e, depois, veio para Vitória, como procurador do Estado.

Quando veio para Vitória, você ficou aonde? ACB - Quando conheci o Espírito Santo, vim para Linhares. Voltei para o Piauí, para

terminar o meu curso secundário. Quando voltei, meu irmão já morava em Vitória.

Eu vim para cá, fiquei algum tempo com ele e, depois, fui conhecendo o pessoal e

fui morar numa república no Parque Moscoso, no famoso 804.

Qual foi a característica do Movimento Estudantil entre 1964 e 1968 e as principais bandeiras levantadas? ACB - O Movimento Estudantil naquele período, inicialmente, era internamente um

movimento reivindicatório. Quer dizer, melhoria de ambiente escolar, que era muito

precário, os prédios. Quer dizer, você não tinha ainda a universidade. A melhoria de

ensino mesmo, os professores naquela época, não eram como hoje, com pós-

graduação. É um movimento com muita consciência política. Além dessa base de

reivindicações, um movimento com muita consciência política, principalmente pelo

fato da gente estar vivendo uma ditadura. Então, era um movimento de luta pela

volta da democracia e do Estado de Direito. Era um foco muito preciso que talvez

hoje o Movimento Estudantil não tenha. Era a luta pela derrubada da ditadura e a

volta do Estado de Direito. Era a luta que realmente motivava o Movimento

Estudantil.

Qual era a inserção desse movimento em termos de massa? Houve alguma mudança ou ele sempre foi um movimento representativo em termos de massa estudantil? ACB - Acho que o Movimento Estudantil conseguiu mobilizar. Não sei se a

sociedade estava mais sensibilizada nesse sentido, mas o Movimento Estudantil

conseguiu fazer grandes mobilizações. Só acho que o que não correspondeu foi o

movimento trabalhista. Os trabalhadores realmente, na minha visão, não tiveram a

mesma capacidade de mobilização que teve o Movimento Estudantil. O Movimento

Estudantil teve um papel bem mais significativo do que até o movimento dos

trabalhadores. Como o PCB, o Partidão, era um partido muito voltado para algum

120

movimento militar, eu acho que o Partidão era um partido que, talvez a partir da

Grande Marcha, teve uma visão mais de golpe, mais do que uma visão de

mobilização de massa, de mobilização da sociedade, no sentido de transformação.

Eu acho que isso contaminou alguns movimentos.

Quando você fala em Grande Marcha, de que marcha você está falando? ACB - A do Prestes. Eu acho que a partir dali, você pode ver que tem alguns toques

no sentido de fazer um movimento dentro das forças armadas. De fazer um trabalho

por dentro das forças armadas, não de mobilização. Você tem alguns episódios que

tem essa semente, o movimento dos cabos, o discurso do governo João Goulart. E

vem por aí. Esse que, como é que é nome dele, que foi lutar no Nordeste, capitão...

Quem foi preso lá? O Gregório Bezerra? ACB - Aquele que roubou e saiu com as armas do exército.

O Lamarca... ACB - O Lamarca. Você vê que são movimentos de dentro das forças armadas. Pelo

menos essa é a minha visão.

Em termos das bandeiras próprias do ME, quais as que você considera que foram as mais importantes nesse período? ACB - Acho que uma das bandeiras muito importantes, foi a luta contra o MEC-

USAID. Eu acho muito significativa. Tanto que proposta do MEC-USAID foi o que

atrasou o país 20 anos em termos de educação. Aquela visão de que, primeiro tem

que passar todo mundo, não levar em consideração o mérito, o negócio era a

quantidade de alunos aprovados. Essas escolas que foram construídas com um

modelo que não tinham nada com o Brasil. Essas escolas financiadas pelo MEC-

USAID, os polivalentes, eram construções feitas para neve. Uma arquitetura toda

para neve. Outra era a luta realmente contra a ditadura, para mim a principal

bandeira daquela época.

Em relação aos acordos MEC-USAID, como o movimento se organizava e discutia essa questão?

121

ACB - Essas discussões se faziam dentro das escolas, nas passeatas, em termos

de conscientização dos estudantes em relação aos acordos. Era um negócio muito

difícil, porque a grande imprensa era sempre à favor dessa relação com os Estados

Unidos. Era outra bandeira importante, a gente tinha consciência da influência norte-

americana na sustentação da ditadura militar.

A nossa universidade passou por um processo de reforma acadêmica a partir de 1966, que estava dentro do espírito MEC-USAID. Inclusive o técnico do USAID, Rudolph Acton, esteve aqui no Espírito Santo. Esse projeto levou dois anos sendo discutido. Ele foi aprovado em 1967, quando Carlos Magno (Cardoso Monteiro) já era presidente do DCE e estava no Conselho Universitário. Ele foi para o MEC, voltou e foi novamente discutido no Conselho Universitário, quando o César Ronald estava nele. Como o Movimento Estudantil percebeu e, se percebeu esse movimento de reforma? Pelo que tenho olhado nas atas do Conselho Universitário, me parece que houve um processo de questionários na comunidade universitária. Me parece que foi um processo amplo de discussão. O movimento percebeu isso, discutiu isso? ACB - Eu acho que a massa estudantil não percebeu. A liderança percebeu, era

uma bandeira muito discutida dentro do Diretório, mas acho que nós não

conseguimos transmitir isso para os estudantes.

Mas a direção do movimento especificamente, você lembra de ter havido essa discussão sobre a reforma da Ufes? ACB - Lembro, lembro dessa discussão.

Em 1967 você estava na diretoria do DCE... ACB - Estava na diretoria. Eu me lembro dessa discussão. Mas é isso que estou

dizendo, havia um apoio tão grande imprensa em cima disso, que com todo o

esforço do Movimento Estudantil, foi uma das bandeiras que a gente não conseguiu

popularizar. Mas acho que foi uma das principais discussões daquela época.

Mas o Carlos Magno, por exemplo, votou favorável à essa reforma.

ACB - (Risos) É a pressão. Era a pressão que tinha.

122

A impressão que tenho é que o Movimento Estudantil não teve a dimensão dessa reforma. ACB - Não, por isso estou dizendo, não conseguimos transmitir isso.

Não, mas o próprio movimento não teve a dimensão dessa reforma. ACB - Não, eu acho que teve. Não teve foi força. E o Carlos Magno, ele nunca foi

uma liderança combatente. O Carlos sempre foi uma liderança conciliatória, não era

de frente de combate. Ele ficou com medo. A característica do Carlos era

conciliatória.

Mas ele levou para a diretoria do DCE essa discussão ou ela ficou lá no conselho? ACB - Ficou lá no conselho. Não levou porque sabia que a gente era contra.

E a diretoria seguinte, do César Ronald? Por que no final a coisa voltou e até o César Ronald votou favorável, embora com algumas restrições. ACB - Voto com restrições. Eu imagino isso, é a pressão que eles estavam

recebendo dentro da universidade naquela época. Para você ter uma ideia, quando

eu fui fazer o curso da Cepal, em 1968, a universidade estava impregnada de

pessoas que ameaçavam que denunciavam. Eu acredito que ele deve ter recebido

pressões muito fortes para ter votado isso, porque sabia que nós, diretoria do DCE,

sempre fomos contra. Uma das principais bandeiras do movimento. Acho que eles

receberam uma pressão muito grande para votar favorável e o César, apesar de ser

uma liderança combativa muito forte, não sei se teve consciência da amplitude e de

que podia ser realmente essa reforma do MEC-USAID.

Você tomaram conhecimento que o Rudolph Acton esteve aqui? Ele foi um dos formuladores dessa reforma. Chegaram a fazer alguma mobilização? ACB - Que eu me lembre de não, mas soubemos da presença dele aqui.

Em termos de episódios de movimentos e mobilização, quais você se lembra e destaca nesse período?

123

ACB - Eu acho que entre os episódios de 1968, o primeiro foi a missa do Édson

Luiz, uma grande passeata que nós fizemos, e a inauguração do restaurante, a qual

demos o nome de Édson Luiz. E a marcha dos 100 mil, por coincidência eu estava

no Rio.

Foram pessoas daqui ou você foi individualmente? ACB - Não, eu estava no Rio, fazendo um curso na época. Foi uma das grandes

marchas de 1968, uma das maiores manifestações contra a ditadura que eu

registrei. Um negócio fantástico. Consegui ver a Rio Branco repleta de gente. A

população ali em frente ao Amarelinho. Acho que ali funcionava a Assembleia

Legislativa. A polícia em volta e a população abria o espaço, não permitia a ação da

polícia, até a saída das principais lideranças. Depois dos discursos de cada um, ela

defendeu até a saída de todas as lideranças que participaram da manifestação. Foi

a coisa mais emocionante que eu participei no Movimento Estudantil.

Você falou da manifestação do Édson Luiz, eu queria que você falasse um pouco mais sobre essa manifestação. Ela aconteceu no contexto de uma greve que aconteceu aqui na Ufes. Eu queria que você falasse dessa greve e da manifestação. ACB - Nós do Movimento Estudantil, apoiávamos muito os movimentos grevistas.

Essa era uma característica, que talvez o movimento hoje não tenha. Nós

estávamos muito presentes nos movimentos de greve. Tivemos a greve dos

motoristas, em que o Movimento Estudantil esteve presente. Em quase todas as

greves, a gente estava lá em apoio ao movimento grevista dos operários. Esse era

um negócio muito importante na nossa participação daquela época.

Essa greve de motoristas foi em 1968? ACB - Eu acho que foi em 1968. Foi um negócio meio drástico, porque mais da

metade dos motoristas foram mandados embora depois da greve.

Mas eu quero pontuar o seguinte: houve uma greve antes da manifestação em função da morte do Édson Luiz, por causa do Restaurante Universitário. ACB - Ali, as reivindicações do restaurante eram mais com relação à alimentação...

124

O RU tinha sido recém-inaugurado e houve uma greve dos estudantes por causa disso. Você se lembra dessa greve? ACB - Não.

Mas lembra da manifestação... ACB - Lembro da manifestação, mas não da greve do RU. O RU inclusive tinha

representantes junto à reitoria. Tinha um ou dois estudantes, que eram eleitos pela

gente, para discutir os problemas do RU junto à reitoria. O RU era um local muito

importante em termos de discussão política. Mas eu não me lembro que houve uma

greve por reivindicação do RU. A reivindicação do RU não era muito política não.

Foi por causa do preço do RU. O RU estava sendo inaugurado. ACB - Eu acho que isso aí eu me lembro, houve discussão sobre preço. Por isso

que estou dizendo, as reivindicações ali eram muito pontuais. Era preço da

alimentação. Pode ter até ter tido alguma manifestação de greve em relação ao

preço, que estava muito alto, deram 50% para estudantes e para quem não era

estudante podia entrar lá. Pode ter tido alguma nesse sentido.

E essa manifestação do Édson Luiz, como foi? ACB - Com o assassinato do Édson Luiz242, um negócio brutal lá no Calabouço,

houve várias manifestações nas escolas e findou com essa missa. O Calabouço era

o maior centro de concentração estudantil e política do Rio de Janeiro. Aquilo ali foi

realmente um assassinato bárbaro. Era um garoto, secundarista ainda. Eu acho

importante essa missa ali na Catedral, acompanhada por todo aparato policial. Nós

conseguimos realizar a missa e, dali, da Catedral, nós descemos em uma grande

passeata dali da Catedral, passando pela Praça Oito até o restaurante. Foi uma das

grandes manifestações que eu gostaria de registrar. Muito importante para o

Movimento Estudantil.

Você se manifestou nessa passeata?

242 O estudante secundarista Édson Luiz do Souto e Lima foi assassinado em 28 de março de 1968, aos 18 anos, quando a polícia invadiu o Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, para impedir uma manifestação estudantil. Souto e Lima era um estudante pobre, cuja família morava no Pará e não tinha nenhuma militância política.

125

ACB - Nessa marcha, quando chegamos na Praça Oito, o Ronald, que estava à

frente, foi avisado que a polícia estava tentando prendê-lo e me pediu: "Vou sair e

você mantém o comando da marcha". Eu assumi o comando da manifestação,

populares se juntavam à gente, até a chegada ao restaurante, quando eu subi num

poste - havia um poste ali na frente -, abrimos a faixa e inauguramos o restaurante

com o nome de Édson Luiz.

Pelo movimento? ACB - Pelo movimento. Nós colocamos a faixa, que ficou lá bastante tempo.

Depois dessa missa, houve outras manifestações aqui em Vitória em função desse episódio? ACB - Olha, o assassinato de Édson Luiz foi a motivação de muitas manifestações.

Eu acho que a principal foi essa.

Houve algum choque com a polícia em alguma manifestação? ACB - Era muito comum naquela época, a liderança ser chamada na Polícia Federal.

Qualquer manifestação eles chamavam lá. Engraçado que, inicialmente, não havia

muita prisão. Chamavam para registrar, saber por que estava acontecendo, quem

estava nelas. Só para pressão. Chamavam para ir lá, registravam a presença da

gente. Geralmente quem estava em diretoria de diretório, do DCE.

Mas chegou haver alguma manifestação em que a polícia literalmente baixou o cacete? ACB - Geralmente a polícia chegava, o pessoal corria. Mas uma das manifestações

que a polícia bateu mesmo foi aquela na porta do Palácio.

Você estava nessa manifestação? ACB - Estava. Naquela manifestação foram presos o Paulo Torre243, o Ewerton

Guimarães244 e o Júlio (César Ottoni). Acho que foram condenados o Júlio e o

Ewerton.

243 Paulo Torre, já falecido, se tornou jornalista e foi diretor de redação do jornal A Gazeta. 244 Jornalista e advogado, também já falecido, Ewerton Guimarães se destacou pelas denúncias contra o Esquadrão da Morte, tendo escrito um livro sobre o tema. Posteriormente, esteve envolvido na luta pelos direitos

126

Como foi essa manifestação? ACB - Nós iniciamos a movimentação nas escolas e nas faculdades. Naquela época,

a universidade contava com quatro ônibus que passavam pela cidade.

Qual o motivo da manifestação? ACB - A manifestação foi na luta de combate à ditadura mesmo. Nós chegamos na

Praça Oito, os ônibus pararam na Costa Pereira e na Praça Oito. Por coincidência,

eu vinha no primeiro ônibus, desci e pedi aos ônibus para não abrirem ali na Praça

Oito, só em frente ao Palácio, naquele ponto em frente ao Palácio. Aí subiram todos,

a Faculdade de Direito funcionava ali, começaram os discursos dos estudantes. Por

coincidência da vida, o próximo orador seria eu. Quando eu ia falar, o Ewerton pediu

para falar. Ele subiu naquela mureta que tinha ali e, quando o Ewerton subiu a

mureta e começou a falar - Ewerton sempre foi um bom orador, muito culto -, a

polícia, com o (José) Dias (Lopes) 245 à frente - eu acho que era o chefe de Polícia -,

desceu do palácio correndo, batendo em todo mundo que estava ali. O objetivo era

prender quem estava na liderança. Essa foi uma manifestação de muita pancadaria

mesmo.

Tinham quantos estudantes mais ou menos? ACB - Tinha muita gente. Aquela frente do palácio estava repleta de estudantes. Foi

uma manifestação de enfrentamento. Eles desceram ali com grande violência

mesmo. Bateram em todo mundo, prenderam ali, que me lembro exatamente, o

Ewerton, que ainda estava na mureta, e o Júlio. O Paulo Torre eu acho que

prenderam depois, mas ali, na frente da manifestação, foram o Julinho e Ewerton. A

manifestação se espalhou, indo para a igreja. A polícia continuou perseguindo e a

gente jogando pedra. A manifestação foi dissolvida ali, até à porta da igreja, foi

quando eles conseguiram dispersar a manifestação. A manifestação desceu, eu sei

que houve prisões já ali na Costa Pereira, os estudantes desceram correndo. Não

sei se o Julinho foi preso lá embaixo, se algum estudante foi preso onde tem hoje

esse prédio do governo ali... que fica depois do Carlos Gomes (edifício Fábio

humanos no Estado e participou da Comissão de Justiça e Paz. Como advogado, acompanhou o caso do assassinato do padre francês Gabriel Maire, morto em 1989, denunciando que se tratava de um crime político, ao contrário do que diziam as autoridades da época, que trataram a morte como um “latrocínio”. 245 José Dias Lopes era irmão do governador Christiano Dias Lopes Filho (1967-1970) e ocupou os cargos de Chefe de Polícia Civil e, posteriormente, secretário de Estado da Segurança Pública.

127

Ruschi). Ali houve um embate com a polícia também, em frente aquele posto de

gasolina. Ali algumas pessoas também foram presas. Que eu me lembre, foi uma

das manifestações, só de estudantes, mais violentas.

Eu queria ver se você lembra de alguns episódios, como o movimento se portou nesses momentos. Em 1965, através da Lei Suplicy de Lacerda, a ditadura organizou uma eleição do Diretório Estadual dos Estudantes (DEE). Haviam duas chapas, uma encabeçada por Jorge Augusto Pires Encarnação e outra por Tarcísio Soneghet. Os dois ligados à posições de direita. Você se lembra desse episódio? Como o ME se portou em relação à essa eleição? ACB - Eu me lembro dessa eleição do Encarnação.

Não é a do DCE, porque depois ele virou o presidente do DCE. ACB - Exatamente. Eu me lembro bem é o seguinte, que nós fomos contra o

Encarnação, a gente entendia ele como mais à direita.

Sim, mas ali não foi o DCE, essa foi uma eleição em que o ME de esquerda defendeu o boicote, porque o DEE era uma entidade do governo. A Lei Suplicy de Lacerda extinguia a UEE e a UNE. Ou você não se lembra dessa eleição? ACB - Eu me lembro sim. Você sabe que houve várias manifestações, inclusive

eleição política mesmo. Houve algumas manifestações do Movimento Estudantil em

favor do voto em branco. Eu me lembro dessa eleição, em que houve uma

manifestação de boicote, até porque não representava o movimento estudantil. Não

reconhecíamos aquela eleição.

E a adesão dos estudantes à essa campanha? ACB - Eu acho que foi muito grande, porque pelo que me recordo, acho que essa

organização não teve sucesso. Quer dizer, boicote mesmo, total. Tanto que essa

organização não prosperou. Tanto que o Encarnação ficou marcado por esse

episódio. Foi uma manifestação totalmente contrária à ele. Ele ficou carimbado como

um cara de direita.

Você já estava citando a eleição do DCE, que era um outro episódio que eu gostaria de falar. Isso aconteceu no ano seguinte. Foi a primeira vez que a

128

esquerda tentou ganhar o DCE. Até então, ela não tinha disputado o DCE, e perdeu para a chapa do Pires Encarnação. A chapa da esquerda foi liderada pelo (José) Monteiro246. Você se lembra dessa eleição? ACB - O Monteiro era da Medicina.

Por que o Movimento Estudantil de esquerda resolveu disputar o DCE, se até então não havia disputado? ACB - O que nós reconhecíamos como entidade representativa do Movimento

Estudantil era a UEE. Ainda havia uma identificação muito grande da gente com a

UEE, que foi colocada na ilegalidade. Mas, já que não era possível manter a UEE, a

gente resolveu disputar o DCE. Monteiro era da Medicina. Como coloquei

anteriormente, a Medicina era um dos principais centros do Movimento Estudantil de

esquerda. Eram a Medicina e a Fafi. E a gente resolveu participar. Não continuar

nessa tese do boicote, do voto em branco. Encarnação sempre foi o candidato

mesmo da direita.

Por que você acha que a esquerda perdeu essa eleição para o Encarnação?

ACB - Eu acho que não estava mobilizada o suficiente para a disputa do DCE. Não

tinha se mobilizado suficiente. Não sei se a candidatura do José Monteiro foi lançada

muito em cima da hora. Eu sei que a gente perdeu essa eleição.

No ano seguinte a esquerda ganhou a eleição com Carlos Magno. Como é que foi esse processo? Você se lembra dele?

ACB - Lembro, eu participei da diretoria do Carlos.

A eleição foi indireta... ACB - Era algo que a gente era contra, mas foi oferecida. O grande colégio eleitoral

que a gente tinha era realmente a Fafi, que eram vários cursos, e acho que o Carlos

Magno tinha bastante identificação com o pessoal de lá. Provavelmente, por essa

grande característica que falei do Carlos, de conciliador, moderado, não houve uma

246 O estudante de Medicina José Monteiro de Souza Netto foi eleito presidente da UEE em 1964, depois do fim da intervenção na entidade, mas renunciou no ano seguinte, antes de terminar o seu mandato. Em 1966, encabeçou a chapa de Esquerda na eleição do DCE, junto com outro ex-presidente da UEE, Dílton Lyrio Neto, que mais tarde seria deputado estadual. No entanto, a chapa foi fragorosamente derrotada pela chapa de Direita, liderada pelo estudante de Odontologia, Jorge Augusto Pires Encarnação.

129

oposição muito grande da direita. O Carlos Magno, pelas suas características,

apesar de ser uma pessoa ligada ao movimento de esquerda, era um moderado.

Quer dizer, valia a pena deixar assumir o DCE. Eu acho que a própria reitoria deve

ter ajudado, pelo fato de ser um cara de características conciliatórias.

Então não houve uma grande oposição contra a eleição daquela diretoria?

ACB - Não houve.

Na gestão do Carlos Magno, houve uma apreensão do jornal do DCE. Você lembra desse episódio na gráfica?

ACB - Lembro. Eu só me lembro do episódio da apreensão. Era uma coisa muito

comum isso. Na eleição seguinte, do Ronald, houve uma composição muito

interessante, que a gente puxou o César Leite, que era da Fafi. O César (Leite) não

era um cara organizado. Ele estava ali com a gente, era amigo nosso, mas não era

de nenhum partido político, nenhuma corrente. Mas foi uma forma de puxar a Fafi,

porque era estudante de Geografia e botamos ele como vice-presidente. Foi uma

decisão estratégica. Naquela época, a gente discutia quem iríamos trazer para botar

na suplência de César Ronald, porque ele não era muito aceito pela AP, que tinha

uma representação forte no movimento estudantil. E uma forma de trazer o pessoal

da AP, foi botar o Cezinha, o César Leite, que era um cara que tinha muito bom

relacionamento, jogava muito bem ping-pong (risos) acho que passava mais tempo

na mesa de ping-pong, mas foi estratégico. Me lembro da gente discutindo isso com

o Zezinho Cipriano. O César (Leite) morava ali no Parque Moscoso também, estava

sempre com a gente lá no apartamento. Era uma pessoa que a gente confiava.

Cezinha foi preso depois inclusive. Quando César Ronald saiu, ele assumiu. Acho

que assumiu num dia e foi preso no outro.

O César Ronald, como presidente, era ligado à alguma corrente? Ele foi colocado na presidência por ter se destacado no movimento ou houve algum outro tipo de composição?

ACB - O César Ronald não era ligado a nenhuma corrente, mas foi colocado porque

se destacou no Movimento Estudantil. O César era um grande orador e realmente se

destacou em todos esses episódios. Em todas as reuniões, o César se destacava,

era uma liderança significativa. Não estava organizado, que eu saiba, em nenhuma

130

corrente, mas tinha posições muito firmes e arrebatava mesmo o movimento. Apesar

de não estar organizado, era uma liderança muito forte e, por isso, como ele se

identificava com a nossa luta, a gente achou por bem apoiá-lo.

Quando você fala em "a gente apoiá-lo", está se referindo à sua corrente ou às lideranças de esquerda como um todo?

ACB - Eu acho que a liderança de esquerda como um todo.

- Com exceção da AP, pelo que você fala?

ACB - Eu acho que a AP também apoiou o César Ronald. Até porque a AP tinha

uma base muito forte feminina e o César era um tipo galã (risos). Então, acho que

inclusive a AP, naquela época, apoiou a eleição do César. A eleição do César foi

sem nenhuma oposição. A AP apoiou com algumas restrições, mas votaram no

César.

Essa questão que você coloca, puxa uma outra, quais eram as correntes fundamentais que atuavam no Movimento Estudantil capixaba naquela época?

ACB - Claro, o PC do B, o PCB, a AP. Já começava a ser manifestar no Movimento

Estudantil o PCBR. Até mais ou menos 1968, esses grupos começaram a se dividir

e apareceram vários outros. Principalmente grupos voltados para a luta armada. A

partir de 1968 começou a grande divisão.

Como foi a preparação para o Congresso de Ibiúna?

ACB - Eu gostaria de falar do congresso do ano anterior.

Então vamos começar por ele. Você esteve no congresso anterior?

ACB - Eu estive no congresso do ano anterior, que foi em Vinhedo (SP). Esse foi um

congresso praticamente organizado pelo PC do B. As delegações eram direcionadas

para São Paulo, até lá ninguém sabia onde ia ser o congresso. A partir dali, você era

encaminhado para uma cidade próxima de São Paulo. E só lá você tinha

conhecimento de onde o congresso seria realizado. E todo mundo foi encaminhado

dali para Campinas. Primeiro São Paulo, depois para uma cidade do ABC, dali todo

mundo ia para Campinas e, só em Campinas, nós soubemos onde seria realizado o

congresso. Terminado o congresso, só no dia seguinte, a polícia foi descobrir,

131

quando praticamente todo mundo já tinha ido embora. Foi quando prenderam os

freis, invadiram o convento, houve tortura. Mas os estudantes já tinham se

deslocado.

Eu queria que você me falasse um pouco sobre esse congresso, que elegeu Luiz de Travassos como presidente da UNE. Como foi esse congresso e sua participação nele? ACB - Para mim, foi um congresso de uma importância muito grande, porque o

Travassos era da AP. Eu me lembro muito nesse congresso, da participação dos

baianos. A Bahia tinha uma liderança estudantil fortíssima. Foi inclusive nesse

congresso, que eu tive o primeiro contato com o pessoal da Ala Vermelha, que

começava a se fortalecer. Eu entendo que foi um congresso que teve uma

importância muito grande, até porque ali você teve um fortalecimento do Movimento

Estudantil. Acho que foi a partir desse congresso, que a reação resolveu

definitivamente liquidar com o movimento. Tenho certeza que a partir daquele

congresso, o Movimento Estudantil se viu fortalecido, com o Travassos, que era uma

liderança muito importante. Um cara que tinha uma bruta representativa. Não sei se

o José Dirceu participou desse congresso. Acho que o José Dirceu participou desse

congresso, o Vladimir Palmeira também. Eram realmente, as grandes lideranças

naquele momento. Eu achei que o Vladimir Palmeira iria continuar no movimento

político, porque era para mim uma das grandes lideranças. Foi um dos

organizadores da marcha dos 100 mil. Naquela época, Vladimir Palmeira,

Travassos, estavam no auge da liderança. O congresso de 1968, que foi o fatídico,

foi organizado pela AP. Até porque o Travassos estava na presidência da UNE, e ali,

surpreendeu a forma como foram escolhidos os delegados, de forma aberta. Os

delegados foram escolhidos democraticamente, em votação aberta realizada em

cada faculdade. Os nomes ficaram expostos nos quadros. Eu, inclusive, me

manifestei contra, numa reunião na Fafi. Achei que aquilo era um absurdo, você

estar expondo as pessoas. A gente já tinha o exemplo do congresso do ano anterior,

quando a polícia invadiu. Aquilo ali era muito bonito, quer dizer, uma escolha

democrática, desde que nós não estivéssemos numa ditadura sangrenta e

repressiva. Eu acho que foi dado esse modelo de escolha dos representantes para o

congresso, que aconteceu o que aconteceu. Foi todo mundo preso e eu acho que ali

foi o grande golpe no Movimento Estudantil do Brasil. Parece que não, mas a partir

132

daquele congresso, o movimento se enfraqueceu e só, muitos anos depois, o

Movimento Estudantil começou a se revigorar.

Por que você não foi à esse congresso? ACB - Eu não fui por desistência mesmo. Eu não quis ir nesse congresso. Achei que

não deveria me expor àquela situação. Podia perfeitamente reivindicar o meu nome

para ir para o congresso, mas eu achei que... eu ia até dizer medo....Acho que não é

medo, foi uma consciência que alguma coisa ia acontecer naquele congresso. Você

escolher delegado para um congresso estudantil da UNE, que estava na

clandestinidade, não era um congresso de uma instituição legal, a UNE estava

extinta pela ditadura, era muito provável que ia haver uma repressão muito grande.

Eu queria passar a falar um pouco da dinâmica de militante. Nós vivíamos numa situação de clandestinidade, as correntes tinham uma discussão muito vinculada à questão nacional. Como é que, internamente, um militante de esquerda capixaba, qual era a discussão da dinâmica do movimento, como eram encaminhadas as coisas? Era feita a análise da situação regional? Enfim, como era a dinâmica de militância naquela época? ACB - O pessoal organizado tinha reuniões do partido. E ali, você discutia todas as

estratégias de atuação. Enquanto Movimento Estudantil, você tinha que levar em

consideração as especificidades do movimento. Quer dizer, o Movimento Estudantil

não podia ter a pretensão de já derrubar o governo, mas você discutia toda a

estratégia de militância, de participação nas greves, no movimento operário, no que

você tinha escrever, porque, naquele tempo, você tinha que fazer manifesto. Com

todas as restrições que se tinha naquela época, o manifesto era feito no

mimeógrafo. A grande coisa era fazer finanças para poder comprar... esse é um

negócio interessante colocar, um dos contribuintes do movimento de esquerda

naquela época, era o "seu" Paulo, pai de Paulo Hartung. Ele tinha uma loja de

móveis e sempre contribuía com o movimento. Uma das atuações nossas era fazer

finanças, para conseguir pelo menos algum recurso para rodar nossos manifestos. E

aí sim, você levava essa discussão para dentro dos diretórios, das organizações

estudantis. Agora, com muito medo. Uma das coisas que eu coloco com muita força,

era que a gente tinha uma vida de medo. A gente que sabia que onde estivesse: na

rua você não podia conversar com mais de duas pessoas, a partir de três pessoas já

133

era considerada uma manifestação. A gente estava na escola com medo de

qualquer conversa. Se você estivesse na rua, tinha o medo de estar sendo

observado, alguém estar te acompanhando. Era um mundo de terror. Pode ser o

pior governo democrático do mundo, ele é melhor do que qualquer ditadura,

exatamente por esse sentimento de falta de liberdade. Acho que as ditaduras devem

ser combatidas sempre, pode ser de direita ou de esquerda, mas o poder absoluto

cria a infelicidade da sociedade como um todo. Além de castrar uma geração toda.

O que aconteceu com essa ditadura nossa no Brasil, que inicialmente parecia algo

mais brando, começou a endurecer mesmo acho que a partir do Médici. Mas, de

qualquer maneira, quem não viveu, acha que você está inventando, mas era um

negócio realmente de terror. Se você está na escola, não sabe o que vai conversar

com seu colega, com que o seu colega está ligado dentro da faculdade, você sabia

que tinha diretor que está ligado ao SNI, está acompanhando sua vida. É algo muito

ruim para a sociedade.

Como era feita a relação entre a conjuntura nacional e a conjuntura local? Como era estabelecida a dinâmica para a ação local?

ACB - Acho que grande bandeira, no meu entender, em termos políticos, era a luta

mesmo pela democracia, a volta das eleições diretas.

Mas em termos práticos, como vocês faziam a relação entre a luta geral e a luta específica?

ACB - Em termos políticos, todos os representantes do Estado eram representantes

da ditadura. O governador era nomeado, o prefeito também. Não havia diferença do

ambiente nacional para o ambiente estadual. Não dá para você diferenciar um

governador nomeado pela ditadura de um presidente da República. Então, todas as

manifestações possíveis que a gente fazia, de trabalhadores, de estudantes, você

incluía as reivindicações próprias, da classe, que não podia deixar de ser,

principalmente porque a gente vivia naquela época, uma situação muito precária, em

termos de universidade. Tudo também dentro do contexto nacional

Mas a percepção da realidade estadual, como ficava nisso aí?

ACB - Se você for fazer uma pesquisa sobre percepção que a gente tinha da

situação estadual, era a mesma da nacional, porque não você fazia diferença sobre

134

nossos representantes. Qual a diferença do (Cristiano) Dias Lopes, do Setembrino?

Eram todos representantes da ditadura, da direita. Para nós eram representantes da

direita, até porque não poderia deixar de ser.

Em 1967, você entrou para a Ala Vermelha. O que mudou na sua militância na passagem do PC do B para a Ala Vermelha?

ACB - Eu acho que mudou a atuação. Quando a gente estava no PC do B, era em

termos de movimento de massas, participar nas greves dos operários, no Movimento

Estudantil. Já na Ala Vermelha a gente tinha um movimento mais de apoio aqui no

Estado ao movimento nacional. Mais voltadas, não vou detalhar, à ações mais

efetivas para a luta armada.

Mas você poderia dar um exemplo dessas ações. ACB - (risos) Eu acho que o Brasil ainda não está preparado.

Mas eram ações de apoio à linha da organização em direção à luta armada?

ACB - Na linha da organização em direção à luta armada.

Sua formatura foi na véspera ou no dia da decretação do AI-5, eu gostaria que você falasse um pouco dela. ACB - Nós conseguimos que o paraninfo de nossa classe fosse Dom Hélder

Câmara. Nós fizemos o ato ecumênico no auditório da Escola Técnica. Na

formatura, você sempre distribui aquele roteiro, de quem vai falar quem vai cantar as

músicas que serão tocadas. Aquilo ali, o pessoal começou a distribuir na entrada,

quando chegou a polícia e tomou tudo. Achou que era um manifesto. Não era mais

do que o roteiro do ato ecumênico. Mas não parou aí. A gente tinha marcado uma

missa na Catedral, Dom Helder Câmara foi convidado, naturalmente, quando foi

proibido de celebrar a missa. Já estava todo mundo lá, Dom Hélder então celebrou a

missa do lado de fora da Catedral.

Isso aconteceu na véspera do AI-5?

ACB - No dia 11 (de dezembro de 1968) aconteceu o culto ecumênico, no dia 12,

seria a missa e, no dia 13, era a colação de grau, que seria onde era o Juparanã.

Nosso orador foi o "seo" Rubens Gomes, pai do Rubinho (Gomes), que se formou

135

com a gente. O "seo" Rubens era uma liderança importante no movimento de

esquerda. "Seo" Rubens conseguiu fazer o discurso e, quando desceu do palco, foi

preso, a Polícia já estava ali. Foi algo que deixou a gente constrangido, até para

continuar a formatura. Mas, mesmo assim, foi entregue o diploma. Fomos embora e,

soubemos no outro dia, que Dom Hélder saiu daqui e havia sido preso em Belo

Horizonte. Isso para você ter uma ideia do clima que a gente estava vivendo. No dia

do culto ecumênico, acho que o golpe do AI-5 já estava pronto, ali eles já

começaram a reação. Acho que foi outra coisa que marcou bastante.

No dia seguinte ao AI-5, houve prisões aqui em Vitória?

ACB - Não sei, porque logo depois, nós viajamos. Nossa turma tinha marcado uma

viagem. No dia seguinte, nós viajamos para o Chile. Na época foi feita uma espécie

de curso e ficamos uma semana e meia, mais ao menos, no Chile. O que me

recordo muito bem é que, numa visita à redação de um jornal chileno, assisti,

passando bem fresquinha, a notícia de fechamento do Congresso. Naquela época

não tinha computador, ia saindo a notícia acho que no telex, do fechamento do

Congresso ou da prisão do Márcio Moreira Alves.

Nesse tempo todo em que você estudou na Ufes, você trabalhava, recebia ajuda financeira dos seus pais ou eram as duas coisas? ACB - A partir do 2º ano eu comecei a trabalhar na Caixa Econômica. Só no 1º ano,

eu recebi a ajuda dos meus pais. No final do 1º ano, eu comecei a trabalhar na

Caixa.

O que aconteceu com o Movimento Estudantil no Espírito Santo depois da decretação do AI-5? Por que a gente não ouve falar de nada que tenha acontecido depois dele?

ACB - Depois do congresso (de Ibiúna), o Movimente Estudantil só veio ter força

novamente, quando esse grupo de Paulo Hartung começou na universidade. Acho

que depois do golpe (decretação do AI-5), o movimento ficou esfacelado.

Mas você acha que houve o temor das pessoas e elas se afastaram? O que houve para que esse esfacelamento tenha sido tão automático aqui no Espírito Santo?

136

ACB - Você imagina o seguinte: foram presas as principais lideranças do Brasil todo.

Todo mundo preso naquele congresso. Então, acho que a partir daí, houve um medo

e a repressão começou a endurecer também. Você não tem mais, dentro do

Movimento Estudantil, grandes manifestações, pelo menos que eu me lembre. Eu já

estava fora da universidade.

Mas chegou a existir alguma mobilização?

ACB - Depois de 1968, eu não me lembro. A diretoria do DCE deixou de existir,

César Leite foi preso. Depois veio o Projeto Rondon, levando os estudantes pelo

resto do Brasil de avião. Foi um oba-oba danado. Acho que o Projeto Rondon veio

para desmobilizar o Movimento Estudantil e conseguiu até um certo ponto.

Você se formou em dezembro de 1968, o que significou a saída do Movimento Estudantil. Como é que ficou a sua militância a partir dai?

ACB - Mantive a militância, tanto que na eleição 1970, houve aquela prisão de mais

de 300 pessoas, entre estudantes, profissionais liberais, jornalistas, pessoas de

esquerda e operários. A partir daí, eu tive mais uma prisão, foi aquele episódio em

que fui preso para dizer onde estava Carlito Osório. Fiquei dois dias no Exército.

Mas nunca deixei de participar do movimento não. Nosso grupo da Ala Vermelha,

nós continuamos nos reunimos, participando. Você tinha na Ala Vermelha, o pessoal

do Movimento Estudantil, do Movimento Operário. A partir daí, minha atuação foi

praticamente na Ala Vermelha.

Mas numa realidade mais complicada. ACB - Com muito mais cuidado e atenção. As reuniões eram estrategicamente

cuidadosas por que. a partir de 1970, a repressão ficou muito maior.

Você não quer falar das ações de apoio à luta armada, mas em termos de ação política, o que a organização fez a partir de 1969? Tinha militância ainda no Movimento Estudantil e no Movimento Operário, mas estávamos num quadro de endurecimento do regime. Não eram só reuniões que vocês faziam. Que tipo de atividades vocês faziam?

ACB - A gente tinha ações mais efetivas. Ações de apoio. Aqui a gente tinha

algumas tarefas dentro da estratégia do movimento. Não eram ações tipo a do

137

PCBR, que resolveu deslocar alguns membros para várias partes do país, dentro

daquela visão de foco. Inclusive deslocou o Zezinho Cipriano para o interior do

Piauí. O Araguaia foi uma ação do PC do B.

A Ala Vermelha não defendia o foco guerrilheiro, qual a estratégia defendida pela organização?

ACB - A estratégia da luta era de mobilização, de armas as organizações, um

movimento maior.

Vocês, por exemplo, faziam pichações, panfletagem?

ACB - Fazíamos. A pichação era das ações mais comuns e muita perseguida.

E assim você ficou três anos ainda. ACB - Até a prisão de 1971. Aqui no Estado, não sei nos outros, ficamos

desmobilizados depois disso, porque todo mundo ficou respondendo processo.

Ficaram presos o Jair Storch, o Aristides, que era nossa liderança na área operária.

Aristides pegou seis meses de cadeia, Jair acho que pegou seis ou oito meses.

Todos nós respondemos processo. Depois da nossa prisão, foram quase dois anos

tendo que ir à São Paulo todo o mês.

Você foi torturado nessa prisão?

ACB - Fui. Mas fui torturado mais aqui.

Mas pancada mesmo?

ACB - Foi. A tortura foi feita no exército aqui (3º BC). Choques nos dedos da mão,

no ouvido, nas pernas. Porrada nas pernas, nas costas. Já na Oban, como

construímos nosso depoimento aqui, não houve grandes torturas lá. A gente

construiu uma história, porque a gente, como você viu, foi entregue pelo Edgard.

Aqui no exército, nós ficamos presos num lugar só, com colchão no chão.

Foram presas quantas pessoas?

ACB - Acho que umas 14 pessoas, mas o movimento tinha muito mais gente. A Ala

Vermelha tinha mobilizado bastante gente. Mas prenderam as principais lideranças.

Do Movimento Estudantil, o Distefano; do movimento operário, o Aristides. Eu, que

138

estava na área de profissional liberal; o Bigode, que estava na área de transporte. O

Amorim, que era mais ligado à área de jornalismo; a mulher dele, a Laurinha.

Coincidiu que, às cinco horas da manhã, eles trouxeram o Edgard, porque era o

único lugar que tinha banheiro. Ele estava numa cela que não tinha banheiro. Aí

trouxeram ele para ir ao banheiro, eu entrei com ele. Todo mundo tinha sido

interrogado à noite toda. Eu procurei o Miro e perguntei: "Miro, o que você contou?

Quero saber, para ver como a gente vai conduzir o nosso depoimento". "Eu disse

que vocês eram um grupo daqui, um grupo de esquerda, que eu estava ainda

construindo no MDB Jovem". "E daí, você falou o que?". "Que eu tive reunião com

vocês". "Mas você teve reunião com a gente aonde?". "Eu disse que eu tive umas

duas reuniões com vocês na Praia da Costa". "Mas você falou qual foi o local". "Não,

falei de reunião com vocês na Praia da Costa". Ótimo. Aí eu fui para cada um dos

colegas que estavam presos ali com a gente e disse: "Olha, conversei com o Miro e

agora a gente vai montar uma história. O que vocês falaram até agora, confirmem. A

grande chave aqui é nosso conhecimento do Miro. Onde nós conhecemos ele, como

conhecemos". Ele já tinha dito que quem trouxe ele para cá foi o Jair Storch. Que ele

teria conhecido o Jair Storch numa reunião no Rio. Por isso o Jair foi condenado.

Falei como o Aristides, o que ele tinha falado como havia conhecido o Miro. Ele tinha

dito que o Miro vinha para cá e ficava na casa dele. "Bom, daqui para frente a gente

vai falar isso: o Jair Storch conheceu ele numa reunião no Rio, nos apresentou e a

gente fez algumas reuniões na Praia da Costa". "Praia da Costa aonde?". Num

barzinho que tem até hoje lá na praia, acho que era o 106, um número assim. Então

a gente dizia: "Ele fez umas duas reuniões aqui na Praia, resolveu fazer uma

organização de combate à ditadura". Fica por aí. Todo mundo contou então a

mesma história e ficou difícil, porque eles não podiam imaginar que a gente havia

combinado aquilo lá. Cada um que era chamado repetia a mesma história. O

principal objetivo deles era saber por que o Miro que era um cara que tinha sido um

militante do Partidão, tinha ido para o PC do B, ido para a China, um cara do alto

escalão, da direção nacional do movimento, como a gente conhecia ele aqui. Nossa

versão foi exatamente essa e bateu todo mundo. Tanto que, quando levaram a

gente daqui para a Oban, quando chegou lá, botaram um em cada salinha, aquelas

salas de tortura mesmo, para fazer interrogatório. Nisso, eles chegaram com alguém

preso no pátio da Oban e desceu todo mundo para bater nessa pessoa. Não me

lembro quem era a pessoa que estava presa ali. Desceu uma porradaria, eles

139

mataram ali essa pessoa. Enquanto eles desciam, sai da minha e fui na salinha de

cada um, e pedi que todo mundo continuasse a dar a mesma versão que nós demos

aqui. Me lembro que eu falava assim: "Faz uma história redonda. Repete a mesma

situação". Com isso, quando os torturadores que estiveram aqui chegaram lá,

disseram: "esse pessoal é frio". Porque tinha gente muito mais importante lá, que

eles estavam procurando. Com isso, não houve grandes torturas lá no nosso grupo.

Eu acho que Laurinha, parece que sofreu umas torturas maiores. Segundo ela

conta, teve até um aborto lá por causa das torturas que recebeu. O Aristides

também foi torturado. Mas a Oban, se existe um inferno, estava ali, porque você

praticamente não dormia, passava o dia todo ouvindo gente gritando, sendo

torturado. Uma tortura de choque, porque as pessoas não gritam e nem choram,

berram. Me lembro daqueles urros de pessoas sendo torturadas. O drama do

barulho da porta. Eram várias celas, tinha um pátio e do outro lado tinha um prédio.

Eram várias celas, quando você ouvia aquele barulho da abertura das celas, a gente

sabia que alguém estava saindo para ser torturado. Aí era só esperar os urros e

berros da tortura. Nós ficamos ali um tempo e, depois, da Oban, nós fomos

transferidos para o DOI-CODI. Foi lá que nós fomos identificados, porque até o

período que estávamos na Oban, éramos sequestrados. Ninguém sabe onde você

está eles não informam. Aqui o meu irmão tentou várias vezes e, olha que naquela

época ele era Procurador Geral, foi várias vezes ali no exército e não informavam

onde eu estava. Minha namorada tentou através dos parentes dela no Rio, que eram

ligados ao Exército. Ninguém informa onde você está. Nós só fomos identificados

quando chegamos no DOI-CODI. A partir do DOI-CODI, é que você é identificado

como preso. Eu me lembro que nós ficamos numa fila assim, e minha

recomendação era para ninguém dizer que era filiado à partido político. O Aristide

estava na minha frente e perguntaram se ele era filiado a algum partido. Ele não se

deu por rogado: "Sou da Ala Vermelha do PC do B". "Você tem alguma função lá?".

"Sou tesoureiro da executiva estadual" (risos). Todo mundo dizendo que era de

esquerda, mas que não era ligado a nenhum partido. Não tem porque você produzir

prova contra si mesmo. Ali no DOI-CODI, eu fiquei numa ala de quem tinha curso

superior. Estavam comigo, o que eles chamavam de "grupo dos arquitetos", que se

formou lá em São Paulo. Nessa época, o movimento de esquerda começou a se

dividir muito. Tinha grupo de 10 pessoas, que se formava ali para fazer assalto à

banco. Esse grupo de arquitetos era um grupo muito violento em São Paulo.

140

Venha

Você não se lembra qual era a organização deles?

ACB - Não me lembro. A essa altura já tinha Var-Palmares, Colina, ALN e tinham

pequenos grupos também. Na Oban, me lembro que teve uma prisão de um rapaz

da Colina, que foi muito torturado, estava com bolhas no pés, não podia nem andar.

Tinha um menino da Var-Palmares que havia sido preso em Minas. Teve um cara

que acho que entregou aquele pessoal do PC do B que eles mataram. Não teve um

episódio que eles mataram um pessoal do PC do B? Foi quando eles entregaram o

Araguaia.

Você está falando no Fued?

ACB - Não. Não porque tem um pessoal que eles mataram. A Oban era mantida

pelos empresários de São Paulo. Nós ficamos mais de um mês lá no DOI-CODI.

Depois fomos soltos, todos liberados e continuamos respondendo processo em

liberdade, com a condição de ir ao DOI-CODI uma vez por mês.

Mas depois disso, as pessoas se dispersaram?

ACB - As pessoas se dispersaram, até porque, imagina o seguinte, todo mês indo à

São Paulo. Nós respondemos processo em São Paulo, porque o processo da Ala

Vermelha correu lá. Então, mais de um ano, um ano e meio, até ser julgado esse

processo, quando a maioria foi julgada inocente. Tivemos dois só que ficaram

presos, o Jair (Storch) e o Aristide.

Você deixou a militância de esquerda, mas não a militância política. Como você ficou depois disso? Ficou um tempo parado ainda?

ACB - Eu fui para o MDB.

Já naquela época ou você parou um tempo?

ACB - Não, eu não parei. Não parei hora nenhuma. Uma das coisas que esse

pessoal não conseguiu fazer comigo, foi me amedrontar. Acho que uma das grandes

forças que passei para o pessoal que foi preso comigo, foi exatamente isso, dizer

que a gente não tinha porque ficar com medo. Eu falei inclusive para o cara da

Oban, que não tinha medo deles. Não sei se era uma doideira, mas minha

consciência era de que eu estava fazendo a coisa certa. Não tinha porque eu ter

141

medo de ficar preso. Eu me preparei, no dia em que fui para o julgamento, para sair

do país. Nosso advogado era o Vanderlei Mello e, no dia anterior ao julgamento,

conversei muito com ele, para saber a probabilidade de eu ser condenado. Disse

que se houvesse mais de 50% de possibilidade de ser condenado, não iria

comparecer ao julgamento. Ia cair na clandestinidade. Aí ele disse: "Não, estou

acompanhando os pareceres dos juízes, a possiblidade de você ser condenado é

menor do que 50%". Então eu fui, porque o pessoal que foi julgado, se condenado,

ia sair de lá preso.

Você também teve um período que foi empresário?

ACB - Não, depois que eu me formei, eu montei uma empresa de projetos.

Então você não estava mais na Caixa?

ACB - Não, eu me formei e sai da Caixa. Eu fiquei ainda seis meses na Caixa depois

de formado. Eu queria que a Caixa me classificasse como economista fiquei

aguardando, mas ela não tinha esse quadro. Aí pedi para sair, porque já estava com

minha empresa de projetos. Quando fui preso, inclusive, eu estava com minha

empresa.

Era a Direção?

ACB - Não era a EPPE, Escritório de Planejamento e Pesquisas Econômicas. Era eu

e o Pretti. Montei minha empresa, naquela época, praticamente, era a única

empresa de projetos que tinha aqui, até porque eu era a única pessoa que tinha feito

curso de projetos. Eu tinha feito um curso de projetos no Ministério do Planejamento,

ainda quando estava na Caixa. Foi naquela época, inclusive, da Passeata dos 100

mil, que eu estava no Rio de Janeiro. Os grandes projetos daquela época passaram

pelo meu escritório, porque o Bandes não fazia, hoje em dia até faz. Por exemplo, a

implantação da Braspérola, foi meu escritório que fez. Depois, a abertura de capital

do Buaiz, foi feita pelo meu escritório. Essa empresa, que agora até fechou, a

Ornato. Nós fizemos vários estudos setoriais para o Bandes. Nós fizemos o primeiro

estudo setorial sobre mármore e granito. A gente fazia o estudo setorial e, partir

dele, um projeto de captação de recursos para aquele setor. Nós fizemos para os

setores de cerâmica vermelha e massa alimentícia e biscoito. O Bandes contratava

e a gente fazia.

142

Isso ainda na época em que você ainda estava na militância? ACB - Na militância, quando eu estava fazendo esses projetos, foi nesse período

depois que eu me formei. A partir dessa empresa de projetos, eu dei assessoria na

Bromato. Fui demitido da Bromato quando eles souberam que eu estava

respondendo processo. Trabalhei, pela minha empresa, no Inocoopes. Eu estava no

Inocoopes quando fui preso. A Bromato foi depois. Fui mandado embora do

Inocoopes, quando eu voltei de lá (da prisão), porque o Arízio Varejão, o filho dele é

que hoje toma conta do Inocoopes, aquilo lá era uma organização do BNH. O Arízio

era o diretor junto com Jones dos Santos Neves (Filho) 247 o BNH terminou e eles

ficaram com aquele modelo e hoje é uma empresa privada. Então eu estava

exatamente no Inocoopes, quando fui preso. Voltei de lá, me deram um abandono

de emprego. Fui demitido, mas estava na minha empresa de projetos e continuei. É

um negócio até muito interessante, porque o (Grupo) Buaiz fiz vários projetos para

eles, quando fui solto, estava respondendo processo, doutor Américo (Buaiz) me

chamou lá e disse: "Olha Brito, estou sabendo da sua situação, mas você continua,

tenho alguns trabalhos para sua empresa, pode contar com o Grupo Buaiz para os

seus trabalhos". Foi o inverso do que aconteceu com o Arízio. Estava lá porque fiz

curso no BNH. Mas ele não quis nem saber. Depois fui trabalhar na Bromato, estava

respondendo processo. Só que a Bromato foi vendida para um pessoal de São

Paulo. Eles tomaram conhecimento que eu estava respondendo processo, era

subversivo, me deram uma desculpa e me mandaram embora. A coisa era assim.

Depois da prisão e do processo, você continuou sua vida normal, mas chegou a ter algum dissabor por causa disso? ACB - Não, a partir dessa prisão, como você viu no documento que te dei, eles me

acompanharam até 1988, até a promulgação da Constituição (de 1988). Mas não

tive mais nenhum dissabor. O único, é que eu não podia fazer concurso, porque

para fazer qualquer concurso, você tinha que ter atestado de bons antecedentes,

senão não podia ter emprego público. Sobrevivi com a atividade privada. Foi aí que

foi episódio em que fui para a Patrimônio, para organizar a Patrimônio. Na iniciativa

privada, eu nunca tive nenhuma restrição, porque o pessoal precisava de projeto

247 Empresário já falecido, Jones dos Santos Neves Filho era filho do ex-interventor e ex-governador Jones dos Santos Neves (1950-1954).

143

para obter dinheiro do Bandes. Houve um período, em que a pessoa chegava no

Bandes para pedir dinheiro e eles encaminhavam para a minha empresa, que era a

única de projetos. Eu elaborava o projeto, dava entrada no Bandes e a pessoa

obtinha o recurso. Minha ida para a Patrimônio foi também na condição de assessor,

porque o contrato até era pela empresa. Depois, fui convidado para ser sócio da

Patrimônio Investimentos, que não era a imobiliária. Quando comecei ver que a

Patrimônio não estava indo muito bem, que o objetivo do diretor não era muito

religioso, eu sai e montei a Fiança, que era também imobiliária. Essa empresa eu

tenho até hoje. Foi eu e o Wilson Tiago de Azevedo. As minhas funções públicas

foram na Caixa Econômica e, depois, no Bandes. Eu fui para o Bandes já no

governo do Camata, exatamente pela atividade privada. Eu conheci o Camata na

faculdade, foi meu contemporâneo e ele teve muita dificuldade de conseguir

informação do governo, porque estava tudo fechado e foi o primeiro governador

eleito em eleição direta e não tinha informação nenhuma. Nessa época, o Camata

morava no (edifício) Aldebaran e eu também, a gente se encontrava muito ali e

conversando com ele, eu disse a ele: "Pela minha atividade, eu sou obrigado a

recolher dados e informações. Faço estudos de viabilidade e faço projetos. Para

fazer projeto, eu tenho que saber como está a situação do Estado. Então, tenho tudo

que você imaginar sobre estatística, tudo que estudo feito pelo Estado até agora, eu

tenho". Eu conseguia lá com o Caliman. O que acontecia, de vez em quando, na

minha empresa, eu contratava economista do governo. Por exemplo, eu preciso de

um estudo de viabilidade econômico setorial de fruticultura de clima temperado, que

foi o pontapé que deu lá em cima. Então, contratava gente de dentro governo, para

trabalhar, o cara trabalhar à noite, fim de semana. Eu disse ao Camata que todos os

projetos e estudos do Governo, geralmente eu tinha acesso. Aí eu formei um grupo

de estudos para ajudar o Camata. Era eu, (Antônio) Caetano, (Sebastião) Balarini,

Renato, um grupinho grande. E o Camata, na campanha, deixava de viajar para o

interior para ir ao meu escritório bolar a participação na televisão. Eu passei a ser o

representante dele junto à imprensa. A gente ia àquelas reuniões antes, para saber

o que vai ser discutido e o que não ia ser discutido. Depois voltávamos para o

escritório e pegava que era possível dentro daquele roteiro da televisão. Então

quando Camata chegava lá, ele matava a pau, humilhava todo mundo. A quantidade

de informações que ele tinha ninguém tinha. Aí ele me chamou para o Bandes, por

144

minha afinidade com o banco. Eu já trabalhava com o Bandes há muito tempo.

Naquela época já estava na abertura.

A última pergunta gostaria que você fizesse exatamente um balanço desse período de 1964 até 1973. ACB - Eu acho foi um período muito importante da minha vida. Foi um período de

aprendizagem muito grande. Eu sempre coloquei, que aquelas pessoas que tem

militância de esquerda conseguem ter uma visão de mundo muito mais concreta,

mais realista, do que àquelas que são alienadas, que não acompanham o que

acontece no mundo, no seu Estado e no país. Apesar de todo o sofrimento, todas

as restrições, todo prejuízo que a gente possa ter tido em termos profissionais, todo

sofrimento físico e moral, para mim foi enriquecedor. Em hora nenhuma essa

pressão que eu recebi, esse sofrimento, as prisões, abalaram a minha convicção de

defesa da democracia, dos direitos humanos e acho que não é hoje que isso vai

mudar. Então, eu acho que para aqueles que são mais novos do que eu, os jovens,

que nunca se afastem e nunca recusem o seu direito de luta pela melhoria da

sociedade, pela liberdade, que é o que há de mais importante na vida de cada

pessoa. Não há felicidade sem liberdade. Isso no mais amplo sentido que você pode

entender. Acho que a luta pela liberdade é válida, em qualquer momento da vida.

145

ANEXO III Entrevista José Maria Cola – 27/03/2013

Vamos começar pela sua identificação, idade e condição profissional. JOSÉ MARIA COLA- Atualmente eu estou com 67 anos de idade. Sou nascido em

1948, me formei em engenharia em dezembro de 1971. No momento, eu tenho 41

anos de formado como engenheiro civil. Durante esse período, tive oportunidade em

empresas privadas, tornando-me mais próximo do Conselho Regional de

Engenharia e Arquitetura (Crea), que agora se chama Conselho Regional de

Engenharia e Agronomia, nos idos do ano 2.000, quando me tornei conselheiro,

representando a Sociedade dos Engenheiros. Atuei como conselheiro da Câmara

Especializada de Engenharia Civil, também tendo sido coordenador, diretor

administrativo do Crea por dois períodos e coordenador da Câmara por um período.

Esse período entenda-se três anos. Já na diretoria, são dois anos como diretor do

Crea. Desse período após ter saído do sistema Confea/Crea, assumi a diretoria da

Mútua no Espírito Santo, sendo diretor-geral durante por dois anos. Na sequência,

comecei também a trabalhar no serviço público, na Secretaria de Educação e depois

na Secretaria da Cultura. Por último, fui convidado pelo presidente anterior do

Conselho Regional, para assumir a gerência operacional, hoje conhecida como

Gerência de Atendimento, na qual já atuo há quatro anos. Nesse período, eu tenho

usado todos os meus conhecimentos da minha época de conselheiro, para atuar nos

registros profissionais e de empresas, na elaboração de acervos técnicos e nas

emissões e anotações de responsabilidades técnicas, que são conhecidas ART.

Esse é um breve resumo da minha vida e do meu encontro com o sistema

Crea/Confea.

Você é nascido aqui em Vitória? JMC - Sou nascido e criado em Vitória. Eu nasci em Santo Antônio, na Volta do

Rabaioli. Fui criado aqui na Praia do Canto até os sete anos de idade, lá na Rua

Celso Calmon. Depois fui para a Rua do Vintém, no Centro de Vitória, e sempre

estudei em escola pública. Primeiro estudei no Gomes Cardim, depois no Colégio

Estadual e finalmente na Universidade Federal do Espírito Santo. Conheci esta ilha

antes de terem sido feitos esses grandes aterros, que foi a criação da Avenida Beira

Mar, depois a criação de todo esse complexo que ficou maravilhoso do famoso

146

aterro da Comdusa, que uniu a Ilha de Vitória com a Ilha do Boi e aquelas

proximidades da área da Praia do Canto com o Iate Clube. Sou da época que existia

bonde.

Como que você classificaria sua posição social quando entrou na universidade? JMC - Vim de uma família de classe média. Não era classe média alta nem nada.

Meu pai era contador e depois virou funcionário público federal, trabalhava no

Ministério de Viação e Obras Públicas. Minha mãe sempre foi do lar. E assim eu

cresci, sempre tendo oportunidade de estudar sem a necessidade de trabalhar. Mas

fui criado dentro de um critério judaico, onde opera a ordem e aquela obrigação dos

mais velhos serem obedecidos. Então era considerado pelo meu pai como o burro

de guia, porque tinha que dar o exemplo para os demais irmãos.

Eram quantos irmãos? JMC - Nós éramos uma família de cinco filhos, onde eu era o mais velho. São quatro

homens e uma mulher.

Em que ano você entrou na Universidade? JMC - Eu entrei em 1967.

Quando você entrou na Universidade, qual era a sua expectativa? O que você e sua família esperavam dela? JMC - Na realidade, a linha de educação que eu recebi foi sempre a que papai

disse: "eu não tenho riqueza para deixar para você, a única coisa que ninguém

rouba de ninguém é a educação. Então você vai ter que se formar e tocar sua vida".

E lá em casa, por coincidência, uma vez que meu pai era contador, três homens se

formaram engenheiros, um estava se formando em Medicina e a minha irmã se

formou em Belas Artes. Depois essa Escola de Belas Artes acabou se transformou

na Escola de Arquitetura da Universidade Federal, ela trabalha em atividades de

decoração de interiores magnificamente, uma vez que compreende e sabe muito

geometria descritiva, que é a base de projetos e de configurações espaciais.

147

Você disse que foram três engenheiros na sua família, existia em relação ao curso de engenharia uma expectativa de melhorar de condição social? JMC - Com certeza com expectativa de melhorar. Inclusive, eu tinha um primo que

falava assim: "Zé Maria, você ainda estudando, vai ver como melhora da água para

o vinho na hora em que tiver com o diploma na mão". E essas são as coisas

interessantes que aconteceram na minha vida. Eu peguei o período em que o Brasil

crescia, não naquele em que o engenheiro virou suco. Eu peguei a época da

expansão, semelhante a que está acontecendo agora. Eu me formei na época do

"ninguém segura esse país", a época do Garrastazu. Esse era o lema e realmente

era obra para todo lado e a coisa acontecendo.

148

ANEXO IV ENTREVISTA JOSÉ MARIA COLA - 28/03/2013

A gente estava falando da sua expectativa quando você estava entrando na faculdade. Quando entrou, que impressão você teve?

JMC - Quanto eu entrei na faculdade, éramos 135 alunos numa sala de aula e nos

formamos em 85. A diferença dos outros 50 era a dos que mudaram de faculdade,

desistiram e, infelizmente, alguns que faleceram nesse período. A minha

perspectiva particular era me formar em engenharia. No fundo, eu gostaria de ter

podido fazer engenharia eletrônica, mas só havia em São Paulo, no Ita (Instituto

Tecnológico da Aeronáutica). Como a oportunidade aqui em Vitória era a engenharia

civil, entrei fazendo engenharia civil. Dentro dos cursos oferecidos pela engenharia

civil na hora da especialização, tinha estradas, cálculo e edificações, eu optei por

aquela que era a mais difícil. Ou seja, aproveitei o meu período de estudante para

me tornar engenheiro naquilo que era mais difícil em termos de aprendizado, que

era cálculo estrutural para aplicação em edificações. Me tornei engenheiro e,

durante toda minha vida profissional, sempre trabalhei na área de edificações. Tinha

um excelente entendimento de cálculo estrutural e de execução propriamente dita,

porque tinha começado a estagiar na Construtora Albamar quando estava

começando o terceiro ano. Ou seja, já tinha passado os dois anos iniciais, em que

as matérias eram, por excelência, teóricas.

Esses primeiros dois anos tinham sido aquilo que você esperava? A sua expectativa foi atendida? JMC - Na realidade o curso foi realmente puxado. Determinados professores, como

o professor de Cálculo, Francisco Árabe, eram pessoas de um grau de exigência

bom, essa é exatamente aquela matéria, com mais geometria descritiva, que faz

com que você abra a mente. Então, o negócio era meio barra pesada mesmo. Ao

ponto que, por exemplo, teve um dia em que a turma, muita gente dentro sala de

aula, com várias formas de pensar, dentro da minha sala tinha pelo menos uns cinco

agrupamentos diferentes. Cada um daqueles grupos tinha o seu líder. Eu mesmo me

acabei me tornando líder nos cinco anos de escola, fui lá para questionar os meus

colegas sobre o que estávamos fazendo ali. "Vem cá, eu estou fazendo esse curso

para ser engenheiro e não perder tempo e expulsar professor de sala de aula”.

149

Aquilo ali não tinha cabimento e, nesse sentido, a minha turma me ouviu, acho que

caiu a ficha de todo mundo de que estávamos ali para nos tornarmos profissionais.

Ao ponto de, ao nos formarmos, conversando entre nós, nós tínhamos uma vontade

de criar uma espécie de “capixabismo” . Ou seja, nós estávamos aqui no Espírito

Santo invadidos por engenheiros, trabalhando principalmente nas principais

empresas, como Escelsa e Vale do Rio Doce e das diretorias e aquele negócio todo,

tudo engenheiro formado em Minas Gerais. De certa forma, conseguimos alguma

coisa, mas não conseguimos virar essa mesa em termos de trazer o domínio do

engenheiro do Espírito Santo. Mas alguma coisa foi obtida, por exemplo, na Escelsa,

algumas posições depois passaram a ser dominadas por nossos engenheiros. Mas

a minha expectativa foi atendida plenamente. A universidade era um lugar em que,

naquela época pelo menos, o respeito ao professor tinha certo grau de importância.

O comportamento do estudante universitário naquela época tenho para mim, que

também era bem diferente. As nossas formaturas eram um negócio que parava

Vitória. A minha formatura foi no Teatro Glória. Estava escrito lá no letreiro:

Formatura de engenharia. O Glória era pequeno para tanta gente. A formatura era

um ato tão solene, de uma pompa cerimonial muito alta. A gente saia dali

convencido que realmente agora tínhamos mudado de vida. Hoje, não sei o que

acontece, mas acho que virou corriqueiro esse negócio de ter diploma ou fazer um

curso de engenharia. Inclusive é questionado entre nós, engenheiros, porque

perdemos muito assim, em termos até do comportamento na sala de aula, na

escola. Você vê os alunos de engenharia indo de bermuda, camiseta, porque não

tem um rito de que estamos fazendo uma transformação em nossa vida. Ou seja,

nós estamos deixando de ser jovens para poder ser adultos com uma formação tal,

em que a gente tem que valorizar aquilo que passamos Inclusive, a forma do

engenheiro andar, de certa forma, mais descontraída, não colocando a posição em

que ele ocupa em evidência. Por exemplo, na Escola de Medicina, quando se

começa a ver essas matérias profissionalizantes, só pode assistir de roupa branca,

já criando o ambiente do profissional. Mesma coisa acontece na Escola de Direito,

onde já se passa a ter um comportamento de andar pelo menos com um traje

formal, inclusive tem aqueles treinamentos internos lá de tribunal, em que o

camarada tem que ter um comportamento onde realmente impõe-se. Meu pai dizia

que é o hábito que faz o monge. Se você se veste como um mendigo, o camarada

vai olhar para você e dizer: “aquele cara não é um engenheiro”. Se você se veste

150

condignamente ele vai dizer: "Aquele ali é um doutor, aquele ali é um engenheiro,

aquele ali é um médico”. Isso é a identidade. Essa é uma coisa observada por mim

daquela época para cá. No momento eu acho que esse é um trabalho muito difícil,

porque nós temos que mexer muita coisa nessa área educacional.

Naquela época não existia o sistema de crédito na universidade, vocês faziam o curso seriado. JMC - O cara entrava no primeiro ano e saia no último ano com os mesmos colegas.

Como era a convivência com os colegas no dia a dia? JMC - A convivência entre os colegas sempre foi muito harmônica, até pelo meu

estilo de convívio no meu grupo, quando tinha que tomar qualquer decisão dentro de

uma sala de aula, eu conversava com quatro ou cinco outros líderes, e dali fazia um

consenso para levar, em tese, se fosse um negócio de assembleia maior, para uma

sala de aula, como eu fiz várias vezes, e falar assim: "fulano, segura a porta ali e

não deixa ninguém sair não". Mas aquele assunto que eu ia tratar, já era discutido

antes com uns quatro ou cinco outros líderes que dominavam seus grupos. Com

isso, nós conseguimos fazer uma união muito grande, tanto que minha turma, depois

que nos formamos, nos reunimos a cada cinco anos. Ultimamente, porque achamos

que está diminuindo a frequência, porque estamos ficando idosos, com mais de 40

anos de formados e tem gente que já está morrendo, está surgindo a ideia de fazer

a reunião anual. Mas é uma turma que até hoje consegue se reunir e trocar

informações.

Você estudou numa época em que o Movimento Estudantil da universidade viveu duas fases. A primeira até 1968, em que houve, não só no Espírito Santo, mas no Brasil inteiro, muitas mobilizações. De 1969 em diante, houve um fechamento. Como era a situação na Engenharia? E como era o Diretório Acadêmico? Como eram os alunos em relação a essa questão? JMC - Era uma questão muito delicada, muito observada por todos. Inclusive, a

turma mais atingida foi a que antecedeu a minha. A turma que antecedeu, nós

tivemos vários colegas que foram presos lá em Ibiúna. Exatamente por causa deles,

a gente se reunia no sentido de, acho que a engenharia como um todo, não só a

minha turma, poder discutir qual era a posição da escola com relação a determinado

151

movimento. Mas depois daquela época, nunca mais tivemos nenhum contratempo

maior, porque a Escola de Engenharia, de certa forma, sempre foi, em tese, mais

ordeira nesse negócio. Era um pessoal muito pensante, muito pé no chão. Mas era

um negócio que preocupava. A gente ficava com aquele papo de que quem era o

dedo-duro dentro da nossa turma, quem que agia assim errado. Mas acho que na

minha turma nunca teve a existência de coisa nenhuma, embora tivesse todas as

linhas de raciocínio. Uns eram mais vermelhos, outros mais tipo melancia, verdes

por fora, vermelho por dentro e havia os que não se misturavam com linha nenhuma,

procuravam andar dentro daquilo que era o correto fazer. Nessa linha do correto

fazer, eu nem sei se me enquadro nela, de qualquer maneira, eu sempre dialoguei

com todas as linhas políticas, sem me envolver com nenhuma delas profundamente.

Sempre procurei ser uma pessoa independente, respeitando as diferenças.

Mas na engenharia haviam pessoas de esquerda e de direita?

JMC - Sim, sempre teve. Eu acredito até que a turma da direita até tinha uma certa

predominância, porque pedia para os mais exaltados: "modera, porque senão você é

que vai ser prejudicado". Mas quando a pessoa está ideologizada, é difícil mudar.

Nós vemos isso hoje no país. Uma coisa que sempre foi notada por mim, é aquela

história da própria União Soviética, o povo sofrendo e o pessoal do politiburo lá na

praia, na tranquilidade, porque eles eram diferentes. Aqui no Brasil é a mesma coisa,

o Lula é diferente.

Você chegou a participar do Diretório Acadêmico? JMC - Não diretamente, em que meu nome apareça. Mas ajudava bastante a fazer o

estilo dos movimentos interno. Ajudar nos eventos que aconteciam na escola. Eu

sou da época em que José Maria Nicolau era presidente do Diretório. Naquela

época do José Maria, o nosso Diretório era muito atuante. Naquela época nós

criamos a Semana da Engenharia. Essa Semana da Engenharia acho que nós

fizemos duas edições, em que nós utilizávamos prédios que estavam parados lá no

Centro de Vitória. Isso foi na frente do correio, quando o Banco São Paulo se mudou

e o prédio lá ficou, nós fizemos dentro das dependências dele uma exposição da

engenharia que foi um sucesso. Aquilo parava Vitória, jornal, televisão, todo mundo

anunciava o que estava acontecendo. Isso foi um motivação muito grande, a ponto

de nós da Escola de Engenharia termos feito, naquela época, onde os prefeitos

152

eram indicados pelo governador ou pela, entre aspas, ditadura militar. Na época, era

Setembrino Pelissari o prefeito, nós fizemos peças teatrais, a primeira foi "Vitória de

setembro a Setembrino".

Você participou dessa peça? JMC - Participei, fui um dos atores. A segunda foi "Animais, não desanimais",

quando o Setembrino ainda era prefeito. Ela me lembra muito talvez daquela figura

feita pelo George Orwell, que falava de uma fazenda de animais, em que os porcos

faziam alguma coisa de movimentação. Fazíamos toda uma interpretação dos

animais tocando a realidade que estava acontecendo. Era um negócio bem

interessante. Isso movimentava Vitória, nossas peças eram apresentados no

auditório da Escola Técnica Federal. Era um negócio assim sensacional, a gente se

divertia muito. Trabalhava muito para montar uma peça daquela. Me lembro que

nós, todos estudantes de engenharia, um dos colegas virou iluminador. Um negócio

bacana para chuchu em termos de se juntar e fazer as coisas. A grande virtude é

que o José Maria Nicolau sempre foi muito amigo do Milson Henriques. Era ele que

escrevia essas peças, de forma graciosa, e adorava estar ali autor e diretor da peça.

Foi uma época muito legal.

O José Maria Nicolau, que eu conheci como professor da Ufes, dentro do espectro político do movimento estudantil, não era um cara de esquerda. Para o pessoal de esquerda, ele era considerado conservador. JMC - Ele sempre foi um cara conservador, mas sempre foi um camarada muito leal.

Ele também nunca foi contra a turma de esquerda. É aquele que chamavam de

aconselhador. Acho que, até brilhantemente, ele ficou na universidade como

professor e continuou sendo querido por todos. Uns reclamam pelo rigor dele, outros

pela forma de ser, mas de certa forma, ele é um camarada que tem um valor tão

grande, que os alunos dele, mesmo assim, gostam muito dele. Depois de sair da

universidade aposentado, ele foi criar um curso que foi desafiador, porque era

formado engenheiro civil. Ele foi criar um curso de engenharia de petróleo. Isso

mostra p quanto ele também é um pesquisador, um cientista, ou seja, um líder, que

conduziu uma atividade nova e desafiadora. Ele sempre gostou de desafios. Era um

excelente jogador de basquete.

153

Como era o DCE? Como você via o DCE? JMC - O DCE se movimentava ali, mais no intuito de trazer alguma coisa para a

própria turma de engenharia, de manter vivo, por exemplo, a nossa

representatividade esportiva. Nós tínhamos bons times de futebol, uma excelente

equipe de natação. Em suma, participávamos dos jogos universitários.

Tinha a Fuec.... JMC - Exatamente, naquela época tinha a Federação Universitária de Esportes. E a

gente participava por isso. Acho que o nosso diretório acadêmico era muito ativo

nessa área.

Mas eu estou falando do DCE, que representava todos os estudantes.

JMC - Ah tá, do DCE eu conheço pouco. Eu estava mais focado no nosso diretório

acadêmico.

Em 1968, houve um líder estudantil, que me parece ter sido a principal liderança desse período, chamado César Ronald, que era estudante de Medicina. Você se lembra de César Ronald? JMC - Não, não estou lembrando. Não estou ligando o nome à pessoa. Embora a

gente fosse tão próximo dali e havia até uma convivência bem respeitosa entre nós

da Engenharia com a turma de Medicina, que lá também tinha bons atletas, boas

pessoas lá. Lembro-me de alguns, mas desse César Ronald não estou me

lembrando.

Em 68 houve uma greve por causa do RU, quando ele abriu, por causa dos preços cobrados. No final do ano, também houve uma greve por causa das prisões em Ibiúna. Você se lembra desses movimentos? JMC - Lembro, mas não era de participar desses envolvimentos de passeatas. Isso

aí, nesse aspecto, eu não me envolvia não.

E o pessoal da Engenharia, participou desses movimentos? JMC - Eu acredito que alguns tenham participado sim.

O curso chegou a parar ou você não lembra?

154

JMC - Não, eu não me lembro. Talvez algum outro colega possa se lembrar, mas

não me lembro de ter parado não.

A universidade começou, em 1966, um processo de reforma que levou à estrutura que existe hoje. Você lembra se houve alguma discussão, se passaram alguma coisa entre os alunos sobre a reforma da universidade. JMC - Não. Nesse período a que você está se referindo, eu já estava fora da

universidade.

Ela foi implantada depois, mas começou a ser discutida em 1966. Foi aprovada em 68, mas só foi implantada depois. Como estudante você chegou a ouvir alguma coisa? Por exemplo, passaram algum questionário entre os alunos? JMC - Que me lembre não. Na minha época não.

Nas atas do Conselho Universitário, o professor Marcelo Basílio inclusive fazia parte dessa comissão, eles relatam que passaram questionários entre os alunos. JMC - Passaram esses questionários em que época?

Em 66 ou 67, você já estava lá. JMC - Eu já estava lá, mas não lembro de ter visto esse questionário não. Devem ter

passado nas outras faculdades, aquelas que iam se movimentar, porque eu acho

que a última a se movimentar para dentro do campus foi a engenharia.

Em algum momento se chegou a fazer essa discussão na engenharia sobre essa mudança para o campus? JMC - Não, porque o negócio era o seguinte: as outras estavam espalhadas. A

Escola de Belas Artes era aqui na Praia do Suá, Direito ficava lá perto do Palácio.

Filosofia ficava no prédio da Fafi. Ali, se não me falha a memória, antes era o

Gomes Cardim, depois andou funcionando ali o Colégio Estadual. Em suma, era

tudo espalhado por Vitória. Para juntar tudo, fizeram o campus. Nós, da Escola de

Engenharia, pelo contrário, estávamos ampliando ali para fazer os diversos

laboratórios. Tudo no maior refino, para depois abandonar aquilo tudo ali e ir para

dentro do campus. Quer dizer, se a própria Escola de Engenharia tivesse

155

permanecido ali onde estava talvez houvesse um ganho maior em termos de

unidade dos próprios engenheiros. Mas lá no campus universitário, eu não posso

falar tanto, mas já começo a perceber uma evolução na chegada de empresas para

participar do processo também acadêmico. Ou seja, preparar mão de obra,

profissionais para o ambiente de trabalho, como é o caso da Petrobras. Foi lá para

dentro da universidade e montou os laboratórios de petróleo. Eu tenho também

conhecimento que na área de farmácia também tem um laboratório que é

aproveitado pelo governo federal para fazer análise de vinhos que chegam

importados. São evoluções importantes, porque ao mesmo tempo em que se

formam os alunos, se aperfeiçoa pesquisa dentro da universidade. As nossas

pesquisas, esses trabalhos todos acadêmicos, deviam ter um foco um pouco mais

voltado para a utilização real. O que quero dizer isso? Empresas que estão voltadas

para a necessidade de continuar evoluindo e inovando no seu produto específico,

poderiam estar pagando as pesquisas dos pesquisadores das universidades,

aqueles que estão fazendo doutorado. Ou estimulando esse pessoal a fazer coisas

que poderiam ser utilizadas objetivamente dentro das indústrias. Eu diria a você que

a evolução de material odontológico, que a 3M é uma das que domina esse

processo, tem dentro daquelas universidades dos Estados Unidos, um pesquisador

para cada linha de desenvolvimento, em que ela, a 3M, acaba utilizando aquelas

pesquisas no desenvolvimento do seu produto. Com isso, cria um estímulo para que

surjam sempre novos pesquisadores e ela também tem um ganho na melhoria dos

seus produtos comercialmente para poder sustentar as pesquisas. E assim evolui. É

o caso hoje da Petrobras, que eu acho que a universidade ganhou, bem como a

própria empresa. Na universidade do Rio de Janeiro, a Petrobras montou todo um

laboratório de hidráulica, no qual foram feitos todos os estudos para aplicarem na

exploração de petróleo em grande profundidade. São piscinas com seis, sete metros

de profundidade, para fazer ensaios, fazer um protótipo do que poderia estar

acontecendo naquelas profundezas, em que nós, seres humanos, não temos

condições de chegar apenas de escafandro. Então, até o desenvolvimento desses

equipamentos, tem que ter muito cuidado. É um trabalho científico muito importante.

Cabe aos técnicos esse desenvolvimento, agora precisa ter incentivo.

O campus começou a ser construído em 1967, essa reforma foi aprovada em 68. Em algum momento, vocês que eram alunos, houve alguma percepção,

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discussão ou colocação do tipo: “a universidade está tendo uma reforma, vocês vão deixar de ser Faculdade de Engenharia para se transformar em Centro Tecnológico”? JMC - Nós não ficamos sabendo. Pelo menos eu falo por mim, que saí em dezembro

de 71. Nunca teve essa discussão objetiva nesse sentido. Pode ter sido depois na

evolução, que depois começou a entrar sendo aplicado no sistema seriado, um

sistema seriado em que o próprio aluno de engenharia tinha que ir estudar no setor

lá de matemática, que ficava ligado à área de licenciatura, para poder estudar lá.

Cada um ia para um lugar específico e já começou a entrar aquela modernidade das

universidades para o sistema de crédito, onde as próprias turmas perdem as suas

identidades, porque tem cara que está atrasado e frequenta um determinado curso,

junto com um camarada recém-chegado, e assim por diante.

Naquela época em que você entrou na engenharia, houve o problema de excedentes? JMC - Não, pelo menos que eu me lembre.

Na Medicina houve problema de excedentes, pessoas que tinham nota, mas que não conseguiam entrar, porque não tinha vaga. JMC - Não, isso na engenharia não aconteceu. Naquela época, os vestibulares eram

por eliminação propriamente dita. Se não passou nessa prova, você não faz a

seguinte. E assim por diante. Então você podia ser eliminado sumariamente no

meio do certame. Era o contrário, às vezes estavam oferecidas, teve turma com 50

vagas, de só passar 10. Então aquela turma era só de 10 pessoas se formando. Na

Medicina era usual isso. Só cinco passar por ano. Até que houve esse processo de

múltipla escolha, em que se dá esses absurdos que a gente às vezes encontra como

o camarada que foi para á só para brincar, foi treinado a fazer xis para cá e para lá.

Como aconteceu mesmo no Rio de Janeiro, de o camarada que era literalmente

analfabeto passar no vestibular.

As provas eram dissertativas? JMC - Eram dissertativas e depois tinha prova oral.

Mas para entrar também?

157

JMC - Não, para entrar não cheguei a faze prova oral não. Mas era tudo dissertativa.

Nessas questões que o movimento estudantil levantava, como por exemplo, o acordo MEC-USAID, mais verbas, como você via essa bandeiras? Ou não era uma questão que não estava no seu dia a dia? Não era uma questão discutida pelos colegas? JMC - Não, isso não era discutido pelos colegas não. Depois que você entra,

quando está cursando o curso de engenharia levando a sério, você não tem nem

tempo para almoçar ou jantar, porque fica absorto mesmo com o estudo. Às vezes, a

gente tinha que formar grupos para um ajudar o outro no entendimento. Era uma

absorção total. E esses acordos, esses MEC-USAID, essas coisas, não me lembro

de nossa turma ficar discutindo esses assuntos.

Você entrou na universidade quando ainda não tinha RU, que foi inaugurado depois. Como você almoçava antes e depois da inauguração do RU? JMC - Eu sempre tive um apoio familiar.

Vocês moravam aonde? JMC - Eu morava na Rua do Vintém e estudava lá em Maruípe. Naquela época, nós

tínhamos um ônibus da própria universidade. Nós embarcávamos ali atrás do

Correios e íamos para Maruípe. Esse ônibus era exclusivo para os estudantes de

engenharia e tinham aqueles colegas que possuíam carro. Então, ora eu estava

andando de carona com os colegas de carro, ora estava no ônibus indo para

Maruípe e era assim que funcionava a coisa.

Você não chegou a almoçar no RU? JMC - Não, eu almoçava só para saber como é que era o rango lá, mas não por

necessidade.

E a comida era boa? JMC - Como todas as universidades que já tive oportunidade de ir, é comida mais

simples e do dia a dia. Comendo aquilo você não vai morrer, mas não também não é

dessas coisas fabulosas. É para quebrar um galho, você não vai morrer de fome.

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Você ouviu falar de Carlos Magno, que foi presidente do DCE em 67? JMC - Não me lembro.

Você votava na eleição do DCE? JMC- Não, não votava.

E na eleição do DA, você votava?

JMC - Do DA eu votava. O diretório acadêmico nosso a gente votava e ali, mais ou

menos, como um todo lugar, tinham sempre aqueles interessados. Tudo girava em

torno dos interessados. Meu colega de turma, Carlos Sá Pinto, acabou assumindo

como presidente do nosso diretório acadêmico acho que foi logo depois do José

Maria. Eu tive um colega anterior, que foi meu vizinho, Gildo Pinsiara que também

foi presidente. (paralisação da entrevista)

Você estava falando que um outro colega havia sido presidente do Diretório Acadêmico. JMC - Foi o Gildo Pinsiara. O Gildo Pinsiara também era um cara conservador, um

camarada muito pé no chão. Carlos Sá Pinto, depois dessa gestão, foi um dos

diretores do Country Clube de Guarapari. Quer dizer, um camarada que evoluiu no

empreendorismo. Você pode ver que não tinha tipo querer fazer a revolução, nada

disso.

Mas você fala que havia o pessoal de direita e de esquerda na faculdade. Quem seria de esquerda? Quem você lembra que era de esquerda? JMC - Eu me lembro claro. Dentro de uma linha ideológica que eles estavam,

acabaram sendo pegos. Lembro da Jussara Martins, o primo dela, filho de... Não era

primo dela, era Santos Neves esse outro....Marcelo Santos Neves. O pai dele era

advogado. Estou tentando lembrar o nome dele, não sei se era João dos Santos

Neves248, alguma coisa assim. Hoje ele é um brilhante engenheiro da Universidade

Federal do Rio de Janeiro, se não me engano. A Jussara Martins é professora da

linha da psicologia.

248 O pai do engenheiro Marcelo Santos Neves era o advogado José Santos Neves, nome influente no Estado na década de 1960.

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Ela é professora aposentada da Pedagogia, se aposentou recentemente. JMC - Ela está aposentada? Eram pessoas de que me lembro, fiz cursinho com

eles.

Como era Jussara? Era muito radical? JMC - Não, não era questão de muito radical, mas de pensamento firme. Ela sempre

foi uma pessoa que tinha opinião dela e que expressava muito bem essa opinião

dela, mas sempre foi respeitadora da diferença. Sem dúvida nenhuma, por ser

mulher, possivelmente ela deve ter sofrido muito. A gente ficava penalizado com

aquele tipo de coisa, porque tratava o negócio com uma severidade, conseguia se

enxergar fantasma onde nós também não víamos. Não se entende esses assuntos

na profundidade, na necessidade de se fazer determinadas, vou chamar assim,

ações ou coisas bastante repressoras como naquela época se levava. Era muita

dureza. No próprio exército tinha como tem até hoje, pessoas dos dois lados. Então,

qualquer instituição ela tem todas as camadas sociais ali dentro. A sociologia

também está dentro das instituições. Eu tive durante muito tempo como chefe, um

coronel do exército que era engenheiro, foi reformado na marra, porque ele não

concordava com determinadas atitudes. Ele foi considerado como uma pessoa de

esquerda. Hoje, quando você não concorda com alguma coisa, taxam logo de

esquerda. É difícil isso, porque em se tratando de um país, não pode uma pessoa

decidir por todos, mesmo que esteja delegado através do voto. "Você vai ser o

presidente". O presidente tinha que ter uma conduta de um síndico. É a decisão de

uma assembleia que faz com que o síndico se movimente e não ele querer se

movimentar para fazer as coisas que a assembleia não decidiu. E o nosso governo é

tão distorcido, que se governa o país por medida provisória. Eu não estou

acompanhando mais par-e-passo essas coisas, mas acredito que estamos na casa

de mil medidas provisórias que não foram votadas. Olha essa história. Então nós

somos movidos por um grupo e quem tem que analisar essas coisas ou acabar com

isso, não quer fazer nada, que é exatamente o nosso Congresso, a Câmara de

Deputados e o Senado. Só se movimentam quando tem uma comoção popular. O

exemplo magnífico de mau exemplo é o próprio mensalão. Negar que não existiu

isso, é melhor a gente ficar quieto, porque quando a pessoa não quer ser

convencido, não tem jeito. É melhor não tomar outras atitudes e buscar outros

caminhos, porque não dá.

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Você me falou que tinha uma liderança da sua turma, como era essa sua liderança? JMC - Uma liderança, de certa forma, como falei colegiada. Imagine você estar na

frente de 135 ou 80 colegas e buscar a compreensão do grupo. É óbvio que, posso

ser honesto o suficiente para dizer, que nunca consegui a unanimidade, mas, de

certa forma, sempre consegui que o grupo caminhasse junto. Por quê? Porque os

principais líderes faziam o convencimento daqueles poucos que ainda não tivessem

aderido a uma ideia. "Poxa, você não está querendo participar de um negócio em

que a maioria já está do outro lado. Então vem junto para você não ficar

desgarrado". Eu me lembro muito da história de uma garota. Ela morava numa

região onde havia uma gangue. Digamos que é aquela pergunta técnica: "por que

você está andando com esses caras? Os caras são uns marginais danados". "É

melhor eu me juntar com eles e me preservar com eles, porque eles é que matam as

pessoas. Se eu estiver fora, corro um risco maior". Levando isso para outra área,

nós estamos vendo isso em todas as áreas, inclusive na política. Você pode ver que

determinadas linhas, eles buscam estar se juntando com determinada coisa para

não morrer. O próprio Estado do Espírito Santo é vítima disso. Por que ficar ligado

com o governo anterior, achando que vinha alguma coisa para o Espírito Santo?

Está aí o exemplo: o aeroporto que não veio a dragagem do nosso porto que

também não veio. Tudo na esperança em Brasília. "Ah não, eles são amiguinhos

nossos". Amigo nada. Para mostrar que não tem amigo mesmo, o mais recente foi

aquela tentativa de levar o Jurong para fora daqui. Então nós não temos que estar

prestando a atenção. Aliás, aproveitava-se para tirar foto de lado e ganhar o apoio

político. Agora vamos falar da linha do Clinton. A política existe para dividir mesmo.

A linha de raciocínio político é da divisão. Eu sou desse grupo, aquele grupo é de lá.

Todo mundo entende que a divisão não existe mais, nós temos que está em

cooperação. E essa filosofia eu já fazia sem esse arcabouço teórico dentro da minha

turma. Nós tínhamos que cooperar e, juntos, nós íamos vencer o curso de

engenharia para que ninguém ficasse para trás e conseguíssemos formar e

continuar trabalhando. É uma cooperação que hoje é fundamental. Nós não

conseguimos ver isso na nossa unidade federativa.

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A última pergunta. Quais as lições que você considera mais importantes desse período em que você ficou na universidade? JMC - Uma delas, sempre usei um ditado, em que fui agregando os meus

conhecimentos: "a gente tem que levar a vida com visão e sangue frio". Não

podemos nos emocionar, a gente tem analisar profundamente aquilo em que

estamos entrando. A medida que fui me transformando num profissional, comecei a

enxergar que a vida é fácil de viver, a gente mesmo é que se complica. Olhando

mais à frente, como nos treinamentos, a vida se resume ao seguinte: as pessoas

não prestam atenção por ela. Ora, se eu não presto em mim, se nós estamos aqui,

quando falo estamos aqui, somos seres vivos, a única pessoa que tenho que

conhecer profundamente sou em mesmo. Eu não tenho em ficar me preocupando

em quem é Caetano. E o mundo se preocupa mais com o outro do que consigo

próprio. Então, quando conheço a mim mesmo, eu tenho maiores chances de

conduzir para onde quero realmente chegar. Dentro dessa linha de raciocínio, eu

diria o seguinte, para resumir tudo, a gente tem que racionar o seguinte: nós não

somos aquilo que achamos que nós somos. Nós, somos aquilo que os outros dizem

que nós somos. Então não adianta ficar com firula, de eu dizer para você, que eu

sou bonzinho, sou isso ou aquilo, quando lá fora dizem, aquele camarada não é

nada disso. É essa questão que as pessoas têm que pensar. Lula acha que é um

santo. Mas ele já ouviu alguém falando dele? Dona Dilma agora disse que não

disse. Mas ela disse. E como é que explica a situação da fala dela? Ela foi clara, que

ela não ia mexer no país em crescimento, se preocupar com a inflação. Ela falou

isso. Agora quer dizer que não falou. Bom, tomara que ela faça exatamente o que

ela não falou e cumpra a regra de segurar mesmo o rabo da inflação, porque nós

sabemos o que é isso, pelo menos eu sei. E vou mais longe, com a inflação, quem

sofre é o mais necessitado.

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ANEXO V

Carta de princípios aprovada no XIII Congresso da UEE-ES

AOS ESTUDANTES E AO POVO

A UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES DO ESPÍRITO SANTO, na

realização do XIII CONGRESSO ESTADUAL, ante a atual situação do país, tão bem

caracterizada por um governo ditatorial e entreguista, esclarece aos estudantes que:

1- A Declaração dos Direitos do Homem vem sendo sistematicamente

violentada, caindo por terra a liberdade do pensamento, de livre associação e o

direito de greve;

2- A política econômico-financeiro do país está subjugada a grupos

estrangeiros, orientada pelo Fundo Monetário Internacional, como por exemplo

citamos:

- acordo de investimentos;

- política vergonhosa de minérios;

- tentativa de internacionalização da Amazônia;

- reforma tributária ditada pelo imperialismo;

-política de crédito exterminando a indústria nacional em benefício de grupos

estrangeiros

-a vergonhosa medida - já iniciada - do controle da natalidade;

3- A dissolução dos partidos veio beneficiar a ditadura, que assim controla

mais facilmente os dois únicos partidos criados por ela;

4- É total a subordinação da nossa política a Departamento de Estado Norte-

Americano, haja vista o nosso compromisso com a agressividade norte-americana, e

exemplo das invasões do Congo e de São Domingos, guerra do Vietnã e apoio ao

ditador Salazar;

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5- A preocupação do governo ditatorial em institucionalizar a coerção no meio

estudantil, criando a Lei Suplicy que deforma frontalmente as entidades e que ainda

cria órgãos contra a vontade manifesta dos estudantes, com características de

entidades estáticas, de funcionamento limitado e sem ligações com as bases

estudantis, numa íntima dependência do governo;

6- A taxa de anuidade corresponde ao intuito de privatizar a Universidade e

torna-la cada vez mais frequentada somente pelos elementos provindos das classes

sociais abastadas;

7- A "reforma universitária" no governo se limita a organizar os diversos

cursos em institutos centrais, mantendo a cátedra vitalícia, cerceando as atividades

estudantis, diminuindo enfim as possibilidades de ingresso do povo ao seu meio;

8- O Acordo MEC-USAID, guardado a sete chaves, estende a intervenção

estrangeira desde a escolha dos currículos ao aproveitamento dos técnicos num

tempo futuro.

Diante de tais fatos, a UNIÀO ESTADUAL DOS ESTUDANTES DO

ESPÍRITO SANTO, repudiando a Lei Suplicy e os órgãos criados pelo governo,

repudiando as medidas ditatoriais e antidemocráticas dirigidas contra o povo e os

interesses nacionais, concita os estudantes, operários, camponeses, intelectuais e o

clero, a se unirem na luta pela autodeterminação dos povos pelo estabelecimento de

condições mais humanas de vida numa democracia em que haja igualdade de

oportunidade para todos.

Vitória, 13 de novembro de 1966

XIII CONGRESSO ESTADUAL DOS ESTUDANTES

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