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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA-UFU AURICHARME CARDOSO DE MOURA TRAJETÓRIAS, MEMÓRIAS E EXPERIÊNCIAS DOS TRABALHADORES RURAIS DO PROJETO JAÍBA, M.G. Uberlândia 2014

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA-UFU

    AURICHARME CARDOSO DE MOURA

    TRAJETRIAS, MEMRIAS E EXPERINCIAS DOS TRABALHADORES

    RURAIS DO PROJETO JABA, M.G.

    Uberlndia

    2014

  • AURICHARME CARDOSO DE MOURA

    TRAJETRIAS, MEMRIAS E EXPERINCIAS DOS TRABALHADORES

    RURAIS DO PROJETO JABA, M.G.

    Dissertao apresentada banca examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal de Uberlndia, como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

    Histria.

    Linha de Pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais

    Orientador: Prof. Dr. Paulo Roberto de Almeida

    Uberlndia

    2014

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Sistema de Bibliotecas da UFU, MG, Brasil.

    M929t

    2013

    Moura, Auricharme Cardoso de, 1989-

    Trajetrias, memrias e experincias dos trabalhadores

    rurais do projeto Jaba, M.G. / Auricharme Cardoso de Moura.

    -- 2013.

    163 f. : il.

    Orientador: Paulo Roberto de Almeida.

    Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de

    Uberlndia,

    Programa de Ps-Graduao em Histria.

    Inclui bibliografia.

    1. Histria - Teses. 2. Trabalhadores rurais - Teses. 3

    Agricultura familiar - Jaba, Serra de (MG) - Teses. I.

    Almeida, Paulo Roberto de. II. Universidade Federal de

    Uberlndia. Programa de Ps-Graduao em Histria. III.

    Ttulo.

    1. CDU:930

  • AURICHARME CARDOSO DE MOURA

    TRAJETRIAS, MEMRIAS E EXPERINCIAS DOS TRABALHADORES

    RURAIS DO PROJETO JABA, M.G.

    Dissertao apresentada banca examinadora do

    Programa de Ps-Graduao em Histria da

    Universidade Federal de Uberlndia, como requisito

    parcial para a obteno do ttulo de Mestre em

    Histria.

    Linha de Pesquisa: Trabalho e Movimentos Sociais

    Uberlndia, Fevereiro de 2014

    Banca Examinadora

    ________________________________________________________

    Prof. Dr. Paulo Roberto de Almeida (Orientador)

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Laurindo Mkie Pereira (UNIMONTES)

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Srgio Paulo Morais (UFU)

  • Descansa meu filho, saia um pouco,

    quando voc vem me ver?, estou com

    saudades. O tempo e distncia me ajudaram a

    interpretar a intensidade e significado dessas

    palavras declaradas cotidianamente. minha

    me, Enzia Benedita da Silva, dedico este

    trabalho, por viver e compartilhar comigo um

    sonho que ora se torna realidade.

  • AGRADECIMENTOS

    A f o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que

    no se veem (Hb. 11-1). Nos momentos de solido e angstia, Deus sempre esteve

    comigo, me dando foras para continuar. Agora, no momento de alegria, agradeo

    primeiramente a Ele por esta realizao.

    Agradeo, de forma singela e especial, minha famlia. minha me, Enzia

    Benedita da Silva, pelo amor incondicional, e minha irm, Adelange Cardoso da Silva,

    por me fazer acreditar em meus propsitos e sonhos em momentos difceis.

    Aos meus tios Weliton e Neci. O acolhimento e carinho de vocs aps meu

    retorno para Jaba foram muito importantes para que eu entendesse o verdadeiro valor

    da palavra solidariedade. Pelos conselhos e todo tipo de ajuda a mim oferecida, meus

    eternos agradecimentos e admirao.

    Ao meu pai, Aurindo Cardoso de Moura, homem do campo que diariamente luta

    para sobreviver neste cho cheio de adversidades. Sua determinao garante o sustento

    de sua famlia e exemplo a ser seguido.

    Agradeo a Rangel Rabelo pelos dilogos enriquecedores. Ao amigo Andrey

    Lopes, que filho de Jaba e que muito se preocupa com o bem estar e progresso social

    desta cidade. Meu reconhecimento ainda pela ajuda de Luciene Rodrigues que uma

    referncia essencial para se entender a dinmica social e econmica do projeto Jaba.

    Meu sincero apreo a Eduardo Rodrigues e a Valmiro Ferreira. A ajuda

    dispensada a mim em forma de livros, dicas e palavras contribuiu enormemente para o

    meu crescimento pessoal e acadmico. Espero algum dia poder retribuir.

    Sair do Norte de Minas em direo a uma grande cidade do Tringulo Mineiro

    foi uma deciso mediada por dvidas. Logo as incertezas e medos foram diminuindo

    graas ao convvio republicano com Valria de Jesus Leite e Tadeu Pereira dos

    Santos. Dizer o que vocs representam para mim em um pargrafo difcil, se no

    impossvel. Atravs de nossas conversas, brincadeiras, discusses acadmicas e faxinas

    do sbado, aprendi o valor de uma verdadeira amizade.

    Ao meu eterno orientador Roberto Mendes Ramos Pereira, obrigado por

    acreditar em mim quando eu prprio j tinha desistido de cursar uma ps-graduao.

    Seu exemplo de ser humano influencia e melhora a essncia de todos os que esto a

    sua volta.

  • A todos os professores da Linha de Pesquisa Trabalho e Movimentos Sociais do

    PPGHIS/UFU pelas aulas ministradas, apontamentos e exemplo de intelectuais

    comprometidos com as questes do nosso tempo. Aos secretrios, Stenio e Josy, por

    resolverem nossas pendncias em tempo hbil.

    No poderia esquecer a contribuio e pacincia do meu orientador, Paulo

    Roberto de Almeida, que sempre se mostrou disposto a apontar pontos importantes da

    realidade social e como poderia explor-los. Obrigado por entender minhas limitaes e,

    principalmente, por me ajudar a super-las.

    A banca de qualificao composta por Rinaldo Jos Varussa e Srgio Paulo

    Morais, que em muito contriburam para o resultado final desta dissertao. Espero ter

    correspondido s expectativas que emergiram em cada arguio que vocs fizeram.

    A escrita desta dissertao em um curto tempo seria improvvel sem a ajuda

    financeira da Capes. Agradeo a esta instituio por ter permitido que eu me dedicasse

    exclusivamente ao estudo, sonho to distante da maioria dos brasileiros.

    Finalmente, e no menos importante, agradeo, de forma especial, a todos os

    pequenos produtores rurais do projeto Jaba, que abriram as portas de suas casas para

    compartilharem um pouco de suas trajetrias e experincias. Espero que quando

    ouvirem ou lerem estas linhas vocs se reconheam e se orgulhem desta pesquisa na

    qual so os protagonistas.

  • Uma coisa por ideias arranjadas, outra

    lidar com pessoas, de carne e de sangue, de

    mil-e-tantas misrias... tanta gente d susto de

    saber e nenhum se sossega: todos nascendo,

    crescendo, se casando, querendo colocao de

    emprego, comida, sade, riqueza, querendo ser

    importante, querendo chuva e negcios bons.

    Joo Guimares Rosa

  • RESUMO

    Este trabalho tem como objetivo compreender os modos de vida e de luta dos pequenos

    produtores rurais do projeto Jaba, maior permetro irrigado da Amrica Latina,

    localizado no extremo Norte do Estado de Minas Gerais, abrangendo os municpios de

    Jaba e Matias Cardoso. O projeto Jaba est inserido no contexto nacional de expanso

    da fronteira agrcola e reproduo do capitalismo no campo patrocinado pelo Estado ao

    longo do sculo XX, transformando as formas de trabalhar, produzir e viver dos

    agricultores familiares. Ao discutir a substituio da agricultura de subsistncia para a

    agricultura de mercado centralizo minhas arguies nas trajetrias, memrias e

    experincias de homens e mulheres na luta para ter e permanecer na terra em um

    processo que envolve a disputa por valores e espao. Para alm de observar o permetro

    irrigado atravs de frases de efeitos e os trabalhadores rurais como fora de trabalho

    e/ou elementos da produo, esta dissertao procura verificar como so construdas as

    relaes sociais e produtivas dentro e fora do territrio em que noes de direito e

    cidadania so sempre pontuais.

    Palavras-chave: Trabalhadores, Trajetrias, Experincias, Agricultura Familiar, Projeto

    Jaba.

  • ABSTRACT

    This study aims to understand the lifestyle and struggle of small scale farmers in the

    Jaba project, within the most irrigated perimeter in Latin America and located in the

    extreme north of Minas Gerais covering the municipalities of Jaba and Matias Cardoso.

    The Jaba project is included in the national agricultural context of frontier expansion

    and reproduction of capitalism in an area sponsored by the state during the twentieth

    century, thus transforming the ways of working, producing and living for family

    farming. When discussing the replacement of agricultural subsistence with market

    agriculture, the plea is focused on the trajectory, the memories and the experience of the

    men and women in the struggle to have, and remain on the land involved in a dispute

    over values and space. In more than observing the irrigated perimeter through phrases of

    effect, and the rural workers as the labor force and/or elements in production, this

    dissertation seeks to verify how the social and productive relations are constructed

    within, and outside the territories where notions of rights and citizenship are always

    punctual.

    Keywords: Workers, Trajectories, Experience, Family Farming, Jaba Project.

  • SUMRIO

    APRESENTAO........................................................................................................11

    CAPTULO I

    Um territrio, diversas memrias....................................................................................28

    CAPTULO II

    Terra, trabalho e famlia:

    experincias e cultura dos pequenos produtores rurais...................................................64

    CAPTULO III

    Projeto Jaba: um olhar poltico.....................................................................................111

    CONSIDERAES FINAIS......................................................................................149

    FONTES.......................................................................................................................152

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS......................................................................158

  • 13

    APRESENTAO

    Entre as dcadas de 1960 a 1980, foi grande a interferncia do Estado no espao

    rural brasileiro, buscando modernizar a agricultura atravs da introduo de mquinas,

    defensivos agrcolas, sementes selecionadas, adubos, entre outras tcnicas, no objetivo

    de aumentar a produo e produtividade agrcola nacional.

    consenso, na literatura acadmica que trata do tema, que a modernizao do

    campo teve caractersticas ligadas ao conservadorismo, no qual no se alterou a

    estrutura social vigente. Foi excludente porque intensificou as desigualdades sociais no

    campo, trgico visto que aumentou o nmero de violncia devido disputa por terras, e

    parcial, uma vez que priorizou a regio centro-sul do pas.

    Com um discurso de desenvolvimento rural e crescimento econmico, o

    Estado brasileiro aparece como grande responsvel pela transferncia de uma

    agricultura considerada tradicional para um modo comercial e rentvel voltado para a

    acumulao e reproduo capitalista no campo. Essas transformaes foram realizadas

    em diversas regies do pas, principalmente aps a segunda metade do sculo XX em

    um processo que alterou formas de trabalho, produo, negociao e modos de vida.

    Esse pequeno resumo de um debate contemporneo envolvendo o espao rural e

    a disputa por terras no Brasil tem o objetivo de direcionar o estudo para uma rea

    especfica: o Norte de Minas. Uma regio historicamente marcada pela pecuria

    extensiva e agricultura de subsistncia que recebeu vultosos recursos governamentais a

    partir da dcada de 1960 para investir no seu progresso, acompanhando assim a onda

    desenvolvimentista nacional.

    A criao de projetos de irrigao surge nesse contexto como ramificaes de

    programas governamentais ligados a expanso e progresso da fronteira agrcola

    nacional. Procurando dinamizar o setor primrio, secundrio e tercirio, o permetro

    irrigado do Jaba, que abrange os municpios de Jaba e Matias Cardoso no extremo

    Norte de Minas Gerais, foi apresentado pelas autoridades polticas e econmicas como

    catalisador do desenvolvimento de uma regio marcada pela terra seca e baixos ndices

    de desenvolvimento humano.

    Iniciado na dcada de 1970 como uma obra faranica do perodo militar, o

    projeto Jaba angariou recursos pblicos atravs do Governo Federal em parceria com o

    Estado de Minas e recursos privados via Banco Internacional de Reconstruo e

    Desenvolvimento (BIRD). Dividido em quatro etapas, esse empreendimento pretende

  • 14

    irrigar 100 mil hectares aumentando os ndices produtivos e socioeconmicos da regio.

    At o momento (2013),esto implantadas a fase I, de responsabilidade do Governo

    Federal atravs da CODEVASF1,e II, a cargo do governo estadual atravs da

    RURALMINAS2; as etapas III e IV esto em processo de planejamento e ainda no tm

    previso de incio.

    Possuindo 20.000 habitantes entre trabalhadores rurais, comerciantes, servidores

    pblicos, trabalhadores informais, entre outros, o projeto Jaba foi construdo para ser

    uma alternativa de gerao de emprego e renda para as pessoas atravs da dinamizao

    de vrias atividades econmicas atravs da agricultura irrigada.

    Esse empreendimento abastecido pelo rio So Francisco, do qual ocorreu o

    desvio de gua para abastecer os canais, distribuindo-a para lotes familiares e

    empresariais. Em decorrncia da rea destinada plantao, bem como da infraestrutura

    instalada, o projeto Jaba considerado atualmente como o maior projeto de irrigao da

    Amrica Latina e o segundo do mundo em rea contnua irrigada.

    Mapa 1: Localizao do municpio de Jaba no Estado de Minas Gerais

    Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:MinasGerais_Municip_Jaiba.svg

    Acesso em: 02\07\2013

    1 CODEVASF- Companhia de Desenvolvimento dos Vales do So Francisco e Alto Parnaba

    2 RURALMINAS- Fundao Rural Mineira

    http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:MinasGerais_Municip_Jaiba.svghttp://www.ruralminas.mg.gov.br/

  • 15

    Mapa 2: Localizao do projeto Jaba Disponvel em: http://www.projetojaiba.com.br/index.php/mapas

    Acesso em: 02\07\2013

    So diversos os discursos e percepes acerca do projeto Jaba, realizados de

    vrias formas e segundo interesses especficos de polticos, empresrios, mdia e

    estudos acadmicos em geral. No que se refere a estes, notamos que no existe um

    consenso entre as anlises dos pesquisadores.

    Um dos primeiros trabalhos a discutir o Jaba foi a tese de Luciene Rodrigues.3

    Nessa pesquisa, a autora faz um balano do impacto social e econmico para a regio

    aps o surgimento do projeto Jaba, concluindo que o Estado acabou beneficiando o

    capital monopolista no garantindo infraestrutura social e produtiva necessria para a

    permanncia dos assentados na terra.

    Estudando o permetro irrigado, com um objetivo e abordagem diferente da

    pesquisadora acima, Gilmar Ribeiro dos Santos4 destaca a ofensiva de rgos estatais

    3 RODRIGUES, Luciene. Investimento agrcola e o grande Projeto Jaba. Uma interpretao:

    1970-1996. 337 Fls. Tese (Doutorado em histria econmica). Faculdade de Filosofia, Letras e

    Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. So Paulo, 1998. 4 SANTOS, Gilmar Ribeiro dos. Da produo de subsistncia agricultura moderna:

    Socializao e preparao para o trabalho no Projeto Jaba. 226 Fls. Tese (Doutorado em Educao). Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2003.

    http://www.projetojaiba.com.br/index.php/mapas

  • 16

    que tm como finalidade transferir a produo de subsistncia para uma agricultura

    mercantil. Na sua concepo, o Estado brasileiro e o BIRD no possibilitaram a

    construo democrtica de um projeto de sociedade vivel contribuindo para a

    desorganizao social e para a precariedade das condies de vida da populao do

    projeto Jaba.

    Em uma direo oposta aos estudos anteriores citados, o livro Uma realidade

    chamada Ruralminas5, organizado por Antnio Claret Maia, apresenta argumentos

    indicando a contribuio do projeto Jaba para o desenvolvimento rural da regio Norte

    de Minas. O permetro irrigado visto como um dos mais importantes

    empreendimentos agrcolas do pas, uma oportunidade de agronegcio, gerao de

    emprego e fixao do homem no campo atravs da agricultura familiar.

    A pesquisa de Cynara Geane Ruas Costa6 tambm destaca a relevncia do Jaba

    para o crescimento da produo e produtividade agrcola regional, bem como sua

    contribuio para melhoria da qualidade de vida no campo. Segundo a autora, a

    agricultura irrigada a nica atividade econmica capaz de modificar a infraestrutura

    social, produtiva e econmica da regio Norte de Minas, sendo o Jaba essencial nesse

    contexto.

    Sabendo da contribuio de cada estudo acima para um melhor entendimento do

    permetro irrigado, objetiva-se nesta pesquisa sair das analises sistmicas e quantitativas

    para entrar nas reaes sociais construdas por pessoas simples, de mos calejadas,

    rostos enrugados, de passos lentos e com uma fala coloquial que comumente no so

    visitadas pela intelectualidade por serem considerados inertes, atrasados, tradicionais ou

    como resultado de estruturas econmicas pr-definidas.

    Pesquisando histrias de agricultores em uma regio da Itlia Central, Maria

    Giuseppina Eboli7 salienta que conhecer as caractersticas de uma rea rural significa

    entender articulaes e trocas entre atividades agrcolas e extra-agrcolas. A autora

    observa que o espao rural no somente produo e sistemas agrcolas seno e,

    sobretudo, um conjunto de articulaes que ligam pessoas, atividades e instituies em

    um territrio.

    5 MAIA, Antnio Maria Claret (org). Uma realidade chamada Ruralminas. Belo Horizonte:

    Ruralminas, 2007. 6 COSTA, Cynara Geane Ruas. A importncia do projeto Jaba para aumento da produo

    agrcola (1988 1997). 71 Fls. Monografia (Bacharel em Cincias econmicas). Universidade

    Estadual de Montes Claros, 1998. 7 EBOLI, Maria Giuseppina. Agricultura multifuncional y ruralidad. In: Revista Histria e

    Perspectiva, n 41. Jul\dez, 2009. Uberlndia\MG. Universidade Federal de Uberlndia, p. 23.

  • 17

    Os alimentos vendidos na seo de hortifrutigranjeiros dos grandes shoppings

    centers tm em espaos como o projeto Jaba, e outros assentamentos rurais, seu local

    de produo atravs da agricultura familiar. Por trs dos alimentos que chegam mesa

    dos brasileiros existem homens e mulheres que lutam, vivem e sonham com a

    possibilidade de ter, permanecer e produzir na terra no apenas com os seus prprios

    esforos, mas tambm atravs de polticas agrrias que realmente atendam s suas

    necessidades.

    Compreender o sujeito da agricultura brasileira com seus anseios, vontades,

    embates, presses e expectativas construdas cotidianamente dentro e fora do local de

    trabalho significa apreender o mundo rural a partir de seus construtores, e no conforme

    falas de agentes e agncias que se colocam como autorizados a represent-los sem

    conhecer de fato sua realidade.

    Pensar o campo pelo aspecto social e cultural significa valorizar primeiramente o

    sujeito e no perfis econmicos (produtividade, mquinas, adubos, nmero de

    financiamentos, etc.) ou polticos (normas, agentes mediadores, leis, decretos).

    Concordamos com Helosa Helena Cardoso8 que entende a histria social como campo

    de estudo que se ocupa dos processos de constituio\alterao da sociedade sendo que

    o eixo das preocupaes so as pessoas que buscam seus espaos na dinmica social que

    vivem e dela reinterpretam seu passado.

    Atravs da anlise da realidade social e das experincias dos trabalhadores,

    surgem novas formas de entender a sociedade diferentemente das verses propaladas

    pela classe dominante. A inteno no est em mostrar os contrastes, indefinies e

    problemas ocultados pelo discurso tido como oficial em uma espcie de vingana dos

    oprimidos, e sim trazer ao debate e anlise histrica como os sujeitos vivem e

    interpretam o processo de transformao imposta pela modernidade e racionalidade

    capitalista.

    Vrios foram os indivduos que chegaram ao projeto Jaba com necessidades e

    motivaes especficas embora compartilhassem desejos comuns como terra, trabalho e

    moradia. Oriundos de cidades pobres do Norte de Minas e de outros Estados,

    principalmente do Nordeste, os entrevistados so indivduos que abandonaram sua

    8 CARDOSO, Helosa Helena. Trabalhadores e movimentos sociais: debates na produo

    contempornea. In: Trabalho e trabalhadores na contemporaneidade: Dilogos historiogrficos.

    Cascavel: Edunioeste, 2011, p. 102.

  • 18

    cidade natal procura de melhores condies de vida atravs de moradia e trabalho em

    uma em rea irrigada.

    Como um dos objetivos do projeto Jaba ser uma clula de um programa

    nacional voltado para a distribuio de terras, o fio condutor desta pesquisa so as

    trajetrias e experincias dos agricultores familiares9. So homens e mulheres que

    dividem e constroem o espao junto com outros trabalhadores rurais (assalariados,

    meeiros, arrendatrios), empresrios agrcolas e pessoas que sobrevivem atravs de

    atividades como comrcio e prestao de servios pblicos.

    Os entrevistados constituem parte representativa de um total de 1.828 pequenos

    produtores rurais da etapa I localizados em trs povoados do projeto Jaba, a saber:

    Ncleo Habitacional I (NH-I), Ncleo Habitacional II (NH-II) e Ncleo de Servio 2

    (NS2)10

    . A escolha da primeira etapa do Jaba como lcus da pesquisa deve-se ao fato

    de 70% dos lotes serem de agricultores familiares. Embora o projeto Jaba esteja

    localizado entre os municpios de Jaba e Matias Cardoso, a rea onde aconteceram as

    entrevistas corresponde apenas parte pertencente ao primeiro municpio, uma vez que

    neste lugar esto inseridos os pequenos lavradores, e no segundo pratica-se uma

    agricultura patronal por mdios e grandes produtores rurais.

    As evidncias pesquisadas nos fizeram optar por uma baliza temporal entre os

    anos de 1990 a 2013. Ao longo da dcada de 1990 se observam as maiores migraes

    em direo ao projeto Jaba, sendo que este fato representativo tanto nas memrias dos

    entrevistados quanto nos demais registros histricos analisados. O ano de 2013 fecha o

    recorte, j que neste ano foram realizadas as ltimas entrevistas.

    Ao propor, nesta dissertao, compreender a realidade social dos pequenos

    irrigantes do projeto Jaba me relaciono de forma poltica e ideolgica com suas

    demandas. Sendo filho de assalariados agrcolas, experienciei constantes

    movimentaes direcionadas para povoados da regio procura de melhores condies

    9 Por meio do artigo 3.da Lei n. 11.326/2006 (Legislao que estabelece diretrizes para a

    formulao da Poltica Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Rurais), foi

    determinado que agricultor e empreendedor familiar rural so segmentos que praticam

    atividades no meio rural, atendendo, simultaneamente, aos seguintes requisitos: I- no detenha,

    a qualquer ttulo, rea maior do que 4 (quatro) mdulos fiscais; II- utilize predominantemente

    mo de obra da prpria famlia nas atividades econmicas vinculadas ao prprio

    estabelecimento ou empreendimento; III- tenha renda familiar predominantemente originada de

    atividades econmicas vinculadas ao prprio estabelecimento ou empreendimento; IV- dirija

    seu estabelecimento ou empreendimento com sua famlia. 10

    Na etapa I, as famlias dos pequenos agricultores ocupam as glebas (solos cultivveis) A, B,

    C3, D e F, tendo a seguinte distribuio: 845 famlias na gleba A, 399 famlias na B, 57 famlias

    na C3, 201 famlias na D e 326 na F.

  • 19

    de emprego e renda, convivendo com vrios moradores do permetro irrigado ao longo

    da minha infncia e juventude. O trabalho nas lavouras permitiu estabelecer laos de

    identificao com o prximo, alm de uma oportunidade de vivenciar e refletir, de

    modo ainda imaturo, sobre a estrutura socioeconmica do espao.

    Falo da minha filiao com trabalhadores rurais para mostrar o lugar social de

    onde escrevo, a maneira como vejo a funo da histria e a necessidade de afirmar o

    presente como tempo em que problemticas foram desenvolvidas para analisar o

    processo histrico vivido pelos sujeitos. Minha subjetividade como pesquisador

    obviamente subordinada s evidncias com as quais trabalhei.

    Aps a aprovao no curso de Histria na Universidade Estadual de Montes

    Claros, campus So Francisco, tive a oportunidade de pesquisar sobre inquietaes

    experimentadas tempos atrs como trabalhador rural, resultando em uma monografia

    que salientou os contrastes existentes no permetro irrigado.11

    Embora importante para

    compreender o Jaba pelo vis que propus naquela ocasio, mantive-me preso a grilhes

    e armadilhas de categorias econmicas que desconsideram a presena e atuao dos

    sujeitos na constituio da histria.

    A entrada no mestrado em Histria Social na Universidade Federal de

    Uberlndia, linha de pesquisa Trabalho e Movimentos Sociais, foi de suma importncia

    para rever procedimentos e abordagens feitas na pesquisa de graduao, fato que

    contribuiu para mudar o foco da pesquisa. Uma nova forma de abordar a realidade

    social pode ser observada nos objetivos da linha

    recuperar a experincia histrica de diversos sujeitos sociais em seus

    mltiplos e diversificados aspectos, entendendo como as pessoas

    constroem seus espaos e territrios, deixando neles suas marcas;

    discutir as variadas experincias dos trabalhadores analisando o seu

    fazer-se enquanto classe em seus mltiplos sentidos e prticas; refletir

    sobre o significado das prticas sociais diferenciadas que esto no

    campo das vivncias, bem como no dos valores e dos interesses, a fim

    de entender o social como um lugar de tenses; so objetivos que

    compem o universo de nossas preocupaes maiores. Esses objetivos

    foram delineados e atrelados ao que consideramos como

    compromissos sociais e polticos do historiador e s formas como eles

    expressam maneiras de entender e fazer histria.12

    11

    MOURA, Auricharme Cardoso de. Projeto Jaba: a servio de quem? 61 Fls. (Monografia).

    Universidade Estadual de Montes Claros, Campus So Francisco, 2010. 12

    CALVO, Clia Rocha; CARDOSO, Heloisa Helena Pacheco; ALMEIDA, Paulo Roberto de.

    Trabalho e Movimentos Sociais: histrias, memrias e produo historiogrfica. In:

    CARDOSO, Heloisa Helena Pacheco; MACHADO, Maria Clara Tomaz. (Orgs.). Uberlndia:

    EDUFU, 2005, p. 13.

  • 20

    O longo e contnuo processo de amadurecimento intelectual passa por procurar

    compreender uma realidade que se apresenta de forma complexa, plural e dinmica.

    Com opes de anlises atravs de vrios ngulos e dimenses, optei nesta pesquisa por

    v-la do sto, de um lugar menos conhecido, privilegiado e frequentado; isso no

    significa desconsiderar a participao de outros atores sociais, apenas procurei exibir

    percepes diferentes sobre a constituio do processo social histrico.

    A importncia de diversos sujeitos no empreender as relaes sociais existentes

    so motivos para uma produo historiogrfica mais democrtica que no focalize

    determinados atores considerados de maior valor pela sua ocupao na hierarquia social.

    O dilogo com pessoas que esto em uma posio menos privilegiada, mas nem por isso

    de relevncia menor, direcionam nosso olhar para a reflexo de uma sociedade

    construda diariamente em meio a problemas, presses e lutas.

    Diante dessa atual conjuntura de mudanas rpidas e drsticas impostas pelo

    capitalismo, surgimento de tenses sociais e lutas pela sobrevivncia, os trabalhadores

    refazem o seu modo de ser, viver e expressar. Yara Aun Khoury salienta que o desafio

    passar do mundo do trabalho para o mundo dos trabalhadores, procurando identificar

    alternativas e aspiraes destes sujeitos, destrinchar as questes da diferena, da

    pluralidade engendradas por um embate de foras sociais, de corpos que se opem ou se

    complementam.13

    Os anseios e disputas dos pequenos produtores rurais do Jaba no se

    concentram na luta por uma memria oposta ou alternativa tida como oficial e sim em

    questes urgentes e concretas como a luta por espao e pela sobrevivncia. A partir

    deste pressuposto emergem novas noes de tempo e lugar marcados pela convivncia

    social, elaborao de projetos polticos e disputas por direitos que esto alm da posse

    da terra para plantar e colher, uma vez que modos de vida tambm so construdos e

    desfeitos neste lugar.

    Novas reflexes foram direcionadas para pensar como pessoas comuns so

    atuantes atravs de suas palavras e silncios, pela ao e passividade, mudana e

    resistncia. Imprimindo suas marcas nos lugares onde atuam,tais sujeitos elaboram,

    desfazem e reelaboram prticas, costumes e valores de maneira que nos ajuda a

    13

    KHOURY, Yara Aun. Do mundo do trabalho ao mundo dos trabalhadores. In: Mundo dos

    trabalhadores, lutas e projetos: temas e perspectivas de investigao na historiografia

    contempornea. Cascavel, Paran: Edunioeste, 2009, p. 124.

  • 21

    compreender cultura14

    e identidade como conceitos em constante mutabilidade e

    movimento.

    Diante dos desafios acima e na tentativa de melhor compreender a realidade

    vivida pelo homem do campo que reside no projeto Jaba, foi essencial a leitura de

    tericos que fazem parte da Histria Social Britnica como E.P. Thompson, Raymond

    Williams e Stuart Hall. De maneira nica e complementar cada autor com suas

    respectivas pesquisas e reflexes contriburam para pensar novas abordagens, mtodos e

    concepes para a escrita historiogrfica.

    No objetivo de apreender trajetrias, vidas em movimento, projetos e

    expectativas dos trabalhadores, a noo thompsiana de experincia foi de grande valia

    mostrando como as pessoas vivenciam e interpretam o processo histrico bem como

    suas transformaes. Segundo o historiador ingls

    A experincia surge espontaneamente no ser social, mas no surge

    sem pensamento. Surge porque homens e mulheres (e no apenas

    filsofos) so racionais, e refletem sobre o que acontece a eles e a seu

    mundo... O que queremos dizer que ocorrem mudanas no ser social

    que do origem a experincia modificada; e essa experincia

    determinante, no sentido de que exerce presses sobre a conscincia

    social existente, prope novas questes e proporciona grande parte do

    material sobre o qual se desenvolvem os exerccios intelectuais mais

    elaborados.15

    A experincia como fato histrico e prtica social se expressando na forma de

    valores, costumes, demandas, frustaes e conquistas constitui ponto relevante para o

    objetivo deste estudo: reinserir o sujeito na histria. No que homens e mulheres

    simples estivessem fora ou no participem da constituio da sociedade, todavia a

    histria tradicional, cunhada sob a efgie de histria certa, negligenciou este fato.

    Analisar o modus vivendi de determinada comunidade faz-se importante, no

    sentido de entender relaes capitalistas em sua dimenso no apenas produtiva,

    verificando como os sujeitos lidam cotidianamente com as transformaes impostas por

    esse sistema na contemporaneidade. Diante desse pressuposto, busca-se, neste

    14

    Cultura aqui entendida a partir da definio de Da Ribeiro Fenelon, abrangendo o termo

    para memria, trabalho, poltica, costumes, smbolos, valores e, enfim, como tudo que os

    homens produzem e atribuem significado. FENELON, Da Ribeiro. Apresentao. In:

    MACIEL, Laura Antunes, ALMEIDA, Paulo Roberto de, KHOURY, Yara Aun.(Orgs.). Outras

    histrias: memrias e linguagens. So Paulo: Olho dgua, 2006, p.08. 15

    THOMPSON, Edwad Palmer. A misria da Teoria ou um planetrio de erros: Uma crtica

    ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p. 16.

  • 22

    estudo,compreender o trabalho no apenas como produtor de mercadorias, mas tambm

    como criador de linguagens, sociabilidades, percepes e valores desenvolvidos atravs

    de relaes, formaes, organizaes e instituies.

    Priorizar o modus vivendi significa analisar e interpretar as relaes humanas

    para alm da produo de mercadorias, se libertando da descrio fechada de

    procedimentos tcnicos, modos de trabalho e de produo. Em suma, o que se pretende

    dizer que a histria individual e da sociedade vai sendo construda diante de um

    processo em que a produo no apenas material, j que tambm constituda de

    forma social e poltica.16

    Para compreender o processo social vivido pelos pequenos lavradores, algumas

    questes prvias se fazem pertinentes: Quais avaliaes e imagens os agricultores

    familiares possuem em relao ao projeto Jaba? Quais as vises dos trabalhadores

    acerca do discurso desenvolvimentista referente ao permetro irrigado? Quais desafios e

    expectativas surgiram no novo espao? Que relaes sociais e valores so construdos

    ou desfeitos? Quais lutas e presso foram\so forjadas na constituio do lugar social?

    Diante das ofensivas do capitalismo no campo, como se constituem os modos de vida

    dos sujeitos? Existe resistncia, incorporao ou negociao com os projetos da classe

    dominante? Como apreender o fazer-se da classe nesse processo em constante

    mudana?

    Embora as problemticas acima tenham como fio articulador as experincias dos

    sujeitos, no se procura compreend-las como isoladas, abstratas ou como fim em si

    mesmas. As experincias individuais e sociais so construdas em um ambiente em que

    a vida no campo marcada por constantes desafios e superaes.

    Entender o indivduo em interao com a famlia, com a terra, o trabalho, a

    comunidade, agentes mediadores (associao, sindicatos, entidades representativas do

    Jaba) significa avaliar a constituio do espao e do sujeito em que a realidade no se

    mostra estvel ou tampouco determinante no sentido de prender as pessoas em

    estruturas econmicas.

    A condio social comum entre os sujeitos contribui para que sejam organizadas

    formas de atuao poltica na luta por direitos. Nesse sentido, procurei visualizar

    indcios de um fazer-se da classe que no se apresenta de modo esttico ou pronto como

    descrito por Thompson em clebre prefcio

    16

    Sobre isso, ver: WILLIAMS, Raymond. Foras produtivas. In: Marxismo e Literatura. Rio

    de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1979, p. 93-97.

  • 23

    A classe acontece quando alguns homens, como resultado de

    experincias comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a

    identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos

    interesses diferem (e geralmente se opem) dos seus. A experincia de

    classe determinada, em grande medida, pelas relaes de produo

    em que os homens nasceram ou entraram involuntariamente. A

    conscincia de classe a forma como essas experincias so tratadas

    em termos culturais: encaradas em tradies, sistemas de valores,

    idias e formas institucionais.17

    A histria vai sendo constituda atravs da relao que os sujeitos estabelecem

    entre eles prprios e entre eles e a natureza por meio do trabalho. As relaes entre os

    indivduos so constitudas atravs de demandas e necessidades comuns a partir de

    contextos materiais e culturais especficos e complexos.

    No procurando realizar simplesmente uma descrio das experincias, busquei

    inseri-las onde realmente se localizam, ou seja, no processo de luta de classes que se

    manifesta na forma de ideais, costumes e projetos polticos. A realidade vivida e

    transmitida pelos narradores marcada por embates e presses por viver no campo

    negando assim algumas correntes intelectuais, ideolgicas e miditicas que pregam

    sobre o fim da luta de classes na atualidade. Parafraseado Hall

    O que importa ento no o mero inventrio descritivoque pode ter o

    efeito negativo de congelar a cultura popular em um molde descritivo

    atemporal, mas as relaes de poder que constantemente pontuam e

    dividem o domnio da cultura em suas categorias preferenciais e

    residuais.18

    relevante entender como os trabalhadores lidam com as normas postas e como

    so forjadas formas de resistncias, adeses, incorporaes, inovaes, negociaes e

    transformaes no interior do sistema capitalista vigente. Assim faz-se preciso inserir o

    conceito de cultura nas relaes sociais e jogos de poder atentando para o que Hall

    chama de dialtica da luta cultural, ou seja, uma tenso contnua entre a cultura

    popular e a cultura dominante, no existindo vitrias definitivas por nenhuma parte,

    verificando influncias recprocas, ora com momentos de resistncia ora com momentos

    de superao.

    17

    THOMPSON, Edwar Palmer. Prefcio. A formao da classe operria inglesa: rvore da

    liberdade. 4 ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, v. 1,1987, p. 10. 18

    HALL, Stuart. Notas sobre a desconstruo do popular. In: SOVICK, Liv (Org.). Da

    dispora: identidades e mediaes culturais. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009, p. 240-1.

  • 24

    Alm de analisar as resistncias, procurei manter-me atento s transformaes

    que ocorrem no interior da classe trabalhadora; se afirmamos que os pequenos

    lavradores tm direitos e escolhas, isso implicar buscar entender a construo, mudana,

    rejeio e reinveno de valores e prticas que alteram a essncia do individuo e, por

    consequncia, do grupo social ao qual ele pertence.

    Para responder s problemticas e abordagens propostas por este trabalho, os

    procedimentos e mtodos de pesquisa foram direcionados na inteno de construir uma

    operao historiogrfica que melhor compreenda cultura e experincias sociais. Ao

    propor uma escrita que privilegie fatos e pessoas que no figuram na histria oficial,

    Da Ribeiro Fenelon salienta que a histria social recolocou inmeras questes no que

    diz respeito a uma variedade bem grande de registros documentais, facilitando

    investigaes antes consideradas impossveis.19

    A histria social, por privilegiar aes das pessoas ao longo do tempo, oferece a

    possibilidade ao pesquisador de usar como fonte documentos antes vistos como

    inexpressivos. No caso do projeto Jaba, vrios registros histricos foram utilizados para

    um melhor entendimento da realidade vivida pelos trabalhadores rurais a exemplo de

    livros, teses, dissertaes, artigos, revistas, jornais, produes audiovisuais, endereos

    eletrnicos, material informativo e publicitrio, entre outros.

    Por constituir disputas por valores, as diversas evidncias histricas sero postas

    em questionamento, visto que so prticas constituintes dos sujeitos que revelam

    embates, sonhos e aes dos indivduos ao longo de suas vidas. Tais linguagens sempre

    esto ligadas a convenincias e interesses sendo a funo do historiador criticar e

    levantar questes para compreender a quem elas servem, so filiadas a que setores

    sociais, quando e onde foram produzidas.

    Sobre os registros histricos usados para escrita desta dissertao, analisa-se a

    imprensa como parte integrante da realidade e no como linguagem que paira sobre ela.

    Esse noticirio longe de ser neutro e imparcial deve ser analisado segundo critrios

    metodolgicos que permitam observar interesses, posies e estratgias discursivas que

    possuem fins particulares, embora sejam representados como universais.

    O artigo de Helosa Cruz e Maria do Rosrio Peixoto Na oficina do historiador:

    conversas sobre histria e imprensa oferece critrios quanto ao recolhimento, anlise,

    contextualizao e descrio do noticirio pesquisado. Segundo elas, trata-se de

    19

    FENELON, Da Ribeiro. Cultura e histria social: Historiografia e pesquisa. In: Revista

    Projeto Histria: PUC-SP. So Paulo, n. 10, 1993, p. 76.

  • 25

    entender a imprensa como linguagem constitutiva do social, que detm uma

    historicidade e peculiaridades prprias, e requer ser trabalhada e compreendida como

    tal, desvendando, a cada momento, as relaes imprensa\sociedade, e os momentos de

    constituio e intuio do social que esta relao prope.20

    Entender como a imprensa produz uma memria, como ela faz isso, para quem e

    em qual contexto deve ser um procedimento de anlise adotado por todo e qualquer

    estudo que pretenda transform-la em objeto de pesquisa. O jornal usado nesta pesquisa,

    o Folha de Jaba, entendido como veculo de informao inserido em um contexto

    poltico e econmico maior, sendo que muitas vezes seus objetivos e interesses so

    encontrados nas entrelinhas.

    A histria oral foi uma metodologia de grande valia para analisar o processo

    social vivido de uma populao que no teve oportunidade de expressar suas histrias

    atravs da palavra impressa, primeiramente pelo analfabetismo, comum entre a maioria

    dos entrevistados, em seguida porque a cultura letrada historicamente esteve

    subordinada aos interesses da classe dominante.

    Procurando me aproximar dos gestos e vocabulrio dos entrevistados, busquei

    explicar a eles detalhadamente o objetivo deste estudo e como poderiam me ajudar.

    Entre pontos de vista e histrias diversas, o dilogo se desenvolveu a partir de um

    experimento de igualdade. Este primeiro procedimento de pesquisa explicado por

    Alessandro Portelli

    O campo de trabalho significativo como o encontro de dois sujeitos,

    que se reconhecem entre si como sujeitos, e consequentemente

    isolados, e tentam construir sua igualdade sobre suas diferenas de

    maneira a trabalharem juntos.21

    As conversas foram realizadas em ambientes propcios para um bom bate-papo e

    aprendizagem tanto por parte do entrevistador quanto do entrevistado. Em algumas

    situaes, os entrevistados se negaram a conversar com o gravador ligado ou

    inicialmente responderem s perguntas de forma objetiva e pontual. Temas ligados

    situao jurdica da terra, financiamentos e dvidas junto ao banco se tornaram proibidos

    na primeira conversa.

    20

    CRUZ, Heloisa de Faria, PEIXOTO, Maria do Rosrio da Cunha. Na oficina do historiador:

    conversas sobre histria e imprensa. In: Revista Projeto Histria: PUC-SP. So Paulo, n. 35,

    2007, p. 260. 21

    PORTELLI, Alessandro. Forma e Significado na Histria Oral: A pesquisa como um

    experimento em igualdade. In: Revista Projeto Histria: PUC-SP. So Paulo, n. 14, 1997, p.23.

  • 26

    Esses assuntos, apesar de no constiturem o foco central do trabalho, so

    importantes, uma vez que influenciam na relao, avaliao e atuao dos pequenos

    proprietrios rurais para com a terra, trabalho, famlia e comunidade. Procurei no fazer

    entrevistas invasivas, objetivando primeiramente abrir caminhos para conseguir o

    respeito e a confiana do narrador, esperando o momento certo de colocar tais assuntos

    no que Portelli chama de ordem do dia.22

    Atravs da oralidade, procura-se entender melhor a historicidade e significado

    das vivncias, buscando compreender como a cultura se transforma em atuao poltica,

    luta por um lugar social, alternativas ou oposio s normas sociais estabelecidas,

    elaborao de prticas cotidianas, defesas dos valores tradicionais ou empenho para

    transform-los.

    Depois da entrevista alguns pequenos produtores indicaram amigos e conhecidos

    para que tambm contribussem com suas narrativas. Ao salientar que fulano pode te

    falar mais coisa, os narradores demonstram o desejo de que o processo social vivido

    possa ser transmitido por vozes que expressam outras histrias acerca de uma realidade

    em que embates, cotidiano e ideais devem ser vistos e interpretados na sua singularidade

    e no de forma homognea e universal.

    Ao buscar as histrias dos pequenos lavradores, procura-se problematizar os

    critrios e interesses do discurso oficial que propaga nmeros e estatsticas produtivas

    do projeto Jaba, negligenciando contrastes e entraves existentes. O objetivo principal

    buscar observar o projeto Jaba para alm de um complexo agroindustrial que possui

    primeiro ou segundo lugar no ranking de produtividade agrcola, mostrando

    experincias, situaes vividas e percepes que esto fora dos discursos da classe

    dominante.

    Ao retornar casa de diversas pessoas para uma segunda entrevista, algumas me

    perguntaram: e a? Quando sai seu trabalho?. O seu trabalho na verdade o nosso

    trabalho. Embora escrito por duas mos, vrias mentes contriburam para refletir sobre

    um espao e vidas que esto em constante movimento e construo.

    A leitura de estudos sobre temas correlatos ao definido neste estudo e norteados

    pela Histria Social Britnica ajudou-me na compreenso e escrita de uma histria mais

    justa. So referncias bibliogrficas que possuem tempo e espao diferentes, mas de

    22

    ALMEIDA, Paulo Roberto de, KHOURY, Yara Aun. Histria Oral e Memria: Entrevista

    com Alessandro Portelli. In: Revista Histria e Perspectivas, n 25/26. Uberlndia\MG.

    Universidade Federal de Uberlndia. Cursos de Histria e Programa de Mestrado em Histria.

    2002, p.47.

  • 27

    uma forma ou de outra contriburam com teorias e metodologias, auxiliando-me a trilhar

    meu prprio caminho de pesquisa.

    Na sua dissertao, Renata Rastrelo e Silva23

    identificou vivncias de

    proprietrios rurais no distrito de Martinsia, Uberlndia, entre os anos 1964 a 2005. Ao

    procurar analisar o significado atribudo por homens e mulheres em ter e permanecer no

    campo, a autora analisa mudanas e permanncias nos modos de viver, trabalhar e se

    relacionar de sujeitos que veem a terra no apenas como elemento que gera renda

    necessria para a sobrevivncia, mas atribuem a ela um valor cultural na medida em que

    se transforma em uma forma de viver. A leitura deste trabalho foi importante para

    observar vivncias e cultura dos proprietrios rurais atravs das narrativas orais, no

    interpretando o campo apenas pelos nmeros de produo, produtividade agrcola,

    mquinas usadas ou dinheiro empregado nas lavouras.

    Outro trabalho importante foi o de Leandra Domingues Silvrio24

    , que reflete

    sobre trajetrias de trabalhadores rurais na construo do Movimento Sem Terra no

    municpio de Uberlndia e Tringulo Mineiro no perodo de 1990 a 2005. Ao inserir a

    cultura na luta de classes, a autora procurou evidenciar como essas pessoas

    compreendem a realidade, identificam-se entre si e identificam foras dominantes s

    quais resistem e enfrentam. Esse estudo ajudou-me a pensar sobre movimentaes dos

    sujeitos dentro e fora do espao de trabalho e moradia, alm de visualizar como, no

    processo social de luta pela terra, valores so perdidos enquanto outros so adquiridos

    ou reelaborados.

    De grande valia tambm foi a leitura da dissertao de Jiani Fernando Langaro25

    ,

    que discute memrias em disputa no municpio de Santa Helena, Paran, e outras

    histrias que emergem desse embate. Sua principal contribuio para pensar minha

    problemtica foi observar uma memria dividida, mediada por fatores culturais e

    ideolgicos diversos. Ao questionar o discurso hegemnico do lugar atravs das

    narrativas de trabalhadores, o autor conseguiu observar percepes diferentes daquela

    23

    SILVA, Renata Rastrelo e. Proprietrios do distrito de Martinsia (Uberlndia-MG):

    Viver e permanecer no campo-1964-2005. 148 Fls. Dissertao (Mestrado em Histria Social)-

    Instituto de Histria, UFU/Uberlndia, 2007. 24

    SILVRIO, Leandra Domingues. Assentamento Emiliano Zapata: trajetrias de lutas de

    trabalhadores na construo do MST em Uberlndia e Tringulo Mineiro (1990-2005). 194 Fls.

    Dissertao (Mestrado em Histria Social) Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo: So

    Paulo, 2006. 25

    LANGARO, Jiani Fernando. Para alm de pioneiros e forasteiros: Outras histrias do

    Oeste do Paran. 277 Fls. Dissertao (Mestrado em Histria Social)Universidade Federal de

    Uberlndia: Uberlndia, 2006.

  • 28

    que prioriza e divulga uma histria harmnica e homognea do municpio ligada ao

    progresso, evoluo e desenvolvimento.

    Oportuno tambm foi o artigo de Paulo Roberto de Almeida Cada um tem um

    sonho diferente: Histrias e narrativas dos trabalhadores no movimento de luta pela

    terra26

    . Entre outras contribuies, Almeida adverte para o pesquisador no cair no

    perigo da homogeneizao das linguagens e perspectivas quando se estuda determinado

    movimento social. Para alm de mostrar a fala de presidentes de sindicatos e

    associaes do projeto Jaba, procurei elucidar as trajetrias, interesses e expectativas

    individuais,mostrando que no interior destas agremiaes sociais existem pontos de

    contradies e disputas.

    Enfim, o objetivo aqui abrir outras possibilidades e perspectivais para o

    entendimento da histria atravs de outras memrias construdas e entrelaadas a partir

    das vivncias do tempo passado, prticas do presente e projetos para o futuro. Este

    trabalho est dividido em trs captulos.

    O primeiro captulo intitulado Um territrio, diversas memrias aborda a

    histria e dinmica do projeto Jaba, levando em considerao a poltica nacional de

    modernizao do campo via introduo de novas formas de trabalho e produo. Busca-

    se ainda verificar como o discurso desenvolvimentista mobilizou pessoas na migrao

    em direo ao permetro irrigado, quem so esses sujeitos, suas trajetrias e quais

    motivos contriburam para que sassem de suas terras.

    O segundo captulo Terra, trabalho, famlia: experincia e cultura dos pequenos

    produtores rurais foi norteado pela busca por compreender a luta dos sujeitos por ter,

    viver e permanecer no campo. Procurei salientaras formas de trabalho, produo e

    sociabilidades dos trabalhadores rurais e as maneiras como vivem o processo de

    transformaes que atravessa a agricultura familiar nos diais atuais indicando como

    valores so elaborados, reelaborados e desfeitos no contexto de presses e embates

    vividos cotidianamente.

    Projeto Jaba: um olhar poltico o ttulo do terceiro captulo. Busca-se

    identificar quais so os principais programas do governo brasileiro para atender as

    demandas da agricultura familiar, elucidando como os pequenos produtores rurais do

    26

    ALMEIDA, Paulo Roberto de. Cada um tem um sonho diferente: Histrias e narrativas dos

    trabalhadores no movimento de luta pela terra. In: MACIEL, Laura Antunes (et all). Outras

    histrias: memrias e linguagens. So Paulo: Olho dgua, 2006, p. 44-60.

  • 29

    projeto Jaba vivem, interpretam e se integram nesse modelo de desenvolvimento rural

    empreendido pelo Estado.

    Se a realidade fosse transparente ela no precisaria ser interpretada. com

    esta mxima de Marx que empreendemos uma dissertao que no busca apenas

    analisar questes que se mostram de forma camuflada ou at mesmo imperceptveis,

    mas sobretudo compreender a cultura e as experincias dos trabalhadores que se

    apresentam de forma real, concreta, subjetiva, atual e histrica.

  • 30

    CAPTULO I

    Um territrio, diversas memrias

    A partir da segunda metade do sculo XX se verifica no Brasil uma poltica de

    modernizao em vrios setores da economia no objetivo de uma maior integrao com

    o modelo de desenvolvimento internacional que estava em curso na Europa e Estados

    Unidos. Para tanto, o Estado nacional, atravs de seus vrios rgos, atua como scio

    menor ou patrocinador da reproduo e acumulao do capital em vrias regies do pas

    transformando o espao, formas de trabalhar, produzir e viver das pessoas.

    Construindo uma base que pudesse garantir e consolidar o avano do

    capitalismo, principalmente em reas isoladas e com baixo ndice produtivo e

    demogrfico, o Estado catalisou o processo de modernizao atravs da criao de uma

    infraestrutura composta por estradas, redes de telecomunicaes, energia, incentivos

    fiscais e tributrios para que a iniciativa privada pudesse ter condies de atuar, seja no

    campo ou na cidade.

    O discurso empreendido para justificar tais transformaes estava centrado na

    necessidade de corrigir as desigualdades regionais, investindo no desenvolvimento de

    cada lugar segundo suas tendncias e potencialidades. A parceria do setor pblico com o

    privado constituiria assim uma inteno de dar o primeiro passo para o Brasil entrar de

    modo competitivo na diviso internacional do trabalho ao mesmo tempo em que se

    propalava isso como importante e necessrio para diminuir as disparidades sociais.

    A indstria e a agricultura receberam ateno especial neste projeto nacional.

    Especificamente no caso da segunda atividade, a ideia de modernizar o campo

    significou mudar a base tcnica da produo, expanso do crdito rural (sobretudo aps

    1965 com a criao do Sistema Nacional de Crdito Rural- SNCR) e aumento da

    assistncia tcnica, nmero de mquinas, defensivos agrcolas, adubos e pesquisas

    atuando sempre no objetivo de integrar agricultura aos demais setores da economia.

    Principalmente no perodo militar (1964-1985), foram criados vrios programas,

    projetos e metas para levar o progresso agrcola a vrias regies atravs de

    propagandas no sentido de alterar termos, prticas e valores como substituio da

    enxada pelo trator, roa por fazenda, homem do campo por empreendedor rural e

    agricultura de subsistncia por agricultura de mercado. As consequncias desse

    planejamento agrcola estatal no foram apenas o aumento da produo e produtividade

  • 31

    agrcola, j que ela se fez de forma dolorosa e conservadora como indicado por

    pesquisadores da rea.27

    Foram seis os planos do governo28

    , entre 1963 e 1979, todos sendo norteados e

    coordenados pelo Estado. Destacaremos aqueles que esto intrinsecamente relacionados

    expanso da fronteira agrcola e uso de novas tecnologias, visto que foram estes

    responsveis pela transformao do Norte de Minas Gerais, culminando com a criao

    do projeto Jaba. No que diz respeito especificamente agricultura, o Plano de Metas e

    Bases para a Ao do Governo (1970-1973) visava promover

    Na dcada de 70, um movimento renovador, de profundidade, no setor

    agrcola. Isso significar, principalmente, dotar a agricultura brasileira

    de um sistema de apoio, financeiro e fiscal, capaz de produzir a

    transformao tecnolgica e o fortalecimento acelerado de uma

    agricultura de mercado, sensvel aos estmulos de preos, realizar a

    expanso de reas, principalmente atravs de espaos vazios, no Norte

    e nos vales midos do Nordeste (...) transformar o Brasil em

    importante exportador de carne e outros produtos agrcolas no

    tradicionais.29

    O Nordeste e o Norte de Minas fazem parte dos vales midos graas aos

    recursos hdricos disponibilizados pelo rio So Francisco que banha diversos

    municpios dessas regies. O surgimento de projetos de irrigao surge nesse contexto

    de ocupao e explorao de regies pouco desenvolvidas substituindo a produo de

    alimentos tradicionais como arroz, milho e mandioca para o cultivo principalmente de

    frutas, que passou a ser largamente desenvolvida nos permetros irrigados dessas

    regies, visando ao mercado externo.

    Nos planos do Governo Federal, a irrigao e a ocupao de espaos vazios

    passaram a ter funo estratgica para o desenvolvimento de regies com condies

    climticas irregulares visando gerao de emprego e renda, fixao do homem no

    27

    Analisando a modernizao agrcola durante o perodo militar, Jos Graziliano da Silva

    salienta que no se alterou a estrutura fundiria nacional, houve desapropriaes, expropriaes,

    aumento do conflito por terras e o xodo rural, alm de essa modernizao ter beneficiado

    determinadas regies e culturas agrcolas. Ver: SILVA, Jose Graziliano da. A modernizao

    dolorosa: estrutura agrria, fronteira agrcola e trabalhadores rurais no Brasil: Zahar Editores,

    1982. 28

    Plano Trienal (1963-65), Plano de Ao Econmica do Governo- PAEG (1964-66), Programa

    Estratgico de Desenvolvimento (1968-70), Metas e Bases para a Ao do Governo (1970-73). I

    Plano Nacional de Desenvolvimento- I PND (1972-74), II Plano Nacional de Desenvolvimento-

    II PND (1975-79). 29

    PRESIDNCIA DA REPBLICA. Braslia. Metas e Bases para a Ao do Governo. 1970-

    1973, p. 89.

  • 32

    campo e aumento da produtividade agrcola, ao mesmo tempo em que estas regies

    seriam transformadas em fornecedoras de bens primrios para o Brasil e o mundo

    desenvolvendo, ainda, o setor secundrio e tercirio atravs do beneficiamento,

    escoamento, comercializao e venda dos alimentos a serem produzidos.

    O Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), divididos em I PND (1972-1974)

    e II PND (1975-1979), era uma continuidade do objetivo de colocar o Brasil na rota do

    progresso atravs da expanso das atividades econmicas. Segundo Wenceslau

    Gonalves Neto30

    , especificamente no caso da agricultura, a estratgia agrcola do I

    PND era desenvolver a agricultura moderna e empresarial no centro-sul; introduo da

    nova tecnologia, irrigao, etc., e modernizar as estruturas de comercializao e

    distribuio de produtos agrcolas. J o II PND tinha como objetivo aumentar a

    produtividade agrcola brasileira com fins de exportao. Para isso seria necessria a

    ocupao de novas terras nas regies de fronteira e modernizao das reas j

    incorporadas ao mercado.

    Enquanto ao estatal, a irrigao surge na dcada de 1970, sendo pensada como

    tecnologia necessria para dinamizar economias, promovendo o desenvolvimento rural

    atravs da superao de modos de trabalho e produo, considerados tradicionais,

    improdutivos e atrasados economicamente. A criao da Lei 6.662, de 25 de junho de

    1979, que dispe sobre a Poltica Nacional de Irrigao, teve a funo de promover o

    aproveitamento racional de recursos de gua e solo para a implantao e

    desenvolvimento da agricultura irrigada.31

    A regio Norte de Minas comeou a ser contemplada maciamente com

    programas de desenvolvimento regional a partir de sua insero na SUDENE

    (Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste) 32

    em 1963, devido a sua

    similaridade climtica, social e econmica com a regio Nordeste do Brasil.33 A partir

    30

    NETO, Wenceslau Gonalves. Estado e Agricultura no Brasil: poltica agrcola e

    modernizao econmica brasileira (1960-1980). So Paulo: Hucitec, 1997, p. 133-134

    (Coleo Estudos Histricos). 31

    MARTINS, Simone. Anlise da implantao da Poltica Nacional de Irrigao no Norte

    de Minas: o caso do projeto Jaba.215 Fls. (Dissertao) Mestrado em Administrao.

    Universidade Federal de Viosa, 2008, p.19. 32

    Criada atravs da lei nacional n 3.692, de 15 de dezembro de 1959, a SUDENE representou

    um esforo do Governo Federal de agir no sentido de promover o desenvolvimento do Nordeste

    atravs de um duplo objetivo: coordenar as aes do governo e administrar os recursos

    transferidos para a regio. 33

    O Norte de Minas faz parte do chamado polgono das secas determinado em 1936, no

    incluindo a referida regio, isso s seria feito em 1948 pelo decreto 9.857.

  • 33

    daquele momento o territrio norte-mineiro passou a ser conhecido como Regio

    Mineira do Nordeste (RMNe) ou rea Mineira da Sudene (AMS).

    Estiagens prolongadas, alto ndice de desemprego, analfabetismo, concentrao

    de terras e de renda so problemas que assolam o Norte de Minas. Embora a classe

    dominante reproduza discursos ligados s secas e ao abandono como fatores

    responsveis pelas mazelas sociais existentes, entendemos que a irregularidade

    climtica apenas agrava o problema sendo seu produto e carter determinante

    encontrados em elementos polticos e econmicos como a falta de polticas sociais para

    a regio e a criao de condies para a reproduo do capital sem distribuio de

    renda. 34

    Capitalizando a agricultura e criando condies para urbanizao e

    industrializao regional, as aes empreendidas pela SUDENE alteraram o perfil

    econmico, poltico, social, ambiental e demogrfico do Norte de Minas. Jos Maria

    Cardoso35

    destaca algumas dessas aes: incentivos fiscais e financeiros para entrada de

    indstrias (que se concentraram principalmente na cidade de Montes Claros), abertura

    ao capital nacional e internacional, abertura e pavimentao de estradas, irrigao,

    eletrificao, expanso do setor tercirio, modernizao do sistema de comunicao e

    maior contato com as metrpoles.

    No caso da agricultura houve uma interveno estatal atravs da assistncia

    tcnica, extenso e crdito rural, transformando uma atividade at ento voltada para o

    consumo familiar e\ou venda no mercado local em produo empresarial de larga

    escala. Segundo Cardoso, a poltica agrcola regional foi direcionada com o propsito de

    Integrar a agricultura ao setor urbano via compra de insumos e venda

    de produtos; promover os aspectos empresariais dinmicos e

    modernos; subordinar a poltica agrcola a uma poltica econmica

    mais ampla; implementar as aes com base em critrios seletivos.36

    34

    Para Laurindo Mkie Pereira, as elites locais procuram encobrir a existncia de classes

    sociais, dando nfase na regio atravs do discurso de abandono, das secas, da distncia da

    capital/do governo, do carter nordestino e da falta de investimentos fiscais (e, portanto, a viso

    desses fatores como instrumentos adequados de desenvolvimento). In: PEREIRA, Laurindo

    Mkie. Em nome da regio, a servio do capital: o regionalismo poltico norte-mineiro. 242

    Fls. Tese (Doutorado em histria econmica). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias

    Humanas da Universidade de So Paulo,2007, p.219. 35

    CARDOSO, Jos Maria. A regio Norte de Minas Gerais: um estudo da dinmica de suas

    transformaes espaciais.In: OLIVEIRA, Marcos Fbio Martins de, RODRIGUES, Luciene

    (Orgs).Montes Claros: UNIMONTES, 2000, p.232. 36

    Idem, p. 237.

  • 34

    Com vrios projetos agropecurios, industriais e agroindustriais sendo

    implantados sob a coordenadoria da SUDENE, o Norte de Minas tem alterada de forma

    substancial sua estrutura e dinmica no campo e na cidade. A criao de projetos de

    irrigao se insere neste contexto como uma possibilidade de alavancar o

    desenvolvimento da referida regio, integrando-a a outras regies do pas,

    principalmente do centro-sul.

    Importante destacar que a SUDENE atuou mais na questo de incrementos de

    projetos industriais na regio Norte de Minas. Foi a CODEVASF37

    (Companhia de

    Desenvolvimento dos Vales do So Francisco e Alto Parnaba), rgo federal ligado na

    poca SUDENE, que interveio de forma direta e indireta na zona rural norte-mineira

    com um discurso de progresso e modernidade.

    O projeto Jaba, juntamente com outros projetos de irrigao no Norte de

    Minas38

    , surge ento nesse contexto. Especificamente no caso do Jaba, j existia na

    regio uma prvia, embora insuficiente, estrutura fsica construda como resultado da

    primeira tentativa de ocupao e explorao da rea que na poca era conhecida como

    mata de Jaba que aconteceu na dcada de 1950.

    O projeto Jaba se insere no contexto de tentativa de preenchimento dos vazios

    econmicos elaborados, financiados e colocados em prtica pelo governo brasileiro ao

    longo da segunda metade do sculo XX, tendo como principais exemplos a colonizao

    da Amaznia e do Centro-Oeste brasileiro. O Instituto Nacional de Irrigao e

    Colonizao (INIC), que atualmente o INCRA, no incio da dcada de 1950, do sculo

    passado, tinha construdo uma infraestrutura bsica na chamada mata de Jaba para o

    assentamento de duzentas famlias para a prtica da agricultura mercantil em lotes de 20

    e 30 hectares.

    Segundo Kleber39

    , a experincia no foi bem sucedida, tendo como fatores

    restritivos o clima local, a falta de assistncia tcnica e o isolamento da regio em

    37

    Criada pela Lei n 6.088, de 16 de julho de 1974, a CODEVASF tinha como objetivo

    aproveitar para fins agrcolas, agropecurios e agroindustriais, os recursos de gua e solo do

    vale do So Francisco, diretamente ou por intermdio de entidades pblicas e

    privadas,promovendo o desenvolvimento integrado e implantando distritos agroindustriais e

    agropecurios. 38

    Alm do projeto Jaba, foram criados ao longo da segunda metade do sculo XX trs outros

    permetros irrigados no Norte de Minas: o projeto Pirapora (Pirapora), Lagoa Grande

    (Porteirinha) e Gorutuba (Janaba). O projeto Jequita (Jequita) encontra-se em andamento. 39

    SANTOS, Kleber Carvalho dos. Heterogeneidade nas estratgias de sustento: a

    experincia da interveno planejada na Etapa I do projeto Jaba, Minas Gerais. 311 Fls.

  • 35

    relao s regies desenvolvidas. Contudo ficou presente uma infraestrutura instalada

    com ncleos de habitao e centros administrativos.

    Em uma nova tentativa de ocupao da rea, o governo mineiro cria em 1966 a

    Fundao Rural MineiraRURALMINAS, para coordenar, promover e executar aes

    de irrigao e\ou reflorestamento na mata de Jaba e em outras regies do Estado

    consideradas vazios econmicos. No incio da dcada de 1970, os engenheiros da

    Ruralminas elaboraram um plano de aes para explorao econmica no extremo norte

    do Estado por ser considerada uma regio excluda do processo produtivo nacional.

    A implantao de um projeto de colonizao do Jaba foi realizada, assim como

    naquelas outras regies do Brasil j citadas, atravs de desapropriaes, violncia e

    mortes de posseiros e/ou indgenas que outrora ocupavam a terra. Em nome da

    modernizao agrcola, o governo de Minas, atravs da Ruralminas, realiza um

    verdadeiro massacre e perseguio das famlias que residiam na regio, proveniente

    daquele primeiro projeto de colonizao do INIC. Esse processo foi pesquisado pela

    Nilcia Gomes Moraleida

    Quando a Ruralminas inicia sua interveno no sentido de legitimar as

    terras devolutas da regio, suas diretrizes bsicas, que orientam o

    processo de concentrao da propriedade da terra na rea e sua

    transformao em propriedade capitalista, se deram a partir de vrias

    expropriaes, em alguns casos, atravs de indenizaes irrisrias

    diante do preo da terra com benfeitorias, ou de sua valorizao diante

    das mudanas na regio. Alguns posseiros titulados foram

    indenizados, mas a maioria foi expulsa das terras com a queima das

    plantaes, roubo das colheitas, uso de tratores para derrubar casas,

    interveno da polcia, assassinatos, etc. Foram utilizados tambm

    processos destinados a inviabilizar a sobrevivncia e a produo dos

    posseiros como a queima da mata que lhes fornecia lenha ou avisos

    bancrios da instituio legitimadora, no permitindo que os posseiros

    se beneficiassem de emprstimos bancrios para a lavoura e a

    pecuria.40

    O vazio demogrfico existente na mata de Jaba para o processo de

    desenvolvimento e modernizao agrcola aconteceu baseado em mortes e perseguies

    de posseiros praticantes da agricultura de subsistncia, vista como incompatvel com as

    novas tcnicas e formas de produo dinmica, tecnolgica e competitiva voltada para o

    mercado.

    Tese (Doutorado em cincias econmicas). Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Rio

    Grande do Sul, 2013, p. 79. 40

    GOMES, Nilcia Moraleida. Estado, capital e colonizao na fronteira agrcola mineira.

    Belo Horizonte: UFMG (Dissertao de mestrado), 1983, p. 48-49.

  • 36

    Passados os imprevistos, o governo de Minas solicita ao Bureau of

    Reclamation (rgo do Departamento do Interior dos Estados Unidos para gesto dos

    recursos hdricos) que realizasse estudos para avaliao do potencial agrcola da mata

    de Jaba. Segundo Antnio Maria Claret Maia, estes estudos abrangiam os 310.000 ha

    de terras de Jaba, dos quais 230.000 hectares foram considerados aptos para

    agropecuria e destes, 100.000 hectares aptos para a explorao com irrigao.41

    O projeto Jaba foi concebido para ser implantado em quatro etapas, ocupando

    uma rea total de 100.000 hectares, sendo 67.000 ha de rea irrigada e o restante de

    preservao ambiental e infraestrutura no irrigvel. Apenas a primeira etapa est

    concluda, ocupando uma rea total de 41.611 ha, sendo 24.669 de rea irrigvel.

    Importante ressaltar que 70% dos lotes da etapa I so ocupados por pequenos

    agricultores em reas de cinco hectares.

    Segundo Rosa Carolina Amaral42

    , a etapa II atingir uma rea aproximada de

    34.700 ha e esto previstos o assentamento de mdios e grandes produtores. J as etapas

    III e IV tm, respectivamente, 17.000 ha e 13.000 ha. A segunda fase encontra-se em

    estgio de ocupao, na III foram concludos os estudos de viabilidade e a etapa IV

    encontra-se em fase de planejamento.

    41

    MAIA, Antnio Maria Claret (org). Uma realidade chamada Ruralminas. Belo Horizonte:

    Ruralminas, 2007, p. 74. 42

    AMARAL, Rosa Carolina. Impacto da implantao de permetros irrigados na qualidade

    das guas superficiais da poro mineira do mdio So Francisco. 124 f. Dissertao

    (Mestrado em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hdricos). Belo Horizonte: UFMG,

    2012, p. 17.

  • 37

    Figura 01: Layout Geral do projeto Jaba.

    As terras que compem o projeto Jaba eram devolutas no havendo casos de

    desapropriao e sim uso de terras estatais para a criao de um projeto de colonizao.

    Existe uma diferena entre colonizao e reforma agrria43

    , sendo que o projeto Jaba

    43

    Segundo Graziliano da Silva colonizao se faz em terras no anteriormente ocupadas,

    geralmente terras devolutas (sem dono) do Estado. J a reforma agrria feita em terras que j

  • 38

    pertence ao primeiro conceito no qual foram criadas infraestrutura para explorao da

    terra, mas sem destruir a estrutura fundiria existente.

    Os investimentos tcnicos e econmicos para a criao do projeto Jaba

    decorrem do II Plano Nacional de Desenvolvimento, que ao longo da dcada de 1970

    iniciou as obras de captao de guas do rio So Francisco para criao de projetos de

    irrigao. Para melhor planejamento e execuo do II PND, foram criados programas

    regionais e microrregionais, sendo que o Polonordeste era responsvel pelo

    desenvolvimento da regio Nordeste do pas. Este por sua vez criou o Plano Integrado

    de Desenvolvimento da Regio Noroeste e Norte de Minas Gerais (PLANOROESTE)

    que na poca foi coordenado pela RURALMINAS.

    Entre os anos de 1971 a 1986, o PLANOROESTE procurou investir na

    colonizao, criao de infraestrutura fsica e assistncia tcnica no Norte de Minas

    atravs de recursos financeiros oriundos do governo mineiro, da Unio e do Banco

    Mundial. Dentre os objetivos e metas para o permetro irrigado do Jaba destacam-se:

    1- Integrao da rea economia do Estado de Minas Gerais e do pas, com sua explorao racional e a mxima utilizao de

    investimentos, atravs de projetos sob estmulo e orientao do poder

    pblico, aplicados em terras do domnio estatal;

    2- Introduo da agricultura irrigada e da agroindstria, associando recursos do poder pblico e da iniciativa privada, com

    aproveitamento da infra-estrutura geral e de irrigao instituda a

    partir do PLANOROESTE;

    3- Ampliao da fronteira agrcola, com a definio de culturas mais adequadas regio e sob novas e modernas formas de

    explorao, com vistas aos nveis mais elevados de produo e

    produtividade;

    4- Implantao da indstria local, com o objetivo de incremento da renda atravs da absoro e da elevao do padro de mo-de-obra

    disponvel e consequente melhoria das condies sanitrias e sociais,

    como fator de reteno das populaes locais;

    5- Desenvolvimento de uma tecnologia adequada regio, capaz de motivar, pelo exemplo, a absoro de mtodos pelos produtores do

    setor agropecurio regional;

    6- Identificao dos recursos de gua e solo e adoo de uma poltica de sua utilizao racional, com mobilizao de recursos

    financeiros e tcnicos oficiais, para montagens das infra-estruturas e a

    participao do empresariado, em nveis de seus projetos;

    tem dono, ou seja, em terras privadas, sejam elas particulares ou do governo, por isso a reforma

    agrria implica, basicamente, uma mudana de propriedade das terras para indivduos que no

    so proprietrios. Quer dizer: criam-se novos donos entre os sem-terra a partir de terras que j

    eram propriedade privada de algum. In: SILVA, Jos Graziliano da. Para entender o Plano

    Nacional de Reforma Agrria. So Paulo: Brasiliense, 1985, p.74. Em sntese, queremos dizer

    que projetos de Colonizao no alteram a concentrao fundiria do pas.

  • 39

    7- Instituio de novo centro agropecurio, com vistas ao abastecimento dos mercados internos e externos; e

    8- Acentuao do carter econmico da colonizao do PLANOROESTE, atravs de explorao agropecuria em sistema

    coletivo e da utilizao de parte de sua produo e mo-de-obra por

    empresas particulares.44

    Termos como: integrao de economias, ampliao da fronteira agrcola,

    implantao da indstria local, desenvolvimento tecnolgico, utilizao de parte de sua

    mo de obra para empresas particulares e centro agropecurio mostram qual a proposta

    que vigorava entre as autoridades no que se refere ao Jaba. So notrias as intenes do

    Estado de Minas em transformar o permetro irrigado em um grande complexo

    agroindustrial oferecendo subsdios para inserir a agricultura no circuito do capital.

    No se tinha um planejamento voltado para a fixao do homem no campo

    atravs da produo familiar, mas sim como assalariado agrcola disposio do

    agronegcio. O investimento na agricultura irrigada foi uma maneira encontrada de

    transformar uma regio pobre em grande produtora e fornecedora de alimentos para o

    mercado externo atravs do oferecimento de uma infraestrutura pronta disposio das

    grandes empresas agrcolas.

    Parte dos recursos destinados a obras de infraestrutura no projeto Jaba foi

    adquirido atravs de financiamento. O custo total da etapa I do Jaba foi de US$ 158

    milhes, sendo US$ 71 milhes (45%) adquiridos atravs de emprstimo junto ao

    Banco Mundial em 1983, com uma contrapartida nacional na ordem de US$ 87 milhes

    (55%). Em 1999, o governo de Minas faz um emprstimo de US$ 110 milhes, desta

    fez junto ao Japan Bank for Internacional Cooperation (JBIC), para a implantao da

    etapa II do projeto Jaba.

    Gilmar Ribeiro45

    salienta que no caso do projeto Jaba o Banco Mundial fez duas

    exigncias prvias para liberao do investimento: em primeiro lugar, exigiu que tivesse

    uma contrapartida nacional e, em seguida, que mudasse o carter estratgico do Jaba.

    Ou seja, o empreendimento deveria adotar o princpio de fixao dos trabalhadores da

    regio como pequenos agricultores e no mais como assalariados como estava previsto

    originalmente.

    44

    MAIA, Antnio Maria Claret(org).Uma realidade chamada Ruralminas. Belo Horizonte:

    Ruralminas, 2007, p.72. 45

    SANTOS, Gilmar Ribeiro dos. Da produo de subsistncia agricultura moderna:

    Socializao e preparao para o trabalho no Projeto Jaba. 226 Fls. Tese (Doutorado em Educao). Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2003, p.44.

  • 40

    Ainda segundo Gilmar Ribeiro46

    , por determinao da poltica do Banco

    Mundial os futuros agricultores no seriam assentados de forma a trabalhar e produzir

    de forma autnoma e sem custos, uma vez que deveriam pagar pela utilizao da gua,

    da energia eltrica e tambm da infraestrutura atravs de taxas de amortizao. De

    forma notria, percebe-se que a poltica de combate pobreza, do Banco Mundial,

    estava vinculada expanso do capitalismo nos pases perifricos, servindo assim s

    normas e poltica econmica dos Estados Unidos.

    Em fins da dcada de 1980 e incio de 1990, o Estado brasileiro, seguindo uma

    tendncia mundial, gradativamente vai se afastando do direcionamento da questo

    econmica, deixando-a sob a responsabilidade da iniciativa privada. Esse modelo

    neoliberal chega ao projeto Jaba atravs da criao, em 1988, do Distrito de Irrigao

    de Jaba (DIJ). Sendo uma exigncia do Banco Mundial sua criao, o DIJ, segundo

    Duarte e Tavares,47

    foi uma maneira encontrada para que o Estado gradativamente

    passasse a responder menos pela etapa I do projeto Jaba. Esse distrito uma associao

    civil, de direito privado, sem fins lucrativos, com personalidade jurdica, patrimnio e

    administrao prprios que busca congregar os irrigantes do projeto (pequenos, mdios

    e grandes produtores) em co-gesto com o poder pblico. Seu objetivo administrar,

    operar, manter e conservar toda a infraestrutura de uso comum do permetro de irrigao

    do Jaba.

    O DIJ teria um importante papel na seleo e transformao dos assentados em

    produtores rurais capitalizados. Sua criao foi uma forma encontrada pela agncia

    financiadora internacional de represent-la junto aos trabalhadores rurais e agncias

    estatais sendo sua presena e atuao no projeto Jaba uma forma estratgica de buscar

    estabelecer as regras do Banco Mundial para o desenvolvimento da agricultura.

    Dentro do capitalismo, o Estado age como agente de classe em funo do capital

    e no projeto Jaba no foi diferente ao garantir as condies fiscais e fsicas para a

    expanso e modernizao da agricultura voltada para satisfao do mercado. Os

    recursos naturais como a gua, insero de impostos e as construes materiais

    46

    Idem, p. 47 47

    DUARTE, Simona Viana, TAVARES, Mauro Calixta. Sistema de produo de produtos

    agrcolas: facilidades e dificultades de escoamento da produo Um estudo de caso do Projeto

    Jaba. Unimontes Cientfica: Revista da Universidade Estadual de Montes Claros-Vol.2, n 2.

    Montes Claros: UNIMONTES, 2001, p.86.

  • 41

    realizadas pelo Estado como canais de irrigao, estaes de bombeamento e estradas

    so disponibilizadas a bel-prazer das grandes empresas rurais ali atuantes.48

    O projeto Jaba, por ser considerado um projeto pblico, em razo de ter uma

    estrutura de irrigao planejada e executada pelo Estado, no desenvolve uma funo

    social compatvel com o estabelecido pela Poltica Nacional de Irrigao. Segundo o

    Art. 14 da Lei de Irrigao, a entrada de pequenas, mdias e grandes empresas

    permitida nos permetros irrigados pblicos desde que no ocupem, em conjunto, rea

    superior a 20% do permetro irrigado. Se levarmos em considerao que 30% da etapa I

    e as demais etapas so constitudas de mdios e grandes empresrios tem-se

    praticamente o inverso ao determinado pela Lei de Irrigao ficando com os agricultores

    familiares apenas 25% da rea total do Jaba.

    Chama a ateno que em carter de excepcionalidade, por meio do Decreto n

    90.309 de 16\10\1984,foi fixado o aumento de limite de 20 para 50% da rea destinada

    a pequenas, mdias e grandes empresas. Forjando situaes e criando brechas na

    legislao, o poder pblico praticamente faz a doao de terras s grandes empresas que

    ainda compram reas de pequenos proprietrios que no tm condies de produzir e

    comercializar a produo.

    O progresso econmico e produtivo do campo beneficia apenas a uma minoria

    da classe rural, sendo que a maioria composta por trabalhadores rurais em suas

    diferentes categoriais possuem dificuldades de viver e permanecer na terra com

    dignidade diante deste turbilho de mudanas impostas pela racionalidade estatal.

    O assentamento de trabalhadores rurais na etapa I garante dois propsitos do

    Estado que no fim beneficiaram o agronegcio: primeiramente funciona como

    justificativa social para proporcionar legitimidade ao investimento conseguindo

    financiamento do Banco Mundial e, em segundo lugar, proporciona a criao de um

    exrcito agrcola de reserva disposio das empresas, sendo composto pelos filhos dos

    pequenos produtores rurais e pelos imigrantes de outras regies que se direcionam para

    a cidade de Jaba procura de emprego.

    A apropriao e capitalizao do espao e dos recursos hdricos por parte do

    poder pblico para privilgio da expanso do capital transformam a sobrevivncia e

    permanncia dos agricultores familiares no projeto Jaba em um constante desafio. No

    48

    Vrias empresas atuam no projeto Jaba com destaque para a BRASNICA (frutas tropicais), e

    mais recentemente a SADA (Bioenergia) e a Pomar Brasil (industrializao de poupas de

    frutas).

  • 42

    trabalho com agricultura irrigada, existe uma grande dependncia, por parte do

    agricultor, de conhecimento tcnico, recursos financeiros e tecnologia aumentando os

    custos de produo dentro de uma dinmica na qual os grandes empresrios se

    sobressaem por terem tais recursos.

    Nos permetros irrigados coordenados pela CODEVASF os sujeitos que tm

    acesso a terra devem arcar com a tarifa de gua (lei instituda pela Poltica Nacional de

    Irrigao) alm de outras taxas em uma dinmica na qual a agricultura deve ser baseada

    em modernas tcnicas de trabalho e produo para a satisfao primeira das demandas

    do mercado e no necessariamente da subsistncia do produtor rural. No que se refere

    exclusivamente as taxas de irrigao cobradas aos produtores rurais do projeto Jaba,

    existem aquelas que so fixas e as variveis, como destaca Luciene Rodrigues:

    Conforme a legislao, o custo da tarifa de gua composto por duas

    parcelas: (a) uma (K-1) correspondente amortizao dos

    investimentos pblicos nas obras de infra-estrutura de uso comum,

    calculada anualmente, com base no valor atualizado, por projeto, em

    moeda local, por hectare de rea irrigvel do usurio; (b) outra (K-2)

    correspondente s despesas anuais de administrao, operao,

    conservao e manuteno das obras e equipamentos, calculada

    anualmente, por projeto, em moeda local, para cada mil metros

    cbicos ou frao de gua fornecida ao usurio. De acordo com a

    legislao, o seu valor deve ser estabelecido de modo a cobrir 100%

    dos custos de operao e manuteno ao longo do ano, e dos

    investimentos, em termos reais, ao longo de um perodo de 50 anos,

    sem cobrana de juros.49

    Alm dessas tarifas, de acordo com Januzzi, citado por Soares, o adquirente do

    lote familiar amortizar as aplicaes de recursos pblicos em benfeitorias internas, bem

    como o valor da terra, no prazo de 25 anos, com carncia de cinco anos e juros de 6%

    ao ano.50

    Os permetros irrigados planejados pela CODEVASF, que tiveram grande

    expanso durante o perodo militar, foram baseados em uma lgica na qual os

    agricultores deveriam se capitalizar, uma vez que seriam os responsveis pela

    recuperao do capital pblico investido.

    49

    RODRIGUES, Luciene. Investimento agrcola e o grande Projeto Jaba. Uma

    interpretao: 1970-1996. 337 Fls. Tese (Doutorado em histria econmica). Faculdade de

    Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So Paulo. So Paulo, 1998, p. 229. 50

    SOARES, C.C. O carter social e as perspectivas de adaptao da pequena produo

    inserida em projetos de concepo tcnica: o caso do Projeto Jaba. 114 Fls. Dissertao

    (Mestrado em Administrao Rural) Universidade Federal de Lavras: Lavras, 1999, p. 113.

  • 43

    O projeto Jaba um desses exemplos, visto que os lotes agrcolas foram

    adquiridos a partir de um financiamento a ser pago a longo prazo com os trabalhadores

    subordinados a determinadas normas e obrigaes. Nota-se que, alm das taxas a serem

    pagas pelo uso da gua e benfeitorias da terra, parte da renda dos pequenos agricultores

    deveria gerar excedentes e divisas para o sustento da famlia (vesturio, alimentao,

    etc.) e para manuteno do lote (adubos, energia, defensivos agrcolas, entre outros).

    A irrigao, que poderia ser a soluo\redeno do semirido norte-mineiro, foi

    se transforma