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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E NATURAIS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
ALEXANDRE CAETANO
Movimento Estudantil no Espírito Santo 1964/1968:
da ditadura militar à reestruturação da Ufes
Vitória - ES
2013
ALEXANDRE CAETANO
Movimento Estudantil no Espírito Santo 1964/1968:
da luta contra a ditadura à reestruturação da Ufes
Monografia apresentada como requisito para a conclusão do Curso de Graduação de História da Universidade Federal do Espírito Santo, sob a orientação do Professor Doutor André Ricardo Valle Pereira.
VITÓRIA 2013
1
Sumário Introdução ............................................................................................................................................... 4
PRIMEIRA PARTE – A LUTA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL CAPIXABA ................................................... 7
1. O golpe militar, a reestruturação do ME capixaba e a conjuntura local ......................................... 7
2 – A esquerda e a disputa pelo DCE da Ufes ................................................................................... 11
3 - A Ufes como laboratório da reforma universitária da ditadura .................................................. 13
3.1 – O início da discussão e a aprovação do projeto ................................................................... 13
4- As mobilizações estudantis no Espírito Santo ................................................................................... 31
4.1 - Antecedentes ............................................................................................................................ 31
4.2 – A mobilização do Restaurante Universitário ........................................................................ 33
4.3 – As manifestações de 1968 .................................................................................................... 37
4.3 – A queda do Congresso de Ibiúna e a desarticulação do ME capixaba ................................. 40
4.3 – A esquerda no ME capixaba ................................................................................................. 44
SEGUNDA PARTE – A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA .............................................................................. 51
1 - Literatura sobre o tema ................................................................................................................... 51
1.1 – O ME e o estudante enquanto categoria social ....................................................................... 51
1.2 - A esquerda e a leitura da realidade brasileira ......................................................................... 53
1.3 - Adam Przeworski, a definição de classe média e o individualismo metodológico ................... 54
1.4 – O ME em estados periféricos ................................................................................................... 62
2 - A Universidade, os estudantes e a classe média no período 1964-1968 ......................................... 63
3 – A Esquerda e a análise da realidade brasileira - 1964-1968 ........................................................... 68
5. O debate teórico ............................................................................................................................... 71
TERCEIRA PARTE – A ANÁLISE DE DUAS ENTREVISTAS ......................................................................... 75
1. Análise de entrevistas através do método da História Oral .......................................................... 75
1.1a - A trajetória de Antônio Caldas Brito ................................................................................... 76
1.1b - Tipo de memória ................................................................................................................. 80
1.1c - Temas ....................................................................................... Erro! Indicador não definido.
1.2.a– Perfil de José Maria Cola .................................................................................................... 89
1.2.b – Tipo de memória .................................................................... Erro! Indicador não definido.
1.2.c - Temas ...................................................................................... Erro! Indicador não definido.
Conclusão .............................................................................................................................................. 95
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................................. 98
ANEXO I ............................................................................................................................................... 102
ANEXO II .............................................................................................................................................. 119
2
ANEXO III ............................................................................................................................................. 146
ANEXO IV ............................................................................................................................................. 149
ANEXO V .............................................................................................................................................. 163
3
Introdução O objetivo desta monografia é tratar da configuração e dos eventos que marcaram o
Movimento Estudantil (ME) no Espírito Santo no período de 1964 a 1968, fase
conturbada da história política do país, também caracterizada por profundas
transformações econômicas e sociais, tanto em nível nacional como estadual.
Pretendemos, além resgatar vestígios da dinâmica e da organização estudantil
naquele período, tentar determinar até que ponto o movimento, num Estado
periférico como o Espírito Santo, pode ter sido caudatário do ME nacional, ignorando
ou subestimando questões específicas que marcavam a conjuntura regional.
Na década de 1960, o Espírito Santo sofreu um duro golpe em sua estrutura
econômica, em virtude da política do Governo Federal de erradicação dos cafezais,
com profundas conseqüências sociais e econômicas para o Estado. Na área do
ensino superior, a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) passou por uma
reestruturação acadêmica e administrativa afinada com os princípios da Reforma
Universitária pretendida pela ditadura militar, ao mesmo tempo em que os
estudantes se mobilizavam contra os acordos celebrados pelo governo brasileiro,
através do Ministério da Educação e Cultura (MEC), com a agência norte-americana
United States Agency International Developmet (USAID), que se tornaram
conhecidos pela como acordos MEC-USAID1.
Pretendemos estabelecer até que ponto a reforma acadêmica da Ufes não passou
ao largo do ME local em função de sua ligação com a prática e as bandeiras
defendidas pelo movimento nacional e, mais especificamente, pelas correntes de
esquerda que atuavam em seu interior. Sabemos que a reestruturação por que
passou a Ufes no período analisado, alcançou a própria configuração física da
Universidade, que passou de uma espécie de federação de faculdades espalhados
pela Capital, para uma única instituição, dividida em Centros localizados em dois
campi, em Goiabeiras e Maruípe.
Da mesma forma nos interessa saber até que ponto a rebelião estudantil naquele
período, em especial no ano de 1968, com a realização de grandes manifestações e
1 De acordo com Luiz Antônio Cunha e Moacir de Góes (O Golpe da Educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 26), os Acordos MEC-USAID cobriram todo o espectro da educação nacional, isso é, o ensino primário, médio e superior, a articulação entre os diversos níveis, o treinamento de professores e a produção e veiculação de livros didáticos. Entre 1964 e 1968 foram firmados 12 acordos..
4
confrontos de rua, não expressou a insatisfação com o regime vindo muito mais da
classe média do que de outros setores sociais, que acabaram não se mobilizando.
Afinal, é evidente que uma insatisfação generalizada, que colocasse em questão a
ditadura, poderia muito bem ter concretizado o desejo da esquerda brasileira de
abertura de uma crise revolucionária, o que não aconteceu. Muito pelo contrário, o
ano de 1968 terminaria com o recrudescimento do regime de exceção, através da
decretação, no dia 13 de dezembro daquele ano, do Ato Institucional nº 5 (AI-5).
Temos o particular interesse em analisar, se a ampla reação dos estudantes contra
a ditadura naquela época, não refletiu mais os interesses e demandas da classe
média, aos quais os estudantes universitários daquela época estavam ligados
enquanto categoria social, alimentando o ME enquanto movimento social de
resistência ao regime e, posteriormente, a própria generalização da ação dos grupos
que lançaram a luta armada no Brasil, ao quais os jovens universitários constituiriam
o principal contingente. O último desafio é tentar estabelecer até que ponto existiu
uma identidade entre a vanguarda e o conjunto dos estudantes daquele período.
Pretendemos trazer para o âmbito do Espírito Santo uma indagação feita por João
Roberto Martins Filho, no livro Movimento estudantil e ditadura: 1964-1968,2 para
o ME no país: como se deu a participação do ME no processo político de 1964-
1968? Em nossa perspectiva de estudo, baseados na visão de Martins Filho e
Marialice Foracchi3, procuramos nos despir de qualquer tentação em dar ao
Movimento Estudantil o caráter épico que ele costuma receber em representações
construídas por seus atores e mesmo em muitos dos estudos e pesquisas dedicados
ao ME do período que analisamos. Para Martins Filho4 a “mitologia estudantil” é
resultado de uma reprodução ilusória localizada na própria autoimagem elaborada
pelas lideranças universitárias.
Baseado no conceito de categoria social de Nicos Poulantzas5, Martins Filho
apresenta os estudantes como compondo uma categoria social inserida na classe
média, o que faz com que sua situação de classe se torne um fator fundamental na
definição do caráter social de sua participação.
2 MARTINS FILHO, João. Movimento estudantil e ditadura militar: 1964-1968. Campinas: Papirus, 1987. 3 FORRACHI, Marialice. O estudante e a transformação da sociedade brasileira. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977. 4 MARTINS FILHO, op. cit., p. 15. 5 Ibid., p.20
5
Para a realização deste trabalho, lançamos mão dos métodos da história oral, para
entrevistar diversas lideranças do movimento estudantil no período analisado.
Também pesquisamos jornais da época junto ao Arquivo Público Estadual (APE) e o
Arquivo Público do Município de Vitória. Nesse aspecto, enfrentamos um problema,
já que a única coleção completa dos matutinos que existiram naquele período no
Espírito Santo é a do jornal A Gazeta. Existem poucos e escassos exemplares do
jornal O Diário, que realizava uma cobertura maior sobre o Movimento Estudantil,
especialmente em 1968, até porque alguns militantes estudantis trabalhavam
naquela publicação.
Também realizamos junto à Diretoria de Apoio aos Órgãos dos Colegiados
Superiores (Daocs) da Ufes, uma pesquisa dos livros de atas de reuniões do
Conselho Universitário da instituição, bem como das decisões e resoluções
emanadas daquele órgão no período de 1963 a 1969.
Outra fonte importante foi livro do professor Ivantir Borgo, já falecido, Ufes: 40 anos6,
apesar de a obra ser totalmente baseado na leitura fria, diríamos metódica, de
documentos produzidos pela instituição. Por último, conseguimos cópias de algumas
poucas publicações das entidades estudantis da época e a ata do último congresso
da União Estadual dos Estudantes do Espírito Santo (UEE-ES), realizado em
outubro/novembro de 1966.
O cruzamento dessas diversas fontes no permitiu um quadro mais amplo de como
se deu a articulação da participação dos estudantes capixabas no político de 1964-
1968, especialmente no curso das transformações e da própria reestruturação da
Ufes. Evidentemente, não temos a pretensão de dar todas as respostas para as
questões que lançamos, mas pretendemos ao menos abrir o caminho para novas
pesquisas.
Nosso trabalho foi dividido basicamente em três partes. Na primeira parte
pretendemos estabelecer um panorama dos principais eventos que marcaram o
período assinalando suas especificidades e articulações. Dedicamos a segunda
parte à discussão sobre a fundamentação teórica do nosso trabalho. Finalmente, na
terceira, utilizando os métodos da história oral, analisamos a entrevistas de dois ex-
estudantes da Ufes que estudaram na Ufes naquele período. Um deles, militante do
6 BORGO, Ivantir A. UFES 40 anos de história. Vitória: UFES/ SPDC, 1995.
6
ME local, o outro, não era um ativista e nem acompanhava as ações do movimento.
Mas também não se enquadra no perfil do aluno “alienado”.
PRIMEIRA PARTE – A LUTA DO MOVIMENTO ESTUDANTIL CAPIXABA 1. O golpe militar, a conjuntura local e a reestruturação do ME capixaba
O ME foi o primeiro dos movimentos sociais e populares do país a superar a
profunda desestruturação provocada pelo golpe civil-militar de 1º de abril de 1964,
que desencadeou um processo de perseguições, prisões, inquéritos policiais
militares (IPM´s), cassações de mandatos parlamentares, intervenções em
sindicatos e fechamento de entidades populares. Mesmo com a forte repressão,
ainda em 1964, poucos meses depois, a União Nacional dos Estudantes (UNE) e
boa parte das entidades estudantis já haviam se reestruturado e começaram a
organizar a resistência à nova situação criada, que mergulharia o país em 21 anos
de regime de exceção, violência e arbítrio.
Nos próximos quatro anos, entre 1964 e 1968, até a decretação do AI-5, o ME se
constituiria na linha de frente da resistência dos movimentos populares contra a
ditadura militar no Brasil. No Espírito Santo não seria diferente. Depois de ter sua
sede invadida, a diretoria da UEE comandada pelo estudante de Odontologia Jaime
Lanna Marinho, preso após o golpe, foi afastada por uma intervenção decretada pelo
Conselho da entidade. Em uma nota oficial publicada no jornal A Gazeta, assinada
por representantes de sete Diretórios Acadêmicos, uma Junta Governativa foi
nomeada para dirigir a entidade, presidida pelo então presidente do DA da
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Fafi), Hégner Araújo7.
Três meses depois, a União Estadual dos Estudantes (UEE) realizou eleições para
escolher uma nova diretoria. Duas chapas participaram da disputa, uma com o
sugestivo nome de Primeiro de Abril, presidida pelo estudante de Direito José Carlos
Nascif; a outra de esquerda, encabeçada pelo estudante de Medicina José Monteiro
Netto, que venceu o pleito com 415 votos contra 338 votos dos oponentes de direita.
A chapa de Nascif ganhou apenas nas faculdades de Direito, Engenharia e na
Escola de Música8, perdendo nas outras seis.
7 NOTA oficial. A Gazeta. Vitória, pg. 03, 8 de abr. de 1964. 8 MONTEIRO ganha por 39 a 18 de José Nascif: UEE. Esquema 68. Vitória, pg. 1, jun. de 1964.
7
O pano de fundo em que se desenvolveram as mobilizações estudantis, no caso do
Espírito Santo, foram as transformações que marcaram o Estado nos anos 1960. Até
o início da década, a estrutura econômica do Espírito Santo era dominada pela
monocultura do café em pequenas propriedades. A maioria da população – cerca de
70% - vivia predominantemente na área rural. A crise da produção cafeeira no país,
que determinou a decisão do Governo Federal de erradicar os cafezais capixabas,
então considerados de baixa produtividade, teria conseqüências dramáticas para a
economia e a sociedade capixabas naquele período.
Apesar da importante atividade da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), que
escoava a produção de minério de ferro pelo Porto de Vitória, a maior parte das
atividades de industrialização e comercialização existentes no Estado também
estavam ligadas à produção cafeeira e não escaparam aos efeitos da crise. Desde
o governo de Jones dos Santos Neves (1951-1955) existiam iniciativas que visavam
inserir o Espírito Santo no processo de modernização industrial, mas elas só
produziriam efeitos mais concretos no decorrer da década de 1970, com a
implantação dos chamados “Grandes Projetos” como a Samarco, a Aracruz Celulose
e a Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST).
Uma importante iniciativa para o desenvolvimento econômico do Estado naquele
período seria a inauguração pela CVRD, em 1966, do Porto de Tubarão e,
posteriormente, em 1969, da primeira usina de pelotização da empresa. No entanto,
apenas no final da década de 1960, se concretizaria a criação de mecanismos que
pudessem tornar realidade o sonho das elites dirigentes do Estado de
industrialização, como o Fundo de Recuperação Econômica do Espírito Santo
(Funres) e o Fundo de Desenvolvimento das Atividades Portuárias (Fundap), que
teriam grande importância nesse processo de transformação da base econômica do
Espírito Santo.
As mudanças econômicas ocorridas naquele período também resultariam em
transformações no perfil urbano da Grande Vitória. A crise da produção cafeeira
desencadeou um amplo fluxo populacional em direção à Grande Vitória, cujos
municípios não tinham infraestrutura para abrigar esse contingente de pessoas, o
que resultou na metropolização e no grande adensamento populacional da região
formada pelos municípios de Vitória, Vila Velha, Serra e Cariacica, com a
consequente criação de dezenas de novos bairros e a formação de grandes bolsões
de miséria.
8
No início da década de 1960, Vitória era uma pacata capital com pouco mais de 83
mil habitantes9. Entre os municípios que compõe a Grande Vitória, cuja população
total era de aproximadamente 210 mil habitantes, existiam muitos espaços
geográficos e populacionais que viriam a ser preenchidos no decorrer dos anos
seguintes.
Apesar de uma certa tradição de organização em algumas categorias, como
ferroviários e trabalhadores da área portuária, inclusive com a existência de
organismos de articulação sindical e de movimentos populares, como o Movimento
Intersindical Anti-arrocho (MIA), o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o
Conselho Sindical e a Frente de Mobilização Social (FMP), no início da década de
1960 o movimento sindical e popular no Espírito Santo não era tão forte e articulado
como de Estados do país que passavam por um processo de industrialização e
urbanização mais intensos.
No caso do ensino superior do Espírito Santo, se o número de estudantes
universitários no país em relação ao país era pequeno, o que dizer de um Estado
que possuía uma população predominantemente rural e nenhum grande centro
urbano no início da década de 1960? De acordo com o estudo elaborado pela
Comissão de Planejamento da Ufes, entre 1962 e 1966, o número de inscritos no
vestibular da Ufes passou de 793 para 1.541 candidatos, um crescimento de
94,32%. O crescimento das vagas na Universidade foi bem menor, de 505 em 1962
para 670 em 1966, um total de apenas 32,67% e no qual está incluída a criação de
novos cursos10.
De 1.238 alunos matriculados em 1962, a Ufes passou para 2,071 matrículas em
1966, um crescimento de 67,28%11. De acordo com o mesmo estudo, para uma
população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de
1.343 milhão de habitantes (1964), o Espírito Santo tinha um índice de 1,18
estudantes por cada 1 mil habitantes, menor que a média nacional, que era de 1,4
para cada 1 mil estudantes12.
9 CASTIGLIONI, Aurélia H; BRASIL, Guntemberg H. Dinâmica populacional de Vitória. Vitória, s/d,; Disponível em: <http://www.vitoria.es.gov.br/arquivos/20110511_agendavix_populacao_resum.pdf.>. Acesso em 01 ago. 2013. 10 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO. CONSELHO UNIVERSITARIO. Plano de reestruturação da Universidade Federal do Espirito Santo, aprovado pelo Conselho Universitário, através da resolução n. 11, de 17 de julho de 1967.Vitória, s.d., p. 8 11 É preciso levar em conta que o curso de Medicina foi criado exatamente em 1962, além de outros cursos no âmbito da Fafi. 12 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPIRITO SANTO. CONSELHO UNIVERSITARIO. Op. Cit., p. 13.
9
A Universidade do Espírito Santo (UES), criada em 1954 pelo Governo do Estado,
seria federalizada em 1961, através da Lei Federal nº 3.868, de 30 de janeiro de
1961. De acordo com a mesma, constituiriam a então UES, mais tarde transformada
em Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) 13, as faculdades de Direito,
Ciências Econômicas, Belas Artes, Odontologia, Medicina, Educação Física, de
Filosofia, Ciências e Letras (Fafi) e a Escola Politécnica.
Com relação ao ME local, a UEE foi criada em 1951 por estudantes ligados a
posições conservadoras14. A hegemonia conservadora, conforme depoimento de
Jaime Lanna Marinho15, seria mantida até 1962, quando foi eleita uma diretoria
liderada pelo então estudante de Direito Dílton Lírio Neto16. De acordo com ele, foi o
momento em que se estruturaram junto ao ME no Estado, a Ação Popular (AP),
organização formada pela esquerda católica, a partir da Juventude Universitária
Católica (JUC), mais tarde evoluiria em direção ao marxismo e ao maoísmo, e o
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Até então era tudo tranquilo. O Espírito Santo era ausente das grandes decisões do movimento estudantil. A partir de 62 em diante, o Espírito Santo começou a ser percebido em nível nacional. Tanto que, em 62, a própria UNE realizou uma reunião do seu conselho aqui. Foi uma revolução em termos de um Estado pequeno, sem expressão nacional, completamente sem voz ativa a nível nacional. Isso aconteceu porque a UNE sentiu que a diretoria da UEE daquela época tinha as mesmas ideias 17.
Depois do golpe de 1964, o movimento sindical capixaba ficou totalmente
destroçado. As entidades foram ocupadas pelos chamados “pelegos”, dirigentes
conservadores instalados nas diretorias dos sindicatos com o aval do Ministério do
Trabalho do regime militar. Como em boa parte do país, o movimento sindical
capixaba só voltaria a recuperar alguma influência no final da década de 1970, com
o surgimento das oposições sindicais e ascensão de dirigentes comprometidos com
uma nova visão de sindicalismo, mais sintonizado com a luta dos trabalhadores.
Também no Espírito Santo, como no resto do Brasil, caberia ao ME local capitalizar
o movimento de resistência ao regime.
13 Através da Lei nº 4.759, de 22 de agosto de 1965, a ditadura determinou que todas as Universidades mantidas pela União e vinculadas ao MEC sediadas na capitais dos Estados, deveriam ser qualificadas de Federais e ter a denominação do respectivo Estado. 14 O primeiro presidente da UEE foi Setembrino Pelissari, mais tarde prefeito biônico de Vitória por dois mandatos. Também fazia parte da diretoria, o ex-governador Elcio Alvares (DEM), atualmente exercendo mandato de deputado estadual. 15Jaime Lanna Marinho, presidente da UEE no período 1963/1964, entrevista em 10/11/1995. 16 Dilton Lírio Netto viria a ser mais tarde deputado estadual por três mandatos e presidente da Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) – 1987-1989. 17 Jaime Lanna Marinho, entrevista em 10/11/1995.
10
E, de fato, pode-se afirmar que o ME capixaba esteve muito ativo durante o período
compreendido entre 1964 e 1968. Embora enfraquecida pelo corte de verbas oficiais
e as condições de ilegalidade, que se agravaram com fechamento definitivo de sua
sede pela Delegacia de Ordem Pública e Social (Dops), em 1967, a UEE continuou
existindo até 1968. Seu último congresso foi realizado em 1966, quando foi eleito
presidente o estudante de Medicina Antônio Carlos Dall´Orto.
2 – A esquerda e a disputa pelo DCE da Ufes
O Diretório Central dos Estudantes (DCE) fazia parte da estrutura oficial da Ufes e
foi formado por estudantes de posições conservadoras em 196318. Seus estatutos
foram apresentados na reunião inaugural do Conselho Universitário da UES para
que fossem aprovados pelo colegiado19. Além da ligação orgânica com a estrutura
administrativa, o DCE não possuía maior representatividade e adotava uma linha
mais recreativa e assistencialista. Entre as atividades organizadas pela entidade
estava o concurso de Rainha Universitária, a Festa Junina Universitária e a Páscoa
Universitária. Não era pois uma referência para a mobilização dos estudantes. O DCE foi mantido sob controle de estudantes ligados à posições de direita até
1967, quando a esquerda conseguiu conquistá-la, assim mesmo através de uma
eleição indireta, numa chapa presidida pelo estudante de Direito, Carlos Magno
Gonzaga Cardoso, considerado de posições moderadas. O DCE havia ganhado
importância para esquerda já que, além de funcionar na legalidade, a entidade
possuía um patrimônio formado por duas salas localizadas no Edifício Sarkis, no
Centro de Vitória, e ainda recebia verbas da universidade. O fechamento definitivo
da sede da UEE20, localizada na Rua Washington Luís, colocada na ilegalidade,
seria um outro fator importante para essa tomada de decisão, já que na Ufes
estavam matriculados mais de 90% dos universitários do capixabas.
O depoimento de Perly Cipriano, então estudante de Odontologia e militante do PCB
ratifica essa posição da esquerda universitária. Como o tempo, vimos que a visão do DCE como instrumento da reitoria não era correta, porque enquanto aqui no Estado, nós deixávamos a entidade
18 O primeiro presidente do DCE foi o estudante Wallace Bresciani, que presidiria a entidade até novembro de 1964, quando se afastou da entidade e foi substituído por sua vice, Rita de Cássia Rezende, que anos mais tarde se tornou professora do curso de Pedagogia da Ufes. 19 O Conselho Universitário da UES federalizada foi instalado na sessão de 16 de abril de 1963. 2020 Seguindo o que previa o Decreto-Lei 228, de 28 de fevereiro de 1967, o patrimônio da UEE foi incorporado à Ufes.
11
meio de lado, nas mãos da direita, em outros Estados quase todos os DCE´s tinham um grande papel na mobilização dos estudantes, como era o caso da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), onde o DCE foi invadido pela polícia. Nós resolvemos concorrer na eleição de 1966 e participamos ativamente21
Mas mesmo contando na sua composição com dois ex-presidentes da UEE, Dilton
Lírio Neto e José Monteiro de Souza Netto, a esquerda fracassou em sua primeira
tentativa de ganhar o DCE. Nas eleições realizadas de forma direta, em maio
de1966, a chapa presidida pelo estudante de Engenharia Mário Petrochi, foi
fragorosamente derrotada pela da direita, liderada pelo estudante de Odontologia
Jorge Pires Encarnação.
Curiosamente, quem fazia parte da chapa de Encarnação, como diretor de Esportes,
era o futuro governador pelo Partido dos Trabalhadores (PT) – 1995-1998 - e então
estudante de Medicina Vitor Buaiz22. No ano anterior, Pires Encarnação havia
concorrido e perdido a eleição para o Departamento Estadual dos Estudantes (DEE) 23.
Com exceção de 1968, quando a luta em torno do preço das refeições do recém-
inaugurado Restaurante Universitário (RU) fez surgir a figura carismática do
estudante de Medicina César Ronald Pereira Gomes, que depois de se destacar
naquela mobilização, acabaria eleito presidente do DCE, os vestígios existentes não
parecem confirmar a imagem de um ME de massas e permanentemente mobilizado,
conforme dão a entender os depoimentos de boa parte dos militantes estudantis
daquela época.
E não parece ser só porque não havia um significativo número de estudantes
universitários no Espírito Santo. Naquela época, além da Ufes, existiam em Vitória
oferecendo cursos de nível superior a Faculdade de Serviço Social, mantida pelo
Senac, e a Faculdade de Teologia, ligada à Igreja Católica.
Voltando ao DEE, na eleição para a diretoria da entidade fantoche da ditadura, em
agosto de 1965, cuja participação era obrigatória para todos os estudantes
universitários, mesmo com o significativo número de votos nulos e em branco (687
21 Perly Cipriano, entrevista realizada em 22/08//1995. 22 Vitor Buaiz já havia feito parte de outra diretoria do DCE, de orientação também conservadora, na gestão 1963/1965, tendo representado a entidade numa sessão solene realizada pelo Conselho Universitário para homenagear o ministro da Saúde da ditadura, em 15/03/1965, conforme mostram as atas do colegiado. 23 O Departamento Nacional dos Estudantes (DNE) e os Departamentos Estaduais dos Estudantes (DEE´s) foram entidades criadas pela ditadura militar através da Lei 4.464/64, conhecida como Lei Suplicy de Lacerda, em referência ao Ministro da Educação do então marechal-presidente Castelo Branco, Flávio Suplicy de Lacerda, com o objetivo de tentar esvaziar a UNE e as Uniões Estaduais dos Estudantes (UEE´s). A tentativa fracassou e o único DEE que viria a se consolidar foi o do Rio Grande do Sul, que funcionou até 1979.
12
votos), 1.006 estudantes votaram nas duas chapas de direita que disputaram o
pleito. A chapa vencedora, liderada pelo estudante de Direito Tarcísio Sonegheti,
obteria 656 votos, contra 350 votos da chapa de Encarnação.
No mesmo mês de agosto de 1965, a direita também ganhou a eleição do Diretório
Acadêmico da Fafi24, com uma chapa liderada pelo estudante Frederico Seide, aluno
de certa idade, que inclusive já havia sido presidente da entidade anteriormente. Ele
derrotou a chapa de esquerda, cujo presidente era o então estudante Renato Viana
Soares, militante do PCB e que, mais tarde, seria presidente estadual do PSB e
candidato ao Senado Federal por duas vezes. No discurso de posse, Seide disse
que não concordava com o que chamava de “subversão”, razão para que ele
resolvesse se candidatar, mesmo sem condições de trabalho. E estamos falando de
uma faculdade que era dita como reduto da esquerda estudantil.
3 - A Ufes como laboratório da reforma universitária da ditadura
3.1 – O início da discussão e a aprovação do projeto
Apesar da grande mobilização do ME em todo Brasil contra os famigerados acordos
MEC-USAID, instrumentos que contribuíram para que ditadura militar estabelecesse
as bases para a Reforma Universitária, enfim efetivada com a edição da Lei nº
5.540, em 28 de dezembro de 1968, nos chama a atenção a falta de notícias acerca
de mobilizações estudantis concretas contra o fato da Ufes ter sido um dos
laboratórios da reforma universitária planejada pelo regime militar.
Aliás, o que nos parece é que ME local não se deu conta da dimensão do processo
de reestruturação que se desenvolvia dentro da Ufes, pois não se pode afirmar que
ela tenha sido feita de forma oculta. Publicações feitas pelas entidades estudantis e
os depoimentos de algumas de suas principais lideranças, mostram que eles tiveram
conhecimento do que se passava naquele momento. No jornal O Diário, em especial
nos anos de 1967 e 1968, artigos foram publicados sobre essa reestruturação.
É bem verdade que a discussão institucional sobre a reestruturação da Ufes
aconteceu no âmbito do Conselho Universitário e, na maior parte do período
analisado, a representação estudantil naquele órgão colegiado foi formado por
lideranças conservadoras. Mas nada impediria que as lideranças mais combativas
24 Localizada no Centro de Vitória, a Fafi reunia os cursos da área de Ciências Humanas e de licenciatura.
13
buscassem levar esse debate para o conjunto dos estudantes. As publicações a que
tivemos acesso tratam de forma apenas informativa o processo que tramitava nos
órgãos superiores da Universidade.
Na vanguarda da luta contra a ditadura, com uma avaliação da conjuntura política
nacional sobre uma crise insolúvel da ditadura militar25, os setores da esquerda local
parecem não ter sido capazes de traduzir esse discurso para a análise de situações
específicas, principalmente nos Estados periféricos, onde a mobilização era
diferente de Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Naquela época, a
representação estudantil no Conselho Universitário, de acordo com o estatuto da
Ufes, era formada pelo presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e um
representante estudantil eleito pelos estudantes.
Borgo registra que, em junho de 1966, a Ufes recebeu a visita de Rudolph P. Atcon,
técnico do USAID e autor de um célebre relatório sobre a situação do ensino
superior brasileiro, que recebeu o seu nome. Atcon foi posteriormente contratado
para elaborar um plano de reestruturação da universidade26. Através da Resolução
nº 17/67, de 24 de junho de 1966, o Conselho Universitário aprovou a criação de
uma Comissão de Planejamento, destinada a proceder a reestruturação da
Universidade, nos termos da Mensagem nº 06/66, do reitor Alaor de Queiroz Araújo,
de 21 de junho de 1966.
A senha estava dada para a contratação de Atcon. O artigo 2º da resolução
estabelecia que caberia ao reitor a designação ou contratação dos membros que
comporiam a Comissão, em número não superior a cinco pessoas, pelo período de
dois anos. Pelo artigo 3º, o reitor foi autorizado a destacar do fundo destinado à
Cidade Universitária, a importância de Cr$ 50 milhões para atender as despesas
iniciais dos estudos e planejamentos especificados na Mensagem nº 06/66, bem
como as que fossem necessárias ao seu adequado funcionamento.
A poderosa Comissão de Planejamento foi presidida pelo professor Ivan Ramos de
Medeiros (que faleceria em maio de 1967) e composta ainda por Marcello Antônio
Basílio, Stélio Dias e Manoel Ceciliano Sales de Almeida. Os dois primeiros, mais
tarde, viriam a ser secretários de Estado da Educação, o primeiro, de 1999 a 2002, o
segundo, de 1979 a 1982. Dias também seria deputado federal por dois mandatos,
25 REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense; [Brasília]: CNPq, 1990. 26 BORGO, op. cit., p. 74
14
primeiro pelo PDS e depois pelo PFL (1983 a 1991). Manoel Ceciliano de Almeida
foi reitor da Ufes de 1979 a 1982.
Atcon foi contratado pela Comissão de Planejamento para elaborar o projeto de
reestruturação, apresentado em dezembro de 196627, que serviu de base para os
estudos desenvolvidos pela Comissão. O Plano de Reestruturação Acadêmico-
Científica da Ufes, elaborado em cima da proposta do técnico do USAID, foi
entregue aos membros do Conselho Universitário na reunião realizada em 04 de
abril de 1967. O que nos chama a atenção para o “pioneirismo” da proposta da Ufes
é que, posteriormente, mesmo sem as alterações feitas pelo Conselho Universitário,
o projeto foi publicado no Rio de Janeiro e pela editora da Universidade Federal de
Santa Catarina28.
Através da Mensagem nº 04/67, de 04 de abril de 1967, o reitor Alaor de Queiroz
Araújo explicou que a nova estrutura acadêmico-científica se encontrava dentro do
espírito que norteava a política para o ensino superior preconizado pela ditadura
militar, através do Decreto-Lei nº 53, de 18 de novembro de 1966, suplementado
pelo Decreto-Lei nº 252, de 28 de fevereiro de 196729. É importante destacar que os
dois decretos-lei foram editados depois que a Comissão de Planejamento já havia
sido criada pela Ufes e Atcon apresentado a sua proposta de reestruturação da
universidade.
No final de sua mensagem, Queiroz Araújo manifesta a sua confiança de que, num
esforço conjunto, pudessem ser dadas à Ufes, as diretrizes básicas para assegurar
o seu desenvolvimento. Já a Comissão de Planejamento, através do ofício nº
111/67, de 31 de março de 1967, anexado à mensagem e lido na mesma reunião do
Conselho Universitário, explicou como foi desenvolvido o trabalho de elaboração da
nova estrutura acadêmico-científico. Seus integrantes assinalaram que o
conhecimento prévio da estrutura vigente era parte fundamental de sua missão, a
fim de que pudessem, conscientes da problemática universitária, apresentar ao reitor
e ao órgão máximo da Ufes, um plano calcado nas reais necessidades do meio em
que a Universidade estava inserida e que viesse de encontro das aspirações dos
universitários capixabas e da comunidade espírito-santense.
27 Ibid., p. 75 28 ATCON, Rudolph. Proposta para a reestruturação da Universidade Federal do Espírito Santo. Florianópolis: Imprensa Universitária da UFSC, 1967. 29 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 04 de abril de 1967.
15
Assim pensando, a Comissão de planejamento fez o levantamento estatístico de toda a Universidade desde o ano de 1962, compreendendo: demandas e oferta de ensino, inscrições nos vestibulares e matrículas nas primeiras séries, atendimento escolar e graduação, relação professor-aluno, etc. De posse desses dados, procedemos a minuciosa análise, através de estudos comparativos entre as unidades de ensino existentes, e entre a Universidade Federal do Espírito Santo e as suas coirmãs localizadas nos diversos pontos do país30.
Para conhecer os custos reais da Ufes, a Comissão de Planejamento contratou o
economista Enyldo Carvalhinho, para que ele fizesse um levantamento de todas as
despesas da Universidade desde a sua federalização, em 1961, até o dia 31 de
dezembro de 1966, permitindo estabelecer o custo médio aluno-ano por unidade do
ensino. Prosseguindo o relato, a Comissão informa que, em paralelo ao trabalho de
diagnose, encomendou ao “conhecido e renomado técnico Rudolph P. Atcon”, um
anteprojeto de estrutura pedagógica, que após aceita por ela, passou a constituir o
arcabouço do Plano. Sobre o trabalho do técnico Atcon, a Comissão de Planejamento procurou ouvir as vozes mais categorizadas desta Universidade, promovendo seminários com professores e alunos, a fim de que houvesse franco debate sobre a tese apresentada. Do minucioso estudo procedido pela Comissão e dos entendimentos havidos com o pessoal desta e de outras universidades surgiu a necessidade de alguns ajustamentos que, entretanto não alteraram as linhas mestras do anteprojeto elaborado pelo professor Atcon31.
A Comissão assegura em seu documento que questionários foram distribuídos a
estudantes e professores a respeito da problemática universitária no qual ela teria
tido a oportunidade de “sentir” o pensamento dos universitários e aquilatar, através
de dados precisos, as deficiências da estrutura universitária daquela época. A não
ser que o relato da Comissão tenha sido totalmente falso, o processo de elaboração
do plano não foi feito de forma sigilosa ou escondida, mas teria mobilizado toda a
estrutura da Universidade. No entanto, é importante assinalar, encontramos no
projeto apenas dados relacionados ao número de professores que teriam respondido
os questionários. Não há nenhuma referência aos questionários de alunos32.
No final da mesma reunião de 04 de abril de 1968, o reitor Queiroz Araújo
determinou a distribuição do Volume I do Plano de Reestruturação Acadêmico-
Científico para os integrantes do Conselho Universitário e sugeriu a formação de
uma comissão, a ser integrada por um representante de cada Comissão
30 Ibid, id. 31 Ibid. id. 32 O então estudante da Escola Politécnica, José Maria Cola, disse nunca ter ouvido falar na reforma e nem se lembra de ter preenchido nenhum questionário relacionado ao tema.
16
Permanente do colegiado e do corpo discente. No entanto, um dos representantes
discentes, o conselheiro Rodrigo Loureiro Martins, sugeriu que o projeto fosse
apreciado na reunião seguinte e que os membros da Comissão de Planejamento
estivessem presentes, quando então seria verificada a necessidade ou não de
constituição de uma comissão.
Assim, o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica seria intensamente debatido
na sessão de 10 de abril de 1967. Mas, para se ter uma ideia de como essa
discussão se desenvolveu, talvez expressando o quadro de autoritarismo que vivia o
país na época, o conselheiro Filemon Tavares disse que o plano não podia ser
rejeitado, senão em pequenos detalhes, em virtude dos imperativos legais. A
preocupação dele era saber qual seria a etapa seguinte da reforma33.
O conselheiro João Soares de Mello disse que o que fora apresentado como plano
era, no seu entendimento, no sentido estrito, um organograma da futura
Universidade, que estava consubstanciado na legislação vigente, restando ao
Conselho Universitário apenas aprová-lo. O então presidente do DCE, Jorge
Augusto Pires Encarnação, ligado a posições de direita e estudante da Faculdade de
Odontologia, fez um questionamento tipicamente corporativista, indagando como se
faria a integração entre aquela unidade e a Faculdade de Medicina, embora
dissesse que concordava com a integração entre os dois cursos para a execução de
um trabalho em prol da Ciência e do desenvolvimento das duas faculdades.
O representante estudantil também questionou os membros da Comissão de
Planejamento sobre como ficaria a representação estudantil, pois embora o plano
previsse que seria seguida a legislação em vigor, a mudança da Universidade seria
radical e as leis, portanto, segundo ele, não seriam mais válidas para a Ufes34. Além
da demonstração de preocupação com a garantia da representação estudantil na
nova estrutura, comum às posições das lideranças estudantis da direita liberal
naquele período, a manifestação de Encarnação sobre a integração da Odontologia
e Medicina, mostra também de onde vinham as maiores preocupações e
resistências às propostas previstas no plano.
Os representantes estudantis se manifestariam ainda na reunião do dia 10 de abril
de 1967, mas sem questionar os fundamentos do projeto, seu formato ou os
métodos usados para a sua elaboração. O conselheiro Rodrigo Loureiro Martins
33 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 10 de abril de 1967. 34 Ibid., id.
17
defendeu a necessidade de representação estudantil no Conselho de
Coordenadores de Curso, cuja formação estava sendo proposta no Plano de
Reestruturação. Marcello Basílio, membro da Comissão de Planejamento,
respondeu que a representação seria feita na forma da lei e que o planejamento
proposto pelo plano deveria ser acompanhado do novo diploma básico da
Universidade, o estatuto da instituição.
Uma importante colocação foi feita pelo presidente da Comissão de Planejamento,
Ivan Ramos Medeiros, que morreria semanas depois, antes da aprovação do
documento pelo Conselho Universitário, o que a nosso ver, parece comprovar
natureza original do plano elaborado na Ufes no âmbito da reforma universitária
gestada pela ditadura. Segundo ele, embora os Decretos-Lei 55/66 e 252/67
tivessem sido publicados quando o plano já estava sendo impresso, a comissão
tivera o cuidado de verificar se o mesmo estava de acordo com os dispositivos
legais, chegando a uma conclusão “afirmativa”.
O debate sobre o anteprojeto prosseguiria na sessão do dia 12 de abril de 1968 do
Conselho Universitário35, quando os membros da Comissão de Planejamento
voltaram a responder aos questionamentos dos conselheiros, dessa vez
acompanhados também do economista Enyldo Carvalhinho, que prestou assessoria
à comissão. Na sessão seguinte36, o conselheiro Ademar Martins, diretor da
Faculdade de Direito, propôs que fosse nomeado um relator para o projeto do Plano
e que fosse dado um prazo de 20 dias para o recebimento de emendas e sugestões,
devidamente justificadas, que deveriam ser entregues por escrito ao relator. A
proposta foi aprovada e o conselheiro Emílio Roberto Zanotti foi indicado para ser o
relator do Plano.
Aproximadamente três meses depois, o conselheiro Emílio Roberto Zanotti
finalmente apresentou o seu parecer para o projeto e as 22 emendas apresentadas
por diversos setores da Universidade37. O maior número de emendas veio
exatamente das Faculdades de Medicina e Odontologia e expressavam a
preocupação e resistência desses setores à integração dos dois cursos no Centro de
Ciências da Saúde (CCS) proposta por Atcon. Com a eleição de uma nova diretoria
do DCE, no final de maio, a representação estudantil havia mudado, sendo agora
35 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de abril de 1967. 36 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 14 de abril de 1967. 37 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de julho de 1967.
18
formada por Carlos Magno Gonzaga Cardoso, novo presidente da entidade, e Jorge
Pires Augusto Encarnação, agora como representante discente. Na reunião, os
conselheiros definiram que o relatório sobre o Plano só seria discutido depois que
fossem discutidos e votados os pareceres sobre as emendas.
Em seu parecer, lido durante a sessão, Zanotti conclui que: 1º) O plano proposto atende os princípios e normas fixados pelos Decretos-Lei nº 53 e 252; 2º) É perfeitamente válida a estrutura pedagógica matério-cêntrica e a departamentalização da Universidade; 3º) Os órgãos de execução do ensino e da pesquisa em: unidades universitárias – representadas pelos Centros - e em subunidades – representadas pelos Departamentos – não contrariam as normas legais; 4º) Incluir as Artes nas áreas de conhecimento humano; 5º) A competência e atribuições dos órgãos colegiados serão estabelecidas no estatuto da Universidade; 6º) Os recursos financeiros disponíveis em cada orçamento destinados a obras serão aplicados em construções nas áreas que constituem o Campus Universitário. Nas instalações das atuais unidades que não irão ser transferidas para o campus, serão executadas apenas serviços de conserto, manutenção e pequenas obras, que pela sua natureza, sejam consideradas inadiáveis; 7º) A parte do Plano referente a nomeação e forma de indicação dos Diretores de Centros, à composição dos órgãos colegiados e a modalidade de escolha de seus membros, bem como a nomeação e escolha do Coordenador Geral e Coordenadores de Carreira será apreciada pelo Egrégio Conselho Universitário quando a ele for encaminhado o Projeto de Estatuto da Universidade; 8º) Os Centros, os Departamentos e todos os detalhes do Plano, exigirão uma organização adequada, uma perfeita e clara definição de funções e responsabilidade e um regime de autoridade bem definido para que a nova estrutura seja aplicada com pleno êxito; 9º) A Estrutura Acadêmico-Científica elaborada pela Comissão de Planejamento, fundamentada na ideia de uma Universidade contemporânea, estabelecida pelo Professor Atcon, é perfeitamente aplicável à Universidade Federal do Espírito Santo, podendo, com as alterações contidas nas conclusões anteriores, ser aprovado pelo Egrégio Conselho Universitário38.
A discussão e votação das emendas começaram na sessão de 12 de julho de 1967
e se estenderam por reuniões realizadas nos dias 14 e 17 de julho de 1967. Jorge
Augusto Pires Encarnação participou de todas elas, mas o presidente do DCE,
Carlos Magno Gonzaga, não esteve na primeira. No debate e conteúdo de algumas
emendas, mais uma vez se revela a preocupação dos professores das Faculdades
de Medicina e de Odontologia com a integração das duas unidades num único
Centro. A apreciação de três emendas, provenientes das duas faculdades, provocou
uma acalorada discussão nas reuniões dos dias 14 e 17 de julho, quando elas
acabaram sendo rejeitadas, por 10 votos a seis. Em síntese, elas tratavam da
conservação das faculdades existentes na época, ao invés de integrá-las em
38 Ibid., id.
19
centros, que era um ponto chave do projeto, junto com departamentalização e a
criação do sistema de créditos.
Respondendo à apreensão dos representantes das faculdades, em seu parecer
sobre as emendas, o conselheiro Zanotti esclareceu que a implantação da nova
estrutura da universidade deveria se processar de modo gradual e progressivo, em
função dos meios propícios à sua execução. “As atuais Escolas e Faculdades serão
mantidas no período de transição, devendo, entretanto, ser integradas
gradativamente na nova estrutura à proporção que for executada a implantação” 39.
Na sessão da manhã do dia 17 de julho de 1968, ao fazer a justificativa de seu voto
contrário às emendas, o presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, disse
que votava a favor do parecer, sem qualquer desejo de apagar escolas ou diminuir a
formação profissional de quem quer que fosse sendo favorável à preservação das
peculiaridades profissionais de cada área profissional. Conhecido por suas posições
moderadas, embora no DCE estivesse à frente de uma diretoria de esquerda, o líder
estudantil afirmou que entendia que, na forma como se vinha processando a
educação superior no país, os defeitos do plano eram superados pelas vantagens,
posição que recebeu o apoio de Jorge Augusto Pires Encarnação40.
Por sua vez, o conselheiro João Luiz Horta Araújo, representante da Faculdade de
Odontologia, que havia votado a favor das emendas e contra o parecer, justificou
seu voto alegando que a extinção de escolas e faculdades propostas pelo plano feria
frontalmente a lei. Uma posição que seria negada posteriormente quando, em
dezembro de 1968, o Plano foi referendado pelo ditador-presidente da época,
Marechal Artur da Costa e Silva.
Antes da votação das três últimas emendas, ainda na sessão da manhã de 17 de
julho, Carlos Magno Gonzaga questionou o relator do Plano, se existia algum prazo
para a execução do mesmo, para que fosse possível “preparar” o meio estudantil e,
caso fosse aprovado o plano, se as faculdades teriam obrigação de se adaptar a ele.
Zanotti respondeu que havia um prazo a ser cumprido, que dependia da tramitação
e aprovação do projeto nos órgãos superiores e que a adaptação das faculdades
seria feita de modo gradual e progressivo.
Na sessão do Conselho Universitário realizada na tarde de 17 de julho de 1967, os
conselheiros aprovaram o parecer do conselheiro Emílio Zanotti favorável ao Plano
39 Ibid., id. 40 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão da manhã de 17 de julho de 1967.
20
de Reestruturação, com o voto contrário apenas do conselheiro João Luiz Horta
Aguirre. O conselheiro justificou seu voto contrário, pela não aprovação das
emendas apresentadas por sua unidade, a Faculdade de Odontologia, e para ser
coerente com o ponto de vista apresentado pela unidade. Por sua vez, o
representante da congregação da Faculdade de Medicina, Thomaz Tommasi, outra
que se mostrava reticente em relação à proposta de fusão das duas faculdade no
CCS, pediu que fosse consignado em ata, por vontade do diretor da unidade,
professor Affonso Bianco, que a mesma faria “incontinente” a implantação do Plano
de Reestruturação, tão logo ele fosse transformado em decreto. Os dois
representantes estudantis, Carlos Magno Gonzaga Cardoso e Jorge Augusto Pires
Encarnação, votaram favoravelmente ao projeto.
No geral, as emendas aprovadas eram mais cosméticas e não alteraram nada de
substancial no plano. Na mudança mais importante, os conselheiros aprovaram a
emenda do conselheiro Nelson Abel de Almeida, que propunha a supressão do
Departamento de Educação do Centro de Estudos Gerais (CEG) e acrescentou o
Centro Pedagógico (CP) à estrutura de Centros que seriam constituídos. Foi definida
a mudança do nome dado por Atcon ao Centro de Ciências da Saúde para Centro
Biomédico (CBM). O Centro de Educação Física e Esporte passou a se chamar
Centro de Educação Física e Desporto (CEFD). O Centro de Ciências Sociais, por
decisão do Conselho Universitário, recebeu o nome de Centro de Ciências Jurídicas
e Econômicas (CCJE).
Uma emenda proposta pelo professor Ademar Martins, definiu que o Centro
Agropecuário, que ainda não havia sido criado, deveria ser localizado no interior, em
cidade a ser definida após estudos prévios, na época de sua instalação41. O mais
importante é que não há nenhum sinal ou referência de uma discussão mais
profunda da parte do ME ou dos estudantes sobre o projeto. Em nenhum momento,
os representantes discentes afirmaram ter trazido propostas discutidas com os
estudantes.
3.2 – 1968: O Plano de Reestruturação retorna à Ufes A discussão sobre o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica no âmbito da
Ufes não se encerrou em 1967. As lideranças estudantis teriam mais uma
41 Já na década de 1970, o Centro Agropecuário seria instalado no município de Alegre, na região sul do Espírito Santo.
21
oportunidade de discutir com a categoria e tentar se contrapor a ele. O Conselho
Universitário voltou a apreciar o projeto no ano seguinte, pouco mais de um ano
depois de sua aprovação pelo colegiado. Na sessão de 30 de Julho de 1968, a
primeira em que participava o novo presidente do DCE, César Ronald Pereira
Gomes, militante de Esquerda ligado ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
(PCBR), o reitor Alaor de Queiroz Araújo levou ao conhecimento dos conselheiros, o
conteúdo do Parecer nº 360/68, da Câmara de Ensino Superior do Conselho Federal
de Educação (CES/CFE), que decidiu que fosse baixado em diligência o processo
relativo ao Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico e a minuta de decreto que
se encontrava anexado para sanção do Presidente da República.
Além de César Ronald, no final de maio daquele ano, havia sido eleito como
representante discente no Conselho Universitário, o estudante de Direito José
Carlos Risk, que já havia participado de duas reuniões anteriores do colegiado.
Mostrando que havia pressa na apreciação dos questionamentos e pedidos de
esclarecimentos feitos pela CES/CFE, o reitor Alaor de Queiroz Araújo encaminhou
para o Conselho, além do parecer e da minuta do decreto, a Mensagem da Reitoria
nº 04/1968 e o relatório e voto do conselheiro Emílio Roberto Zanotti, definido com
relator da matéria42. Entre outras coisas, o parecer da CES/CFE questionava o processo de fusão das
faculdades e a extinção dos mandatos dos então diretores das unidades. Também
questionou o nome do Centro de Estudos Gerais (CEG), aspectos relacionados a
existência do Conselho de Coordenadores de Carreira e a menção, no anteprojeto,
da existência de órgãos suplementares, sem que fossem mencionados quais se
pretendiam criar.
Na introdução da mensagem enviada ao Conselho, onde já respondia a todos os
pedidos de esclarecimentos feitos pelo CES/CFE, o reitor foi preciso: “Como Vossas
Excelências poderão verificar, as observações feitas pelo Conselho Federal de
Educação não afetam (grifo nosso) a estrutura do Plano encaminhado pela Ufes, o
que vem demonstrar o acerto da decisão desse Egrégio Conselho em aprovar o
referido Plano” 43.
42 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 30 de julho de 1968. 43 Ibid. Id.
22
O interessante na mensagem do reitor Alaor de Queiroz Araújo é que ele revelou,
pela primeira vez, que um conselheiro do próprio CFE, Valnir Chagas44, havia sido
convidado pela reitoria para vir à Vitória analisar o Plano de Reestruturação
Acadêmico-Científico, tendo em vista o papel decisivo dele nas medidas de
reestruturação das universidades promovidas pela ditadura. O conselheiro, a pedido
de Araújo, elaborou o esboço do decreto para servir de orientação, quando da
apreciação do mesmo pelo CFE. O objetivo seria facilitar a aprovação do plano.
Em seu parecer, o relator do processo relativo ao pedido de diligência feito pelo
órgão federal, conselheiro Emílio Roberto Zanotti, que no ano anterior, havia
também relatado o Plano, destacou que as considerações feitas pelo relator do
projeto no CES/CFE não propunham modificações na nova estrutura da Ufes, mas
apenas apontava dúvidas sobre alguns pontos, sobretudo relacionados ao
anteprojeto de decreto elaborado pelo Valnir Chagas. Por isso, o conselheiro propôs
a aprovação na íntegra da mensagem do reitor Alaor de Queiroz Araújo.
Na discussão que se estabeleceu, até porque o anteprojeto de decreto nunca havia
sido discutido no Conselho Universitário, foi aprovada por maioria a proposta do
conselheiro João Soares de Mello para que fossem suprimidos os parágrafos do
artigo 6º do anteprojeto. O parágrafo primeiro, por exemplo, previa a fusão das
unidades a partir de quando, em cada caso, expirasse o mandato dos diretores de
cada faculdade e determinava quais deles concluiriam o mandato como diretor de
cada Centro criado com a fusão das escolas da estrutura antiga.
Já o parágrafo quarto, previa a nomeação provisória de diretores do CEG e do CP e
que o diretor da Fafi concluísse o mandato como diretor do primeiro. Os
conselheiros aprovaram, ainda por maioria, a proposta do conselheiro Céphas
Rodrigues de Siqueira, que alterava o caput do artigo 5º do anteprojeto do decreto,
que previa que seriam desvinculados de setores específicos de conhecimentos os
cargos de magistérios constantes no quadro único de pessoal da Ufes.
Mais uma vez, nesses casos, estavam em jogo interesses pontuais e específicos
das corporações das faculdades então existentes. O conselheiro Siqueira também
propôs que o nome do CEG fosse alterado para Centro de Estudos Gerais Básicos
(CEG-B), mas a proposta foi rejeitada pela maioria. Ao final da discussão, por
44 Raimundo Valnir Cavalcante Chagas (1921-2006), conselheiro do CFE de 1962 a 1976, foi um dos principais autores da reforma universitária de 1968 e também teve destacada participação na idealização e elaboração da Lei n.º 5.692/1971, que implantou a obrigatoriedade do ensino profissionalizante no antigo 2º grau. Um dos fundadores da Universidade de Brasília (UnB) lecionou por várias décadas na Faculdade de Educação.
23
unanimidade, com o voto dos representantes estudantis, o plenário do Conselho
Universitário decidiu que as novas propostas apresentadas para o anteprojeto de
decreto, fossem encaminhadas ao CFE como “sugestões”, com uma justificativa
mais precisa do motivo de ter sido escolhido o nome do CEG.
Na sessão seguinte do conselho, foi lido o expediente da reitoria que seria enviado
ao CFE, redigido de acordo com a decisão tomada pelo colegiado na reunião
anterior e contendo os esclarecimentos da Universidade ao Parecer nº 360/68. O
presidente do DCE, César Ronald, propôs que cópias do expediente fossem
distribuídas aos conselheiros, para que pudesse ser estudado por alguns dias. A
proposta foi aprovada pelo plenário e foi definido um prazo de sete dias para a
análise45. Parecia que, pela primeira vez, uma posição surgida de uma discussão
mais aprofundada, ao menos das lideranças estudantis, pudesse ser expressa na
tramitação do processo.
Ledo engano. Na sessão realizada em 19 de agosto de 1968, que não contou com
a presença de César Ronald, substituído pelo vice-presidente do DCE, José César
Leite, o expediente foi aprovado por unanimidade. No entanto, os conselheiros
Romualdo Gianórdoli, da Faculdade de Odontologia, e o representante estudantil
José Carlos Risk, expressaram-se, segundo a ata, contrariamente à redação do
parágrafo terceiro do artigo 3º do anteprojeto de decreto, que previa que o CBM
resultaria da fusão das faculdades de Odontologia e Medicina46.
Mais uma vez, como havia acontecido com as duas diretorias anteriores do DCE,
mesmo tendo uma orientação mais clara à Esquerda, a começar pelo próprio
presidente, não há nenhum indicativo de que tenha havido algum debate ou
discussão mais aprofundada sobre o projeto junto aos estudantes ou mesmo entre
as entidades estudantis. É bem verdade que, pode-se até relevar que, dessa vez, a
tramitação foi rápida e singular. Mas novamente a discussão que se estabeleceu,
não mudava a essência do Plano.
3.3 – A reforma da Ufes e a reação dos estudantes Mas e o acompanhamento do processo de reforma por parte dos estudantes? No
momento em que Rudolph Acton finalizava a minuta do Projeto de Reestruturação
Acadêmico-Científico da Ufes, em novembro de 1966, o XIII Congresso da UEE
45 Ibid. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 12 de agosto de 1968. 46 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 19 de agosto de 1968.
24
aprovou uma carta de princípios, no qual critica a Reforma Universitária da ditadura
e o Acordo MEC-USAID que, segundo o documento, estendia a intervenção
estrangeira para as universidades47. Entre os dias 03 e 10 de junho de 1967, o
Diretório Acadêmico (DA) da Fafi realizou a I Semana Estadual dos Estudos,
exatamente no período em que o Conselho Universitário aguardava emendas para a
votação do parecer sobre o Plano de Reestruturação. Como resultado do evento, o
DA produziu uma revista cultural, contendo as teses apresentadas e aprovadas na
semana sobre Mercado de Trabalho, Papel dos Centros de Estudos, Exames de
Suficiência, Faculdade de Filosofia e Realidade Nacional.
Não há nas 70 páginas da revista, uma única citação sobre o projeto de
reestruturação da Ufes. Não se pode dizer o mesmo quanto às referências aos
Acordos MEC-USAID e até sobre o “Plano Atcon”. Na tese sobre o Mercado de
Trabalho, apresentado pelo Centro de Estudos Pedagógicos, ao lado de uma crítica
à estrutura socioeconômica brasileira, “completamente ultrapassada historicamente” 48 e ao sistema educacional, dominado por escolas particulares, afirma-se que a
situação estaria mais seriamente ameaçada e se agravaria, não somente no plano
estadual, mas também nacional, com a adoção do acordo MEC-USAID. “O dito
acordo não somente visa colocar a educação totalmente nas mãos de particulares,
mas mais do que isso, subordinar-nos a uma cultura alienígena” 49. O plano de luta
proposta na tese, fala em “revogação do Acordo MEC-USAID50".
Na tese sobre a importância dos centros de estudos, apresentado por um grupo de
alunos do Centro de Estudos de Letras, propõe-se como meta “Pugnar por Reforma
Universitária que atenda às nossas necessidades e colabore o desenvolvimento
nacional”. Também se propõe a denúncia da política educacional do MEC, como
“política que visa elitizar cada vez mais as Escolas Superiores” e a luta contra o
acordo MEC-USAID, o “Plano Atcon” 51 e “qualquer tentativa nefasta ao interesse
47 UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES DO ESPÍRITO SANTO. Carta de Princípios do XIII Congresso da UEE-ES. Vitória, 3 nov. 1966. 48 CENTRO DE ESTUDOS PEDAGÓGICOS. O mercado de trabalho. Revista Cultural Fafi. Vitória, n. 01, p. 18, 1967. 49 Ibid., p. 19. 50 Ibid., p. 20. 51 O “Plano Atcon” a que se referem os autores, na verdade é um relatório elabora do em 1966, que recebeu o nome do técnico do USAID e que seria um dos documentos-base da Reforma Universitária da ditadura, junto com o Relatório da Comissão Meira Mattos (1967)
25
nacional”. Outra proposta é a formação de comissões de estudos sobre a reforma
universitária52.
Na tese apresentada sobre os exames de suficiência, pelo então estudante de
Pedagogia da Fafi, Renato Viana Soares, há mais uma referência genérica ao
Acordo MEC-USAID. Entre as medidas que, segundo Soares, tinham como objetivo
o “desincentivo” à formação de professores, estava a transformação de colégios
oficiais em fundações, o que subordinaria a educação nacional aos Ford e
Rockfeller53, segundo ele, como já estaria subordinada ao acordo MEC-USAID.
A tese “Faculdade de Filosofia e realidade brasileira”, apresenta a proposta de que
alunos da Fafi se unissem aos demais estudantes brasileiros, que denunciavam a
Reforma Universitária proposta pelo governo, uma vez que ela foi elaborada sob a
aprovação e dependência de um governo estrangeiro (Acordo MEC-USAID) e
“obediente ao Plano Atcon, que tem como características – privatização, elitização,
alienação e afastamento do estudante da vida nacional, tolhendo seu direito de
participação54". Isso quando se discutia na Universidade um projeto de
reestruturação elaborado pelo próprio Rudolph Atcon!
O DCE da Ufes, em agosto daquele mesmo ano, lançou o jornal da entidade,
portanto, depois que o projeto de reestruturação já havia sido aprovado pelo
Conselho Universitário. No entanto, ele é tratado de forma meramente informativa,
sem nenhum tipo de crítica ou uma análise mais aprofundada sobre seu conteúdo.
As páginas centrais do jornal são dedicadas à uma entrevista do reitor Alaor de
Queiroz Araújo, que fala, entre outras coisas, sobre a reforma da Ufes e a
participação estudantil, a construção da cidade universitária e o Acordo MEC-
USAID.
Ao ser perguntado sobre até que ponto o acordo MEC-USAID influiria na reforma da
Ufes, Queiroz Araújo afirmou que o acordo foi iniciado depois que a universidade
havia começado os estudos para a elaboração dos Planos de Reestruturação
Acadêmico-Científica e Física, e antes dos Decretos-lei 53/66 e 252/67. A esta altura já estamos com o projeto de Estrutura Acadêmico-Científico pronto e aprovado (grifos nossos) pelo Conselho Universitário. O Plano de Estrutura Física concluído e em fase de execução com os pavilhões a serem construídos no Campus em concorrência pública e outras providências a serem tomadas, como a reforma administrativa. Tudo agora feito com um mínimo de recursos financeiros e com o pessoal da nossa própria
52 IMPORTÃNCIA dos Centros de Estudos. Revista Cultural Fafi, Vitória, n. 01, p. 29-30, 1967. 53 SOARES, Renato Viana. Exames de suficiência, o que fazer? Revista Cultural Fafi, Vitória, p. 39, 1967 54 FACULDADE de Filosofia e realidade nacional. Revista Cultural Fafi, Vitória, p. 61, 1967.
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universidade. Assim, não vejo a como o Acordo possa influir, substancialmente, na Reforma da Universidade Federal do Espírito Santo, mas acrescento que, qualquer recurso que vier para somar a esse trabalho que, graças a Deus, já reputo irreversível e gigante, será bem recebido”.55
Ao se referir a aspectos básicos da reestruturação da Ufes, o reitor destacou
exatamente os pontos que fundamentaram a Reforma Universitária da ditadura,
como a necessidade de evitar dispersão e duplicação de recursos e meios e a
estruturação em departamentos. O ponto básico para a reforma da universidade seria a estruturação dos campos básicos do conhecimento humano, de maneira independente do controle das carreiras, ao mesmo tempo em que os integre em si de tal forma, que cada campo ajude o desenvolvimento todos demais, enquanto todos, em conjunto sirvam [ilegível] às finalidades da Universidade. Isto, decididamente, processado e equacionado, vai permitir, entre outras coisas, economizar os recursos materiais e humanos da Universidade, [ilegível] e concentrando todos os serviços afins num só lugar [ilegível) todos os professores do mesmo campo numa mesma unidade e todos os estudantes que vão cursar determinadas disciplina na unidade correspondente ao seu campo”. 56
Outros pontos nos chamaram atenção no jornal do DCE, cuja edição foi apreendida
ainda na gráfica pela Polícia Federal. Uma nota faz referência à uma conferência
proferida na Ufes pelo conselheiro do CFE, Valnir Chagas. Como vimos
anteriormente, Chagas foi convidado pelo reitor para analisar o Plano de
Reestruturação Acadêmico-Científico e, posteriormente, elaborou o esboço do
decreto para a apreciação do mesmo pelo CFE. É provável que o conselheiro
estivesse na Capital capixaba exatamente com esse objetivo.
No mesmo jornal, o DCE publicou, na íntegra, a Carta de Princípios do XXXIX
Congresso da UNE, realizado clandestinamente num convento em Vinhedo (SP),
que reafirma a luta contra o acordo MEC-USAID e a Reforma Universitária da
ditadura. Outra matéria, sobre a Semana do Estudante Secundário, realizada pela
União Municipal de Estudantes Secundaristas (Umes) de Vitória, faz referência à
uma conferência organizada pela entidade com o então senador Mário Martins
(MDB-RJ), que falou sobre os acordos do Brasil e os Estados Unidos que, segundo
a publicação, revelavam a invasão estrangeira que o Brasil estava sofrendo e a
“nossa total subordinação a interesses estranhos57".
Mas antes mesmo que o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico fosse
aprovado pelo Conselho Universitário, o jornal do DA da Fafi, publicado em março
55 CARDOSO, Carlos Magno Gonzaga; PIGNATON, Antônio. Alaor: O universitário é privilegiado neste país onde mais de 5 milhões crianças não tem escola. O universitário. Vitória, p. 5, ago. 1967. 56 Ibid. Idem, p. 4. 57 GOMES, Rubens Manoel Câmara. Semana da Umes foi um sucesso. O Universitário, p. 2, ago.1967.
27
de 1967, entrevistou Stélio Dias, integrante da Comissão de Planejamento, para
falar sobre a Reforma Universitária. O tom da entrevista é, mais uma vez, apenas
informativo. Dias é questionado se a reestruturação da Reforma Universitária iria
resolver o problema do ensino superior e se existia um padrão de reforma para
todos os Estados. Sobre o conteúdo da reestruturação da Ufes, as perguntas se
referiram apenas à futura situação da Fafi. Não há questionamentos sobre processo
de forma mais amplo, que nem sequer foi criticado.
Mas e as lideranças do ME diante da reforma e de sua posição contra os acordos
MEC-USAID? Questionado sobre sua posição no Conselho Universitário, Carlos
Magno admite que votou a favor do plano de reestruturação da Universidade,
mesmo contrariando a posição de vários grupos que haviam apoiado sua eleição
para a presidência do DCE. Eu fui dos responsáveis, vamos dizer assim, pela modificação desse negócio. Hoje eu até revejo um pouco essa posição, talvez o voto tenha sido realmente errado, não só pelo problema político, mas porque talvez não fosse ideal essa situação de centros. Mas também não sei se o melhor era o esquema de faculdades, falando em termos de reestruturação. Sinceramente não sei. Rever é fácil, vinte anos depois, não é?58
O então estudante de Economia e diretor do DCE na gestão de Carlos Magno,
Antônio Caldas Brito, garante que houve discussão sobre o projeto e joga a
responsabilidade em cima do ex-presidente da entidade. Ele diz lembrar-se dessa
discussão no movimento, mas pondera que as lideranças estudantis não teriam
conseguido popularizar aquela bandeira, porque naquele momento havia um apoio
muito grande da imprensa à influência norte-americana. Ao ser perguntado se o
movimento não tinha tido a dimensão da reforma, Caldas Brito insistiu que ele não
teria tido é força. Além disso, segundo ele, Carlos Magno era uma liderança
conciliatória, que não teria levado a discussão para a diretoria, porque sabia que a
posição da maioria, que era ligada à posições de esquerda, seria contrária.
Sobre o voto favorável dos representantes estudantis mais combativos na discussão
de 1968, quando o plano havia retornado à Ufes, Caldas Brito atribui a posição à
possíveis pressões que eles estariam sofrendo, diante do ambiente repressivo que
se vivia na época, se referindo especificamente à César Ronald. Eu acredito que ele deve ter recebido pressões muito fortes para ter votado isso, porque sabia que nós, diretoria do DCE, sempre fomos contra. Uma das principais bandeiras do movimento. Acho que eles receberam uma pressão muito grande para votar favorável e o César, apesar de ser uma
58 Carlos Magno Gonzaga Cardoso, entrevista em 24/07/1995.
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liderança combativa muito forte, não sei se teve consciência da amplitude e de que podia ser realmente essa reforma do MEC-USAID59.
Já o ex-presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE), José Cipriano da
Fonseca, garante que os estudantes fizeram manifestações contra os acordos
MEC/USAID e procuravam falar sobre ele, mas não se lembra de ter ouvido falar
sobre a presença de Rudolph Atcon no Espírito Santo. Com relação à votação feita
pelo Conselho Universitário, ele disse que a mesma deve ter acontecido no final de
196760, quanto ele já estava mais afastado do movimento de massas, já que fazia
parte do Comitê Central do PCBR e estava mais engajado na organização do
partido. No entanto, ele corrobora em parte a versão de Caldas Brito sobre Carlos
Magno. Eu me lembro de que houve uma fase de queimação muito grande com Carlos Magno e a própria esquerda começou a pichar. Talvez seja em função disso aí, agora eu não me lembro. Só lembro que houve uma fase em que ele entrou em desgraça com a esquerda. Eu acho que deve ser por isso. Me parece até que houve caso de agressão em reunião. Mas eu não me lembro de ter tido uma discussão específica sobre a vinda desse americano61.
O então estudante de Odontologia e ex-vice-presidente da UEE, Perly Cipriano, que
foi principal quadro do PCB até 1967, quando viajou clandestinamente para a União
Soviética, diz que os estudantes ligados à esquerda detectaram a presença de
Rudolph Atcon no Estado, mas que não tinham a dimensão dos acordos MEC-
USAID, apesar dessa ser uma das principais bandeiras da categoria. Ele se lembra
apenas da resistência que havia em relação à mudança das faculdades para o
campus de Goiabeiras62.
Por sua vez, Domingos Freitas Filho, que era ligado à Ação Popular (AP) e foi
presidente do DA da Fafi em 1968, diz que em sua faculdade, os estudantes tinham
preocupação em estudar documentos relativos à Reforma Universitária da ditadura e
com os rumos que o ensino iria tomar, com a implantação do sistema de créditos e
outras consequências dos acordos MEC-USAID.
Mas Freitas reconhece que, 90% dos estudantes, inclusive as lideranças, não
haviam lido nada sobre os acordos MEC-USAID e sequer sabiam do que se tratava. A gente, que era ligado à AP, principalmente o pessoal da Fafi, procurava organizar grupos de estudos sobre a reforma, trazia palestrantes, realizava
59 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012. 60 Na verdade, como expusemos anteriormente, o Plano de Reestruturação Acadêmica-Científico foi aprovado pelo Conselho Universitário da Ufes em julho de 1967. 61 José Cipriano da Fonseca , entrevista em 01/08/1995. 62 Perly Cipriano, entrevista em 03/08/1995.
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seminários e propunha disciplinas na estrutura da reforma universitária. Começamos a trabalhar contra o projeto de reforma universitária dentro dos conselhos e todas as instâncias da universidade63.
O ex-dirigente estudantil, hoje professor aposentado da Ufes, diz que teria sido
dispensado da representação estudantil, exatamente porque os estudantes haviam
começado a trabalhar dentro de todas as instâncias, contra a implantação do projeto
de reestruturação. De acordo com Freitas, quem trabalhou mesmo na elaboração do
plano dentro da universidade, foram Stélio Dias, Marcelo Basílio e Manoel Ceciliano
de Almeida. “O Atcon mesmo pouco aparecia. Essas eram as pessoas que estavam
preparando sua cama, para depois irem para Houston (EUA) fazer o seu doutorado
e voltar. Um assumiu a Universidade e o outro virou um político bastante
conservador. Aliás, os três sempre foram conservadores64”.
Renato Viana Soares, então aluno da Fafi e dirigente estudantil do PCB, foi outro
que disse que houve resistência por parte dos estudantes. Para Soares, o plano de
reestruturação foi um projeto piloto de reforma universitária dentro dos planos dos
acordos MEC/USAID. Mas, segundo ele, ao contrário do que aparenta, o movimento
teria reagido e, na época, denunciado o Plano Atcon, realizando inclusive debates
sobre o mesmo. Soares disse que tinha uma cópia do plano e também contou que
Rudolph Atcon não ficou no Espírito Santo. Ele veio e fez um contrato com a universidade. Era um piloto, fazer o campus de Goiabeiras e o detalhe chegou até à disposição das salas de aula. No CCJE, até recentemente, as salas ficavam de costas uma para a outras, para evitar qualquer tipo de aglomeração estudantil. Foi adotado o sistema de crédito e, está lá no plano dele, para quebrar o espírito de turma e de solidariedade entre os estudantes. E vai por aí afora, a instituição do ensino pago, acabar com a representação estudantil, tudo isso, naquela época, eram as teses que ele levantava65.
José Maria Cola, então estudante de Engenharia, que não participava da militância
estudantil, diz não ter sequer ouvido falado sobre um plano de reestruturação da
Universidade, nem mesmo da mudança do seu curso para o Campus de Goiabeiras, já que
a Escola Politécnica, naquela época, havia feito obras de ampliação. Sobre a discussão
sobre os acordos MEC-USAID ou a luta por mais verbas para educação, ele afirmou
que essa não era uma discussão que fazia parte do dia-a-dia dos estudantes da sua
faculdade, conhecida por ser um dos redutos dos setores mais conservadores do
ME.
63 Domingos Freitas Filho, entrevista em 10/11/1995. 64 Idem. 65 Renato Viana Soares, entrevista em 23/08/1995.
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Isso não era discutido pelos colegas não. Depois que você entra, quando está cursando o curso de Engenharia e levando a sério, não tem nem tempo para almoçar ou jantar, porque fica absorto mesmo com o estudo. Às vezes, a gente tinha que formar grupos para um ajudar o outro no entendimento. Era uma absorção total. E esses acordos, esses MEC-USAID, essas coisas, não me lembro de nossa turma ficar discutindo esses assuntos.66
A nova estrutura proposta pelo Plano de Reestruturação Acadêmico-Científica da
Ufes seria referendada pelo presidente-marechal Artur da Costa e Silva, através do
decreto nº 63.577, de 08 de novembro de 1968, 20 dias antes da promulgação da
Lei 5.540/1968, que impôs a Reforma Universitária da ditadura. Como podemos
perceber, a Universidade capixaba já estava sintonizada com ela. A partir da
promulgação do decreto, a Ufes ganhou uma estrutura semelhante a que tem hoje,
com nove centros: CEG, CCJE, CBM, CP, CEFD, Tecnológico (CT), Artes e
Agropecuário.
Nos anos 1990, o CEG viria a ser dividido em dois outros: de Ciências Humanas e
Naturais (CCHN) e de Ciências Exatas (CE). O Centro Pedagógico e o CBM tiveram
as denominações alteradas passando a se chamar, respectivamente, Centro de
Educação (CE) e Centro de Ciências da Saúde (CCS) 67. A Universidade passou por
outras ampliações com a criação do Centro Universitário do Norte do Espírito Santo
(Ceunes), em São Mateus.
4- As mobilizações estudantis no Espírito Santo 4.1 - Antecedentes Da mesma forma, como ocorreu com relação ao Plano de Reestruturação
Acadêmica da Ufes, enquanto combatia o modelo econômico de desenvolvimento
da ditadura, não encontramos maiores vestígios que demonstrem que o ME local
estivesse empenhado ou mesmo sintonizado com realidade produzida pelas
transformações econômicas e sociais que se processavam no próprio Espírito
Santo.
Em setembro de 1967, os estudantes da Faculdade de Medicina entraram em greve
exigindo uma solução para a instalação de um hospital-escola para a faculdade. A
primeira turma de Medicina havia ingressado na Universidade em 1962 e até então a
faculdade não dispunha de um hospital-escola. As aulas práticas eram realizadas,
66 José Maria Cola, entrevista em 28/03/2013. 67 Diga-se de passagem que essa era a denominação original proposta no projeto de Atcon, mas que foi alterada pelo Conselho Universitário quando da votação do plano de reestruturação.
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através de convênios, em várias unidades, como a Santa Casa de Misericórdia e no
Hospital São Pedro, na Praia do Suá.
A greve foi decretada em 21/09/1967. Numa nota de esclarecimento distribuída
pelos estudantes e reproduzida nas atas do Conselho Universitário68, há anos vinha
se tentando a construção de um hospital-escola, mas que devido ao
“desentrosamento” entre os responsáveis pela construção, ela não havia sido
concluída69. Os estudantes reivindicavam o abandono da ideia de construção do
hospital-escola, cuja reformação, segundo eles, levaria de sete a 10 anos, e
apontavam como melhor solução a compra do Sanatório Getúlio Vargas ou mesmo
a sua doação por parte do governo do Estado.
A greve durou sete dias70 e serviu para acelerar as discussões no Conselho
Universitário e os entendimentos da Ufes com o governo do Estado para aquisição
do Sanatório Getúlio Vargas. O que chamou a atenção é que já havia um projeto de
adaptação para o uso das instalações do sanatório, cujo projeto havia sido
preparado por uma comissão formada no âmbito da Faculdade de Medicina, e da
qual fez parte o então presidente do CA de Medicina, Sérgio Pinheiro Ottoni. A
discussão de aquisição daquela unidade, portanto, já existia, mas vinha sendo
conduzida de forma morosa, um problema que foi resolvido pela providencial greve
dos estudantes71.
Numa tramitação muito mais acelerada, na sessão do Conselho Universitário de 4
de dezembro de 1967, foi aprovada a minuta de acordo com o governo do Estado
relacionado à cessão do Sanatório Getúlio Vargas para sua transformação em
hospital-escola72, o que se concretizou no início do ano seguinte, quando a
Assembleia Legislativa do Espírito Santo (Ales) aprovou a cessão.
68 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 25 de setembro de 1967. 69 No final, a construção desse hospital-escola jamais foi concluída e seu esqueleto, que ficava em Maruípe, foi implodido há alguns anos atrás. 70 Na sessão do Conselho Universitário de 10 de outubro de 1967, a pedido do então reitor em exercício, Décio Neves da Cunha, foi lido o texto de um abaixo-assinado dos estudantes de Medicina, datado de 27 de setembro anterior, comunicando a decisão de suspender o movimento, tendo em vista os contatos feitos com então governador do Estado, Christiano Dias Lopes Filho, e a solução apresentada pela reitoria para aquisição do Sanatório Getúlio Vargas pela Universidade. 71 O abaixo-assinado em que os estudante de Medicina comunicam a decisão de encerrar a greve, também reivindicava que, após a apresentação do anteprojeto preparado pela Faculdade de Medicina, que a matéria fosse apreciada em regime de urgência. A reunião para apreciação do projeto de utilização do sanatório foi marcada para dois dias depois. 72 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 14 de dezembro de 1967.
32
4.2 – A luta em torno do preço do Restaurante Universitário Os estudantes capixabas ganhariam as ruas mesmo em 1968 e as mobilizações
representaram o surgimento da liderança carismática do estudante de Medicina
César Ronald Pereira Gomes, na luta desenvolvida contra os preços que a reitoria
da Ufes queria impor para as refeições a serem servidas no recém-inaugurado
Restaurante Universitário (RU) 73, localizado na Esplanada Capixaba, no começo da
Avenida Jerônimo Monteiro74.
Até o golpe militar de 1964, segundo seu depoimento 75, César Ronald teria tido uma
participação no Movimento Secundarista de Campos de Goitacazes (RJ) como
militante do PCB. Membro de uma família importante na cidade, depois do golpe
militar, ele teria se recolhido e ficou afastado da militância, mudando para Vitória em
1966, quando ingressou no curso de Medicina da Ufes. Segundo seu depoimento76,
ele teria começado a se reconectar com o ME em 1967, mas sua liderança
explodiria mesmo com a mobilização do RU77.
Até então, a Ufes não possuía um RU, mas apenas pequenos restaurantes nas
faculdades de Odontologia, Medicina e Engenharia, a maioria deles criados e
mantidos pelos esforços dos próprios estudantes e de seus DA´s. A polêmica
relativa aos preços das refeições começou depois que Conselho de Administração e
Funcionamento do RU (Cafru), criado para administrar o restaurante, votou a favor
do valor proposto pelos estudantes. O Cafru era formado por dois representantes
estudantis, dois representantes da reitoria e um dos ex-alunos (Rodrigo Loureiro
Martins), que só votava contra os estudantes.
O reitor Alaor de Queiroz Araújo, não acatou a proposta do Cafru e decidiu impor o
valor das refeições. O impasse acabou resultando numa greve. Não é possível saber
exatamente quantos dias durou o movimento, já que existem relatos diversos sobre
o episódio. Mas através da edição do dia 16 de março de 1968 do jornal O Diário,
73 O RU foi inaugurado em 01 de março de 1968, conforme registra notícia publicada no jornal O Diário (REITOR inaugura nova obra. O Diário, pg. 01, 02 mar. 1968). 74 O RU da Esplanada Capixaba foi fechado no início da década de 1980, com a inauguração do restaurante no campus de Goiabeiras. Posteriormente foi transformado por entidades culturais capixabas no que deveria ser a Casa da Cultura Capixaba, cujas obras jamais foram concluídas. Depois de sofrer um processo de esvaziamento, um desabamento ocorrido em parte do prédio facilitou o fechamento definitivo da Casa da Cultura, cujo prédio foi demolido há alguns atrás. 75 César Ronald Pereira Gomes, entrevista 29/10/1995 76 CAETANO, Alexandre et al. Revista Capixaba Agora, Vitória, n. 3, p. 04-13, fev. 1998. 77 Em algumas entrevistas que realizamos, como do ex-presidente da UEE, Antônio Carlos Dall´Orto, que também era estudante de Medicina, o nome de César Ronald antes de se tornar uma liderança estudantil é mais associado a estripulias e a fama de bonn vivant, veementemente negada por ele.
33
ficamos sabendo que a Faculdade de Medicina78 e a Fafi79 haviam decretado a
paralisação em 15 de março de 1968. Naquele mesmo dia, os estudantes da Escola
Politécnica iriam realizar uma assembleia para decidir sua adesão ao movimento,
Na sessão do Conselho Universitário de 22 de março de 1968, sem a presença do
presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga Monteiro, o reitor Alaor de Queiroz
Araújo, se refere à greve pela não aceitação do preço imposto pela reitoria para o
RU e diz que “desde os primeiros entendimentos”, anteriores a greve, vinha
mantendo “diálogo” com os estudantes, tendo criado o Cafru, com representação
estudantil, e recebido uma comissão de estudantes em sua residência na praia, a
fim de que a matéria fosse debatida e encaminhada para uma solução ideal.
No entanto, segundo afirmou o magnífico reitor, sempre que a situação tendia a se
resolver “satisfatoriamente”, eram publicados boletins com “caráter de exigência”,
que para ele impediam uma solução rápida, já que por várias vezes ele havia
manifestado que não aceitaria receber exigências e nem decidir sob coação. “O
diálogo estaria sempre aberto para um debate inteligente e de bom senso”80,
assinalou.
O reitor agradeceu aos diretores das faculdades por terem comparecido à reitoria
para dar notícias do que se passava em suas unidades e solicitou que continuassem
a remeter os boletins de frequência e o registro de lançamento de frequência, da
forma como havia sido solicitado pela reitoria. “Finalizando, (o reitor) disse que
esperava já na próxima sessão estar o problema solucionado, tendo em vista já
haver recebido propostas sobre o preço a ser fixado para um entendimento”81.
O representante estudantil Jorge Augusto Pires Encarnação, que “furou” a greve,
afirmou que o presidente do DCE não havia podido comparecer à sessão, mas
assegurou que, se ele estivesse presente, ratificaria as palavras do reitor. O
conselheiro disse que acreditava que, não somente Carlos Magno, mas também os
Diretórios Acadêmicos, estariam envidando todos os esforços para que a situação
se resolvesse o mais rápido possível.
A greve voltaria à tona na sessão de 29 de março de 1968 do Conselho
Universitário, agora com a presença do presidente do DCE e um dia depois do
assassinato, no Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, do estudante
78 ENQUANTO estudantes de Medicina decretam greve reitor implanta hospital. O Diário, p. 01, 16 mar. 1968. 79 ESTUDANTES da Filosofia aderem a greve geral e já fizeram passeata. O Diário, p. 01, 16 mar. 1968 80 UFES-DAOCS. Livro de atas do Conselho Universitário. Sessão de 22 de março de 1968. 81 Ibid. Id.
34
secundarista Édson Luiz de Souto e Lima. O reitor Alaor de Queiroz Araújo disse
que o movimento paredista dos estudantes se aproximava de uma solução, com os
alunos voltando às aulas. Ele manifestou sua confiança de que a frequência no RU
se normalizaria82, tendo a reitoria procurado um preço final definitivo baseado em
um percentual sobre o custo real da refeição83.
Mas inusitada foi a manifestação do presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga
Cardoso. Fazendo jus à sua fama de moderado e conciliador, o conselheiro
manifestou sua “satisfação pela justa maneira com que está se resolvendo o
problema do Restaurante Universitário através do esforço conjugado da reitoria e
dos estudantes” 84.
O impasse sobre os preços do Restaurante podem até ter sido superado naquele
momento, mas restariam os resquícios políticos entre os estudantes que chegariam
ao Conselho Universitário. Na sessão de 10 de maio de 1968, quase dois meses
depois, foi lido um ofício do DCE, datado de 29 de março de 1968 e assinado por
seu presidente, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, comunicando ao colegiado que o
Conselho de Representantes da entidade, formado por todos os Diretórios
Acadêmicos da Ufes, em reunião realizada no dia 19 de março anterior, ainda
durante a greve, havia decidido, por unanimidade, pela destituição e cassação do
mandato de Jorge Augusto Pires Encarnação da representação estudantil no
Conselho Universitário.
De acordo com a decisão, o Conselho de Representante considerou “procedentes”
as acusações contra o ex-presidente do DCE e conselheiro, tanto por sua “omissão
aos problemas atinentes à classe, quanto ao desprezo com que encarava as reais
necessidades estudantis”85. O curioso é que se a decisão havia sido tomada em 19
de março, Carlos Magno já tinha conhecimento dela na reunião do Conselho
Universitário realizado em 29 de março e nas que foram realizadas posteriormente,
mas não havia se manifestado antes sobre a mesma.
A posição do Conselho de Representantes do DCE provocou a ira de diversos
conselheiros, que saíram em defesa de Encarnação. O próprio reitor Alaor de
Queiroz Araújo disse que o representante estudantil havia dado todo o seu esforço e
capacidade para que o Restaurante Universitário fosse uma realidade e fizera parte
82 Os estudantes fizeram piquetes no RU durante a greve para impedir a frequência dos alunos. 83 UFES-DAOCS. Livro de atas do Conselho Universitário. Sessão de 29 de março de 1968 84 Ibid. Id. 85 Ibid. Livro de atas do Conselho Universitário. Sessão de 10 de maio de 1968.
35
dos grupos de trabalho desde as primeiras iniciativas para construí-lo. Animado com
as intervenções de solidariedade, Encarnação afirmou que estava recebendo
naquele momento a comunicação oficial de sua destituição, uma vez que nada havia
recebido antes do DCE.
Pires Encarnação disse que, junto com mais dois colegas, havia sido cassado pelo
DA da Faculdade de Odontologia, por não querer participar de uma greve e por
defender o seu direito de liberdade individual de pensar que não deveria participar
do movimento. Certamente uma posição condizente com sua postura de direita, que
coloca sua posição individual acima dos interesses do conjunto da categoria. Como
não havia mesmo interesse dos conselheiros em aceitar a posição do Conselho de
Representantes do DCE, o reitor Alaor de Queiroz Araújo propôs que o processo
fosse enviado à Comissão de Legislação do colegiado, o que foi aprovado à
unanimidade, com o voto inclusive de Carlos Magno Gonzaga.
O plenário também decidiu que o representante estudantil destituído deveria
continuar sendo convocado para as reuniões do Conselho Universitário, até que
houvesse uma decisão sobre a matéria. O processo retornou ao colegiado ainda
antes do fim do mandato de Encarnação. Aparentemente tudo foi articulado para
tentar evitar que o episódio se transformasse numa mácula na trajetória de ex-
presidente do DCE no ME da Ufes86, sendo dois anos como membro do Conselho
Universitário, primeiro como presidente da entidade e depois como representante
estudantil.
A reunião do Conselho realizada no dia 27 de maio de 1968, a penúltima em que ele
e Carlos Magno Gonzaga Cardoso compareceram na condição de representantes
discentes no colegiado, foi transformada numa verdadeira sessão de desagravo ao
líder direitista. O parecer contra a cassação de Jorge Augusto Pires Encarnação,
que não precisou nem mesmo fazer uso da palavra, foi aprovado por 14 votos a um 87. Em seguida, depois de muitos discursos que enalteceram a sua trajetória como
liderança e representante estudantil, o ato de desagravo ao líder da direita estudantil
foi completado com a aprovação de proposta sua para que a Universidade adotasse
o brasão das armas de Vasco Fernandes Coutinho.
86 A trajetória de Jorge Augusto Pires Encarnação no ME começou no Diretório Acadêmico da Escola de Música. Em abril de 1964, logo depois do golpe, junto com os presidentes de outras entidades, ele assinou a nota do Conselho da UEE que decidiu destituir o presidente da entidade, Jayme Lanna Marinho. Depois, antes de presidir o DCE da Ufes na gestão 1966/1967, ele também integrou a diretoria anterior (1965/1966). 87 O único voto contrário foi do presidente do DCE, Carlos Magno Gonzaga Monteiro.
36
4.3 – As mobilizações estudantis em 1968 O movimento contra o preço imposto pela reitoria resultou em passeatas e
manifestações. Piquetes foram organizados para impedir que alguém comesse no
novo RU. O impasse foi resolvido com um preço próximo ao reivindicado pelos
estudantes, mas a mobilização dos estudantes ganhou novo impulso quando, no dia
28 de março de 1968, o estudante secundarista Édson Luiz de Lima Souto foi
assassinado pela Polícia Militar (PM) no Restaurante do Calabouço, no Rio de
Janeiro (RJ),. A morte do estudante provocou uma onda de manifestações
estudantis por todo país, inclusive no Espírito Santo.
A maior manifestação seria realizada no dia 03 de abril de 1968, em frente ao RU,
depois de um ato fúnebre em memória do secundarista morto no Rio, realizada na
Catedral Metropolitana de Vitória. A manifestação havia sido autorizada pelas
autoridades da época, como o governador Christiano Dias Lopes e o temido
superintendente de Polícia Civil, José Dias Lopes, irmão do chefe do Executivo, que
mais tarde seria acusado de envolvimento com Esquadrão da Morte Capixaba88.
A cobertura de parte da imprensa capixaba nos dias anteriores à manifestação
mostra uma preocupação com a possibilidade de conflitos como os que estavam
acontecendo na capital do antigo Estado da Guanabara e em outras unidades da
Federação. No dia marcado para a manifestação, o jornal A Gazeta afirmou que o
movimento seria “viril”, mas pacífico.
No dia seguinte à manifestação, A Gazeta anunciou em matéria de capa:
“Veemência (com disciplina) no protesto dos estudantes” 89. De acordo com o jornal,
mais de 3 mil pessoas participaram da manifestação, um número expressivo para a
então pacata cidade de Vitória e para o número de estudantes universitários que o
Estado possuía na época.
A reportagem menciona um momento de tensão entre policiais e estudantes, no
obelisco que ficava próximo do Parque Moscoso, episódio também lembrado nos
depoimentos de várias lideranças estudantis da época, quando um estudante
(identificado nos depoimentos como sendo César Ronald) teria conseguido mexer
88 A existência do Esquadrão da Morte capixaba foi tornada pública em 1969, quando policiais civis envolvidos com a quadrilha procuraram o então 3º Batalhão de Caçadores (3º BC) para denunciar que presos comuns eram retirados das cadeias por policias e depois mortos e enterrados em areais na região da Barra do Jucu, em Vila Velha. O suposto envolvimento de José Dias Lopes foi denunciado pelo então jornalista e depois advogado Ewerton Guimarães. O caso foi apurado de forma polêmica por um delegado proveniente do Rio de Janeiro. Vários policiais civis foram presos e condenados, mas nenhum processo foi movido contra Dias Lopes. 89 VEEMÊNCIA (com disciplina) em protesto de estudantes. A Gazeta. Vitória, p. 1, 04 abr. 1968.
37
com os militares, ao afirmar em seu discurso que os policiais não usariam a violência
contra o povo, porque eles também faziam parte do povo e saberiam respeitar o
direito de reivindicar.
O jornal A Gazeta fala em três prisões naquele dia, duas delas teriam ocorrido no
aeroporto, mas simplesmente não informou o nome das pessoas presas. Nem na
edição do dia 04 de abril de 1968 e nem nos dias posteriores. Já o Jornal do Brasil,
que registrou a participação de pouco mais de 1 mil estudantes na mesma
manifestação, informou que no retorno da passeata do Restaurante Universitário
para a Praça Oito, foi preso José Aldo da Conceição, que dizia ter chegado em
Vitória um mês antes90.
Uma nova manifestação foi realizada no dia 06 de abril91, com a participação de
cerca de 2 mil estudantes. Só que, dessa vez, o caráter da manifestação foi bem
mais radical, com palavras de ordem como “Abaixo a ditadura” e “Abaixo o
imperialismo”, assim como a exigência de punição aos culpados pelo assassinato de
Édson Luiz de Lima Souto Lima e de mais dois estudantes mortos em Goiânia (GO),
em manifestações posteriores à execução do secundarista no Calabouço.
Uma bandeira estadunidense foi queimada nas escadarias do Palácio Anchieta e
houve confronto com policiais militares, que chegaram a prender César Ronald. O
líder estudantil foi arrancado das mãos da Policia pelos estudantes, que cercaram o
camburão no qual ele seria levado. A liderança de César Ronald nas manifestações,
o guindaria pouco depois à presidência do DCE, concorrendo em chapa única.
Ao contrário do ano anterior, a eleição foi direta, num processo organizado pelo
Conselho de Representantes da entidade para contornar o impedimento imposto
pelo Decreto Lei 228/1967, que previa a votação através do colégio eleitoral formado
pelos DA´s. Como a maioria das entidades estudantis estava sob controle ou
influência das correntes de esquerda, foi fácil organizar um processo no qual o
conselho apenas referendasse o resultado da consulta feita com todos os
estudantes.
Depois das eleições do DCE, César Ronald se incorporaria ao PCBR. Antes de dele,
as esquerdas não haviam ainda conseguido formar nenhuma liderança com
90 SITUAÇÃO nos Estados. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, p. 7, 04 abr. 1968 91 Em primeiro ficamos em duvida sobre a realização da manifestação no dia 06 de abril, embora ela tenho noticiada na primeira página da edição do jornal A Gazeta de 07 de abril de 1968, por se tratar de um sábado, dia em que até os dias de hoje as avenidas centrais da capital costumam estar vazias. Mas confirmamos a informação através da consulta ao arquivo do Jornal do Brasil (FREQUÊNCIA às aulas é cada vez maior. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 28, 07 abr. 1968).
38
influência, digamos, de massas – se é que se pode usar a expressão “massas” para
designar o contingente estudantil que existia na época no Espírito Santo. Mas,
apesar da sua liderança e carisma, pelo que já ouvimos em várias entrevista, parece
que algumas lideranças da época, mesmo alguns dos companheiros que militavam
em sua corrente, tinham restrições ao estilo e comportamento do jovem líder,
considerado pouco ortodoxo para os padrões da esquerda da época. As restrições
eram maiores por parte das lideranças ligadas à antiga AP, que mantinha posições
antagônicas às defendidas antes pelo PCB, e posteriormente pelo PCBR e as outras
organizações cuja matriz era o velho Partidão, como o Partido Comunista do Brasil
(PC do B) e as chamadas Dissidências Comunistas92.
Depois das manifestações de março e abril, recortes do jornal A Tribuna
encontrados no arquivo do Dops, mostram uma manifestação de estudantes da Fafi
no dia 15 de julho de 1968, para protestar contra prisão de dois colegas daquela
faculdade por militares do 3º BC93. A notícia fala de uma concentração em frente do
prédio da Fafi, que teve sua entrada bloqueada. Também relata que o reitor da Ufes,
Alaor de Araújo Queiroz, esteve no quartel para ter informações sobre os estudantes
presos. No dia seguinte, outro recorte do jornal A Tribuna noticia a continuidade da
mobilização dos estudantes94. Também anuncia que um habeas corpus em favor
dos estudantes havia sido impetrado no Tribunal de Alçada.
As prisões só apareceriam no jornal A Gazeta na edição de 18 de junho, com a
publicação de uma nota oficial do então comandante do 3º BC, coronel Armando R.
Menezes. No mesmo dia, o jornal O Diário publicaria uma matéria com manchete de
primeira página95, que conta que a ex-diretora da DA da Fafi, Maria Augusta
Feliciano da Silva, então uma militante da AP, estava presa no Rio de Janeiro e
respondia a um IPM. Junto com ela, foi preso o também estudante da Fafi e
bancário, Délio Merçon.
Na entrevista concedida ao autor, Maria Augusta não foi muito clara e não deu – ou
não quis dar - maiores esclarecimentos sobre o assunto96. De acordo com ela, a
prisão teria sido de resultado de uma série de “equívocos” da repressão, a partir da
92 Embora existam registro que o líder estudantil Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana dos Estudantes do Rio de Janeiro (UME-RJ), tenha estado no Espírito Santo durante o processo de preparação do Congresso da UNE de Ibiúna, não há indícios de que as Dissidências Comunistas tivessem representação no Espírito Santo. No entanto, o PCBR, que tinha expressiva militância no Estado, defendia propostas semelhantes 93 FILOSOFIA em pé de guerra. A Tribuna, Vitória, s. id., 15 de jun. 1968. 94 ESTUDANTES ainda protestam contra a prisão de colegas. A Tribuna, Vitória, s.id.,16 de jun. 1968. 95 MARIA Augusta está presa no Rio e responde a IPM. O Diário, p. 01, 18 de jun. 1968. 96 Maria Augusta Feliciano da Silva, entrevista em 31/09/1995
39
prisão num “aparelho” da AP no Rio de Janeiro, de um estudante que esteve no
Espírito Santo e que havia dado o nome dela e de Merçon. Eles foram presos,
interrogados no Rio e libertados depois de uma semana. Segundo ela, sem entregar
ninguém e nem revelar nada sobre a organização.
No dossiê aberto no Dops contra o então estudante de Medicina, Geraldo Fernandes
Pignaton,97 também encontramos o registo de uma outra greve dos estudantes da
Faculdade de Medicina. No dia 23 de agosto de 1968, o então jovem estudante
prestou declarações na delegacia sobre seu envolvimento no movimento.
4.4 – A queda do Congresso de Ibiúna e a desarticulação do ME capixaba
Em nível nacional, no segundo semestre o ME já vivia o início de um processo de
descenso, provocado pela repressão cada vez mais violenta do regime às
manifestações e passeatas dos estudantes, fenômeno reconhecido por algumas de
suas principais lideranças, como José Dirceu e Vladimir Palmeira98, quando em
outubro de 1968, sofreria um golpe ainda mais profundo, com a prisão de 900
lideranças estudantis na fracassada tentativa de realizar um congresso “clandestino”
da UNE, em um sítio localizado na pequena cidade de Ibiúna (SP).
Treze lideranças estudantis do Espírito Santo foram presas no congresso, entre elas
o presidente do DCE da Ufes, César Ronald Pereira Gomes99. A partir daí, o
movimento local sofreria um processo de rápida desestruturação. As prisões no
Congresso de Ibiúna provocaram aquele que parece ter sido o último suspiro do ME
local naquele ano, com a realização de uma manifestação de protesto no dia 15 de
outubro de 1968, em frente ao antigo prédio da Faculdade de Direito, localizada ao
lado da Escadaria Bárbara Lindenberg e muito próximo do Palácio Anchieta.
A manifestação foi duramente reprimida por policiais, sob o comando pessoal de
José Dias Lopes, já então secretário de Estado da Segurança Pública. No confronto
com a Polícia, foram presos os estudantes Júlio César Prates de Matos, Rubens
97 ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO – DEPARTAMENTO DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL – (APES-DOPS) – Dossiê de Geraldo Fernandes Pignaton, cx. 39, Vitória, 1968. 98 DIRCEU, José e PALMEIRA, Vladimir. Abaixo a Ditadura: o movimento contado por seus líderes. Rio de Janeiro: Garamond, 1998. 99 Além de César Ronald, foram presos os estudantes Agis Wilson Macedo (Direito), Areovaldo Costa de Oliveira (Direito), Domingos Freitas Filho (Fafi), Stela Maria Aurich da Silva (Escola de Serviço Social), Iran Caetano (Medicina), José Antônio Gorza Pignaton (Faculdade de Farmácia), José Honório Machado (Farmácia), Jussara Lins Martins (Engenharia), Luiz Cláudio Nogueira Muniz (Economia), Marcelo de Almeida Santos Neves (Engenharia), Marlene Amaral Simonetti (Escola de Serviço Social) e Ricardo Luiz Carvalho Gottardi (Odontologia).
40
Manoel Câmara Gomes100, Ana Olívia Sanchez Vargas, Paulo Eduardo Torre e
Ewerton Montenegro Guimarães, os dois últimos já falecidos. Novamente, o
protesto foi registrado nacionalmente pelo Jornal do Brasil101.
Na confusão, que se espalhou pelo Centro, em frente às antigas Lojas Cannes, na
Praça Costa Pereira, a estudante Zélia Stein, então noiva de César Ronald, deu uma
bolsada no rosto de José Dias Lopes, que ficaria célebre. O episódio criou uma
lenda corrente junto algumas lideranças da época, de que ela estaria carregando
pedras na bolsa, o que teria feito o secretário de Segurança Pública cair e, segundo
alguns depoimentos, até desmaiar. Não é bem assim, já que a existência de pedras
na bolsa foi negada pela própria Zélia Stein, em entrevista concedida à revista
Capixaba Agora102. Segundo Zélia, a bolsa era pequena e José Dias Lopes reagiu à
bolsada com perplexidade.
Zélia foi retirada rapidamente do local por Ewerton Guimarães, que a colocou dentro
de um carro que fazia parte do “dispositivo” de segurança da manifestação, indo se
esconder num sítio na então isolada região de Camburi. Pelo rádio, José Dias Lopes
prometia prender Zélia e desfilar pela cidade com César Ronald preso. Ela acabou
deixando a cidade, escondida no porta-malas de um carro, indo se encontrar com
César Ronald, que se encontrava preso em São Paulo103.
Os estudantes presos no Congresso de Ibiúna, com exceção de César Ronald que,
como todos os presidentes de DCE´s e UEE´s havia sido separado dos demais,
chegaram em Vitória no dia 18 de outubro de 1968. No mesmo dia, os estudantes da
Escola de Engenharia, considerada mais conservadora que outras faculdades,
decidiram fazer uma paralisação de 48 horas para protestar contra a prisão dos
colegas tanto no Congresso da UNE, como na manifestação realizada no dia 15 de
outubro 104. Por conta da prisão na manifestação contra a queda do Congresso de
100 Conhecido com Rubinho, Rubens Manoel Câmara Gomes era repórter do jornal O Diário, mas também militante do Movimento Secundarista, onde atuava como presidente da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (UMES). 101 ESTUDANTES enganam a política em Brasília. Jornal do Brasil, p. 12, 16 out. 1968. O JB fala em três presos, enquanto O Diário registra seis. O problema é que não encontramos as edições do matutino capixaba da dia posterior à manifestação para poder checa a informação. Na edição de 19/10/1968, o jornal fala em seis presos. 102 HENRIQUES, Milson. Zélia Stein: se ficasse aqui, teria enlouquecido. Revista Capixaba Agora. Vitória, n. 1. p. 18, dez. 1997. 103 César Ronald foi libertado na véspera do AI-5 e entrou na clandestinidade, junto com Zélia Stein, que estava grávida. A filha de ambos nasceu nessas condições e, posteriormente, o casal ficou com a criança num aparelho onde estavam alojados outros militantes, até que César Ronald resolveu deixar a filha com os pais, em Campos dos Goitacazes. 104 EMOÇÃO na chegada dos estudantes presos em São Paulo. O Diário, Vitória, p. 1, 19 out. 1968.
41
Ibiúna, Júlio César Prates de Matos e Ewerton Montenegro Guimarães foram
enquadrados na Lei de Segurança Nacional e tiveram que responder a um IPM na 1ª
Auditoria Militar de Juiz de Fora.
Depois da manifestação, alguns estudantes foram convocados para prestar
esclarecimento no DOPS e junto ao 3º BC, como o presidente da UEE, Antônio
Carlos Dall´Orto. Ele afirma que, depois da manifestação contra a prisão dos
estudantes presos no Congresso na UNE, não havia mais clima para a militância. Quando eu cheguei lá (no 3º BC), vi muitas pessoas que também recebido a tal convocação. Lá eles tinham um tal de major Danilo, que me interrogou. Eu neguei que tivesse participado do ME ou da UEE, mas ele me disse que não havia como negar minha participação. Ele mostrou algumas fotos da missa em homenagem ao Édson Luiz, que haviam sido tiradas de dentro da Catedral de Vitória, em que eu estava sentado nas primeiras filas da igreja. Depois leu coisas que eu havia dito, mesmo em episódios menores. Vi logo que tinha um espião entre nós. Pior de tudo, foi quando trouxeram um cara amigo meu, chamado Winter, que estaria preso. Esse rapaz foi trazido de dentro de uma cela e colocado perto de mim. Perguntaram se eu era presidente da UEE e ele disse que sim e foi levado de volta. Para mim, foi tudo encenado, fiquei sabendo depois que se tratava de um informante deles. A gente continuou indo nesse negócio lá do Exército durante algum tempo105.
Em 13 de dezembro de 1968, a ditadura decretou o AI-5, que marcou o
recrudescimento definitivo do regime e a instalação de um clima de arbítrio propício
à prática do terrorismo de Estado. No início do ano seguinte, o DCE seria
definitivamente fechado. Na sessão do Conselho Universitário de 16 de janeiro de
1969, o representante estudantil José Carlos Risk, que mais tarde seria juiz do
trabalho, chegando a ocupar a presidência do Tribunal Regional do Trabalho do
Espírito Santo (TRT-ES), denunciou a invasão da sede do DCE pela polícia, com a
prisão do vice-presidente da entidade, José César Leite.
Segundo ainda a denúncia do acadêmico, mais de uma dezena de colegas
universitários estavam proibidos de sair de Vitória e eram obrigados a comparecer
três vezes por semana à Polícia Federal (PF) 106. Depois da reunião, cuja gravação
foi apreendida pela Polícia Federal, Risk foi preso e não voltou mais a comparecer
às reuniões do Conselho Universitário.
Em 22 de março de 1969, César Leite, que se encontrava no exercício da
presidência do DCE, encaminhou ao então reitor da Ufes, Alaor de Queiroz Araújo,
um ofício renunciando ao mandato de forma irrevogável. Os estudantes presos em
105 Antônio Carlos Dall´Orto, entrevista 16/07/1995 106BORGO, op. cit., p, 165-166. Vitória: UFES, SPDC, 1995, p. 165-166.
42
Ibiúna continuaram respondendo processo pela sua participação no congresso da
UNES, até que a Justiça Militar decidisse extinguir a sua punibilidade, em 1971.
Também foram abertos Inquéritos Policiais Militares (IPMs) para investigar
“atividades subversivas” em Vitória, a maioria dos quais não deu em nada.
Com o endurecimento da repressão, muitas lideranças se afastaram do movimento e
algumas poucas transferiram a militância para outros Estados, como foi o caso de
Jussara Martins, então vice-presidente da UEE e militante da AP, que em abril de
1969, foi presa e mais tarde expulsa da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Ela entrou na clandestinidade, mas em dezembro de 1970, seria presa
novamente em Belo Horizonte (MG) e barbaramente torturada.
Outros ingressaram na luta armada, como César Ronald, Zélia Stein e Perly
Cipriano. Os dois primeiros acabaram se exilando no Uruguai, enquanto Cipriano foi
preso em 1970, no Estado de Pernambuco, sendo condenado a 84 anos de prisão.
Ele seria solto apenas em 1979, com a decretação da anistia. José Cipriano chegou
a ir para o Piauí, mas acabou retornando e deixando a militância. Antônio Carlos
Dall´Orto, que também havia ingressado no PCBR, disse que a maioria dos
militantes debandaram quando foi colocada a questão do engajamento na guerrilha
rural, proposta defendida pelo partido O que me lembro, vagamente, é que houve um debate com o pessoal do PCBR, que era como se fosse uma convocação, para ver se a gente tinha interesse de participar da luta armada. Se quiséssemos, teríamos que sair e ir para outro lugar, fora do Estado. A maioria ou a totalidade não quis. Depois disso, ficou uma coisa no ar e ninguém mais se reuniu.
Outros ativistas, como o estudante de Medicina Iran Caetano, também preso no
Congresso de Ibiúna, ainda tentaram manter ativa a militância política, tanto que em
dezembro de 1972, quando foram presos todos os militantes e simpatizantes do
PCdoB no Espírito Santo, 18 deles eram estudantes da Ufes107. O fato é que ME
local só se recuperaria mesmo na segunda metade da década de 1970, com a
rearticulação de diretorias combativas nos DA´s e a reabertura do DCE da Ufes em
1978.
107 Em 1972, todos os militantes do PC do B no Espírito Santo foram presos, depois da delação do então dirigente regional do partido, Fued dos Santos. A delação de Fued desencadeou um processo de quedas que levou a morte de dirigentes do Comitê Central do PC do B, entre os quais Lincoln Cordeiro Oest e Lincoln Bicalho Roque, mortos entre dezembro de 1972 e 1973. Existem versões, como no livro Operação Araguaia, de que esse episódio e as mortes causadas por ele teriam ligação com repressão à Guerrilha do Araguaia, (MORAIS, Taís; SILVA, Eumano. Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. 3. ed., rev. São Paulo, SP: Geração Editorial, 2011)
43
Apesar de uma fracassada tentativa de reconstrução, em 1984, a UEE jamais
voltaria a funcionar. O prédio onde funcionava a sua sede, na Rua Washington Luiz,
foi demolido pela Ufes. A Casa dos Estudantes Capixaba (CEC) localizada em Bento
Ferreira, que também faz parte do patrimônio estudantil, funcionou por muitos anos
como um ginásio de esporte do Estado (DED).
Depois da Constituição Estadual de 1989, o ginásio foi “devolvido” aos estudantes,
mas acabou depredado e abandonado por falta de manutenção. Durante anos, se
manteve sob a nebulosa “administração”, de diretorias compostas por estudantes
ligados ao PC do B, até que recentemente, o imóvel foi reformado e cedido para a
Prefeitura Municipal de Vitória (PMV), voltando a funcionar como uma arena
esportiva.
4.3 – A esquerda no ME capixaba
As principais correntes políticas que atuaram no ME do Espírito Santo na década de
1960 foram, inicialmente, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partido Comunista
do Brasil (PCdoB) e a Ação Popular (AP). Posteriormente, a partir de 1967, com as
cisões que atingiram os dois primeiros partidos, em função principalmente da
questão da luta armada, a maior parte dos seus militantes passaram a integrar,
respectivamente, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e a Ala
Vermelha do PC do B. Existem vagas referências à atuação no Espírito Santo da
Organização Marxista Revolucionária Política Operária (ORM-Polop), organização
que implodiu em 1968, dando origem a grupos da esquerda armada como a
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). o Comando de Libertação Nacional
(Colina) e, posteriormente, na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-
Palmares). No entanto, não conseguimos identificar o nome de nenhuma militante
capixaba que estivesse ligado ao Polop, como era mais conhecido.
O PCB, conhecido como “Partidão”, foi criado em 1922. O partido viveu três curtos
períodos de legalidade até a definitiva redemocratização do país, em 1985, quando
enfim os partidos de esquerda clandestina puderam ter vida legal, desde que
cumprissem a legislação eleitoral vigente no país. De acordo com o livro Brasil:
nunca mais108, ao longo de sua história, o PCB sempre defendeu um programa de
transformações tendentes a desenvolver um capitalismo nacional, visto como um
108 Brasil: nunca mais. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 91-92.
44
pressuposto para futuras lutas em direção ao socialismo. Para tanto, de acordo com
o livro, seria necessário uma construção de uma aliança da classe operária e dos
camponeses com a burguesia nacional, em contraposição ao imperialismo e seus
aliados latifundiários.
Na década de 1960, segundo o livro, o PCB passou a propor, de forma cada vez
mais clara, uma transição pacífica para o socialismo, causa dos principais rachas do
partido. A partir de 1966, o PCB sofreu uma luta interna do qual surgiram vários
grupos dissidentes. O grupo considerado “ortodoxo” do Partidão, reunido em torno
do então secretário-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, rejeitou a luta armada e
adotou uma linha de recuo político, vinculando-se ao Movimento Democrático
Brasileiro (MDB) para uma ação institucional legal. A ação do partido, considerada
moderada numa época de efervescência da discussão política na esquerda,
principalmente sobre a luta armada, fez com que o PCB perdesse prestígio entre os
estudantes. No Espírito Santo, praticamente todo o setor estudantil do PCB aderiu
ao PCBR.
O PCBR, por sua vez, tem suas origens em 1964, quando o seu principal dirigente,
Mário Alves, começou a se opor às posições de Luiz Carlos Prestes no Comitê
Central, formando a Corrente Revolucionária. A constituição formal do PCBR
ocorreu apenas em 1968. O estudante de Medicina e presidente da UEE, José
Cipriano da Fonseca, que era um dos principais dirigentes estudantis do PCB, junto
com seu primo, Perly Cipriano (que havia viajado para a União Soviética), integrou o
primeiro Comitê Central do PCBR, levando praticamente toda a militância estudantil
do Partidão para a nova organização.
O PCBR defendia a necessidade de reformular a linha tradicional do PCB de aliança
com a burguesia nacional, sem abraçar a bandeira da “Revolução Socialista” de
imediato, como propunha o Polop. O partido defendia a luta armada e via na área
rural o palco mais importante na luta por um “Governo Popular Revolucionário”109.
No entanto, o PCBR acabou não saindo das ações armadas urbanas que passou a
realizar a partir de abril de 1969. Além de José Cipriano da Fonseca, teriam sido
também militantes do PCBR em 1968, o então presidente do DCE, César Ronald
Pereira Gomes, e o presidente da UEE, Antônio Carlos Dall´Orto (que também
109 Ibid., p. 95.
45
passou pelo PCB), Zélia Merlusa Stein e outros. A Faculdade de Medicina foi
principal reduto, primeiro do PCB e, posteriormente, do PCBR.
O PCdoB foi formado por dissidentes do Partidão, que não aceitaram as mudanças
na linha programática definida pelo PCB a partir de 1958. Sob a liderança de ex-
integrantes do Comitê Central do PCB, como João Amazonas, Maurício Grabois e
Pedro Pomar, em fevereiro de 1962, foi realizada uma conferência de
“reorganização” do partido. PCdoB sempre disputou com o PCB o legado de
continuador histórico do partido fundado em 1922. Sob forte influência do
pensamento de Mao Tsé Tung durante boa parte da década de 1960, em termos de
estratégia, o PCdoB considerava que a luta revolucionária teria na área rural o mais
importante palco de luta, através de uma guerra sustentada, desde o início, por
contingentes populares, especialmente camponeses. Tratava-se das tradicionais
estratégias maoístas de “Cerco da cidade pelo campo” e “Guerra Popular
prolongada”, importadas para o Brasil.
Em termos de programa político, o PCdoB defendia a tradicional estratégia stalinista
de uma etapa “democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal” como preliminar
à luta pelo socialismo. O Brasil: nunca mais110, enfatiza que o PCdoB se distinguia
do PCB por defender pontos de vista mais à esquerda e formas de mobilização mais
radicais. Entre seus principais dirigentes no ME capixaba estavam Álvaro Pignaton,
Antônio Carlos Pimentel e, principalmente, Antônio Caldas Brito. Este último, em
1967, depois do Congresso da UNE de Vinhedo (SP), rachou com o partido e
organizou no Estado a Ala Vermelha do PCdoB
A Ala Vermelha do PC do B era uma organização maoísta e, como o PCdoB,
defendia que o centro da luta armada deveria ser o campo, através da formação do
exército popular e do cerco da cidade pelo campo. A organização surgiu de um
racha no PC do B em 1966, quando um grupo de militantes entendeu que o partido
não vinha desenvolvendo um trabalho efetivo para o desencadeamento da luta
armada. Tanto o PCdoB, como posteriormente a Ala Vermelha, tinham uma
importante influência na Faculdade de Economia.
A Ação Popular (AP) nasceu em 1962, como uma organização católica de esquerda,
composta por jovens cristãos provenientes principalmente da Juventude
110 Ibid., p. 97-99
46
Universitária Católica (JUC). Num primeiro momento, segundo o Brasil:nunca
mais111, se definiu como um movimento e não um partido, inspirando-se em ideias
humanistas de Jacques Maritain, Teilhard de Chardin, Emanuel Mounier e do Padre
Lebret. Foi, sem dúvida nenhuma, a corrente de esquerda mais influente do ME
durante a década de 1960.
Nos anos seguintes ao golpe militar de 1964, a AP foi aos poucos reorganizando sua
estrutura e, de 1965 a 1967, em meio a controvertidas polêmicas, caminhou para a
adoção do marxismo, se aproximando das ideias defendida por Mao Tsé-Tung. De
acordo com o livro Brasil: nunca mais, a partir desse período, a AP foi se
modificando até se caracterizar como uma organização maoísta típica, assumindo
uma linha política semelhante ao PCdoB.
No caso do Espírito Santo, o maior reduto da AP era a Fafi. Entre suas principais
lideranças estavam Jussara Martins, Domingos Freitas Filho, Maria Augusta
Feliciano Santos e outros. A transição para o marxismo e, em seguida para o
maoísmo, parece ter sido mais lenta no Estado. Uma das características na
composição da AP no Espírito Santo, conforme apontam várias lideranças da época,
era a grande presença de mulheres na corrente.
Martins Filho aponta que, durante o ano de 1968, ficaram patentes duas “posições”
(preferimos a definição de campos) divergentes sobre o papel a ser desempenhado
pelo ME naquela conjuntura112. O primeiro campo, expresso nas posições da AP
(que a partir de 1968, passou a contar com o apoio do PCdoB). O traço mais visível
da AP no período 1967-1968 era a defesa da luta política e nas ruas. Para essa
corrente, o papel do ME no pós-ditadura definia-se, acima de tudo, pela necessidade
de denúncia do ditadura e, simultaneamente, das forças do imperialismo que a
sustentava. Para atingir este fim, as lutas universitárias deveriam centrar-se nas grandes manifestações públicas, que marcariam sua presença na sociedade, procurando atrair, ao mesmo tempo, a ação das forças repressivas do Estado. Dessa maneira, os estudantes trariam, como contribuição decisiva ao movimento antiditatorial, o desmascaramento do caráter opressivo e violento do regime, obrigando os militares a “mostrarem as armas”, o que deveria propiciar o surgimento de uma consciência antiditatorial no seio das grandes massas.113
111 Ibid., p. 100-101 112 MARTINS FILHO, op. cit., p 172 113 Ibid., p. 173.
47
Nessa perspectiva, segundo o autor, a AP teria praticamente desprezado as lutas
educacionais, como eixo de mobilização estudantil. Nas assembleias, de acordo
com Martins Filho, seus militantes se distinguiam por invariavelmente defender
novas manifestações de rua, mesmo quando essas já mostravam sinais de
esgotamento como tática de luta.
No outro campo, estavam as posições de praticamente todas as outras correntes
com representação na vanguarda estudantil, com exceção do PCB, que a partir de
1967 seria marginalizado no plano da UNE por suas posições moderadas e de apoio
à luta institucional. Nesse grupo estavam todas as Dissidências Estudantis do PCB
(das quais as mais importantes eram da Guanabara e de São Paulo), o PCBR e
também o Polop. De acordo com Martins Filho, um dos pontos de união das
Dissidências Comunistas e do Polop no meio universitário, parece ter sido a
desconfiança frente ao papel dos setores sociais médios na revolução.
Dessas suspeita, se extraiu uma posição pelo papel auxiliar que estas correntes
conferiam ao ME, pois os estudantes não teriam condições, por si sós, de colocar
em xeque o regime. A tese fundamental que, segundo Martins Filho, seria a
proposta central desse campo seria a “luta específica”. Na sua perspectiva, o papel fundamental daquele movimento seria o de possibilitar o surgimento de uma consciência crítica no meio universitário de classe média. Para tanto, as lutas destas categoria deveriam se concentrar nos problemas que diziam respeito diretamente ao estudante: acima de tudo, a questão da universidade. Só a partir daí surgiriam as condições para a politização dos universitários, aproximando-os da perspectiva de apoio ao movimento dos trabalhadores114.
A expressão sintética de suas práticas, de acordo com Martins Filho, foi a dicotomia
estabelecida entre o trabalho sindical – amplo, gradual, destinado ao estudante
médio – e as práticas destinadas à vanguarda e à “massa avançada”, onde se
manifestou a influência das teses foquistas e militaristas. Dessa maneira, as
correntes situadas nesse campo, tenderam a transformar algumas de suas práticas
estudantis em “ensaios” para a preparação de forma de lutas “mais avançadas”. As
próprias ocupações de faculdades, resultado da reivindicação pela reforma
universitária, foram enfocadas pelo viés da luta armada. As táticas de comícios-
relâmpago, comissões de segurança e pichações se pautavam por critérios semi-
guerrilheiros.
114 Ibid., p. 175.
48
No Espírito Santo, as correntes políticas que atuavam no ME naquele período
parecem apresentar características atípicas. Se em nível nacional, o PCB e o
PCdoB eram organizações inimigas e se digladiavam, no Espírito Santo seus
militantes costumavam atuar de forma conjunta contra a AP, como ficou patente no
XIII Congresso da UEE, realizado em 1966, quando as duas correntes se uniram
para impedir que fosse aprovada a proposta do Movimento Contra a Ditadura
(MCD), defendida por aquela corrente115. A explicação para essa proximidade entre
os dois partidos no Espírito Santo, é muito simples: os seus principais militantes,
como José Cipriano da Fonseca, Renato Viana Soares, Perly Cipriano e Antônio
Caldas Brito moravam juntos numa mesma república, no Parque Moscoso, e eram
amigos pessoais. Era a célebre “República do 804”.
A predominância da visão católica na AP, pelo menos até 1968, é uma outra
explicação dada por Caldas Brito e José Cipriano da Fonseca. De acordo com
Caldas Brito, existia uma identificação marxista entre os militantes das duas
correntes. “Eu tenho a impressão que a aproximação nossa aqui, foi mais uma
questão pessoal mesmo e a identificação ideológica, porque a AP, apesar de na
ação se aproximar até mais da gente (PCdoB), tinha aquela restrição ideológica” 116.
A AP local também apresenta uma situação atípica, que vai além da lentidão maior,
em relação ao resto do país, na transição para o marxismo. Os militantes são
reticentes em falar sobre a sua ligação com a corrente117. Domingos Freitas Filho,
por exemplo, ex-presidente do DA da Fafi e diretor do DCE, que teve inclusive o
nome citado num IPM movido sobre as ações da AP no Espírito Santo, afirma que
representava a faculdade em algumas reuniões que tinham lideranças nacionais,
como Luiz Travassos e Vladimir Palmeira, mas nunca teve preocupação em saber
quem era da AP.
De acordo com a ex-liderança estudantil, eles tinham muita preocupação em
conhecer e discutir os documentos relativos à Reforma Universitária da época. “Esta
era a coerência do ME que eu participei: preocupar-se com a qualidade do ensino,
com os rumos que o ensino estava tomando com a implantação do sistema de
115 De acordo com os relatos de José Cipriano da Fonseca, Renato Viana Soares, Perly Cipriano e Antônio Carlos Dall´Orto, para impedir a aprovação do MCD os militantes do PCB e PCdoB prolongaram ao máximo a plenária final do congresso, até que eles tivessem maioria entre os delegados. José Cipriano da Fonseca, de forma irônica, conta que o objetivo era esperar o horário da missa, quando muitos delegados da AP teriam ido embora. Na votação, o MCD foi rejeitado. Outra manobra foi ocultar a ligação de Antônio Carlos Dall´Orto com o PCB, para que ele fosse eleito presidente da UEE, com apoio da AP, como se fosse independente. 116 Antônio Caldas Brito. Entrevista em 05/09/2012. 117 Talvez a AP capixaba não tivesse a mesma organicidade de outros Estados.
49
créditos e com as possíveis consequências do Acordo MEC-USAID” 118. Uma
posição que chega a ser irônica, diante da facilidade como foi aprovado na Ufes o
Projeto de Reestruturação Acadêmico-Científica.
Ao ser questionado sobre sua participação na corrente, Freitas Filho afirmou
inicialmente não saber quem era da AP. De acordo com ele, não havia um
conhecimento profundo e nem uma ligação que tivesse como consequência o
comprometimento com a luta armada em nível nacional e nem com o movimento de
derrubada do governo. Em nível local, tinham as lideranças, tinha um grupo, uma visão de universidade que achava que o eixo do ME tinha ser voltado para dentro. Esse era o eixo da AP e, nesse eu me enquadrei. E tinham aqueles que achavam que o ME tinha que estar ligado aos partidos políticos, portanto, à luta nacional maior, que era o outro movimento. Então, se a AP era esse movimento, tinha eu, Jussara, Heleninha, Antonieta, Alice e várias outra pessoas. A gente reunia os estudantes, fazia grupos de estudos nos sábados à tarde e nos domingos de manhã. Nos nossos momentos de lazer, a gente estava estudando, fazendo seminários e trazendo palestrantes, sempre discutindo a Reforma Universitária, que era o assunto do momento.
De acordo com ele, o eixo de quem era da AP era de conduzir o ME para dentro,
para discutir as questões específicas dos estudantes. A fala de Freitas Filho
contradiz totalmente a linha política da AP e as algumas das próprias propostas que
os militantes da corrente defenderam no Espírito Santo, como o MCD, em 1966, e,
posteriormente, a “aliança operário, camponesa e estudantil”, duramente criticada
pelas outras correntes.
O curioso é que a própria Jussara Martins, vice-presidente da UEE e considerada a
principal liderança da AP no Estado, em recente entrevista dada à Comissão da
Verdade da Ufes119, afirmou que era apenas “simpatizante” da organização, a qual
só teria ingressado de fato em 1969, quando estava no Rio de Janeiro. Maria
Augusta Feliciano que, como citamos acima, foi presa por sua suposta participação
na AP, também não foi muito clara sobre essa ligação. Essas posições nos trazem
mais perguntas do que respostas sobre a AP no Espírito Santo, que talvez
necessitem de uma outra pesquisa.
118 Domingos Freitas Filho. Entrevista em 10/11/1995. 119 MARTINS, Jussara. Entrevista concedida a Comissão da Verdade da Ufes, 2013.
50
SEGUNDA PARTE – A FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 1 - Literatura sobre o tema Os livros de João Martins Filho120 e Daniel Aarão Reis Filho121 são referências
fundamentais na orientação teórica do trabalho que nos propomos realizar. O
primeiro no que se refere à ME e a condição dos estudantes, o segundo na
discussão sobre a Esquerda naquele período. Partimos do fato de que não existe
uma bibliografia específica sobre o ME no Espírito Santo no período que estamos
analisando, entre 1964 e 1968. Os poucos trabalhos sobre o ME capixaba de que
temos conhecimento, tratam apenas de um período posterior à segunda metade da
década de 1970, marcado pela rearticulação do movimento e reconstrução do DCE-
Ufes.
1.1 – O ME e o estudante enquanto categoria social
No livro Movimento Estudantil e ditadura militar, Martins Filho parte de uma
indagação sobre como se deu a participação do ME universitário no processo
político brasileiro de 1964-1968122 para elaborar as suas hipóteses. Para o autor, a
atuação estudantil precisa ser analisada em conjunturas historicamente
determinadas, para que se possa compreender os diferentes conteúdos e formas
que assumem as mobilizações estudantis. Ele entende que não se pode perder de
vista o caráter concreto e específico das mobilizações estudantis em momentos
históricos diversos, o que nos parece ser uma perspectiva correta e que irá nos
orientar em nossa pesquisa.
Na parte inicial do livro, Martins Filho analisa criticamente diversos estudos que
contribuíram para a criação de uma espécie de “mitologia estudantil”,
frequentemente associada a uma auto-imagem construída no seio do próprio
movimento, que confere a atuação política dos estudantes um caráter genérico e
imutável, bem como conteúdos e objetivos permanentes123, que o reveste de uma
índole quase “naturalmente” revolucionária.
120 MARTINS FILHO, op. cit. 121 REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense; [Brasília]: CNPq, 1990. 122 MARTINS FILHO, Op. cit., p. 15. 123 Ibid., p. 17.
51
Baseado no conceito de Nicos Poulantzas124, Martins Filho apresenta os estudantes
como compondo uma categoria social inserida na classe média, o que faz com que
sua situação de classe se torne um fator fundamental na definição do caráter social
de sua participação. Para ele, a compreensão do comportamento político dos
estudantes não pode aferrar-se a um pressuposto da incompatibilidade das
reivindicações estudantis com os interesses de sua classe de origem. “Em outras
palavras, é preciso superar a idéia de que o radicalismo estudantil que, de quando
em quando, marca presença em nossa história, deva ter necessariamente um
caráter ‘revolucionário’, como têm afirmado vários autores” 125.
Não por acaso, ele vê na origem do radicalismo do estudante, especialmente na
década de 1960, os ressentimentos e as aspirações frustradas da classe média
ascendente. Não podemos esquecer que a tentativa significativa da classe média
brasileira de ascender socialmente através da educação de nível superior, naquele
momento, colidia com a política desenvolvida pelo regime militar de restrição a
expansão da oferta de vagas e destinação de vagas para as instituições públicas, ao
mesmo tempo em que sinalizava para a implantação do ensino pago.
Martins Filho ressalta que, no interior do próprio movimento, definem-se, dois níveis
de análise que estão interrelacionados, mas que possuem um grau significativo de
autonomia. Para o autor é necessário considerar, além das práticas de massa, a
especificidade das práticas e das orientações ideológicas que se configuram no nível
de direção do movimento. Assim, as práticas e as orientações do conjunto da categoria – da “massa” estudantil para conservar os termos do movimento – nem sempre se expressam diretamente e sem intermediações nas bandeiras levantadas por sua direção política. Este e outros fatores impedem que se tome apenas o nível de “vanguarda” como a expressão do próprio movimento. É preciso investigar, em cada caso, quais as reivindicações passíveis de suscitar apoio de massa, como se expresse esse apoio, quais as propostas e as táticas originárias da “vanguarda” que encontram respaldo na “massa”. Este e outros fatores impedem que se tome apenas o nível da “vanguarda” como expressão do próprio movimento126
Por reconhecer uma autonomia específica ao nível da vanguarda estudantil, Martins
Filho dedica um capítulo inteiro a questão da trajetória ideológica da liderança na
década de 1960, para entender os pressupostos políticos que fundamentaram as
propostas da esquerda entre os estudantes, especialmente no movimento de
124 Ibid., p.20. 125 Ibid., p. 23. 126 Ibid., p. 30-31
52
1968127. Para o autor, o projeto de reforma universitária da ditadura atacava
frontalmente os objetivos centrais e históricos do movimento universitário de classe
média, como a “abertura” das universidades aos setores médios através de
financiamento pelo Estado da expansão de matrículas.
1.2 - A esquerda e a leitura da realidade brasileira Daniel Aarão Reis Filho, ele mesmo ex-líder estudantil de 1968 e dirigente da
Dissidência Comunista da Guanabara, realiza uma análise mais detida sobre os
erros e a prática das direções de esquerda na década de 1960. A questão que
norteia o trabalho de Reis Filho é uma tentativa de explicação e compreensão das
constantes derrotas e os desencontros entre comunistas e a realidade social que
pretendiam transformar.
Para ele, os descompassos que marcam a trajetória dos grupos de esquerda –
derrotas políticas, desagregação orgânica, liquidação física - não se originam de
carências adjetivas, mas se explicam pelos fatores básicos de coesão que mantém
unidos e em ação as organizações comunistas, que ele denominou de “estados-
maiores revolucionários”.
Embora passe uma revista nos pontos que considera fracos nas organizações, ou
seja, a indigência teórica, o conhecimento superficial da realidade brasileira, o
fascínio pelos modelos internacionais e o flagelo da influência e da infiltração
pequeno-burguesas, para Reis Filho não são eles que convencem como causas
explicativas dos fracassos. É na dimensão mais interna da militância que ele busca
respostas para entender por que determinadas carências e desvios não foram
superadas e, por conseguinte, impediram o encontro entre revolucionários e a
revolução.
De acordo com Reis Filho, fatores de coesão, indispensáveis para o funcionamento
e fortalecimento das organizações comunistas, entre os quais ele lista os
pressupostos fundadores, a leitura legitimadora dos modelos internacionais, a
dinâmica antidemocrática, a estratégia da tensão máxima e a presença marcante
das elites intelectualizadas, debilitam e enfraquecem simultaneamente a capacidade
dos comunistas de manterem um contato e uma interação vivas e ágeis com o
processo histórico.
127 Ibid., p. 171-201.
53
Concluímos que os comunistas preparam-se para a revolução afastando-se da sociedade que pretendem revolucionar, adquirem coesão interna em troca do afrouxamento dos laços com a sociedade. É a lógica dos estados-maiores revolucionários: viver a revolução como um processo iminente, à espreita da oportunidade favorável. 128
Tratando do período entre 1964 e 1968, especialmente no último ano, Reis Filho
avalia que o protesto contra a ditadura se restringia à classe média e o que ele
chamou de “sua tradicional banda de música”, o movimento estudantil que, segundo
o autor, mostrou uma inegável força relativa, mas que não foi interpretada
corretamente por suas jovens lideranças.
A força relativa do movimento estudantil foi inegável. Enfrentou a lei e a polícia e soube estruturar-se como movimento social autônomo, com suas entidades representativas enraizadas nas universidades e nas faculdades, independentes do Estado e dos partidos políticos legais. Foi para as ruas, lutou, formou lideranças novas. Mas suas limitações eram muitas vezes ignoradas, talvez pela repercussão superdimensionada com que a imprensa noticiava as manifestações e protestos. Tratou-se de um cálculo de setores descontentes de nossas elites sociais pretendendo fazer do protesto estudantil um fator de pressão sobre o regime? O fato é que muitas jovens lideranças, e mesmo políticos mais experimentados, não souberam, freqüentemente, avaliar com frieza a força real do movimento. Daí para a retórica triunfalista foi quase sempre um passo que não poucos deram sem vacilar129.
Segundo ele, havia questões cruciais a serem consideradas e não o foram. Assim o
abismo existente entre as aspirações e possibilidades foram cobertos por uma
expectativa sem limites no papel da vanguarda.
1.3 - Adam Przeworski, a definição de classe média e o individualismo metodológico No texto A organização do proletariado em classe: o processo de formação de
classes o professor polonês de ciência política radicado nos Estados Unidos, Adam
Przeworski, publicado no livro Capitalismo e socialdemocracia130, sustenta uma
posição mais heterodoxa na discussão no âmbito do marxismo sobre o processo de
formação de classes e identidade do proletariado. Para o autor, as condições
econômicas, políticas e ideológicas estruturam conjuntamente a esfera das lutas que
têm como resultado a organização, desorganização e reorganização de classes.
128 REIS FILHO, op. cit., p. 19. 129 Ibidem, p. 65 130 PRZEWORSKI, Adam. A organização do proletariado em classes: o processo de formação de classe. In: Capitalismo e social democracia. São Paulo: Cia das Letras,1989. 54
De acordo com Przeworski, a análise de classes não pode se limitar às pessoas que
ocupam lugares no sistema de produção, já que uma consequência necessária do
desenvolvimento capitalista é que uma certa quantidade da força de trabalho
socialmente disponível não encontra emprego131. Assim, ele defende que os
processos de constituição de operários em classe estão indissoluvelmente
vinculados aos processos de organização da mão-de-obra excedente. Por isso,
segundo o autor, são possíveis diversas organizações de classes alternativas em
qualquer momento da história.
A espinha dorsal da primeira parte do artigo Przeworski é uma análise a crítica do
suposto “marxismo ortodoxo” expresso no livro Luta de Classes, escrito em 1892
pelo dirigente socialdemocrata alemão Karl Kautsky132, talvez o mais importante
pensador da social-democracia europeia do final do século XIX. Uma posição
mantida até a implosão da II Internacional, com a eclosão da Primeira Guerra
Mundial, quando a maioria dos partidos socialistas europeus (inclusive o Partido
Social Democrata alemão, do qual ele era um dos principais dirigentes) se colocou
patrioticamente ao lado de suas burguesias nacionais no conflito imperialista,
marcando um histórico divisor de águas para o movimento socialista, que se
consolidaria depois com a Revolução Russa de 1917 e, posteriormente, em 1919,
com a criação da Internacional Comunista.
O sociólogo polaco-americano rejeita a visão que considera o processo de formação
da classe como uma transição necessária e mecânica da classe-em-si para a
classe-para-si, no qual as relações econômicas são classificadas como objetivas e
todas as outras como pertencentes a esfera das ações subjetivas. Przeworski
aponta o que, a seu ver, são questões na formulação da “classe em si” definida ao
nível de “base”, simultaneamente objetiva e econômica, e “classe para si” como o
grupo na acepção sociológica do termo, a classe caracterizada pela organização e
pela consciência de solidariedade. Dadas essas categorias, o problema teórico e
prático passou a ser formulado em termos da transformação das relações de classe
“objetivas” (econômicas) em “subjetivas” (políticas e ideológicas). Para o autor, esse
tipo de formulação gera apenas duas respostas: determinista e voluntarista.
Na primeira, as relações objetivas necessariamente se transformam em relações
subjetivas, ou seja, as posições nas relações de produção tornam-se “refletidas” nos
131 Op. cit., p. 65-68; 132 Ibid., p. 68-86.
55
interesses e ações políticas expressos. Na resposta voluntarista, as condições
objetivas não conduzem espontaneamente “por si mesmas” à organização política
das classes, que se formam politicamente como resultado de uma intervenção
organizada de um agente externo, o partido133.
Przeworski discute o conceito de proletariado assinalado por Kautsky e afirma que
nem o dirigente socialdemocrata e nem Marx deduziram, a partir da teoria do
desenvolvimento capitalista de Marx, a consequência do mesmo para a evolução da
estrutura de classes. Segundo ele, a própria dinâmica do desenvolvimento
capitalista produz a fonte da ambiguidade do conceito do proletariado. Assim,
Przeworski assinala que o desenvolvimento capitalista transforma continuamente a
estrutura de lugares no sistema de produção e realização de capital, bem como em
outros modos de produção que passar a ser dominado pelo capitalismo. Mais precisamente, a penetração do modo de produção capitalista em todas as áreas de atividade econômica resulta na separação de vários grupos da propriedade dos meios de produção ou da efetiva capacidade de transformar a natureza em produtos úteis. Ao mesmo tempo, a crescente produtividade do trabalho diminui, em termos relativos, a utilização da força de trabalho pelos capitalistas. Em consequência, o processo de proletarização no sentido de separação dos meios de produção diverge do processo de proletarização no sentido da criação de lugares de trabalhadores produtivos. Essa divergência gera relações de produção capitalista, pois conduz exatamente à separação de pessoas de qualquer processo de produção socialmente organizado134.
O cientista político polaco-americano afirma que, em termos de criação de novos
lugares no interior da estrutura do capitalismo desenvolvido, o termo proletarização
não significa necessariamente a criação de novos lugares relativos ao trabalho
produtivo manual. De acordo com ele, os problemas da conceituação da estrutura
de classes resultam principalmente, apesar de não exclusivamente, do surgimento
de pessoas alternadamente denominadas de empregados de colarinho-branco,
operários não manuais, “ouvriers intellectuels”, empregados de serviços, técnicos e
“novas classes médias”.
Przeworski afirma que Kautsky, na década de 1890, não havia percebido nenhum
fator estrutural no aparecimento das “novas classes médias”, considerando todas as
atividades típicas da classe média formas efêmeras e marginais por meio das quais
133 Ibid., p. 71. 134 Ibid., p. 79.
56
as pessoas expulsas do processo de produção procuram escapar ao destino que
lhes impõe o desenvolvimento capitalista135 .
Para o autor, o termo “classe” denota uma classe de ocupantes de lugares e o
problema a ser analisado no contexto dessa problemática é saber como um grupo
de indivíduos ocupantes de lugares torna-se uma coletividade em luta para a
realização de seus interesses objetivos136. Essa formulação é, de acordo com ele, o
que torna tão incômodo o surgimento dos trabalhadores não manuais. A redefinição
das relações que determinam as bases objetivas da formação de classes é, sustenta
o cientista político, a única forma para que a presença de que esses trabalhadores
seja acomodada no contexto da formulação da problemática das classes.
Przeworski defende que, como agentes históricos, as classes não são determinadas
unicamente por quaisquer posições objetivas, nem mesmo as de operários e
capitalistas, porque constituem efeitos de lutas, e essas lutas não são determinadas
exclusivamente pelas relações de produção. Para ele, a formulação marxista
tradicional não permite raciocinar teoricamente sobre as lutas de classes, uma vez
são reduzidas a um epifenômeno ou as considera livres de determinação objetiva. (As classes) São estruturadas pela totalidade das relações econômicas, políticas e ideológicas, e produzem um efeito autônomo sobre o processo de formação de classes. Porém, se as lutas realmente produzem um efeito autônomo sobre a formação de classes, os lugares nas relações de produção, sejam quais forem, não mais podem ser considerados objetivos no sentido da problemática da “classe em si”, ou seja, no sentido de determinarem exclusivamente que classes emergirão como classes em luta. . Isso implica que as classificações de posições devem ser vistas como inerentes às práticas que resultam (podem resultar) na formação de classes. A própria teoria de classes deve ser considerada intrínseca a projetos políticos específicos.
Para Przeworski, as posições nas relações de produção, ou quaisquer outras
relações, são objetivas apenas na medida em que validam ou invalidam as práticas
de formação de classes e que tornam os projetos específicos realizáveis ou não. O
mecanismo de determinação, segundo ele, não é único, pois vários projetos podem
ser viáveis numa determinada conjuntura. “As classes são um efeito de lutas que
ocorrem em uma determinada fase do desenvolvimento capitalista. Devemos
compreender as lutas e o desenvolvimento em sua articulação histórica concreta,
como um processo” 137.
135 Ibid., p. 85 136 Ibid., p. 86 137 Ibid., p. 87.
57
O cientista político polonês-americano afirma que as classes são um elemento
anterior à história das lutas concretas e a realidade social não se evidencia
diretamente por meio dos nossos sentidos. De acordo com ele, Marx e Gramsci
afirmaram que é na esfera da ideologia que as pessoas tomam ciência das relações
sociais. “Aquilo que passam a acreditar e o que fazem é efeito de um longo
processo de persuasão e organização por forças políticas e ideológicas engajadas
em numerosas lutas pela realização dos seus objetivos” 138.
Assim, ele assinala que as classes são organizadas e desorganizadas em
consequência de lutas contínuas. Partidos que se pretendem representantes do
interesse geral, sindicatos, jornais, escolas, burocracia oficial, associações civis e
culturais, fábricas, exércitos e igrejas participam do processo de formação] de
classes no decorrer de lutas que dizem respeito fundamentalmente à própria divisão
da sociedade. “A luta ideológica é uma luta a respeito de classes antes de ser uma
luta entre classes” 139.
No entanto, Przeworski diz que o processo de formação de classes não se limita à
esfera ideológica, uma vez que as lutas políticas, organizadas de uma maneira
específica, também têm como efeito a própria forma de organização das lutas de
classes. As lutas econômicas, segundo ele, sempre aparecem historicamente em
sua articulação concreta na totalidade das lutas, sempre em uma forma moldada por
relações políticas e ideológicas. “O próprio direto de organizar-se é um efeito de
lutas que, por sua vez, estabelecem a forma da organização de classe. Portanto, a
organização de lutas econômicas não determinadas unicamente pela estrutura do
sistema de produção” 140 (p. 91).
Przeworski reafirma que as classes são formadas como efeitos de lutas e que o
processo de formação de classes é perpétuo. Elas são continuamente organizadas e
desorganizadas. A formação de classes é um efeito da totalidade das lutas, nas
quais diversos agentes históricos procuram organizar as mesmas pessoas como
membros de uma classe, como membros de coletividades definidas em outros
termos (negros, católicos, mulheres, etc.), às vezes como membros da sociedade.
O autor, no entanto, alerta para o fato de que a sociedade não é uma peça teatral,
na qual os portadores de relações sociais representam seus papéis, mas consiste
138 Ibid., p.90. 139 Idem. 140 Ibid., p. 91.
58
em conjunto de condições que determinam que cursos de ações produzem quais
consequências para as transformações sociais. As relações sociais são dadas para
um sujeito histórico, individual ou coletivo, como esferas de possibilidades e
estruturas de escolha. As classes não emanam das relações sociais, quer sejam relações econômicas isoladamente ou em combinação com todas as demais relações. Constituem efeitos de práticas, das quais o objeto é precisamente a organização, desorganização e reorganização de classes. As relações sociais são objetivas no que concerne aos processos de formação de classes apenas no sentido de que estruturam as lutas que têm como seu efeito potencial a formação de classes. 141
Para o autor polaco-americano, a dissociação do vínculo entre os operários e o
movimento fortalece a imagem de uma sociedade sem classes e diminui a
relevância da classe como base para a identificação coletiva. Isso, segundo o ele,
conduz ao ressurgimento de outras bases de identificação, sejam elas
fundamentadas na magnitude de renda, natureza do trabalho, religião, língua,
região, sexo ou raça. “Nesse sentido, o processo de organização das massas
desorganiza os operários” 142 (p. 98).
Ao mostrar que, em tempos normais da democracia capitalista, os movimentos da
classe operária devem tornar-se organizados como partidos eleitorais de massa que
não tratam de forma distinta os operários dos membros de outras classe, Przeworski
afirma que essa formulação enfatiza a descontinuidade da organização de classe.
De acordo com ele, as classes não são mais vistas como sujeitos históricas
contínuos. As lutas de classes, no sentido de lutas sobre formação de classes e de
lutas entre forças de classes organizadas, sempre ocorrem em conjunturas
específicas, alterando-se com a mudança das mesmas. “Portanto, as lutas de
classes não podem ser reduzidas a lutas entre classes ou em meio às classes. Ou,
em outras palavras, as classes em luta são um efeito de lutas sobre classes” 143.
Para Przeworski, as afirmações de que todos os conflitos que ocorrem em qualquer
momento da história podem ser compreendidos em termos históricos, se e somente
se, forem vistos como sendo efeitos da formação de classes e, por sua vez,
produzindo efeitos sobre essa formação, desempenham o papel de um postulado
metodológico.
141 Idem. 142 Ibid., p. 98. 143 Ibid., p. 99.
59
De acordo com ele, a condição impar da teoria de Marx, como o próprio pensador
alemão teria percebido, não está fundamentada na observação de que as
sociedades são divididas em classes, nem na declaração de que as sociedades
passam por transformações legais no decorrer da sua história, mas sim no postulado
que a luta de classes é o motor da história, ou seja, os conflitos concretos e os
desenvolvimentos de longo prazo afetam sistematicamente um ao outro.
Przeworski afirma que o ponto de partida para a análise da classe média deve ser a
dinâmica da acumulação capitalista, que gera força de trabalho excedente como
uma tendência de longo prazo, assim como gera repetidamente produto excedente
em ciclos de produção considerados isoladamente. O autor assinala que a força de
trabalho excedente é gerada quando o desenvolvimento capitalista,
simultaneamente, destrói outras formas de organização da produção e reduz a
necessidade relativa de mão-de-obra no sistema capitalista de produção144 O cientista político de origem polonesa também coloca em discussão o conceito de
trabalho produtivo e diz desconhecer que tipos de trabalho são necessários para a
produção das relações capitalistas. No entanto, ele afirma que, hoje em dia, está
menos propenso a acreditar, como Marx, que as relações capitalistas, não só de
produção, mas também legais e ideológicas, reproduzem-se “por si mesmas”, por
meras repetições de ciclos de produção. “Tendemos a julgar, portanto, que todas as
pessoas empregadas nos ‘aparelhos’ são realmente necessárias para a
continuidade da acumulação capitalista145”.
De acordo com Przeworski, o sistema de produção capitalista não estrutura as
formas de força de trabalho excedente. Ele gera força de trabalho excedente, mas
não a distribui em lugares a serem ocupados, deixando-a na condição de “serviçais”,
no sentido atribuído por Marx. A determinação de lugares, segundo ele, é limitada às
relações de produção amplamente concebidas, ou seja, todas as relações que são
necessárias para que ocorra à acumulação capitalista.
O autor assinala que, além das relações de produção amplamente concebidas –
distribuição, circulação, educação, legitimação, etc. –, não existem “lugares”,
posições estruturadas anteriormente às lutas de classes, e não há posições a serem
ocupadas. A força de trabalho excedente pode assumir a forma de emprego na
administração pública ou de aposentadoria antecipada. A forma de organização da
144 Ibid., p. 104. 145 Ibid., p. 106
60
força de trabalho não é determinada pelas relações de produção e sim constitui um
efeito direto de lutas de classes146.
Przeworski lista formas que pode assumir a força de trabalho excedente: 1) o
subemprego: ora, este é caracterizado pela baixa remuneração, falta de proteção
legal ou com regras flexibilizadas, informalidade em alguns casos, ilegalidade em
outros; 2) o exército industrial de reserva como definido por Marx, um fator regulador
de salários; 3) exclusão permanente do emprego por toda a vida do indivíduo; 4)
formas distribuídas ao longo da vida de determinados indivíduos, principalmente
instrução e aposentadoria; 5) distribuição ao longo do período de trabalho, em
termos de menos horas de trabalho, fins de semana prolongados, etc.147 (p. 110).
O autor assinala que uma quantidade variável de força de trabalho excedente em
diferentes sociedades capitalistas é mais ou menos permanentemente separada do
sistema de produção, especialmente nos Estados Unidos, onde coincide em grande
medida com critérios raciais. Parte da força de trabalho excedente é distribuída ao
longo da vida dos indivíduos, parte racionalmente distribuída ao longo do período de
trabalho de indivíduos específicos. Przeworski conclui afirmando que a mera
existência de força de trabalho excedente implica que a análise das sociedades
capitalistas atuais não deve se limitar aos lugares que são estruturados pelo sistema
de produção. Talvez convenha reiterar essa argumentação. Afirmei que (1) o sistema capitalista de produção estrutura os lugares de produtores imediatos, de organizadores do processo de trabalho e talvez daqueles que não se enquadram nessas categorias mas são necessários para a reprodução capitalista; (2) esse sistema de produção, ao logo de seu desenvolvimento e sob impacto indireto de lutas de classes, gera uma certa quantidade de força de trabalho excedente, mas não estrutura as formas de organização social dessa força de trabalho; (3) a força de trabalho excedente assuma formas que constituem um efeito direto de lutas148.
No final do artigo, Przeworski introduziu um pós-escrito no qual se refere ao método
escolhido para o estudo do processo de formação de classe, o individualismo metodológico (grifo nosso). No entendimento do autor, a vinculação entre as
relações sociais e comportamento individual é, a seu ver, o calcanhar de Aquiles do
marxismo. Para o sociólogo polonês-americano, as relações sociais devem ser
tratadas como estruturas de escolhas disponíveis aos agentes, e não como fontes
de padrões a serem internalizados e expressos em atos. As relações sociais
146 Ibid.,, p. 109-110 147 Ibid., p. 110 148 Ibid., p. 111.
61
constituem as estruturas com base nas quais os agentes individuais e coletivos,
deliberam sobre objetivos, percebem e avaliam alternativas e selecionam linhas de
ação.
De acordo com Przeworski, embora as relações sociais constituam uma estrutura de
escolhas segundo a qual os agentes fazem sua opção, essa opção pode alterar as
próprias relações sociais. “Estas não são independentes das ações humanas. Não é
nesse sentido que são “objetivas”. São objetivas, indispensáveis e independentes da
vontade individual apenas no sentido de constituírem as condições sob as quais as
pessoas lutam sobre transformar ou não suas condições149”.
Para Przeworski as classes também já não são um dado. A estrutura de classes,
segundo ele, já não pode ser interpretada unicamente a partir das relações de
propriedade, já que a estrutura de escolhas que resulta na formação de classes é
um produto de conflitos também na esfera política. O sociólogo polonês-americano
diz encontrar imensa dificuldade na compreensão da política em termos de conflito
de classes. Para ele, toda a dificuldade origina-se de considerar as posições de
classe como um dado a partir do qual se inicia a análise. Os indivíduos defrontam-se com escolhas, e uma delas pode ser tornar-se operário, outra cooperar com outros operários. Porém, realmente têm escolha, e devemos analisar toda a estrutura de opções como dada para os indivíduos, não para os operários. Pois pode acontecer de existirem condições sob as quais a sua escolha seja tornarem-se operários e cooperar com capitalistas contra outros operários, e o caráter de otimização de tal estratégia pode ser incompreensível se truncarmos o conjunto de escolhas considerando os indivíduos como operários natos150.
1.4 – O ME em estados periféricos Não é muito frequente encontrar trabalhos que tratam da especificidade do ME em
Estados periféricos, por isso, consideramos também importante a leitura do livro de
Justina Iva de A. Silva, referente ao movimento no Rio Grande do Norte no período
de 1960 a 1969151. No entanto, embora também reivindique o conceito de categoria
social de Martins Filho e a necessidade de que análise do movimento universitário
seja feito em conjunturas históricas determinadas152, a autora centra sua abordagem
na relação entre o movimento em seu Estado e o ME nacional, para ela uma forma
149 Ibid., p. 118. 150 Ibid., p. 119. 151 SIVA, Justina Iva de Araújo. Estudantes e política: estudo de um movimento (RN – 1960-1969). São Paulo: Cortez, 1989. 152 Ibid., p. 18
62
de resgate de sua memória, mas como se fossem quase complementares, como se
um fosse apenas extensão da configuração do outro.
Justina assinala a importância de não apenas enumerar fatos e atividades políticas
do ME, mas sim compreender o seu significado. No entanto, contraditoriamente,
principalmente no período seria o foco de seu trabalho, a autora não mergulha na
especificidade do movimento dentro do contexto local, naquilo que lhe seria próprio.
Os episódios que marcaram o movimento naquele período estão lá, mas a
especificidade está limitada aos eventos e não a sua dinâmica interna, nem mesma
o contexto político, econômico e social que marcavam o Rio Grande do Norte
naquele período.
2 - A Universidade, os estudantes e a classe média no período 1964-1968 Martins Filho afirma que a compreensão do comportamento político dos
universitários não pode aferrar-se ao pressuposto da incompatibilidade das
reivindicações estudantis com os interesses de sua classe de origem153. Para
explicar o engajamento do estudante no seu quadro de vinculação de classe,
Martins Filho afirma que, enquanto categoria social, o estudante tem como uma de
suas principais características, a transitoriedade, que ele define como um “vir-a-ser”,
que o configura como um “projeto de profissional”, que vê na carreira o seu próprio
projeto. As relações que ele passa a estabelecer com seu projeto de carreira
assumem importância fundamental na formação de sua consciência radical. Na origem do radicalismo do estudante estariam os ressentimentos e as aspirações frustradas da classe média ascendente. Ao tentar ultrapassar os limites que se antepõem à ascensão de sua classe, ele passa a ser o agente radical do processo de sua superação e seu desvinculamento se define como a busca por atingir o engajamento pequeno-burguês.154
Para Martins Filho, o movimento estudantil não está isento das contradições,
ambigüidades e vacilações que caracterizam o comportamento político das classes
médias que, se acrescidas de certas características específicas do meio estudantil,
como a abertura aos interesses e influências de outros grupos sociais, além de uma
particular flexibilidade, originária de sua condição transitória e particularidades do
espaço e do tempo estudantis, abre-se a possibilidade de entender porque uma das
alternativas do movimento é a aproximação com as classes populares155.
153 MARTINS FILHO, op. cit. p. 23. 154 Ibid., p. 27 155 Ibid., p. 28
63
Diante da posição de vinculação do caráter social da participação política dos
estudantes como categoria social à sua condição de classe, Martins Filho recorre
aos estudos de Décio Saes para analisar o comportamento político das classes
médias entre 1964 e 1968. De acordo com ele, um exame mais atento das posições
das camadas médias na conjuntura de militarização do Estado brasileiro no período
pós-golpe, começando pela alta classe média, mostra que, eliminada as motivações
mais imediatas de seu apoio à intervenção popular, com a contenção da agitação
popular e o afastamento da “ameaça” do comunismo, ela retomaria suas aspirações
por um regime liberal-democrático “puro”, livre das características de “massa” da
democracia populista, com hegemonia dos partidos liberais clássico, dos quais a
UDN era o modelo156.
Essas aspirações seriam frontalmente contrariadas pela política autoritária, que
destruiu o sistema partidário, inclusive a UDN, partido mais identificado com a
classes médias mais conservadoras, seguida de outras medidas que cerceariam a
manifestação da oposição liberal através dos instrumentos políticos que antes
dispunha. Saes aponta a existência de uma “consciência social dilacerada”, que
dividia a alta classe média entre a aprovação da economia e a condenação da
política, num quadro marcado por características crescentes de “ilusão política”, o
que não impediu que as organizações e entidades profissionais desses setores se
constituíssem em pólos de crítica constante ao autoritarismo, como depois ficaria
claro, com a participação da classe média liberal nas manifestações anti-ditatoriais
de 1968157.
O contexto pós-golpe, segundo Martins Filho, também não presenciaria a adesão da
classe média baixa à política do Estado e nem de suas disposições prévias,
populistas e estadistas, trazidas do período anterior. Atacadas em seus interesses econômicos diretos pela política de concentração de renda, privadas de seus meios tradicionais de pressão, com a neutralização do sindicalismo médio e em presença da anulação de outros elementos da legislação social populista, as baixas camadas médias caracterizariam a sua atuação política pelo apego nostálgico à imagem do “Estado protetor” da fase populista.158
De acordo com Saes159 o Estado Militar não só empobreceu as camadas médias
baixas, mas por suas práticas e estrutura, também lhes tirou a esperança, jamais
156 Ibid., p. 79 157 Ibid., p. 79. 158 Ibid., p. 80. 159 Ibid., idem.
64
desmentida pelo Estado populista, de concretização do progresso e do bem estar
social. Dessa maneira, o apoio à política autoritária, naquele período, iria se
restringir a um setor ainda minoritário das classes médias, ao que ele chamou de
“nova classe média”. Entretanto, as características desmobilizadoras do novo
sistema político não permitiriam que a nova classe média superasse a condição de
base potencial de apoio ao autoritarismo.
De acordo com Martins Filho, em contraste com a integração política que marcou o
período anterior ao golpe, a classe média passou a enfrentar uma progressiva
exclusão política, o que permitiria definir seu apoio à destruição do populismo como
um suicídio político. Para Saes, as manifestações “anti-ditatoriais” e “democráticas”
de 1968 constituem uma tentativa de retorno ao passado, um último grito de revolta
contra a exclusão política e de reivindicação do ‘direito’ à política160.
Martins Filho afirma que, no quadro mais amplo da exclusão política da classe média
após a destruição do populismo, o meio estudantil parece ter interpretado a
neutralização de seus instrumentos de reivindicação pelo regime como uma ameaça
à “democratização do ensino”. Essa análise é importante, já que na perspectiva do
autor, que entende que os aspectos políticos da estratégia militar para a
universidade é que se constituíram na motivação inicial do protesto estudantil, a
política educacional do Governo só aparecerá como tema central a partir de 1967, o
que para ele contraria a hipótese de um caminho linear e necessário da consciência
estudantil e do protesto estudantil, que deveria partir dos problemas específicos para
chegar às questões políticas mais gerais161.
Martins Filho situa a ascensão da esquerda e o declínio de influência das posições
liberais no ME - que haviam assumido um papel importante nos meses
subseqüentes ao golpe -, no quadro de fragilidade das posições liberais diante da
militarização do Estado pós-1964, pois os setores liberais da classe média viram-se
desprovidos do apoio organizacional e ideológico de que dispunham anteriormente,
isolando-se de seus tradicionais aliados da burguesia. Para ele, o endurecimento da
política repressiva e radicalização de massa, em 1966, seria o momento–chave que
marcou a decadência da influência liberal e ascensão da esquerda no ME162.
160 Ibid., p. 81. 161 Ibid., p. 103. 162 Ibid., p. 104.
65
No que se refere às aspirações da classe média em relação ao ensino superior,
Martins Filho assinala que os problemas da Universidade brasileira, expresso na
estrutura acadêmica baseada na cátedra vitalícia, na falta de equipamentos e
instalações, carência de vagas nas escolas públicas e currículos inadequados, que
já vinham vindo à tona no período final do período populista, não só não
encontraram solução como ainda se agravaram com a ditadura militar, diante da
drástica redução de verbas destinadas para a educação e, especialmente para as
universidades federais.
Segundo o Martins Filho163, as dotações orçamentárias para o Ministério da
Educação e Cultura (MEC) caíram de 11% para 7,7% do total do Orçamento da
União entre 1965 e 1968. Se entre 1965-1966, o ME havia se voltado basicamente
contra a estratégia repressiva do Estado, deixando para segundo plano as
reivindicações educacionais, a partir do início de 1967, o quadro de crise do
aparelho universitário voltaria à tona com vigor com a ruidosa crise dos
excedentes164, devido a incapacidade das universidades em absorver a crescente
demanda nos vestibulares.
Aliás, um problema que parece ter atingido também a Ufes, mas ainda não em que
dimensão, pois só o encontramos no depoimento de algumas poucas lideranças
daquele período165. Na reunião do Conselho Universitário de 04 de abril de 1967, o
reitor Alaor de Queiroz Araújo, comunica que foi convocado para se fazer presente,
junto com os diretores das Faculdades de Medicina e da Escola Politécnica, de um
reunião no MEC com todos os reitores das universidades federais, para tratar da
questão dos excedentes, por serem justamente as duas unidades as mais afetadas
pelo problema.
De acordo com o magnífico, ficou estabelecido que excedente seria, em verdade, o
vestibulando que, tendo atingido média para aprovação, não conseguiu se matricular
por falta de vaga e não uma série de comparações entre regimentos e nem
tampouco o sistema de classificação adotado na Guanabara, onde o problema era
mais grave, em que 0,001 chegou a ser considerado média de aprovação166. O reitor
prosseguiu seu relato, afirmando que a Presidência da República, através do
163 Ibid., p. 123. 164 Excedentes eram os estudantes que, aprovados nos vestibulares, não conseguiam vagas, devido a incapacidade das escolas em absorver a demanda. 165 É o caso, por exemplo, de Iran Caetano, que em 1967 ingressou no curso de Medicina. 166 UFES-DAOCS. Livro de atas das sessões do Conselho Universitário. Sessão de 04 de abril de 1967.
66
ministro da Educação, apresentou aos reitores uma minuta de convênio. Queiroz
Araújo não deu maiores detalhes sobre o que tratava o convênio, mas contou que o
então Ministro da Educação havia dito que o problema não deveria ser enfrentado
mais com uma solução de emergência, mas sim para ser estudado em uma
programação bem planejada.
Assim, como solução de curto prazo, ficou estabelecido que os estudantes da
Guanabara seriam matriculados naquela área, efetuando-se para os 900 excedentes
de Medicina, um segundo vestibular, em junho daquele ano, sendo os aprovados
absorvidos no Rio de Janeiro e, na inteira possibilidade de absorção, seriam
distribuídos pela diversas unidades da Federação. O Ministro ainda solicitou aos
reitores, a elaboração de um plano de expansão, para que o problema fosse
solucionado167.
A política educacional integradora dos governos populistas, segundo Martins Filho,
foi substituída pela contenção de verbas para a educação e quase paralisação dos
investimentos públicos para as universidades. Assim, no plano da universidade, a ausência de verbas e, consequentemente, de vagas, passa a ser uma das manifestações da situação mais geral de “exclusão política” dos setores sociais médios, no pós-64. Contrariando os interesses desses grupos, já nos primeiros anos do pós-golpe, o Estado deixou de financiar a expansão do ensino, política que se inseria no contexto mais amplo de suas novas funções como agência de concentração do capital e da estratégia de redução de gastos em áreas não diretamente produtivas168.
Para Martins Filho, o projeto de reforma universitária da ditadura atacava
frontalmente os objetivos centrais e históricos do movimento universitário de classe
média no Brasil. Em primeiro lugar, a “abertura” da universidade aos setores médios, através do financiamento pelo Estado da expansão das matrículas e, no nível mais geral, das expectativas médias de ascensão social via a aquisição de uma profissão de grau superior. O Estado militar recusou-se explicitamente a continuar a política de expansão e integração do ensino superior característica do período populista. Em segundo lugar, estreitamente relacionada ao primeiro, a reivindicação de participação nas decisões universitárias e de cogestão da Universidade, principal motivação da greve do início dos anos 60, por um terço. No pós-64, todas as decisões educacionais seriam encaminhadas sigilosamente e no restrito círculo de “técnicos” recrutados entre burocratas conservadores e os próprios militares169.
167 Ibid. 168 MARTINS FILHO, op. cit., p. 124. 169 Ibidem, p. 132
67
3 – A Esquerda e a análise da realidade brasileira - 1964-1968 Um estudo sobre o ME do período entre 1964 e 1968 não pode deixar de lado uma
análise sobre as posições da esquerda, que teve papel crucial na direção das
principais mobilizações ocorridas naquele período. Em um livro que analisa as raízes
dos encontros e desencontros que levaram a esquerda brasileira à derrota durante a
década de 1960, Daniel Aarão Reis170 dedica uma parte de seu trabalho também à
um inventário das posições e ações desenvolvidas por algumas organizações
comunistas no período entre 1964 e 1968. Infelizmente, não foram incluídas no seu
estudo as posições da Ação Popular (AP), corrente de esquerda católica que evoluiu
para o maoísmo e que manteria a hegemonia dentro do ME em boa parte da época,
o que é uma limitação para nosso trabalho, já que a AP possuía uma grande
importância no Movimento Estudantil local. .
Para Reis Filho, a esquerda brasileira enfrentou a complexa conjuntura que se
estenderia de abril de 1964 à edição do AI-5, fragmentada organicamente e
desarmada por concepções sumárias sobre a sociedade brasileira, recusando-se a
perceber a vitalidade e a capacidade de recuperação do capitalismo brasileiro, que,
protegido pela sombra armada pelos militares, preparava um novo ciclo de
crescimento171.
O autor passa em revista as posições das diversas organizações de esquerda172
sobre a crise do capitalismo brasileiro173, no qual tecem um quadro apocalíptico
sobre a falta de alternativas para a ditadura e a burguesia, como se a sociedade
brasileira fosse um barril prestes a explodir e a situação fosse mesmo de um
impasse sem saída para um desenvolvimento que se chocava contra limites
estruturais intransponíveis. Mas a realidade surpreendeu, desmanchando expectativas o capitalismo retomava o crescimento, o fantasma da crise catastrófica se afastava. Contudo, a esquerda comunista recusava a evidência de que o capitalismo definia e assumia novos caminhos. Por outro lado, negava contradições e nuances entre as classes dominantes. De fato, não se atribuiu nenhuma importância, ou nem se sequer se percebeu que a nova hegemonia do
170 REIS FILHO, Daniel, op. cit., p. 45-76 171 REIS FILHO, op. cit., p. 53. 172 No livro de Daniel Aarão Reis Filho são citadas posições e documentos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e suas dissidências (entre as quais o PCBR e a DI-GB), do Partido Comunista do Brasil (PC do B) e suas dissidências (Ala Vermelha e Partido Comunista Revolucionário – PCR), da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (ORM-Polop) e Partido Operário Comunista (POC) e suas dissidências (Comandos de Libertação Nacional – Colina – e Vanguarda Popular Revolucionária – VPR). 173 REIS FILHO, op. cit., p. 54-57.
68
capital internacional e associado teria que passar pelo silenciamento e subordinação de forças políticas e institucionais consideráveis174.
Para falar das bases sociais que levariam uma parte considerável das esquerdas
dos anos de 1960 a mergulhar na luta armada, Reis Filho avalia que os comunistas
superestimavam a revolta do povo frente à política repressiva do regime militar. As
medidas repressivas haviam diminuído drasticamente a possibilidade de
participação ou influência das classes populares no processo político. Não faltavam
motivos para a insatisfação, mas as organizações comunistas pouco aprofundavam
as razões da pouca resistência oferecida no momento do golpe ou das dificuldades
objetivas que se colocavam ao processo de rearticulação dos trabalhadores. Com efeito, até a edição do AI-5, o movimento popular esteve praticamente sem ação. No biênio 1967-1968 algumas iniciativas puderam criar a impressão de retomada das lutas sociais urbanas: a formação do Movimento Intersindical Antiarrocho (MIA), pequenas manifestações em Porto Alegre, as greves ilegais em Contagem (Minas Gerais) e Osasco (São Paulo). Muitos quiseram ver nestes movimentos um sinal, um novo começo, e a comprovação de suas teses a respeito de uma iminente explosão rural175.
Mas para Reis Filho, na verdade o protesto se restringia às classes médias,
especialmente o Movimento Estudantil. Para ele, muitas questões políticas cruciais
não foram respondidas e algumas nem colocadas, mas as organizações comunistas
estavam decididas a passar à ação, embora as “massas” não parecessem estar
sintonizadas com os projetos e planos que eram formulados nos documentos
políticos. “O abismo existente entre aspirações e possibilidades seria coberto por
uma expectativa sem limites no papel da vanguarda. As organizações comunistas
tendiam a superdimensionar suas tarefas e responsabilidades176”.
Conforme assinala Reis Filho, ainda que com diferentes nuances, as organizações
comunistas avaliariam o AI-5 como prova do “isolamento” em que se encontrava a
ditadura. Um “golpe de desespero”, uma “medida desesperada”, enfim, uma
expressão da “debilidade” do regime, que sequer teria sido aprovada pelas classes
dominantes. Todas apontaram a “ineficácia” do ato, que tendia a agravar as
contradições entre as classes dominantes e não seria capaz de resolver nenhum
dos problemas colocados pela crise que passava o país177.
174 Ibid., p. 56-57 175 Ibid., p 63-64 176 Ibid., p. 64 177 Ibid., p. 69
69
Assim, as organizações comunistas da época chegaram à conclusão de que as
condições de luta seguiriam sendo favoráveis para as “massas”. De acordo com
Reis Filho, o destino da derrota comum aproximaria os comunistas e o que
impressiona é a defasagem entre suas propostas e a realidade viva do processo
social. Os comunistas previam uma situação catastrófica. Mas o capitalismo não vivia uma situação limite. O novo ciclo de desenvolvimento desmentiria as previsões de uma contradição insolúvel entre as “forças produtivas” e as “relações de produção”. Falhara também a idéia de que se aproximavam grandes lutas sociais. Nem luta armada, nem mesmo “choques violentos”. Os sismógrafos socais recusavam-se a registrar terremotos. Havia insatisfação, mas contidas por contratendências que jamais seriam estudadas e ainda hoje necessitam de melhor investigação178.
Os equívocos da esquerda naquele período, na avaliação de Reis Filho, atingiram
um ponto de condensação crítica por ocasião do AI-5, que não era uma medida de
defesa por parte de um governo acuado, como imaginavam as organizações de
esquerda, mas sim o início de uma ofensiva generalizada de um governo forte. Ao
analisar os postulados e mecanismo de coesão das organizações comunistas, que
para Reis Filho, estão na raiz da compreensão das constantes derrotas políticas da
esquerda, o autor assinala que os militantes raramente trabalhavam com estatísticas
ou fontes primárias, limitando-se a ler, quando o faziam, as obras mais divulgadas
em cada momento.
Se como afirmam Martins Filho e Reis Filho, as organizações de esquerda possuíam
uma leitura equivocada da realidade brasileira naquele momento histórico, não se
pode mesmo esperar que seus militantes estivessem atentos à realidade regional
em Estados periféricos como o Espírito Santo, especialmente na década de 1960,
quando praticamente não havia a produção de trabalhos que tivessem como foco a
realidade específica do Estado. O mais provável era que ela fosse ignorada, em
detrimento de uma visão nacional, ela mesma, contendo limitações e equívocos.
Antônio Caldas Brito, que foi dirigente estudantil do PCB e, posteriormente, da Ala
Vermelha, admitiu que não a discussão sobre a realidade regional praticamente não
existia. “A discussão nossa era sobre a realidade nacional. A realidade regional era
mais no sentido da organização, porque se tinha consciência que não se mudava
nada a partir de uma mudança política regional, a não ser do fortalecimento da
organização interna, das ações internas” 179.
178 Ibid., p. 72. 179 Entrevista Antônio Caldas Brito, 02/10/2012.
70
5. O debate teórico
Martins Filho e de Aarão Reis Filho foram as ferramentas fundamentais para a
análise que realizamos sobre o Movimento Estudantil na década de 1960. O
primeiro, analisando os estudantes enquanto categoria social vinculada à classe
média. O segundo, embora não negue o vínculo do ME com a classe média,
chegando a caracterizá-lo como a “tradicional banda de música da classe média”,
possui seu foco mais nos desencontros políticos e teóricos das organizações de
esquerda, numa análise que alcança também o aspecto cultura que atravessa a
elaboração política das mesmas.
Usamos Adam Przeworski para problematizar o objeto de nossa pesquisa, mesmo
sabendo que em seu texto ele se refere à classe trabalhadora num país avançado,
especialmente na Europa, Martins Filho e os autores que ele trabalhou, Nicos
Poulantzas, Décio Saes e Marialice Forrechi, possuem uma perspectiva mais
estruturalista, enquanto o autor polonês defende o que ele definiu como
individualismo metodológico, numa perspectiva pós-marxista.
Adotar o corte classe para análise, ainda que se admita as nuances da definição de
categoria social de Nicos Poulantzas, não significa que excluamos outras
possibilidades e critérios, principalmente depois que tivemos contato com o
paradigma dos Novos Movimentos Sociais, do qual ainda estamos longe de nos
aprofundar. Thompson, segundo Maria da Glória Gohn, afirmam que as classes se
formam nas luta. Surgem porque homens e mulheres, em relações produtivas
determinadas identificam seus interesses antagônicos e passaram a lutar, a pensar
e a valorar em termos de classe. Dessa maneira, de acordo com ela, na concepção
do historiador britânico, a formação de classe é um processo de auto confecção,
embora sob certas condições que são dadas180.
Poulantzas afirma em As classes sociais no capitalismo de hoje 181, que as classes
sociais significam para o marxismo, em um e mesmo movimento, contradições e luta
das classes: as classes sociais não existem a priori, como tais, para entrar
em seguida na luta de classe, o que deixaria supor que existiriam classes sem luta
das classes. As classes sociais abrangem as práticas de classe, "isto é, a luta das
classes, e só podem ser colocadas em sua oposição".
180 GHON, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. 10 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012, p. 248 181 POULANTZAS, Nicos. As classes sociais no capitalismo de hoje. 1975, p. 14
71
O próprio Przeworski cita Poulantzas e Gramsci por terem reconhecida que as
relações ideológicas e políticas são objetivas com respeito à lutas de classes182.
Ghon avalia que o conceito de classes sociais são uma forma, não a única, de
agrupar as ações dos homens183. Levamos em consideração esse conceito, mas
não quer dizer que consideramos que ela superada ou que ela refira-se apenas a
aspectos socioeconômicos, sem levar em conta outros determinantes. Poderíamos
analisar o Movimento Estudantil dentro de uma perspectiva de luta social, mas
consideramos que no caso estudado, o conceito de categoria social, pela sua
amplitude, se adequa ao nosso trabalho.
A predominância dos estratos médios entre os estudantes, especialmente a partir
de meados dos anos de 1950, como resultado colateral do processo de
desenvolvimento capitalista e das transformações porque passava o Brasil, a meu
ver, é um fato. Baseado em Poulantzas, Martins Filho afirma que a relação que os
estudantes mantém com o aparelho escolar e as condições particulares de sua
atuação política não permitem confundi-los com as classes em que se originam, o
que nos parece uma resposta a afirmação de que o comportamento do estudante
estaria baseado na sua condição enquanto tal.
De acordo com Martins Filho, a ação social dos estudantes guarda peculiaridades.
"as categorias sociais, por causa de sua relação com o os aparatos de Estado e com
a ideologia, podem apresentar a miúdo uma unidade própria, em que pese
pertencerem a classes diversas" 184. Assim, para ele, o movimento universitário é
uma manifestação particular e específica de certos interesses de classe, que devem
ser desvendados pela análise. Uma análise que leve em conta os aspectos
históricos.
No nosso entendimento, isso não contradiz totalmente a afirmação de que formação
da identidade grupal, em formato de classe ou outro qualquer, possui uma história,
em que as condições conjunturais são fundamentais e em que as estruturas
(econômicas, políticas e ideológicas) fornecem possibilidades sobre as quais os
indivíduos fazem opções. Só não consideramos que essas opções sejam aleatórias
e muito menos ilimitadas até, porque, caso contrário, teríamos dificuldades de
182 PRZERWORSKY, op. cit., p. 87 183 GHON, op. Cit., p.248. 184 POULANTZAS apud MARTINS FILHO, op. cit., p. 20.
72
entender porque um grupo ou categoria social faz opções semelhantes em
determinados momentos históricos.
Concordamos com Martins Filho quando ele afirma que a transitoriedade é uma das
principais características do estudante, que pode ser definido como um "vir-a-ser",
um agente social essencialmente voltado para a realização futura de uma condição
definitiva: a profissão. Não avaliamos que a maioria dos estudantes daquele período
era de classe média apenas porque o funil para o ensino superior diminuía o acesso
dos membros da classe trabalhadora.
Tenho o exemplo concreto dos meus próprios pais, que eram de classe média baixa,
que concluíram o ensino médio no final dos anos 1950, numa época em que as
pessoas não tinham expectativa de fazer o ensino superior. Para a maioria se
considerava praticamente terminada a formação, com a formação secundária. A
faculdade era para poucos, especialmente os que podiam pagar ou, através do seu
trabalho, sustentar os estudos.
Ir para a universidade era para poucos, porque existia a necessidade de se inserir
no mercado de trabalho, até como contribuição ao projeto familiar de ascensão
social. A crescente urbanização, como fruto do processo de industrialização e
diversificação da atividade econômica no Brasil, permitiu a ascensão e ampliação
dos setores médios da população, que viu na universidade um meio para tal, através
exatamente da qualificação para exercício das atividades profissionais que eram
exercidas por aqueles possuíam nível superior.
Não é arbitrária, do ponto de vista empírico, a afirmação de que a classe média
havia se tornado a maioria entre os estudantes universitários, tanto que Martins Filho
cita uma pesquisa publicada por Marialice Forrechi no livro A participação dos social
dos excluídos185 (1982, p. 52). Nem mesmo, e por causa disso mesmo, a pressão
por mais vagas nas universidades públicas, que haviam crescido continuamente até
1964, mas sofreram uma brutal contenção até 1968, servindo de combustível para a
agitação estudantil, juntamente com as más condições de ensino. Mostramos que,
no caso da Ufes, o número de candidatos ao vestibular cresceu, em apenas quatro
anos, passando de uma relação candidato/vaga de 1,57 em 1962, para 2,3, um
aumento de aproximadamente 50%
185 FORRACHI, Marialice. Estudante e política no Brasil in A participação social dos excluídos. São Paulo: Hucitec, 1982, p. 52.
73
Consideramos que a demanda por vagas na década de 1960 que estava nas
bandeiras do ME, e que em parte se revelou no movimento dos excedentes em
alguns cursos (fundamentalmente Medicina) em Estados como a Guanabara e o Rio
Grande do Norte, era uma reivindicação da classe média. Da mesma forma como a
entrada no ensino médio passou a ser expectativa da classe média baixa e
segmentos das classes populares que, até então, tinham seu horizonte limitado à
conclusão do antigo curso ginasial. É o caso do próprio ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva (PT), para quem o diploma de ginásio foi motivo de orgulho para a
família em meados daquela década.
Entendemos que durante a década de 1960 e parte dos anos 1970, havia a
expectativa e procura de uma formação para entrar no mercado de trabalho, na
perspectiva da ascensão social. Isso explica, aliás, porque não foi apenas o Ensino
Superior que sofreu uma reforma. O mesmo foi feito com Ensino Médio, com a
implantação da educação profissionalizante obrigatória, através da lei 5.692/1971186.
Essa era uma forma de aliviar a pressão sobre as universidades públicas, ainda que
a política tenha resultado num fracasso retumbante. De acordo com Luiz Antônio
Cunha e Moacir de Góes187, a pressão pelo ensino superior, levou ao crescimento e
incentivo da rede privada por parte da ditadura.
Não temos elementos para afirmar categoricamente que, na década de 1960, a luta
por vagas teria mais a ver apenas com expectativas bem tradicionais de acesso ao
ensino superior com o objetivo de obter status. Não nos parece, pelo grande número
de alunos que vinha do interior para estudar nas universidades. Em nossa opinião, o
que se buscava era também ascender socialmente, como profissional liberal ou nas
atividades econômicas que tipificam os setores médios, já que muitos viravam
funcionários públicos de alto escalão, iam trabalhar ou formavam empresas e os que
se dedicavam mesmo à área de serviços, que teve um intenso incremento durante
as décadas de 1960 e 1970.
Não vemos em Martins Filho uma resposta meramente economicista na disputa de
hegemonia política entre os estudantes. Afinal, ele afirma que dentro do próprio
movimento estudantil, estão definidos dois níveis de análise que estão inter-
186 No Espírito Santo, o Governo do Estado bancou nos anos 1970, a criação das escolas polivalentes, um projeto chancelado pela USAID, que envolvia inclusive um modelo arquitetônicos para as unidades e pretendia oferecer a “preparação para o trabalho” para estudantes do antigo 1º grau. Eram projetos de escolas modelo, com laboratórios e cursos profissionalizantes, mas que também não deu certo. 187 CUNHA; GOES. Op. Citada.
74
relacionados, mas mantendo um significativo grau de autonomia. Para ele, é preciso
considerar, as "práticas de massas" e a especificidade das práticas e das
orientações ideológicas que se se configuram em nível de direção do movimento188.
Ou seja, nem sempre as práticas e as orientações do conjunto da categoria se
expressam diretamente ou sem intermediação nas bandeiras levantadas por sua
pretensa direção política. Não se pode tomar a vanguarda como expressão única do
movimento. Essa. para nós, é uma das questões chave. Não queremos afirmar que
os estudantes de 1960 deveriam ter esse ou aquele comportamento, até porque
estamos falando em nosso trabalho, prioritariamente, da vanguarda e das propostas
defendidas por ela naquele período.
Não trabalhamos com o conceito de categoria social como hipótese, mas nos
apropriamos dele para entender o ME num determinado momento histórico. Um dos
nossos objetivos é determinar se houve algum encontro das práticas e orientações
da direção política com o conjunto dos estudantes capixabas. Não estamos
analisando prioritariamente a condição do estudante da década de 1960, como fez
Marialice Forrechi, embora ela seja importante para o entendimento das práticas e
das articulações do ME naquele período histórico.
TERCEIRA PARTE – A ANÁLISE DE DUAS ENTREVISTAS 1. Análise de entrevistas através do método da História Oral Nesta parte do trabalho, utilizando os métodos da História Oral, procederemos a
análise das entrevistas de dois personagens do período em que analisarmos, O
primeiro é o economista Antônio Caldas Brito, líder estudantil e ex-dirigente da UEE
e do DCE da Ufes. O segundo é o engenheiro José Maria Cola, aluno de Engenharia
da Escola Politécnica entre 1967 a 1971, que apesar de não ter se engajado na
militância política, também não estava totalmente alheio aos fatos que ocorriam a
sua volta, pelo menos em sua faculdade, já que foi representante de turma e
participou do grupo de teatro da faculdade. Dividimos a análise em três partes: a
trajetória dos entrevistados, o tipo de memória e temas desenvolvidos a partir de
seus depoimentos.
188 MARTINS FILHO, op. cit., p. 30.
75
1.1a - A trajetória de Antônio Caldas Brito O economista Antônio Caldas Brito, nasceu em 1945, na cidade de Barras, no Piauí
(PI), filho de uma família de classe média, formada por nove irmãos, sendo seis
homens e três mulheres. Seu pai era advogado e a mãe dona de casa. O avô
paterno chegou a ser um grande proprietário de terras no Estado, mas perdeu tudo
quando decidiu investir na abertura de um frigorífico que não deu certo. O primo,
Francisco Chagas Caldas Rodrigues, foi governador do Piauí pelo PTB entre 1958 e
1962 189.
Um episódio ocorrido durante o governo do primo, conforme admite Chagas Brito,
teve muita influência na sua aproximação com a militância política. Em 1961, quando
da renúncia do presidente Jânio Quadros, Caldas Rodrigues se posicionou em favor
da posse do então vice-presidente João Goulart, contrariando a posição dos
militares e de setores de direita que queriam impedi-la, sob o pretexto de evitar o
risco de instalação de uma “república sindicalista” 190. Devido a essa posição, o
governador do Piauí teve ameaçado seu mandato e quase foi preso no Rio de
Janeiro191.
Entre 1962 e início de 1964, Caldas Brito foi militante do Movimento Secundarista,
tendo sido eleito dirigente da União Piauiense dos Estudantes Secundaristas e
diretor da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), tendo morado no
Rio de Janeiro durante um ano. Dos nove irmãos, apenas Brito e outros dois irmãos
vieram estudar no Sul do país.
Assim, convencido pelo irmão mais velho, Jose Caldas Brito, que havia se formado
em Direito e morava em Linhares, no início de 1964, o jovem Caldas Brito se fixou
189 De acordo com a versão de um blog piauiense (KAVERNA, Kenard. Francisco das Chagas Caldas Rodrigues. Texto disponibilizado em 08 fev. 2009. Disponível em <http://krudu.blogspot.com.br/2009/02/francisco-das-chagas-caldas-rodrigues.htm>. (Acesso em 05 out. 2012), o advogado Francisco da Chagas Caldas Rodrigues (1926-2009) teria feito um governo de “esquerda”. Já o Folha Online (EX-GOVERNADOR foi o primeiro indenizado do PI. Folha de São Paulo. São Paulo, 09 de fev.2009. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0902200919.htm>. Acesso em: 01 out. 2012) registra que o então governador apoiou a Reforma Agrária e usava o rádio para fazer os seus discursos, o que incomodava alguns setores. Depois de deixar o governo, Chagas Rodrigues se elegeu deputado e foi cassado pela ditadura militar em 1969. Em 2006 foi eleito senador pelo Piauí e deixou a vida pública depois que terminou o mandato, em 1994. 190 O episódio da renúncia de Jânio e a tentativa de impedir a posse de João Goulart, capitaneada pelos ministros militares, desencadeou em todo o país a Rede da Legalidade, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. O impasse foi resolvido por uma solução de compromisso costurada no Congresso Nacional, com a instauração do parlamentarismo, que perdurou até 1963, quando um plebiscito decretou a volta do presidencialismo 191 Muito provavelmente por uma falha de memória, na lembrança de Caldas Brito o episódio se confunde com a posse de Caldas Rodrigues, mas a posse do petebista ao governo aconteceu mesmo em 1958, portanto três anos antes.
76
em Vitória. Aqui, foi estudar num cursinho pré-vestibular que funcionava na antiga
Faculdade de Economia da então Universidade do Espírito Santo (UES), onde
conheceu alguns militantes de esquerda no Estado, como José Guilherme Cortês e
Carlito Osório192. Também acompanhou mobilizações que aconteceram na época,
como o movimento pela encampação da Companhia Central Brasileira de Força
Elétrica (CCBFE).
Ainda como secundarista, participou dos eventos que marcaram o golpe militar de 1º
de abril no Espírito Santo, tendo participado da famosa vigília organizada por
estudantes na sede da UEE, no Centro de Vitória, invadida por policiais depois de
consolidada a vitória dos golpistas.
Em 1965, Caldas Brito ingressou na Faculdade de Economia, onde começou a
militar no Movimento Estudantil. Por influência do amigo Hélio Garcia, colega de
faculdade, entrou no Partido Comunista do Brasil (PC do B). Antes, segundo o relato
do entrevistado, ele era independente, embora tivesse tido aproximações com o
PCB e a Juventude Estudantil Católica (JEC) 193.
Ainda em 1965, Caldas Brito se tornou secretário geral da UEE, quando a diretoria
da entidade foi reorganizada e o estudante de Medicina José Cipriano da Fonseca,
mais conhecido como Zezinho Cipriano194, assumiu a presidência da mesma. No
final daquele ano, começou a trabalhar na Caixa Econômica Federal (CEF) e deixou
a casa do irmão, indo morar numa república na região do Parque Moscoso, no
Centro de Vitória, com Zezinho e Perly Cipriano e Renato Viana Soares, todos
militantes do PCB, no que ficou conhecida como “República do 804”.
Segundo ele, esse era o grupo básico, mas outros estudantes também moraram por
lá, como César Ronald Pereira Gomes, sem contar os que só passavam por lá, seja
para uma discussão política ou somente para dormir.
Em 1966, Caldas Brito foi eleito diretor do DCE da Ufes, na chapa encabeçada pelo
estudante de Direito, Carlos Magno Gonzaga Cardoso, através de eleição indireta.
Em 1967, no Congresso da UNE realizado em Vinhedo (SP), em que participou
como delegado, Caldas Brito rompeu com o PC do B e ingressou numa dissidência
192 Dirigente regional do PC do B na época, décadas depois Carlito Osório seria fundador e dirigente no Espírito Santo do Partido de Mobilização Nacional (PMN). 193 Como já visto anteriormente, a inflexão à esquerda da JEC e da Juventude Universitária (JUC) no início da década de 1960, levou à criação da Ação Popular (AP), organização de esquerda católica que, posteriormente se inclinaria para o posições maoístas. 194 Ex-presidente da UEE e militante do PCB e posteriormente do PCBR, Zezinho Cipriano mora atualmente em Barra de São Francisco, onde é médico.
77
do partido, a Ala Vermelha do PC do B195, organização que defendia a luta armada
como forma de combate ao regime militar e que desenvolveu ações armadas entre
1969 e 1971
No ano seguinte, em 1968, Caldas Brito conta que ajudou a articular a chapa
encabeçada por César Ronald Pereira Gomes, que ganhou o DCE. Em dezembro
daquele ano, Chagas Brito se formou em Economia na Ufes. O paraninfo de sua
turma foi o Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara, que foi impedido de
celebrar uma missa na Catedral de Vitória em homenagem à formatura196. Na
colação de grau, realizada no mesmo dia em que foi editado o AI-5, em 13 de
dezembro de 1968, o orador da turma, o professor Rubens Vervolet Gomes197, foi
preso logo depois de proferir seu discurso.
Depois de formado, Caldas Brito continuou sua militância política na Ala Vermelha198
e abriu uma empresa de projetos, deixando o emprego na Caixa Econômica. Sua
empresa, segundo ele, era praticamente a única no Espírito Santo que fazia
projetos, porque ele havia feito curso nessa área no Ministério do Planejamento,
ainda quando era funcionário da Caixa.
No período posterior ao AI-5, com o recrudescimento da repressão, ele foi preso três
vezes. Em 1970, nas semanas anteriores às eleições daquele ano, junto com
dezenas de outras pessoas que pudessem ter alguma influência contra o partido da
ditadura, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) 199. Posteriormente, numa data que
ele não soube precisar, esteve preso na Polícia Federal e no então 3º Batalhão de
Caçadores (3º BC) 200. Nessa ocasião, os agentes da repressão o interrogaram para
saber onde estava Carlito Osório, que se encontrava foragido na clandestinidade.
Em março de 1971, Caldas Brito e outros 13 militantes da Ala Vermelha no Espírito
Santo foram presos, depois de delatados por Edgard de Almeida Martins, o Miro,
195 De acordo com Caldas Brito, ele entrou para a Ala Vermelha por uma “decepção com o PC do B”, que segundo ele, estava começando a relaxar na concepção de derrubar a ditadura através da luta armada. 196 De acordo com Caldas Brito, depois de participar da formatura dos estudantes de Economia da Ufes como paraninfo, Dom Hélder Câmara viajou para Belo Horizonte (MG) onde teria sido preso. 197 Rubens Vervolet Gomes (1921-2007), professor , economista e advogado, foi uma figura de destaque na esquerda trabalhista capixaba antes do golpe militar de 1964. Em 1966 criou o Colégio Brasileiro e, mais tarde, com a redemocratização do país, ajudou a reorganizar o PDT no Espírito Santo. 198 O entrevistado diz que os militantes da Ala Vermelha no Espírito Santo desenvolviam ações de apoio à luta armada, mas preferiu não dizer que ações seriam essa, citando apenas, por insistência do entrevistador, pichações e panfletagens. 199 A operação de prisão de pessoas que fossem ligada à posições de oposição ao regime teriam acontecido no Brasil inteiro. Segundo o relato do entrevistado, pelo menos 300 pessoas teriam sido presas no Espírito Santo, inclusive pessoas que moravam em cidades do interior. 200 Atual 38º Batalhão de Infantaria (38º BI), localizado na Prainha, em Vila Velha.
78
que teria sido preso no Rio Grande do Sul201 e, depois de torturado, entregou
militantes no Brasil inteiro202. De acordo com o relato do nosso entrevistado, o
militantes presos foram torturados no 3º BC e, posteriormente, transferidos para São
Paulo (SP) e enviados para a sede da Operação Bandeirantes (Oban) 203 e, de lá,
para o DOI-Codi204.
Depois de soltos, os militantes ficaram quase dois anos respondendo processo na
Auditoria Militar de São Paulo, onde tinham que se apresentar todo o mês. Dos 14
militantes presos, dois foram condenados205 e os outros absolvidos, entre o quais,
Caldas Brito, que diante da possibilidade de ser condenado, confessou que chegou
a pensar em cair na clandestinidade e deixar o país.
Depois da prisão em 1971, o economista deixou a militância organizada de
esquerda, mas continuou participando do Movimento Democrático Brasileiro (MDB)
e, posteriormente, do PMDB, do qual é filiado até hoje, exercendo até recentemente
a presidência do diretório municipal de Vila Velha. Nesse período, Caldas Brito
continuou com as atividades de sua empresa, desenvolvendo projetos para a
iniciativa privada destinados à captação de recursos junto ao Banco de
Desenvolvimento do Espírito Santo (Bandes).
Também foi assessor e diretor da empresa Patrimônio Imobiliária e sócio da
Patrimônio Investimentos. Na campanha eleitoral de 1982, Caldas Brito coordenou o
grupo de assessoramento do plano de governo do então candidato do PMDB à
eleições para governador daquele ano, Gerson Camata. No governo Camata (1983-
1987), o economista foi presidente do Bandes.
De acordo com um documento da Agência Brasileira de Inteligência do ano 2000, o
economista continuou sendo acompanhado pelos órgãos de “inteligência” até 1988,
201 Na verdade, Miro foi preso em 17 de janeiro de 1971, na cidade de São Paulo (SP) 202 No site Documentos Revelados (http://www.documentosrevelados.com.br/contato/mural-de-recados/), o ex-preso político Aluízio Palmar conta que Edgard de Almeida Martins havia sido militante do PCB e, posteriormente do PC do B e da Ala Vermelha. Dono de uma memória prodigiosa, depois de muito torturado, Martins teria feito um acordo com o comandante do DOI-Codi, Carlos Alberto Ustra, entregando em diversos Estados do Brasil militantes das três organizações, além do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) e do MRM(?), dissidência a da Ala Vermelha),. No livro Combate nas trevas (GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo: Ática, 1998. p. 231) e em listas feitas por ex-presos políticos, Martins é acusado de ter se passado para o lado dos torturadores, se transformando em analista de informações, acusação veementemente negada pelo filho, Thaelmen de Almeida, que criou um blog dedicado defesa do pai (http://clandestinoedgard.blogspot.com.brl). 203 Organização paramilitar financiada por empresários dedicada ao combate às organizações de esquerda, que posteriormente foi incorporada ao DOI-Codi. 204 O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), foram órgãos de inteligência montados pela ditadura militar para combater a insurgência de esquerda e se tornaram também centro de torturas, onde dezenas de militantes morreram e outros “desapareceram”. 205 Os militantes condenados, segundo Caldas Brito, foram Jair Storch e Aristide
79
ano de promulgação da atual Constituição Federal, ano em que foi eleito membro da
Comissão Executiva do diretório estadual do PMDB. Posteriormente, ocupou vários
cargos públicos no Governo do Estado e nas Prefeituras Municipais de Serra e Vila
Velha. Atualmente Caldas Brito é diretor Administrativo de Financeiro do Instituto de
Previdência e Assistência Jerônimo Monteiro (IPAJM).
Antônio Caldas Brito, portanto, se trata de uma pessoa de origem de classe média,
já politizado antes de chegar ao Espírito Santo, onde entrou no PCdoB, passando
por um processo de radicalização, punição e abandono da militância revolucionária,
assumindo uma posição moderada de tipo progressista, que mantém até hoje.
1.1b - Tipo de memória
Nas duas entrevistas que realizamos com Antônio Caldas Brito, ficou claro para nós
que estávamos falando de uma memória de grupo. Em toda sua trajetória, ele se
coloca sempre como parte de um grupo em relação com as instituições sociais: os
militantes de organizações de esquerda e, posteriormente da luta armada, da
militância do Movimento Estudantil nos anos 1960 e dos que compuseram a
resistência ao golpe militar de 1964 e, posteriormente, à ditadura implantada no país
até o ano de 1985.
As lembranças do nosso entrevistado são, portanto, quase sempre de grupo,
embora nem sempre expressem com clareza e, digamos, sofisticação teórica, as
posições que defendiam os diversos grupos em que esteve ligado e dos quais foi
inclusive dirigente estadual, como o PC do B e a Ala Vermelha do PC do B. Por
vezes, ele recorre a digressões para apoiar posições e visões que defendeu ou falar
de episódios em que esteve envolvido, sem referências teóricas às mesmas, em
especial aos inspiradores dessas posições, como Karl Marx, Lênin ou Mao Tsé
Tung.
A memória dele, apesar dos problemas de formulação teórica, procura reconstruir a
trajetória dos grupos em que esteve inserido em projetos nacionais de derrubada da
ditadura militar e sua ação mais imediata no cotidiano da militância política. Da
mesma forma, também demonstra que a análise da realidade local, tanto no
Movimento Estudantil como em outras frentes de intervenção, não faziam parte do
processo maior de elaboração política da ação e intervenção política dos mesmos. A
referência sempre é nacional. Por isso, não é de se estranhar que ele diga em
80
determinado momento que, para eles, não havia diferença entre os representantes
do regime no Estado e em nível nacional. Em termos políticos, todos os representantes do Estado eram representantes da ditadura. O governador era nomeado, o prefeito também. Não havia diferença do ambiente nacional para o ambiente estadual. Não dá para você diferenciar um governador nomeado pela ditadura de um presidente da República. Então, todas as manifestações possíveis que a gente fazia, de trabalhadores, de estudantes, você incluía as reivindicações próprias, da classe, que não podia deixar de ser, principalmente porque a gente vivia naquela época, uma situação muito precária, em termos de universidade. Tudo também dentro do contexto nacional206
Portanto, avaliamos que estamos diante de uma memória Halbwachiana. Segundo o
teórico dessa visão, Maurice Halbwachs, a memória do indivíduo estabelece íntima
relação com as instituições sociais e, consequentemente, com o projeto coletivo207.
Para Halbwachs, a lembrança é motivada pelos outros e pelo presente. Para ele,
lembrar é refazer, reconstruir e repensar, com imagens e ideias de hoje, as
experiências do passado.
Percebemos, durante a entrevista dele, falhas de memória ao estabelecer as
lembranças daquele período, mas nada que comprometa o material que foi coletado.
Vimos, por exemplo, que em relação à uma entrevista que realizamos com o mesmo
Caldas Brito em 1995, que o economista já não se lembra de muitos episódios que
no relatou naquela época, como a realização do Congresso da UEE e as manobras
realizadas pelo PCB e PC do B para impedir que a AP aprovasse suas posições.
Também não se lembrou da greve dos estudantes realizada em março de 1968,
contra o preços estabelecidos pela reitoria da Ufes, para o recém-inaugurado
Restaurante Universitário (RU). Isso, apesar de ter sido um dos representantes
estudantis no Conselho de Administração e Funcionamento do RU (Cafru), que
definiu um valor de acordo com as reivindicações dos estudantis. A recusa do reitor
Alaor de Queiroz Araújo em aplicar a decisão foi que provocou a deflagração do
movimento.
Esse episódio, por exemplo, foi lembrado por ele numa entrevista que concedeu em
1978, para a extinta revista Agora. Da mesma forma que já são vagas as
lembranças do ex-líder estudantil de sua participação nas diretorias da UEE e do
DCE. Mas isso não significa que o entrevistado tenha omitido alguma informação,
até porque foi confrontado com os episódios e, por vezes, se mostrou surpreso e,
206 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, Anexo II, p. 134. 207 HALBWACHS, Maurice apud BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987.
81
em outros momentos, afirmou, sem muita convicção, que se lembrava dos
episódios.
1.1.c Temas
A duas entrevistas que realizamos com o ex-líder estudantil Antônio Caldas Brito
evocam diversos temas relacionados a história do Movimento Estudantil e da
Esquerda no Espírito Santo no período que estamos pesquisando, entre 1964 e
1968. Procuramos desenvolver alguns que nos parecem mais relacionadas ao tema
e às hipóteses que formulamos em nosso trabalho, já que nos propomos a tratar da
configuração e os eventos que marcaram o Movimento Estudantil (ME) no Espírito
Santo no período de 1964 a 1968.
Assim, nos parece importante situar a forma que o ME e as organizações tratavam a
realidade que se configurava no Estado em relação à conjuntura nacional. Outro
tema importante, vinculado ao primeiro é como o ME tratou a reestruturação da
Ufes, processo desencadeado a partir de 1966,. Afinal ela estava sintonizada com o
espírito dos Acordos MEC-USAID, cujo combate era uma das principais bandeiras
do movimento naquele período.
Também nos interessa entender, a partir das lembranças do nosso entrevistado,
como se expressava o ME em suas lutas específicas e em sua própria dinâmica,
analisando as principais manifestações ocorridas em 1968 e sua relação com outros
movimentos populares no contexto da luta contra ditadura.
Na primeira entrevista, realizada no dia 05 de setembro de 2012, Caldas Brito afirma
que nas organizações de esquerda que atuavam no Movimento Estudantil na época,
praticamente não existia discussão sobre a realidade local, que não era sequer
percebida, num momento em que o Espírito Santo passava por profundas
transformações econômicas e sociais. “A discussão nossa era sobre a realidade
nacional. A realidade regional era mais no sentido da organização, porque se tinha
consciência que não se mudava nada a partir de uma mudança política regional, a
não ser do fortalecimento da organização interna, das ações internas” 208.
Na segunda entrevista, em 02 de outubro de 2012, o entrevistado assinala que, para
os militantes da época, todos os representantes do Estado eram representantes da
ditadura, portanto não se via uma diferença do ambiente nacional para o ambiente
208 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I.. p. 117.
82
estadual, já que tanto o governador como o presidente da República era nomeado
pela ditadura militar. A luta central, então, era pela derrubada da ditadura. A relação
entre as lutas gerais e locais era feita de forma quase automática e mecânica,
ignorando suas nuances e especificidades, mas sempre levando em conta o
contexto nacional. Se você for fazer uma pesquisa sobre percepção que a gente tinha da situação estadual, era a mesma da nacional, porque não você fazia diferença sobre nossos representantes. Qual a diferença do (Christiano) Dias Lopes209, do Setembrino (Pelissari) 210? Eram todos representantes da ditadura, da direita. Para nós eram representantes da direita, até porque não poderia deixar de ser.211
Do ponto de vista do Movimento Estudantil especificamente, Caldas Brito definia o
ME no período entre 1964 e 1968 como um movimento que lutava por reivindicações
específicas, como as melhorias de condições de ensino, mas de muita consciência
política e, por isso, de luta contra a ditadura e pela volta da democracia. Não é bem
assim, já que nem sempre o discurso das lideranças correspondia à disposição da
massa estudantil para a ação. Basta ver a vitória do candidato da direita na eleição
do DCE realizada em 1966, na primeira vez em que a esquerda disputou a direção
da entidade.
Caldas Brito diz não se lembrar muito bem sobre o episódio, mas diz que talvez a
esquerda não estivesse mobilizada o suficiente para a disputa. Da mesma forma,
segundo, é que a chapa encabeçada pelo estudante de Medicina José Monteiro de
Souza Netto tivesse sido lançada em cima da hora. No entanto, a pesquisa que
fizemos nos arquivos de A Gazeta mostra que a chapa teve um importante apoio no
próprio jornal, através da coluna do jornalista Osvaldo Oleari, que dias antes do
pleito tratou de divulgá-la.
A característica de um movimento que refletia mais a insatisfação da classe média, à
qual os estudantes estão ligados como categoria social, a nosso ver é reforçada,
quando o entrevistado afirma que o ME conseguiu fazer grandes mobilizações, mas
talvez não tenha conseguido sensibilizar a sociedade como um todo. “Os
trabalhadores realmente, na minha visão, não tiveram a mesma capacidade de
209 Christiano Dias Lopes Filho (1927-2007) foi deputado estadual e governador biônico do Espírito Santo (1966-1970). Mais tarde, seria Procurador Geral do Estado durante o governo de Max Mauro (1987-2000). 210 Político capixaba, foi deputado estadual e líder na Assembleia Legislativa do então governador Francisco Lacerda de Aguiar (1963-1965) e, posteriormente, prefeito biônico de Vitória (1966-1970), nomeado pelo governador Christiano Dias Lopes Filho. 211 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I, p. 118.
83
mobilização que teve o Movimento Estudantil. O ME teve um papel bem mais
significativo do que até o movimento dos trabalhadores212”.
Num outro ponto da entrevista, o entrevistado lembra que os estudantes apoiavam
movimentos grevistas dos trabalhadores, citando uma greve de motoristas de ônibus
ocorrida na Grande Vitória, que teria resultado na demissão de cerca de metade
deles pelas empresas. Mas é preciso assinalar que não existem registros de outras
mobilizações dos trabalhadores.
De acordo com Caldas Brito, uma das bandeiras mais importantes do ME naquele
período, era a luta contra os acordos MEC-USAID. “Essas discussões se faziam
dentro das escolas, nas passeatas, em termos de conscientização dos estudantes
em relação aos acordos” 213. No entanto, ao ser questionado sobre a reforma
acadêmica realizada na Ufes, elaborada a partir de 1966, nos moldes daqueles
acordos e com a participação de Rudolph Acton, técnico do USAID posteriormente
aprovada no Conselho Universitário, com o voto inclusive de dirigentes do DCE na
época em que a entidade já era controlada pela esquerda, o entrevistado garantiu
que a liderança até teria percebido o que a reforma representava, mas não
conseguiu transmitir isso para os estudantes.
Caso isso se confirme, teríamos um exemplo da hipótese de Martins Filho de que as
práticas e orientações do conjunto da “massa estudantil”, nem sempre expressam
diretamente e sem intermediações nas bandeiras levantadas por sua direção política, já citada em nosso trabalho.214 Em 1967, quando a reforma acadêmica da
Ufes foi aprovada no Conselho Universitário, Caldas Brito fazia parte da diretoria do
DCE, liderada por Carlos Magno Gonzaga Cardoso, que junto com o ex-presidente
da entidade e naquela época representante estudantil, Jorge Augusto Pires
Encarnação, ligado à posições de direita, compunha a representação discente e
votou favorável à reforma.
O ex-dirigente estudantil diz lembrar-se dessa discussão no movimento, mas
pondera que havia um apoio muito grande da imprensa naquele momento à
influência norte-americana e eles não conseguiram popularizar aquela bandeira. Ao
ser perguntado se o movimento não tinha tido a dimensão da reforma, Caldas Brito
insistiu que ele não teria tido foi força. Além disso, segundo ele, Carlos Magno era
212 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, anexo II, p. 120. . 213 Ibid., p. 121 214 Martins Filho, op. cit., p. 30-31.
84
uma liderança conciliatória, que não teria levado a discussão para a diretoria, porque
sabia que a posição da maioria, que era ligada à posições de esquerda, seria
contrária.
No entanto, no ano seguinte, a discussão retornou ao Conselho Universitário, por
decisão do Conselho Federal de Educação (CFE), que solicitou que algumas
mudanças fossem feitas na proposta de nova estrutura para a Universidade,
aprovada finalmente em novembro e transformada em decreto poucos dias antes da
promulgação da Lei 5.540/1968, a reforma universitária da ditadura.
Nessa época, o presidente do DCE já era César Ronald Pereira Gomes, que
participava do Conselho Universitário junto com José Carlos Risk, o outro
representante discente. É bem verdade que, dessa vez, a tramitação foi mais rápida
e singular e não houve uma nova discussão, mais aprofundada sobre o projeto
reforma, mas os representantes estudantis votaram a favor e não se tem notícia de
que a reforma tenha sido discutida nem mesmo pelas lideranças do movimento.
Mais uma vez, a nossa hipótese é que as lideranças, dessa vez mais à esquerda,
não conseguiram fazer uma leitura sobre a realidade local fora do contexto nacional
como resultado da forma como essas questões eram tratadas pela correntes de
Esquerda, especialmente num Estado periférico. Caldas Brito atribui a posição dos
representantes estudantis mais combativos na discussão de 1968, à possíveis
pressões que estariam sofrendo, diante do ambiente repressivo que se vivia na
época, se referindo especificamente à César Ronald.
Outro aspecto relacionado à vinculação da dinâmica do ME local e da esquerda em
geral à dinâmica do movimento nacional, está relacionada à lembrança do
entrevistado das principais manifestações realizadas em 1968, ano do auge das
mobilizações estudantis contra a ditadura militar no período anterior à decretação do
AI-5.
Embora não se recorde do movimento contra os preços do RU, ele se lembra da
manifestação realizada pouco depois, para protestar contra o assassinato pela
polícia do estudante secundarista Édson Luiz de Lima Souto, ocorrida no dia 28 de
março de 1968, no Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro. Na ocasião da
passeata realizada pelos estudantes, depois de uma missa realizada na Catedral de
Vitória, Caldas Brito disse ter assumido o comando da manifestação, que lhe foi
passada por César Ronald, obrigado a se retirar para fugir da perseguição da
85
polícia, que queria prendê-lo. A passeata terminou em frente ao RU, no qual os
estudantes afixaram uma faixa dando o nome do estudante morto para o prédio.
A única manifestação daquele ano da qual o entrevistado se lembra em que houve
confronto com a polícia, foi exatamente a realizada em outubro de 1968, logo depois
da queda do Congresso de Ibiúna215. A manifestação foi na luta de combate à ditadura mesmo. Nós chegamos à Praça Oito, os ônibus pararam na Costa Pereira e na Praça Oito. Por coincidência, eu vinha no primeiro ônibus, desci e pedi aos ônibus para não abrirem ali na Praça Oito, só em frente ao Palácio, naquele ponto em frente ao Palácio. Aí subiram todos, a Faculdade de Direito funcionava ali, começaram os discursos dos estudantes. Por coincidência da vida, o próximo orador seria eu. Quando ia falar, o Ewerton pediu para falar. Ele subiu naquela mureta que tinha ali e, quando o Ewerton subiu a mureta e começou a falar - Ewerton sempre foi um bom orador, muito culto -, a polícia, com o (José) Dias (Lopes) à frente - eu acho que era o chefe de Polícia -, desceu do palácio correndo, batendo em todo mundo que estava ali. O objetivo era prender quem estava na liderança. Essa foi uma manifestação de muita pancadaria mesmo.216
De acordo com ele, até aquela manifestação, não havia muitas prisões e era muito
comum a liderança do movimento ser chamada para na Polícia Federal depois de
alguma manifestação, para prestar esclarecimentos, para saber quem estava
participando delas. Nas passeatas, segundo ele, a polícia chegava e o pessoal
corria e não havia o confronto, o que mudou nessa manifestação.
Entre os temas emergem na entrevista de Caldas Brito, foi a surpresa com que
setores populares e progressistas no Estado, e de resto de todo país, receberam o
golpe militar de 1º de abril de 1964, embora muito se falasse naquela possibilidade.
De acordo com ele, ninguém no Espírito Santo acreditava que o putsch pudesse
mesmo acontecer. O próprio governador Francisco Lacerda de Aguiar, segundo
Caldas Brito, teria afirmado que não havia nada217, numa reunião no Palácio
Anchieta que ele participou dias antes da deflagração do movimento golpista.
Essa posição de surpresa da esquerda e dos setores populares diante do golpe
precisa mesmo ser relativizada. Afinal, no dia 22 de março de 1964, o Comando
Geral dos Trabalhadores (CGT), publicou uma nota no jornal A Gazeta, alertando o
seu “dispositivo sindical” sobre a possibilidade de um golpe. No dia 25 de março, o
Sindicato dos Ferroviários lançou uma nota, também publicado em A Gazeta, em
solidariedade ao presidente João Goulart.
215 O entrevistado não lembrava da data e nem da motivação da manifestação, que foi protestar conta a prisão de 900 lideranças estudantis no malfadado Congresso de Ibiúna, inclusive 13 estudantes do Espírito Santo. 216 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, Anexo II, p. 126. 217 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2013, Anexo I, p. 104.
86
Por fim, na edição do dia 29 de março de 1964, numa nota publicada na primeira
página do mesmo jornal, o Conselho Sindical dos Trabalhadores do Espírito Santo
comunicava que havia decidido se manter em “assembleia permanente” e convocou
todas as entidades para que participassem de uma greve geral pela encampação da
CCBFE, marcada para o dia 03 de abril. Mais a frente, assinalava que, diante da
resolução do CGT, “continuaremos vigilantes e em condições de anteder a ordem
daquele organismo, contra o golpe, e de apoio ao presidente da Republica” 218.
O que podemos perceber é que a esquerda no Brasil e no Espírito Santo,
superestimava as suas forças e, por isso, não acreditava na possibilidade do golpe
se concretizar. Todo relato de Caldas Brito sobre a forma como se comportaram os
setores populares durante o golpe, mostra uma perplexidade diante da mobilização
militar. Todos esperavam a ação de um dispositivo militar que se mostrou ilusório. Acho que ainda foi muito importante nesse dia, a gente notar que o pessoal do porto, dos estivadores, que era um sindicato fortíssimo naquela época, também ficou de vigília, aguardando o que ia acontecer. Você vê o seguinte, não houve uma mobilização externa. Até os trabalhadores ficaram aguardando para ver o que acontecia. Me lembrou de que eu e o Roberto Cortês saímos da UEE e fomos lá, para saber o que estava acontecendo, se eles tinham mais alguma notícia, se tinha resistência no país, se não tinha. Eles também não sabiam nada. Sabiam tanto quanto nós sabíamos.219
No Espírito Santo, existiu uma atípica proximidade entre o PCB e o PC do B na
intervenção política no Movimento Estudantil do Espírito Santo. Afinal, os dois
partidos eram inimigos ferrenhos no cenário nacional e o PCdoB tinha mais
identidade com a AP, principalmente depois que essa última rompeu com suas
posições cristãs e fez uma transição para uma linha maoísta. No Estado o quadro
era completamente diferente. Nos diversos embates políticos do ME local, PCB e PC
do B, costumavam se unir contra a AP. Caldas Brito admite que a relação de
amizade entre os principais militantes dos dois partidos, que dividiam um
apartamento no Parque Moscoso a famosa “República do 804”, influi nessa
proximidade. Mas ele também sustenta que existia uma proximidade ideológica com
o marxismo, em oposição ao catolicismo da AP e da JUC220.
218 CONSELHO SINDICAL DOS TRABALHADORES DO ESPÍRITO SANTO. Nota ao Público. A Gazeta, p. 01, 29 mar. 1964. 219 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I, p. 105. 220 É possível que isso fosse verdadeiro em 1966, por exemplo, quando foi realizado o Congresso da UEE, já que o giro que levaria a AP em direção à posições maoístas ainda estava em curso. Além disso, é possível supor que esse processo tenha sido desigual pelo país, o que só será possível comprovar numa pesquisa sobre a própria história da AP no Espírito Santo.
87
Eu tenho a impressão, que isso deve ter acontecido pela aproximação pessoal que a gente tinha com Zezinho Cipriano e Perly. Era uma convivência pacífica interessante. Tinha amizade pessoal. Como o movimento estudantil tinha uma influência muito grande na área do PC do B, acho que gente fazia essa aproximação mais com o PCB do que com a AP. Talvez por essa identificação marxista que a gente tinha. [...] Eu tenho a impressão que a aproximação nossa aqui, foi mais uma questão pessoal mesmo e a identificação ideológica, porque a AP, apesar de na ação se aproximar até mais da gente, tinha aquela restrição ideológica.221.
Com relação a sua entrada na Ala Vermelha, uma dissidência do PC do B, Caldas
alega que rompeu por estar “decepcionado” com partido que, na sua opinião,
começava a “relaxar na concepção de derrubar a ditadura através da luta armada”.
No entanto, ele não é muito preciso ao falar sobre a diferença de concepções entre
as duas organizações. Da mesma forma que, perguntado se lembrava de qual era a
avaliação do PC do B sobre a realidade do país e da ditadura, ele disse apenas que
na visão do partido, a ditadura só cairia se fosse através da luta armada. “A gente
não tinha ilusão que eles iam entregar o poder [...] Não tínhamos nenhuma ilusão de
que, no diálogo, pudéssemos tirar os militares do poder. Eles saíram por causa do
problema econômico222”.
O ex-líder estudantil observou que o Livro Vermelho de Mao Tsé Tung era distribuído
para todos, mas perguntado se compartilhava as posições maoístas de cerco da
cidade pelo campo, ele afirmou apenas que o PC do B não tinha ilusões com a
concepção do foco guerrilheiro, que era defendida por outras organizações,
especialmente as surgidas de dissidências do PCB e da Polop.
De acordo com Caldas Brito, sua atuação mudou quando passou do PC do B para a
Ala Vermelha. Se antes, ela se dava mais em termos de movimento de massas, de
participação em greves e no Movimento Estudantil, passou a ser um movimento
mais de apoio no Estado ao movimento nacional em apoio à luta armada.
Com relação à liderança de César Ronald, na primeira entrevista o ex-dirigente
estudantil contou que ele foi lançado como candidato à presidente para evitar a
eleição da AP, porque era um grande orador e também para ganhar o voto feminino,
porque fazia o tipo “galã” 223. A AP, ou JUC como ele por vezes denomina a
organização, cuja origem foi realmente a esquerda católica, segundo o ex-líder
estudantil, era um movimento predominantemente feminino. Na segunda entrevista,
Caldas Brito acrescentou mais alguns elementos ao episódio.
221 Antônio Caldas Brito, entrevista 05/09/2012, Anexo I, p. 112. 222 Ibid., id., p. 113 223 Idem.
88
Para atrair o voto dos estudantes da Fafi, onde era grande a influência da AP, além
do suposto charme de César Ronald, a aliança PCB-PC do B puxou para a vice-
presidência da entidade o estudante de Geografia José César Leite, que era não
ligado a nenhum grupo de esquerda. Foi uma decisão estratégica. Naquela época, a gente discutia quem iríamos trazer para botar na suplência de César Ronald, porque ele não era muito aceito pela AP, que tinha uma representação forte no movimento estudantil. E uma forma de trazer o pessoal da AP, foi botar o Cezinha, o César Leite, que era um cara que tinha muito bom relacionamento, jogava muito bem pingue-pongue (risos) acho que passava mais tempo na mesa de pingue-pongue, mas foi estratégico. Me lembro da gente discutindo isso com o Zezinho Cipriano. O César (Leite) morava ali no Parque Moscoso também, estava sempre com a gente lá no apartamento224.
No final, César Ronald foi candidato único e teve o voto da AP, mesmo com
restrições225. Caldas Brito diz não ter se candidatado para ser delegado do
emblemático Congresso da UNE em Ibiúna, quando cerca de 900 lideranças
estudantis foram presas. O então estudante, já como dirigente de uma organização
ligada à luta armada, afirma ter considerado “absurda” a realização de um congresso
clandestino onde os delegados eram eleitos de forma aberta e democrática, com os
nomes afixados nos murais das faculdades.
1.2.a– Perfil de José Maria Cola
O engenheiro civil José Maria Cola nasceu em 1948, em Santo Antônio e criado na
Praia do Canto, ambos bairros de Vitória. Filho de uma família de classe média, o
pai era um contador que virou funcionário público federal do Ministério de Viação e
Obras Públicas e a mãe dona de casa. Dos quatro irmãos, três homens e uma
mulher, dois viraram engenheiros, um médico e a última se formou em Belas Artes,
trabalhando atualmente como decoradora.
Cola estudou nas melhores escolas públicas da Capital nos anos 1950 e 1960
(Grupo Escolar Gomes Cardim e Colégio Estadual) e ingressou na antiga Escola de
Engenharia em 1967 e se formou em 1971. Nos quase 42 anos de formado,
trabalhou a maior parte do tempo na iniciativa privada. As experiências no setor
público são mais recentes, quando trabalhou nas secretarias de Estado da
Educação (Sedu) e Cultura (Secult), durante a administração do ex-governador
224 Antônio Caldas Brito, entrevista 02/10/2012, Anexo II, p. 129. 225 É preciso ressaltar que, como havia se destacado como líder estudantil nas manifestações contra o aumento no RU e o assassinato do estudante Édson Luiz de Souto Lima, César Ronald adquiriu um respaldo político difícil de ser batido.
89
Paulo Hartung (2003-2010). Começou a participar mais diretamente do sistema
formado pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea) e Conselho
Federal de Engenharia e Agronomia (Crea/Confea) a partir do ano 2000, quando se
tornou conselheiro, representando a Sociedade dos Engenheiros.
Depois de ocupar vários cargos e posições, atualmente ele é gerente operacional do
Crea, responsável pelos registros profissionais e de empresas na elaboração de
acervos técnicos e nas emissões e anotações de responsabilidades técnicas,
conhecidas como Art. De acordo com ele, a posição de classe média permitiu que
ele estudasse sem a necessidade de trabalhar. Tanto é verdade que, na época de
estudante, apesar da distância da Escola Politécnica à sua residência, na Rua do
Vintém, no Centro de Vitória, sempre almoçava em casa e pouco frequentou o
antigo Restaurante Universitário (RU).
Cola afirma que, no fundo, gostaria de ter feito Engenharia Eletrônica, que na época
só era oferecido em São Paulo. Como a única oportunidade que havia em Vitória era
a engenharia civil, com apoio integral da família, ele ingressou no curso da Ufes, se
especializando na área de cálculo estrutural para aplicação em edificações, tendo
começado a estagiar na Construtora Albamar quando ainda estava começando o
terceiro ano do curso.
De acordo com o engenheiro, ele foi criado no que ele chamou de “critério judaico”
e, por ser o mais velho entre os cinco irmãos, era considerado pelo pai como o
“burro de guia”, que tinha que dar o exemplo para os demais irmãos. “Meu pai me
dizia: ‘eu não tenho riqueza para deixar para você, mas a única coisa que ninguém
rouba de ninguém é a educação. Então você vai ter que se formar e tocar sua vida’” 226. Com isso, ele deixa claro que o projeto familiar e a expectativa da família em
relação ao curso universitário era a ascensão social através de uma profissão liberal
que era muito valorizada na década de 1960.
José Maria Cola não foi um militante do Movimento Estudantil na época em que era
universitário, mas também não se pode afirmar que tenha sido um aluno comum.
Afinal participava das atividades do Diretório Acadêmico da Escola Politécnica,
especialmente na área esportiva e cultural. Integrou o grupo de teatro da faculdade,
organizado pelo então presidente do DA, José Maria Nicolau, posteriormente
professor da Ufes e pró-reitor da Universidade na gestão do reitor Antônio Abi Zaid
226 José Maria Cola, entrevista 28/03/2013, Anexo III, p. 147..
90
(1983-1987). Em 1968, participou de duas montagens que fizeram sucesso na
época em Vitória, Vitória de setembro a Setembrino e Animais não desanimais, de
Milson Henriques, a segunda chegou a ser proibida pela censura.
1.2.b – Tipo de memória
Como com o economista Antônio Caldas Brito, ex-liderança estudantil da Ufes,
também realizamos duas entrevistas com o engenheiro José Maria Cola, que
demonstrou também representar uma memória de grupo. Afinal, ele se sempre se
coloca como parte e, inclusive, liderança de vários grupos do qual fez e ainda faz
parte: dos 135 alunos de seu curso de Escola de Engenharia e dos engenheiros
civis do Espírito Santo. Aliás, é muito forte o tom corporativista em seu discurso.
As lembranças do nosso entrevistado são de grupo, do qual ele quase sempre se
coloca exercendo um papel de liderança, ainda que essa liderança seja
conservadora. Apesar do tom quase diplomático e de afirmar que sempre procurou
circular por todas as posições para se chegar a um posicionamento comum do
grupo, José Maria Cola deixa escapar suas críticas ao pensamento de esquerda,
que aumentam de tom quando fala nos governos atuais do ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva (PT) e da presidente Dilma Rousseff.
Quando se refere à ditadura militar, coloca a expressão entre aspas, embora
reconheça que excessos foram cometidos e até os condene. Suas posições não têm
uma referência teórica, mas são nitidamente conservadoras. Diante dessa avaliação,
entendemos que estamos diante de mais uma memória Halbwachiana, em que o
indivíduo estabelece íntima relação com as instituições sociais e,
consequentemente, com o projeto coletivo.
1.2.c - Temas Nos chama muita atenção a preocupação de José Maria Cola com status quo de sua
profissão. O engenheiro destaca a pompa cerimonial e o que representava se tornar
engenheiro na época em que se formou e condena como os atuais estudantes de
engenharia se portam, de forma excessivamente informal e despojada para ele.
91
A universidade era um lugar em que, naquela época pelo menos, o respeito ao professor tinha certo grau de importância. O comportamento do estudante universitário, tenho para mim, também era bem diferente. As nossas formaturas eram um negócio que parava Vitória. A minha formatura foi no Teatro Glória. Estava escrito lá no letreiro: Formatura de engenharia. O Glória era pequeno para tanta gente. A formatura era um ato tão solene, de uma pompa cerimonial muito alta. A gente saia dali convencido que realmente agora tínhamos mudado de vida. Hoje, não sei o que acontece, mas acho que virou corriqueiro esse negócio de ter diploma ou fazer um curso de Engenharia. Inclusive é questionado entre nós, engenheiros, porque perdemos muito assim, em termos até do comportamento na sala de aula, na escola. Você vê os alunos de engenharia indo de bermuda, camiseta, porque não tem um rito de que estamos fazendo uma transformação em nossa vida227.
Cola afirmou nas entrevistas de que nunca ouviu falar do Projeto de Reestruturação
Acadêmico-Científica, o que compromete tanto a visão de líderes do ME de que
discutiram ou contestaram o processo de reforma em curso na Ufes nos moldes dos
acordos MEC/USAID, quanto a afirmação da burocracia da universidade que a sua
elaboração foi precedida de um amplo debate com a comunidade acadêmica. Com
um detalhe, José Maria Cola se formou em 1971, quando a implantação da nova
estrutura estava em curso. O então estudante de Engenharia, diz nunca ter
participado e nem ouvido falar de qualquer discussão sobre o assunto. Ele inclusive,
criticou a adoção do sistema seriado e a mudança da escola para o campus de
Goiabeiras, que aconteceu depois que ele se formou.
[...] (as faculdades) estavam espalhadas. A Escola de Belas Artes era aqui na Praia do Suá, Direito ficava lá perto do Palácio. Filosofia ficava no prédio da Fafi. Ali, se não me falha a memória, antes era o Gomes Cardim, depois andou funcionando o Colégio Estadual. Em suma, era tudo espalhado por Vitória. Para juntar tudo, fizeram o campus. Nós, da Escola de Engenharia, pelo contrário, estávamos ampliando ali para fazer os diversos laboratórios. Tudo no maior refino, para depois abandonar aquilo tudo ali e ir para dentro do campus. Quer dizer, se a própria Escola de Engenharia tivesse permanecido ali onde estava talvez houvesse um ganho maior em termos de unidade dos próprios engenheiros228.
Nos parece interessante também como o engenheiro se refere à liderança que
exercia junto a sua turma, formada inicialmente por 135 alunos e que chegou com
85 na formatura, cinco anos depois. Uma situação que Cola reafirma em vários
momentos das entrevistas. De acordo com ele, para exercer essa liderança, ele
227 José Maria Cola, entrevista 28/03/2013, Anexo IV, p. 149. 228 Ibid., p. 154-155.
92
conta que procurava conversar antes com os líderes dos diversos grupos que
compunham a turma para então chegar a uma posição de consenso.
Cola destaca que a turma conseguiu uma união muito grande, que se mantém até
hoje. Tanto que, segundo o engenheiro, ele se reúnem a cada cinco anos. Bem
humorado, ele afirma que a frequência parece estar diminuindo, porque mais de 30
anos depois de formados, todos estão e alguns até já morreram. “Está surgindo a
ideia de fazer a reunião anual. Mas é uma turma que até hoje consegue se reunir e
trocar informações”, assinalou229.
Ao se referir ao ME e bandeiras de luta dos estudantes da época em que estudava
na Escola Politécnica, Cola mostra que não estava alheio ao que acontecia,
deixando transparecer uma visão que pode ser classificada de moderadamente
conservadora. De acordo com ele, na sua faculdade havia posições de esquerda e
direita, com predominância para aquelas de conteúdo conservadoras. Apesar disso,
o então estudante de Engenharia diz que não sabe se poderia se enquadrado em
alguma delas. “Sempre procurei ser uma pessoa independente, respeitando as
diferenças” 230.
Ao mesmo tempo, Cola afirma que não participava de manifestações, passeatas e
greves. Aliás, ele diz não se lembrar de nenhum movimento paredista na faculdade,
apesar de, como já foi citado nesta monografia, quando das prisões de estudantes
no Congresso de Ibiúna e na manifestação realizada em protesto contra as mesmas,
uma matéria publicada pelo jornal O Diário registrou que os estudantes da Escola de
Politécnica, decidiram em assembleia fazer dois dias de paralisação.
A “independência” não o impede de fazer críticas à extinta União Soviética e,
especialmente, aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT). Além disso, ele
afirma que é difícil mudar pessoas “ideologizadas”. De acordo com Cola, não havia
discussão entre os seus colgas sobre os acordos MEC/USAID ou questões
semelhantes, porque depois que o aluno estava fazendo e “levando a sério” o curso
de Engenharia, ele às vezes não tinha tempo nem para almoçar ou jantar, pois
ficava absorto nos estudo.
O engenheiro disse que não votava nas eleições do DCE e não se lembra dos
nomes de Carlos Magno Gonzaga Cardoso e nem César Ronald Pereira Gomes.,
que foram presidente da entidade O comportamento era diferente no que se refere à
229 Ibid. , p. 151 230 Ibid., id. .
93
representação estudantil na Escola Politécnica, onde participava das eleições do DA
e lembra-se dos nomes de alunos que presidiram a entidade, especialmente de José
Maria Nicolau, que presidiu o Diretório em 1968 e era conhecido por suas posições
conservadoras. Aliás, todos os outros presidentes, segundo ele, tinham perfil
semelhante. Cola se lembra de Jussara Martins e Marcelo Santos Neves, que
expoentes da esquerda na sua faculdade.
Ele inclusive elogia a primeira, segundo o ex-aluno da Politécnica, uma pessoa de
posições firmes, que sempre soube respeitar diferença. “Sem dúvida nenhuma, por
ser mulher, possivelmente ela deve ter sofrido muito Sem dúvida nenhuma, por ser
mulher, possivelmente ela deve ter sofrido muito”. Com relação à repressão
desencadeada pela ditadura, Cola disse que ficava penalizado com aquele tipo de
coisa, devido a “severidade”; “Conseguia se enxergar fantasma onde nós também
não víamos. Não se entende esses assuntos na profundidade, na necessidade de se
fazer determinadas, vou chamar assim, ações ou coisas bastante repressoras como
naquela época se levava. Era muita dureza.” 231.
231 Ibid., p. 159..
94
Conclusão Acreditamos ter demonstrado, com base nos depoimentos e documentos citados,
que o Plano de Reestruturação Acadêmico-Científico da Ufes foi elaborado por um
técnico do USAID e possui o espírito da Reforma Universitária promovida pela
ditadura. Mais do que isso, podemos afirmar que, como foi elaborado antes mesmo
da promulgação dos decretos-leis que orientaram a reestruturação das
universidades federais brasileiras, tudo nos leva a crer que Ufes acabou servindo
como um laboratório para a Reforma. Não por acaso, a estrutura prevista no projeto
é até hoje, 45 anos depois de sua promulgação, a coluna vertebral da Universidade.
Levantamos essa hipótese, não só por Atcon ter sido o autor do plano, mas pela
participação nele do conselheiro Valnir Chagas, que teve papel importante na
política da ditadura militar para educação superior e na elaboração da Lei
5.540/1968. Antes mesmo de ser aprovado pelo CFE e promulgado pelo Marechal
Artur da Costa e Silva, o plano foi publicado pela editora da Universidade Federal de
Santa Catarina232.
Outra informação nos chamou atenção e reforçou a nossa hipótese. Na sessão do
Conselho Universitário de 4 de abril de 1967, o reitor informou que, numa reunião
realizada no MEC, com a participação dos reitores das outras universidades
federais, a Ufes foi convidada, com outras quatro instituições federais de ensino
superior para integrar um plano piloto das universidades brasileiras, que seria
desenvolvido por uma Comissão Federal de Planejamento. Não podemos deixar de
fazer a ressalva que nenhuma informação a mais foi acrescentada.
Os depoimentos e documentos que conseguimos reunir parecem confirmar nossa
hipótese de que as lideranças estudantis, mesmo as mais à esquerda, não tiveram a
dimensão de que Ufes era um laboratório de uma reforma universitária nos moldes
propostos pela ditadura militar. Mesmo aqueles que sustentam que, teria havido sim,
uma resistência ao projeto. O Plano de Reestruturação Acadêmico-Cientifico, que
acabou sendo aprovado com certa facilidade, foi uma estrutura elaborada nas bases
dos odiados acordos MEC-USAID.
Ele foi discutido e aprovado no Conselho Universitário por duas vezes, na segunda
quando os representantes estudantis eram ligados à posições mais à esquerda, em
agosto de 1968. Ainda que se possa relevar o fato de que não houve não houve
232 De acordo com Catálogo da Biblioteca Central da Ufes, também existem no Setor de Coleções Especiais, cinco exemplares de uma edição publicada um ano antes no Rio de Janeiro.
95
uma discussão com a mesma profundidade do ano anterior, seu conteúdo não foi
levado ao conhecimento da massa estudantil e não parece ter havido da parte da
direção nenhuma discussão mais aprofundada sobre isso. Mas os documentos
estudantis produzidos na época e lideranças daquele período apontam a luta contra
o Acordo MEC-USAID como prioritária para o ME.
Algumas lideranças, como Domingos Freitas Filho, admitem que a maioria dos
estudantes não conheciam o conteúdo do acordo (na verdade eram 12 acordos).
José Maria Cola, que não era militante do ME, afirmou não ter participado sobre
qualquer discussão sobre o assunto. Nem sobre o acordo MEC-USAID e nem da
reestruturação da Ufes. Nas atas do Conselho Universitário, vimos mais destaque à
preocupação corporativista de algumas faculdades que seriam unificadas, como a
Odontologia e a Medicina, sobre uma discussão mais aprofundada do projeto de
reestruturação.
Como dissemos no início do nosso trabalho, um dos nossos objetivos era tratar da
configuração e os eventos que marcaram o Movimento Estudantil (ME) no Espírito
Santo no período de 1964 a 1968. O episódio da reforma acadêmico-científico da
Ufes é uma demonstração da dificuldade em estabelecer uma relação dialética entre
a conjuntura local e nacional numa leitura de realidade que leve em conta
necessidade de estabelecer uma estratégia que leve em consideração as
especificidades locais.
Percebemos na maioria dos depoimentos a análise da realidade local, tanto na
Universidade como do Estado, não eram prioridades no processo elaboração política
da ação e intervenção política dos militantes e suas organizações. A referência
sempre é nacional. Por isso, não é de se estranhar que ele diga em determinado
momento que, para eles, não havia diferença entre os representantes do regime no
Estado e em nível nacional.
Como vimos num depoimento, para os militantes de esquerda, todos os
representantes do Estado representavam a ditadura, já que tanto o governador
como o prefeito da Capital eram nomeados. Dessa maneira, não haveria diferença
do ambiente nacional para o estadual. Se você for fazer uma pesquisa sobre percepção que a gente tinha da situação estadual, era a mesma da nacional, porque não você fazia diferença sobre nossos representantes. Qual a diferença do (Cristiano) Dias Lopes, do Setembrino? Eram todos representantes da ditadura, da
96
direita. Para nós eram representantes da direita, até porque não poderia deixar de ser233.
Com relação à amplitude do movimento de oposição à ditadura militar, que fez com
que as correntes de esquerda vissem a possibilidade de abertura de uma crise
revolucionária que derrubasse a ditadura, se Reis Filho apontou a existência de
apenas duas greves operárias (em Contagem e Osasco), em 1968, o único
movimento de trabalhadores de que temos vaga referência no Espírito Santo entre
1964 e 1968, foi de uma greve de motoristas e trocadores de ônibus.
Se as esquerdas brasileiras acreditavam, como mostrou Reis Filho, que a ditadura
estava isolada e vivia uma crise incontornável, que levaria à sua inexorável
derrubada pela ação da vanguarda armada das massas, como veriam a realidade do
regime em outros rincões do país? Como admitiu Caldas Brito, que foi dirigente do
PCdoB e da Ala Vermelha, essa discussão não era feita. O conteúdo da
Reestruturação Acadêmico-Científica da Ufes e mesmos alguns aspectos que
envolvem a militância do ME daquele período certamente ainda merecerão outros
estudos.
Não pretendemos fazer qualquer julgamento, muito menos uma condenação, das
lideranças estudantis daquele período, até porque entendemos que eles cumpriram
um importante papel na resistência contra o regime militar e na luta pela
redemocratização do país. O que pretendemos é lançar as bases sobre a
capacidade da esquerda de fazer uma análise específica sobre a realidade local fora
do contexto nacional, especialmente em Estados periféricos como o Espírito Santo.
A bem da verdade, os fatos parecem demonstrar que a própria leitura da conjuntura
nacional por parte das correntes de esquerda acabou se mostrando equivocada.
233 Antônio Caldas Brito. Entrevista 02/10/2013. Anexo II, p.
97
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANEXO I ENTREVISTA ANTÔNIO CALDAS BRITO - 05/09/2012
Como é que foi o início de sua militância no movimento secundarista no Piauí?
ANTONIO CALDAS BRITO - A gente tinha um grupo já discutindo os problemas
sociais. Faziam parte, o José Luiz Maia, que depois foi deputado federal lá pelo
Piauí; o Jesualdo Cavalcanti, que era do PCB, se formou no Piauí e foi presidente do
Tribunal de Contas do Estado. E a gente...
Você estudava num colégio? Isso foi em que ano mais ou menos?
ACB - Eu estudava no Colégio Diocesano, que corresponde aqui ao Colégio
Salesiano. Não me lembro exatamente o ano, no início dos anos 60. Entrei no
movimento, me tornei um dos diretores da União Piauiense dos Estudantes
Secundaristas (Upes).
Houve algum fato que te atraiu para o movimento? Na sua formação familiar, já havia alguma coisa que te atraísse para a militância ou foi no colégio que você foi despertando para a política?
ACB - Na minha família teve um episódio muito importante na minha vida. Um primo
nosso, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, era governador do Estado quando
houve o golpe, a tentativa de impedir a posse do João Goulart. Por coincidência, ele
estava no Rio e era do PTB. Ele fez um discurso apoiando a posse do João Goulart
e aí houve ordem de prisão para ele no Rio. Então ele viajou até o Ceará, o Governo
do Ceará deu garantias para ele tomar posse, voltar ao Piauí e assumir o governo.
Nós ficamos eu tinha nessa época uns, sei lá, 16-17 anos, a noite toda no palácio
ouvindo a Rede da Legalidade, noticiando, dizendo o que estava acontecendo. Para
mim, foi um dos episódios que marcou a minha vida. Cinco horas da manhã ele
chega e, na manhã seguinte, a polícia do Piauí garantiu a posse. Acho que esse foi
o primeiro incentivo a entrar no movimento pela democracia. Mas aí nós entramos,
fui diretor da União Piauiense dos Estudantes Secundaristas por dois mandatos.
Depois, participei de um congresso nacional da União Brasileira dos Estudantes
Secundarista (Ubes), no Rio Grande do Sul, e fui eleito para uma das diretorias da
entidade.
102
Você se lembra para qual das diretorias?
ACB - Acho que era uma diretoria sem muita importância, mas uma diretoria que me
permitiu vir para o Rio.
Isso aconteceu em 1962?
ACB - Por aí. Inclusive fiquei morando na Ubes, no Flamengo. Eu vim para o Espírito
Santo exatamente nesse período, em 1964, um mês antes de golpe.
Você já havia ingressado no PC do B naquela época?
ACB - Não, minha aproximação lá no Piauí era mais com o PCB.
Mas você ingressou no partido ou era só próximo?
ACB - Só próximo. Ingressar mesmo, eu ingressei no PC do B, mas já aqui no
Espírito Santo.
E como é que você veio parar no Espírito Santo?
ACB - O meu irmão mais velho formou-se em Minas - tenho dois irmãos formados
em Minas. Formou-se em Direito, José Caldas Britto, que foi Procurador Geral do
Estado. Um colega dele, daqui do Espírito Santo, também formado em Minas, foi
que o convidou para vir trabalhar aqui no Estado. Meu caminho também estava
praticamente tudo certo, era ir para Minas estudar, porque já tinha conhecimento, a
pensão que meu irmão tinha ficado.
Em Belo Horizonte?
ACB - Belo Horizonte. Eu me lembro de um episódio, chegando em casa, pensando
em fazer o vestibular, meu irmão disse: "não vai para Belo Horizonte que você não
vai gostar, porque é uma cidade num vale e o mineiro, na segunda cerveja, solta
uma caixa de foguete. Você vai para o Espírito Santo. Vai conhecer o Espírito Santo,
que você vai gostar, eu já estou morando lá". Aí eu vim. Inicialmente eu não tinha
nem terminado o secundário ainda. Vim para o Espírito Santo, fiquei umas férias
aqui e realmente eu gostei.
Foi em 1963 que você veio passar as férias?
103
ACB - No início de 1964.
Onde você ficou quando veio passear?
ACB - Quando vim passear, meu irmão estava morando em Linhares. Eu vim para
Linhares, depois para Vitória, Guarapari. Aí voltei para o Piauí, para terminar o meu
secundário e vim direto para cá para fazer o vestibular. Quando fui para o Rio,
estava no último ano, fiquei lá um ano antes de fazer vestibular, fazendo política. O
Rio era um lugar muito interessante, naquele movimento ali do Calabouço, que
juntava estudantes do Brasil inteiro. Não foi à toa que a ditadura acabou com aquilo
lá e fez uma praça. Era um grande símbolo do movimento estudantil. Muito antes do
golpe, já havia uma fermentação política fantástica. O pessoal da Ubes também
podia almoçar lá na Fafi. No Calabouço o pessoal da UNE ia mais fazer política, mas
fazia refeição no restaurante da Fafi, que ficava próximo e era melhor. O grande
centro de fermentação e agitação era no Calabouço.
Você chegou em Vitória, já era um militante político, qual sua impressão da Vitória daquela época?
ACB - Me lembro que teve um movimento pela estatização da empresa de energia e
eu fiz um cursinho pré-vestibular. Inclusive, um dos diretores era o José Guilherme
Cortês. Era um pessoal já bastante integrado com o movimento de esquerda daqui.
Aí eu conheci Carlito Osório. Era todo mundo muito mais velho, mas eram todos
ligados ao movimento. A minha maior integração ao movimento foi mais mesmo na
universidade, lá eu conheci o Perly, o Zezinho Cipriano. Inclusive, nós fizemos uma
república, que era o 804. A famosa 804, era eu, Perly, Zezinho Cipriano, Renato
(Soares). Aquele menino da Medicina morou lá pouco tempo. A base éramos nós. O
pessoal ia aparecendo, dormia lá. Tinoco (dos Anjos) morou lá com a gente.
Realmente era um núcleo interessante do movimento estudantil. E, nesta altura dos
acontecimentos, em plena resistência contra a ditadura, depois de 1964.
Mas nós estamos ainda antes do golpe. Você chegou aqui e teve o contato com essas pessoas. O movimento estudantil antes do golpe, qual o contato que você teve?
ACB - Eu estava no cursinho, entrei na universidade em 1965. A gente participou de
algum movimento ali na Praça Oito pela nacionalização da central elétrica.
104
A Central Brasileira de Força Elétrica, que era uma empresa canadense. ACB - Exatamente. Participei daquele movimento, tentando me entrosar com o
pessoal. O grande teste meu foi no golpe. Foi a resistência que a gente fez, eu era
secundarista ainda, estava no cursinho. Eu fui com o pessoal para a UEE.
Como é que foi esse dia 31 de março?
ACB - Foi um dia fantástico.
Como é que você tomou conhecimento do golpe?
ACB - Foi um negócio interessante, porque ninguém acreditava que ia haver o golpe.
Acho que nem o João Goulart. Tanto que na véspera do golpe, estava marcada uma
vinda do João Goulart aqui para assinar a nacionalização da Central Brasil de Força
Elétrica. Outra pessoa interessantíssima, aquele advogado eleitoral, o Antônio
Carlos Pimentel, era diretor do Grêmio do Estadual e, quase na véspera do golpe,
nós fomos lá no palácio conversar com o governador, o Chiquinho, e ele estava certo
que não tinha nada, não ia haver golpe.
Mas você foram com alguma entidade?
ACB - Eu acho que o Pimentel foi pela Uese (União Espírito-santense dos
Estudantes). E ele disse: "Não, não tem nada". Me lembro que, naquela época, a
gente ouvia o Repórter Esso ali na Praça Oito. Eu ouvi o discurso do João Goulart
nos Clube dos Sargentos ali, ele convocando os sargentos para resistir. Eu sei que,
no dia do golpe, nós passamos a noite toda lá na UEE. Me lembro que eu e o
Roberto Cortês, irmão do José Guilherme, saímos na chuva e fomos ao Sindicato
dos Estivadores. Os sindicalistas também estavam reunidos, aguardando. Fomos lá
para dar a notícia que o Miguel Arraes havia sido preso. A queda começou assim. E
voltamos para a UEE para saber o que estava acontecendo. Ficamos a noite toda.
Sai de lá de manhã, fui para a casa do meu irmão, que estava desesperado porque
não sabia o que estava acontecendo comigo. Ele falou comigo: "pode vir para casa,
porque não tem mais resistência não".
Houve nesse dia uma manifestação em frente ao Palácio Anchieta, onde inclusive o Chiquinho deu uma nota, que depois utilizada para dizer que ele
105
estava do lado do golpe. Você participou dessa manifestação?
ACB - Não, eu me lembro que houve a manifestação, mas não me lembro de ter
participado. Eu participei ativamente é do movimento dentro da UEE.
Bem, houve essa vigília na UEE. Segundo Perly Cipriano, houve um grupo que ficou até o final. ACB - Ficamos a noite toda, saí de lá umas 11 horas, no dia 1º.
No dia 02, porque a vigília foi do dia 1º para o dia 02, quando o golpe se consolidou. Segundo o Perly, depois o grupo saiu e a polícia invadiu a UEE. ACB - Quando ela chegou, ainda tinha umas pessoas. Ainda tinha, não sei se o
pessoal que trabalhava na UEE. Mas eu já tinha saído quando a polícia chegou.
Como o movimento se comportou no período posterior ao golpe? A UEE estava fechada, houve intervenção nela.
ACB - Acho que ainda foi muito importante nesse dia, a gente notar que o pessoal do
porto, dos estivadores, que era um sindicato fortíssimo naquela época, também
ficaram de vigília, aguardando o que ia acontecer. Você vê o seguinte, não houve
uma mobilização externa. Até os trabalhadores ficaram aguardando para ver o que
acontecia. Me lembrou que eu e o Roberto Cortês saímos da UEE e fomos lá, para
saber o que estava acontecendo, se eles tinham mais alguma notícia, se tinha
resistência no país, se não tinha. Eles também não sabiam nada. Sabiam tanto
quanto nós sabíamos.
E nos dias posteriores ao golpe? Houve prisões?
ACB - Nos dias posteriores ao golpe teve prisões. A resistência maior mesmo foi do
Movimento Estudantil. Inicialmente não houve uma repressão tão forte. Você
conseguiu fazer manifestações. Eu mesmo participei daquela marcha dos 100 mil.
Mas isso foi em 1968, vamos voltar para 1964. Houve o golpe e um movimento de desarticulação. Depois houve a rearticulação. Quando aconteceu o golpe, você já estava no PC do B?
ACB - Não, entrei depois do golpe.
106
Como foi sua entrada no PC do B? Você mesmo disse que era amigo do Perly e de outras pessoas ligadas ao PCB. Era contato do partido no Piauí, como é que você foi parar no PC do B?
ACB - Primeiro que eu sempre achei essa política do PCB muito confortável. O PCB
sempre divulgou a formação, o diálogo. Na verdade, eu estava muito mais do outro
lado. Na universidade eu conheci o Helinho, Hélio Garcia - Helinho hoje mora em
Colatina - e ele já era do PC do B. Antes de terminar o primeiro ano, no final do
primeiro ano, ele já foi para a clandestinidade, depois foi para a China e tal. A partir
desse contato com o Helinho, é que houve a minha aproximação com o PC do B.
Helinho fazia Economia também?
ACB - Fazia. Também havia um outro rapaz daqui, inteligentíssimo, primeiro lugar na
Escola de Engenharia do Rio de Janeiro, que foi assassinado, não me lembro o
nome e era contato do partido aqui234. A gente acabou entrando no PC do B,
chegamos a ser direção aqui e, num congresso da UNE, a gente saiu do PC do B e
entrou na Ala Vermelha.
Isso foi em 1967, a Ala Vermelha foi formada em 1967. Em 1964, o Hegner Araújo235 era interventor na UEE. Depois houve uma eleição, que elegeu o (José) Monteiro como presidente. Você participou desse processo? Você conheceu o Hegner na época em que ele era interventor?
ACB - Não, nós voltamos para a UEE com Zezinho Cipriano. Nós conseguimos um
parecer de que a UEE podia funcionar, conseguimos eleger uma nova diretoria, fazer
o CEU (Clube do Estudante Universitário).
Durante o ano todo de 1964, você ficou fazendo o cursinho? Ele funcionava aonde?
ACB - Ele funcionava dentro do prédio da Economia.
234 É possível que Caldas Brito esteja se referindo a Lincoln Bicalho Roque, militante do PC do B, morto em 1973, que estudou no Espírito Santo e depois se transferiu para o Rio de Janeiro, mas continuou fazendo a ligação com o partido no Estado. 235 Hegner Araújo foi professor da Ufes e sub-reitor de Assuntos Comunitários na gestão reitor José Antônio Abi Said (1984-1988). Estudante com posições de direita liberal, em abril de 1964, Hegner era presidente do DA da Fafi e foi nomeado interventor da UEE pelo Conselho de Entidades da mesma, em reunião realizada no dia 07 de abril de 1964.
107
Você lembra quais as pessoas que foram presas depois do golpe? Por exemplo, o Renato Soares236 me parece que foi preso. ACB - Não, ele foi preso mais depois. Logo depois do golpe, eu acho que não houve
muita prisão não, porque Ewerton Guimarães foi preso depois, em 1968. Nessa
época, eu me lembro que a gente era muito chamado na polícia, mais para dar
depoimento, mas prisão... A primeira grande prisão foi, acho que foi em 1970, nas
vésperas da eleição. Mais de 300 pessoas.
Você foi preso também?
ACB - Também. A ditadura prendeu todas as pessoas que pudessem ter influência.
Mais de 300 pessoas. Eu, Zezinho, (Sizenando) Pechincha237, José Costa238. Nós
tínhamos curso superior, ficamos presos na enfermaria e os demais em outros
lugares. Todo tipo de pessoas. Um velhinho que era do PCB também, ele até passou
mal lá. Prenderam gente que não tinha nada a ver. Me lembro que prenderam o
Moacir Brotas. Ficou com a gente, era médico em Colatina. Prenderam um monte de
gente, nós entramos e saímos sem saber por que. Não deram explicação. Nos
prenderam, botaram lá e, na véspera da eleição, soltaram todo mundo. De
Cachoeiro foi o (Gilson) Carone239 também.
Ficou todo mundo no 38º BI (Batalhão de Infantaria)?
ACB - Todo mundo ficou no 38º BI. Prenderam operário, estudante, jornalista,
prenderam quase 500 pessoas. Eu acho que aquilo ali foi uma tentativa de golpe,
porque até hoje não tem uma explicação. Acho que foi no Brasil inteiro. Teria que
pesquisar o que foi aquilo. Prenderam esse pessoal todo, prenderam dentro de
casa, nós ficamos ali junto e passou a eleição, soltou todo mundo. Bom, na época
eles não davam explicação para ninguém. Nunca ouvi nenhum comentário dessas
prisões. Acho que ficou um branco sobre isso. Todo mundo sabe que aconteceu.
Ninguém pesquisou porque aconteceu.
236 Líder estudantil ligado ao PCB, Renato Soares mais tarde seria professor da Ufes e presidente estadual do PSB, cargo do qual se afastou em 1995. Atualmente mora em Maceió, onde dá aulas na Universidade Federal do Alagoas (Ufal). 237 Advogado de posições progressistas, ligado ao antigo MDB, foi presidente do Vitória Futebol Clube, faleceu num acidente de carro no início dos anos de 1980. 238 Jornalista, assassinado no início dos anos de 1990. O crime nunca foi desvendado. 239 Médico foi vice-prefeito e prefeito de Cachoeiro de Itapemirim (1978-1982).
108
ACB - É, acho que foi um episódio interessante.
Vamos voltar lá, paralelamente à sua participação no ME, você trabalhava também? Você morava com seu irmão?
ACB - Eu trabalhava na Caixa Econômica. Eu entrei na Caixa no final do primeiro
ano ou início da minha faculdade. Antes da república do 804, eu morava com meu
irmão, na Praia do Canto.
Mil novecentos e sessenta e quatro foi um momento de rearticulação, em 1965 você entrou na faculdade, como foi isso?
ACB - Foi quando eu entrei no PC do B.
Esse período todo antes, você militou como independente?
ACB - Como independente.
Mas ainda com proximidade com o PCB ou crítico em relação ao partido?
ACB - Um pouco de crítica em relação ao PCB, porque no Piauí também, eu tinha
muito contato com o pessoal da Juventude Estudantil Católica (JEC), que eram
estudantes secundaristas. Esse pessoal veio para a JUC (Juventude Estudantil
Católica), que era a juventude universitária católica e depois a AP (Ação Popular).
Na AP foi a junção da Juventude Estudantil Católica secundarista e a JUC. A igreja
criou a Juventude Operária Católica (JOC), de onde saíram as comunidades de
base. A JOC juntou com a JEC e a JUC e deu a AP. Grande parte desse pessoal da
AP veio para o PC do B.
Lá no Piauí você tinha esse contato. ACB - No Piauí eu tinha o contato com o pessoal da JEC. Esse pessoal, por incrível
que pareça, era muito mais radical do que o PCB. Eu acho que daqui, dado essa
aproximação aqui, talvez eu fui criando uma consciência de ir para o PC do B. É um
negócio tão interessante esse raciocínio, grande parte desse pessoal da AP rompeu
com a igreja e foi para o PC do B240. Teve uma época em que houve um racha da AP
240 Na verdade, desde meados da década de 1960, a AP havia feito uma inflexão em direção ao maoísmo. Em 1971 passou a adotar o nome de Ação Popular Marxista e Leninista (APML). Em 1973, a maior parte da organização se incorporou ao PC do B. Os remanescentes, que não aceitaram a fusão, mantiveram a organização
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e a maioria foi para o PC do B, porque eles estavam muito mais próximo do pessoal
da igreja, com uma resistência mais consistente do que o Pecezão. O PCB, desde
que houve esse racha da criação... criação não, da criação do PCB, porque o PC do
B sempre existiu. Quando se criou o PCB, já foi uma flexibilização da ideologia
marxista. Tanto que foi flexibilizando, até desaparecer. Hoje o que é o PCB? Hoje o
PCB virou o PPS. Eles foram se dissolvendo, renegando aos poucos a ideologia
marxista. Desapareceram. O que é o PPS?
Antes de entrar para o PC do B, você já se considerava marxista?
ACB - Eu acho que sim. Já lia, não estava organizado, mas conhecia todas as
teorias marxistas.
Então em 1965, você começou a estudar na faculdade e se engajou em algum movimento específico no ME?
ACB - Desde o primeiro ano, já havia toda uma formação. Eu comecei a participar do
Diretório Acadêmico. A nível do Diretório Acadêmico, a maioria dos estudantes não
são marxistas, então você começa com as reivindicações escolares: melhoria
escolar, professores, mudança de professores. Eu não sei se cheguei a participar de
alguma diretoria, mas eu já estava no Diretório, participando do Diretório.
Foi em 1965 que o Monteiro renunciou à presidência da UEE e o Zezinho (Cipriano) continuou. Ele era o único diretor que havia sobrado da diretoria eleita no ano anterior. Houve uma reorganização da diretoria, você se lembra disso?
ACB - Eu participei da diretoria com Zezinho Cipriano, era o secretário-geral.
Mas você lembra como foi a organização dessa diretoria? Não houve uma eleição, mas sim uma reorganização. ACB - É, acho que não houve uma eleição.
A UEE estava fechada?
ACB - Estava. Nós começamos a reorganização, reativamos o CEU, que era uma
até 1980, quando novamente a maioria decidiu pela diluição da APML no PT. Mais uma vez, um grupo minoritário insatisfeito, decidiu formar a Organização Comunista Democracia Proletária (OCDP).
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forma de puxar gente para lá. Conseguimos uma verba não sei como, sei que nós
compramos um equipamento de som. Acho também que foi a última diretoria da
UEE, porque acho que houve outra intervenção na entidade.
A última diretoria foi a do (Antônio Carlos) Dall´Orto. ACB - Então é isso, Dall´Orto foi a última diretoria, depois da gente. Foi isso, nós
conseguimos, a partir dessa organização, fazer uma eleição. Dall´Orto está na Bahia
agora.
O DCE já existia naquela época. Você lembra como eram os dirigentes do DCE até a eleição do Carlos Magno (Monteiro)? A Rita Dias, o Bresciani. ACB - A Rita era de uma geração antes da nossa. Rita Dias, Vicente Finamore, esse
pessoal era de uma geração antes da nossa. Quando a gente entrou na
universidade, acho que eles estavam saindo. Eu participei, acho que não da diretoria
eleita, mas da nomeada do DCE, no ano que foi eleito aquele menino da Medicina, o
César Ronald.
Mas você participou da diretoria do Carlos Magno (Gonzaga Monteiro)?
ACB - Da do Carlos Magno também. Carlos Magno foi antes do César Ronald.
Participei com Carlos Magno da chapa, a do César Ronald eu acho que não cheguei
a participar da chapa. O César também não era organizado, mas nós lançamos o
nome dele, para evitar a eleição do pessoal da JUC. Havia uma disputa muito
grande entre o pessoal marxista, do PCB e PC do B, com o da Juventude Católica,
que era bem organizado também. A JUC era uma das forças significativas do
Movimento Estudantil. A grande base deles era a Fafi (Faculdade de Filosofia). É
engraçado, era movimento muito feminino, tinha mais mulheres do que homens.
Uma das lideranças, que hoje é de direita, era a Jussara Martins241.
Como era a Jussara Martins?
ACB - Jussara era uma das militantes mais radicais que eu conheci, altamente
participativa. Tanto que, foi do pessoal que partiu para a clandestinidade. Jussara
241 Jussara Martins Albernaz, líder estudantil na década de 1960, era principal liderança da AP e foi vice-presidente da UEE na gestão de Antônio Carlos Dall´Orto. Presa e torturada em 170, em Belo Horizonte (MG), atualmente é professora da Ufes e defende posições de Direita, renegando a sua militância de Esquerda.
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sofreu muito. Hoje, se conversar qualquer coisa de esquerda com a Jussara, você
apanha. Até hoje eu não entendi o que aconteceu, a Jussara que eu conheci, não é
a de hoje. E era da JUC e, depois, da AP. Tem aquela menina Leite, também era da
Fafi. Maria Lúcia, que era uma liderança altamente participativa. O pessoal da JUC,
que à esta altura dos acontecimentos, acho que já estavam na AP, que estava
funcionando como uma organização... Mas eu estava contando o negócio da
eleição, o César Ronald era um orador fantástico e um cara tipo assim, bem liberal...
O que significa "liberal"?
ACB - Digamos que ele não era uma pessoa organizada, quer dizer, meio doidão.
Gostava de usar droga?
ACB - Usava droga (risos). E a gente lançou ele, exatamente para atrair o voto
feminino. Porque senão, acho que a JUC tinha maioria naquela época. Um episódio
muito interessante, uma das passeatas, foi quando nós demos o nome de Édson
Luiz ao Restaurante Universitário. Nós fomos à missa e descemos da Catedral em
passeata para o restaurante, lá no Centro. Descemos a escadaria, chegamos na
altura da Praça Oito, houve a notícia que a polícia estava ali para prender o César
Ronald. Então ele me chamou e disse: "Brito, toca a passeata, que eu vou sumir".
Então voltou, não sei para onde, para não ser preso. Eu toquei a passeata e, por
coincidência, tive a grande oportunidade de subir no poste ali em frente ao
restaurante, mandei abrir a faixa e nós demos o nome do restaurante de Édson Luiz,
que tinha sido morto no Calabouço.
Eu quero voltar lá atrás ainda. Entre 1965 e 1966, você esteve na diretoria da UEE, houve o congresso que elegeu o Dall´Orto presidente. O que você lembra desse congresso? Eu tenho a ata desse congresso, que foi você que fez. ACB - Eu lembro que a gente fez um movimento de mobilização nas faculdades. O
Dall´Orto era exatamente da Medicina, que naquela é época, você saindo da Fafi,
era o maior centro de estudantes politizados. Aí nós trouxemos o nome do Dall´Orto,
acho que depois ele nem terminou o mandato dele.
A UEE depois foi colocada na clandestinidade, não teve mais eleição, no ano seguinte e a sede foi fechada. Nesse congresso, num relato anterior, você
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havia me dito que vocês haviam dado um golpe no pessoal da AP para eleger o Dall´Orto. Você lembra disso?
ACB - Não foi bem um golpe.
Porque pessoal da AP tinha maioria nesse congresso e ainda queria aprovar o Movimento Contra a Ditadura (MCD). Vocês, aliados o PCB e o PC do B, para não usar a palavra golpe, deram uma rasteira no pessoal da AP. Você lembra como foi isso?
ACB - Não me lembro assim não. Me lembro que a gente fez essa união, tanto na
eleição do Dall´Orto na UEE, como depois na de César Ronald no DCE. Está vendo,
acho que foi a primeira vez que o PCB e o PC do B se fundiram. Foi exatamente
essa divergência que a gente tinha o pessoal marxista, com o católico.
Eu acho curioso isso dai, porque, nacionalmente, o PC do B era mais próximo da AP, porque as duas organizações compartilhavam da concepção maoísta. Mas aqui, você, por exemplo, estava mais próximo do PCB, como é que era isso?
ACB - Eu tenho a impressão, que isso deve ter acontecido pela aproximação
pessoal que a gente tinha com Zezinho Cipriano e Perly. Era uma convivência
pacífica interessante. Tinha amizade pessoal. Como o movimento estudantil, tinha
uma influência muito grande na área do PC do B, acho que gente fazia essa
aproximação mais com o PCB do que com a AP. Talvez por essa identificação
marxista que a gente tinha. A AP depois se tornou marxista, quer dizer, parte da AP,
e se aproximou do PC do B. Eu tenho a impressão que a aproximação nossa aqui,
foi mais uma questão pessoal mesmo e a identificação ideológica, porque a AP,
apesar de na ação se aproximar até mais da gente, mas tinha aquela restrição
ideológica. O que acontece que com a AP, e ainda acontece hoje com o PT, porque
acho que esse movimento da AP chegou ao PT. Você vê que o PT tem muita
identificação com essa história. Tanto que o PT hoje é muito próximo do movimento
católico, desse movimento de comunidade de bases. O Lula é da mesma origem, da
mesma ala ideológica. O problema que vejo no PT, é que trata-se de um partido
mais dogmático. Não tem fundamento científico. Você pode até discordar do
marxismo, mas você não pode negar que tem um fundamento científico. Pelo menos
se pretende que tenha um fundamento científico. Como era o PTB, qual é o
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fundamento científico que tem o PT? Luta por reformas? Quer chegar aonde? Se
você se aprofundar, não vai encontrar. Então, acho que isso fazia com que, naquela
época, que me aproximasse mais do pessoal do PCB do que da AP. Eu acho que o
PT até tem um trabalho muito interessante no país, mas muito com base sindical.
Eu acho interessante que, na outra entrevista que fizemos, tem mais de 10 anos, você falou muito desse congresso de 1966. ACB - É, porque foi um momento importante.
Mas hoje você não está lembrando. Por exemplo, contou que vocês seguraram o congresso até o horário da missa, para que o pessoal da JUC e da AP fossem para lá e aí vocês fizeram a votação do tal do MCD. Eles ficaram em minoria e vocês fizeram a votação. O Dall´Orto teria sido eleito, porque eles não sabiam que ele era do PCB. Você não se lembra disso?
ACB - Não... lembro, lembro, lembro. Eu não estou citando porque estou puxando
um negócio mais...
Pode falar de forma detalhado mesmo. Eu queria que você tentasse lembrar, qual era a avaliação que o PC do B tinha sobre a situação do país e da ditadura? Nos documentos das organizações da época, existia uma avaliação de que a ditadura não iria se sustentar por muito tempo. Como era a discussão que você participava na época?
ACB - Na nossa visão, na visão do PC do B, a ditadura só cairia se fosse através da
luta armada. A gente não tinha ilusão que eles iam entregar o poder. Eu acho talvez
por esse entendimento da gente, do PC do B, é que talvez ele cedessem. No caso
do Araguaia, do sequestro. Quando a gente fala em luta armada, não é quer dizer só
o caso do Araguaia. É o caso de ações urbanas. Não tínhamos nenhuma ilusão de
que, no diálogo, pudéssemos tirar os militares do poder. Eles saíram por causa do
problema econômico. Só entregaram o poder porque quebraram o país.
O PC do B naquela época tinha uma concepção que era próxima do maoísmo, como a proposta de cercar a cidade pelo campo. Você compartilhava dessa visão?
ACB - Duas discussões no movimento de esquerda naquela época: primeiro, foi a
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questão do foco, do (Régis) Debray. Mas dentro do PC do B, nunca ninguém se
iludiu com aquilo não. Mas se discutiu muito essa ideia.
Você lia Mao naquela época? Havia um programa de leitura de Mao Tsé Tung?
ACB - O livrinho vermelho era distribuído para todos (Risos). Eu não sei, até hoje eu
acho, cada país tem sua realidade, que a China chegou a um momento de tamanho
atraso, de tamanho domínio externo, que talvez dificilmente eles chegariam ao que
chegaram hoje, se não tivessem feito a Grande Marcha. No Brasil isso não seria
possível, porque o Brasil é muito desigual. O modelo da China, a tentativa do
Araguaia, acho foi dentro dessa concepção. Mas alguns partidos que também
partiram para isso, não só o PC do B, nós estávamos na Ala Vermelha. Mas o PCBR
também entrou nessa. Acho que o PCBR entrou mais no negócio do foco. Mas a
nossa concepção não era essa. Mas acho que grande problema da esquerda
brasileira que teve um período, aí eu já estava fora do Movimento Estudantil, mas
continuava participando do partido, é que você chegou a conclusão que não dava
mais para o diálogo, que partiu todo mundo para a luta armada, começaram a se
formar pequenas organizações no Brasil. Aí você tem a Colina (Comando de
Libertação Nacional), da nossa amiga Dilma, tinha organização de esquerda com 10
pessoas, 20. As grandes organizações não conseguiram segurar o movimento. Acho
que aí foi o grande fracasso do movimento de esquerda no Brasil. Então foi fácil a
ditadura dominar. Você tinha não sei quantos grupos de esquerda, principalmente
voltado para a luta armada.
Você me falou que entrou para a Ala Vermelha em 1967. Como é que foi esse racha e como você esteve envolvido nele?
ACB - Quando eu entrei para a Ala Vermelha, foi mais por uma decepção com o PC
do B. O PC do B também estava começando a relaxar na concepção de derrubar a
ditadura através da luta armada. O PC do B só voltou à essa concepção depois da
Ala, acho que depois da entrada do pessoal da AP. O pessoal rachou com o PC do B
exatamente por isso. O pessoal que foi para a Ala Vermelha não saiu do PC do B.
Criou-se uma dissidência, mais realmente voltada para a luta armada. Foi num
momento em que estavam sendo criadas várias tendências, como a VAR-Palmares,
a Colina... não me lembro de todos os nomes não, mas foram muitas nesse período.
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Como foi formada a Ala Vermelha aqui no Espírito Santo? Foi um grupo de militantes que entrou na Ala Vermelha?
ACB - Eu parti para a Ala Vermelha quando eu fui para um congresso. Esse último
congresso da UNE antes daquele Ibiúna (SP), em Vinhedo (SP). Naquele último
congresso a gente começou a discutir [...] tentar organizar a Ala Vermelha aqui e a
Ala Vermelha aqui ficou com um movimento grande.
Muita gente do PC do B daqui entrou na Ala Vermelha?
ACB - Era o pessoal do PC do B mesmo.
Mas foi a maioria?
ACB - Não, acho que não. Acho que entrou muito o pessoal mais jovem: eu, a
esposa do Amorim, Amorim, José Fernando Distefano... Nós tínhamos uma ala
também de operários. Eu tenho a impressão que, quando veio a prisão de todos nós,
acho que aqui a Ala Vermelha estava mais forte do que o PC do B.
A prisão aconteceu bem mais depois, em 1971. Você estava nessa prisão?
ACB - Estava. Eu fui para São Paulo, veio um avião nos buscar aqui.
Como foi essa prisão?
ACB - Antes dessa prisão, eu tinha tido aquela de 1970. Depois de 70, tive outra
prisão, em que eu dormi aqui na Polícia Federal, depois me levaram para o 3º BC
(Batalhão de Caçadores) e eu fiquei o dia todo lá. Fui interrogado dezenas de vezes,
e a única coisa que eles queriam saber, era onde estava o Carlito Osório. E eu
realmente não sabia onde estava Carlito Osório, que não era da Ala Vermelha. Ele
era do PC do B. E uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Me levavam, voltavam e
chamavam. Queriam saber, que eu sabia onde estava o Carlito Osório. À noite, eu
falei com o capitão: "Capitão, eu quero saber o seguinte: por que eu tenho que saber
onde está o Carlito?". "Você tem que saber onde está Carlito Osório, porque um
companheiro seu, que nós prendemos em Cachoeiro, falou que vocês almoçaram
num restaurante e o Carlito te entregou uns jornais de esquerda, do Partido
Comunista". A data era de cinco antes. Eu falei; "Capitão, você está querendo que
eu tenha uma memória fantástica. Primeiro o seguinte: eu era um líder estudantil,
pertencia a um Diretório Acadêmico, receber jornal do PCB, de esquerda, eu recebia
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toda hora. Outra, não deve ter sido num restaurante. Eu era estudante, não
frequentava restaurante. Devia ser em alguma pensão. E o senhor está me dizendo
aqui a data, estou vendo que é de cinco anos atrás. Eu vou saber onde é que está o
Carlito, onde eu almocei com ele há cinco anos?". É muita pretensão. Por que
estava recebendo jornal? Jornal eu recebia toda hora, o pessoal entregava no
diretório, no meio da rua. Falei aquilo ali, o camarada ficou me olhando, olhando. Me
mandou embora. Quando dormi um dia na Polícia Federal, fiquei lá até a meia-noite,
me soltaram à meia noite, para saber onde estava o Carlito Osório. Carlito tinha
entrado na clandestinidade também, quer dizer eu não ia saber nunca onde ele
estava não tinha a mínima noção. E a terceira prisão foi essa que me levaram para
São Paulo, o pessoal da Ala Vermelha. Isso foi um companheiro nosso lá do Rio
Grande do Sul, que conhecia a gente, tinha contato, fazia reunião com a gente aqui.
Eles torturaram esse rapaz, era um cara histórico do PCB. Eles o carregaram pelo
Brasil inteiro, ele entregando pessoas. Com a gente ele foi muito suave, porque deu
o nome de todo mundo, mas disse que era um movimento que ele estava querendo
consolidar, um movimento aqui de esquerda contra a ditadura. Não falou que a gente
era de partido nenhum, eram os contato que ele tinha e que estava tentando formar
aqui um movimento contra a ditadura. Era eu, o Jair Storch, que também foi preso
com a gente, ele até já faleceu. Eu, Laurinha, Amorim, Jair, Fernando. Pegaram mais
dois operários no trabalho. Foram presas umas 10 pessoas e um avião veio nos
buscar aqui. Fomos torturados aqui.
Vocês foram torturados no 3º BC?
ACB - No 3º BC, fomos torturados aqui. Lá na Oban, pelo menos eu não fui
torturado. Tortura, só psicológica. Mas acho que a Laurinha e outros companheiros
acho que foram torturados. Como nesse episódio, nos colocaram todos nós, dentro
de uma mesma sala, eu consegui conversar com todo mundo e saber o que cada
um tinha colocado no depoimento e combinar uma versão igual para todo mundo.
Então todo mundo passou a dar uma mesma versão dos encontros aqui com esse
companheiro que nos deu o nome. Como todo mundo estava contando a mesma
história, a história virou verdadeira. Quando chegamos lá na Oban, eles acharam um
pessoal acusado de movimento armado mais quente que a gente aqui. Nesse
episódio, eu respondi processo. Nesse que eu tenho a ficha aqui do Dops.
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Nessa época, em que você era do PC d B, depois da Ala Vermelha, existia nas organizações, discussão sobre a realidade do país como um todo. Mas cabia uma análise sobre a realidade do Espírito Santo ou essa discussão não existia?
ACB - Essa discussão praticamente não existia. A discussão nossa era sobre a
realidade nacional. A realidade regional era mais no sentido da organização, porque
se tinha consciência que não se mudava nada a partir de uma mudança política
regional, a não ser do fortalecimento da organização interna, das ações internas.
Eu digo isso porque o Espírito Santo estava passando por uma mudança muito grande, muita gente vindo do campo para a cidade, devido a erradicação dos cafezais, a organização não chegou a discutir ou nem percebia isso?
ACB - Nem percebia (risos).
E o Movimento Estudantil, por outro lado, que é uma outra dimensão, a discussão se pautava muito mais pela realidade nacional ou, por exemplo, a discussão especifica aqui do Espírito era só da ação?
ACB - O movimento estudantil começou a ser totalmente desarticulado a partir do
Projeto Rondon.
Mas isso já foi nos anos 70, vamos voltar para os anos 60. ACB - O movimento foi em ascensão até a queda do congresso de Ibiúna, a partir
daí ele começou a ser totalmente desarticulado.
Mas nesse período, de 1965 até 1968, quais foram os momentos e lutas desenvolvido que você considera que foram importantes... acho melhor a gente parar agora, porque vejo que você já está cansado. A gente continua depois.
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ANEXO II ENTREVISTA 2 - ANTÔNIO CALDAS BRITO - 02/10/2012
Na entrevista passada você falou que tinha um primo que foi governador no Piauí, qual era a posição de sua família no Estado? ANTÔNIO CALDAS BRITO - Era uma família de classe média. Meu pai era
advogado. Meu avô paterno chegou a ser um grande proprietário de terras, mas
morreu pobre, porque inventou de abrir um frigorífero e quando as pessoas resolvem
entrar num negócio que não tem domínio, a tendência é realmente ter insucesso.
Mas é uma família normal. O meu primo, Chagas Caldas Rodrigues, foi governador,
senador do MDB, teve o mandato cassado. Depois que teve o mandato cassado,
acho que não voltou mais à política.
Sua mãe trabalhava também? ACB - Não, minha mãe era do lar, naquela época era difícil as mulheres estudarem,
ela chegou a fazer até o ginásio. O pai dela tinha uma farmácia. Não me lembro se
era formado, mas tinha uma farmácia.
Vocês eram em quantos irmãos? ACB - Nós éramos em nove.
Quantos vieram para o Sul? ACB - Desses nove, seis homens e três mulheres, veio o mais velho, José Caldas
Brito, que formou em Minas. Depois veio para aqui para o Estado e foi Procurador
Geral do Estado. O outro irmão meu, que é administrador de empresas, foi para
Brasília, onde hoje ainda é funcionário do Ministério dos Transportes. Hoje ele está
cedido ao Ministério dos Esportes. E eu que vim para Vitória. Os outros meus irmãos
ficaram no Piauí mesmo.
Na entrevista passada, você falou que foi para Linhares e depois veio para cá. Em Linhares, você ficou com seu irmão ou ele morava em Vitória?
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ACB - Meu irmão morava em Linhares. Quando veio de Minas, ele veio para
Linhares, como advogado. Morou lá por muito tempo, chegou a ser vereador, a
assumir a prefeitura e, depois, veio para Vitória, como procurador do Estado.
Quando veio para Vitória, você ficou aonde? ACB - Quando conheci o Espírito Santo, vim para Linhares. Voltei para o Piauí, para
terminar o meu curso secundário. Quando voltei, meu irmão já morava em Vitória.
Eu vim para cá, fiquei algum tempo com ele e, depois, fui conhecendo o pessoal e
fui morar numa república no Parque Moscoso, no famoso 804.
Qual foi a característica do Movimento Estudantil entre 1964 e 1968 e as principais bandeiras levantadas? ACB - O Movimento Estudantil naquele período, inicialmente, era internamente um
movimento reivindicatório. Quer dizer, melhoria de ambiente escolar, que era muito
precário, os prédios. Quer dizer, você não tinha ainda a universidade. A melhoria de
ensino mesmo, os professores naquela época, não eram como hoje, com pós-
graduação. É um movimento com muita consciência política. Além dessa base de
reivindicações, um movimento com muita consciência política, principalmente pelo
fato da gente estar vivendo uma ditadura. Então, era um movimento de luta pela
volta da democracia e do Estado de Direito. Era um foco muito preciso que talvez
hoje o Movimento Estudantil não tenha. Era a luta pela derrubada da ditadura e a
volta do Estado de Direito. Era a luta que realmente motivava o Movimento
Estudantil.
Qual era a inserção desse movimento em termos de massa? Houve alguma mudança ou ele sempre foi um movimento representativo em termos de massa estudantil? ACB - Acho que o Movimento Estudantil conseguiu mobilizar. Não sei se a
sociedade estava mais sensibilizada nesse sentido, mas o Movimento Estudantil
conseguiu fazer grandes mobilizações. Só acho que o que não correspondeu foi o
movimento trabalhista. Os trabalhadores realmente, na minha visão, não tiveram a
mesma capacidade de mobilização que teve o Movimento Estudantil. O Movimento
Estudantil teve um papel bem mais significativo do que até o movimento dos
trabalhadores. Como o PCB, o Partidão, era um partido muito voltado para algum
120
movimento militar, eu acho que o Partidão era um partido que, talvez a partir da
Grande Marcha, teve uma visão mais de golpe, mais do que uma visão de
mobilização de massa, de mobilização da sociedade, no sentido de transformação.
Eu acho que isso contaminou alguns movimentos.
Quando você fala em Grande Marcha, de que marcha você está falando? ACB - A do Prestes. Eu acho que a partir dali, você pode ver que tem alguns toques
no sentido de fazer um movimento dentro das forças armadas. De fazer um trabalho
por dentro das forças armadas, não de mobilização. Você tem alguns episódios que
tem essa semente, o movimento dos cabos, o discurso do governo João Goulart. E
vem por aí. Esse que, como é que é nome dele, que foi lutar no Nordeste, capitão...
Quem foi preso lá? O Gregório Bezerra? ACB - Aquele que roubou e saiu com as armas do exército.
O Lamarca... ACB - O Lamarca. Você vê que são movimentos de dentro das forças armadas. Pelo
menos essa é a minha visão.
Em termos das bandeiras próprias do ME, quais as que você considera que foram as mais importantes nesse período? ACB - Acho que uma das bandeiras muito importantes, foi a luta contra o MEC-
USAID. Eu acho muito significativa. Tanto que proposta do MEC-USAID foi o que
atrasou o país 20 anos em termos de educação. Aquela visão de que, primeiro tem
que passar todo mundo, não levar em consideração o mérito, o negócio era a
quantidade de alunos aprovados. Essas escolas que foram construídas com um
modelo que não tinham nada com o Brasil. Essas escolas financiadas pelo MEC-
USAID, os polivalentes, eram construções feitas para neve. Uma arquitetura toda
para neve. Outra era a luta realmente contra a ditadura, para mim a principal
bandeira daquela época.
Em relação aos acordos MEC-USAID, como o movimento se organizava e discutia essa questão?
121
ACB - Essas discussões se faziam dentro das escolas, nas passeatas, em termos
de conscientização dos estudantes em relação aos acordos. Era um negócio muito
difícil, porque a grande imprensa era sempre à favor dessa relação com os Estados
Unidos. Era outra bandeira importante, a gente tinha consciência da influência norte-
americana na sustentação da ditadura militar.
A nossa universidade passou por um processo de reforma acadêmica a partir de 1966, que estava dentro do espírito MEC-USAID. Inclusive o técnico do USAID, Rudolph Acton, esteve aqui no Espírito Santo. Esse projeto levou dois anos sendo discutido. Ele foi aprovado em 1967, quando Carlos Magno (Cardoso Monteiro) já era presidente do DCE e estava no Conselho Universitário. Ele foi para o MEC, voltou e foi novamente discutido no Conselho Universitário, quando o César Ronald estava nele. Como o Movimento Estudantil percebeu e, se percebeu esse movimento de reforma? Pelo que tenho olhado nas atas do Conselho Universitário, me parece que houve um processo de questionários na comunidade universitária. Me parece que foi um processo amplo de discussão. O movimento percebeu isso, discutiu isso? ACB - Eu acho que a massa estudantil não percebeu. A liderança percebeu, era
uma bandeira muito discutida dentro do Diretório, mas acho que nós não
conseguimos transmitir isso para os estudantes.
Mas a direção do movimento especificamente, você lembra de ter havido essa discussão sobre a reforma da Ufes? ACB - Lembro, lembro dessa discussão.
Em 1967 você estava na diretoria do DCE... ACB - Estava na diretoria. Eu me lembro dessa discussão. Mas é isso que estou
dizendo, havia um apoio tão grande imprensa em cima disso, que com todo o
esforço do Movimento Estudantil, foi uma das bandeiras que a gente não conseguiu
popularizar. Mas acho que foi uma das principais discussões daquela época.
Mas o Carlos Magno, por exemplo, votou favorável à essa reforma.
ACB - (Risos) É a pressão. Era a pressão que tinha.
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A impressão que tenho é que o Movimento Estudantil não teve a dimensão dessa reforma. ACB - Não, por isso estou dizendo, não conseguimos transmitir isso.
Não, mas o próprio movimento não teve a dimensão dessa reforma. ACB - Não, eu acho que teve. Não teve foi força. E o Carlos Magno, ele nunca foi
uma liderança combatente. O Carlos sempre foi uma liderança conciliatória, não era
de frente de combate. Ele ficou com medo. A característica do Carlos era
conciliatória.
Mas ele levou para a diretoria do DCE essa discussão ou ela ficou lá no conselho? ACB - Ficou lá no conselho. Não levou porque sabia que a gente era contra.
E a diretoria seguinte, do César Ronald? Por que no final a coisa voltou e até o César Ronald votou favorável, embora com algumas restrições. ACB - Voto com restrições. Eu imagino isso, é a pressão que eles estavam
recebendo dentro da universidade naquela época. Para você ter uma ideia, quando
eu fui fazer o curso da Cepal, em 1968, a universidade estava impregnada de
pessoas que ameaçavam que denunciavam. Eu acredito que ele deve ter recebido
pressões muito fortes para ter votado isso, porque sabia que nós, diretoria do DCE,
sempre fomos contra. Uma das principais bandeiras do movimento. Acho que eles
receberam uma pressão muito grande para votar favorável e o César, apesar de ser
uma liderança combativa muito forte, não sei se teve consciência da amplitude e de
que podia ser realmente essa reforma do MEC-USAID.
Você tomaram conhecimento que o Rudolph Acton esteve aqui? Ele foi um dos formuladores dessa reforma. Chegaram a fazer alguma mobilização? ACB - Que eu me lembre de não, mas soubemos da presença dele aqui.
Em termos de episódios de movimentos e mobilização, quais você se lembra e destaca nesse período?
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ACB - Eu acho que entre os episódios de 1968, o primeiro foi a missa do Édson
Luiz, uma grande passeata que nós fizemos, e a inauguração do restaurante, a qual
demos o nome de Édson Luiz. E a marcha dos 100 mil, por coincidência eu estava
no Rio.
Foram pessoas daqui ou você foi individualmente? ACB - Não, eu estava no Rio, fazendo um curso na época. Foi uma das grandes
marchas de 1968, uma das maiores manifestações contra a ditadura que eu
registrei. Um negócio fantástico. Consegui ver a Rio Branco repleta de gente. A
população ali em frente ao Amarelinho. Acho que ali funcionava a Assembleia
Legislativa. A polícia em volta e a população abria o espaço, não permitia a ação da
polícia, até a saída das principais lideranças. Depois dos discursos de cada um, ela
defendeu até a saída de todas as lideranças que participaram da manifestação. Foi
a coisa mais emocionante que eu participei no Movimento Estudantil.
Você falou da manifestação do Édson Luiz, eu queria que você falasse um pouco mais sobre essa manifestação. Ela aconteceu no contexto de uma greve que aconteceu aqui na Ufes. Eu queria que você falasse dessa greve e da manifestação. ACB - Nós do Movimento Estudantil, apoiávamos muito os movimentos grevistas.
Essa era uma característica, que talvez o movimento hoje não tenha. Nós
estávamos muito presentes nos movimentos de greve. Tivemos a greve dos
motoristas, em que o Movimento Estudantil esteve presente. Em quase todas as
greves, a gente estava lá em apoio ao movimento grevista dos operários. Esse era
um negócio muito importante na nossa participação daquela época.
Essa greve de motoristas foi em 1968? ACB - Eu acho que foi em 1968. Foi um negócio meio drástico, porque mais da
metade dos motoristas foram mandados embora depois da greve.
Mas eu quero pontuar o seguinte: houve uma greve antes da manifestação em função da morte do Édson Luiz, por causa do Restaurante Universitário. ACB - Ali, as reivindicações do restaurante eram mais com relação à alimentação...
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O RU tinha sido recém-inaugurado e houve uma greve dos estudantes por causa disso. Você se lembra dessa greve? ACB - Não.
Mas lembra da manifestação... ACB - Lembro da manifestação, mas não da greve do RU. O RU inclusive tinha
representantes junto à reitoria. Tinha um ou dois estudantes, que eram eleitos pela
gente, para discutir os problemas do RU junto à reitoria. O RU era um local muito
importante em termos de discussão política. Mas eu não me lembro que houve uma
greve por reivindicação do RU. A reivindicação do RU não era muito política não.
Foi por causa do preço do RU. O RU estava sendo inaugurado. ACB - Eu acho que isso aí eu me lembro, houve discussão sobre preço. Por isso
que estou dizendo, as reivindicações ali eram muito pontuais. Era preço da
alimentação. Pode ter até ter tido alguma manifestação de greve em relação ao
preço, que estava muito alto, deram 50% para estudantes e para quem não era
estudante podia entrar lá. Pode ter tido alguma nesse sentido.
E essa manifestação do Édson Luiz, como foi? ACB - Com o assassinato do Édson Luiz242, um negócio brutal lá no Calabouço,
houve várias manifestações nas escolas e findou com essa missa. O Calabouço era
o maior centro de concentração estudantil e política do Rio de Janeiro. Aquilo ali foi
realmente um assassinato bárbaro. Era um garoto, secundarista ainda. Eu acho
importante essa missa ali na Catedral, acompanhada por todo aparato policial. Nós
conseguimos realizar a missa e, dali, da Catedral, nós descemos em uma grande
passeata dali da Catedral, passando pela Praça Oito até o restaurante. Foi uma das
grandes manifestações que eu gostaria de registrar. Muito importante para o
Movimento Estudantil.
Você se manifestou nessa passeata?
242 O estudante secundarista Édson Luiz do Souto e Lima foi assassinado em 28 de março de 1968, aos 18 anos, quando a polícia invadiu o Restaurante do Calabouço, no Rio de Janeiro, para impedir uma manifestação estudantil. Souto e Lima era um estudante pobre, cuja família morava no Pará e não tinha nenhuma militância política.
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ACB - Nessa marcha, quando chegamos na Praça Oito, o Ronald, que estava à
frente, foi avisado que a polícia estava tentando prendê-lo e me pediu: "Vou sair e
você mantém o comando da marcha". Eu assumi o comando da manifestação,
populares se juntavam à gente, até a chegada ao restaurante, quando eu subi num
poste - havia um poste ali na frente -, abrimos a faixa e inauguramos o restaurante
com o nome de Édson Luiz.
Pelo movimento? ACB - Pelo movimento. Nós colocamos a faixa, que ficou lá bastante tempo.
Depois dessa missa, houve outras manifestações aqui em Vitória em função desse episódio? ACB - Olha, o assassinato de Édson Luiz foi a motivação de muitas manifestações.
Eu acho que a principal foi essa.
Houve algum choque com a polícia em alguma manifestação? ACB - Era muito comum naquela época, a liderança ser chamada na Polícia Federal.
Qualquer manifestação eles chamavam lá. Engraçado que, inicialmente, não havia
muita prisão. Chamavam para registrar, saber por que estava acontecendo, quem
estava nelas. Só para pressão. Chamavam para ir lá, registravam a presença da
gente. Geralmente quem estava em diretoria de diretório, do DCE.
Mas chegou haver alguma manifestação em que a polícia literalmente baixou o cacete? ACB - Geralmente a polícia chegava, o pessoal corria. Mas uma das manifestações
que a polícia bateu mesmo foi aquela na porta do Palácio.
Você estava nessa manifestação? ACB - Estava. Naquela manifestação foram presos o Paulo Torre243, o Ewerton
Guimarães244 e o Júlio (César Ottoni). Acho que foram condenados o Júlio e o
Ewerton.
243 Paulo Torre, já falecido, se tornou jornalista e foi diretor de redação do jornal A Gazeta. 244 Jornalista e advogado, também já falecido, Ewerton Guimarães se destacou pelas denúncias contra o Esquadrão da Morte, tendo escrito um livro sobre o tema. Posteriormente, esteve envolvido na luta pelos direitos
126
Como foi essa manifestação? ACB - Nós iniciamos a movimentação nas escolas e nas faculdades. Naquela época,
a universidade contava com quatro ônibus que passavam pela cidade.
Qual o motivo da manifestação? ACB - A manifestação foi na luta de combate à ditadura mesmo. Nós chegamos na
Praça Oito, os ônibus pararam na Costa Pereira e na Praça Oito. Por coincidência,
eu vinha no primeiro ônibus, desci e pedi aos ônibus para não abrirem ali na Praça
Oito, só em frente ao Palácio, naquele ponto em frente ao Palácio. Aí subiram todos,
a Faculdade de Direito funcionava ali, começaram os discursos dos estudantes. Por
coincidência da vida, o próximo orador seria eu. Quando eu ia falar, o Ewerton pediu
para falar. Ele subiu naquela mureta que tinha ali e, quando o Ewerton subiu a
mureta e começou a falar - Ewerton sempre foi um bom orador, muito culto -, a
polícia, com o (José) Dias (Lopes) 245 à frente - eu acho que era o chefe de Polícia -,
desceu do palácio correndo, batendo em todo mundo que estava ali. O objetivo era
prender quem estava na liderança. Essa foi uma manifestação de muita pancadaria
mesmo.
Tinham quantos estudantes mais ou menos? ACB - Tinha muita gente. Aquela frente do palácio estava repleta de estudantes. Foi
uma manifestação de enfrentamento. Eles desceram ali com grande violência
mesmo. Bateram em todo mundo, prenderam ali, que me lembro exatamente, o
Ewerton, que ainda estava na mureta, e o Júlio. O Paulo Torre eu acho que
prenderam depois, mas ali, na frente da manifestação, foram o Julinho e Ewerton. A
manifestação se espalhou, indo para a igreja. A polícia continuou perseguindo e a
gente jogando pedra. A manifestação foi dissolvida ali, até à porta da igreja, foi
quando eles conseguiram dispersar a manifestação. A manifestação desceu, eu sei
que houve prisões já ali na Costa Pereira, os estudantes desceram correndo. Não
sei se o Julinho foi preso lá embaixo, se algum estudante foi preso onde tem hoje
esse prédio do governo ali... que fica depois do Carlos Gomes (edifício Fábio
humanos no Estado e participou da Comissão de Justiça e Paz. Como advogado, acompanhou o caso do assassinato do padre francês Gabriel Maire, morto em 1989, denunciando que se tratava de um crime político, ao contrário do que diziam as autoridades da época, que trataram a morte como um “latrocínio”. 245 José Dias Lopes era irmão do governador Christiano Dias Lopes Filho (1967-1970) e ocupou os cargos de Chefe de Polícia Civil e, posteriormente, secretário de Estado da Segurança Pública.
127
Ruschi). Ali houve um embate com a polícia também, em frente aquele posto de
gasolina. Ali algumas pessoas também foram presas. Que eu me lembre, foi uma
das manifestações, só de estudantes, mais violentas.
Eu queria ver se você lembra de alguns episódios, como o movimento se portou nesses momentos. Em 1965, através da Lei Suplicy de Lacerda, a ditadura organizou uma eleição do Diretório Estadual dos Estudantes (DEE). Haviam duas chapas, uma encabeçada por Jorge Augusto Pires Encarnação e outra por Tarcísio Soneghet. Os dois ligados à posições de direita. Você se lembra desse episódio? Como o ME se portou em relação à essa eleição? ACB - Eu me lembro dessa eleição do Encarnação.
Não é a do DCE, porque depois ele virou o presidente do DCE. ACB - Exatamente. Eu me lembro bem é o seguinte, que nós fomos contra o
Encarnação, a gente entendia ele como mais à direita.
Sim, mas ali não foi o DCE, essa foi uma eleição em que o ME de esquerda defendeu o boicote, porque o DEE era uma entidade do governo. A Lei Suplicy de Lacerda extinguia a UEE e a UNE. Ou você não se lembra dessa eleição? ACB - Eu me lembro sim. Você sabe que houve várias manifestações, inclusive
eleição política mesmo. Houve algumas manifestações do Movimento Estudantil em
favor do voto em branco. Eu me lembro dessa eleição, em que houve uma
manifestação de boicote, até porque não representava o movimento estudantil. Não
reconhecíamos aquela eleição.
E a adesão dos estudantes à essa campanha? ACB - Eu acho que foi muito grande, porque pelo que me recordo, acho que essa
organização não teve sucesso. Quer dizer, boicote mesmo, total. Tanto que essa
organização não prosperou. Tanto que o Encarnação ficou marcado por esse
episódio. Foi uma manifestação totalmente contrária à ele. Ele ficou carimbado como
um cara de direita.
Você já estava citando a eleição do DCE, que era um outro episódio que eu gostaria de falar. Isso aconteceu no ano seguinte. Foi a primeira vez que a
128
esquerda tentou ganhar o DCE. Até então, ela não tinha disputado o DCE, e perdeu para a chapa do Pires Encarnação. A chapa da esquerda foi liderada pelo (José) Monteiro246. Você se lembra dessa eleição? ACB - O Monteiro era da Medicina.
Por que o Movimento Estudantil de esquerda resolveu disputar o DCE, se até então não havia disputado? ACB - O que nós reconhecíamos como entidade representativa do Movimento
Estudantil era a UEE. Ainda havia uma identificação muito grande da gente com a
UEE, que foi colocada na ilegalidade. Mas, já que não era possível manter a UEE, a
gente resolveu disputar o DCE. Monteiro era da Medicina. Como coloquei
anteriormente, a Medicina era um dos principais centros do Movimento Estudantil de
esquerda. Eram a Medicina e a Fafi. E a gente resolveu participar. Não continuar
nessa tese do boicote, do voto em branco. Encarnação sempre foi o candidato
mesmo da direita.
Por que você acha que a esquerda perdeu essa eleição para o Encarnação?
ACB - Eu acho que não estava mobilizada o suficiente para a disputa do DCE. Não
tinha se mobilizado suficiente. Não sei se a candidatura do José Monteiro foi lançada
muito em cima da hora. Eu sei que a gente perdeu essa eleição.
No ano seguinte a esquerda ganhou a eleição com Carlos Magno. Como é que foi esse processo? Você se lembra dele?
ACB - Lembro, eu participei da diretoria do Carlos.
A eleição foi indireta... ACB - Era algo que a gente era contra, mas foi oferecida. O grande colégio eleitoral
que a gente tinha era realmente a Fafi, que eram vários cursos, e acho que o Carlos
Magno tinha bastante identificação com o pessoal de lá. Provavelmente, por essa
grande característica que falei do Carlos, de conciliador, moderado, não houve uma
246 O estudante de Medicina José Monteiro de Souza Netto foi eleito presidente da UEE em 1964, depois do fim da intervenção na entidade, mas renunciou no ano seguinte, antes de terminar o seu mandato. Em 1966, encabeçou a chapa de Esquerda na eleição do DCE, junto com outro ex-presidente da UEE, Dílton Lyrio Neto, que mais tarde seria deputado estadual. No entanto, a chapa foi fragorosamente derrotada pela chapa de Direita, liderada pelo estudante de Odontologia, Jorge Augusto Pires Encarnação.
129
oposição muito grande da direita. O Carlos Magno, pelas suas características,
apesar de ser uma pessoa ligada ao movimento de esquerda, era um moderado.
Quer dizer, valia a pena deixar assumir o DCE. Eu acho que a própria reitoria deve
ter ajudado, pelo fato de ser um cara de características conciliatórias.
Então não houve uma grande oposição contra a eleição daquela diretoria?
ACB - Não houve.
Na gestão do Carlos Magno, houve uma apreensão do jornal do DCE. Você lembra desse episódio na gráfica?
ACB - Lembro. Eu só me lembro do episódio da apreensão. Era uma coisa muito
comum isso. Na eleição seguinte, do Ronald, houve uma composição muito
interessante, que a gente puxou o César Leite, que era da Fafi. O César (Leite) não
era um cara organizado. Ele estava ali com a gente, era amigo nosso, mas não era
de nenhum partido político, nenhuma corrente. Mas foi uma forma de puxar a Fafi,
porque era estudante de Geografia e botamos ele como vice-presidente. Foi uma
decisão estratégica. Naquela época, a gente discutia quem iríamos trazer para botar
na suplência de César Ronald, porque ele não era muito aceito pela AP, que tinha
uma representação forte no movimento estudantil. E uma forma de trazer o pessoal
da AP, foi botar o Cezinha, o César Leite, que era um cara que tinha muito bom
relacionamento, jogava muito bem ping-pong (risos) acho que passava mais tempo
na mesa de ping-pong, mas foi estratégico. Me lembro da gente discutindo isso com
o Zezinho Cipriano. O César (Leite) morava ali no Parque Moscoso também, estava
sempre com a gente lá no apartamento. Era uma pessoa que a gente confiava.
Cezinha foi preso depois inclusive. Quando César Ronald saiu, ele assumiu. Acho
que assumiu num dia e foi preso no outro.
O César Ronald, como presidente, era ligado à alguma corrente? Ele foi colocado na presidência por ter se destacado no movimento ou houve algum outro tipo de composição?
ACB - O César Ronald não era ligado a nenhuma corrente, mas foi colocado porque
se destacou no Movimento Estudantil. O César era um grande orador e realmente se
destacou em todos esses episódios. Em todas as reuniões, o César se destacava,
era uma liderança significativa. Não estava organizado, que eu saiba, em nenhuma
130
corrente, mas tinha posições muito firmes e arrebatava mesmo o movimento. Apesar
de não estar organizado, era uma liderança muito forte e, por isso, como ele se
identificava com a nossa luta, a gente achou por bem apoiá-lo.
Quando você fala em "a gente apoiá-lo", está se referindo à sua corrente ou às lideranças de esquerda como um todo?
ACB - Eu acho que a liderança de esquerda como um todo.
- Com exceção da AP, pelo que você fala?
ACB - Eu acho que a AP também apoiou o César Ronald. Até porque a AP tinha
uma base muito forte feminina e o César era um tipo galã (risos). Então, acho que
inclusive a AP, naquela época, apoiou a eleição do César. A eleição do César foi
sem nenhuma oposição. A AP apoiou com algumas restrições, mas votaram no
César.
Essa questão que você coloca, puxa uma outra, quais eram as correntes fundamentais que atuavam no Movimento Estudantil capixaba naquela época?
ACB - Claro, o PC do B, o PCB, a AP. Já começava a ser manifestar no Movimento
Estudantil o PCBR. Até mais ou menos 1968, esses grupos começaram a se dividir
e apareceram vários outros. Principalmente grupos voltados para a luta armada. A
partir de 1968 começou a grande divisão.
Como foi a preparação para o Congresso de Ibiúna?
ACB - Eu gostaria de falar do congresso do ano anterior.
Então vamos começar por ele. Você esteve no congresso anterior?
ACB - Eu estive no congresso do ano anterior, que foi em Vinhedo (SP). Esse foi um
congresso praticamente organizado pelo PC do B. As delegações eram direcionadas
para São Paulo, até lá ninguém sabia onde ia ser o congresso. A partir dali, você era
encaminhado para uma cidade próxima de São Paulo. E só lá você tinha
conhecimento de onde o congresso seria realizado. E todo mundo foi encaminhado
dali para Campinas. Primeiro São Paulo, depois para uma cidade do ABC, dali todo
mundo ia para Campinas e, só em Campinas, nós soubemos onde seria realizado o
congresso. Terminado o congresso, só no dia seguinte, a polícia foi descobrir,
131
quando praticamente todo mundo já tinha ido embora. Foi quando prenderam os
freis, invadiram o convento, houve tortura. Mas os estudantes já tinham se
deslocado.
Eu queria que você me falasse um pouco sobre esse congresso, que elegeu Luiz de Travassos como presidente da UNE. Como foi esse congresso e sua participação nele? ACB - Para mim, foi um congresso de uma importância muito grande, porque o
Travassos era da AP. Eu me lembro muito nesse congresso, da participação dos
baianos. A Bahia tinha uma liderança estudantil fortíssima. Foi inclusive nesse
congresso, que eu tive o primeiro contato com o pessoal da Ala Vermelha, que
começava a se fortalecer. Eu entendo que foi um congresso que teve uma
importância muito grande, até porque ali você teve um fortalecimento do Movimento
Estudantil. Acho que foi a partir desse congresso, que a reação resolveu
definitivamente liquidar com o movimento. Tenho certeza que a partir daquele
congresso, o Movimento Estudantil se viu fortalecido, com o Travassos, que era uma
liderança muito importante. Um cara que tinha uma bruta representativa. Não sei se
o José Dirceu participou desse congresso. Acho que o José Dirceu participou desse
congresso, o Vladimir Palmeira também. Eram realmente, as grandes lideranças
naquele momento. Eu achei que o Vladimir Palmeira iria continuar no movimento
político, porque era para mim uma das grandes lideranças. Foi um dos
organizadores da marcha dos 100 mil. Naquela época, Vladimir Palmeira,
Travassos, estavam no auge da liderança. O congresso de 1968, que foi o fatídico,
foi organizado pela AP. Até porque o Travassos estava na presidência da UNE, e ali,
surpreendeu a forma como foram escolhidos os delegados, de forma aberta. Os
delegados foram escolhidos democraticamente, em votação aberta realizada em
cada faculdade. Os nomes ficaram expostos nos quadros. Eu, inclusive, me
manifestei contra, numa reunião na Fafi. Achei que aquilo era um absurdo, você
estar expondo as pessoas. A gente já tinha o exemplo do congresso do ano anterior,
quando a polícia invadiu. Aquilo ali era muito bonito, quer dizer, uma escolha
democrática, desde que nós não estivéssemos numa ditadura sangrenta e
repressiva. Eu acho que foi dado esse modelo de escolha dos representantes para o
congresso, que aconteceu o que aconteceu. Foi todo mundo preso e eu acho que ali
foi o grande golpe no Movimento Estudantil do Brasil. Parece que não, mas a partir
132
daquele congresso, o movimento se enfraqueceu e só, muitos anos depois, o
Movimento Estudantil começou a se revigorar.
Por que você não foi à esse congresso? ACB - Eu não fui por desistência mesmo. Eu não quis ir nesse congresso. Achei que
não deveria me expor àquela situação. Podia perfeitamente reivindicar o meu nome
para ir para o congresso, mas eu achei que... eu ia até dizer medo....Acho que não é
medo, foi uma consciência que alguma coisa ia acontecer naquele congresso. Você
escolher delegado para um congresso estudantil da UNE, que estava na
clandestinidade, não era um congresso de uma instituição legal, a UNE estava
extinta pela ditadura, era muito provável que ia haver uma repressão muito grande.
Eu queria passar a falar um pouco da dinâmica de militante. Nós vivíamos numa situação de clandestinidade, as correntes tinham uma discussão muito vinculada à questão nacional. Como é que, internamente, um militante de esquerda capixaba, qual era a discussão da dinâmica do movimento, como eram encaminhadas as coisas? Era feita a análise da situação regional? Enfim, como era a dinâmica de militância naquela época? ACB - O pessoal organizado tinha reuniões do partido. E ali, você discutia todas as
estratégias de atuação. Enquanto Movimento Estudantil, você tinha que levar em
consideração as especificidades do movimento. Quer dizer, o Movimento Estudantil
não podia ter a pretensão de já derrubar o governo, mas você discutia toda a
estratégia de militância, de participação nas greves, no movimento operário, no que
você tinha escrever, porque, naquele tempo, você tinha que fazer manifesto. Com
todas as restrições que se tinha naquela época, o manifesto era feito no
mimeógrafo. A grande coisa era fazer finanças para poder comprar... esse é um
negócio interessante colocar, um dos contribuintes do movimento de esquerda
naquela época, era o "seu" Paulo, pai de Paulo Hartung. Ele tinha uma loja de
móveis e sempre contribuía com o movimento. Uma das atuações nossas era fazer
finanças, para conseguir pelo menos algum recurso para rodar nossos manifestos. E
aí sim, você levava essa discussão para dentro dos diretórios, das organizações
estudantis. Agora, com muito medo. Uma das coisas que eu coloco com muita força,
era que a gente tinha uma vida de medo. A gente que sabia que onde estivesse: na
rua você não podia conversar com mais de duas pessoas, a partir de três pessoas já
133
era considerada uma manifestação. A gente estava na escola com medo de
qualquer conversa. Se você estivesse na rua, tinha o medo de estar sendo
observado, alguém estar te acompanhando. Era um mundo de terror. Pode ser o
pior governo democrático do mundo, ele é melhor do que qualquer ditadura,
exatamente por esse sentimento de falta de liberdade. Acho que as ditaduras devem
ser combatidas sempre, pode ser de direita ou de esquerda, mas o poder absoluto
cria a infelicidade da sociedade como um todo. Além de castrar uma geração toda.
O que aconteceu com essa ditadura nossa no Brasil, que inicialmente parecia algo
mais brando, começou a endurecer mesmo acho que a partir do Médici. Mas, de
qualquer maneira, quem não viveu, acha que você está inventando, mas era um
negócio realmente de terror. Se você está na escola, não sabe o que vai conversar
com seu colega, com que o seu colega está ligado dentro da faculdade, você sabia
que tinha diretor que está ligado ao SNI, está acompanhando sua vida. É algo muito
ruim para a sociedade.
Como era feita a relação entre a conjuntura nacional e a conjuntura local? Como era estabelecida a dinâmica para a ação local?
ACB - Acho que grande bandeira, no meu entender, em termos políticos, era a luta
mesmo pela democracia, a volta das eleições diretas.
Mas em termos práticos, como vocês faziam a relação entre a luta geral e a luta específica?
ACB - Em termos políticos, todos os representantes do Estado eram representantes
da ditadura. O governador era nomeado, o prefeito também. Não havia diferença do
ambiente nacional para o ambiente estadual. Não dá para você diferenciar um
governador nomeado pela ditadura de um presidente da República. Então, todas as
manifestações possíveis que a gente fazia, de trabalhadores, de estudantes, você
incluía as reivindicações próprias, da classe, que não podia deixar de ser,
principalmente porque a gente vivia naquela época, uma situação muito precária, em
termos de universidade. Tudo também dentro do contexto nacional
Mas a percepção da realidade estadual, como ficava nisso aí?
ACB - Se você for fazer uma pesquisa sobre percepção que a gente tinha da
situação estadual, era a mesma da nacional, porque não você fazia diferença sobre
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nossos representantes. Qual a diferença do (Cristiano) Dias Lopes, do Setembrino?
Eram todos representantes da ditadura, da direita. Para nós eram representantes da
direita, até porque não poderia deixar de ser.
Em 1967, você entrou para a Ala Vermelha. O que mudou na sua militância na passagem do PC do B para a Ala Vermelha?
ACB - Eu acho que mudou a atuação. Quando a gente estava no PC do B, era em
termos de movimento de massas, participar nas greves dos operários, no Movimento
Estudantil. Já na Ala Vermelha a gente tinha um movimento mais de apoio aqui no
Estado ao movimento nacional. Mais voltadas, não vou detalhar, à ações mais
efetivas para a luta armada.
Mas você poderia dar um exemplo dessas ações. ACB - (risos) Eu acho que o Brasil ainda não está preparado.
Mas eram ações de apoio à linha da organização em direção à luta armada?
ACB - Na linha da organização em direção à luta armada.
Sua formatura foi na véspera ou no dia da decretação do AI-5, eu gostaria que você falasse um pouco dela. ACB - Nós conseguimos que o paraninfo de nossa classe fosse Dom Hélder
Câmara. Nós fizemos o ato ecumênico no auditório da Escola Técnica. Na
formatura, você sempre distribui aquele roteiro, de quem vai falar quem vai cantar as
músicas que serão tocadas. Aquilo ali, o pessoal começou a distribuir na entrada,
quando chegou a polícia e tomou tudo. Achou que era um manifesto. Não era mais
do que o roteiro do ato ecumênico. Mas não parou aí. A gente tinha marcado uma
missa na Catedral, Dom Helder Câmara foi convidado, naturalmente, quando foi
proibido de celebrar a missa. Já estava todo mundo lá, Dom Hélder então celebrou a
missa do lado de fora da Catedral.
Isso aconteceu na véspera do AI-5?
ACB - No dia 11 (de dezembro de 1968) aconteceu o culto ecumênico, no dia 12,
seria a missa e, no dia 13, era a colação de grau, que seria onde era o Juparanã.
Nosso orador foi o "seo" Rubens Gomes, pai do Rubinho (Gomes), que se formou
135
com a gente. O "seo" Rubens era uma liderança importante no movimento de
esquerda. "Seo" Rubens conseguiu fazer o discurso e, quando desceu do palco, foi
preso, a Polícia já estava ali. Foi algo que deixou a gente constrangido, até para
continuar a formatura. Mas, mesmo assim, foi entregue o diploma. Fomos embora e,
soubemos no outro dia, que Dom Hélder saiu daqui e havia sido preso em Belo
Horizonte. Isso para você ter uma ideia do clima que a gente estava vivendo. No dia
do culto ecumênico, acho que o golpe do AI-5 já estava pronto, ali eles já
começaram a reação. Acho que foi outra coisa que marcou bastante.
No dia seguinte ao AI-5, houve prisões aqui em Vitória?
ACB - Não sei, porque logo depois, nós viajamos. Nossa turma tinha marcado uma
viagem. No dia seguinte, nós viajamos para o Chile. Na época foi feita uma espécie
de curso e ficamos uma semana e meia, mais ao menos, no Chile. O que me
recordo muito bem é que, numa visita à redação de um jornal chileno, assisti,
passando bem fresquinha, a notícia de fechamento do Congresso. Naquela época
não tinha computador, ia saindo a notícia acho que no telex, do fechamento do
Congresso ou da prisão do Márcio Moreira Alves.
Nesse tempo todo em que você estudou na Ufes, você trabalhava, recebia ajuda financeira dos seus pais ou eram as duas coisas? ACB - A partir do 2º ano eu comecei a trabalhar na Caixa Econômica. Só no 1º ano,
eu recebi a ajuda dos meus pais. No final do 1º ano, eu comecei a trabalhar na
Caixa.
O que aconteceu com o Movimento Estudantil no Espírito Santo depois da decretação do AI-5? Por que a gente não ouve falar de nada que tenha acontecido depois dele?
ACB - Depois do congresso (de Ibiúna), o Movimente Estudantil só veio ter força
novamente, quando esse grupo de Paulo Hartung começou na universidade. Acho
que depois do golpe (decretação do AI-5), o movimento ficou esfacelado.
Mas você acha que houve o temor das pessoas e elas se afastaram? O que houve para que esse esfacelamento tenha sido tão automático aqui no Espírito Santo?
136
ACB - Você imagina o seguinte: foram presas as principais lideranças do Brasil todo.
Todo mundo preso naquele congresso. Então, acho que a partir daí, houve um medo
e a repressão começou a endurecer também. Você não tem mais, dentro do
Movimento Estudantil, grandes manifestações, pelo menos que eu me lembre. Eu já
estava fora da universidade.
Mas chegou a existir alguma mobilização?
ACB - Depois de 1968, eu não me lembro. A diretoria do DCE deixou de existir,
César Leite foi preso. Depois veio o Projeto Rondon, levando os estudantes pelo
resto do Brasil de avião. Foi um oba-oba danado. Acho que o Projeto Rondon veio
para desmobilizar o Movimento Estudantil e conseguiu até um certo ponto.
Você se formou em dezembro de 1968, o que significou a saída do Movimento Estudantil. Como é que ficou a sua militância a partir dai?
ACB - Mantive a militância, tanto que na eleição 1970, houve aquela prisão de mais
de 300 pessoas, entre estudantes, profissionais liberais, jornalistas, pessoas de
esquerda e operários. A partir daí, eu tive mais uma prisão, foi aquele episódio em
que fui preso para dizer onde estava Carlito Osório. Fiquei dois dias no Exército.
Mas nunca deixei de participar do movimento não. Nosso grupo da Ala Vermelha,
nós continuamos nos reunimos, participando. Você tinha na Ala Vermelha, o pessoal
do Movimento Estudantil, do Movimento Operário. A partir daí, minha atuação foi
praticamente na Ala Vermelha.
Mas numa realidade mais complicada. ACB - Com muito mais cuidado e atenção. As reuniões eram estrategicamente
cuidadosas por que. a partir de 1970, a repressão ficou muito maior.
Você não quer falar das ações de apoio à luta armada, mas em termos de ação política, o que a organização fez a partir de 1969? Tinha militância ainda no Movimento Estudantil e no Movimento Operário, mas estávamos num quadro de endurecimento do regime. Não eram só reuniões que vocês faziam. Que tipo de atividades vocês faziam?
ACB - A gente tinha ações mais efetivas. Ações de apoio. Aqui a gente tinha
algumas tarefas dentro da estratégia do movimento. Não eram ações tipo a do
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PCBR, que resolveu deslocar alguns membros para várias partes do país, dentro
daquela visão de foco. Inclusive deslocou o Zezinho Cipriano para o interior do
Piauí. O Araguaia foi uma ação do PC do B.
A Ala Vermelha não defendia o foco guerrilheiro, qual a estratégia defendida pela organização?
ACB - A estratégia da luta era de mobilização, de armas as organizações, um
movimento maior.
Vocês, por exemplo, faziam pichações, panfletagem?
ACB - Fazíamos. A pichação era das ações mais comuns e muita perseguida.
E assim você ficou três anos ainda. ACB - Até a prisão de 1971. Aqui no Estado, não sei nos outros, ficamos
desmobilizados depois disso, porque todo mundo ficou respondendo processo.
Ficaram presos o Jair Storch, o Aristides, que era nossa liderança na área operária.
Aristides pegou seis meses de cadeia, Jair acho que pegou seis ou oito meses.
Todos nós respondemos processo. Depois da nossa prisão, foram quase dois anos
tendo que ir à São Paulo todo o mês.
Você foi torturado nessa prisão?
ACB - Fui. Mas fui torturado mais aqui.
Mas pancada mesmo?
ACB - Foi. A tortura foi feita no exército aqui (3º BC). Choques nos dedos da mão,
no ouvido, nas pernas. Porrada nas pernas, nas costas. Já na Oban, como
construímos nosso depoimento aqui, não houve grandes torturas lá. A gente
construiu uma história, porque a gente, como você viu, foi entregue pelo Edgard.
Aqui no exército, nós ficamos presos num lugar só, com colchão no chão.
Foram presas quantas pessoas?
ACB - Acho que umas 14 pessoas, mas o movimento tinha muito mais gente. A Ala
Vermelha tinha mobilizado bastante gente. Mas prenderam as principais lideranças.
Do Movimento Estudantil, o Distefano; do movimento operário, o Aristides. Eu, que
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estava na área de profissional liberal; o Bigode, que estava na área de transporte. O
Amorim, que era mais ligado à área de jornalismo; a mulher dele, a Laurinha.
Coincidiu que, às cinco horas da manhã, eles trouxeram o Edgard, porque era o
único lugar que tinha banheiro. Ele estava numa cela que não tinha banheiro. Aí
trouxeram ele para ir ao banheiro, eu entrei com ele. Todo mundo tinha sido
interrogado à noite toda. Eu procurei o Miro e perguntei: "Miro, o que você contou?
Quero saber, para ver como a gente vai conduzir o nosso depoimento". "Eu disse
que vocês eram um grupo daqui, um grupo de esquerda, que eu estava ainda
construindo no MDB Jovem". "E daí, você falou o que?". "Que eu tive reunião com
vocês". "Mas você teve reunião com a gente aonde?". "Eu disse que eu tive umas
duas reuniões com vocês na Praia da Costa". "Mas você falou qual foi o local". "Não,
falei de reunião com vocês na Praia da Costa". Ótimo. Aí eu fui para cada um dos
colegas que estavam presos ali com a gente e disse: "Olha, conversei com o Miro e
agora a gente vai montar uma história. O que vocês falaram até agora, confirmem. A
grande chave aqui é nosso conhecimento do Miro. Onde nós conhecemos ele, como
conhecemos". Ele já tinha dito que quem trouxe ele para cá foi o Jair Storch. Que ele
teria conhecido o Jair Storch numa reunião no Rio. Por isso o Jair foi condenado.
Falei como o Aristides, o que ele tinha falado como havia conhecido o Miro. Ele tinha
dito que o Miro vinha para cá e ficava na casa dele. "Bom, daqui para frente a gente
vai falar isso: o Jair Storch conheceu ele numa reunião no Rio, nos apresentou e a
gente fez algumas reuniões na Praia da Costa". "Praia da Costa aonde?". Num
barzinho que tem até hoje lá na praia, acho que era o 106, um número assim. Então
a gente dizia: "Ele fez umas duas reuniões aqui na Praia, resolveu fazer uma
organização de combate à ditadura". Fica por aí. Todo mundo contou então a
mesma história e ficou difícil, porque eles não podiam imaginar que a gente havia
combinado aquilo lá. Cada um que era chamado repetia a mesma história. O
principal objetivo deles era saber por que o Miro que era um cara que tinha sido um
militante do Partidão, tinha ido para o PC do B, ido para a China, um cara do alto
escalão, da direção nacional do movimento, como a gente conhecia ele aqui. Nossa
versão foi exatamente essa e bateu todo mundo. Tanto que, quando levaram a
gente daqui para a Oban, quando chegou lá, botaram um em cada salinha, aquelas
salas de tortura mesmo, para fazer interrogatório. Nisso, eles chegaram com alguém
preso no pátio da Oban e desceu todo mundo para bater nessa pessoa. Não me
lembro quem era a pessoa que estava presa ali. Desceu uma porradaria, eles
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mataram ali essa pessoa. Enquanto eles desciam, sai da minha e fui na salinha de
cada um, e pedi que todo mundo continuasse a dar a mesma versão que nós demos
aqui. Me lembro que eu falava assim: "Faz uma história redonda. Repete a mesma
situação". Com isso, quando os torturadores que estiveram aqui chegaram lá,
disseram: "esse pessoal é frio". Porque tinha gente muito mais importante lá, que
eles estavam procurando. Com isso, não houve grandes torturas lá no nosso grupo.
Eu acho que Laurinha, parece que sofreu umas torturas maiores. Segundo ela
conta, teve até um aborto lá por causa das torturas que recebeu. O Aristides
também foi torturado. Mas a Oban, se existe um inferno, estava ali, porque você
praticamente não dormia, passava o dia todo ouvindo gente gritando, sendo
torturado. Uma tortura de choque, porque as pessoas não gritam e nem choram,
berram. Me lembro daqueles urros de pessoas sendo torturadas. O drama do
barulho da porta. Eram várias celas, tinha um pátio e do outro lado tinha um prédio.
Eram várias celas, quando você ouvia aquele barulho da abertura das celas, a gente
sabia que alguém estava saindo para ser torturado. Aí era só esperar os urros e
berros da tortura. Nós ficamos ali um tempo e, depois, da Oban, nós fomos
transferidos para o DOI-CODI. Foi lá que nós fomos identificados, porque até o
período que estávamos na Oban, éramos sequestrados. Ninguém sabe onde você
está eles não informam. Aqui o meu irmão tentou várias vezes e, olha que naquela
época ele era Procurador Geral, foi várias vezes ali no exército e não informavam
onde eu estava. Minha namorada tentou através dos parentes dela no Rio, que eram
ligados ao Exército. Ninguém informa onde você está. Nós só fomos identificados
quando chegamos no DOI-CODI. A partir do DOI-CODI, é que você é identificado
como preso. Eu me lembro que nós ficamos numa fila assim, e minha
recomendação era para ninguém dizer que era filiado à partido político. O Aristide
estava na minha frente e perguntaram se ele era filiado a algum partido. Ele não se
deu por rogado: "Sou da Ala Vermelha do PC do B". "Você tem alguma função lá?".
"Sou tesoureiro da executiva estadual" (risos). Todo mundo dizendo que era de
esquerda, mas que não era ligado a nenhum partido. Não tem porque você produzir
prova contra si mesmo. Ali no DOI-CODI, eu fiquei numa ala de quem tinha curso
superior. Estavam comigo, o que eles chamavam de "grupo dos arquitetos", que se
formou lá em São Paulo. Nessa época, o movimento de esquerda começou a se
dividir muito. Tinha grupo de 10 pessoas, que se formava ali para fazer assalto à
banco. Esse grupo de arquitetos era um grupo muito violento em São Paulo.
140
Venha
Você não se lembra qual era a organização deles?
ACB - Não me lembro. A essa altura já tinha Var-Palmares, Colina, ALN e tinham
pequenos grupos também. Na Oban, me lembro que teve uma prisão de um rapaz
da Colina, que foi muito torturado, estava com bolhas no pés, não podia nem andar.
Tinha um menino da Var-Palmares que havia sido preso em Minas. Teve um cara
que acho que entregou aquele pessoal do PC do B que eles mataram. Não teve um
episódio que eles mataram um pessoal do PC do B? Foi quando eles entregaram o
Araguaia.
Você está falando no Fued?
ACB - Não. Não porque tem um pessoal que eles mataram. A Oban era mantida
pelos empresários de São Paulo. Nós ficamos mais de um mês lá no DOI-CODI.
Depois fomos soltos, todos liberados e continuamos respondendo processo em
liberdade, com a condição de ir ao DOI-CODI uma vez por mês.
Mas depois disso, as pessoas se dispersaram?
ACB - As pessoas se dispersaram, até porque, imagina o seguinte, todo mês indo à
São Paulo. Nós respondemos processo em São Paulo, porque o processo da Ala
Vermelha correu lá. Então, mais de um ano, um ano e meio, até ser julgado esse
processo, quando a maioria foi julgada inocente. Tivemos dois só que ficaram
presos, o Jair (Storch) e o Aristide.
Você deixou a militância de esquerda, mas não a militância política. Como você ficou depois disso? Ficou um tempo parado ainda?
ACB - Eu fui para o MDB.
Já naquela época ou você parou um tempo?
ACB - Não, eu não parei. Não parei hora nenhuma. Uma das coisas que esse
pessoal não conseguiu fazer comigo, foi me amedrontar. Acho que uma das grandes
forças que passei para o pessoal que foi preso comigo, foi exatamente isso, dizer
que a gente não tinha porque ficar com medo. Eu falei inclusive para o cara da
Oban, que não tinha medo deles. Não sei se era uma doideira, mas minha
consciência era de que eu estava fazendo a coisa certa. Não tinha porque eu ter
141
medo de ficar preso. Eu me preparei, no dia em que fui para o julgamento, para sair
do país. Nosso advogado era o Vanderlei Mello e, no dia anterior ao julgamento,
conversei muito com ele, para saber a probabilidade de eu ser condenado. Disse
que se houvesse mais de 50% de possibilidade de ser condenado, não iria
comparecer ao julgamento. Ia cair na clandestinidade. Aí ele disse: "Não, estou
acompanhando os pareceres dos juízes, a possiblidade de você ser condenado é
menor do que 50%". Então eu fui, porque o pessoal que foi julgado, se condenado,
ia sair de lá preso.
Você também teve um período que foi empresário?
ACB - Não, depois que eu me formei, eu montei uma empresa de projetos.
Então você não estava mais na Caixa?
ACB - Não, eu me formei e sai da Caixa. Eu fiquei ainda seis meses na Caixa depois
de formado. Eu queria que a Caixa me classificasse como economista fiquei
aguardando, mas ela não tinha esse quadro. Aí pedi para sair, porque já estava com
minha empresa de projetos. Quando fui preso, inclusive, eu estava com minha
empresa.
Era a Direção?
ACB - Não era a EPPE, Escritório de Planejamento e Pesquisas Econômicas. Era eu
e o Pretti. Montei minha empresa, naquela época, praticamente, era a única
empresa de projetos que tinha aqui, até porque eu era a única pessoa que tinha feito
curso de projetos. Eu tinha feito um curso de projetos no Ministério do Planejamento,
ainda quando estava na Caixa. Foi naquela época, inclusive, da Passeata dos 100
mil, que eu estava no Rio de Janeiro. Os grandes projetos daquela época passaram
pelo meu escritório, porque o Bandes não fazia, hoje em dia até faz. Por exemplo, a
implantação da Braspérola, foi meu escritório que fez. Depois, a abertura de capital
do Buaiz, foi feita pelo meu escritório. Essa empresa, que agora até fechou, a
Ornato. Nós fizemos vários estudos setoriais para o Bandes. Nós fizemos o primeiro
estudo setorial sobre mármore e granito. A gente fazia o estudo setorial e, partir
dele, um projeto de captação de recursos para aquele setor. Nós fizemos para os
setores de cerâmica vermelha e massa alimentícia e biscoito. O Bandes contratava
e a gente fazia.
142
Isso ainda na época em que você ainda estava na militância? ACB - Na militância, quando eu estava fazendo esses projetos, foi nesse período
depois que eu me formei. A partir dessa empresa de projetos, eu dei assessoria na
Bromato. Fui demitido da Bromato quando eles souberam que eu estava
respondendo processo. Trabalhei, pela minha empresa, no Inocoopes. Eu estava no
Inocoopes quando fui preso. A Bromato foi depois. Fui mandado embora do
Inocoopes, quando eu voltei de lá (da prisão), porque o Arízio Varejão, o filho dele é
que hoje toma conta do Inocoopes, aquilo lá era uma organização do BNH. O Arízio
era o diretor junto com Jones dos Santos Neves (Filho) 247 o BNH terminou e eles
ficaram com aquele modelo e hoje é uma empresa privada. Então eu estava
exatamente no Inocoopes, quando fui preso. Voltei de lá, me deram um abandono
de emprego. Fui demitido, mas estava na minha empresa de projetos e continuei. É
um negócio até muito interessante, porque o (Grupo) Buaiz fiz vários projetos para
eles, quando fui solto, estava respondendo processo, doutor Américo (Buaiz) me
chamou lá e disse: "Olha Brito, estou sabendo da sua situação, mas você continua,
tenho alguns trabalhos para sua empresa, pode contar com o Grupo Buaiz para os
seus trabalhos". Foi o inverso do que aconteceu com o Arízio. Estava lá porque fiz
curso no BNH. Mas ele não quis nem saber. Depois fui trabalhar na Bromato, estava
respondendo processo. Só que a Bromato foi vendida para um pessoal de São
Paulo. Eles tomaram conhecimento que eu estava respondendo processo, era
subversivo, me deram uma desculpa e me mandaram embora. A coisa era assim.
Depois da prisão e do processo, você continuou sua vida normal, mas chegou a ter algum dissabor por causa disso? ACB - Não, a partir dessa prisão, como você viu no documento que te dei, eles me
acompanharam até 1988, até a promulgação da Constituição (de 1988). Mas não
tive mais nenhum dissabor. O único, é que eu não podia fazer concurso, porque
para fazer qualquer concurso, você tinha que ter atestado de bons antecedentes,
senão não podia ter emprego público. Sobrevivi com a atividade privada. Foi aí que
foi episódio em que fui para a Patrimônio, para organizar a Patrimônio. Na iniciativa
privada, eu nunca tive nenhuma restrição, porque o pessoal precisava de projeto
247 Empresário já falecido, Jones dos Santos Neves Filho era filho do ex-interventor e ex-governador Jones dos Santos Neves (1950-1954).
143
para obter dinheiro do Bandes. Houve um período, em que a pessoa chegava no
Bandes para pedir dinheiro e eles encaminhavam para a minha empresa, que era a
única de projetos. Eu elaborava o projeto, dava entrada no Bandes e a pessoa
obtinha o recurso. Minha ida para a Patrimônio foi também na condição de assessor,
porque o contrato até era pela empresa. Depois, fui convidado para ser sócio da
Patrimônio Investimentos, que não era a imobiliária. Quando comecei ver que a
Patrimônio não estava indo muito bem, que o objetivo do diretor não era muito
religioso, eu sai e montei a Fiança, que era também imobiliária. Essa empresa eu
tenho até hoje. Foi eu e o Wilson Tiago de Azevedo. As minhas funções públicas
foram na Caixa Econômica e, depois, no Bandes. Eu fui para o Bandes já no
governo do Camata, exatamente pela atividade privada. Eu conheci o Camata na
faculdade, foi meu contemporâneo e ele teve muita dificuldade de conseguir
informação do governo, porque estava tudo fechado e foi o primeiro governador
eleito em eleição direta e não tinha informação nenhuma. Nessa época, o Camata
morava no (edifício) Aldebaran e eu também, a gente se encontrava muito ali e
conversando com ele, eu disse a ele: "Pela minha atividade, eu sou obrigado a
recolher dados e informações. Faço estudos de viabilidade e faço projetos. Para
fazer projeto, eu tenho que saber como está a situação do Estado. Então, tenho tudo
que você imaginar sobre estatística, tudo que estudo feito pelo Estado até agora, eu
tenho". Eu conseguia lá com o Caliman. O que acontecia, de vez em quando, na
minha empresa, eu contratava economista do governo. Por exemplo, eu preciso de
um estudo de viabilidade econômico setorial de fruticultura de clima temperado, que
foi o pontapé que deu lá em cima. Então, contratava gente de dentro governo, para
trabalhar, o cara trabalhar à noite, fim de semana. Eu disse ao Camata que todos os
projetos e estudos do Governo, geralmente eu tinha acesso. Aí eu formei um grupo
de estudos para ajudar o Camata. Era eu, (Antônio) Caetano, (Sebastião) Balarini,
Renato, um grupinho grande. E o Camata, na campanha, deixava de viajar para o
interior para ir ao meu escritório bolar a participação na televisão. Eu passei a ser o
representante dele junto à imprensa. A gente ia àquelas reuniões antes, para saber
o que vai ser discutido e o que não ia ser discutido. Depois voltávamos para o
escritório e pegava que era possível dentro daquele roteiro da televisão. Então
quando Camata chegava lá, ele matava a pau, humilhava todo mundo. A quantidade
de informações que ele tinha ninguém tinha. Aí ele me chamou para o Bandes, por
144
minha afinidade com o banco. Eu já trabalhava com o Bandes há muito tempo.
Naquela época já estava na abertura.
A última pergunta gostaria que você fizesse exatamente um balanço desse período de 1964 até 1973. ACB - Eu acho foi um período muito importante da minha vida. Foi um período de
aprendizagem muito grande. Eu sempre coloquei, que aquelas pessoas que tem
militância de esquerda conseguem ter uma visão de mundo muito mais concreta,
mais realista, do que àquelas que são alienadas, que não acompanham o que
acontece no mundo, no seu Estado e no país. Apesar de todo o sofrimento, todas
as restrições, todo prejuízo que a gente possa ter tido em termos profissionais, todo
sofrimento físico e moral, para mim foi enriquecedor. Em hora nenhuma essa
pressão que eu recebi, esse sofrimento, as prisões, abalaram a minha convicção de
defesa da democracia, dos direitos humanos e acho que não é hoje que isso vai
mudar. Então, eu acho que para aqueles que são mais novos do que eu, os jovens,
que nunca se afastem e nunca recusem o seu direito de luta pela melhoria da
sociedade, pela liberdade, que é o que há de mais importante na vida de cada
pessoa. Não há felicidade sem liberdade. Isso no mais amplo sentido que você pode
entender. Acho que a luta pela liberdade é válida, em qualquer momento da vida.
145
ANEXO III Entrevista José Maria Cola – 27/03/2013
Vamos começar pela sua identificação, idade e condição profissional. JOSÉ MARIA COLA- Atualmente eu estou com 67 anos de idade. Sou nascido em
1948, me formei em engenharia em dezembro de 1971. No momento, eu tenho 41
anos de formado como engenheiro civil. Durante esse período, tive oportunidade em
empresas privadas, tornando-me mais próximo do Conselho Regional de
Engenharia e Arquitetura (Crea), que agora se chama Conselho Regional de
Engenharia e Agronomia, nos idos do ano 2.000, quando me tornei conselheiro,
representando a Sociedade dos Engenheiros. Atuei como conselheiro da Câmara
Especializada de Engenharia Civil, também tendo sido coordenador, diretor
administrativo do Crea por dois períodos e coordenador da Câmara por um período.
Esse período entenda-se três anos. Já na diretoria, são dois anos como diretor do
Crea. Desse período após ter saído do sistema Confea/Crea, assumi a diretoria da
Mútua no Espírito Santo, sendo diretor-geral durante por dois anos. Na sequência,
comecei também a trabalhar no serviço público, na Secretaria de Educação e depois
na Secretaria da Cultura. Por último, fui convidado pelo presidente anterior do
Conselho Regional, para assumir a gerência operacional, hoje conhecida como
Gerência de Atendimento, na qual já atuo há quatro anos. Nesse período, eu tenho
usado todos os meus conhecimentos da minha época de conselheiro, para atuar nos
registros profissionais e de empresas, na elaboração de acervos técnicos e nas
emissões e anotações de responsabilidades técnicas, que são conhecidas ART.
Esse é um breve resumo da minha vida e do meu encontro com o sistema
Crea/Confea.
Você é nascido aqui em Vitória? JMC - Sou nascido e criado em Vitória. Eu nasci em Santo Antônio, na Volta do
Rabaioli. Fui criado aqui na Praia do Canto até os sete anos de idade, lá na Rua
Celso Calmon. Depois fui para a Rua do Vintém, no Centro de Vitória, e sempre
estudei em escola pública. Primeiro estudei no Gomes Cardim, depois no Colégio
Estadual e finalmente na Universidade Federal do Espírito Santo. Conheci esta ilha
antes de terem sido feitos esses grandes aterros, que foi a criação da Avenida Beira
Mar, depois a criação de todo esse complexo que ficou maravilhoso do famoso
146
aterro da Comdusa, que uniu a Ilha de Vitória com a Ilha do Boi e aquelas
proximidades da área da Praia do Canto com o Iate Clube. Sou da época que existia
bonde.
Como que você classificaria sua posição social quando entrou na universidade? JMC - Vim de uma família de classe média. Não era classe média alta nem nada.
Meu pai era contador e depois virou funcionário público federal, trabalhava no
Ministério de Viação e Obras Públicas. Minha mãe sempre foi do lar. E assim eu
cresci, sempre tendo oportunidade de estudar sem a necessidade de trabalhar. Mas
fui criado dentro de um critério judaico, onde opera a ordem e aquela obrigação dos
mais velhos serem obedecidos. Então era considerado pelo meu pai como o burro
de guia, porque tinha que dar o exemplo para os demais irmãos.
Eram quantos irmãos? JMC - Nós éramos uma família de cinco filhos, onde eu era o mais velho. São quatro
homens e uma mulher.
Em que ano você entrou na Universidade? JMC - Eu entrei em 1967.
Quando você entrou na Universidade, qual era a sua expectativa? O que você e sua família esperavam dela? JMC - Na realidade, a linha de educação que eu recebi foi sempre a que papai
disse: "eu não tenho riqueza para deixar para você, a única coisa que ninguém
rouba de ninguém é a educação. Então você vai ter que se formar e tocar sua vida".
E lá em casa, por coincidência, uma vez que meu pai era contador, três homens se
formaram engenheiros, um estava se formando em Medicina e a minha irmã se
formou em Belas Artes. Depois essa Escola de Belas Artes acabou se transformou
na Escola de Arquitetura da Universidade Federal, ela trabalha em atividades de
decoração de interiores magnificamente, uma vez que compreende e sabe muito
geometria descritiva, que é a base de projetos e de configurações espaciais.
147
Você disse que foram três engenheiros na sua família, existia em relação ao curso de engenharia uma expectativa de melhorar de condição social? JMC - Com certeza com expectativa de melhorar. Inclusive, eu tinha um primo que
falava assim: "Zé Maria, você ainda estudando, vai ver como melhora da água para
o vinho na hora em que tiver com o diploma na mão". E essas são as coisas
interessantes que aconteceram na minha vida. Eu peguei o período em que o Brasil
crescia, não naquele em que o engenheiro virou suco. Eu peguei a época da
expansão, semelhante a que está acontecendo agora. Eu me formei na época do
"ninguém segura esse país", a época do Garrastazu. Esse era o lema e realmente
era obra para todo lado e a coisa acontecendo.
148
ANEXO IV ENTREVISTA JOSÉ MARIA COLA - 28/03/2013
A gente estava falando da sua expectativa quando você estava entrando na faculdade. Quando entrou, que impressão você teve?
JMC - Quanto eu entrei na faculdade, éramos 135 alunos numa sala de aula e nos
formamos em 85. A diferença dos outros 50 era a dos que mudaram de faculdade,
desistiram e, infelizmente, alguns que faleceram nesse período. A minha
perspectiva particular era me formar em engenharia. No fundo, eu gostaria de ter
podido fazer engenharia eletrônica, mas só havia em São Paulo, no Ita (Instituto
Tecnológico da Aeronáutica). Como a oportunidade aqui em Vitória era a engenharia
civil, entrei fazendo engenharia civil. Dentro dos cursos oferecidos pela engenharia
civil na hora da especialização, tinha estradas, cálculo e edificações, eu optei por
aquela que era a mais difícil. Ou seja, aproveitei o meu período de estudante para
me tornar engenheiro naquilo que era mais difícil em termos de aprendizado, que
era cálculo estrutural para aplicação em edificações. Me tornei engenheiro e,
durante toda minha vida profissional, sempre trabalhei na área de edificações. Tinha
um excelente entendimento de cálculo estrutural e de execução propriamente dita,
porque tinha começado a estagiar na Construtora Albamar quando estava
começando o terceiro ano. Ou seja, já tinha passado os dois anos iniciais, em que
as matérias eram, por excelência, teóricas.
Esses primeiros dois anos tinham sido aquilo que você esperava? A sua expectativa foi atendida? JMC - Na realidade o curso foi realmente puxado. Determinados professores, como
o professor de Cálculo, Francisco Árabe, eram pessoas de um grau de exigência
bom, essa é exatamente aquela matéria, com mais geometria descritiva, que faz
com que você abra a mente. Então, o negócio era meio barra pesada mesmo. Ao
ponto que, por exemplo, teve um dia em que a turma, muita gente dentro sala de
aula, com várias formas de pensar, dentro da minha sala tinha pelo menos uns cinco
agrupamentos diferentes. Cada um daqueles grupos tinha o seu líder. Eu mesmo me
acabei me tornando líder nos cinco anos de escola, fui lá para questionar os meus
colegas sobre o que estávamos fazendo ali. "Vem cá, eu estou fazendo esse curso
para ser engenheiro e não perder tempo e expulsar professor de sala de aula”.
149
Aquilo ali não tinha cabimento e, nesse sentido, a minha turma me ouviu, acho que
caiu a ficha de todo mundo de que estávamos ali para nos tornarmos profissionais.
Ao ponto de, ao nos formarmos, conversando entre nós, nós tínhamos uma vontade
de criar uma espécie de “capixabismo” . Ou seja, nós estávamos aqui no Espírito
Santo invadidos por engenheiros, trabalhando principalmente nas principais
empresas, como Escelsa e Vale do Rio Doce e das diretorias e aquele negócio todo,
tudo engenheiro formado em Minas Gerais. De certa forma, conseguimos alguma
coisa, mas não conseguimos virar essa mesa em termos de trazer o domínio do
engenheiro do Espírito Santo. Mas alguma coisa foi obtida, por exemplo, na Escelsa,
algumas posições depois passaram a ser dominadas por nossos engenheiros. Mas
a minha expectativa foi atendida plenamente. A universidade era um lugar em que,
naquela época pelo menos, o respeito ao professor tinha certo grau de importância.
O comportamento do estudante universitário naquela época tenho para mim, que
também era bem diferente. As nossas formaturas eram um negócio que parava
Vitória. A minha formatura foi no Teatro Glória. Estava escrito lá no letreiro:
Formatura de engenharia. O Glória era pequeno para tanta gente. A formatura era
um ato tão solene, de uma pompa cerimonial muito alta. A gente saia dali
convencido que realmente agora tínhamos mudado de vida. Hoje, não sei o que
acontece, mas acho que virou corriqueiro esse negócio de ter diploma ou fazer um
curso de engenharia. Inclusive é questionado entre nós, engenheiros, porque
perdemos muito assim, em termos até do comportamento na sala de aula, na
escola. Você vê os alunos de engenharia indo de bermuda, camiseta, porque não
tem um rito de que estamos fazendo uma transformação em nossa vida. Ou seja,
nós estamos deixando de ser jovens para poder ser adultos com uma formação tal,
em que a gente tem que valorizar aquilo que passamos Inclusive, a forma do
engenheiro andar, de certa forma, mais descontraída, não colocando a posição em
que ele ocupa em evidência. Por exemplo, na Escola de Medicina, quando se
começa a ver essas matérias profissionalizantes, só pode assistir de roupa branca,
já criando o ambiente do profissional. Mesma coisa acontece na Escola de Direito,
onde já se passa a ter um comportamento de andar pelo menos com um traje
formal, inclusive tem aqueles treinamentos internos lá de tribunal, em que o
camarada tem que ter um comportamento onde realmente impõe-se. Meu pai dizia
que é o hábito que faz o monge. Se você se veste como um mendigo, o camarada
vai olhar para você e dizer: “aquele cara não é um engenheiro”. Se você se veste
150
condignamente ele vai dizer: "Aquele ali é um doutor, aquele ali é um engenheiro,
aquele ali é um médico”. Isso é a identidade. Essa é uma coisa observada por mim
daquela época para cá. No momento eu acho que esse é um trabalho muito difícil,
porque nós temos que mexer muita coisa nessa área educacional.
Naquela época não existia o sistema de crédito na universidade, vocês faziam o curso seriado. JMC - O cara entrava no primeiro ano e saia no último ano com os mesmos colegas.
Como era a convivência com os colegas no dia a dia? JMC - A convivência entre os colegas sempre foi muito harmônica, até pelo meu
estilo de convívio no meu grupo, quando tinha que tomar qualquer decisão dentro de
uma sala de aula, eu conversava com quatro ou cinco outros líderes, e dali fazia um
consenso para levar, em tese, se fosse um negócio de assembleia maior, para uma
sala de aula, como eu fiz várias vezes, e falar assim: "fulano, segura a porta ali e
não deixa ninguém sair não". Mas aquele assunto que eu ia tratar, já era discutido
antes com uns quatro ou cinco outros líderes que dominavam seus grupos. Com
isso, nós conseguimos fazer uma união muito grande, tanto que minha turma, depois
que nos formamos, nos reunimos a cada cinco anos. Ultimamente, porque achamos
que está diminuindo a frequência, porque estamos ficando idosos, com mais de 40
anos de formados e tem gente que já está morrendo, está surgindo a ideia de fazer
a reunião anual. Mas é uma turma que até hoje consegue se reunir e trocar
informações.
Você estudou numa época em que o Movimento Estudantil da universidade viveu duas fases. A primeira até 1968, em que houve, não só no Espírito Santo, mas no Brasil inteiro, muitas mobilizações. De 1969 em diante, houve um fechamento. Como era a situação na Engenharia? E como era o Diretório Acadêmico? Como eram os alunos em relação a essa questão? JMC - Era uma questão muito delicada, muito observada por todos. Inclusive, a
turma mais atingida foi a que antecedeu a minha. A turma que antecedeu, nós
tivemos vários colegas que foram presos lá em Ibiúna. Exatamente por causa deles,
a gente se reunia no sentido de, acho que a engenharia como um todo, não só a
minha turma, poder discutir qual era a posição da escola com relação a determinado
151
movimento. Mas depois daquela época, nunca mais tivemos nenhum contratempo
maior, porque a Escola de Engenharia, de certa forma, sempre foi, em tese, mais
ordeira nesse negócio. Era um pessoal muito pensante, muito pé no chão. Mas era
um negócio que preocupava. A gente ficava com aquele papo de que quem era o
dedo-duro dentro da nossa turma, quem que agia assim errado. Mas acho que na
minha turma nunca teve a existência de coisa nenhuma, embora tivesse todas as
linhas de raciocínio. Uns eram mais vermelhos, outros mais tipo melancia, verdes
por fora, vermelho por dentro e havia os que não se misturavam com linha nenhuma,
procuravam andar dentro daquilo que era o correto fazer. Nessa linha do correto
fazer, eu nem sei se me enquadro nela, de qualquer maneira, eu sempre dialoguei
com todas as linhas políticas, sem me envolver com nenhuma delas profundamente.
Sempre procurei ser uma pessoa independente, respeitando as diferenças.
Mas na engenharia haviam pessoas de esquerda e de direita?
JMC - Sim, sempre teve. Eu acredito até que a turma da direita até tinha uma certa
predominância, porque pedia para os mais exaltados: "modera, porque senão você é
que vai ser prejudicado". Mas quando a pessoa está ideologizada, é difícil mudar.
Nós vemos isso hoje no país. Uma coisa que sempre foi notada por mim, é aquela
história da própria União Soviética, o povo sofrendo e o pessoal do politiburo lá na
praia, na tranquilidade, porque eles eram diferentes. Aqui no Brasil é a mesma coisa,
o Lula é diferente.
Você chegou a participar do Diretório Acadêmico? JMC - Não diretamente, em que meu nome apareça. Mas ajudava bastante a fazer o
estilo dos movimentos interno. Ajudar nos eventos que aconteciam na escola. Eu
sou da época em que José Maria Nicolau era presidente do Diretório. Naquela
época do José Maria, o nosso Diretório era muito atuante. Naquela época nós
criamos a Semana da Engenharia. Essa Semana da Engenharia acho que nós
fizemos duas edições, em que nós utilizávamos prédios que estavam parados lá no
Centro de Vitória. Isso foi na frente do correio, quando o Banco São Paulo se mudou
e o prédio lá ficou, nós fizemos dentro das dependências dele uma exposição da
engenharia que foi um sucesso. Aquilo parava Vitória, jornal, televisão, todo mundo
anunciava o que estava acontecendo. Isso foi um motivação muito grande, a ponto
de nós da Escola de Engenharia termos feito, naquela época, onde os prefeitos
152
eram indicados pelo governador ou pela, entre aspas, ditadura militar. Na época, era
Setembrino Pelissari o prefeito, nós fizemos peças teatrais, a primeira foi "Vitória de
setembro a Setembrino".
Você participou dessa peça? JMC - Participei, fui um dos atores. A segunda foi "Animais, não desanimais",
quando o Setembrino ainda era prefeito. Ela me lembra muito talvez daquela figura
feita pelo George Orwell, que falava de uma fazenda de animais, em que os porcos
faziam alguma coisa de movimentação. Fazíamos toda uma interpretação dos
animais tocando a realidade que estava acontecendo. Era um negócio bem
interessante. Isso movimentava Vitória, nossas peças eram apresentados no
auditório da Escola Técnica Federal. Era um negócio assim sensacional, a gente se
divertia muito. Trabalhava muito para montar uma peça daquela. Me lembro que
nós, todos estudantes de engenharia, um dos colegas virou iluminador. Um negócio
bacana para chuchu em termos de se juntar e fazer as coisas. A grande virtude é
que o José Maria Nicolau sempre foi muito amigo do Milson Henriques. Era ele que
escrevia essas peças, de forma graciosa, e adorava estar ali autor e diretor da peça.
Foi uma época muito legal.
O José Maria Nicolau, que eu conheci como professor da Ufes, dentro do espectro político do movimento estudantil, não era um cara de esquerda. Para o pessoal de esquerda, ele era considerado conservador. JMC - Ele sempre foi um cara conservador, mas sempre foi um camarada muito leal.
Ele também nunca foi contra a turma de esquerda. É aquele que chamavam de
aconselhador. Acho que, até brilhantemente, ele ficou na universidade como
professor e continuou sendo querido por todos. Uns reclamam pelo rigor dele, outros
pela forma de ser, mas de certa forma, ele é um camarada que tem um valor tão
grande, que os alunos dele, mesmo assim, gostam muito dele. Depois de sair da
universidade aposentado, ele foi criar um curso que foi desafiador, porque era
formado engenheiro civil. Ele foi criar um curso de engenharia de petróleo. Isso
mostra p quanto ele também é um pesquisador, um cientista, ou seja, um líder, que
conduziu uma atividade nova e desafiadora. Ele sempre gostou de desafios. Era um
excelente jogador de basquete.
153
Como era o DCE? Como você via o DCE? JMC - O DCE se movimentava ali, mais no intuito de trazer alguma coisa para a
própria turma de engenharia, de manter vivo, por exemplo, a nossa
representatividade esportiva. Nós tínhamos bons times de futebol, uma excelente
equipe de natação. Em suma, participávamos dos jogos universitários.
Tinha a Fuec.... JMC - Exatamente, naquela época tinha a Federação Universitária de Esportes. E a
gente participava por isso. Acho que o nosso diretório acadêmico era muito ativo
nessa área.
Mas eu estou falando do DCE, que representava todos os estudantes.
JMC - Ah tá, do DCE eu conheço pouco. Eu estava mais focado no nosso diretório
acadêmico.
Em 1968, houve um líder estudantil, que me parece ter sido a principal liderança desse período, chamado César Ronald, que era estudante de Medicina. Você se lembra de César Ronald? JMC - Não, não estou lembrando. Não estou ligando o nome à pessoa. Embora a
gente fosse tão próximo dali e havia até uma convivência bem respeitosa entre nós
da Engenharia com a turma de Medicina, que lá também tinha bons atletas, boas
pessoas lá. Lembro-me de alguns, mas desse César Ronald não estou me
lembrando.
Em 68 houve uma greve por causa do RU, quando ele abriu, por causa dos preços cobrados. No final do ano, também houve uma greve por causa das prisões em Ibiúna. Você se lembra desses movimentos? JMC - Lembro, mas não era de participar desses envolvimentos de passeatas. Isso
aí, nesse aspecto, eu não me envolvia não.
E o pessoal da Engenharia, participou desses movimentos? JMC - Eu acredito que alguns tenham participado sim.
O curso chegou a parar ou você não lembra?
154
JMC - Não, eu não me lembro. Talvez algum outro colega possa se lembrar, mas
não me lembro de ter parado não.
A universidade começou, em 1966, um processo de reforma que levou à estrutura que existe hoje. Você lembra se houve alguma discussão, se passaram alguma coisa entre os alunos sobre a reforma da universidade. JMC - Não. Nesse período a que você está se referindo, eu já estava fora da
universidade.
Ela foi implantada depois, mas começou a ser discutida em 1966. Foi aprovada em 68, mas só foi implantada depois. Como estudante você chegou a ouvir alguma coisa? Por exemplo, passaram algum questionário entre os alunos? JMC - Que me lembre não. Na minha época não.
Nas atas do Conselho Universitário, o professor Marcelo Basílio inclusive fazia parte dessa comissão, eles relatam que passaram questionários entre os alunos. JMC - Passaram esses questionários em que época?
Em 66 ou 67, você já estava lá. JMC - Eu já estava lá, mas não lembro de ter visto esse questionário não. Devem ter
passado nas outras faculdades, aquelas que iam se movimentar, porque eu acho
que a última a se movimentar para dentro do campus foi a engenharia.
Em algum momento se chegou a fazer essa discussão na engenharia sobre essa mudança para o campus? JMC - Não, porque o negócio era o seguinte: as outras estavam espalhadas. A
Escola de Belas Artes era aqui na Praia do Suá, Direito ficava lá perto do Palácio.
Filosofia ficava no prédio da Fafi. Ali, se não me falha a memória, antes era o
Gomes Cardim, depois andou funcionando ali o Colégio Estadual. Em suma, era
tudo espalhado por Vitória. Para juntar tudo, fizeram o campus. Nós, da Escola de
Engenharia, pelo contrário, estávamos ampliando ali para fazer os diversos
laboratórios. Tudo no maior refino, para depois abandonar aquilo tudo ali e ir para
dentro do campus. Quer dizer, se a própria Escola de Engenharia tivesse
155
permanecido ali onde estava talvez houvesse um ganho maior em termos de
unidade dos próprios engenheiros. Mas lá no campus universitário, eu não posso
falar tanto, mas já começo a perceber uma evolução na chegada de empresas para
participar do processo também acadêmico. Ou seja, preparar mão de obra,
profissionais para o ambiente de trabalho, como é o caso da Petrobras. Foi lá para
dentro da universidade e montou os laboratórios de petróleo. Eu tenho também
conhecimento que na área de farmácia também tem um laboratório que é
aproveitado pelo governo federal para fazer análise de vinhos que chegam
importados. São evoluções importantes, porque ao mesmo tempo em que se
formam os alunos, se aperfeiçoa pesquisa dentro da universidade. As nossas
pesquisas, esses trabalhos todos acadêmicos, deviam ter um foco um pouco mais
voltado para a utilização real. O que quero dizer isso? Empresas que estão voltadas
para a necessidade de continuar evoluindo e inovando no seu produto específico,
poderiam estar pagando as pesquisas dos pesquisadores das universidades,
aqueles que estão fazendo doutorado. Ou estimulando esse pessoal a fazer coisas
que poderiam ser utilizadas objetivamente dentro das indústrias. Eu diria a você que
a evolução de material odontológico, que a 3M é uma das que domina esse
processo, tem dentro daquelas universidades dos Estados Unidos, um pesquisador
para cada linha de desenvolvimento, em que ela, a 3M, acaba utilizando aquelas
pesquisas no desenvolvimento do seu produto. Com isso, cria um estímulo para que
surjam sempre novos pesquisadores e ela também tem um ganho na melhoria dos
seus produtos comercialmente para poder sustentar as pesquisas. E assim evolui. É
o caso hoje da Petrobras, que eu acho que a universidade ganhou, bem como a
própria empresa. Na universidade do Rio de Janeiro, a Petrobras montou todo um
laboratório de hidráulica, no qual foram feitos todos os estudos para aplicarem na
exploração de petróleo em grande profundidade. São piscinas com seis, sete metros
de profundidade, para fazer ensaios, fazer um protótipo do que poderia estar
acontecendo naquelas profundezas, em que nós, seres humanos, não temos
condições de chegar apenas de escafandro. Então, até o desenvolvimento desses
equipamentos, tem que ter muito cuidado. É um trabalho científico muito importante.
Cabe aos técnicos esse desenvolvimento, agora precisa ter incentivo.
O campus começou a ser construído em 1967, essa reforma foi aprovada em 68. Em algum momento, vocês que eram alunos, houve alguma percepção,
156
discussão ou colocação do tipo: “a universidade está tendo uma reforma, vocês vão deixar de ser Faculdade de Engenharia para se transformar em Centro Tecnológico”? JMC - Nós não ficamos sabendo. Pelo menos eu falo por mim, que saí em dezembro
de 71. Nunca teve essa discussão objetiva nesse sentido. Pode ter sido depois na
evolução, que depois começou a entrar sendo aplicado no sistema seriado, um
sistema seriado em que o próprio aluno de engenharia tinha que ir estudar no setor
lá de matemática, que ficava ligado à área de licenciatura, para poder estudar lá.
Cada um ia para um lugar específico e já começou a entrar aquela modernidade das
universidades para o sistema de crédito, onde as próprias turmas perdem as suas
identidades, porque tem cara que está atrasado e frequenta um determinado curso,
junto com um camarada recém-chegado, e assim por diante.
Naquela época em que você entrou na engenharia, houve o problema de excedentes? JMC - Não, pelo menos que eu me lembre.
Na Medicina houve problema de excedentes, pessoas que tinham nota, mas que não conseguiam entrar, porque não tinha vaga. JMC - Não, isso na engenharia não aconteceu. Naquela época, os vestibulares eram
por eliminação propriamente dita. Se não passou nessa prova, você não faz a
seguinte. E assim por diante. Então você podia ser eliminado sumariamente no
meio do certame. Era o contrário, às vezes estavam oferecidas, teve turma com 50
vagas, de só passar 10. Então aquela turma era só de 10 pessoas se formando. Na
Medicina era usual isso. Só cinco passar por ano. Até que houve esse processo de
múltipla escolha, em que se dá esses absurdos que a gente às vezes encontra como
o camarada que foi para á só para brincar, foi treinado a fazer xis para cá e para lá.
Como aconteceu mesmo no Rio de Janeiro, de o camarada que era literalmente
analfabeto passar no vestibular.
As provas eram dissertativas? JMC - Eram dissertativas e depois tinha prova oral.
Mas para entrar também?
157
JMC - Não, para entrar não cheguei a faze prova oral não. Mas era tudo dissertativa.
Nessas questões que o movimento estudantil levantava, como por exemplo, o acordo MEC-USAID, mais verbas, como você via essa bandeiras? Ou não era uma questão que não estava no seu dia a dia? Não era uma questão discutida pelos colegas? JMC - Não, isso não era discutido pelos colegas não. Depois que você entra,
quando está cursando o curso de engenharia levando a sério, você não tem nem
tempo para almoçar ou jantar, porque fica absorto mesmo com o estudo. Às vezes, a
gente tinha que formar grupos para um ajudar o outro no entendimento. Era uma
absorção total. E esses acordos, esses MEC-USAID, essas coisas, não me lembro
de nossa turma ficar discutindo esses assuntos.
Você entrou na universidade quando ainda não tinha RU, que foi inaugurado depois. Como você almoçava antes e depois da inauguração do RU? JMC - Eu sempre tive um apoio familiar.
Vocês moravam aonde? JMC - Eu morava na Rua do Vintém e estudava lá em Maruípe. Naquela época, nós
tínhamos um ônibus da própria universidade. Nós embarcávamos ali atrás do
Correios e íamos para Maruípe. Esse ônibus era exclusivo para os estudantes de
engenharia e tinham aqueles colegas que possuíam carro. Então, ora eu estava
andando de carona com os colegas de carro, ora estava no ônibus indo para
Maruípe e era assim que funcionava a coisa.
Você não chegou a almoçar no RU? JMC - Não, eu almoçava só para saber como é que era o rango lá, mas não por
necessidade.
E a comida era boa? JMC - Como todas as universidades que já tive oportunidade de ir, é comida mais
simples e do dia a dia. Comendo aquilo você não vai morrer, mas não também não é
dessas coisas fabulosas. É para quebrar um galho, você não vai morrer de fome.
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Você ouviu falar de Carlos Magno, que foi presidente do DCE em 67? JMC - Não me lembro.
Você votava na eleição do DCE? JMC- Não, não votava.
E na eleição do DA, você votava?
JMC - Do DA eu votava. O diretório acadêmico nosso a gente votava e ali, mais ou
menos, como um todo lugar, tinham sempre aqueles interessados. Tudo girava em
torno dos interessados. Meu colega de turma, Carlos Sá Pinto, acabou assumindo
como presidente do nosso diretório acadêmico acho que foi logo depois do José
Maria. Eu tive um colega anterior, que foi meu vizinho, Gildo Pinsiara que também
foi presidente. (paralisação da entrevista)
Você estava falando que um outro colega havia sido presidente do Diretório Acadêmico. JMC - Foi o Gildo Pinsiara. O Gildo Pinsiara também era um cara conservador, um
camarada muito pé no chão. Carlos Sá Pinto, depois dessa gestão, foi um dos
diretores do Country Clube de Guarapari. Quer dizer, um camarada que evoluiu no
empreendorismo. Você pode ver que não tinha tipo querer fazer a revolução, nada
disso.
Mas você fala que havia o pessoal de direita e de esquerda na faculdade. Quem seria de esquerda? Quem você lembra que era de esquerda? JMC - Eu me lembro claro. Dentro de uma linha ideológica que eles estavam,
acabaram sendo pegos. Lembro da Jussara Martins, o primo dela, filho de... Não era
primo dela, era Santos Neves esse outro....Marcelo Santos Neves. O pai dele era
advogado. Estou tentando lembrar o nome dele, não sei se era João dos Santos
Neves248, alguma coisa assim. Hoje ele é um brilhante engenheiro da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, se não me engano. A Jussara Martins é professora da
linha da psicologia.
248 O pai do engenheiro Marcelo Santos Neves era o advogado José Santos Neves, nome influente no Estado na década de 1960.
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Ela é professora aposentada da Pedagogia, se aposentou recentemente. JMC - Ela está aposentada? Eram pessoas de que me lembro, fiz cursinho com
eles.
Como era Jussara? Era muito radical? JMC - Não, não era questão de muito radical, mas de pensamento firme. Ela sempre
foi uma pessoa que tinha opinião dela e que expressava muito bem essa opinião
dela, mas sempre foi respeitadora da diferença. Sem dúvida nenhuma, por ser
mulher, possivelmente ela deve ter sofrido muito. A gente ficava penalizado com
aquele tipo de coisa, porque tratava o negócio com uma severidade, conseguia se
enxergar fantasma onde nós também não víamos. Não se entende esses assuntos
na profundidade, na necessidade de se fazer determinadas, vou chamar assim,
ações ou coisas bastante repressoras como naquela época se levava. Era muita
dureza. No próprio exército tinha como tem até hoje, pessoas dos dois lados. Então,
qualquer instituição ela tem todas as camadas sociais ali dentro. A sociologia
também está dentro das instituições. Eu tive durante muito tempo como chefe, um
coronel do exército que era engenheiro, foi reformado na marra, porque ele não
concordava com determinadas atitudes. Ele foi considerado como uma pessoa de
esquerda. Hoje, quando você não concorda com alguma coisa, taxam logo de
esquerda. É difícil isso, porque em se tratando de um país, não pode uma pessoa
decidir por todos, mesmo que esteja delegado através do voto. "Você vai ser o
presidente". O presidente tinha que ter uma conduta de um síndico. É a decisão de
uma assembleia que faz com que o síndico se movimente e não ele querer se
movimentar para fazer as coisas que a assembleia não decidiu. E o nosso governo é
tão distorcido, que se governa o país por medida provisória. Eu não estou
acompanhando mais par-e-passo essas coisas, mas acredito que estamos na casa
de mil medidas provisórias que não foram votadas. Olha essa história. Então nós
somos movidos por um grupo e quem tem que analisar essas coisas ou acabar com
isso, não quer fazer nada, que é exatamente o nosso Congresso, a Câmara de
Deputados e o Senado. Só se movimentam quando tem uma comoção popular. O
exemplo magnífico de mau exemplo é o próprio mensalão. Negar que não existiu
isso, é melhor a gente ficar quieto, porque quando a pessoa não quer ser
convencido, não tem jeito. É melhor não tomar outras atitudes e buscar outros
caminhos, porque não dá.
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Você me falou que tinha uma liderança da sua turma, como era essa sua liderança? JMC - Uma liderança, de certa forma, como falei colegiada. Imagine você estar na
frente de 135 ou 80 colegas e buscar a compreensão do grupo. É óbvio que, posso
ser honesto o suficiente para dizer, que nunca consegui a unanimidade, mas, de
certa forma, sempre consegui que o grupo caminhasse junto. Por quê? Porque os
principais líderes faziam o convencimento daqueles poucos que ainda não tivessem
aderido a uma ideia. "Poxa, você não está querendo participar de um negócio em
que a maioria já está do outro lado. Então vem junto para você não ficar
desgarrado". Eu me lembro muito da história de uma garota. Ela morava numa
região onde havia uma gangue. Digamos que é aquela pergunta técnica: "por que
você está andando com esses caras? Os caras são uns marginais danados". "É
melhor eu me juntar com eles e me preservar com eles, porque eles é que matam as
pessoas. Se eu estiver fora, corro um risco maior". Levando isso para outra área,
nós estamos vendo isso em todas as áreas, inclusive na política. Você pode ver que
determinadas linhas, eles buscam estar se juntando com determinada coisa para
não morrer. O próprio Estado do Espírito Santo é vítima disso. Por que ficar ligado
com o governo anterior, achando que vinha alguma coisa para o Espírito Santo?
Está aí o exemplo: o aeroporto que não veio a dragagem do nosso porto que
também não veio. Tudo na esperança em Brasília. "Ah não, eles são amiguinhos
nossos". Amigo nada. Para mostrar que não tem amigo mesmo, o mais recente foi
aquela tentativa de levar o Jurong para fora daqui. Então nós não temos que estar
prestando a atenção. Aliás, aproveitava-se para tirar foto de lado e ganhar o apoio
político. Agora vamos falar da linha do Clinton. A política existe para dividir mesmo.
A linha de raciocínio político é da divisão. Eu sou desse grupo, aquele grupo é de lá.
Todo mundo entende que a divisão não existe mais, nós temos que está em
cooperação. E essa filosofia eu já fazia sem esse arcabouço teórico dentro da minha
turma. Nós tínhamos que cooperar e, juntos, nós íamos vencer o curso de
engenharia para que ninguém ficasse para trás e conseguíssemos formar e
continuar trabalhando. É uma cooperação que hoje é fundamental. Nós não
conseguimos ver isso na nossa unidade federativa.
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A última pergunta. Quais as lições que você considera mais importantes desse período em que você ficou na universidade? JMC - Uma delas, sempre usei um ditado, em que fui agregando os meus
conhecimentos: "a gente tem que levar a vida com visão e sangue frio". Não
podemos nos emocionar, a gente tem analisar profundamente aquilo em que
estamos entrando. A medida que fui me transformando num profissional, comecei a
enxergar que a vida é fácil de viver, a gente mesmo é que se complica. Olhando
mais à frente, como nos treinamentos, a vida se resume ao seguinte: as pessoas
não prestam atenção por ela. Ora, se eu não presto em mim, se nós estamos aqui,
quando falo estamos aqui, somos seres vivos, a única pessoa que tenho que
conhecer profundamente sou em mesmo. Eu não tenho em ficar me preocupando
em quem é Caetano. E o mundo se preocupa mais com o outro do que consigo
próprio. Então, quando conheço a mim mesmo, eu tenho maiores chances de
conduzir para onde quero realmente chegar. Dentro dessa linha de raciocínio, eu
diria o seguinte, para resumir tudo, a gente tem que racionar o seguinte: nós não
somos aquilo que achamos que nós somos. Nós, somos aquilo que os outros dizem
que nós somos. Então não adianta ficar com firula, de eu dizer para você, que eu
sou bonzinho, sou isso ou aquilo, quando lá fora dizem, aquele camarada não é
nada disso. É essa questão que as pessoas têm que pensar. Lula acha que é um
santo. Mas ele já ouviu alguém falando dele? Dona Dilma agora disse que não
disse. Mas ela disse. E como é que explica a situação da fala dela? Ela foi clara, que
ela não ia mexer no país em crescimento, se preocupar com a inflação. Ela falou
isso. Agora quer dizer que não falou. Bom, tomara que ela faça exatamente o que
ela não falou e cumpra a regra de segurar mesmo o rabo da inflação, porque nós
sabemos o que é isso, pelo menos eu sei. E vou mais longe, com a inflação, quem
sofre é o mais necessitado.
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ANEXO V
Carta de princípios aprovada no XIII Congresso da UEE-ES
AOS ESTUDANTES E AO POVO
A UNIÃO ESTADUAL DOS ESTUDANTES DO ESPÍRITO SANTO, na
realização do XIII CONGRESSO ESTADUAL, ante a atual situação do país, tão bem
caracterizada por um governo ditatorial e entreguista, esclarece aos estudantes que:
1- A Declaração dos Direitos do Homem vem sendo sistematicamente
violentada, caindo por terra a liberdade do pensamento, de livre associação e o
direito de greve;
2- A política econômico-financeiro do país está subjugada a grupos
estrangeiros, orientada pelo Fundo Monetário Internacional, como por exemplo
citamos:
- acordo de investimentos;
- política vergonhosa de minérios;
- tentativa de internacionalização da Amazônia;
- reforma tributária ditada pelo imperialismo;
-política de crédito exterminando a indústria nacional em benefício de grupos
estrangeiros
-a vergonhosa medida - já iniciada - do controle da natalidade;
3- A dissolução dos partidos veio beneficiar a ditadura, que assim controla
mais facilmente os dois únicos partidos criados por ela;
4- É total a subordinação da nossa política a Departamento de Estado Norte-
Americano, haja vista o nosso compromisso com a agressividade norte-americana, e
exemplo das invasões do Congo e de São Domingos, guerra do Vietnã e apoio ao
ditador Salazar;
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5- A preocupação do governo ditatorial em institucionalizar a coerção no meio
estudantil, criando a Lei Suplicy que deforma frontalmente as entidades e que ainda
cria órgãos contra a vontade manifesta dos estudantes, com características de
entidades estáticas, de funcionamento limitado e sem ligações com as bases
estudantis, numa íntima dependência do governo;
6- A taxa de anuidade corresponde ao intuito de privatizar a Universidade e
torna-la cada vez mais frequentada somente pelos elementos provindos das classes
sociais abastadas;
7- A "reforma universitária" no governo se limita a organizar os diversos
cursos em institutos centrais, mantendo a cátedra vitalícia, cerceando as atividades
estudantis, diminuindo enfim as possibilidades de ingresso do povo ao seu meio;
8- O Acordo MEC-USAID, guardado a sete chaves, estende a intervenção
estrangeira desde a escolha dos currículos ao aproveitamento dos técnicos num
tempo futuro.
Diante de tais fatos, a UNIÀO ESTADUAL DOS ESTUDANTES DO
ESPÍRITO SANTO, repudiando a Lei Suplicy e os órgãos criados pelo governo,
repudiando as medidas ditatoriais e antidemocráticas dirigidas contra o povo e os
interesses nacionais, concita os estudantes, operários, camponeses, intelectuais e o
clero, a se unirem na luta pela autodeterminação dos povos pelo estabelecimento de
condições mais humanas de vida numa democracia em que haja igualdade de
oportunidade para todos.
Vitória, 13 de novembro de 1966
XIII CONGRESSO ESTADUAL DOS ESTUDANTES
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