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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS FORTALEZA 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO

CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS

PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS

FORTALEZA

2015

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MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO

CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS

PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Federal

do Ceará, como requisito parcial à obtenção do

título de mestre em Letras. Área de

concentração: Literatura Comparada.

Orientadora: Profa. Dra. Ana Márcia Alves

Siqueira

FORTALEZA

2015

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MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO

CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS

PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Letras da Universidade Federal

do Ceará, como requisito parcial à obtenção do

título de mestre em Letras. Área de

concentração: Literatura Comparada.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Prof. Dr. Gleudson Passos Cardoso

Universidade Estadual do Ceará (UECE)

________________________________________

Profa. Dra. Ana Márcia Alves Siqueira (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________

Prof. Dr. Claudicélio Rodrigues da Silva

Universidade Federal do Ceará (UFC)

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Ao meu pai, vaqueiro e sertanejo, Seu Oliveira

(in memoriam)

- Somos árvores?

- Somos! Somos árvores e tudo mais que

quisermos ser!

- Ah, então serás o meu Oliveiros e eu serei

para sempre o teu Carvalho...

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AGRADECIMENTOS

Como agradecer àqueles pela oportunidade única de realização de um sonho?

Experiência compartilhada com tantas pessoas queridas através de conselhos, ou,

simplesmente, por terem sido ouvintes e pacientes.

A realização de um trabalho de pesquisa é algo solitário e, além disso, exige dedicação

de longos meses de leituras, escritas e discussões incansáveis. No entanto, é também um

trabalho conjunto; afinal só me foi possível chegar ao fim desta jornada graças ao esforço de

tantos que vieram antes de mim.

Por tudo isso, agradeço à FUNCAP pelo apoio financeiro com a manutenção da bolsa

de auxílio, indispensável à realização da pesquisa e a minha orientadora, Professora Ana

Márcia Siqueira, um agradecimento especial. Primeiro, por ter me ajudado a crescer enquanto

pesquisadora; segundo, pelo grande aprendizado ao longo do processo, algo que se destina aos

grandes mestres: extrair sempre o melhor dos seus pupilos.

Também agradeço ao professor Claudiocelio Rodrigues, do Departamento de

Literatura da UFC, pelas contribuições discursivas, pelo comprometimento na indicação de

novas fontes de pesquisas, indispensáveis à Dissertação; ao professor Gleudson Passos, do

Departamento de História da UECE pela atenção direcionada a este trabalho. Assim como, à

professora Marisa Aderaldo do Departamento de Letras Estrangeiras da UECE e a professora

Germana Pereira do Departamento de Letras Estrangeiras da UFC pelo grande incentivo:

muchísimas gracias!

E por último, e não menos importante, obrigada aos meus maiores incentivadores, os

meus amigos: Geórgia, Bel, Gisleuda, Deise, Lorena, Deise, Thibério, Callen, Simone, Jaime,

Marjori, Elio, Lenice, Antonieta, Denise, Mariestela, Larissa, Gaby e Bruno. Afinal, os

amigos é a família que escolhe. Muito obrigada pela força, meus queridos irmãos!

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Somos como anões aos ombros de gigantes, pois

podemos ver mais coisas do que eles e mais distantes,

não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do

nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados

pela estatura de gigantes. (Bernardo de Chartres).

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RESUMO

O objetivo geral deste trabalho é analisar a contribuição do ciclo carolíngio para a autonomia

da literatura de folhetos brasileira. Para tanto, partiremos do pressuposto de que mesmo

compartilhando um plano de fundo comum com a literatura de cordel portuguesa, os folhetos

brasileiros mantêm a sua autonomia, na medida em que se estabelece um cânone de autores e

obras, uma forma tipográfica específica e um público leitor bem definido. A nossa atenção

reside no processo de aculturação que assente as bases da literatura de folhetos, sobretudo em

como o cabedal português é apropriado e recriado com cores locais. Por isso, escolhemos o

ciclo carolíngio por este fazer parte da formação das duas literaturas cotejadas, a fim de

entendermos o intrincado processo cultural que, ao mesmo tempo em que aproxima as

respectivas literaturas, distancia-as. Este ciclo atua como um verdadeiro divisor de águas

enquanto matéria literária capaz de se remodelar a outros contextos literários, bem como

irradiar novos elementos de criação artística a partir do amálgama de imaginários híbridos,

graças ao engenho e a arte do poeta popular e a recepção calorosa dos leitores e/ou ouvintes

das histórias de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Para uma melhor compreensão

deste aspecto, abordamos a forma como os personagens carolíngios estão construídos como

figuras arquetípicas pautadas em sentimentos de bravura e destemor tão apreciados pela

sociedade nordestina. Para tal fim, utilizamos uma metodologia de análise exploratória,

bibliográfica, documental e descritiva, cujos resultados estão embasados na análise dos 60

folhetos que compõem o corpus da presente pesquisa, bem como na literatura que se reporta

ao tema em questão.

Palavras-chave: Folhetos. Cordel. Ciclo Carolíngio.

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RESUMEN

El objetivo general de este trabajo es analizar la contribución del ciclo carolingio a la

autonomía de la literatura de folletos brasileños. Así que, partiremos del presupuesto de que

aunque compartiendo un telón de fondo común con la literatura de cordel portuguesa, los

folletos brasileños mantienen su autonomía, puesto que establecen un canon de autores y

obras, una forma tipográfica específica y además cuenta con un público lector muy bien

definido. Nuestra atención reside en el proceso de aculturación que plantean las bases de la

literatura de folletos. Sobre todo en como el patrimonio literario portugués apropiado es

recriado con los colores lugareños. Por eso, elegimos el ciclo carolingio a causa de su

importancia para la formación de las dos literaturas cotejadas, a fin de que entendamos el

intrincado proceso cultural que, al mismo tiempo en que aproxima las respectivas literaturas,

se las puede distanciar. Este ciclo actúa como una verdadera divisora de aguas, en cuanto

materia literaria capaz de remodelarse a otros contextos socioculturales, irradiando, a su vez,

nuevos elementos de creación artística a partir de la amalgama de imaginarios híbridos. Esto

es posible gracias al ingenio y arte de los poetas populares y la recepción calurosa de los

lectores y/o oyentes de las historias de Carlomagno y de los Doce Pares de Francia. Para una

mejor comprensión de este aspecto, abordamos en nuestro estudio la forma de como los

personajes carolingios están construidos, es decir, como figuras arquetípicas pautadas en

sentimientos de bravura y valentía tan apreciados por la sociedad nordestina. Para tal fin,

utilizamos una metodología de análisis exploratorio, bibliográfico, documental y descriptivo,

cuyos resultados obtenidos están basados en el análisis de los 60 folletos que componen el

corpus de la presente investigación, como también en la literatura que se reporta al tema en

cuestión.

Palabras-clave: Folletos; Cordel; Ciclo Carolingio.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8

2 APROPRIAÇÃO DE ASPECTOS MEDIEVAIS: ADAPTAÇÃO E

RECRIAÇÃO NA LITERATURA BRASILEIRA DE FOLHETOS .................. 20

2.1 Pegadas do colonizador europeu: aclimatização de traços do medievo, a

literatura cavaleiresca e a matéria da França no Brasil ....................................... 20

2.2 Uma “longa Idade Média” legitima os substratos medievais na literatura do

Nordeste brasileiro ................................................................................................... 36

2.3 Influências medievais nos temas socioculturais nordestinos que atuam como

elementos de criação literária .................................................................................. 43

3 AS LITERATURAS PORTUGUESA DE CORDEL E A BRASILEIRA DE

FOLHETOS SOB A ÉGIDE DO CICLO CAROLÍNGIO ................................... 53

3.1 A cultura da oralidade nas bases de formação da literatura brasileira de

folhetos .................................................................................................................. 56

3.2 A literatura de cordel portuguesa: de Portugal ao Brasil ..................................... 67

3.3 A literatura de folhetos brasileira, a sua autonomia ............................................. 72

3.4 O ciclo carolíngio dos folhetos nordestinos ............................................................ 84

4 OS ELEMENTOS DE CRIAÇÃO LITERÁRIA IRRADIADOS PELO

CICLO CAROLÍNGIO ........................................................................................... 97

4.1 O combate .................................................................................................................. 98

4.2 A valentia e o destemor e o ciclo do cangaço .......................................................... 111

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 120

REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 124

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1 INTRODUÇÃO

O que faz um imperador do século VIII e sua hoste de cavaleiros, símbolos de

coragem e bravura do medievo europeu, estarem presentes na literatura do sertão nordestino

em pleno século XX da Era Contemporânea:

Minha caneta de ouro

prendo ela em minha mão

para escrever uma história

de grande admiração

a vida de Carlos Magno

que foi Imperador Cristão.

Carlos Magno foi rei dos francos

imperador do ocidente

seu pai chamava-se Pepino

foi forte e inteligente

nasceu na Austria

foi forte, calmo e valente.

[...]

Carlos Magno é o rei

junto a 12 cavalheiros

conquistou 16 cidades

matando muitos guerreiros

mas em todas as vitórias

era ele um dos primeiros (FREIRE, [19--], p. 1-6).

Conforme aparecem nos versos do poeta popular nordestino João Lopes Freire,

Carlos Magno, Imperador Cristão da dinastia dos Francos, e sua famosa tropa de elite,

conhecida popularmente como os Doze Pares de França inspiraram um importante ciclo de

folhetos que, apesar de contar apenas com seis folhetos matriciais, são essenciais para

entendermos a formação da literatura de folhetos brasileira e a sua consolidação enquanto

gênero literário originário do Nordeste do Brasil.

Estes folhetos, que possuem uma forma versificada, são inspirados por um texto

matriz escrito em prosa, intitulado História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de

França, traduzido do castelhano ao português por Jerônimo Moreira de Carvalho. Este livro

por muito tempo, até os fins da década de 50 do século XX, era tão lido quanto a Bíblia no

sertão nordestino (CASCUDO, 1953).

Este fato não é algo que deve passar despercebido, afinal, havia alguma coisa de

especial na matéria da França que chamou atenção dos sertanejos. Por isso que, pensando na

recepção desse livro e na forma como os leitores e/ou ouvintes se apropriaram das histórias

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carolíngias e as recriaram em folhetos, reformulando suas significações e seus personagens de

acordo com cores locais, decidimos analisar o fenômeno.

Assim, de um texto em prosa a versos, um tema da Idade Média europeia, trazido

pelo colonizador português, foi aclimatado à cultura do sertão nordestino pelo poeta popular.

Assim sendo, partimos do pressuposto de que em cultura nada é estático, tampouco os

processos neste âmbito acontecem isoladamente.

Conforme Braudel (1990, p. 21), não existe presente sem passado, ou seja: “O

presente e o passado esclarecem-se mutuamente, como uma luz recíproca.” Logo, partiremos

dessa relação dialética de tempo para justificar o primeiro passo da nossa investigação. A

literatura brasileira é fruto da convergência das culturas indígena, africana e, sobretudo,

portuguesa (ROMERO, 1977). Desta última, recebemos o idioma e todo o entorno sócio-

histórico-cultural que este suscita. Além do mais, a cultura portuguesa moldou as nossas

expressões artísticas, suplantando aquelas vindas de outras culturas. Convém ressaltar que as

expressões artísticas brasileiras foram vertidas em língua portuguesa.

Mas “cultura” é um termo de sentido amplo e possui muitas acepções, por isso é

difícil conceituá-la. Com relação ao tema, Burke (2010, p. 21, grifo do autor) afirma que o

problema reside no fato de que “‘cultura’ é um sistema com limites muito indefinidos”. Não

obstante, por se tratar de uma das pedras angulares da presente pesquisa, faz-se necessário

redirecioná-la aos nossos pressupostos teóricos de análise investigativa. Para tal fim,

usaremos o conceito proposto por Roger Chartier, extraído do texto “Escutar os mortos com

os olhos”. O autor argumenta que apesar da proliferação das acepções do termo, é necessário

adotar como uma possível definição de que cultura é

[...] a que articula as produções simbólicas e as experiências estéticas subtraídas às

urgências do cotidiano, como as linguagens, os rituais e as condutas, graças aos

quais uma comunidade vive e reflete sua reação ao mundo, aos outros e a si mesma.

(CHARTIER, 2010, p. 16).

De um modo geral, utilizaremos essa proposição por achá-la relevante ao nosso

objeto, haja vista que idioma e cultura estão diametralmente ligados quanto às representações

simbólicas e às experiências de interação do ser com o mundo social e com o seu próprio

mundo. Diante disso, como usamos a língua portuguesa para nos expressar, tendemos a

pensar que esta goza de certa vantagem sob as demais culturas, já que “O europeu foi o

concorrente mais robusto por sua cultura e que deixou mais tradições.” (ROMERO, 1977, p.

39).

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A cultura europeia e o Cristianismo tomado como medida, além da força e das armas

utilizadas pelo colonizador condicionou o assujeitamento do indígena, do negro e do

sertanejo. E, no seio destas transformações multiculturais, onde há a confluência das culturas

portuguesa e brasileira, nas literaturas de cordel1 e de folhetos, que lançaremos o nosso olhar.

Segundo Peloso (1996, p. 77) a ampla divulgação do romanceiro tradicional

português na literatura de cordel do Nordeste brasileiro suscita questões sobre “esquemas

arquétipos e matrizes culturais” que, ao fazerem parte das engrenagens textuais, atém-se às

categorias de tempo e espaço na dinâmica das estruturas narrativas, agregando à morfologia

textual elementos de outras culturas, recriando, por assim dizer, um universo complemente

diferente dos seus originários.

A complexidade dessa perspectiva reside, principalmente, na interpenetração de

culturas heterogêneas sob o crivo do tempo, matizando conflitos históricos e culturais

profundos, atualizando-se em ambientes distantes daqueles de suas origens. Tais

características conferem à cultura popular brasileira a sua identidade híbrida. Ayala (1997,

p.160) menciona que a hibridização “[...] permite considerar a cultura popular no Brasil como

uma atividade contemporânea.”

Deste modo, os sistemas de hibridização que sincronizam o processo de interseção

cultural ao ritmo dinâmico de seus intercâmbios, também atualizam, no tempo e no espaço, os

arquétipos2 de distintos veios de criação artística no corpo do texto literário, enquanto

símbolos que podem ser entremeados de valores. Portanto, estes modelos podem ser

remodelados de acordo com as perspectivas das comunidades no momento de suas

apropriações.

1 Vale salientar que há problemas na terminologia “literatura de cordel”, uma vez que ela passa a ser empregada

pelos estudiosos do tema apenas em 1970. Sobre este assunto, Abreu (2006) postula que: “Antes de tudo, é

preciso esclarecer uma questão terminológica. Apesar de, atualmente, utilizarmos o termo ‘literatura de cordel’

para designar as duas produções, os autores e consumidores nordestinos nem sempre reconhecem tal

nomenclatura. Desde o início desta produção, referiam-se a ela como “literatura de folhetos” ou, simplesmente,

‘folhetos’. A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser empregada pelos estudiosos a partir da

década de 1970, importando o termo português que, lá sim, é empregado popularmente. Na mesma época,

influenciados pelo contato com os críticos, poetas populares começam a utilizar tal denominação. Para evitar

mais essa complicação, seguiremos a designação utilizada pelo poetas, referindo as composições nordestinas

como ‘literatura de folhetos’ e as portuguesas como ‘literatura de cordel’”. (ABREU, 2006, p. 17-18).

Ressaltamos que, na presente pesquisa, esta acepção de Abreu (2006) é que norteará a nossa perspectiva teórica

de análise investigativa ao longo do trabalho. Assim que, sempre que nos referimos às composições

nordestinas, estas serão nominadas como folheto, e a portuguesas como cordéis. 2 O conceito de arquétipo utilizado em nosso estudo foi retirado da corrente junguiana de Psicologia. De acordo

com Jung (1995, p. 57) os arquétipos são “imagens humanas universais e originárias.” Dentro desta

perspectiva, tais imagens formam parte do inconsciente coletivo, ou seja: “[...] conteúdo idêntico em todos os

seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que

existe em cada indivíduo.” (JUNG, 2000, p. 15). Justifica-se, desse modo, a capacidade hereditária que a

humanidade possui de transmitir alguns temas e lendas, de modo idêntico, no mundo inteiro por meio de

imagens universais desde tempos remotos.

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No entanto, ao longo do processo de aculturação as respectivas culturas se

autoinfluenciaram. Ou seja, a cultura brasileira, enquanto colônia, não somente absorvia o que

vinha da metrópole tal e qual, principalmente no tocante à literatura. Uma vez que o que era

apropriado passava, indubitavelmente, por um processo de recriação artístico. E é justamente

neste ponto em que reside à complexidade da questão: em que medida isso ocorria?

A fim de respondermos a esta questão, faz-se necessário a observação de muitos

fatores de ordem vária, tais como: os históricos, os filosóficos, os antropológicos e os

socioculturais, além das categorias literárias propriamente ditas, como: autor, público,

mercado editorial, dentre outros, incidindo sobre a materialidade da obra.

Com relação ao tema da literatura de folhetos brasileira, dada a complexidade do

respectivo gênero literário, os pesquisadores defendem que:

[...] de modo amplo, encontram nos folhetos verdadeira mina para estudos os mais

diversificados. O antropólogo cultural, o sociólogo, o psicólogo social, o historiador,

o ficcionista, enfim, cientistas sociais e escritores deparam na literatura de cordel

com acervo imenso de materiais para pesquisas. Porque, antes de tudo, essas

modestas publicações do poeta popular revelam e condensam, na sua pureza, a

expressão legítima da realidade social. Aí está palpitante o homem nordestino. O

homem de ontem e de hoje. O homem histórico em sua plenitude, com seus

problemas, lutas, sofrimentos, religiosidade, ideologia. A ecologia nordestina, que se

reflete no incerto climático e na paisagem tantas vezes dolorosa de suas secas

trágicas ou suas enchentes caudalosas e arrasadoras. (LOPES, 1983, p. 8, grifo

nosso).

No entanto, convém ressaltar que todos esses fatores socioculturais não interferem no

valor estético do texto. Por isso que em nosso trabalho texto e contexto aparecerão

diametralmente ligados, sem, contudo, desconsiderarmos a autonomia estética e o valor

artístico do texto literário per si (CANDIDO, 2006). Sobretudo porque a literatura de folhetos

imprime em sua matéria literária as marcas identitárias do povo nordestino, enquanto

expressão artística dessa sociedade, em específico.

Afinal, no que diz respeito ao sentido das obras, com relação à sua recepção pela

comunidade que delas se apropriam, Chartier (1998, p. 9) questiona o sentido fixo e universal

dos textos, dado que “Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos dependem das

competências ou das expectativas dos diferentes públicos que delas se apropriam.” Assim

uma obra, no sentindo amplo, ou elementos de criação literária, no sentido mais restrito,

poderão ter significados plurais a depender da força de suas recepções nas sociedades que os

acolhem, afinando-se com as suas respectivas visões de mundo.

Dentro de tal perspectiva teórica, destaca-se a capacidade criativa do poeta popular

da respectiva região brasileira, especialmente na forma de como esse artista manipula os

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esquemas mentais apropriados e os decifra, com base nos sistemas afetivos “[...] que

constituem a cultura (no sentido antropológico) das comunidades que as recebem.”

(CHARTIER, 1998, p. 9, grifo do autor), da qual faz parte e para qual escreve. Sobretudo

sem perdemos o foco na respectiva comunidade leitora à qual o poeta pertence.

Conforme o autor, o processo criativo faz com que a obra seja comunicável e

decifrável para uma respectiva comunidade leitora (CHARTIER, 1998). Por isso que, mesmo

atrelado às condições impostas pelo mercado editorial, o poeta é o grande artífice da literatura

popular que, a partir do seu engenho artístico, consegue mantê-la como uma matéria viva e

contemporânea no corpo social, atribuindo-lhe originalidade.

Logo, em se tratando do que recebemos culturalmente de Portugal, podemos

concluir que o que foi apropriado, transformou-se ao longo do tempo. Segundo Ferreira

(1957) o elemento português sofreu modificações, desvios, sobretudo no que diz respeito ao

âmbito literário, tendo em vista que a matéria literária sofre influência do espírito do narrador,

do lugar onde se desenvolve ou do tempo psicológico em que as narrações são compostas.

Nestes termos, a partir do processo de colonização da cultura brasileira,

conjecturava-se uma nova realidade cultural além-mar. Daí este momento ser, em função das

experiências vividas, um fator determinante para que a visão de mundo dos colonos

brasileiros não fosse a mesma dos seus colonizadores europeus. A saber, é justamente nestes

interstícios, resultante das interseções culturais, onde há “[...] reformulações, desvios,

apropriações e resistências.” (CHARTIER, 2009, p. 47). Assim sendo, podemos nos referir a

essas áreas de confluência como espaços onde as tradições são partilhadas e não apenas

impostas por uma cultura dominante sobre a subjugada.

Essas “brechas” atuam como zonas de negociações nas quais as representações das

realidades sociais assumem a função de “[...] vincular o poder dos escritos ou das imagens

que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los como categorias mentais, socialmente diferenciadas,

que são as matrizes das classificações e dos julgamentos.” (CHARTIER, 2009, p. 53).

Não obstante, quando essas relações interculturais se voltam ao âmbito literário,

tornam-se ainda mais complexas. Sobretudo em face dos elementos híbridos entrelaçados na

tessitura textual. Ademais, há uma infinidade de interpretações subordinadas à comunidade

leitora e às suas várias práticas de leitura, uma vez que “[...] uma história das maneiras de ler

deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as

tradições de leituras.” (CHARTIER, 1998, p. 13). Como relação ao tema, o autor defende que:

Essa abordagem pressupõe o reconhecimento de várias séries de contrastes; em

primeiro lugar entre as competências de leitura. A clivagem entre alfabetizados e

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analfabetos, essencial, mas grosseira, não esgota as diferenças com relação ao

escrito. Aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mesma maneira, e há

uma grande diferença entre letrados talentosos e leitores menos hábeis, obrigados a

oralizar o que lêem para poder compreender, ou que só se sentem à vontade com

algumas formas textuais ou tipográficas. Há contrastes, igualmente, entre as normas

e as convenções de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, os usos

legítimos dos livros as maneiras de ler, os instrumentos ou procedimentos da

interpretação. Contrastes, enfim, que encontramos entre os diversos interesses e

expectativas com os quais os diferentes grupos de leitores investem a prática de

leitura. (CHARTIER, 1998, p. 13).

Daí as competências de leitura, a relação dos leitores com os textos, os procedimentos

de interpretação e, principalmente, os interesses e expectativas investidos no ato de ler serem

importantes ferramentas de análise voltadas a textos do universo popular retratado nos

folhetos nordestinos, uma vez que essa nova tradição leitora conta com um público definido,

assim como práticas leitoras bastante peculiares e um cânone de autores respaldados por uma

tradição.

Portanto, em se tratando de culturas que sofreram um processo de

colonização/dominação como a brasileira, apesar do condicionamento de sentidos advindos

dos modelos impostos por uma cultura dominante, estes puderam ser apropriados e recriados

pela comunidade dominada, e não apenas assimilados sem resistência alguma. Esses

fenômenos culturais não obedeceram a uma lei de causa e efeito, dada a capacidade de

impermeabilidade que irrompe às fronteiras movediças, nas quais as inter-relações culturais se

operam. Sobretudo porque os espaços de recepção que ambas compartilham não

desconsideram as suas autonomias e individualidades identitárias, as interferências são

mútuas, ou seja, “[...] desde que valorizem a área de intersecção, e não apenas a troca isolada

de alguns fragmentos culturais. O que realmente altera o sentido de cultura ‘popular’.”

(FRANCO JÚNIOR, 1991, p. 20).

Diante do exposto, cremos que o principal desafio é pensar numa articulação entre

discurso e prática envolvendo culturas diferentes. Sobretudo porque:

[...] é inútil pretender identificar a cultura, a religião ou a literatura “popular” a partir

de práticas, crenças ou textos que seriam específicos delas. O essencial está em outro

lugar, na atenção sobre os mecanismos que fazem os dominados interiorizarem sua

própria inferioridade ou legitimidade e, contraditoriamente, sobre as lógicas graças

às quais uma cultura dominada consegue preservar algo de sua coerência simbólica.

(CHARTIER, 2009, p. 47).

O autor assinala os mecanismos que estão no cerne das relações de interseção

cultural, sob os quais as culturas dominadas conseguem preservar a sua coerência simbólica, a

sua especificidade. Dessa forma, destaca-se a importância da recepção das práticas e

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enunciados da cultura dominante pela cultura dominada, com base na maneira de como os

atores sociais dão-lhes sentido, ajuízam valores partilhados, resistindo ou deles se

apropriando.

Por conseguinte, resulta sumamente importante para o nosso estudo essa perspectiva

de cultura popular baseada, sobretudo, na autonomia concedida às culturas dominadas no

tocante à forma de como as suas representações simbólicas são acondicionadas socialmente,

tal como as suas marcas identitárias são preservadas. Estas funcionam como pontes

dialógicas, possibilitando, por sua vez, a interação e a comunicação da cultura brasileira com

a cultura portuguesa; e não apenas a subordinação daquela em relação a esta.

Assim que, dentre os inúmeros personagens lendários do medievo europeu,

destacamos a importância de um dos estereótipos de herói que aportaram em terras coloniais

nos textos literários, em especial, os personificados nas figuras de Carlos Magno e dos Doze

Pares de França. Esses personagens caíram no gosto popular europeu e também passaram a

fazer parte da cultura popular nordestina, sobretudo como modelos de destemor.

Na literatura de folhetos brasileira, formaram um importante ciclo que, embora seja

composto por apenas seis folhetos fonte, irradiaram importantes elementos de criação

literária, altamente fértil, conforme veremos ao longo deste estudo.

O fato é comprovado com base numa quantidade considerável de folhetos inspirados,

direta ou indiretamente, nas façanhas desta hoste de guerreiros medievais. Tais composições

literárias utilizavam como eixo central o combate dos personagens carolíngios, conforme

aparecem nos versos:

Max: - Sou igual Napoleão

Na arte da estratégia

Brigo como Carlos Magno

Sou sultão da Turquia

Por isso mestre Rodolfo

Cante com mais poesia.

Rod: -Herdei a sabedoria

Do velho rei Salomão

Tenho poderes dos Césares

A bravura de Roldão

Para vencer cantador

Quando se diz valentão (NORDESTINO, 1979, p .4, grifo nosso).

Carlos Magno (742-814), personagem histórico da dinastia franca, que na visão do

historiador francês Jacques Le Goff (2011a, p. 57) foi a “[...] grande testemunha da história e

do imaginário medievais, que se tornou cada vez mais mítica ainda quando estava viva.” De

acordo com o autor, a lenda formada em torno desse imperador franco resulta possivelmente

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da sua rápida ascensão ao poder, das sucessivas guerras vencidas e conquistas territoriais

lideradas por ele, cujo reconhecimento se deu pela coroação imperial. Ademais, as suas

conquistas reverberaram culturalmente; foram conhecidas historicamente como o

“Renascimento Carolíngio” (LE GOFF, 2011a, p. 58). Por tudo isso, em torno de sua figura,

formou-se um imaginário3 realimentado por sentimentos de bravura e coragem, dentre outros

elementos do universo bélico.

Também consubstanciam o imaginário carolíngio os ideais da cristandade medieval,

haja vista que foram usados como recursos propagandísticos na Reconquista e nas Cruzadas.

Temática que estava em voga à época do Descobrimento (MEYER, 1995). Por intermédio do

colonizador português, a matéria carolíngia chega ao Nordeste brasileiro. Conforme foi

retratado nas sextilhas apresentadas, nas quais o vulto de Carlos Magno é associado à “briga”,

enquanto Roldão, um de seus paladinos, à bravura. Nos versos sertanejos a coragem deles é

sempre enaltecida e o espírito guerreiro convertido em matéria literária.

De um modo geral, o imaginário que se forma a partir da figura de Carlos Magno

orbita em torno da temática beligerante. Guerreiro, como a maioria dos heróis do medievo

europeu, foi uma figura que congregou sentimentos de bravura, destemor, honra e fé cristã em

sua aura mítica, plasmados em uma rica literatura inspirada nas façanhas do Imperador da

barba florida, convertendo-lhe, doravante, em um herói popular estereotipado.

Na visão de Correia (1993) esse personagem figurava como representante temporal

dos domínios imperialista, que legitimava as suas ações guerreiras a partir dos ideais do

Cristianismo “[...] nos quais se faziam sentir a sua acção numa obediência de cariz bíblico ao

Sobrenatural, à Fé, à Religião.” (CORREIA, 1993, p. 85).

Por tudo isso, tangenciamos a violência atrelada à religiosidade extrema como um

ponto essencial, sob o qual emerge o imaginário carolíngio, resvalando, dessa forma também,

no imaginário sertanejo, conforme ilustram os versos: “-Turco, eu não hei de aceitar/ cousa

alguma que me deres/ salvo se tu quiseres/ crer em Deus e se batizar/ do contrário é te

3 Quanto ao termo imaginário, o conceito que norteia a nossa perspectiva teórico-metodológica foi formulado

pelo historiador medievalista Hilário Franco Júnior e extraído do artigo - O Fogo de Prometeu e o Escudo de

Perseu: Reflexões sobre Mentalidade e Imaginário. Neste, o autor faz uma distinção entre os conceitos de

“mentalidade” e “imaginário”. Para o autor, o termo “mentalidade” corresponde ao nível mental e psicológico

mais estável e inalterado das sociedades, sedimentado ao longo da história da humanidade. À vista disso,

considera-se a sua força e abrangência histórica, como bem a incapacidade de apreendê-la. Assim, dada a

impossibilidade de apreensão da mentalidade, o imaginário seria, sumariamente, para Franco Júnior (2010, p.

70) uma espécie de “[...] tradutor histórico e segmentado do intemporal e do universal.” Desse modo, os

imaginários convertem-se numa possibilidade de acesso a esse nível mental mais profundo da história das

sociedades. Em razão disso, os imaginários possibilitam um diálogo com essas categorias mentais e as

representam por meio de imagens que incorporam medos, desejos, sentimentos, valores, mito etc., com alta

capacidade de plasticidade.

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cansar/ porque não aceito nada/ estou com a vida arriscada/ sei do poder que tem ele/ porém

só me sirvo dele/ tomando-o pela espada.” (ATHAYDE, 1976, p. 15).

Devido à relevância do ciclo carolíngio no contexto literário da Europa medieval,

ressalta-se a sua importância na formação das literaturas de cordel portuguesa e na de folhetos

brasileira. Sendo esta o último reduto de manifestação literária do referido ciclo (CORREIA,

1993). Graças à popularização da literatura de cordel, muitas histórias tradicionais da Europa,

com as carolíngias, por exemplo, foram resgatadas e vivificadas ao serem impressas, em

Portugal, e, por conseguinte, chegaram às terras brasileiras.

Para Abreu (2006, p. 23), a literatura de cordel “[...] é uma fórmula editorial que

permitiu a divulgação de textos de origens e gêneros variados para amplos setores da

população.” Dessa forma, foram editadas peças de teatro, romances, contos, novelas e poemas

em forma de folhetos a baixo custo, com um apelo mercadológico muito forte, visando

alcançar um vasto público.

É importante enfatizar que muitos dos textos impressos em cordel no século XVIII já

existiam muito antes, como por exemplo, a história de Roberto do Diabo, que data do século

XI (CASCUDO, 1953). No entanto, através do baixo preço em que eram comercializadas, tais

edições em cordel rapidamente se popularizaram, bem como tiveram uma abrangência

colossal. Foi nesse período que pessoas de estratos sociais mais baixos puderam ter acesso a

estas publicações impressas.

Nogueira (2004) lembra que, justamente nesta época, tornaram-se muito populares

traduções e adaptações de textos castelhanos e franceses ao gosto português. As traduções de

obras, como: História da Donzela Teodora (1712), História do Imperador Carlos Magno

(1728), Princesa Magalona (1732), História de Roberto do Diabo (1732) foram fundamentais

para que literatura de cordel ganhasse a preferência do público.

Dada a predileção da comunidade sertaneja pelas histórias de Carlos Magno e seus

paladinos, investigamos: Que significados estes aclimataram ao imaginário de um povo tão

diferente do seu de origem? Por que este ciclo se tornou tão popular nessa referida

sociedade? Como a matéria carolíngia atuou nas engrenagens de formação da literatura de

folhetos que floresceu no Nordeste brasileiro no final do século XIX e princípios do século

XX?

Com o intuito de responder a essas questões, partiremos da ideia de que a literatura

de folhetos brasileira, mesmo compartilhando uma mesma tradição literária com Portugal, não

configura uma extensão desta. Segundo Oliveira (2012, p. 19): “Essas duas tradições são

radicalmente diferentes, mesmo compartilhando um fundo comum de histórias orais.”

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Logo, as obras mantêm um vínculo identitário muito forte com as comunidades que

as recebem e as reproduzem, interferindo na materialidade do texto, uma vez que essas

composições são:

Produzidas em uma ordem específica, que tem as suas regras, suas convenções, suas

hierarquias, as obras escapam e ganham densidade, peregrinando, às vezes na mais

longa jornada, através do mundo social. Decifradas a partir dos esquemas mentais

afetivos que constituem a cultura (no sentido antropológico) das comunidades que as

recebem, tais obras possuem um recurso precioso para pensar o essencial, a

construção de um vínculo social, a subjetividade individual, a relação com o

sagrado. (CHARTIER, 1998, p. 9).

Por tudo isso, procuramos analisar o ciclo carolíngio nessa perspectiva de Chartier

(1998) como peregrino de longas jornadas no mundo social, em função do processo de

apropriação cultural, no qual os leitores, espectadores ou ouvintes dão sentido à matéria

carolíngia ou às imagens que esta suscita e das quais se apropriam com base em suas

expectativas receptoras. Estes constroem vínculos afetivos a partir da interação que mantêm,

subjetivamente, com o próprio texto.

No que concerne ao objeto do estudo, um dos enfoques incidiu sob os leitores e/ou

ouvintes, específicos do Nordeste brasileiro, e de suas afinidades mantidas com este texto, em

específico, da tradição portuguesa, uma vez que “[...] o significado dos textos depende das

capacidades, das convenções e das práticas de leituras próprias das comunidades que

constituem, na sincronia e diacronia, seus diferentes públicos.” (CHARTIER, 2009 p. 37).

Por conseguinte, tentamos identificar as diferentes categorias literárias pondo em

relevo as particularidades devidamente acentuadas entre o cordel português e o folheto

brasileiro, subsidiados também, pelas ideias de Abreu (2006). Focalizamos no ponto em que

esta autora defende a autonomia da literatura brasileira de folhetos, enquanto gênero literário

autóctone.

Segundo Abreu (2006), a partir do início do século XX, a literatura de folhetos

brasileira começou a ganhar forma de gênero literário, pois diferentemente do cordel

português, que não apresentava uma homogeneidade de estilo, estrutura ou conteúdo, os

folhetos brasileiros mantiveram um padrão narrativo, com poética própria e homogeneidade

conteudística. Tais elementos foram advindos, sobretudo, da criação dos ciclos temáticos;

nesse contexto, poetas e público também tiveram os seus papeis definidos, e organizaram-se

institucionalmente enquanto gênero literário tanto em seus elementos intrínsecos quanto nos

seus elementos extrínsecos.

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Neste contexto, a matéria carolíngia esteve presente durante todo processo de

consolidação desse gênero literário, do início ao auge da literatura de folhetos, ajudando a

popularizá-lo pelo sertão adentro, devido à predileção do povo sertanejo por histórias de

aventuras, de homens corajosos e destemidos.

Para tanto, traçamos um perfil histórico a fim de entender o panorama sociocultural

em a que a comunidade sertaneja floresceu para melhor analisar como se deu a apropriação da

matéria da França nas produções literárias da referida sociedade e, posteriormente,

discutiremos a sua devida contribuição para autonomia da literatura brasileira de folhetos.

Portanto, a presente pesquisa está dividida em cinco partes. O primeiro capítulo trata-

se desta Introdução. No segundo capítulo intitulado: Apropriação de aspectos medievais:

adaptação e recriação na literatura de folhetos brasileira; discutiremos como o cabedal

português medieval foi apropriado, adaptado e recriado pelo poeta popular na literatura de

folhetos que floresceu no Nordeste brasileiro no final do século XIX e início do século XX.

No terceiro capítulo: As literaturas portuguesa de cordel e a brasileira de folhetos

sob a égide do ciclo carolíngio; cotejaremos as duas literaturas em questão- a de cordel

portuguesa e a de folhetos brasileira-, a fim de analisar a autonomia desta em relação àquela.

Pois, partimos do pressuposto de que mesmo compartilhando um fundo de histórias comuns

com a portuguesa, a brasileira se consolida enquanto gênero literário por apresentar um

cânone de autores e obras, bem como um público leitor definido. Por isso, destacamos um dos

primeiros ciclos formados, o carolíngio; destacando o seu processo de apropriação e recriação

nos folhetos nordestinos.

No quarto capítulo, cujo título é: Os elementos de criação artística irradiados pelo

ciclo carolíngio; finalizamos a análise sobre os temas que orbitam em torno da temática

carolíngia, tais o combate e, sobretudo, os elementos de criação artísticos, como o destemor e

a valentia. Estes foram ressignificados pela comunidade nordestina e atuaram como um

verdadeiro divisor de águas entre as duas literaturas. Tendo em vista que, através da

popularização da matéria da França na cultura popular do sertão nordestino, as figuras

arquetípicas dos paladinos contribuíram para a idealização dos heróis populares dessa região,

como os cangaceiros, por exemplo.

Em vista disso, concluímos que apesar de formar parte da literatura de cordel

portuguesa, as histórias de Carlos Magno foram apropriadas e recriadas em forma de folhetos,

sob a ótica do poeta popular sertanejo e de seu público. Assim, somos capazes de entender

como o imaginário cavaleiresco, resgatado pelos cordéis portugueses, foi apropriado e

adaptado pelo poeta popular na literatura de folhetos, produzida no Nordeste brasileiro no

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final do século XIX e início do século XX. Este processo de apropriação e recriação artístico

colaborou sobremaneira para formação e consolidação da respectiva literatura brasileira.

Em vista disso, evidencia-se o seu valor artístico-literário sob a perspectiva de um

tema inesgotável, dado que apresenta uma capacidade de se moldar a outra cultura tão

diferente da sua de origem.

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2 APROPRIAÇÃO DE ASPECTOS MEDIEVAIS: ADAPTAÇÃO E RECRIAÇÃO

NA LITERATURA DE FOLHETOS BRASILEIRA

O Brasil, enquanto colônia, recebeu uma enorme herança cultural da metrópole, sob

a qual construiu as suas bases socioculturais. Por isso, não podemos ser indiferentes ao

cabedal cultural português. Se considerarmos esta questão, focalizaremos nas apropriações e

adaptações da cultura portuguesa às cores locais.

Concernente à apropriação cultural de produções literárias portuguesas, destacamos

as brechas culturais, cujos espaços de intersecção entre as duas culturas permitiram não só

continuação de uma tradição literária de Portugal, bem como a autonomia das produções

brasileiras, uma vez que as obras letradas e as criações estéticas são “[...] sempre inscritas nas

heranças que as fazem concebíveis, comunicáveis e compreensíveis.” (CHARTIER, 2009, p.

49).

Segundo Franco Júnior (1991, p. 20) a comunicação nessas áreas de confluência

ocorre graças ao amplo repertório de temas comuns compartilhado por ambas: “E é através

dessa área de intersecção cultural que determinados pontos podem migrar num sentido ou

noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, religiosa, linguística, artística) e de

intermediação cultural [...]”.

Em nosso estudo, analisamos o imaginário cavaleiresco, resgatados pelos cordéis, os

quais abrangiam temas inspirados em histórias tradicionais da Europa da Idade Média e que

ainda eram muito cultuados na Era Moderna no Nordeste brasileiro. A popularidade desse

gênero editorial transpassou Portugal e chegou às terras brasileiras. Dentre as histórias

aportadas aqui, destacaremos uma em especial: História de Carlos Magno e dos doze pares de

França, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho.

No entanto, para devida compreensão deste aspecto, faz-se necessário entender como

se formou a estrutura sociocultural nordestina, analisando em que medida a cultura portuguesa

e sua literatura incidiu sobre essa região.

2.1 Pegadas do colonizador europeu: aclimatação de traços do medievo, a literatura

cavaleiresca e a matéria da França no Brasil

O transplante da cultura medieval europeia às terras brasileiras, região de extensão

territorial e condições naturais tão díspares, revela um fenômeno complexo de interseção

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cultural “rico em consequências”, como nos assegura Sérgio Buarque de Holanda (1995) em

Raízes do Brasil.

Estas consequências foram resultantes de uma transposição cultural, cujo processo de

apropriação não foi algo pacífico, já que entrou diretamente em confluência com a cultura

local. E o resultado foi uma aclimatização da tradição europeia à cultura nativa. Este se torna

ainda mais complexo no que diz respeito à literatura popular. Sobretudo porque houve um

processo de adaptação e recriação de elementos característicos do medievo, sem o qual não

seria possível estabelecer uma conexão entre culturas separadas por tradições milenares:

Fica evidente que mesmo nos casos de adaptação para versos de histórias

tradicionais européias, os poetas populares não transpõem mecanicamente os versos,

mas aclimatam, regionalizam, nordestinizam. Podemos dizer que os temas dessa

origem se perdem no tempo. Assim, o leitor popular, ao viver no ato da leitura estas

aventuras, recebe-as como se estivessem acontecendo em algum tempo do Nordeste,

apesar das referências a locais europeus contidas no texto. (AYALA, 1997, p. 162).

A autora menciona uma sofisticada adaptação de contextos literários, na qual o

procedimento não é feito mecanicamente pelo poeta popular. Este artista estreita os

imaginários culturais distantes, como o medievo europeu e o nordestino brasileiro, apoiando-

se na função sinfrônica4 da literatura para abolir o limite espaço-temporal existente na área de

confluência compartilhada por essas duas culturas.

Ademais, destaca-se a refinada aclimatação ocorrida no cerne da própria tessitura

textual, na qual a linguagem precisa ser atualizada, “nordestinizada”, para que o leitor

sertanejo possa experienciar aventuras de cariz medieval, em especial, as que giram em torno

da temática cavaleiresca, com um frescor local, abrasileirado, mesmo a partir de referências a

ambientes europeus. Ou seja, apesar de tais referências a contextos sócio-histórico-culturais

europeus, o intérprete brasileiro consegue projetá-las em algum lugar do Nordeste, como bem

demonstram os versos de José Hermínio do Nascimento, sobre uma cerimônia de investidura,

adaptada aos moldes sertanejos:

E necessito também

de armas e munição

e a nossa ajuda pessoal

será útil neste momento

além de tudo precisamos

de fazermos treinamento

O cavalo que lhe deram

era um lindo brilhante

João da Cruz nos treinamentos

4 De acordo como Dídimo (1983, p. 37) a função sinfrônica da literatura caracteriza-se por “[...] superar as

barreiras do tempo e do espaço, criando uma terceira dimensão transpoética.”

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desenvolveu num instante

parece que já nascera

pra ser guerreiro constante

Jordão que era o mais velho

dada de João a maestria

e a maneira como ele

nos treinos se desenvolvia

por cavaleiro do monte

batizou João um dia (NASCIMENTO, [19--], p. 11).

No tocante à cerimônia de investidura, Flori (2005, p. 30) postula que, mesmo

através de uma visão idealizada da realidade, é um momento pelo qual “[...] todo cavaleiro

pode por sua vez ‘fazer cavaleiro’ um postulante que seja digno.” A partir de então, o referido

cavaleiro passava a fazer parte da Ordem da Cavalaria. Em tal cerimônia, destaca-se a entrega

das armas, cujo simbolismo é muito forte. Após o recebimento das armas é “[...] que esse

guerreiro é admitido oficialmente a agir por meio das armas no âmbito das funções que lhe

cabem, levando-se em conta a sua posição.” (FLORI, 2005, p. 39).

Nas sextilhas apresentadas, mencionam-se elementos do universo cavaleiresco, tais

como: o recebimento das armas, o destaque dado ao cavalo e a necessidade de treinamento do

cavaleiro João da Cruz. Ademais faz alusão ao batismo do guerreiro por outro aguerrido mais

velho e honrado, evocando uma estirpe de pelejadores sertanejos, tal qual acontecia nas

investiduras popularizadas no início do século XIII, conforme Flori (2005, p.40):

Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que exige para a

investidura de um jovem, a prova de que pelo menos quatro de seus ancestrais

haviam sido eles próprios, cavaleiros. Ela perde então o seu caráter essencialmente

profissional para salientar os aspectos honoríficos, decorativos, éticos, culturais. A

nobre corporação dos guerreiros de elite se transforma em confraria guerreira dos

nobres de elite.

Tais ritos de passagem estavam presentes em textos cavaleirescos e possuem uma

relação direta com a matéria da França, conforme demonstram a seguir nos versos do poeta

popular Antônio Eugênio da Silva, sobre a cerimônia de investidura narrada no folheto O

cavaleiro Roldão:

Aqueles soldados velhos

eram quem os instruía

todo manejo das armas

melhor ele já sabia

e em primeiro lugar

ficou na cavalaria.

Admirava a todos

e a real majestade

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os cavaleiros da côrte

lhe tomaram amisade

foi armado cavaleiro

com nove anos de idade (SILVA, 1960, p. 24).

Ao comparar os fragmentos dos dois folhetos coligidos, espaço, tempo e imaginários

sincronizam-se na experiência leitora e/ou ouvinte, através do processo (re)criativo do poeta,

sem o qual não seria possível estabelecer qualquer ilação interpretativa entre estas referidas

sociedades. Esse processo de recriação acontece através da linguagem e, sobretudo, graças à

adaptação das histórias ao contexto sócio-histórico-cultural do sertanejo.

A história narrada pelo poeta sobre o cavaleiro do monte, João da Cruz, do sertão

nordestino, associa-se às novelas de cavalaria, muito cultuadas em Portugal à época do

Descobrimento. A temática cavaleiresca, presente no sertão nordestino, recebeu forte

influência do ciclo carolíngio (FERREIRA, 1993). Tais composições literárias evidenciam um

irrefutável vínculo entre as duas culturas aferidas, sob um denominador comum: a cavalaria

andante e a matéria da França.

Candido (2006, p. 100) pontua que: “Inicialmente a literatura no Brasil se apresenta

indissoluvelmente ligada à tradição portuguesa.” Entretanto, o autor já destacava a

necessidade de ajustamento da tradição ibérica à nova condição de vida nos trópicos. Apesar

de autônoma e ter uma natureza estética, a literatura enquanto gênero artístico sofre

interferência do tempo, bem como da sociedade na qual é articulada. À vista disso, podemos

entender as adaptações como recursos fundamentais para que haja uma ponte dialógica entre

diferentes culturas. Ora, o processo de interpretação e reinterpretação do mundo pelo artista

“[...] exige que as formas estilísticas se transformem e se adaptem às suas necessidades.”

(COUTINHO, 1976, p. 27).

Em seu livro A arqueologia do saber, Michel Foucault chama atenção para o

dinamismo da história e a sua impossibilidade de origem, concebe-a como um devir, ou seja:

“[...] história viva, contínua e aberta.” (FOUCAULT, 2008, p. 16). Esta acepção foucaultiana

nos ajuda a pensar a autonomia do nosso objeto, já que o escopo da presente pesquisa não é a

busca de uma origem ou filiação da história brasileira à portuguesa, mas analisar as inter-

relações culturais, sobretudo as de natureza literárias, que alicerçam a literatura brasileira de

folhetos.

Segundo Peloso (1996, p. 43) os primeiros contatos do colonizador europeu com a

paisagem edênica brasileira geraram uma situação paradoxal, pois “A cultura do tempo,

portanto, modifica esta função objetiva do ver, como uma forte imposição interpretativa. A

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descoberta e a exploração do Novo Mundo, no momento em que fazia cair velhos mitos, por

outro lado os reconfirmava [...].” O autor destaca uma série de mitos e lendas, como o Paraíso

Terrestre, o Eldorado, os Gigantes, entre outros, difundidos à época do Descobrimento.

Muitos dos quais foram potencializados pelas novelas de cavalaria.

Este olhar, sobrecarregado de mitos cultuados no medievo europeu, mediava às

primeiras alterações de natureza interpretativa no campo do imaginário, causadas, sobretudo,

pelo impacto das descobertas de um Novo Mundo. Em razão disso, o conjunto de imagens

formado pela milenar tradição europeia era, por assim dizer, revisado e fortalecido ao chegar

à colônia como força motriz. No que tange ao tema da interpretação do Brasil a partir da

intervenção da cultural da Europa medieval:

Em resumo, novas terras e novos céus aparecem finalmente tomando corpo para

fundirem-se em nova unidade em séculos de fantasia medievais, e com a herança

daquele mundo clássico há não muito tempo redescoberto e reavaliado. O Brasil

nasce assim: projetado utopicamente em função das exigências e expectativas, que

embora venham da história, se realizavam através dos filtros tranquilizantes- mesmo

se desviando -, do mito. (PELOSO, 1996, p. 37, grifo do autor).

Sobre o tema, Franco Júnior (2010, p. 28) postula que tal idealização é fruto de um

imaginário medieval carregado de misticismo, dado que “Sendo narrativa, o mito

necessariamente se expressa por meio de um sistema semiótico conhecido pela sociedade na

qual se manifesta.”

De um modo geral, as interpretações mítico-medievais eram fomentadas ainda pela

imprecisão que o desconhecido suscitava à mente dos nautas naquele período. Aqueles

homens aventureiros não sabiam o que havia após o oceano e, no lugar do incógnito, a

fantasia se sobressaía e o mito ganhava espaço. Com isso, à luz dos costumes, os estereótipos

de um mundo mitológico subsidiados pelos imaginários medievais da cavalaria andante, eram

ativados.

A união desses elementos infere que a amalgamação dessas duas culturas refletida

principalmente na literatura de folhetos, assinala o hibridismo cultural que subjaz na literatura

brasileira. Este reverbera ao longo dos séculos a influência da cultura portuguesa, bem como o

seu processo de aclimatação à cultura brasileira.

Tais elementos a priori vieram idealizados em um modelo sócio-econômico-cultural

muito próximo ao feudal, propagado pelas novelas de cavalaria. Este sistema foi implantado

no Brasil colônia pelos colonizadores portugueses e, com relação ao tema:

De início, a utilização da idealização do modelo feudal retratado nas novelas de

cavalaria serviu, em terras brasileiras, como instrumento de divulgação dos valores

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da colônia e também como instrumento de catequese usado pelos jesuítas nas

representações comemorativas de festas religiosas. A partir dos séculos XV, os

romances épicos e novelescos criados para serem cantados por jograis passam a ser

adaptados ao gênero popular e difundidos em larga escala, facilitando, dessa

maneira, o interesse de tornar conhecidos, no Novo Mundo, os valores monárquicos,

a grandeza dos reis cristãos, a bondade e beleza de princesas e donzelas e a

valentia e o heroísmo de nobres cavaleiros. (SIQUEIRA, 2009, p. 4, grifo nosso).

Desse modo, destaca-se a influência ideológica desses textos, usados, sobretudo, para

impor e sobrelevar os valores da metrópole portuguesa em suas colônias. Estes continuaram

sendo propalados ao longo do processo de colonização, já que “[...] mais tarde, essa temática

permaneceu como um ideal a servir aos grandes proprietários de terras e chefes políticos, mas

também aos bandos de rebeldes e cangaceiros recriados pela literatura.” (SIQUEIRA, 2009, p.

4).

Dentre os elementos medievais imiscuídos à temática cavaleiresca, chama atenção

catequese usada pelos jesuítas para a instituição do Cristianismo, o destaque dado aos reis

cristãos, tal como a honradez e bravura dos cavaleiros medievais enfatizados por Siqueira

(2009). Estes três elementos mencionados pela autora são cruciais para que entendamos a

ampla difusão da matéria da França no imaginário colonial americano.

A glória e a fama de Carlos Magno e seus paladinos, no Brasil, perpassaram o

período colonial e alcançaram as primeiras décadas do século XX. Tal evento foi plasmado

pela literatura de folhetos brasileira, desenvolvida a priori, na região nordestina, pelo fato de

ter sido a primeira a ser colonizada, bem como a primeira a se desenvolver economicamente

(SIQUEIRA, 2007a). O novo contexto provavelmente incidiu na matéria literária que

reproduzia o ciclo carolíngio nos folhetos brasileiros. Assim, a matéria da França pôde ser

recriada em solo brasileiro pintada com as cores locais.

Daí a forte presença de muitos substratos medievais incidindo sob os sistemas sócio-

histórico-culturais da referida comunidade sertaneja. Sendo assim, justifica-se uma maior

conexão dessa sociedade com a cultura do colonizador seiscentista. Por tudo isso, confirma-se

a popularidade de temas e personagens do medievo reverberando contundentemente nessa

referida região brasileira.

Vale salientar os laços estreitos que a Igreja mantinha com a Ordem da Cavalaria.

Desse modo, a matéria da França, o universo cavaleiresco e os ideais da Cristandade medieval

estavam profundamente associados. Mediante tal enlace, o cavaleiro medieval tinha como

uma de suas missões a de defender os interesses da Igreja, face ao avanço dos árabes no

Ocidente, tal como esclarece Flori (2005, p. 30): “Por fim, ‘ele faz cavaleiro’ o postulante ao

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cingi-los como gládio, símbolo de sua missão de defensor da Igreja, de combatente da fé, de

protetor daqueles que não portam armas: membros do clero, pobres, viúvas e órfãos.”

Esta ligação entre a Igreja medieval e a Ordem da Cavalaria foi intensificada no

período da Reconquista e das Cruzadas e, nesse ínterim, a imagem de Carlos Magno foi sendo

associada aos ideais cristãos. Como consequência de tal associação, as imagens do Imperador

dos francos e de sua hoste foram reconstruídas sob a égide do grande defensor do

Cristianismo. Tal fato aparece refletido nos versos abaixo, retirado do folheto O cavaleiro

Roldão, do poeta popular Antonio Eugênio da Silva, 1960: “Continuou defendendo/ a santa

lei de Jesus/ rebentou uma batalha/ de um espírito sem luz/ era um herói da Turquia/ o

gigante Ferrabruz” (SILVA, 1960, p. 28).

A abrangência do vulto histórico de Carlos Magno é comprovada por sua rotunda

presença no imaginário ocidental por onze séculos, assumindo características míticas (LE

GOFF, 2011a), resquícios da força dessa figura para a história do Ocidente europeu. Em vista

disso, a Igreja se apropria do imaginário construído em torno da figura carismática de Carlos

Magno, alterando a lenda carolíngia, sobretudo no período da Reconquista:

A Reconquista, empreendimento eminentemente peninsular, foi considerada como

uma tarefa mais coletiva, que dizia respeito a todo o cristão ocidente. E a ideologia

religiosa dominante obrigava a que os cristãos defendessem a Fé nos territórios mais

próximos, os da Hispânia invadida, como mais tarde irão também por Ela combater

nos confins da Terra Santa. Ora, a comunidade que, desde muito cedo se empenhou

em participar na “cruzada” hispânica foi a dos Francos. Não certamente os do

tempo de Carlos Magno, como a lenda fazia supor, mas as dos séculos XI e XII.

Nobres, guerreiros, religiosos vieram para Espanha, a fim de não só defender o

território dos cristãos, combater os infiéis e ajudar à Reconquista e à formação dos

novos Reinos peninsulares, mas também para se fixar, ajudar a povoação das regiões

cristãs. (CORREIA, 1993, p. 117, grifo nosso).

Em resumo, Carlos Magnos e seus paladinos foram usados como recursos

propagandísticos dos ideais cristãos da Europa ocidental, uma vez que a matéria da França

passou por vários processos de recriação e adaptações ao longo de todo esse período. Por isso

Carlos Magno, personagem histórica do século VII, pôde chegar às terras coloniais no século

XVI. Esta matéria foi propagada, principalmente, pela literatura popular “[...] nos romances,

nos autos e nas composições poéticas ou narrativas transmitidas pelos ‘folhetos de cordel’.”

(CORREIA, 1993, p. 137, grifo do autor).

No Brasil, a hoste carolíngia está assentida sob o estereótipo do guerreiro cristão. A

fim de exemplificar o que foi dito, analisaremos a seguir os versos que narram a fatídica

morte de Roldão. Em um dramático monólogo, o paladino evoca muitos elementos

ideológicos e sacramentares da Igreja medieval:

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Roldão saiu se arrastando

o sangue ficando atraz

além dos pequenos golpes

quatro lançadas mortais

deitou-se ao pé de uma pedra

dizendo eu não brigo mais.

Vou morrer todo contrito

ungido e sacramentado

porque antes da batalha

tinha sido confessado

recebi o sacramento

para sempre Deus louvado.

- Oh! Meu Senhor Jesús Cristo

Deus é homem verdadeiro

já que morreste na cruz

pr’a redimir o mundo inteiro

perdoai os meus pecados

Santo e Divino Cordeiro.

Assim como perdoaste

à Dimas o bom ladrão

perdoaste a Lunguinho

que cravou o teu coração

por vossa chaga do peito

meu Jesús dai-me o perdão (SILVA, 1960, p. 30-31).

Os versos narram um Roldão agonizante que, nos seus últimos momentos, pede a

remissão dos seus pecados. Em sua fala, mostra-se humilde e resignado ao pedir perdão por

seus pecados e se igualar a Dimas, o bom ladrão e a Lunguinho, verdugo do Cristo; ambos

perdoados por Jesus no momento de sua morte. O cavaleiro se mostra sereno, pois pode

morrer em paz, já que antes da batalha tinha sido confessado, contrito e ungido. Ou seja, havia

cumprido o protocolo eclesiástico de salvação, de acordo com os preceitos da Igreja.

Mas como todo grande guerreiro cristão que morre em batalha, para defender a fé do

Cristo, Roldão transforma-se em um mártir do Cristianismo. Diante do ambiente de barbárie

das batalhas, os atributos guerreiros são enaltecidos tanto quanto os religiosos, conforme

destacam os versos abaixo:

Pegou sua arma e disse:

- minha espada Durindana

com quem sempre defendi

a religião romana

dentre todas as espadas

foste tu a soberana.

-Vou te quebrar nesta pedra

para que não chegue o dia

de caíres no poder

do pessoal da Turquia

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mas ele já quase morto

pelejava e nada podia.

Beijou a cruz da espada

e disse com toda calma

-lutei a favor de Deus

ganhei louro e ganhei palma

e nas tuas mãos Senhor

encomendo a minha alma (SILVA,1960, p.31, grifo nosso).

Como todo cavaleiro andante que se preze, a sua espada é quase uma extensão do seu

corpo. Muitas vezes é personificada e recebe um nome a título de exclusividade do nobre

cavaleiro. Dentre alguns exemplos podemos citar Excalibur, a lendária espada do Rei Artur

nas histórias do ciclo arturiano5.

Durindana, a espada de Roldão, embora tenha matado muitos homens, era insigne

porque a violência era justificada pela nobreza das intenções do cavaleiro que a utilizava. Ou

seja, dentro dos ideais da Cristandade, era um instrumento de defesa da religião romana. Algo

descrito no primeiro verso da terceira sextilha, na qual há a junção dos ideais da cavalaria

andante subjugados aos da Igreja medieval: “Beijou a cruz da espada” (SILVA, 1960, p. 31).

E de modo sereno Roldão confessa que lutou a favor de Deus e isso foi o que concedeu os

louros que em vida recebeu e a glória de suas proezas reconhecidas post mortem. Assim, em

se tratando da força persuasiva e evangelizadora carolíngia em terras americanas:

[...] que se reencontrem com tal unanimidade por toda América Latina os dois

símbolos de vitória da Cristandade: Carlos Magno e os seus Pares; guerreiros

Cristãos destroçando ferozes Mouros. O caráter repetitivo e conservador (e por isso

concreto e eficaz) das chamadas manifestações folclóricas parece assim ter sido um

dos diferentes modos encontrados para garantir a consolidação da ideologia

unificadora. (MEYER, 1995, p.15, grifo da autora).

De acordo com o ponto de vista da autora, o argumento da Cristandade, pautado no

ciclo carolíngio, foi um forte fator de unificação ideológica em terras coloniais. Este foi

reproduzido em diferentes manifestações folclóricas cujo tema central era luta dos cristãos

contra os mouros. Um exemplo de como esta fórmula pôde ser representada em forma de

folhetos, escolhemos uma décima de Athayde (1976) que narra a lendária batalha de Oliveiros

(Par de França) e Ferrabraz (turco6, filho do almirante Balão): “Disse Ferrabraz: Guarim/

pela crença dos fiéis/ confessa logo que és/ não sejas fingindo assim/ tu és um dos cavaleiros/

5 O ciclo de aventuras que conta a saga do rei Artur. (FERREIRA, 1993). 6 Convém salientar que não só os mouros ibéricos, os árabes em geral, foram chamados de turcos pelos poetas

populares dos folhetos nordestinos. Sobre o tema, Ferreira (1993, p. 73) disserta: “A expressão turco para

configurar toda a mourama é devida provavelmente a uma série de fatores, inclusive à importância concreta de

um fato histórico da conquista do seu avanço para Europa. A queda de Constantinopla e o avanço comercial

teria tido a difusão que em prestígio remeteria a mundos opositores e longínquos mas presentes com sugestão

de força e poder.”

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daqueles grandes guerreiros/ que a fama está espalhada/ pelo pegar da espada/ és Roldão

ou Oliveiros” (ATHAYDE, 1976, p. 14, grifo nosso).

Estes versos narram um combate que se deu entre Oliveiros e Ferrabraz. O valente

guerreiro carolíngio, mesmo ferido, decide lutar. Por esse motivo ele precisou se disfarçar. No

entanto, o disfarce não logra êxito, já que Ferrabraz desconfia que pela destreza bélica do seu

oponente, este não podia ser um guerreiro comum. Pelo manejo da espada, o combatente só

podia ser Roldão ou Oliveiros. A valentia e destemor de Oliveiros se revelam pelo fato de

que, mesmo ferido, luta de igual para igual com o grande guerreiro mouro/turco, Ferrabraz.

Outro detalhe curioso presente nesta décima7 reside no fato de que é o próprio

Ferrabraz quem destaca a grandeza dos Pares de França em sua fala: “aqueles grandes

guerreiros/que a fama está espalhada” (ATHAYDE, 1976, p. 14). Ressaltando-se, assim, por

meio da voz do arqui-inimigo, a glória e a fama dos valentes e destemidos Pares de França.

Estes modelos arquetípicos de guerreiros medievais transcendem o ciclo carolíngio,

sobretudo, modelando outros personagens autóctones do Nordeste brasileiro, tais como: o

vaqueiro, o cangaceiro e o cabra. Por essa razão, esvazia-se a fórmula Cristãos e Mouros

(MEYER, 1995) ao remodelar-se a outros estereótipos como matéria literária.

O folheto As aventuras de um vaqueiro sergipano ilustra bem o que acabamos de

expor. Neste folheto, narra-se à história de um valente vaqueiro, honrado e destemido, que

deve salvar uma linda jovem, cujo pai, um rico fazendeiro, foi assassinado por um cruel

cangaceiro de nome Cascavel. Com isso, o herói popular é configurado sob os arquétipos

mencionados.

Agora aqui vou tratar

dum vaqueiro sergipano

o artista da história

esse não foi engano

e como diz o diabo

é homem até o tutano.

Com 20 anos de idade

de nome José Monteiro

trabalhador e honesto

e na classe de vaqueiro

em todas as vaquejadas

seu lugar era o primeiro.

Respeitava todo mundo

7 Na literatura de folhetos, a décima é considerada como uma “forma erudita”, uma vez que a sua composição é

mais elaborada. Assim, como nos outros esquemas estróficos, é inspirada redondilha, pois nesse formato

aparecem versos de arte maior, como o Martelo Agalopado e o Galope à beira-mar. Não obstante, apesar de

apresentar esquema rítmico diversificado, o mais utilizado (a grande maioria) é o esquema ABBAACCDDC

(PASSOS; VIEIRA, 2011).

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pra ser também respeitado

andava com boas armas

dadas pelo delegado

para brigar com 10 homens

estava desocupado (SILVA, [19--], p. 11, grifo nosso).

Percebe-se a partir dos versos destacados em negrito, como os sentimentos de

valentia, honradez e destemor sedimentam o modelo do herói popular cultuado no sertão

nordestino, no caso, refletido na figura do vaqueiro sergipano José Monteiro. Estes já bem

adaptados ao imaginário sertanejo, retratado no texto pela menção ao tema das festas de

vaquejadas8, ou seja, um evento proveniente da sociedade nordestina.

Ao longo da narrativa vão sendo realçados em suas atitudes marciais, àquelas

voltadas à valentia e ao destemor, descritas nas cenas de combate, tais como as que aparecem

nas sextilhas a seguir:

E com uma peixeira em punho

para monteiro avançou

monteiro meteu-lhe um sôco

e com ele se agarrou

derrubou ele no chão

e por cima se montou.

Apertou-lhe a guela

e disse cabra ruim

o cabra estirou a língua

pra fora todo assim

que nem tamanduá

numa casa de cupim (SILVA, [19--], p. 23-24).

A violência que subjaz nos respectivos versos é obliterada pela coragem e as proezas

do vaqueiro. Eventos como este são uma constante nos folhetos carolíngios. À guisa de

modelo do que foi mencionado, selecionamos duas sextilhas que narram as façanhas de

Roldão, nas quais a violência de seus atos é utilizada para enaltecer a sua coragem:

Já com seis horas de luta

o turco agarrou Roldão

este cravou-lhe um punhal

na mesma ocasião

8 Segundo o folclorista brasileiro Cascudo (1984b) vaquejada é algo autóctone do Nordeste brasileiro, já que não

há registros de tal festa na literatura colonial, tampouco houve algum registro entre os demais povos que

deixaram as suas impressões sobre o Brasil entre os séculos XVII a princípios do XIX. Nestas festas o ponto

auge consistia em derrubar o boi, puxando-o pela calda. Sua origem veio das práticas da “apartação”, ou seja:

“[...] identificação do gado de cada patrão dos vaqueiros presentes. Marcados pelo ferro na ‘anca’, o sinal

recortado na orelha, a ‘letra’ da ribeira, o animal era reconhecido e entregue ao vaqueiro. A reunião de tantos

homens, ausência de divertimentos, a distância vencida, tudo concorria para aproveitar o momento. Era um

jantar sem fim, farto e pesado, bebidas de vinho tinto e genebra, aguardente e ‘cachimbo’ (aguardente com mel

de abelha). Antes, pela manhã e mais habitualmente à tarde, corria-se o gado.” (CASCUDO, 1984b, p. 106).

No entanto, ao longo do tempo esses hábitos rurais sofreram modificações provocadas, sobretudo, pela

expansão da cultura urbana adentrando ao espaço rural.

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no umbigo do gigante

deixando morto no chão.

Em outra grande batalha

Roldão matou Borracaz

ajudou a Oliveiros

na luta com Ferrabraz

dos doze pares de França

Roldão foi quem matou mais (SILVA, 1960, p. 29, grifo nosso).

Destaca-se, dessa forma, nos versos apresentados, a predileção do homem sertanejo

por figuras corajosas, mesmo aquelas capazes de realizar atos de crueldade, tais e quais os

cometidos por Roldão e o vaqueiro sergipano.

A fama dos paladinos propagou-se rapidamente sertão adentro, de modo que estes se

converteram indubitavelmente em matéria literária. Esta matéria é capaz de representar um

ideal de valentia e destemor expressado mediante as façanhas dos pares de França e de muitos

outros personagens construídos a partir desse modelo arquetípico de herói, conforme refletem

os versos do folheto História do valente João-acaba-mundo e a serpente negra: “João tornou

a se travar/Com aquele leão voraz/ Se um queria ser bom/ Queira o outro ser mais/ Só a luta

de Oliveiros/ No campo com Ferrabraz!” (SILVA, 1959, p. 7).

A verificação deste legado, interiorizado culturalmente, remete-se à memória

coletiva dos primeiros colonizadores europeus:

O Novo Mundo foi também o êxodo cavaleiresco, saída sem perspectivas precisas,

mas animada por um sonho vigoroso de glória e de conquista [...], experiência

iniciática através da qual cada um procurava a realização de si mesmo e da própria

fortuna. (PELOSO, 1996, p. 45).

Segundo o autor, o espírito aventureiro suscitado por este tipo de literatura motivava

as experiências audaciosas, bem como as atitudes mentais dos primeiros desbravadores

náuticos. Dessa forma, a literatura cavaleiresca, amplamente propagada nesse período,

incitava a coragem, insuflando o lado guerreiro de seus leitores; motivando-os a buscar

aventuras, fortunas e glórias.

Estas atitudes podiam ser justificadas, possivelmente, pela própria conjetura

medieval, ainda não contaminada pelos arroubos da razão propagados pelo Iluminismo. Por

isso, muitos elementos do maravilhoso, presentes nos textos de cavalaria, eram associados à

realidade, ao fim e ao cabo do Descobrimento das Américas:

Assim que partia para o Novo Mundo, estava convencido de que, participando desta

empresa, teria tocado com as mãos as maravilhas, as riquezas e os extraordinários

espetáculos que os livros de cavalaria contavam de modo tão sedutor. Gigantes,

anões, ilhas encantadas, amazonas, fontes mágicas e ouro em profusão, seguramente

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deviam existir em alguma parte das imensas terras que a Providência tinha

repentinamente aberto no outro lado oceano. (PELOSO, 1996, p. 48).

Portanto, grosso modo, o espírito aventureiro do medievo foi guiado pelos ideais da

cavalaria andante. Fato documentado na literatura de viagem da época, na qual documentos

históricos aparecem amalgamados a elementos literários de matriz cavaleiresca, como a

presença de figuras monstruosas e terras exóticas nos mapas oficiais, por exemplo. Tudo

criado a partir das analogias com as aventuras vividas pelos cavaleiros idealizados nas

novelas. (PELOSO, 1996).

Seguindo tal perspectiva, podemos inferir que o sucesso deste tipo de literatura

possivelmente possa ser explicado pela presença de elementos populares que estruturam o

texto, como os que giram em torno dos temas guerreiros e das dinâmicas cenas de combates,

nas quais valentes guerreiros se esgrimam.

Aliás, há uma nuance na riqueza descritiva dos episódios, nos quais, a par das cenas

de violência, articulam-se imagens encantadoras, incitando a capacidade imaginativa dos

leitores/ouvintes a reproduzir cenários emblemáticos de aventuras em terras longínquas e

exóticas.

A temática cavaleiresca das novelas literárias medievais era construída em volta da

idealização do cavaleiro medieval, justificada pela predestinação e heroísmo. Este herói nunca

é normal, está acima, num ideal. Ademais, havia o apelo social, pois não se tratava de

guerreiro comum. Ele fazia parte de uma elite guerreira, criada em um mundo à parte e

possuidora de características individuadas advindas da Ordem da Cavalaria:

Muito diferente do combate a pé, o novo método cavaleiresco necessitava de um

treinamento assíduo em exercícios guerreiros como o quintaine ou torneio que se

torna, ao longo do século XII, um treinamento guerreiro, um esporte aristocrático e

um espetáculo mundano. Todos esses aspectos fazem da cavalaria uma elite

guerreira; ela não combate como as outras; obedece a suas próprias regras, dota-se

de sua própria ética; desenvolve no torneio e na própria guerra aspectos festivos

e lúdicos autorizados pela proteção defensiva reforçadas dos quais beneficiam os

cavaleiros e pelo código deontológico da cavalaria que se implanta paralelamente.

(FLORI, 2005, p. 79, grifo nosso).

A partir desse universo beligerante no qual o lúdico e o festivo se imiscuem aos

aspectos guerreiros e nobres, configurando, desse modo, vívidos elementos de criação

literária. Estes retroalimentam um imaginário cavaleiresco potencializado pelos textos

medievais responsáveis por esta idealização do cavaleiro medieval. Muitos desses elementos

inspiram o ciclo carolíngio, conforme demonstram nos versos a seguir:

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O imperador mandou

abalar sua nação

festas juntas e torneiros

oferecidos a Roldão

vieram príncipes de longe

pra aquela reunião.

Chegou o dia da festa

saiu Roldão bem montado

os cavaleiros da côrte

lhe fizeram acompanhado

os cavaleiros de fora

cada qual mais bem armado.

E da cidade de Gênova

tinha vinde um cavaleiro

para lutar com Roldão

foi o que saiu primeiro

Roldão botou ele abaixo

com um só golpe certeiro.

Veio outros cavaleiros

um disposto italiano

este foi vencido logo

perante ao soberano

aí Roldão foi bate-se

com um principe Saboiano.

.

E este deu muitos golpes

mas todos foram perdidos

afinal vieram outros

cavaleiros destemidos

porem todos os estranhos

por Roldão foram vencidos. (SILVA, 1960, p. 24-25).

Tal contexto figurativo, no qual a força e o destemor dos personagens despertam nos

intérpretes, leitores e/ou ouvintes dessas fábulas sentimentos de coragem, honra, liberdade,

otimismo e lealdade, que transcendem a época medieval. Fato comprovado pelo eco de alguns

elementos cavaleirescos mais expressivos reverberando, por sua vez, na literatura brasileira de

folhetos no século XX. Tudo porque essa Ordem foi bastante idealizada e transformada em

matéria literária, visto que: “[...] a cavalaria que atrai todos os olhares e são as proezas

cavalheirescas que são glorificadas pelas epopeias e pelos romances, narrados nos relatos dos

cronistas. Eles suscitam a admiração dos homens e ganham os corações das damas.” (FLORI,

2005, p. 80).

Segundo Ricoeur (1997), a leitura permite a interação do mundo do leitor com o

mundo do texto. Tal interação propicia a reconfiguração da realidade que “Somente pela

mediação da leitura é que a obra literária obtém significância completa.” (RICOUER, 1997, p.

275).

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Chartier (2009) chama atenção para a relação que a história mantém com a literatura.

Na opinião do autor, uma distinção entre essas duas áreas só acontece quando se tem bem

definido que

[...] em todas as suas formas (míticas, literárias, metafóricas) a ficção é um discurso

que ‘informa’ do real, mas não pretende representá-lo nem abandonar-se nele,

enquanto a história pretende dar uma representação da realidade que foi e já não é

(CHARTIER, 2009, p. 24, grifo do autor).

Deste modo, o “real”, representado ficcional ou historicamente, condiciona uma

ponte entre esses dois mundos. Ademais, evidencia-se, sobretudo, a força de representação do

passado pela literatura, quando muitas obras literárias reconstroem o passado ficcionalmente,

às vezes com mais eficácia do que alguns textos historiográficos (CHARTIER, 2009).

Na visão de Roland Barthes o efeito de real fundamentado esteticamente no texto

literário, justifica-se: “[...] se não pela lógica da obra, pelo menos pelas leis da literatura: seu

‘sentido’ existe depende da conformidade, não ao modelo, mas às regras culturais da

representação.” (BARTHES, 1972, p. 40, grifo do autor).

Nesta acepção a categoria do ‘real’ emerge da forma estética em que o significado e

o referente são construídos textualmente na medida em que convergem para o verossímil,

obedecendo, portanto, às regras culturais de representação que regem os seus horizontes

interpretativos. Por conseguinte, quando as novelas de cavalaria construíam suas narrativas

intercalando história e ficção, como as que narram as aventuras de Carlos Magno e as de sua

tropa de elite, por exemplo, eram capazes de estreitar os limites entre o real e a fantasia.

Sendo assim, o efeito de real produzido por este gênero de literatura popular não era

restrito apenas ao momento da leitura, senão estendido a muitas das ações práticas na vida

cotidiana dos leitores quinhentistas. Afinal de contas, navegar rumo ao desconhecido exigia,

além de coragem, muita imaginação animando o espírito dos aventureiros, muitos dos quais se

identificavam com o próprio cavaleiro andante em tais empreitadas:

Com relação a tais publicações, Cascudo (1953, p. 16) advoga que: “Não é possível

que fossem desconhecidas e desamadas na Bahia e Pernambuco como eram adoradas por toda

Espanha e Portugal, fonte da mesma gente.” No entanto, convém salientar a propagação

dessas histórias pela tradição oral, na qual algumas pessoas letradas leiam esses textos em voz

alta, uma vez que nesta região brasileira havia um alto índice de analfabetismo. Assim,

coexistia a tradição escrita junto com a tradição oral. Algo semelhante acontecia na Europa

medieval no que diz respeito à propagação da literatura produzida na Idade Média.

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Zumthor (1993) destaca níveis distintos de oralidade definidos de acordo com o

contato que a sociedade tinha com a escritura. Dessa forma definiu três subdivisões da

oralidade: primária e imediata, oralidade mista e oralidade segunda. Na oralidade primária,

não há qualquer contato com a escrita. No entanto, com relação às duas outras modalidades,

estas representam “[...] quase a totalidade da poesia medieval” (ZUMTHOR, 1993, p. 18) e

apresentam como denominador comum a coexistência com a escritura:

Invertendo o ponto de vista, dir-se-ia que a oralidade mista procede da existência de

uma cultura ‘escrita’ (no sentido de ‘possuidora de uma escritura’); e a oralidade

segunda, de uma cultura ‘letrada’ (na qual toda expressão é marcada mais ou menos

pela presença da escrita). (ZUMTHOR, 1993, p. 18, grifos do autor).

Assim sendo, podemos inferir que a oralidade mista, de que nos fala Paul Zumthor,

muito difundida na Idade Média, chegou às terras coloniais. Aliás, após a colonização, esse

fenômeno de transmissão oral ajudou a aclimatizar na cultura nativa histórias da Europa

medieval. Dessa forma, literatura e poesia oral aparecem associadas.

Sem grande rigor, equacionamos um problema acerca da fronteira movediça que há

entre literatura e poesia oral, como bem observou Jakobson (2009, p. 59), ao afirmar que “A

literatura e a poesia oral podem, é claro, ter destinos intimamente ligados, sua influência

recíproca pode ter sido cotidiana e intensa [...]”. Neste contexto, elas aparecem coexistindo

simultaneamente. Como exemplo desse modelo de transmissão oral, escolhemos os versos do

poeta popular João Martins de Athayde:

Leitores matai o tempo

que é boa a distração

saber como uma princeza

estava na prisão

e Roldão pode roubá-la

escondido no leão.

Após que o Rei Carlos Magno

venceu a grande campanha

fez a igreja de Santiago

padroeiro da Espanha

e a da Nossa Senhora

em Aquisgran na Alemanha (ATHAYDE, 1960, p. 1, grifo nosso).

Curiosamente, mesmo sendo um texto escrito, há altos índices de oralidade, a

começar pelo primeiro verso, destacado em negrito, no qual através do recurso performático,

a “voz poética” conecta-se ao leitor/ouvinte. Tal fato atesta também que, os hábitos de leitores

pautados numa performance, de oralidade mista ou segunda, ao serem declamados em voz

alta, com versos rimados para facilitar a memorização. Esses recursos performáticos

corroboraram para que essas histórias permanecessem atualizadas na memória coletiva dos

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povos ibéricos e, por conseguinte, chegasse ao Novo Mundo. Estas similarmente continuaram

a ser propagadas em terras coloniais através de fenômenos performáticos da voz.

Peloso (1996) relata que no transcurso da viagem transatlântica quando a monotonia

acometia aos nautas, havia momentos de leitura solitária ou coletiva. Era comum organizar

círculos e alguém se encarregava de ler em voz alta, afinal “[...] quase toda literatura europeia

da Idade Média e do Renascimento foram compostas [sic] para serem lidas em voz alta.”

(OLIVEIRA, 2012, p. 108).

Portanto, como corolário dessas práticas leitoras do Velho Mundo, o Brasil colônia

herdou um legado literário do medievo tanto na forma quanto no conteúdo dessas produções:

“Desta maneira, muitos textos, prevalentemente de literatura popular, chegaram ao Novo

Mundo com as bagagens do colono, constituindo as primeiras bibliotecas à disposição de

todos.” (PELOSO, 1996, p. 48).

2.2 Uma “longa Idade Média” legitima os substratos medievais na literatura do

Nordeste brasileiro

Conforme discutimos até aqui, alguns elementos do medievo tiveram grande

importância para formação da literatura de folhetos brasileira, tal como formaram parte de

rico manancial de criação artística que, somados à realidade nordestina, constituíram

imaginários híbridos e fascinantes. Um dos exemplos desses imaginários híbridos é a figura

do cangaceiro. Este personagem cruel e sanguinário foi retratado pela literatura de folhetos

brasileira aos moldes do cavaleiro andante.

De tal modo que os poetas populares resgataram um imaginário do cavaleiro

medieval bem primitivo, sem ser romantizado, ou seja, “[...] a cavalaria pesadamente armada

e os valores guerreiros que lhe eram associados: o culto do cavalo e da espada, veneração da

força física, da coragem e do menosprezo da morte etc.” (FLORI, 2005, p. 11).

A veneração à força física, à coragem e ao desprezo pela morte, levados às últimas

consequências, geravam uma exaltação da violência, capaz de suplantar as proporções

desumanas dos atos de barbárie mais sanguinários, que tanto os cavaleiros medievais quanto

os cangaceiros nordestinos foram capazes de cometer.

Partindo dessa perspectiva, não seria impossível fazer uma ilação de imagens

arquetípicas de valentes guerreiros conectando o cangaceiro aos cavalheiros andantes, sob um

dos elementos mais expressivos: destemor associado ao “menosprezo da morte”, de que nos

fala Flori (2005).

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Selecionamos duas sextilhas nas quais tais características são usadas pelo poeta

popular Apolônio Alves dos Santos para descrever um dos mais famosos cangaceiros,

Lampião e os consortes:

Desde aí que Lampião

entrou para o cangaço

por ser muito destemido

no pau na bala e no aço

e com relação a luta

ele não torcia o braço.

Até quem pode alia-se

com um grupo de bandidos

homens muitos corajosos

cangaceiros destemidos

além de vingar o crime

dos Negreiros atrevidos (SANTOS, [19--]a, p. 2, grifo nosso).

O poeta descreve tanto Lampião e quanto seus companheiros do cangaço9 como

destemidos e valentes pelejadores, destacando tais posturas a partir dos enfrentamentos e das

lutas travadas por estes bandidos, em qualquer situação de combate, tal como a descrita no

verso: “no pau na bala e no aço” (SANTOS, [19--]a, p. 2).

Com isso, demonstra-se que eles não se abatem e pelejam bravamente em qualquer

situação de luta. Além do mais, estavam sempre reunidos em bandos e envoltos em vários

confrontos, pondo à prova a valentia do cangaceiro, tal qual a do cavaleiro andante. De modo

que cada um destes bandidos sertanejos, sanguinários e perversos, ganham o status de herói

popular por mérito de sua valentia.

Essa valentia exacerbada denota indiretamente um desprezo em relação à morte.

Ainda no mesmo folheto há uma sextilha que retrata essa indiferença ante a morte, mais

explicitamente: “O gaio cego estava/ muito ferido no chão/ mas ainda estava vivo/ com um

revólver na mão/ ainda atirou em dois/ fez bonita ação” (SANTOS, [19--]a, p. 22).

Logo, com base nesse verso, somos capazes de demonstrar essa admiração do

sertanejo pelo destemor do cangaceiro ante seu desprezo pela morte, a par de qualquer

violência que tais atos possam acarretar. Nesse caso, não é difícil observar o amálgama de

9 Conforme Tavares (2013, p. 14), o cangaço é um dos fenômenos sociais mais significativos da história

brasileira contemporânea, trata-se de “[...] um movimento característico do banditismo do Nordeste brasileiro.

Seu período de maior força é situado em um recorte temporal de cerca de setenta anos: de 1870 a 1940. Recebe

a denominação de ciclo do cangaço.” Segundo o autor não há um consenso entre os cangaceirólogos sobre o

tema, a definição muitas vezes depende do ponto de vista do pesquisador. Este tema pode ser analisado sob

duas temáticas distintas; de um lado, os que contam a história do cangaço a partir de uma perspectiva dos que

lutavam contra os temíveis cangaceiros, daí estes eram considerados como bandidos sanguinários e desumanos.

Outros, a partir do ponto de vista dos próprios cangaceiros, tidos como homens injustiçados pela sociedade

nordestina.

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alguns elementos cavaleirescos medievais presentes no imaginário sertanejo, recriados, por

sua vez, como elementos híbridos imiscuídos à cultura popular nordestina, no ciclo do

cangaço por exemplo. À vista disso, diante do que expusemos até então, como explicar a

presença de alguns substratos medievais em solo brasileiro no século XX?

De um modo geral, a nossa análise terá como ponto de partida um Portugal medieval.

Os portugueses estiveram à frente de importantes mudanças iniciadas na Europa a partir da

segunda metade do século XV e durante todo o século XVI. Culturalmente, essas mudanças

foram decisivas para o Renascimento Cultural e, por conseguinte, possibilitaram as Grandes

Descobertas. No entanto, todas essas transformações geraram uma situação paradoxal à

medida que o processo cultural alcançado pela Renascença, não suplantou a influência

religiosa do Cristianismo em Portugal. Esta circunstância reflete

[...] uma época contraditória. Ao mesmo tempo que enfrenta os maiores desafios

científicos e as aventuras marítimas, realiza a libertação do indivíduo e desenvolve o

culto à beleza, compraz-se também no mais puro obscurantismo, evidentes nos autos

de fé, na escravidão dos negros, na prática dos alquimistas e dos astrólogos e no

maior empobrecimento dos pobres. Significa a ascensão da burguesia, possuidora de

bens, que aspira, entretanto, à nobreza, razão pela qual, em seu aspecto positivo,

vem manifestar o gosto aristocrático pela cultura e pelas artes. Materialista e sensual

não pretende, contudo, uma ruptura com o Cristianismo. (MOISÉS, 1993, p. 14,

grifo nosso).

Conforme tal perspectiva, no Renascimento cultural a razão dotava o homem de uma

maior autonomia sob suas atitudes, fato que possibilitou a superação de alguns mitos e, por

conseguinte, foram decisivos para lograrem as viagens marítimas: o gosto por aventuras e o

desejo de riquezas ao intuito desses nautas de propagar à fé católica (MOISÉS, 1993). Isso

quer dizer que em um dos mais representativos pilares da Idade Média reverberava os ideais

do Cristianismo, que não tinham caído por terra com os avanços do Renascimento. Esses

ideais religiosos estavam sedimentados em níveis profundos da mentalidade dos indivíduos no

medievo e, sobretudo, na Península Ibérica.

As transformações promovidas pela revolução cultural da Renascença não alterou a

mentalidade dos nossos colonizadores imediatamente. Assim que, podemos inferir que ainda

no século XVI muitos substratos medievais subsistiam em solo português. Por conseguinte,

foram transplantados à suas colônias. Por tudo isso, como pensar os limites temporais da

Idade Média e sob quais parâmetros?

Com relação ao tema da periodização histórica da Idade Média, Almeida (2010)

explica que foi no Humanismo italiano que surgiram os primeiros intentos de categorização

do tempo no medievo. Francesco Petrarca referiu-se a esse período como medium tempus, ou

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“época intermediária”. Esta referência depreciativa espalhou-se pela Europa até o século

XVII, reduzindo o período medieval a uma noção de completa ignorância. A partir de então, a

Idade Média passou a ser conhecida como “Período das Trevas” (LE GOFF, 2011b).

No entanto, a partir do século XIX como advento do Romantismo, houve um

interesse crescente pelas raízes nacionais e o resgate das tradições populares calcadas numa

visão folclórica da Idade Média, mitigando, por sua vez, tal conceito depreciativo. Machado

(2013) esclarece que os românticos tinham um verdadeiro fascínio pelo medievo e viam na

sociedade medieval um ideal de unidade entre vida e poesia, indivíduo e comunidade,

religião, política e arte. Esta unidade já não mais fazia parte da sociedade e da cultura

secularizada e cindida da Europa do final do século XVIII e início do século XIX.

A referência depreciativa vai sendo modificada, e, a datar do século XX, através das

inovações trazidas pela História Social, lideradas principalmente pelo historiador Marc Bloch,

abre-se um diálogo entre a história e as outras áreas das ciências humanas, dentre as quais

destacamos a etnologia, a sociologia, a antropologia e, sobretudo, a literatura. Sob esta nova

perspectiva teórica, houve uma revisão do ponto de vista crítico e metodológico, questionando

a periodização da história tradicional vigente, principalmente no tocante à Idade Média

(ALMEIDA, 2010).

Segundo Ferreira (2000) a fundação da Revista Annales, criada em 1929 na França,

deu impulso a um movimento de transformação no campo da história (BURKE, 1992). Em

nome de uma história total, a nova geração de historiadores, conhecida como École des

Annales, refletiu sobre a hegemonia da história política, sustentando que as estruturas

duráveis são mais reais. Na visão deste grupo, “Os fenômenos inscritos em longa duração são

mais significativos do que os de fraca amplitude.” (FERREIRA, 2000, p. 115).

Deste modo, os Annalistes observaram que o modo de ver e sentir das pessoas

mudava muito lentamente, constatando que a tecnologia do Mercantilismo e o

desenvolvimento da Idade Moderna não mudaram as crenças, os hábitos e a sensibilidade

automaticamente. Crenças e hábitos comportamentais são formados a partir de estruturas

mentais que se encontram em níveis psicológicos mais profundos, por isso que a ação do

tempo é mais difícil de desgastar.

Com base nessa perspectiva, a duração do tempo passa a ser analisada sob uma

perspectiva mais lenta e estática, no qual “Certas estruturas são dotadas de vida longa que se

convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história,

entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer.” (BRAUDEL, 1990, p. 14).

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Burke (1992, p. 33) comenta que “A história se movimenta a um ritmo mais lento do

que os eventos. As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os

contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas.”

Em resumo, os ritmos diferentes de tempo são considerados, de modo que “Cada

‘atualidade’ reúne movimentos de origem e de ritmo diferente: o tempo de hoje, data

simultaneamente de ontem, de anteontem, de outrora.” (BRAUDEL, 1990, p. 18, grifo do

autor). Desse modo:

[...] não se trata de um tempo muito longo, mas de um ritmo temporal lentíssimo; é o

tempo de mudança lentíssimo das profundezas das sociedades históricas, tanto em

sua evolução econômica como em sua evolução mental, considerando-se que as

mentalidades são em geral resistentes à mudança, são conservadoras, ainda que haja

mentalidades inovadoras. (LE GOFF, 2011b, p. 11).

Com base no respectivo conceito de “longa duração”, o autor lança luz sobre a

periodização historiográfica da Idade Média, redefinindo-a. A partir de então, este período

não estaria mais condicionando apenas os dez séculos instituídos pela historiografia canônica.

Doravante, passou-se a considerar também as mentalidades, por entender que estas não

acompanhavam sincronicamente as mudanças cronológicas dos períodos, já que as alterações

mentais são mais lentas do que as econômicas (LE GOFF, 2011b).

Conforme Le Goff (2011b), não houve grandes alterações sociais e econômicas

modificando de forma abrupta a vida das pessoas no século XV. Afinal, ainda no século XVI

a influência da Igreja era muito patente, a tradição feudal subsistia com abrangência, como

também o sistema monárquico. Esses, dentre outros elementos, corroboravam para que a

Idade Média e suas estruturas características perdurassem para além do período estabelecido

pela história canônica:

Acredito, portanto, numa longa Idade Média, porque não vejo a ruptura do

Renascimento. A Idade Média conheceu diversos renascimentos, o carolíngio do

século IX, mas principalmente o renascimento do século XII, e ainda os dos séculos

XV e XVI se inscrevem nesse modelo. Sem dúvidas, o nascimento das ciências

modernas nos séculos XVII [...] e os esforços dos filósofos das Luzes no século

XVIII anunciam uma nova era. Mas é preciso esperar o fim do século XVIII para

que a ruptura se produza: a revolução industrial na Inglaterra, depois a Revolução

Francesa nos domínios político, social e mental trancam com chave o fim do período

medieval. (LE GOFF, 2011b, p. 14).

Nessa longa citação, o autor suplanta o tempo lento das mentalidades de Braudel,

consolidando a sua concepção de uma “longa Idade Média”. Ele insistiu no fato de que o

Renascimento do século XVI representou mais um dos renascimentos pelos quais a Idade

Média passou desde o Renascimento Carolíngio.

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Em síntese, o historiador medievalista francês defende, portanto, a extensão da Idade

Média para além do Renascimento do século XVI, e conclui: “Entretanto, como a história

conserva sempre uma parte de continuidade, fragmentos de Idade Média sobrevivem durante

o século XIX.” (LE GOFF, 2011b, p. 15). Tal conceito é um ponto de partida útil à nossa

pesquisa, mas passível de críticas.

O conceito de “longa Idade Média” (LE GOFF, 2011b) pode ser criticado de modo

bastante paradoxal, por ser ao mesmo tempo amplo e estreito demais. A sua amplitude reside

no fato de estender a Idade Média a outros períodos em que já se operavam mudanças nas

sociedades europeias, advindas, sobretudo, das transformações tecnológicas da Renascença.

Estas coexistiam com hábitos sociais ainda remanescentes do medievo, conforme acontecia

em Portugal, por exemplo. Dessa maneira, é impossível afirmar que tais acontecimentos

históricos não impactaram a sociedade europeia de alguma forma, uma vez que promoveram

mudanças de ordem estrutural e comportamental, mesmo que lentamente.

Savy (2014) questiona o prolongamento da Idade Média defendido por Jacques Le

Goff na medida em que o historiador francês fundamenta o seu pensamento apenas em

fenômenos históricos desconsiderando a periodização e as mudanças de épocas. Assim sendo,

“A tese de uma longa Idade Média é certamente discutível. O peso de fenômenos tão pesados

e complexos como esses dão suporte à afirmação de a não-mudança de período é algo

impossível.” 10 (SAVY, 2014, p. 3, tradução nossa).

O autor chama atenção para a necessidade de fixar períodos como ferramenta

essencial no trabalho do historiador, algo que não fica bem definido quando se estende a

Idade Média e, por conseguinte, sobrepuja-se o Renascimento. Isto, em sua opinião, geraria

uma série de discrepâncias histográficas, impedindo uma visão sistemática da história, e

impossibilitando assim, uma análise objetiva da relação presente e passado. No entanto, dadas

às dimensões do assunto historiográfico, sem entrarmos no mérito dessa discussão,

enfatizamos que as ideias de Le Goff sobre o prolongamento da Idade Média são capazes de

explicar a presença de substratos medievais, principalmente nas colônias ibéricas.

Baschet (2006) analisa os efeitos da colonização espanhola no México, a partir da

estruturação/dominação da Igreja, à luz do conceito de uma “longa Idade Média”. Ele

assegura que muitas das estruturas medievais permaneceram adaptadas à realidade das

10No original: “La thèse du long Moyen Âge est bien sûr discutable. La pesée de phénomènes aussi lourds et

complexes que ceux qui permettent d’affirmer que l’on change d’époque est chose impossible”. Todas as

traduções apresentadas nesse trabalho são de responsabilidade da pesquisadora.

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colônias, principalmente no âmbito religioso. Os Descobrimentos ocorreram no fim da

Reconquista espanhola, e, portanto, foram imiscuídos aos interesses materiais dos religiosos.

Segundo o referido autor, no momento da colonização a Igreja buscava angariar mais

fiéis. Por isso, ele enfatiza que a Conquista foi, grosso modo, uma continuidade da

Reconquista. Isso colaborou para que um dos elementos mais representativos do medievo, a

Igreja Romana Feudal, fincasse base no sistema organizacional das colônias, haja vista que

“[...] teríamos dificuldades de encontrar muitas diferenças com a Igreja Romana Medieval.”

(BASCHET, 2006, p. 30).

Com efeito, manteve-se a mesma função regente não somente no âmbito religioso,

senão foi estendida ao moral, tal como ao cultural. Logo, em se tratando da matéria da França,

este ponto deve ser posto em relevo, já que a associação ao idealismo cristão é uma

característica forte do imaginário carolíngio recriado em solo brasileiro, como bem ilustram

os versos de Athayde (1976):

Eram doze cavalheiros

Homens muito valorosos

Destemidos e animados

Entre todos os guerreiros

Como bem fosse Oliveiros

Um dos pares de fiança

Que sua perseverança

Venceu todos os infiéis

Eram uns leões cruéis

Os doze pares de França.

Todos eram conhecidos

pelos leões da Igreja

pois nunca foram a peleja

que nela fossem vencidos

eram por turcos temidos

pela Igreja estimados

porque quando estavam armados

suas espadas luziam

e os inimigos diziam

- esses são endiabrados! (ATHAYDE, 1976, p. 1, grifo nosso).

Assim, como Jesus Cristo tinha doze apóstolos, Carlos Magno tinha doze guerreiros

em sua tropa de elite. A hoste carolíngia era implacável na luta contra os turcos infiéis.

Segundo o texto, estes doze cavaleiros eram conhecidos como os “leões da Igreja”, e por essa

mesma instituição eram “estimados”.

Todos esses paradoxos justificam-se pelos ideais da Cristandade medieval,

relacionados aos elementos da cavalaria andante e ratificados no Novo Mundo com a função

de catequese. Por tudo isso e, além do mais, questiona-se a periodização tradicional, na

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medida em que se encontram alguns elementos medievais ecoando em produções literárias em

pleno século XX. No entanto, é pertinente ressaltar que tais modelos transplantados às

colônias passaram por “ajustes”, a saber, processos adaptativos para que fossem operacionais

em outro contexto.

2.3 Influências medievais nos temas socioculturais nordestinos que atuam como

elementos de criação literária

Outra questão importante com relação à periodização canônica trata-se da forma

abrangente e genérica com a qual a historiografia tradicional demarca os períodos, o que, na

opinião de Vassallo (1993, p. 15): “Indicam um processo em curso e, por motivos

metodológicos ainda que discutíveis, fixam momentos pontuais, que podem ser questionados

quando se aborda uma realidade específica.” No caso em destaque, o Descobrimento das

Américas e a sua ligação a muitos aspectos socioculturais do medievo europeu.

Isto corrobora a nossa hipótese de que à época da colonização do Brasil, apesar de

alguns estudiosos afirmarem que a Europa se encontrava no Renascimento, os colonizadores

ibéricos portugueses, assim como os espanhóis, ainda estavam envoltos numa atmosfera

medieval, justificada pelas estruturas socioculturais implantadas no Novo Mundo.

Não há como sermos indiferentes às contribuições literárias que eles legaram às suas

colônias, sobretudo porque muitos imaginários medievais estavam presentes direta ou

indiretamente nas produções artísticas, fossem elas impressas ou transmitidas oralmente, sob

o fenômeno da oralidade mista e por meio de uma performance (ZUMTHOR, 1993)

reproduzida na América Latina.

Sendo assim, o Brasil já inicia o seu processo de colonização com a colaboração de

uma civilização possuidora de uma ampla tradição. Esta contribuiu na formação da nação

brasileira tanto nos aspectos sócio-político-econômicos quanto culturais. Muitas dessas

características foram recriadas no Nordeste brasileiro.

Nesse espaço geográfico e, sob tais condicionamentos, formaram-se duas

civilizações. Uma civilização desenvolveu-se no litoral e era dedicada à produção do açúcar; e

a outra, voltou-se à criação de gado. Esta ficou conhecida como a “civilização do couro”

(QUEIROZ, 1992), estabelecida no sertão, região agreste.

Contudo, muitas características do medievo não ficaram restritas à mencionada

região. Estas se estenderam a todo Brasil, mas em nosso estudo particularizamos o Nordeste

por ser o local onde aflora a literatura de folhetos.

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A discussão histórica que desenvolveremos a seguir tem duas funções: primeiro,

discutir sobre os elementos medievais que repercutiram nas estruturas socioculturais;

segundo, situar o momento em que aparece a literatura de folhetos, conquanto texto e

contexto apareçam numa relação de interpenetração na nossa análise interpretativa

(CANDIDO, 2006).

Dentre os elementos portugueses transplantados à colônia brasileira, Vassallo (1993)

destaca os mais típicos: o cosmopolitismo e arcaísmo. Segundo a autora, este se originou da

dependência que Portugal rendia à Espanha, acentuada pela enorme influência política do

Cristianismo, cujo foco era a resistência e luta contra os mouros; definidas pelas injunções

históricas e políticas que conformaram a sociedade portuguesa, destacando as influências

judias, francesas e árabes.

No tocante aos árabes no Brasil, temos um tema um pouco conturbado, uma vez que

eles não figuram registrados como emigrantes legais nos documentos oficiais que datam do

início da colonização brasileira (SOLER, 1995). Afinal, quando os portugueses vieram para o

Brasil, eles tinham sido expulsos da região de Algarve da empreitada das Grandes

Navegações (CASCUDO, 1953).

Em contrapartida, os mouros permaneceram na Espanha até o século XV, após a

queda do Reino de Granada. Portanto, segundo Cascudo (2001, p. 16): “O mouro viajou para

o Brasil na memória do colonizador. E ficou. Até hoje sentimos sua presença na cultura

popular brasileira.”

Este tema também é matéria literária nos folhetos brasileiros, tal qual o que aparece

no folheto Aladim e a Princesa de Bagdá do poeta João José da Silva:

Referente a poesia

ocupo a Deus Jeová

prá dar-me luz a história

que versarei desde já

de Aladim e a princesa

herdeira de Bagdá

Nesse tempo em Bagdá

Ded era um Sultão

tinha uma filha única

um anjo de estimação

mulher nenhuma imitava

a ela na perfeição (SILVA, J.J.,[19--]d, p. 1).

Os elementos remontados ao universo árabe presentes no sertão nordestino fazem

parte da memória coletiva dos povos ibéricos. Isto se deve aos 800 anos de domínio árabe na

Península Ibérica, uma vez que:

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[...] as influências árabes não se diluíram nas terras ibéricas a ponto de estarem já

deglutidas e descaracterizadas entre os portugueses que colonizaram o Brasil. Ao

contrário, elas predominavam, com nítidos perfis, nos modos e conceito de vida dos

lusos-colonizadores [sic], sendo precisamente no sertão brasileiro que vieram a ser

preservadas vivas e inteiras, incontaminadas pelos modismos evolutivos que, no

Reino, foram-nas encostando em planos cada vez mais recuados. (SOLER, 1995, p.

15).

Meyer (1995) destaca neste contexto a presença dos árabes tanto nas festas quanto na

literatura popular brasileira, figurando como uma das sobrevivências do elemento português

repassado às terras coloniais. De acordo com a autora, a matéria da França é uma importante

fonte de inspiração tanto nas festas populares quanto na literatura. Nestas modalidades de arte

popular, são retratados grandes combates empreendidos pela hoste carolíngia contra os

mouros.

Quanto aos festejos oficiais e folguedos encontram-se as Mouriscadas no século

XVIII, as Cavalhadas e as Danças Dramáticas. Estas são divididas em duas modalidades:

Cheganças e Congadas. As Mouriscadas se popularizaram no século XVIII, em Minas Gerais,

Bahia e no Rio de Janeiro, as Cavalhadas em Pernambuco, bem como as Cheganças e

Congadas.

Estas regiões receberam uma farta herança dos elementos ibéricos no período

colonial, devido a questões políticas e econômicas. Afinal, a Bahia foi a primeira capital do

país, o Rio de Janeiro foi a sede administrativa da colônia, enquanto Minas Gerais vivia um

momento de civilização urbana, influenciada pelo barroco mineiro.

O fato de tecermos tais considerações sobre os mouros justifica-se, sobretudo, pelo

impacto que os enfrentamentos entre estes povos e os europeus geraram na história do

Ocidente. Tais confrontos com os seguidores do profeta Maomé marcaram a memória coletiva

dos povos ibéricos, de tal modo que foram capazes de reverberar tão longe e muito tempo

depois em terras coloniais.

Com relação à tradição francesa, principalmente a provençal, tudo isso também nos

chega indiretamente pela influência galaico-portuguesa (CASCUDO, 2001). Uma de suas

maiores contribuições foi, sem dúvidas, a figura de Roland, um dos pares de França mais

populares. Na tradição brasileira, ele passou a ser chamado de Roldão.

Este personagem carismático é uma das grandes referências do ciclo carolíngio que,

até meados do século XX, continuava “[...] viva na poesia cantada no sertão do Nordeste. Não

ocorre o mesmo na França, onde viveu, nem na Espanha, onde sucumbiu em agosto de 778.”

(CASCUDO, 2001, p. 14). Assim como se lê nos versos: “Tudo ali ficou calado/ não falou

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um cavalheiro/ Roldão era companheiro/ dentre todos o mais amado/ demais era respeitado/

pela nobreza e ação/ tinha um leal coração/ para seus companheiros/ e mesmo dos

cavalheiros/ era ele capitão” (ATHAYDE, 1976, p. 6).

Por seu turno, as contribuições francesas e árabes, em específico, repercutiram na

literatura portuguesa e, por conseguinte, na literatura popular nordestina. Nesta se originou os

seis folhetos fonte do ciclo carolíngio: A batalha de Oliveiros com Ferrabraz; A prisão de

Oliveiros; O cavaleiro Roldão, Roldão no leão de ouro; A Morte dos doze pares de França e

A história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França.

Estas histórias refletem alguns elementos anacrônicos mais específicos do

cosmopolitismo português no Brasil colônia. Entretanto, Vassallo (1993) destaca alguns

elementos novos no ambiente brasileiro, que já ensaiavam um processo de distanciamento da

realidade portuguesa, ao mesmo tempo em que conferia à realidade brasileira algo de

particularidade.

Quanto às características mais acentuadas do arcaísmo português transplantando ao

Brasil, Vassallo (1993) destaca o patrimonialismo. Conforme a autora, este conceito trata-se

de uma estrutura político-administrativa à moda feudal, na qual uma extensão territorial

estava sob o domínio de um senhor plenipotenciário, isto é, munido de plenos poderes.

Como resultado desse sistema, havia um amplo entorno sociocultural orbitando ao

redor dele até meados do século XIX. No que tangencia as características de alguns

rudimentos feudais recriados em solo brasileiros, destacam-se aqueles que mais se afinaram

com as características socioculturais locais.

De forma mais ampla, a autora centraliza a questão da terra, dando poder àqueles que

a detinham, enquanto a grande maioria era submetida ao jugo dos senhores donos das

propriedades. Portanto, destacam-se, desse modo, os conflitos ligados às disputas pela posse e

proteção da terra. Por outro lado, o isolamento das grandes propriedades não é visto pela

autora como algo estático, pelo contrário, ela o vê com certo dinamismo, na medida em que se

reelabora e se adapta os traços socioculturais e econômicos herdados da metrópole. Assim

que:

Parece-nos ter ficado evidenciado que a sociedade canavieira nordestina, primeiro

foco próspero de colonização no Brasil, manteve traços peculiares com a sociedade

portuguesa, tais como o feudalismo/patrimonialismo, arcaísmo, o cosmopolitismo,

apesar das transposições. Por isto mesmo a região guardou características medievais,

reforçadas pelo isolamento quanto ao resto do país em que se manteve durante

séculos, associados à estabilidade do sistema instaurado, permitindo reelaboração

das matrizes herdadas [...] (VASSALLO, 1993, p. 63, grifo nosso).

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De acordo com a autora, é expressivo que, embora tenhamos recebido uma profusa

herança cultural de Portugal, este cabedal não foi apenas transplantado tal e qual; mais do que

isso, ele passou por um processo de reelaboração, pois tal processo tinha como função se

adaptar à nova configuração social da colônia.

É certo que a própria condição geográfica da região possibilitou a conservação de

alguns modelos arcaicos do medievo e, em decorrência do isolamento destes, assinala

Siqueira (2007a, p. 13) que “[...] propiciaram a identificação do viver e do sentir sertanejo, de

seu imaginário com imaginário medieval.” Contudo, de acordo com a autora, a identificação

dos sertanejos com o imaginário medieval, apesar de marcar profundamente as suas atitudes

mentais, não os impedia de desenvolverem a sua própria autonomia.

Por esse motivo, é importante enfatizar que, mesmo mantendo um vínculo muito

forte com o legado do colonizador, a cultura que despontava em solo brasileiro já apresentava

características autóctones, com as quais começou a demarcar as suas particularidades,

principalmente quando se distanciava do litoral.

Destacamos a “civilização do couro” (QUEIROZ, 1992), que surgiu a partir da

expansão colonizadora, saindo das terras litorâneas e dirigindo-se a uma região agreste, no

interior, de clima rigoroso e propício a grandes estiagens, conhecida como sertão. Desse

modo, a pecuária favoreceu o aparecimento de traços específicos da cultura colonial. Esta

nova conjuntura proporcionou àqueles que lidavam com o gado:

Os sentimentos de independência, autonomia e livre arbítrio, pois o distanciamento

do patrão e a ausência de um comando diário, dirigindo as atividades, permitiam que

cada um atuasse de maneira própria, senhor de si e de seu trabalho. Acrescenta-se

que no início da expansão, as dificuldades advindas da ocupação de novos territórios

selecionaram um homem particularmente rude e tenaz: a luta contra o índio, os

animais- principalmente onças- e a natureza árida exigia que os homens fossem

resistentes e violentos. Somam-se a este fator as grandes distâncias e dificuldades de

acesso que ocasionavam a ausência da administração pública e favorecia o exercício

da justiça pessoal; como resultado o poder ou força pautando as relações sociais.

(SIQUEIRA, 2011, p. 124).

Tais condicionamentos climáticos e sociais propiciaram um ambiente moldado pela

violência, instigando seus habitantes a desenvolverem atitudes rudes e bárbaras, pois

precisavam ser fortes para sobreviverem a situações tão adversas, como pontua Galvão (1972,

p. 21): “A violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos

em todos os níveis.” Nessa situação, a violência passa a ser, historicamente, uma das marcas

registradas da sociedade sertaneja.

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Os versos do poeta popular José Costa Leite, retirados do folheto Encontro de

Lampião com Antônio Silvino, nos quais temos uma descrição crua do ambiente sertanejo,

marcado pela violência que subordinou as ações desses dois lendários cangaceiros à barbárie e

à crueldade:

Vila Bela é situada

no sertão de Pernambuco

onde nasceu Lampião

feroz, gênio do maluco

porém o valente morre

antes de ficar caduco.

Antônio Silvino era

homem bom e justiceiro

porém mataram o seu pai

um distinto fazendeiro

então Silvino abraçou

a vida de cangaceiro.

Silvino enquanto rapaz

tinha um bom coração

mas com a morte do pai

ficou igual um leão

levou o caso à polícia

e não houve punição.

No sertão todos viviam

de bacamarte na mão

só o que fosse valente

tinha direito a razão

porém o que fosse mole

apanhava de facão.

O crime, o roubo a morte

era a lei que havia

só se falava em bandido

e ninguém não resistia

de um lado a bala zoava

do outro o sangue corria (LEITE, [19--], p. 2).

A partir dos versos coligidos, percebe-se a violência como uma constante nessa

região brasileira, de modo que conseguia corromper aqueles homens também honrados como

Antônio Silvino, antes de entrar para o cangaço. Os sertanejos se solidarizam com o drama

vivido por este indivíduo que, a partir do assassinato do pai e diante da impossibilidade de se

fazer justiça mediante os meios legais, matou os assassinos por sua própria conta. Dessa

forma entrou para o mundo do cangaço, a exemplo do que aconteceu a Lampião após sua

família ter sofrido uma chacina.

Segundo Galvão (1972, p. 43), a ausência de comando e a negligência da

administração pública fortaleciam as relações pessoais, de modo que “[...] sendo uma aliança

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entre senhores, os braços armados não se organizavam uns com os outros; a relação deles é

apenas com o seu senhor.” Esses faziam de suas propriedades “pequenos feudos” e, para a sua

proteção, contavam com uma milícia própria. Consequentemente, a violência imperava nas

disputas pelas terras e, nesse ínterim, o povo mais humilde ficava à mercê de sua própria

sorte.

Assim, um sistema anárquico favorecia a prática da justiça pessoal, acarretando

ações descomedidas de crimes hediondos, em nome da honra e da coragem. Estas eram

motivadas, sobretudo, pelo desejo de vingança pessoal. Por isso, os sertanejos se

solidarizavam com os personagens do cangaço e elevavam tais bandoleiros ao estatus de

justiceiros.

Na opinião de Albuquerque Júnior (1996, p. 220), o primeiro assassinato seria para o

cangaceiro “[...] o elo inicial da cadeia maldita que se acrescentará até o fim de sua vida.”

Desse modo, observamos como os valores e atitudes de Antônio Silvino foram corrompidos,

mediante a violência em que estava submetido o entorno social da qual fazia parte e de como

cangaço foi para ele um caminho sem volta:

Silvino voltou a casa

e jurou tomar vingança

fez enterro do pai

chorando como criança

e da polícia punir

perdeu logo a esperança.

Arranjou um bacamarte

e matou primeiramente

o que matara seu pai

e ficou de sangue quente

daquele dia por diante

começou a matar gente.

Silvino pela polícia

viu-se logo perseguido

abandonou a fazenda

porque se achou perdido

e foi assim que Silvino

se transformou em bandido (LEITE, [19--], p. 3).

Concernente à presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural,

criou-se uma relação de dependência bilateral entre os fazendeiros e os grupos armados, o

que, na opinião de Vassallo (1993, p. 61), propiciou o surgimento do cangaço, já que “quando

a influência dos últimos aumenta muito, eles se tornam muito independentes; são os

cangaceiros, que desde 1850 fazem parte integrante da sociedade sertaneja”.

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Para Queiroz (1992) em uma sociedade como a nordestina, na qual a criação de gado

era uma grande referência cultural, incentivando torneios e insuflando o lado aventureiro dos

sertanejos, por conseguinte o idealismo pautado na cavalaria andante tendia a perdurar a

temática cavaleiresca e o ciclo carolíngio, herança ibérica que, segundo a autora:

Estas histórias se encontram registradas em folhetos populares, sendo lidas por

letrados e recitadas de memória por trovadores e jograis. Por todo o sertão circulam

romances de cavalaria procedentes de Portugal, escritos em versos pelos poetas

populares e impressos modestamente em tipografias locais. Além do mais, o único

livro que durante longos anos podia ser encontrado no mundo rural brasileiro era o

das façanhas de Carlos Magno e dos Dozes Pares. Oliveiros, vingando uma ofensa

feita ao Imperador; Guy de Borgonha apaixonado pela princesa árabe Flóripes,

Roldão lutando contra os mouros: eis aqui as histórias que sempre apaixonaram o

público sertanejo11. (QUEIROZ, 1992, p. 62-63, tradução nossa).

O sucesso alcançado pelas histórias do ciclo carolíngio no ambiente sertanejo,

segundo a autora, reside no fato de que “Estas lendas encontram a imagem ideal da ordem

social em que vivem, os grandes chefes das parentelas não são difíceis de imaginar como

outros tantos pequenos Carlos Magno, rodeados de seus pares.12” (QUEIROZ, 1992, p. 63,

tradução nossa).

Por isso, não é difícil entremear o cangaço e os seus protagonistas, elementos

genuínos da cultura brasileira, a Carlos Magno e seus Pares. Este amálgama, fruto da

hibridização cultural, tão bem expressa na literatura de folhetos. E como “rejunte” dos

imaginários híbridos pode se considerar o panorama de violência que marcou a sociedade

nordestina no final do século XIX e início do século XX.

Terra (1983) assinala que o cangaço se origina no Nordeste a partir das lutas dos

poderosos travadas pela disputa política ou de terras. Nos respectivos combates não somente

jagunços participavam, mas também podiam fazer parte da milícia aqueles homens que

rendiam favores aos fazendeiros, ou os que estavam nas pugnas apenas como prestadores de

serviços:

O fenômeno do chamado banditismo aparece assim inserido no cerne mesmo da

organização sócio-econômica-política. Não como um acidente ou uma exceção, mas

11 Original: Estas historias se encuentran registradas en folletos populares, siendo leídas por letrados y recitadas

de memoria por trovadores y cuenteros. Por todo el sertón circulan romances de caballerería procedentes de

Portugal, puestos en versos por los bardos populares e impresos modestamente en tipografías lugareñas.

Además de eso, el único libro que durante largos años podía encontrarse en el mundo rural brasileño era el de

las hazañas de Carlomagno y sus Doce Pares. Oliveiros, vengando una ofensa hecha al Emperador; Gui de

Borgoña apasionado por la princesa árabe Floripes, Roldán combatiendo contra los moros: he aquí las historias

que siempre apasionaron el público sertanejo. (QUEIROZ, 1992, p. 62-63). 12 Original: estas leyendas encuentran la imagen ideal orden social en que viven, y los grandes jefes de las

parentelas no están lejos de imaginarse como otros tantos pequeños Carlomagno, rodeados de sus pares.

(QUEIROZ, 1992, p. 63).

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em sua necessidade histórica, da qual decorrem igualmente outras práticas

costumeiras e tipos sociais [...] (GALVÃO, 1972, p. 22).

Alguns desses “tipos sociais” destacaram-se em meio à barbárie social nordestina:

Cabeleira, Antônio Silvino e Lampião. Entretanto, tais personagens não foram imortalizados

pela violência de seus atos, mas pela coragem e destemor de suas atitudes. O cangaço e os

seus protagonistas são elementos genuínos da cultura brasileira. Este panorama de violência e

os seus tipos marcaram a sociedade nordestina no final do século XIX e início do século XX.

Terra (1983) pontua que no final do século XIX, a instabilidade social na região foi

intensificada quando se introduziu o trabalho assalariado. Esta nova modalidade trabalhista

modificou costumes ao romper relações tradicionais de dominação, que perduravam desde o

princípio da colonização. Assim, em meio a esse clima de turbulência, surge a literatura de

folhetos do Nordeste “[...] escrita por homens pobres, atentos àquela realidade, que repercutirá

na temática dos folhetos.” (TERRA, 1983, p. 17).

Sob essa perspectiva, compreendemos que o ambiente hostil aguçou a sensibilidade

do poeta popular, conferindo-lhe força e solércia à matéria literária. A criatividade e poesia

foram o grande diferencial dos folhetos nordestinos produzidos por eles. Portanto, o

momento sócio-histórico-cultural descrito muito resumidamente, ressalta alguns aspectos

medievais, que perduraram no Nordeste do Brasil, retroalimentando culturalmente esta

sociedade violenta por um longo período.

Segundo Candido (2006, p. 13): “Texto e contexto assumem uma interpenetração

dialeticamente íntegra.” Ou seja, os elementos históricos e os estéticos confluem na matéria

literária. Logo, os aspectos extrínsecos, como, por exemplo, a contextura sociocultural em que

obras são criadas, pode ser relevante à crítica literária.

À vista disso, podemos analisar as marcas identitárias presentes na literatura de

folhetos nordestina justificadas pelo seu período de surgimento, bem como por sua produção

ser feita por homens pobres, porta-vozes de uma sociedade subjugada, denunciando os

conflitos sociais com propriedade de causa, como assinala Terra (1983).

Contudo, em nossa análise tentaremos evitar uma simplificação analítica de tipo

determinista, não é isso que pretendemos com as questões socioculturais discutidas, pois tal

acepção empobreceria o fenômeno estético, de natureza artística, presente na literatura de

folhetos do Nordeste brasileiro:

A arte social nos sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na

obra em graus diversos de sublimação, e produz sobre o indivíduo um efeito prático;

modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando neles os

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sentimentos dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe

do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores da arte.

(CANDIDO, 2006, p. 30).

Portanto, com base nos pressupostos do autor, inferimos que a ação dos fatores

sociais presente nas obras é capaz de produzir um efeito prático, em maior ou menor grau,

sobre os indivíduos. Tal efeito faz parte da própria natureza da obra, sendo, portanto, também

um elemento literário.

A par dessa concepção, os temas socioculturais que expomos tiveram como

propósito inicial sondar em que medida os aspectos do medievo influenciaram os sentimentos

e os valores sociais com os quais o povo nordestino condicionou a sua visão de mundo, e

posteriormente, os mesmos foram categóricos em sua arte.

Tais fundamentos são essenciais à análise que pretendermos fazer, quando nos

propomos analisar a matéria da França, de origem medieval, e sua relação com a literatura de

folhetos, produzida no Nordeste do Brasil no final do século XIX, dada a dimensão do assunto

cultural que o tema requer, uma vez que o ciclo carolíngio, enquanto item cultural está

inserido num contexto.

Não obstante, destacamos o grande desafio que temos pela frente para que a nossa

abordagem crítica não oblitere a essência estética do texto literário per si. Respeitaremos a

intuição artística tanto na sua criação quanto na sua recepção, uma vez que “Este caráter não

deve obscurecer o fato da arte ser, eminentemente, comunicação expressiva, expressão de

realidades profundamente no artista, mais que transmissão de noções e conceitos.”

(CANDIDO, 2006, p. 32).

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3 AS LITERATURAS PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE

FOLHETOS SOB A ÉGIDE DO CICLO CAROLÍNGIO

Homens só acatam e absorvem o que poderiam criar.

(José Gomes Ferreira)

No universo indefinido do cordel coexistem o oral e o escrito, o culto e popular,

gêneros e formas variadas, postas em completa dissonância; como por exemplo, a prosa, o

verso e as peças teatrais confluindo no mesmo universo literário. Além do que, obras e autores

originários de diferentes culturas interagem entre si. Tudo isso é condensado num suporte

material impresso, vinculando, ao mesmo tempo, comunicação e arte. Isso ocorre porque

fatores do universo editorial também influenciam indiretamente em tal evento, como edição,

tiragem, tipógrafos, livreiros, vendedores e público alvo.

De tal maneira que caso uma história caísse no gosto popular, ela era reeditada

possivelmente em grandes tiragens, alcançando assim, um público amplo. Tal fato contribuía

para a sua preservação na memória popular e, por conseguinte, a sua permanência no cânone

literário; caso contrário, perdia-se no curso do tempo. Ou seja, esta tradição,

indubitavelmente, dependia da aprovação do coletivo para que uma história caísse no gosto

popular, caso contrário, perdia-se no esquecimento do tempo. Portanto “[...] se esta obra oral

se revela, por uma ou outra razão, inaceitável para a comunidade, se os membros da sociedade

não se apropriarem dela, ela será fadada a desaparecer.” (JAKOBSON, 2009, p. 42).

Por tudo isso, o universo cordelístico requer uma perspectiva de análise múltipla,

dada a dificuldade de se conseguir uma abordagem integral de sua intrincada engrenagem,

composta por muitos planos interpenetrados, já que:

A permeabilidade conectiva entre oralidade e escrita; as contingências materiais da

edição; os números astronômicos das tiragens; a dimensão compósita do público, a

que corresponde, na textualidade dos objectos impressos, um mosaico ideotemático

e estilístico; a cartografia certa e incerta dos locais de vendas desse material; a

análise poética dos textos, passível de esclarecer aspectos como a genética e a

arquitetura textual, numa literatura dotada de surpreendentes aptidões orientadas

para o estabelecimento de redes de interferências e referências internas e externas

com outros autores e outros textos; a análise externa dos impressos que, assumidos

como produtos de consumo, ostentam um cuidado especial ao nível da semiótica

gráfica, em especial no que respeita a relevância da capa ou da primeira folha e ao

diálogo entre título e gravura. (NOGUEIRA, 2004, p. 4).

No que concerne à multiplicidade de questões suscitadas pelo cordel português,

algumas delas estendem-se à literatura de folhetos brasileira. No Nordeste do Brasil, os textos

eram vendidos também em forma de folhetos, compostos por um material de baixa qualidade,

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cujo preço acessível permitia seu alcance a um público disposto em todos os estratos sociais,

tal como acontecia em Portugal e em outros países da Europa Ocidental.

E as semelhanças persistem. Os folhetos eram igualmente comercializados em feiras

livres e mercados populares ou de forma itinerante, seus vendedores- muitos dos quais

podiam ser analfabetos-, utilizavam recursos performáticos e memorizavam as histórias

impressas, recitando-as oralmente.

As edições tinham um apelo mercadológico muito forte, por isso os detalhes

tipográficos assumem grande importância, como a relevância da capa ou da primeira folha, o

diálogo entre título e gravura, dentre outros; já que possibilitavam a compra do folheto por um

público não letrado e garantiam, por assim dizer, o sucesso da venda de tais publicações.

Aqueles que eram analfabetos geralmente pediam para alguém lê-los em voz alta.

Daí se inicia uma forte tradição leitora, na qual era muito comum a realização dos cenáculos

literários nos alpendres das casas de fazendas do sertão. Essas práticas de leitura eram mais

corriqueiras em ambientes rurais no início do século XX até meados da década de 50; antes da

popularização do rádio, dos jornais e do advento da televisão.

Por essa razão, este gênero literário adquire grande relevância para a sociedade

nordestina, na medida em que assumia uma função comunicativa tanto e quanto intelectual,

instrutiva, e, sobretudo, de entretenimento. De maneira que os folhetos brasileiros arrogaram

uma importante função de comunicação de massa, pois foram os primeiros “jornais” nas

zonas rurais, antes do aparecimento da televisão, do rádio e do próprio jornal, pois:

Levado pelos vendedores ambulantes às nossas feiras do interior e mercados, ele

difundia notícias sobre grandes acontecimentos de repercussão internacional,

nacional, estadual ou local. Notícias ou inovações do mundo moderno, da

tecnologia, do progresso contemporâneo. Inovações sempre recebidas com espanto

pelo homem rural, que é, por princípio, um homem conservador. (LOPES, 1983,

p. 8).

Outra função importante exercida pelos folhetos era a de alfabetizar os sertanejos.

Numa região marcada pela pobreza extrema na qual as cartilhas de alfabetização não eram

acessíveis à grande maioria, pois: “Sabe-se que incontáveis nordestinos carentes de

alfabetização aprenderam a ler deletreando esses livrinhos de feira, através de outras pessoas

alfabetizadas.” (LOPES, 1983, p. 7).

Deste modo, quanto a sua aproximação ao cordel português, embora haja muitos

fatores que acentuam as semelhanças com folhetos brasileiros, há uma gama de outros fatores

que os distanciam principalmente no tocante à matéria textual.

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Abreu (2006), avançando em suas pesquisas, pôde perceber que os cordéis

portugueses eram bem diferentes dos nordestinos, já que não havia “[...] nenhuma semelhança

formal, as condições de produção eram radicalmente distintas, havia apenas três casos de

adaptações de uma mesma história nos anos iniciais de publicação no Nordeste.” (ABREU,

2006, p. 11-12).

Assim, a referida autora rompeu um grande paradigma ao constatar que a literatura

que havia florescido no Nordeste brasileiro não se originava das alterações portuguesas. Isso

quer dizer que embora a produção nordestina tenha recebido um cabedal literário português,

as condições como este foi apropriado condicionou uma independência com relação ao cordel

português.

A partir desse novo paradigma, a autora justifica a necessidade de se adotar uma

nova terminologia, afinal o termo “literatura de cordel” era usado para designar as duas

produções. Por isso, ela resgata um termo utilizado pelos autores e consumidores utilizado no

início da sua produção no Nordeste brasileiro: “literatura de folhetos” ou simplesmente

“folhetos” (ABREU, 2006).

Portanto, didaticamente temos essa oposição terminológica entre as duas literaturas,

acentuando bem a diferença que existe entre ambas; terminação esta que utilizamos desde o

início do nosso estudo. Contudo, há toda uma sorte de questões em torno do temário presente

nos primeiros folhetos que, à primeira vista, revivifica um arcaísmo medieval tributário do

romanceiro português, que é algo inegável. Por este motivo, a análise deve ser bastante

criteriosa.

Em suma, consideramos essa abordagem em relação ao nosso objeto de estudo na

medida em que a literatura de folhetos assume a sua autonomia de gênero artístico autóctone

brasileiro. Em vista disso, cotejaremos as duas literaturas para a realização de uma análise

entre os possíveis traços distintivos entre elas.

Seguiremos os pressupostos de Abreu (2006) quanto à formação de uma tradição

literária constituída pela presença de um cânone de autores e obras e a assiduidade de um

público leitor configurado a partir da solidificação de mercado editorial. Todos estes fatores

foram edificados com características bem particulares, a saber, sob marcas identitárias da

região do Nordeste brasileiro.

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3.1 A cultura da oralidade nas bases de formação da literatura brasileira de folhetos

Segundo Vassallo (1993), a cultura popular que floresceu no Nordeste brasileiro foi

inspirada no modelo português, em voga à época dos descobrimentos. E, por conseguinte, a

literatura que nela se espelhou era quase que exclusivamente oral. Assim sendo, as práticas e

características dessa modalidade literária se mantiveram, quase que inalteradas por um longo

período na respectiva região, pontualmente em razão de alguns fatores que subsidiaram o seu

prolongamento:

A oralidade predominantemente naquele período sobrevive fixada em especial nessa

região, por ser depositária do acervo cultural e social da Europa medieval. Aí

permaneceu devido a múltiplas razões: por ser a mais antiga zona de colonização

que prosperou; pelo isolamento prolongado em que a região permaneceu; pelo

encontro e cruzamento de raças e culturas; pela estabilidade e longa duração de uma

organização social semi-feudal de latifúndio e patriarcalismo, perpetuadora das

tradições herdadas. A continuidade da literatura medievalizante no Nordeste

confirma o conceito de arcaísmo atribuído a essa sociedade. (VASSALLO, 1993, p.

69).

A preservação de uma grande parte de elementos do medievo europeu foi possível

por muitos motivos, como bem destacou a autora. Em sua opinião o arcaísmo português

subsidiou as bases sociais mais profundas da sociedade nordestina e o seu entorno

sociocultural coadunou uma tradição medievalizante, cuja cultura da oralidade se sobressai.

No tocante ao arcaísmo português presente em muitos setores do Brasil colônia,

Franco Júnior (2008) ressalva que diferentemente do que aconteceu à colônia inglesa, situada

em terras americanas e cujo povoamento se deu por pessoas interessadas em desenvolvê-la

modernamente, a portuguesa “[...] foi obra de setores ainda ‘medievais’, que pretendiam

reproduzir em outro palco, mais amplo e rico, o enredo histórico anterior.” (FRANCO

JÚNIOR, 2008, p. 83). Entretanto, segundo este mesmo autor, isso não significa dizer que não

houve elementos modernos também em solo brasileiro.

Nesse contexto, a literatura popular foi uma grande expressão dessa sociedade

anacrônica, sobretudo propagada oralmente. Tal fato se justifica pela grande quantidade de

analfabetos e a ausência de uma tradição escrita:

Desde a época medieval, com a ausência da escrita e com o analfabetismo, os que

sabiam ler formavam os círculos divulgando essa literatura oral, tal como em feiras

do Nordeste, ainda podem ser vistos cantadores que lêem/cantam esses folhetos.

(SIQUEIRA, 2009, p. 2).

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Segundo Santos (2006 p. 50), o texto literário oral enquanto discurso e portador de

uma mensagem, pode ser definido como etnotexto, ou seja: “Esse termo designa o discurso

que um grupo social ou uma coletividade, na diversidade de seus componentes, elabora a sua

própria cultura para reforçar a sua identidade.”

Segundo a autora, o etnotexto pode ser tanto literário como não literário, contanto

que estabeleça uma relação de continuação e integração de culturas por intermédio de uma

“leitura cultural” do texto tradicional (BOUVIER, 1992 apud SANTOS, 2006). Além do

mais, permite o acesso à memória cultural de um grupo, dado que: “Fornece informações de

aprendizagem e transmissão anteriores, faz aflorar lembranças relativas às performances

passadas como relação à história de vida do autor e às práticas comunitárias.” (SANTOS,

2006, p. 50). Assim sendo, com base no suporte memorial, muitos etnotextos portugueses

foram preservados, com algumas ressalvas, já que esses materiais discursivos passaram por

um processo de reelaboração quando apropriados pela sociedade sertaneja.

Com base em tal perspectiva, os etnotextos não só ajudaram na preservação do

romanceiro português, como também lhe atribuiu uma nova dimensão em solo brasileiro.

Pois, conforme Santos (2006, p. 51) a sua importância reside na “[...] continuidade da

presença do romanceiro em terras brasileiras, em particular nordestinas, e de lhe dar uma nova

dimensão.”

Este é um dos pontos de inflexão entre as duas culturas, e sob o qual nos

debruçamos. Embora muito do material artístico produzido no Brasil fosse tributário do

português, este ganhava uma nova roupagem, mais condizente com a realidade local da

colônia. Mais do que isso, compreendemos como esse evento demarca outro fator

fundamental para a continuidade da cultura da oralidade no Brasil: a mistura de raças

indígenas e a africanas, que tinham como denominador cultural comum uma sólida tradição

oral.

Cascudo (1984a) sublinha a participação indígena na cultura brasileira, destacando as

suas lendas, mitos, tradições e poética, respaldando uma grande tradição oral. Costumes que

foram relatados por seringueiros, viajantes e pequenos mercadores que visitavam as aldeias

indígenas:

A tradição oral indígena guardava não somente o registro dos feitos ilustres da tribo

para a emulação dos jovens; espécie de material cívico para a excitação, como

também as histórias e facetas, fábulas, contos, o ritmo das danças inconfundíveis. O

pajé sacerdote reservaria, como direito sagrado, a ciência medicamentosa, os ritos e

a breve e confusa teogonia. Os guerreiros que envelheciam possuíam os arquivos das

versões orais. Essa continuidade era tão normal e poderosa que compreendemos

como foram transmitidas aos naturalistas, exploradores e missionários, centenas e

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centenas de fábulas e de contos dos ainda inesgotáveis mananciais responsáveis por

essa conservação. (CASCUDO, 1984a, p. 80).

Segundo o autor, a tradição nativa ia aos poucos se fundido à tradição portuguesa,

como consequência natural do intercâmbio cultural e da miscigenação: “Vieram do contato

secular entre indígenas e brancos, nas plantações, bandeiras de mineração ou caça aos

indígenas distantes. Vieram por intermédio do mameluco, filho de português e índio.”

(CASCUDO, 1984a, p. 83).

O autor ainda complementa que mesmo o filho renegando a mãe índia e jactando o

pai português, não era indiferente às histórias que ouvia quando criança. Logo, dava

continuidade a um patrimônio cultural que eclodia na cultura dominante, resistindo-lhe,

ajuizando-lhe valor e dele se apropriando.

Para Cascudo (1984a), um detalhe importante acerca da preservação do patrimônio

cultural indígena brasileiro reside no fato de ser o tupi, até meados do século XVIII, uma das

formas de comunicação da cultura brasileira:

O tupi, já litorâneo quando o português chegou ao Brasil, foi o mais plástico, o mais

viajante e o mais inquieto dos povos americanos. O contato mais prolongado com os

europeus deu-lhe amplitude e elasticidade para espalhar o que ouvira e sabia: foi um

denominador comum de estórias. Encontramo-lo por toda parte em estórias

deformadas, adaptadas e mais visíveis na origem do narrador longínquo, entre outras

raças, Caraíbas, Aruacos e Gê. (CASCUDO, 1984a, p.83).

Por outro lado, o idioma que prevaleceu foi o do colonizador e, infelizmente, muitas

dessas estórias foram fundidas à cultura dominante, perdendo a sua identidade, dado que a

grande maioria das expressões artísticas perpetuadas no Brasil foi vertida em língua

portuguesa nas práticas discursivas.

Tal qual a cultura autóctone, o autor ressalta a cultura africana que também possuía

uma tradição oral iminente e de natureza tribal. Por conseguinte, mesmo não podendo precisar

quais as características distintivas das três raças, reverberavam ecos dos elementos indígenas e

africanos, convergindo-os no idioma dominante a partir das práticas discursivas e das

representações simbólicas.

Em solo brasileiro, Cascudo (1984a) sobreleva a influência das pretas velhas na

fusão cultural das culturas africana à brasileira e vice-versa. Pois, com o desenvolvimento e o

fortalecimento da escravatura no Brasil muita das atividades laborais designadas aos índios

foram repassadas aos negros.

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As amas-de-leite foram responsáveis por propagar as tradições das quais se

apropriavam, ao mesmo tempo em que moldavam a cultura brasileira em confluente

transformação:

Fazia deitar as crianças, aproximando-as do sono com histórias simples,

transformadas pelo seu pavor, aumentadas na admiração dos seus heróis míticos da

terra negra que não mais havia de ver. Dos elementos narrados pelas moças brancas,

as negras multiplicavam o material sonoro para a audição infantil. A humilde

Sheerazada conquistava com moeda maravilhosa, um canto de reminiscência de

todos os brasileiros que ela criava. Raramente vozes européias evocariam as

histórias que os tios e as tias narravam nas aldeias portuguesas. Os ouvidos

brasileiros habituaram-se às entonações doces das mães-pretas e sabiam que o

mundo resplandecente só abriria as suas portas de bronze ao imperativo daquela voz

mansa, dizendo o abre-te, sésamo irresistível: era uma vez... (CASCUDO, 1984a, p.

153).

Distingue-se, portanto, esta personagem encantadora do Brasil colônia dedicada à

contação de histórias. A sua relevância é tamanha, que constituiu, segundo o folclorista

Câmara Cascudo, uma instituição chamada akpalô, ou seja: “[...] uma instituição africana que

floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias.” (CASCUDO,

1984a, p. 154).

Por isso, não podemos restringir à participação africana na cultura oral brasileira

apenas aos akpalôs. Esta instituição é apenas a ponta de um iceberg. Além do legado de

grandes narradores que recebemos da cultura africana, temos uma profusa literatura oral

impossível de ser catalogada, composta por contos, provérbios, adivinhação etc. Todos esses

etnotextos fundamentavam a função literária coletiva. Assim como a indígena, a cultura

africana, do mesmo modo, deixou marcas inextinguíveis mesmo quando foi mesclada à

cultura dominante. O fato de centrarmos a nossa análise no elemento português, não

desconsidera a importância dos fatores indígenas e africanos.

Os etnotextos se encontravam na zona de confluência onde se articulavam as práticas

discursivas e as representações simbólicas no Brasil colônia. Entretanto, a nossa atenção será

voltada ao elemento português. Sob essa perspectiva, analisaremos o ponto de convergência

no qual as culturas orais (brasileira) e na escrita e/ou oral (portuguesa) incidem,

caracterizando-se ora como uma “oralidade mista”, ora como uma “oralidade segunda”

(ZUMTHOR, 1993, p. 18).

A propósito, de acordo com as circunstâncias alusivas à natureza dos textos, Zumthor

(1993, p. 19) argumenta que para uma sociedade que tem contato com a escrita mediante a

transmissão oral de um texto poético a um público, este é submetido a cinco operações no que

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concerne a sua história, tais como; “[...] a produção, a comunicação, a recepção, a

conservação e a repetição.”

Em vista disso, podemos observar que em tal fenômeno a força e a função da voz, de

forma categórica, conduziram eventos sob os quais a oralidade secundaria sobressaiu-se, dada

a enorme capacidade dessa variante de transmissão oral incorporar à escritura “[...] os valores

da voz no uso e no imaginário.” (ZUMTHOR, 1993, p. 18).

A partir das ideias de Zumthor (1993), escolhemos quatros sextilhas tiradas do

folheto A morte dos doze Pares de França, do poeta popular Marcos Sampaio:

Amigos, caros leitores

dê-me um pouco de atenção

leiam esta minha história

com calma e meditação

verão que não é mentira

nem lenda de ilusão.

Os leitores devem saber

das proezas de Roldão

e de Oliveiros seu amigo

sabem os feitos então

e também a falsedade

que lhe fez o Galalão.

Foram todos cavalheiros

de muito alto louvor

Roldão, Ricarte e Olveiros

eram os três de mais valor

Roldão sendo o mais querido

do seu tio imperador (SAMPAIO, 1975, p. 1).

A história é contada em forma de sextilhas, com versos setessilábicos, muito

próximos à fala, facilitavam a sua memorização. À vista disso, podemos pensar na presença

do elemento vocal posto em relevo em textos escritos, a partir das histórias tradicionais do

medievo recitadas e, posteriormente, escritas e editadas sem, contudo, suprimir a voz coletiva

que estrutura o texto: “Os leitores devem saber/ das proezas de Roldão/ e de Oliveiros seu

amigo/ sabem os feitos então/ e também da falsedade/ que lhe fez o Galalão” (SAMPAIO,

1975, p. 1).

Por tudo isso, destacamos a estrutura versificada, tributária da oralidade, como uma

das grandes características da literatura de folhetos brasileira. Além do mais, esta estrutura

rimada facilitava a transmissão e, consequentemente, a continuação dos etnotextos na

memória coletiva dos sertanejos.

Nestes termos, o folclorista brasileiro Câmara Cascudo em sua obra Cinco livros do

povo, de 1953, realiza estudos sobre as principais histórias tradicionais da Europa medieval

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impressas, conhecidas como Novelística. Estas, segundo o autor, eram pequenas novelas

difundidas na Europa ao longo dos séculos XV e XVII, em cuja origem erudita confluía a

presença de várias culturas e podiam ser propagadas também oralmente.

Desse fundo tradicional de obras, destacam-se em especial, cinco histórias

popularizadas no Brasil colônia: Donzela Teodora, Roberto do Diabo, Princesa Magalona,

Imperatriz Porcina, João de Calais e, sobretudo História do Imperador Carlos Magno e dos

Doze Pares de França. Sobre o tema de tais produções literárias:

[...] estudavam as novelas que corriam toda a Europa, popularizadas em sucessivas

edições, traduzidas, adaptadas, influenciando criações locais. As ricas bibliografias

alemãs, espanholas, italianas, francesas, mostram a profundeza e a vastidão do

gênero. A identificação das fontes orientais, especialmente indianas [...], trouxeram

o assombro de encontrar-se paralela e independente da informação manuscrita, uma

corrente oral com os mesmos elementos e os mesmos episódios, numa sucessão

ininterrupta de influência e acomodação psicológica. (CASCUDO, 1953, p. 9, grifo

nosso).

Assim sendo, Donzela Teodora centrava-se na inteligência feminina; a Princesa

Magalona destaca o amor e a fidelidade; a História da Imperatriz Porcina também põe de

relevo a força feminina, focando na esposa casta e incorruptível. Em contrapartida, João de

Calais retratava o universo masculino de viagens e aventuras, enquanto Roberto do Diabo

abordava maniqueísmo, no qual a sua vitalidade e força eram usadas para o mal, até o

momento da sua contrição, quando esta é usada para o bem (CASCUDO, 1953).

Por seu turno, o referido folclorista chama atenção para uma obra em especial: a

História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Segundo o autor, este

livro era o mais conhecido pelo povo brasileiro, especialmente os que viviam no interior do

país. Dificilmente os sertanejos desconheciam as façanhas do Imperador franco e de seus

paladinos.

A literatura oral que despontava no Nordeste apresentava muitas semelhanças com a

da Península Ibérica, haja vista que em solo brasileiro “[...] era tão difundida e arraigada na

Península Ibérica no século XVI que muitas vezes numa conversação cotidiana era mantida

através da intercalação de versos do romanceiro.” (VASSALLO, 1993, p. 69).

No tocante ao processo de apropriação que envolve a gênese desta literatura de

folhetos produzida na região nordestina, Galvão (1972) destaca, como característica autóctone

da tradição popular sertaneja impressa nas obras, a confluência entre o oral e o escrito, bem

como divergências sincrônicas e diacrônicas agindo, ao mesmo tempo, na divulgação e

propagação das histórias:

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Aí, História e estória se confundem para o sujeito em busca de uma concepção de si

mesmo e de sua vida. O acontecido ontem e aqui ombreia com o acontecido em eras

remotas e bem longe. Na tradição oral dos causos e das cantigas, bem como nos

romances de cordel, é a mente letrada que vai executar as operações da razão;

definindo, separando, constituindo tipos no seio de um conjunto onde o cavaleiro

andante, o cangaceiro, a donzela guerreira e a donzela sábia como figuras da história

do Brasil; e o animal e o Diabo são todos os personagens de um só universo.

(GALVÃO, 1972, p. 57-58).

A partir desses pressupostos, elegemos alguns fragmentos do folheto História do

príncipe Jaci e a negra moura torta, do poeta popular Manuel Apolinário Pereira. Neste

folheto é narrada uma típica história de amor entre o príncipe Jaci do reino de Camboaci e a

linda donzela Avanice. Esta era uma bela jovem filha de um barão, que ao sair para caçar com

o pai e o irmão perdeu-se na mata. O príncipe ao vê-la, logo se apaixona:

Passando a margem de um rio

de largura monstruosa

encontrou uma donzela

mui radiante e formosa

sentada sobre o sombrio

de uma árvore frondosa.

Jaci quando viu a jovem

se sentiu apaixonado

e lhe disse: eu sou o príncipe

herdeiro desse reinado

mas só terei influência

sendo contigo casado.

A jovem já amava-o

sem esperança na vida

quase morreu de alegria

e disse fortalecida

- a casar com vossa alteza

há muito estou decidida (PEREIRA,[19--], p. 7).

Príncipes e reinados formavam parte de um imaginário apropriado do colonizador

europeu, que o poeta popular adaptou ao ambiente sertanejo e enriqueceu o texto através de

elementos híbridos, como, por exemplo, o príncipe Jaci, um nome indígena da língua Tupi.

Então, como toda boa história de amor, há algo que atrapalha o enlace dos

apaixonados. No respectivo folheto, é uma personagem quem ocasionou o impedimento;

trata-se de uma feiticeira negra, moura e torta:

Nisso a negra Moura-Torta

para a arvore se voltou

avistou a moça em cima

muito se admirou

conhecendo o seu engano

para a moça assim falou.

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[...]

E pelo medo que teve

a moça ficou tremendo

mas a negra feiticeira

chegou-se a ela dizendo

não tenha medo santinha

que em nada eu lhe ofendo (PEREIRA, [19--], p. 7, grifo nosso).

Nas sextilhas apresentadas, destacamos a forma como a personagem antagonista é

caracterizada. Primeiramente, ela não apresenta nome próprio e as referências são

“metonímicas”, ou seja, demonstram a forma ainda muito preconceituosa de tratamento com

os negros, bem como resgatam um imaginário longínquo do colonizador ibérico, segundo o

qual o mouro era a representação do Mal.

Curiosamente, não há nenhuma menção aos árabes, com exceção apenas do sintagma

moura foi apropriado pelo poeta popular nordestino. De tal modo que conservou do

imaginário do colonizador a ligação com o estereótipo árabe, possivelmente, pela cor da pele,

um pouco mais escura que a dos europeus.

Deste modo, o estereótipo “mouro” é esvaziado e ressignificado com algo relativo ao

mal. Neste novo campo semântico, tal modelo se acerca também ao místico, e possivelmente,

por este motivo, a antagonista é estigmatizada como negra, moura, torta e feiticeira;

acentuando, por assim dizer, a hibridização presente no imaginário sertanejo. Esses

predicativos geram uma carga semântica negativa, associando o feminino ao lado mal e

místico, relativo às bruxarias da Idade Média; uma espécie também de retomo ao imaginário

medieval.

Em suma, a negra Moura-Torta é uma feiticeira que transformou a moça branca e

bela em uma pomba por meio de magia negra, quando ela lhe espetou um alfinete. No

desenlace, o feitiço foi quebrado, os jovens noivos se casaram e o destino da pobre feiticeira

foi trágico, tal qual deve acontecer a toda bruxa, segundo a tradição.

Além do mais, na cultura popular de forte tradição maniqueísta, o bem triunfa sobre

o mal, e o mal deve ser sempre punido; neste caso, personificado na figura da negra Moura-

Torta, conforme ilustram os versos a seguir:

A moça contou ao povo

o que fez a Moura-Torta

o jardineiro contou

o que se passou na horta

o povo todo gritava

- a negra deve ser morta.

O rei disse: e a sentença

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que eu quero dar a ela

e amarrá-la num pau

e tirar a roupa dela

para todo o povo do reino

butar alfinete nela

O povo todo afirmou

a sentença boa é esta

mande amarrar logo a negra

prá gente fazer a festa

ela vai ver se botar

alfinete em gente presta.

Vinte quilos de alfinete

chegaram na mesma hora

e o carrasco pegou

a negra puxou para fora

amarrou-a numa arvore

e disse: povo é agora.

Quando ele disse assim

foi logo a negra estrepada

da cabeça até os pés

e o povo em gargalhadas

dizia: vamos botar

alfinete na almofada (PEREIRA, [19--]., p. 15, grifo nosso).

Observamos, desse modo, um exemplo de como os poetas populares atualizavam

alguns elementos dos imaginários europeus sincrônica e diacronicamente no corpo do texto.

Ao posto que, naturalmente eram amalgamados à cultura local. A caracterização da

antagonista com negra Moura-Torta ilustra bem a hibridização que acontece na cultura

popular, plasmada nos folhetos nordestinos.

Os poetas populares traziam para o universo da literatura popular de folhetos

elementos distintos, oriundos de diferentes culturas com toda a licença poética que a sua

criatividade permitia. Então, elementos de diferentes veios de criação artística dialogavam de

modo coeso e harmonioso em um terreno movediço que entremeavam a tradição oral e a

escrita, tal como menciona Galvão (1972).

E como resultado de tal arrolamento, temos um rico manancial artístico hibridizado,

no qual príncipes “índios”, lindas donzelas de nobre estirpe, negras feiticeiras mouras e o

povo sertanejo estreitam laços, ombreando-se num mesmo ambiente, convergindo sincrônica

e diacronicamente no mesmo imaginário, por meio de figuras arquetípicas que acendem ao

nível psicológico mais profundo da mentalidade humana.

Resulta tão importante a base oral na formação da nossa literatura, principalmente

na de folhetos que aflora no Nordeste brasileiro, que essa preserva mesmo no texto impresso,

a essência oral. É sabido que os repentes ou desafios cantados pelos cantadores foram

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essencialmente importantes para a formação da literatura brasileira de folhetos, pois os

recursos mnemotécnicos inspiram os modelos de versos usados nos folhetos.

Escolhemos dois textos, um sendo uma cantiga e outro, a mesma cantiga, mas em

forma de folhetos. Eis a “Cantiga do Vilela”, de autoria do cego Sinfrônio, recolhida por

Leonardo Mota e exposta em sua obra Cantadores (1987):

Meu povo preste atenção

Ao que agora eu vou contá

De um home muito valente

Que morava num lugá

E até o próprio gunvêrno

Tinha medo de o cercá

Vilela era natural

Do sertão pernambucano,

E ele, desde do princípio,

Que tinha o gênio tirano:

Comete o primeiro crime

Com a idade de dez ano.

Com doze ano de idade,

Numa véspera de S. João,

Vilela mais o seu mano

Tivéro uma altercação:

Só por causa dum cachimbo

Vilela mata o irmão (SINFRÔNIO, [19--] apud MOTA, 1987, p. 44-43).

A seguir, apresentaremos três sextilhas retiradas de um folheto do poeta popular

José Bernardo da Silva, de 1957, narrando a mesma história do valente Vilela:

Meu povo preste atenção

que agora vou contar

de um homem muito valente

que morava num lugar

até o próprio governo

tinha medo de o cercar.

O seu nome era Vilela

do sertão pernambucano

e ele desde de pequeno

que tinha genio tirano

com 10 anos de idade

Vilela mata o seu mano.

Os dois estavam brincando

na véspera de S. João

Vilela mais seu mano

e tiveram uma discussão

por causa de um cachimbo

Vilela mata o irmão (SILVA, 1957, p. 1).

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A partir dos fragmentos coligidos, de duas modalidades artísticas diferentes, uma

como cantiga e outra sendo um folheto, somos capazes de observar as semelhanças, mais que

as divergências, permeando as fronteiras que aproximam essas duas modalidades de arte

popular. Optamos por uma cantiga que tivesse sido vertida em forma de folhetos com o

intuito de demonstrar o quanto do universo das cantigas influenciou na formação do

respectivo gênero literário brasileiro em questão.

Estas duas modalidades coadunam-se, pois, além dos recursos mnemotécnicos como

sextilhas setessilábicas, com alternância de rimas ABCBDB, e a temática também é

partilhada. No caso da “Cantiga do Vilela”, ela foi preservada quase que totalmente na íntegra

quando impressa; uma vez que a linguagem precisou ser adaptada e atualizada.

Como base no que expusemos, podemos inferir que a tradição oral influenciou

sobremaneira a literatura de folhetos brasileira, que floresceu no Nordeste brasileiro no final

do século XIX, consolidando-se enquanto gênero literário, no século seguinte. Ademais,

podemos inferir que esta regularidade poética a distanciava da literatura de cordel portuguesa,

conforme discutiremos no próximo tópico.

Hobsbawn (1997, p. 9) falando sobre tradições e passado histórico assegura que nem

todas as tradições perduram, contudo em relação ao passado “[...] tenta-se estabelecer

continuidade com o passado histórico apropriado.” O referido autor defende que as tradições

“[...] são reações às situações novas que ou assumem formas de referências a situações

anteriores, ou estabelecessem o seu passado através da repetição quase que obrigatória.”

(HOBSBAWN, 1997, p. 10). Daí ser a repetição um importante recurso de continuidade de

uma tradição.

Embora a repetição nunca seja igual à versão original, é justamente na maneira de

como se repete que reside toda a criatividade artística. Por exemplo, a matéria da França ao

ser recriada no sertão nordestino ganha um colorido especial, pois as aventuras de Carlos

Magno e os seus paladinos são narradas em versos. Sobretudo pela linguagem espontânea do

sertanejo, tal como aparecem nas sextilhas a seguir: “De Esto foi coroado/ Roldão tornou a

vencer/ aí os adversários/ começaram a esmorecer/ Roldão garoto guerreiro/ botou tudo

para correr” (FREIRE, [19--], p. 15, grifo nosso).

Diante do exposto, não desconsideramos o dinamismo que atuam nas inter-relações

que envolvem a tradição literária prolongada através dos processos de apropriação, adaptação

e recriação de obras a outros contextos socioculturais, diferentes no tempo e no espaço. Assim

sendo, analisaremos a seguir literatura de folhetos brasileira, a fim de compreender sua

autonomia, mesmo compartilhando um pano de fundo com a literatura de cordel portuguesa.

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Contudo, antes de qualquer coisa, faz-se necessário analisar as questões que orbitam

em torno da literatura de cordel portuguesa quanto à sua definição, propagação e, sobretudo, à

sua interferência na literatura de folhetos brasileira.

3.2 A literatura de cordel portuguesa: de Portugal ao Brasil

No que diz respeito à literatura de cordel portuguesa, as dificuldades surgem a partir

de uma indefinição terminológica desse evento, resultante da incapacidade teórica de se tecer

um conceito capaz de unir elementos de naturezas díspares que o constituem; tais como

preceitos editorias e literários, compartilhando um mesmo suporte material. Isso de fato não é

possível, se não se leva em conta a complexidade de tal fenômeno cultural.

Segundo Nogueira (2004), uma das primeiras dificuldades que um pesquisador de

literatura de cordel enfrenta é, sem dúvida alguma, a sua discrepância conceitual que se

concentra em torno do tema. Uma vez que o seu conceito se consagrou pelo uso de como o

mercado editorial da época comercializava essas obras, bem como a partir de seus lugares de

venda, sem ater-se, portanto, às particularidades literárias do texto:

A designação “literatura de cordel” recobre o uso dos especialistas, um conjunto

imenso e instável de objetos impressos que eram pendurados sobretudo, para a

exposição e venda em cordéis distendidos por dois suportes, presos por alfinetes,

pregos ou molas de roupas, em bancas de madeira, podendo também prender dos

braços ou da cintura de vendedores ambulantes. Se não há dúvidas quanto ao

processo e as motivações que conduziram o aparecimento dessa expressão, que

também é usada na Espanha, o mesmo se pode dizer sobre a data precisa da sua

introdução em Portugal e de outras particularidades, como o nome de quem sanciona

e em que circunstâncias. (NOGUEIRA, 2004, p. 7).

Esta definição não ajuíza valor às propriedades artísticas dos textos; na verdade é

bastante rasa, na medida em que não explica o fenômeno sui generis: “[...] impreciso definir

uma produção literária com base em seus locais e formas de vendas, vendedores, dimensão

tipográfica; a saber, recorrendo apenas a elementos extrínsecos à obra.” (ABREU, 2006, p.

20).

As associações aos locais de vendas populares ou à materialidade do suporte geram

uma proporção pejorativa, condicionando tais textos a obras de má qualidade literária. Além

do mais, os folhetos eram impressos em materiais de baixa qualidade e vendidos a baixo

preço, facilitando o acesso a setores de baixo estrato social.

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O fato é que a literatura de cordel é um evento cultural bastante complexo, que orbita

entre o erudito e o popular, indo da tradição escrita a oral, envolvendo textos literários

clássicos e circunstanciais sem qualquer delimitação de fronteiras. Ou seja, qualquer obra

poderia ser vendida em forma de cordel, sem qualquer critério de seleção.

Este evento surgiu e se propagou por toda a Europa. As obras editadas em cordéis

recebiam diferentes nomes, entretanto o modelo de edição era o mesmo. Assim que eram

chamadas de folhas volantes ou cordéis em Portugal; ou pliegos sueltos na Espanha; na

Holanda foram denominadas de “pamflet”; enquanto na França este mesmo fenômeno

literário era chamadode “littèrrature de colportage”, e na Inglaterra recebiam duas

denominações; conforme a natureza dos textos, a saber, eram chamadas de “cocks” ou

“catchpennies” as que narravam histórias imaginárias, e os “broadsiddes”, as narrativas

históricas (LOPES, 1983). Contudo, dada a extensão do tema, deter-nos-emos apenas à

Península Ibérica.

Quanto aos problemas que giram em torno do cordel português, um dos mais

delicados é, sem dúvida, a indefinição do gênero cordelístico em Portugal. Visto que há uma

falta de conexão formal e de conteúdo entre os gêneros presentes nos textos impressos:

A literatura de cordel abarca autos, pequenas novelas, farsas, contos fantásticos e

moralizantes, histórias, peças teatrais, hagiografias, sátiras, notícias, entre outros.

Além de poder ser escrita em prosa, em versos ou sob a forma de uma peça teatral.

(ABREU, 2006, p. 21).

Na Espanha, o problema também persiste. Baroja (1990) também chama atenção não

só para uma dissonância entre gênero e a quantidade de temas variados que eram editados em

forma de folhetos ou “pliegos”, como eram chamados pelos espanhóis. Além do mais, destaca

muitas referências do mundo da oralidade, da cultura popular, sedimentados por muitos

séculos que “voavam” de boca a ouvido, sendo realimentada pelo universo cordelístico:

Aqueles pliegos refletiam a flor da fantasia popular e da história; havia os da história

sagrada, dos contos orientais, das epopeias medievais do ciclo carolíngio, dos

livros de cavalaria, das mais célebres ficções da literatura europeia, a nata da lenda

pátria, das façanhas de bandidos, e da guerra civil dos sete anos. Era o sedimento

poético dos séculos, que depois de terem rendido cantos e relatos que consolaram a

vida de tantas gerações, rodando de boca ao ouvido e do ouvido a boca, contados ao

amor da fogueira; vivem pelo ministério dos cegos de rua, na fantasia sempre fresca

do povo. (UNAMUNO, 1928 apud BAROJA, 1990, p. 16, grifo e tradução

nossos).13

13Original: Aquellos pliegos encerraban la flor de la fantasía popular y de la historia; los había de la historia

sagrada, de cuentos orientales, de epopeyas medievales del ciclo carolingio, de libros de caballerías, de las más

celebres ficciones de la literatura europea, de la crema de la leyenda patria, de hazañas de bandidos, y de la

guerra civil de los siete años. Eran el sedimento y poético de los siglos, que después de haber nutrido cantos y

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Deste modo, o referido folclorista espanhol realça um grande contingente de temas

heterogêneos que vão do erudito ao popular, estratificados ao longo dos séculos em vários

gêneros e formas literárias. Tal como acontecia em Portugal, estes foram perpetuados pela

tradição oral do povo; tradição popular que também se consolidava nas colônias ibéricas.

Como bem destaca o autor, um dos grandes divulgadores dos textos cordelísticos

eram os cegos. Estes recitavam de memória as histórias para atrair o seu público, acentuando,

ainda mais, a cultura da oralidade; caldeando tantos temas distintos no respectivo evento

cultural. Em vista disso, surge outra denominação pautada em fatores extraliterários a de

“literatura de cego”. Tal definição se popularizou na Espanha entre os séculos XVII e XVIII.

E dentre estas histórias rememoradas, a de Carlos Magno e dos Doze Pares de França e outras

do medievo eram ainda muito populares e propaladas em cordéis no século XVIII:

Costumava ter ainda grande popularidade a história dos doze Pares de França, as

coplas de Calainos, a história dos Sete Infantes de Lara e os romances de Pedro

Cadena e Rosara de Trujillo, que eram recitados de memória, e depoisos cordéis

eram vendidos.14 (BAROJA, 1990, p. 69, grifo e tradução nossos).

Segundo Abreu (2006), os cegos tiveram por muito tempo a exclusividade na venda

dos cordéis na península. A autora destaca que em Portugal sobreleva-se a figura do cego

Baltasar Dias tanto pela autoria quanto pelo volume de livros que publicou sob a fórmula do

cordel.

Quanto à literatura que florescia nesse contexto sociocultural, destacam-se as novelas

baseadas na tradição cavaleiresca. Estas eram repletas de manifestações fantasiosas, dentre as

quais podemos citar: Crônica do imperador Clarimundo (1520); Memorial das proezas da

segunda távola redonda (1567); Palmeirim de Inglaterra (1544). Sobre a relação das novelas

de cavalaria com a literatura de viagens, e seu anacronismo medieval, sabe-se que:

As novelas de cavalaria constituem, por assim dizer, a contrapartida da epopéia

marítima, substituindo a imaginação o que naquela sobrava de realismo. No entanto,

das diversas formas novelescas compartilhou ainda o espírito medieval, aliado a uma

visão e mentalidades renascentistas que as experiências, a expansão geográfica e o

conhecimento de novos mundos fizeram surgir. (CUNHA, 1993, p. 65).

relatos que han consolado la vida a tantas generaciones, rodando de boca al oído y de oído a boca, contados al

amor de la lumbre, viven, por el ministerio de los ciegos callejeros, en la fantasía siempre verde, del pueblo

(UNAMUNO, 1928 apud BAROJA, 1990, p. 15). 14Original: Solían tener aún gran popularidad la historia de los doce Pares de Francia, las coplas de Calainos, la

historia de los Siete Infantes de Lara y los romances de Pedro Cadena y Rosaura la de Trujillo, que eran

recitados de memoria, aunque luego vendían los pliegos.

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Assim, podemos compreender que em pleno Classicismo português, no século XVI,

a tradição cavaleiresca eivava a literatura portuguesa de substratos medievais. Em razão disso,

muito dos elementos medievais conseguiram perdurar por séculos subsecutivos, graças à

grande tradição popular.

Burke (2010) assinala que em se tratando de uma história cultural da Europa, as

transformações não se deram em curto prazo, uma vez que:

Uma geografia cultural da Europa teria de ser histórica, voltada para as

transformações de longo prazo. Também teria de levar em conta um grande número

de diferenças ou oposições culturais que muitas vezes se sobrepunham, mas

raramente coincidiam entre si. (BURKE, 2010, p. 91).

Seguindo os pressupostos do autor, podemos identificar facilmente a tradição

medieval presente até os inícios da Europa moderna. Sobre tema, ele destaca a importância

cultura popular na continuidade desta tradição mesmo após a Renascença e o Iluminismo na

Era Moderna. Ele também centra a sua atenção no movimento recíproco de interpenetração

cultural entre duas tradições que coexistiam no início da Europa moderna. Estas foram

definidas como uma “grande tradição” e uma “pequena tradição” das quais faziam parte a

elite e o povo (BURKE, 2010).

Portanto, havia uma grande tradição transmitida formalmente nos liceus e nas

universidades; esta era elitista, destinada apenas a um grupo restrito, a qual o povo não tinha

acesso. Em contrapartida, a pequena tradição era acessível a todos, desde a elite ao povo. Seus

lugares de propagação variavam, pois as apresentações podiam ocorrer desde igrejas a

mercados populares e feiras livres.

Esta concepção nos ajuda a esclarecer outro problema no conceito de “literatura de

cordel”, pois muitos a associam erroneamente à “literatura popular”; a saber, feita pelo povo

sem instrução e, por assim dizer, uma arte de baixa qualidade artística, como pontua Abreu

(2006, p. 42): “O público a que se destinavam as obras de cordel portuguesas nos anos

oitocentos também não era basicamente o popular.”

Conforme a autora, havia uma elite dedicada ao cordel. Esta era formada, sobretudo,

por militares, professores, advogados e médicos, os quais participavam tanto da produção das

obras quanto de sua comercialização. O que poderia justificar tamanha permeabilidade

cultural era a diversidade temática que agradava a todos os gostos: “[...] visto o interesse que

despertava desde o rei até as senhoras da corte.” (ABREU, 2006, p. 45).

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Portanto, estes indivíduos podiam ser entendidos como “biculturais”, ou seja,

expressão usada por Peter Burke para denominar aqueles que participam da cultura popular,

mas tinham acesso aos temas da pequena tradição:

Cunhei esse termo seguindo o modelo bilíngüe para descrever a situação de

membros da elite que aprenderam o que hoje chamamos de canções e contos

populares na infância como todo mundo aprende, mas que também participaram de

uma cultura “alta”, ensinada em escolas secundárias, universidades cortes etc, às

quais as pessoas comuns não tinham acesso. (BURKE, 2010, p. 18).

A partir dessa perspectiva, a literatura de cordel é um evento cultural promovido e

destinado a indivíduos “biculturais” (BURKE, 2010), por isso que associá-la somente a

cultura popular, culmina em um reducionismo crítico. Não obstante, há múltiplos aspectos

responsáveis por construir uma associação da literatura de cordel às camadas populares, tais

como: a venda dos cordéis serem realizadas em feiras e mercados populares; por vendedores,

na maioria das vezes, cegos ou analfabetos.

Os elementos estilísticos do texto também corroboravam para isso. Afinal, as obras

possuíam um enredo simples, baseado em concepções dualistas, caracterizadas pelo embate

entre bem o mal, cujos heróis eram idealizados; bem como a linguagem dos textos

apresentavam um vocabulário simples e coloquial.

Além do que, as edições eram impressas em folhetos de baixa qualidade e

comercializadas a baixo preço. Em razão disso, podiam ser acessíveis a um público variado.

Ou seja, há um sem-fim de elementos que corroboram para reforçar o vínculo entre o “cordel”

e o “popular” (NOGUEIRA, 2004).

Esta conexão só poderá ser desfeita, na visão de Nogueira (2004), ao se observar o

cordel sob a perspectiva da riqueza material de seus textos, considerando questões de natureza

bibliográfica, assim como todos os grupos que têm acesso a esses cordéis:

Mas não é menos verdade que este é um espaço textual procurado por grupos que

extravasam o conceito de povo enquanto grupo que ocupa o lugar da subalternidade

no sistema de distribuição social das oportunidades de acesso à cultura, à riqueza

material e imaterial e às decisões afetivas; como não é menos verdade que tal área

bibliográfica ostenta temas, motivos, formas, linguagens e estilos que pouco ou nada

confinam ou têm a ver com o que vulgarmente se entende “popular” ou “populista”,

sobretudo, no território descomunal da literatura dramática do cordel. (SARAIVA

1975 apud NOGUEIRA, 2004, p. 15).

Portanto, dada a complexidade do tema, a impossibilidade de uma conceituação de

tal evento cultural advém da própria natureza abrangente do cordel, conforme demonstra o

autor. Dessa forma a grande variedade de temas impressos, que podem ser populares ou

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cultos, de autores anônimos, desconhecidos ou consagrados, em forma de versos, prosa ou

atos, destinado a um público amplo, dificultava uma termologia que abarcasse a múltipla

envergadura da literatura portuguesa de cordel.

De modo que a única coisa capaz de congregar esse universo textual desentoado era

o folheto: “[...] não há nada que unifique este material, a não ser questão editorial.” (ABREU,

2006, p.23). Portanto, esta modalidade cultural, até então considerada sob viés literário,

doravante será considerada como um gênero editorial:

Não se trata, portanto, de uma modalidade literária, de um gênero literário, e sim de

um gênero editorial. Talvez por isso as tentativas de definição tenham recaído com

tanta ênfase no suporte material e sobre as formas de vendas dessas publicações. Os

editores, sentindo o interesse de amplas camadas da população em tomar contato

com conjunto de textos em circulação no universo letrado, perceberam a

possibilidade de comercialização desse material, desde que seu preço fosse acessível

- daí a utilização do papel barato, a opção por um pequeno número de páginas, a

venda nas ruas –, e desde que o texto fosse adaptado para atender às necessidades de

um público pouco familiarizado com o estilo e com a estruturação dos textos

produzidos pela elite intelectual. (ABREU, 2006, p. 25, grifo da autora).

À vista disso, a única forma de elaborar uma definição satisfatória sobre um evento

cultural de proporções labirínticas, como o gênero editorial em questão, era considerá-lo tanto

a partir de seus elementos intrínsecos quanto os extrínsecos, de modo que possam atuar

sincronicamente na materialidade do texto. Assim, a autora conectou esses dois planos num

mesmo panorama conceitual, polarizando o enfoque editorial.

A partir de então, foi possível desenvolver parâmetros para a elaboração de um

estudo sistêmico entre as literaturas de cordel portuguesa e a de folhetos brasileira, com base

nos pressupostos teórico elaborados por Abreu (2006). Afinal, chegou-se de fato a uma

definição plausível do fenômeno global que circunscreve à literatura de cordel portuguesa.

A forma literária dos folhetos brasileiros começa a definir suas características

elementares entre o final do século XIX e os últimos anos da década de 1920. Assim sendo,

enquanto gênero literário, os folhetos apresentam características mais homogêneas, tais como

uma poética rigorosamente seguida e uma temática inspirada na vida do sertanejo.

Deste modo, há uma diferença entre as duas literaturas cotejadas, já que a de cordel

portuguesa é definida como um gênero editorial, enquanto a brasileira de folhetos é

considerada um gênero literário.

3.3 Literatura de folhetos brasileira, a sua autonomia

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O fato de a literatura brasileira às vezes aparecer vinculada às tradições portuguesas,

não condiciona aquela apenas uma extensão desta, pois o intrincado processo de

interpenetração cultural envolve muitos fatores. Ademais, a aculturação de alguns elementos

culturais ao mesmo tempo em que une as respectivas tradições distancia-nas.

Concernente às produções artísticas desenvolvidas em solo brasileiro, a rigor,

sobressaem-se os elementos pátrios tanto na fase criadora quanto na fase de recepção da obra

pelo público. Este já havia se formado e se individualizado a partir das relações sócio-

histórico-culturais que modelavam a jovem nação:

A literatura de cordel, editada no Brasil desde a metade do século XIX, torna-se, nos

primeiros anos do século XX, um sistema literário complexo e independente do

sistema literário institucionalizado, com seus poetas, com suas casas editoriais;

pertencendo, geralmente, aos próprios poetas, com seus circuitos de distribuição e,

sobretudo com o seu público; um público de iletrados, senão analfabetos,

originalmente do mundo rural. (SANTOS, 2006, p. 59, grifo nosso).

Assim, tais elementos particularizam a produção literária brasileira, conferindo-lhe

autonomia, em razão de um conjunto de temas e obras aparelhado, destinado a um público

bem definido e, sobretudo, a partir da formação de artistas vernáculos manipulando todo um

arsenal cultural que florescia em solo brasileiro:

Mas, justamente porque é comunicação expressiva, a arte pressupõe algo diferente e

mais amplo do que a vivência dos artistas. Estas seriam nela tudo, se fosse possível

o solipsismo. Mas, na medida em que o artista recorre ao arsenal comum da

civilização para temas e formas das obras, e na medida em que ambos se moldam

sempre a um público, atual ou prefigurado (como alguém para quem se exprime

algo), é impossível deixar de incluir na sua explicação todos os elementos do

processo comunicativo; que é integrador e bitransitivo por excelência. (CANDIDO,

2006, p. 32, grifo do autor).

É com base nesse processo “integrador e bitransitivo por excelência” do processo

comunicativo, defendido por Candido (2006), que analisaremos a literatura de folhetos

brasileira. Dentro desta perspectiva, os autores, as obras, o público e sua recepção não devem

ser dissociados (CHARTIER, 1998).

Esses aspectos destacados por Candido (2006) variavam conforme o enfoque dado ao

processo artístico, isto é, na medida em que os primeiros grupos se manifestavam a partir da

definição da posição social do artista, bem como no arranjo dos receptores de suas produções.

Ao passo que os segundos grupos de análise eram pautados na forma e no conteúdo das obras

produzidas, enquanto os terceiros atuavam na sua transmissão. Aliás, o mercado editorial

assumiu um dos pilares da consolidação da literatura de folhetos como um gênero artístico-

literário.

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Por isso, o autor destacou quatro momentos da produção, a saber: “a) o artista, sob

impulso de uma necessidade interior orienta-se segundo os padrões de sua época; b) escolhe

certos temas; c) usa certas formas; d) a síntese resultante age sobre o meio.” (CANDIDO,

2006, p. 31).

Assim, podemos inferir que a reunião de todos esses elementos nos permite analisar

nas obras artísticas as marcas identitárias das sociedades na qual são articuladas, sem,

contudo, desconsiderar a qualidade estética do texto literário.

Segundo Abreu (2006), uma das características mais marcantes da literatura de

folhetos brasileira, com relação à literatura de cordel portuguesa, é a uniformidade que essa

possui enquanto gênero literário. O conteúdo e a forma das obras seguem um padrão

rigidamente seguido por seus poetas e/ou editores proprietários e exigido pelos seus leitores

e/ou ouvintes.

Então, a partir de todas essas considerações o que seria a literatura de folhetos

nordestina?

Num evento patrocinado pela Universidade Federal do Ceará, ocorrido em 1976, que

tinha como finalidade discutir o tema, perguntaram a Raymond Cantel- professor da Sorbonne

e de alta eminência no assunto- definiu os folhetos brasileiros como uma espécie de poesia

narrativa, impressa e popular (LOPES, 1983).

Analisaremos alguns fragmentos do folheto A índia fidalga, do poeta João José da

Silva:

Hoje eu não posso contar

como em tempo de rapaz

porém com as rimas francas

a musa ainda me traz

vou contar o ocorrido

que se passou em Goiaz.

No ano mil oitocentos

um distinto portuguez

embarcou em Portugal

com a sua esposa Inez

pró Brasil e em Goiaz

sua residência fez.

Chamava-se o dito moço

Antonio Lopez Carneiro

tinha vinte e quatro anos

e além de ter dinheiro

era filho de um marques

de sua fortuna herdeiro.

Chegando ele em Goiaz

adquiriu duas datas

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de terra por pouca coisa

ambas cobertas de matas

regadas por dois riachos

com gigantescas cascatas (SILVA,J.J., [19--]a, p. 1).

Primeiramente, este folheto nos chama atenção pelo título Índia fidalga. A partir daí

observa-se já a confluência das duas culturas, a portuguesa e a brasileira, interagindo no

mesmo ambiente sertanejo. O poeta introduz sua narração dizendo que vai contar um

ocorrido, que apesar da sua idade um pouco avançada, pode obliterar alguns detalhes da

história. No entanto, as minudências são trazidas à tona, ao serem rimadas.

Uma vez que as “rimas francas” às quais ele se refere no terceiro verso da primeira

sextilha são reavivadas pela musa, ou seja, a memória. Assim, podemos perceber claramente

essa ligação entre memória, tradição e cultura da oralidade. Destaca-se, desse modo, a cultura

da oralidade no arcabouço estrutural da narrativa.

Além do mais, há na temática narrada outra nuança que não podemos deixar de

comentar, pois se trata justamente de um acontecimento que resgata os primeiros momentos

da colonização portuguesa, já que conta a história de um fidalgo português, Antonio Lopez

Carneiro, que veio para o Brasil fazer fortuna.

A quarta sextilha descreve com detalhes o processo de colonização, no qual o

colonizador vai se apossando das terras brasileiras e impondo a sua cultura, fato que segue

descrevendo nas outras subsequentes:

O grande rio Araguaia

abrindo dois braços faz

a ilha do bananal

que por ser grande demais

era habitada por índios

ferozes e canibais.

Antonio Lopes morava

num monte bem descoberto

com mais de 50 escravos

com suas casinhas perto

quem fosse ali não diria

que o lugar era deserto.

Vivia de explorar minas

que lhe dava grande renda

ele então sem perder tempo

construiu uma fazenda

com mais de duzentas vacas

todas vindas de encomenda (SILVA, J.J.,[19--]a, p. 2).

Os versos acima refletem o patrimonialismo português, as grandes propriedades de

terras isoladas, a criação de gado, a escravatura constituindo um sistema de produção.

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Entretanto, estes ganharam novos elementos autóctones brasileiros, como, por exemplo, a

presença do elemento nativo.

Dessa forma, o poeta polariza o conflito narrativo, matizando-o no choque cultural

resultante do contato estabelecido entre as duas culturas cotejadas, a da metrópole portuguesa

e a nativa brasileira. Destaca-se, por sua vez, a presença do imaginário português formado a

partir do que se pensava acerca do Brasil colônia e seus nativos, considerados selvagens e

canibais.

No respectivo folheto, o poeta resgata da tradição popular esse imaginário e o plasma

através da captura da família do fidalgo português Antonio Lopes e sua mucama por uma

tribo de índios canibais:

Num domingo as duas horas

eles iam passeando

Antonio com dona Inez

adiante conversando

e uma escrava com Celina

atraz os acompanhando.

Com a beleza do rio

foram descendo e chegaram

pertinho duma floresta

donde ligeiros pularam

uns vinte índios ferozes

e logo a Antonio o agarram.

Dona Inez devido ao medo

deu um grito desmaiou

e um índio moço e robusto

e ela logo amarrou

e outro com uma flexa

a escrava transpassou (SILVA, J.J.,[19--]a, p.3).

De um típico passeio de domingo da família portuguesa, uma situação dantesca foi

gerada; apreendidos, eles foram levados à tribo; a escrava morta foi devorada por eles,

enquanto os demais foram destinados a outros índios. Dona Inez foi oferecida ao filho do

cacique, e dom Antônio a uma de suas filhas – a pequena Celina –, que por ser uma criança

muito bonita, passou a ser disputada por muitos membros da tribo.

Diante de tamanha desgraça, Dona Inez se suicida, pois lhe apavorou a ideia de ser

desposada por um silvícola. Seu esposo pensou em fazer o mesmo, no entanto, não quis

deixar sua filha entregue à própria sorte, e por isso, o fidalgo português passou a viver

maritalmente com a índia Pamã, que a adotou como sua filha.

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Celina cresceu entre os índios, e aos nove anos, foi resgatada por um bando de

bandeirantes. A pequena já estava adaptada à cultura indígena, entretanto ainda preservava

algo da sua cultura de origem:

Celina naquele tempo

seus nove anos fazia

e na linguagem dos índios

falava e compreendia

e também em português

alguma coisa entendia.

Perguntou Correia a ela:

- Quem foi que ensinou a ti

palavras da nossa língua?

e ela disse: Eu aprendi

na aldeia conversando

com o meu pai Antonio.

Então outro lhe perguntou

como se chamava ela

ela fitando a floresta

respondeu que o nome dela

era Celí e sorriu

se tornando a índia mais bela (SILVA, J.J.,[19--]a, p. 10, grifo nosso).

Então, a pequena fidalga Celina se transformou na índia Celí. Assim, podemos

observar este processo de interpenetração cultural, captado pelo poeta popular e vertido

artisticamente em folheto pela cultura popular nordestina, conforme se lê nos versos: “Celí

porque os índios/ na língua não tinha jeito/ de pronunciar Celina/ pois os índios têm defeito

de ser rude e por isso/ não pronunciavam direito” (SILVA, J.J.,[19--]a, p. 10).

Conforme vimos no folheto analisado, o seu eixo narrativo é estruturado de forma

linear e com um enredo extenso, mas simples, no qual os seus personagens não são

aprofundados psicologicamente. Há presença de elementos tipicamente populares com cenas

dinâmicas de aventuras, dramas pessoais e histórias de amor com um final feliz, sentimentos

de valor e honra, sobretudo.

A partir daí podemos formular dois quesitos que fomentaram as marcas da oralidade

nos folhetos: a grande quantidade de analfabetos presentes na região nordestina à época do

surgimento dos folhetos e a poesia cantada; ou seja, o gênero poético-musical “[...] chamado

repente ou cantoria, comum na região Nordeste do Brasil. Seus poetas são chamados

cantadores, repentistas ou violeiros.” (SAUTCHUK, 2012, p. 17).

Essa modalidade artístico-musical era eminentemente oral e anterior a literatura de

folhetos. Assim, as cantorias encabeçavam uma tradição poético-musical que corroborou para

a formação da literatura de folhetos:

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Os folhetos de cordel, escritos quanto a seu modo de composição, podem ser orais

quanto à propagação e à fruição – visto que eles costumam ser declamados, e não

apenas lidos. Muitas modalidades de estrofes utilizadas na cantoria são também

comuns ao cordel que compartilha com a cantoria as mesmas regras de métrica e

rima. Ambos têm como temática recorrente o Nordeste pastoril (valorizando a vida

no sertão e a perspectiva do sertanejo diante do universo urbano), e são

simbolicamente identificados com esse universo social. Muitos cantadores afirmam

uma superioridade da cantoria em relação ao cordel, argumentando que fazem de

improviso algo que os cordelistas necessitam de mais tempo para escrever, e que,

por isso, todo cantador seria também capaz de fazer cordéis. Não é verdade: o cordel

exige a habilidade de criação de uma narrativa extensa “com começo, meio e fim”,

um sentido e uma moral da história. Esta capacidade não se faz presente na

habilidade do repentista para improvisar. (SAUTCHUK, 2012, p. 17, grifos do

autor).

De acordo com essa perspectiva, o estilo incorporado nos folhetos era,

sumariamente, tributário das cantorias. Porém, a literatura de folhetos e a poesia cantada, dos

desafios e cantorias são gêneros artísticos distintos.

Mário de Andrade, no texto Romanceiro de Lampião, fala-nos das duas principais

formas que a poesia do cantador nordestino assume: uma dialogada, e outra mais solista,

denominada Romance. Na primeira, há a presença de dois ou mais cantadores, e o elemento

da improvisação: “Porém, mesmo no Desafio grande número das estrofes surgidas, como de

improviso, são, na realidade, estrofes decoradas, extraídas da abundantíssima literatura de

cordel nordestina.” (ANDRADRE, 2012, p. 63).

No tocante ao Romance15, o autor enfatiza que esta modalidade é substanciada pela

poesia historiada, comunicando oralmente os fatos corriqueiros acontecidos no Brasil ou no

mundo. Posteriormente, tais histórias podiam ser coligidas pelo poeta popular, versificadas e

15 É importante fazermos uma distinção entre folhetos e romance, para que não haja interferência de terminologia

nas análises dos textos que faremos posteriormente. No E – Dicionário de termos literários de Carlos Ceia, o

termo Romance aparece em três entradas: 1) Termo em inglês para as línguas novi-latinas, latim medieval

romanice, ‘na língua românica’; 2) Designação usada na história da literatura portuguesa e galega para um tipo

de poema épico breve, destinado ao canto, transmitido e reelaborado por tradição oral, que corresponde no

âmbito peninsular, à balada europeia, e de que se conserva um conjunto de exemplares no chamado Romanceiro;

3) Forma aparentada com romaunt e roman,que no francês antigo significavam, aproximadamente, ‘romance

cortês em verso’ e ‘livro popular’. Sendo obras de ficção, os romances medievais tinham índole

manifestadamente imaginativa e não documentarista. Desde os seus inícios, no século XII, eram histórias

cavalheirescas de cometimentos extraordinários e até fantásticos, com um enredo abundante implicação

amorosa; com o tempo, passaram a ser em prosa, visualizando sobretudo entreter mas só ocasionalmente instruir.

Disponível em

<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=328&Itemid=2> Acessado em:

17 de fev. de 2015.

Provavelmente, o folclorista Câmara Cascudo, ao se referir à acepção clássica do conceito, ele se remete ao

Romanceiro, amplamente cultuado na Península Ibérica. Entretanto, com relação à literatura de folhetos

brasileira, há uma diferença terminológica entre estes dois termos ‘folhetos’ e ‘romance’, como postula Santos

(2006, p.62): “Para simplificar a designação, chamaremos aqui de folheto, a todo texto escrito, publicado e que

circula e que foi vendido como tal, e romance a todo texto transcrito a partir de uma publicação oral.” Deste

modo, o romance seria uma das modalidades dos folhetos.

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impressas em folheto. Logo, a forma do Romance das cantorias mantém uma estreita relação

com a origem dos folhetos impressos.

Com efeito, partimos do princípio de que o fenômeno literário, de forma ampla,

caracteriza-se como uma criação estética da linguagem. Portanto, não se realiza apenas

quando escrito; mas, manifesta-se também na modalidade oral (ALCOFORADO, 2008).

Sobretudo porque o enfoque dado à função da voz explora os recursos translinguísticos de

comunicação, tais como: o ritmo e as sonoridades, a fim de favorecer a memorização. Assim

que, podemos observar como os artifícios da vocalidade também foram reproduzidos aqui;

primeiramente nas cantorias e, a posteriori reverberaram nos folhetos. Ademais, percebe-se

ainda, as marcas da oralidade impressas no tom declamatório, na linguagem simples e, por

conseguinte, no tipo de verso muito próximo à fala:

Há unanimidade em se considerar o verso setissilábico o “mais natural” da língua

portuguesa, sendo, carinhosamente, batizado de “redondilha maior” [...] O povo a

usa frequentemente: “valei-me Nossa Senhora!” “Água mole em pedra dura, tanto

bate até que fura”... Nasceu no primeiro momento da língua, quando o galego e o

português ainda se confundiam no que chamaremos daqui por diante de galego-

português, da metrificação em latim litúrgico, em língua romance e em árabe

europeu da idade média [sic]. (WANKE, 1973, p. 26).

Com efeito, as raízes da literatura brasileira mantêm um forte vínculo com a cultura

da oralidade e sua recepção “[...] não abre mão do seu tempo comunitário” (AYALA, 1997, p.

161). Nesta, o artista popular – cantador e/ou repentista, contador de estórias e/ou poeta

mantém uma estreita relação com o seu público, cuja interação é fundamental para a

continuação da tradição

Segundo Oliveira (2012, p. 50), através da arte dos cantadores e/ou repentistas em

suas cantorias, observa-se “A necessidade de ver o cordel como ação poética que implica

considerar a sua oralidade latente.” Daí tem-se o aproveitamento desses recursos mnemônicos

mesmos em textos impressos, individualizando a poesia brasileira do sertão nordestino.

Ora, em se tratando da poesia expressa na literatura de folhetos, vemos o livre

trânsito do oral e do escrito a partir da tênue barreira, que ao invés de delimitar estes dois

tipos de modalidades, intercala-as.

As cantorias ganham força e relevância especialmente na respectiva região brasileira.

Infelizmente não há registro das primeiras cantorias nos três primeiros séculos da colonização,

e mesmo os registros coligidos não serem totalmente confiáveis, estes “[...] carregam consigo

uma marca fundamental: o caráter fortemente oral dessa produção, tanto no que tange à

composição quanto à transmissão.” (ABREU, 2006, p. 73).

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Segundo Cascudo (1984b), os cantadores usavam como fonte de inspiração os

romances vindos de Portugal. Entretanto, esses textos passavam por um processo de recriação

enquanto etnotextos, na medida em que eram vertidos para sextilhas com o intuito de facilitar

o desenvolvimento melódico das habituais cantorias.

Esses artistas usavam os temas clássicos da tradição medieval e seus personagens

como modelos de comportamentos éticos ou intelectuais em suas canções, sob as quais ainda

pairavam uma anacrônica aura medieval de configuração de mundo:

Cavaleiros andantes, paladinos cristãos, virgens fieis, esposas heróicas, ensinaram as

perpétuas lições das palavras cumpridas, a unção do testemunho, a valia da coragem,

o desprezo pela morte, a santidade dos lares. O folclore santificado sempre para os

humildes, premiando os justos, os bons, os insultados, castigando inexoravelmente o

orgulho, a soberbia, a riqueza inútil, desvendo a calúnia, a mentira, empresta às suas

personagens a finalidade ética de apólogos que passam para o fabulário como termos

de comparação e referência. (CASCUDO, 1984b, p. 28).

Por isso, após tempo de caldeamento cultural, não era difícil estabelecer uma ponte

dialógica entre essas duas culturas construídas a partir das comparações e referências feitas

por aqueles que contavam as histórias; uma vez que estas compartilhavam um imaginário

comum, de modo a construir uma identidade coletiva. Ou seja:

[...] enquanto a mentalidade - grande denominador comum psicológico da espécie

humana-, não personaliza nem indivíduos ou grupos; os imaginários formas próprias

de os homens verem o mundo e a si mesmos, criam elos, geram e mantêm grupos,

despertam consciência social. Ao expressar valores coletivos, os imaginários dão ao

homem a sensação de pertencer não apenas ao seu momento, mas de fazer parte de

uma história. (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 82).

Com base nesses pressupostos, destacamos a maneira de como a sociedade sertaneja

se apropria dos imaginários recebidos da metrópole e o recriam, a partir de suas impressões

subjetivas. Em torno desses imaginários “[...] é que o sertanejo confronta, compara, coteja e

sente. [...] ele só está completo e perfeito dentro de suas leituras, dos ritmos das cantorias,

suas tradições guerreiras e religiosas.” (CASCUDO, 1984b, p. 24).

Deste modo, difundiu-se no sertão nordestino toda uma coleção de narrativas

advindas de muitos povos, como: árabes, francos, judeus, ibéricos e germanos, descrevendo as

aventuras de Carlos Magno, do Marquês de Mântua, de Roberto do Diabo, da Donzela

Teodora, Imperatriz Porcina, A Princesa Magalona, dentre outras.

Sobretudo porque a própria configuração sociocultural do Nordeste contribuiu para a

conservação quase “inalterada” dessas histórias. Ou seja, o isolamento das fazendas e

engenhos de açúcar, bem como a ausência de jornais da região, na opinião de Cascudo (1953,

p. 24):

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[...] uma vida familiar mais intensa. Raramente o chefe da casa saía à noite. A dona,

os filhos, noras permaneciam fiéis ao serão habitual, candeeiro acesso, depois da

“janta”, fazendo sono, trabalhando nas obras maneiras, ouvindo a leitura tradicional

dêsses folhetos que vinham, de séculos, mão a mão, com seu público inalterável.

(CASCUDO, 1953, p. 24-25).

No tocante à critica literária é importante ressaltar a grande transformação artística

que estes textos em prosa sofreram ao serem transformados em versos pelos cantadores; estes

ao cantarem e/ou recitarem esse material artístico, o devolviam para a oralidade. A utilização

desses recursos estreitava os limites entre o escrito e o oral, mais uma vez.

Além do mais, nas produções nacionais começam a surgir as idiossincrasias: “Com

os feitiços da psicologia brasileira, o fastígio idiomático, saboroso de regionalismos

expressivos, de construções gramaticais curiosas, sinonímia esdrúxula e nova ou

simplesmente arcaica.” (CASCUDO, 1984b, p. 29).

Portanto, podemos falar de uma continuidade da cultura literária em solo brasileiro

assumindo as características nativas desse povo, impressas pelos poetas populares

responsáveis por captar todo este processo descrito e as transformaram em folhetos.

No que tangencia a formação do cânone, três grandes poetas destacam-se por definir

os seus modelos estéticos e textuais: Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista

e João Martins de Athayde16.

Segundo Abreu (2006), foi Leandro Gomes de Barros o pioneiro em codificar a

poesia oral e improvisada das cantorias para a forma impressa; como também o responsável

pela publicação sistemática dos folhetos. Santos (2006, p. 56) acrescenta ainda que “O

enorme sucesso editorial e popular do folheto, bem como seu modo de difusão, entre o oral e

o escrito, explica que os versos de Leandro tenham vindo substituir, na memória popular, os

textos de transmissão puramente oral.”

As primeiras edições dos folhetos apresentavam características específicas, como

descreve Terra (1983, p. 23): “Impressos em papel pardo, de má qualidade, medindo de 15 a

16 No que diz respeito ao movimento editorial dos folhetos, Lopes (1983) menciona que se iniciou com Leandro

Gomes de Barros, Chagas Batista e Pirauá. Embora se acredite que Leandro e Pirauá começaram a publicar

folhetos antes de 1900, não existem provas materiais desse fato. Em 1902, Chagas Batista publicou um folheto,

em Campina Grande, que existe até hoje na “Casa Rui Barbosa”, no Rio de Janeiro. Há outro de Leandro

publicado no Recife, em 1904. A partir dessas datas, Leandro e Pirauá dominavam o mercado de folhetos de

cordel. Depois de 1910, surgiram outros nomes de autores de folhetos, como Antônio da Cruz, Joaquim Sem

Fim, Cordeiro Manso, Manuel Viera do Paraíso, Antônio Guedes, Joaquim Silveira, João Melchíades, João

Martins de Athayde. Na década de 20, emergiu outra leva de poetas de bancada, como Romano Elias da Paz,

José Camelo de Melo Rezende, Manuel Tomás de Assis, José Adão Filho, Lindolfo Mesquita, Moisés Matias

de Moura, Arinos de Belém, Antônio Apolinário de Souza e Laurindo Gomes Maciel.

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17 x 11 cm, os folhetos publicados entre 1904 e 1930 apresentam, na sua maioria, capas

ilustradas, com vinhetas.”

A autora destaca também que as capas e o número de páginas apresentavam as suas

particularidades; por exemplo, nas capas deveriam aparecer os nomes do autor, dos títulos dos

poemas e da tipografia e o endereço do local de venda. Com relação ao número de páginas,

podiam variar entre 16, 32 e 48 páginas.

No entanto, até 1930 predominavam as 16 páginas: “Os poemas, em sua maioria,

eram curtos, variavam entre 7 e 29 estrofes (70%) e 30 a 39 estrofes (20%). Apenas alguns

dos poemas sobre cangaceiros ocupavam 16 páginas.” (TERRA, 1983, p. 23).

Os poetas que se dedicavam à profissão precisavam garantir os direitos autorais e

propriedade dos textos. Para tanto, Terra (1983) enfatiza que além de seus nomes constando

nas capas, os seus retratos também eram impressos. Não sendo suficientes, outros dois

recursos passaram a ser usados para assegurar a autoria: os acrósticos e os registros das obras

na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Quanto às produções, os textos geralmente eram impressos em tipografias

particulares, entretanto, com o sucesso das vendas dos folhetos, os próprios poetas montaram

as suas tipografias particulares: “A partir de 1903 ou 1909 começam a funcionar tipografias

de poetas populares, mas só em 1918 é que a impressão de folhetos passa a ser feita quase que

inclusivamente nestas.” (TERRA, 1983, p. 24).

Por conseguinte, após a sua consolidação como modalidade literária no final da

década de 20, o ápice ocorreu entre as décadas de 20 a 50. Nesse espaço de tempo, havia se

consolidado uma rede de distribuição e centenas de títulos publicados, além de um público

assíduo e um comércio lucrativo. Aliás, nesse âmbito editorial, o poeta assume também a

função de editor. A figura do editor-proprietário é uma característica típica da literatura de

folhetos brasileira:

De toda forma, o negócio continuará lucrativo e se complicará ainda mais com a

introdução da figura do editor-proprietário, um poeta que comprava os direitos

autorais de um ou vários folhetos, pagando em dinheiro ou com exemplares da obra

impressa. Não se tratava de uma transação editorial como a que conhecemos hoje,

pois o editor adquiria também o direito de suprimir o nome do autor dos folhetos

publicados, ou mesmo substituí-lo por o seu próprio. (ABREU, 2006, p.102).

É quando surge João Martins de Athayde, o primeiro editor proprietário de renome,

que fez muitas mudanças na impressão dos folhetos. Portanto, consolidou o seu formato, de

modo que a forma gráfica do folheto estava instituída:

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Vinculou a criação poética a um número determinado de páginas, sempre em

múltiplos de quatro, atendendo a demandas tipográficas e econômicas [...] e passou a

publicar uma única história por folheto, mesmo que para tanto fossem necessários

vários volumes. (ABREU, 2006, p. 104).

Quanto ao público dessa literatura, a grande maioria era constituída de analfabetos.

Então, o que justificava o sucesso de venda?

Ora, o que parece paradoxal é de fato facilmente explicável, dado a enorme

propagação desses folhetos em zonas rurais. Estes locais não apresentavam opções de lazer;

além do mais, os sistemas de comunicação eram deficientes. Por tudo isso, a leitura precisava

ser feita em voz alta e de forma comunitária.

Dessa maneira: “Uma grande tradição de pensamento, é verdade, considera e

valoriza a voz como portadora de linguagem já que na voz e pela voz se articulam as

sonoridades significantes.” (ZUMTHOR, 1993, p. 21).

Por conseguinte, essa produção poética estava pautada no valor da palavra viva,

cujas leituras performáticas se encarregavam da atualização da tradição, como bem da sua

perpetuação. Nesses termos, o que realmente significa um texto é a forma como ele é

aprendido. Desse modo tanto na leitura individual quanto na coletiva, a sua significância é

condicionada pelo efeito que causa nos receptores, por meio do espetáculo conduzido pelo

arcabouço da voz.

Terra (1983, p. 36) pontua que a divulgação dos folhetos era feita também nas

cidades e capitais: “Os romances, pelejas e mesmo as histórias sobre cangaço, deveriam

interessar ao público rural e urbano.” Em contrapartida, o perfil do público alvo sofreu

interferência do momento histórico:

No período estudado, a questão de como eram lidos os folhetos só pode ser

respondida indiretamente através do conjunto dos textos editados e na sua relação

com o momento histórico. A verificação do código de leitura do público é a base

para a compreensão da presença e permanência de alguns textos no Nordeste.

(TERRA, 1983, p. 36).

A recepção das obras é sumamente relevante, pois, ajuda-nos a compreender como se

deu a permanência de alguns textos no Nordeste. Dessa forma, destacamos a consolidação da

literatura de folhetos brasileira, que floresceu na região Nordeste no final do século XIX, e até

a década de 20 do século XX, havia alicerçado suas bases, como pontua Abreu (2006, p. 104):

“[...] definem-se as suas características gráficas, o processo de composição, edição e

comercialização e constitui-se um público para esta literatura.” Segundo a autora, esse

processo não se associa em nada à literatura de cordel portuguesa, sobretudo porque:

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Aqui, havia autores que viviam de compor e vender versos; lá, existiam adaptadores

de textos de sucesso. Aqui, os autores e parcela significativa do público pertenciam

às camadas populares; lá, os textos dirigiam-se ao conjunto da sociedade. Aqui, os

folhetos guardavam fortes vínculos com a tradição oral, no interior da qual criaram

sua maneira de fazer versos; lá, as matrizes das quais se extraíam os cordéis

pertenciam, de longa data à cultura escrita. Aqui, boa parte dos folhetos tematizavam

o cotidiano nordestino; lá, interessavam mais as vidas dos nobres e cavaleiros. Aqui,

os poetas eram proprietários de sua obra, podendo vendê-la a editores, que por sua

vez também eram autores de folhetos; lá, os autores trabalhavam fundamentalmente

com obras de domínio público. (ABREU, 2006, p. 105).

Com base nessa perspectiva, mesmo com tantas diferenças significativas entre estas

duas modalidades, o ponto nevrálgico é a produção textual: “Os folhetos nordestinos possuem

características próprias que permitem a definição clara do que seja esta forma literária.”

(ABREU, 2006, p. 105).

Assim sendo, uma das principais características desse gênero literário é formação de

ciclos; então, a partir de agora, centraremos a nossa atenção no ciclo carolíngio dos folhetos

brasileiro. Este é o ultimo reduto do “universo configuracional carolíngio” (CORREIA,

1993).

No próximo tópico discutiremos a constante recriação da matéria da França e sua

apropriação pelo poeta popular que inspirou a formação de um pequeno ciclo de folhetos e

sobre a sua importância para a formação e a consolidação do respectivo gênero literário no

Nordeste brasileiro.

3.4 O ciclo carolíngio dos folhetos nordestinos

Segundo Abreu (2006) uma das grandes particularidades dos folhetos brasileiros é a

temática da vida cotidiana dos nordestinos inspirando tais produções. No entanto, com base

no que discutimos até aqui, muitos folhetos também se inspiraram nos imaginários herdados

do colonizador ibérico, dentre os quais destacamos o cavaleiresco medieval.

Em nosso estudo, a atenção se centra neste imaginário configurado em torno da

matéria da França, como o que aparece nos versos: “Os cavalheiros pararam/ e tiveram muita

alegria/ em medir as suas armas/ com o poder da Turquia/ desembainharam as espadas/ a

ver o que parecia” (ATHAYDE, 1960, p. 11).

Ao analisar o ciclo carolíngio, um dos temas compartilhado por ambas as literaturas

cotejas, podemos de fato compreender como este processo de apropriação se dar no universo

do conto popular. Além do mais, o conjunto de folhetos inspirados por esse ciclo ajuda na

compreensão de como os poetas populares constroem o seu repertório. Este resulta das

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“brechas” culturais que se formam a partir do intercâmbio de culturas heterogêneas

(CHARTIER, 2009).

Dentro de uma perspectiva de continuidade cultural, as histórias carolíngias recriadas

no Brasil são um exemplo de como a literatura popular brasileira é rica e complexa,

sobrepondo gêneros textuais diversos, a fim de reintegrar, amalgamar e comportar a “massa

literária” trazida pelo colonizador europeu ao novo contexto sociocultural: o sertão nordestino

(CASCUDO, 1953).

Aliás, a total compreensão do fenômeno de hibridização cultural nos ajuda analisar

como acontece a composição dos folhetos brasileiros a partir de suas engrenagens primícias;

com o propósito de entender como os recursos exógenos de outras culturas não foram capazes

de interferir na natureza autóctone de suas narrativas, tampouco na qualidade estética dos

folhetos.

Muito pelo contrário, dotaram-na de um cabedal antiguíssimo da milenar cultura

europeia, enriquecendo-a culturalmente e, graças ao qual, a tradição literária brasileira

ascende a histórias como às do Imperador Carlos Magno e aos seus lendários cavaleiros

medievais, que datam do século VIII, por exemplo, como se lê nos versos: “Os 12 pares

encontraram/ o general Almendrol/ trazia vinte mil homens/ tudo soldado espanhol/ então

travou-se combate/ tremendo os raios do sol” (ATHAYDE, 1960, p. 5).

Sabe-se que o ciclo carolíngio presente nos folhetos brasileiros permanece no

universo sertanejo por questões do imaginário, através da linguagem e, sobretudo, por meio

de suas figuras arquetípicas pautadas em ideais de valentia e destemor que, através dos

mecanismos adaptativos, elaborados pelos poetas populares, recriaram-nas acomodadas ao

contexto sociocultural do povo nordestino que delas se apropriou.

Durante séculos, o homem do sertão enfrentou sempre lutas violentas. Primeiro,

contra os índios e as grandes intempéries naturais; segundo, pela posse da terra e contra

adversários políticos. Por isso que, o sertanejo aprendeu a admirar o homem destemido e

valente. Daí a figura do herói ser construída sob a “[...] coragem pessoal, o desassombro, o

arrojo e a intrepidez de enfrentar um ou vários adversários sem hesitação.” (SIQUEIRA,

2007b, p. 270). Isto é uma constante na matéria carolíngia, como aparece refletido nos versos:

“Os valentes paladinos/ vendo todas lanças armadas/ avançaram nos cem homens/ com suas

cortantes espadas/ mataram então todos os cem/ logo em poucas cutiladas” (ATHAYDE,

1960, p. 11).

De acordo com Ferreira (1993) os folhetos nordestinos gerados a partir das façanhas

de Carlos Magno e das aventuras de sua hoste possuem tendências pré-modernas e arcaizantes

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enquanto um grande texto que se estrutura através dos mesmos códigos sem, contudo,

desconsiderar as suas variações, conforme ilustram os versos: “Então chegou a polícia/ a

guarnição investiu/ uniu-se logo a Roldão/ Ricarte da Normandia/ eles só dois paladinos/

lutando com a Turquia” (ATHAYDE, 1960, p. 22, grifos nossos).

A presença da polícia lutando com os paladinos, por exemplo, fazem como os textos

recriados se individualizam através de um processo de adaptação, cujas soluções encontradas

pelo poeta popular não o desligam de uma memória narrativa precedente; tampouco

desconsidera a sua sociedade de origem, bem como o público para qual dever direcioná-la

doravante (FERREIRA, 1993).

O imaginário que realimenta a matéria da França tem sua origem histórica. Porém, a

partir do século XII, converte-se em matéria literária. Segundo Siqueira (2009) o mito

carolíngio se origina numa antiga tradição oral francesa inspirada em um fato histórico: a

batalha de Roncesvales. Essa contenda foi tratava entre a tropa de elite de Carlos Magno e o

exército do rei serraceno Marcilio, de Saragossa, em 15 de agosto de 778, na região de

Navarra, situada entre a Espanha e a França. Nessa fatídica batalha perecem os Doze Pares de

França, conforme descreve os documentos históricos.

Correia (1993) aponta com fontes documentais da respectiva altercação duas obras

contemporâneas: Vita Caroli Magni, uma biografia escrita por Eginhardo por volta de 830; e

os Anais Reais, texto histórico sobre o Império Carolíngio. Embora conste nos relatos oficiais

que a hoste guerreira de Carlos Magno morre numa emboscada de guerreiros bascos, o poema

épico La Chanson de Roland (2004) escrito entre 1087 e 1090, reelabora o mito carolíngio e o

transforma em matéria literária.

Este poema narra à respectiva luta no desfiladeiro de Roncesvales, na qual Roland,

líder dos cavaleiros e sobrinho dileto do Imperador perece, juntamente com Olivier, o

arcebispo de Turpin, Ricarte, Guy de Borgonha e os demais paladinos. Porém, adiciona um

elemento novo à matéria: não são os bascos os autores da emboscada à hoste carolíngia, senão

os mouros mulçumanos. Desse modo, alteram os dados históricos registrados oficialmente nas

duas obras mencionadas e reescrevem a lenda carolíngia sob a visão dos cronistas que

estavam a serviço dos reis cristãos (SIQUEIRA, 2009).

Assim, literariamente o “universo configuracional carolíngio” é modificado e

redirecionado, polarizando, por sua vez, a luta dos cristãos contra os mouros (CORREIA,

1993). Conforme o poema, Carlos Magno não consegue evitar a tragédia. Chega tarde demais.

Porém, mata todos os inimigos mulçumanos, mostrando clemência apenas àqueles que

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quiseram se batizar, como foi o caso da esposa do rei Marcilio e de alguns mouros

sobreviventes.

Logo, a batalha de Roncesvales, que aconteceu no século VIII, foi alvo de recriações

ao longo da Idade Média por parte de poetas e jograis. O fato do ataque aos francos ser

realizado pelos mouros e não pelos bascos, como aponta a história oficial, denuncia que

histórias de Carlos Magno foram escritas e transmitidas em plena época da Reconquista e das

Cruzadas.

Sobre o tema das modificações da lenda carolíngia pela Igreja, Siqueira (2009, p. 6)

postula:

Somente no final do século XII, com a atuação dos monges de Cluny e de Cister,

que difundiram a matéria carolíngia e a associaram a retomada do túmulo de

Santiago de Compostela, essa visão passa a mudar lentamente até chegar ao ponto

em que os heróis da famosa batalha de Roncesvales constarem em cancioneiros,

romances e crônicas ibéricas. Já no século XV, verifica-se na Península, uma

enorme profusão de novelas e romances de cavalaria sobre o tema.

O poema épico La chanson de Roland (2004) recria no imaginário popular um dos

grandes cavaleiros Roland e imortaliza a hoste carolíngia. Ademais, esse personagem

carismático e seus companheiros são convertidos em mártires do Cristianismo;

potencializando, por assim dizer, o status mítico da matéria carolíngia ao morreram

defendendo a causa cristã.

Em razão disso, essa narrativa foi a grande responsável pela propagação do mito

carolíngio entremeado de preceitos da Cristianismo medieval na Península Ibérica, lugar onde

estas lutas político-religiosas foram mais intensas. Por conseguinte, foi esse imaginário que

chegou ao Novo Mundo mantendo uma relação direta com a literatura de folhetos brasileira,

conforme ilustram os versos abaixo:

Vitoriosa campanha contra

os árabes da Espanha

que terminou com a morte

de Rolando sem fasanha

em Ronces Valles foi

mesmo de tira manha.

Esta guerra foi a maior

que Carlos Magno enfrentou

foi incalculável

quantos ele matou

sua espada respeitada

muitas cabeças cortou.

Guerreiro hábil e político

do poder extraordinário

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tinha uma força oculta

quando era necessário

mas por ter fé em Deus

não temia o contrário (FREIRE, [19--], p. 2, grifo nosso).

Retomado a temática narrada no poema épico La Chanson de Roland (2004), os

versos retirados do folheto A história de Carlos Magno e dos doze pares de França, do poeta

popular João Freire Lopes, refletem o imaginário que foi construído a partir da batalha de

Roncesvales, recriado-a no sertão nordestino.

As rivalidades seculares entre estes dois povos e suas divergentes crenças religiosas

passaram a ser o pano de fundo das inúmeras novelas e romances cavaleirescos que se

inspiraram na matéria carolíngia. Esta temática foi apropriada por muitos países e diferentes

continentes, e, por conseguinte as alterações eram inevitáveis. Porquanto deviam ser

adaptadas a novos contextos socioculturais.

A título de exemplo do que acabamos de discutir, escolhemos dois fragmentos do

folheto A prisão de Oliveiros, nos quais Ferrabraz, filho do Almirante Balão, suplica ao pai

para que ele se convertesse ao Cristianismo:

Ali Ferrabraz

aos seus pés se ajoelhou

banhado em pranto rogou

não adorar ídolos mais

dizendo: é satanaz

que o vive perseguindo

meu pai está se iludindo

quando o Eterno o chamar

o senhor ha de chorar

o demônio entra sorrindo.

Se o meu pai fosse cristão

como Carlos Magno é

se lutasse pela fé

tivesse religião

não indo contra a razão

como um rei cristão não vai

pois da lei de Deus não sai

se em Deus tivesse esperança

nem dez mil pares de França

não venceriam o meu pai (SILVA, 1958a, p. 42-43).

Como base nos versos, observamos como o seu imaginário bélico-cristão era

propagado no sertão, lugar em que foi bem acolhido. Sobretudo porque, no Nordeste

brasileiro, a estrutura social rural e patriarcal contribuiu para uma maior aceitação dos ideais e

valores que estes cavaleiros cristianizados representavam.

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A saber, os paladinos se afinaram com herói popular sertanejo, uma vez que são

personagens-símbolos, representando anseios coletivos, ao passo que também desenvolviam

uma função social na sociedade nordestina. (PELOSO, 1996).

Estes cavaleiros eram a imagem ideal dos que lutavam por uma causa maior, a ponto

de darem suas vidas em prol daquilo que acreditavam e, no caso, era a fé cristã. Mas não

somente isso, eles representavam o Bem, enquanto os mouros personificam o Mal que

precisava ser extirpado, tal como refletem os versos: “Ali Roldão respondeu/ se ainda não

conhecia/ o carrasco da Turquia/ repare bem quem sou eu/ braço que nunca torceu/ milhões

de turcos armados/ grandes guerreiros falados/ vassalos velhos escolhidos/ por mim já foram

abatidos/ - estão no livro de finados” (SILVA, 1958a, p. 24).

Daí o conflito chegava ao nível da mentalidade ao simbolizar o maniqueísmo

presente em toda a história da humanidade: a luta do Bem contra o Mal, no qual o “[...] mouro

ou turco vai assumir o papel de permanente antagonista, de pretexto à conversão como

proposta de uma moralidade cristã, que implica sempre mudança.” (FERREIRA, 1993, p. 3).

Conforme se lê nos versos: “Eu venho comissão/ do meu tio imperador/ que manda dizer ao

senhor/ que se fizesse cristão/ do contrário em sua mão/ havia de se acabar/ ele havia de

botar/ deixando exemplo ou mostra/ o senhor dê-me resposta/ que é necessário levar”

(SILVA, 1958a, p. 45, grifo nosso).

Além disso, não era muito difícil identificar os cangaceiros como os personagens das

novelas e romances cavaleirescos, a partir de uma imagem idealizada de herói considerando o

contexto sociocultural violento em que o sertanejo estava inserido, assim como exemplificam

os versos de abertura do folheto Encontro de Lampião com Antonio Silvino: “Para quem

gosta de ler/ história de valentão/ que sangra o outro na guela/ e apara o sangue na mão/ eu

vou versar o encontro/ de Silvino e Lampeão” (LEITE, [19--], p. 1).

Afinal, esses tipos de “heróis do mal” (SIQUEIRA, 2007a) por meios de suas ações,

expressavam os desejos mais íntimos do sertanejo, almejando justiça e hombridade ante as

atrocidades acometidas pelos grandes latifundiários, reproduzindo, por sua vez, a luta do Bem

contra o Mal. Assim como os que aparecem nos versos do já citado folheto: “Então Silvino

tornou-se/ num terrível cangaceiro/ respeitado no sertão/ e no dedo era ligeiro/ de vez em

quando ele estava/ visitando um fazendeiro” (LEITE, [19--], p. 4, grifo nosso).

Deste modo, os valores e os sentimentos que os personagens carolíngios agregam

serem tão cultuados na tradição popular, quanto irradiados a outros personagens que, através

de um bom combate, defendem a justiça:

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Os sentimentos de valor e de honra, que estão na base dessa representação popular,

explicam também a extraordinária fortuna, nessa como em tantas outras literaturas

populares, do ciclo épico ligado a figura de Carlos Magno e dos Doze Pares de

França, que celebra no bandido o paladino do povo. (PELOSO, 1996, p. 105).

Segundo o autor, esse ideal de herói destemido, associando o bandido ao justiceiro,

cultuado pela cultura popular, justifica uma fortuna literária em que estes personagens

representados como os “paladinos do povo”, para usar um termo do autor. Conforme refletem

os versos abaixo:

Arranjou um bacamarte

e matou primeiramente

o que matara seu pai

e ficou de sangue quente

daquele dia em diante

começou a matar gente.

[...]

não podia trabalhar

aonde ganhando vinha

dinheiro para comprar

carne, feijão e farinha

agarrou o bacamarte

a foi tomar de quem já tinha (LEITE, [19--], p. 3).

Estreitam-se, desse modo, os laços entre imaginários diferentes no tempo e no

espaço, estabelecendo uma ponte dialógica entre as culturas do Nordeste brasileiro

contemporâneo e a da Europa medieval através de questões de mentalidade (FRANCO

JÚNIOR, 1991).

Em síntese, a matéria carolíngia e os seus cavaleiros arquetípicos de bravura e

destemor amalgamaram-se aos da cultura local. Em vista disso, realimentaram os arquétipos

dos heróis populares sertanejos, tais como: os vaqueiros, cabras e cangaceiros.

Todos estes eram idealizados com base nos sentimentos de destemor e valentia que

estes simbolizavam, tal como se lê nos versos: “Lampeão era disposto/ muito ligeiro e sagaz/

trocava vida por morte/ era perverso de mais/ e Antonio Silvino era/ pior que Satanáz”

(LEITE, [19--], p. 1).

O ideal de morrer defendendo a fé cristã potencializa sentimento do destemor que

sempre se sobressai aos atos de violência que estes tipos possam cometer. Algo que parece

antagônico em um primeiro momento, dentro do contexto em que é circunscrito, torna-se

perfeitamente explicado e coerente. Assim como se lê nos versos: “O almirante Balão/

vendo-se ali indefeso/ ao imperador cristão/ esse de bom coração/ como um amigo o recebeu/

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pedindo-lhe esclareceu/ que aos ídolos não adorasse/ disse que se batisasse/ qu’entregava o

que era seu” (SILVA, 1958a, p. 42).

Portanto, deparamo-nos com outro fator que possivelmente tenha contribuído para

esta grande aceitação da matéria carolíngia no Nordeste brasileiro: a religiosidade do

sertanejo. Ora, Carlos Magno trabalhava para Deus, sua coragem era dada pela Divina

Providência, tendo o poder de morte sob os ateus, bem como de clemência para com aqueles

que quisessem se batizar, conforme comprovam as sextilhas a seguir:

Carlos Magno prontificou

a trabalhar para Deus

mostrando sua coragem

combatendo os ateus

por isto era inspirado

para a defesa dos seus.

Luta contra os pagãos

que em Deus não acreditava

e seu poder tão fecundo

cada dia aumentava

ele só queria com ele

quem primeiro se batizava.

Ele era um enviado

do divino espírito santo

para defender a Igreja

nada lhe fazia espanto

sua coragem era luz

e a espada era o manto.

Nunca temi inimigo

nem também a sua potencia

sua força era invisível

dada pela providência

em defesa dos errados

a Deus pedia clemência (FREIRE, [19--], p.5-6, grifo nosso).

Deste modo, aliando-se aos ideais da Cristandade, da qual eram portadores, aos

sentimentos de valor e destemor tão apreciados pelos sertanejos, as histórias de Carlos Magno

e de seus paladinos encontraram na cultura popular nordestina um ambiente propício para

florescerem.

No entanto, embora a fama do ciclo carolíngio tenha se difundido na tradição

popular, a que se propagou no Brasil tinha a sua origem impressa e culta. Com relação ao

tema, Cascudo (2001) esclarece que,

Mas, curiosamente, essa fama ilustre que se tornou tradição popular no Brasil não

teve fonte oral e sim origem impressa, perfeitamente identificável [...] Os versos

registrados por Leonardo Mota no Ceará e a função belicosa dos doze pares de

França no território “contestado” de Paraná-Santa Catarina, no Sul do Brasil,

denunciam a procedência letrada e culta. É a História do Imperador Carlos Magno e

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dos Doze Pares de França, nas edições de Lisboa, 1723, 1728, 1789, tradução de

Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor de Algarve, e que representam

recapitulações e edições dos vários livros sucessivos, antes da forma definitiva que

alcançou nos princípios do século XIX. Já em 1820 editava-se na Bahia, in-octavo,

nas três partes, e as reimpressões portuguesas e brasileiras foram determinantes

informadoras dessa “cantoria” sertaneja ainda em nossos dias. (CASCUDO, 2001,

p.44- 45).

Segundo o autor, no Nordeste o texto fonte que inspira os folhetos é a História de

Carlos Magno e dos Doze Pares de França (1863), de Jerônimo Moreira de Carvalho.

Atribuem a sua origem à versão espanhola Historia del Emperador Carlomagno y de los

Doce Pares de Francia: e de la cruda batalla que hubo Oliveiras com Ferabrás, Rey de

Alexandria, hijo del grande Almirante Balan (1525), editada em Sevilha por um alemão

chamado Jacob Cromberger; entretanto, essa versão já era uma tradução francesa de Nicolas

de Piamonte; tratava-se de uma edição de 1478 escrita sob o nome de Fierrabrás.

O fato é que essa história francesa sofreu diversas alterações e acréscimos do século

XIII ao século XVIII17. No entanto, a tradução portuguesa de Jerônimo Moreira de carvalho

“[...] acelerou o ritmo circulatório [...] com passagens mais tumultuosas e cativantes do gosto

popular.” (CASCUDO, 2001, p. 45).

Entretanto, vale salientar que a literatura popular deixou suas marcas de forma mais

contundente, tento em vista que o ciclo carolíngio foi transmitido pelo romance cortês o que,

na opinião de Ferreira (1993), consta no romanceiro ibérico e, por conseguinte, chega ao solo

brasileiro por intermédio do conto popular.

Na opinião de Cascudo (1953, p. 30) a permanência das obras cavaleirescas ao longo

dos séculos justifica-se pelo fato de que “[...] traziam elas para o povo os sentimentos vivos de

sua predileção espiritual. Reviviam nas páginas pobres o encanto da virtude e o castigo dos

vícios detestados.” Tais elementos estavam no plano psicológico e estabeleciam uma

identidade emocional com os seus leitores.

17 Vale ressaltar que das inúmeras alterações e acréscimos em Portugal temos: “Vida do Façanhoso Roldão,

Lisboa, 1780, com 211 quadrinhas. E há em Senhora das Neves, concelho de Viana do Castelo, o Auto de

Floripes (Cláudio Basto, Silva Etnográfica, Porto, 1939), onde o ‘Partido Cristão’ é chefiado por Carlos

Magno e o ‘Partido Turco’ pelo Almirante Balão, e seu filho Ferrabrás que é vencido por Oliveiros. A princesa

Floripes, filha do Almirante Balão, apaixona-se pelo cavaleiro Guido de Borgonha, com que termina casando.

É assunto do livro II, Parte I do Carlos Magno de Moreira de Carvalho. Era o motivo emocional da canção de

gesta francesa do século XII, Fierabrás, pertencente a uma outra anterior e perdida, La Destrucción de Roma.

O Fierabrás resistiu nas impressões da Bibliothèque Bleue em França, distante e lógico provocador do Carlos

Magno na Espanha e Portugal, o primeiro desde o século XVI e o segundo no século XVIII. No Brasil o

Carlos Magno foi motivo de inspiração popular em muitos episódios que apareceram versificados, cantados,

constituindo folhetos de ampla divulgação, como a Batalha de Ferrabrás, A Prisão de Oliveiros, A morte dos

Doze Pares, pelos poetas Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athaíde, José Bernardo da Silva, Marcos

Sampaio, editados na Paraíba, Pernambuco e Ceará, com infalível mercado consumidor entre o povo e perfeita

ignorância dos letrados.” (CASCUDO, 2001, p. 45-46).

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As aventuras protagonizadas por estes paladinos e seus companheiros são elementos

básicos da cultura popular brasileira (CANTEL, 1968). Estes tinham tanta notoriedade no

imaginário popular, que muitas vezes conseguiam ultrapassar os limites da ficção. Por isso,

era difícil encontrar outra literatura para rivalizar com estas produções, uma vez que tais

produções conseguiam traduzir o pensamento literário dos seus leitores, de forma simples e

natural. Isto aparece refletido no folheto de Cripiano Batista de Sena, intitulado O assassinato

de João Caetano e a vingança de seu filho.

O folheto narra à história de João Caetano, um homem muito pobre que vivia no

sertão, cujo único filho foi batizado com o nome de Oliveiros, em homenagem ao par de

França: “Batisou um filho que tinha/ com meses de idade/ deu-lhe o nome de Oliveiros/ de

muito boa vontade/ por ser nome de um herói/ que houve na antiguidade” (SENA, [19--], p.

1).

Assim com o cavaleiro carolíngio, o Oliveiros sertanejo era muito destemido. Este

teve o pai assassinado e, ainda menino, jurou vingar a sua morte: “Disse Oliveiros chorando:

/- minha mãe sou um menino/ mas hei de andar no mundo/ procurando este assassino/ até eu

tomar vingança/ vai ser êste o meu destino” (SENA, [19--], p. 18).

Deste modo, a coragem e a violência vão estreitando laços. Tal enlace tem o seu ápice

na cena em que descreve a morte do assassino do pai de Oliveiros, um vaqueiro chamado

Siqueira:

-Se meu pai não me educou

assassino desordeiro

porque tiraste-lhe a vida

infame vil, traiçoeiro

te prepara prá morrer

hoje nas mãos de Oliveiros.

Siqueira pulou para trás

com revolver na mão

atirou em Oliveiros

na mesma ocasião

Oliveiros desviou-se

o seu tiro foi em vão.

Oliveiros pulou em cima

com seu punhal e cravou

Siqueira vendo-se ferido

já no chão quando gritou:

me acuda quem não correu

que o menino me matou.

Oliveiros gritou dizendo:

- ó! assassino tirano

queres saber quem te mata

é o filho de João Caetano

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o caçador que mataste

no Estado paraibano.

Deu-lhe outra punhalada

em cima do coração

depois saltou para trás

com seu punhal na mão

quando chegou a polícia

e deu-lhe voz de prisão (SENA, [19--], p. 21).

Tamanha reação violenta desta criança é justificada pela morte injusta do pai. Nesse

momento, o Oliveiros sertanejo se funde ao Oliveiros carolíngio, personagem corajoso que

mata a todos que se opõem aos seus ideais de hombridade.

Dessa forma, a coragem dos guerreiros e as suas façanhas estão sempre em volta a

temas de violência, uma vez que as suas ações são sempre justificadas por um motivo de força

maior, capaz de justificar qualquer ato de barbárie. Assim como os que aparecem no

fragmento do folheto A batalha de Oliveiros com Ferrabraz, no qual o par de França diz que

abaixo do seu Deus, só precisa de uma lança e uma espada: “Oliveiros respondeu:/ Ferrabraz,

fique sabendo/ que Deus tudo está vendo/ pois o mundo todo é seu/ um guerreiro como eu/

não vai atrás de cilada/ com Deus não me falta nada/ me basta os prodígios seus/ não que

mais nada do que Deus/ uma lança e uma espada” (ATHAYDE, 1976, p. 18-19).

A partir dos fragmentos coligidos, percebe-se a força do imaginário carolíngio na

literatura de folhetos. Ao analisar os dois “Oliveiros”, observa-se como todos esses elementos

elencados articulam as ações dos personagens, entremeando coragem e violência, tal como se

lê nos versos: Disse Oliveiros: “mamãe/ graças a Deus, fui-me bem/ vinguei a morte de pai/

a viúva disse: amém/ quem mata é bom ser morto/ pra saber a dor que tem” (SENA, [19--],

p. 23).

A respeito da valentia e de sua relação com o ato criminoso, Cascudo (1953, p. 31)

comenta que “A sugestão da valentia é irresistível para o povo, admirando no cangaceiro, no

bandoleiro audaz o destemor e não um ato criminoso.” À vista disso, Oliveiros sertanejo, que

mata friamente o assassino do pai é inocentado pela justiça dos homens e pela própria

consciência:

O coronel Paulino fez

um advogado decente

e depois de trinta dias

viu-se Oliveiros contente

porque no primeiro jure

foi solto publicamente.

[...]

Oliveiros viajando

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sozinho sem companhia

pensava no que fizera

ao mesmo tempo sorria

por ter vingado uma dor

que a dez anos sofria (SENA, [19--], p. 22-23).

Com base na análise desse folheto, nota-se que embora o poeta tenha se inspirado em

um conteúdo preexistente, tal evento não interfere na sua capacidade inventiva. Pois, a

inovação surge justamente com a criação da poética que subjaz ao folheto. Esta advém da

recepção destes temas apropriados por uma nova sociedade, inserida em outro contexto

sociocultural. Sobre o tema, Ferreira (1993, p. 19, grifos da autora) postula:

Verifica-se a continuidade cultural ligando presente a passado com a mediação do

texto matriz e/ou com a intercorrência de textualidades outras. Uma variabilidade

que emana dos impulsos criadores e uma seleção onde se determina, de forma

concreta, como sobrevive a manifestação e como se realiza. O relacionamento

genético não é apenas necessário mas é a condição sem a qual não se percebe o que

acontece . Um cotejo diretamente matricial leva-nos a perceber a realização dos

folhetos matriciados, e no caso presente até a realização das categorias do

cavaleiresco, permitindo-nos avaliar por exemplo a intensidade e o teor da inventiva

popular.

Essa continuidade de que nos fala a autora, está inserida dentro de um processo

dinâmico de intercâmbios culturais, suscetível a transformações psicologias que vão

modelando os imaginários que inspiram a matéria literária. Sobretudo porque a recepção

nunca é a mesma.

No nosso corpus constam seis folhetos canônicos, os quais tiveram grandes tiragens

e várias reedições. Suas edições e reedições acompanham o início, a consolidação e o seu

auge da literatura brasileira de folhetos. Os poetas populares aclimataram-no à realidade

sertaneja. Os folhetos são: Batalha de Oliveiros com Ferrabraz; A prisão de Oliveiros;

Roldão no leão de ouro; O cavaleiro Roldão; A Morte dos doze pares de França; A história

de Carlos Magno e dos Doze Pares de França.

E com relação à autoria dos folhetos como equacionar esta questão, uma vez que os

textos são apropriados e adaptados pelos poetas populares ou editores proprietários, visto

que são narrativas inspiradas em um texto matriz?

Sabe-se que muitos folhetos são recriações de narrativas tradicionais muito antigas,

submetida à escritura de um artista popular, tal qual aconteceu com os do ciclo carolíngio.

Dentro deste quadro, o tema da autoria resulta ser algo complexo, já que o responsável pelo

processo de transposição de prosa a versos muitas vezes pode ser um cantador ou repentista, o

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recitador ou interprete do texto, que nem sempre é de sua autoria; algumas vezes a autoria é

desconhecida. Esses autores passam a ser denominados de autores legião (BATISTA, 2013).

Na opinião de Correia (2006, p. 81) o autor legião “[...] ascende ao status de poeta,

que parte de uma tradição, para criar a surpresa, o novo.” Desse modo, o poeta popular do

Nordeste é uma peça fundamental na construção o universo cavaleiresco no Brasil em

folhetos.

Por este motivo que, a tradução de Jerônimo Moreira de Carvalho, apontada como

fonte matricial de todos os seis folhetos fontes do ciclo carolíngio, passou por um processo de

adaptação para ser recebida pela comunidade sertaneja. Caso contrário, não teria dado

continuidade ao gênero, haja vista que abordava assuntos inatuais, cujo contexto pretérito das

cavalarias e a matéria da França não formavam parte de nossos temas pátrios.

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4 OS ELEMENTOS DE CRIAÇÃO LITERÁRIA IRRADIADOS PELO CICLO

CAROLÍNGIO

A história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França aproxima à temática

cavaleiresca e a matéria carolíngia do universo popular sertanejo. Sobre sua ampla divulgação

sertão adentro até a década de 50 do século XX, Cascudo (2001, p. 47, grifo do autor) relata

pormenorizadamente a sua difusão:

Era lida nas noites de inverno, como outrora o Amadis de Gaula, em voz alta, para a

família embevecida e concordante com as peripécias dramáticas, fervorosamente

comentadas como atuais. Todos os velhos cantadores profissionais a sabiam de cor.

Era documento comprovador da “ciência”, elemento natural do cantar teoria, sabatina da cultura popular. Não conhecer a História de Carlos Magno era

ignorância indesculpável, indigna dos bardos sertanejos, mesmo analfabetos.

Faziam-na ler, folha por folha, escutando, aprendendo, entusiasmando-se,

decorando, repetindo as façanhas, transformando-as em versos, em perguntas

fulminantes e respostas esmagadoras.

De acordo com o relato do autor, nota-se que através da “presença da voz”

(ZUMTHOR, 1997), as histórias carolíngias se presentificavam, atualizando-se

sincronicamente ao tempo do leitor e/ou ouvinte quando transmitidas oralmente. Dessa

maneira, as histórias carolíngias passaram a fazer parte da memória coletiva do povo

sertanejo. Logo, duas culturas se aproximam através do canal da literatura popular e suas

conexões psicológicas, o que na visão de Cascudo (1953, p. 27): “É um encontro de níveis, o

entendimento pela identidade mental, o entendimento e o elogio pela igualdade nas soluções

psicológicas, solidariedade pelo fraternismo da sensibilidade comum.”

Kunz (2011, p. 75) nos chama atenção para a volta do ciclo carolíngio na tradição

brasileira à sua origem francesa, destacando vozes constitutivas desta matéria “Esse caminho

de volta Brasil-França traz de modo simbólico a união de duas tradições irmanadas e o

percurso poético de textos e vozes que deram origens aos folhetos do ciclo carolíngio.” Com

relação ao longo processo que se inicia nas canções de gesta francesa até os folhetos

nordestinos, a autora menciona:

O processo que vai da gesta ou das várias gestas francesas até a história do

Imperador Carlos Magno e daí ao folheto nordestino, constitui um itinerário

pontuado de retomadas, ampliações, resumos, enfeites, traduções, comentários,

textos, vozes, prosas e versos, países e continentes. Roland, Orlando, Roldão

conseguiu seguir vivo nessa travessia tumultuada. Tudo começa (ou recomeça) com

o romance francês intitulado Les conquêtes du Grand Charlemagne, e outras

adaptações em prosa dos distantes e compridos poemas épicos da gesta medieval.

(KUNZ, 2011, p. 77).

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Com base nessa perspectiva, há um longo itinerário de recriação artística que a

matéria da França sofreu desde sua origem. Este se inicia nas gestas francesas e termina nos

folhetos carolíngios brasileiros. O fato é que, apesar das várias transformações sofridas,

principalmente devido às inúmeras apropriações e recriações no transcurso de doze séculos

por diferentes civilizações, Carlos Magno, Roldão e os seus pares sobreviveram em essência.

Graças aos mecanismos de adaptação e da diversidade de gêneros que a utilizaram

como matéria literária- muitos dos quais ligados à cultura popular-, conseguiram comportar

narrativas antigas de diversas culturas imemoráveis, reinventando-as. Por isso, as histórias

carolíngias não foram descaracterizadas, bem como permaneceram na memória coletiva de

muitos povos com certo “frescor”.

Embora o ciclo carolíngio brasileiro dê continuidade ao gênero literário português da

novelística, pode ser considerado com um verdadeiro divisor de águas entre as duas literaturas

cotejas, em função da sua composição em versos, apresentando-se como elemento inovador

da literatura de folhetos brasileira. Daí ser esta matéria o ponto nefrálgico da nossa reflexão:

mesmo recebendo uma forte herança literária portuguesa, a literatura que dela se originou e

floresceu no Nordeste brasileiro é algo autóctone.

O seu sucesso justifica-se pelo grande número de edições e reedições dos folhetos

sobre o tema desde seu início até o final da década de 60 do século XX. Assim como aparece

refletido nos versos: “Sinforosa e Zé Garcia/ vivem prestando atenção/ ao livro de Carlos

Magno/ ler até por distração/ fala até da princesa Angélica/como casou com Roldão”

(SILVA, 1958b, p. 18, grifo nosso).

Possivelmente a temática guerreira e a valentia dos pares, articuladas por

memoráveis duelos, tenham corroborado para essa assídua presença da matéria da França no

cânone dos folhetos brasileiros.

Por tudo isso, analisaremos o eixo central dessas narrativas estruturado em torno do

combate e dos sentimentos de valentia e destemor, irradiando novos elementos de criação

literária, inspirando as figuras arquetípicas dos heróis populares sertanejos.

4.1 O combate

Na visão de Ferreira (1993) o combate é ponto de confluência de todos os elementos

cavaleirescos das novelas e romances. Ademais, é uma constante nessas produções. Algo que

também se comprova nas recriações carolíngias nos folhetos.

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Os sertanejos também puderem se reconhecer nos personagens carolíngios através de

um “[...] nível de simpatia coletiva” (CASCUDO, 1953, p. 52), cuja valentia e destemor dos

pares foram usados como modelo, inspirando novos arquétipos de heróis, irradiando novos

elementos de criação literária, como os que aparecem nos versos a seguir:

Nesta história se vê

força, destreza e ação

brilho e procedimento

genio e disposição

bravura, honra e critério

de um rapaz valentão.

[...]

Rogaciano e os outros

disseram: o que é que se faz

de faca, foice e cacête

cada um que tinha mais

já parecia a batalha

de Oliveiros e Ferrabraz (SILVA, [19--]c, p.1-14, grifo nosso).

O grande responsável por tal processo de adaptativo na literatura de folhetos

brasileira é o poeta popular nordestino, conforme esclarece Ferreira (1993, p. 53):

O adaptativo, seja a maneira pela qual se exprime em nova fórmula o recebido,

conduz à inequívoca constatação de que a literatura popular do nordeste ajusta, de

maneira intensa e atuante, o legado da tradição oral ou escrita ao cânone de uma

cultura própria, ao esquema de uma ideologia acorda, discorda ou reabilitada.

Preside a estes fenômenos a sabedoria do poeta popular que, condiciona sempre

imperativos, aquilo que ele pretende que seja o alcance de sua mensagem junto ao

público.

Com base nesses pressupostos, a adaptação dos folhetos carolíngios, a partir de um

texto matricial, deve seguir uma fórmula preestabelecida tacitamente entre poeta e público.

Ou seja, além da capacidade inventiva do poeta popular que se encarrega de ajustar os

mecanismos adaptativos na passagem da prosa ao verso, faz-se necessário também que os

episódios escolhidos estejam em concorde com a ideologia do público sertanejo, a quem estas

produções devem ser destinadas.

A identificação do público com as histórias é essencial para o sucesso das vendas.

Pois, conforme discutimos anteriormente, neste contexto sociocultural a literatura que se

produz no Nordeste brasileiro desenvolveu um sistema de produção e recepção, no qual autor,

obra e público mantém uma relação dialética de colaboração mútua.

No Nordeste rural e patriarcal o que se buscava eram histórias de sujeitos corajosos e

destemidos, cujos atos de bravura e honradez articulavam cenas dinâmicas de ação, nas quais

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hábitos e referências à sociedade nordestina eram indispensáveis, bem como a linguagem

sertaneja, em sua máxima expressão de coloquialismo.

Por tudo isso que, mesmo seguindo um texto-matriz, a capacidade inventiva do poeta

se sobressaía, pois a liberdade criativa desses artistas populares residia nestas alterações feitas

no folheto. Conforme foi discutido antes, o poeta popular assume o status de “autor legião” ao

recriar o “novo” a partir de algo já consolidado pela tradição. Isso quer dizer que, com base no

texto português, eles reinterpretaram a matéria carolíngia e a adaptaram ao universo sertanejo,

inovando ao recriá-la em forma de versos setessilábicos. (BATISTA, 2013; CORREIA,

2006).

A fim de ilustrar o que foi discutido, analisaremos dois fragmentos de textos a seguir.

O primeiro fragmento foi retirado da História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares

de França, trata-se do capítulo C “Como Roldão passou os primeiros dias em Tristefea e da

conversa que teve com Angélica”; já o segundo, encontra-se no folheto Roldão no leão de

ouro, adaptado pelo poeta popular com base nesse episódio:

Quando Angélica viu o leão, ficou muito contente com o mimo tão pouco vulgar e o

mandou meter no seu quarto, para se divertir em vê-lo andar, quando estivesse só.

Quando se fez noite, Angélica recolheu-se à sua câmara e despediu as suas damas, o

que Roldão aproveitou para sair dentro do leão, pondo-se em pé no meio da casa.

Quando Angélica tal viu, perdeu o acordo, de susto, caindo desmaiada nos braços de

Roldão, que ficou muito aflito, pois ela ao tornar a si, podia gritar por socorro e o

descobrir. Sentou-a Roldão numa cadeira e pôs-se de joelhos a seus pés,

contemplando a sua grande formosura, que era muito maior vista, que retratada.

Tanto que Angélica recobrou os sentidos, lhe falou Roldão, para lhe provar a sua

boa vontade e a impedir de gritar. Disse-lhe quem era e porque estava ali, disposto a

tirá-la daquela cova, ou perder a vida em sua defesa. Falou-lhe do seu amor por ela,

amor nascido do retrato que comprara e ali estava presente, da sua nobre linhagem e

das acções que praticara. Mas Angélica estava receosa de que, sendo ele inimigo do

pai, se tivesse ali introduzido para praticar nela alguma malfeitoria. Mas em Roldão

tudo era protestos de amor e de juras que, como cavaleiro, só poderia socorrer damas

e nunca injuriá-las. E tais artes teve e tais finezas disse, que a princesa, por fim,

quase vencida, lhe deitou os braços ao pescoço e lhe disse, que se por amor dela

viera a intenção de a tirar dali, ela o meteria numa casa fechada, onde pudessem

praticar mais à vontade na forma de saírem os dois. (CARVALHO, [19--], p.158-

159).

Angélica então recebeu

o grande leão de ouro

ela puxava o leão andava

achou que era um tesouro

foi guardado no seu quarto

para dar alívio a seu choro

Quando foi meia noite

saiu pra fora Roldão

e quando Angélica viu

sair um homem do leão

foi atacada de medo

desmaiou caiu no chão

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Roldão levantou Angélica

sentou-a numa cadeira

achou-a ainda mais formosa

mais linda e mais fagueira

do que o lindo retrato

qu’ele tinha na algibeira

Quando Angélica tornou

Roldão lhe falou primeiro

dizendo: Angélica não temas

q’e sou 1 príncipe extrangeiro

sobrinho de Carlos Magno

imperador muito guerreiro

Eu comprei o teu retrato

que em meio peito repousa

para que fiques sabendo

não venho ver outra cousa

o que me trouxe a Turquia

foi te fazer minha esposa

Disse Angélica: cavalheiro

eu só temo uma traição

Que teu tio Carlos Magno

com meu pai vive em questão

se vens contra a minha sorte

tu voltas no teu leão

Disse Roldão: pois Angélica

me julgas contra a tua sorte

me mata com esta espada

que tem aço tão forte

eu morto por tua mão

de gosto perdôo a morte

Disse ela: nobre príncipe

se é este teu mister

se queres ser meu esposo

eu serei tua mulher

me roubais da Tristeféa

o mais breve que puder (ATHAYDE, 1960, p.16-17).

Conforme podemos observar a partir do cotejo dos dois fragmentos da matéria da

França, os versos do folheto mantêm-se fiel ao texto matriz. Embora a sequência de ações

sejam mantidas, o poeta usa mecanismos de adaptação para que a narrativa do folheto não se

distancie do sentido original. Haja vista que da passagem do texto escrito em prosa a versos o

corpo literário sofre alguns ajustes. Nota-se que para seguir a poética fixa que estrutura a

narrativa do folheto, algumas rimas são elaboradas com base no sentido que a interpretação do

texto em prosa sugere. Dessa forma, alguns detalhes supérfluos são omitidos, enquanto as

cenas principais são mantidas.

Ou seja: enquanto no original, temos: “Quando Angélica viu o leão, ficou muito

contente com o mimo tão pouco vulgar e o mandou meter no seu quarto, para se divertir em

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vê-lo andar, quando estivesse só” (CARVALHO, [19--], p. 158). Enquanto no folheto lê-se:

“Angélica então recebeu/o grande leão de ouro/ela puxava o leão andava/achou que era um

tesouro/ foi guardado no seu quarto/para dar alívio ao choro” (ATHAYDE, 1960, p. 16).

Observa-se, deste modo, como o poeta suprimiu alguns detalhes da cena para torná-

la mais dinâmica. Dinâmica essa, causada pelo próprio andamento do verso. Os recursos

mnomônicos, muito próximos à fala, facilitam a declamação e a memorização. Nesse

processo, destaca-se a função da oralidade mista, para usar um termo de Paul Zumthor

(1993), já que as histórias carolíngias mesmo recriadas em versos e vendidas em folhetos

impressos não se distanciavam da cultura da oralidade em sua divulgação, tampouco em sua

propagação sertão adentro.

As marcas da oralidade permeavam alguns espaços nos versos quando, por exemplo,

os espaços eram preenchidos por um saber prévio do poeta sobre o tema, sem, por isso,

acarretar uma mudança brusca no sentido geral; como, os que aparecem nos versos: “Roldão

lhe falou primeiro/ dizendo: Angélica não temas/ q’e sou 1 príncipe extrangeiro/ sobrinho de

Carlos Magno/ imperador muito guerreiro” (ATHAYDE, 1960, p. 17).

Enquanto no texto original, Roldão não se apresenta com tanta riqueza de detalhes:

“Disse-lhe quem era e porque estava ali, disposto a tirá-la daquela cova, ou perder a vida em

sua defesa. Falou-lhe do seu amor por ela, amor nascido do retrato que comprara e ali

estava presente, da sua nobre linhagem e das acções que praticara” (CARVALHO, [19--], p.

158-159).

A linguagem é outra grande ferramenta de adaptação. O texto em prosa é culto,

enquanto no folheto é recriado com expressões bem coloquiais, tal como: “Saiu pra fora

Roldão” (ATHAYDE, 1960, p. 16). Além disto, conserva-se algo de arcaico, como o que

aparece no último verso: “o mais breve que houver” (ATHAYDE, 1960, p. 17). Portanto,

nesse processo de recriação o poeta atua ora de forma conservadora ora de forma

vanguardista.

O fato é que os folhetos carolíngios têm uma origem culta, mas nas adaptações

sertanejas as barreiras são fluidas; a saber, eles vão do culto ao popular por meio da

linguagem num livre trânsito de palavras, no qual o tom eloquente do relato se junta à

espontaneidade do falar do homem do sertão, como os que aparecem nos versos: “Quando foi

meia noite/ saiu pra fora Roldão/ e quando Angélica viu/ sair um homem do leão/ foi atacada

de medo/ desmaiou caiu no chão” (ATHAYDE, 1960, p. 16).

Outro detalhe importante ainda em consideração à linguagem, diz respeito ao

imaginário medieval cavaleiresco que reverbera nos folhetos carolíngios, tal como: “Disse ela

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nobre príncipe/ se é este o teu mister/ se queres ser meu esposo/ eu serei tua mulher/ me

roubais da Tristeféa” (ATHAYDE, 1960, p. 17).

Estes avivam a idealização do cavaleiro que deve salvar a sua dama em perigo.

Assim, estreitam-se imaginários, pois este conjunto de imagens do universo cavaleiresco

medieval também passava a fazer do imaginário sertanejo, apropriado, adaptado e, sobretudo,

recriado através do poder mágico das palavras e da capacidade demiúrgica dos poetas

sertanejos.

Vale ressaltar que as imagens dos cavaleiros transcendem ao nível psicológico dos

arquétipos, atuando como força ou tendência à repetição de experiências típicas e

incessantemente revividas pela humanidade ao longo de toda sua história. Por isso há tamanha

identificação dos sertanejos com esses personagens arquetípicos e, consequentemente, a

projeção espontânea e natural dessa figuras no ambiente hostil e violento do Nordeste

brasileiro à época de surgimento da literatura de folhetos.

Outro mecanismo de adaptação utilizado é levar ao texto carolíngio hábitos do

cotidiano do sertanejo. Os fragmentos cotejados tratam de um episódio bem pontual, com um

contexto bem diferente do nordestino. Pois Roldão vai à Turquia resgatar Dona Angélica.

No intuito solucionar esse problema, o poeta seleciona dos episódios aquilo que

tenha uma questão ideológica de relevância para que sua comunidade possa se identificar e

interagir com a história.

No folheto analisado, enfatiza-se uma situação muito recorrente na região Nordeste à

época em estes folhetos surgiram: a disputa pelo poder. Isto aparece nos versos: “Disse

Angélica: cavalheiro/ eu só temo uma traição/ que teu tio Carlos Magno/ com meu pai vive

em questão/ se vens contra minha sorte/ tu voltas no teu leão” (ATHAYDE, 1960, p. 17,

grifo nosso).

Em síntese, embora utilizando um texto-matriz para a composição dos folhetos

carolíngios, os mecanismos adaptativos ao mesmo tempo em que conserva o sentido geral das

histórias, não agem como um fator limitador da criatividade do poeta popular. Uma vez que,

através da poética preestabelecida, a linguagem típica e, sobretudo, as marcas identitárias

permeando o texto original de “nordestinidade”, tem-se um fenômeno literário autóctone

brasileiro.

Deste intricado processo de apropriação da matéria carolíngia o sertão nordestino

ascende ao mundo da cavalaria andante da Europa medieval. Os seus guerreiros, as suas

atitudes nobres e heróicas, as provas, vitórias, dentre outras, giram entorno de uma das

grandes categorias do cavaleiresco: o combate. Sobre o tema, Ferreira (1993, p. 68) esclarece:

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Assume-se o combate com uma das mais abrangentes e definidoras categorias do

cavaleiresco, constantemente revelado, nas descrições dos torneios e justas ou

realizado na narrativa do encontro de cavaleiros em guerra. Percebe-se, entanto, que

o combate é muito mais que isso: parte que se faz todo, a própria razão para o

andamento do que se relata, justificativa de ações, realização do imaginário,

presidindo, de certo modo, ao próprio desenvolvimento global daquilo que é

narrado. Sua significação vai para além da luta, do jogo da discrição, contenda de

antagonismos permanentes em que bem/mal, castigo/galardão são entidades e

resultados, em que derrota/vitória, perdição/salvação levam fiéis ou infiéis a atuarem

dentro de concepções e delimitação rigidamente antagônicas, e às vezes

maniqueístas.

Nessa longa citação, podemos inferir a dimensão dessa categoria para as novelas e

romances cavaleirescos. Tudo o que acontece nessas narrativas é articulado pelo combate,

sendo justificado ou invalidado no mundo que ele configura, bem como atribui sentido aos

atos heróicos que nele confluem (BRAUN, 1975 apud FERREIRA, 1993).

Nesse folheto, em específico, cuja narração gira em torno do resgate da princesa

Angélica, o combate consiste na luta para vencer os obstáculos e seu auge se dá no momento

do salvamento da princesa do seu cativeiro: “Tratou a princeza Angélica/ com terna

estimação/ porque ia se casar/ com seu sobrinho Roldão/ Angélica contou-lhe tudo/ quanto

sofreu na prisão” (ATHAYDE, 1960, p. 33-34).

Assim sendo, este momento resulta para o herói com algo catártico, pois a prova foi

superada. E, nesse contexto, o mecanismo cavaleiresco reside no “[...] percurso diretamente

ligado ao resgate, à purificação ao objetivo maior, não importa quais sejam os obstáculos.”

(FERREIRA, 1993, p. 76).

Sabe-se que na Península Ibérica o evento cristão e mouro (MEYER, 1995) estava

em voga à época dos Grandes Descobrimentos. Portanto, tal evento polariza dois grupos a

partir de convenções sócio-religiosas. No primeiro, encontram-se os cristãos, representes

absolutos do Bem; no segundo, os mouros infiéis, representantes absolutos do Mal.

Com relação ao tema das dicotomias carolíngias nos folhetos brasileiros, Ferreira

(1993, p. 72, grifo nosso) defende que:

[...] ao assumirem-se as dicotomias apontadas em duas etapas, na cultura e na

literatura medievais, inaugura-se um outro estágio de processo de mais extenso

alcance, quando se passa das percorridas oposições Bem/Mal e cristão/serraceno à

Bem/Mal agora com outra concepção e simbolização. Explica-se que

cristão/serraceno realidade histórica incorporada e já sem funcionalidade afetiva,

passa a remeter a uma transferência, a um plano simbólico e ontológico funcionando

como par imprescindível e, ao mesmo tempo uma sugestão de outros conflitos e

dicotomias presentes.

Conforme a autora, a dicotomia cristão contra mouro transpassa os limites sócio-

religiosos e assumem, com o tempo, uma outra significação; ou seja, passam a representar

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valores e sentimentos a nível de mentalidade, altamente simbólicos. Dessa forma,

reconfiguram o ontológico combate da luta do Bem contra o Mal.

Neste contexto, os mouros atuam como os grandes antagonistas dos ideais cristãos e,

por conseguinte, foram representados como hereges nas novelas de cavalaria ibéricas. Algo

que podemos observar nesta passagem retirada do texto matricial, na qual o Almirante Balão,

rei de Alexandria, comete heresia ao saquear relíquias da Igreja:

Quando Carlos Magno ouviu as atrevidas palavras de Ferrabrás, perguntou a

Richarte de Normandia quem era o turco que atrevidamente ameaçava. Respondeu

Ricarte que era filho do Almirante Balão, rei de Alexandria, senhor de muitas

províncias e riquezas, e que fora a Roma, onde fizera grande saque, levando as

santas relíquias. Respondeu, então, Carlos Magno: “Espero em Deus que a sua

soberba há-de ser humilhada e abatida”. (CARVALHO, [19--], p. 20, grifo

nosso).

Ao longo da história a figura do mouro foi assumindo uma forma arquetípica

associada ao Mal. Isso também chegou à cultura popular nordestina e aparece refletida nos

folhetos, tal como demonstram os versos a seguir: “Aquele foi quem entrou/ dentro de

Jerusalém/ não respeitando ninguém/ até apóstolo matou/ no templo sagrado achou/ bálsamo

que Deus foi urgido/ na paixão do Redentor/ a coroa do Senhor/ tudo ele tem conduzido”

(ATHAYDE, 1960, p. 4).

Enquanto o turco era caracterizado como o anti-herói, Carlos Magno e seus paladinos

eram construídos como um modelo de herói exemplar, que defende a moralidade cristã, tal

como podemos observar nos versos abaixo:

Roldão foi um dos enviados

para defender a religião

com sua espada duridana

era sua salvação

cortava bronze, ferro e aço

e não perdia corte não.

Contou o almirante Balão

quantas batalhas enfrentou

e multidão de pagãos

ele com ela matou

defendendo sua lei

com fé no criador (FREIRE, [19--], p. 17-18, grifo nosso).

Conforme observamos as ações dos folhetos carolíngios estão pautadas no combate.

Para Ferreira (1993, p. 69) estas características se remetem a gesta primitiva, cuja “[...]

própria guerra, a vitória de determinadas posições simbólicas, numa relação de causa e efeito

[...] combate é cada folheto.” Tais características nos ajudam a entender o que talvez seria a

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grande marca de originalidade das composições brasileiras: o retorno à gesta primitiva,

desafiando o tempo e o espaço, conforme destaca Kunz (2011).

Além do mais, obliterando a violência dos combates nesses folhetos, sobressaem-se a

valentia e o destemor dos paladinos. Desse modo, evidencia-se a força da história-lenda

carolíngia que, após tantos séculos de inúmeras apropriações e recriações por diferentes

culturas, seus heróis conseguem transcender para além da ficção. Sobre o tema, Ferreira

(1993, p. 75, grifo nosso) comenta:

Herói para além da ficção, inter e paratextualmente, apesar de transmitido por

difusos recursos, respaldo por uma consagrada História-Estória, Carlos Magno,

lenda-verdade que reclama para si própria tempos e espaços definidos, modulação

de passados relatados a vivências regionais, substituição de um dia-a-dia que se vive

por uma corporeidade transcendente: virtude substitutiva, pés na terra e barba

florida, a justificar o desenvolvimento fiel do combate cavaleiresco aqui realizado.

É justamente essa “corporeidade transcendente” de que nos fala a autora, que o

poeta popular João Freire Lopes sintetiza nos versos a seguir que finalizam o folheto A

história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França:

Em agosto de 1978

12 séculos completando

da morte de Carlos Magno

não sou eu quem está inventando

é a história que conta

e estamos comemorando.

Nossa pátria brasileira

por só existir cristão

achou conveniente

dá uma declaração

relativo a Carlos Magno

pela sua tradição.

Foi imperador cristão

defendeu o cristianismo

ele e 12 cavaleiros

com coragem e com civismo

sem saber que depois

ia cair no abismo.

Todos os brasileiros

vai comemorar o dia

15 de agosto próximo

que esta data irradia

se comemorando um rei

que antigamente existia.

Será lançado este livro

entregue de mão em mão

em memória de Carlos Magno

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que lutou com devoção

defendendo a santa igreja

só devorando pagão (FREIRE, [19--], p. 42).

A partir dos versos coligidos, podemos inferir a força que Carlos Magno no Brasil

nas primeiras décadas do século XX, cuja matéria carolíngia ainda continuava sendo recriada

sob a intrepidez de seus memoráveis combates.

Vale ressaltar a natureza dialogada dos combates. Em algumas cenas, a disputa é

verbal, conforme ilustram os versos a seguir:

O turco disse: afinal

oh! cavalheiro lhe digo

só pode lutar comigo

se for de sangue real

porque se não for igual

recusarei a empresa

falo com toda franqueza

então Oliveiros disse:

pode crer como que visse,

minha origem é de nobreza.

[...]

Oliveiros já massado

disse ao turco: és um louco

levanta-te se não com pouco

hei de ferir-te deitado

que tempo se tem passado

nessas suas discussões

eu não vim ouvir razões

vim ao campo pelejar

tu és franco no falar

vamos ver tuas ações (ATHAYDE, 1976, p. 10-11, grifo nosso).

Retoricamente, o discurso do combate é cortês, pautado na ética cavaleiresca. Fato

que se observa nos versos assinalados. Ainda sob o tema da ética, destaca-se a figura de

Ferrabraz, rei da Alexandria:

Disse a hoste dos guerreiros

turco, tens uma atração

para roubar coração

dos mais duros cavalheiros

confesso, sou Oliveiros

minha fama tens ouvido;

Ferrabraz ficou sentido

de seus insultos primeiros

disse: desculpe, Oliveiros

não tê-lo bem recebido.

Aí tornaram a partir

em ordem de cavalheiros

disse o turco: Oliveiros

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não posso mais te ferir

vejo teu sangue sair

devido estais estragado

eu tenho o bálsamo sagrado

com que Jesus foi ungido

bebe-o porque estais ferido

bebendo ficas curado (ATHAYDE, 1976, p. 14-15, grifo nosso).

Este personagem nos chama atenção pela cordialidade e atitudes nobres condizentes

com o ideal da “ordem de cavaleiros”. A admiração proporcionada por Ferrabraz corresponde

à predileção do povo pela valentia.

No entanto, devido à grande campanha antiárabe que se iniciou na Reconquista, esse

personagem também exerce a função de enviado de Satanás no imaginário popular. Assim

como ilustra o folheto A chegada de Lampeão ao céo: “Foi Lampeão novamente/ Pelos

Santos escoltado/ Na presença de Jesus/ Foi Lampeão colocado/ Acompanhou por detraz/ O

tal cão Ferrabraz/ De Lúcifer enviado” (CAVALCANTI, [19--], p. 6).

Mas voltando ao tema das disputas verbais, estas substituem as ações, ao mesmo

tempo em destaca os termos canônicos do léxico guerreiro: “Depois de se levantar/ Ferrabraz

se preparou/ e a Oliveiros rogou/ que o ajudasse a se armar/ Oliveiros quis falar/ disse

Ferrabraz: lhe digo/ confio em minha nobreza/ eu não uso de vileza/ para com meu inimigo”

(ATHAYDE, 1976, p. 13).

Este combate de “palavras” em detrimento da ação, também aparece em outros

folhetos nordestinos. Assim como o que aparece no folheto História valente Vilela:

Fala o alferes na porta:

Vilela, tem paciência

me entrega tuas armas

eu não quero violência

trata de compor a casa

pra eu fazer diligência.

Diz-lheVilela: a cozinha

é do tamanho da sala

a grossura do revólver

é a grossura da bala

só ouço a voz la de fora

mas não vejo quem me fala.

Vilela, me abre a porta

veja que o cão atiça

meu revólver quebra tranca

ferrolho e dobradiça

meu punhal é sacarrôlha

arranca qualquer cortiça.

[...]

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Diz Vilela: seu alferes

hoje aqui ninguém me toca

brigo em pé, brigo deitado

pulo barraco e barroca

a bala batendo em mim

é milho abrindo pipoca (SILVA, 1957, p. 7-8, grifo nosso).

Nota-se nesses versos o tom coloquial, bem como o tom aforismático dos versos

assinalados em negrito. Soma-se a isso, a construção do diálogo na linguagem sertaneja e

tradição oral que está presente na estrutura poética do folheto. Por exemplo, enquanto na

matriz temos o fragmento: “Quando Ferrabraz se viu tão ferido, rogou a Oliveiros que o não

deixasse morrer, pois se queria fazer cristão e revelou-lhe, também que deixara dez mil

turcos emboscados, os quais, vendo-o vencido, certamente ocorreriam para resgatar”

(CARVALHO, [19--], p. 27-28).

No folheto, o poeta popular o reproduz de modo que as passagens que atestam a

presença do diálogo são mais cheias de detalhes e os relatos são bem próximos ao tom

coloquial:

-Nobre grande cavalheiro

(disse o turco arrependido)

agora estou convencido

que teu Deus é verdadeiro

grande, bom e justiceiro

ente de grande mister

faz tudo quanto ele quer

nele não há quem pise

te peço que me batize,

depois faça o que quiser.

[...]

E por detraz daquele oiteiro

tem dez mil turcos esperando

e mais q’e há-de vir chegando

cada qual mais cavalheiro

onde tem cada guerreiro

que só um tigre ou leão

homens de disposição

destros no jogo da lança

pessoas de confiança

do Almirante Balão (ATAYDE, 1976, p. 30-31).

A partir desses versos, percebe-se que o que foi acrescentado pelo poeta subjaz às

suas próprias interpretações da leitura. Ademais, percebem-se expressões típicas, como as que

estão destacadas. Nessas duas estrofes, sobressai-se a liberdade criativa do poeta, bem como

inovações que este incorpora à recriação da matéria da França.

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Isso se repete em outros folhetos do ciclo carolíngio, tais como os que se lê nos

versos do folheto O cavaleiro Roldão: “- Roldão eu sou um gigante/ que nunca temo perigo/

força de quarenta homens/ é que carrego comigo/ só sofrerei sofrimento/ sendo em cima do

umbigo” (SILVA, 1960, p. 28, grifo nosso). Aqui, o diálogo é usado para que o gigante possa

apresentar as suas qualidades.

No entanto, há nessa descrição um tom de exageração nos versos assinalados.

Segundo Ferreira (1993, p. 83) o exagero “[...] está na matriz do folheto carolíngio e foi

utilizado por todos os novos narrados que daí partiram.” Segundo a autora, o exagero usado

pelo poeta popular na amplificação dos fatos na recriação poética de um texto em prosa,

também aproxima a narrativa dos folhetos ao primitivismo das gestas francesas, conforme

aparece refletido nos versos retirados do folheto A prisão de Oliveiros:

Naquela multidão

levando os prisioneiros

entregou os cavalheiros

ao almirante Balão

ele là como um leão

em desesperos fatais

igualmente satanaz

disse: desses quem venceu

o meu filho Ferrabraz?

Disse um dos exaltados

examinando primeiro

foê aquele cavalheiro

que traz os olhos vedados

estes cinco celerados

é custoso de vencer

é escusado dizer

da forma qu’eles lutaram

e dez mil vidas tiraram

para poder se prender (SILVA, 1958a, p. 6, grifo nosso).

Apesar do teor hiperbólico tipo dos relatos cavaleirescos, as adaptações brasileiras da

matéria carolíngia se aproxima das gestas francesas, graças à capacidade inventiva do “poeta

legião” (BATISTA, 2013; CORREIA, 2016), uma vez que:

[...] o que nos encanta e surpreende, apesar da presença determinante da fonte

ibérica, é a proximidade das formas de dizer do texto de cordel e da gesta primitiva

francesa. Pelo mistério de sua intuição poética, o poeta popular transpõe em versos a

prosa da novela de origem culta e ibérica do século XVIII. Ele então se aproxima da

expressão versificada que caracterizava o gênero épico primitivo. O que, no primeiro

instante, poderia parecer um desafio ao desenrolar cronológico da filiação literária já

mencionada, remete, na verdade, ao respeito incondicional do poeta popular à

tradição do verso heptassílabo e a sua despreocupação em se mostrar original.

(KUNZ, 2011, p. 78-79).

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Deste modo, o poeta assume o seu papel de artífice dentro desse processo de

apropriação e adaptação da matéria da França na literatura de folhetos brasileira. Segundo a

autora, o grande interesse o poeta era agradar o seu público, este extremamente exigente já

que conhecia as histórias de memória.

Cenas de sensacionalismo e mortes, muito recorrentes nos textos cavaleirescos,

encontraram nas lutas dos cristãos contra os turcos na Península Ibérica um ambiente fértil

para florescerem. Assim como se lê nos versos a seguir: “Quando Roldão proferiu/ puxou

logo pela espada/ deu-lhe logo uma cutilada/ que até os peitos partiu/ outro rei turco acudiu/

e ele não torceu/ todos os golpes que deu/ foram bem aproveitados/ quatorze foram lascados/

escapou um que correu” (SILVA, 1958a, p. 14).

Destaca-se nesse processo a importância da matriz ibérica, a capacidade inventiva do

poeta sertanejo, a predileção do público pelas histórias de aventuras e a boa recepção da

matéria da França no Nordeste brasileiro. Ademais, somam-se a isso tudo a magia que

envolve esta matéria sendo inspiração de várias histórias ao longo de doze séculos, mantendo

sempre o mesmo frescor, irradiando novos elementos de criação literária em solo brasileiro.

Este tema será discutido no próximo tópico.

4.2 A valentia e o destemor e o ciclo do cangaço

Conforme discutimos até aqui, há uma ponte dialógica que conecta o Nordeste

brasileiro e o Portugal medieval através da literatura popular. Com relação ao tema, Siqueira

(2007b, p. 265, grifo nosso) comenta:

No Nordeste, como no Portugal medieval, a literatura popular constitui um canal de

perpetuação de longínquas histórias e também um instrumento para narrar o

acontecido. Como o sertanejo, durante séculos, lutou contra o índio, a natureza

adversa e os inimigos vizinhos, aprendeu a admirar o homem valente. A justiça

distante, substituída pelas armas e bandos, que cada proprietário podia manter,

propiciou lutas ferozes das quais nasceram as gestas anônimas de valentia e

destemor violentos. Tal contexto possibilitou que os cavaleiros das histórias

medievais fossem identificados, no sertão, aos cangaceiros.

O cavaleiro dos romances era idealizado pela literatura cavaleiresca ao longo dos

séculos XII e XIII, acentuando-se no século XIV quando as epopeias se apropriam do

elemento romanesco. Estes não estavam presentes nas primeiras canções de gestas e, dessa

forma, as virtudes guerreiras passaram a ser o leitmotiv destas obras em todas as épocas.

Esse modelo de comportamento humano surge quando a cavalaria “[...] adquire a

dimensão de uma instituição, de um modelo cultural, de uma ideologia.” (FLORI, 2005, p.

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158). A partir de então, o ideal cavaleiresco se prolonga pela Idade Media, chegando à Era

Contemporânea.

E como relação à matéria carolíngia, sabe-se da importância de La chanson de

Roland (2004) para a sua popularização. Nesta antiga canção de gesta, cujo pano de fundo é

luta contra os “infiéis”, do ponto de vista da moral cristã, tal guerra era justificada, inclusive,

nos seus excessos de a violência.

Por isso encontramos tantas cenas de barbárie sem qualquer condenação explícita nos

textos carolíngios, tal como se lê nos versos em que se narra o destino dos quinze guerreiros,

vassalos do Almirante Balão, no passo das Águas Mortas: “Ali todos se montaram/ armados

heroicamente/ levando como presente/ as cabeças que tiraram/ em seus alfoges botaram/

não deram satisfação/ segui na frente Roldão/ a pessoa encarregada/ de entregar a

embaixada/ ao almirante Balão” (SILVA, 1958a, p. 16).

De acordo com Siqueira (2007b) estes arquétipos dos cavaleiros medievais puderam

ser irradiados aos cangaceiros, mesmo porque o cenário sociocultural nordestino, eivado de

substratos medievais, favoreceu a aproximação desses dois imaginários.

Dado que a violência explícita configura o universo do cangaço nos folhetos

brasileiros, exaltando suas destrezas bélicas, ligadas à valentia. Justificavam, por sua vez, as

ações de atrozes dos bandidos, de modo que suas atitudes criminosas, assim, como a dos

cavaleiros medievais, ganhassem uma aura épica. Isto está refletido nos versos abaixo,

extraídos do folheto Façanhas de Lampião:

Acontece que um dia

o grupo foi atacado e no combate sangrento

Porcino foi baleado

conhecendo que morria

chamou os cabras ao lado.

Disse a seus cangaceiros

sei que vou me acabar

e quero a um de vocês

o meu bando entregar

porém quero escolher um

para assumir o meu lugar.

Pois reconheço que ele

é corajoso e valente

não desfazendo dos outros

que estão aqui presente

porque para este fim

ele é mais competente.

Logo chamou Virgulino

disse: quero lhe entregar

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o meu lugar de chefiar

responda se aceita ou não

o cargo de comandar.

Virgulino respondeu:

aceito perfeitamente

eu sinto sede de sangue

só poderei saciá-la

bebendo sangue de gente (SANTOS, [19--] b, p. 10-11, grifo nosso).

De acordo com os versos, Virgulino se destaca por ser corajoso e valente, bem como

cruel, tal como ilustra a última estrofe e os versos assinalados. Além da fala do cangaceiro na

qual explicita querer beber sangue de gente, as suas atitudes confirmam o seu instinto

sanguinário:

Nisto um dos cangaceiros

saltou uma gargalhada

fitou para Virgulino

e disse por debochada

te enganaste Porcino

este aí no é de nada.

Virgulino respondeu:

mas agora eu quero ser

e se é de mais adiante

você desobedecer

portanto neste momento

se prepare pra morrer.

E foi obecando o cabra

como um alucinado

sacando logo da cinta

um punhal bem despontado

meteu-lhe em cima do peito

que saiu do outro lado (SANTOS, [19--]b, p.11).

Segundo Queiroz (1992) as histórias de Carlos Magno e de seus pares inspiraram as

histórias do ciclo cangaço, porquanto cada bando de cangaceiro lembrava o lendário

Imperador e os seus paladinos. Assim, como se lê nos versos: “Ele disse: então agora/ eu sou

o chefe do bando/ e não quero cabra frouxo/ andando no meu comando/ quero homem de

coragem/ embora morra lutando” (SANTOS, [19--]b p. 12).

Este conjunto de imagens formado por tais versos pode ser remetido a Carlos Magno

e sua hoste destemida: “Carlos Magno também/ tinha 12 cavalheiros/ como outros iguais

guerreiros/ o mundo hoje não tem/ nunca temeram ninguém/ segundo diz a história/ tinham

as espadas a gloria/ nunca torceram perigo/ nunca foram ao inimigo/ - que não contasse

vitória!” (SILVA, 1958b, p. 3).

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Na concepção de Franco Júnior (2010, p. 75), “A imagem sozinha pouco comunica,

cada uma tende a se aproximar de outras, constituindo imaginários.” Com base no imbricado

processo que se opera nos interstícios resultantes das intercessões culturais, ele destaca:

Os sentimentos veiculados escapam ao seu autor, ultrapassam ao indivíduo. Se

amor, desejo, esperança, angústia, medo, qualquer estado afetivo, são

transtemporais e transpessoais, suas modalidades de exteriorização são datadas,

contextuais e coletivas [...] (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 75, grifo nosso).

Na opinião do autor, as questões “transtemporais” e “transpessoais” interligadas às

experiências coletivas corroboram afinidades de sentimentos e valores intemporais, tais como:

coragem, força, o destemor, dentre outros, conectando sistemas de imagens longínquos no

tempo e no espaço.

Além do mais, a luta se dava no nível simbólico entre o Bem e Mal. Desse modo,

cangaceiros como Lampião, por exemplo, para ser convertido em herói precisava ter suas

maldades justificadas, conforme ilustram as sextilhas a seguir:

Serei agora um herói

quero lutar fortemente

pois sou um injustiçado

e propositadamente

quero fuzilar “macacos”

e beber o sangue quente.

Foi assim que Virgulino

entregou-se ao banditismo

por causa da injustiça

do despeito carrancismo

porque a lei nesse tempo

era o mesmo despotismo (SANTOS, [19--]b, p.12).

Estes versos sintetizam como no imaginário sertanejo “[...] a função criminosa era

acidental”. (SIQUEIRA, 2007b, p. 270). E nesta poética de exaltação guerreira, faz como que

o homem do sertão não diferencie o homem valente do cangaceiro sanguinário. Sobretudo

porque dentro de um contexto sócio-econômico-cultural extremamente violento, o bandido

podia ser identificado ao cavaleiro:

[...] cada um se via na situação de um desbravador, como um cavaleiro destemido e

valente que deveria lutar para defender seu ‘reino’- que corresponderia, nesse

contexto, à sua propriedade ou a propriedade do seu protetor ou a sua própria honra.

(SIQUEIRA, 2007b, p. 271).

Além de ter suas maldades justificadas pela injustiça sofrida, algumas atitudes de seu

bando como, por exemplo, atacar fazendeiros proporcionava uma forte exaltação popular,

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convertendo-os numa espécie de “paladinos do povo”, para usar uma expressão de Peloso

(1996). Assim como se lê nestes versos: “Continuou Lampião/ junto com seus bandoleiros/

para melhor triunfar/ contratou mais cangaceiros/ e começou atacar/ os ricassos

fazendeiros” (SANTOS, [19--]b, p. 13).

A partir desses versos, nota-se como a imagem do cangaceiro é construída ora como

a de um bandido cruel e inescrupuloso, ora como um justiceiro que se insurge contra os

grandes fazendeiros ou chefes políticos locais.

O fato que a exaltação da violência, subsidiada pelo destemor é o que provavelmente

pôde estreitar os laços entre as duas culturas cotejadas, tal como demonstram as sextilhas de

Luis da Costa Pinheiro a baixo:

Roberto não sentou praça

por ser muito inteligente

toda manobra de guerra

conhecia perfeitamente

e para vencê-lo em luta

nunca encontrou valente.

Com toda arma de guerra

ele sabia lutar

tinha coragem de sobra

quando queria lutar

do fio de sua espada

ninguém podia escapar.

Nas armas era um perigo

mas bravo que um leão

ainda era mais perito

que Oliveiros e Roldão

quando atacava o inimigo

não havia compaixão (PINHEIRO, 1957, p. 4, grifo nosso).

Roberto, o personagem em destaque, tinha uma coragem descomunal, além do mais,

era um exímio guerreiro, sem compaixão dos seus inimigos. Com base em suas atitudes, ele

foi comparado aos pares mais populares entre os sertanejos: Roldão e Oliveiros.

Conforme Franco Júnior (2010), podemos intuir que havia algo no imaginário

popular brasileiro que possibilitou tal conexão entre estes dois universos em pauta - o

carolíngio medieval e o sertanejo do Nordeste brasileiro. Caso contrário, não haveria qualquer

ilação entre ambos. Ou seja, no nível de mentalidade, o que compartilhamos independe do

tempo e do espaço, pois forma parte de uma identidade coletiva, portanto: “[...] ao expressar

valores coletivos, os imaginários dão ao homem a sensação de pertencer não apenas ao seu

momento, mas de fazer parte de uma história.” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 82).

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Deste modo, com base nesses pressupostos, o cavaleiresco medieval pode ser

refletido entremeado no sistema imagético recriado na literatura de folhetos do Nordeste

brasileiro. Daí, nestas produções, surge um conjunto de imagens no qual o cangaceiro toma

forma de cavaleiro medieval reformulado com a sua indumentária de couro, seu cavalo, seu

bando, seu espírito itinerante e sua coragem colossal, transformando-se, portanto, em um

herói do sertão aos moldes da cavalaria andante.

Assim, como nos mostra os versos do poeta popular Leite Costa ao descrever as

andanças de Lampião e seu bando pelo sertão:

Já tinha 62 cabras

o bando de lampeão

dêsses que bebia sangue

e pegava onça de mão

e não corria da luta

sem ver o fim da questão

E lampeão, no sertão

andava desassombrado

com sua linda mulher

e o seu grupo de malvados

todo êle em pontaria

era bamba e respeitado.

Todo cangaceiro era

de valente a mais valente

Lampeão com seu bando

topava qualquer “batente”

viva pelo sertão

bebendo sangue de gente (LEITE, [19--]., p. 7).

Nos versos, a coragem do cangaceiro é enaltecida, mesmo estes indivíduos sendo

capazes de cometer as maiores atrocidades, como explicitam os versos expostos: “bando de

malvados e viviam pelo sertão/ bebendo sangue de gente” (LEITE, [19--], p. 7). Lampião e

seu bando podiam andar “desassombrando”, porque eram respeitados por serem destemidos.

Percebe-se que o destemor do cangaceiro afina-se com a valentia dos paladinos carolíngios.

Tal processo se justifica pelo diálogo que se efetua entre as duas culturas, visto que

“[...] na maior parte das vezes, as imagens são produtos de sua própria intertextualidade.”

(FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 72). Diante disso, alguns elementos da matéria da França foram

capazes de estabelecer elos com o imaginário sertanejo, a partir das emoções promovidas na

alma daqueles que tiveram contato com suas histórias.

Pois, além do lado humano que os seus protagonistas ensejam aos textos literários de

que são matérias, tais composições estão refertas de valores simbólicos, como: coragem,

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força, valentia, resignação, fé, dentre outros; consolidando, assim, uma consciência coletiva

unindo todos a nível mental.

Tal visão é fruto de um contexto, de um período, tal como de experiências coletivas.

Por exemplo, o imaginário medieval foi “criado e modelado pela Idade Média” (LE GOFF,

2011a, p. 21). Sendo assim, esta perspectiva é estendida ao imaginário sertanejo, criado e

moldado pelo povo nordestino, a partir de suas vivências, consideradas experiências únicas

dessa sociedade que herdou um enorme contingente de traços do medievo ibérico no

momento por ter sido a primeira região brasileira a ser colonizada.

Quanto a alguns desses imaginários criados pelo medievo europeu e que se

irradiaram para outras civilizações, destacamos os valentes cavaleiros do século XIV e a

ordem da cavalaria como protótipos expressivos desse período, assumindo uma parte do status

de intemporalidade que todo ser humano congrega: “[...] mais do que isso, apesar das

especificidades das imagens construídas e consumidas pelo homem medieval (ou antigo, ou

moderno, ou ocidental, ou oriental) é possível por intermédio delas visualizar algo do homem

intemporal.” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 71-72, grifo do autor).

Por inúmeras conjeturas sócio-histórico-culturais estes guerreiros, de uma maneira

bastante idealizada, transformaram-se em heróis de feitos gloriosos marcando, sobremaneira,

a memória coletiva não só do povo europeu na Idade Média. Em vista disto, converteram-se

em verdadeiros simulacros de substratos mentais do medievo, transladados além-mar. Daí a

sua capacidade de se remodelar em outros tempos, como por exemplo, no sertão brasileiro do

século XX.

Por tudo isso, somos capazes de compreender o porquê do “universo carolíngio”

(CORREIA, 1993) e de todo imaginário cavaleiresco que este aporta, ser suscetível a

remodelar-se em outras culturas. Daí ser Roldão esta figura capaz de materializar a coragem

contemporaneamente:

Roland, o brasileiro e o português Roldão, não está no conto popular, na história

tradicional. É infalível na cantoria, nos versos do desafio [...] Onze séculos não o

afastaram da citação sertaneja do Nordeste do Brasil, como no Brasil do centro e do

sul. (CASCUDO, 2001, p. 43).

Em pleno sertão nordestino, temos tais paladinos travestidos de heróis populares,

realimentado figuras como o vaqueiro valentão ou o sanguinário cangaceiro. Recriados,

assim, com as cores locais. Assim como ilustram os versos do poeta Paulo Nunes Baptista a

seguir:

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Roldão foi um sertanejo

Respeitador da verdade

Que praticava a justiça

E combatia a maldade;

Não temia cangaceiro

- Topava qualquer “pampeiro”

Se houvesse necessidade.

Quem quizesse pisar nele

Podia cova fazer

Porque Roldão castigava

Quem o quizesse ofender:

Não procurava barulho

Mas entrando “num embrulho”

Fazia a coisa feder... (BAPTISTA, [19--], p. 6).

Estas duas septilhas nos apresentam um Roldão sertanejo. Tal personagem é

construído a partir do arquétipo do paladino carolíngio, utilizando pelo menos três

sentimentos básicos sempre associados a ele: a intrepidez, a honra e o destemor. Portanto,

adaptado ao imaginário sertanejo, recriado na figura do vaqueiro.

No entanto, os versos a seguir exemplificam ainda melhor este amalgama de

imaginários, no qual Roldão é o vaqueiro, caboclo, “nordestinizado”, aclimatado ao ambiente

do sertão nos versos do poeta popular. Reforçando, deste modo, o hibridismo cultural na

cultura popular brasileira (AYALA, 1997). Assim como os que são refletidos nos versos: Com

sete anos de idade/ Roldão “já estava no fio” / Aprendendo com seu pai/ A domar potro

bravio/ Foi vaqueiro muito cedo/- Era caboclo sem medo/ Desempenado e sadio (BAPTISTA,

[19--], p. 7).

De todo modo, é inegável a constância da matéria de frança, cujo onze séculos não

foram suficientes para suplantar o “universo configuracional carolíngio” (CORREIA, 1993)

retroalimentado por esta. Assim sendo, alguns de seus elementos mais notáveis tornam-se

intemporais e inesquecíveis em quaisquer civilizações que deles se apropriem. Citando caso

análogo ao que aconteceu na literatura de folhetos brasileira, como exemplificam os versos

expostos anteriormente.

No sertão brasileiro, por exemplo, eles inspiram versos de valentia e bravura, para

usar uma expressão de Cascudo (2001, p.4) construídos com base no arquétipo do “homem-

sem-medo”. Este pode ser personificado na figura de Roldão e de seus companheiros. Nos

versos abaixo, esse arquétipo de que nos fala Cascudo é enfatizado pelas metáforas “leões da

igreja” e “endiabrados” usadas pelo poeta: “Todos eram conhecidos/ pelos leões da igreja/

pois nunca foram a peleja/ que nela fossem vencidos/ eram por turcos temidos/ pela igreja

estimados/ porque quando estavam armados/ suas espadas luziam/ e os inimigos diziam:/ -

esses são endiabrados!” (ATHAYDE, 1976, p. 1).

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O trânsito da matéria literária do ciclo carolíngio perpassa as “brechas”

(CHARTIER, 2009) resultantes dos intercâmbios culturais acontecidos entre Portugal e

Brasil. Tal processo estabelece um diálogo cultural riquíssimo entre essas duas sociedades,

como bem expressam as respectivas produções literárias.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Oh! Dis-moi ce qu'on peut faire après Charlemagne!

(Victor Hugo)

O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem

no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela

autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação. Todavia, essa ordem de

múltiplas fisionomias não obteve a onipotência de anular a liberdade dos leitores.

Mesmo limitadas pelas competências e convenções, essa liberdade sabe como se

desviar e reformular as significações que a reduziram. Essa dialética entre imposição

e a apropriação, entre os limites transgredidos e as liberdades refreadas não é a

mesma em toda parte, sempre e para todos. Reconhecer as suas modalidades

diversas e ações múltiplas é o objeto primeiro de um projeto de leitura empenhado

em capturar, nas suas diferenças, as identidades entre os leitores e sua arte de ler.

(CHARTIER, 1998, p. 8).

O imaginário cavaleiresco resgatado pelos cordéis portugueses, os quais abrangeram

temas inspirados em histórias tradicionais da Europa medieval, foi apropriado e adaptado pelo

poeta popular na literatura de folhetos, produzida no Nordeste brasileiro no final do século

XIX e início do século XX.

A popularidade desse gênero editorial transpassou Portugal e chegou às terras

brasileiras. Dentre essas histórias do medievo europeu, destacamos uma em especial: História

de Carlos Magno e dos Doze pares de França, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho.

No sertão nordestino, o sucesso alcançado por este livro contribuiu para que os

leitores e/ou ouvintes sertanejos recriassem as histórias carolíngias, reformulando as suas

significações e seus personagens. Afinal, nos folhetos, observamos claramente como as

figuras arquetípicas dos paladinos foram imiscuídas aos seus heróis populares, como por

exemplo, a do cangaceiro; enriquecidas sobremaneira com elementos da cultura popular

nativa, a partir de uma complexa técnica de recriação artística. Esta era decorrente de um

processo de aculturação, sob o qual a literatura teve uma função primordial.

Convém salientar que, se há uma tradição conduzindo as atitudes e os

comportamentos dos grupos sociais, esta possivelmente influencia as práticas leitoras desses

povos, condicionando-os a uma interpretação de mundo muito particular e única, com base

em suas experiências vivas.

Assim sendo, o que era recebido de Portugal passava por um “ajuste”, a fim de que

pudesse se adaptar ao novo contexto sociocultural formado além-mar. Isto era possível graças

às “brechas” (CHARTIER, 2009), resultantes dos intercâmbios culturais. Por isso, não foi

difícil aproximar o cangaço e os seus protagonistas ao imaginário carolíngio, ao universo da

cavalaria andante e aos seus intrépidos cavaleiros.

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Deste modo, cotejando as duas literaturas em questão - o cordel português e os

folhetos brasileiros -, podemos inferir que, embora compartilhando um fundo de histórias em

comum com a portuguesa, a literatura de folhetos brasileira não é apenas uma extensão desta.

Afinal, consolida-se enquanto gênero literário por apresentar um cânone de autores e obras,

bem como um público receptor definido (ABREU, 2006).

Diante do exposto, a presença do ciclo carolíngio é uma peça chave para a

compreensão das bases de formação da literatura de folhetos brasileira, distanciando-a da

literatura de cordel portuguesa, mesmo dentro de uma perspectiva de continuidade cultural.

Por isso que mesmo o ciclo carolíngio contando apenas com seis folhetos matriciais, assume

uma grande função na fortuna dos folhetos brasileiros. Pois, através da matéria da França

reproduzida no Brasil, podemos observar como se dá o processo de apropriação do cabedal

português, e, por conseguinte, a sua adaptação ao contexto sociocultural brasileiro.

Além disso, a presença de autores e do público ledor, bem como as inúmeras edições

e reedições ao longo de mais de meio século, ilustram como surgiu à literatura de folhetos no

Nordeste brasileiro, final do século XIX e inícios do século XX; bem como, a sua

consolidação nas primeiras décadas do século XX, estendendo-se ao seu ápice no final da

década de 50 do mesmo século.

Neste contexto, a matéria carolíngia esteve presente durante todo processo de

consolidação desse gênero literário, do início ao auge da literatura de folhetos, ajudando a

popularizá-lo pelo sertão adentro, devido à predileção do povo sertanejo por histórias de

aventuras, de homens corajosos e destemidos. E, em especial, graças ao carisma dos

personagens carolíngios “nordestinizados”.

Tais composições reiteram a força de Carlos Magno e de seus paladinos como um

evento reticente na memória coletiva dos sertanejos: já que: “Carlos Magno e os seus

companheiros, os Pares de França, continuam ‘vivos’ em pleno século XX. Transformados de

vultos históricos a personagens de ficção, permanecem na memória das gerações [...]”

(CORREIA, 1993, p.11). Ou seja, tais vultos não são mais codificados como personagens

históricos, mas sim, como arquétipos (FERREIRA, 1993). Sobretudo pela sua permanente

recriação, como também pela existência dos mecanismos de adaptação que estes possuem,

pautados em questões do imaginário.

O ponto central para entender o processo de adaptação, no qual se entremeiam

fenômenos culturais como os que envolvem a continuidade da matéria carolíngia nos folhetos

brasileiro, é, sem dúvida alguma, o texto-matriz. Isto é: “[...] texto-letra como fonte, que se

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deve ater para a percepção do que acontece e permanece em produção do ciclo.”

(FERREIRA, 1993, p16).

O “poeta legião” (BATISTA, 2013), ao se apropriar da matéria carolíngia, recria-a,

atualizando-a ao seu contexto sócio-histórico, sem, contudo, desconsiderar o caráter

arcaizante que a literatura popular do Nordeste possui, além de ser a continuidade de uma

tradição. Sobre o tema, Ferreira (1993, p.13) esclarece:

Nesta literatura popular que se produz no Nordeste brasileiro, dá-se, como

não podia deixar de ser, uma démarche arcaizante em vários níveis,

preservadores de uma série de valores já postos de lado pela sociedade

global, enquanto aí se realizam também os seus padrões. Acontece que ela

avança e se vanguardiza, no sentido em que se procede constantemente a

um processo de crítica a esta sociedade, mesmo sem o pretender

conscientemente (FERREIRA, 1993, p. 13, grifo nosso).

Deste modo, em se tratando da adaptação do romanceiro épico medieval no sertão,

destaca-se a atualização de uma matéria literária, cuja temática ao longo do seu trajeto de

recriação conservava muito dos valores herdados no momento da sua colonização; no entanto,

essa matéria também avançava na medida em que ia se incorporando ao modelo sociocultural

nordestino e tratava de questões específicas da sociedade sertaneja.

Neste contexto, os folhetos carolíngios representam uma “persistência adequada

proveniente de atuante historicidade, fundamentada em arraigada tradição cultural e não em

modismo recente ou em artificiosidade literária” (FERREIRA, 1993, p.15, grifo nosso).

Na opinião da autora, um dos motivos que contribuíram para o sucesso destes

folhetos foi a forma de como a história de Carlos Magno e de seus pares era transmitida, pois

não havia elementos fantásticos, ao que ela chama de “artificiosidade literária”. Isto quer dizer

que estes relatos estavam envoltos no efeito de real (BARTHES, 1972).

Da mesma forma, outro personagem típico desta região, o cangaceiro, também ganha

esse status de “herói do mal” (SIQUEIRA, 2007a), cuja barbárie de seus atos era sempre

associada à sua coragem exacerbada, a uma “ausência de medo” colossal. Suas posturas

atrozes eram muito apreciadas pelos homens do sertão e seus feitos foram imortalizados pelo

poeta popular.

No sertão nordestino, a matéria carolíngia não representa apenas uma permanência

da herança dos romanceiros ibéricos em solo brasileiro, mas um modelo de como o

imaginário cavaleiresco se amalgamou à situação social, de modo a irradiar novos elementos

de criação literária, pautados nos sentimentos de destemor e valentia.

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Estes, quando ressignificados pela comunidade nordestina, atuaram como um

verdadeiro divisor de águas entre as duas literaturas. Pois através da popularização da matéria

da França, as figuras arquetípicas dos paladinos contribuíram para a idealização dos heróis

populares dessa região, como, por exemplo, os vaqueiros e cangaceiros; valentões admirados

por possuírem uma coragem colossal, terem “sangue nos olhos” e, sobretudo, por não fugirem

de uma boa briga, tal qual Roldão e seus companheiros, Lampião e os seus pares.

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