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UNIVERSIDADE FEDERAL DE VIÇOSA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE ARTES E HUMANIDADES
CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - JORNALISMO
“O REI DO MARIA LENK” Como o jornal O Globo coroou Thiago Pereira durante os Jogos Pan Americanos de
2007
Camila Morgado da Silva Orientador: Prof.ª Dr.ª Soraya Maria Ferreira Vieira
VIÇOSA 2007
i
CAMILA MORGADO DA SILVA
“O REI DO MARIA LENK” Como o jornal O Globo coroou Thiago Pereira durante os Jogos Pan Americanos de
2007
Monografia apresentada à diretoria do curso de graduação da Universidade Federal de Viçosa como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Soraya Maria Ferreira Vieira
VIÇOSA
2007
ii
“O REI DO MARIA LENK” Como o jornal O Globo coroou Thiago Pereira durante os Jogos Pan Americanos de
2007
CAMILA MORGADO DA SILVA
Aprovada em ____/____/_____.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________ Soraya Maria Ferreira Vieira
Professora da Universidade Federal de Viçosa - UFV Mestre e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP
_________________________________________________ Juliano de Oliveira Pires
Professor da Universidade Federal de Viçosa - UFV Mestre e Doutorando em Estudos Lingüísticos pela UFMG
_________________________________________________ Ana Carolina Beer Figueira Simas
Professora da Universidade Federal de Viçosa - UFV Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ
CONCEITO FINAL: _____________________
iii
AGRADECIMENTOS
Chegar ao final de uma graduação exige muito mais do que podemos avaliar. É um
investimento físico e mental, feito por quatro anos, que ao fim demonstram que tudo valeu a
pena. Para isso, a participação de pessoas nesse ciclo torna-se cada vez mais importante e
imprescindível; e é a essas pessoas que devo agradecer, mesmo que não sejam aqui citadas,
cada uma fez parte e contribuiu a seu modo para minha formação pessoal e profissional.
Agradeço aos meus pais, João e Cida, por terem me obrigado a tentar ficar em Viçosa,
por confiarem em mim durante todo esse tempo, por compreenderem cada ausência durante
esses quatro anos e, principalmente, por serem os melhores pais do mundo (classificação
atestada por alguns membros da minha sala). Agradeço à minha irmã, Tainá, por ter se
conservado doce por todo esse tempo, por não baixar a guarda quando eu quis lhe impor algo,
por ter sentido saudades e por me visitar sempre que podia.
Agradeço à minha família, por ser louca e carinhosa ao mesmo tempo, pelos
exemplos, bons ou maus, que tive durante toda a minha vida e que me fizeram ser quem eu
sou. Não posso me esquecer de minha segunda família. Tia Rose, Tio Gilberto, Mayara,
Larissa e Júnior, que cuidaram de mim quando meus pais estavam longe, me deram sua
amizade e a sensação de não ser “uma estranha no ninho”.
Agradeço aos meus amigos de longe, com quem pude conviver mesmo que por um
curto espaço de tempo, mas que procuraram manter contato, mesmo quando me mostrei
indiferente ou ocupada demais.
Aos meus companheiros de República: Paula, por esses quatro anos sempre juntas,
brigando, rindo e chorando, mas, principalmente aprendendo juntas; pela amizade e
companheirismo que serão inesquecíveis. Às V.I.P.’s que aos poucos foram se separando:
Júlia, Jussara e Kamila, pelos bons momentos compartilhados, pela amizade e por tornarem
meu primeiro ano de Viçosa um período inesquecível. À nova formação da República:
Mariana, Pedro, Rita, Samuel e Vinícius, com quem vivi momentos de alegria, que me
apoiaram nas horas mais difíceis e deram risada de cada situação mesmo que não existisse
motivos para isso.
Às meninas de COM 2004, grandes companheiras em qualquer momento desse ciclo.
Com vocês eu aprendi tantas coisas, que fica difícil enumera-las; só faltou aprender a não
sentir saudade de cada aula, cada festa ou cada dia qualquer fazendo nada aparentemente
muito relevante. Por esses momentos inenarráveis, muito obrigada. Mas, principalmente,
iv
obrigada pela amizade, pelo carinho e pelos abraços dados mesmo quando eu não queria.
Cada um vai ficar no coração.
À COM 2004 e cada um de seus integrantes. Agradeço pelas alegrias e tristezas, por
serem maduros e infantis ao mesmo tempo, por serem calouros mesmo que veteranos, por ser
uma turma única, como essa Universidade nunca vai encontrar. E o principal: por serem “os
melhores caras do mundo”.
A todos que fazem o curso de Comunicação, por serem diferentes e, assim, me
ensinarem a conviver com quem quer que seja. Agradecimento especial à Débora, de 2006,
por ser a caloura mais abusada que já existiu e principalmente por me ajudar na realização
desta monografia. Sem a sua contribuição, nunca teria chegado ao fim. Alias, sequer teria
começado.
Agradeço ao curso de Comunicação, por me ensinar a amar a prática da profissão, e,
além da Academia, a me virar quando a situação não era favorável. Aos professores, por
serem duros e maleáveis, cada um a seu modo, mas no fim dando o exemplo de todos os tipos
de pessoa que posso encontrar depois da graduação. À minha orientadora, Soraya, que me
recebeu com boa vontade e me cobrou cada texto, pois sem isso, esta monografia não sairia
tão cedo.
Por fim, agradeço à Universidade Federal de Viçosa por me dar a oportunidade de me
graduar em um curso que não recebe investimento suficiente e que, por isso, me ensinou a
conviver com a deficiência de apoio. E à cidade de Viçosa, que me acolheu durante esses
quatro anos, me ensinou a valorizar cada momento com minha família e amigos, me
apresentou desde pessoas maravilhosas até aquelas que me entristeceram e me deu a chance
de viver situações que provavelmente não teria vivido se tivesse ido para outro lugar.
Após esses quatro anos posso dizer que tudo valeu, foi eterno enquanto durou e que
saio de Viçosa como uma nova pessoa, formada por cada um que passou em minha vida. A
todos, muito obrigada.
v
“É a experiência que vai ensinar ao jornalista avaliar a importância da informação e definir qual tratamento dar a ela. E qual tratamento deve receber. E ao mesmo tempo vai fazê-lo não subestimar notícia aparentemente irrelevante. É, enfim, o elemento que o fará duvidar de si próprio, mesmo quando sua
memória jurar que a informação historicamente correta é a que está na sua cabeça. Muitas vezes, não é.”
Paulo Vinícius Coelho
vi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 01
1. O MITO ................................................................................................................................. 04
1.1. Definições do mito ............................................................................................... 04
1.2. Mito e atualidade ................................................................................................. 06
2. O MITO E SUAS REPRESENTAÇÕES ........................................................................................... 10
2.1. Mito na mídia ...................................................................................................... 10
2.2. Mito e esporte ...................................................................................................... 15
3. A CONSTRUÇÃO DO MITO NA MÍDIA ........................................................................................ 20
3.1. O jornal O Globo ................................................................................................. 20
3.2. Thiago Pereira...................................................................................................... 20
3.3. O Globo nos Jogos Pan Americanos de 2007 ..................................................... 21
3.4. Thiago Pereira segundo O Globo ....................................................................... 21
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................. 37
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................... 41
ANEXOS..................................................................................................................................... 43
vii
RESUMO
Esta monografia tem como proposta traçar um panorama descritivo de como ocorreu a
ascensão do nadador Thiago Pereira à um patamar mítico na esfera midiática e
conseqüentemente na social. Para melhor compreender de que maneira a mídia cria seus
mitos, serão analisadas as edições do jornal carioca O Globo, pertencente à empresa
Organizações Globo durante a realização dos Jogos Pan Americanos de 2007 na cidade do
Rio de Janeiro. Recorreu-se a literaturas de teóricos mais próximos da ciência comunicacional
para melhor compreender a maneira como os mitos são formados na mídia. A pesquisa revela
que o jornalismo esportivo é o grande palco de surgimento e desaparecimento de mitos, num
movimento cíclico; e que Thiago conseguiu, com seu talento e eficiência na piscina, chamar a
atenção do país para um esporte que estava há muito esquecido: a natação.
Palavras-chave: mito, mídia, esporte, Jogos Pan Americanos
1
INTRODUÇÃO
Desde que nasce, o homem procura compreender tudo que se encontra a sua volta. A
fim de tentar explicar melhor o mundo e desse modo manter-se numa situação confortável, em
determinado ponto surgem figuras representativas, donas de uma história própria e compatível
à resposta de todas aquelas perguntas. Essas figuras muitas vezes são representadas pelos
mitos, cuja respectiva história “personifica” a explicação exigida por determinada sociedade.
Ao contrário do que pensamos, os mitos não derivam somente do período Clássico, da
Grécia e Roma e seus deuses e heróis. Na verdade, eles não pertencem a nenhuma relação
espaço-tempo única. Eles são representações de um determinado modo de reconhecer o
mundo aplicado a realidade de um grupo de pessoas.
A maneira que uma sociedade encontra para se explicar é oferecendo exemplos. E para
que sua cultura não se perca nem principalmente perca seu valor é através da utilização dessas
figuras míticas que ela procura manter sua essência, através de rituais, costumes e tradições
constantemente repetidos por seus habitantes. O mito, em sua gênese, não se propõe a dizer
verdade alguma. O que ele se propõe é realizar uma interpretação da realidade que não precisa
ser necessariamente ligada à verdade, desde que sua justificativa seja eficaz.
Com suas histórias, os mitos passam um ideal, uma mensagem que é maior do que eles
mesmos e atravessa os tempos, com releituras e novas interpretações para seus significados.
Como sabemos, cada indivíduo interpreta uma mensagem a seu modo. Isso porque ele se
pauta em sua cultura, no meio em que vive e em suas experiências anteriores para julgar o que
quer que seja. Após consultar inconscientemente todas essas “opiniões” que lhe são
intrínsecas, o indivíduo em questão chega a uma conclusão, que é única. Assim, ele não
consegue fugir completamente das mensagens conotativas a que é freqüentemente exposto
durante sua vivência.
Atualmente, as mídias utilizam o mito como uma ferramenta para construir uma
imagem de ideal. Elas o utilizam para ofuscar a percepção do receptor quanto ao que ela
pretende passar, ou seja, a mensagem ideológica por trás de tudo que deverá ser consumido
pelo receptor. São mensagens ideológicas, valores sociais impostos, que não reconhecemos,
mas que estão lá de uma maneira ou de outra, a fim de garantir a boa convivência social entre
todos nós, através da inconsciente aceitação desses valores. As figuras que se apresentam em
nosso cenário cotidiano sempre trazem mensagem conotativa, algo que não vemos logo na
2
primeira leitura do objeto, somente se nos debruçarmos sobre ele dispostos a encontrar algo
que esteja “escondido”.
Através de heróis, celebridades, atletas, etc., pessoas comuns que passam a ser
“alguém” na esfera social, é que se propaga o ideal a ser seguido. O jornalismo se utiliza
largamente dessas figuras. É com o auxílio delas que vende seus periódicos, passa suas
mensagens e propaga os valores próprios da empresa que o produz.
No caso do jornalismo esportivo, a exploração é ainda maior e mais recorrente. Nessa
área específica do jornalismo, os representantes não são necessariamente esquecidos ao serem
substituídos por outros; eles sobrevivem no imaginário popular, na nostalgia de seus
“momentos de ouro”, como, por exemplo, Pelé, Garrincha, e a seleção canarinho. E não é
somente no futebol que eles existem. Em outros esportes, algumas vezes seus respectivos
representantes conseguiram destaque nacional, como Gustavo Borges (natação), Tande
(vôlei), Gustavo Kuerten (tênis), entre outros. Esses atletas podem deixar de competir ou
passar a não obter tantas vitórias como antes, mas sempre serão referência quando o assunto
for a categoria da qual faziam parte.
Para apresentar e compreender melhor essa formação do mito, a presente monografia
irá analisar a elevação meteórica do nadador Thiago Pereira durante a realização dos Jogos
Pan Americanos do Rio de Janeiro em 2007, noticiados pelo caderno de Esportes do jornal
carioca O Globo.
No primeiro capítulo, será retomado o conceito de mito, conceituando o termo e
aplicando-o inicialmente à comunicação social em si. Além disso, será demonstrado que o
mito não é um fato relegado somente ao período Clássico. Na verdade, ele não é determinado,
não possui uma relação espaço-temporal fixa e por isso, por sua característica de fácil
mutabilidade, é que podemos afirmar que ele existe em qualquer período, inclusive
atualmente.
Mesmo que sejam imperceptíveis no início, se for realizada uma análise minuciosa de
objetos como peças publicitárias, por exemplo, podemos enxergar a mensagem que aquele
mito da Antiguidade passava a seu povo representado por outra imagem. Ou seja, o mito se
adapta a seu meio, se aproveita dele e de seus objetos e figuras para se propagar.
No segundo capítulo será explorada a maneira como esses mitos são representados em
nossa realidade, mais especificamente na mídia. Eles são passados, com seus conceitos e
valores, através dos tempos e sob diferentes “roupagens”, sem que percebamos. Através de
um discurso bem construído, a mídia trabalha para que sua ideologia, seus valores, sejam
absorvidos e reproduzidos por seus receptores.
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Uma das áreas que mais se utiliza desse “poder” da mídia, no caso da comunicação
social e, mais especificamente, do jornalismo, é a esportiva. Essa editoria encontra nos
grandes atletas a maneira de vender mais e propagar a idéia de uma figura que venceu através
de seu esforço físico, tal como os heróis da mitologia grega fizeram. No Brasil, o mais comum
é que essas figuras sejam oriundas do futebol. Seus jogadores são notadamente reconhecidos.
As torcidas os idolatram, assim como são capazes de, no dia seguinte, desejar que eles
abandonem o time. Eles devem manter seu bom ritmo durante as partidas, sob a penalidade de
serem apedrejados pela mídia e seus veículos comunicacionais, perdendo tudo aquilo que
tinham conquistado mais rápido do que imaginam.
No entanto, algumas vezes esses heróis deixam o futebol e aparecem em outros
ambientes. Nos últimos Jogos Pan Americanos, realizados no Rio de Janeiro em 2007, o herói
saiu do gramado e apareceu na piscina, embaixo d’água. Essa figura foi o nadador Thiago
Pereira. Em questão de poucos dias de competição, o nadador saiu das piscinas e ganhou o
trono do Parque Aquático Maria Lenk, tornando-se uma grande celebridade durante os Jogos.
A fim de compreender e demonstrar melhor essa elevação do atleta, o terceiro capítulo
realizará uma análise dos jornais O Globo, especificamente a editoria de Esportes, durante os
Jogos. A partir do dia 14 de julho, um dia após a cerimônia de abertura dos Jogos, até o
último dia do mesmo mês, serão analisadas todas as edições do jornal carioca, um dos
periódicos de maior circulação no Estado do Rio de Janeiro. O panorama a ser traçado inclui
uma percepção quantitativa e qualitativa das mensagens, analisando a forma como o jornal se
propôs a tratar o nadador.
Por fim, serão traçadas as conclusões finais acerca da produção de mitos pela mídia na
atualidade e principalmente no caso do jornalismo esportivo. A partir do referencial teórico
desenvolvido, serão apresentadas as referências bibliográficas utilizadas na produção deste
trabalho de conclusão.
Assim, esta monografia pretende traçar como se deu essa explosão da figura de Thiago
Pereira e como aos poucos ela foi diminuindo, para ceder lugar às outras modalidades que
ainda estavam nas competições. Será demonstrado ainda como o mito surge e é explorado
incansavelmente pela mídia impressa.
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1. O MITO
1.1 – Definições do mito
Quando falamos de mito, instintivamente nos vêm a cabeça aquelas representações do
período clássico da Grécia e Roma antigas. Seus Hércules, Perséfones, Zeus e Hades
permeiam nossos pensamentos com suas histórias ensinadas no colégio ou apreendidas após
leituras curiosas.
No entanto, mito não se limita a isso. Na verdade, esse vocábulo pode ter vários e
variados significados e sentidos. De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(2001:1936), no sentido figurado, ele pode ser compreendido como a “construção mental de
algo idealizado, sem comprovação prática; idéia, estereótipo”. Ou seja, o mito não precisa
necessariamente de ser comprovado, de ser real. Basta que ele seja suficientemente
convincente para o receptor pretendido. Ainda nessa linha, o termo pode – como acontece na
maioria das vezes – ser largamente utilizado com a finalidade de se confirmar uma idéia a ser
expressa, representando um sentido para determinada ação a ser praticada. Ele é a
comprovação de uma teoria, uma ideologia a ser transmitida.
O mito inclui atitudes – religiosas, históricas, folclóricas e sociais – com as quais pretende explicar, de forma espontânea e imediata, aspectos da realidade inapreensíveis para a razão. (BARSA, 1997:363)
Por não ser comprometido com a verdade, o mito apresenta a subjetividade como uma
de suas características, e através dela defende seu ideal em determinado relato. Ele faz uso de
uma história, uma “fantasia” eficaz o bastante para conferir valor social ao signo que o
representa. “É pelos signos que a consciência individual propõe uma compreensão do mundo,
pois os signos são eles mesmos a representação do mundo apreendida, incorporada pela
consciência.” (GARCIA). E explicar o mundo, de modo que o receptor sinta-se confortável
em viver nele é uma das premissas do mito.
A veracidade dos argumentos utilizados para tal fim não precisa ser verdadeira desde
que seja plausível. “O mito esconde alguma coisa. O que ele procura dizer não é explicitado,
literalmente. Não ‘está na cara’. O mito não é ‘objetivo’.” (ROCHA, 1988:9). Ele não precisa
ser verdadeiro enquanto conseguir corresponder de maneira satisfatória aos anseios de seus
emissores e receptores, enquanto conseguir difundir a ideologia pretendida.
5
Por não ser algo constante, ele possui a necessidade de se manter, de fazer com que o
valor social a ser transmitido sobreviva através dos tempos. Para alcançar esse objetivo, ele
deve ter, acima de tudo, uma narrativa estável e completa, sem questionamentos, pois estes
poderiam causar sua queda.
Se o mito fosse uma narrativa ou uma fala qualquer, estaria diluído completamente. O mito é, então, uma narrativa especial, particular, capaz de ser distinguida das demais narrativas humanas. (ROCHA, 1988:8)
Dessa forma, o mito assume a característica de ser marcadamente mutável em
determinados meios (no entanto, é válido lembrar que essa transformação não implica
necessariamente em seu desaparecimento). E essa capacidade de sobreviver apesar das
constantes modificações a que precisa se submeter é explicada por sua definição nas ciências
humanas, para quem o mito é uma fala, algo que transcende o período em que foi criado,
podendo figurar em diversos outros momentos.
Voltando-se mais especificamente para o campo de estudos envolvendo a
comunicação, em “Conceitos-chave em estudos de comunicação e cultura”, organizado por
Tim O’ Sullivan, a definição de mito é dividida de acordo com suas utilizações:
• Ritual/antropológico – segundo o autor, esse modo de explorar o mito é mais recorrente
em culturas que se baseiam nele para explicar e ver o mundo. Seriam, por exemplo,
culturas iletradas, que fazem uso de determinadas representações para manter suas
tradições;
• Literário – nesse caso, ele “associa-se intimamente à noção de símbolos arquetípicos, ou
seja, com sentido transcultural” (2001:157);
• Semiótico – nessa linha de estudos, mais utilizada quando a análise envolve o campo
comunicacional e suas mensagens verbais ou não, o mito é baseado na premissa de que foi
construído a fim de afirmar algo, que tem uma intenção que pode ser claramente expressa
ou estar implícita na mensagem veiculada, na maneira como ela será absorvida e repetida
pela sociedade receptora.
O semiólogo francês Roland Barthes, define o mito como “um sistema de
comunicação, uma mensagem. Eis porque não poderia ser um objeto, um conceito ou uma
idéia: ele é um modo de significação, uma forma” (2003:199). Ou seja, o mito é uma fala
repetida através dos tempos de diferentes maneiras. E por ser uma fala, ele é dotado da
capacidade de se apresentar através de diferentes figuras sígnicas, sem perder seu sentido
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inicialmente proposto. “Esta é a originalidade do pensamento mitológico – desempenhar o
papel do pensamento conceptual.” (LÉVI-STRAUSS, 1978: 37)
1.2 – Mito e atualidade
Ao tratarmos o assunto mito, naturalmente partimos para a associação com as
literaturas greco-romanas e seus representantes olímpicos1. Para o francês Lévi-Strauss, essa
associação automática que realizamos tem ligação com o pensamento científico, já que
desde o advento da Ciência no século XVII, que rejeitamos a mitologia como um produto das mentes supersticiosas e primitivas. Contudo, só agora conseguimos ter uma perspectiva mais profunda e completa da natureza e do papel do mito na história do Homem. (1978: 9)
Mas, após tantas definições empregadas, o que é um mito afinal? A essa pergunta
existem várias e variadas respostas. E, pelo menos no campo da semiótica, todas chegam a um
senso comum: o mito é uma fala que “flutua”. Ele sobrevive das diferentes interpretações que
lhe são feitas em épocas diversas e, através delas, criam-se novos mitos. Estes não perdem sua
essência, seu sentido inicial; assim, não deixam de ser aquele mito anteriormente conhecido,
mesmo que de maneira inconsciente. Na verdade, são releituras. E a cada sociedade, em
particular, é atribuída a ele uma significação diferente, mas que condiz com sua respectiva
maneira de viver e compreender o mundo. A fala mítica, então, em sua gênese, é associada a
essa tentativa de explicar o mundo que nos cerca, os fenômenos que se apresentam
cotidianamente.
Antes do advento da sociedade baseada na escrita, a forma encontrada para a
sobrevivência da mesma e de sua cultura era a repetição de certas fórmulas, ritos, cultos e
devoção que, segundo Alfredo Bosi (1992), davam à comunidade a oportunidade de "atualizar
em si o sentimento da própria existência e da própria identidade”. Para que essas fórmulas
fossem aceitas e repetidas pelo povo, era necessário dar-lhes algum respaldo explicativo, uma
motivação a contento. Assim, muitas vezes, recorreu-se ao mito. Ele era utilizado para manter
as tradições e incorporá-las ao dar-lhes sentido na sociedade. Além disso, servia como
justificativa ao mundo, desenvolvendo um conceito de realidade que pudesse servir às
necessidades de explicação apresentadas. Através dessas representações, as sociedades ditas
1 Nesse caso, o termo “olímpicos” é utilizado para designar aqueles que habitam no Olimpo, local onde os deuses gregos faziam sua morada. Pode-se também utilizar o termo “olimpianos”
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“primitivas” construíam uma forma de passar sua cultura por gerações, conseguindo
sobreviver e manter sua essência.
Apesar de tudo, [o mito] dá ao homem a ilusão, extremamente importante, de que ele pode entender o universo e de que ele entende, de facto, o universo. Como é evidente, trata-se apenas de uma ilusão. (LÉVI-STRAUSS, 1978: 32)
No entanto não se deve afirmar que a cultura mítica somente existe nesse modelo de
comunicação ao qual costumamos reconhecer como precário – já que só se utiliza de vias
orais e da memória de seus personagens para repassar sua mensagem. O que se observa na
verdade é que a fala mítica em si é repetida até os dias atuais, nos diversos modelos de
processos de comunicação, apoiando-se, além da escrita, nas imagens do cinema, fotografia,
televisão, publicidade, esportes etc.
Entretanto, seja para as comunidades primitivas, seja para as contemporâneas, a diferença está no modo de apreensão do objeto e na sua devolução em signo mais desenvolvido: o homem arcaico vive a experiência do mundo natural e a traduz em palavras, em falas e narrativas. O homem contemporâneo vive a experiência da indústria cultural e a traduz em suposto real, em “certos e determinados produtos”, mantendo-se infinitamente distante do mundo sensório. E o que o mantém nessa distância é justamente o convencimento e a credibilidade com que esses produtos conseguem se articular. (TEIXEIRA)
Esses mitos (normalmente representados por meio de um cidadão comum que foi
elevado a essa categoria) criados atualmente são, na verdade, uma re-significação de algum
outro que o precede temporalmente representado por um objeto diferente. Em sua essência, na
mensagem pretendida, eles se encontram conservados naquilo que o psicanalista alemão Carl
Jung denomina “inconsciente coletivo”2 (in BARSA, 1997:364), que após contato com os
mitos novos (aqueles re-criados para se adequar a realidade da sociedade a ser falada)
reconhece inconscientemente a releitura feita nessa criação, acatando com mais facilidade
aquilo que ela lhe propõe.
2 Esse conceito pode ser compreendido como herança das gerações anteriores, ou seja, a identidade de todos os homens, independente de sua época
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Numa palavra, o mito se interioriza. Quero dizer com isto que o mito ganha um espaço dentro do ser humano. Ele passa a ser reflexo de múltiplos movimentos de interiores. Próximo do sonho, da fantasia, do devaneio. O mito é produto do inconsciente. Neste lugar se origina, neste lugar se processa. Nele, também, se realiza. Ainda mais, é do inconsciente uma forma de expressão. (ROCHA, 1988:40)
O que se pode afirmar é que na verdade os mitos não deixam de existir, eles
sobrevivem sob outras formas. De acordo com Everardo Rocha, o mito é eternamente
interpretado e essa mesma interpretação acaba por se tornar um novo mito posteriormente,
sem, entretanto, esgotá-lo. Essa “flutuação” interpretativa do mito faz com que ele se encontre
somente registrado no imaginário, vulnerável a interpretação que lhe for dada. Mesmo assim,
a justificativa pretendida pelo mito não perde seu sentido, ela só passa a agir através de um
signo diferente.
A criação de mitos, no entanto, não se restringe unicamente ao campo do transcendente, pois freqüentemente responde ao desejo de representar os traços históricos, sociais e culturais que definem um povo. Também não pode ser considerada apenas como produto de uma etapa evolutiva já superada pela humanidade. (BARSA, 1997:363)
Segundo Barthes (2003), o mito tem por princípio a transformação da história em
natureza. Ou seja, o mito apropria-se do conceito de algo e confere-lhe um significado, dando
sentido à ação a ser praticada por ele. Ele deforma o sentido inicial daquele signo a fim de
adaptá-lo à necessidade de explicação apresentada pelos membros da sociedade. Realiza-se
uma re-semantização do signo, a fim de que o mesmo esteja apto aos propósitos da ideologia
que se pretende aplicar através da fala mítica.
Para isso, ainda nas palavras de Barthes, “o mito é uma fala excessivamente
justificada”, já que ele deve constantemente motivar o receptor da mensagem a continuar
consumindo-o. Deve conferir algum significado plausível à manutenção da fala mítica, ou seu
receptor não verá sentido em reproduzi-la e ela corre o risco de cair no esquecimento. No
entanto, Barthes não coloca a motivação como algo estritamente necessário para a
sobrevivência do mito, já que mesmo se não tiver nenhum fator motivacional, a própria
ausência de argumento pode ser trabalhada a fim de que isso se torne uma motivação segunda.
Mesmo a ausência de motivação não chega para impedir a constituição do mito, pois esta própria ausência será suficientemente objetivada para se tornar visível; e, finalmente, a ausência de motivação se transformará numa motivação segunda, e o mito será restabelecido. (BARTHES, 2003: 218)
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Existem mitos que são eternos, que permanecem presentes no imaginário popular
durante muito tempo. O que acontece no caso é uma substituição do objeto que o representará.
Os objetos são passíveis de serem substituídos por outra figura que confira maior estabilidade
e confiança a seus receptores. O mito em si, enquanto mensagem, não desaparece, é somente
aliado a outro objeto. Podemos chamar esse processo de “rotatividade mítica”, na qual alguns
somem, outros surgem, mas nem sempre esses que somem o fazem eternamente. Por vezes,
eles podem estar apenas condicionados a um breve afastamento, retornando à cena mítica
algum tempo depois, utilizando-se de outro signo para sobreviver. O que importa mesmo é o
sentido que ele confere, a mensagem que envia ao receptor e como este vai absorvê-la.
Isto é uma marca, uma faceta, dos mitos. Continuam sendo mitos independente de suas versões. Estas são entre si equivalentes e de igual significado. Não existe versão privilegiada, ou melhor, se existir não altera a ‘miticidade’, digamos assim, do mito. (ROCHA, 1988:52)
Assim, enquanto fala, o mito sobrevive. A idéia de que ele só fez parte da humanidade
na Antigüidade perde seu valor. De fato, ele existe em qualquer época, mas sob diferentes
representações. No caso dos dias atuais, eles são muitas vezes criados e promovidos pela
mídia. É através dos meios de comunicação que se criam heróis nacionais e estes heróis são,
posteriormente, elevados à figura mítica em si. São os Hércules, Aquiles e Perseus, dentre
outros tantos heróis mitológicos que reaparecem em figuras anteriormente comuns, mas que,
por se destacarem de alguma forma, passam a se elevar e ganham o privilégio de “subir ao
Olimpo” da sociedade atual.
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2. O MITO E SUAS REPRESENTAÇÕES
2.1 – Mito na mídia
O mito é uma fala. E, por ser uma fala, produz mensagens. Barthes divide essas
mensagens em duas modalidades: denotativa e conotativa. A primeira é conceituada como
aquilo que nossa percepção captou logo num primeiro momento; ou seja, aquela primeira
interpretação, “crua”, que temos do objeto. É a maneira que o signo se apresenta a priori para
seu público.
Mas um objeto pode ter mais interpretações, inúmeras, com mensagens que são
inferidas a partir dele e que só são perceptíveis se nos debruçarmos na observação do mesmo.
Esse seria seu sentido conotativo, no qual se insere toda vivência que tivemos antes de sermos
“apresentados” ao objeto. No entanto, posteriormente Barthes chega à conclusão de que a
denotação na verdade seria a última das conotações. Isso porque o primeiro contato que temos
com determinado objeto – ou mito, no caso aqui assinalado – já acontece após vários outros
fatos; ou seja, vem imerso em toda uma história que lhe é anterior à qual estamos
inconscientemente ligados. Quando o objeto se faz ver por nós, já possuímos um discurso
prévio que vai nos levar a uma forma particular de interpretação dessa mensagem. “Portanto,
somos a soma, a sincronia de todas as linguagens e meios, de tudo que é, será e já foi falado”
(TEIXEIRA).
O mito enquanto objeto de determinada mensagem pode ser subdividido em três
outros tipos que têm relação entre si, mas que serão estudados separadamente, sendo eles:
mensagem lingüística, simbólica e literal. A mensagem lingüística é representada pelo texto,
que passa a informação sobre o objeto, controlando a multiplicidade de interpretações que a
imagem relacionada possa gerar.
As mensagens simbólica e literal são produzidas através da imagem. A literal é
basicamente compreendida como denotação. Segundo Barthes (1990:35), esse tipo de
mensagem utopicamente não contém conotação, sem se ater a códigos precedentes. Ou seja, é
a representação de um ícone não codificado, sem qualquer pretensão que não aquela
observada no primeiro encontro com o objeto.
A mensagem simbólica é também compreendida como conotação. O mito faz uso de
um ícone que transmite segurança e veracidade para seus emissores e, através dele, consegue
gerar um comportamento no indivíduo que o lê inconscientemente dessa forma. Esse tipo de
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mensagem procura passar seus conceitos e ideologia ao receptor, fazendo com que o mesmo
seja consumido e repassado para outros. Através de ícones imersos em códigos que precedem
a concepção da imagem, a mensagem é transmitida e aceita por seus receptores que, se os
emissores forem bem sucedidos, se comportarão como era esperado. Porém, é válido lembrar
que a interpretação é livre, e os signos, separadamente, produzem reações diversas, que
podem até mesmo ser opostas à esperada.
Assim, o mito é utilizado, modificado e deformado para que essas mensagens sejam
transmitidas e absorvidas pelo receptor de maneira mais eficaz. Ele emite uma mensagem
icônica na medida em que utiliza um símbolo para ser percebida.
Partindo dessa concepção de mito como uma fala, produtor de vários tipos de
mensagens que se complementam, ele passa a não pertencer a uma relação espaço-temporal
fixa. Desse modo, vem sendo largamente reutilizado por diversos meios. No caso da mídia e
seus veículos, uma das teorias apresentadas por alguns autores é que eles surgiriam para
efetivar determinada ideologia, construída com a finalidade de explicar um fato, uma
realidade, ser repassada e por fim aceita.
Os meios de comunicação de massa criam mitologias e ideologias como sistemas conotativos secundários ao tentar dar a suas mensagens uma fundamentação na natureza, considerada como um sistema denotativo primário. No nível denotativo, elas expressam significações primárias ‘naturais’. No nível conotativo, elas escondem significações secundárias, ideológicas. (NÖTH, 1996: 136)
Roland Barthes afirma ainda que os mitos produzidos pela mídia serviriam para
neutralizar as mensagens da burguesia, transmitidas de maneira subliminar. Essa ideologia a
ser passada justifica-se através da interpretação que se pretende produzir com o signo; é algo
produzido pela e para a sociedade, uma maneira da qual ela se utiliza para se organizar e
conviver pacificamente.
Se a conotação tem significantes típicos conforme as substâncias utilizadas (imagem, palavra, objetos, comportamentos), essa mesma conotação coloca todos esses significados em comum: são os mesmos significados que encontraremos na imprensa escrita, na imagem ou no gesto do comediante (razão pela qual a semiologia só pode ser concebível em um quadro, por assim dizer, total); esse domínio comum dos significados de conotação é a ideologia, que teria que ser absolutamente único para uma sociedade e uma história dadas, quaisquer que sejam os significantes de conotação a que recorra. (BARTHES, 1990:40)
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Marilena Chauí explica a ideologia como um fato social, produzido pela e para a
sociedade. Na verdade, ela faz uso das idéias ou representações que explicam as relações
homem-natureza e com o sobrenatural. Utiliza a fala mítica para nos apresentar exemplos de
como se deve proceder a fim de que se viva bem em sociedade. Assim, essa ideologia
consegue ocultar seus verdadeiros propósitos, encobrindo a realidade social na qual se está
imersa, legitimando “as condições sociais e de exploração e de dominação, fazendo com que
pareçam verdadeiras e justas” (CHAUÍ, 1984:21).
O uso do universo mítico pelos mass media é intencional e indiscriminado, visando alimentar os jogos de mercado, e funciona porque nutre o desejo de imitação do homem, que não é qualquer imitação, mas a de uma conduta desejável, histórica, inconsciente e arquetípica, muitas vezes heróica, que abre ao consumidor a possibilidade de dar-se a existir como sujeito contemporâneo, vestindo um jeans. (TEIXEIRA)
O mito surge como uma “esperança” ao cidadão-comum, que vê naquela pessoa uma
possibilidade de crescimento. Uma figura que se encaixa bem nisso é, por exemplo, o
Presidente do Brasil, Luiz Inácio “Lula” da Silva. Aquele que um dia foi líder sindical, que,
diferentemente daqueles que o precederam na presidência, não possui nível superior de
educação, chegou ao cargo de Presidente da nação. É um ótimo exemplo, já que anteriormente
era um renegado pela mídia. Então, de repente, passou a ser a melhor opção para o Brasil,
aquele que seria nossa “salvação”, o herói nacional, devidamente produzido pela mídia.
Para promover e propagar a idéia de que todos somos capazes de progredir (progresso
esse que pode ser obtido se todos participarem ativamente da vida social com essa finalidade)
e ascender socialmente, a mídia por vezes surge com figuras que representam a expressão do
herói nacional, ou seja, aquele ser que serve de exemplo a todo o resto da sociedade. Ela cria
uma esfera de idolatria em torno desse representante eleito, uma pessoa comum, e constrói um
discurso que o eleva a condição de herói, que evolui até chegar, por fim, ao mito, um exemplo
a ser seguido. Com isso, ela demonstra que todos nós podemos ser reconhecidos como
exemplos: basta trabalharmos com este fim.
Ao mesmo tempo em que produz seu herói, essa mesma mídia explora a figura eleita,
com uma cobertura exacerbada de tudo que diz respeito a sua vida, suas qualidades, etc. Ela
se aproveita de cada atitude do herói/mito, quer seja passado ou presente, “vendendo” uma
imagem que serve como exemplo e objeto de desejo a nós, pessoas “comuns”. Isso é feito de
tal maneira, que dificilmente tomamos conhecimento do trabalho por trás de tudo, das
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ferramentas que a mídia se utiliza para moldar a figura representante de um ideal a ser
alcançado. É uma exploração intensa e extensa da figura midiática.
Mas o mito não é simplesmente um sujeito passivo nessas mensagens proferidas. Para
Teixeira, mito e mídia possuem diversas cognições culturais, mesmo que aparentemente
operem com total visibilidade social. Essa visibilidade, na verdade, esconderia um
ofuscamento que busca sempre subtrair a realidade, ao invés de assegurá-la.
Assim, o comum é elevado ao inédito, ao “maior e melhor que nós”. No entanto, da
mesma maneira que a mídia realiza esse “superdimensionamento da imagem do ídolo”
(MARQUES, 2005), ela pode, em questão de segundos, destruir o pedestal que lhe foi
outorgado há pouco, fazendo-o passar de algo extremamente desejável a um “produto fora de
moda”, que se deve deixar de lado, pois não mais corresponde ao ideal proposto inicialmente.
Assim, o objeto empregado na representação mítica e midiática, é fácil e rapidamente
substituído ou deixado de lado para uma posterior utilização. Ele se vê “engolido” por essa
mesma esfera midiática que um dia o destacou – nas palavras de Marques: “a engrenagem de
produção de celebridades não pode deter-se, e o mito vê-se mais uma vez derrotado”.
Portanto, independente do que vai lhe acontecer, deve-se lembrar de seu caráter extremamente
volátil.
A fim de alimentar sua “engrenagem”, a mídia cria então um novo mito. Na verdade, o
que ela realiza é a transferência de seu significado, que será representado por outra figura, e
nada mais é do que aquele mesmo mito decaído de anteriormente com aparência diferente.
Através de seu discurso, exaustivamente a mídia e seus meios se aproveitam da atenção que
aquele assunto novo pode despertar no público, e faz dele seu “atual exemplo eleito”. Isso
pode ser observado no caso de artistas do cinema, televisão, música, entre outros tantos, que
podem figurar por um tempo despertando paixões; mas que, caso saiam dessa redoma criada
pela mídia, passam a ser renegados por ela e, conseqüentemente, pela sociedade. Em alguns
casos, as figuras antes “eleitas” sobrevivem como ídolos somente para quem é fã
incondicional e vive da nostalgia daqueles momentos “bons” para seu ídolo, mas isso
acontece cada vez mais raramente.
Enfim, trata-se de uma cultura do efêmero, do passageiro, fugaz. Cultura que, por isso mesmo, produz nostalgia. [...] É a cultura dos eventos em oposição aos processos (SANTAELLA, 1996:35).
E a efemeridade de que nos fala Santaella é uma característica marcadamente da
sociedade pós-moderna e globalizada em que vivemos. Ainda segundo a autora, observa-se
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atualmente uma interatividade entre os vários tipos de mídia existentes. Cada uma possui um
discurso e uma linguagem específicos a seu meio, mas no fim todas passam basicamente a
mesma informação, formando uma rede de cultura midiática. Mesmo produzindo efeitos
semelhantes à cultura de massas, devemos compreender que ela é diferente de cultura
midiática. Nesta, cada veículo de comunicação tem sua função diferencial, que age através da
interação de uma multiplicidade de códigos atuando dentro de cada mídia, produzindo
atitudes específicas e diferenciais no receptor correspondente ao veículo, enquanto a cultura
de massas é constituída por uma pasta homogênea de mensagens.
Para a produção de mitos, essa interação entre as mídias serve como suporte ao ideal a
ser promovido, já que uma reafirmaria aquilo que a outra disse, auxiliando na sua melhor
absorção e aceitação em diversos receptores de diferentes meios. Ou seja, com a cultura das
mídias, a cultura em si passa a ser entendida como indissociável da comunicação, baseando-se
nela para se propagar e sobreviver. Através dessa rede midiática, as figuras míticas se
propagam e estabilizam no cenário comunicacional e social.
Mas elevar um objeto à categoria de herói/mito também tem suas conseqüências. É
como em uma sociedade democrática: todos têm seus direitos – que, no caso do mito, é essa
elevação no patamar social –, mas também têm seus deveres. E este é representado pela
constante cobrança a que o mito estará sujeito a partir do momento em que recebe destaque. A
essas pessoas é vedada qualquer atitude que não se encaixe naquilo “que a sociedade aprova”.
Caso contrário, a queda do pedestal é tão rápida e eficaz quanto a subida. Ele passa de
mocinho a bandido, ou simplesmente a um personagem secundário. É o caráter de
provisoriedade da cultura das mídias entrando em ação.
O fator da provisoriedade que parece ser a mola-mestra da cultura das mídias em oposição à durabilidade e permanência que caracterizam as formas mais tradicionais de cultura. (SANTAELLA, 1996:35)
A partir desse caráter provisório da cultura das mídias, podemos considerar a cultura
na sociedade pós-moderna como algo efêmero, dotado de mudanças rápidas e repentinas.
Caso a pessoa não saiba fazer uso correto da mídia para se manter em foco, poderá ser
rapidamente esquecida.
No entanto, é válido lembrar que sair da esfera midiática não é necessariamente o
mesmo que desaparecer de uma vez, sem volta. Em alguns casos, essa queda é absorvida por
outro tipo de mídia, diferente daquela que estava destacando o objeto. Esse novo meio
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reaproveita a figura mítica, conferindo-lhe uma esfera de nostalgia, que fica a seu favor no
fim das contas. Esses novos meios podem ser livros, almanaques, etc.
Desse modo, a cultura das mídias e sua intercomplementaridade comprovam a
afirmativa de que o mito transcende a relação espaço-temporal. Por ser uma fala, ele pode
gerar outro signo, apenas adaptando seu discurso àquela nova figura. Mas, da mesma forma
como o objeto perde seu significado para outro, ele ainda pode ser reaproveitado em outros
espaços a fim de se manter no imaginário popular.
No limite, o que veremos é que o mito se deixa eternamente interpretar, e esta interpretação torna-se, ela mesma, um novo mito. Em outras palavras, as interpretações não esgotam o mito. Antes, de outra maneira, a ele se agregam como novas formas de o mito expor suas mensagens. Numa cápsula, poderia ser dito: novas interpretações, outros mitos. (ROCHA, 1988:48)
Para ilustrar melhor essa afirmação, faremos uma analogia. O caramujo vive em uma
concha por parte de sua vida, até o dia em que essa mesma concha não comporta seu corpo.
Eis que ele a abandona, busca outra e continua a viver. Todavia, essa concha não fica
abandonada, já que logo depois surge um outro caramujo que irá se utilizar dela para se
proteger.
Adaptando isso aos mitos, consideremos o caramujo como um significado, a
mensagem que o mito pretende passar. A concha seria o objeto, o signo que o representa.
Quando o signo não for mais coerente com seu significado, este migra para outro objeto que
sirva melhor às suas necessidades. E aquele signo não deixa de existir; ele simplesmente será
reaproveitado – ou não – por outra mensagem com uma finalidade diferente.
2.2 – Mito e esporte
Sobreviver às constantes mudanças de paradigma social e as cobranças de sempre se
adaptar a eles é algo bastante presente quando tratamos de esporte. Nesse meio, a cobrança de
uma atitude linear e progressiva do atleta chega a ser, por vezes, exagerada.
Quando o atleta encontra-se no auge de seu condicionamento físico, há maior
preocupação e exploração da mídia sobre sua figura. São grandes publicações (que podem
contar até mesmo com detalhes pessoais da vida do esportista) trabalhadas com a finalidade
de vender sua imagem como “aquele que todos gostariam de ser” ou, como estamos
denominando, um herói/mito. É um movimento eufórico em torno da figura desse atleta, que
pode chegar a ponto de desgastar o receptor com tanta informação, que é por vezes
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irrelevante, mas raramente faz com que ele evite tais publicações. Sua curiosidade e a
necessidade de informação que sente a respeito daquela figura é constantemente motivada
através de diferentes estratégias empregadas pela mídia, impelindo-o para o consumo dessas
informações.
O fenômeno da idolatria sempre encontrou na mídia o maior e melhor veículo para sua realização; os meios de comunicação de massa acabam funcionando, assim, como legitimadores de heróis e celebridades, já que também necessitam destes como combustível para o funcionamento de sua engrenagem comercial com o público. Um grande astro, uma estrela do show business, um esportista vencedor – todos eles são fundamentais para colocar em marcha os mecanismos comerciais que movimentam a produção midiática do mundo ocidental. Aqui, uma distinção importante se estabelece entre o ídolo do esporte e o ídolo de outros universos (como da música, do cinema ou da TV); é a diferença que se cria entre heróis e celebridades. (MARQUES, 2005)
A mídia explora o destaque que determinada figura obtém na esfera social, e a eleva a
uma espécie de Panteão social, que, tal como ocorria na mitologia da Grécia Antiga, só
podem habitar nele os semideuses, heróis, e inúmeras outras entidades, ou seja, aqueles
dotados de um talento ou característica sobre-humana.
A idolatria em torno dos desportistas retratados nas notícias remonta à mesma
dedicada antigamente aos deuses greco-romanos, com sua aparência física impecável, seu
condicionamento perfeito e, como todo ser humano, com suas fraquezas. Além disso, também
há o fato de que os heróis da mitologia greco-romana chegaram ao Panteão após grandes
feitos, assim como os esportistas da atualidade, que alcançam o status de celebridade quando
se destacam em determinada atividade. O esporte e, porque não, principalmente o jornalismo
esportivo, é na verdade uma grande releitura dos clássicos da Antigüidade e seus personagens
heróicos, mudando somente o objeto no qual são representados. E, assim como na mitologia,
os heróis também eram passíveis de sucumbir devido duas fraquezas, sejam elas físicas ou
psicológicas, como qualquer ser humano comum.
Analisando o jornalismo esportivo, percebe-se que a partir do momento em que esse
mesmo esportista idolatrado perde o “talento” diferencial que o fez ser tão reconhecido e
procurado, diminui-se o frenesi a sua volta. Isso pode evoluir de tal maneira até culminar
numa mudança completa do discurso, com a mídia transformando-o de bom para mau
exemplo.
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Um caso que bem ilustra uma situação dessa foi o que aconteceu com o jogador de
futebol Ronaldo Nazário3, durante as Copas Mundiais de Futebol de 1998 e 2002. Nesses
campeonatos sua figura foi constantemente trabalhada e transmutada pelas grandes
publicações, sempre divergentes em seu discurso – umas defendiam o jogador enquanto
outras só se preocupavam em criticá-lo.
Antes da Copa de 1998, o jogador era o “fenômeno”, o destaque da seleção brasileira.
No entanto, na final contra a França, ele rapidamente perdeu esse posto e passou a ser o pária
brasileiro, aquele que impediu a vitória e o novo título da seleção de futebol. E, da mesma
maneira que perdeu seu posto, conseguiu reverter a situação e voltou a ser o fenômeno na
Copa de 2002, quando participou eficazmente da conquista do título já tão esperado pelo
Brasil, contra todas as expectativas tanto midiáticas quanto sociais. O caso de Ronaldo
“Fenômeno” é um grande exemplo de como um mito pode cair e ressurgir em questão de
instantes na esfera social.
O esporte possui grande fluxo no surgimento de figuras “heróicas”. Isso porque a cada
temporada, um determinado esportista destaca-se em sua categoria. Caso seu feito seja tão
grandioso, todas as publicações voltam-se a ele, procurando manter seu público, ávido por
informações. Então, eis que esse mesmo esportista perde as características que fizeram a
mídia voltar sua atenção a ele. Concomitante a isso surge outro atleta, e toma o lugar daquele,
e assim sucessivamente. Essa efemeridade é uma das características não só da cultura das
mídias de que nos fala Santaella, como também é constantemente presente no cotidiano do
jornalismo esportivo. “O tempo consome a informação muito mais rápido do que no passado.
O que transforma o que é notícia no início da tarde em algo sem importância na manhã
seguinte” (COELHO, 2003:79).
A mídia sobrevive desse sobe e desce constante de figuras míticas. Ela necessita cada
vez mais de produtos que sejam vendáveis a seu público, que atraiam sua atenção e motivem
o consumo da informação acerca de determinado assunto. Assim, seu discurso muda, e por
vezes chega a ponto de se contradizer; figuras surgem e desaparecem de uma hora para outra,
podendo reaparecer no cenário mítico, como Fênix, ressurgindo das cinzas.
Não existe “rigidez alguma nos conceitos míticos: podem construir-se, alterar-se,
desfazer-se, desaparecer completamente” (BARTHES, 2003: 212). Cabe ao seu representante
reconhecer e saber fazer bom uso da ferramenta que o fará sobreviver e permanecer assim por
3 in MARQUES, José Carlos. O Mito Construído, Destruído e Restituído. O caso cíclico de Ronaldo
Fenômeno. INTERCOM/2005 – XXVIII Congresso Brasileiro UERJ/RJ – Rio de Janeiro (RJ) – Setembro 2005
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um bom tempo de maneira que, mesmo se “esquecido” por um tempo pela mídia, consiga
ressurgir quando lhe for conveniente, de um modo que lhe seja agradável.
Nos dias de hoje, o mesmo papel desempenhado pelo romance passou a ser ocupado pela imprensa e outras manifestações de massa, como o cinema, a televisão, a propaganda e o esporte. Ao longo do século XX, a imprensa agiu constantemente no sentido de criar e recriar mitos (e de desmontá-los do mesmo modo), por meio de processos de exposição intensa do ídolo (MARQUES, 2005)
O jornalismo esportivo é um dos maiores palcos de criação de mitos. Através de seus
atletas, representa-se a cada dia um ideal que deve ser seguido por todos nós. Ele se apóia na
elevação de seres comuns a um pedestal quando estes realizam algo notável o bastante,
dando-nos a impressão de que todos podemos chegar lá se formos condizentes com aquilo que
é realizado pelo atleta em questão.
Normalmente esses esportistas destacados fazem parte do Futebol. O Brasil se auto-
denomina “país do futebol”. Assim, quando se fala em jornalismo esportivo a primeira coisa
que se pensa é nessa modalidade. Provavelmente devido a esse fato, é grande a dificuldade de
se encontrar literatura que fale de outras atividades desportivas no jornalismo, como tênis,
basquete, lutas, etc. Além disso, por serem estes esportes mais restritos a determinado
público, são poucas as publicações que utilizam seus espaços a fim de noticiar outros
campeonatos. Na maioria das vezes, o que se encontra é uma matéria de grande enfoque sobre
algum campeonato futebolístico, enquanto outros ou ficam em um pequeno e quase
imperceptível espaço ou nem chegam a isso, e são publicados exclusivamente em revistas
especializadas.
No entanto, durante a realização dos Jogos Pan Americanos na cidade do Rio de
Janeiro em 2007, muitos esportes ganharam certo destaque na mídia. Aliás, esse foi um dos
pontos positivos da competição, pois muitas categorias antes desconhecidas pelos brasileiros
passaram a fazer parte do vocabulário popular. Até mesmo pessoas que nunca tinham ouvido
falar em determinado esporte iam às competições somente para se sentirem participando do
evento e, assim, aprendiam um pouco mais. Entre esses “ilustres desconhecidos” tem o tae-
kwon-do, por exemplo, esporte que trouxe a primeira medalha de ouro ao Brasil na
competição, com o lutador paulista Diogo Silva na categoria até 68kg.
Mas o diferencial mesmo foi o nadador Thiago Pereira. O nadador de 21 anos, natural
de Volta Redonda, inicialmente era conhecido apenas por pessoas que acompanhavam de
perto o circuito. Nos Jogos Pan Americanos do Rio de Janeiro, Thiago alcançou grande
19
destaque em suas provas, subindo ao pódio em todas. Foram oito medalhas, sendo seis de
ouro, uma de prata e uma de bronze, quebrando o recorde de Mark Spitz (lendário nadador
dos anos 70), de maior número de medalhas conquistadas em Jogos Pan Americanos.
Assim, Thiago Machado Vilela Pereira passou a ser “o Thiago Pereira da natação”, o
“Rei do Maria Lenk”, reconhecido onde quer que andasse e figura fácil em nosso imaginário
popular. Virou um ídolo, uma figura pop, com direito a entrevistas, coberturas especiais,
análises de especialistas sobre sua performance, etc., muito mais exposição que diversos
atletas da categoria já foram submetidos. No site de relacionamentos Orkut, por exemplo, ele
é tema de mais de mil comunidades, com uma delas contando com a participação de quase
dez mil pessoas.
A mídia, que antes oferecia-lhe pouco destaque, ou sequer o conhecia, aproveitou sua
figura e o carisma que despertava no público, acompanhando cada detalhe de suas
competições, desde o próprio desempenho do atleta até sua mãe e a história de suas vidas.
Como conseqüência disso, os brasileiros, que antes pouco sabiam de natação, passaram a
procurar mais o esporte, a aprender mais o que era nado medley, costas, livre, etc.
Essa expectativa gerada em cada competição de Thiago ainda tinha como adicional o
baixo desempenho da seleção masculina de futebol. Assim, transferindo a idolatria dos
gramados para a piscina, o Brasil ganhou um novo ídolo, um mito que estava sempre pronto
para qualquer competição, que cada vez mais surpreendia seus expectadores. E durante os
Jogos Pan Americanos do Rio de Janeiro 2007, o “país do futebol” se curvou ao ilustre
desconhecido e consumiu vorazmente cada competição de natação, vendida pela mídia como
vitória certa para o Brasil.
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3. A CONSTRUÇÃO DO MITO NA MÍDIA
3.1 – O jornal O Globo
O jornal carioca O Globo foi fundado em 29 de julho de 1925 por Irineu Marinho,
jornalista proprietário do vespertino A Noite. Inicialmente, o jornal deveria ser um diário
matutino que expandiria o público-leitor da empresa, a fim de concorrer com jornais como o
Correio da Manhã, Diário Carioca e Jornal do Brasil, entre outros. No entanto, acabou por se
tornar a principal publicação da empresa.
Semanas após sua fundação, seu proprietário, Irineu, faleceu. Assim, o jornal foi
herdado por seu filho Roberto Marinho, que permaneceu no comando por um longo tempo.
Ele criou um conglomerado de empresas de mídia culminando na atual Organizações Globo,
composta por diversos veículos informativos, que conta com outros jornais, como Extra,
Expresso, Diário de São Paulo e Valor Econômico. Além dos jornais, a empresa também
possui revistas, rádios, canais de televisão e muitos outros veículos midiáticos.
O jornal O Globo é um dos periódicos de maior circulação no Rio de Janeiro4,
orientado para o público de massa da grande área metropolitana.
3.2 – Thiago Pereira
O nadador Thiago Machado Vilela Pereira é da cidade de Volta Redonda, localizada
no Estado do Rio de Janeiro. Nasceu no dia 26 de janeiro de 1986. Tinha 21 anos quando
participou dos Jogos Pan Americanos do Rio de Janeiro em 2007.
Quando contava com um ano e meio de idade quase se afogou ao entrar numa piscina,
o que fez com que sua mãe, Rose Vilela, o colocasse em uma escolinha de natação.
Seu primeiro local de treino foi no Clube dos Funcionários de Volta Redonda, e
recebeu sua primeira medalha – de bronze – aos 12 anos, numa competição local. Os bons
resultados alcançados chamaram a atenção dos treinadores do Minas Tênis Clube, que o
levaram para Belo Horizonte em 2001. No ano seguinte, representando o Brasil nos Jogos
Sul-Americanos, levou medalha de ouro nos 200m peito.
Antes dos Jogos, o nadador já havia participado das Olimpíadas de Atenas, e já
naquela época era apontado como uma promessa na natação brasileira. No entanto, sua figura
4 Segundo o Instituto Verificador de Circulação, a média de circulação de dias úteis e domingos do mês de julho (período da realização dos Jogos) foi de 273.672 exemplares.
21
não teve tanto destaque assim na época, surgindo como ídolo somente no Pan 2007. Prova
disso é a dificuldade em se encontrar seu histórico de competições, que na maioria dos lugares
só é levado em consideração a partir do Pan.
3.2 – O Globo nos Jogos Pan Americanos de 2007
A figura de Thiago Pereira foi largamente explorada em diversos veículos de
comunicação. Podia-se acompanhar cada passo que ele deu, onde foi, com quem conversou,
etc.
Durante a realização dos Jogos do Rio de Janeiro, o suplemento esportivo do jornal O
Globo assumiu um design direcionado à competição, alterando inclusive sua logomarca. Nos
exemplares analisados, que vão de 14 de julho ao dia 31 do mesmo mês, em apenas um dia os
Jogos não foram capa. Isso aconteceu no dia 16 de julho, um dia após a vitória do Brasil sobre
a Argentina na final da Copa América. No entanto, na parte inferior da página, tem-se a
informação de que esse dia foi uma exceção, que os Jogos voltariam a ser capa no dia
seguinte, como de fato ocorreu.
As primeiras páginas eram reservadas ao Pan e, para que não fossem confundidas com
as outras notícias, na parte superior de todas as que estavam relacionadas à competição havia
um traçado verde, que nos outros assuntos era azul. Ainda no que concerne à diagramação do
jornal, vale atentar para o fato de que as páginas centrais das edições eram dedicadas àquelas
modalidades que tiveram mais destaque no dia.
Todas as modalidades foram noticiadas, umas mais, outras menos, dependendo da
repercussão de seus atletas nas provas realizadas. Além disso, algumas figuras tiveram mais
destaque que as outras, participando de seções exclusivas, como o Perfil, com a jogadora de
futebol Marta e o jogador de vôlei Giba.
As edições especiais também tratavam de questões de gênero mais político,
envolvendo a infra-estrutura dos Jogos, os dirigentes de algumas modalidades, apoio aos
atletas, dentre outros. Não se tratou unicamente de “quem ganhou o que”, mas sim de um
acompanhamento do cotidiano da Vila do Pan, suas festas, reclamações, etc.
3.3 – Thiago Pereira segundo O Globo
Uma notícia é influenciada por diversos elementos que podem lhe ser externos ou não.
É a partir desses elementos que o autor escolhe qual será seu enfoque, como abordará
22
determinado tema e qual será a imagem escolhida para ilustrá-lo. Não se deve subestimar
nenhum elemento da notícia, conquanto todos contribuam para que seu sentido se mantenha
como o emissor pretendia. Em “O óbvio e o obtuso”, Barthes chama atenção para a
quantidade de leituras que se pode inferir de uma mesma imagem (que ele denomina lexia) e
que, alem disso, é variável de um indivíduo para outro. Segundo o autor,
na fotografia, pelo menos ao nível da mensagem literal, a relação entre os significados e os significantes não é de “transformação”, mas de “registro”, e a ausência de código reforça, evidentemente o mito do “natural” fotográfico: a cena está aqui, captada mecanicamente, mas não humanamente (o elemento mecânico é, aqui, garantia de objetividade). (BARTHES, 1990:36)
Por ser reconhecida como mera ferramenta utilizada para o registro de eventos, “há,
em toda fotografia, a evidência sempre estarrecedora do isto aconteceu assim: temos, então,
precioso milagre, uma realidade da qual estamos protegidos” (BARTHES, 1990:36)
No entanto, a fotografia não é simplesmente algo mecanicamente produzido. Quando
uma imagem é captada, a foto relativa ao momento vem imersa em uma série de escolhas de
quem está por trás da câmera, como enquadramento, angulação, luminosidade, etc. É a
intervenção conotativa cultural na fotografia. Ela deixa de ser, então, uma mensagem sem
código para uma mensagem codificada.
E, para transmitir sua ideologia, a fotografia utiliza diversas técnicas com a finalidade
de ofuscar a visão de seu leitor, a fim de que ele não perceba a quantidade de códigos que está
consumindo. “Quanto mais a técnica desenvolve a difusão das informações (especialmente as
imagens), mais fornece meios de mascarar o sentido construído sob a aparência do sentido
original” (BARTHES, 1990:37).
Assim, aliada ao texto e à legenda, uma notícia é produzida para que seu consumidor a
aceite como verdade inconteste. Portanto, antes de qualquer tipo de mito, já se tem o mito da
objetividade e verdade do jornalismo.
Nas primeiras edições analisadas5, o nadador não aparece em nenhuma matéria, e em
algumas sequer a natação brasileira é lembrada.
No dia 14 de julho, a capa é a abertura do Pan, que aconteceu no dia anterior. Nesse
dia a natação aparece na quarta página, somente para falar a respeito do norte-americano Gary
Hall, forte concorrente do brasileiro César Cielo em uma das provas. A foto utilizada para
5 Todas as edições encontram-se no CD anexado à monografia, podendo ser identificadas pelas datas que dão nome aos respectivos arquivos
23
ilustrar a matéria não é sequer de César Cielo, mas sim de seu oponente. A postura de Hall na
foto é a de alguém despreocupado, aparentando ter certeza de sua vitória sobre o brasileiro. E
ela é complementada pelo texto, no qual ele é assunto principal, deixando seus oponentes
brasileiros antigos e atuais relegados a segundo plano. O autor demonstra certa preferência
pelo nadador norte-americano, ao colocá-lo no “panteão dos heróis” após conquistar quatro
medalhas nas Olimpíadas de Atlanta. Além disso, para demonstrar que ele é um vencedor
(característica necessária a um mito), fala de sua luta contra o diabetes no seguinte trecho logo
na abertura do texto:
As quatro medalhas que Gary Hall ganhou nos Jogos de Atlanta (1996) levaram-no ao panteão dos heróis, mas a admiração do público cresceu quando, três anos depois, ele descobriu ser portador de diabetes. Mesmo assim, ganhou mais seis medalhas em duas Olimpíadas (O GLOBO – Esportes 14/07/07)
Na leitura do texto acima, aparenta-se que o diabetes é uma doença que torna as
pessoas incapazes de realizar qualquer esforço, quando isso não é verdade e muitas vezes
recomenda-se que portadores dessa doença pratiquem esportes6. Além desse trecho, o texto
tem declarações de Gary Hall que denotam certo carisma do nadador com seus antigos
oponentes, a quem ele elogia a performance nas piscinas.
No dia seguinte (15 de julho), a primeira página fala da falta de ouro brasileiro nas
competições. E não há nenhuma matéria sobre a natação. O esporte reaparece no dia 16
(primeira página – Copa América), mas somente em uma nota de canto, sem fotos, falando de
uma provável hegemonia norte-americana no ouro, mesmo sem trazer seu time “série A”.
Nessa nota, é visível o descrédito que o redator tem sobre a equipe brasileira, reduzindo seu
talento ainda desconhecido do público. Por outro lado, o favoritismo pela equipe norte-
americana é evidente, já que ele denomina principalmente os oponentes dos Estados Unidos
quando fala sobre o Brasil, inclusive colocando os nomes dos competidores da equipe
estrangeira antes dos brasileiros. A nota em si não tem nenhum elemento que a destaque na
página que ocupa no jornal (página seis), podendo até mesmo passar despercebida por um
leitor desatento.
Thiago Pereira é “apresentado” ao público somente no dia 17 (capa – Jade Barbosa,
que competiu no dia anterior), quando se classificou para a final do dia seguinte, com seu
nome aparecendo no subtítulo da matéria (Thiago Pereira foi o mais rápido das eliminatórias
6 Segundo o site da Sociedade Brasileira de Diabetes, para manter o diabetes sobre controle, a atividade física é um dos fatores indispensáveis.
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Foto 1
e disputa final ainda hoje), sendo que o título já oferece uma esperança de ser a natação a
provedora do segundo ouro para o Brasil. No início da matéria, o leitor pode conhecer quem é
o Thiago que se classificou para a final dos 400m medley. A matéria é dividida em quatro
blocos, sendo que um deles é dedicado somente a Thiago e suas declarações sobre a prova.
Ele faz uma declaração que demonstra humildade, ao dizer que a final é outro dia e que a
disputa será difícil e agradece à torcida no final. O destaque do nadador é relativo, mas a
partir daí, pode-se ver como ele provavelmente será tratado se vencer a competição do dia
seguinte.
A matéria conta com uma foto de Thiago durante a prova, com a legenda Thiago
Pereira em ação nas classificatórias de ontem. Texto, legenda e imagem se complementam,
pois as três ilustram a boa performance do nadador na competição. A legenda em si, com o
texto “em ação” remete a figura de um herói, a alguma entidade que trabalha para o bem de
outrem. No caso de Thiago, o que isso conota é que ele procura dar o melhor de si para a
equipe de seu país, a fim de que ela conquiste a medalha de ouro que espera.
Ele começa a ser reconhecido mesmo no dia 18, no qual divide a capa da seção
esportiva com a equipe da ginástica olímpica brasileira. Na foto escolhida, o nadador está de
frente para a câmera (portanto, de frente para o leitor) beijando a medalha conquistada. Com
essa atitude, ele consegue passar o orgulho que sente ao vencer a
competição para seu país. O fato de estar de frente para o
público/leitor, transmite segurança e certeza em seu ato,
demonstrando que ele não foi completamente calculado para isso,
que foi algo instantâneo (Foto 1).
A matéria que se segue à capa, fala das vitórias brasileiras,
enfatizando mais a figura do nadador, apesar de ter sido esse um
“dia de ouro” também para a ginástica olímpica. Com o título Um
início perfeito para a natação e o subtítulo em forma de box com
os dizeres OUROS: Thiago Pereira bate dois recordes e garante
duas medalhas para o Brasil a matéria já oferece uma pré-noção
do favoritismo que o próprio autor declara ao nadador.
“O banho de ouro começou na manhã de ontem com a natação, no Parque Aquático
Maria Lenk, e continuou, à tarde, ao lado, na Arena Olímpica, com a ginástica artística” (O
GLOBO – Esportes 18/07/07). Essa frase abre o texto e é a única menção que se faz à
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ginástica. Depois disso, o que se segue é uma idolatração do esporte aquático e suas
competições bem-sucedidas no dia anterior.
Pela primeira vez, os outros atletas da equipe brasileira de natação são introduzidos ao
público. No entanto, o que aparece em suma é Thiago. As únicas declarações no corpo do
texto são do nadador. Em um primeiro momento, ele reconhece que está em ótima forma e dá
a entender que acredita que vai conquistar mais medalhas de ouro. Posteriormente, assume
uma postura mais humilde, ao declarar que ficará satisfeito se puder fazer seu melhor na
competição, mesmo que não suba ao pódio e, na terceira e última fala, demonstra gratidão ao
mineiro Nicolas Oliveira, responsável pelo ouro no revezamento 4x200m livre.
Nessa matéria inicia-se a pretensão de mitificar a figura de Thiago. Após o entre-título
Em busca do recorde de ouros, a matéria segue assim:
Os pódios de ontem podem ter aberto caminho para outras marcas históricas na carreira de Thiago Pereira. Se continuar nesse ritmo e chegar às sonhadas sete medalhas de ouro, ele ultrapassará o americano Mark Spitz, maior medalhista de ouro em um único Pan. O mito das piscinas ganhou cinco ouros em Winnipeg-1967. (O GLOBO – Esportes 18/07/07)
Ao comparar Thiago com alguém já considerado mito, abre-se caminho para o
reconhecimento do brasileiro como o novo mito do Pan 2007. Essa comparação faz com que o
leitor possa compreender melhor os motivos que levariam o nadador brasileiro a se tornar
uma figura lendária e que, por isso, deve ser acompanhada mais de perto. Além disso, a
matéria oferece mais detalhes do nadador, como sua idade e altura.
Além da prova individual, Thiago também competiu no dia anterior no revezamento
4x200m medley. O texto cita um “nadador anônimo” que contribuiu para a classificação da
equipe de revezamento, mas quem fala mesmo sobre a vitória é Thiago. Assim, a matéria
confere ao nadador, sua mais nova “celebridade” algo como o papel de “porta-voz” da
natação, como se ele fosse o sinônimo de “Equipe de natação do Brasil”.
Mesmo com tantos destaques no dia, a imagem escolhida para ilustrar a matéria é de
Thiago, durante uma das duas provas que participou no dia anterior. A legenda complementa
texto e imagem ao declarar o favoritismo do nadador nas competições que participou,
resumindo brevemente os elementos do texto, sem se tornar redundante, pois não detalha os
fatos, como no corpo da matéria.
Nesse mesmo dia, o jornal teve ainda uma matéria de página inteira sobre a natação. E
mesmo na matéria que se propõe a destacar o tal “nadador anônimo”, Nicolas de Oliveira (que
conseguiu superar os norte-americanos, já que a equipe brasileira havia se conservado em
26
segundo lugar durante toda a prova, vencendo com a arrancada de Nicolas), a foto utilizada
destaca mais Thiago do que ele. O primeiro ainda se encontra dentro da piscina, enquanto o
segundo está comemorando. A foto escolhida pode ser considerada boa, já que retratou o
momento exato do anúncio da vitória brasileira, um instante único, mas seria melhor oferecer
mais destaque a quem é retratado na matéria – o nadador Nicolas. No entanto, essa primeira
percepção da foto perde sua importância quando recorre-se à legenda, na qual Nicolas é o
destaque. Provavelmente, a intenção era realmente retratar a reação imediata da equipe
brasileira quando foi anunciada a vitória. No texto, Nicolas consegue ganhar seu espaço, mas
a figura de Thiago ainda reaparece de maneira carismática, quando o redator diz que ele “foi o
primeiro a reverenciá-lo” (O GLOBO – Esportes 18/07/07).
A página também possui outra matéria destinada ao esporte aquático. Mas não trata de
nenhum nadador especificamente e sim da mãe de Thiago Pereira. Durante os Jogos, sua
figura teve grande destaque devido a torcida frenética por seu filho, que se tornou uma marca
nas competições de natação. Cada detalhe da torcida pelo nadador durante a prova, desde os
movimentos que a mãe faz com os braços, até a voz rouca adquirida logo na primeira
competição entra no texto. O autor explora cada detalhe, absorve cada informação a respeito
do nadador, a fim de que as pessoas comecem a vê-lo como um ser humano que venceu, que
persistiu e conseguiu se destacar. Ele ganha seu espaço sobre-humano quando o autor do texto
(Ary Cunha) o chama de “menino prodígio da natação”. E isso é complementado com a
declaração da mãe de Thiago, Rose Vilela, que diz: O Thiago trabalhou muito para chegar
até aqui.
No texto, além da mãe de Thiago, fala-se também sobre como a torcida inteira do
Parque Aquático Maria Lenk (local onde foram realizadas as competições de natação),
reverenciava o jogador. Ele não deixa de citar os outros nadadores e suas respectivas torcidas,
mas fala pouco sobre isso e somente no final, quando cita a existência de faixas com os nomes
de cada um. Em suma, a matéria é, na verdade, sobre a vida de Thiago, já que também fala
sobre seu cotidiano em Belo Horizonte, sobre o lugar onde treina e a família com quem mora
na capital mineira e a pessoa que considera sua “segunda
mãe”. Inclusive, a foto escolhida para ilustrar o box é o
momento em que as duas “mães” de Thiago se abraçam para
comemorar sua vitória. A legenda abaixo complementa a
imagem (Foto 2), já que descreve quem é quem na foto.
Foto 2
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Foto 3
Foto 4
A natação reaparece na capa da editoria de Esportes no dia 19 de julho, mas
representada pela nadadora brasiliense Rebeca Gusmão, acompanhada de uma matéria na
própria capa sobre sua vitória e o feito de ser a primeira nadadora brasileira a conquistar o
ouro em Jogos Pan Americanos.
As páginas centrais desse dia falam em
suma da natação. Uma das matérias trata de
Rebeca e seu marido, sua vida, traçando uma
espécie de perfil da atleta. Em outra, o assunto é
César Cielo, mas essa mesma matéria já alerta
para a próxima competição de Thiago, no dia
seguinte, e sua tentativa de alcançar o terceiro
ouro. O nadador mesmo não é destaque em
nenhuma das matérias. Sua foto aparece
somente num infográfico (Foto 3) sobre o histórico do Brasil em todas as edições dos Jogos
Pan Americanos, anunciando, em sua legenda (Thiago Pereira na semifinal de ontem dos
200m costas: ele já levou dois ouros e pode igualar o recorde de Gustavo Borges e Hugo
Hoyama), uma provável quebra de recorde de medalhas de Thiago sobre o ex-nadador
Gustavo Borges e o mesa-tenista Hugo Hoyama. O infográfico demonstra que Thiago tem a
possibilidade de conseguir em um único Pan aquilo que os outros dois brasileiros
conseguiram acumulando suas competições. Ou seja, ele é um fenômeno das piscinas e do
esporte brasileiro.
A edição que mais destaca Thiago é a do dia 20 de julho. Logo na capa
(Foto 4), o nadador aparece numa fotografia que a cobre por
inteiro, com a dimensão de 39,3x29,7cm, sob a legenda Show
solo, já que ele foi o único ganhador de medalha de ouro na
delegação brasileira no dia anterior. Além do título, a capa
tem um box anunciando em que página se encontra a matéria
de capa e uma prévia do que será tratado nela (NATAÇÃO:
Thiago Pereira ganhou a sua terceira medalha de ouro, a
única do Brasil num dia de poucas alegrias). E a foto
também possui sua legenda: Thiago Pereira, ainda na
piscina, festeja a sua vitória nos 200 metros costas no Maria
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Lenk. Imagem e legenda se complementam, reforçam o sentido uma da outra. A primeira dá-
se a entender sozinha, mas a legenda adiciona e explica o que foi aquele momento. Ao optar
por colocar na capa o momento exato da vitória de Thiago, quando ele comemora sem nem ao
menos tirar os óculos de natação, o jornal fez uma boa escolha. A imagem oferece uma idéia
nítida de movimento comemorativo e infere a alegria da conquista do nadador quando se
descobriu vencedor da prova.
A partir daí pode-se saber o que virá na matéria sobre a capa. Nela, já em seu título, o
nadador é coroado como o Rei do Maria Lenk, numa matéria que ocupa quase a página inteira
do jornal (cerca de 700cm2), cedendo apenas cerca de 10 centímetros para a outra vitória
brasileira na natação.
A matéria já se inicia de maneira poética:
Descobrir os limites do homem é uma tarefa para os estudiosos e um bom tema de discussão de horas e dias, meses e anos. Mas, quando uma prova ou carreira se decide em décimos de segundo, braçada a braçada, Thiago Pereira é um daqueles que parecem predestinados a quebrar barreiras, brincar com o tempo, ignorar o cansaço e superar limites. (O GLOBO – Esportes 20/07/07)
Ao utilizar uma linguagem mais literária no texto, a importância de Thiago é revelada,
pois esse tipo de matéria não é tão usual em um periódico diário, como O Globo. Durante
todo o texto, tem-se uma idéia de praticamente um livro-reportagem sobre os feitos do
nadador. Em um trecho, já se admite que ele é o favorito absoluto para as provas. Assim, por
toda a matéria é utilizado o caráter narrativo, e o que se tem é a figura humana de Thiago,
aquele que subiu ao Olimpo durante os Jogos Pan Americanos de 2007. Para que o leitor
possa compreender melhor a dimensão dos resultados alcançados, freqüentemente o texto
compara o tempo de Thiago com o de outros recordistas e grandes competidores da natação.
A imagem escolhida alia-se ao texto, ilustrando a serenidade do nadador ao receber a terceira
medalha de ouro, sendo complementada pela legenda: Thiago Pereira beija a sua terceira
medalha de ouro: “Estou jovem para pensar em limites”. E por todo o restante do texto, ele
se mostra uma pessoa comum, como qualquer outra, admite cansaço, mas ao mesmo tempo
demonstra persistência, ao declarar:
- Foram duas provas quase que seguidas, com intervalo de meia hora. Nos últimos 50 metros (dos 200m costas), eu já estava morto. Aí pensei: Ah, só faltam 50 metros. Agora, é comemorar o ouro. (O GLOBO – Esportes 20/07/07)
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Com essa declaração, a esfera heróica que envolve a figura de Thiago aumenta sua
dimensão. Nela, ele demonstra toda a persistência para vencer necessária a quem pretende
fazê-lo. A expectativa sobre o nadador é tanta que nesse espaço é colocado um quadro
detalhando quais são as competições que faltam para Thiago alcançar as oito medalhas de
ouro – todas as provas de que participou. Nesse ponto, o nadador já é alçado a um patamar de
ídolo, um mito que pode tudo e vence tudo. É então que se iniciam explicitamente as
expectativas sobre ele, que se começam as cobranças de vitória, de ser um exemplo do ideal a
ser venerado e alcançado.
No dia seguinte (21 de julho), a matéria de capa é a vitória brasileira sobre Cuba no
judô feminino e masculino. Há, nesse dia, uma matéria exclusivamente sobre Thiago Pereira,
na qual o nadador é elevado à representação de um ídolo, mas atentando para o fato de que ele
não quer ser visto assim se não for somente para motivar o surgimento de outros nadadores,
como aconteceu com ele em 1996, nas competições de Gustavo Borges e Fernando Scherer. A
intenção de chamar a atenção para a humildade do atleta ao receber esse título – ídolo – pode
ser encontrada em no trecho
Mesmo vencendo todas, Thiago parece não querer se sentar no trono dos ídolos: - Não caiu a ficha. Eu me preocupo com as provas. Sobre ser ídolo, espero poder motivar novos nadadores que estão nos vendo, como aconteceu comigo em 1996. (O GLOBO – Esportes 21/07/07)
Essa mesma declaração recebe destaque em um quadro laranja bem destacado no
centro da matéria (“Não caiu a ficha. Eu me preocupo com as provas. Sobre ser ídolo, espero
motivar novos nadadores”). Além disso, o texto declaradamente sobre-valoriza as vitórias de
Thiago e sua ótima performance na piscina, já que fala dos outros membros da equipe
brasileira que também foram vencedores no dia anterior, somente no último parágrafo.
O texto mantém o caráter literário da matéria do dia anterior, poetizando as provas das
quais o nadador de Volta Redonda participou. Em sua abertura ele fala: Braçada a braçada,
Thiago Pereira segue fazendo história no Parque Aquático Maria Lenk. (O GLOBO –
Esportes 21/07/07). A partir daí segue a narrativa das competições e do nadador em si. Este
sempre se mantém como alguém que reconhece sua fraqueza humana.
A foto que ilustra a matéria é a imagem de Thiago após uma de suas competições
(200m medley, prova que ele declara preferência no corpo do texto), com a legenda que se
inicia Thiago cansado e posteriormente o número de vezes em que ele cairá na piscina. Com
isso, o que podemos entender é o esforço do nadador durante o Pan, a persistência em
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Foto 5
competir e vencer as competições, sem desistir. Como um herói, mesmo com todo o cansaço,
ele pensa em conquistar mais medalhas de ouro e aumentar o quadro do Brasil.
A matéria da página seguinte continua
com o assunto da natação (Foto 5), e fala do ouro
brasileiro no revezamento 4x100m, que contou
com Fernando Silva, Eduardo Deboni, Nicolas
Oliveira e César Cielo, e teve a participação de
Thiago nas eliminatórias. Os cinco ganharam as
respectivas medalhas de ouro7, mas somente os
quatro nadadores que competiram na final
puderam subir ao pódio. No entanto,
demonstrando declarado favoritismo, a foto de
Thiago com a medalha (19x14,7cm) é bem maior
que a da equipe que competiu na final
(7,2x9,6cm). Ainda analisando as fotos, calculando-se sua área, observa-se que a foto de
Thiago (que está de costas para a câmera e virado para o público), é quatro vezes maior que a
da própria equipe.
Foto Thiago
Foto Equipe
Quadro (Thiago)
Texto
O gráfico acima oferece uma boa perspectiva sobre como a figura de Thiago leva total
destaque mesmo que ele não tenha participado no dia da prova noticiada. Sua figura tem
espaço exclusivo em 43,8% (incluindo o quadro e a foto) da reportagem, enquanto à equipe só
é destinada a parte do texto e a foto, que ocupa somente pouco mais de 8% do total do espaço
utilizado no jornal.
Além disso, a reportagem também inclui um quadro com o título Perto de novo
recorde, que fala sobre o recorde de medalhas de ouro em Pan Americanos, com Thiago em
7 Segundo algumas edições do próprio caderno esportivo d’O Globo, Thiago Pereira tem o direito de receber a medalha conquistada pela equipe por ter participado das eliminatórias no dia anterior e ser reserva.
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terceiro lugar. Note-se que já é a segunda vez que se chama a atenção do público leitor para
esse detalhe tão impressionante do nadador: o feito de quase ser recordista em medalhas de
ouro em apenas uma edição dos Jogos. Na parte inferior do quadro, tem-se as provas que ele
ainda deve competir para se igualar aos detentores do primeiro lugar, com oito medalhas cada.
A capa do dia 22 de julho destaca as vitórias femininas nos Jogos em diversas
modalidades. Thiago aparece em uma matéria com o título Thiago Pereira: ‘Não sou um
super-homem’. Já no subtítulo o nadador é chamado de fenômeno, mesmo declarando não
aceitar essa rotulação (Recorde: Nadador supera Mark Spitz, mas rejeita rótulo de fenômeno).
Thiago procura manter-se distante dessa esfera de idolatria criada pela mídia. Ele não quer ser
ídolo, mas esse papel é-lhe imposto pelas publicações nos Jogos. Ele vira um mito sem
desejar, tem sua imagem reaproveitada por um ideal de que “todos podem vencer” sem que
lhe peçam permissão para isso. Observa-se, assim, como o ídolo procura se manter “normal”
(talvez para não cair nas tentações e perda de individualidade que a fama provocam) mesmo
que a mídia não lhe dê opção.
Durante todo o corpo do texto, o redator desdobra-se em relembrar e elogiar os feitos
do atleta, escrevendo em um trecho:
Mesmo sendo considerado um fenômeno, Thiago dispensa o rótulo: - Não sou um super-homem. Tudo isso é resultado de um trabalho iniciado em outubro com meu técnico, Fernando Vanzena. São horas de treino diários. (O GLOBO – Esportes 22/07/07)
A fim de ilustrar melhor o porquê do nadador ser considerado um fenômeno e oferecer
maior visibilidade para posterior concordância de sua afirmação pelo público, o jornalista
utiliza exemplos de grande destaque no mundo da natação, que foram superados por Thiago
no Pan 2007. Assim, o leitor pode compreender de maneira mais eficaz a dimensão dos feitos
do nadador nos Jogos.
Em um trecho, o autor denomina as competições do Pan como a maratona de Thiago.
Isso lembra, se pensarmos em ídolos e mitos antigos, a Hércules e seus doze trabalhos. O
herói grego só poderia habitar no Olimpo se cumprisse suas doze tarefas, assim como Thiago
seria elevado a mito se superasse todos os recordes obtidos até o momento.
O diferencial dessa matéria ao se observar o padrão dos dias anteriores deve-se ao fato
de, com toda a idolatria reservada a Thiago, optou-se por colocar somente uma foto dele,
enquanto há, também, duas do paraibano Kaio Márcio, todas de igual tamanho. O paraibano,
no entanto, só é citado nos três penúltimos parágrafos, sendo o último reservado à medalha de
32
bronze feminina. Há, também, um quadro, informando a prova que será disputada por César
Cielo contra Gary Hall, que já havia sido citada na primeira edição analisada (14 de julho de
2007).
O dia 23 de julho teve como primeira página a discrepância entre a torcida brasileira
no judô – que recebeu nota zero – e o time masculino de handebol, com nota dez após o ouro
conquistado no dia anterior.
Nessa edição, a natação teve uma reportagem especial sobre o último dia de
competições da modalidade. Todas as fotografias utilizadas são de medalhas conquistadas. A
de Thiago é uma imagem do nadador com todas as medalhas que ganhou em competições no
Pan 2007 que, segundo a legenda “mal cabem em sua mão”. E, dessa vez, a dimensão da
imagem é menor que a dos outros nadadores fotografados (Rebeca Gusmão e César Cielo).
O texto fala sobre todos os competidores de maneira geral, com uma declaração de
César Cielo de que essa é a equipe de natação mais
forte que a equipe brasileira já teve. No quadro
complementar análise•natação (Foto 6), é que a
figura de Thiago Pereira tem mais destaque
(juntamente com Kaio Márcio e César Cielo), com a
declaração do ex-nadador Gustavo Borges – um
ícone da história da natação brasileira – que, após
discorrer sobre os outros nadadores, declara ao fim
de sua citação: “Thiago é um fenômeno”. Tirando
esse fato, em suma a matéria é sobre o bom
desempenho inesperado da natação.
Nos dias que se seguem, a natação
desaparece das páginas do caderno de Esportes d’O
Globo. Compreensível, já que as provas tinham
chegado ao fim e era necessário deixar mais espaço
para os outros esportes que ainda continuavam nos
Jogos.
Thiago aparece no dia 31 de julho, dois dias após o encerramento dos Jogos. Na
edição que tem como primeira página uma espécie de calendário com as perspectivas de
eventos esportivos a serem sediados no Brasil, Thiago é citado e elogiado em uma matéria
sobre Hugo Hoyama. O mesa-tenista revela sua admiração pelo nadador e se compromete a ir
assisti-lo em Guadalajara na próxima edição do Pan, além de declarar que torce para que o
Foto 6
33
nadador quebre seu recorde de medalhas. Mas é somente assim que ele aparece, sem fazer
declaração alguma.
Com os Jogos, a vida de Thiago passou a ser “assistida” por quem desejasse saber
mais sobre ele. Além dele, sua mãe também ganhou status de celebridade, sendo convidada
para matérias, entrevistas, programas de televisão etc. Definitivamente, pode-se dizer que os
Jogos Pan Americanos do Rio de Janeiro deram a Thiago Pereira um destaque inigualável. Só
resta saber se ele conseguirá voltar ao cenário midiático da mesma maneira, como um bom
mito deve fazer: ser restituído ao seu devido lugar.
A partir dessas edições do caderno esportivo do jornal O Globo, pode-se observar
como, aos poucos, Thiago conseguiu ser reconhecido por seu talento e figurar no hall dos
atletas brasileiros. O nadador foi acompanhado de perto, para que nenhum movimento fosse
perdido. Desde o momento antes da prova na piscina até o final, quando ele assoprava a água,
tudo foi minuciosamente observado e utilizado nas matérias dos diversos veículos de
comunicação.
O nadador passou, durante os Jogos, pelas seguintes fases:
• Pouco conhecido
Nessa fase, ele não aparecia nas matérias ou ganhou pequeno destaque. Na verdade, a
própria natação não tinha muito espaço, chegando a ser desacreditada em algumas matérias.
Desde a época de nadadores como Gustavo Borges e Fernando Scherer, a equipe brasileira
não ganhava mais tanto destaque na mídia, estava em estado de “hibernação midiática”, sem
produzir interesse algum em alguns veículos.
• Ilustre desconhecido
Com as primeiras provas de natação, o nome de Thiago começa a ser citado. A
natação ganha um pouco mais de espaço nos jornais. Mas ainda assim, é reduzido face às
outras modalidades.
Após alguns dias, o número de ouros vai aumentando e o nadador passa a ser a figura
de maior representatividade da equipe brasileira de natação, atleta bem conhecido por suas
provas executadas de maneira eficiente, garantindo a vitória brasileira. Ele passa a ganhar
destaque na mídia, que aproveita o interesse que sua figura desperta e faz uso indiscriminado
de tudo que lhe diz respeito.
34
Na relação entre ídolo e fã, cabe à mídia funcionar como elo que fundamenta a continuidade do enredo do herói, até que ele assuma a categoria de mito, reservada apenas a alguns eleitos. (MARQUES, 2005)
O receptor passa a consumir cada informação divulgada pela mídia. O discurso
jornalístico exerce seu “poder de acelerar ou desacelerar a formação da figura do herói do
esporte” (MARQUES, 2005). E assim a figura do herói vai se fortalecendo aos poucos.
O atleta em questão é representado por uma figura construída pela mídia, que pretende
vender aquela ideologia existente de maneira implícita na escolha do que vai ser publicado ou
não. No caso do esporte, essa ideologia que se pretende passar pode ser a de um sujeito
aparentemente comum que conseguiu se destacar dentre vários outros ao persistir em
continuar, em treinar e se especializar para, enfim, vencer.
Tal qual Hércules, na mitologia grega, a medida em que ia vencendo seus oponentes
contra todas as expectativas, a esfera heróica de Thiago se fortalecia ainda mais. Prova disso é
que, ao fim das competições, a natação manteve seu destaque, e campeonatos que antes não
causavam grandes comoções na mídia passaram a ser noticiados novamente.
• Mito
Eis que então ele chega à categoria de mito. O nadador alcança esse ponto máximo
quando conquista as únicas medalhas de ouro do dia para o Brasil. Com os dizeres Show solo
e a foto do nadador tomando conta do espaço completo da capa, Thiago ganha a coroa de Rei
do Parque Aquático Maria Lenk pelos jornalistas.
A partir daí, ele passa a ser praticamente o sinônimo de “equipe de natação brasileira”,
com suas frases ganhando espaço nas matérias, sendo consultado sempre que o assunto dizia
respeito à natação ou, em alguns casos, até mesmo quando não tinha nada a ver com o esporte
em questão.
A figura do nadador recebeu diversos tratamentos por diferentes mídias. E
basicamente todas lhe ofereceram os mesmos elogios e expectativas. Sua imagem ficou
estável de tal maneira, que o que se tinha em suma sobre Thiago eram somente elogios à sua
performance nas provas e seu histórico de vida.
De repente, o que se via era uma declarada idolatria à figura do nadador. Todos
passaram a procurar mais sobre a natação, a acompanhar cada segundo das provas e observar
astutamente cada braçada que ele dava. Thiago Pereira trouxe a natação de volta ao esporte
brasileiro. Além disso, relembrando o caráter de transitoriedade do mito, pode-se até mesmo
35
dizer que a idolatria reservada a figuras como Fernando Scherer e Gustavo Borges foi
transferida a Thiago Pereira. Mas não da mesma forma. No caso do nadador de Volta
Redonda, essa idolatria foi elevada a mais alta potência, e devidamente explorada, já que
nenhum atleta da equipe brasileira de natação ganhou tantas medalhas em um Pan como ele
conquistou nessa edição de 2007.
Outro ponto a se destacar por esse período é a discrepância de tratamento entre os
nadadores da delegação brasileira. Em algumas edições, mesmo que o destaque tenha sido
outro nadador (como no caso de Nicolas Oliveira), era a figura de Thiago que dava a palavra
final. Nessa edição (dias 18 e 21 de julho de 2007, em provas de revezamento), fica explícito
o favoritismo de Thiago frente aos outros membros da equipe. Com fotos visivelmente
maiores e textos declaradamente “thiaguistas”, as matérias voltavam-se ao herói das piscinas
dos Jogos Pan Americanos.
Continuando o discurso pró-Thiago, o jornal fez uso de várias declarações de ex-
atletas do mesmo circuito, que elogiaram a performance do nadador. Para enfatizar melhor o
quanto o nadador merecia o enfoque que a mídia lhe dava, esses antigos competidores
escolhidos para as declarações foram figuras que marcaram uma época e heróis da infância de
Thiago e de muitos brasileiros de várias faixas etárias. Um elogio dos mesmos e o
reconhecimento, como declarado por Gustavo Borges, de que o nadador é um fenômeno, só
aumenta a noção de seu caráter sobre-humano, num patamar que só se é alcançado após muito
treino e persistência.
A fama de Thiago se tornou algo imensurável. Ele virou assunto independente do
ambiente, passou a ser reconhecido nas ruas8 do país e a aparecer em diversos veículos, que
não tinham como público específico ou numericamente considerável pessoas que se
interessavam somente pela natação.
A partir do Pan, o nadador se tornou um mito, ganhou seu devido valor, conquistado
com muito treino e soube manter-se nesse patamar heróico durante todo o tempo que as
competições foram realizadas, saindo de cena ainda envolvido nessa esfera mítica. Prova
disso é que não existe matéria que o recrimine sobre qualquer coisa durante o período
analisado. Para o jornal, Thiago era o Rei que o Maria Lenk trouxe para os brasileiros. E,
como todo bom Rei, o nadador conseguiu se manter no auge, saindo de cena somente no
momento em que sua figura deveria ceder espaço à outras áreas. Ainda assim, após os Jogos,
8 O nadador chegou a declarar em uma entrevista à Rede Globo, na época do Pan, que não conseguiu visitar o Cristo Redentor no Rio de Janeiro devido ao assédio dos fãs. E, ainda assim, saiu de forma carismática (como um bom ídolo), declarando não se importar com a perda de privacidade que a idolatria impõe.
36
foi lembrado por uma figura famosa (o mesa-tenista Hugo Hoyama) que não fazia parte da
natação, conferindo-lhe maior respaldo mítico.
37
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criação de mitos foi uma maneira que o homem encontrou para explicar melhor o
mundo em que vivia. Inicialmente desprovidos de manter sua memória através da escrita, era
por meio dessas figuras que se encontrou uma maneira de passar através de gerações as
tradições de determinada cultura, seus rituais, costumes, religião, etc. E assim acontece em
muitos lugares até os dias atuais, independentes de serem pessoas letradas ou não.
Como nos diz Lévi-Strauss9, esses povos que consideramos intelectualmente inferiores
a nós por não basearem sua sociedade na escrita, são movidos pelo desejo de compreender o
mundo, a natureza e a sociedade em que vivem. Dessa maneira, o mito é a maneira que o
homem encontrou de compreender o universo que o cerca. Ou melhor, o mito é aquela fala
que faz com que o homem acredite na realidade que ele se propõe a passar. O que acontece é
que o mito não se propõe a narrar verdade alguma. Sua função primordial é oferecer a seus
receptores uma noção de realidade que lhes supra a necessidade de compreender o que está a
sua volta.
O mito se torna independente de qualquer relação tempo-espaço, sendo imbuído de um
valor que o transcende. Portanto, não possui uma representação fixa. Ele passa de figura a
figura, procurando a melhor maneira de se fazer entender e ter seus valores colocados em
prática. Assim, a melhor classificação para o mito, seguindo a semiologia barthesiana, é a de
ser uma fala, um discurso excessivamente justificado.
E por ser uma fala, como já foi dito, ele não possui um representante único. Na
verdade, sua forma é constantemente mudada para melhor se encaixar à sociedade que
pretende retratar. Para Everardo Rocha, é através dos mitos que se revelam as intenções de
uma sociedade, que se apresentam melhor suas concepções existenciais e de relacionamento
entre seus componentes. Com isso, pode-se afirmar que o mito está imerso numa ideologia
própria, que se apropria de uma figura para enviar mensagens a seus receptores a fim de que
os mesmos correspondam a seus ideais.
Essa ideologia proposta aparece sob diferentes formas para seus receptores. Sua forma
é modificada a cada vez que se torna necessário. Então, a fala mítica passa para outra figura,
que, sem que percebamos, transmite os mesmos ideais da anterior. E dessa maneira, o mito é
re-significado através dos tempos, desnaturalizando seu sentido inicialmente proposto para
adaptar-se à sociedade em questão.
9 LÉVI-STRAUSS, 1978:30
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A mídia constantemente se aproveita dessa capacidade que o mito possui, de construir
uma esfera de idolatria a seu redor e, assim, transmitir seus ideais. Ela explora sua figura
através de filmes, campanhas publicitárias, jornais, dentre outros veículos comunicacionais; e
faz com que lhe seja aplicado um sentido para manter a ideologia que prega. Por meio de
mensagens conotativamente colocadas em seus representantes, a mídia se afirma, se mantém
no poder e vende suas idéias. Com o nadador Thiago Pereira, a mídia, e em especial o jornal
O Globo, aproveitou sua imagem para passar aquela ideologia de que qualquer um pode
ganhar seu espaço na sociedade. Levando-se em consideração a ideologia burguesa e
equiparando o caso de Thiago com o do presidente Lula nas últimas eleições, podemos chegar
à conclusão de que suas figuras servem para incentivar aqueles que não fazem parte da
burguesia a lutar para se inserir nesse grupo. Na realidade tal qual observamos, ao ascenderem
algumas figuras de classes mais baixas periodicamente, a esperança dessas pessoas é renovada
e elas continuam a trabalhar a fim de vencer na vida, assim como aquele ídolo que foi
retratado pela mídia.
Principalmente no caso dos jornais, a necessidade que se tem de manter um público
cativo, dependente de suas informações, faz com que os periódicos lancem mão desses mitos
sociais, que correspondem às expectativas do público e os faz procurar mais suas publicações.
Segundo Marques10, a partir do momento em que o consumidor não se dá conta do sistema
semiológico do mito, ele o consome sem questionar. Assim o jornalismo adquiriu e aprendeu
a manter o poder de gerar a figura do herói no esporte. O jornalismo esportivo é um bom
produtor de mito, devido a constante ascensão de atletas de diferentes categorias, que ganham
relativo destaque em suas respectivas modalidades todos os dias. Com isso, o processo mítico
não fica estagnado. Ele se modifica todos os dias, porque se o herói em questão não
corresponde ao que se espera dele, sempre existirá outro para superá-lo e assim segue um
processo cíclico.
No caso do nadador Thiago Pereira, observa-se o favoritismo pelo atleta por parte do
caderno de Esportes do jornal O Globo. Em questão de dias, ele passa de desconhecido ao
“atleta do Pan”, numa ascensão meteórica. No entanto, durante todo esse tempo, as
declarações que ele fez à imprensa demonstram que ele queria se manter afastado desse
pedestal que o colocaram, como por exemplo na matéria Thiago Pereira: ‘Não sou um super-
homem’. Com essa afirmação, o nadador tenta relembrar aos jornalistas e leitores que ele
também pode falhar e que não se deve esperar tantas vitórias por parte dele.
10 MARQUES, 2005
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Mesmo assim, o caderno manteve seu discurso pró-Thiago e continuou a reverenciar
suas disputas, procurando estatísticas que pudessem revelar as probabilidades de quebra de
recorde de medalhas, dados pessoais e comparações com outros ídolos da delegação
brasileira. Após a análise das matérias em ordem cronológica, constatou-se que o jornal muda
gradativamente seu discurso. De início, dá pouco espaço à equipe brasileira de natação, com
um visível favoritismo pela equipe norte-americana. A partir do momento em que os
nadadores brasileiros começam a superar todas as expectativas, o esporte ganha seu devido
espaço, por vezes tomando o lugar de outra modalidade. Assim, o que interessa mesmo ao
periódico é vender aquilo que interessa. Ele dá espaço a outros esportes, mas se atém naqueles
que chamam maior atenção do público leitor que irá consumi-lo.
Infelizmente, o que se observa no cenário atual é que o jornalismo se volta
exclusivamente para a necessidade de lucro com suas publicações. A escolha de assuntos a
serem tratados são pautados naquilo que vende mais e que o concorrente não terá acesso, em
detrimento da qualidade da cobertura das matérias e de seus redatores. Por causa dessa prática
tão comum atualmente, quando um assunto causa carisma no público, é iniciada uma corrida
entre os periódicos a fim de cobrir e explorar o máximo possível o fato em questão. Algo que
deveria ser divulgado perde seu espaço; ou, se o ganha, é ínfimo em relação ao destinado ao
assunto em destaque no momento.
Durante os Jogos Pan Americanos de 2007, cada esporte teve relativa atenção do
caderno de Esportes do jornal O Globo, proporcional ao grau de interesse do público leitor.
Mas poucos foram os atletas que tiveram mérito de ganhar destaque individualmente,
figurando por muito tempo no jornal. Se excluirmos dessa lista personagens que fazem parte
de esportes mais conhecidos nacionalmente, como futebol e vôlei, o atleta que mais apareceu
nos Jogos foi o nadador Thiago Pereira.
Ele sequer é citado no início da competição. No entanto, com o tempo sua figura
ganha tanto destaque que só se ouve falar seu nome. A exploração em torno de sua imagem é
realizada até o final das competições de natação. Mas esse curto período é o bastante para
torná-lo um mito na história dos Jogos Pan Americanos para a equipe de atletas brasileiros.
A cada prova no Parque Aquático Maria Lenk, sempre havia a expectativa de mais
uma medalha de ouro para o Brasil. Thiago tornou-se o herói invencível, um fenômeno que
surgiu de surpresa para a maioria dos brasileiros e conseguiu manter seu rendimento e fama
durante sua participação nos Jogos. Com suas vitórias, trouxe novamente destaque à equipe de
natação brasileira, há tempos esquecida pelo jornalismo esportivo.
40
No caso do jornal O Globo, especificamente a sessão de esportes, o nadador foi uma
espécie de ídolo pop, alguém que tinha o carisma necessário a um mito, que deve ser forte o
bastante para se perpetuar. Além do jornal, a fama de Thiago deve-se à interatividade entre os
meios de comunicação, cada um a seu lado, mas complementando a informação do outro.
Então, em conjunto, essas mídias criaram o mito que cercou (e cerca até as últimas
competições realizadas) o nadador.
E ele, conscientemente ou não, corresponde a essa intenção da mídia de mitificá-lo. A
cada vitória, a cada ouro, Thiago demonstrou-se receptivo aos repórteres, conservando a face
humilde do herói em suas colocações. A mídia, lógico, adorou essa atitude do nadador. E a
cada vez mais, seu carisma se aliava a sua eficácia na piscina, gerando mais notícias e
matérias a seu respeito.
Por fim, ele passa a ser cobrado implicitamente. Através de infográficos e afirmações
de que o nadador se tratava de um fenômeno dos Jogos, O Globo criou seu mito e perpetuou
sua imagem, mesmo quando ela não teve grande destaque no dia. Seja apenas com sua foto,
alguma declaração; qualquer coisa que dissesse respeito a Thiago era praticamente uma
garantia de consumo por parte do público.
Ao ver-se diante da possibilidade de criar um mito, o jornal aproveita a oportunidade
até os últimos instantes. O ponto mais positivo dessa super-exposição do nadador foi fazer
com que o interesse pelo esporte ressurgisse. Nas edições analisadas, que iam do dia 14 de
julho ao dia 31 do mesmo mês, a figura de Thiago não perdeu seu status mítico. Apenas
entrou em um estado de “hibernação”, aguardando para surgir num momento futuro, como
vem acontecendo nos últimos dias11. A probabilidade é de que ele consiga manter esse
interesse até as Olimpíadas de Pequim de 2008, na qual é o grande favorito no Brasil. Resta
saber: como será seu desenvolvimento nas provas olímpicas e se as mesmas servirão de
passagem do Olimpo nacional para o mundial?
11 Na edição do Fantástico do dia 17 de novembro de 2007, quatro meses após sua primeira aparição no caderno de Esportes do Jornal O Globo, sua figura foi destaque no quadro esportivo juntamente com o futebol (que é reconhecido como paixão nacional), o que, no caso do Brasil, deve ser considerado como grande feito, além do fato de ele ter quebrado um recorde mundial dos 200m medley na piscina curta (25m) na etapa de Berlim da Copa do Mundo de Natação.
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ANEXOS
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