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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO
CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS
PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS
FORTALEZA
2015
MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO
CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS
PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará, como requisito parcial à obtenção do
título de mestre em Letras. Área de
concentração: Literatura Comparada.
Orientadora: Profa. Dra. Ana Márcia Alves
Siqueira
FORTALEZA
2015
MARTA RAQUEL OLIVEIRA DE CARVALHO
CICLO CAROLÍNGIO COMO DIVISOR DE ÁGUAS NAS LITERATURAS
PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE FOLHETOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará, como requisito parcial à obtenção do
título de mestre em Letras. Área de
concentração: Literatura Comparada.
Aprovada em: ___/___/______.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________
Prof. Dr. Gleudson Passos Cardoso
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
________________________________________
Profa. Dra. Ana Márcia Alves Siqueira (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
_________________________________________
Prof. Dr. Claudicélio Rodrigues da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFC)
Ao meu pai, vaqueiro e sertanejo, Seu Oliveira
(in memoriam)
- Somos árvores?
- Somos! Somos árvores e tudo mais que
quisermos ser!
- Ah, então serás o meu Oliveiros e eu serei
para sempre o teu Carvalho...
AGRADECIMENTOS
Como agradecer àqueles pela oportunidade única de realização de um sonho?
Experiência compartilhada com tantas pessoas queridas através de conselhos, ou,
simplesmente, por terem sido ouvintes e pacientes.
A realização de um trabalho de pesquisa é algo solitário e, além disso, exige dedicação
de longos meses de leituras, escritas e discussões incansáveis. No entanto, é também um
trabalho conjunto; afinal só me foi possível chegar ao fim desta jornada graças ao esforço de
tantos que vieram antes de mim.
Por tudo isso, agradeço à FUNCAP pelo apoio financeiro com a manutenção da bolsa
de auxílio, indispensável à realização da pesquisa e a minha orientadora, Professora Ana
Márcia Siqueira, um agradecimento especial. Primeiro, por ter me ajudado a crescer enquanto
pesquisadora; segundo, pelo grande aprendizado ao longo do processo, algo que se destina aos
grandes mestres: extrair sempre o melhor dos seus pupilos.
Também agradeço ao professor Claudiocelio Rodrigues, do Departamento de
Literatura da UFC, pelas contribuições discursivas, pelo comprometimento na indicação de
novas fontes de pesquisas, indispensáveis à Dissertação; ao professor Gleudson Passos, do
Departamento de História da UECE pela atenção direcionada a este trabalho. Assim como, à
professora Marisa Aderaldo do Departamento de Letras Estrangeiras da UECE e a professora
Germana Pereira do Departamento de Letras Estrangeiras da UFC pelo grande incentivo:
muchísimas gracias!
E por último, e não menos importante, obrigada aos meus maiores incentivadores, os
meus amigos: Geórgia, Bel, Gisleuda, Deise, Lorena, Deise, Thibério, Callen, Simone, Jaime,
Marjori, Elio, Lenice, Antonieta, Denise, Mariestela, Larissa, Gaby e Bruno. Afinal, os
amigos é a família que escolhe. Muito obrigada pela força, meus queridos irmãos!
Somos como anões aos ombros de gigantes, pois
podemos ver mais coisas do que eles e mais distantes,
não devido à acuidade da nossa vista ou à altura do
nosso corpo, mas porque somos mantidos e elevados
pela estatura de gigantes. (Bernardo de Chartres).
RESUMO
O objetivo geral deste trabalho é analisar a contribuição do ciclo carolíngio para a autonomia
da literatura de folhetos brasileira. Para tanto, partiremos do pressuposto de que mesmo
compartilhando um plano de fundo comum com a literatura de cordel portuguesa, os folhetos
brasileiros mantêm a sua autonomia, na medida em que se estabelece um cânone de autores e
obras, uma forma tipográfica específica e um público leitor bem definido. A nossa atenção
reside no processo de aculturação que assente as bases da literatura de folhetos, sobretudo em
como o cabedal português é apropriado e recriado com cores locais. Por isso, escolhemos o
ciclo carolíngio por este fazer parte da formação das duas literaturas cotejadas, a fim de
entendermos o intrincado processo cultural que, ao mesmo tempo em que aproxima as
respectivas literaturas, distancia-as. Este ciclo atua como um verdadeiro divisor de águas
enquanto matéria literária capaz de se remodelar a outros contextos literários, bem como
irradiar novos elementos de criação artística a partir do amálgama de imaginários híbridos,
graças ao engenho e a arte do poeta popular e a recepção calorosa dos leitores e/ou ouvintes
das histórias de Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Para uma melhor compreensão
deste aspecto, abordamos a forma como os personagens carolíngios estão construídos como
figuras arquetípicas pautadas em sentimentos de bravura e destemor tão apreciados pela
sociedade nordestina. Para tal fim, utilizamos uma metodologia de análise exploratória,
bibliográfica, documental e descritiva, cujos resultados estão embasados na análise dos 60
folhetos que compõem o corpus da presente pesquisa, bem como na literatura que se reporta
ao tema em questão.
Palavras-chave: Folhetos. Cordel. Ciclo Carolíngio.
RESUMEN
El objetivo general de este trabajo es analizar la contribución del ciclo carolingio a la
autonomía de la literatura de folletos brasileños. Así que, partiremos del presupuesto de que
aunque compartiendo un telón de fondo común con la literatura de cordel portuguesa, los
folletos brasileños mantienen su autonomía, puesto que establecen un canon de autores y
obras, una forma tipográfica específica y además cuenta con un público lector muy bien
definido. Nuestra atención reside en el proceso de aculturación que plantean las bases de la
literatura de folletos. Sobre todo en como el patrimonio literario portugués apropiado es
recriado con los colores lugareños. Por eso, elegimos el ciclo carolingio a causa de su
importancia para la formación de las dos literaturas cotejadas, a fin de que entendamos el
intrincado proceso cultural que, al mismo tiempo en que aproxima las respectivas literaturas,
se las puede distanciar. Este ciclo actúa como una verdadera divisora de aguas, en cuanto
materia literaria capaz de remodelarse a otros contextos socioculturales, irradiando, a su vez,
nuevos elementos de creación artística a partir de la amalgama de imaginarios híbridos. Esto
es posible gracias al ingenio y arte de los poetas populares y la recepción calurosa de los
lectores y/o oyentes de las historias de Carlomagno y de los Doce Pares de Francia. Para una
mejor comprensión de este aspecto, abordamos en nuestro estudio la forma de como los
personajes carolingios están construidos, es decir, como figuras arquetípicas pautadas en
sentimientos de bravura y valentía tan apreciados por la sociedad nordestina. Para tal fin,
utilizamos una metodología de análisis exploratorio, bibliográfico, documental y descriptivo,
cuyos resultados obtenidos están basados en el análisis de los 60 folletos que componen el
corpus de la presente investigación, como también en la literatura que se reporta al tema en
cuestión.
Palabras-clave: Folletos; Cordel; Ciclo Carolingio.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8
2 APROPRIAÇÃO DE ASPECTOS MEDIEVAIS: ADAPTAÇÃO E
RECRIAÇÃO NA LITERATURA BRASILEIRA DE FOLHETOS .................. 20
2.1 Pegadas do colonizador europeu: aclimatização de traços do medievo, a
literatura cavaleiresca e a matéria da França no Brasil ....................................... 20
2.2 Uma “longa Idade Média” legitima os substratos medievais na literatura do
Nordeste brasileiro ................................................................................................... 36
2.3 Influências medievais nos temas socioculturais nordestinos que atuam como
elementos de criação literária .................................................................................. 43
3 AS LITERATURAS PORTUGUESA DE CORDEL E A BRASILEIRA DE
FOLHETOS SOB A ÉGIDE DO CICLO CAROLÍNGIO ................................... 53
3.1 A cultura da oralidade nas bases de formação da literatura brasileira de
folhetos .................................................................................................................. 56
3.2 A literatura de cordel portuguesa: de Portugal ao Brasil ..................................... 67
3.3 A literatura de folhetos brasileira, a sua autonomia ............................................. 72
3.4 O ciclo carolíngio dos folhetos nordestinos ............................................................ 84
4 OS ELEMENTOS DE CRIAÇÃO LITERÁRIA IRRADIADOS PELO
CICLO CAROLÍNGIO ........................................................................................... 97
4.1 O combate .................................................................................................................. 98
4.2 A valentia e o destemor e o ciclo do cangaço .......................................................... 111
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 120
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 124
8
1 INTRODUÇÃO
O que faz um imperador do século VIII e sua hoste de cavaleiros, símbolos de
coragem e bravura do medievo europeu, estarem presentes na literatura do sertão nordestino
em pleno século XX da Era Contemporânea:
Minha caneta de ouro
prendo ela em minha mão
para escrever uma história
de grande admiração
a vida de Carlos Magno
que foi Imperador Cristão.
Carlos Magno foi rei dos francos
imperador do ocidente
seu pai chamava-se Pepino
foi forte e inteligente
nasceu na Austria
foi forte, calmo e valente.
[...]
Carlos Magno é o rei
junto a 12 cavalheiros
conquistou 16 cidades
matando muitos guerreiros
mas em todas as vitórias
era ele um dos primeiros (FREIRE, [19--], p. 1-6).
Conforme aparecem nos versos do poeta popular nordestino João Lopes Freire,
Carlos Magno, Imperador Cristão da dinastia dos Francos, e sua famosa tropa de elite,
conhecida popularmente como os Doze Pares de França inspiraram um importante ciclo de
folhetos que, apesar de contar apenas com seis folhetos matriciais, são essenciais para
entendermos a formação da literatura de folhetos brasileira e a sua consolidação enquanto
gênero literário originário do Nordeste do Brasil.
Estes folhetos, que possuem uma forma versificada, são inspirados por um texto
matriz escrito em prosa, intitulado História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de
França, traduzido do castelhano ao português por Jerônimo Moreira de Carvalho. Este livro
por muito tempo, até os fins da década de 50 do século XX, era tão lido quanto a Bíblia no
sertão nordestino (CASCUDO, 1953).
Este fato não é algo que deve passar despercebido, afinal, havia alguma coisa de
especial na matéria da França que chamou atenção dos sertanejos. Por isso que, pensando na
recepção desse livro e na forma como os leitores e/ou ouvintes se apropriaram das histórias
9
carolíngias e as recriaram em folhetos, reformulando suas significações e seus personagens de
acordo com cores locais, decidimos analisar o fenômeno.
Assim, de um texto em prosa a versos, um tema da Idade Média europeia, trazido
pelo colonizador português, foi aclimatado à cultura do sertão nordestino pelo poeta popular.
Assim sendo, partimos do pressuposto de que em cultura nada é estático, tampouco os
processos neste âmbito acontecem isoladamente.
Conforme Braudel (1990, p. 21), não existe presente sem passado, ou seja: “O
presente e o passado esclarecem-se mutuamente, como uma luz recíproca.” Logo, partiremos
dessa relação dialética de tempo para justificar o primeiro passo da nossa investigação. A
literatura brasileira é fruto da convergência das culturas indígena, africana e, sobretudo,
portuguesa (ROMERO, 1977). Desta última, recebemos o idioma e todo o entorno sócio-
histórico-cultural que este suscita. Além do mais, a cultura portuguesa moldou as nossas
expressões artísticas, suplantando aquelas vindas de outras culturas. Convém ressaltar que as
expressões artísticas brasileiras foram vertidas em língua portuguesa.
Mas “cultura” é um termo de sentido amplo e possui muitas acepções, por isso é
difícil conceituá-la. Com relação ao tema, Burke (2010, p. 21, grifo do autor) afirma que o
problema reside no fato de que “‘cultura’ é um sistema com limites muito indefinidos”. Não
obstante, por se tratar de uma das pedras angulares da presente pesquisa, faz-se necessário
redirecioná-la aos nossos pressupostos teóricos de análise investigativa. Para tal fim,
usaremos o conceito proposto por Roger Chartier, extraído do texto “Escutar os mortos com
os olhos”. O autor argumenta que apesar da proliferação das acepções do termo, é necessário
adotar como uma possível definição de que cultura é
[...] a que articula as produções simbólicas e as experiências estéticas subtraídas às
urgências do cotidiano, como as linguagens, os rituais e as condutas, graças aos
quais uma comunidade vive e reflete sua reação ao mundo, aos outros e a si mesma.
(CHARTIER, 2010, p. 16).
De um modo geral, utilizaremos essa proposição por achá-la relevante ao nosso
objeto, haja vista que idioma e cultura estão diametralmente ligados quanto às representações
simbólicas e às experiências de interação do ser com o mundo social e com o seu próprio
mundo. Diante disso, como usamos a língua portuguesa para nos expressar, tendemos a
pensar que esta goza de certa vantagem sob as demais culturas, já que “O europeu foi o
concorrente mais robusto por sua cultura e que deixou mais tradições.” (ROMERO, 1977, p.
39).
10
A cultura europeia e o Cristianismo tomado como medida, além da força e das armas
utilizadas pelo colonizador condicionou o assujeitamento do indígena, do negro e do
sertanejo. E, no seio destas transformações multiculturais, onde há a confluência das culturas
portuguesa e brasileira, nas literaturas de cordel1 e de folhetos, que lançaremos o nosso olhar.
Segundo Peloso (1996, p. 77) a ampla divulgação do romanceiro tradicional
português na literatura de cordel do Nordeste brasileiro suscita questões sobre “esquemas
arquétipos e matrizes culturais” que, ao fazerem parte das engrenagens textuais, atém-se às
categorias de tempo e espaço na dinâmica das estruturas narrativas, agregando à morfologia
textual elementos de outras culturas, recriando, por assim dizer, um universo complemente
diferente dos seus originários.
A complexidade dessa perspectiva reside, principalmente, na interpenetração de
culturas heterogêneas sob o crivo do tempo, matizando conflitos históricos e culturais
profundos, atualizando-se em ambientes distantes daqueles de suas origens. Tais
características conferem à cultura popular brasileira a sua identidade híbrida. Ayala (1997,
p.160) menciona que a hibridização “[...] permite considerar a cultura popular no Brasil como
uma atividade contemporânea.”
Deste modo, os sistemas de hibridização que sincronizam o processo de interseção
cultural ao ritmo dinâmico de seus intercâmbios, também atualizam, no tempo e no espaço, os
arquétipos2 de distintos veios de criação artística no corpo do texto literário, enquanto
símbolos que podem ser entremeados de valores. Portanto, estes modelos podem ser
remodelados de acordo com as perspectivas das comunidades no momento de suas
apropriações.
1 Vale salientar que há problemas na terminologia “literatura de cordel”, uma vez que ela passa a ser empregada
pelos estudiosos do tema apenas em 1970. Sobre este assunto, Abreu (2006) postula que: “Antes de tudo, é
preciso esclarecer uma questão terminológica. Apesar de, atualmente, utilizarmos o termo ‘literatura de cordel’
para designar as duas produções, os autores e consumidores nordestinos nem sempre reconhecem tal
nomenclatura. Desde o início desta produção, referiam-se a ela como “literatura de folhetos” ou, simplesmente,
‘folhetos’. A expressão ‘literatura de cordel nordestina’ passa a ser empregada pelos estudiosos a partir da
década de 1970, importando o termo português que, lá sim, é empregado popularmente. Na mesma época,
influenciados pelo contato com os críticos, poetas populares começam a utilizar tal denominação. Para evitar
mais essa complicação, seguiremos a designação utilizada pelo poetas, referindo as composições nordestinas
como ‘literatura de folhetos’ e as portuguesas como ‘literatura de cordel’”. (ABREU, 2006, p. 17-18).
Ressaltamos que, na presente pesquisa, esta acepção de Abreu (2006) é que norteará a nossa perspectiva teórica
de análise investigativa ao longo do trabalho. Assim que, sempre que nos referimos às composições
nordestinas, estas serão nominadas como folheto, e a portuguesas como cordéis. 2 O conceito de arquétipo utilizado em nosso estudo foi retirado da corrente junguiana de Psicologia. De acordo
com Jung (1995, p. 57) os arquétipos são “imagens humanas universais e originárias.” Dentro desta
perspectiva, tais imagens formam parte do inconsciente coletivo, ou seja: “[...] conteúdo idêntico em todos os
seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que
existe em cada indivíduo.” (JUNG, 2000, p. 15). Justifica-se, desse modo, a capacidade hereditária que a
humanidade possui de transmitir alguns temas e lendas, de modo idêntico, no mundo inteiro por meio de
imagens universais desde tempos remotos.
11
No entanto, ao longo do processo de aculturação as respectivas culturas se
autoinfluenciaram. Ou seja, a cultura brasileira, enquanto colônia, não somente absorvia o que
vinha da metrópole tal e qual, principalmente no tocante à literatura. Uma vez que o que era
apropriado passava, indubitavelmente, por um processo de recriação artístico. E é justamente
neste ponto em que reside à complexidade da questão: em que medida isso ocorria?
A fim de respondermos a esta questão, faz-se necessário a observação de muitos
fatores de ordem vária, tais como: os históricos, os filosóficos, os antropológicos e os
socioculturais, além das categorias literárias propriamente ditas, como: autor, público,
mercado editorial, dentre outros, incidindo sobre a materialidade da obra.
Com relação ao tema da literatura de folhetos brasileira, dada a complexidade do
respectivo gênero literário, os pesquisadores defendem que:
[...] de modo amplo, encontram nos folhetos verdadeira mina para estudos os mais
diversificados. O antropólogo cultural, o sociólogo, o psicólogo social, o historiador,
o ficcionista, enfim, cientistas sociais e escritores deparam na literatura de cordel
com acervo imenso de materiais para pesquisas. Porque, antes de tudo, essas
modestas publicações do poeta popular revelam e condensam, na sua pureza, a
expressão legítima da realidade social. Aí está palpitante o homem nordestino. O
homem de ontem e de hoje. O homem histórico em sua plenitude, com seus
problemas, lutas, sofrimentos, religiosidade, ideologia. A ecologia nordestina, que se
reflete no incerto climático e na paisagem tantas vezes dolorosa de suas secas
trágicas ou suas enchentes caudalosas e arrasadoras. (LOPES, 1983, p. 8, grifo
nosso).
No entanto, convém ressaltar que todos esses fatores socioculturais não interferem no
valor estético do texto. Por isso que em nosso trabalho texto e contexto aparecerão
diametralmente ligados, sem, contudo, desconsiderarmos a autonomia estética e o valor
artístico do texto literário per si (CANDIDO, 2006). Sobretudo porque a literatura de folhetos
imprime em sua matéria literária as marcas identitárias do povo nordestino, enquanto
expressão artística dessa sociedade, em específico.
Afinal, no que diz respeito ao sentido das obras, com relação à sua recepção pela
comunidade que delas se apropriam, Chartier (1998, p. 9) questiona o sentido fixo e universal
dos textos, dado que “Os sentidos atribuídos às suas formas e aos seus motivos dependem das
competências ou das expectativas dos diferentes públicos que delas se apropriam.” Assim
uma obra, no sentindo amplo, ou elementos de criação literária, no sentido mais restrito,
poderão ter significados plurais a depender da força de suas recepções nas sociedades que os
acolhem, afinando-se com as suas respectivas visões de mundo.
Dentro de tal perspectiva teórica, destaca-se a capacidade criativa do poeta popular
da respectiva região brasileira, especialmente na forma de como esse artista manipula os
12
esquemas mentais apropriados e os decifra, com base nos sistemas afetivos “[...] que
constituem a cultura (no sentido antropológico) das comunidades que as recebem.”
(CHARTIER, 1998, p. 9, grifo do autor), da qual faz parte e para qual escreve. Sobretudo
sem perdemos o foco na respectiva comunidade leitora à qual o poeta pertence.
Conforme o autor, o processo criativo faz com que a obra seja comunicável e
decifrável para uma respectiva comunidade leitora (CHARTIER, 1998). Por isso que, mesmo
atrelado às condições impostas pelo mercado editorial, o poeta é o grande artífice da literatura
popular que, a partir do seu engenho artístico, consegue mantê-la como uma matéria viva e
contemporânea no corpo social, atribuindo-lhe originalidade.
Logo, em se tratando do que recebemos culturalmente de Portugal, podemos
concluir que o que foi apropriado, transformou-se ao longo do tempo. Segundo Ferreira
(1957) o elemento português sofreu modificações, desvios, sobretudo no que diz respeito ao
âmbito literário, tendo em vista que a matéria literária sofre influência do espírito do narrador,
do lugar onde se desenvolve ou do tempo psicológico em que as narrações são compostas.
Nestes termos, a partir do processo de colonização da cultura brasileira,
conjecturava-se uma nova realidade cultural além-mar. Daí este momento ser, em função das
experiências vividas, um fator determinante para que a visão de mundo dos colonos
brasileiros não fosse a mesma dos seus colonizadores europeus. A saber, é justamente nestes
interstícios, resultante das interseções culturais, onde há “[...] reformulações, desvios,
apropriações e resistências.” (CHARTIER, 2009, p. 47). Assim sendo, podemos nos referir a
essas áreas de confluência como espaços onde as tradições são partilhadas e não apenas
impostas por uma cultura dominante sobre a subjugada.
Essas “brechas” atuam como zonas de negociações nas quais as representações das
realidades sociais assumem a função de “[...] vincular o poder dos escritos ou das imagens
que permitem lê-los, escutá-los ou vê-los como categorias mentais, socialmente diferenciadas,
que são as matrizes das classificações e dos julgamentos.” (CHARTIER, 2009, p. 53).
Não obstante, quando essas relações interculturais se voltam ao âmbito literário,
tornam-se ainda mais complexas. Sobretudo em face dos elementos híbridos entrelaçados na
tessitura textual. Ademais, há uma infinidade de interpretações subordinadas à comunidade
leitora e às suas várias práticas de leitura, uma vez que “[...] uma história das maneiras de ler
deve identificar as disposições específicas que distinguem as comunidades de leitores e as
tradições de leituras.” (CHARTIER, 1998, p. 13). Como relação ao tema, o autor defende que:
Essa abordagem pressupõe o reconhecimento de várias séries de contrastes; em
primeiro lugar entre as competências de leitura. A clivagem entre alfabetizados e
13
analfabetos, essencial, mas grosseira, não esgota as diferenças com relação ao
escrito. Aqueles que são capazes de ler textos não o fazem da mesma maneira, e há
uma grande diferença entre letrados talentosos e leitores menos hábeis, obrigados a
oralizar o que lêem para poder compreender, ou que só se sentem à vontade com
algumas formas textuais ou tipográficas. Há contrastes, igualmente, entre as normas
e as convenções de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, os usos
legítimos dos livros as maneiras de ler, os instrumentos ou procedimentos da
interpretação. Contrastes, enfim, que encontramos entre os diversos interesses e
expectativas com os quais os diferentes grupos de leitores investem a prática de
leitura. (CHARTIER, 1998, p. 13).
Daí as competências de leitura, a relação dos leitores com os textos, os procedimentos
de interpretação e, principalmente, os interesses e expectativas investidos no ato de ler serem
importantes ferramentas de análise voltadas a textos do universo popular retratado nos
folhetos nordestinos, uma vez que essa nova tradição leitora conta com um público definido,
assim como práticas leitoras bastante peculiares e um cânone de autores respaldados por uma
tradição.
Portanto, em se tratando de culturas que sofreram um processo de
colonização/dominação como a brasileira, apesar do condicionamento de sentidos advindos
dos modelos impostos por uma cultura dominante, estes puderam ser apropriados e recriados
pela comunidade dominada, e não apenas assimilados sem resistência alguma. Esses
fenômenos culturais não obedeceram a uma lei de causa e efeito, dada a capacidade de
impermeabilidade que irrompe às fronteiras movediças, nas quais as inter-relações culturais se
operam. Sobretudo porque os espaços de recepção que ambas compartilham não
desconsideram as suas autonomias e individualidades identitárias, as interferências são
mútuas, ou seja, “[...] desde que valorizem a área de intersecção, e não apenas a troca isolada
de alguns fragmentos culturais. O que realmente altera o sentido de cultura ‘popular’.”
(FRANCO JÚNIOR, 1991, p. 20).
Diante do exposto, cremos que o principal desafio é pensar numa articulação entre
discurso e prática envolvendo culturas diferentes. Sobretudo porque:
[...] é inútil pretender identificar a cultura, a religião ou a literatura “popular” a partir
de práticas, crenças ou textos que seriam específicos delas. O essencial está em outro
lugar, na atenção sobre os mecanismos que fazem os dominados interiorizarem sua
própria inferioridade ou legitimidade e, contraditoriamente, sobre as lógicas graças
às quais uma cultura dominada consegue preservar algo de sua coerência simbólica.
(CHARTIER, 2009, p. 47).
O autor assinala os mecanismos que estão no cerne das relações de interseção
cultural, sob os quais as culturas dominadas conseguem preservar a sua coerência simbólica, a
sua especificidade. Dessa forma, destaca-se a importância da recepção das práticas e
14
enunciados da cultura dominante pela cultura dominada, com base na maneira de como os
atores sociais dão-lhes sentido, ajuízam valores partilhados, resistindo ou deles se
apropriando.
Por conseguinte, resulta sumamente importante para o nosso estudo essa perspectiva
de cultura popular baseada, sobretudo, na autonomia concedida às culturas dominadas no
tocante à forma de como as suas representações simbólicas são acondicionadas socialmente,
tal como as suas marcas identitárias são preservadas. Estas funcionam como pontes
dialógicas, possibilitando, por sua vez, a interação e a comunicação da cultura brasileira com
a cultura portuguesa; e não apenas a subordinação daquela em relação a esta.
Assim que, dentre os inúmeros personagens lendários do medievo europeu,
destacamos a importância de um dos estereótipos de herói que aportaram em terras coloniais
nos textos literários, em especial, os personificados nas figuras de Carlos Magno e dos Doze
Pares de França. Esses personagens caíram no gosto popular europeu e também passaram a
fazer parte da cultura popular nordestina, sobretudo como modelos de destemor.
Na literatura de folhetos brasileira, formaram um importante ciclo que, embora seja
composto por apenas seis folhetos fonte, irradiaram importantes elementos de criação
literária, altamente fértil, conforme veremos ao longo deste estudo.
O fato é comprovado com base numa quantidade considerável de folhetos inspirados,
direta ou indiretamente, nas façanhas desta hoste de guerreiros medievais. Tais composições
literárias utilizavam como eixo central o combate dos personagens carolíngios, conforme
aparecem nos versos:
Max: - Sou igual Napoleão
Na arte da estratégia
Brigo como Carlos Magno
Sou sultão da Turquia
Por isso mestre Rodolfo
Cante com mais poesia.
Rod: -Herdei a sabedoria
Do velho rei Salomão
Tenho poderes dos Césares
A bravura de Roldão
Para vencer cantador
Quando se diz valentão (NORDESTINO, 1979, p .4, grifo nosso).
Carlos Magno (742-814), personagem histórico da dinastia franca, que na visão do
historiador francês Jacques Le Goff (2011a, p. 57) foi a “[...] grande testemunha da história e
do imaginário medievais, que se tornou cada vez mais mítica ainda quando estava viva.” De
acordo com o autor, a lenda formada em torno desse imperador franco resulta possivelmente
15
da sua rápida ascensão ao poder, das sucessivas guerras vencidas e conquistas territoriais
lideradas por ele, cujo reconhecimento se deu pela coroação imperial. Ademais, as suas
conquistas reverberaram culturalmente; foram conhecidas historicamente como o
“Renascimento Carolíngio” (LE GOFF, 2011a, p. 58). Por tudo isso, em torno de sua figura,
formou-se um imaginário3 realimentado por sentimentos de bravura e coragem, dentre outros
elementos do universo bélico.
Também consubstanciam o imaginário carolíngio os ideais da cristandade medieval,
haja vista que foram usados como recursos propagandísticos na Reconquista e nas Cruzadas.
Temática que estava em voga à época do Descobrimento (MEYER, 1995). Por intermédio do
colonizador português, a matéria carolíngia chega ao Nordeste brasileiro. Conforme foi
retratado nas sextilhas apresentadas, nas quais o vulto de Carlos Magno é associado à “briga”,
enquanto Roldão, um de seus paladinos, à bravura. Nos versos sertanejos a coragem deles é
sempre enaltecida e o espírito guerreiro convertido em matéria literária.
De um modo geral, o imaginário que se forma a partir da figura de Carlos Magno
orbita em torno da temática beligerante. Guerreiro, como a maioria dos heróis do medievo
europeu, foi uma figura que congregou sentimentos de bravura, destemor, honra e fé cristã em
sua aura mítica, plasmados em uma rica literatura inspirada nas façanhas do Imperador da
barba florida, convertendo-lhe, doravante, em um herói popular estereotipado.
Na visão de Correia (1993) esse personagem figurava como representante temporal
dos domínios imperialista, que legitimava as suas ações guerreiras a partir dos ideais do
Cristianismo “[...] nos quais se faziam sentir a sua acção numa obediência de cariz bíblico ao
Sobrenatural, à Fé, à Religião.” (CORREIA, 1993, p. 85).
Por tudo isso, tangenciamos a violência atrelada à religiosidade extrema como um
ponto essencial, sob o qual emerge o imaginário carolíngio, resvalando, dessa forma também,
no imaginário sertanejo, conforme ilustram os versos: “-Turco, eu não hei de aceitar/ cousa
alguma que me deres/ salvo se tu quiseres/ crer em Deus e se batizar/ do contrário é te
3 Quanto ao termo imaginário, o conceito que norteia a nossa perspectiva teórico-metodológica foi formulado
pelo historiador medievalista Hilário Franco Júnior e extraído do artigo - O Fogo de Prometeu e o Escudo de
Perseu: Reflexões sobre Mentalidade e Imaginário. Neste, o autor faz uma distinção entre os conceitos de
“mentalidade” e “imaginário”. Para o autor, o termo “mentalidade” corresponde ao nível mental e psicológico
mais estável e inalterado das sociedades, sedimentado ao longo da história da humanidade. À vista disso,
considera-se a sua força e abrangência histórica, como bem a incapacidade de apreendê-la. Assim, dada a
impossibilidade de apreensão da mentalidade, o imaginário seria, sumariamente, para Franco Júnior (2010, p.
70) uma espécie de “[...] tradutor histórico e segmentado do intemporal e do universal.” Desse modo, os
imaginários convertem-se numa possibilidade de acesso a esse nível mental mais profundo da história das
sociedades. Em razão disso, os imaginários possibilitam um diálogo com essas categorias mentais e as
representam por meio de imagens que incorporam medos, desejos, sentimentos, valores, mito etc., com alta
capacidade de plasticidade.
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cansar/ porque não aceito nada/ estou com a vida arriscada/ sei do poder que tem ele/ porém
só me sirvo dele/ tomando-o pela espada.” (ATHAYDE, 1976, p. 15).
Devido à relevância do ciclo carolíngio no contexto literário da Europa medieval,
ressalta-se a sua importância na formação das literaturas de cordel portuguesa e na de folhetos
brasileira. Sendo esta o último reduto de manifestação literária do referido ciclo (CORREIA,
1993). Graças à popularização da literatura de cordel, muitas histórias tradicionais da Europa,
com as carolíngias, por exemplo, foram resgatadas e vivificadas ao serem impressas, em
Portugal, e, por conseguinte, chegaram às terras brasileiras.
Para Abreu (2006, p. 23), a literatura de cordel “[...] é uma fórmula editorial que
permitiu a divulgação de textos de origens e gêneros variados para amplos setores da
população.” Dessa forma, foram editadas peças de teatro, romances, contos, novelas e poemas
em forma de folhetos a baixo custo, com um apelo mercadológico muito forte, visando
alcançar um vasto público.
É importante enfatizar que muitos dos textos impressos em cordel no século XVIII já
existiam muito antes, como por exemplo, a história de Roberto do Diabo, que data do século
XI (CASCUDO, 1953). No entanto, através do baixo preço em que eram comercializadas, tais
edições em cordel rapidamente se popularizaram, bem como tiveram uma abrangência
colossal. Foi nesse período que pessoas de estratos sociais mais baixos puderam ter acesso a
estas publicações impressas.
Nogueira (2004) lembra que, justamente nesta época, tornaram-se muito populares
traduções e adaptações de textos castelhanos e franceses ao gosto português. As traduções de
obras, como: História da Donzela Teodora (1712), História do Imperador Carlos Magno
(1728), Princesa Magalona (1732), História de Roberto do Diabo (1732) foram fundamentais
para que literatura de cordel ganhasse a preferência do público.
Dada a predileção da comunidade sertaneja pelas histórias de Carlos Magno e seus
paladinos, investigamos: Que significados estes aclimataram ao imaginário de um povo tão
diferente do seu de origem? Por que este ciclo se tornou tão popular nessa referida
sociedade? Como a matéria carolíngia atuou nas engrenagens de formação da literatura de
folhetos que floresceu no Nordeste brasileiro no final do século XIX e princípios do século
XX?
Com o intuito de responder a essas questões, partiremos da ideia de que a literatura
de folhetos brasileira, mesmo compartilhando uma mesma tradição literária com Portugal, não
configura uma extensão desta. Segundo Oliveira (2012, p. 19): “Essas duas tradições são
radicalmente diferentes, mesmo compartilhando um fundo comum de histórias orais.”
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Logo, as obras mantêm um vínculo identitário muito forte com as comunidades que
as recebem e as reproduzem, interferindo na materialidade do texto, uma vez que essas
composições são:
Produzidas em uma ordem específica, que tem as suas regras, suas convenções, suas
hierarquias, as obras escapam e ganham densidade, peregrinando, às vezes na mais
longa jornada, através do mundo social. Decifradas a partir dos esquemas mentais
afetivos que constituem a cultura (no sentido antropológico) das comunidades que as
recebem, tais obras possuem um recurso precioso para pensar o essencial, a
construção de um vínculo social, a subjetividade individual, a relação com o
sagrado. (CHARTIER, 1998, p. 9).
Por tudo isso, procuramos analisar o ciclo carolíngio nessa perspectiva de Chartier
(1998) como peregrino de longas jornadas no mundo social, em função do processo de
apropriação cultural, no qual os leitores, espectadores ou ouvintes dão sentido à matéria
carolíngia ou às imagens que esta suscita e das quais se apropriam com base em suas
expectativas receptoras. Estes constroem vínculos afetivos a partir da interação que mantêm,
subjetivamente, com o próprio texto.
No que concerne ao objeto do estudo, um dos enfoques incidiu sob os leitores e/ou
ouvintes, específicos do Nordeste brasileiro, e de suas afinidades mantidas com este texto, em
específico, da tradição portuguesa, uma vez que “[...] o significado dos textos depende das
capacidades, das convenções e das práticas de leituras próprias das comunidades que
constituem, na sincronia e diacronia, seus diferentes públicos.” (CHARTIER, 2009 p. 37).
Por conseguinte, tentamos identificar as diferentes categorias literárias pondo em
relevo as particularidades devidamente acentuadas entre o cordel português e o folheto
brasileiro, subsidiados também, pelas ideias de Abreu (2006). Focalizamos no ponto em que
esta autora defende a autonomia da literatura brasileira de folhetos, enquanto gênero literário
autóctone.
Segundo Abreu (2006), a partir do início do século XX, a literatura de folhetos
brasileira começou a ganhar forma de gênero literário, pois diferentemente do cordel
português, que não apresentava uma homogeneidade de estilo, estrutura ou conteúdo, os
folhetos brasileiros mantiveram um padrão narrativo, com poética própria e homogeneidade
conteudística. Tais elementos foram advindos, sobretudo, da criação dos ciclos temáticos;
nesse contexto, poetas e público também tiveram os seus papeis definidos, e organizaram-se
institucionalmente enquanto gênero literário tanto em seus elementos intrínsecos quanto nos
seus elementos extrínsecos.
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Neste contexto, a matéria carolíngia esteve presente durante todo processo de
consolidação desse gênero literário, do início ao auge da literatura de folhetos, ajudando a
popularizá-lo pelo sertão adentro, devido à predileção do povo sertanejo por histórias de
aventuras, de homens corajosos e destemidos.
Para tanto, traçamos um perfil histórico a fim de entender o panorama sociocultural
em a que a comunidade sertaneja floresceu para melhor analisar como se deu a apropriação da
matéria da França nas produções literárias da referida sociedade e, posteriormente,
discutiremos a sua devida contribuição para autonomia da literatura brasileira de folhetos.
Portanto, a presente pesquisa está dividida em cinco partes. O primeiro capítulo trata-
se desta Introdução. No segundo capítulo intitulado: Apropriação de aspectos medievais:
adaptação e recriação na literatura de folhetos brasileira; discutiremos como o cabedal
português medieval foi apropriado, adaptado e recriado pelo poeta popular na literatura de
folhetos que floresceu no Nordeste brasileiro no final do século XIX e início do século XX.
No terceiro capítulo: As literaturas portuguesa de cordel e a brasileira de folhetos
sob a égide do ciclo carolíngio; cotejaremos as duas literaturas em questão- a de cordel
portuguesa e a de folhetos brasileira-, a fim de analisar a autonomia desta em relação àquela.
Pois, partimos do pressuposto de que mesmo compartilhando um fundo de histórias comuns
com a portuguesa, a brasileira se consolida enquanto gênero literário por apresentar um
cânone de autores e obras, bem como um público leitor definido. Por isso, destacamos um dos
primeiros ciclos formados, o carolíngio; destacando o seu processo de apropriação e recriação
nos folhetos nordestinos.
No quarto capítulo, cujo título é: Os elementos de criação artística irradiados pelo
ciclo carolíngio; finalizamos a análise sobre os temas que orbitam em torno da temática
carolíngia, tais o combate e, sobretudo, os elementos de criação artísticos, como o destemor e
a valentia. Estes foram ressignificados pela comunidade nordestina e atuaram como um
verdadeiro divisor de águas entre as duas literaturas. Tendo em vista que, através da
popularização da matéria da França na cultura popular do sertão nordestino, as figuras
arquetípicas dos paladinos contribuíram para a idealização dos heróis populares dessa região,
como os cangaceiros, por exemplo.
Em vista disso, concluímos que apesar de formar parte da literatura de cordel
portuguesa, as histórias de Carlos Magno foram apropriadas e recriadas em forma de folhetos,
sob a ótica do poeta popular sertanejo e de seu público. Assim, somos capazes de entender
como o imaginário cavaleiresco, resgatado pelos cordéis portugueses, foi apropriado e
adaptado pelo poeta popular na literatura de folhetos, produzida no Nordeste brasileiro no
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final do século XIX e início do século XX. Este processo de apropriação e recriação artístico
colaborou sobremaneira para formação e consolidação da respectiva literatura brasileira.
Em vista disso, evidencia-se o seu valor artístico-literário sob a perspectiva de um
tema inesgotável, dado que apresenta uma capacidade de se moldar a outra cultura tão
diferente da sua de origem.
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2 APROPRIAÇÃO DE ASPECTOS MEDIEVAIS: ADAPTAÇÃO E RECRIAÇÃO
NA LITERATURA DE FOLHETOS BRASILEIRA
O Brasil, enquanto colônia, recebeu uma enorme herança cultural da metrópole, sob
a qual construiu as suas bases socioculturais. Por isso, não podemos ser indiferentes ao
cabedal cultural português. Se considerarmos esta questão, focalizaremos nas apropriações e
adaptações da cultura portuguesa às cores locais.
Concernente à apropriação cultural de produções literárias portuguesas, destacamos
as brechas culturais, cujos espaços de intersecção entre as duas culturas permitiram não só
continuação de uma tradição literária de Portugal, bem como a autonomia das produções
brasileiras, uma vez que as obras letradas e as criações estéticas são “[...] sempre inscritas nas
heranças que as fazem concebíveis, comunicáveis e compreensíveis.” (CHARTIER, 2009, p.
49).
Segundo Franco Júnior (1991, p. 20) a comunicação nessas áreas de confluência
ocorre graças ao amplo repertório de temas comuns compartilhado por ambas: “E é através
dessa área de intersecção cultural que determinados pontos podem migrar num sentido ou
noutro, alargando essa zona de identidade grupal (étnica, religiosa, linguística, artística) e de
intermediação cultural [...]”.
Em nosso estudo, analisamos o imaginário cavaleiresco, resgatados pelos cordéis, os
quais abrangiam temas inspirados em histórias tradicionais da Europa da Idade Média e que
ainda eram muito cultuados na Era Moderna no Nordeste brasileiro. A popularidade desse
gênero editorial transpassou Portugal e chegou às terras brasileiras. Dentre as histórias
aportadas aqui, destacaremos uma em especial: História de Carlos Magno e dos doze pares de
França, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho.
No entanto, para devida compreensão deste aspecto, faz-se necessário entender como
se formou a estrutura sociocultural nordestina, analisando em que medida a cultura portuguesa
e sua literatura incidiu sobre essa região.
2.1 Pegadas do colonizador europeu: aclimatação de traços do medievo, a literatura
cavaleiresca e a matéria da França no Brasil
O transplante da cultura medieval europeia às terras brasileiras, região de extensão
territorial e condições naturais tão díspares, revela um fenômeno complexo de interseção
21
cultural “rico em consequências”, como nos assegura Sérgio Buarque de Holanda (1995) em
Raízes do Brasil.
Estas consequências foram resultantes de uma transposição cultural, cujo processo de
apropriação não foi algo pacífico, já que entrou diretamente em confluência com a cultura
local. E o resultado foi uma aclimatização da tradição europeia à cultura nativa. Este se torna
ainda mais complexo no que diz respeito à literatura popular. Sobretudo porque houve um
processo de adaptação e recriação de elementos característicos do medievo, sem o qual não
seria possível estabelecer uma conexão entre culturas separadas por tradições milenares:
Fica evidente que mesmo nos casos de adaptação para versos de histórias
tradicionais européias, os poetas populares não transpõem mecanicamente os versos,
mas aclimatam, regionalizam, nordestinizam. Podemos dizer que os temas dessa
origem se perdem no tempo. Assim, o leitor popular, ao viver no ato da leitura estas
aventuras, recebe-as como se estivessem acontecendo em algum tempo do Nordeste,
apesar das referências a locais europeus contidas no texto. (AYALA, 1997, p. 162).
A autora menciona uma sofisticada adaptação de contextos literários, na qual o
procedimento não é feito mecanicamente pelo poeta popular. Este artista estreita os
imaginários culturais distantes, como o medievo europeu e o nordestino brasileiro, apoiando-
se na função sinfrônica4 da literatura para abolir o limite espaço-temporal existente na área de
confluência compartilhada por essas duas culturas.
Ademais, destaca-se a refinada aclimatação ocorrida no cerne da própria tessitura
textual, na qual a linguagem precisa ser atualizada, “nordestinizada”, para que o leitor
sertanejo possa experienciar aventuras de cariz medieval, em especial, as que giram em torno
da temática cavaleiresca, com um frescor local, abrasileirado, mesmo a partir de referências a
ambientes europeus. Ou seja, apesar de tais referências a contextos sócio-histórico-culturais
europeus, o intérprete brasileiro consegue projetá-las em algum lugar do Nordeste, como bem
demonstram os versos de José Hermínio do Nascimento, sobre uma cerimônia de investidura,
adaptada aos moldes sertanejos:
E necessito também
de armas e munição
e a nossa ajuda pessoal
será útil neste momento
além de tudo precisamos
de fazermos treinamento
O cavalo que lhe deram
era um lindo brilhante
João da Cruz nos treinamentos
4 De acordo como Dídimo (1983, p. 37) a função sinfrônica da literatura caracteriza-se por “[...] superar as
barreiras do tempo e do espaço, criando uma terceira dimensão transpoética.”
22
desenvolveu num instante
parece que já nascera
pra ser guerreiro constante
Jordão que era o mais velho
dada de João a maestria
e a maneira como ele
nos treinos se desenvolvia
por cavaleiro do monte
batizou João um dia (NASCIMENTO, [19--], p. 11).
No tocante à cerimônia de investidura, Flori (2005, p. 30) postula que, mesmo
através de uma visão idealizada da realidade, é um momento pelo qual “[...] todo cavaleiro
pode por sua vez ‘fazer cavaleiro’ um postulante que seja digno.” A partir de então, o referido
cavaleiro passava a fazer parte da Ordem da Cavalaria. Em tal cerimônia, destaca-se a entrega
das armas, cujo simbolismo é muito forte. Após o recebimento das armas é “[...] que esse
guerreiro é admitido oficialmente a agir por meio das armas no âmbito das funções que lhe
cabem, levando-se em conta a sua posição.” (FLORI, 2005, p. 39).
Nas sextilhas apresentadas, mencionam-se elementos do universo cavaleiresco, tais
como: o recebimento das armas, o destaque dado ao cavalo e a necessidade de treinamento do
cavaleiro João da Cruz. Ademais faz alusão ao batismo do guerreiro por outro aguerrido mais
velho e honrado, evocando uma estirpe de pelejadores sertanejos, tal qual acontecia nas
investiduras popularizadas no início do século XIII, conforme Flori (2005, p.40):
Ela se fecha no início do século XIII e se transforma em casta, que exige para a
investidura de um jovem, a prova de que pelo menos quatro de seus ancestrais
haviam sido eles próprios, cavaleiros. Ela perde então o seu caráter essencialmente
profissional para salientar os aspectos honoríficos, decorativos, éticos, culturais. A
nobre corporação dos guerreiros de elite se transforma em confraria guerreira dos
nobres de elite.
Tais ritos de passagem estavam presentes em textos cavaleirescos e possuem uma
relação direta com a matéria da França, conforme demonstram a seguir nos versos do poeta
popular Antônio Eugênio da Silva, sobre a cerimônia de investidura narrada no folheto O
cavaleiro Roldão:
Aqueles soldados velhos
eram quem os instruía
todo manejo das armas
melhor ele já sabia
e em primeiro lugar
ficou na cavalaria.
Admirava a todos
e a real majestade
23
os cavaleiros da côrte
lhe tomaram amisade
foi armado cavaleiro
com nove anos de idade (SILVA, 1960, p. 24).
Ao comparar os fragmentos dos dois folhetos coligidos, espaço, tempo e imaginários
sincronizam-se na experiência leitora e/ou ouvinte, através do processo (re)criativo do poeta,
sem o qual não seria possível estabelecer qualquer ilação interpretativa entre estas referidas
sociedades. Esse processo de recriação acontece através da linguagem e, sobretudo, graças à
adaptação das histórias ao contexto sócio-histórico-cultural do sertanejo.
A história narrada pelo poeta sobre o cavaleiro do monte, João da Cruz, do sertão
nordestino, associa-se às novelas de cavalaria, muito cultuadas em Portugal à época do
Descobrimento. A temática cavaleiresca, presente no sertão nordestino, recebeu forte
influência do ciclo carolíngio (FERREIRA, 1993). Tais composições literárias evidenciam um
irrefutável vínculo entre as duas culturas aferidas, sob um denominador comum: a cavalaria
andante e a matéria da França.
Candido (2006, p. 100) pontua que: “Inicialmente a literatura no Brasil se apresenta
indissoluvelmente ligada à tradição portuguesa.” Entretanto, o autor já destacava a
necessidade de ajustamento da tradição ibérica à nova condição de vida nos trópicos. Apesar
de autônoma e ter uma natureza estética, a literatura enquanto gênero artístico sofre
interferência do tempo, bem como da sociedade na qual é articulada. À vista disso, podemos
entender as adaptações como recursos fundamentais para que haja uma ponte dialógica entre
diferentes culturas. Ora, o processo de interpretação e reinterpretação do mundo pelo artista
“[...] exige que as formas estilísticas se transformem e se adaptem às suas necessidades.”
(COUTINHO, 1976, p. 27).
Em seu livro A arqueologia do saber, Michel Foucault chama atenção para o
dinamismo da história e a sua impossibilidade de origem, concebe-a como um devir, ou seja:
“[...] história viva, contínua e aberta.” (FOUCAULT, 2008, p. 16). Esta acepção foucaultiana
nos ajuda a pensar a autonomia do nosso objeto, já que o escopo da presente pesquisa não é a
busca de uma origem ou filiação da história brasileira à portuguesa, mas analisar as inter-
relações culturais, sobretudo as de natureza literárias, que alicerçam a literatura brasileira de
folhetos.
Segundo Peloso (1996, p. 43) os primeiros contatos do colonizador europeu com a
paisagem edênica brasileira geraram uma situação paradoxal, pois “A cultura do tempo,
portanto, modifica esta função objetiva do ver, como uma forte imposição interpretativa. A
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descoberta e a exploração do Novo Mundo, no momento em que fazia cair velhos mitos, por
outro lado os reconfirmava [...].” O autor destaca uma série de mitos e lendas, como o Paraíso
Terrestre, o Eldorado, os Gigantes, entre outros, difundidos à época do Descobrimento.
Muitos dos quais foram potencializados pelas novelas de cavalaria.
Este olhar, sobrecarregado de mitos cultuados no medievo europeu, mediava às
primeiras alterações de natureza interpretativa no campo do imaginário, causadas, sobretudo,
pelo impacto das descobertas de um Novo Mundo. Em razão disso, o conjunto de imagens
formado pela milenar tradição europeia era, por assim dizer, revisado e fortalecido ao chegar
à colônia como força motriz. No que tange ao tema da interpretação do Brasil a partir da
intervenção da cultural da Europa medieval:
Em resumo, novas terras e novos céus aparecem finalmente tomando corpo para
fundirem-se em nova unidade em séculos de fantasia medievais, e com a herança
daquele mundo clássico há não muito tempo redescoberto e reavaliado. O Brasil
nasce assim: projetado utopicamente em função das exigências e expectativas, que
embora venham da história, se realizavam através dos filtros tranquilizantes- mesmo
se desviando -, do mito. (PELOSO, 1996, p. 37, grifo do autor).
Sobre o tema, Franco Júnior (2010, p. 28) postula que tal idealização é fruto de um
imaginário medieval carregado de misticismo, dado que “Sendo narrativa, o mito
necessariamente se expressa por meio de um sistema semiótico conhecido pela sociedade na
qual se manifesta.”
De um modo geral, as interpretações mítico-medievais eram fomentadas ainda pela
imprecisão que o desconhecido suscitava à mente dos nautas naquele período. Aqueles
homens aventureiros não sabiam o que havia após o oceano e, no lugar do incógnito, a
fantasia se sobressaía e o mito ganhava espaço. Com isso, à luz dos costumes, os estereótipos
de um mundo mitológico subsidiados pelos imaginários medievais da cavalaria andante, eram
ativados.
A união desses elementos infere que a amalgamação dessas duas culturas refletida
principalmente na literatura de folhetos, assinala o hibridismo cultural que subjaz na literatura
brasileira. Este reverbera ao longo dos séculos a influência da cultura portuguesa, bem como o
seu processo de aclimatação à cultura brasileira.
Tais elementos a priori vieram idealizados em um modelo sócio-econômico-cultural
muito próximo ao feudal, propagado pelas novelas de cavalaria. Este sistema foi implantado
no Brasil colônia pelos colonizadores portugueses e, com relação ao tema:
De início, a utilização da idealização do modelo feudal retratado nas novelas de
cavalaria serviu, em terras brasileiras, como instrumento de divulgação dos valores
25
da colônia e também como instrumento de catequese usado pelos jesuítas nas
representações comemorativas de festas religiosas. A partir dos séculos XV, os
romances épicos e novelescos criados para serem cantados por jograis passam a ser
adaptados ao gênero popular e difundidos em larga escala, facilitando, dessa
maneira, o interesse de tornar conhecidos, no Novo Mundo, os valores monárquicos,
a grandeza dos reis cristãos, a bondade e beleza de princesas e donzelas e a
valentia e o heroísmo de nobres cavaleiros. (SIQUEIRA, 2009, p. 4, grifo nosso).
Desse modo, destaca-se a influência ideológica desses textos, usados, sobretudo, para
impor e sobrelevar os valores da metrópole portuguesa em suas colônias. Estes continuaram
sendo propalados ao longo do processo de colonização, já que “[...] mais tarde, essa temática
permaneceu como um ideal a servir aos grandes proprietários de terras e chefes políticos, mas
também aos bandos de rebeldes e cangaceiros recriados pela literatura.” (SIQUEIRA, 2009, p.
4).
Dentre os elementos medievais imiscuídos à temática cavaleiresca, chama atenção
catequese usada pelos jesuítas para a instituição do Cristianismo, o destaque dado aos reis
cristãos, tal como a honradez e bravura dos cavaleiros medievais enfatizados por Siqueira
(2009). Estes três elementos mencionados pela autora são cruciais para que entendamos a
ampla difusão da matéria da França no imaginário colonial americano.
A glória e a fama de Carlos Magno e seus paladinos, no Brasil, perpassaram o
período colonial e alcançaram as primeiras décadas do século XX. Tal evento foi plasmado
pela literatura de folhetos brasileira, desenvolvida a priori, na região nordestina, pelo fato de
ter sido a primeira a ser colonizada, bem como a primeira a se desenvolver economicamente
(SIQUEIRA, 2007a). O novo contexto provavelmente incidiu na matéria literária que
reproduzia o ciclo carolíngio nos folhetos brasileiros. Assim, a matéria da França pôde ser
recriada em solo brasileiro pintada com as cores locais.
Daí a forte presença de muitos substratos medievais incidindo sob os sistemas sócio-
histórico-culturais da referida comunidade sertaneja. Sendo assim, justifica-se uma maior
conexão dessa sociedade com a cultura do colonizador seiscentista. Por tudo isso, confirma-se
a popularidade de temas e personagens do medievo reverberando contundentemente nessa
referida região brasileira.
Vale salientar os laços estreitos que a Igreja mantinha com a Ordem da Cavalaria.
Desse modo, a matéria da França, o universo cavaleiresco e os ideais da Cristandade medieval
estavam profundamente associados. Mediante tal enlace, o cavaleiro medieval tinha como
uma de suas missões a de defender os interesses da Igreja, face ao avanço dos árabes no
Ocidente, tal como esclarece Flori (2005, p. 30): “Por fim, ‘ele faz cavaleiro’ o postulante ao
26
cingi-los como gládio, símbolo de sua missão de defensor da Igreja, de combatente da fé, de
protetor daqueles que não portam armas: membros do clero, pobres, viúvas e órfãos.”
Esta ligação entre a Igreja medieval e a Ordem da Cavalaria foi intensificada no
período da Reconquista e das Cruzadas e, nesse ínterim, a imagem de Carlos Magno foi sendo
associada aos ideais cristãos. Como consequência de tal associação, as imagens do Imperador
dos francos e de sua hoste foram reconstruídas sob a égide do grande defensor do
Cristianismo. Tal fato aparece refletido nos versos abaixo, retirado do folheto O cavaleiro
Roldão, do poeta popular Antonio Eugênio da Silva, 1960: “Continuou defendendo/ a santa
lei de Jesus/ rebentou uma batalha/ de um espírito sem luz/ era um herói da Turquia/ o
gigante Ferrabruz” (SILVA, 1960, p. 28).
A abrangência do vulto histórico de Carlos Magno é comprovada por sua rotunda
presença no imaginário ocidental por onze séculos, assumindo características míticas (LE
GOFF, 2011a), resquícios da força dessa figura para a história do Ocidente europeu. Em vista
disso, a Igreja se apropria do imaginário construído em torno da figura carismática de Carlos
Magno, alterando a lenda carolíngia, sobretudo no período da Reconquista:
A Reconquista, empreendimento eminentemente peninsular, foi considerada como
uma tarefa mais coletiva, que dizia respeito a todo o cristão ocidente. E a ideologia
religiosa dominante obrigava a que os cristãos defendessem a Fé nos territórios mais
próximos, os da Hispânia invadida, como mais tarde irão também por Ela combater
nos confins da Terra Santa. Ora, a comunidade que, desde muito cedo se empenhou
em participar na “cruzada” hispânica foi a dos Francos. Não certamente os do
tempo de Carlos Magno, como a lenda fazia supor, mas as dos séculos XI e XII.
Nobres, guerreiros, religiosos vieram para Espanha, a fim de não só defender o
território dos cristãos, combater os infiéis e ajudar à Reconquista e à formação dos
novos Reinos peninsulares, mas também para se fixar, ajudar a povoação das regiões
cristãs. (CORREIA, 1993, p. 117, grifo nosso).
Em resumo, Carlos Magnos e seus paladinos foram usados como recursos
propagandísticos dos ideais cristãos da Europa ocidental, uma vez que a matéria da França
passou por vários processos de recriação e adaptações ao longo de todo esse período. Por isso
Carlos Magno, personagem histórica do século VII, pôde chegar às terras coloniais no século
XVI. Esta matéria foi propagada, principalmente, pela literatura popular “[...] nos romances,
nos autos e nas composições poéticas ou narrativas transmitidas pelos ‘folhetos de cordel’.”
(CORREIA, 1993, p. 137, grifo do autor).
No Brasil, a hoste carolíngia está assentida sob o estereótipo do guerreiro cristão. A
fim de exemplificar o que foi dito, analisaremos a seguir os versos que narram a fatídica
morte de Roldão. Em um dramático monólogo, o paladino evoca muitos elementos
ideológicos e sacramentares da Igreja medieval:
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Roldão saiu se arrastando
o sangue ficando atraz
além dos pequenos golpes
quatro lançadas mortais
deitou-se ao pé de uma pedra
dizendo eu não brigo mais.
Vou morrer todo contrito
ungido e sacramentado
porque antes da batalha
tinha sido confessado
recebi o sacramento
para sempre Deus louvado.
- Oh! Meu Senhor Jesús Cristo
Deus é homem verdadeiro
já que morreste na cruz
pr’a redimir o mundo inteiro
perdoai os meus pecados
Santo e Divino Cordeiro.
Assim como perdoaste
à Dimas o bom ladrão
perdoaste a Lunguinho
que cravou o teu coração
por vossa chaga do peito
meu Jesús dai-me o perdão (SILVA, 1960, p. 30-31).
Os versos narram um Roldão agonizante que, nos seus últimos momentos, pede a
remissão dos seus pecados. Em sua fala, mostra-se humilde e resignado ao pedir perdão por
seus pecados e se igualar a Dimas, o bom ladrão e a Lunguinho, verdugo do Cristo; ambos
perdoados por Jesus no momento de sua morte. O cavaleiro se mostra sereno, pois pode
morrer em paz, já que antes da batalha tinha sido confessado, contrito e ungido. Ou seja, havia
cumprido o protocolo eclesiástico de salvação, de acordo com os preceitos da Igreja.
Mas como todo grande guerreiro cristão que morre em batalha, para defender a fé do
Cristo, Roldão transforma-se em um mártir do Cristianismo. Diante do ambiente de barbárie
das batalhas, os atributos guerreiros são enaltecidos tanto quanto os religiosos, conforme
destacam os versos abaixo:
Pegou sua arma e disse:
- minha espada Durindana
com quem sempre defendi
a religião romana
dentre todas as espadas
foste tu a soberana.
-Vou te quebrar nesta pedra
para que não chegue o dia
de caíres no poder
do pessoal da Turquia
28
mas ele já quase morto
pelejava e nada podia.
Beijou a cruz da espada
e disse com toda calma
-lutei a favor de Deus
ganhei louro e ganhei palma
e nas tuas mãos Senhor
encomendo a minha alma (SILVA,1960, p.31, grifo nosso).
Como todo cavaleiro andante que se preze, a sua espada é quase uma extensão do seu
corpo. Muitas vezes é personificada e recebe um nome a título de exclusividade do nobre
cavaleiro. Dentre alguns exemplos podemos citar Excalibur, a lendária espada do Rei Artur
nas histórias do ciclo arturiano5.
Durindana, a espada de Roldão, embora tenha matado muitos homens, era insigne
porque a violência era justificada pela nobreza das intenções do cavaleiro que a utilizava. Ou
seja, dentro dos ideais da Cristandade, era um instrumento de defesa da religião romana. Algo
descrito no primeiro verso da terceira sextilha, na qual há a junção dos ideais da cavalaria
andante subjugados aos da Igreja medieval: “Beijou a cruz da espada” (SILVA, 1960, p. 31).
E de modo sereno Roldão confessa que lutou a favor de Deus e isso foi o que concedeu os
louros que em vida recebeu e a glória de suas proezas reconhecidas post mortem. Assim, em
se tratando da força persuasiva e evangelizadora carolíngia em terras americanas:
[...] que se reencontrem com tal unanimidade por toda América Latina os dois
símbolos de vitória da Cristandade: Carlos Magno e os seus Pares; guerreiros
Cristãos destroçando ferozes Mouros. O caráter repetitivo e conservador (e por isso
concreto e eficaz) das chamadas manifestações folclóricas parece assim ter sido um
dos diferentes modos encontrados para garantir a consolidação da ideologia
unificadora. (MEYER, 1995, p.15, grifo da autora).
De acordo com o ponto de vista da autora, o argumento da Cristandade, pautado no
ciclo carolíngio, foi um forte fator de unificação ideológica em terras coloniais. Este foi
reproduzido em diferentes manifestações folclóricas cujo tema central era luta dos cristãos
contra os mouros. Um exemplo de como esta fórmula pôde ser representada em forma de
folhetos, escolhemos uma décima de Athayde (1976) que narra a lendária batalha de Oliveiros
(Par de França) e Ferrabraz (turco6, filho do almirante Balão): “Disse Ferrabraz: Guarim/
pela crença dos fiéis/ confessa logo que és/ não sejas fingindo assim/ tu és um dos cavaleiros/
5 O ciclo de aventuras que conta a saga do rei Artur. (FERREIRA, 1993). 6 Convém salientar que não só os mouros ibéricos, os árabes em geral, foram chamados de turcos pelos poetas
populares dos folhetos nordestinos. Sobre o tema, Ferreira (1993, p. 73) disserta: “A expressão turco para
configurar toda a mourama é devida provavelmente a uma série de fatores, inclusive à importância concreta de
um fato histórico da conquista do seu avanço para Europa. A queda de Constantinopla e o avanço comercial
teria tido a difusão que em prestígio remeteria a mundos opositores e longínquos mas presentes com sugestão
de força e poder.”
29
daqueles grandes guerreiros/ que a fama está espalhada/ pelo pegar da espada/ és Roldão
ou Oliveiros” (ATHAYDE, 1976, p. 14, grifo nosso).
Estes versos narram um combate que se deu entre Oliveiros e Ferrabraz. O valente
guerreiro carolíngio, mesmo ferido, decide lutar. Por esse motivo ele precisou se disfarçar. No
entanto, o disfarce não logra êxito, já que Ferrabraz desconfia que pela destreza bélica do seu
oponente, este não podia ser um guerreiro comum. Pelo manejo da espada, o combatente só
podia ser Roldão ou Oliveiros. A valentia e destemor de Oliveiros se revelam pelo fato de
que, mesmo ferido, luta de igual para igual com o grande guerreiro mouro/turco, Ferrabraz.
Outro detalhe curioso presente nesta décima7 reside no fato de que é o próprio
Ferrabraz quem destaca a grandeza dos Pares de França em sua fala: “aqueles grandes
guerreiros/que a fama está espalhada” (ATHAYDE, 1976, p. 14). Ressaltando-se, assim, por
meio da voz do arqui-inimigo, a glória e a fama dos valentes e destemidos Pares de França.
Estes modelos arquetípicos de guerreiros medievais transcendem o ciclo carolíngio,
sobretudo, modelando outros personagens autóctones do Nordeste brasileiro, tais como: o
vaqueiro, o cangaceiro e o cabra. Por essa razão, esvazia-se a fórmula Cristãos e Mouros
(MEYER, 1995) ao remodelar-se a outros estereótipos como matéria literária.
O folheto As aventuras de um vaqueiro sergipano ilustra bem o que acabamos de
expor. Neste folheto, narra-se à história de um valente vaqueiro, honrado e destemido, que
deve salvar uma linda jovem, cujo pai, um rico fazendeiro, foi assassinado por um cruel
cangaceiro de nome Cascavel. Com isso, o herói popular é configurado sob os arquétipos
mencionados.
Agora aqui vou tratar
dum vaqueiro sergipano
o artista da história
esse não foi engano
e como diz o diabo
é homem até o tutano.
Com 20 anos de idade
de nome José Monteiro
trabalhador e honesto
e na classe de vaqueiro
em todas as vaquejadas
seu lugar era o primeiro.
Respeitava todo mundo
7 Na literatura de folhetos, a décima é considerada como uma “forma erudita”, uma vez que a sua composição é
mais elaborada. Assim, como nos outros esquemas estróficos, é inspirada redondilha, pois nesse formato
aparecem versos de arte maior, como o Martelo Agalopado e o Galope à beira-mar. Não obstante, apesar de
apresentar esquema rítmico diversificado, o mais utilizado (a grande maioria) é o esquema ABBAACCDDC
(PASSOS; VIEIRA, 2011).
30
pra ser também respeitado
andava com boas armas
dadas pelo delegado
para brigar com 10 homens
estava desocupado (SILVA, [19--], p. 11, grifo nosso).
Percebe-se a partir dos versos destacados em negrito, como os sentimentos de
valentia, honradez e destemor sedimentam o modelo do herói popular cultuado no sertão
nordestino, no caso, refletido na figura do vaqueiro sergipano José Monteiro. Estes já bem
adaptados ao imaginário sertanejo, retratado no texto pela menção ao tema das festas de
vaquejadas8, ou seja, um evento proveniente da sociedade nordestina.
Ao longo da narrativa vão sendo realçados em suas atitudes marciais, àquelas
voltadas à valentia e ao destemor, descritas nas cenas de combate, tais como as que aparecem
nas sextilhas a seguir:
E com uma peixeira em punho
para monteiro avançou
monteiro meteu-lhe um sôco
e com ele se agarrou
derrubou ele no chão
e por cima se montou.
Apertou-lhe a guela
e disse cabra ruim
o cabra estirou a língua
pra fora todo assim
que nem tamanduá
numa casa de cupim (SILVA, [19--], p. 23-24).
A violência que subjaz nos respectivos versos é obliterada pela coragem e as proezas
do vaqueiro. Eventos como este são uma constante nos folhetos carolíngios. À guisa de
modelo do que foi mencionado, selecionamos duas sextilhas que narram as façanhas de
Roldão, nas quais a violência de seus atos é utilizada para enaltecer a sua coragem:
Já com seis horas de luta
o turco agarrou Roldão
este cravou-lhe um punhal
na mesma ocasião
8 Segundo o folclorista brasileiro Cascudo (1984b) vaquejada é algo autóctone do Nordeste brasileiro, já que não
há registros de tal festa na literatura colonial, tampouco houve algum registro entre os demais povos que
deixaram as suas impressões sobre o Brasil entre os séculos XVII a princípios do XIX. Nestas festas o ponto
auge consistia em derrubar o boi, puxando-o pela calda. Sua origem veio das práticas da “apartação”, ou seja:
“[...] identificação do gado de cada patrão dos vaqueiros presentes. Marcados pelo ferro na ‘anca’, o sinal
recortado na orelha, a ‘letra’ da ribeira, o animal era reconhecido e entregue ao vaqueiro. A reunião de tantos
homens, ausência de divertimentos, a distância vencida, tudo concorria para aproveitar o momento. Era um
jantar sem fim, farto e pesado, bebidas de vinho tinto e genebra, aguardente e ‘cachimbo’ (aguardente com mel
de abelha). Antes, pela manhã e mais habitualmente à tarde, corria-se o gado.” (CASCUDO, 1984b, p. 106).
No entanto, ao longo do tempo esses hábitos rurais sofreram modificações provocadas, sobretudo, pela
expansão da cultura urbana adentrando ao espaço rural.
31
no umbigo do gigante
deixando morto no chão.
Em outra grande batalha
Roldão matou Borracaz
ajudou a Oliveiros
na luta com Ferrabraz
dos doze pares de França
Roldão foi quem matou mais (SILVA, 1960, p. 29, grifo nosso).
Destaca-se, dessa forma, nos versos apresentados, a predileção do homem sertanejo
por figuras corajosas, mesmo aquelas capazes de realizar atos de crueldade, tais e quais os
cometidos por Roldão e o vaqueiro sergipano.
A fama dos paladinos propagou-se rapidamente sertão adentro, de modo que estes se
converteram indubitavelmente em matéria literária. Esta matéria é capaz de representar um
ideal de valentia e destemor expressado mediante as façanhas dos pares de França e de muitos
outros personagens construídos a partir desse modelo arquetípico de herói, conforme refletem
os versos do folheto História do valente João-acaba-mundo e a serpente negra: “João tornou
a se travar/Com aquele leão voraz/ Se um queria ser bom/ Queira o outro ser mais/ Só a luta
de Oliveiros/ No campo com Ferrabraz!” (SILVA, 1959, p. 7).
A verificação deste legado, interiorizado culturalmente, remete-se à memória
coletiva dos primeiros colonizadores europeus:
O Novo Mundo foi também o êxodo cavaleiresco, saída sem perspectivas precisas,
mas animada por um sonho vigoroso de glória e de conquista [...], experiência
iniciática através da qual cada um procurava a realização de si mesmo e da própria
fortuna. (PELOSO, 1996, p. 45).
Segundo o autor, o espírito aventureiro suscitado por este tipo de literatura motivava
as experiências audaciosas, bem como as atitudes mentais dos primeiros desbravadores
náuticos. Dessa forma, a literatura cavaleiresca, amplamente propagada nesse período,
incitava a coragem, insuflando o lado guerreiro de seus leitores; motivando-os a buscar
aventuras, fortunas e glórias.
Estas atitudes podiam ser justificadas, possivelmente, pela própria conjetura
medieval, ainda não contaminada pelos arroubos da razão propagados pelo Iluminismo. Por
isso, muitos elementos do maravilhoso, presentes nos textos de cavalaria, eram associados à
realidade, ao fim e ao cabo do Descobrimento das Américas:
Assim que partia para o Novo Mundo, estava convencido de que, participando desta
empresa, teria tocado com as mãos as maravilhas, as riquezas e os extraordinários
espetáculos que os livros de cavalaria contavam de modo tão sedutor. Gigantes,
anões, ilhas encantadas, amazonas, fontes mágicas e ouro em profusão, seguramente
32
deviam existir em alguma parte das imensas terras que a Providência tinha
repentinamente aberto no outro lado oceano. (PELOSO, 1996, p. 48).
Portanto, grosso modo, o espírito aventureiro do medievo foi guiado pelos ideais da
cavalaria andante. Fato documentado na literatura de viagem da época, na qual documentos
históricos aparecem amalgamados a elementos literários de matriz cavaleiresca, como a
presença de figuras monstruosas e terras exóticas nos mapas oficiais, por exemplo. Tudo
criado a partir das analogias com as aventuras vividas pelos cavaleiros idealizados nas
novelas. (PELOSO, 1996).
Seguindo tal perspectiva, podemos inferir que o sucesso deste tipo de literatura
possivelmente possa ser explicado pela presença de elementos populares que estruturam o
texto, como os que giram em torno dos temas guerreiros e das dinâmicas cenas de combates,
nas quais valentes guerreiros se esgrimam.
Aliás, há uma nuance na riqueza descritiva dos episódios, nos quais, a par das cenas
de violência, articulam-se imagens encantadoras, incitando a capacidade imaginativa dos
leitores/ouvintes a reproduzir cenários emblemáticos de aventuras em terras longínquas e
exóticas.
A temática cavaleiresca das novelas literárias medievais era construída em volta da
idealização do cavaleiro medieval, justificada pela predestinação e heroísmo. Este herói nunca
é normal, está acima, num ideal. Ademais, havia o apelo social, pois não se tratava de
guerreiro comum. Ele fazia parte de uma elite guerreira, criada em um mundo à parte e
possuidora de características individuadas advindas da Ordem da Cavalaria:
Muito diferente do combate a pé, o novo método cavaleiresco necessitava de um
treinamento assíduo em exercícios guerreiros como o quintaine ou torneio que se
torna, ao longo do século XII, um treinamento guerreiro, um esporte aristocrático e
um espetáculo mundano. Todos esses aspectos fazem da cavalaria uma elite
guerreira; ela não combate como as outras; obedece a suas próprias regras, dota-se
de sua própria ética; desenvolve no torneio e na própria guerra aspectos festivos
e lúdicos autorizados pela proteção defensiva reforçadas dos quais beneficiam os
cavaleiros e pelo código deontológico da cavalaria que se implanta paralelamente.
(FLORI, 2005, p. 79, grifo nosso).
A partir desse universo beligerante no qual o lúdico e o festivo se imiscuem aos
aspectos guerreiros e nobres, configurando, desse modo, vívidos elementos de criação
literária. Estes retroalimentam um imaginário cavaleiresco potencializado pelos textos
medievais responsáveis por esta idealização do cavaleiro medieval. Muitos desses elementos
inspiram o ciclo carolíngio, conforme demonstram nos versos a seguir:
33
O imperador mandou
abalar sua nação
festas juntas e torneiros
oferecidos a Roldão
vieram príncipes de longe
pra aquela reunião.
Chegou o dia da festa
saiu Roldão bem montado
os cavaleiros da côrte
lhe fizeram acompanhado
os cavaleiros de fora
cada qual mais bem armado.
E da cidade de Gênova
tinha vinde um cavaleiro
para lutar com Roldão
foi o que saiu primeiro
Roldão botou ele abaixo
com um só golpe certeiro.
Veio outros cavaleiros
um disposto italiano
este foi vencido logo
perante ao soberano
aí Roldão foi bate-se
com um principe Saboiano.
.
E este deu muitos golpes
mas todos foram perdidos
afinal vieram outros
cavaleiros destemidos
porem todos os estranhos
por Roldão foram vencidos. (SILVA, 1960, p. 24-25).
Tal contexto figurativo, no qual a força e o destemor dos personagens despertam nos
intérpretes, leitores e/ou ouvintes dessas fábulas sentimentos de coragem, honra, liberdade,
otimismo e lealdade, que transcendem a época medieval. Fato comprovado pelo eco de alguns
elementos cavaleirescos mais expressivos reverberando, por sua vez, na literatura brasileira de
folhetos no século XX. Tudo porque essa Ordem foi bastante idealizada e transformada em
matéria literária, visto que: “[...] a cavalaria que atrai todos os olhares e são as proezas
cavalheirescas que são glorificadas pelas epopeias e pelos romances, narrados nos relatos dos
cronistas. Eles suscitam a admiração dos homens e ganham os corações das damas.” (FLORI,
2005, p. 80).
Segundo Ricoeur (1997), a leitura permite a interação do mundo do leitor com o
mundo do texto. Tal interação propicia a reconfiguração da realidade que “Somente pela
mediação da leitura é que a obra literária obtém significância completa.” (RICOUER, 1997, p.
275).
34
Chartier (2009) chama atenção para a relação que a história mantém com a literatura.
Na opinião do autor, uma distinção entre essas duas áreas só acontece quando se tem bem
definido que
[...] em todas as suas formas (míticas, literárias, metafóricas) a ficção é um discurso
que ‘informa’ do real, mas não pretende representá-lo nem abandonar-se nele,
enquanto a história pretende dar uma representação da realidade que foi e já não é
(CHARTIER, 2009, p. 24, grifo do autor).
Deste modo, o “real”, representado ficcional ou historicamente, condiciona uma
ponte entre esses dois mundos. Ademais, evidencia-se, sobretudo, a força de representação do
passado pela literatura, quando muitas obras literárias reconstroem o passado ficcionalmente,
às vezes com mais eficácia do que alguns textos historiográficos (CHARTIER, 2009).
Na visão de Roland Barthes o efeito de real fundamentado esteticamente no texto
literário, justifica-se: “[...] se não pela lógica da obra, pelo menos pelas leis da literatura: seu
‘sentido’ existe depende da conformidade, não ao modelo, mas às regras culturais da
representação.” (BARTHES, 1972, p. 40, grifo do autor).
Nesta acepção a categoria do ‘real’ emerge da forma estética em que o significado e
o referente são construídos textualmente na medida em que convergem para o verossímil,
obedecendo, portanto, às regras culturais de representação que regem os seus horizontes
interpretativos. Por conseguinte, quando as novelas de cavalaria construíam suas narrativas
intercalando história e ficção, como as que narram as aventuras de Carlos Magno e as de sua
tropa de elite, por exemplo, eram capazes de estreitar os limites entre o real e a fantasia.
Sendo assim, o efeito de real produzido por este gênero de literatura popular não era
restrito apenas ao momento da leitura, senão estendido a muitas das ações práticas na vida
cotidiana dos leitores quinhentistas. Afinal de contas, navegar rumo ao desconhecido exigia,
além de coragem, muita imaginação animando o espírito dos aventureiros, muitos dos quais se
identificavam com o próprio cavaleiro andante em tais empreitadas:
Com relação a tais publicações, Cascudo (1953, p. 16) advoga que: “Não é possível
que fossem desconhecidas e desamadas na Bahia e Pernambuco como eram adoradas por toda
Espanha e Portugal, fonte da mesma gente.” No entanto, convém salientar a propagação
dessas histórias pela tradição oral, na qual algumas pessoas letradas leiam esses textos em voz
alta, uma vez que nesta região brasileira havia um alto índice de analfabetismo. Assim,
coexistia a tradição escrita junto com a tradição oral. Algo semelhante acontecia na Europa
medieval no que diz respeito à propagação da literatura produzida na Idade Média.
35
Zumthor (1993) destaca níveis distintos de oralidade definidos de acordo com o
contato que a sociedade tinha com a escritura. Dessa forma definiu três subdivisões da
oralidade: primária e imediata, oralidade mista e oralidade segunda. Na oralidade primária,
não há qualquer contato com a escrita. No entanto, com relação às duas outras modalidades,
estas representam “[...] quase a totalidade da poesia medieval” (ZUMTHOR, 1993, p. 18) e
apresentam como denominador comum a coexistência com a escritura:
Invertendo o ponto de vista, dir-se-ia que a oralidade mista procede da existência de
uma cultura ‘escrita’ (no sentido de ‘possuidora de uma escritura’); e a oralidade
segunda, de uma cultura ‘letrada’ (na qual toda expressão é marcada mais ou menos
pela presença da escrita). (ZUMTHOR, 1993, p. 18, grifos do autor).
Assim sendo, podemos inferir que a oralidade mista, de que nos fala Paul Zumthor,
muito difundida na Idade Média, chegou às terras coloniais. Aliás, após a colonização, esse
fenômeno de transmissão oral ajudou a aclimatizar na cultura nativa histórias da Europa
medieval. Dessa forma, literatura e poesia oral aparecem associadas.
Sem grande rigor, equacionamos um problema acerca da fronteira movediça que há
entre literatura e poesia oral, como bem observou Jakobson (2009, p. 59), ao afirmar que “A
literatura e a poesia oral podem, é claro, ter destinos intimamente ligados, sua influência
recíproca pode ter sido cotidiana e intensa [...]”. Neste contexto, elas aparecem coexistindo
simultaneamente. Como exemplo desse modelo de transmissão oral, escolhemos os versos do
poeta popular João Martins de Athayde:
Leitores matai o tempo
que é boa a distração
saber como uma princeza
estava na prisão
e Roldão pode roubá-la
escondido no leão.
Após que o Rei Carlos Magno
venceu a grande campanha
fez a igreja de Santiago
padroeiro da Espanha
e a da Nossa Senhora
em Aquisgran na Alemanha (ATHAYDE, 1960, p. 1, grifo nosso).
Curiosamente, mesmo sendo um texto escrito, há altos índices de oralidade, a
começar pelo primeiro verso, destacado em negrito, no qual através do recurso performático,
a “voz poética” conecta-se ao leitor/ouvinte. Tal fato atesta também que, os hábitos de leitores
pautados numa performance, de oralidade mista ou segunda, ao serem declamados em voz
alta, com versos rimados para facilitar a memorização. Esses recursos performáticos
corroboraram para que essas histórias permanecessem atualizadas na memória coletiva dos
36
povos ibéricos e, por conseguinte, chegasse ao Novo Mundo. Estas similarmente continuaram
a ser propagadas em terras coloniais através de fenômenos performáticos da voz.
Peloso (1996) relata que no transcurso da viagem transatlântica quando a monotonia
acometia aos nautas, havia momentos de leitura solitária ou coletiva. Era comum organizar
círculos e alguém se encarregava de ler em voz alta, afinal “[...] quase toda literatura europeia
da Idade Média e do Renascimento foram compostas [sic] para serem lidas em voz alta.”
(OLIVEIRA, 2012, p. 108).
Portanto, como corolário dessas práticas leitoras do Velho Mundo, o Brasil colônia
herdou um legado literário do medievo tanto na forma quanto no conteúdo dessas produções:
“Desta maneira, muitos textos, prevalentemente de literatura popular, chegaram ao Novo
Mundo com as bagagens do colono, constituindo as primeiras bibliotecas à disposição de
todos.” (PELOSO, 1996, p. 48).
2.2 Uma “longa Idade Média” legitima os substratos medievais na literatura do
Nordeste brasileiro
Conforme discutimos até aqui, alguns elementos do medievo tiveram grande
importância para formação da literatura de folhetos brasileira, tal como formaram parte de
rico manancial de criação artística que, somados à realidade nordestina, constituíram
imaginários híbridos e fascinantes. Um dos exemplos desses imaginários híbridos é a figura
do cangaceiro. Este personagem cruel e sanguinário foi retratado pela literatura de folhetos
brasileira aos moldes do cavaleiro andante.
De tal modo que os poetas populares resgataram um imaginário do cavaleiro
medieval bem primitivo, sem ser romantizado, ou seja, “[...] a cavalaria pesadamente armada
e os valores guerreiros que lhe eram associados: o culto do cavalo e da espada, veneração da
força física, da coragem e do menosprezo da morte etc.” (FLORI, 2005, p. 11).
A veneração à força física, à coragem e ao desprezo pela morte, levados às últimas
consequências, geravam uma exaltação da violência, capaz de suplantar as proporções
desumanas dos atos de barbárie mais sanguinários, que tanto os cavaleiros medievais quanto
os cangaceiros nordestinos foram capazes de cometer.
Partindo dessa perspectiva, não seria impossível fazer uma ilação de imagens
arquetípicas de valentes guerreiros conectando o cangaceiro aos cavalheiros andantes, sob um
dos elementos mais expressivos: destemor associado ao “menosprezo da morte”, de que nos
fala Flori (2005).
37
Selecionamos duas sextilhas nas quais tais características são usadas pelo poeta
popular Apolônio Alves dos Santos para descrever um dos mais famosos cangaceiros,
Lampião e os consortes:
Desde aí que Lampião
entrou para o cangaço
por ser muito destemido
no pau na bala e no aço
e com relação a luta
ele não torcia o braço.
Até quem pode alia-se
com um grupo de bandidos
homens muitos corajosos
cangaceiros destemidos
além de vingar o crime
dos Negreiros atrevidos (SANTOS, [19--]a, p. 2, grifo nosso).
O poeta descreve tanto Lampião e quanto seus companheiros do cangaço9 como
destemidos e valentes pelejadores, destacando tais posturas a partir dos enfrentamentos e das
lutas travadas por estes bandidos, em qualquer situação de combate, tal como a descrita no
verso: “no pau na bala e no aço” (SANTOS, [19--]a, p. 2).
Com isso, demonstra-se que eles não se abatem e pelejam bravamente em qualquer
situação de luta. Além do mais, estavam sempre reunidos em bandos e envoltos em vários
confrontos, pondo à prova a valentia do cangaceiro, tal qual a do cavaleiro andante. De modo
que cada um destes bandidos sertanejos, sanguinários e perversos, ganham o status de herói
popular por mérito de sua valentia.
Essa valentia exacerbada denota indiretamente um desprezo em relação à morte.
Ainda no mesmo folheto há uma sextilha que retrata essa indiferença ante a morte, mais
explicitamente: “O gaio cego estava/ muito ferido no chão/ mas ainda estava vivo/ com um
revólver na mão/ ainda atirou em dois/ fez bonita ação” (SANTOS, [19--]a, p. 22).
Logo, com base nesse verso, somos capazes de demonstrar essa admiração do
sertanejo pelo destemor do cangaceiro ante seu desprezo pela morte, a par de qualquer
violência que tais atos possam acarretar. Nesse caso, não é difícil observar o amálgama de
9 Conforme Tavares (2013, p. 14), o cangaço é um dos fenômenos sociais mais significativos da história
brasileira contemporânea, trata-se de “[...] um movimento característico do banditismo do Nordeste brasileiro.
Seu período de maior força é situado em um recorte temporal de cerca de setenta anos: de 1870 a 1940. Recebe
a denominação de ciclo do cangaço.” Segundo o autor não há um consenso entre os cangaceirólogos sobre o
tema, a definição muitas vezes depende do ponto de vista do pesquisador. Este tema pode ser analisado sob
duas temáticas distintas; de um lado, os que contam a história do cangaço a partir de uma perspectiva dos que
lutavam contra os temíveis cangaceiros, daí estes eram considerados como bandidos sanguinários e desumanos.
Outros, a partir do ponto de vista dos próprios cangaceiros, tidos como homens injustiçados pela sociedade
nordestina.
38
alguns elementos cavaleirescos medievais presentes no imaginário sertanejo, recriados, por
sua vez, como elementos híbridos imiscuídos à cultura popular nordestina, no ciclo do
cangaço por exemplo. À vista disso, diante do que expusemos até então, como explicar a
presença de alguns substratos medievais em solo brasileiro no século XX?
De um modo geral, a nossa análise terá como ponto de partida um Portugal medieval.
Os portugueses estiveram à frente de importantes mudanças iniciadas na Europa a partir da
segunda metade do século XV e durante todo o século XVI. Culturalmente, essas mudanças
foram decisivas para o Renascimento Cultural e, por conseguinte, possibilitaram as Grandes
Descobertas. No entanto, todas essas transformações geraram uma situação paradoxal à
medida que o processo cultural alcançado pela Renascença, não suplantou a influência
religiosa do Cristianismo em Portugal. Esta circunstância reflete
[...] uma época contraditória. Ao mesmo tempo que enfrenta os maiores desafios
científicos e as aventuras marítimas, realiza a libertação do indivíduo e desenvolve o
culto à beleza, compraz-se também no mais puro obscurantismo, evidentes nos autos
de fé, na escravidão dos negros, na prática dos alquimistas e dos astrólogos e no
maior empobrecimento dos pobres. Significa a ascensão da burguesia, possuidora de
bens, que aspira, entretanto, à nobreza, razão pela qual, em seu aspecto positivo,
vem manifestar o gosto aristocrático pela cultura e pelas artes. Materialista e sensual
não pretende, contudo, uma ruptura com o Cristianismo. (MOISÉS, 1993, p. 14,
grifo nosso).
Conforme tal perspectiva, no Renascimento cultural a razão dotava o homem de uma
maior autonomia sob suas atitudes, fato que possibilitou a superação de alguns mitos e, por
conseguinte, foram decisivos para lograrem as viagens marítimas: o gosto por aventuras e o
desejo de riquezas ao intuito desses nautas de propagar à fé católica (MOISÉS, 1993). Isso
quer dizer que em um dos mais representativos pilares da Idade Média reverberava os ideais
do Cristianismo, que não tinham caído por terra com os avanços do Renascimento. Esses
ideais religiosos estavam sedimentados em níveis profundos da mentalidade dos indivíduos no
medievo e, sobretudo, na Península Ibérica.
As transformações promovidas pela revolução cultural da Renascença não alterou a
mentalidade dos nossos colonizadores imediatamente. Assim que, podemos inferir que ainda
no século XVI muitos substratos medievais subsistiam em solo português. Por conseguinte,
foram transplantados à suas colônias. Por tudo isso, como pensar os limites temporais da
Idade Média e sob quais parâmetros?
Com relação ao tema da periodização histórica da Idade Média, Almeida (2010)
explica que foi no Humanismo italiano que surgiram os primeiros intentos de categorização
do tempo no medievo. Francesco Petrarca referiu-se a esse período como medium tempus, ou
39
“época intermediária”. Esta referência depreciativa espalhou-se pela Europa até o século
XVII, reduzindo o período medieval a uma noção de completa ignorância. A partir de então, a
Idade Média passou a ser conhecida como “Período das Trevas” (LE GOFF, 2011b).
No entanto, a partir do século XIX como advento do Romantismo, houve um
interesse crescente pelas raízes nacionais e o resgate das tradições populares calcadas numa
visão folclórica da Idade Média, mitigando, por sua vez, tal conceito depreciativo. Machado
(2013) esclarece que os românticos tinham um verdadeiro fascínio pelo medievo e viam na
sociedade medieval um ideal de unidade entre vida e poesia, indivíduo e comunidade,
religião, política e arte. Esta unidade já não mais fazia parte da sociedade e da cultura
secularizada e cindida da Europa do final do século XVIII e início do século XIX.
A referência depreciativa vai sendo modificada, e, a datar do século XX, através das
inovações trazidas pela História Social, lideradas principalmente pelo historiador Marc Bloch,
abre-se um diálogo entre a história e as outras áreas das ciências humanas, dentre as quais
destacamos a etnologia, a sociologia, a antropologia e, sobretudo, a literatura. Sob esta nova
perspectiva teórica, houve uma revisão do ponto de vista crítico e metodológico, questionando
a periodização da história tradicional vigente, principalmente no tocante à Idade Média
(ALMEIDA, 2010).
Segundo Ferreira (2000) a fundação da Revista Annales, criada em 1929 na França,
deu impulso a um movimento de transformação no campo da história (BURKE, 1992). Em
nome de uma história total, a nova geração de historiadores, conhecida como École des
Annales, refletiu sobre a hegemonia da história política, sustentando que as estruturas
duráveis são mais reais. Na visão deste grupo, “Os fenômenos inscritos em longa duração são
mais significativos do que os de fraca amplitude.” (FERREIRA, 2000, p. 115).
Deste modo, os Annalistes observaram que o modo de ver e sentir das pessoas
mudava muito lentamente, constatando que a tecnologia do Mercantilismo e o
desenvolvimento da Idade Moderna não mudaram as crenças, os hábitos e a sensibilidade
automaticamente. Crenças e hábitos comportamentais são formados a partir de estruturas
mentais que se encontram em níveis psicológicos mais profundos, por isso que a ação do
tempo é mais difícil de desgastar.
Com base nessa perspectiva, a duração do tempo passa a ser analisada sob uma
perspectiva mais lenta e estática, no qual “Certas estruturas são dotadas de vida longa que se
convertem em elementos estáveis de uma infinidade de gerações: obstruem a história,
entorpecem-na e, portanto, determinam o seu decorrer.” (BRAUDEL, 1990, p. 14).
40
Burke (1992, p. 33) comenta que “A história se movimenta a um ritmo mais lento do
que os eventos. As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os
contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas.”
Em resumo, os ritmos diferentes de tempo são considerados, de modo que “Cada
‘atualidade’ reúne movimentos de origem e de ritmo diferente: o tempo de hoje, data
simultaneamente de ontem, de anteontem, de outrora.” (BRAUDEL, 1990, p. 18, grifo do
autor). Desse modo:
[...] não se trata de um tempo muito longo, mas de um ritmo temporal lentíssimo; é o
tempo de mudança lentíssimo das profundezas das sociedades históricas, tanto em
sua evolução econômica como em sua evolução mental, considerando-se que as
mentalidades são em geral resistentes à mudança, são conservadoras, ainda que haja
mentalidades inovadoras. (LE GOFF, 2011b, p. 11).
Com base no respectivo conceito de “longa duração”, o autor lança luz sobre a
periodização historiográfica da Idade Média, redefinindo-a. A partir de então, este período
não estaria mais condicionando apenas os dez séculos instituídos pela historiografia canônica.
Doravante, passou-se a considerar também as mentalidades, por entender que estas não
acompanhavam sincronicamente as mudanças cronológicas dos períodos, já que as alterações
mentais são mais lentas do que as econômicas (LE GOFF, 2011b).
Conforme Le Goff (2011b), não houve grandes alterações sociais e econômicas
modificando de forma abrupta a vida das pessoas no século XV. Afinal, ainda no século XVI
a influência da Igreja era muito patente, a tradição feudal subsistia com abrangência, como
também o sistema monárquico. Esses, dentre outros elementos, corroboravam para que a
Idade Média e suas estruturas características perdurassem para além do período estabelecido
pela história canônica:
Acredito, portanto, numa longa Idade Média, porque não vejo a ruptura do
Renascimento. A Idade Média conheceu diversos renascimentos, o carolíngio do
século IX, mas principalmente o renascimento do século XII, e ainda os dos séculos
XV e XVI se inscrevem nesse modelo. Sem dúvidas, o nascimento das ciências
modernas nos séculos XVII [...] e os esforços dos filósofos das Luzes no século
XVIII anunciam uma nova era. Mas é preciso esperar o fim do século XVIII para
que a ruptura se produza: a revolução industrial na Inglaterra, depois a Revolução
Francesa nos domínios político, social e mental trancam com chave o fim do período
medieval. (LE GOFF, 2011b, p. 14).
Nessa longa citação, o autor suplanta o tempo lento das mentalidades de Braudel,
consolidando a sua concepção de uma “longa Idade Média”. Ele insistiu no fato de que o
Renascimento do século XVI representou mais um dos renascimentos pelos quais a Idade
Média passou desde o Renascimento Carolíngio.
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Em síntese, o historiador medievalista francês defende, portanto, a extensão da Idade
Média para além do Renascimento do século XVI, e conclui: “Entretanto, como a história
conserva sempre uma parte de continuidade, fragmentos de Idade Média sobrevivem durante
o século XIX.” (LE GOFF, 2011b, p. 15). Tal conceito é um ponto de partida útil à nossa
pesquisa, mas passível de críticas.
O conceito de “longa Idade Média” (LE GOFF, 2011b) pode ser criticado de modo
bastante paradoxal, por ser ao mesmo tempo amplo e estreito demais. A sua amplitude reside
no fato de estender a Idade Média a outros períodos em que já se operavam mudanças nas
sociedades europeias, advindas, sobretudo, das transformações tecnológicas da Renascença.
Estas coexistiam com hábitos sociais ainda remanescentes do medievo, conforme acontecia
em Portugal, por exemplo. Dessa maneira, é impossível afirmar que tais acontecimentos
históricos não impactaram a sociedade europeia de alguma forma, uma vez que promoveram
mudanças de ordem estrutural e comportamental, mesmo que lentamente.
Savy (2014) questiona o prolongamento da Idade Média defendido por Jacques Le
Goff na medida em que o historiador francês fundamenta o seu pensamento apenas em
fenômenos históricos desconsiderando a periodização e as mudanças de épocas. Assim sendo,
“A tese de uma longa Idade Média é certamente discutível. O peso de fenômenos tão pesados
e complexos como esses dão suporte à afirmação de a não-mudança de período é algo
impossível.” 10 (SAVY, 2014, p. 3, tradução nossa).
O autor chama atenção para a necessidade de fixar períodos como ferramenta
essencial no trabalho do historiador, algo que não fica bem definido quando se estende a
Idade Média e, por conseguinte, sobrepuja-se o Renascimento. Isto, em sua opinião, geraria
uma série de discrepâncias histográficas, impedindo uma visão sistemática da história, e
impossibilitando assim, uma análise objetiva da relação presente e passado. No entanto, dadas
às dimensões do assunto historiográfico, sem entrarmos no mérito dessa discussão,
enfatizamos que as ideias de Le Goff sobre o prolongamento da Idade Média são capazes de
explicar a presença de substratos medievais, principalmente nas colônias ibéricas.
Baschet (2006) analisa os efeitos da colonização espanhola no México, a partir da
estruturação/dominação da Igreja, à luz do conceito de uma “longa Idade Média”. Ele
assegura que muitas das estruturas medievais permaneceram adaptadas à realidade das
10No original: “La thèse du long Moyen Âge est bien sûr discutable. La pesée de phénomènes aussi lourds et
complexes que ceux qui permettent d’affirmer que l’on change d’époque est chose impossible”. Todas as
traduções apresentadas nesse trabalho são de responsabilidade da pesquisadora.
42
colônias, principalmente no âmbito religioso. Os Descobrimentos ocorreram no fim da
Reconquista espanhola, e, portanto, foram imiscuídos aos interesses materiais dos religiosos.
Segundo o referido autor, no momento da colonização a Igreja buscava angariar mais
fiéis. Por isso, ele enfatiza que a Conquista foi, grosso modo, uma continuidade da
Reconquista. Isso colaborou para que um dos elementos mais representativos do medievo, a
Igreja Romana Feudal, fincasse base no sistema organizacional das colônias, haja vista que
“[...] teríamos dificuldades de encontrar muitas diferenças com a Igreja Romana Medieval.”
(BASCHET, 2006, p. 30).
Com efeito, manteve-se a mesma função regente não somente no âmbito religioso,
senão foi estendida ao moral, tal como ao cultural. Logo, em se tratando da matéria da França,
este ponto deve ser posto em relevo, já que a associação ao idealismo cristão é uma
característica forte do imaginário carolíngio recriado em solo brasileiro, como bem ilustram
os versos de Athayde (1976):
Eram doze cavalheiros
Homens muito valorosos
Destemidos e animados
Entre todos os guerreiros
Como bem fosse Oliveiros
Um dos pares de fiança
Que sua perseverança
Venceu todos os infiéis
Eram uns leões cruéis
Os doze pares de França.
Todos eram conhecidos
pelos leões da Igreja
pois nunca foram a peleja
que nela fossem vencidos
eram por turcos temidos
pela Igreja estimados
porque quando estavam armados
suas espadas luziam
e os inimigos diziam
- esses são endiabrados! (ATHAYDE, 1976, p. 1, grifo nosso).
Assim, como Jesus Cristo tinha doze apóstolos, Carlos Magno tinha doze guerreiros
em sua tropa de elite. A hoste carolíngia era implacável na luta contra os turcos infiéis.
Segundo o texto, estes doze cavaleiros eram conhecidos como os “leões da Igreja”, e por essa
mesma instituição eram “estimados”.
Todos esses paradoxos justificam-se pelos ideais da Cristandade medieval,
relacionados aos elementos da cavalaria andante e ratificados no Novo Mundo com a função
de catequese. Por tudo isso e, além do mais, questiona-se a periodização tradicional, na
43
medida em que se encontram alguns elementos medievais ecoando em produções literárias em
pleno século XX. No entanto, é pertinente ressaltar que tais modelos transplantados às
colônias passaram por “ajustes”, a saber, processos adaptativos para que fossem operacionais
em outro contexto.
2.3 Influências medievais nos temas socioculturais nordestinos que atuam como
elementos de criação literária
Outra questão importante com relação à periodização canônica trata-se da forma
abrangente e genérica com a qual a historiografia tradicional demarca os períodos, o que, na
opinião de Vassallo (1993, p. 15): “Indicam um processo em curso e, por motivos
metodológicos ainda que discutíveis, fixam momentos pontuais, que podem ser questionados
quando se aborda uma realidade específica.” No caso em destaque, o Descobrimento das
Américas e a sua ligação a muitos aspectos socioculturais do medievo europeu.
Isto corrobora a nossa hipótese de que à época da colonização do Brasil, apesar de
alguns estudiosos afirmarem que a Europa se encontrava no Renascimento, os colonizadores
ibéricos portugueses, assim como os espanhóis, ainda estavam envoltos numa atmosfera
medieval, justificada pelas estruturas socioculturais implantadas no Novo Mundo.
Não há como sermos indiferentes às contribuições literárias que eles legaram às suas
colônias, sobretudo porque muitos imaginários medievais estavam presentes direta ou
indiretamente nas produções artísticas, fossem elas impressas ou transmitidas oralmente, sob
o fenômeno da oralidade mista e por meio de uma performance (ZUMTHOR, 1993)
reproduzida na América Latina.
Sendo assim, o Brasil já inicia o seu processo de colonização com a colaboração de
uma civilização possuidora de uma ampla tradição. Esta contribuiu na formação da nação
brasileira tanto nos aspectos sócio-político-econômicos quanto culturais. Muitas dessas
características foram recriadas no Nordeste brasileiro.
Nesse espaço geográfico e, sob tais condicionamentos, formaram-se duas
civilizações. Uma civilização desenvolveu-se no litoral e era dedicada à produção do açúcar; e
a outra, voltou-se à criação de gado. Esta ficou conhecida como a “civilização do couro”
(QUEIROZ, 1992), estabelecida no sertão, região agreste.
Contudo, muitas características do medievo não ficaram restritas à mencionada
região. Estas se estenderam a todo Brasil, mas em nosso estudo particularizamos o Nordeste
por ser o local onde aflora a literatura de folhetos.
44
A discussão histórica que desenvolveremos a seguir tem duas funções: primeiro,
discutir sobre os elementos medievais que repercutiram nas estruturas socioculturais;
segundo, situar o momento em que aparece a literatura de folhetos, conquanto texto e
contexto apareçam numa relação de interpenetração na nossa análise interpretativa
(CANDIDO, 2006).
Dentre os elementos portugueses transplantados à colônia brasileira, Vassallo (1993)
destaca os mais típicos: o cosmopolitismo e arcaísmo. Segundo a autora, este se originou da
dependência que Portugal rendia à Espanha, acentuada pela enorme influência política do
Cristianismo, cujo foco era a resistência e luta contra os mouros; definidas pelas injunções
históricas e políticas que conformaram a sociedade portuguesa, destacando as influências
judias, francesas e árabes.
No tocante aos árabes no Brasil, temos um tema um pouco conturbado, uma vez que
eles não figuram registrados como emigrantes legais nos documentos oficiais que datam do
início da colonização brasileira (SOLER, 1995). Afinal, quando os portugueses vieram para o
Brasil, eles tinham sido expulsos da região de Algarve da empreitada das Grandes
Navegações (CASCUDO, 1953).
Em contrapartida, os mouros permaneceram na Espanha até o século XV, após a
queda do Reino de Granada. Portanto, segundo Cascudo (2001, p. 16): “O mouro viajou para
o Brasil na memória do colonizador. E ficou. Até hoje sentimos sua presença na cultura
popular brasileira.”
Este tema também é matéria literária nos folhetos brasileiros, tal qual o que aparece
no folheto Aladim e a Princesa de Bagdá do poeta João José da Silva:
Referente a poesia
ocupo a Deus Jeová
prá dar-me luz a história
que versarei desde já
de Aladim e a princesa
herdeira de Bagdá
Nesse tempo em Bagdá
Ded era um Sultão
tinha uma filha única
um anjo de estimação
mulher nenhuma imitava
a ela na perfeição (SILVA, J.J.,[19--]d, p. 1).
Os elementos remontados ao universo árabe presentes no sertão nordestino fazem
parte da memória coletiva dos povos ibéricos. Isto se deve aos 800 anos de domínio árabe na
Península Ibérica, uma vez que:
45
[...] as influências árabes não se diluíram nas terras ibéricas a ponto de estarem já
deglutidas e descaracterizadas entre os portugueses que colonizaram o Brasil. Ao
contrário, elas predominavam, com nítidos perfis, nos modos e conceito de vida dos
lusos-colonizadores [sic], sendo precisamente no sertão brasileiro que vieram a ser
preservadas vivas e inteiras, incontaminadas pelos modismos evolutivos que, no
Reino, foram-nas encostando em planos cada vez mais recuados. (SOLER, 1995, p.
15).
Meyer (1995) destaca neste contexto a presença dos árabes tanto nas festas quanto na
literatura popular brasileira, figurando como uma das sobrevivências do elemento português
repassado às terras coloniais. De acordo com a autora, a matéria da França é uma importante
fonte de inspiração tanto nas festas populares quanto na literatura. Nestas modalidades de arte
popular, são retratados grandes combates empreendidos pela hoste carolíngia contra os
mouros.
Quanto aos festejos oficiais e folguedos encontram-se as Mouriscadas no século
XVIII, as Cavalhadas e as Danças Dramáticas. Estas são divididas em duas modalidades:
Cheganças e Congadas. As Mouriscadas se popularizaram no século XVIII, em Minas Gerais,
Bahia e no Rio de Janeiro, as Cavalhadas em Pernambuco, bem como as Cheganças e
Congadas.
Estas regiões receberam uma farta herança dos elementos ibéricos no período
colonial, devido a questões políticas e econômicas. Afinal, a Bahia foi a primeira capital do
país, o Rio de Janeiro foi a sede administrativa da colônia, enquanto Minas Gerais vivia um
momento de civilização urbana, influenciada pelo barroco mineiro.
O fato de tecermos tais considerações sobre os mouros justifica-se, sobretudo, pelo
impacto que os enfrentamentos entre estes povos e os europeus geraram na história do
Ocidente. Tais confrontos com os seguidores do profeta Maomé marcaram a memória coletiva
dos povos ibéricos, de tal modo que foram capazes de reverberar tão longe e muito tempo
depois em terras coloniais.
Com relação à tradição francesa, principalmente a provençal, tudo isso também nos
chega indiretamente pela influência galaico-portuguesa (CASCUDO, 2001). Uma de suas
maiores contribuições foi, sem dúvidas, a figura de Roland, um dos pares de França mais
populares. Na tradição brasileira, ele passou a ser chamado de Roldão.
Este personagem carismático é uma das grandes referências do ciclo carolíngio que,
até meados do século XX, continuava “[...] viva na poesia cantada no sertão do Nordeste. Não
ocorre o mesmo na França, onde viveu, nem na Espanha, onde sucumbiu em agosto de 778.”
(CASCUDO, 2001, p. 14). Assim como se lê nos versos: “Tudo ali ficou calado/ não falou
46
um cavalheiro/ Roldão era companheiro/ dentre todos o mais amado/ demais era respeitado/
pela nobreza e ação/ tinha um leal coração/ para seus companheiros/ e mesmo dos
cavalheiros/ era ele capitão” (ATHAYDE, 1976, p. 6).
Por seu turno, as contribuições francesas e árabes, em específico, repercutiram na
literatura portuguesa e, por conseguinte, na literatura popular nordestina. Nesta se originou os
seis folhetos fonte do ciclo carolíngio: A batalha de Oliveiros com Ferrabraz; A prisão de
Oliveiros; O cavaleiro Roldão, Roldão no leão de ouro; A Morte dos doze pares de França e
A história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França.
Estas histórias refletem alguns elementos anacrônicos mais específicos do
cosmopolitismo português no Brasil colônia. Entretanto, Vassallo (1993) destaca alguns
elementos novos no ambiente brasileiro, que já ensaiavam um processo de distanciamento da
realidade portuguesa, ao mesmo tempo em que conferia à realidade brasileira algo de
particularidade.
Quanto às características mais acentuadas do arcaísmo português transplantando ao
Brasil, Vassallo (1993) destaca o patrimonialismo. Conforme a autora, este conceito trata-se
de uma estrutura político-administrativa à moda feudal, na qual uma extensão territorial
estava sob o domínio de um senhor plenipotenciário, isto é, munido de plenos poderes.
Como resultado desse sistema, havia um amplo entorno sociocultural orbitando ao
redor dele até meados do século XIX. No que tangencia as características de alguns
rudimentos feudais recriados em solo brasileiros, destacam-se aqueles que mais se afinaram
com as características socioculturais locais.
De forma mais ampla, a autora centraliza a questão da terra, dando poder àqueles que
a detinham, enquanto a grande maioria era submetida ao jugo dos senhores donos das
propriedades. Portanto, destacam-se, desse modo, os conflitos ligados às disputas pela posse e
proteção da terra. Por outro lado, o isolamento das grandes propriedades não é visto pela
autora como algo estático, pelo contrário, ela o vê com certo dinamismo, na medida em que se
reelabora e se adapta os traços socioculturais e econômicos herdados da metrópole. Assim
que:
Parece-nos ter ficado evidenciado que a sociedade canavieira nordestina, primeiro
foco próspero de colonização no Brasil, manteve traços peculiares com a sociedade
portuguesa, tais como o feudalismo/patrimonialismo, arcaísmo, o cosmopolitismo,
apesar das transposições. Por isto mesmo a região guardou características medievais,
reforçadas pelo isolamento quanto ao resto do país em que se manteve durante
séculos, associados à estabilidade do sistema instaurado, permitindo reelaboração
das matrizes herdadas [...] (VASSALLO, 1993, p. 63, grifo nosso).
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De acordo com a autora, é expressivo que, embora tenhamos recebido uma profusa
herança cultural de Portugal, este cabedal não foi apenas transplantado tal e qual; mais do que
isso, ele passou por um processo de reelaboração, pois tal processo tinha como função se
adaptar à nova configuração social da colônia.
É certo que a própria condição geográfica da região possibilitou a conservação de
alguns modelos arcaicos do medievo e, em decorrência do isolamento destes, assinala
Siqueira (2007a, p. 13) que “[...] propiciaram a identificação do viver e do sentir sertanejo, de
seu imaginário com imaginário medieval.” Contudo, de acordo com a autora, a identificação
dos sertanejos com o imaginário medieval, apesar de marcar profundamente as suas atitudes
mentais, não os impedia de desenvolverem a sua própria autonomia.
Por esse motivo, é importante enfatizar que, mesmo mantendo um vínculo muito
forte com o legado do colonizador, a cultura que despontava em solo brasileiro já apresentava
características autóctones, com as quais começou a demarcar as suas particularidades,
principalmente quando se distanciava do litoral.
Destacamos a “civilização do couro” (QUEIROZ, 1992), que surgiu a partir da
expansão colonizadora, saindo das terras litorâneas e dirigindo-se a uma região agreste, no
interior, de clima rigoroso e propício a grandes estiagens, conhecida como sertão. Desse
modo, a pecuária favoreceu o aparecimento de traços específicos da cultura colonial. Esta
nova conjuntura proporcionou àqueles que lidavam com o gado:
Os sentimentos de independência, autonomia e livre arbítrio, pois o distanciamento
do patrão e a ausência de um comando diário, dirigindo as atividades, permitiam que
cada um atuasse de maneira própria, senhor de si e de seu trabalho. Acrescenta-se
que no início da expansão, as dificuldades advindas da ocupação de novos territórios
selecionaram um homem particularmente rude e tenaz: a luta contra o índio, os
animais- principalmente onças- e a natureza árida exigia que os homens fossem
resistentes e violentos. Somam-se a este fator as grandes distâncias e dificuldades de
acesso que ocasionavam a ausência da administração pública e favorecia o exercício
da justiça pessoal; como resultado o poder ou força pautando as relações sociais.
(SIQUEIRA, 2011, p. 124).
Tais condicionamentos climáticos e sociais propiciaram um ambiente moldado pela
violência, instigando seus habitantes a desenvolverem atitudes rudes e bárbaras, pois
precisavam ser fortes para sobreviverem a situações tão adversas, como pontua Galvão (1972,
p. 21): “A violência é uma prática rotineira, orientando o comportamento dos seres humanos
em todos os níveis.” Nessa situação, a violência passa a ser, historicamente, uma das marcas
registradas da sociedade sertaneja.
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Os versos do poeta popular José Costa Leite, retirados do folheto Encontro de
Lampião com Antônio Silvino, nos quais temos uma descrição crua do ambiente sertanejo,
marcado pela violência que subordinou as ações desses dois lendários cangaceiros à barbárie e
à crueldade:
Vila Bela é situada
no sertão de Pernambuco
onde nasceu Lampião
feroz, gênio do maluco
porém o valente morre
antes de ficar caduco.
Antônio Silvino era
homem bom e justiceiro
porém mataram o seu pai
um distinto fazendeiro
então Silvino abraçou
a vida de cangaceiro.
Silvino enquanto rapaz
tinha um bom coração
mas com a morte do pai
ficou igual um leão
levou o caso à polícia
e não houve punição.
No sertão todos viviam
de bacamarte na mão
só o que fosse valente
tinha direito a razão
porém o que fosse mole
apanhava de facão.
O crime, o roubo a morte
era a lei que havia
só se falava em bandido
e ninguém não resistia
de um lado a bala zoava
do outro o sangue corria (LEITE, [19--], p. 2).
A partir dos versos coligidos, percebe-se a violência como uma constante nessa
região brasileira, de modo que conseguia corromper aqueles homens também honrados como
Antônio Silvino, antes de entrar para o cangaço. Os sertanejos se solidarizam com o drama
vivido por este indivíduo que, a partir do assassinato do pai e diante da impossibilidade de se
fazer justiça mediante os meios legais, matou os assassinos por sua própria conta. Dessa
forma entrou para o mundo do cangaço, a exemplo do que aconteceu a Lampião após sua
família ter sofrido uma chacina.
Segundo Galvão (1972, p. 43), a ausência de comando e a negligência da
administração pública fortaleciam as relações pessoais, de modo que “[...] sendo uma aliança
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entre senhores, os braços armados não se organizavam uns com os outros; a relação deles é
apenas com o seu senhor.” Esses faziam de suas propriedades “pequenos feudos” e, para a sua
proteção, contavam com uma milícia própria. Consequentemente, a violência imperava nas
disputas pelas terras e, nesse ínterim, o povo mais humilde ficava à mercê de sua própria
sorte.
Assim, um sistema anárquico favorecia a prática da justiça pessoal, acarretando
ações descomedidas de crimes hediondos, em nome da honra e da coragem. Estas eram
motivadas, sobretudo, pelo desejo de vingança pessoal. Por isso, os sertanejos se
solidarizavam com os personagens do cangaço e elevavam tais bandoleiros ao estatus de
justiceiros.
Na opinião de Albuquerque Júnior (1996, p. 220), o primeiro assassinato seria para o
cangaceiro “[...] o elo inicial da cadeia maldita que se acrescentará até o fim de sua vida.”
Desse modo, observamos como os valores e atitudes de Antônio Silvino foram corrompidos,
mediante a violência em que estava submetido o entorno social da qual fazia parte e de como
cangaço foi para ele um caminho sem volta:
Silvino voltou a casa
e jurou tomar vingança
fez enterro do pai
chorando como criança
e da polícia punir
perdeu logo a esperança.
Arranjou um bacamarte
e matou primeiramente
o que matara seu pai
e ficou de sangue quente
daquele dia por diante
começou a matar gente.
Silvino pela polícia
viu-se logo perseguido
abandonou a fazenda
porque se achou perdido
e foi assim que Silvino
se transformou em bandido (LEITE, [19--], p. 3).
Concernente à presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural,
criou-se uma relação de dependência bilateral entre os fazendeiros e os grupos armados, o
que, na opinião de Vassallo (1993, p. 61), propiciou o surgimento do cangaço, já que “quando
a influência dos últimos aumenta muito, eles se tornam muito independentes; são os
cangaceiros, que desde 1850 fazem parte integrante da sociedade sertaneja”.
50
Para Queiroz (1992) em uma sociedade como a nordestina, na qual a criação de gado
era uma grande referência cultural, incentivando torneios e insuflando o lado aventureiro dos
sertanejos, por conseguinte o idealismo pautado na cavalaria andante tendia a perdurar a
temática cavaleiresca e o ciclo carolíngio, herança ibérica que, segundo a autora:
Estas histórias se encontram registradas em folhetos populares, sendo lidas por
letrados e recitadas de memória por trovadores e jograis. Por todo o sertão circulam
romances de cavalaria procedentes de Portugal, escritos em versos pelos poetas
populares e impressos modestamente em tipografias locais. Além do mais, o único
livro que durante longos anos podia ser encontrado no mundo rural brasileiro era o
das façanhas de Carlos Magno e dos Dozes Pares. Oliveiros, vingando uma ofensa
feita ao Imperador; Guy de Borgonha apaixonado pela princesa árabe Flóripes,
Roldão lutando contra os mouros: eis aqui as histórias que sempre apaixonaram o
público sertanejo11. (QUEIROZ, 1992, p. 62-63, tradução nossa).
O sucesso alcançado pelas histórias do ciclo carolíngio no ambiente sertanejo,
segundo a autora, reside no fato de que “Estas lendas encontram a imagem ideal da ordem
social em que vivem, os grandes chefes das parentelas não são difíceis de imaginar como
outros tantos pequenos Carlos Magno, rodeados de seus pares.12” (QUEIROZ, 1992, p. 63,
tradução nossa).
Por isso, não é difícil entremear o cangaço e os seus protagonistas, elementos
genuínos da cultura brasileira, a Carlos Magno e seus Pares. Este amálgama, fruto da
hibridização cultural, tão bem expressa na literatura de folhetos. E como “rejunte” dos
imaginários híbridos pode se considerar o panorama de violência que marcou a sociedade
nordestina no final do século XIX e início do século XX.
Terra (1983) assinala que o cangaço se origina no Nordeste a partir das lutas dos
poderosos travadas pela disputa política ou de terras. Nos respectivos combates não somente
jagunços participavam, mas também podiam fazer parte da milícia aqueles homens que
rendiam favores aos fazendeiros, ou os que estavam nas pugnas apenas como prestadores de
serviços:
O fenômeno do chamado banditismo aparece assim inserido no cerne mesmo da
organização sócio-econômica-política. Não como um acidente ou uma exceção, mas
11 Original: Estas historias se encuentran registradas en folletos populares, siendo leídas por letrados y recitadas
de memoria por trovadores y cuenteros. Por todo el sertón circulan romances de caballerería procedentes de
Portugal, puestos en versos por los bardos populares e impresos modestamente en tipografías lugareñas.
Además de eso, el único libro que durante largos años podía encontrarse en el mundo rural brasileño era el de
las hazañas de Carlomagno y sus Doce Pares. Oliveiros, vengando una ofensa hecha al Emperador; Gui de
Borgoña apasionado por la princesa árabe Floripes, Roldán combatiendo contra los moros: he aquí las historias
que siempre apasionaron el público sertanejo. (QUEIROZ, 1992, p. 62-63). 12 Original: estas leyendas encuentran la imagen ideal orden social en que viven, y los grandes jefes de las
parentelas no están lejos de imaginarse como otros tantos pequeños Carlomagno, rodeados de sus pares.
(QUEIROZ, 1992, p. 63).
51
em sua necessidade histórica, da qual decorrem igualmente outras práticas
costumeiras e tipos sociais [...] (GALVÃO, 1972, p. 22).
Alguns desses “tipos sociais” destacaram-se em meio à barbárie social nordestina:
Cabeleira, Antônio Silvino e Lampião. Entretanto, tais personagens não foram imortalizados
pela violência de seus atos, mas pela coragem e destemor de suas atitudes. O cangaço e os
seus protagonistas são elementos genuínos da cultura brasileira. Este panorama de violência e
os seus tipos marcaram a sociedade nordestina no final do século XIX e início do século XX.
Terra (1983) pontua que no final do século XIX, a instabilidade social na região foi
intensificada quando se introduziu o trabalho assalariado. Esta nova modalidade trabalhista
modificou costumes ao romper relações tradicionais de dominação, que perduravam desde o
princípio da colonização. Assim, em meio a esse clima de turbulência, surge a literatura de
folhetos do Nordeste “[...] escrita por homens pobres, atentos àquela realidade, que repercutirá
na temática dos folhetos.” (TERRA, 1983, p. 17).
Sob essa perspectiva, compreendemos que o ambiente hostil aguçou a sensibilidade
do poeta popular, conferindo-lhe força e solércia à matéria literária. A criatividade e poesia
foram o grande diferencial dos folhetos nordestinos produzidos por eles. Portanto, o
momento sócio-histórico-cultural descrito muito resumidamente, ressalta alguns aspectos
medievais, que perduraram no Nordeste do Brasil, retroalimentando culturalmente esta
sociedade violenta por um longo período.
Segundo Candido (2006, p. 13): “Texto e contexto assumem uma interpenetração
dialeticamente íntegra.” Ou seja, os elementos históricos e os estéticos confluem na matéria
literária. Logo, os aspectos extrínsecos, como, por exemplo, a contextura sociocultural em que
obras são criadas, pode ser relevante à crítica literária.
À vista disso, podemos analisar as marcas identitárias presentes na literatura de
folhetos nordestina justificadas pelo seu período de surgimento, bem como por sua produção
ser feita por homens pobres, porta-vozes de uma sociedade subjugada, denunciando os
conflitos sociais com propriedade de causa, como assinala Terra (1983).
Contudo, em nossa análise tentaremos evitar uma simplificação analítica de tipo
determinista, não é isso que pretendemos com as questões socioculturais discutidas, pois tal
acepção empobreceria o fenômeno estético, de natureza artística, presente na literatura de
folhetos do Nordeste brasileiro:
A arte social nos sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na
obra em graus diversos de sublimação, e produz sobre o indivíduo um efeito prático;
modificando a sua conduta e concepção de mundo, ou reforçando neles os
52
sentimentos dos valores sociais. Isto decorre da própria natureza da obra e independe
do grau de consciência que possam ter a respeito os artistas e os receptores da arte.
(CANDIDO, 2006, p. 30).
Portanto, com base nos pressupostos do autor, inferimos que a ação dos fatores
sociais presente nas obras é capaz de produzir um efeito prático, em maior ou menor grau,
sobre os indivíduos. Tal efeito faz parte da própria natureza da obra, sendo, portanto, também
um elemento literário.
A par dessa concepção, os temas socioculturais que expomos tiveram como
propósito inicial sondar em que medida os aspectos do medievo influenciaram os sentimentos
e os valores sociais com os quais o povo nordestino condicionou a sua visão de mundo, e
posteriormente, os mesmos foram categóricos em sua arte.
Tais fundamentos são essenciais à análise que pretendermos fazer, quando nos
propomos analisar a matéria da França, de origem medieval, e sua relação com a literatura de
folhetos, produzida no Nordeste do Brasil no final do século XIX, dada a dimensão do assunto
cultural que o tema requer, uma vez que o ciclo carolíngio, enquanto item cultural está
inserido num contexto.
Não obstante, destacamos o grande desafio que temos pela frente para que a nossa
abordagem crítica não oblitere a essência estética do texto literário per si. Respeitaremos a
intuição artística tanto na sua criação quanto na sua recepção, uma vez que “Este caráter não
deve obscurecer o fato da arte ser, eminentemente, comunicação expressiva, expressão de
realidades profundamente no artista, mais que transmissão de noções e conceitos.”
(CANDIDO, 2006, p. 32).
53
3 AS LITERATURAS PORTUGUESA DE CORDEL E BRASILEIRA DE
FOLHETOS SOB A ÉGIDE DO CICLO CAROLÍNGIO
Homens só acatam e absorvem o que poderiam criar.
(José Gomes Ferreira)
No universo indefinido do cordel coexistem o oral e o escrito, o culto e popular,
gêneros e formas variadas, postas em completa dissonância; como por exemplo, a prosa, o
verso e as peças teatrais confluindo no mesmo universo literário. Além do que, obras e autores
originários de diferentes culturas interagem entre si. Tudo isso é condensado num suporte
material impresso, vinculando, ao mesmo tempo, comunicação e arte. Isso ocorre porque
fatores do universo editorial também influenciam indiretamente em tal evento, como edição,
tiragem, tipógrafos, livreiros, vendedores e público alvo.
De tal maneira que caso uma história caísse no gosto popular, ela era reeditada
possivelmente em grandes tiragens, alcançando assim, um público amplo. Tal fato contribuía
para a sua preservação na memória popular e, por conseguinte, a sua permanência no cânone
literário; caso contrário, perdia-se no curso do tempo. Ou seja, esta tradição,
indubitavelmente, dependia da aprovação do coletivo para que uma história caísse no gosto
popular, caso contrário, perdia-se no esquecimento do tempo. Portanto “[...] se esta obra oral
se revela, por uma ou outra razão, inaceitável para a comunidade, se os membros da sociedade
não se apropriarem dela, ela será fadada a desaparecer.” (JAKOBSON, 2009, p. 42).
Por tudo isso, o universo cordelístico requer uma perspectiva de análise múltipla,
dada a dificuldade de se conseguir uma abordagem integral de sua intrincada engrenagem,
composta por muitos planos interpenetrados, já que:
A permeabilidade conectiva entre oralidade e escrita; as contingências materiais da
edição; os números astronômicos das tiragens; a dimensão compósita do público, a
que corresponde, na textualidade dos objectos impressos, um mosaico ideotemático
e estilístico; a cartografia certa e incerta dos locais de vendas desse material; a
análise poética dos textos, passível de esclarecer aspectos como a genética e a
arquitetura textual, numa literatura dotada de surpreendentes aptidões orientadas
para o estabelecimento de redes de interferências e referências internas e externas
com outros autores e outros textos; a análise externa dos impressos que, assumidos
como produtos de consumo, ostentam um cuidado especial ao nível da semiótica
gráfica, em especial no que respeita a relevância da capa ou da primeira folha e ao
diálogo entre título e gravura. (NOGUEIRA, 2004, p. 4).
No que concerne à multiplicidade de questões suscitadas pelo cordel português,
algumas delas estendem-se à literatura de folhetos brasileira. No Nordeste do Brasil, os textos
eram vendidos também em forma de folhetos, compostos por um material de baixa qualidade,
54
cujo preço acessível permitia seu alcance a um público disposto em todos os estratos sociais,
tal como acontecia em Portugal e em outros países da Europa Ocidental.
E as semelhanças persistem. Os folhetos eram igualmente comercializados em feiras
livres e mercados populares ou de forma itinerante, seus vendedores- muitos dos quais
podiam ser analfabetos-, utilizavam recursos performáticos e memorizavam as histórias
impressas, recitando-as oralmente.
As edições tinham um apelo mercadológico muito forte, por isso os detalhes
tipográficos assumem grande importância, como a relevância da capa ou da primeira folha, o
diálogo entre título e gravura, dentre outros; já que possibilitavam a compra do folheto por um
público não letrado e garantiam, por assim dizer, o sucesso da venda de tais publicações.
Aqueles que eram analfabetos geralmente pediam para alguém lê-los em voz alta.
Daí se inicia uma forte tradição leitora, na qual era muito comum a realização dos cenáculos
literários nos alpendres das casas de fazendas do sertão. Essas práticas de leitura eram mais
corriqueiras em ambientes rurais no início do século XX até meados da década de 50; antes da
popularização do rádio, dos jornais e do advento da televisão.
Por essa razão, este gênero literário adquire grande relevância para a sociedade
nordestina, na medida em que assumia uma função comunicativa tanto e quanto intelectual,
instrutiva, e, sobretudo, de entretenimento. De maneira que os folhetos brasileiros arrogaram
uma importante função de comunicação de massa, pois foram os primeiros “jornais” nas
zonas rurais, antes do aparecimento da televisão, do rádio e do próprio jornal, pois:
Levado pelos vendedores ambulantes às nossas feiras do interior e mercados, ele
difundia notícias sobre grandes acontecimentos de repercussão internacional,
nacional, estadual ou local. Notícias ou inovações do mundo moderno, da
tecnologia, do progresso contemporâneo. Inovações sempre recebidas com espanto
pelo homem rural, que é, por princípio, um homem conservador. (LOPES, 1983,
p. 8).
Outra função importante exercida pelos folhetos era a de alfabetizar os sertanejos.
Numa região marcada pela pobreza extrema na qual as cartilhas de alfabetização não eram
acessíveis à grande maioria, pois: “Sabe-se que incontáveis nordestinos carentes de
alfabetização aprenderam a ler deletreando esses livrinhos de feira, através de outras pessoas
alfabetizadas.” (LOPES, 1983, p. 7).
Deste modo, quanto a sua aproximação ao cordel português, embora haja muitos
fatores que acentuam as semelhanças com folhetos brasileiros, há uma gama de outros fatores
que os distanciam principalmente no tocante à matéria textual.
55
Abreu (2006), avançando em suas pesquisas, pôde perceber que os cordéis
portugueses eram bem diferentes dos nordestinos, já que não havia “[...] nenhuma semelhança
formal, as condições de produção eram radicalmente distintas, havia apenas três casos de
adaptações de uma mesma história nos anos iniciais de publicação no Nordeste.” (ABREU,
2006, p. 11-12).
Assim, a referida autora rompeu um grande paradigma ao constatar que a literatura
que havia florescido no Nordeste brasileiro não se originava das alterações portuguesas. Isso
quer dizer que embora a produção nordestina tenha recebido um cabedal literário português,
as condições como este foi apropriado condicionou uma independência com relação ao cordel
português.
A partir desse novo paradigma, a autora justifica a necessidade de se adotar uma
nova terminologia, afinal o termo “literatura de cordel” era usado para designar as duas
produções. Por isso, ela resgata um termo utilizado pelos autores e consumidores utilizado no
início da sua produção no Nordeste brasileiro: “literatura de folhetos” ou simplesmente
“folhetos” (ABREU, 2006).
Portanto, didaticamente temos essa oposição terminológica entre as duas literaturas,
acentuando bem a diferença que existe entre ambas; terminação esta que utilizamos desde o
início do nosso estudo. Contudo, há toda uma sorte de questões em torno do temário presente
nos primeiros folhetos que, à primeira vista, revivifica um arcaísmo medieval tributário do
romanceiro português, que é algo inegável. Por este motivo, a análise deve ser bastante
criteriosa.
Em suma, consideramos essa abordagem em relação ao nosso objeto de estudo na
medida em que a literatura de folhetos assume a sua autonomia de gênero artístico autóctone
brasileiro. Em vista disso, cotejaremos as duas literaturas para a realização de uma análise
entre os possíveis traços distintivos entre elas.
Seguiremos os pressupostos de Abreu (2006) quanto à formação de uma tradição
literária constituída pela presença de um cânone de autores e obras e a assiduidade de um
público leitor configurado a partir da solidificação de mercado editorial. Todos estes fatores
foram edificados com características bem particulares, a saber, sob marcas identitárias da
região do Nordeste brasileiro.
56
3.1 A cultura da oralidade nas bases de formação da literatura brasileira de folhetos
Segundo Vassallo (1993), a cultura popular que floresceu no Nordeste brasileiro foi
inspirada no modelo português, em voga à época dos descobrimentos. E, por conseguinte, a
literatura que nela se espelhou era quase que exclusivamente oral. Assim sendo, as práticas e
características dessa modalidade literária se mantiveram, quase que inalteradas por um longo
período na respectiva região, pontualmente em razão de alguns fatores que subsidiaram o seu
prolongamento:
A oralidade predominantemente naquele período sobrevive fixada em especial nessa
região, por ser depositária do acervo cultural e social da Europa medieval. Aí
permaneceu devido a múltiplas razões: por ser a mais antiga zona de colonização
que prosperou; pelo isolamento prolongado em que a região permaneceu; pelo
encontro e cruzamento de raças e culturas; pela estabilidade e longa duração de uma
organização social semi-feudal de latifúndio e patriarcalismo, perpetuadora das
tradições herdadas. A continuidade da literatura medievalizante no Nordeste
confirma o conceito de arcaísmo atribuído a essa sociedade. (VASSALLO, 1993, p.
69).
A preservação de uma grande parte de elementos do medievo europeu foi possível
por muitos motivos, como bem destacou a autora. Em sua opinião o arcaísmo português
subsidiou as bases sociais mais profundas da sociedade nordestina e o seu entorno
sociocultural coadunou uma tradição medievalizante, cuja cultura da oralidade se sobressai.
No tocante ao arcaísmo português presente em muitos setores do Brasil colônia,
Franco Júnior (2008) ressalva que diferentemente do que aconteceu à colônia inglesa, situada
em terras americanas e cujo povoamento se deu por pessoas interessadas em desenvolvê-la
modernamente, a portuguesa “[...] foi obra de setores ainda ‘medievais’, que pretendiam
reproduzir em outro palco, mais amplo e rico, o enredo histórico anterior.” (FRANCO
JÚNIOR, 2008, p. 83). Entretanto, segundo este mesmo autor, isso não significa dizer que não
houve elementos modernos também em solo brasileiro.
Nesse contexto, a literatura popular foi uma grande expressão dessa sociedade
anacrônica, sobretudo propagada oralmente. Tal fato se justifica pela grande quantidade de
analfabetos e a ausência de uma tradição escrita:
Desde a época medieval, com a ausência da escrita e com o analfabetismo, os que
sabiam ler formavam os círculos divulgando essa literatura oral, tal como em feiras
do Nordeste, ainda podem ser vistos cantadores que lêem/cantam esses folhetos.
(SIQUEIRA, 2009, p. 2).
57
Segundo Santos (2006 p. 50), o texto literário oral enquanto discurso e portador de
uma mensagem, pode ser definido como etnotexto, ou seja: “Esse termo designa o discurso
que um grupo social ou uma coletividade, na diversidade de seus componentes, elabora a sua
própria cultura para reforçar a sua identidade.”
Segundo a autora, o etnotexto pode ser tanto literário como não literário, contanto
que estabeleça uma relação de continuação e integração de culturas por intermédio de uma
“leitura cultural” do texto tradicional (BOUVIER, 1992 apud SANTOS, 2006). Além do
mais, permite o acesso à memória cultural de um grupo, dado que: “Fornece informações de
aprendizagem e transmissão anteriores, faz aflorar lembranças relativas às performances
passadas como relação à história de vida do autor e às práticas comunitárias.” (SANTOS,
2006, p. 50). Assim sendo, com base no suporte memorial, muitos etnotextos portugueses
foram preservados, com algumas ressalvas, já que esses materiais discursivos passaram por
um processo de reelaboração quando apropriados pela sociedade sertaneja.
Com base em tal perspectiva, os etnotextos não só ajudaram na preservação do
romanceiro português, como também lhe atribuiu uma nova dimensão em solo brasileiro.
Pois, conforme Santos (2006, p. 51) a sua importância reside na “[...] continuidade da
presença do romanceiro em terras brasileiras, em particular nordestinas, e de lhe dar uma nova
dimensão.”
Este é um dos pontos de inflexão entre as duas culturas, e sob o qual nos
debruçamos. Embora muito do material artístico produzido no Brasil fosse tributário do
português, este ganhava uma nova roupagem, mais condizente com a realidade local da
colônia. Mais do que isso, compreendemos como esse evento demarca outro fator
fundamental para a continuidade da cultura da oralidade no Brasil: a mistura de raças
indígenas e a africanas, que tinham como denominador cultural comum uma sólida tradição
oral.
Cascudo (1984a) sublinha a participação indígena na cultura brasileira, destacando as
suas lendas, mitos, tradições e poética, respaldando uma grande tradição oral. Costumes que
foram relatados por seringueiros, viajantes e pequenos mercadores que visitavam as aldeias
indígenas:
A tradição oral indígena guardava não somente o registro dos feitos ilustres da tribo
para a emulação dos jovens; espécie de material cívico para a excitação, como
também as histórias e facetas, fábulas, contos, o ritmo das danças inconfundíveis. O
pajé sacerdote reservaria, como direito sagrado, a ciência medicamentosa, os ritos e
a breve e confusa teogonia. Os guerreiros que envelheciam possuíam os arquivos das
versões orais. Essa continuidade era tão normal e poderosa que compreendemos
como foram transmitidas aos naturalistas, exploradores e missionários, centenas e
58
centenas de fábulas e de contos dos ainda inesgotáveis mananciais responsáveis por
essa conservação. (CASCUDO, 1984a, p. 80).
Segundo o autor, a tradição nativa ia aos poucos se fundido à tradição portuguesa,
como consequência natural do intercâmbio cultural e da miscigenação: “Vieram do contato
secular entre indígenas e brancos, nas plantações, bandeiras de mineração ou caça aos
indígenas distantes. Vieram por intermédio do mameluco, filho de português e índio.”
(CASCUDO, 1984a, p. 83).
O autor ainda complementa que mesmo o filho renegando a mãe índia e jactando o
pai português, não era indiferente às histórias que ouvia quando criança. Logo, dava
continuidade a um patrimônio cultural que eclodia na cultura dominante, resistindo-lhe,
ajuizando-lhe valor e dele se apropriando.
Para Cascudo (1984a), um detalhe importante acerca da preservação do patrimônio
cultural indígena brasileiro reside no fato de ser o tupi, até meados do século XVIII, uma das
formas de comunicação da cultura brasileira:
O tupi, já litorâneo quando o português chegou ao Brasil, foi o mais plástico, o mais
viajante e o mais inquieto dos povos americanos. O contato mais prolongado com os
europeus deu-lhe amplitude e elasticidade para espalhar o que ouvira e sabia: foi um
denominador comum de estórias. Encontramo-lo por toda parte em estórias
deformadas, adaptadas e mais visíveis na origem do narrador longínquo, entre outras
raças, Caraíbas, Aruacos e Gê. (CASCUDO, 1984a, p.83).
Por outro lado, o idioma que prevaleceu foi o do colonizador e, infelizmente, muitas
dessas estórias foram fundidas à cultura dominante, perdendo a sua identidade, dado que a
grande maioria das expressões artísticas perpetuadas no Brasil foi vertida em língua
portuguesa nas práticas discursivas.
Tal qual a cultura autóctone, o autor ressalta a cultura africana que também possuía
uma tradição oral iminente e de natureza tribal. Por conseguinte, mesmo não podendo precisar
quais as características distintivas das três raças, reverberavam ecos dos elementos indígenas e
africanos, convergindo-os no idioma dominante a partir das práticas discursivas e das
representações simbólicas.
Em solo brasileiro, Cascudo (1984a) sobreleva a influência das pretas velhas na
fusão cultural das culturas africana à brasileira e vice-versa. Pois, com o desenvolvimento e o
fortalecimento da escravatura no Brasil muita das atividades laborais designadas aos índios
foram repassadas aos negros.
59
As amas-de-leite foram responsáveis por propagar as tradições das quais se
apropriavam, ao mesmo tempo em que moldavam a cultura brasileira em confluente
transformação:
Fazia deitar as crianças, aproximando-as do sono com histórias simples,
transformadas pelo seu pavor, aumentadas na admiração dos seus heróis míticos da
terra negra que não mais havia de ver. Dos elementos narrados pelas moças brancas,
as negras multiplicavam o material sonoro para a audição infantil. A humilde
Sheerazada conquistava com moeda maravilhosa, um canto de reminiscência de
todos os brasileiros que ela criava. Raramente vozes européias evocariam as
histórias que os tios e as tias narravam nas aldeias portuguesas. Os ouvidos
brasileiros habituaram-se às entonações doces das mães-pretas e sabiam que o
mundo resplandecente só abriria as suas portas de bronze ao imperativo daquela voz
mansa, dizendo o abre-te, sésamo irresistível: era uma vez... (CASCUDO, 1984a, p.
153).
Distingue-se, portanto, esta personagem encantadora do Brasil colônia dedicada à
contação de histórias. A sua relevância é tamanha, que constituiu, segundo o folclorista
Câmara Cascudo, uma instituição chamada akpalô, ou seja: “[...] uma instituição africana que
floresceu no Brasil na pessoa de negras velhas que só faziam contar histórias.” (CASCUDO,
1984a, p. 154).
Por isso, não podemos restringir à participação africana na cultura oral brasileira
apenas aos akpalôs. Esta instituição é apenas a ponta de um iceberg. Além do legado de
grandes narradores que recebemos da cultura africana, temos uma profusa literatura oral
impossível de ser catalogada, composta por contos, provérbios, adivinhação etc. Todos esses
etnotextos fundamentavam a função literária coletiva. Assim como a indígena, a cultura
africana, do mesmo modo, deixou marcas inextinguíveis mesmo quando foi mesclada à
cultura dominante. O fato de centrarmos a nossa análise no elemento português, não
desconsidera a importância dos fatores indígenas e africanos.
Os etnotextos se encontravam na zona de confluência onde se articulavam as práticas
discursivas e as representações simbólicas no Brasil colônia. Entretanto, a nossa atenção será
voltada ao elemento português. Sob essa perspectiva, analisaremos o ponto de convergência
no qual as culturas orais (brasileira) e na escrita e/ou oral (portuguesa) incidem,
caracterizando-se ora como uma “oralidade mista”, ora como uma “oralidade segunda”
(ZUMTHOR, 1993, p. 18).
A propósito, de acordo com as circunstâncias alusivas à natureza dos textos, Zumthor
(1993, p. 19) argumenta que para uma sociedade que tem contato com a escrita mediante a
transmissão oral de um texto poético a um público, este é submetido a cinco operações no que
60
concerne a sua história, tais como; “[...] a produção, a comunicação, a recepção, a
conservação e a repetição.”
Em vista disso, podemos observar que em tal fenômeno a força e a função da voz, de
forma categórica, conduziram eventos sob os quais a oralidade secundaria sobressaiu-se, dada
a enorme capacidade dessa variante de transmissão oral incorporar à escritura “[...] os valores
da voz no uso e no imaginário.” (ZUMTHOR, 1993, p. 18).
A partir das ideias de Zumthor (1993), escolhemos quatros sextilhas tiradas do
folheto A morte dos doze Pares de França, do poeta popular Marcos Sampaio:
Amigos, caros leitores
dê-me um pouco de atenção
leiam esta minha história
com calma e meditação
verão que não é mentira
nem lenda de ilusão.
Os leitores devem saber
das proezas de Roldão
e de Oliveiros seu amigo
sabem os feitos então
e também a falsedade
que lhe fez o Galalão.
Foram todos cavalheiros
de muito alto louvor
Roldão, Ricarte e Olveiros
eram os três de mais valor
Roldão sendo o mais querido
do seu tio imperador (SAMPAIO, 1975, p. 1).
A história é contada em forma de sextilhas, com versos setessilábicos, muito
próximos à fala, facilitavam a sua memorização. À vista disso, podemos pensar na presença
do elemento vocal posto em relevo em textos escritos, a partir das histórias tradicionais do
medievo recitadas e, posteriormente, escritas e editadas sem, contudo, suprimir a voz coletiva
que estrutura o texto: “Os leitores devem saber/ das proezas de Roldão/ e de Oliveiros seu
amigo/ sabem os feitos então/ e também da falsedade/ que lhe fez o Galalão” (SAMPAIO,
1975, p. 1).
Por tudo isso, destacamos a estrutura versificada, tributária da oralidade, como uma
das grandes características da literatura de folhetos brasileira. Além do mais, esta estrutura
rimada facilitava a transmissão e, consequentemente, a continuação dos etnotextos na
memória coletiva dos sertanejos.
Nestes termos, o folclorista brasileiro Câmara Cascudo em sua obra Cinco livros do
povo, de 1953, realiza estudos sobre as principais histórias tradicionais da Europa medieval
61
impressas, conhecidas como Novelística. Estas, segundo o autor, eram pequenas novelas
difundidas na Europa ao longo dos séculos XV e XVII, em cuja origem erudita confluía a
presença de várias culturas e podiam ser propagadas também oralmente.
Desse fundo tradicional de obras, destacam-se em especial, cinco histórias
popularizadas no Brasil colônia: Donzela Teodora, Roberto do Diabo, Princesa Magalona,
Imperatriz Porcina, João de Calais e, sobretudo História do Imperador Carlos Magno e dos
Doze Pares de França. Sobre o tema de tais produções literárias:
[...] estudavam as novelas que corriam toda a Europa, popularizadas em sucessivas
edições, traduzidas, adaptadas, influenciando criações locais. As ricas bibliografias
alemãs, espanholas, italianas, francesas, mostram a profundeza e a vastidão do
gênero. A identificação das fontes orientais, especialmente indianas [...], trouxeram
o assombro de encontrar-se paralela e independente da informação manuscrita, uma
corrente oral com os mesmos elementos e os mesmos episódios, numa sucessão
ininterrupta de influência e acomodação psicológica. (CASCUDO, 1953, p. 9, grifo
nosso).
Assim sendo, Donzela Teodora centrava-se na inteligência feminina; a Princesa
Magalona destaca o amor e a fidelidade; a História da Imperatriz Porcina também põe de
relevo a força feminina, focando na esposa casta e incorruptível. Em contrapartida, João de
Calais retratava o universo masculino de viagens e aventuras, enquanto Roberto do Diabo
abordava maniqueísmo, no qual a sua vitalidade e força eram usadas para o mal, até o
momento da sua contrição, quando esta é usada para o bem (CASCUDO, 1953).
Por seu turno, o referido folclorista chama atenção para uma obra em especial: a
História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Segundo o autor, este
livro era o mais conhecido pelo povo brasileiro, especialmente os que viviam no interior do
país. Dificilmente os sertanejos desconheciam as façanhas do Imperador franco e de seus
paladinos.
A literatura oral que despontava no Nordeste apresentava muitas semelhanças com a
da Península Ibérica, haja vista que em solo brasileiro “[...] era tão difundida e arraigada na
Península Ibérica no século XVI que muitas vezes numa conversação cotidiana era mantida
através da intercalação de versos do romanceiro.” (VASSALLO, 1993, p. 69).
No tocante ao processo de apropriação que envolve a gênese desta literatura de
folhetos produzida na região nordestina, Galvão (1972) destaca, como característica autóctone
da tradição popular sertaneja impressa nas obras, a confluência entre o oral e o escrito, bem
como divergências sincrônicas e diacrônicas agindo, ao mesmo tempo, na divulgação e
propagação das histórias:
62
Aí, História e estória se confundem para o sujeito em busca de uma concepção de si
mesmo e de sua vida. O acontecido ontem e aqui ombreia com o acontecido em eras
remotas e bem longe. Na tradição oral dos causos e das cantigas, bem como nos
romances de cordel, é a mente letrada que vai executar as operações da razão;
definindo, separando, constituindo tipos no seio de um conjunto onde o cavaleiro
andante, o cangaceiro, a donzela guerreira e a donzela sábia como figuras da história
do Brasil; e o animal e o Diabo são todos os personagens de um só universo.
(GALVÃO, 1972, p. 57-58).
A partir desses pressupostos, elegemos alguns fragmentos do folheto História do
príncipe Jaci e a negra moura torta, do poeta popular Manuel Apolinário Pereira. Neste
folheto é narrada uma típica história de amor entre o príncipe Jaci do reino de Camboaci e a
linda donzela Avanice. Esta era uma bela jovem filha de um barão, que ao sair para caçar com
o pai e o irmão perdeu-se na mata. O príncipe ao vê-la, logo se apaixona:
Passando a margem de um rio
de largura monstruosa
encontrou uma donzela
mui radiante e formosa
sentada sobre o sombrio
de uma árvore frondosa.
Jaci quando viu a jovem
se sentiu apaixonado
e lhe disse: eu sou o príncipe
herdeiro desse reinado
mas só terei influência
sendo contigo casado.
A jovem já amava-o
sem esperança na vida
quase morreu de alegria
e disse fortalecida
- a casar com vossa alteza
há muito estou decidida (PEREIRA,[19--], p. 7).
Príncipes e reinados formavam parte de um imaginário apropriado do colonizador
europeu, que o poeta popular adaptou ao ambiente sertanejo e enriqueceu o texto através de
elementos híbridos, como, por exemplo, o príncipe Jaci, um nome indígena da língua Tupi.
Então, como toda boa história de amor, há algo que atrapalha o enlace dos
apaixonados. No respectivo folheto, é uma personagem quem ocasionou o impedimento;
trata-se de uma feiticeira negra, moura e torta:
Nisso a negra Moura-Torta
para a arvore se voltou
avistou a moça em cima
muito se admirou
conhecendo o seu engano
para a moça assim falou.
63
[...]
E pelo medo que teve
a moça ficou tremendo
mas a negra feiticeira
chegou-se a ela dizendo
não tenha medo santinha
que em nada eu lhe ofendo (PEREIRA, [19--], p. 7, grifo nosso).
Nas sextilhas apresentadas, destacamos a forma como a personagem antagonista é
caracterizada. Primeiramente, ela não apresenta nome próprio e as referências são
“metonímicas”, ou seja, demonstram a forma ainda muito preconceituosa de tratamento com
os negros, bem como resgatam um imaginário longínquo do colonizador ibérico, segundo o
qual o mouro era a representação do Mal.
Curiosamente, não há nenhuma menção aos árabes, com exceção apenas do sintagma
moura foi apropriado pelo poeta popular nordestino. De tal modo que conservou do
imaginário do colonizador a ligação com o estereótipo árabe, possivelmente, pela cor da pele,
um pouco mais escura que a dos europeus.
Deste modo, o estereótipo “mouro” é esvaziado e ressignificado com algo relativo ao
mal. Neste novo campo semântico, tal modelo se acerca também ao místico, e possivelmente,
por este motivo, a antagonista é estigmatizada como negra, moura, torta e feiticeira;
acentuando, por assim dizer, a hibridização presente no imaginário sertanejo. Esses
predicativos geram uma carga semântica negativa, associando o feminino ao lado mal e
místico, relativo às bruxarias da Idade Média; uma espécie também de retomo ao imaginário
medieval.
Em suma, a negra Moura-Torta é uma feiticeira que transformou a moça branca e
bela em uma pomba por meio de magia negra, quando ela lhe espetou um alfinete. No
desenlace, o feitiço foi quebrado, os jovens noivos se casaram e o destino da pobre feiticeira
foi trágico, tal qual deve acontecer a toda bruxa, segundo a tradição.
Além do mais, na cultura popular de forte tradição maniqueísta, o bem triunfa sobre
o mal, e o mal deve ser sempre punido; neste caso, personificado na figura da negra Moura-
Torta, conforme ilustram os versos a seguir:
A moça contou ao povo
o que fez a Moura-Torta
o jardineiro contou
o que se passou na horta
o povo todo gritava
- a negra deve ser morta.
O rei disse: e a sentença
64
que eu quero dar a ela
e amarrá-la num pau
e tirar a roupa dela
para todo o povo do reino
butar alfinete nela
O povo todo afirmou
a sentença boa é esta
mande amarrar logo a negra
prá gente fazer a festa
ela vai ver se botar
alfinete em gente presta.
Vinte quilos de alfinete
chegaram na mesma hora
e o carrasco pegou
a negra puxou para fora
amarrou-a numa arvore
e disse: povo é agora.
Quando ele disse assim
foi logo a negra estrepada
da cabeça até os pés
e o povo em gargalhadas
dizia: vamos botar
alfinete na almofada (PEREIRA, [19--]., p. 15, grifo nosso).
Observamos, desse modo, um exemplo de como os poetas populares atualizavam
alguns elementos dos imaginários europeus sincrônica e diacronicamente no corpo do texto.
Ao posto que, naturalmente eram amalgamados à cultura local. A caracterização da
antagonista com negra Moura-Torta ilustra bem a hibridização que acontece na cultura
popular, plasmada nos folhetos nordestinos.
Os poetas populares traziam para o universo da literatura popular de folhetos
elementos distintos, oriundos de diferentes culturas com toda a licença poética que a sua
criatividade permitia. Então, elementos de diferentes veios de criação artística dialogavam de
modo coeso e harmonioso em um terreno movediço que entremeavam a tradição oral e a
escrita, tal como menciona Galvão (1972).
E como resultado de tal arrolamento, temos um rico manancial artístico hibridizado,
no qual príncipes “índios”, lindas donzelas de nobre estirpe, negras feiticeiras mouras e o
povo sertanejo estreitam laços, ombreando-se num mesmo ambiente, convergindo sincrônica
e diacronicamente no mesmo imaginário, por meio de figuras arquetípicas que acendem ao
nível psicológico mais profundo da mentalidade humana.
Resulta tão importante a base oral na formação da nossa literatura, principalmente
na de folhetos que aflora no Nordeste brasileiro, que essa preserva mesmo no texto impresso,
a essência oral. É sabido que os repentes ou desafios cantados pelos cantadores foram
65
essencialmente importantes para a formação da literatura brasileira de folhetos, pois os
recursos mnemotécnicos inspiram os modelos de versos usados nos folhetos.
Escolhemos dois textos, um sendo uma cantiga e outro, a mesma cantiga, mas em
forma de folhetos. Eis a “Cantiga do Vilela”, de autoria do cego Sinfrônio, recolhida por
Leonardo Mota e exposta em sua obra Cantadores (1987):
Meu povo preste atenção
Ao que agora eu vou contá
De um home muito valente
Que morava num lugá
E até o próprio gunvêrno
Tinha medo de o cercá
Vilela era natural
Do sertão pernambucano,
E ele, desde do princípio,
Que tinha o gênio tirano:
Comete o primeiro crime
Com a idade de dez ano.
Com doze ano de idade,
Numa véspera de S. João,
Vilela mais o seu mano
Tivéro uma altercação:
Só por causa dum cachimbo
Vilela mata o irmão (SINFRÔNIO, [19--] apud MOTA, 1987, p. 44-43).
A seguir, apresentaremos três sextilhas retiradas de um folheto do poeta popular
José Bernardo da Silva, de 1957, narrando a mesma história do valente Vilela:
Meu povo preste atenção
que agora vou contar
de um homem muito valente
que morava num lugar
até o próprio governo
tinha medo de o cercar.
O seu nome era Vilela
do sertão pernambucano
e ele desde de pequeno
que tinha genio tirano
com 10 anos de idade
Vilela mata o seu mano.
Os dois estavam brincando
na véspera de S. João
Vilela mais seu mano
e tiveram uma discussão
por causa de um cachimbo
Vilela mata o irmão (SILVA, 1957, p. 1).
66
A partir dos fragmentos coligidos, de duas modalidades artísticas diferentes, uma
como cantiga e outra sendo um folheto, somos capazes de observar as semelhanças, mais que
as divergências, permeando as fronteiras que aproximam essas duas modalidades de arte
popular. Optamos por uma cantiga que tivesse sido vertida em forma de folhetos com o
intuito de demonstrar o quanto do universo das cantigas influenciou na formação do
respectivo gênero literário brasileiro em questão.
Estas duas modalidades coadunam-se, pois, além dos recursos mnemotécnicos como
sextilhas setessilábicas, com alternância de rimas ABCBDB, e a temática também é
partilhada. No caso da “Cantiga do Vilela”, ela foi preservada quase que totalmente na íntegra
quando impressa; uma vez que a linguagem precisou ser adaptada e atualizada.
Como base no que expusemos, podemos inferir que a tradição oral influenciou
sobremaneira a literatura de folhetos brasileira, que floresceu no Nordeste brasileiro no final
do século XIX, consolidando-se enquanto gênero literário, no século seguinte. Ademais,
podemos inferir que esta regularidade poética a distanciava da literatura de cordel portuguesa,
conforme discutiremos no próximo tópico.
Hobsbawn (1997, p. 9) falando sobre tradições e passado histórico assegura que nem
todas as tradições perduram, contudo em relação ao passado “[...] tenta-se estabelecer
continuidade com o passado histórico apropriado.” O referido autor defende que as tradições
“[...] são reações às situações novas que ou assumem formas de referências a situações
anteriores, ou estabelecessem o seu passado através da repetição quase que obrigatória.”
(HOBSBAWN, 1997, p. 10). Daí ser a repetição um importante recurso de continuidade de
uma tradição.
Embora a repetição nunca seja igual à versão original, é justamente na maneira de
como se repete que reside toda a criatividade artística. Por exemplo, a matéria da França ao
ser recriada no sertão nordestino ganha um colorido especial, pois as aventuras de Carlos
Magno e os seus paladinos são narradas em versos. Sobretudo pela linguagem espontânea do
sertanejo, tal como aparecem nas sextilhas a seguir: “De Esto foi coroado/ Roldão tornou a
vencer/ aí os adversários/ começaram a esmorecer/ Roldão garoto guerreiro/ botou tudo
para correr” (FREIRE, [19--], p. 15, grifo nosso).
Diante do exposto, não desconsideramos o dinamismo que atuam nas inter-relações
que envolvem a tradição literária prolongada através dos processos de apropriação, adaptação
e recriação de obras a outros contextos socioculturais, diferentes no tempo e no espaço. Assim
sendo, analisaremos a seguir literatura de folhetos brasileira, a fim de compreender sua
autonomia, mesmo compartilhando um pano de fundo com a literatura de cordel portuguesa.
67
Contudo, antes de qualquer coisa, faz-se necessário analisar as questões que orbitam
em torno da literatura de cordel portuguesa quanto à sua definição, propagação e, sobretudo, à
sua interferência na literatura de folhetos brasileira.
3.2 A literatura de cordel portuguesa: de Portugal ao Brasil
No que diz respeito à literatura de cordel portuguesa, as dificuldades surgem a partir
de uma indefinição terminológica desse evento, resultante da incapacidade teórica de se tecer
um conceito capaz de unir elementos de naturezas díspares que o constituem; tais como
preceitos editorias e literários, compartilhando um mesmo suporte material. Isso de fato não é
possível, se não se leva em conta a complexidade de tal fenômeno cultural.
Segundo Nogueira (2004), uma das primeiras dificuldades que um pesquisador de
literatura de cordel enfrenta é, sem dúvida alguma, a sua discrepância conceitual que se
concentra em torno do tema. Uma vez que o seu conceito se consagrou pelo uso de como o
mercado editorial da época comercializava essas obras, bem como a partir de seus lugares de
venda, sem ater-se, portanto, às particularidades literárias do texto:
A designação “literatura de cordel” recobre o uso dos especialistas, um conjunto
imenso e instável de objetos impressos que eram pendurados sobretudo, para a
exposição e venda em cordéis distendidos por dois suportes, presos por alfinetes,
pregos ou molas de roupas, em bancas de madeira, podendo também prender dos
braços ou da cintura de vendedores ambulantes. Se não há dúvidas quanto ao
processo e as motivações que conduziram o aparecimento dessa expressão, que
também é usada na Espanha, o mesmo se pode dizer sobre a data precisa da sua
introdução em Portugal e de outras particularidades, como o nome de quem sanciona
e em que circunstâncias. (NOGUEIRA, 2004, p. 7).
Esta definição não ajuíza valor às propriedades artísticas dos textos; na verdade é
bastante rasa, na medida em que não explica o fenômeno sui generis: “[...] impreciso definir
uma produção literária com base em seus locais e formas de vendas, vendedores, dimensão
tipográfica; a saber, recorrendo apenas a elementos extrínsecos à obra.” (ABREU, 2006, p.
20).
As associações aos locais de vendas populares ou à materialidade do suporte geram
uma proporção pejorativa, condicionando tais textos a obras de má qualidade literária. Além
do mais, os folhetos eram impressos em materiais de baixa qualidade e vendidos a baixo
preço, facilitando o acesso a setores de baixo estrato social.
68
O fato é que a literatura de cordel é um evento cultural bastante complexo, que orbita
entre o erudito e o popular, indo da tradição escrita a oral, envolvendo textos literários
clássicos e circunstanciais sem qualquer delimitação de fronteiras. Ou seja, qualquer obra
poderia ser vendida em forma de cordel, sem qualquer critério de seleção.
Este evento surgiu e se propagou por toda a Europa. As obras editadas em cordéis
recebiam diferentes nomes, entretanto o modelo de edição era o mesmo. Assim que eram
chamadas de folhas volantes ou cordéis em Portugal; ou pliegos sueltos na Espanha; na
Holanda foram denominadas de “pamflet”; enquanto na França este mesmo fenômeno
literário era chamadode “littèrrature de colportage”, e na Inglaterra recebiam duas
denominações; conforme a natureza dos textos, a saber, eram chamadas de “cocks” ou
“catchpennies” as que narravam histórias imaginárias, e os “broadsiddes”, as narrativas
históricas (LOPES, 1983). Contudo, dada a extensão do tema, deter-nos-emos apenas à
Península Ibérica.
Quanto aos problemas que giram em torno do cordel português, um dos mais
delicados é, sem dúvida, a indefinição do gênero cordelístico em Portugal. Visto que há uma
falta de conexão formal e de conteúdo entre os gêneros presentes nos textos impressos:
A literatura de cordel abarca autos, pequenas novelas, farsas, contos fantásticos e
moralizantes, histórias, peças teatrais, hagiografias, sátiras, notícias, entre outros.
Além de poder ser escrita em prosa, em versos ou sob a forma de uma peça teatral.
(ABREU, 2006, p. 21).
Na Espanha, o problema também persiste. Baroja (1990) também chama atenção não
só para uma dissonância entre gênero e a quantidade de temas variados que eram editados em
forma de folhetos ou “pliegos”, como eram chamados pelos espanhóis. Além do mais, destaca
muitas referências do mundo da oralidade, da cultura popular, sedimentados por muitos
séculos que “voavam” de boca a ouvido, sendo realimentada pelo universo cordelístico:
Aqueles pliegos refletiam a flor da fantasia popular e da história; havia os da história
sagrada, dos contos orientais, das epopeias medievais do ciclo carolíngio, dos
livros de cavalaria, das mais célebres ficções da literatura europeia, a nata da lenda
pátria, das façanhas de bandidos, e da guerra civil dos sete anos. Era o sedimento
poético dos séculos, que depois de terem rendido cantos e relatos que consolaram a
vida de tantas gerações, rodando de boca ao ouvido e do ouvido a boca, contados ao
amor da fogueira; vivem pelo ministério dos cegos de rua, na fantasia sempre fresca
do povo. (UNAMUNO, 1928 apud BAROJA, 1990, p. 16, grifo e tradução
nossos).13
13Original: Aquellos pliegos encerraban la flor de la fantasía popular y de la historia; los había de la historia
sagrada, de cuentos orientales, de epopeyas medievales del ciclo carolingio, de libros de caballerías, de las más
celebres ficciones de la literatura europea, de la crema de la leyenda patria, de hazañas de bandidos, y de la
guerra civil de los siete años. Eran el sedimento y poético de los siglos, que después de haber nutrido cantos y
69
Deste modo, o referido folclorista espanhol realça um grande contingente de temas
heterogêneos que vão do erudito ao popular, estratificados ao longo dos séculos em vários
gêneros e formas literárias. Tal como acontecia em Portugal, estes foram perpetuados pela
tradição oral do povo; tradição popular que também se consolidava nas colônias ibéricas.
Como bem destaca o autor, um dos grandes divulgadores dos textos cordelísticos
eram os cegos. Estes recitavam de memória as histórias para atrair o seu público, acentuando,
ainda mais, a cultura da oralidade; caldeando tantos temas distintos no respectivo evento
cultural. Em vista disso, surge outra denominação pautada em fatores extraliterários a de
“literatura de cego”. Tal definição se popularizou na Espanha entre os séculos XVII e XVIII.
E dentre estas histórias rememoradas, a de Carlos Magno e dos Doze Pares de França e outras
do medievo eram ainda muito populares e propaladas em cordéis no século XVIII:
Costumava ter ainda grande popularidade a história dos doze Pares de França, as
coplas de Calainos, a história dos Sete Infantes de Lara e os romances de Pedro
Cadena e Rosara de Trujillo, que eram recitados de memória, e depoisos cordéis
eram vendidos.14 (BAROJA, 1990, p. 69, grifo e tradução nossos).
Segundo Abreu (2006), os cegos tiveram por muito tempo a exclusividade na venda
dos cordéis na península. A autora destaca que em Portugal sobreleva-se a figura do cego
Baltasar Dias tanto pela autoria quanto pelo volume de livros que publicou sob a fórmula do
cordel.
Quanto à literatura que florescia nesse contexto sociocultural, destacam-se as novelas
baseadas na tradição cavaleiresca. Estas eram repletas de manifestações fantasiosas, dentre as
quais podemos citar: Crônica do imperador Clarimundo (1520); Memorial das proezas da
segunda távola redonda (1567); Palmeirim de Inglaterra (1544). Sobre a relação das novelas
de cavalaria com a literatura de viagens, e seu anacronismo medieval, sabe-se que:
As novelas de cavalaria constituem, por assim dizer, a contrapartida da epopéia
marítima, substituindo a imaginação o que naquela sobrava de realismo. No entanto,
das diversas formas novelescas compartilhou ainda o espírito medieval, aliado a uma
visão e mentalidades renascentistas que as experiências, a expansão geográfica e o
conhecimento de novos mundos fizeram surgir. (CUNHA, 1993, p. 65).
relatos que han consolado la vida a tantas generaciones, rodando de boca al oído y de oído a boca, contados al
amor de la lumbre, viven, por el ministerio de los ciegos callejeros, en la fantasía siempre verde, del pueblo
(UNAMUNO, 1928 apud BAROJA, 1990, p. 15). 14Original: Solían tener aún gran popularidad la historia de los doce Pares de Francia, las coplas de Calainos, la
historia de los Siete Infantes de Lara y los romances de Pedro Cadena y Rosaura la de Trujillo, que eran
recitados de memoria, aunque luego vendían los pliegos.
70
Assim, podemos compreender que em pleno Classicismo português, no século XVI,
a tradição cavaleiresca eivava a literatura portuguesa de substratos medievais. Em razão disso,
muito dos elementos medievais conseguiram perdurar por séculos subsecutivos, graças à
grande tradição popular.
Burke (2010) assinala que em se tratando de uma história cultural da Europa, as
transformações não se deram em curto prazo, uma vez que:
Uma geografia cultural da Europa teria de ser histórica, voltada para as
transformações de longo prazo. Também teria de levar em conta um grande número
de diferenças ou oposições culturais que muitas vezes se sobrepunham, mas
raramente coincidiam entre si. (BURKE, 2010, p. 91).
Seguindo os pressupostos do autor, podemos identificar facilmente a tradição
medieval presente até os inícios da Europa moderna. Sobre tema, ele destaca a importância
cultura popular na continuidade desta tradição mesmo após a Renascença e o Iluminismo na
Era Moderna. Ele também centra a sua atenção no movimento recíproco de interpenetração
cultural entre duas tradições que coexistiam no início da Europa moderna. Estas foram
definidas como uma “grande tradição” e uma “pequena tradição” das quais faziam parte a
elite e o povo (BURKE, 2010).
Portanto, havia uma grande tradição transmitida formalmente nos liceus e nas
universidades; esta era elitista, destinada apenas a um grupo restrito, a qual o povo não tinha
acesso. Em contrapartida, a pequena tradição era acessível a todos, desde a elite ao povo. Seus
lugares de propagação variavam, pois as apresentações podiam ocorrer desde igrejas a
mercados populares e feiras livres.
Esta concepção nos ajuda a esclarecer outro problema no conceito de “literatura de
cordel”, pois muitos a associam erroneamente à “literatura popular”; a saber, feita pelo povo
sem instrução e, por assim dizer, uma arte de baixa qualidade artística, como pontua Abreu
(2006, p. 42): “O público a que se destinavam as obras de cordel portuguesas nos anos
oitocentos também não era basicamente o popular.”
Conforme a autora, havia uma elite dedicada ao cordel. Esta era formada, sobretudo,
por militares, professores, advogados e médicos, os quais participavam tanto da produção das
obras quanto de sua comercialização. O que poderia justificar tamanha permeabilidade
cultural era a diversidade temática que agradava a todos os gostos: “[...] visto o interesse que
despertava desde o rei até as senhoras da corte.” (ABREU, 2006, p. 45).
71
Portanto, estes indivíduos podiam ser entendidos como “biculturais”, ou seja,
expressão usada por Peter Burke para denominar aqueles que participam da cultura popular,
mas tinham acesso aos temas da pequena tradição:
Cunhei esse termo seguindo o modelo bilíngüe para descrever a situação de
membros da elite que aprenderam o que hoje chamamos de canções e contos
populares na infância como todo mundo aprende, mas que também participaram de
uma cultura “alta”, ensinada em escolas secundárias, universidades cortes etc, às
quais as pessoas comuns não tinham acesso. (BURKE, 2010, p. 18).
A partir dessa perspectiva, a literatura de cordel é um evento cultural promovido e
destinado a indivíduos “biculturais” (BURKE, 2010), por isso que associá-la somente a
cultura popular, culmina em um reducionismo crítico. Não obstante, há múltiplos aspectos
responsáveis por construir uma associação da literatura de cordel às camadas populares, tais
como: a venda dos cordéis serem realizadas em feiras e mercados populares; por vendedores,
na maioria das vezes, cegos ou analfabetos.
Os elementos estilísticos do texto também corroboravam para isso. Afinal, as obras
possuíam um enredo simples, baseado em concepções dualistas, caracterizadas pelo embate
entre bem o mal, cujos heróis eram idealizados; bem como a linguagem dos textos
apresentavam um vocabulário simples e coloquial.
Além do que, as edições eram impressas em folhetos de baixa qualidade e
comercializadas a baixo preço. Em razão disso, podiam ser acessíveis a um público variado.
Ou seja, há um sem-fim de elementos que corroboram para reforçar o vínculo entre o “cordel”
e o “popular” (NOGUEIRA, 2004).
Esta conexão só poderá ser desfeita, na visão de Nogueira (2004), ao se observar o
cordel sob a perspectiva da riqueza material de seus textos, considerando questões de natureza
bibliográfica, assim como todos os grupos que têm acesso a esses cordéis:
Mas não é menos verdade que este é um espaço textual procurado por grupos que
extravasam o conceito de povo enquanto grupo que ocupa o lugar da subalternidade
no sistema de distribuição social das oportunidades de acesso à cultura, à riqueza
material e imaterial e às decisões afetivas; como não é menos verdade que tal área
bibliográfica ostenta temas, motivos, formas, linguagens e estilos que pouco ou nada
confinam ou têm a ver com o que vulgarmente se entende “popular” ou “populista”,
sobretudo, no território descomunal da literatura dramática do cordel. (SARAIVA
1975 apud NOGUEIRA, 2004, p. 15).
Portanto, dada a complexidade do tema, a impossibilidade de uma conceituação de
tal evento cultural advém da própria natureza abrangente do cordel, conforme demonstra o
autor. Dessa forma a grande variedade de temas impressos, que podem ser populares ou
72
cultos, de autores anônimos, desconhecidos ou consagrados, em forma de versos, prosa ou
atos, destinado a um público amplo, dificultava uma termologia que abarcasse a múltipla
envergadura da literatura portuguesa de cordel.
De modo que a única coisa capaz de congregar esse universo textual desentoado era
o folheto: “[...] não há nada que unifique este material, a não ser questão editorial.” (ABREU,
2006, p.23). Portanto, esta modalidade cultural, até então considerada sob viés literário,
doravante será considerada como um gênero editorial:
Não se trata, portanto, de uma modalidade literária, de um gênero literário, e sim de
um gênero editorial. Talvez por isso as tentativas de definição tenham recaído com
tanta ênfase no suporte material e sobre as formas de vendas dessas publicações. Os
editores, sentindo o interesse de amplas camadas da população em tomar contato
com conjunto de textos em circulação no universo letrado, perceberam a
possibilidade de comercialização desse material, desde que seu preço fosse acessível
- daí a utilização do papel barato, a opção por um pequeno número de páginas, a
venda nas ruas –, e desde que o texto fosse adaptado para atender às necessidades de
um público pouco familiarizado com o estilo e com a estruturação dos textos
produzidos pela elite intelectual. (ABREU, 2006, p. 25, grifo da autora).
À vista disso, a única forma de elaborar uma definição satisfatória sobre um evento
cultural de proporções labirínticas, como o gênero editorial em questão, era considerá-lo tanto
a partir de seus elementos intrínsecos quanto os extrínsecos, de modo que possam atuar
sincronicamente na materialidade do texto. Assim, a autora conectou esses dois planos num
mesmo panorama conceitual, polarizando o enfoque editorial.
A partir de então, foi possível desenvolver parâmetros para a elaboração de um
estudo sistêmico entre as literaturas de cordel portuguesa e a de folhetos brasileira, com base
nos pressupostos teórico elaborados por Abreu (2006). Afinal, chegou-se de fato a uma
definição plausível do fenômeno global que circunscreve à literatura de cordel portuguesa.
A forma literária dos folhetos brasileiros começa a definir suas características
elementares entre o final do século XIX e os últimos anos da década de 1920. Assim sendo,
enquanto gênero literário, os folhetos apresentam características mais homogêneas, tais como
uma poética rigorosamente seguida e uma temática inspirada na vida do sertanejo.
Deste modo, há uma diferença entre as duas literaturas cotejadas, já que a de cordel
portuguesa é definida como um gênero editorial, enquanto a brasileira de folhetos é
considerada um gênero literário.
3.3 Literatura de folhetos brasileira, a sua autonomia
73
O fato de a literatura brasileira às vezes aparecer vinculada às tradições portuguesas,
não condiciona aquela apenas uma extensão desta, pois o intrincado processo de
interpenetração cultural envolve muitos fatores. Ademais, a aculturação de alguns elementos
culturais ao mesmo tempo em que une as respectivas tradições distancia-nas.
Concernente às produções artísticas desenvolvidas em solo brasileiro, a rigor,
sobressaem-se os elementos pátrios tanto na fase criadora quanto na fase de recepção da obra
pelo público. Este já havia se formado e se individualizado a partir das relações sócio-
histórico-culturais que modelavam a jovem nação:
A literatura de cordel, editada no Brasil desde a metade do século XIX, torna-se, nos
primeiros anos do século XX, um sistema literário complexo e independente do
sistema literário institucionalizado, com seus poetas, com suas casas editoriais;
pertencendo, geralmente, aos próprios poetas, com seus circuitos de distribuição e,
sobretudo com o seu público; um público de iletrados, senão analfabetos,
originalmente do mundo rural. (SANTOS, 2006, p. 59, grifo nosso).
Assim, tais elementos particularizam a produção literária brasileira, conferindo-lhe
autonomia, em razão de um conjunto de temas e obras aparelhado, destinado a um público
bem definido e, sobretudo, a partir da formação de artistas vernáculos manipulando todo um
arsenal cultural que florescia em solo brasileiro:
Mas, justamente porque é comunicação expressiva, a arte pressupõe algo diferente e
mais amplo do que a vivência dos artistas. Estas seriam nela tudo, se fosse possível
o solipsismo. Mas, na medida em que o artista recorre ao arsenal comum da
civilização para temas e formas das obras, e na medida em que ambos se moldam
sempre a um público, atual ou prefigurado (como alguém para quem se exprime
algo), é impossível deixar de incluir na sua explicação todos os elementos do
processo comunicativo; que é integrador e bitransitivo por excelência. (CANDIDO,
2006, p. 32, grifo do autor).
É com base nesse processo “integrador e bitransitivo por excelência” do processo
comunicativo, defendido por Candido (2006), que analisaremos a literatura de folhetos
brasileira. Dentro desta perspectiva, os autores, as obras, o público e sua recepção não devem
ser dissociados (CHARTIER, 1998).
Esses aspectos destacados por Candido (2006) variavam conforme o enfoque dado ao
processo artístico, isto é, na medida em que os primeiros grupos se manifestavam a partir da
definição da posição social do artista, bem como no arranjo dos receptores de suas produções.
Ao passo que os segundos grupos de análise eram pautados na forma e no conteúdo das obras
produzidas, enquanto os terceiros atuavam na sua transmissão. Aliás, o mercado editorial
assumiu um dos pilares da consolidação da literatura de folhetos como um gênero artístico-
literário.
74
Por isso, o autor destacou quatro momentos da produção, a saber: “a) o artista, sob
impulso de uma necessidade interior orienta-se segundo os padrões de sua época; b) escolhe
certos temas; c) usa certas formas; d) a síntese resultante age sobre o meio.” (CANDIDO,
2006, p. 31).
Assim, podemos inferir que a reunião de todos esses elementos nos permite analisar
nas obras artísticas as marcas identitárias das sociedades na qual são articuladas, sem,
contudo, desconsiderar a qualidade estética do texto literário.
Segundo Abreu (2006), uma das características mais marcantes da literatura de
folhetos brasileira, com relação à literatura de cordel portuguesa, é a uniformidade que essa
possui enquanto gênero literário. O conteúdo e a forma das obras seguem um padrão
rigidamente seguido por seus poetas e/ou editores proprietários e exigido pelos seus leitores
e/ou ouvintes.
Então, a partir de todas essas considerações o que seria a literatura de folhetos
nordestina?
Num evento patrocinado pela Universidade Federal do Ceará, ocorrido em 1976, que
tinha como finalidade discutir o tema, perguntaram a Raymond Cantel- professor da Sorbonne
e de alta eminência no assunto- definiu os folhetos brasileiros como uma espécie de poesia
narrativa, impressa e popular (LOPES, 1983).
Analisaremos alguns fragmentos do folheto A índia fidalga, do poeta João José da
Silva:
Hoje eu não posso contar
como em tempo de rapaz
porém com as rimas francas
a musa ainda me traz
vou contar o ocorrido
que se passou em Goiaz.
No ano mil oitocentos
um distinto portuguez
embarcou em Portugal
com a sua esposa Inez
pró Brasil e em Goiaz
sua residência fez.
Chamava-se o dito moço
Antonio Lopez Carneiro
tinha vinte e quatro anos
e além de ter dinheiro
era filho de um marques
de sua fortuna herdeiro.
Chegando ele em Goiaz
adquiriu duas datas
75
de terra por pouca coisa
ambas cobertas de matas
regadas por dois riachos
com gigantescas cascatas (SILVA,J.J., [19--]a, p. 1).
Primeiramente, este folheto nos chama atenção pelo título Índia fidalga. A partir daí
observa-se já a confluência das duas culturas, a portuguesa e a brasileira, interagindo no
mesmo ambiente sertanejo. O poeta introduz sua narração dizendo que vai contar um
ocorrido, que apesar da sua idade um pouco avançada, pode obliterar alguns detalhes da
história. No entanto, as minudências são trazidas à tona, ao serem rimadas.
Uma vez que as “rimas francas” às quais ele se refere no terceiro verso da primeira
sextilha são reavivadas pela musa, ou seja, a memória. Assim, podemos perceber claramente
essa ligação entre memória, tradição e cultura da oralidade. Destaca-se, desse modo, a cultura
da oralidade no arcabouço estrutural da narrativa.
Além do mais, há na temática narrada outra nuança que não podemos deixar de
comentar, pois se trata justamente de um acontecimento que resgata os primeiros momentos
da colonização portuguesa, já que conta a história de um fidalgo português, Antonio Lopez
Carneiro, que veio para o Brasil fazer fortuna.
A quarta sextilha descreve com detalhes o processo de colonização, no qual o
colonizador vai se apossando das terras brasileiras e impondo a sua cultura, fato que segue
descrevendo nas outras subsequentes:
O grande rio Araguaia
abrindo dois braços faz
a ilha do bananal
que por ser grande demais
era habitada por índios
ferozes e canibais.
Antonio Lopes morava
num monte bem descoberto
com mais de 50 escravos
com suas casinhas perto
quem fosse ali não diria
que o lugar era deserto.
Vivia de explorar minas
que lhe dava grande renda
ele então sem perder tempo
construiu uma fazenda
com mais de duzentas vacas
todas vindas de encomenda (SILVA, J.J.,[19--]a, p. 2).
Os versos acima refletem o patrimonialismo português, as grandes propriedades de
terras isoladas, a criação de gado, a escravatura constituindo um sistema de produção.
76
Entretanto, estes ganharam novos elementos autóctones brasileiros, como, por exemplo, a
presença do elemento nativo.
Dessa forma, o poeta polariza o conflito narrativo, matizando-o no choque cultural
resultante do contato estabelecido entre as duas culturas cotejadas, a da metrópole portuguesa
e a nativa brasileira. Destaca-se, por sua vez, a presença do imaginário português formado a
partir do que se pensava acerca do Brasil colônia e seus nativos, considerados selvagens e
canibais.
No respectivo folheto, o poeta resgata da tradição popular esse imaginário e o plasma
através da captura da família do fidalgo português Antonio Lopes e sua mucama por uma
tribo de índios canibais:
Num domingo as duas horas
eles iam passeando
Antonio com dona Inez
adiante conversando
e uma escrava com Celina
atraz os acompanhando.
Com a beleza do rio
foram descendo e chegaram
pertinho duma floresta
donde ligeiros pularam
uns vinte índios ferozes
e logo a Antonio o agarram.
Dona Inez devido ao medo
deu um grito desmaiou
e um índio moço e robusto
e ela logo amarrou
e outro com uma flexa
a escrava transpassou (SILVA, J.J.,[19--]a, p.3).
De um típico passeio de domingo da família portuguesa, uma situação dantesca foi
gerada; apreendidos, eles foram levados à tribo; a escrava morta foi devorada por eles,
enquanto os demais foram destinados a outros índios. Dona Inez foi oferecida ao filho do
cacique, e dom Antônio a uma de suas filhas – a pequena Celina –, que por ser uma criança
muito bonita, passou a ser disputada por muitos membros da tribo.
Diante de tamanha desgraça, Dona Inez se suicida, pois lhe apavorou a ideia de ser
desposada por um silvícola. Seu esposo pensou em fazer o mesmo, no entanto, não quis
deixar sua filha entregue à própria sorte, e por isso, o fidalgo português passou a viver
maritalmente com a índia Pamã, que a adotou como sua filha.
77
Celina cresceu entre os índios, e aos nove anos, foi resgatada por um bando de
bandeirantes. A pequena já estava adaptada à cultura indígena, entretanto ainda preservava
algo da sua cultura de origem:
Celina naquele tempo
seus nove anos fazia
e na linguagem dos índios
falava e compreendia
e também em português
alguma coisa entendia.
Perguntou Correia a ela:
- Quem foi que ensinou a ti
palavras da nossa língua?
e ela disse: Eu aprendi
na aldeia conversando
com o meu pai Antonio.
Então outro lhe perguntou
como se chamava ela
ela fitando a floresta
respondeu que o nome dela
era Celí e sorriu
se tornando a índia mais bela (SILVA, J.J.,[19--]a, p. 10, grifo nosso).
Então, a pequena fidalga Celina se transformou na índia Celí. Assim, podemos
observar este processo de interpenetração cultural, captado pelo poeta popular e vertido
artisticamente em folheto pela cultura popular nordestina, conforme se lê nos versos: “Celí
porque os índios/ na língua não tinha jeito/ de pronunciar Celina/ pois os índios têm defeito
de ser rude e por isso/ não pronunciavam direito” (SILVA, J.J.,[19--]a, p. 10).
Conforme vimos no folheto analisado, o seu eixo narrativo é estruturado de forma
linear e com um enredo extenso, mas simples, no qual os seus personagens não são
aprofundados psicologicamente. Há presença de elementos tipicamente populares com cenas
dinâmicas de aventuras, dramas pessoais e histórias de amor com um final feliz, sentimentos
de valor e honra, sobretudo.
A partir daí podemos formular dois quesitos que fomentaram as marcas da oralidade
nos folhetos: a grande quantidade de analfabetos presentes na região nordestina à época do
surgimento dos folhetos e a poesia cantada; ou seja, o gênero poético-musical “[...] chamado
repente ou cantoria, comum na região Nordeste do Brasil. Seus poetas são chamados
cantadores, repentistas ou violeiros.” (SAUTCHUK, 2012, p. 17).
Essa modalidade artístico-musical era eminentemente oral e anterior a literatura de
folhetos. Assim, as cantorias encabeçavam uma tradição poético-musical que corroborou para
a formação da literatura de folhetos:
78
Os folhetos de cordel, escritos quanto a seu modo de composição, podem ser orais
quanto à propagação e à fruição – visto que eles costumam ser declamados, e não
apenas lidos. Muitas modalidades de estrofes utilizadas na cantoria são também
comuns ao cordel que compartilha com a cantoria as mesmas regras de métrica e
rima. Ambos têm como temática recorrente o Nordeste pastoril (valorizando a vida
no sertão e a perspectiva do sertanejo diante do universo urbano), e são
simbolicamente identificados com esse universo social. Muitos cantadores afirmam
uma superioridade da cantoria em relação ao cordel, argumentando que fazem de
improviso algo que os cordelistas necessitam de mais tempo para escrever, e que,
por isso, todo cantador seria também capaz de fazer cordéis. Não é verdade: o cordel
exige a habilidade de criação de uma narrativa extensa “com começo, meio e fim”,
um sentido e uma moral da história. Esta capacidade não se faz presente na
habilidade do repentista para improvisar. (SAUTCHUK, 2012, p. 17, grifos do
autor).
De acordo com essa perspectiva, o estilo incorporado nos folhetos era,
sumariamente, tributário das cantorias. Porém, a literatura de folhetos e a poesia cantada, dos
desafios e cantorias são gêneros artísticos distintos.
Mário de Andrade, no texto Romanceiro de Lampião, fala-nos das duas principais
formas que a poesia do cantador nordestino assume: uma dialogada, e outra mais solista,
denominada Romance. Na primeira, há a presença de dois ou mais cantadores, e o elemento
da improvisação: “Porém, mesmo no Desafio grande número das estrofes surgidas, como de
improviso, são, na realidade, estrofes decoradas, extraídas da abundantíssima literatura de
cordel nordestina.” (ANDRADRE, 2012, p. 63).
No tocante ao Romance15, o autor enfatiza que esta modalidade é substanciada pela
poesia historiada, comunicando oralmente os fatos corriqueiros acontecidos no Brasil ou no
mundo. Posteriormente, tais histórias podiam ser coligidas pelo poeta popular, versificadas e
15 É importante fazermos uma distinção entre folhetos e romance, para que não haja interferência de terminologia
nas análises dos textos que faremos posteriormente. No E – Dicionário de termos literários de Carlos Ceia, o
termo Romance aparece em três entradas: 1) Termo em inglês para as línguas novi-latinas, latim medieval
romanice, ‘na língua românica’; 2) Designação usada na história da literatura portuguesa e galega para um tipo
de poema épico breve, destinado ao canto, transmitido e reelaborado por tradição oral, que corresponde no
âmbito peninsular, à balada europeia, e de que se conserva um conjunto de exemplares no chamado Romanceiro;
3) Forma aparentada com romaunt e roman,que no francês antigo significavam, aproximadamente, ‘romance
cortês em verso’ e ‘livro popular’. Sendo obras de ficção, os romances medievais tinham índole
manifestadamente imaginativa e não documentarista. Desde os seus inícios, no século XII, eram histórias
cavalheirescas de cometimentos extraordinários e até fantásticos, com um enredo abundante implicação
amorosa; com o tempo, passaram a ser em prosa, visualizando sobretudo entreter mas só ocasionalmente instruir.
Disponível em
<http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=328&Itemid=2> Acessado em:
17 de fev. de 2015.
Provavelmente, o folclorista Câmara Cascudo, ao se referir à acepção clássica do conceito, ele se remete ao
Romanceiro, amplamente cultuado na Península Ibérica. Entretanto, com relação à literatura de folhetos
brasileira, há uma diferença terminológica entre estes dois termos ‘folhetos’ e ‘romance’, como postula Santos
(2006, p.62): “Para simplificar a designação, chamaremos aqui de folheto, a todo texto escrito, publicado e que
circula e que foi vendido como tal, e romance a todo texto transcrito a partir de uma publicação oral.” Deste
modo, o romance seria uma das modalidades dos folhetos.
79
impressas em folheto. Logo, a forma do Romance das cantorias mantém uma estreita relação
com a origem dos folhetos impressos.
Com efeito, partimos do princípio de que o fenômeno literário, de forma ampla,
caracteriza-se como uma criação estética da linguagem. Portanto, não se realiza apenas
quando escrito; mas, manifesta-se também na modalidade oral (ALCOFORADO, 2008).
Sobretudo porque o enfoque dado à função da voz explora os recursos translinguísticos de
comunicação, tais como: o ritmo e as sonoridades, a fim de favorecer a memorização. Assim
que, podemos observar como os artifícios da vocalidade também foram reproduzidos aqui;
primeiramente nas cantorias e, a posteriori reverberaram nos folhetos. Ademais, percebe-se
ainda, as marcas da oralidade impressas no tom declamatório, na linguagem simples e, por
conseguinte, no tipo de verso muito próximo à fala:
Há unanimidade em se considerar o verso setissilábico o “mais natural” da língua
portuguesa, sendo, carinhosamente, batizado de “redondilha maior” [...] O povo a
usa frequentemente: “valei-me Nossa Senhora!” “Água mole em pedra dura, tanto
bate até que fura”... Nasceu no primeiro momento da língua, quando o galego e o
português ainda se confundiam no que chamaremos daqui por diante de galego-
português, da metrificação em latim litúrgico, em língua romance e em árabe
europeu da idade média [sic]. (WANKE, 1973, p. 26).
Com efeito, as raízes da literatura brasileira mantêm um forte vínculo com a cultura
da oralidade e sua recepção “[...] não abre mão do seu tempo comunitário” (AYALA, 1997, p.
161). Nesta, o artista popular – cantador e/ou repentista, contador de estórias e/ou poeta
mantém uma estreita relação com o seu público, cuja interação é fundamental para a
continuação da tradição
Segundo Oliveira (2012, p. 50), através da arte dos cantadores e/ou repentistas em
suas cantorias, observa-se “A necessidade de ver o cordel como ação poética que implica
considerar a sua oralidade latente.” Daí tem-se o aproveitamento desses recursos mnemônicos
mesmos em textos impressos, individualizando a poesia brasileira do sertão nordestino.
Ora, em se tratando da poesia expressa na literatura de folhetos, vemos o livre
trânsito do oral e do escrito a partir da tênue barreira, que ao invés de delimitar estes dois
tipos de modalidades, intercala-as.
As cantorias ganham força e relevância especialmente na respectiva região brasileira.
Infelizmente não há registro das primeiras cantorias nos três primeiros séculos da colonização,
e mesmo os registros coligidos não serem totalmente confiáveis, estes “[...] carregam consigo
uma marca fundamental: o caráter fortemente oral dessa produção, tanto no que tange à
composição quanto à transmissão.” (ABREU, 2006, p. 73).
80
Segundo Cascudo (1984b), os cantadores usavam como fonte de inspiração os
romances vindos de Portugal. Entretanto, esses textos passavam por um processo de recriação
enquanto etnotextos, na medida em que eram vertidos para sextilhas com o intuito de facilitar
o desenvolvimento melódico das habituais cantorias.
Esses artistas usavam os temas clássicos da tradição medieval e seus personagens
como modelos de comportamentos éticos ou intelectuais em suas canções, sob as quais ainda
pairavam uma anacrônica aura medieval de configuração de mundo:
Cavaleiros andantes, paladinos cristãos, virgens fieis, esposas heróicas, ensinaram as
perpétuas lições das palavras cumpridas, a unção do testemunho, a valia da coragem,
o desprezo pela morte, a santidade dos lares. O folclore santificado sempre para os
humildes, premiando os justos, os bons, os insultados, castigando inexoravelmente o
orgulho, a soberbia, a riqueza inútil, desvendo a calúnia, a mentira, empresta às suas
personagens a finalidade ética de apólogos que passam para o fabulário como termos
de comparação e referência. (CASCUDO, 1984b, p. 28).
Por isso, após tempo de caldeamento cultural, não era difícil estabelecer uma ponte
dialógica entre essas duas culturas construídas a partir das comparações e referências feitas
por aqueles que contavam as histórias; uma vez que estas compartilhavam um imaginário
comum, de modo a construir uma identidade coletiva. Ou seja:
[...] enquanto a mentalidade - grande denominador comum psicológico da espécie
humana-, não personaliza nem indivíduos ou grupos; os imaginários formas próprias
de os homens verem o mundo e a si mesmos, criam elos, geram e mantêm grupos,
despertam consciência social. Ao expressar valores coletivos, os imaginários dão ao
homem a sensação de pertencer não apenas ao seu momento, mas de fazer parte de
uma história. (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 82).
Com base nesses pressupostos, destacamos a maneira de como a sociedade sertaneja
se apropria dos imaginários recebidos da metrópole e o recriam, a partir de suas impressões
subjetivas. Em torno desses imaginários “[...] é que o sertanejo confronta, compara, coteja e
sente. [...] ele só está completo e perfeito dentro de suas leituras, dos ritmos das cantorias,
suas tradições guerreiras e religiosas.” (CASCUDO, 1984b, p. 24).
Deste modo, difundiu-se no sertão nordestino toda uma coleção de narrativas
advindas de muitos povos, como: árabes, francos, judeus, ibéricos e germanos, descrevendo as
aventuras de Carlos Magno, do Marquês de Mântua, de Roberto do Diabo, da Donzela
Teodora, Imperatriz Porcina, A Princesa Magalona, dentre outras.
Sobretudo porque a própria configuração sociocultural do Nordeste contribuiu para a
conservação quase “inalterada” dessas histórias. Ou seja, o isolamento das fazendas e
engenhos de açúcar, bem como a ausência de jornais da região, na opinião de Cascudo (1953,
p. 24):
81
[...] uma vida familiar mais intensa. Raramente o chefe da casa saía à noite. A dona,
os filhos, noras permaneciam fiéis ao serão habitual, candeeiro acesso, depois da
“janta”, fazendo sono, trabalhando nas obras maneiras, ouvindo a leitura tradicional
dêsses folhetos que vinham, de séculos, mão a mão, com seu público inalterável.
(CASCUDO, 1953, p. 24-25).
No tocante à critica literária é importante ressaltar a grande transformação artística
que estes textos em prosa sofreram ao serem transformados em versos pelos cantadores; estes
ao cantarem e/ou recitarem esse material artístico, o devolviam para a oralidade. A utilização
desses recursos estreitava os limites entre o escrito e o oral, mais uma vez.
Além do mais, nas produções nacionais começam a surgir as idiossincrasias: “Com
os feitiços da psicologia brasileira, o fastígio idiomático, saboroso de regionalismos
expressivos, de construções gramaticais curiosas, sinonímia esdrúxula e nova ou
simplesmente arcaica.” (CASCUDO, 1984b, p. 29).
Portanto, podemos falar de uma continuidade da cultura literária em solo brasileiro
assumindo as características nativas desse povo, impressas pelos poetas populares
responsáveis por captar todo este processo descrito e as transformaram em folhetos.
No que tangencia a formação do cânone, três grandes poetas destacam-se por definir
os seus modelos estéticos e textuais: Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista
e João Martins de Athayde16.
Segundo Abreu (2006), foi Leandro Gomes de Barros o pioneiro em codificar a
poesia oral e improvisada das cantorias para a forma impressa; como também o responsável
pela publicação sistemática dos folhetos. Santos (2006, p. 56) acrescenta ainda que “O
enorme sucesso editorial e popular do folheto, bem como seu modo de difusão, entre o oral e
o escrito, explica que os versos de Leandro tenham vindo substituir, na memória popular, os
textos de transmissão puramente oral.”
As primeiras edições dos folhetos apresentavam características específicas, como
descreve Terra (1983, p. 23): “Impressos em papel pardo, de má qualidade, medindo de 15 a
16 No que diz respeito ao movimento editorial dos folhetos, Lopes (1983) menciona que se iniciou com Leandro
Gomes de Barros, Chagas Batista e Pirauá. Embora se acredite que Leandro e Pirauá começaram a publicar
folhetos antes de 1900, não existem provas materiais desse fato. Em 1902, Chagas Batista publicou um folheto,
em Campina Grande, que existe até hoje na “Casa Rui Barbosa”, no Rio de Janeiro. Há outro de Leandro
publicado no Recife, em 1904. A partir dessas datas, Leandro e Pirauá dominavam o mercado de folhetos de
cordel. Depois de 1910, surgiram outros nomes de autores de folhetos, como Antônio da Cruz, Joaquim Sem
Fim, Cordeiro Manso, Manuel Viera do Paraíso, Antônio Guedes, Joaquim Silveira, João Melchíades, João
Martins de Athayde. Na década de 20, emergiu outra leva de poetas de bancada, como Romano Elias da Paz,
José Camelo de Melo Rezende, Manuel Tomás de Assis, José Adão Filho, Lindolfo Mesquita, Moisés Matias
de Moura, Arinos de Belém, Antônio Apolinário de Souza e Laurindo Gomes Maciel.
82
17 x 11 cm, os folhetos publicados entre 1904 e 1930 apresentam, na sua maioria, capas
ilustradas, com vinhetas.”
A autora destaca também que as capas e o número de páginas apresentavam as suas
particularidades; por exemplo, nas capas deveriam aparecer os nomes do autor, dos títulos dos
poemas e da tipografia e o endereço do local de venda. Com relação ao número de páginas,
podiam variar entre 16, 32 e 48 páginas.
No entanto, até 1930 predominavam as 16 páginas: “Os poemas, em sua maioria,
eram curtos, variavam entre 7 e 29 estrofes (70%) e 30 a 39 estrofes (20%). Apenas alguns
dos poemas sobre cangaceiros ocupavam 16 páginas.” (TERRA, 1983, p. 23).
Os poetas que se dedicavam à profissão precisavam garantir os direitos autorais e
propriedade dos textos. Para tanto, Terra (1983) enfatiza que além de seus nomes constando
nas capas, os seus retratos também eram impressos. Não sendo suficientes, outros dois
recursos passaram a ser usados para assegurar a autoria: os acrósticos e os registros das obras
na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Quanto às produções, os textos geralmente eram impressos em tipografias
particulares, entretanto, com o sucesso das vendas dos folhetos, os próprios poetas montaram
as suas tipografias particulares: “A partir de 1903 ou 1909 começam a funcionar tipografias
de poetas populares, mas só em 1918 é que a impressão de folhetos passa a ser feita quase que
inclusivamente nestas.” (TERRA, 1983, p. 24).
Por conseguinte, após a sua consolidação como modalidade literária no final da
década de 20, o ápice ocorreu entre as décadas de 20 a 50. Nesse espaço de tempo, havia se
consolidado uma rede de distribuição e centenas de títulos publicados, além de um público
assíduo e um comércio lucrativo. Aliás, nesse âmbito editorial, o poeta assume também a
função de editor. A figura do editor-proprietário é uma característica típica da literatura de
folhetos brasileira:
De toda forma, o negócio continuará lucrativo e se complicará ainda mais com a
introdução da figura do editor-proprietário, um poeta que comprava os direitos
autorais de um ou vários folhetos, pagando em dinheiro ou com exemplares da obra
impressa. Não se tratava de uma transação editorial como a que conhecemos hoje,
pois o editor adquiria também o direito de suprimir o nome do autor dos folhetos
publicados, ou mesmo substituí-lo por o seu próprio. (ABREU, 2006, p.102).
É quando surge João Martins de Athayde, o primeiro editor proprietário de renome,
que fez muitas mudanças na impressão dos folhetos. Portanto, consolidou o seu formato, de
modo que a forma gráfica do folheto estava instituída:
83
Vinculou a criação poética a um número determinado de páginas, sempre em
múltiplos de quatro, atendendo a demandas tipográficas e econômicas [...] e passou a
publicar uma única história por folheto, mesmo que para tanto fossem necessários
vários volumes. (ABREU, 2006, p. 104).
Quanto ao público dessa literatura, a grande maioria era constituída de analfabetos.
Então, o que justificava o sucesso de venda?
Ora, o que parece paradoxal é de fato facilmente explicável, dado a enorme
propagação desses folhetos em zonas rurais. Estes locais não apresentavam opções de lazer;
além do mais, os sistemas de comunicação eram deficientes. Por tudo isso, a leitura precisava
ser feita em voz alta e de forma comunitária.
Dessa maneira: “Uma grande tradição de pensamento, é verdade, considera e
valoriza a voz como portadora de linguagem já que na voz e pela voz se articulam as
sonoridades significantes.” (ZUMTHOR, 1993, p. 21).
Por conseguinte, essa produção poética estava pautada no valor da palavra viva,
cujas leituras performáticas se encarregavam da atualização da tradição, como bem da sua
perpetuação. Nesses termos, o que realmente significa um texto é a forma como ele é
aprendido. Desse modo tanto na leitura individual quanto na coletiva, a sua significância é
condicionada pelo efeito que causa nos receptores, por meio do espetáculo conduzido pelo
arcabouço da voz.
Terra (1983, p. 36) pontua que a divulgação dos folhetos era feita também nas
cidades e capitais: “Os romances, pelejas e mesmo as histórias sobre cangaço, deveriam
interessar ao público rural e urbano.” Em contrapartida, o perfil do público alvo sofreu
interferência do momento histórico:
No período estudado, a questão de como eram lidos os folhetos só pode ser
respondida indiretamente através do conjunto dos textos editados e na sua relação
com o momento histórico. A verificação do código de leitura do público é a base
para a compreensão da presença e permanência de alguns textos no Nordeste.
(TERRA, 1983, p. 36).
A recepção das obras é sumamente relevante, pois, ajuda-nos a compreender como se
deu a permanência de alguns textos no Nordeste. Dessa forma, destacamos a consolidação da
literatura de folhetos brasileira, que floresceu na região Nordeste no final do século XIX, e até
a década de 20 do século XX, havia alicerçado suas bases, como pontua Abreu (2006, p. 104):
“[...] definem-se as suas características gráficas, o processo de composição, edição e
comercialização e constitui-se um público para esta literatura.” Segundo a autora, esse
processo não se associa em nada à literatura de cordel portuguesa, sobretudo porque:
84
Aqui, havia autores que viviam de compor e vender versos; lá, existiam adaptadores
de textos de sucesso. Aqui, os autores e parcela significativa do público pertenciam
às camadas populares; lá, os textos dirigiam-se ao conjunto da sociedade. Aqui, os
folhetos guardavam fortes vínculos com a tradição oral, no interior da qual criaram
sua maneira de fazer versos; lá, as matrizes das quais se extraíam os cordéis
pertenciam, de longa data à cultura escrita. Aqui, boa parte dos folhetos tematizavam
o cotidiano nordestino; lá, interessavam mais as vidas dos nobres e cavaleiros. Aqui,
os poetas eram proprietários de sua obra, podendo vendê-la a editores, que por sua
vez também eram autores de folhetos; lá, os autores trabalhavam fundamentalmente
com obras de domínio público. (ABREU, 2006, p. 105).
Com base nessa perspectiva, mesmo com tantas diferenças significativas entre estas
duas modalidades, o ponto nevrálgico é a produção textual: “Os folhetos nordestinos possuem
características próprias que permitem a definição clara do que seja esta forma literária.”
(ABREU, 2006, p. 105).
Assim sendo, uma das principais características desse gênero literário é formação de
ciclos; então, a partir de agora, centraremos a nossa atenção no ciclo carolíngio dos folhetos
brasileiro. Este é o ultimo reduto do “universo configuracional carolíngio” (CORREIA,
1993).
No próximo tópico discutiremos a constante recriação da matéria da França e sua
apropriação pelo poeta popular que inspirou a formação de um pequeno ciclo de folhetos e
sobre a sua importância para a formação e a consolidação do respectivo gênero literário no
Nordeste brasileiro.
3.4 O ciclo carolíngio dos folhetos nordestinos
Segundo Abreu (2006) uma das grandes particularidades dos folhetos brasileiros é a
temática da vida cotidiana dos nordestinos inspirando tais produções. No entanto, com base
no que discutimos até aqui, muitos folhetos também se inspiraram nos imaginários herdados
do colonizador ibérico, dentre os quais destacamos o cavaleiresco medieval.
Em nosso estudo, a atenção se centra neste imaginário configurado em torno da
matéria da França, como o que aparece nos versos: “Os cavalheiros pararam/ e tiveram muita
alegria/ em medir as suas armas/ com o poder da Turquia/ desembainharam as espadas/ a
ver o que parecia” (ATHAYDE, 1960, p. 11).
Ao analisar o ciclo carolíngio, um dos temas compartilhado por ambas as literaturas
cotejas, podemos de fato compreender como este processo de apropriação se dar no universo
do conto popular. Além do mais, o conjunto de folhetos inspirados por esse ciclo ajuda na
compreensão de como os poetas populares constroem o seu repertório. Este resulta das
85
“brechas” culturais que se formam a partir do intercâmbio de culturas heterogêneas
(CHARTIER, 2009).
Dentro de uma perspectiva de continuidade cultural, as histórias carolíngias recriadas
no Brasil são um exemplo de como a literatura popular brasileira é rica e complexa,
sobrepondo gêneros textuais diversos, a fim de reintegrar, amalgamar e comportar a “massa
literária” trazida pelo colonizador europeu ao novo contexto sociocultural: o sertão nordestino
(CASCUDO, 1953).
Aliás, a total compreensão do fenômeno de hibridização cultural nos ajuda analisar
como acontece a composição dos folhetos brasileiros a partir de suas engrenagens primícias;
com o propósito de entender como os recursos exógenos de outras culturas não foram capazes
de interferir na natureza autóctone de suas narrativas, tampouco na qualidade estética dos
folhetos.
Muito pelo contrário, dotaram-na de um cabedal antiguíssimo da milenar cultura
europeia, enriquecendo-a culturalmente e, graças ao qual, a tradição literária brasileira
ascende a histórias como às do Imperador Carlos Magno e aos seus lendários cavaleiros
medievais, que datam do século VIII, por exemplo, como se lê nos versos: “Os 12 pares
encontraram/ o general Almendrol/ trazia vinte mil homens/ tudo soldado espanhol/ então
travou-se combate/ tremendo os raios do sol” (ATHAYDE, 1960, p. 5).
Sabe-se que o ciclo carolíngio presente nos folhetos brasileiros permanece no
universo sertanejo por questões do imaginário, através da linguagem e, sobretudo, por meio
de suas figuras arquetípicas pautadas em ideais de valentia e destemor que, através dos
mecanismos adaptativos, elaborados pelos poetas populares, recriaram-nas acomodadas ao
contexto sociocultural do povo nordestino que delas se apropriou.
Durante séculos, o homem do sertão enfrentou sempre lutas violentas. Primeiro,
contra os índios e as grandes intempéries naturais; segundo, pela posse da terra e contra
adversários políticos. Por isso que, o sertanejo aprendeu a admirar o homem destemido e
valente. Daí a figura do herói ser construída sob a “[...] coragem pessoal, o desassombro, o
arrojo e a intrepidez de enfrentar um ou vários adversários sem hesitação.” (SIQUEIRA,
2007b, p. 270). Isto é uma constante na matéria carolíngia, como aparece refletido nos versos:
“Os valentes paladinos/ vendo todas lanças armadas/ avançaram nos cem homens/ com suas
cortantes espadas/ mataram então todos os cem/ logo em poucas cutiladas” (ATHAYDE,
1960, p. 11).
De acordo com Ferreira (1993) os folhetos nordestinos gerados a partir das façanhas
de Carlos Magno e das aventuras de sua hoste possuem tendências pré-modernas e arcaizantes
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enquanto um grande texto que se estrutura através dos mesmos códigos sem, contudo,
desconsiderar as suas variações, conforme ilustram os versos: “Então chegou a polícia/ a
guarnição investiu/ uniu-se logo a Roldão/ Ricarte da Normandia/ eles só dois paladinos/
lutando com a Turquia” (ATHAYDE, 1960, p. 22, grifos nossos).
A presença da polícia lutando com os paladinos, por exemplo, fazem como os textos
recriados se individualizam através de um processo de adaptação, cujas soluções encontradas
pelo poeta popular não o desligam de uma memória narrativa precedente; tampouco
desconsidera a sua sociedade de origem, bem como o público para qual dever direcioná-la
doravante (FERREIRA, 1993).
O imaginário que realimenta a matéria da França tem sua origem histórica. Porém, a
partir do século XII, converte-se em matéria literária. Segundo Siqueira (2009) o mito
carolíngio se origina numa antiga tradição oral francesa inspirada em um fato histórico: a
batalha de Roncesvales. Essa contenda foi tratava entre a tropa de elite de Carlos Magno e o
exército do rei serraceno Marcilio, de Saragossa, em 15 de agosto de 778, na região de
Navarra, situada entre a Espanha e a França. Nessa fatídica batalha perecem os Doze Pares de
França, conforme descreve os documentos históricos.
Correia (1993) aponta com fontes documentais da respectiva altercação duas obras
contemporâneas: Vita Caroli Magni, uma biografia escrita por Eginhardo por volta de 830; e
os Anais Reais, texto histórico sobre o Império Carolíngio. Embora conste nos relatos oficiais
que a hoste guerreira de Carlos Magno morre numa emboscada de guerreiros bascos, o poema
épico La Chanson de Roland (2004) escrito entre 1087 e 1090, reelabora o mito carolíngio e o
transforma em matéria literária.
Este poema narra à respectiva luta no desfiladeiro de Roncesvales, na qual Roland,
líder dos cavaleiros e sobrinho dileto do Imperador perece, juntamente com Olivier, o
arcebispo de Turpin, Ricarte, Guy de Borgonha e os demais paladinos. Porém, adiciona um
elemento novo à matéria: não são os bascos os autores da emboscada à hoste carolíngia, senão
os mouros mulçumanos. Desse modo, alteram os dados históricos registrados oficialmente nas
duas obras mencionadas e reescrevem a lenda carolíngia sob a visão dos cronistas que
estavam a serviço dos reis cristãos (SIQUEIRA, 2009).
Assim, literariamente o “universo configuracional carolíngio” é modificado e
redirecionado, polarizando, por sua vez, a luta dos cristãos contra os mouros (CORREIA,
1993). Conforme o poema, Carlos Magno não consegue evitar a tragédia. Chega tarde demais.
Porém, mata todos os inimigos mulçumanos, mostrando clemência apenas àqueles que
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quiseram se batizar, como foi o caso da esposa do rei Marcilio e de alguns mouros
sobreviventes.
Logo, a batalha de Roncesvales, que aconteceu no século VIII, foi alvo de recriações
ao longo da Idade Média por parte de poetas e jograis. O fato do ataque aos francos ser
realizado pelos mouros e não pelos bascos, como aponta a história oficial, denuncia que
histórias de Carlos Magno foram escritas e transmitidas em plena época da Reconquista e das
Cruzadas.
Sobre o tema das modificações da lenda carolíngia pela Igreja, Siqueira (2009, p. 6)
postula:
Somente no final do século XII, com a atuação dos monges de Cluny e de Cister,
que difundiram a matéria carolíngia e a associaram a retomada do túmulo de
Santiago de Compostela, essa visão passa a mudar lentamente até chegar ao ponto
em que os heróis da famosa batalha de Roncesvales constarem em cancioneiros,
romances e crônicas ibéricas. Já no século XV, verifica-se na Península, uma
enorme profusão de novelas e romances de cavalaria sobre o tema.
O poema épico La chanson de Roland (2004) recria no imaginário popular um dos
grandes cavaleiros Roland e imortaliza a hoste carolíngia. Ademais, esse personagem
carismático e seus companheiros são convertidos em mártires do Cristianismo;
potencializando, por assim dizer, o status mítico da matéria carolíngia ao morreram
defendendo a causa cristã.
Em razão disso, essa narrativa foi a grande responsável pela propagação do mito
carolíngio entremeado de preceitos da Cristianismo medieval na Península Ibérica, lugar onde
estas lutas político-religiosas foram mais intensas. Por conseguinte, foi esse imaginário que
chegou ao Novo Mundo mantendo uma relação direta com a literatura de folhetos brasileira,
conforme ilustram os versos abaixo:
Vitoriosa campanha contra
os árabes da Espanha
que terminou com a morte
de Rolando sem fasanha
em Ronces Valles foi
mesmo de tira manha.
Esta guerra foi a maior
que Carlos Magno enfrentou
foi incalculável
quantos ele matou
sua espada respeitada
muitas cabeças cortou.
Guerreiro hábil e político
do poder extraordinário
88
tinha uma força oculta
quando era necessário
mas por ter fé em Deus
não temia o contrário (FREIRE, [19--], p. 2, grifo nosso).
Retomado a temática narrada no poema épico La Chanson de Roland (2004), os
versos retirados do folheto A história de Carlos Magno e dos doze pares de França, do poeta
popular João Freire Lopes, refletem o imaginário que foi construído a partir da batalha de
Roncesvales, recriado-a no sertão nordestino.
As rivalidades seculares entre estes dois povos e suas divergentes crenças religiosas
passaram a ser o pano de fundo das inúmeras novelas e romances cavaleirescos que se
inspiraram na matéria carolíngia. Esta temática foi apropriada por muitos países e diferentes
continentes, e, por conseguinte as alterações eram inevitáveis. Porquanto deviam ser
adaptadas a novos contextos socioculturais.
A título de exemplo do que acabamos de discutir, escolhemos dois fragmentos do
folheto A prisão de Oliveiros, nos quais Ferrabraz, filho do Almirante Balão, suplica ao pai
para que ele se convertesse ao Cristianismo:
Ali Ferrabraz
aos seus pés se ajoelhou
banhado em pranto rogou
não adorar ídolos mais
dizendo: é satanaz
que o vive perseguindo
meu pai está se iludindo
quando o Eterno o chamar
o senhor ha de chorar
o demônio entra sorrindo.
Se o meu pai fosse cristão
como Carlos Magno é
se lutasse pela fé
tivesse religião
não indo contra a razão
como um rei cristão não vai
pois da lei de Deus não sai
se em Deus tivesse esperança
nem dez mil pares de França
não venceriam o meu pai (SILVA, 1958a, p. 42-43).
Como base nos versos, observamos como o seu imaginário bélico-cristão era
propagado no sertão, lugar em que foi bem acolhido. Sobretudo porque, no Nordeste
brasileiro, a estrutura social rural e patriarcal contribuiu para uma maior aceitação dos ideais e
valores que estes cavaleiros cristianizados representavam.
89
A saber, os paladinos se afinaram com herói popular sertanejo, uma vez que são
personagens-símbolos, representando anseios coletivos, ao passo que também desenvolviam
uma função social na sociedade nordestina. (PELOSO, 1996).
Estes cavaleiros eram a imagem ideal dos que lutavam por uma causa maior, a ponto
de darem suas vidas em prol daquilo que acreditavam e, no caso, era a fé cristã. Mas não
somente isso, eles representavam o Bem, enquanto os mouros personificam o Mal que
precisava ser extirpado, tal como refletem os versos: “Ali Roldão respondeu/ se ainda não
conhecia/ o carrasco da Turquia/ repare bem quem sou eu/ braço que nunca torceu/ milhões
de turcos armados/ grandes guerreiros falados/ vassalos velhos escolhidos/ por mim já foram
abatidos/ - estão no livro de finados” (SILVA, 1958a, p. 24).
Daí o conflito chegava ao nível da mentalidade ao simbolizar o maniqueísmo
presente em toda a história da humanidade: a luta do Bem contra o Mal, no qual o “[...] mouro
ou turco vai assumir o papel de permanente antagonista, de pretexto à conversão como
proposta de uma moralidade cristã, que implica sempre mudança.” (FERREIRA, 1993, p. 3).
Conforme se lê nos versos: “Eu venho comissão/ do meu tio imperador/ que manda dizer ao
senhor/ que se fizesse cristão/ do contrário em sua mão/ havia de se acabar/ ele havia de
botar/ deixando exemplo ou mostra/ o senhor dê-me resposta/ que é necessário levar”
(SILVA, 1958a, p. 45, grifo nosso).
Além disso, não era muito difícil identificar os cangaceiros como os personagens das
novelas e romances cavaleirescos, a partir de uma imagem idealizada de herói considerando o
contexto sociocultural violento em que o sertanejo estava inserido, assim como exemplificam
os versos de abertura do folheto Encontro de Lampião com Antonio Silvino: “Para quem
gosta de ler/ história de valentão/ que sangra o outro na guela/ e apara o sangue na mão/ eu
vou versar o encontro/ de Silvino e Lampeão” (LEITE, [19--], p. 1).
Afinal, esses tipos de “heróis do mal” (SIQUEIRA, 2007a) por meios de suas ações,
expressavam os desejos mais íntimos do sertanejo, almejando justiça e hombridade ante as
atrocidades acometidas pelos grandes latifundiários, reproduzindo, por sua vez, a luta do Bem
contra o Mal. Assim como os que aparecem nos versos do já citado folheto: “Então Silvino
tornou-se/ num terrível cangaceiro/ respeitado no sertão/ e no dedo era ligeiro/ de vez em
quando ele estava/ visitando um fazendeiro” (LEITE, [19--], p. 4, grifo nosso).
Deste modo, os valores e os sentimentos que os personagens carolíngios agregam
serem tão cultuados na tradição popular, quanto irradiados a outros personagens que, através
de um bom combate, defendem a justiça:
90
Os sentimentos de valor e de honra, que estão na base dessa representação popular,
explicam também a extraordinária fortuna, nessa como em tantas outras literaturas
populares, do ciclo épico ligado a figura de Carlos Magno e dos Doze Pares de
França, que celebra no bandido o paladino do povo. (PELOSO, 1996, p. 105).
Segundo o autor, esse ideal de herói destemido, associando o bandido ao justiceiro,
cultuado pela cultura popular, justifica uma fortuna literária em que estes personagens
representados como os “paladinos do povo”, para usar um termo do autor. Conforme refletem
os versos abaixo:
Arranjou um bacamarte
e matou primeiramente
o que matara seu pai
e ficou de sangue quente
daquele dia em diante
começou a matar gente.
[...]
não podia trabalhar
aonde ganhando vinha
dinheiro para comprar
carne, feijão e farinha
agarrou o bacamarte
a foi tomar de quem já tinha (LEITE, [19--], p. 3).
Estreitam-se, desse modo, os laços entre imaginários diferentes no tempo e no
espaço, estabelecendo uma ponte dialógica entre as culturas do Nordeste brasileiro
contemporâneo e a da Europa medieval através de questões de mentalidade (FRANCO
JÚNIOR, 1991).
Em síntese, a matéria carolíngia e os seus cavaleiros arquetípicos de bravura e
destemor amalgamaram-se aos da cultura local. Em vista disso, realimentaram os arquétipos
dos heróis populares sertanejos, tais como: os vaqueiros, cabras e cangaceiros.
Todos estes eram idealizados com base nos sentimentos de destemor e valentia que
estes simbolizavam, tal como se lê nos versos: “Lampeão era disposto/ muito ligeiro e sagaz/
trocava vida por morte/ era perverso de mais/ e Antonio Silvino era/ pior que Satanáz”
(LEITE, [19--], p. 1).
O ideal de morrer defendendo a fé cristã potencializa sentimento do destemor que
sempre se sobressai aos atos de violência que estes tipos possam cometer. Algo que parece
antagônico em um primeiro momento, dentro do contexto em que é circunscrito, torna-se
perfeitamente explicado e coerente. Assim como se lê nos versos: “O almirante Balão/
vendo-se ali indefeso/ ao imperador cristão/ esse de bom coração/ como um amigo o recebeu/
91
pedindo-lhe esclareceu/ que aos ídolos não adorasse/ disse que se batisasse/ qu’entregava o
que era seu” (SILVA, 1958a, p. 42).
Portanto, deparamo-nos com outro fator que possivelmente tenha contribuído para
esta grande aceitação da matéria carolíngia no Nordeste brasileiro: a religiosidade do
sertanejo. Ora, Carlos Magno trabalhava para Deus, sua coragem era dada pela Divina
Providência, tendo o poder de morte sob os ateus, bem como de clemência para com aqueles
que quisessem se batizar, conforme comprovam as sextilhas a seguir:
Carlos Magno prontificou
a trabalhar para Deus
mostrando sua coragem
combatendo os ateus
por isto era inspirado
para a defesa dos seus.
Luta contra os pagãos
que em Deus não acreditava
e seu poder tão fecundo
cada dia aumentava
ele só queria com ele
quem primeiro se batizava.
Ele era um enviado
do divino espírito santo
para defender a Igreja
nada lhe fazia espanto
sua coragem era luz
e a espada era o manto.
Nunca temi inimigo
nem também a sua potencia
sua força era invisível
dada pela providência
em defesa dos errados
a Deus pedia clemência (FREIRE, [19--], p.5-6, grifo nosso).
Deste modo, aliando-se aos ideais da Cristandade, da qual eram portadores, aos
sentimentos de valor e destemor tão apreciados pelos sertanejos, as histórias de Carlos Magno
e de seus paladinos encontraram na cultura popular nordestina um ambiente propício para
florescerem.
No entanto, embora a fama do ciclo carolíngio tenha se difundido na tradição
popular, a que se propagou no Brasil tinha a sua origem impressa e culta. Com relação ao
tema, Cascudo (2001) esclarece que,
Mas, curiosamente, essa fama ilustre que se tornou tradição popular no Brasil não
teve fonte oral e sim origem impressa, perfeitamente identificável [...] Os versos
registrados por Leonardo Mota no Ceará e a função belicosa dos doze pares de
França no território “contestado” de Paraná-Santa Catarina, no Sul do Brasil,
denunciam a procedência letrada e culta. É a História do Imperador Carlos Magno e
92
dos Doze Pares de França, nas edições de Lisboa, 1723, 1728, 1789, tradução de
Jerônimo Moreira de Carvalho, físico-mor de Algarve, e que representam
recapitulações e edições dos vários livros sucessivos, antes da forma definitiva que
alcançou nos princípios do século XIX. Já em 1820 editava-se na Bahia, in-octavo,
nas três partes, e as reimpressões portuguesas e brasileiras foram determinantes
informadoras dessa “cantoria” sertaneja ainda em nossos dias. (CASCUDO, 2001,
p.44- 45).
Segundo o autor, no Nordeste o texto fonte que inspira os folhetos é a História de
Carlos Magno e dos Doze Pares de França (1863), de Jerônimo Moreira de Carvalho.
Atribuem a sua origem à versão espanhola Historia del Emperador Carlomagno y de los
Doce Pares de Francia: e de la cruda batalla que hubo Oliveiras com Ferabrás, Rey de
Alexandria, hijo del grande Almirante Balan (1525), editada em Sevilha por um alemão
chamado Jacob Cromberger; entretanto, essa versão já era uma tradução francesa de Nicolas
de Piamonte; tratava-se de uma edição de 1478 escrita sob o nome de Fierrabrás.
O fato é que essa história francesa sofreu diversas alterações e acréscimos do século
XIII ao século XVIII17. No entanto, a tradução portuguesa de Jerônimo Moreira de carvalho
“[...] acelerou o ritmo circulatório [...] com passagens mais tumultuosas e cativantes do gosto
popular.” (CASCUDO, 2001, p. 45).
Entretanto, vale salientar que a literatura popular deixou suas marcas de forma mais
contundente, tento em vista que o ciclo carolíngio foi transmitido pelo romance cortês o que,
na opinião de Ferreira (1993), consta no romanceiro ibérico e, por conseguinte, chega ao solo
brasileiro por intermédio do conto popular.
Na opinião de Cascudo (1953, p. 30) a permanência das obras cavaleirescas ao longo
dos séculos justifica-se pelo fato de que “[...] traziam elas para o povo os sentimentos vivos de
sua predileção espiritual. Reviviam nas páginas pobres o encanto da virtude e o castigo dos
vícios detestados.” Tais elementos estavam no plano psicológico e estabeleciam uma
identidade emocional com os seus leitores.
17 Vale ressaltar que das inúmeras alterações e acréscimos em Portugal temos: “Vida do Façanhoso Roldão,
Lisboa, 1780, com 211 quadrinhas. E há em Senhora das Neves, concelho de Viana do Castelo, o Auto de
Floripes (Cláudio Basto, Silva Etnográfica, Porto, 1939), onde o ‘Partido Cristão’ é chefiado por Carlos
Magno e o ‘Partido Turco’ pelo Almirante Balão, e seu filho Ferrabrás que é vencido por Oliveiros. A princesa
Floripes, filha do Almirante Balão, apaixona-se pelo cavaleiro Guido de Borgonha, com que termina casando.
É assunto do livro II, Parte I do Carlos Magno de Moreira de Carvalho. Era o motivo emocional da canção de
gesta francesa do século XII, Fierabrás, pertencente a uma outra anterior e perdida, La Destrucción de Roma.
O Fierabrás resistiu nas impressões da Bibliothèque Bleue em França, distante e lógico provocador do Carlos
Magno na Espanha e Portugal, o primeiro desde o século XVI e o segundo no século XVIII. No Brasil o
Carlos Magno foi motivo de inspiração popular em muitos episódios que apareceram versificados, cantados,
constituindo folhetos de ampla divulgação, como a Batalha de Ferrabrás, A Prisão de Oliveiros, A morte dos
Doze Pares, pelos poetas Leandro Gomes de Barros, João Martins de Athaíde, José Bernardo da Silva, Marcos
Sampaio, editados na Paraíba, Pernambuco e Ceará, com infalível mercado consumidor entre o povo e perfeita
ignorância dos letrados.” (CASCUDO, 2001, p. 45-46).
93
As aventuras protagonizadas por estes paladinos e seus companheiros são elementos
básicos da cultura popular brasileira (CANTEL, 1968). Estes tinham tanta notoriedade no
imaginário popular, que muitas vezes conseguiam ultrapassar os limites da ficção. Por isso,
era difícil encontrar outra literatura para rivalizar com estas produções, uma vez que tais
produções conseguiam traduzir o pensamento literário dos seus leitores, de forma simples e
natural. Isto aparece refletido no folheto de Cripiano Batista de Sena, intitulado O assassinato
de João Caetano e a vingança de seu filho.
O folheto narra à história de João Caetano, um homem muito pobre que vivia no
sertão, cujo único filho foi batizado com o nome de Oliveiros, em homenagem ao par de
França: “Batisou um filho que tinha/ com meses de idade/ deu-lhe o nome de Oliveiros/ de
muito boa vontade/ por ser nome de um herói/ que houve na antiguidade” (SENA, [19--], p.
1).
Assim com o cavaleiro carolíngio, o Oliveiros sertanejo era muito destemido. Este
teve o pai assassinado e, ainda menino, jurou vingar a sua morte: “Disse Oliveiros chorando:
/- minha mãe sou um menino/ mas hei de andar no mundo/ procurando este assassino/ até eu
tomar vingança/ vai ser êste o meu destino” (SENA, [19--], p. 18).
Deste modo, a coragem e a violência vão estreitando laços. Tal enlace tem o seu ápice
na cena em que descreve a morte do assassino do pai de Oliveiros, um vaqueiro chamado
Siqueira:
-Se meu pai não me educou
assassino desordeiro
porque tiraste-lhe a vida
infame vil, traiçoeiro
te prepara prá morrer
hoje nas mãos de Oliveiros.
Siqueira pulou para trás
com revolver na mão
atirou em Oliveiros
na mesma ocasião
Oliveiros desviou-se
o seu tiro foi em vão.
Oliveiros pulou em cima
com seu punhal e cravou
Siqueira vendo-se ferido
já no chão quando gritou:
me acuda quem não correu
que o menino me matou.
Oliveiros gritou dizendo:
- ó! assassino tirano
queres saber quem te mata
é o filho de João Caetano
94
o caçador que mataste
no Estado paraibano.
Deu-lhe outra punhalada
em cima do coração
depois saltou para trás
com seu punhal na mão
quando chegou a polícia
e deu-lhe voz de prisão (SENA, [19--], p. 21).
Tamanha reação violenta desta criança é justificada pela morte injusta do pai. Nesse
momento, o Oliveiros sertanejo se funde ao Oliveiros carolíngio, personagem corajoso que
mata a todos que se opõem aos seus ideais de hombridade.
Dessa forma, a coragem dos guerreiros e as suas façanhas estão sempre em volta a
temas de violência, uma vez que as suas ações são sempre justificadas por um motivo de força
maior, capaz de justificar qualquer ato de barbárie. Assim como os que aparecem no
fragmento do folheto A batalha de Oliveiros com Ferrabraz, no qual o par de França diz que
abaixo do seu Deus, só precisa de uma lança e uma espada: “Oliveiros respondeu:/ Ferrabraz,
fique sabendo/ que Deus tudo está vendo/ pois o mundo todo é seu/ um guerreiro como eu/
não vai atrás de cilada/ com Deus não me falta nada/ me basta os prodígios seus/ não que
mais nada do que Deus/ uma lança e uma espada” (ATHAYDE, 1976, p. 18-19).
A partir dos fragmentos coligidos, percebe-se a força do imaginário carolíngio na
literatura de folhetos. Ao analisar os dois “Oliveiros”, observa-se como todos esses elementos
elencados articulam as ações dos personagens, entremeando coragem e violência, tal como se
lê nos versos: Disse Oliveiros: “mamãe/ graças a Deus, fui-me bem/ vinguei a morte de pai/
a viúva disse: amém/ quem mata é bom ser morto/ pra saber a dor que tem” (SENA, [19--],
p. 23).
A respeito da valentia e de sua relação com o ato criminoso, Cascudo (1953, p. 31)
comenta que “A sugestão da valentia é irresistível para o povo, admirando no cangaceiro, no
bandoleiro audaz o destemor e não um ato criminoso.” À vista disso, Oliveiros sertanejo, que
mata friamente o assassino do pai é inocentado pela justiça dos homens e pela própria
consciência:
O coronel Paulino fez
um advogado decente
e depois de trinta dias
viu-se Oliveiros contente
porque no primeiro jure
foi solto publicamente.
[...]
Oliveiros viajando
95
sozinho sem companhia
pensava no que fizera
ao mesmo tempo sorria
por ter vingado uma dor
que a dez anos sofria (SENA, [19--], p. 22-23).
Com base na análise desse folheto, nota-se que embora o poeta tenha se inspirado em
um conteúdo preexistente, tal evento não interfere na sua capacidade inventiva. Pois, a
inovação surge justamente com a criação da poética que subjaz ao folheto. Esta advém da
recepção destes temas apropriados por uma nova sociedade, inserida em outro contexto
sociocultural. Sobre o tema, Ferreira (1993, p. 19, grifos da autora) postula:
Verifica-se a continuidade cultural ligando presente a passado com a mediação do
texto matriz e/ou com a intercorrência de textualidades outras. Uma variabilidade
que emana dos impulsos criadores e uma seleção onde se determina, de forma
concreta, como sobrevive a manifestação e como se realiza. O relacionamento
genético não é apenas necessário mas é a condição sem a qual não se percebe o que
acontece . Um cotejo diretamente matricial leva-nos a perceber a realização dos
folhetos matriciados, e no caso presente até a realização das categorias do
cavaleiresco, permitindo-nos avaliar por exemplo a intensidade e o teor da inventiva
popular.
Essa continuidade de que nos fala a autora, está inserida dentro de um processo
dinâmico de intercâmbios culturais, suscetível a transformações psicologias que vão
modelando os imaginários que inspiram a matéria literária. Sobretudo porque a recepção
nunca é a mesma.
No nosso corpus constam seis folhetos canônicos, os quais tiveram grandes tiragens
e várias reedições. Suas edições e reedições acompanham o início, a consolidação e o seu
auge da literatura brasileira de folhetos. Os poetas populares aclimataram-no à realidade
sertaneja. Os folhetos são: Batalha de Oliveiros com Ferrabraz; A prisão de Oliveiros;
Roldão no leão de ouro; O cavaleiro Roldão; A Morte dos doze pares de França; A história
de Carlos Magno e dos Doze Pares de França.
E com relação à autoria dos folhetos como equacionar esta questão, uma vez que os
textos são apropriados e adaptados pelos poetas populares ou editores proprietários, visto
que são narrativas inspiradas em um texto matriz?
Sabe-se que muitos folhetos são recriações de narrativas tradicionais muito antigas,
submetida à escritura de um artista popular, tal qual aconteceu com os do ciclo carolíngio.
Dentro deste quadro, o tema da autoria resulta ser algo complexo, já que o responsável pelo
processo de transposição de prosa a versos muitas vezes pode ser um cantador ou repentista, o
96
recitador ou interprete do texto, que nem sempre é de sua autoria; algumas vezes a autoria é
desconhecida. Esses autores passam a ser denominados de autores legião (BATISTA, 2013).
Na opinião de Correia (2006, p. 81) o autor legião “[...] ascende ao status de poeta,
que parte de uma tradição, para criar a surpresa, o novo.” Desse modo, o poeta popular do
Nordeste é uma peça fundamental na construção o universo cavaleiresco no Brasil em
folhetos.
Por este motivo que, a tradução de Jerônimo Moreira de Carvalho, apontada como
fonte matricial de todos os seis folhetos fontes do ciclo carolíngio, passou por um processo de
adaptação para ser recebida pela comunidade sertaneja. Caso contrário, não teria dado
continuidade ao gênero, haja vista que abordava assuntos inatuais, cujo contexto pretérito das
cavalarias e a matéria da França não formavam parte de nossos temas pátrios.
97
4 OS ELEMENTOS DE CRIAÇÃO LITERÁRIA IRRADIADOS PELO CICLO
CAROLÍNGIO
A história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França aproxima à temática
cavaleiresca e a matéria carolíngia do universo popular sertanejo. Sobre sua ampla divulgação
sertão adentro até a década de 50 do século XX, Cascudo (2001, p. 47, grifo do autor) relata
pormenorizadamente a sua difusão:
Era lida nas noites de inverno, como outrora o Amadis de Gaula, em voz alta, para a
família embevecida e concordante com as peripécias dramáticas, fervorosamente
comentadas como atuais. Todos os velhos cantadores profissionais a sabiam de cor.
Era documento comprovador da “ciência”, elemento natural do cantar teoria, sabatina da cultura popular. Não conhecer a História de Carlos Magno era
ignorância indesculpável, indigna dos bardos sertanejos, mesmo analfabetos.
Faziam-na ler, folha por folha, escutando, aprendendo, entusiasmando-se,
decorando, repetindo as façanhas, transformando-as em versos, em perguntas
fulminantes e respostas esmagadoras.
De acordo com o relato do autor, nota-se que através da “presença da voz”
(ZUMTHOR, 1997), as histórias carolíngias se presentificavam, atualizando-se
sincronicamente ao tempo do leitor e/ou ouvinte quando transmitidas oralmente. Dessa
maneira, as histórias carolíngias passaram a fazer parte da memória coletiva do povo
sertanejo. Logo, duas culturas se aproximam através do canal da literatura popular e suas
conexões psicológicas, o que na visão de Cascudo (1953, p. 27): “É um encontro de níveis, o
entendimento pela identidade mental, o entendimento e o elogio pela igualdade nas soluções
psicológicas, solidariedade pelo fraternismo da sensibilidade comum.”
Kunz (2011, p. 75) nos chama atenção para a volta do ciclo carolíngio na tradição
brasileira à sua origem francesa, destacando vozes constitutivas desta matéria “Esse caminho
de volta Brasil-França traz de modo simbólico a união de duas tradições irmanadas e o
percurso poético de textos e vozes que deram origens aos folhetos do ciclo carolíngio.” Com
relação ao longo processo que se inicia nas canções de gesta francesa até os folhetos
nordestinos, a autora menciona:
O processo que vai da gesta ou das várias gestas francesas até a história do
Imperador Carlos Magno e daí ao folheto nordestino, constitui um itinerário
pontuado de retomadas, ampliações, resumos, enfeites, traduções, comentários,
textos, vozes, prosas e versos, países e continentes. Roland, Orlando, Roldão
conseguiu seguir vivo nessa travessia tumultuada. Tudo começa (ou recomeça) com
o romance francês intitulado Les conquêtes du Grand Charlemagne, e outras
adaptações em prosa dos distantes e compridos poemas épicos da gesta medieval.
(KUNZ, 2011, p. 77).
98
Com base nessa perspectiva, há um longo itinerário de recriação artística que a
matéria da França sofreu desde sua origem. Este se inicia nas gestas francesas e termina nos
folhetos carolíngios brasileiros. O fato é que, apesar das várias transformações sofridas,
principalmente devido às inúmeras apropriações e recriações no transcurso de doze séculos
por diferentes civilizações, Carlos Magno, Roldão e os seus pares sobreviveram em essência.
Graças aos mecanismos de adaptação e da diversidade de gêneros que a utilizaram
como matéria literária- muitos dos quais ligados à cultura popular-, conseguiram comportar
narrativas antigas de diversas culturas imemoráveis, reinventando-as. Por isso, as histórias
carolíngias não foram descaracterizadas, bem como permaneceram na memória coletiva de
muitos povos com certo “frescor”.
Embora o ciclo carolíngio brasileiro dê continuidade ao gênero literário português da
novelística, pode ser considerado com um verdadeiro divisor de águas entre as duas literaturas
cotejas, em função da sua composição em versos, apresentando-se como elemento inovador
da literatura de folhetos brasileira. Daí ser esta matéria o ponto nefrálgico da nossa reflexão:
mesmo recebendo uma forte herança literária portuguesa, a literatura que dela se originou e
floresceu no Nordeste brasileiro é algo autóctone.
O seu sucesso justifica-se pelo grande número de edições e reedições dos folhetos
sobre o tema desde seu início até o final da década de 60 do século XX. Assim como aparece
refletido nos versos: “Sinforosa e Zé Garcia/ vivem prestando atenção/ ao livro de Carlos
Magno/ ler até por distração/ fala até da princesa Angélica/como casou com Roldão”
(SILVA, 1958b, p. 18, grifo nosso).
Possivelmente a temática guerreira e a valentia dos pares, articuladas por
memoráveis duelos, tenham corroborado para essa assídua presença da matéria da França no
cânone dos folhetos brasileiros.
Por tudo isso, analisaremos o eixo central dessas narrativas estruturado em torno do
combate e dos sentimentos de valentia e destemor, irradiando novos elementos de criação
literária, inspirando as figuras arquetípicas dos heróis populares sertanejos.
4.1 O combate
Na visão de Ferreira (1993) o combate é ponto de confluência de todos os elementos
cavaleirescos das novelas e romances. Ademais, é uma constante nessas produções. Algo que
também se comprova nas recriações carolíngias nos folhetos.
99
Os sertanejos também puderem se reconhecer nos personagens carolíngios através de
um “[...] nível de simpatia coletiva” (CASCUDO, 1953, p. 52), cuja valentia e destemor dos
pares foram usados como modelo, inspirando novos arquétipos de heróis, irradiando novos
elementos de criação literária, como os que aparecem nos versos a seguir:
Nesta história se vê
força, destreza e ação
brilho e procedimento
genio e disposição
bravura, honra e critério
de um rapaz valentão.
[...]
Rogaciano e os outros
disseram: o que é que se faz
de faca, foice e cacête
cada um que tinha mais
já parecia a batalha
de Oliveiros e Ferrabraz (SILVA, [19--]c, p.1-14, grifo nosso).
O grande responsável por tal processo de adaptativo na literatura de folhetos
brasileira é o poeta popular nordestino, conforme esclarece Ferreira (1993, p. 53):
O adaptativo, seja a maneira pela qual se exprime em nova fórmula o recebido,
conduz à inequívoca constatação de que a literatura popular do nordeste ajusta, de
maneira intensa e atuante, o legado da tradição oral ou escrita ao cânone de uma
cultura própria, ao esquema de uma ideologia acorda, discorda ou reabilitada.
Preside a estes fenômenos a sabedoria do poeta popular que, condiciona sempre
imperativos, aquilo que ele pretende que seja o alcance de sua mensagem junto ao
público.
Com base nesses pressupostos, a adaptação dos folhetos carolíngios, a partir de um
texto matricial, deve seguir uma fórmula preestabelecida tacitamente entre poeta e público.
Ou seja, além da capacidade inventiva do poeta popular que se encarrega de ajustar os
mecanismos adaptativos na passagem da prosa ao verso, faz-se necessário também que os
episódios escolhidos estejam em concorde com a ideologia do público sertanejo, a quem estas
produções devem ser destinadas.
A identificação do público com as histórias é essencial para o sucesso das vendas.
Pois, conforme discutimos anteriormente, neste contexto sociocultural a literatura que se
produz no Nordeste brasileiro desenvolveu um sistema de produção e recepção, no qual autor,
obra e público mantém uma relação dialética de colaboração mútua.
No Nordeste rural e patriarcal o que se buscava eram histórias de sujeitos corajosos e
destemidos, cujos atos de bravura e honradez articulavam cenas dinâmicas de ação, nas quais
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hábitos e referências à sociedade nordestina eram indispensáveis, bem como a linguagem
sertaneja, em sua máxima expressão de coloquialismo.
Por tudo isso que, mesmo seguindo um texto-matriz, a capacidade inventiva do poeta
se sobressaía, pois a liberdade criativa desses artistas populares residia nestas alterações feitas
no folheto. Conforme foi discutido antes, o poeta popular assume o status de “autor legião” ao
recriar o “novo” a partir de algo já consolidado pela tradição. Isso quer dizer que, com base no
texto português, eles reinterpretaram a matéria carolíngia e a adaptaram ao universo sertanejo,
inovando ao recriá-la em forma de versos setessilábicos. (BATISTA, 2013; CORREIA,
2006).
A fim de ilustrar o que foi discutido, analisaremos dois fragmentos de textos a seguir.
O primeiro fragmento foi retirado da História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares
de França, trata-se do capítulo C “Como Roldão passou os primeiros dias em Tristefea e da
conversa que teve com Angélica”; já o segundo, encontra-se no folheto Roldão no leão de
ouro, adaptado pelo poeta popular com base nesse episódio:
Quando Angélica viu o leão, ficou muito contente com o mimo tão pouco vulgar e o
mandou meter no seu quarto, para se divertir em vê-lo andar, quando estivesse só.
Quando se fez noite, Angélica recolheu-se à sua câmara e despediu as suas damas, o
que Roldão aproveitou para sair dentro do leão, pondo-se em pé no meio da casa.
Quando Angélica tal viu, perdeu o acordo, de susto, caindo desmaiada nos braços de
Roldão, que ficou muito aflito, pois ela ao tornar a si, podia gritar por socorro e o
descobrir. Sentou-a Roldão numa cadeira e pôs-se de joelhos a seus pés,
contemplando a sua grande formosura, que era muito maior vista, que retratada.
Tanto que Angélica recobrou os sentidos, lhe falou Roldão, para lhe provar a sua
boa vontade e a impedir de gritar. Disse-lhe quem era e porque estava ali, disposto a
tirá-la daquela cova, ou perder a vida em sua defesa. Falou-lhe do seu amor por ela,
amor nascido do retrato que comprara e ali estava presente, da sua nobre linhagem e
das acções que praticara. Mas Angélica estava receosa de que, sendo ele inimigo do
pai, se tivesse ali introduzido para praticar nela alguma malfeitoria. Mas em Roldão
tudo era protestos de amor e de juras que, como cavaleiro, só poderia socorrer damas
e nunca injuriá-las. E tais artes teve e tais finezas disse, que a princesa, por fim,
quase vencida, lhe deitou os braços ao pescoço e lhe disse, que se por amor dela
viera a intenção de a tirar dali, ela o meteria numa casa fechada, onde pudessem
praticar mais à vontade na forma de saírem os dois. (CARVALHO, [19--], p.158-
159).
Angélica então recebeu
o grande leão de ouro
ela puxava o leão andava
achou que era um tesouro
foi guardado no seu quarto
para dar alívio a seu choro
Quando foi meia noite
saiu pra fora Roldão
e quando Angélica viu
sair um homem do leão
foi atacada de medo
desmaiou caiu no chão
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Roldão levantou Angélica
sentou-a numa cadeira
achou-a ainda mais formosa
mais linda e mais fagueira
do que o lindo retrato
qu’ele tinha na algibeira
Quando Angélica tornou
Roldão lhe falou primeiro
dizendo: Angélica não temas
q’e sou 1 príncipe extrangeiro
sobrinho de Carlos Magno
imperador muito guerreiro
Eu comprei o teu retrato
que em meio peito repousa
para que fiques sabendo
não venho ver outra cousa
o que me trouxe a Turquia
foi te fazer minha esposa
Disse Angélica: cavalheiro
eu só temo uma traição
Que teu tio Carlos Magno
com meu pai vive em questão
se vens contra a minha sorte
tu voltas no teu leão
Disse Roldão: pois Angélica
me julgas contra a tua sorte
me mata com esta espada
que tem aço tão forte
eu morto por tua mão
de gosto perdôo a morte
Disse ela: nobre príncipe
se é este teu mister
se queres ser meu esposo
eu serei tua mulher
me roubais da Tristeféa
o mais breve que puder (ATHAYDE, 1960, p.16-17).
Conforme podemos observar a partir do cotejo dos dois fragmentos da matéria da
França, os versos do folheto mantêm-se fiel ao texto matriz. Embora a sequência de ações
sejam mantidas, o poeta usa mecanismos de adaptação para que a narrativa do folheto não se
distancie do sentido original. Haja vista que da passagem do texto escrito em prosa a versos o
corpo literário sofre alguns ajustes. Nota-se que para seguir a poética fixa que estrutura a
narrativa do folheto, algumas rimas são elaboradas com base no sentido que a interpretação do
texto em prosa sugere. Dessa forma, alguns detalhes supérfluos são omitidos, enquanto as
cenas principais são mantidas.
Ou seja: enquanto no original, temos: “Quando Angélica viu o leão, ficou muito
contente com o mimo tão pouco vulgar e o mandou meter no seu quarto, para se divertir em
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vê-lo andar, quando estivesse só” (CARVALHO, [19--], p. 158). Enquanto no folheto lê-se:
“Angélica então recebeu/o grande leão de ouro/ela puxava o leão andava/achou que era um
tesouro/ foi guardado no seu quarto/para dar alívio ao choro” (ATHAYDE, 1960, p. 16).
Observa-se, deste modo, como o poeta suprimiu alguns detalhes da cena para torná-
la mais dinâmica. Dinâmica essa, causada pelo próprio andamento do verso. Os recursos
mnomônicos, muito próximos à fala, facilitam a declamação e a memorização. Nesse
processo, destaca-se a função da oralidade mista, para usar um termo de Paul Zumthor
(1993), já que as histórias carolíngias mesmo recriadas em versos e vendidas em folhetos
impressos não se distanciavam da cultura da oralidade em sua divulgação, tampouco em sua
propagação sertão adentro.
As marcas da oralidade permeavam alguns espaços nos versos quando, por exemplo,
os espaços eram preenchidos por um saber prévio do poeta sobre o tema, sem, por isso,
acarretar uma mudança brusca no sentido geral; como, os que aparecem nos versos: “Roldão
lhe falou primeiro/ dizendo: Angélica não temas/ q’e sou 1 príncipe extrangeiro/ sobrinho de
Carlos Magno/ imperador muito guerreiro” (ATHAYDE, 1960, p. 17).
Enquanto no texto original, Roldão não se apresenta com tanta riqueza de detalhes:
“Disse-lhe quem era e porque estava ali, disposto a tirá-la daquela cova, ou perder a vida em
sua defesa. Falou-lhe do seu amor por ela, amor nascido do retrato que comprara e ali
estava presente, da sua nobre linhagem e das acções que praticara” (CARVALHO, [19--], p.
158-159).
A linguagem é outra grande ferramenta de adaptação. O texto em prosa é culto,
enquanto no folheto é recriado com expressões bem coloquiais, tal como: “Saiu pra fora
Roldão” (ATHAYDE, 1960, p. 16). Além disto, conserva-se algo de arcaico, como o que
aparece no último verso: “o mais breve que houver” (ATHAYDE, 1960, p. 17). Portanto,
nesse processo de recriação o poeta atua ora de forma conservadora ora de forma
vanguardista.
O fato é que os folhetos carolíngios têm uma origem culta, mas nas adaptações
sertanejas as barreiras são fluidas; a saber, eles vão do culto ao popular por meio da
linguagem num livre trânsito de palavras, no qual o tom eloquente do relato se junta à
espontaneidade do falar do homem do sertão, como os que aparecem nos versos: “Quando foi
meia noite/ saiu pra fora Roldão/ e quando Angélica viu/ sair um homem do leão/ foi atacada
de medo/ desmaiou caiu no chão” (ATHAYDE, 1960, p. 16).
Outro detalhe importante ainda em consideração à linguagem, diz respeito ao
imaginário medieval cavaleiresco que reverbera nos folhetos carolíngios, tal como: “Disse ela
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nobre príncipe/ se é este o teu mister/ se queres ser meu esposo/ eu serei tua mulher/ me
roubais da Tristeféa” (ATHAYDE, 1960, p. 17).
Estes avivam a idealização do cavaleiro que deve salvar a sua dama em perigo.
Assim, estreitam-se imaginários, pois este conjunto de imagens do universo cavaleiresco
medieval também passava a fazer do imaginário sertanejo, apropriado, adaptado e, sobretudo,
recriado através do poder mágico das palavras e da capacidade demiúrgica dos poetas
sertanejos.
Vale ressaltar que as imagens dos cavaleiros transcendem ao nível psicológico dos
arquétipos, atuando como força ou tendência à repetição de experiências típicas e
incessantemente revividas pela humanidade ao longo de toda sua história. Por isso há tamanha
identificação dos sertanejos com esses personagens arquetípicos e, consequentemente, a
projeção espontânea e natural dessa figuras no ambiente hostil e violento do Nordeste
brasileiro à época de surgimento da literatura de folhetos.
Outro mecanismo de adaptação utilizado é levar ao texto carolíngio hábitos do
cotidiano do sertanejo. Os fragmentos cotejados tratam de um episódio bem pontual, com um
contexto bem diferente do nordestino. Pois Roldão vai à Turquia resgatar Dona Angélica.
No intuito solucionar esse problema, o poeta seleciona dos episódios aquilo que
tenha uma questão ideológica de relevância para que sua comunidade possa se identificar e
interagir com a história.
No folheto analisado, enfatiza-se uma situação muito recorrente na região Nordeste à
época em estes folhetos surgiram: a disputa pelo poder. Isto aparece nos versos: “Disse
Angélica: cavalheiro/ eu só temo uma traição/ que teu tio Carlos Magno/ com meu pai vive
em questão/ se vens contra minha sorte/ tu voltas no teu leão” (ATHAYDE, 1960, p. 17,
grifo nosso).
Em síntese, embora utilizando um texto-matriz para a composição dos folhetos
carolíngios, os mecanismos adaptativos ao mesmo tempo em que conserva o sentido geral das
histórias, não agem como um fator limitador da criatividade do poeta popular. Uma vez que,
através da poética preestabelecida, a linguagem típica e, sobretudo, as marcas identitárias
permeando o texto original de “nordestinidade”, tem-se um fenômeno literário autóctone
brasileiro.
Deste intricado processo de apropriação da matéria carolíngia o sertão nordestino
ascende ao mundo da cavalaria andante da Europa medieval. Os seus guerreiros, as suas
atitudes nobres e heróicas, as provas, vitórias, dentre outras, giram entorno de uma das
grandes categorias do cavaleiresco: o combate. Sobre o tema, Ferreira (1993, p. 68) esclarece:
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Assume-se o combate com uma das mais abrangentes e definidoras categorias do
cavaleiresco, constantemente revelado, nas descrições dos torneios e justas ou
realizado na narrativa do encontro de cavaleiros em guerra. Percebe-se, entanto, que
o combate é muito mais que isso: parte que se faz todo, a própria razão para o
andamento do que se relata, justificativa de ações, realização do imaginário,
presidindo, de certo modo, ao próprio desenvolvimento global daquilo que é
narrado. Sua significação vai para além da luta, do jogo da discrição, contenda de
antagonismos permanentes em que bem/mal, castigo/galardão são entidades e
resultados, em que derrota/vitória, perdição/salvação levam fiéis ou infiéis a atuarem
dentro de concepções e delimitação rigidamente antagônicas, e às vezes
maniqueístas.
Nessa longa citação, podemos inferir a dimensão dessa categoria para as novelas e
romances cavaleirescos. Tudo o que acontece nessas narrativas é articulado pelo combate,
sendo justificado ou invalidado no mundo que ele configura, bem como atribui sentido aos
atos heróicos que nele confluem (BRAUN, 1975 apud FERREIRA, 1993).
Nesse folheto, em específico, cuja narração gira em torno do resgate da princesa
Angélica, o combate consiste na luta para vencer os obstáculos e seu auge se dá no momento
do salvamento da princesa do seu cativeiro: “Tratou a princeza Angélica/ com terna
estimação/ porque ia se casar/ com seu sobrinho Roldão/ Angélica contou-lhe tudo/ quanto
sofreu na prisão” (ATHAYDE, 1960, p. 33-34).
Assim sendo, este momento resulta para o herói com algo catártico, pois a prova foi
superada. E, nesse contexto, o mecanismo cavaleiresco reside no “[...] percurso diretamente
ligado ao resgate, à purificação ao objetivo maior, não importa quais sejam os obstáculos.”
(FERREIRA, 1993, p. 76).
Sabe-se que na Península Ibérica o evento cristão e mouro (MEYER, 1995) estava
em voga à época dos Grandes Descobrimentos. Portanto, tal evento polariza dois grupos a
partir de convenções sócio-religiosas. No primeiro, encontram-se os cristãos, representes
absolutos do Bem; no segundo, os mouros infiéis, representantes absolutos do Mal.
Com relação ao tema das dicotomias carolíngias nos folhetos brasileiros, Ferreira
(1993, p. 72, grifo nosso) defende que:
[...] ao assumirem-se as dicotomias apontadas em duas etapas, na cultura e na
literatura medievais, inaugura-se um outro estágio de processo de mais extenso
alcance, quando se passa das percorridas oposições Bem/Mal e cristão/serraceno à
Bem/Mal agora com outra concepção e simbolização. Explica-se que
cristão/serraceno realidade histórica incorporada e já sem funcionalidade afetiva,
passa a remeter a uma transferência, a um plano simbólico e ontológico funcionando
como par imprescindível e, ao mesmo tempo uma sugestão de outros conflitos e
dicotomias presentes.
Conforme a autora, a dicotomia cristão contra mouro transpassa os limites sócio-
religiosos e assumem, com o tempo, uma outra significação; ou seja, passam a representar
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valores e sentimentos a nível de mentalidade, altamente simbólicos. Dessa forma,
reconfiguram o ontológico combate da luta do Bem contra o Mal.
Neste contexto, os mouros atuam como os grandes antagonistas dos ideais cristãos e,
por conseguinte, foram representados como hereges nas novelas de cavalaria ibéricas. Algo
que podemos observar nesta passagem retirada do texto matricial, na qual o Almirante Balão,
rei de Alexandria, comete heresia ao saquear relíquias da Igreja:
Quando Carlos Magno ouviu as atrevidas palavras de Ferrabrás, perguntou a
Richarte de Normandia quem era o turco que atrevidamente ameaçava. Respondeu
Ricarte que era filho do Almirante Balão, rei de Alexandria, senhor de muitas
províncias e riquezas, e que fora a Roma, onde fizera grande saque, levando as
santas relíquias. Respondeu, então, Carlos Magno: “Espero em Deus que a sua
soberba há-de ser humilhada e abatida”. (CARVALHO, [19--], p. 20, grifo
nosso).
Ao longo da história a figura do mouro foi assumindo uma forma arquetípica
associada ao Mal. Isso também chegou à cultura popular nordestina e aparece refletida nos
folhetos, tal como demonstram os versos a seguir: “Aquele foi quem entrou/ dentro de
Jerusalém/ não respeitando ninguém/ até apóstolo matou/ no templo sagrado achou/ bálsamo
que Deus foi urgido/ na paixão do Redentor/ a coroa do Senhor/ tudo ele tem conduzido”
(ATHAYDE, 1960, p. 4).
Enquanto o turco era caracterizado como o anti-herói, Carlos Magno e seus paladinos
eram construídos como um modelo de herói exemplar, que defende a moralidade cristã, tal
como podemos observar nos versos abaixo:
Roldão foi um dos enviados
para defender a religião
com sua espada duridana
era sua salvação
cortava bronze, ferro e aço
e não perdia corte não.
Contou o almirante Balão
quantas batalhas enfrentou
e multidão de pagãos
ele com ela matou
defendendo sua lei
com fé no criador (FREIRE, [19--], p. 17-18, grifo nosso).
Conforme observamos as ações dos folhetos carolíngios estão pautadas no combate.
Para Ferreira (1993, p. 69) estas características se remetem a gesta primitiva, cuja “[...]
própria guerra, a vitória de determinadas posições simbólicas, numa relação de causa e efeito
[...] combate é cada folheto.” Tais características nos ajudam a entender o que talvez seria a
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grande marca de originalidade das composições brasileiras: o retorno à gesta primitiva,
desafiando o tempo e o espaço, conforme destaca Kunz (2011).
Além do mais, obliterando a violência dos combates nesses folhetos, sobressaem-se a
valentia e o destemor dos paladinos. Desse modo, evidencia-se a força da história-lenda
carolíngia que, após tantos séculos de inúmeras apropriações e recriações por diferentes
culturas, seus heróis conseguem transcender para além da ficção. Sobre o tema, Ferreira
(1993, p. 75, grifo nosso) comenta:
Herói para além da ficção, inter e paratextualmente, apesar de transmitido por
difusos recursos, respaldo por uma consagrada História-Estória, Carlos Magno,
lenda-verdade que reclama para si própria tempos e espaços definidos, modulação
de passados relatados a vivências regionais, substituição de um dia-a-dia que se vive
por uma corporeidade transcendente: virtude substitutiva, pés na terra e barba
florida, a justificar o desenvolvimento fiel do combate cavaleiresco aqui realizado.
É justamente essa “corporeidade transcendente” de que nos fala a autora, que o
poeta popular João Freire Lopes sintetiza nos versos a seguir que finalizam o folheto A
história de Carlos Magno e dos Doze Pares de França:
Em agosto de 1978
12 séculos completando
da morte de Carlos Magno
não sou eu quem está inventando
é a história que conta
e estamos comemorando.
Nossa pátria brasileira
por só existir cristão
achou conveniente
dá uma declaração
relativo a Carlos Magno
pela sua tradição.
Foi imperador cristão
defendeu o cristianismo
ele e 12 cavaleiros
com coragem e com civismo
sem saber que depois
ia cair no abismo.
Todos os brasileiros
vai comemorar o dia
15 de agosto próximo
que esta data irradia
se comemorando um rei
que antigamente existia.
Será lançado este livro
entregue de mão em mão
em memória de Carlos Magno
107
que lutou com devoção
defendendo a santa igreja
só devorando pagão (FREIRE, [19--], p. 42).
A partir dos versos coligidos, podemos inferir a força que Carlos Magno no Brasil
nas primeiras décadas do século XX, cuja matéria carolíngia ainda continuava sendo recriada
sob a intrepidez de seus memoráveis combates.
Vale ressaltar a natureza dialogada dos combates. Em algumas cenas, a disputa é
verbal, conforme ilustram os versos a seguir:
O turco disse: afinal
oh! cavalheiro lhe digo
só pode lutar comigo
se for de sangue real
porque se não for igual
recusarei a empresa
falo com toda franqueza
então Oliveiros disse:
pode crer como que visse,
minha origem é de nobreza.
[...]
Oliveiros já massado
disse ao turco: és um louco
levanta-te se não com pouco
hei de ferir-te deitado
que tempo se tem passado
nessas suas discussões
eu não vim ouvir razões
vim ao campo pelejar
tu és franco no falar
vamos ver tuas ações (ATHAYDE, 1976, p. 10-11, grifo nosso).
Retoricamente, o discurso do combate é cortês, pautado na ética cavaleiresca. Fato
que se observa nos versos assinalados. Ainda sob o tema da ética, destaca-se a figura de
Ferrabraz, rei da Alexandria:
Disse a hoste dos guerreiros
turco, tens uma atração
para roubar coração
dos mais duros cavalheiros
confesso, sou Oliveiros
minha fama tens ouvido;
Ferrabraz ficou sentido
de seus insultos primeiros
disse: desculpe, Oliveiros
não tê-lo bem recebido.
Aí tornaram a partir
em ordem de cavalheiros
disse o turco: Oliveiros
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não posso mais te ferir
vejo teu sangue sair
devido estais estragado
eu tenho o bálsamo sagrado
com que Jesus foi ungido
bebe-o porque estais ferido
bebendo ficas curado (ATHAYDE, 1976, p. 14-15, grifo nosso).
Este personagem nos chama atenção pela cordialidade e atitudes nobres condizentes
com o ideal da “ordem de cavaleiros”. A admiração proporcionada por Ferrabraz corresponde
à predileção do povo pela valentia.
No entanto, devido à grande campanha antiárabe que se iniciou na Reconquista, esse
personagem também exerce a função de enviado de Satanás no imaginário popular. Assim
como ilustra o folheto A chegada de Lampeão ao céo: “Foi Lampeão novamente/ Pelos
Santos escoltado/ Na presença de Jesus/ Foi Lampeão colocado/ Acompanhou por detraz/ O
tal cão Ferrabraz/ De Lúcifer enviado” (CAVALCANTI, [19--], p. 6).
Mas voltando ao tema das disputas verbais, estas substituem as ações, ao mesmo
tempo em destaca os termos canônicos do léxico guerreiro: “Depois de se levantar/ Ferrabraz
se preparou/ e a Oliveiros rogou/ que o ajudasse a se armar/ Oliveiros quis falar/ disse
Ferrabraz: lhe digo/ confio em minha nobreza/ eu não uso de vileza/ para com meu inimigo”
(ATHAYDE, 1976, p. 13).
Este combate de “palavras” em detrimento da ação, também aparece em outros
folhetos nordestinos. Assim como o que aparece no folheto História valente Vilela:
Fala o alferes na porta:
Vilela, tem paciência
me entrega tuas armas
eu não quero violência
trata de compor a casa
pra eu fazer diligência.
Diz-lheVilela: a cozinha
é do tamanho da sala
a grossura do revólver
é a grossura da bala
só ouço a voz la de fora
mas não vejo quem me fala.
Vilela, me abre a porta
veja que o cão atiça
meu revólver quebra tranca
ferrolho e dobradiça
meu punhal é sacarrôlha
arranca qualquer cortiça.
[...]
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Diz Vilela: seu alferes
hoje aqui ninguém me toca
brigo em pé, brigo deitado
pulo barraco e barroca
a bala batendo em mim
é milho abrindo pipoca (SILVA, 1957, p. 7-8, grifo nosso).
Nota-se nesses versos o tom coloquial, bem como o tom aforismático dos versos
assinalados em negrito. Soma-se a isso, a construção do diálogo na linguagem sertaneja e
tradição oral que está presente na estrutura poética do folheto. Por exemplo, enquanto na
matriz temos o fragmento: “Quando Ferrabraz se viu tão ferido, rogou a Oliveiros que o não
deixasse morrer, pois se queria fazer cristão e revelou-lhe, também que deixara dez mil
turcos emboscados, os quais, vendo-o vencido, certamente ocorreriam para resgatar”
(CARVALHO, [19--], p. 27-28).
No folheto, o poeta popular o reproduz de modo que as passagens que atestam a
presença do diálogo são mais cheias de detalhes e os relatos são bem próximos ao tom
coloquial:
-Nobre grande cavalheiro
(disse o turco arrependido)
agora estou convencido
que teu Deus é verdadeiro
grande, bom e justiceiro
ente de grande mister
faz tudo quanto ele quer
nele não há quem pise
te peço que me batize,
depois faça o que quiser.
[...]
E por detraz daquele oiteiro
tem dez mil turcos esperando
e mais q’e há-de vir chegando
cada qual mais cavalheiro
onde tem cada guerreiro
que só um tigre ou leão
homens de disposição
destros no jogo da lança
pessoas de confiança
do Almirante Balão (ATAYDE, 1976, p. 30-31).
A partir desses versos, percebe-se que o que foi acrescentado pelo poeta subjaz às
suas próprias interpretações da leitura. Ademais, percebem-se expressões típicas, como as que
estão destacadas. Nessas duas estrofes, sobressai-se a liberdade criativa do poeta, bem como
inovações que este incorpora à recriação da matéria da França.
110
Isso se repete em outros folhetos do ciclo carolíngio, tais como os que se lê nos
versos do folheto O cavaleiro Roldão: “- Roldão eu sou um gigante/ que nunca temo perigo/
força de quarenta homens/ é que carrego comigo/ só sofrerei sofrimento/ sendo em cima do
umbigo” (SILVA, 1960, p. 28, grifo nosso). Aqui, o diálogo é usado para que o gigante possa
apresentar as suas qualidades.
No entanto, há nessa descrição um tom de exageração nos versos assinalados.
Segundo Ferreira (1993, p. 83) o exagero “[...] está na matriz do folheto carolíngio e foi
utilizado por todos os novos narrados que daí partiram.” Segundo a autora, o exagero usado
pelo poeta popular na amplificação dos fatos na recriação poética de um texto em prosa,
também aproxima a narrativa dos folhetos ao primitivismo das gestas francesas, conforme
aparece refletido nos versos retirados do folheto A prisão de Oliveiros:
Naquela multidão
levando os prisioneiros
entregou os cavalheiros
ao almirante Balão
ele là como um leão
em desesperos fatais
igualmente satanaz
disse: desses quem venceu
o meu filho Ferrabraz?
Disse um dos exaltados
examinando primeiro
foê aquele cavalheiro
que traz os olhos vedados
estes cinco celerados
é custoso de vencer
é escusado dizer
da forma qu’eles lutaram
e dez mil vidas tiraram
para poder se prender (SILVA, 1958a, p. 6, grifo nosso).
Apesar do teor hiperbólico tipo dos relatos cavaleirescos, as adaptações brasileiras da
matéria carolíngia se aproxima das gestas francesas, graças à capacidade inventiva do “poeta
legião” (BATISTA, 2013; CORREIA, 2016), uma vez que:
[...] o que nos encanta e surpreende, apesar da presença determinante da fonte
ibérica, é a proximidade das formas de dizer do texto de cordel e da gesta primitiva
francesa. Pelo mistério de sua intuição poética, o poeta popular transpõe em versos a
prosa da novela de origem culta e ibérica do século XVIII. Ele então se aproxima da
expressão versificada que caracterizava o gênero épico primitivo. O que, no primeiro
instante, poderia parecer um desafio ao desenrolar cronológico da filiação literária já
mencionada, remete, na verdade, ao respeito incondicional do poeta popular à
tradição do verso heptassílabo e a sua despreocupação em se mostrar original.
(KUNZ, 2011, p. 78-79).
111
Deste modo, o poeta assume o seu papel de artífice dentro desse processo de
apropriação e adaptação da matéria da França na literatura de folhetos brasileira. Segundo a
autora, o grande interesse o poeta era agradar o seu público, este extremamente exigente já
que conhecia as histórias de memória.
Cenas de sensacionalismo e mortes, muito recorrentes nos textos cavaleirescos,
encontraram nas lutas dos cristãos contra os turcos na Península Ibérica um ambiente fértil
para florescerem. Assim como se lê nos versos a seguir: “Quando Roldão proferiu/ puxou
logo pela espada/ deu-lhe logo uma cutilada/ que até os peitos partiu/ outro rei turco acudiu/
e ele não torceu/ todos os golpes que deu/ foram bem aproveitados/ quatorze foram lascados/
escapou um que correu” (SILVA, 1958a, p. 14).
Destaca-se nesse processo a importância da matriz ibérica, a capacidade inventiva do
poeta sertanejo, a predileção do público pelas histórias de aventuras e a boa recepção da
matéria da França no Nordeste brasileiro. Ademais, somam-se a isso tudo a magia que
envolve esta matéria sendo inspiração de várias histórias ao longo de doze séculos, mantendo
sempre o mesmo frescor, irradiando novos elementos de criação literária em solo brasileiro.
Este tema será discutido no próximo tópico.
4.2 A valentia e o destemor e o ciclo do cangaço
Conforme discutimos até aqui, há uma ponte dialógica que conecta o Nordeste
brasileiro e o Portugal medieval através da literatura popular. Com relação ao tema, Siqueira
(2007b, p. 265, grifo nosso) comenta:
No Nordeste, como no Portugal medieval, a literatura popular constitui um canal de
perpetuação de longínquas histórias e também um instrumento para narrar o
acontecido. Como o sertanejo, durante séculos, lutou contra o índio, a natureza
adversa e os inimigos vizinhos, aprendeu a admirar o homem valente. A justiça
distante, substituída pelas armas e bandos, que cada proprietário podia manter,
propiciou lutas ferozes das quais nasceram as gestas anônimas de valentia e
destemor violentos. Tal contexto possibilitou que os cavaleiros das histórias
medievais fossem identificados, no sertão, aos cangaceiros.
O cavaleiro dos romances era idealizado pela literatura cavaleiresca ao longo dos
séculos XII e XIII, acentuando-se no século XIV quando as epopeias se apropriam do
elemento romanesco. Estes não estavam presentes nas primeiras canções de gestas e, dessa
forma, as virtudes guerreiras passaram a ser o leitmotiv destas obras em todas as épocas.
Esse modelo de comportamento humano surge quando a cavalaria “[...] adquire a
dimensão de uma instituição, de um modelo cultural, de uma ideologia.” (FLORI, 2005, p.
112
158). A partir de então, o ideal cavaleiresco se prolonga pela Idade Media, chegando à Era
Contemporânea.
E como relação à matéria carolíngia, sabe-se da importância de La chanson de
Roland (2004) para a sua popularização. Nesta antiga canção de gesta, cujo pano de fundo é
luta contra os “infiéis”, do ponto de vista da moral cristã, tal guerra era justificada, inclusive,
nos seus excessos de a violência.
Por isso encontramos tantas cenas de barbárie sem qualquer condenação explícita nos
textos carolíngios, tal como se lê nos versos em que se narra o destino dos quinze guerreiros,
vassalos do Almirante Balão, no passo das Águas Mortas: “Ali todos se montaram/ armados
heroicamente/ levando como presente/ as cabeças que tiraram/ em seus alfoges botaram/
não deram satisfação/ segui na frente Roldão/ a pessoa encarregada/ de entregar a
embaixada/ ao almirante Balão” (SILVA, 1958a, p. 16).
De acordo com Siqueira (2007b) estes arquétipos dos cavaleiros medievais puderam
ser irradiados aos cangaceiros, mesmo porque o cenário sociocultural nordestino, eivado de
substratos medievais, favoreceu a aproximação desses dois imaginários.
Dado que a violência explícita configura o universo do cangaço nos folhetos
brasileiros, exaltando suas destrezas bélicas, ligadas à valentia. Justificavam, por sua vez, as
ações de atrozes dos bandidos, de modo que suas atitudes criminosas, assim, como a dos
cavaleiros medievais, ganhassem uma aura épica. Isto está refletido nos versos abaixo,
extraídos do folheto Façanhas de Lampião:
Acontece que um dia
o grupo foi atacado e no combate sangrento
Porcino foi baleado
conhecendo que morria
chamou os cabras ao lado.
Disse a seus cangaceiros
sei que vou me acabar
e quero a um de vocês
o meu bando entregar
porém quero escolher um
para assumir o meu lugar.
Pois reconheço que ele
é corajoso e valente
não desfazendo dos outros
que estão aqui presente
porque para este fim
ele é mais competente.
Logo chamou Virgulino
disse: quero lhe entregar
113
o meu lugar de chefiar
responda se aceita ou não
o cargo de comandar.
Virgulino respondeu:
aceito perfeitamente
eu sinto sede de sangue
só poderei saciá-la
bebendo sangue de gente (SANTOS, [19--] b, p. 10-11, grifo nosso).
De acordo com os versos, Virgulino se destaca por ser corajoso e valente, bem como
cruel, tal como ilustra a última estrofe e os versos assinalados. Além da fala do cangaceiro na
qual explicita querer beber sangue de gente, as suas atitudes confirmam o seu instinto
sanguinário:
Nisto um dos cangaceiros
saltou uma gargalhada
fitou para Virgulino
e disse por debochada
te enganaste Porcino
este aí no é de nada.
Virgulino respondeu:
mas agora eu quero ser
e se é de mais adiante
você desobedecer
portanto neste momento
se prepare pra morrer.
E foi obecando o cabra
como um alucinado
sacando logo da cinta
um punhal bem despontado
meteu-lhe em cima do peito
que saiu do outro lado (SANTOS, [19--]b, p.11).
Segundo Queiroz (1992) as histórias de Carlos Magno e de seus pares inspiraram as
histórias do ciclo cangaço, porquanto cada bando de cangaceiro lembrava o lendário
Imperador e os seus paladinos. Assim, como se lê nos versos: “Ele disse: então agora/ eu sou
o chefe do bando/ e não quero cabra frouxo/ andando no meu comando/ quero homem de
coragem/ embora morra lutando” (SANTOS, [19--]b p. 12).
Este conjunto de imagens formado por tais versos pode ser remetido a Carlos Magno
e sua hoste destemida: “Carlos Magno também/ tinha 12 cavalheiros/ como outros iguais
guerreiros/ o mundo hoje não tem/ nunca temeram ninguém/ segundo diz a história/ tinham
as espadas a gloria/ nunca torceram perigo/ nunca foram ao inimigo/ - que não contasse
vitória!” (SILVA, 1958b, p. 3).
114
Na concepção de Franco Júnior (2010, p. 75), “A imagem sozinha pouco comunica,
cada uma tende a se aproximar de outras, constituindo imaginários.” Com base no imbricado
processo que se opera nos interstícios resultantes das intercessões culturais, ele destaca:
Os sentimentos veiculados escapam ao seu autor, ultrapassam ao indivíduo. Se
amor, desejo, esperança, angústia, medo, qualquer estado afetivo, são
transtemporais e transpessoais, suas modalidades de exteriorização são datadas,
contextuais e coletivas [...] (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 75, grifo nosso).
Na opinião do autor, as questões “transtemporais” e “transpessoais” interligadas às
experiências coletivas corroboram afinidades de sentimentos e valores intemporais, tais como:
coragem, força, o destemor, dentre outros, conectando sistemas de imagens longínquos no
tempo e no espaço.
Além do mais, a luta se dava no nível simbólico entre o Bem e Mal. Desse modo,
cangaceiros como Lampião, por exemplo, para ser convertido em herói precisava ter suas
maldades justificadas, conforme ilustram as sextilhas a seguir:
Serei agora um herói
quero lutar fortemente
pois sou um injustiçado
e propositadamente
quero fuzilar “macacos”
e beber o sangue quente.
Foi assim que Virgulino
entregou-se ao banditismo
por causa da injustiça
do despeito carrancismo
porque a lei nesse tempo
era o mesmo despotismo (SANTOS, [19--]b, p.12).
Estes versos sintetizam como no imaginário sertanejo “[...] a função criminosa era
acidental”. (SIQUEIRA, 2007b, p. 270). E nesta poética de exaltação guerreira, faz como que
o homem do sertão não diferencie o homem valente do cangaceiro sanguinário. Sobretudo
porque dentro de um contexto sócio-econômico-cultural extremamente violento, o bandido
podia ser identificado ao cavaleiro:
[...] cada um se via na situação de um desbravador, como um cavaleiro destemido e
valente que deveria lutar para defender seu ‘reino’- que corresponderia, nesse
contexto, à sua propriedade ou a propriedade do seu protetor ou a sua própria honra.
(SIQUEIRA, 2007b, p. 271).
Além de ter suas maldades justificadas pela injustiça sofrida, algumas atitudes de seu
bando como, por exemplo, atacar fazendeiros proporcionava uma forte exaltação popular,
115
convertendo-os numa espécie de “paladinos do povo”, para usar uma expressão de Peloso
(1996). Assim como se lê nestes versos: “Continuou Lampião/ junto com seus bandoleiros/
para melhor triunfar/ contratou mais cangaceiros/ e começou atacar/ os ricassos
fazendeiros” (SANTOS, [19--]b, p. 13).
A partir desses versos, nota-se como a imagem do cangaceiro é construída ora como
a de um bandido cruel e inescrupuloso, ora como um justiceiro que se insurge contra os
grandes fazendeiros ou chefes políticos locais.
O fato que a exaltação da violência, subsidiada pelo destemor é o que provavelmente
pôde estreitar os laços entre as duas culturas cotejadas, tal como demonstram as sextilhas de
Luis da Costa Pinheiro a baixo:
Roberto não sentou praça
por ser muito inteligente
toda manobra de guerra
conhecia perfeitamente
e para vencê-lo em luta
nunca encontrou valente.
Com toda arma de guerra
ele sabia lutar
tinha coragem de sobra
quando queria lutar
do fio de sua espada
ninguém podia escapar.
Nas armas era um perigo
mas bravo que um leão
ainda era mais perito
que Oliveiros e Roldão
quando atacava o inimigo
não havia compaixão (PINHEIRO, 1957, p. 4, grifo nosso).
Roberto, o personagem em destaque, tinha uma coragem descomunal, além do mais,
era um exímio guerreiro, sem compaixão dos seus inimigos. Com base em suas atitudes, ele
foi comparado aos pares mais populares entre os sertanejos: Roldão e Oliveiros.
Conforme Franco Júnior (2010), podemos intuir que havia algo no imaginário
popular brasileiro que possibilitou tal conexão entre estes dois universos em pauta - o
carolíngio medieval e o sertanejo do Nordeste brasileiro. Caso contrário, não haveria qualquer
ilação entre ambos. Ou seja, no nível de mentalidade, o que compartilhamos independe do
tempo e do espaço, pois forma parte de uma identidade coletiva, portanto: “[...] ao expressar
valores coletivos, os imaginários dão ao homem a sensação de pertencer não apenas ao seu
momento, mas de fazer parte de uma história.” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 82).
116
Deste modo, com base nesses pressupostos, o cavaleiresco medieval pode ser
refletido entremeado no sistema imagético recriado na literatura de folhetos do Nordeste
brasileiro. Daí, nestas produções, surge um conjunto de imagens no qual o cangaceiro toma
forma de cavaleiro medieval reformulado com a sua indumentária de couro, seu cavalo, seu
bando, seu espírito itinerante e sua coragem colossal, transformando-se, portanto, em um
herói do sertão aos moldes da cavalaria andante.
Assim, como nos mostra os versos do poeta popular Leite Costa ao descrever as
andanças de Lampião e seu bando pelo sertão:
Já tinha 62 cabras
o bando de lampeão
dêsses que bebia sangue
e pegava onça de mão
e não corria da luta
sem ver o fim da questão
E lampeão, no sertão
andava desassombrado
com sua linda mulher
e o seu grupo de malvados
todo êle em pontaria
era bamba e respeitado.
Todo cangaceiro era
de valente a mais valente
Lampeão com seu bando
topava qualquer “batente”
viva pelo sertão
bebendo sangue de gente (LEITE, [19--]., p. 7).
Nos versos, a coragem do cangaceiro é enaltecida, mesmo estes indivíduos sendo
capazes de cometer as maiores atrocidades, como explicitam os versos expostos: “bando de
malvados e viviam pelo sertão/ bebendo sangue de gente” (LEITE, [19--], p. 7). Lampião e
seu bando podiam andar “desassombrando”, porque eram respeitados por serem destemidos.
Percebe-se que o destemor do cangaceiro afina-se com a valentia dos paladinos carolíngios.
Tal processo se justifica pelo diálogo que se efetua entre as duas culturas, visto que
“[...] na maior parte das vezes, as imagens são produtos de sua própria intertextualidade.”
(FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 72). Diante disso, alguns elementos da matéria da França foram
capazes de estabelecer elos com o imaginário sertanejo, a partir das emoções promovidas na
alma daqueles que tiveram contato com suas histórias.
Pois, além do lado humano que os seus protagonistas ensejam aos textos literários de
que são matérias, tais composições estão refertas de valores simbólicos, como: coragem,
117
força, valentia, resignação, fé, dentre outros; consolidando, assim, uma consciência coletiva
unindo todos a nível mental.
Tal visão é fruto de um contexto, de um período, tal como de experiências coletivas.
Por exemplo, o imaginário medieval foi “criado e modelado pela Idade Média” (LE GOFF,
2011a, p. 21). Sendo assim, esta perspectiva é estendida ao imaginário sertanejo, criado e
moldado pelo povo nordestino, a partir de suas vivências, consideradas experiências únicas
dessa sociedade que herdou um enorme contingente de traços do medievo ibérico no
momento por ter sido a primeira região brasileira a ser colonizada.
Quanto a alguns desses imaginários criados pelo medievo europeu e que se
irradiaram para outras civilizações, destacamos os valentes cavaleiros do século XIV e a
ordem da cavalaria como protótipos expressivos desse período, assumindo uma parte do status
de intemporalidade que todo ser humano congrega: “[...] mais do que isso, apesar das
especificidades das imagens construídas e consumidas pelo homem medieval (ou antigo, ou
moderno, ou ocidental, ou oriental) é possível por intermédio delas visualizar algo do homem
intemporal.” (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 71-72, grifo do autor).
Por inúmeras conjeturas sócio-histórico-culturais estes guerreiros, de uma maneira
bastante idealizada, transformaram-se em heróis de feitos gloriosos marcando, sobremaneira,
a memória coletiva não só do povo europeu na Idade Média. Em vista disto, converteram-se
em verdadeiros simulacros de substratos mentais do medievo, transladados além-mar. Daí a
sua capacidade de se remodelar em outros tempos, como por exemplo, no sertão brasileiro do
século XX.
Por tudo isso, somos capazes de compreender o porquê do “universo carolíngio”
(CORREIA, 1993) e de todo imaginário cavaleiresco que este aporta, ser suscetível a
remodelar-se em outras culturas. Daí ser Roldão esta figura capaz de materializar a coragem
contemporaneamente:
Roland, o brasileiro e o português Roldão, não está no conto popular, na história
tradicional. É infalível na cantoria, nos versos do desafio [...] Onze séculos não o
afastaram da citação sertaneja do Nordeste do Brasil, como no Brasil do centro e do
sul. (CASCUDO, 2001, p. 43).
Em pleno sertão nordestino, temos tais paladinos travestidos de heróis populares,
realimentado figuras como o vaqueiro valentão ou o sanguinário cangaceiro. Recriados,
assim, com as cores locais. Assim como ilustram os versos do poeta Paulo Nunes Baptista a
seguir:
118
Roldão foi um sertanejo
Respeitador da verdade
Que praticava a justiça
E combatia a maldade;
Não temia cangaceiro
- Topava qualquer “pampeiro”
Se houvesse necessidade.
Quem quizesse pisar nele
Podia cova fazer
Porque Roldão castigava
Quem o quizesse ofender:
Não procurava barulho
Mas entrando “num embrulho”
Fazia a coisa feder... (BAPTISTA, [19--], p. 6).
Estas duas septilhas nos apresentam um Roldão sertanejo. Tal personagem é
construído a partir do arquétipo do paladino carolíngio, utilizando pelo menos três
sentimentos básicos sempre associados a ele: a intrepidez, a honra e o destemor. Portanto,
adaptado ao imaginário sertanejo, recriado na figura do vaqueiro.
No entanto, os versos a seguir exemplificam ainda melhor este amalgama de
imaginários, no qual Roldão é o vaqueiro, caboclo, “nordestinizado”, aclimatado ao ambiente
do sertão nos versos do poeta popular. Reforçando, deste modo, o hibridismo cultural na
cultura popular brasileira (AYALA, 1997). Assim como os que são refletidos nos versos: Com
sete anos de idade/ Roldão “já estava no fio” / Aprendendo com seu pai/ A domar potro
bravio/ Foi vaqueiro muito cedo/- Era caboclo sem medo/ Desempenado e sadio (BAPTISTA,
[19--], p. 7).
De todo modo, é inegável a constância da matéria de frança, cujo onze séculos não
foram suficientes para suplantar o “universo configuracional carolíngio” (CORREIA, 1993)
retroalimentado por esta. Assim sendo, alguns de seus elementos mais notáveis tornam-se
intemporais e inesquecíveis em quaisquer civilizações que deles se apropriem. Citando caso
análogo ao que aconteceu na literatura de folhetos brasileira, como exemplificam os versos
expostos anteriormente.
No sertão brasileiro, por exemplo, eles inspiram versos de valentia e bravura, para
usar uma expressão de Cascudo (2001, p.4) construídos com base no arquétipo do “homem-
sem-medo”. Este pode ser personificado na figura de Roldão e de seus companheiros. Nos
versos abaixo, esse arquétipo de que nos fala Cascudo é enfatizado pelas metáforas “leões da
igreja” e “endiabrados” usadas pelo poeta: “Todos eram conhecidos/ pelos leões da igreja/
pois nunca foram a peleja/ que nela fossem vencidos/ eram por turcos temidos/ pela igreja
estimados/ porque quando estavam armados/ suas espadas luziam/ e os inimigos diziam:/ -
esses são endiabrados!” (ATHAYDE, 1976, p. 1).
119
O trânsito da matéria literária do ciclo carolíngio perpassa as “brechas”
(CHARTIER, 2009) resultantes dos intercâmbios culturais acontecidos entre Portugal e
Brasil. Tal processo estabelece um diálogo cultural riquíssimo entre essas duas sociedades,
como bem expressam as respectivas produções literárias.
120
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Oh! Dis-moi ce qu'on peut faire après Charlemagne!
(Victor Hugo)
O livro sempre visou instaurar uma ordem; fosse a ordem de sua decifração, a ordem
no interior da qual ele deve ser compreendido ou, ainda, a ordem desejada pela
autoridade que o encomendou ou permitiu a sua publicação. Todavia, essa ordem de
múltiplas fisionomias não obteve a onipotência de anular a liberdade dos leitores.
Mesmo limitadas pelas competências e convenções, essa liberdade sabe como se
desviar e reformular as significações que a reduziram. Essa dialética entre imposição
e a apropriação, entre os limites transgredidos e as liberdades refreadas não é a
mesma em toda parte, sempre e para todos. Reconhecer as suas modalidades
diversas e ações múltiplas é o objeto primeiro de um projeto de leitura empenhado
em capturar, nas suas diferenças, as identidades entre os leitores e sua arte de ler.
(CHARTIER, 1998, p. 8).
O imaginário cavaleiresco resgatado pelos cordéis portugueses, os quais abrangeram
temas inspirados em histórias tradicionais da Europa medieval, foi apropriado e adaptado pelo
poeta popular na literatura de folhetos, produzida no Nordeste brasileiro no final do século
XIX e início do século XX.
A popularidade desse gênero editorial transpassou Portugal e chegou às terras
brasileiras. Dentre essas histórias do medievo europeu, destacamos uma em especial: História
de Carlos Magno e dos Doze pares de França, traduzida por Jerônimo Moreira de Carvalho.
No sertão nordestino, o sucesso alcançado por este livro contribuiu para que os
leitores e/ou ouvintes sertanejos recriassem as histórias carolíngias, reformulando as suas
significações e seus personagens. Afinal, nos folhetos, observamos claramente como as
figuras arquetípicas dos paladinos foram imiscuídas aos seus heróis populares, como por
exemplo, a do cangaceiro; enriquecidas sobremaneira com elementos da cultura popular
nativa, a partir de uma complexa técnica de recriação artística. Esta era decorrente de um
processo de aculturação, sob o qual a literatura teve uma função primordial.
Convém salientar que, se há uma tradição conduzindo as atitudes e os
comportamentos dos grupos sociais, esta possivelmente influencia as práticas leitoras desses
povos, condicionando-os a uma interpretação de mundo muito particular e única, com base
em suas experiências vivas.
Assim sendo, o que era recebido de Portugal passava por um “ajuste”, a fim de que
pudesse se adaptar ao novo contexto sociocultural formado além-mar. Isto era possível graças
às “brechas” (CHARTIER, 2009), resultantes dos intercâmbios culturais. Por isso, não foi
difícil aproximar o cangaço e os seus protagonistas ao imaginário carolíngio, ao universo da
cavalaria andante e aos seus intrépidos cavaleiros.
121
Deste modo, cotejando as duas literaturas em questão - o cordel português e os
folhetos brasileiros -, podemos inferir que, embora compartilhando um fundo de histórias em
comum com a portuguesa, a literatura de folhetos brasileira não é apenas uma extensão desta.
Afinal, consolida-se enquanto gênero literário por apresentar um cânone de autores e obras,
bem como um público receptor definido (ABREU, 2006).
Diante do exposto, a presença do ciclo carolíngio é uma peça chave para a
compreensão das bases de formação da literatura de folhetos brasileira, distanciando-a da
literatura de cordel portuguesa, mesmo dentro de uma perspectiva de continuidade cultural.
Por isso que mesmo o ciclo carolíngio contando apenas com seis folhetos matriciais, assume
uma grande função na fortuna dos folhetos brasileiros. Pois, através da matéria da França
reproduzida no Brasil, podemos observar como se dá o processo de apropriação do cabedal
português, e, por conseguinte, a sua adaptação ao contexto sociocultural brasileiro.
Além disso, a presença de autores e do público ledor, bem como as inúmeras edições
e reedições ao longo de mais de meio século, ilustram como surgiu à literatura de folhetos no
Nordeste brasileiro, final do século XIX e inícios do século XX; bem como, a sua
consolidação nas primeiras décadas do século XX, estendendo-se ao seu ápice no final da
década de 50 do mesmo século.
Neste contexto, a matéria carolíngia esteve presente durante todo processo de
consolidação desse gênero literário, do início ao auge da literatura de folhetos, ajudando a
popularizá-lo pelo sertão adentro, devido à predileção do povo sertanejo por histórias de
aventuras, de homens corajosos e destemidos. E, em especial, graças ao carisma dos
personagens carolíngios “nordestinizados”.
Tais composições reiteram a força de Carlos Magno e de seus paladinos como um
evento reticente na memória coletiva dos sertanejos: já que: “Carlos Magno e os seus
companheiros, os Pares de França, continuam ‘vivos’ em pleno século XX. Transformados de
vultos históricos a personagens de ficção, permanecem na memória das gerações [...]”
(CORREIA, 1993, p.11). Ou seja, tais vultos não são mais codificados como personagens
históricos, mas sim, como arquétipos (FERREIRA, 1993). Sobretudo pela sua permanente
recriação, como também pela existência dos mecanismos de adaptação que estes possuem,
pautados em questões do imaginário.
O ponto central para entender o processo de adaptação, no qual se entremeiam
fenômenos culturais como os que envolvem a continuidade da matéria carolíngia nos folhetos
brasileiro, é, sem dúvida alguma, o texto-matriz. Isto é: “[...] texto-letra como fonte, que se
122
deve ater para a percepção do que acontece e permanece em produção do ciclo.”
(FERREIRA, 1993, p16).
O “poeta legião” (BATISTA, 2013), ao se apropriar da matéria carolíngia, recria-a,
atualizando-a ao seu contexto sócio-histórico, sem, contudo, desconsiderar o caráter
arcaizante que a literatura popular do Nordeste possui, além de ser a continuidade de uma
tradição. Sobre o tema, Ferreira (1993, p.13) esclarece:
Nesta literatura popular que se produz no Nordeste brasileiro, dá-se, como
não podia deixar de ser, uma démarche arcaizante em vários níveis,
preservadores de uma série de valores já postos de lado pela sociedade
global, enquanto aí se realizam também os seus padrões. Acontece que ela
avança e se vanguardiza, no sentido em que se procede constantemente a
um processo de crítica a esta sociedade, mesmo sem o pretender
conscientemente (FERREIRA, 1993, p. 13, grifo nosso).
Deste modo, em se tratando da adaptação do romanceiro épico medieval no sertão,
destaca-se a atualização de uma matéria literária, cuja temática ao longo do seu trajeto de
recriação conservava muito dos valores herdados no momento da sua colonização; no entanto,
essa matéria também avançava na medida em que ia se incorporando ao modelo sociocultural
nordestino e tratava de questões específicas da sociedade sertaneja.
Neste contexto, os folhetos carolíngios representam uma “persistência adequada
proveniente de atuante historicidade, fundamentada em arraigada tradição cultural e não em
modismo recente ou em artificiosidade literária” (FERREIRA, 1993, p.15, grifo nosso).
Na opinião da autora, um dos motivos que contribuíram para o sucesso destes
folhetos foi a forma de como a história de Carlos Magno e de seus pares era transmitida, pois
não havia elementos fantásticos, ao que ela chama de “artificiosidade literária”. Isto quer dizer
que estes relatos estavam envoltos no efeito de real (BARTHES, 1972).
Da mesma forma, outro personagem típico desta região, o cangaceiro, também ganha
esse status de “herói do mal” (SIQUEIRA, 2007a), cuja barbárie de seus atos era sempre
associada à sua coragem exacerbada, a uma “ausência de medo” colossal. Suas posturas
atrozes eram muito apreciadas pelos homens do sertão e seus feitos foram imortalizados pelo
poeta popular.
No sertão nordestino, a matéria carolíngia não representa apenas uma permanência
da herança dos romanceiros ibéricos em solo brasileiro, mas um modelo de como o
imaginário cavaleiresco se amalgamou à situação social, de modo a irradiar novos elementos
de criação literária, pautados nos sentimentos de destemor e valentia.
123
Estes, quando ressignificados pela comunidade nordestina, atuaram como um
verdadeiro divisor de águas entre as duas literaturas. Pois através da popularização da matéria
da França, as figuras arquetípicas dos paladinos contribuíram para a idealização dos heróis
populares dessa região, como, por exemplo, os vaqueiros e cangaceiros; valentões admirados
por possuírem uma coragem colossal, terem “sangue nos olhos” e, sobretudo, por não fugirem
de uma boa briga, tal qual Roldão e seus companheiros, Lampião e os seus pares.
124
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