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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE A NATUREZA EM BACON E A RECEPÇÃO DA SUA FILOSOFIA NAS DISCUSSÕES AMBIENTAIS Autor: José Sandro Santos Hora Orientador: Dr. Antônio Carlos dos Santos Janeiro de 2014 São Cristóvão Sergipe Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

A NATUREZA EM BACON E A RECEPÇÃO DA SUA FILOSOFIA NAS

DISCUSSÕES AMBIENTAIS

Autor: José Sandro Santos Hora

Orientador: Dr. Antônio Carlos dos Santos

Janeiro de 2014

São Cristóvão – Sergipe

Brasil

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM

DESENVOLVIMENTO E MEIO AMBIENTE

A NATUREZA EM BACON E A RECEPÇÃO DE SUA FILOSOFIA NAS

DISCUSSÕES AMBIENTAIS

Dissertação de Mestrado apresentada ao

Núcleo de Pós-Graduação em

Desenvolvimento e Meio Ambiente da

Universidade Federal de Sergipe, como parte

dos requisitos exigidos para a obtenção do

título de Mestre em Desenvolvimento e Meio

Ambiente.

Autor: José Sandro Santos Hora.

Orientador: Dr. Antônio Carlos dos Santos.

Janeiro de 2014

São Cristóvão – Sergipe

Brasil

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Hora, José Sandro Santos

H811n A natureza em Bacon e a recepção de sua filosofia nas

discussões ambientais / José Sandro Santos Hora;

orientador Antônio Carlos dos Santos. – São Cristóvão,

2014.

122 f.

Dissertação (mestrado em Desenvolvimento e Meio

Ambiente) – Universidade Federal de Sergipe, 2014.

O

1. Ciências ambientais. 2. Natureza. 3. Progresso. 4.

Ética. 5. Ciência. 6. Bacon, Francis, 1561-1626 I. Santos,

Antônio Carlos dos, orient. II. Título.

CDU: 502/504:113

ii

iii

Este exemplar corresponde à versão final da dissertação de Mestrado em Desenvolvimento e

Meio ambiente concluído no Programa de Pós-Graduação PRODEMA da Universidade

Federal de Sergipe (UFS).

______________________________________________

Profº. Dr. Antônio Carlos dos Santos (Orientador)

Universidade Federal de Sergipe

iv

À saudosa avó Dolores;

à Mayara (filha do amigo José Maximino,

com quem partilhei diversas e difíceis circunstâncias

durante a graduação);

e ao sobrinho Gabriel Vinícius.

v

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço ao Ser Supremo que ultrapassa toda capacidade de

cognição e de linguagem, Deus.

Segundo, ao professor Dr. Antônio Carlos dos Santos. Não apenas por me orientar

nessa dissertação, mas principalmente pelos constantes incentivos a pesquisar e a seguir a

trilha acadêmica. Sem os seus incentivos de forma alguma teria chegado até aqui.

Terceiro, à minha família. Especialmente, pais (Pedro Hora e Maria Vanilde), irmãos

(Celio e Ernando), avós maternos (Evanda e Antônio), tios(as) – que não são poucos. Aliás,

entre as tias sublinho uma: Maria Farias – tia Aía como a chamo –. Essa mulher dedicou os

melhores anos de sua vida a cuidar de mim e dos meus irmãos. Erica Sá pela companhia, por

participar de perto das angústias de um mestrando. Ressalto ainda a importância do carinho e

dos encontros super agradáveis com o sobrinho Gabriel.

Nesse quadro de agradecimentos, mencionarei alguns nomes sem os quais jamais eu

teria conquistado o que conquistei, física e metafisicamente. São eles: primo José Carlos

(Ninho). Por seu intermédio me foi oportunizado mudar-se para Aracaju, inserir-se no mundo

do trabalho e lutar pela concretização do grande sonho que era estudar. Padrinhos Airton da

Mota e Lindete Cruz. Ambos abriram as portas da sua casa e me abrigaram como filho

quando mudei para Aracaju. Costumo dizer que a Fortuna me presenteou com os melhores

padrinhos do mundo. Às filhas dos meus padrinhos – que na verdade se tornaram minhas

irmãs: Val, Line e Naizinha. Elas me apoiaram enormemente afetiva e psicologicamente

quando me infiltrei em seus espaços, durante a minha graduação e em tantos outros momentos

que precisei. Minha avó paterna, mãe Dolores, lamentavelmente há mais de 4 anos deixou de

„ser‟ entre nós. Mãe Dolores era incapaz de ler os nossos livros, mas conhecia com

profundidade o livro da vida, investiu nos meus estudos e fez tudo que pôde para que eu

pudesse alcançar uma condição de vida melhor. Esses nomes foram peças-chave sem as quais

jamais seria quem sou.

Agradeço aos professores Dr. Evaldo Becker e Dr. Sérgio Menna, pela participação na

minha Qualificação e Defesa, por apontarem sugestões e caminhos que foram fundamentais

ao desenvolvimento do nosso trabalho. O professor Evaldo, aliás, acompanhou e contribuiu

com essa pesquisa desde a fase mais incipiente, passando pelo Seminário Integrador até os

momentos “finais”.

vi

Estendo minha gratidão a Manuela Nascimento pela imensa ajuda na Qualificação e

também na organização final do trabalho. Aos estimados Jaime Rodrigues, Eronides Bravo,

Manu Silva, Lucineide Monteiro, José Maximino e Marta Moura, pelas constantes palavras

animadoras e revigorantes. Alam Fabiano pela paciência, atenção e informações prestadas

sempre com muita destreza. Rosangela, Sueli, Gleidinha, Ana Vanúzia, Joélia Ferreira,

Camila Barreto, Aline de Oliveira, entre outros colegas de trabalho, pela compreensão e

apoio.

Aos colegas dos grupos: Filosofia & Natureza, bem como, Ética e Filosofia

Política/NEPHEM/UFS, sobretudo, Saulo Henrique pelo constante diálogo; Christian

Lindberg, pelas sugestões de leituras e atenção com a minha pesquisa; Prof. Thomaz por

indicação de leitura; Silvia Matos, Cleber Rick, Michele Becker e Caroline, por indicações de

leitura, empréstimos de bibliografias e compartilhamento de ânsias e experiências. Aos

colegas de turma, em especial, Emmanuely Poncell, Eduardo Pina, Itamar Prado, Claydivan,

Andrea Vaz, Elaine Praes, Luane Nascimento, Andréa Sarmento, Graze, Marcela, Cleomar e

Edilson Carneiro.

Por fim, agradeço imensamente o apoio da FAPITEC/SE por custear boa parte da

nossa pesquisa. Ao Núcleo de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente –

PRODEMA/UFS, na pessoa da sua Coordenadora, a Prof.ª Maria José. A todos os

professores, pela acolhida, troca de ideias, oportunidade de discutir, problematizar diversos

dilemas ligados ao meio ambiente e por nos formar cidadãos atentos, sobretudo, no que tange

às questões ambientais. Ao pessoal da Secretaria do PRODEMA, Aline, Amanda, Luzia,

Najó, Valdirene e Wandison. E a todos que direta ou indiretamente – embora minha falha

memória não os mencione – me ajudaram nesse desafio.

vii

RESUMO

O objetivo geral dessa pesquisa é analisar a recepção da filosofia de Bacon em determinados

teóricos das ciências ambientais. Os objetivos específicos são: estudar o conceito baconiano

de natureza, a noção de progresso e a absorção desses conceitos nas ciências ambientais. O

trabalho está estruturado em três capítulos. O primeiro versa sobre o conceito de natureza. O

segundo, sobre a ideia de progresso. E o último, sobre determinadas apropriações da filosofia

baconiana em Hans Jonas, Andrew Brennan e Mauro Grün. A pesquisa é fundamental e

bibliográfica. Assim, os procedimentos metodológicos adotados foram leitura e análise de

texto. A relevância do trabalho consiste em dois pontos fundamentais. i) Vincular o

pensamento baconiano às discussões ambientais. ii) Criticar a visão quase hegemônica por

parte das ciências ambientais contra a modernidade. É nesse sentido que guardamos

expectativas de acréscimo à bibliografia existente sobre Bacon, especialmente no que tange à

atualidade de seu pensamento. Esta pesquisa busca a interdisciplinaridade na medida em que

dialoga não só com a filosofia, mas também com a sociologia, a ética e a educação

ambientais.

PALAVRAS-CHAVE: Bacon, Natureza, Progresso, Ciência, Ética, Ciências Ambientais.

viii

ABSTRACT

The overall objective of this research is to analyze the reception of the philosophy of Bacon in

certain theoreticians of environmental sciences. The specific objectives are: to explore the

Baconian concept of nature, the concept of progress and the absorption of these concepts in

environmental sciences. The work is structured in three chapters. The first deals with the

concept of nature. The second is about the idea of progress and the last one presents an

analysis on certain appropriations of the Baconian philosophy in Hans Jonas, Andrew

Brennan and Mauro Grün. The research is fundamental and bibliographic. Thus, the

methodological procedures adopted were reading and textual analysis The relevance of the

work consists in two fundamental points: Bring the Baconian thought for environmental

discussions. ii) Criticizes the hegemonic vision of environmental sciences against modernity.

It is in this sense that we store expectations to increase the existing bibliography on Bacon,

especially with respect to the relevance of his thought. This research seeks to

interdisciplinarity in so far as it interacts not only with the philosophy, but also with the

sociology, ethics and environmental education.

KEY-WORDS: Bacon, Nature, Progress, Science, Ethic, Environmental Sciences

ix

“Pois bem, o império do homem sobre as coisas se apóia unicamente

nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe”.

[Destaque meu]

(Francis Bacon)

“Na filosofia de Bacon, a natureza tem a primeira e a última palavra”.

(Sergio Hugo Menna)

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ............................................................................................................. v

RESUMO ................................................................................................................................. vii

ABSTRACT ........................................................................................................................... viii

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 1

Capítulo 1 - Em torno do conceito baconiano de Natureza .................................................... 6

1.1 Aforismos, crítica à sistematicidade rígida e valorização da criatividade no processo

de interpretação da Natureza .................................................................................................. 8

1.2 Acepções e características do „termo‟ Natureza com base no Novum Organum ........ 10

1.3 A natureza com base na Sabedoria dos Antigos ............................................................. 27

1.4 As três histórias ou estágios da Natureza e a contribuição dos saberes não

acadêmicos com o processo de interpretação e conhecimento da Natureza ..................... 39

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à

Natureza ................................................................................................................................... 45

2.1 Discussões preliminares acerca da noção de progresso ................................................ 46

2.2 Defesa da excelência e ampliação do conhecimento ...................................................... 52

2.2.1 O posicionamento dos teólogos ..................................................................................... 53

2.2.2 A problemática em torno dos políticos ........................................................................ 56

2.2.3 A problemática em volta dos doutos e acadêmicos ..................................................... 58

2.3 Aspectos que integram a noção baconiana de progresso .............................................. 60

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais ........................... 73

3.1 Considerações acerca das epígrafes iniciais, rastros e ecos da filosofia baconina na

sociologia de Boaventura ....................................................................................................... 75

3.2 O Foco da análise de Hans Jonas .................................................................................... 82

3.3 A crítica de Jonas à filosofia baconiana ......................................................................... 86

3.4 As interpretações de Brennan e Grün: Bacon, a máquina de terraplanagem, a

Natureza fêmea e a negação da tradição e do passado ........................................................ 91

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 104

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 110

1

1 INTRODUÇÃO

Percebe-se, ao longo da história da humanidade, que várias questões e problemas

foram responsáveis pela elaboração de teorias, surgimento de concepções e construção de

saberes. Não há como esconder que um dos grandes problemas contemporâneos, o tema da

pauta na ordem do dia, não é mais saber se a alma é imortal, não é provar a existência de

Deus, não é demonstrar se o conhecimento é inato ou exterior ao sujeito, mas a relação entre o

homem e a natureza. O foco das atenções tem se voltado de maneira muito incisiva,

sobretudo, para a relação entre homem e meio ambiente. Nessa perspectiva, escreve Vera

Vidal: “a problemática do meio ambiente tem sido objeto de inúmeras abordagens e se tornou

uma das mais debatidas da atualidade, seja nos meios acadêmicos, na mídia, em instituições

governamentais ou ONGs”. (VIDAL, 2008, p. 128). Complementa Antônio Carlos dos

Santos, “não é por acaso que o tema, por excelência universal, gira em torno do meio

ambiente” (SANTOS, 2012, p. 40). Diante desse „espanto‟ que toma o meio ambiente como

categoria de reflexão e análise pergunta-se: o que tem a ver a filosofia com essa questão?

Uma resposta provável para essa pergunta deixamos por conta da própria Vidal. Conforme a

autora, “a Filosofia não poderia ficar alheia a esta discussão e a tem tratado principalmente

sob o prisma da Ética, mas também da Epistemologia (buscando esclarecer o significado de

termos) ou da Lógica (verificando a validade dos argumentos correntes nestas discussões)”.

(VIDAL, 2008, p. 128).

Feitas tais considerações, passamos a apresentar a problemática da nossa pesquisa. O

objetivo geral é analisar a recepção da filosofia de Bacon em determinadas abordagens tecidas

por teóricos das ciências ambientais. Para sustentar tal objetivo, formulamos três objetivos

específicos. Cada um será desenvolvido por capítulo na dissertação.

O primeiro, diz respeito às acepções, características e definições que se podem atribuir

ao conceito de natureza conforme a filosofia de Bacon. Três textos do inglês nos serviram de

referencial teórico para esse fim. A saber, o Novum Organum, A Sabedoria dos Antigos e O

progresso do conhecimento. Ao lado deles, recorremos a trabalhos de comentadores, a

exemplo de Paolo Rossi, Sergio Menna, Bernardo de Oliveira, Silvia Manzo, Catherine

Larrère, entre outros. Veremos no primeiro capítulo que, para o inglês, domínio da natureza,

compreensão ampla da realidade e obediência às leis da primeira constituem fios de um

mesmo tecido. Não é verdade que para o autor do Novum Organum, a natureza seja encarada

como alvo de exploração e de transformação ilimitadamente em função dos avanços da

1 Introdução 2

técnica e da ciência. Veremos que, para Bacon, os resultados práticos oriundos da pesquisa e a

transformação do real devem levar em consideração os limites que são dados pelas esferas

epistemológica e ética. Epistemológica porque só deveríamos efetivar as ações tendo em vista

o limite do que se conhece. As ações, a ciência, o aperfeiçoamento e poderio da técnica

precisam estar vinculados à ética enquanto princípio que envolve moderação, obediência às

leis da natureza e preocupação com o bem da humanidade.

O segundo, visa analisar a noção de progresso tal como arquitetada por Bacon. Nesse

caso, constituem referencial teórico os seguintes textos: O progresso do conhecimento, A

sabedoria dos Antigos e a Nova Atlântida de Bacon; O mito do progresso, de Gilberto Dupas;

Natureza, Ciência e Progresso em Bacon, de Guimarães e Santos; Crítica moral de Francis

Bacon a La Filosofía, de Maximiliano Prada Dussán; A filosofia experimental na Inglaterra

do século XVII, de Luciana Zaterka; Máquinas, gênios e homens na construção do

conhecimento: uma interpretação heurística do método indutivo de Francis Bacon, de Sergio

Menna; entre outros. Veremos nessa parte da dissertação que a noção de progresso

baconinana reivindica certas nuances. Por exemplo: estudo profundo da natureza; afastamento

do saber meramente retórico, livresco e professoral; efetivação de uma educação criativa,

conectada com a vida e que una teoria e prática; investimento público em pesquisa;

reconhecimento meritocrático e escolha dos mais bem preparados; dispensa de bons salários

para os que se envolvem seriamente com a atividade de pesquisa; humildade e permanente

diálogo entre as diversas instituições de pesquisa. Para Bacon, o progresso científico não fora

pensado como uma proposta hegemônica, unilateral, impositiva, segregacional. Embora, seja

desta forma que muita das vezes ele é considerado nas discussões ambientais.

Terceiro, o telos é examinar determinas interpretações da filosofia baconiana nas

discussões das ciências ambientais. Através desse capítulo, haja vista o viés da

interdisciplinaridade, faremos um diálogo entre textos baconianos e de autores

contemporâneos. Por exemplo, Hans Jonas, que reflete sobre ética ambiental, Mauro Grün,

que discute educação ambiental e Boaventura, sociólogo português, que empreende

discussões em torno da relação sociedade e natureza. Os referenciais teóricos giram em torno

desses autores. Consideramos que as críticas de Jonas e Grün contra Bacon são superficiais e

afastadas da filosofia baconiana. Geralmente costuma-se atribuir ao filósofo inglês, a gênese

dos problemas ambientais, alegando que ele defendeu exacerbadamente o avanço da ciência e

da técnica, ignorou o saber do passado e propôs dominação e tortura à natureza. Boaventura

fora trazido para essa discussão, pelo fato de desenvolver reflexão a respeito do par sociedade

1 Introdução 3

e natureza, também porque consideramos que, embora não sendo um estudioso ou especialista

da filosofia baconiana, encontramos na sua sociologia possíveis “encontros” com noções

baconianas. Só para apontar algumas, em ambos é possível encontrar a defesa do ajuste e da

relação coerente que deve haver entre teoria e prática. Ambos valorizam a diversidade de

experiências. Ambos defendem proximidade entre ciência e humanidade, ciência e sociedade,

ciência e senso comum, ou, seja lá o termo que se queira dar para a outra esfera que não a da

academia. Para Bacon, o conhecimento da natureza obedece limites (epistemológicos e

éticos). A ciência deve ser solucionadora de problemas e próxima da sociedade, na medida em

que se expresse por meio de uma linguagem não ambígua e disponibilize os seus resultados a

serviço da humanidade visando assim o que poderíamos denominar de „beneficiamento

social‟1.

Nossa pesquisa traz como justificativa pelo menos duas razões. A primeira, é que

ainda não são muitas as pesquisas sobre Bacon no Brasil2. A segunda, consiste no fato de

vincularmos a filosofia baconiana para as discussões acerca do meio ambiente. Percebe-se que

há uma espécie de preconceito contra os filósofos modernos nas discussões acerca do meio

ambiente, sobretudo, quando nos referimos a Bacon e Descartes. No caso do primeiro, a

postura de propor um método para a ciência e afirmar que somente acossando a natureza

poderemos forçá-la a se mostrar, lhe rendeu e permanece rendendo-lhe inúmeras críticas.

Forjou-se uma imagem de Bacon como sendo mentor da dominação e destruição da natureza.

Segundo Paolo Rossi, critica-se os modernos, mas não os lêem como se deveria. Baseiam-se

mais em manuais que falam sobre eles do que em seus próprios textos.

1 Utilizamos esse termo, tomando como fundamento a seguinte referência: (COELHO, 2002, pp. 179-199).

Nesse texto, a autora discute questões do tipo: coletividade na construção e no avanço do conhecimento em

contraposição ao trabalho isolado e individual; estreita relação entre pesquisa e sociedade; proximidade entre

universidade e sociedade; etc. O problema é que para essa autora estes aspectos são marxistas. A nosso ver, tais

posturas, antes de serem marxistas, são baconianas. Uma recomendação, portanto, à autora e aos que defendem

tais posicionamentos seria lerem O progresso do conhecimento. 2 Em pesquisa ao site de periódicos da Capes, disponível abaixo e acessado no dia 11 de novembro de 2012, na

parte de assuntos, ao colocar como tema: a relação entre natureza e progresso em Bacon, apareceu um total de

apenas 16 trabalhos, entre eles, 10 artigos e 6 livros. Esse número foi filtrado do universo de 27.713 trabalhos

para o tema: filosofia. Neles o que se verifica é que não há sistematicidade entre os conceitos que pretendemos

estudar. Os termos natureza ou progresso, por exemplo, aparecem vez ou outra, mas não em um estudo

específico com foco em um determinado autor como é o caso do filósofo inglês mencionado acima. Os trabalhos

encontrados nesse endereço versam sobre diferentes focos, mencionam Bacon, mas não são pesquisas sobre este

autor. Eis o endereço: http://www.periodicos.capes.gov.br/. Além desse, fizemos busca também em outras fontes

como a Philósophos, revista de pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás, na biblioteca

digital da USP, mas não encontramos trabalhos sobre Bacon. Seguem os endereços respectivamente:

http://www.revistas.ufg.br/index.php/philosophos#.UJ6kBOSZlc8;

http://www.teses.usp.br/index.php?option=com_jumi&fileid=11&Itemid=76&lang=pt-br&filtro=filosofia. Com

isso, o desafio e a expectativa da nossa pesquisa é suscitar leitura, debate e a abertura para que outros trabalhos

nesta perspectiva possam surgir aqui no Brasil.

1 Introdução 4

Quanto à metodologia, a pesquisa será do tipo, segundo Lakatos, fundamental. Pois,

se insere no aspecto da “ampliação de conhecimentos teóricos, sem a preocupação de utilizá-

los na prática. É a pesquisa formal, tendo em vista generalizações, princípios, leis. Tem por

meta o conhecimento pelo conhecimento” (LAKATOS, 1999, p. 22). Que significa dizer isso?

Tratar-se-ia de um conhecimento sem serventia? Não, é claro. Significa dizer que o resultado

oriundo dela não será para a aplicação ou intervenção imediata na realidade. A expectativa é

de suscitar leitura acerca da modernidade. Ou seja, trata-se de procurar não repetir nem

endossar aquilo que denuncia Paolo Rossi, a saber, ler os modernos via manuais e não por

eles próprios. Nossa pesquisa pretende indicar que mediante pensamento de autores

modernos, como é o caso, por exemplo, de Francis Bacon, poderemos encontrar diversos

subsídios capazes de contribuir com a reflexão em torno da problemática ambiental.

Ainda em relação à pesquisa, ela pode ser caracterizada como bibliográfica. De acordo

com Marconi & Lakatos, a pesquisa bibliográfica possui oito fases. São elas: escolha do tema;

elaboração do plano de trabalho; identificação; localização; compilação; fichamento; análise e

interpretação; e redação3. Entre esses procedimentos, além dos dois primeiros, dos três

últimos não tivemos como fugir. Também foram indispensáveis ao nosso trabalho, a leitura e

análise de textos. Declaram as autoras de Fundamentos de Metodologia Científica, que a

leitura

constitui-se em fator decisivo de estudo, pois propicia a ampliação de

conhecimentos, a obtenção de informações básicas ou específicas, a abertura

de novos horizontes para a mente, a sistematização do pensamento, o

enriquecimento de vocabulário e o melhor entendimento do conteúdo das

obras. (MARCONI & LAKATOS, 2003, p. 19).

A leitura, segundo elas, constitui matéria prima para realização de uma pesquisa.

Quanto ao conceito de análise de texto, antes de defini-lo, primeiro elas explicam o que

significa analisar. Para as autoras, analisar significa estudar, decompor, dissecar, dividir,

interpretar. Feito isso, afirmam elas que a análise de texto “refere-se ao processo de

conhecimento de determinada realidade e implica o exame sistemático dos elementos;

portanto, é decompor um todo em suas partes, a fim de poder efetuar um estudo mais

completo”. (MARCONI & LAKATOS, 2003, p. 27). Esses são os procedimentos metodológicos

que seguiremos.

3 A caracterização dessas fazes se encontram no capítulo 2 de Fundamentos de metodologia científica. (Cf.

MARCONI & LAKATOS, 2003, pp. 44-49).

1 Introdução 5

A perspectiva de trazer a filosofia baconiana para esse âmbito de discussão é um

desafio, mas, ao mesmo tempo, uma contribuição à bibliografia sobre o filósofo aqui no

Brasil. O resultado que esperamos é que outros trabalhos nessa linha possam surgir. Pois,

como Bacon mesmo propunha, as flutuações, o desapego a pontos fixos, a organização de

ideias, princípios, teorias e experiências sem precisar estar refém à sistematicidade rígida,

bem como, a continuidade da pesquisa são o que contribuem com a ampliação e o avanço do

saber. A nosso ver, a análise que faremos aqui acerca da „Natureza‟ não incorrerá em

conceitos batidos como se discute comumente. Será uma discussão que pretende seguir na

contramão de uma visão quase hegemônica por parte das ciências ambientais em relação ao

pensamento moderno. Visão essa que apresenta a modernidade como causadora de males ao

homem e à natureza, pelo fato de muitos dos seus pensadores acreditarem na razão, na ciência

e no progresso. Visão essa que, provavelmente, se fundamenta numa concepção romântica da

natureza e, por isso, finda achatando e reduzindo tal conceito. A natureza é complexa,

superior aos sentidos e ao intelecto. Portanto, todos nós estamos convidados a pensá-la.

6

Capítulo 1 - Em torno do conceito baconiano de natureza

“A partir de diversas indagações, emergem três conhecimentos: filosofia Divina, filosofia Natural e

filosofia Humana ou Humanidade”.

(BACON, 2007, p. 136)

“Na filosofia de Bacon, a natureza tem a primeira e a última palavra”.

(MENNA, 2011, p. 172)

O objetivo deste capítulo é apresentar possíveis definições que o termo natureza

admite no transcorrer da filosofia baconiana e procurar extrair contribuições do pensamento

do inglês no que se refere ao tema da natureza, tema este que perpassa quase toda sua obra.

Sob esta perspectiva, algumas questões podem ser formuladas. Uma delas, por exemplo, o que

seria a natureza para Bacon? Quais as acepções e características que aquele termo admite? Se

Bacon é apresentado como defensor da dominação da natureza, o que isto significa? Seria

plausível afirmar que a destruição da natureza tal como se discute no mundo contemporâneo

tem como “matriz” a filosofia do autor do Novum Organum?

Embora Bacon não careça de advogado, todavia conduziremos nosso barco sobre as

águas movidas por textos oriundos de sua própria pena, bem como outros textos resultados de

pesquisas empreendidas por seus comentadores, a exemplo de Paolo Rossi, Silvia Manzo,

Sergio H. Menna, Bernardo Jefferson de Oliveira, apenas para citar alguns, com o objetivo de

ancorar, mediante discussões e análises em torno das questões postas acima, no seguinte

posicionamento: parece equívoco e superficial atribuir ao filósofo autor da Nova Atlântida, os

danos e males que se tem causado à natureza e ao próprio homem por conta dos avanços da

ciência e da técnica. Se por um lado o inglês não dá conta de responder a contento nossos

dilemas frente ao avanço da técnica e a relação desta com a natureza, ou ainda tenha sido

superado no tocante ao método científico, por outro, é inapropriado afirmar que os males

causados ao meio ambiente são oriundos de sua filosofia.

Conforme argumentaremos no decorrer desse capítulo, para Bacon, o império do

homem sobre a natureza leva em conta ao menos dois limites. O primeiro limite é dado pela

esfera epistemológica. Ou seja, só podemos agir sobre a natureza até onde o conhecimento

adequado das suas leis nos permita. O agir sobre a natureza está fortemente vinculado à

relação de obediência e de sujeição à ela própria. O segundo limite é oriundo da esfera da

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 7

ética. Ante o vasto mar da ignorância acerca da natureza, a embarcação da busca pelo

conhecimento deve navegar permanentemente, porém não pode esquecer a instrução que fora

dada por Dédalo ao seu filho Ícaro: “não seguir um curso muito alto nem muito baixo”

(BACON, 2002, p. 86). Também não pode deixar de considerar o seguinte princípio: “O

caminho da virtude segue reto entre o excesso, de um lado, e a carência, de outro”. (BACON,

2002, p. 87). É fundamental, conforme Bacon, equilibrar a necessidade, a ousadia e a aventura

do lançar-se sobre o desconhecido, com o que se faz e com a aplicação do conhecimento

adquirido. Ao trazer a ética para o processo de conhecimento, interpretação da natureza e a

produção técnico-científica, no mito intitulado „Ícaro alado, também Cila e Caríbdes, ou

caminho do meio‟, que se encontra em A Sabedoria dos Antigos, Bacon sublinha:

Quanto à passagem entre Cila e Caribdes (moderação no intelecto),

certamente é necessário ter muita perícia... Pois se o navio se aproxima de

Cila, quebra-se nos rochedos; se se aproxima de Caribdes, é sugado pelo

torvelinho. Essa parábola nos leva a considerar... que em toda forma de

conhecimento e ciência, bem como em toda regra ou axioma a eles

pertinente, cumpre manter o meio-termo entre o excesso de especificidades e

o excesso de generalidades. (BACON, 2002, p. 87).

De acordo com a citação evocada, a atividade técnico-científica não pode abrir mão de

determinados critérios. Por exemplo, a moderação, a perícia, o exame, a crítica, a reflexão, a

paciência na pesquisa. Constituem igualmente critérios que devam ser inseridos na atividade

técnico-científica, segundo Bacon, a constância na pesquisa, o diálogo e compartilhamento de

experiências entre os pesquisadores, o afastamento da postura vaidosa-individual-egoísta e a

consciência de que os resultados precisam ter como finalidade melhorar as condições de vida

da humanidade no seu todo. A nosso ver, essa propositura do inglês contribui e permanece

viva. Pois, nos instiga a pensar, não só a respeito de nós mesmos, dos nossos papéis,

sobretudo, enquanto pesquisadores, como também a respeito do fazer técnico-científico e do

lidar com a natureza.

O capítulo está dividido em quatro tópicos. No primeiro, definimos e discutimos a

importância da escrita em aforismos para Bacon. Vimos que, não obstante o filósofo ter

proposto um método para a ciência, entretanto, critica a sistematicidade rígida e o

conhecimento estático. “Pois a natureza humana anseia em extremo ter em seu entendimento

algo fixo e irremovível, e que seja como um apoio ou suporte do espírito. ... sem dúvida

desejam os homens ter um Atlas ou eixo em seu interior que os resguarde da flutuação”.

(BACON, 2007, pp. 195-196). Em contraposição, valoriza as inquietudes próprias dos jovens

e a criatividade. Estes aspectos são fundamentais para o processo de interpretação e

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 8

conhecimento da natureza. No segundo tópico, apresentamos “definições” e características

atribuídas ao termo natureza, tomando como base uma série de aforismos. A fundamentação

teórica foi por conta do Novum Organum. No terceiro, analisamos três mitos por meio dos

quais é possível refletir sobre a natureza, o homem, a ciência, etc.. A saber, Pã, Celo e Proteu.

Nesse caso o texto referencial foi a A sabedoria dos antigos. No último tópico, abordamos

sobre os três estágios da natureza. Segundo Bacon, a História da Natureza é de três tipos: da

natureza em seu curso normal, da natureza em seus erros ou variações e da natureza alterada

ou trabalhada. A compreensão dessas histórias ou estágios são fundamentais, haja vista a

intervenção e transformação da natureza.

1.1 Aforismos, crítica à sistematicidade rígida e valorização da criatividade no processo

de interpretação da natureza

Tomando como ponto inicial a indagação „o que seria a natureza para Bacon‟, de saída

é possível afirmar – e aqui considero pelo menos cinco de suas obras: o Novum Organun, A

Sabedoria dos Antigos, Do Fluxo e Refluxo do Mar, O Progresso do Conhecimento e a Nova

Atlântida – que não há uma definição estática ou precisa acerca do termo. O que se percebe ao

longo dos textos é que são várias definições e características atribuídas ao conceito.

O referencial teórico desta análise tem como fundamento uma série de aforismos

localizados no primeiro livro do Novum Organum. O que seria um aforismo? Nos termos do

próprio Bacon, os aforismos são “breves sentenças avulsas e não vinculadas por qualquer

artifício metodológico...” (I: 86)4. Por mais que a primeira vista pareça um paradoxo – o

filósofo que propõe um método para o conhecimento, acaba elogiando a ausência de

sistematicidade – a escrita na forma de aforismos é bem vista pelo Barão de Verulam. No

Progresso do Conhecimento, ele escreve que “... o conhecimento, enquanto está em aforismos

e observações, está em tempo de crescimento;” (BACON, 2007, p. 58). O filósofo chega a

comparar o conhecimento no estado de aforismos a um jovem que está em pleno crescimento.

Tal posição permite-nos considerar que, para Bacon, a sistematicidade rígida pode se

constituir um fator não favorável ao avanço do conhecimento, portanto, um obstáculo à força

criativa.

4 Daqui em diante, utilizaremos o algarismo em maiúscula (I ou II) e o número em seguida (1, 2, 3,...) para

indicar respectivamente o livro e o aforismo do Novum Organum.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 9

Na compreensão do Lord, “a escrita em aforismos têm muitas virtudes excelentes, às

quais não alcança a escrita sistemática. ... ninguém é apto para escrever em aforismos, nem

sensatamente tentaria fazê-lo, a não ser que possua um conhecimento correto e bem fundado”.

(BACON, 200, p. 211). Pondera ainda Bacon, “e, finalmente, os aforismos, ao apresentar um

conhecimento incompleto, convidam a seguir investigando, enquanto as exposições

sistemáticas, ao apresentar uma totalidade, aquietam e fazem crer que se chegou ao término”.

(BACON, 2007, p. 212).

Ao analisarmos as duas citações baconianas elencadas no parágrafo anterior, verifica-

se que a filosofia do inglês enaltece a ausência de pontos fixos. As inquietudes que se percebe

nos jovens são fundamentais e bem vindas aos estudos da natureza. Bacon defende e propõe

com veemência, o esforço, a paciência e a continuidade nas pesquisas. O conhecimento

precisa ser correto e bem fundado. Por isso a importância de se estabelecer o método. Porém,

isso não significa dizer que se deva ficar restrito a pontos fixos ou a exposições sistemáticas.

Os sistemas filosóficos precedentes já tinham dado sinal de que não se conseguiu avançar

nem se conseguiu grandes feitos para a humanidade. Bacon afirma que,

os Sistemas são mais adequados para obter assentimento ou crença, mas

menos para orientar a ação: pois neles se faz uma espécie de demonstração

circular, iluminando uma parte a outra, e por isso satisfazem, mas os

particulares, estando dispersos, concordam melhor com as indicações

dispersas. (Idem, p. 212).

Os pontos fixos e as exposições sistemáticas podem gerar como consequências,

inibição da criatividade5 e admissão de que o conhecimento seja estático, completo e finito. O

processo de conhecimento da natureza precisa ter regras, carece de método, mas não pode

desvincular-se da dinâmica, das inquietações indagatórias e da criatividade. Passemos à

discussão acerca das possíveis definições e características concernentes ao termo natureza

para Bacon.

5 A criatividade em Bacon exerce uma relação extremamente estreita com a capacidade de inventar. E o que seria

então inventar para o filósofo? Sua resposta é a seguinte. “Inventar é descobrir o que não se sabe”. (BACON,

2007, p. 192). Portanto, a criatividade baconiana tem a ver com a capacidade de descobrir o que não se sabe, ou

seja, tem a ver com a descoberta de conhecimentos novos em contraposição à repetição do que já se sabe.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 10

1.2 Acepções e características do “termo” Natureza com base no Novum Organum

A análise que visa compreender os elementos ou aspectos integrantes do conceito

baconiano de natureza toma como ponto de partida o primeiro aforismo do livro I do Novum

Organum. Nesse aforismo Bacon escreve: “o homem, ministro (minister) [servidor] e

intérprete (interpres) da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela observação dos

fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem pode mais”. (I: 1).

São temas desse aforismo: o homem, a natureza e as possibilidades de conhecer a última. Não

obstante, pode ser inserida também a questão do limite para a esfera da ação humana sobre a

natureza.

No tocante ao homem, este é concebido por Bacon como sendo ministro, servidor6 e

intérprete da natureza. O homem é capaz de extrair conhecimentos daquela e a partir desses

conhecimentos, agir, criar, inventar. Todavia, de que modo o homem é ministro e servidor da

natureza tal como escreveu Bacon? Quem nos ajuda nessa explicação é Sergio Menna. Este

declara que “o homem é servidor da natureza porque, não podendo modificar suas leis, só

pode obedecê-la, e é intérprete da natureza porque, devendo revelar suas leis, tem primeiro

que conhecê-la para poder obedecê-la”. (MENNA, 2011, p. 176). Essa característica do

pensamento baconiano parece passar ao largo das análises empreendidas por determinados

autores como, por exemplo, Hans Jonas, Andrew Brennan, Carolyn Merchant e Mauro Grün.

No terceiro capítulo dessa dissertação trabalharemos estes autores. Aliás, um dos objetivos da

reflexão que pretendemos desenvolver a respeito da filosofia da natureza desenhada por

Bacon – haja vista o caráter de interdisciplinaridade – trata-se de sublinhar dimensões dessa

filosofia, as quais não são bem vistas pelos autores que mencionamos há pouco, sobretudo

quando eles discutem temas como ética e educação ambientais. A filosofia baconiana tem

sido considerada por estes teóricos do meio ambiente, uma filosofia que desarmoniza a

relação homem, ciência, técnica e natureza. Entretanto, assegura Bacon por meio do aforismo

(I: 1), o homem é ministro e intérprete da natureza.

Com base no aforismo em análise, a natureza é concebida como algo passível de

interpretação. A natureza é um “livro”. Não um livro constituído meramente de palavras. Mas,

o livro das obras e das criaturas de Deus7. Por isso algo passível de ser interpretada e

compreendida. Por isso, igualmente, a necessidade de se voltar a cultuar a natureza. Cultuar a

6 Confira a discussão em (MENNA, 2011, p. 175).

7 Confira (ROSSI, 1992, p. 74).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 11

natureza não como uma deusa, uma divindade sagrada, intocável, inquestionável. Cultuar a

natureza no sentido de poder interrogá-la, de poder pesquisá-la com paciência e com método,

de se voltar para as coisas mesmas, portanto, no sentido de poder interpretá-la e conhecê-la.

Quanto às possibilidades ou vias de se conhecer a natureza, Bacon apresenta pelo

menos duas vias. Uma via é a observação dos fatos. A outra, o trabalho da mente. Sob estas

perspectivas, entende-se que pensamento e observação, ou ainda, teoria e prática são

fundamentais, necessitam estar conectados no processo de interpretação da natureza. O

trabalho da mente aponta para a esfera das palavras, para a esfera do teórico, para o âmbito da

conceituação e para a tarefa da reflexão. A observação dos fatos, com efeito, sinaliza a

necessidade de voltar-se para as coisas mesmas, para a importância do estudo de conteúdos

concretos e correspondentes à vida, portanto, para a esfera da prática. Segundo Bacon, o

avanço no processo de interpretação da natureza requer que as pesquisas estudem conteúdos

que tenham correspondência com as coisas concretas. O que não significa dizer, por exemplo,

que o estudo da história ou das letras seja rejeitado.

A propositura de estudar as coisas se contrapõe na verdade aos campos da ciência

contemplativa e da mera retórica. No Progresso do Conhecimento, mapeando erros que

atrofiam e dificultam o avanço do saber, afirma Bacon:

Eis aqui, pois, a primeira desordem do saber, quando se estudam as palavras

e não o assunto, ... pois as palavras não são senão imagens das coisas, e se

estas não estão vivificadas pela razão e pela invenção, enamorar-se delas é o

mesmo que se enamorar de um quadro. (BACON, 2007, pp. 47-48).

A abstração ou o pensamento desvinculado da realidade é algo que o inglês recusa.

Não seria proveitoso à ampliação do conhecimento restringir-se somente às imagens das

coisas [as palavras]. É preciso direcionar-se às coisas mesmas e indagar a natureza. Nesse

sentido torna-se indispensável a conjugação tanto do trabalho da mente quanto da observação

dos fatos. Pois, conforme declaração de Bacon,

Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos

os feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que

dependem, em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como

os instrumentos mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da

mente aguçam o intelecto e o precavêm. (I: 2).

Segundo o inglês, a mão sozinha e o intelecto isolado inviabilizam o caminhar para

adiante no tocante ao aperfeiçoamento do conhecimento. Teoria de um lado e prática do outro

parece não significar muito para o filósofo. A relação entre pensamento e ação deve ser de

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 12

proximidade e de junção com instrumentos, recursos e técnicas que contribuam com a

interpretação e com o conhecimento adequado da natureza. A Nova Atlântida, nesse sentido,

demonstra bem. É preciso, por um lado, invenções, criação de instrumentos que ampliem a

capacidade de conhecer a natureza e de melhorar a vida humana sobre o planeta – nessa

conjuntura a técnica tem a sua importância. Mas, por outro, uma lógica e um método que

orientem adequadamente o intelecto na tarefa de interpretar e conhecer a natureza. Portanto,

pode-se dizer, as possibilidades de se “acessar” ou de conhecer a natureza têm a ver com os

seguintes aspectos: observação dos fatos e trabalho da mente, vínculo entre

pensamento/reflexão e ação, coerência entre teoria e prática.

Ao unir trabalho da mente e observação dos fatos o homem “faz”. Esse “faz” aponta

para o poder e capacidade de ação que ele possui em relação à natureza. Porém, não se pode

esquecer, a ação humana sobre a natureza deve considerar seriamente a compreensão e a

constatação. O homem “Faz e entende tanto quanto constata”. Fazer, compreender e constatar

não são apenas verbos, mas, ao que tudo indica, na esteira do pensamento baconiano, pode-se

dizer, são princípios. A “constatação” – que não deve ser apressada nem imediatista – dá o

limite para a ação do homem. “O homem, ... faz e entende tanto quanto constata, ... não sabe

nem pode mais”. Seria ela [a constatação] que deveria dar o tom e ritmar efetivamente as

ações, tanto por meio da técnica, quanto, se quisermos acrescentar, por meio da ciência.

Portanto, de saída, é possível compreender que a proposta elaborada por Bacon em relação à

natureza como algo passível de investigação não é uma proposta sem limites. Além do limite

imposto pelos aspectos epistemológicos, ou seja, agir somente após o conhecimento

adequado, há também o limite oriundo da ética. Nesse sentido, acrescenta Menna, “o saber

baconiano conhece – e reconhece – limites; especificamente, limites éticos”. (MENNA, 2011,

p. 226). Portanto, leituras que ignorem estes aspectos do pensamento baconiano, parecem

equivocadas. Para Bacon, o fazer do homem sobre a natureza não é divorciado de limites,

nem é para destruir a natureza. Os limites da ação são postos pela compreensão, pela

constatação das coisas e, sobretudo, pela ética.

Assim, tomando como referência o aforismo (I: 1), fizemos o seguinte percurso. i)

Apresentamos uma possível concepção de homem para Bacon. Vimos que o filósofo concebe

aquele como sendo ministro e intérprete da natureza. ii) Trabalhamos as possibilidades de se

interpretar e conhecer a natureza. Vimos que o trabalho mental e a observação dos fatos

constituem duas plausíveis vias de acesso ao conhecimento da natureza. União entre mente e

mãos assim como coerência entre teoria e prática são pontos extremamente relevantes na

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 13

composição do seu pensamento. iii) Vimos a afirmação que o homem „faz‟. Todavia, esse

fazer deve ser limitado e orientado pela compreensão, pela constatação que se adquire das

coisas e, por fim, pela ética. “Não sabe nem pode mais”, encerra o filósofo.

Considerando ainda o aforismo (I: 1), encontramos uma característica atribuída à

natureza. Trata-se de conceber a última como sendo algo bem ordenado. “O homem faz e

entende tanto quanto constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a

ordem da natureza”. Se nos cobrassem uma definição, poderíamos dizer que a natureza, à luz

desse fragmento é algo ordenado. A natureza possui cabal e rigoroso ordenamento. Por isso a

importância de procurar conhecer suas leis. A natureza não é mero objeto – natura naturata –

como aparece em algumas leituras8 que criticam fortemente a chamada modernidade. Essa

visão de que a natureza possui ordem, hierarquia e coerência é elucidada, por exemplo, por

Catherine e Raphael Larrère. O casal francês argumenta que há uma tese do fim da natureza –

tese essa que pode ser encontrada, por exemplo, em Hans Jonas –. O fundamento desta tese,

segundo Larrère, seria a convicção de que a modernidade teria destruído a natureza. Todavia,

destacam os autores franceses, essa convicção ignora a concepção moderna de natureza, que

compreende a última como sendo algo ordenado, algo que contem hierarquia, leis e coerência.

A tese do fim da natureza não convence o casal Larrère. Sendo assim, Raphael e Catherine se

deslocam para uma antítese e declaram o seguinte:

8 Entre os autores que criticam a modernidade, em virtude da concepção de natureza enquanto algo a ser

dominado e de se conceber a ciência como via que forneça ao homem instrumentos e meios para tal dominação,

tenho em vista especificamente Mauro Grün e Hans Jonas, autores, aliás, com os quais trabalharei no terceiro

capítulo dessa dissertação. O primeiro aborda o tema da educação ambiental. Já o segundo trabalha com o

problema da ética ambiental. O primeiro argumenta que a educação ambiental precisa de uma nova dimensão

ética. Essa nova dimensão ética deve considerar fortemente o papel da linguagem enquanto processo

interpretativo, para que se atinja uma compreensão e mediante essa compreensão se insira a conservação ou

preservação da natureza. Isto porque, para Grün, natureza e linguagem mantém relação estreita. O fato é que a

proposta de Grün ataca fortemente a filosofia de Bacon, sobretudo no que se refere à crítica que Bacon faz à

tradição. Em virtude dessa crítica à tradição, Grün acusa Bacon de aistórico, ou seja, de negador do passado –

voltaremos a essa discussão no terceiro capítulo como dissemos há pouco. Jonas, por sua vez, elege como objeto

de reflexão a técnica moderna, ou melhor, o poderio que essa técnica alcançou e se tornou capaz de exercer. Por

exemplo, os avanços da biologia celular, a questão da manipulação genética, o controle do comportamento, etc.

Segundo Jonas, a técnica moderna tornou-se uma ameaça para o homem, para a natureza e põe em risco a

possibilidade de existência para as gerações futuras. Qual é o problema? O problema é que, conforme a

interpretação de Jonas, o poderio elaborado pela técnica moderna é um desdobramento da filosofia de Bacon.

Portanto, como a análise sobre as leituras que se fazem sobre o pensamento de Bacon nos estudos sobre meio

ambiente constitui meu problema de pesquisa, por isso mencionei estes autores especificamente. É claro que há

uma gama enorme de críticas ao pensamento moderno. Também não estamos defendendo que a modernidade

seja isenta de críticas. O problema é fazer estas críticas baseando-se apenas em manuais como, por exemplo,

denuncia Paolo Rossi em (ROSSI, 2000, pp. 116-117). Grün e Jonas, por exemplo, quase não citam os textos de

Bacon. Entretanto fazem uma interpretação do filósofo inglês que acaba criando e reforçando a imagem de um

Bacon defensor da destruição da natureza, de um Bacon cego em relação ao progresso técnico-científico, de um

Bacon extremamente antropocêntrico e, portanto, arquiteto de uma filosofia que não contribui com as reflexões

acerca do meio ambiente.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 14

a modernidade contém uma visão coerente da natureza, que não se reduz à

da natura naturata. Desta concepção não resulta automaticamente a sua

neutralidade, que faria dela um simples reservatório de recursos para as

actividades humanas e um depósito para os seus resíduos. Da modernidade

pode, ao invés, deduzir-se uma afirmação moral de respeitar a natura

naturans como uma harmonia exterior ao homem e que não tem necessidade

dele para existir. Desde que deixemos assim de assimilar a modernidade à

afirmação de uma vontade e de um poder hiperbólicos, descobriremos que

na sua visão da natureza (a de processos em equilíbrio), tal como na divisão

que ela estabelece entre natureza e sociedade, há razões para conceber uma

empresa que insiste certamente na transformação e na exploração da

natureza, mas que se preocupa com a sua proteção. (LARRÈRE &

LARRÈRE, 1997, p. 192).

Larrère & Larrère na verdade operam uma grande virada frente a tese do fim da

natureza. Se o pensamento moderno separou o homem da natureza, ou concebeu a última

como algo exterior a aquele, o que é visto como abertura para a destruição, transformação e

exploração da natureza, o casal francês argumenta que desse mesmo pensamento é possível

compreender que dominar, transformar e explorar não significa tratar a natureza apenas como

mero objeto – natura naturata. Ainda conforme Larrère & Larrère, é preciso que se

compreenda que a modernidade não é meramente a afirmação de uma vontade e de um poder

hiperbólicos. A ideia, por exemplo, de se dominar a natureza, tal como defende Bacon, não

deixa de reconhecer que compreender precede o agir.

Podemos extrair, talvez implicitamente, da análise do aforismo (I: 1), as seguintes

considerações. a) A natureza possui ordem. b) A natureza é passível de interpretação e de

observação. c) A interpretação e observação da natureza passam pela mediação do trabalho

conjugado da mente e das mãos – estão envolvidos aí o auxílio de instrumentos e recursos, ou

seja, a técnica é de fundamental importância –. Aliás, no tocante à questão da técnica,

Bernardo Jefferson de Oliveira afirma que um dos objetivos da sua tese, “trata-se de mostrar

como vários elementos do programa de reforma proposto por Bacon são inspirados nas

atividades técnicas...” (OLIVEIRA, 2002, p. 19). Mais adiante continua ele, “julgamos,

entretanto, que o projeto baconiano caracteriza um de seus estilos de conhecimento científico

e que um dos principais traços deste estilo é sua interação com o conhecimento técnico”.

(OLIVEIRA, 2002, p. 44). De acordo com Oliveira, pode-se afirmar que, para Bacon, a

relação entre conhecimento científico e técnica é bastante estreita. d) O homem é considerado

ministro e intérprete da natureza. e) O poder antrópico potencializado pela ciência e pela

técnica não pode ignorar os limites epistemológico e ético.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 15

O próximo aforismo a fazer parte da nossa análise é (I: 3). Nesse aforismo Bacon

escreve o seguinte: “ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa

ignorada, frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece...”.

(I: 3), destaque meu. O primeiro ponto apresentado por Bacon nesse aforismo que acabamos

de citar é a relação de coincidência entre a ciência e o poder do homem. Percebe-se que essa

relação é de bastante estreiteza. O segundo ponto sinaliza para a noção de que não é possível

conhecer e aproveitar bem os efeitos se as causas forem ignoradas. Conhecer as causas é

muito importante. O terceiro ponto, eu diria que chega a ser um princípio na filosofia

baconiana, é a noção de que a natureza só pode ser dominada na relação de obediência a ela

mesma. Bacon põe lado a lado „dominar a natureza‟ e „obedecer a ela‟. Domínio e obediência

formam um par que em determinadas leituras como, por exemplo, a que faz Hans Jonas, é

completamente suprimido. Essa noção de que se deve obedecer à natureza, ou seja, sujeitar-se

às suas leis, é tão importante para o inglês que ele a insere no início da primeira parte do

Novum Organum, conforme o aforismo citado acima, e a retoma ao final dela, por meio do

aforismo (I: 129), sobre o qual trataremos adiante.

A natureza, de acordo com o aforismo (I: 3), é apresentada como passível de ser

vencida. A possibilidade de vencê-la possui como elo duas perspectivas: o poder do homem

por um lado e o poder da ciência por outro. A ciência seria o meio que potencializa a

capacidade de ação do homem. Porém, é fundamental que se considere seriamente a

obediência e mesmo a sujeição às leis e regras da própria natureza. Aliás, se por um lado o

homem é intérprete, conhecedor e capaz de agir sobre a natureza, por outro lado, ele é seu

ministro e, portanto, servidor.

Bacon deixa claro através deste fragmento que entre os “ingredientes”: poder do

homem, ciência e domínio da natureza, não se pode ignorar a obediência e a submissão a ela.

Todavia, o que seria obedecer à natureza? Resignar-se perante ela? Ficar apenas

contemplando-a? Ao que nos parece não é isso. Obedecer à natureza na perspectiva do autor

inglês aponta para a necessidade de conhecer com profundidade suas leis, conhecer com

profundidade como as coisas e os fenômenos na natureza se comportam e respeitar os limites.

Nos termos do filósofo, “ninguém poderá governar ou transformar a natureza antes de havê-lo

devidamente notado e compreendido”. (II: 6). Observemos que para o filósofo inglês,

„compreender‟ precede „governar‟ e „transformar‟. Bacon lança base aqui para algo que

será retomado muito posteriormente, por exemplo, por Boaventura de Sousa Santos – no

terceiro capítulo trabalharemos esta questão. Lá veremos Santos afirmar que a nossa

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 16

racionalidade prioriza a transformação do real em detrimento da compreensão9. O argumento

é que na perspectiva da ciência moderna, transformar vem primeiro que compreender. E na

base do estabelecimento da ciência moderna se insere Bacon. Tal sentença não é plausível.

Conforme o aforismo citado há pouco, vimos que para Bacon, a compreensão antecede a ação

e a transformação. Até porque, assevera o Lord, “a natureza supera em muito, em

complexidade, os sentidos e o intelecto...” (I: 10). Voltaremos a esse aforismo (I: 10) mais

adiante.

Passemos ao aforismo (I: 4). Esse apresenta algumas características acerca da natureza

que interessam ao nosso estudo. Bacon, nesse fragmento, argumenta: “No trabalho da

natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria

natureza, em si mesma”. A primeira característica que podemos extrair é que a natureza

possui capacidade própria de movimentar-se, de auto-realização, portanto, de trabalho. Tem-

se aqui uma concepção da natureza como natura naturans10

. Nos termos de Silvia Manzo, “en

la filosofía natural de Bacon el movimiento es una determinación primera y universal de la

materia”. (MANZO, 2008, p. 481). Acrescenta ela nesta mesma referência, “No hay realidad

natural sin movimiento, es por eso que la nueva filosofía debe indagar los principia moventia

rerum”11

. A outra característica que, inclusive parece apontar para as discussões de Bacon

com o atomismo, é que a natureza é constituída de corpos. Diante dessa compreensão,

segundo Bacon, o homem, embora capaz de aliar o seu poder à ciência e conhecer a natureza

para dominá-la, possui uma delimitação, a saber, não pode fazer mais que unir e separar os

corpos. “Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas em um corpo dado, tal é a

obra e o fito do poder humano” (II: 1), afirma o inglês.

Os males, invenções ou benefícios que poderão ser extraídos da natureza vão decorrer

do conhecimento adequado ou não e da utilização que se faça no tocante a esses processos de

9 Cf. (SANTOS, 2007, p. 28).

10 Catherine Larrère, no segundo capítulo do seu Do bom uso da Natureza, intitulado Natureza e Humanismo,

apresenta distinção entre os termos „natura naturata‟ e „natura naturans‟. Referindo-se à natura naturata,

Larrère escreve que, “a natureza da experimentação é efetivamente a natura naturata, uma máquina que se pode

decompor em peças distintas. Mas o seu construtor é o homem. (...) é uma natureza feita” (LARRÈRE, 1997, p.

76). Já em relação à natura naturans, Larrère afirma que esta é o próprio objeto da história natural. Amparada

pela definição de Buffon, declara a autora francesa, “Buffon coloca-se pois resolutamente do lado da natura

naturans, de uma natureza activa, produtora, que é possível explicar sem recorrer a causas exteriores: A própria

Natureza é uma obra perpetuamente viva, um operário incessantemente activo, que sabe todas as artes, que

trabalhando a partir de si mesmo, sempre sobre o mesmo fundo, em vez de o esgotar, o torna inesgotável” (Idem,

p. 85). A natura naturata estaria do lado das coisas criadas, dos resultados da técnica, do lado dos objetos. Seria

a natureza criada, tem a ver com a exterioridade das formas visíveis. A natura naturans tem a ver com a

interioridade de um processo, seria a natureza que nos escapa, seria, portanto, a natureza complexa e superior aos

nossos sentidos e intelecto. 11

A nova filosofia deve indagar os princípios das coisas em movimento.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 17

união e de separação dos corpos. Por mais que Bacon tenha como meta retirar o homem da

cômoda “ciência” contemplativa, por mais que ele tenha almejado uma ciência prática, eficaz,

atuante, progressiva e utilitária, contudo, o inglês não subtraiu do seu pensamento a questão

do limite. Para o inglês, explica Menna, “a utilidade está sempre subordinada à verdade (ou à

confiabilidade epistêmica)”. (MENNA, 2011, p. 226). A questão do limite na filosofia

baconiana caminha paralelamente ao tema do avanço da ciência e do domínio da natureza.

Atenhamos-nos ao que afirma o filósofo.

E a obra e o fito da ciência humana é descobrir a forma de uma natureza

dada ou a sua verdadeira diferença ou natureza naturante ou fonte de

emanação (estes são os vocábulos de que dispomos mais adequados para os

fatos que apresentamos). A estas empresas primárias subordinam-se duas

outras secundárias e de cunho inferior. A primeira é a transformação de

corpos concretos de um em outro, nos limites do possível; a segunda, a

descoberta de toda a geração e movimento do processo latente, contínuo, ...

(II: 1).12

Destaque meu.13

Percebe-se que por mais que o inglês tenha proposto intervenção e transformação na

natureza, estas só devem ser realizadas levando em consideração o limite do possível. E esse

limite do possível é dado pelo que se conhece. Há uma espécie de prudência no pensamento

baconiano. Essa prudência está vinculada à questão da compreensão e do conhecimento. Ou

se compreende adequadamente tomando como bússola o que se conhece das coisas com

profundidade, ou não se deve intervir, modificar, transformar e agir. Estes aspectos são

plausíveis conforme a filosofia de Bacon, apesar de serem relegados – ao que tudo indica –

por autores do meio ambiente como, por exemplo, Grün e Jonas.

Retomemos o aforismo (I: 10) que mencionamos há pouco. Neste trecho encontra-se a

seguinte noção de natureza: “A natureza supera em muito, em complexidade, os sentidos e o

intelecto. Todas aquelas belas meditações e especulações humanas, todas as controvérsias são

coisas malsãs. E ninguém disso se apercebe”. A declaração baconiana retoma de certo modo

12

Este aforismo na versão que utilizamos contém algumas notas para explicar determinados termos. Por

exemplo, naturezas (naturas), corpo (corpus), forma (formam), natureza naturante, (naturam naturantem),

processo latente (latentis processus), entre outros. Vamos às explicações. Naturas ou natureza significa ou

equivale à propriedade ou qualidade predicável de um corpo. Corpus quer dizer corpo concreto. Formam é a

condição essencial da existência de qualquer propriedade. Naturam naturantem ou natureza naturante em

oposição à (natura naturata) natureza naturada, é uma distinção de Averróis que passou à tradição escolástica.

Simplificadamente, a natureza naturante é o agente produtor e naturante é o produto. Natureza naturante é

expressão difundida durante a Renascença, indicando o processo ativo e dinâmico da natureza. Segundo os

tradutores, Bacon não usa a expressão oposta, natureza naturada. E latentis processus ou processo latente quer

dizer conjunto de operações internas, que em boa parte escapa aos sentidos, e que faz com que uma substância

passe de um estado a outro. Estas explicações podem ser conferidas em (BACON, 1999, p, 101) – Coleção Os

pensadores. 13

Silvia Manzo desenvolve discussão a respeito desses termos como, fonte de emanação, natureza naturante,

natureza naturada, corpo, etc. (Cf. MANZO, 2008, pp. 480-81).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 18

temas que já foram abordados em aforismos anteriores como, por exemplo, sentidos e

intelecto, mãos e mente, observação dos fatos e trabalho mental, e acrescenta a noção de que a

natureza é complexa e que devido a essa complexidade é superior aos sentidos e ao intelecto

humano. A natureza ultrapassa a capacidade de ação das mãos e da mente. Por isso Bacon

defendia o auxílio dos recursos tanto em relação ao trabalho experimental como os

instrumentos mecânicos, quanto em relação ao trabalho mental, por exemplo, a nova lógica

que ele estava propondo. Tudo isso tendo em vista o processo de interpretação da natureza,

mas considerando a esfera do possível.

Além da noção de que a natureza é complexa e superior aos sentidos e ao intelecto, o

(I: 10) apresenta também outro aspecto da filosofia de Bacon, que é sua crítica às filosofias

que o antecederam. De modo especial, a filosofia de Aristóteles e dos escolásticos. Quais

frutos a filosofia aristotélico-escolástica, segundo Bacon, teria fornecido para a humanidade?

Contribuiu para o conhecimento da natureza e o avanço da ciência? Uma resposta plausível,

de acordo com o inglês, é que a filosofia de Aristóteles cultivada pelos doutores da Igreja

elaborou somente belas meditações, inúmeras controvérsias e especulações, conhecimentos

meramente livrescos, nada além que o cultivo da cultura das palavras.

Sem dúvida alguma, assim como muitas substâncias são por natureza

sólidas, apodrecem e se corrompem em vermes, do mesmo modo o

conhecimento bom e correto tem a propriedade de apodrecer e dissolver-se

em incontáveis questões sutis, ociosas, insanas e... vermiculares... Esse tipo

de saber degenerado prevaleceu sobretudo entre os escolásticos, os quais,

providos de engenho afiado e robusto, e abundância de tempo livre, mas

pequena variedade de leituras, pois estavam encerrados seus entendimentos

nas celas de uns poucos autores (principalmente Aristóteles, seu ditador),

como o estavam suas pessoas nas celas de monastérios e colégios; (BACON,

2007, p. 49).

Para o Lord, a filosofia aristotélica converteu-se em teologia e o que produziu não

passou de “teias de aranha de saber, admiráveis pela finura do fio e da obra, mas sem

substância nem proveito”. (BACON, 2007, p. 49). Acerca da crítica à filosofia de Aristóteles,

no Novum Organum, declara ainda o filósofo:

Aristóteles estabelecia antes as conclusões, não consultava devidamente a

experiência para estabelecimento de suas resoluções e axiomas. E tendo, ao

seu arbítrio, assim decidido, submetia a experiência como a uma escrava

para conformá-la às suas opiniões. Eis por que está a merecer mais censuras

que os seus seguidores modernos, os filósofos escolásticos, que

abandonaram totalmente a experiência. (I: 63).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 19

A proposta de Bacon se dá na perspectiva contrária. Conforme mencionamos

anteriormente, para o autor do Novum Organum, as palavras são apenas imagens das coisas. O

que ele propõe é que se investigue com cautela, cuidado e permanência as coisas na realidade.

Dentro desta conjuntura ou processo a experiência se insere e exerce papel extremamente

relevante.

Debruçando-se sobre a crítica de Bacon à filosofia aristotélica, Paolo Rossi acrescenta:

“a ditadura cultural do aristotelismo condicionou por muito tempo, segundo Bacon, não

apenas o desenvolvimento do pensamento filosófico e científico, mas também a possibilidade

de compreensão desse desenvolvimento”. (ROSSI, 2006, p. 170). Conforme a interpretação

baconiana, o conhecimento cultivado pela filosofia aristotélica não foi capaz de produzir

resultados úteis à vida cotidiana do homem. Como explicar isto? A lógica de Aristóteles inibe

a ousadia e a habilidade de se descobrir coisas novas, posto que a conclusão já está dada na

premissa geral. Por exemplo, “todo homem é mortal”. Essa é a premissa geral afirmativa.

“Sócrates é homem”. Premissa do meio. Conclusão, “logo, Sócrates é mortal”. Mirando a

lógica de Aristóteles, Bacon declara, “a lógica tal como é hoje usada mais vale para

consolidar e perpetuar erros, fundados em noções vulgares, que para a indagação da verdade,

de sorte que é mais danosa que útil”. (I: 12). Mais adiante, acentua com firmeza Bacon,

O silogismo não é empregado para o descobrimento dos princípios das

ciências; é baldada a sua aplicação a axiomas intermediários, pois se

encontra muito distante das dificuldades da natureza. ... O silogismo consta

de proposições, as proposições de palavras, as palavras são o signo das

noções. Pelo que, se as próprias noções (que constituem a base dos fatos) são

confusas e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas depende

pode pretender solidez. ... (I: 13-14).

Mais uma vez os temas „afastamento das coisas‟ e „dificuldades ou complexidade da

natureza‟ são retomados. Na verdade o objetivo de Bacon ao criticar a lógica aristotélica é

sinalizar para a necessidade de se reformular o conhecimento, sobretudo, o conhecimento da

natureza. Não é possível conhecer bem a natureza restringindo-se apenas às palavras, à

abstração e ao afastamento das coisas. Para Bacon, não é possível conhecer a natureza

somente contemplando-a. Nesse sentido nos ajuda Oliveira. Este escreve que aos olhos de

Bacon,

a função meramente contemplativa da filosofia e a ausência de uma tentativa

de compreensão que representasse um domínio da natureza são as principais

razões da estagnação, dos “destemperos do conhecimento” e de seus

procedimentos dogmáticos. (OLIVEIRA, 2002, p. 64).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 20

É preciso “que se penetre nos estratos mais profundos e distantes da natureza” ...(I:

18). A natureza é algo de difícil compreensão, pois possui segredos. A noção de que a

natureza possui segredos e é sutil pode ser encontrada em outros fragmentos do Novum

Organum, a exemplo do (I: 56) e do (I: 75). Pierre Hadot, ao discutir a questão dos segredos

da natureza em O Véu de Ísis, e posicionar-se afirmando que o objetivo da ciência moderna

seria de desvelar estes segredos, declara o seguinte:

Na época da eclosão da ciência nos séculos XVII e XVIII, ..., a ciência

moderna, herdeira nesse aspecto das ciências ocultas e da magia, dar-se-á

precisamente como fim revelar os segredos da natureza. Objetos da física

filosófica, mas também das pseudociências, na Antiguidade e na Idade

Média, eles se tornarão, de certo modo, o objeto das novas física,

matemática e mecânica. Francis Bacon irá declarar, por exemplo, que a

natureza só desvela seus segredos sob a tortura dos experimentos. (HADOT,

2006, pp. 51-52).

Conforme Hadot, a noção de que a natureza é possuidora de segredos passa pelas

Idades Antiga e Medieval, chega à Modernidade, más há uma questão: com o advento da

ciência moderna acredita-se e se propõe que os segredos da natureza sejam desvelados. Um

dos filósofos que aparece na discussão empreendida por Hadot no que se refere ao

descobrimento dos segredos da natureza é Bacon.

Numa explicação próxima à interpretação de Hadot, para quem o descobrimento dos

segredos da natureza é uma exigência de boa parte do pensamento do século XVII, – e nesse

contexto está inserido Bacon –, explica Menna:

apesar das proibições e reações existentes, um novo modo de pensar se

desenvolveu gradualmente no século XVII. (...) Progressivamente, os

segredos da natureza começaram a ser desvendados. Copérnico, Kepler e

Galileu não hesitaram em olhar os céus; Bacon, Newton e Boyle não

vacilaram em tentar fazer a natureza falar. (MENNA, 2011, p. 63).

Mediante as duas citações mencionadas acima, percebe-se que a ideia da natureza

como detentora de segredos ou de sutilezas é uma característica do pensamento moderno e

nesse contexto ela também se torna presente na filosofia de Bacon. No aforismo (II: 43) do

Novum Organum, por exemplo, embora este aforismo não seja o único no qual o filósofo

aborda o problema da sutileza da natureza, o inglês faz referência a dois tipos de instâncias

(Velicantes e Secantes)14

, pois segundo ele, estas instâncias preveniriam o intelecto humano

14

Segundo a explicação de Bacon apresentada no aforismo (II: 43), instâncias “velicantes porque beliscam a

inteligência, e secantes porque dividem a natureza, pelo que também, às vezes, as chamamos de instâncias de

Demócrito”.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 21

da “admirável sutileza da natureza”. Essa questão da sutileza da natureza em Bacon é bastante

discutida por Silvia Manzo.

Segundo Manzo, “Bacon está convencido de que la ciencia debe buscar las entidades y

los movimientos mínimos o “sutiles” escondidos en la naturaleza” (MANZO, 2008, p. 463).

O atomismo, destaca a autora, contribui nesse sentido. Manzo escreve que a complexa ideia

de natureza e de “sutilidad” para Bacon, provavelmente é uma herança de Cardano. Conforme

a autora, para o último,

la “sutilidad” operaba a distintos niveles: en primer lugar, era un proceso

intelectual por el cual las cosas sensibles eran percibidas por los sentidos y

las cosas inteligibles lo eran por el entendimiento, mediante procesos no

exentos de dificultad. Pero la “sutilidad” también existía en las sustancias

mismas, en sus accidentes y representaciones (imágenes, especies, discursos,

escritos). (MANZO, 2008, pp. 463-464).

Com base na citação, percebe-se que para Cardano, a sutilidade pode ser encontrada

pelo menos em dois níveis. A sutilidade está no processo intelectual. Aqui se insere inclusive

a problemática em torno da apreensão das coisas. Sob esta perspectiva, os sentidos, o trabalho

de conceituação e de definição das coisas fazem parte. Não obstante, a sutilidade também está

presente nas coisas mesmas. Essa concepção, por exemplo, leva Bacon a defender que a

ciência tem como tarefa descobrir a sutilidade ou os segredos da natureza. Tendo em vista

essa função da ciência fazem-se preciso: o método, a pesquisa paciente, a observação dos

fatos, a recorrência aos experimentos, o trabalho colaborativo entre os pesquisadores e o uso

de uma linguagem clara, acessível, o mais afastada possível de enigmas e ambiguidades. É

preciso livrar a mente ou o intelecto dos ídolos15

.

Caracterizando ainda a sutilidade que foi pensada por Cardano e que depois

comparece na filosofia de Bacon, escreve Manzo:

En las sustancias corpóreas la sutilidad se asociaba com la pequeñez, la

fluidez y la divisibilidad, mientras que en las sustancias incorpóreas se

vinculaba con los secretos de Dios y el orden del universo. (...) La sutilidad

le pertenece tanto al objeto como al sujeto sensible e inteligente. (...) Para

Bacon, al igual que para Cardano, la sutilidad se refiere a la extrema

pequeñez o imperceptibilidad (es decir, invisibilidad e intangibilidad).

(MANZO, 2008, p. 464).

15

Para Bacon existem quatro tipos de ídolos que interferem e dificultam a apreensão das coisas pela mente. No

segundo capítulo trabalhamos essa teoria baconiana dos ídolos. Porém, só para anunciar os quatro tipos de ídolos

elencados pelo inglês, são eles: ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro. Estes ídolos são discutidos e

caracterizados pelo filósofo nos aforismos (I: 52), (I: 53), (I: 59) e (I: 61) respectivamente.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 22

A autora complementa afirmado que Bacon “Señala que la sutilidad de la naturaleza

supera ampliamente la sutilidad del entendimiento humano”. (Idem, p. 465). Esta concepção

de natureza se vincula, por exemplo, com o aforismo (I: 10) analisado acima. Manzo trabalha

ao lado da ideia de “sutilidad”, a noção de dissecação. Conforme a autora,

Bacon está convencido de que si nuestro entendimiento es guiado por el

método correcto, muchos de los secretos de la naturaleza se abrirán a la

investigación científica. Pero para que esto ocurra, la naturaleza debe ser en

primer lugar separada en sus partes más sutiles a través de un procedimiento

comparable con la disección atomística16

y la anatomía alquímica17

.

(MANZO, 2008, p. 465).

Esta acepção de dissecação atomista que aparece em Bacon, segundo Silvia Manzo,

vem, sobretudo de Demócrito. A divisão do todo em partes para que depois se possa ter uma

boa compreensão do todo é extremamente importante para Bacon.

Isto porque, além de complexa e de difícil apreensão, retomando a ideia de que a

natureza é profunda e que não se pode conhecê-la adequadamente somente por argumentos,

palavras, abstrações e teorias, no (I: 24) Bacon escreveu: “a profundidade da natureza supera

de muito o alcance do argumento”. Percebe-se que novamente a ideia que está em voga é não

restringir-se somente ao estudo das palavras e ao discurso retórico – embora eles não devam

ser ignorados. A natureza é profunda e tentar “capturar” ou apreender esta profundidade exige

uma lógica que não despreza a experiência e a prática. Bacon, embora não deixe de

reconhecer a importância das letras, da retórica, da história e da teoria, contudo, chama a

atenção permanentemente para a importância da experiência no processo de interpretação e

conhecimento da natureza. Podemos perguntar, então, mas que tipo de experiência, segundo

Bacon, contribui com a ciência? Nos ajuda nessa compreensão Luciana Zaterca. No capítulo 3

de A filosofia experimental na Inglaterra do século XVII, Zaterca explica que,

A experiência, até a época de Bacon, era entendida como a simples

observação dos fenômenos naturais. Grosso modo ela servia para fornecer

exemplos, descrições e ilustrações dos processos naturais para as diferentes

teorias..., servia para corroborar uma posição científica que já havia sido

16

Ao se falar de disección atomista, Bacon tem em vista principalmente a filosofia de Demócrito, a maneira de

Demócrito investigar os átomos e a natureza particular, concreta das coisas. Nesse sentido, Manzo afirma que,

“Em efecto, Bacon frecuentemente asocia el descubrimiento de la sutilidad de la naturaleza con la estrategia

democritiana de la disección” (MANZO, 2008, p. 466). Tem a ver com a “disección do mundo físico”. 17

Quanto à anatomia alquímica, descreve Silvia Manzo, “La idea de “anatomía” de los alquimistas tiene un

sentido más amplio que la mera disección de seres vivientes, tal como podría ser entendida en el campo de la

medicina. No se la concibe sólo como una separación de las partes físicas de las sustancias químicas, sino

también como un conocimiento teórico de las fuerzas invisibles que actúan como trasfondo. La idea fundamental

de la anatomía alquímica se concentra en la distinción de las partes más generales que revelan las virtudes

invisibles de la naturaleza”. (Idem, p. 466).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 23

tomada. Bacon, ao contrário, irá transformar estas simples experiências em

algo sistematizado, se quisermos, em experimentos. (ZATERKA, 2003, p.

135).

Na tarefa de se interpretar e conhecer a natureza com eficácia, de acordo com a

citação, a experiência que conta tem a ver com algo sistematizado. A experiência seria,

portanto, sinônimo de experimento. Sobre a importância de se levar em conta a experiência

não rasteira nem superficial ou apressada, assenta o filósofo no aforismo (I: 56), “A verdade

não deve, porém, ser buscada na boa fortuna de uma época, que é inconstante, mas à luz da

natureza e da experiência, que é eterna”. A experiência frutífera precisa estar bem orientada e

atrelada à própria natureza. O ataque aqui mais uma vez se direciona à mera abstração.

No encalço de reunir acepções do que venha a ser natureza para o Barão de Verulam,

no (I: 51), a natureza pode ser dividida em partes, e é tida como detentora de segredos. Um

autor que se debruça sobre essa temática dos segredos da natureza conforme já tínhamos dito

é Pierre Hadot. Na sua interpretação em O véu de Ísis, Hadot explica que,

Os segredos da natureza são segredos por diferentes motivos. Quanto a

alguns podemos dizer que correspondem às partes invisíveis da natureza.

Algumas dessas partes são invisíveis porque estão muito longe no tempo ou

no espaço. Outras são inacessíveis por sua pequenez extrema, como os

átomos de Epicuro, (...) ou ainda porque se acham escondidas no interior dos

corpos ou da terra. (HADOT, 2006, pp. 51-52).

O trabalho que Hadot desenvolve em O véu de Ísis parece uma genealogia da noção

acerca da natureza, enquanto detentora de segredos. Hadot demonstra que esta noção já estava

presente nos gregos. Cita, por exemplo, o aforismo 123 de Heráclito que diz: “a Natureza ama

ocultar-se”. Mostra que ela passa pelos estóicos. Cícero teria dito que “coisas foram

escondidas e envelopadas pela própria natureza”. Que aqueles – os estóicos – teriam partido

da ideia de que, “a natureza possui portanto um duplo aspecto: ela se mostra aos nossos

sentidos na rica variedade do espetáculo que nos dão o mundo vivo e o universo e, ao mesmo

tempo, se oculta atrás da aparência, em sua parte mais essencial, a mais profunda, a mais

eficaz”. (HADOT, 2006, pp. 49-54). Segundo Hadot, a noção tal como descrita na citação,

concebida, portanto, no período helenístico, “dominou durante quase dois milênios as

pesquisas sobre a natureza, a física, [e] as ciências naturais”, (HADOT, 2006, p.54), chegando,

inclusive, ao início da época moderna. Ainda conforme a explicação do autor de O véu de Ísis,

Do século XV ao século XVII, essa tradição irá se perpetuar: os títulos das

obras fazendo alusão aos segredos ou às maravilhas da natureza serão

extraordinariamente numerosos. (...) a ciência moderna, herdeira nesse

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 24

aspecto das ciências ocultas e da magia, dar-se-á precisamente como fim

revelar os segredos da natureza. (...) Francis Bacon irá declarar, por

exemplo, que a natureza só desvela seus segredos sob a tortura dos

experimentos. E Pascal dirá: “Os segredos da natureza são ocultos. (...)”.

(HADOT, 2006, p. 55).

A ideia de que a natureza possui segredos, bastante veiculada no contexto da

Renascença e dos séculos XVI e XVII, foi bastante admitida no pensamento baconiano. No

Novum Organum, por exemplo, essa ideia pode ser encontrada no Prefácio, no aforismo (I:

51) que mencionamos há pouco e nos aforismos (I: 89) e (I: 98). Percebe-se por meio das

citações de Hadot que a atmosfera na qual se constituiu o pensamento baconiano “exalava”

bastante a ideia da natureza como portadora de segredos. Que faz Bacon? Sua tentativa é de

construir um pensamento que admita a existência de segredos na natureza e de dificuldades no

processo de cognição da mesma, por um lado. Mas por outro, um pensamento que permita

indagar a natureza, que permita pesquisá-la, portanto, que permita conhecê-la. Nessa

perspectiva, o filósofo acomoda dois pontos extremamente importantes: de um lado

conhecimento e domínio da natureza. Do outro lado, obediência e sujeição à última.

A ideia de que não se domina a natureza se não se submetendo a ela, tal como exposta

por Bacon no (I: 3), é retomada pelo filósofo no penúltimo aforismo do livro I do Novum

Organum, a saber, o aforismo (I: 129). Este é um aforismo longo e nele o inglês discute várias

coisas. Entre elas podem ser pontuadas: a) A valorização dos inventos. Conforme destacamos

logo no início da nossa análise, para Bacon, a relação entre conhecimento da natureza e a

invenção de instrumentos e recursos que melhorem a vida humana é de bastante estreiteza. b)

O filósofo discute a ideia que “o homem é Deus para o homem”. Ou seja, o homem tem a

incumbência, mediante a pesquisa não apressada e permanente a respeito das coisas da

natureza, de descobrir caminhos cujos fins apresentem como consequências, resultados que

tornem mais segura, confortável e feliz a vida do seu semelhante – a humanidade. c) Outro

ponto acentuado pelo inglês neste fragmento são as descobertas da imprensa, da pólvora e da

agulha de marear. Bacon considera que a descoberta destas coisas “mudaram o aspecto e o

estado das coisas em todo o mundo”, sobretudo, nas letras, na arte militar e na navegação – o

que significa, para ele, sinônimos de progresso. d) Integra ainda juntamente com os demais

pontos elencados acima, a menção que o filósofo faz concernente aos três gêneros de ambição

que os homens possuem. (i) Ampliar seu próprio poder em sua pátria. (ii) Estender o poder e

o domínio de sua pátria para todo o gênero humano. E, por último, (iii) instaurar e estender o

domínio do gênero humano sobre o universo.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 25

Dentre as três ambições citadas no parágrafo anterior, referindo-se a ambição (iii),

assevera Bacon, “mas se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio do

gênero humano sobre o universo, a sua ambição (se assim pode ser chamada) seria, sem

dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas”. (I: 129). Esse é um trecho que se retirado ou

lido isoladamente ignorando a totalidade do aforismo abre janela para que se construa uma

imagem de Bacon que não corresponde à sua filosofia. Parece exagero de Bacon ao defender

um domínio sobre o universo. Mas, analisando o texto, percebe-se que o filósofo está

tentando fazer com essa inferência é arrancar a atividade de pesquisa de situações cômodas.

Não dá para se conformar apenas com a assertiva de que a natureza “ama ocultar-se”, é

envolvida por segredos, que o homem perdeu o conhecimento total da natureza em virtude do

pecado, enfim. Se o homem caiu, uma porta para se levantar-se parece ser a tentativa de

recuperar o conhecimento da natureza. Reformar o conhecimento seria em última instância

recuperar o homem do seu estado de queda, ou pelo menos, de abrir o caminho para tal.

A ideia baconiana de se instaurar e estender o poder humano sobre todo o universo

não é um exagero do filósofo, nem tão pouco, uma defesa cega do progresso técnico-

científico. Basta continuar a leitura do referido fragmento – isto é, do aforismo (I: 129) – para

nos depararmos com a seguinte ponderação do filósofo – ponderação essa que, inclusive

mantém nexo com o (I: 3) analisado anteriormente –: “o império do homem sobre as coisas se

apóia unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão obedecendo-

lhe”. (I: 129), itálico meu. Se Bacon considera importante estender o domínio do homem

sobre o universo tendo como mediadoras as artes e as ciências, esse domínio, todavia, se

“exerce” por meio do conhecimento e da reconstrução na perspectiva inclusive da imitação da

natureza. De modo algum seria um domínio coadjuvante à destruição da última.

Segundo argumenta Bernardo de Oliveira ao discutir a relação baconiana entre ciência

e domínio da natureza, Bacon admite a ciência como caça e a natureza como uma floresta

selvagem. Não obstante, acrescenta Oliveira, “seja qual for a imagem que se adote para o

desbravamento da natureza-floresta, vale ressaltar que seu domínio dependerá da submissão

às leis e comportamentos que forem sendo descobertos”. (OLIVEIRA, 2002, p. 158). Oliveira

deixa patente que para o autor do Novum Organum, o caminho para se dominar a natureza é

conhecer e sujeitar-se às suas leis. Outro ponto posto em negrito por Oliveira – e que tem a

ver com a ideia baconiana posta no (I: 129), do homem como sendo “Deus” do próprio

homem‟ –, consiste no seguinte: “ao desenvolverem o conhecimento-domínio, os homens

imitam e se eqüivalem a Deus, pois recriam a natureza (ou uma segunda natureza), num

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 26

processo que é libertador não só dos homens, mas da própria natureza”. (OLIVEIRA, 2002, p.

134). Essa discussão volta a tocar nos dois termos mencionados e já distinguidos, por

exemplo, por Catherine Larrère. Trata-se da natura naturata e natura naturans.

A abordagem de Oliveira nos permite compreender que, para Bacon, o homem ao se

debruçar sobre a natureza “criadora”, coerente, hierárquica e mantenedora de si mesma – a

natura naturans –, finda por meio da técnica e da ciência – num processo de imitação da

primeira – criando uma segunda natureza. Ou seja, uma natureza „objetificada‟, uma natureza

que seria a natura naturata. Esta segunda natureza não seria para a destruição da primeira,

mas uma espécie de auxílio. Aprender com a natureza torna possível criar objetos semelhantes

e, assim, ao invés de ficar o tempo inteiro importunando ou interferindo na natureza, utiliza-se

os objetos inventados a partir dela. A Nova Atlântida ilustra essa concepção do filósofo. A

Casa de Salomão era um instituto de pesquisa cuja finalidade seria pesquisar a natureza,

descobrir seus possíveis modos de funcionamento, inventar objetos, recursos que

melhorassem a vida dos bensalitas18

, mas sem entrar em desarmonia nem com os demais

homens – vemos que há em Bensalém um respeito pelo que podemos denominar de

diversidade cultural ou alteridade – nem com o meio natural. A relação entre homem, técnica,

ciência e natureza, conforme a Nova Atlântida, não é de desarmonia. Voltando e fechando

aqui a análise de Oliveira, é possível dizer que, para Bacon, o domínio sobre a natureza, ao

invés de destrutível ou desfavorável a ela, tem como meta atingir duas finalidades: libertar o

homem e dar “descanso” à natureza.

Ainda de acordo com o (I: 10), a natureza é considerada complexa, mas não só. A

natureza também é tida como superior aos sentidos humanos e ao intelecto. Sob esta

perspectiva é plausível afirmar que a natureza não é concebida por Bacon como um “ser”

menor, frágil, fêmea e que por isso deva ser subjugada e torturada pelo homem. Consideramos

fundamental destacar este aspecto porque conforme veremos adiante, os que concebem a

filosofia baconiana um dano ao meio ambiente19

como, por exemplo, Carolyn Merchant,

relegam essa face do pensamento baconiano e sustentam que o inglês concebe a natureza

como sendo frágil em relação ao homem, fêmea que deva ser brutalmente dominada.

18

Bensalitas porque habitantes de Bensalém. O último nome refere-se à ilha descrita por Bacon na Nova

Atlântida, governada por um rei chamado Solamona. Entre as obras desse rei preocupado com o bem e a

felicidade de sua gente, a mais proeminente “Foi a fundação e instituição de uma ordem ou sociedade a que nós

chamamos Casa de Salomão, que consideramos a mais nobre fundação que jamais houve sobre a terra, e é o farol

deste reino”. (BACON, 1999, p. 236). Bensalém é adjetivada como sendo de terra plana, coberta de bosques,

cidade aprazível, pequena, porém, bem construída. (Cf. BACON, 1999, p. 223). 19

O meio ambiente é definido por G. Tyler Miller Jr. como sendo “tudo o que afeta um organismo vivo

(qualquer forma de vida única)”. (MILLER, 2012, p. 3).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 27

Se por um lado Bacon concebe o homem como ministro e intérprete da natureza, por

outro lado, compreende que a última além de possuir ordem e ser complexa, possui também

capacidade de auto-realização, portanto, de movimentar-se. A natureza não é estática. A

natureza contém funcionalidade própria. O que pode fazer o homem frente à complexidade,

ordenação e trabalho ou movimentos da natureza? Conforme Bacon, “no trabalho da natureza

o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O restante realiza-o a própria natureza,

em si mesma”. (I: 4). Ressaltar, portanto, que para Bacon a natureza é complexa, superior aos

sentidos e ao intelecto, que a natureza é processo contínuo, e que o homem não pode interferir

nela sem antes conhecer com profundidade, ou ainda, sem o objetivo de melhorar a vida da

alteridade, constitui objetivo da reflexão que desenvolvemos nesse tópico. Nesse sentido,

consideramos que a filosofia baconiana contribui com o pensar a relação „homem-técnica-

ciência-natureza‟. Constitui deslealdade intelectual e afastamento dos textos de Bacon,

sustentar que o filósofo defendeu a dominação da natureza numa espécie de balança que

favoreça mais o homem e o desenvolvimento técnico-científico e favoreça menos a natureza.

Não há como o homem deixar de se relacionar e de agir sobre a natureza. Todavia, não se

pode perder de vista os respectivos aforismos: (I: 3) e (I: 129). Em ambos, Bacon não

titubeou. “A natureza não se domina senão obedecendo-lhe”. No tópico a seguir

discutiremos o tema da natureza, tomando como texto de análise, A sabedoria dos antigos.

1.3 A Natureza com base na Sabedoria dos Antigos

Por que abordar o tema da natureza recorrendo a alguns mitos como, por exemplo, Pã,

Celo e Proteu? Destacamos pelo menos duas razões. A primeira, porque não estamos

convencidos de ser verdade o posicionamento que admite Bacon como um autor aistórico20

.

Tal posicionamento é sustentado por Mauro Grün. Conforme mostraremos no terceiro

capítulo dessa dissertação, Grün afirma que para Bacon o passado seria uma espécie de

“vazio”, nada dele se aproveita, portanto, deve ser criticado e superado completamente. A

segunda razão não muito distante da primeira, seria mostrar que o inglês escreveu uma obra –

A sabedoria dos antigos – na qual se dedicou primordialmente à interpretação e análise de

mitos. Assim, o filósofo quis mostrar que os mitos, as fábulas dos antigos não são desprovidas

de razão nem de ensinamentos. Por meio desses mitos Bacon discute valores, temas como,

natureza, ciência, ética. Portanto, não resta dúvida de que para o Barão de Verulam, o passado

20

Conceito usado por Mauro Grün, no primeiro capítulo de Em busca da dimensão ética da educação

ambiental,que nas palavras dele, “trata-se do processo de esquecimento da tradição”. (GRUN, 2007, p. 29).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 28

não é um vazio do qual nada se possa retirar. O que não se pode fazer é tomar os autores

antigos, principalmente Aristóteles, como os únicos detentores da verdade ou ainda

autoridades sob as quais devamos ficar submissos. Não há dúvida de que existe uma

sabedoria dos antigos. Mesmo Aristóteles que é fortemente criticado por Bacon não deixa de

ser reconhecido pelo último. Aliás, a moderação e o caminho do meio propostos pela ética

aristotélica também comparecem na filosofia baconiana.

A exposição das fábulas seguirá a seguinte ordem. Primeiro, analisaremos o mito de

Pã. Nessa análise, chamaremos a atenção para o debate que a partir desse mito envolve as

duas tendências que se debruçam sobre a origem da natureza: a teológica e a atomista. Em

seguida será analisado o mito de Celo. Veremos que nesse mito, a natureza parece ser vista

como a totalidade da matéria. Por fim, analisaremos o mito de Proteu. Nele a natureza é

apresentada como o abrigo ou o espaço dos animais, das plantas, dos minerais, etc.. Por meio

desse mito, Bacon discute o tema da matéria e apresenta uma concepção de natureza que é

ignorada em algumas abordagens ligadas ao tema do meio ambiente. Que concepção de

natureza é essa? Que a natureza não é algo inferior, frágil, uma fêmea que o homem deva

dominar como defende, por exemplo, Carolyn Merchant – um dos referenciais teóricos de

Grün. Conforme Bacon, a natureza é complexa, processual e não dada espontaneamente.

Vamos à interpretação baconiana do mito de Pã. Sob as características de Pã, Bacon

considera que os antigos, podemos pôr nesses termos, tiveram uma boa sacada para descrever,

tematizar e “definir” a natureza. Primeiro, porque não se tem certezas a respeito da origem de

Pã: não se sabe ao certo se ele era filho de Mercúrio, ou, de Penélope e seus pretendentes, ou

ainda de Júpiter e Híbris. Segundo, porque Pã é um deus antiquíssimo.

Na exposição do filósofo, entre as várias características que os antigos atribuíam a Pã,

algumas delas se destacaram. Por exemplo, Pã era tido como o deus dos caçadores, dos

pastores e dos camponeses em geral. Pã era o deus que governa as montanhas. Sob esses

traços, a natureza aparece como aquela que reúne animais, solo, plantas, a natureza aparece

como aquela que coordena as atividades a exemplo da caça, do labor no campo, do pastoreio

de animais, etc.

Seguindo Pã como analogia à natureza, Bacon escreve, Pã “como a própria palavra

diz, representa e anuncia a Universalidade das coisas, ou Natureza”. (BACON, 2002, p. 33).

Temos, assim, uma definição para a natureza. Qual seja? A natureza é a universalidade das

coisas. A natureza abarca a universalidade dos fenômenos e propicia a condição, ou as

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 29

condições, para que as coisas possam „vir a ser‟. Japiassu admite um mérito de Bacon, o fato

de o inglês considerar “a Natureza como uma unidade na multiplicidade” (JAPIASSU, 1995,

p. 22). Destaca Japiassu, “para que possamos encontrar as “unidades” verdadeiras, diz Bacon,

devemos seguir dois caminhos: a) o caminho ascendente, que vai da experiência aos axiomas

(princípios ou hipóteses); b) o caminho descendente, que vai dos axiomas às novas

inovações” (JAPIASSU, 1995, p. 22). Conclui Japiassu, é dessa maneira que se conhece a

natureza e não simplesmente imaginando-a. Voltando a parábola de Pã, completa o filósofo:

sobre sua origem há e só pode haver duas opiniões: pois a Natureza é, ou a

progênie de Mercúrio – ou seja, da Palavra Divina, tese que as Escrituras

Sagradas estabeleceram para além de qualquer dúvida e foi perfilhada pelos

filósofos mais sublimes; ou provém das sementes das coisas, misturadas e

confundidas. (JAPIASSU, 1995, p. 33).

Através dessa citação Bacon problematiza duas perspectivas de explicações para o

surgimento ou gênesis da natureza. O desdobramento dessas explicações vão desembocar: ou

na teologia judaico-cristã, ou, no atomismo materialista dos gregos. Se se perguntar, por

exemplo, como os gregos souberam dos mistérios hebraicos? A resposta de Bacon é que,

provavelmente, os egípcios serviram de intermédio.

Do ponto de vista teológico, o fundamento que explica a origem da natureza encontra-

se nas Escrituras Sagradas. Por meio delas, se extrai que a natureza possui gênese fora de si

mesma. A natureza é a obra do artífice perfeito, Deus. Nessa vereda, a natureza é considerada

como não sendo eterna, pois teve um marco inicial, um instante a partir do qual começou a

existir. Esse marco inicial caracteriza-se pela decisão tomada por Deus, mediante a qual,

utilizando a Palavra no tom imperativo do haja, ajuntem-se, produza, faça-se, Ele “criou os

céus e a terra” (Gn. 1.1), formou os astros e estrelas, os oceanos ou mares, os diversos tipos de

vegetações e animais, exceto o homem num primeiro momento21

.

Escrevemos „exceto o homem num primeiro momento‟ porque este fora criado de

modo completamente distinto. Parece que no conjunto da criação Deus pusera sobre o homem

um zoom peculiar, um lugar de destaque, uma posição de privilégio. Conforme as Escrituras,

somente posterior à criação dos astros luminosos, da porção seca chamada terra, do

ajuntamento das águas denominado mares, das ervas, árvores, frutos, aves, peixes, gado,

répteis, etc., foi que se deu a criação do homem. E nesse sentido, nos auxilia Giovani Pico,

“no homem, todavia, quando este estava por desabrochar, o Pai infundiu todo tipo de

21

Confira Gn. Capítulo 1, versículos do 1 ao 25.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 30

sementes, de tal sorte que tivesse toda e qualquer variedade de vida”. (PICO, 1999, p. 54).

Continua Pico, “o homem, na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos

por ser efetivamente um portentoso milagre”. (PICO, 1999, p. 55). Sob a ótica judaico-cristã,

o homem, depois de Deus, ocupa posição bastante acentuada.

O aspecto que torna peculiar a criação do homem, segundo a explicação teológica das

Escrituras pode ser verificado no primeiro capítulo do Gênesis, versículo 26. Lá, a Palavra

enunciada por Deus no ato da criação do homem perde o tom imperativo do ajuntem-se, haja,

produza, faça-se e assume um caráter de convite, participação, reciprocidade. Vejamos: “e

disse Deus: façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine

sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre

todo réptil que se move sobre a terra”. (Gn. 1.26). Logo se vê que o homem não só fora criado

de modo distinto, como também assume a posição de imagem e semelhança de Deus. O

homem passa a ser uma “réplica”, um quadro, algo que se remete a Deus.

De acordo com o verso bíblico mencionado acima, compreende-se que o homem não

só fora criado posteriormente às demais coisas, como recebera do próprio Deus a incumbência

de dominá-las. Ao trazer o homem à existência, reforçando mais uma vez o caráter de

superioridade deste sobre as demais criaturas, o Criador lhe deu a seguinte ordem: “frutificai,

e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, e sobre as

aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra”. (Gn. 1.28). Olhando por esta

fresta, escreve Pico:

Já o Supremo Arquiteto e Pai, Deus, tinha construído, com as leis de sua

arcana sabedoria, essa moradia terrestre da divindade, esse augustíssimo

templo que, ora, contemplamos; havia decorado a região supraceleste com os

espíritos, fizera habitar nos orbes etéreos as almas imortais; povoara as zonas

excretórias e feculentas do mundo inferior com toda espécie de animais. Não

obstante tudo isso, ao término do seu labor, desejava o Artífice que existisse

alguém capaz de compreender o sentido de tão grande obra, que amasse sua

beleza e contemplasse a sua grandiosidade. (PICO, 1999, p. 52).

Consoante a citação de Pico, Deus cria as coisas, mas se dá conta de que falta alguém,

falta um “ser” que seja capaz de compreender o sentido de tudo isso. Qual a finalidade de tão

grandiosa obra se não há quem a reconheça como tal? Para que tais feitos se não há quem os

contemplem, se não há que os admirem? Tudo está no seu devido lugar. Os espíritos, os

animais, a localização das coisas. Porém, é preciso que exista um ser distinto, capaz de

compreender o sentido e a grandiosidade de toda essa arquitetura e engenharia de Deus. Que

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 31

faz o Artífice divino? Cria o homem. Nessa trilha, assevera Pico, que ao criar o homem, o

Artífice lhe falou da seguinte maneira:

A ti, ó Adão, ... te coloquei no centro do mundo, a fim de poderes

inspecionar, daí, de todos os lados, da maneira mais cômoda, tudo que

existe. Não te fizemos nem celeste nem terreno, mortal ou imortal, de modo

que assim, tu, por ti mesmo, qual modelador e escultor da própria imagem,

segundo tua preferência e, por conseguinte, para tua glória, possas retratar a

forma que gostarias de ostentar. (PICO, 1999, p. 54).

Eis, portanto, o lugar e a posição peculiar do homem na perspectiva da criação

judaico-cristã. Esse destaque do homem como centro e dominador das coisas conforme a

tendência teológica é trabalhado também por Keith Thomas, no primeiro capítulo do seu O

homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais.

Keith escreve que “na Inglaterra dos períodos Tudor e Stuart, a visão tradicional era

que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a

seus desejos e necessidades” (THOMAS, 2010, p. 21). No entanto, ressalta ele, os teólogos

que compunham essa visão explicavam que antes da queda, no Éden, homens e bestas

conviviam pacificamente. “Os homens provavelmente não eram carnívoros e os animais eram

mansos” (THOMAS, 2010, p. 22). O domínio do homem sobre os demais podia ser

considerado fácil e inconteste. A partir da queda essa relação sofreu mudanças radicalmente.

Referindo-se à explicação dos teólogos tradicionais do início da modernidade, continua

Thomas:

Ao rebelar-se contra Deus, o homem perdeu o direito de exercer um domínio

fácil e inconteste sobre as outras espécies. A terra degenerou. Espinhos e

cardos nasceram onde antes existiam apenas frutos e flores (Gênesis, III, 18).

O solo fez-se pedregoso e árido, tornando necessário um trabalho árduo para

o seu cultivo. Apareceram pulgas, mosquitos e outras pestes odiosas. Vários

animais livraram-se da canga, passando a ser ferozes, guerreando uns com os

outros e atacando o homem. Até mesmo os animais domésticos deviam

agora ser forçados à submissão (THOMAS, 2010, p. 22).

Embora a queda do homem tenha provocado uma significativa mudança na relação

entre o homem e o meio, de acordo com o posicionamento dos teólogos mencionados por

Keith Thomas, o homem não perdeu a posição de comando. O comando agora não será mais

de modo fácil, inconteste, mas permanecerá com o homem. Veio o Dilúvio como uma forma

de punição em virtude da desobediência ao Criador. Porém, aponta Thomas, “após o Dilúvio,

Deus renovou a autoridade do homem sobre a criação animal” (THOMAS, 2010, p. 22). Em

seguida ele cita Gênesis, 9.2-3, onde fica claro que Deus re-estabelece a incumbência de

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 32

comando ao homem não só em relação aos demais seres como os animais, aves, peixes e tudo

que se movimenta sobre a terra, como igualmente à própria erva verde. Tudo estava e

permanece à disposição do homem.

Se insere também nessa discussão em torno do homem enquanto aquele que ocupa o

centro e tem poder de comando sobre as demais coisas, a autora francesa Catherine Larrère.

Segundo a francesa, essa posição de destaque ocupada pelo homem deve-se ao cristianismo e

à tradição bíblica cultivada pelo mesmo. Nesse sentido, assevera Larrère,

Com o cristianismo e a tradição bíblica que ele continua, a introdução de um

novo princípio ético parece acompanhada por uma desvalorização da

natureza, susceptível de pôr fim ao naturalismo antigo. A natureza já não é

um cosmos, deixa de ser eterna [tal como aparece na concepção atomista],

nem sequer é engendrada, é criada. (...) A natureza é um ídolo que o

cristianismo derruba, faz dela uma coisa que nas mãos de Deus é perecível e

fonte de corrupção. (...) Feito à imagem de Deus, o homem é separado da

natureza. (LARRÈRE, 1997, p. 67).

Voltando à argumentação de Thomas, este afirma que as explicações teológicas

predominantes no começo da modernidade se fundamentavam tanto nas Escrituras quanto na

filosofia clássica. Por isso Bacon dialogou não só com a tradição filosófica, com os problemas

postulados pela filosofia natural como também com a tradição teológica. Essas duas frentes –

a teológica e a filosófica – explica Maria das Graças de Souza, em seu A filosofia da natureza

de Bacon: a herança democritiana, se constituíram interlocutores do filósofo setecentista.

Apresentamos, portanto, a caracterização e o discurso assumido pela tendência teológica.

A segunda tendência possível de explicação para a origem da natureza a partir de Pã é

a atomista. Na visão dessa corrente, a ideia de que a natureza fora criada pela Providência

Divina, explica de Souza, não é admitida. Para os atomistas, escreve a autora paulistana,

a condição sine qua non da formação do mundo pelas diversas configurações

dos átomos é a existência do vazio. O mundo é, pois, formado de átomos e

de vazio, no qual os átomos se movimentam, e assim, se entrechocam

mutuamente, num movimento perpétuo dos corpúsculos no vazio. (SOUZA,

2008, p. 21).

A inserção da explicação atomista na filosofia de Bacon não se restringe somente ao

mito de Pã, quando Bacon escreve que a natureza provém das sementes das coisas, misturadas

e confundidas. Segundo Souza, essa discussão está presente igualmente nas fábulas de

Cupido, Celo, Caos, dentre outras que são interpretadas por Bacon em A Sabedoria dos

antigos. Não distante do posicionamento de Maria das Graças de Souza, Silvia Manzo

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 33

também destaca que a presença do atomismo é inegável na filosofia baconiana. O atomismo,

sobretudo de Demócrito, serve de modelo para o filósofo inglês, de como voltar-se para a

investigação das coisas mesmas. Para Bacon, declara Manzo, “la filosofía de Demócrito es

celebrada frecuentemente como el mejor acercamiento posible a la naturaleza” (MANZO,

2008, p. 465).

Voltando ao paralelo entre Pã e a natureza, duas noções são destacadas por Bacon.

Uma é a noção de caçada, a ideia de que “toda ação natural, todo movimento e todo processo

da natureza nada mais são que uma caçada” (BACON, 2002, p. 36). Portanto, uma busca, uma

procura. Por isso o filósofo admite razoabilidade dos antigos ao associarem Pã à natureza,

caracterizando-o como deus dos caçadores. A outra, extremamente interessante e capaz,

inclusive de legar ensinamentos, atrelada à ideia de Pã enquanto deus dos camponeses, está a

noção de que os camponeses “vivem mais de acordo com a natureza, enquanto, nas cidades e

cortes, a natureza é corrompida pelo excesso de cultura” (BACON, 2002, p. 36). A equação

aqui parece mostrar uma relação mais estreita e equilibrada entre os camponeses e a natureza

do que em relação ao modo de vida urbano. Apesar do Lord inglês portar a fama de defensor

da tortura à natureza, ainda na primeira metade do século XVII, o inglês chamava a atenção

para a relação problemática e, possivelmente, de desvantagem para a natureza frente o modo

de vida e “o excesso de cultura” em voga nas cidades e nas cortes. Conforme a citação da

página anterior, Bacon parece sinalizar para uma noção que será trabalhada por Rousseau no

século XVIII, a saber, que a civilização corrompe o homem e a natureza. Os excessos são

constantemente alvejados pela crítica baconiana.

Segundo Rossi, é plausível conceber uma relação entre Pã, a prática, a experiência, a

perfeição da natureza, a descoberta e as invenções de coisas úteis à vida. Nas suas palavras,

a habilidade de Pã em localizar Ceres, procurada em vão por todos os

deuses, ensina que a invenção das coisas úteis à vida não deve ser esperada

dos filósofos abstratos, simbolizados pelos deuses maiores, mas apenas de

Pã, isto é, da experiência e do conhecimento das coisas do mundo. (ROSSI,

2006, p. 247).

Nesse sentido, percebe-se que a fonte capaz de fazer jorrar invenções e conhecimentos

úteis à vida é a própria natureza, mediante a experiência, a prática, a caçada. Encontra-se

nesse trecho uma crítica ao saber meramente abstrato, professoral, contemplativo, livresco e

desarraigado da experiência e da vida prática. Essa crítica permeia todo o pensamento de

Bacon. A alternativa e contramão para esse tipo de saber contemplativo e abstrato é voltar-se

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 34

para “as tentativas pacientes de folhear as páginas do livro da natureza” (ROSSI, 1992, p. 65).

Estudar e buscar conhecer com profundidade a natureza constitui-se o foco maior do autor do

Novum Organum.

Ao discutir a natureza valendo-se de alguns mitos, Bacon recorre a mais um. Desta

vez, Celo. Manzo declara que “en la fábula de Cielo, Bacon describe otras características de

los orígenes del mundo. (...) El mito de Cielo habla de los diversos períodos de los Orígenes

del mundo que van desde el Caos hasta el presente”. (MANZO, 2008, p. 473). Conforme o

mito, Celo era pai de Saturno e avô de Júpiter. Era considerado o mais antigo dos deuses e

teve seus genitais cortados pelo filho. Saturno, por sua vez, teve prole numerosa, porém

devorava os filhos logo após o nascimento. Escapou a esse destino apenas Júpiter, pois assim

que ficou adulto, “tomou posse do reino após encerrar o pai no Tártaro, não sem antes

amputar-lhe os órgãos da geração com a mesma harpe que Saturno vibrara contra Celo e

arremessá-los ao mar. Deles nasceu Vênus.” (BACON, 2002, p. 50). O mesmo mal que

Saturno praticou contra Celo seu pai recebera de volta, do filho Júpiter.

Analisando a interpretação desta fábula, Bacon explica que, Celo significa a

concavidade ou circunferência – forçando um pouco os termos, a totalidade e o limite – que

encerra toda a matéria. Nos termos de Manzo, “Cielo representa el espacio cóncavo que

comprende a la materia”. (MANZO, 2008, p. 473). Saturno, por sua vez, nas palavras de

Souza, “é a própria matéria, que pelo fato da matéria permanecer sempre a mesma na mesma

quantidade, por assim dizer privou seu pai de gerar coisas novas”. (SOUZA, 2008, p. 23). Em

relação ao mito de Celo, escreve de Souza,

As agitações e movimentos imperfeitos produziram no início estruturas

imperfeitas, tentativas de mundos (isto é claramente Lucrécio)[acrescenta

ela]. Com o passar do tempo, surgiu um arcabouço, capaz de sustentar sua

forma. A primeira época, marcada por dissoluções, é a de Saturno, que

devorava seus filhos. A segunda época, de Júpiter, pôs um fim às mudanças

contínuas. Com o nascimento de Vênus, vem a época da concórdia.

(SOUZA, 2008, p. 23).

Eis algumas analogias possíveis. A primeira, diz respeito ao paralelo entre Celo e a

natureza, na medida em que, assim como Celo, a natureza é tida como a universalidade das

coisas, ou ainda, a totalidade da matéria. Segunda, o paralelo entre Saturno e os átomos

constituintes da própria matéria, mas em permanentes processos e transformações. Pois,

argumenta Bacon, o reino de Saturno simboliza as “frequentes dissoluções e curta duração das

coisas, [por isso] foi chamado o devorador dos filhos” (BACON, 2002, p.51). Saturno ao que

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 35

tudo indica sinaliza para o momento em que os átomos ainda não se configuraram

completamente. Terceira, Júpiter e o instante em que os átomos se configuram. Segundo

Bacon, Júpiter, por sua vez, simboliza aquele “que pôs termo às mudanças contínuas e

transitórias, arremessando-as para o Tártaro” (BACON, 2002, p. 51). Júpiter parece apontar

para: na corrente teológica, a ação criadora do Supremo Artífice; e na corrente atomista, o

momento ou instante no qual os átomos se configuraram dando forma à matéria.

Referindo-se ao mito de Celo, Bacon escreve que:

A fábula parece um enigma referente à origem das coisas, não muito diverso

da filosofia ensinada mais tarde por Demócrito. Este, mais abertamente que

qualquer outro, postulou a eternidade da matéria e ao mesmo tempo negou a

eternidade do mundo. Nesse ponto, aproximou-se um pouco da verdade

proposta pela narrativa divina, que declara existente antes das obras dos seis

dias a matéria informe. (BACON, 2002, p. 50)

À luz dessa exposição, percebe-se Saturno como representando a matéria eterna, mas

informe. E Júpiter representando a ordem, a forma, a estética das coisas. Por meio dessa

fábula, Bacon novamente abre discussão entre as duas tendências explicativas da natureza

conforme já mencionamos: a criacionista e a atomista. O fio condutor entre o mito de Pã e o

de Celo, pode-se afirmar, é a abordagem dessas duas perspectivas. Ao trabalhar essas

tendências, explica de Souza, o filósofo permite a tese “de Paolo Rossi, que sustenta a opinião

de que, na obra de Bacon, convivem vários elementos a princípio inconciliáveis, entre os

quais o atomismo materialista ao lado da fé cristã”. (SOUZA, 2008, p. 25). Essa problemática

pode ser constatada, por exemplo, na última frase de Bacon ao encerrar o mito de Celo,

quando ele escreve, “verdadeiramente, o mundo, a matéria e a estrutura são obra de Deus”

(BACON, 2002, p. 52).

Um terceiro mito presente em A sabedoria dos antigos e que se relaciona com o tema

da natureza é o de Proteu. Semelhante aos mitos anteriores, o filósofo inicia a abordagem

deste apresentando suas características. Segundo Bacon, Proteu era considerado pastor de

Netuno, era também velho e profeta. Além disso,

exercia o mister de mensageiro e intérprete das coisas e segredos antigos. ...

Se alguém necessitasse da ajuda dele, a única maneira de consegui-la seria

atar-lhe as mãos e acorrentar-lhe o corpo. Então Proteu, forcejando por

libertar-se, transformava-se em toda sorte de formas estranhas – fogo, água,

feras, etc., até finalmente voltar à figura original. (BACON, 2002, p. 52).

A citação traz alguns aspectos que merecem ser sublinhados. Numa primeira instância,

Proteu enquanto „mensageiro e intérprete das coisas e segredos antigos‟, sinaliza para o papel

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 36

do homem e da ciência. Conforme Bacon, já vimos, o homem é ministro e intérprete da

natureza. Sendo assim, tomando a ciência como sua aliada, o homem adquire a incumbência

de descobrir as leis da natureza, aprender com ela e produzir conhecimentos novos e úteis

para a humanidade. Enquanto ministro e intérprete da natureza, o homem adquire condição de

criar uma espécie de segunda natureza. Ou seja, teríamos a chamada natura naturata22

.

Numa segunda instância, Proteu enquanto aquele que reage, que luta por libertar-se da

violência, e como aquele que se transforma „em toda sorte de formas estranhas até voltar à sua

forma original‟, aponta para a natureza que sempre nos escapa. Aponta para a natureza que se

produz a si mesma. Sinaliza para a natureza complexa e superior aos sentidos e ao intelecto.

Portanto, teríamos aí a natura naturans23

. Essa característica de Proteu enquanto aquele que

ao sofrer violência se transforma em diversas formas até atingir novamente seu estado

original, nos remete a um conceito discutido por Silvia Manzo, a saber, o conceito de

resistência/antitypia. Esse conceito se define também, segundo Manzo, como

impenetrabilidade da matéria. Seria uma espécie de autodefesa. Conforme a autora,

Bacon adopta este concepto, pero a su criterio la antitypia es una propiedad

esencialment activa de la materia. ... Bacon la define como un movimientos

inherente a cada porción de la materia, por medio del cual ésta puede luchar

contra toda amenaza de aniquilación. ... En otras palabras, la materia prima

tiende a la autoconservación sin necesitar de outra entidad para satisfacer

este deseo. (MANZO, 2008, pp. 476-477).

Essa primeira matéria, na qual se encontra a resistência, a impenetrabilidade e o

desejo de auto-conservar-se, trata-se dos átomos. Os átomos, escreve Manzo, para Bacon,

“son los principios de las cosas” (Idem, p. 475). É da emanação24

deles, completa a autora,

que “trae como resultado la constitución de la multiplicidad del mundo tanto en sus

movimientos (actiones, motus naturales) como en sus esencias y propiedades (essentiae,

virtutes)”. (Idem, p. 478). A emanação dos átomos seria o fundamento para tudo que existe na

natureza. Por meio do conceito de antitypia, isto é, a resistência que reside nos átomos e os

torna inclinados para a auto-conservação, nos põe diante de uma concepção de natureza para

Bacon, extremamente distante, por exemplo, do que admite Carolyn Merchant. Encontramos

uma natureza, que não é meramente fêmea, frágil, e por isso facilmente domável, dominável,

22

Larrère define esse termo, conforme discutimos na nota 7, como sendo a natureza máquina, como sendo a

natureza feita. O termo natura naturata (Cf. LARRÈRE, 1997, p. 78) surge como sendo uma natureza criada. 23

A definição da natura naturans como uma natureza que produz a si mesma pode ser conferida na mesma

referência da nota 18. 24

O termo emanação – emanatio – segundo Manzo, Bacon tomou emprestado provavelmente de Telesio. “La

emanación [explica Manzo] describe un aspecto especial de la dinámica atómica, que es su poder para constituir

la multiplicidad heterogénea del mundo”. (Cf. MANZO, 2008, p. 478).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 37

serva, tal como compreende Merchant. No terceiro capítulo trataremos dessa leitura

desconexa que Merchant faz do pensamento de Bacon. Conforme o autor inglês, é preciso,

sim, conhecer a natureza. O atomismo antigo, sobretudo Demócrito, até ensaiou bem. Não

obstante, cabe a crítica. Para o Lord, destaca Manzo, “el error específico de la escuela

atomista reside en su obsesión por las partículas y su casi total desinterés en considerar la

estructura del mundo en sentido más amplio”. (MANZO, 2008, p. 474). Bacon elogiava os

atomistas por se interessarem pela investigação da natureza, especialmente suas partes mais

minúsculas, os átomos. Mas, criticava-os por não se esforçarem tendo em vista a aquisição de

um conhecimento geral e amplo acerca da estrutura do mundo. Percebe-se nessa crítica que o

inglês direciona aos atomistas, a importância que tem em sua filosofia o papel da

compreensão ampla. Portanto, não é verdade que em Bacon encontramos uma racionalidade

que prima pelo transformar o real ao invés de compreender esse real. É exatamente o

contrário.

Uma terceira instância bastante curiosa no mito de Proteu diz respeito à maneira pela

qual se pode obter a ajuda dele. “A única maneira de consegui-la seria atar-lhe as mãos e

acorrentar-lhe o corpo”. Já mostramos que Proteu pode ser entendido num paralelo com o

homem e a ciência. Vimos também que Proteu pode significar a natureza. Não uma natureza

fraca, domável, escrava, meramente passível. Mas, uma natureza ativa, heterogênea,

reacionária e múltipla. Proteu é solicitado e admite-se que dele pode resultar ajuda,

benefícios. O problema, no entanto, é o modo como se consegue essa ajuda. Somente atando

as mãos e acorrentando o corpo de Proteu tal ajuda torna-se viável. Conforme a descrição do

mito, “atar-lhe as mãos e acorrentar-lhe o corpo” ressoa como uma espécie de uso da força e

da violência. A sentença não ecoa bem aos nossos ouvidos. Principalmente se admitirmos o

homem e a natureza como receptores dessa violência. Estaria aí a nascente da ideia que a

natureza precisa ser torturada para se mostrar e tornar-se conhecida? Qual correspondência a

sentença “atar-lhe as mãos e acorrentar-lhe o corpo” pode ter com a filosofia de Bacon no

tocante à problemática que envolve conhecer e desvelar a natureza? Na nossa compreensão,

“atar-lhe as mãos e acorrentar-lhe o corpo” aponta, provavelmente, para a necessidade de se

estabelecer o método. Não se trata do uso da violência, mas de se ter um método. A ajuda

oriunda de Proteu pode significar conhecimentos úteis extraídos da natureza. E, conforme

Bacon, para alcançar tais conhecimentos faz-se necessário o método. O método baconiano,

segundo Marilena Chaui, deveria tornar possível pelo menos três coisas.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 38

1. organizar e controlar os dados recebidos da experiência sensível, graças a

procedimentos adequados de observação e de experimentação;

2. organizar e controlar os resultados observacionais e experimentais para

chegar a conhecimentos novos ou à formulação de teorias verdadeiras;

3. desenvolver procedimentos adequados para a aplicação prática dos

resultados teóricos, pois para ele o homem é “ministro da natureza” e, se

souber conhecê-la (obedecer-lhe, diz Bacon), poderá comandá-la. (CHAUI,

2006, p. 127).

Chauí apresenta os objetivos do método baconiano e destaca. Para Bacon, método,

conhecimento da natureza e obediência à mesma não estão separados.

Acerca da interpretação do mito, vimos que Proteu, ao torna-se aprisionado por aquele

que solicita sua ajuda, imediatamente ele reage. Tomado pelo desejo de recuperar a liberdade,

Proteu assume variadas e estranhas formas. Finda, portanto, recuperando sua condição

original. Aqui tudo indica que estaríamos diante da chamada natura naturans. Ou seja,

estaríamos diante da natureza criadora de si mesma. Estaríamos diante da natureza que escapa

aos sentidos e ao intelecto humano. Podemos então indagar: estamos diante de uma natureza

inesgotável, indestrutível e, por isso, pode ilimitadamente ser explorada? É deste modo que

Bacon concebe a natureza? Para alguns o advérbio de afirmação „sim‟ pode ser admitido.

Todavia, respondemos pela negativa. Ao destacar o aspecto de Proteu assumir variadas

formas e sempre voltar à condição original, Bacon, provavelmente está advertindo – no

Novum Organum25

essa advertência é sublinhada –, que ao se estudar a natureza não se pode

perder de vista que ela é complexa, sutil, não dada espontaneamente. Seus processos só

podem ser apreendidos mediante pesquisa, esforço, trabalho, observação, experiência e

cautela. É nesse sentido que se insere a maneira pela qual se pode extrair os benefícios de

Proteu. “Atar-lhe as mãos e acorrentar-lhe o corpo”.

Sob os traços de Proteu enquanto pastor de Netuno, Bacon escreve: “o rebanho de

Proteu não parece ser outra coisa que as espécies comuns de animais, plantas, minerais, etc.,

nas quais se pode dizer que a natureza se difunde e se esgota” (BACON, 2002, p. 53).

Conforme o texto, a natureza aparece como o abrigo dos animais, das plantas, dos minerais. A

natureza é tida como a condição para o surgimento e ao mesmo tempo para o esgotamento das

coisas. Lembrando o mito de Celo, a natureza seria o lugar que comporta a totalidade da

matéria. O mito de Proteu, não só aborda o tema da matéria como também apresenta uma

concepção de natureza que às vezes é ignorada quando se refere à filosofia de Bacon. A saber,

25

Confira, por exemplo, o aforismo X do livro I.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 39

que a natureza não é nem fraca, fêmea, facilmente domável. Nem também inesgotável. As

coisas nela se difundem e se esgotam.

Ainda sobre Proteu, declara Bacon:

mas se um habilidoso ministro da Natureza tentar violentar a matéria,

molestá-la e levá-la a extremos como se quisesse reduzir a nada, essa matéria

(dado que o aniquilamento ou destruição real só são possíveis pela

onipotência de Deus), vendo-se em apuros, assumiria formas bizarras [assim

como Proteu quando coagido], indo de mudança em mudança até completar

o ciclo; se a violência prosseguisse, retornaria finalmente à forma primitiva.

(BACON, 2002, p. 53).

Essa citação sintetiza bem as discussões que fizemos há pouco. Encontramos a ideia

que concebe o homem como ministro da natureza. Uma ideia, aliás, que reaparece no primeiro

aforismo do livro I do Novum Organum. Encontramos o tema da matéria. Vimos que no

fundamento da matéria, isto é, nos átomos há uma resistência (antitypia). É essa resistência

que garante a liberdade e a autonomia da natureza. Portanto, argumentamos que, com base na

interpretação baconiana do mito de Proteu, é possível se discutir o homem, o método, a

ciência, a matéria, a natureza. Não uma natureza passiva, escrava. Mas uma natureza que é

ativa e reacionária. Uma natureza que é soberana e somente se submetendo a ela há

possibilidade de “comandá-la”. Vimos que, apesar de estar diante de nós, a natureza não é

espontânea, não é dada facilmente aos sentidos nem a apreensão. A natureza é processo, e

como tal é sutil, é caçada, é complexa, é fugaz.

1.4 As três histórias ou estágios da Natureza e a contribuição dos saberes não

acadêmicos com o processo de interpretação e conhecimento da Natureza

Segundo o Barão de Verulam, o processo de interpretação e conhecimento da natureza

passa pela História da mesma. Essa história está dividida. Explica o filósofo que, “La historia

de la naturaleza es de tres clases: de la naturaleza en su curso normal, de la naturaleza en sus

errores o variaciones y de la naturaleza alterada o trabajada; esto es, historia de las creaturas,

historia de las maravillas e historia de las artes.” (BACON, 1988, p. 82). Conforme o Barão,

deveria se estudar, sobretudo, a natureza em seus extravios e a natureza trabalhada ou

mecânica. Declara ele, “es verdad que hallo numerosos libros de experimentos y secretos

fabulosos, y frívolas imposturas para agradar y llamar la atención; pero una colección

sustanciosa y rigurosa de los heteróclitos o irregularidades de la naturaleza, bien examinadas

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 40

y descritas, eso no lo encuentro”. (BACON, 1988, p. 82). Por isso a necessidade da

Restauração.

Somente ampliando o conhecimento sobre a natureza tornar-se-ia possível descobrir e

extrair dela prodígios – alcançar a ajuda de Proteu. Principalmente, focando na história da

natureza em seus extravios e da natureza trabalhada. Ao defender estudos mais profundos da

história da natureza em seus extravios, o Lord aponta duas razões.

Una, la de corregir la parcialidad de los axiomas y opiniones, que por lo

regular se fundan únicamente en ejemplos comunes y familiares; otra,

porque partiendo de los prodigios de la naturaleza es como mejor se

descubren los prodigios del arte y se accede a ellos; pues es siguiendo y, por

así decirlo, acosando a la naturaleza en sus extravíos, como después se la

puede reconducir al mismo sitio. Ni soy de la opinión de que de esta

historia de las maravillas se deban excluir de plano las narraciones

supersticiosas de hechizos, brujerías, sueños, adivinaciones y cosas

semejantes, allí donde hay seguridad y demonstración clara de los hechos.

(BACON, 1988, p. 83). Destaque meu.

Com base nesta citação, destacaremos dois aspectos. Um, provavelmente, abriu

margem para que leituras e interpretações suspensas da filosofia boconiana, como, por

exemplo, às interpretações de Merchant, se propagassem. Trata-se do trecho aonde Bacon

afirma que é preciso acossar a natureza. Somente empreendendo “violência”, “atando as mão

e acorrentando o corpo” se poderá atingir os prodígios de Proteu. O posicionamento

baconiano de que apenas acossando a natureza as artes mecânicas poderiam criar uma espécie

de segunda natureza, provocou e continua alimentando – especialmente nas discussões acerca

do meio ambiente – duras críticas ao filósofo. Acossar a natureza, de acordo com a filosofia

de Bacon, não é, por exemplo, empreender danos ou explorá-la tendo em vista interesses

econômicos, enriquecimento de grupos ou fortalecimento do consumo. Acossar a natureza

aponta para a necessidade do método experimental. Sinaliza para o trabalho de laboratório.

Nesse sentido, escreve Oliveira, “para Bacon, a melhor maneira de se investigar a natureza é

submeter a matéria e seus corpos à maior pressão possível de forma a obrigá-la a revelar seus

limites”. (OLIVEIRA, 2002, p. 136). Não que a natureza seja escrava, domável, desprovida

de valor ou meramente fonte inesgotável de riquezas. Para Bacon, a natureza é o modelo. É

pesquisando os eventos que nela ocorrem e procurando imitá-la que as artes poderão alcançá-

la. Além disso, os benefícios extraídos mediante a técnica e a ciência devem ser

disponibilizados em favor da humanidade.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 41

O outro aspecto diz respeito à consideração por parte de Bacon de elementos que não

são do campo da ciência. Embora o filósofo criticasse duramente a magia e o conhecimento

secreto, contudo faz uma ressalva: “Ni soy de la opinión de que de esta historia de las

maravillas se deban excluir de plano las narraciones supersticiosas de hechizos, brujerías,

sueños, adivinaciones y cosas semejantes”. O problema girava em torno da falta de

demonstração e de publicidade nos procedimentos mágicos. Na versão em português,

completando essa citação que acabamos de elencar, afirma o inglês: “onde haja segurança e

demonstração clara dos fatos”. (BACON, 2007, p. 115). Tal postura permite-nos perceber que

o pensamento acerca da ciência moderna, nesse caso específico o pensamento baconiano, não

é um pensamento que admite apenas o discurso científico como o único válido e portador da

verdade. As experiências individuais devem ser levadas em conta e as diversas esferas do

saber precisam dialogar. Assenta o inglês:

hemos abandonado demasiado a destiempo y nos hemos alejado

excesivamente de los particulares. (...) es deber y virtud de todo

conocimiento el condensar la infinidad de experiencias individuales hasta

donde lo permita la idea de la verdad, (...) lo cual se logra uniendo las ideas

y concepciones de las ciencias. (BACON, 1988, p. 107).

As diversas concepções de ciências, ou seja, as várias áreas do conhecimento precisam

considerar a infinidade de experiências individuais e não acadêmicas. Ao apontar uma das

deficiências da história da natureza mecânica, pondera o Bacon: “en cuanto a la historia de la

naturaleza trabajada o mecánica, encuentro algunas recopilaciones de agricultura, y asimismo

de artes manuales, pero generalmente con desprecio de los experimentos familiares y

vulgares”. (BACON, 1988, p. 83). Nessa perspectiva, cabe o posicionamento de Dussán26

quando admite que os homens comuns não foram deixados de lado pela filosofia e concepção

de ciência baconianas. Levando em consideração a citação de Bacon assentada acima,

podemos indagar: não há ali uma fresta para que pensemos, por exemplo, a importância dos

chamados conhecimentos tradicionais, saberes populares e do senso comum na relação com a

natureza? Segundo o filósofo, não há dúvida de que os experimentos familiares, os

conhecimentos vulgares podem muito contribuir com a ciência e com o conhecimento da

natureza. O cuidado, porém, deve ser com o uso da linguagem que expresse esses saberes.

26

Acerca da reforma do conhecimento concebida por Bacon, Dussán (2009, p. 102) apresenta uma citação do

filósofo que é a seguinte. “Desnudémonos, vosotros y yo, de nuestra condición de varones doctos, si algo de eso

somos; hagámonos como unos del pueblo y, dejando a un lado las cosas mismas, admitamos conjeturas a partir

de signos externos, pues al menos esto tenemos en común con los hombres”. (Bacon, 1985, p. 79). Completa

Dussán na mesma referência mencionada acima, que “El punto de partida es despojarse de la investidura de

docto, esto es, dejar de lado los discursos típicos de los doctos, dejar por un momento la academia y sus

argumentaciones y situarse del lado del común de los hombres”.

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 42

Provavelmente, esta seria uma das principais tarefas e contribuições da ciência. Reunir os

saberes individuais, familiares e vulgares, e comunicá-los por meio de uma linguagem não

ambígua. Vejamos o que declara o Lord nesse sentido.

paréceme que la verdadera y fructífera utilidad (dejando a un lado sutilezas y

especulaciones vanas) de la investigación de la mayoría, la minoría, la

prioridad, la posterioridad, la identidad, la diversidad, la posibilidad, el acto,

la totalidad, las partes, la existencia, la privación, etcétera, está en surtirse de

prudentes cautelas contra las ambigüedades de la expresión verbal.

(BACON, 1988, p. 139).

Através do fragmento sublinhado, Bacon mostra que a relevância e verdadeira

frutificação da investigação científica consistem não só em apresentar um conhecimento

geral, universal, mas em considerar as partes, o mínimo, a existência – enquanto vida

cotidiana e as experiências também dos homens comuns – a diversidade, a totalidade, etc..

Tudo isso pode ser passível de conhecimento. Lembrando que os resultados da ciência têm

como finalidade melhorar as condições de vida da humanidade e, para tanto, precisam ser

comunicados, visíveis, acessíveis e expressos mediante uma linguagem clara.

Concluindo essa análise acerca das três histórias ou estágios da natureza, Oliveira nos

situa a respeito da concepção baconiana de natureza. Segundo Oliveira, “a natureza concebida

pelos antigos inclui a raça humana. Para Bacon, no entanto, ela é mais delimitada uma vez

que não inclui os humanos. No entanto, por outro lado, ela é estendida recobrindo tudo o que

é transformado pelo homem (plasticidade)”. (OLIVEIRA, 2002, pp. 135-136). Eis uma

concepção de natureza que desliga o homem daquela. Larrère reconhece e a admite esse feito

como uma marca da modernidade. No caso da filosofia de Bacon, tem-se uma natureza que é

distinta do homem, mas ecoa a advertência que é preciso obedecê-la. Conforme Oliveira, para

Bacon a natureza existe em três estágios27

: livre, errática e atada (artificialmente

transformada). Na sua argumentação, a natureza

é livre (ou espontânea) quando segue seu curso comum, regular como o

movimento das estrelas ou a reprodução dos animais e geração de plantas,

com a variedade geral que há destas regularidades no universo. Ela é

considerada como errática quando, perversamente, por insolência, ou por

violência sobre ela imposta, abandona seu curso normal. Este é o caso das

deformidades e anomalias, (...) No terceiro estágio, ela se apresenta

constrangida. Moldada e feita como se fosse nova pela arte e mãos dos

homens, como nas coisas artificiais. (OLIVEIRA, 2002, p. 136).

27

Segundo Oliveira, esses três modos não são categorias estritas... Essas três naturezas se interpenetram e

influenciam umas às outras. (Cf. OLIVEIRA, 2007, p. 137).

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 43

A análise de Oliveira, não só explica os três estágios nos quais a natureza se manifesta

ou é reinventada, como também incorpora o tema das artes, sendo estas entendidas como o

fazer humano. As artes, aliás, que conforme o aforismo (I: 129), ao lado das ciências,

constituem o segundo fundamento do poder do homem sobre a natureza. Ainda sobre os três

estágios da natureza, afirma Oliveira, “a natureza a ser comandada é a natureza em seu curso

ordinário, a dos fenômenos e efeitos perceptíveis. Tal comando só é verdadeiramente possível

através da obediência à natureza atada, isto é, através da descoberta e respeito das leis e

causas escondidas” (OLIVEIRA, 2002, pp. 137-138). Não obstante, o próprio Bacon chama a

atenção: estudar a natureza em seus extravios – ou nos termos de Oliveira – a natureza

errática seria muito importante para se atingir o progresso, alcançar resultados capazes de

tornar a vida do homem confortável e propiciar-lhe inclusive longevidade. Na Nova Atlântida,

por exemplo, há uma série de fatores e resultados trabalhados pela Casa de Salomão que

atestam conforto e longevidade aos moradores de Bensalém. Excelente medicina, elevado

nível de educação, alimentação saudável, aparelhos que melhoravam a capacidade auditiva

para quem possuía deficiência, enfim.

Nesse primeiro capítulo, portanto, procuramos discutir o conceito baconiano de

natureza. É possível afirmar que não encontramos uma definição precisa do que seria a

natureza para Bacon. O inglês apresenta acepções que, ora parecem está na esteira da teologia

cristã, ora parecem está na esteira do atomismo antigo. A natureza, por um lado, pode ser

considerada como o livro das obras de Deus. Tal definição foi trabalhada, por exemplo, por

Paolo Rossi no terceiro capítulo de A filosofia dos modernos, o texto intitulado: Bacon e a

Bíblia. Como livro, a natureza é passível de interpretação e conhecimento. O homem é seu

intérprete e ministro (I: 1). Possui a liberdade de poder indagá-la, conhecê-la. Mas também a

advertência de obedecê-la e sujeitar-se às suas leis. O homem tem um poder de ação sobre a

natureza. Porém, “a possibilidade de mexer em suas fundações não significa que não haja leis

a serem respeitadas: para se controlar a natureza, adverte Bacon, tem-se antes que obedecê-la”

(OLIVEIRA, 2002, p. 137). Mostramos que na perspectiva teológico-cristã, o homem ocupa

uma posição de centro, portanto, de comando. Provavelmente, a ideia baconina de dominar a

natureza seja um eco dessa perspectiva.

Por outro, tomando como base os mitos de Pã, Celo e Proteu, todos presentes em A

sabedoria dos antigos, encontramos a natureza como sendo a universalidade das coisas, a

totalidade da matéria, a variação de formas e seres. A natureza é apresentada como

reacionária. Sob esta perspectiva, os átomos são o fundamento da natureza. A emanação deles

Capítulo 1: Em torno do conceito baconiano de natureza 44

origina tudo que há nela, e neles próprios há uma resistência que confere liberdade,

autonomia, auto-conservação. A natureza não é passiva, mas atividade. Por isso, complexa,

sutil, superior. Os sentidos e intelecto do homem têm dificuldade de alcançá-la. Dada à

dificuldade, faz-se necessário estabelecer um método, fortalecer a ciência, aprimorar as artes.

Assim, Bacon sugere: afastar-se da sistematicidade rígida, abandonar os pontos fixos dos

quais a natureza humana tanto é apegada, valorizar a experiência e a prática. Pesquisar com

cautela a natureza nos seus extravios e a natureza mecânica ou trabalhada. Aguçar a

criatividade. Por fim, inclusive na contramão da tese de Mauro Grün – quando afirma que

Bacon critica e suprime completamente o papel da tradição –, reconhecer a importância dos

saberes individuais e familiares, dos saberes não acadêmicos residentes nos homens comuns,

– o que poderíamos chamar nos dias hodiernos de saberes tradicionais, popular ou do senso

comum –, lembrando que, faz-se preciso tomar cuidado com o uso da linguagem. Pois, o

conhecimento precisa ser útil, comunicável e de domínio público. Tais posturas baconianas

reverberam o tema do progresso, objeto do próximo capítulo.

45

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a

obediência à natureza

“...É preciso que se faça uma restauração da empresa a partir do âmago de suas fundações, se não se

quiser girar perpetuamente em círculos, com magro e quase desprezível progresso”.

BACON, (I: 31).

“Pois o homem inculto não sabe o que é adentrar-se em si mesmo ou chamar a si mesmo às contas,

nem o prazer dessa (...) [dulcíssima vida daquele que a cada dia sente que vai se fazendo melhor]”

BACON, 2007, p. 91.

O objetivo deste capítulo é apresentar a concepção de progresso de acordo com a

filosofia baconiana, e mostrar que, para o inglês, a noção de progresso está atrelada ao avanço

da ciência, ao melhoramento das condições de vida do homem, mas também à obediência das

leis da natureza. Na nossa interpretação, o avanço da ciência, o melhoramento da vida humana

e a obediência às leis da natureza formam um tripé que sustenta e serve como base para a

noção de progresso baconiana. Conforme chamamos a atenção no capítulo anterior, a natureza

é um tema que atravessa quase todas as obras de Bacon. E próxima ao tema da natureza está

também a noção de progresso. Por isso consideramos pertinente dedicar a segunda parte da

dissertação à reflexão sobre o tema do progresso. Dado o intento de apresentar um trabalho

que seja interdisciplinar, observando o tema geral da nossa dissertação, consideramos que este

segundo capítulo serve de passagem entre o primeiro, no qual discutimos características do

que seria a natureza para o autor do Novum Organum, e o terceiro, no qual pretendemos

mostrar como a filosofia baconiana é recepcionada em algumas discussões em torno do meio

ambiente. Nesse sentido discutiremos com autores como Boaventura, Hans Jonas, Carolyn

Merchant, Mauro Grün, entre outros.

Esse capítulo está estruturado do seguinte modo. No primeiro tópico, tomando como

referencial teórico especificamente o primeiro capítulo de O mito do progresso, de Gilberto

Dupas, mostraremos uma espécie de trajeto que a noção de progresso percorreu. Mediante a

argumentação de Dupas, a noção de progresso pode ser encontrada nos gregos, por exemplo,

em Hesíodo e no mito de Prometeu. Pode ser encontrada no período medieval com Santo

Agostinho. E, por fim, amparado pela análise de Nisbet, Dupas situa a retomada daquela

noção no período renascentista e nesse contexto chega a Bacon. Serve também de referência

para Dupas, especialmente no que se refere a uma provável definição de progresso, a Grande

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 46

enciclopédia Delta Larrouse. Preparar o terreno para adentrar de forma incisiva na temática

do progresso desenvolvida por Bacon é o objetivo do primeiro tópico que intitulamos,

„discussões preliminares‟. No segundo tópico, apresentaremos as discussões que o Lord

empreende a respeito dos teólogos, políticos e acadêmicos. As duas primeiras esferas se

mostravam contrárias ao avanço do saber. O filósofo rebate-as e defende que a ampliação do

conhecimento não será contraditória à religião, à consolidação dos negócios, nem tão pouco à

obediência às leis. No terceiro tópico, trabalharemos aspectos que, de acordo com a filosofia

de Bacon, dão sustentação ao desvendamento e a interpretação cuidadosa da natureza. Ou

seja, dizendo de outro modo, apresentaremos fatores que servem de base à noção de progresso

pensada por Bacon.

2.1 Discussões preliminares acerca da noção de progresso

Segundo Menna (2011), Bacon teve um papel desempenhado na Revolução científica

[do século XVII] e uma grande importância na difusão da ideia de progresso. Dupas, na

introdução do seu O mito do progresso, não hesitou afirmar que “a primeira enunciação de

progresso teria partido de Francis Bacon em Novum Organum”. (DUPAS, 2006, p. 19). No

primeiro capítulo de O mito do progresso, cujo título é „a evolução do conceito de progresso‟,

Dupas assenta que, “em termos gerais, progresso supõe que a civilização se mova para uma

direção entendida como benévola ou que conduza a um maior número de existências felizes”.

(DUPAS, 2006, p. 30). Dupas destaca Robert Nisbet como um radical adepto da ideia de

progresso, para quem o conceito de progresso influenciou civilizações e povos durante toda a

história, dos gregos até a atualidade.

Ante a discussão sobre a “gênese” da ideia de progresso, fundamentado nas

explicações de Nisbet, Dupas mostra que a ideia de progresso pode ser encontrada nos gregos

por meio tanto de Hesíodo, quando este reflete sobre a percepção de avanço ao longo do

tempo, quanto de Prometeu. Conforme o autor de O mito do progresso, o mito principal de

Hesíodo é sobre a formação da terra e as eras de cinco raças de humanos que os deuses

criaram:

A primeira raça é a dourada, criada por Cronos – predecessor de Zeus –,

ignorante das artes, da moralidade, do pacifismo e da felicidade; a segunda

era a prateada, que tinha sede de guerra e foi extinta por Zeus; a terceira, de

bronze, para além do combate marcial também defendia valores, mas se

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 47

destruiu sozinha; a quarta raça dos homens-heroi, viveu as guerras de Tebas

e Tróia... finalmente a quinta, a dos homens de aço, era do próprio Hesíodo e

vivia em meio a tormentas, injustiças e privações. (...) Em meio às

infelicidades momentâneas, tempos melhores viriam com disciplina, trabalho

e honestidade. (DUPAS, 2006, pp. 32-33).

Eis a descrição do mito sobre a formação da terra tal como apresentara Hesíodo. Para

Dupas, Nisbet vê o desenrolar das cinco eras hesiodianas “como crença na evolução, ainda

que com alguns retrocessos”. A raça de aço, por exemplo, embora maligna, não possuiria

sinais de que seria extinta por Zeus, admite Nisbet.

Na esteira interpretativa de Nisbet, expõe Dupas, “outro mito fundador da ideia de

progresso seria o de Prometeu. Observando a condição deplorável da humanidade, ele

[Prometeu] entregou o fogo aos homens e capacitou-os ao desenvolvimento e à criação da

civilização”. (DUPAS, 2006, p. 33). Percebe-se que Prometeu se encarregou de beneficiar a

humanidade. Propiciou aos homens aquecimento, em especial durante as noites frias, forneceu

um relevante instrumento para espantar animais que pudesse devorá-los, permitiu que a

humanidade fizesse passagem de um estado deplorável para uma condição de civilidade.

Prometeu seria a mediação entre o estado de absoluto medo, insegurança e ausência de

recursos para se enfrentar as adversidades e outro um pouco mais tranquilo, menos hostil.

Dupas escreve ainda que Nisbet enxerga fortes evidências da ideia de progresso, inclusive na

obra de Platão, especialmente As leis, “quando ele [Platão] fala do longo período de tempo no

qual a vida social se desenvolve até o surgimento da cidade”. (DUPAS, 2006, p. 33).

Robert Nisbet contribui muito com a análise de Dupas no sentido de apresentar o

percurso ou a „evolução‟ da ideia de progresso, isso fica claro na leitura do seu primeiro

capítulo de O mito do progresso. Após a exposição de que a ideia de progresso poderia ser

encontrada nos gregos, por exemplo, em Hesíodo e Prometeu, ou, ainda nas Leis de Platão, tal

como defende Nisbet, para este mesmo teórico, no período medieval o maior representante da

ideia de progresso foi Santo Agostinho. “Agostinho desenvolve a ideia globalizadora de

unidade na humanidade, uma espécie de ser com infância, adolescência e maturidade. Ele

divide a história em seis etapas, de Adão a Cristo, apontando os níveis de progresso de cada

uma delas”. (DUPAS, 2006, pp. 34-35). O progresso parece ser concebido assim, como uma

trajetória, na qual períodos ou épocas se sucedem e na ordem de sucessão os últimos são

melhores que os anteriores. Na perspectiva de Agostinho, nos permite afirmar Dupas,

anacronicamente, o progresso teria uma relação com a graça, com a palavra e com a ação de

Deus em resgate àqueles que cressem. Enquanto o símbolo de progresso no período antigo

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 48

fora o fogo roubado dos deuses e dado aos homens por Prometeu segundo Nisbet, o progresso

adquirido no medievo podia ser constatado mediante o machado de aço e o arado, além dos

avanços nas artes, arquitetura e astronomia28

.

Conforme apresenta o autor do Mito do progresso, para Nisbet, contribuiu também

com a ideia de progresso, “as invenções mecânicas de Roger Bacon no século XIII, assim

como seus trabalhos em ótica e física” (DUPAS, 2006, p. 36). A ideia de progresso, escreve

Nisbet, “retornou pouco a pouco na etapa final do Renascimento... [e] Jean Bodin..., ainda

com vínculos renascentistas, é tido como o primeiro autor do período a tratar do progresso”.

(DUPAS, 2006, p. 37). Bodin compreendia que o presente era melhor que o passado e que o

futuro seria melhor que o presente. Após trazer para a discussão Bodin, finalmente, mas ainda

considerando a análise de Nisbet, Dupas menciona Francis Bacon. Demonstra que as grandes

navegações influenciaram a concepção de progresso do filósofo, e que para este,

a grande renovação do conhecimento foi visar sua utilidade e a melhoria da

vida humana29

. Em vez de sonhar com o passado, haveria que se acrescentar

muito mais conhecimento no futuro. A sabedoria seria irmã do Tempo. Era a

época dos primeiros grandes saltos tecnológicos – imprensa, pólvora e

bússola –, mudando o estado geral na literatura, na guerra e na navegação.

Bacon deixou sugerida a proposta do New Atlantis, um colegiado de

cientistas investigadores [da natureza] voltados a novas descobertas que

pudessem alterar as condições de vida do ser humano. (DUPAS, 2006, p.

39), destaque meu.

Ainda sobre esta discussão preliminar a respeito do conceito de progresso, e que nos

ajuda a compreender a atmosfera cultural na qual Bacon estava inserido ao pensar aquele

conceito, Dupas recorre à Grande enciclopédia Delta Larrouse. Afirma que esta “chama de

progresso movimento ou marcha para frente; [progresso é] desenvolvimento; aumento;

adiantamento em sentido favorável ou desfavorável”. (DUPAS, 2006, p. 18). Esta concepção

não é distante da que pensou Bacon. O filósofo foi entusiasta da ideia de progresso, admitindo

o último como sendo um avanço, um caminhar para adiante, sobretudo, no sentido de

melhorar as condições de vida do homem sobre o planeta. Contudo, o Barão de Verulam sabia

que o progresso, enquanto um avanço da ciência, também pode se desdobrar em sentido

contrário.

28

Confira esta discussão em (DUPAS, 2006, p. 36). 29

Essa é uma discussão que pode ser conferida em (GUIMARÃES & SANTOS, 2010, pp. 28-29).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 49

Essas duas facetas que envolvem o progresso e a ciência podem ser visualizadas no

mito da Esfinge, interpretado por Bacon em A Sabedoria dos Antigos. Ali, a Esfinge, descreve

o filósofo,

era um monstro que combinava diversas formas em uma só. Tinha voz e

rosto de donzela, asas de pássaro e unhas de grifo. Postava-se no cume de

uma montanha perto de Tebas e assolava os caminhos, espreitando os

viandantes a quem assaltava e dominava de súbito. E após dominá-los,

propunha-lhes enigmas obscuros e embaraçosos, que teria aprendido das

Musas. Se os míseros cativos não conseguissem solucioná-los e interpretá-

los sem demora, e hesitassem confusos, ela os despedaçava cruelmente. (...)

Eis uma fábula bela e sábia, inventada aparentemente em alusão à Ciência,

sobretudo quando esta é aplicada à vida prática”. (BACON, 2002, p. 88).

A citação de Bacon mostra com clareza que o filósofo, apesar de entusiasta ferrenho

da ciência e da ideia de progresso, não era ingênuo em relação àquelas. Ao interpretar o mito

ele nos alerta que, enquanto por um lado a Esfinge tinha voz de donzela, asas de pássaro e

unhas de grifo, características que encantavam aqueles que tinham contato com ela, por outro

lado, a Esfinge também era um monstro que amedrontava, subjugava e despedaçava

cruelmente os incapazes de desvendar seus enigmas.

Analisando ainda a passagem citada acima, percebe-se que nela há termos como, por

exemplo, cume, montanha, enigma e embaraço, que para Bacon não são fortuitos. O cume da

montanha habitat da Esfinge aponta para o lugar que a ciência ocupa, e esse lugar é criticado

com veemência pelo inglês. No seu modo de pensar, a ciência precisa ser expressa mediante

uma linguagem clara, não ambígua nem enigmática, aspecto que tornaria a ciência mais

acessível. O conhecimento científico só será útil se descer do cume da montanha e manter

correspondência com a vida cotidiana das pessoas. A face boa do progresso está atrelada a

esta relação.

Ainda sobre a não ingenuidade de Bacon quanto ao progresso científico, corroboram

com o nosso argumento, Guimarães e Santos, quando afirmam:

No desenrolar desse processo de efervescência intelectual, a desconstrução

de paradigmas tidos como sólidos até então, também são submetidos ao

crivo rigoroso e mordaz de filósofos como Bacon, que questionam

veementemente em suas obras e nas incursões que fazem nos experimentos

científicos do seu tempo, o senso de limitação e as características negativas

das teorias e doutrinas difundidas como verdades absolutas, mas que ao

serem submetidas ao olhar criterioso da ciência, suscitam a dúvida, a

incerteza e o sentimento de não permanência das coisas. A ideia de

progresso é, concomitantemente, razão de entusiasmo [por um lado] e

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 50

desconforto [por outro lado] frente às novas descobertas (...). (GUIMARÃES

& SANTOS, 2010, p. 31). Destaque meu.

Segundo os autores citados, o progresso se apresenta como um paradoxo. Por um lado,

amplia o potencial humano propiciando que obstáculos sejam superados. Mas, paralelamente,

afirmam eles, “a ideia de progresso é também motivo de ansiedades, angústias e receios de

catástrofes em devir, diante das transformações profundas que envolvem tanto o mundo

histórico quanto o natural”. (GUIMARÃES & SANTOS, 2010, p. 31). O inglês reconhecia

esta problemática que envolve o progresso. Sua interpretação do mito da Esfinge mostra bem

a compreensão dos dois lados que acompanham a ciência, o avanço da técnica e, portanto, o

progresso. São perguntas que de certo modo se interpenetram no decorrer deste capítulo: o

que seria o progresso para Bacon? Quais elementos deveriam juntar-se ou repelirem-se na

composição da noção de progresso para o filósofo? O progresso defendido por Bacon implica

mesmo em danos e desvantagens à natureza?

O progresso, para Bacon, está fortemente relacionado com duas frentes. De um lado, o

projeto de reforma do conhecimento. Do outro, o avanço nas descobertas dos segredos da

natureza. Contudo, seria um equívoco afirmar que para o Lord o progresso teria como meta

um avanço ilimitado da ciência e da técnica, ou ainda, um avanço ilimitado da dominação

antrópica sobre a natureza. Esclarece-nos Dussán, “Bacon concibe el proyecto de renovación

metodológica de la filosofía natural y su posterior efecto en el bienestar humano a partir de la

transformación de las condiciones materiales, enlazado íntimamente a una reforma moral de

la filosofía y de los filósofos”. (DUSSÁN, 2009, p. 100). Fica claro que, nessa perspectiva, o

progresso baconiano não só está relacionado com a transformação das condições físicas e

materiais, ou ainda, com a transformação da natureza, mas também – e muito importante –

vinculado ao bem estar da humanidade e a uma reforma moral da filosofia [natural] e dos

filósofos [os próprios pesquisadores].

Dussán afirma que, se se prestar atenção nas obras baconianas de juventude, perceber-

se-á que o projeto de reforma da filosofia natural está vinculado a virtudes morais. Na sua

interpretação, a reforma da filosofia natural tal como pretendia Bacon, deveria não ignorar as

considerações morais, religiosas e teológicas. Para Dussán, o inglês encontra sentido para o

seu projeto epistemológico nas virtudes morais, respectivamente, “la caridad y la humildad”

(cf. DUSSÁN, 2009, p. 100). Essa interpretação se aproxima de Bernardo de Oliveira, quando

este escreve que:

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 51

A correta investigação da natureza é um dever religioso, no qual os homens

refletem e estendem o trabalho divino, honrando o criador. (...) Assim,

Bacon se vale da autoridade da escritura para legitimar seu programa de

reforma do conhecimento e recheia a interpretação heterodoxa que faz do

cristianismo com citações dos profetas e passagens bíblicas que reforçam seu

projeto. (OLIVEIRA, 2002, p. 134).

Não obstante, embora as virtudes morais como a caridade e a humildade – oriundas do

campo teológico – tenham relevante papel na filosofia baconiana no que se refere à condução

da investigação acerca da natureza, não podemos afirmar que para o inglês a religião seja o

fundamento do seu programa de reforma. Pelo contrário. Religião e ciência não se

confundem. São palavras do próprio filósofo, “Dá à fé o que é da fé”. (BACON, 2007, p.

140). Seguindo este raciocínio, Zaterka argumenta que para Bacon, “confundir teologia com

filosofia ou vice-versa é incorrer num grave erro, ou seja, continuar no registro da vã

filosofia”. (ZATERKA, 2004, p. 99). Esse posicionamento do Lord em relação à separação

entre ciência e religião é encontrado também na seguinte passagem:

Não obstante, há que se recordar a propósito deste último ponto [separação

entre teologia e ciência], e em outros lugares se necessário, que na

demonstração da dignidade do conhecimento ou saber separei desde o

começo o testemunho divino [teologia/religião] do humano

[filosofia/ciência], e tal é o método que tenho seguido, tratando os dois

separadamente. (BACON, 2007, p. 96). Destaque meu.

Segundo o Lord, o conhecimento divino é algo inacessível ao homem. Há coisas que

são do campo da fé e com elas a ciência não deve se misturar. Podemos pesquisar a natureza,

mas não os mistérios de Deus. As virtudes morais e a ética são importantes na tecelagem do

programa de reforma do conhecimento baconiano. Porém, o filósofo não admite que a religião

se infiltre na ciência, ou ainda, que as duas se misturem. A utilização que Bacon faz de

passagens das Escrituras, por um lado pode significar um reforço para a importância das

virtudes morais, como defende Dussán. Mas, por outro, um recurso retórico como nos alertam

Oliveira (2002) e também Paulo Rossi em Da magia à ciência. Insistindo ainda no argumento

de que ciência e religião são distintas, na leitura de (MENNA, 2011, p. 70), constatamos o

seguinte: “Bacon separa religião de ciência e entende que a liberdade de pesquisar está

restringida ao reino da natureza e do homem”. De acordo com Bacon, o conhecimento de

Deus é algo inacessível ao intelecto humano. Sendo assim, o que nos resta é concentrar

esforços no sentido de buscar conhecer aquilo que é possível conhecer, ou seja, a natureza e,

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 52

provavelmente, até mesmo o homem. O progresso fora interrompido quando a filosofia

deixou de estudar a natureza e se voltou para a interioridade. Afirma Rossi, para Bacon,

Nas homeomerias de Anaxágoras, nos átomos de Leucipo e Demócrito, no

céu e na terra de Parmênides, na discórdia e amizade de Empédocles, no

fogo de Heráclito, está presente “um sabor da filosofia natural, da natureza

das coisas, da experiência, dos corpos” (Novum Organum, I, 63) que foi se

perdendo quando a filosofia voltou-se ela própria para o mundo interior em

vez da natureza, para problemas de caráter moral e lingüístico, abandonando

a pesquisa severa das coisas naturais. (ROSSI, 2000, pp. 26-27).

Acompanhemos no tópico a seguir as discussões que o filósofo empreendeu. Ante os

teólogos, Bacon argumentou que a causa da Queda não fora o conhecimento da natureza, mas

o orgulho, a vontade de se tornar independente de, ou, semelhante a Deus. Perante os

políticos, o Lord defendeu que o avanço do saber não seria contraditório à consolidação dos

negócios nem à obediência das leis. Em relação à problemática que envolve os doutos e

sábios, Bacon apontou que a falta de investimento por parte dos Estados em pesquisas, a

busca exagerada por lucro e dinheiro, o não reconhecimento por parte dos Estados para com

os seus homens pensantes e pesquisadores bem como os tipos de estudos desenvolvidos pelos

doutores da época, mas completamente desalinhados da realidade das pessoas, constituíam-se

empecilhos que inviabilizavam o avanço da ciência e, por isso, careciam ser reformulados.

2.2 Defesa da excelência e ampliação do conhecimento

O progresso do conhecimento concebido por Bacon visa duas frentes. De um lado a

revelação da natureza. E do outro, a utilidade do desvelamento daquela para a vida humana30

.

Segundo o filósofo, um saber que não seja coadjuvante do benefício para a humanidade não é

bem um saber útil. Para o Barão, declara Menna, “podemos pesquisar a natureza, mas usando

o conhecimento alcançado para o bem da humanidade, não para sua destru[i]ção”. (MENNA,

2011, p. 70). O propósito de que o conhecimento pudesse avançar e tornar a vida humana

melhorada levou Bacon a se debruçar sobre o que se denominou reforma do saber. Qual seria

o ponto de partida dessa reforma? Ao analisar a primeira parte de O progresso do

conhecimento, percebe-se que o trabalho desempenhado pelo filósofo teve como objetivo o

seguinte desdobramento: colocar sob análise as opiniões dos três grupos apontados por ele

30

(Cf. BACON, 2007, p. 55)

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 53

como problemáticos em relação ao avanço do conhecimento – os teólogos, políticos e

acadêmicos –. Em seguida, critica e rebate as opiniões dos teólogos, políticos e doutores, ao

passo que, defende com veemência a importância de se ampliar o conhecimento. Vejamos o

que escreveu o filósofo logo nas primeiras páginas da obra citada há pouco:

No portal de entrada da primeira dessas partes31

, para desembaraçar o

caminho e, por assim dizer, fazer silêncio para que os testemunhos

verdadeiros referentes à dignidade do conhecimento sejam mais bem

ouvidos, sem a interrupção de objeções tácitas, (...) procedentes todos eles da

ignorância; mas da ignorância severamente disfarçada, mostrando-se ora no

zelo e suspeita dos teólogos, ora na severidade e arrogância dos políticos, ora

nos erros e imperfeições dos próprios sábios. (BACON, 2007, p. 19). Itálico

meu.

Com base na citação, teólogos, políticos e sábios são os interlocutores com os quais

Bacon precisou dialogar haja vista seu projeto e intento de reformular o conhecimento.

Apresentaremos a seguir, a visão dos teólogos a respeito do progresso do conhecimento e a

argumentação de Bacon no sentido contrário.

2.2.1 O posicionamento dos teólogos

A declaração de Bacon assentada nas primeiras páginas de O progresso do

conhecimento mostra que os teólogos sustentavam a opinião de que: “a aspiração a um

conhecimento excessivo foram a tentação e o pecado originais, de onde adveio a queda do

homem; que o conhecimento tem em si algo da serpente e, portanto, ali onde penetra no

homem o faz inflar”; (BACON, 2007, p. 19). Essa era a atmosfera cultural predominante.

Acerca deste contexto, esclarece-nos Menna que, “a cosmovisão pré-moderna se caracterizou

por sustentar uma tríplice proibição: estava vedado desvendar os mistérios da natureza, os

mistérios da política e os mistérios de Deus”. (MENNA, 2011, p. 91). Quebrar essa

cosmovião era o intento de Bacon.

Na análise do Barão, a opinião dos teólogos não passava de um equívoco, ignorância e

entrave ao processo de aumento do conhecimento. Que faz o filósofo? Rebate com veemência

a opinião dos teólogos e a desconstrói. Segundo o Barão, não foi o conhecimento da natureza

a causa da Queda do homem. Aliás, assevera Luciana Zaterka, “Bacon acreditava que antes da

31

Aqui Bacon está se referindo à primeira das duas partes que constituem O progresso do conhecimento.

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 54

Queda o homem havia sido dotado pela bondade divina de uma tal perfeição que lhe permitia

conhecer plenamente a natureza, pois a mente humana tinha a capacidade de refletir o

universo”. (ZATERKA, 2004, p. 97). Graças a essa condição, o homem teve a capacidade,

inclusive, de nomear as coisas. Após a Queda, afirma a autora, nessa mesma referência

mencionada, “tanto o homem quanto a natureza transformam-se profundamente”. Da

categoria de perfeição passaram para a categoria de corrupção. No encalço de desconstruir a

opinião dos teólogos, Bacon argumenta que não foi o intento de conhecer a natureza o que

levou o homem à Queda, “mas sim o conhecimento orgulhoso do bem e do mal, com uma

intenção no homem de dar-se uma lei a si mesmo e não mais depender dos mandamentos de

Deus”32

. (BACON, 2007, p. 20). Ao discutir essa questão presente no pensamento baconiano,

Zaterka esclarece que para o inglês,

a origem do pecado humano não se constitui na relação entre homem e

conhecimento no âmbito da ciência natural, mas, como vimos, na pretensão

humana à ciência do bem e do mal. (...) o pecado humano se origina no

âmbito ético, o homem orgulhoso pretendia ter um poder semelhante ao de

Deus. (ZATERKA, 2004, p. 97).

Percebe-se, à luz da citação, que a raiz do problema não estaria em desvendar os

mistérios da natureza, ou, dito de outro modo, no ousar conhecer coisas novas, mas na

arrogância, sobretudo quanto à aplicação ou finalidade do saber. A arrogância, segundo o

filósofo, é característica da natureza humana, mas atinge seu ápice principalmente entre os

acadêmicos e doutos. Por isso a importância de no contexto da reforma da ciência, se pensar

também o papel dos próprios filósofos e pesquisadores. Sem dúvida a crítica tecida por Bacon

a respeito da arrogância na atividade de pesquisa e da produção do conhecimento constitui um

legado do seu pensamento.

Ao apontar e criticar a arrogância na atividade ou processo de construção do

conhecimento, o inglês abre margem para dois aspectos. O primeiro, – fizemos menção no

tópico 2.1 – se refere à interpretação de Dussán, na qual ele sustenta que o projeto de reforma

baconiano se vincula às virtudes morais, especialmente, “la caridad y la humildad”. O próprio

Bacon deixa clara a estreiteza dessa relação apresentada por Dussán, quando argumenta que o

conhecimento, “se se separa da caridade [Amor] e não se aplica ao bem dos homens e da

humanidade, é mais glória ressonante e indigna que virtude meritória e substancial”.

32

Essa discussão é encontrada também em (MENNA, 2011, p. 92). Lá ele assenta: “Bacon diz que a

verdadeira causa da queda não é a curiosidade intelectual, mas o orgulhoso desejo do homem de

conhecer o bem e o mal e desse modo tentar ser um legislador, independente de Deus”.

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 55

(BACON, 2007, p. 22). Entretanto, conforme já tínhamos mencionado anteriormente no

tópico 2.1, embora essas virtudes, oriundas da esfera teológico-cristã, sejam relevantes para o

projeto de reforma baconiano, todavia religião e conhecimento científico são domínios

diferentes. O segundo aspecto consiste em mostrar que, conforme Bacon, o avanço do

conhecimento nem contraria a religião, nem a ela está submisso. Nesse sentido, assevera

Zagorin, para Bacon, “a procura [...] do conhecimento e a ilimitada investigação da natureza

não são nem contrárias nem nocivas à religião”. (ZAGORIN apud MENNA, 2011, p. 92). A

pesquisa e a ampliação do conhecimento devem-se manter independentes da religião e,

portanto, não conflitar com a última, ou, vice-versa. Cada domínio ocupe-se com o que é da

sua competência33

.

Em suma, ao contestar a opinião dos teólogos, Bacon deixa claro que a ampliação do

conhecimento não contraria a religião, ou, em última instância, não contraria a Deus. Sustenta

que o conhecimento e a pesquisa precisam se afastar da arrogância e de pretensões vaidosas.

E, por fim, defende que o conhecimento precisa estar direcionado para o bem da humanidade,

tendo como elo dessa conjuntura, a caridade. Na avaliação do filósofo, jamais seria pecado o

esforço e trabalho empreendidos com o objetivo de tornar avançado o conhecimento sobre a

natureza. O conhecimento necessita ser expandido. Segundo o inglês, apenas três coisas

deveriam limitar e circunscrever o conhecimento humano. São elas:

A primeira, que não situemos nossa felicidade no conhecimento a ponto de

esquecer nossa mortalidade. A segunda, que apliquemos nosso

conhecimento de modo que nos dê repouso e contentamento, e não

inquietude ou insatisfação. A terceira, que não tenhamos a presunção de,

pela contemplação da natureza, alcançar os mistérios de Deus. (BACON,

2007, p. 22).

Nada impede que se busque com afinco o avanço e a navegação sobre as águas do

grande „mar‟ desconhecido. Seja ele a natureza, seja ele o próprio homem. Porém, alerta o

filósofo: a) não depositemos toda a nossa felicidade na ciência, ela por si só não dará conta; b)

a aplicação do conhecimento abriga como prioridade o bem estar e contentamento humano,

não o contrário, ou seja, causar danos ou destruição; c) os mistérios divinos são inacessíveis

ao intelecto humano. Para o inglês, o conhecimento passa a ser prejudicial, quando “os

homens sucumbem em formar conclusões a partir de seu conhecimento [individual],

aplicando-o a seu afã particular, e deste modo ministrando a si mesmos temores covardes ou

33

Essa discussão que envolve a autonomia da ciência em relação à religião pode ser conferida em (MENNA,

2011, p. 90).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 56

desejos imoderados...”. (BACON, 2007, p. 23). A questão não está em aumentar o

conhecimento, mas, sim, em não se dar conta de que o conhecimento ao invés de conforto

converta-se em perturbação, ao invés de ser aplicado na perspectiva do benefício geral, seja

aplicado somente na perspectiva do particular. A preocupação com o bem da humanidade é

recorrente na filosofia de Bacon. Eis, portanto, em linhas gerais, a opinião dos teólogos acerca

do avanço do saber, e a argumentação de Bacon em defesa do conhecimento. Tem-se, nessa

esteira, uma forte discussão entre, de um lado, a religião e, do outro, a ciência.

2.2.2 A problemática em torno dos políticos

O segundo grupo apontado por Bacon como problemático no tocante ao avanço do

conhecimento é o dos políticos. Conforme o filósofo, a opinião dos políticos consistia no

seguinte:

o saber amolece o ânimo dos homens e os torna mais ineptos para a honra e

o exercício das armas; [o saber] danifica e perverte os ânimos dos homens

para os assuntos de governo e da política, tornando-os demasiado curiosos e

irresolutos pela variedade de leituras, (...) [o saber] separa os esforços dos

homens da ação e dos negócios e os leva a um amor ao ócio e à privacidade;

e que introduz nos Estados um relaxamento da disciplina, quando todos

estão mais dispostos a discutir de que a obedecer e a executar. (BACON,

2007, p. 25).

A ampliação do conhecimento pareceria uma ameaça ao poder político, de modo que,

aguçar a curiosidade dos homens não seria relevante. Inibir a capacidade de reflexão, sim,

seria boa estratégia, pois tornar-se-ia menos trabalhoso manter a ordem e a obediência. Com

base na citação do filósofo, percebe-se que o saber é acusado de causar três coisas: tornar os

homens preguiçosos, atrapalhar os negócios e tornar os homens desobedientes às leis e

desinteressados pelos assuntos políticos. Encontramos um ranço muito forte do período

anterior a Bacon, no qual prevalecia as explicações da Igreja, o predomínio da ciência

contemplativa e o comodismo conformado pela teologia. O objetivo do inglês era contestar

essa postura e despertar a atividade de pesquisa.

Quanto à primeira acusação, argumenta Bacon, não é verdade que o saber torna os

homens preguiçosos. É preciso examinar os discursos dos políticos, pois são contraditórios.

Primeiro, escreve o filósofo, se é verdade que o saber aguça a curiosidade e põe os homens

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 57

em movimentos e agitações, “seria estranho que aquilo que acostuma a mente a movimento e

agitação perpétuos induzisse à preguiça”. Segundo, assenta o filósofo, “nenhum tipo de

homem ama a atividade por si mesma, a não ser os doutos”34

. Movimento e agitação são

contrários à preguiça. Portanto, é inadequado afirmar que o saber torna os homens

preguiçosos.

Em relação à segunda acusação, Bacon não admite que o saber seja visto como algo

que atrapalhe os negócios dos homens e os tornem ociosos. Até porque, mesmo os homens

mais ativos e ocupados possuem momentos vagos. Por exemplo, momentos de lazer,

momentos de espera entre uma atividade e outra, etc. Nada impediria o estudioso deixar de

realizar seus negócios e atividades. O intento e trabalho de adquirir conhecimentos poderiam

muito bem ser desempenhados nos momentos vagos. Se se diz que o saber demanda

demasiado tempo ou ócio, encerra o inglês,

respondo que o homem mais ativo ou ocupado que tenha havido ou possa

haver tem (indiscutivelmente) muitos momentos vagos de lazer, enquanto

espera as ocasiões e os resultados de seus negócios (a não ser que seja lento

para despachar seus assuntos, ou frívola e indignamente se empenhe em

intrometer-se em coisas que outros podem fazer melhor do que ele); e então

a questão está em como devem ser preenchidos e gastos esses intervalos de

tempo livre, se em prazeres ou em estudos. (BACON, 2007, p. 32).

Não é verdade que o conhecimento seja prejudicial aos negócios e afazeres dos

homens. Pelo contrário. É a realização de estudos aprofundados que pode, inclusive, fazer

com que os negócios e atividades sejam consolidados.

Acerca da terceira acusação, declara Bacon,

No que diz respeito a essa outra idéia de que o saber enfraqueça a reverência

devida às leis e ao governo, sem dúvida é mera detração e calúnia sem

sombra de verdade. Pois dizer que o hábito cego de obediência é mais segura

lealdade que o sentido do dever ensinado e entendido, é afirmar que um cego

pode pisar mais seguro guiado por um guia que um homem são de vista

iluminado por uma luz. (BACON, 2007, p. 32).

Segundo o Lord, o que prejudica a obediência às leis e ao governo não é o

conhecimento, mas a ignorância. Sua argumentação deixa claro, que o conhecimento torna os

espíritos mansos, nobres, dúcteis e dóceis ao governo, ao passo que a ignorância os torna

contumazes, refratários e sediciosos. O domínio da política é extremamente problemático e

34

Ambas citações presentes em (BACON, 2007, p. 31).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 58

carece reflexão. A corrupção torna seus atores egoístas, alheios aos interesses coletivos e

negligentes quanto aos seus deveres. Nos termos do filósofo,

a classe mais corrupta de meros políticos, que não têm seus pensamentos

estabelecidos pelo saber no amor e na consideração do dever, nem olham

nunca para a universalidade, mas referem todas as coisas a si mesmos, e se

situam no centro do mundo, como se tudo tivesse que confluir neles e em

suas fortunas. (BACON, 2007, p. 41).

Eis, portanto, a crítica baconiana à classe política e a defesa do filósofo sustentando

que o afastamento da ignorância infunde no homem obediência às leis e consciência acerca

dos deveres. Acompanhemos, a seguir, a dificultosa relação que aglutina os sábios, a natureza

dos estudos desenvolvidos por eles, a aplicação do conhecimento produzido e a negligência

dos Estados no tocante aos investimentos em educação e pesquisas.

2.2.3 A problemática em volta dos doutos e acadêmicos

O terceiro grupo analisado por Bacon no tocante à questão do avanço do saber trata-se

dos próprios doutores, sábios ou acadêmicos. Na análise do Lord, esse grupo deveria

contribuir com o avanço e a boa imagem do conhecimento, mas não era isso que estava

ocorrendo. O saber estava em descrédito. Por quais razões? Conforme o inglês, o descrédito

que circundava o conhecimento devia-se a três fatores e com graus ascendentes de

importância: à fortuna em alguma medida; aos costumes dos doutos em maior quantidade; e,

num grau mais elevado, à natureza ou tipos de estudos que eram realizados. Um dos graves

problemas apontado por Bacon na relação doutores e descrédito do conhecimento era o apreço

à riqueza e a busca exacerbada pelo lucro. Os Estados não se preocupavam em investir em

pesquisas. O exemplo que ele apresenta tomando como referência uma citação de Tito Lívio é

a República romana. Essa última, durante o tempo em que se manteve afastada da avareza e

do afã da ostentação foi um Estado sem paradoxos, uma república virtuosa, de modo que,

“jamais houve república maior, mais religiosa, nem mais rica em bons exemplos” (BACON,

2007, p. 35). A partir do momento que se voltou para a busca de riquezas e de ostentação

degenerou-se. Após o Estado romano ter se degenerado, argumenta Bacon, um conselheiro de

Júlio César, ao orientar o imperador acerca de por onde deveria iniciar a restauração do

Estado, atacou o apego à riqueza e se expressou do seguinte modo: “[Mas estes e todos os

demais males cessarão (diz ele) quando cessar o culto ao dinheiro, quando nem as

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 59

magistraturas nem as demais coisas que o vulgo ambiciona estejam à venda” (BACON, 2007,

p. 36). Tamanha era a corrupção, o apego à riqueza e a procura pelo lucro.

A ambição dos Estados tornava os sábios e pesquisadores invisíveis. Não obstante

Bacon ter criticado com veemência a vaidade, a arrogância e o egoísmo entre os acadêmicos –

por conta disto, salienta Dussán, a reforma do conhecimento deveria incluir também os sábios

– conforme poderemos ver no tópico 2.3, o filósofo igualmente propôs com bastante afinco,

que se valorizassem os bons e comprometidos pesquisadores, que se lhes atribuíssem

reconhecimento e honra como se fazem aos homens das cortes, por fim, que se lhes pagassem

salários dignos. Os Estados, afirma Bacon, costumam ser negligentes quanto à educação e à

escolha de mestres e preceptores. Isto sem dúvida desdobra-se em sérias consequências no

que tange à ampliação do conhecimento. A busca por riquezas e lucro, em parte cultivada

pelos próprios doutos, em parte maior cultivada pelos Estados, constituiu-se grande causa de

obstáculo, descrédito e degeneração do conhecimento da natureza. Portanto, alvo da crítica

baconiana.

Entre os erros que envolvem os acadêmicos, Bacon observa o seguinte. a) Há um

descompasso frequente entre o conhecimento produzido e a aplicação deste na vida das

pessoas. “Comumente incide sobre os doutos, (...) é que às vezes não sabem aplicar-se às

pessoas particulares” (BACON, 2007, p. 41). b) Há também três futilidades que circundam os

estudos e prejudicam a ciência. Primeira, o saber fantástico (fúteis imaginações). Segunda, o

saber contencioso (fúteis altercações). Terceira, o saber delicado (fúteis afetações). Conforme

Bernardo de Oliveira, “estes três destemperos caracterizariam as principais tendências [da

época de Bacon]: neoplatonismo, escolástica aristotélica e retórica humanista”. (OLIVEIRA,

2002, p. 65). Dussán também explica esses três tipos de saber que prejudicam o avanço da

ciência, no seu texto intitulado Crítica moral de Francis Bacon a la filosofía. Segundo ele, “el

saber fantástico es aquel concerniente al engaño o a la falsedad, en muchos casos, por permitir

la mezcla entre filosofía y teología, por lo cual confunde el objeto de estudio” (DUSSÁN,

2009, p. 106). O saber contencioso é o “que prevaleció en los escolásticos, Bacon entiende:

"aquel" que si bien abandona las palabras, no trabaja sobre la naturaleza sino sobre las

mismas construcciones teóricas de los filósofos”. (Idem, p. 106). E por saber delicado, afirma

Dussán, se “entiende aquel que es condenado porque estudia las palabras y no las cosas”.

(DUSSÁN, 2009, p. 106).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 60

Esses saberes reforçariam a cultura das palavras. O inglês estava preocupado na

verdade com o estabelecimento de um novo caminho para a ciência. Caminho esse que

tornasse a ciência capaz de penetrar, desvelar os segredos da natureza, ser prática e útil

efetivamente para os homens indistintamente. Embora o filósofo defendesse com veemência o

avanço da ciência, contudo, não se pode esquecer sua máxima: “pois a natureza não se vence,

se não quando se lhe obedece” (I: 3), destacamos esse „princípio‟ no capítulo anterior. Ao

defender a libertação do conhecimento das amarras dos teólogos, dos políticos e refletir sobre

as circunstâncias que cercavam a academia e os doutos de sua época, o passo seguinte é

propor o que deve ser incorporado ao projeto de reforma do conhecimento e o que deve ser

rejeitado. É o que discutiremos no tópico a seguir.

2.3 Aspectos que integram a noção baconiana de progresso

Nesse tópico, discutiremos à luz da filosofia baconiana, sobretudo tomando como

referência a primeira parte de O progresso do conhecimento, aspectos que são fundamentais à

noção de progresso concebida pelo autor do Novum Organum. Por um lado, o inglês indica

uma série de fatores. Por exemplo, que os Estados invistam em pesquisa, que se busque reunir

em volta das instituições de pesquisas os melhores pesquisadores, que se valorize tais

pesquisadores e os remunerem bem. Por outro, ele propõe que se abandone o saber

professoral desarraigado da prática, a educação meramente repetitiva, a prática de exercícios

que não correspondam à realidade, entre outros. Acompanhemos a seguir os posicionamentos

do inglês, a começar pela crítica ao saber professoral. Por motivo didático, abordaremos esses

aspectos em alíneas.

a) É preciso superar o saber meramente professoral. Afirma o filósofo, “nem há que se

esquecer tão pouco que essa dedicação das instituições e dotações ao saber professoral não só

têm tido um aspecto e influência malignos sobre o crescimento das ciências, como ademais

têm sido prejudicial para os Estados e governos”. (BACON, 2007, p. 105). Destaque meu. Até

os doutos, salienta Dussán, ajustados à proposta de se construir novos e úteis saberes,

deveriam “despojarse de la investidura de docto, esto es, dejar de lado los discursos típicos de

los doctos, dejar por un momento la academia y sus argumentaciones y situarse del lado del

común de los hombres”. (DUSSÁN, 2009, p. 102).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 61

b) É necessário estudar a natureza com profundidade e descer à raiz das coisas. Nas

palavras do Chanceler, “mas, se se quer que uma árvore dê mais frutos do que costuma dar,

não é o que se faça aos ramos, mas o revolver a terra e pôr humo novo em redor das raízes o

que resolverá”. (BACON, 2007, p. 105). A árvore que o autor inglês se refere aqui diz

respeito à ciência e de modo especial à filosofia natural. Se a ciência e a filosofia natural

quiserem dar passos mais firmes na direção de investigar melhor, interpretar e conhecer com

verticalidade a natureza, é necessário afastar-se do saber professoral e livresco. É preciso

buscar uma nova lógica ou um novo método em contraposição ao silogismo de Aristóteles

fortemente cultivado pela teologia escolástica. Pois, assevera Bacon,

há que se recordar a propósito deste último ponto [a conversão da filosofia

de Aristóteles em teologia pelos escolásticos], ... que na demonstração da

dignidade do conhecimento ou saber separei desde o começo o testemunho

divino [fé] do humano [razão], e tal é o método que tenho seguido, tratando

os dois [filosofia e teologia] separadamente. (BACON, 2007, p. 96).

Destaques meus.

c) É preciso que a educação seja capaz de aliar teoria e prática, conteúdos e realidade,

exercícios e correspondência com a vida. Na avaliação de Bacon, as ciências estavam

estagnadas e os príncipes da sua época tinham dificuldades em encontrar pessoas capacitadas

nos assuntos de Estado, “porque não há nos colégios uma educação livre com a qual os que

tiverem esta inclinação possam dedicar-se às histórias, às línguas modernas, aos livros de

política e temas civis, e outras coisas semelhantes...”. (BACON, 2007, p. 105). Em Bensalém,

ilha descrita por Bacon na Nova Atlântida, ao contrário, a educação vigente por lá mostrava-

se bastante dinâmica e frutífera. Por exemplo, um dos tripulantes do navio que se perdeu e

atingiu a ilha, constatou que “o povo [daquela ilha] dominava várias línguas e era tomado de

humanidade...” (BACON, 1999, p. 224). Destaque meu.

Vale destacar que, a crítica que Bacon tece contra o estudo das palavras não significa,

por exemplo – como apresenta Mauro Grün, um Bacon a-histórico e negador da tradição,

discutiremos isto no terceiro capítulo –, uma recusa absoluta ou desvalorização do estudo da

história, dos saberes antigos, das letras ou coisas parecidas. Não restringir-se meramente às

palavras, segundo o inglês, quer dizer voltar-se para a realidade, para a observação dos fatos,

para o estudo cuidadoso das coisas mesmas, portanto, para a tentativa de se aliar teoria e

prática.

A educação, na esteira da proposta baconiana, deve levar em consideração uma coisa,

a saber, a criatividade. Não poderão surgir inventos úteis para a humanidade nem avanços

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 62

para a ciência se a educação basear-se somente em repetições e decorações do mesmo. Numa

crítica bastante veemente à separação entre pensamento e ação, teoria e prática, imagens e

realidade. Numa crítica extremamente vigorosa à educação livresca e repetitiva tal como

faziam os escolástico, escreve Bacon,

é uma falta que encontro nos exercícios empregados nas universidades, que

divorciam demasiadamente invenção e memória; pois seus discursos são, ou

bem premeditados, onde não se deixa nada à invenção, ou bem

extemporâneos, onde se deixa pouco à memória; enquanto na vida e na ação

o que menos se usa é um ou outro, empregando-se, isto sim, combinações de

premeditação e invenção, notas e memória. De modo que neste caso o

exercício não se ajusta à prática, nem a imagem à vida... (BACON, 2007, pp.

108-109).

O trecho aponta aspectos fundamentais do pensamento de Bacon. Primeiro, a

universidade precisa estar atenta à realidade que cerca. Segundo, no tocante à produção do

conhecimento, as coisas não podem correr aleatória e separadamente. As invenções são

relevantes, mas a memória também. Os discursos precisam girar em torno das questões e

problemas pertinentes. Os conteúdos trabalhados nas universidades devem considerar a

prática e a vida na realidade. Se não os saberes produzidos cairão no âmbito da inutilidade. A

realidade e a vida não podem ser perdidos de vista. Neste sentido, a educação, o Estado, as

instituições de ensino, de pesquisa, sobretudo, as universidades têm um papel importante.

Sobre o tema ainda da educação eficiente que pode contribuir para o avanço das

ciências e o estudo da natureza, segundo Bacon, é fundamental que além dos livros se tenham

outros recursos e instrumentos. Afirma o Lord:

Mas é certo que para o estudo profundo, frutífero e operativo de muitas

ciências, e em especial da filosofia natural e da medicina, os livros não são

os únicos instrumentos; (...) pois vemos que com os livros se têm utilizado

esferas, globos, astrolábios, mapas, etc., como aparatos necessários para a

astronomia e a cosmografia; vemos também que alguns lugares destinados

ao estudo da medicina têm anexado a comodidade de jardins com todo tipo

de amostras, e dispõem também de cadáveres para as dissecações. (BACON,

2007, p. 107).

O filósofo adentra por meio desse texto numa questão metodológica. O que é

importante no estudo da natureza? Como fazer para que os conhecimentos produzidos pelas

universidades e homens doutos não incorram em inutilidade e ausência de bons frutos?

Esbarramo-nos na relevância do método experimental. Entram aí, não só a invenção ou

criatividade, mas a utilização de experimentos e de instrumentos que corroborem com o êxito

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 63

da experiência e da pesquisa. Até os jogos de entretenimento podem contribuir com o

processo de uma educação não estática. Declara o filósofo: “quanto aos jogos de

entretenimento, os considero incluídos dentro da vida e educação civis”. (BACON, 2007, p.

178). O que não dá para admitir é conformar-se com o estabelecido. É preciso pensar a ordem

vigente.

O inglês deixa patente que se a meta é adquirir conhecimento aprofundado da

natureza, saber frutífero e útil à vida do homem, os livros sozinhos não são suficientes.

Munir-se de instrumentos e valorizar a experimentação são indispensáveis para que se possa

avançar no processo de interpretação e conhecimento da natureza. Aliás, foi graças ao cultivo

de uma educação que valorizasse, de um lado, o estudo da história e das línguas, e do outro, a

experimentação e a prática, que a Ilha de Bensalém, por intermédio da Casa de Salomão –

esta, uma instituição ou centro de pesquisas – atingiu resultados relevantes para o

melhoramento da vida humana. No entanto, pode-se questionar: mas, Bensalém, a Casa de

Salomão, a Nova Atlântida estão no âmbito da utopia?!

Segundo Oliveira, as narrativas utópicas foram escritas para um público muito mais

amplo do que o que lia os ensaios e tratados filosóficos. Ele afirma que, no imaginário utópico

do século XVII, se sobressai o interesse pelas técnicas e ciências e a aposta no

desenvolvimento da filosofia da natureza como um conhecimento socialmente útil. No seu

artigo intitulado A Ciência Nas Utopias De Campanella, Bacon, Comenius, E Glanvill,

Oliveira afirma que a Utopia de Bacon deve ser vista como uma forma de tentar ensinar os

homens a desejarem, mostrando a eles o que seria possível com sua força. Conforme Oliveira,

em Nova Atlântida se encontra o modelo de uma sociedade unificada, na qual o empenho na

busca do conhecimento-domínio da natureza traria estabilidade civil e prosperidade

econômica. De acordo com a explicação do autor no artigo supracitado, a Casa de Salomão

trata-se de um grande laboratório dedicado ao desenvolvimento da pesquisa tecnológica para

o avanço do conhecimento e bem-estar da população. Ao analisar estes aspectos sinalizados

por Oliveira, torna-se plausível afirmar que, para Bacon, desenvolvimento científico e

tecnológico – ou seja, o progresso – se vincula fortemente ao conhecimento da natureza e ao

beneficiamento da sociedade35

. Acerca dessa discussão em torno da utopia baconiana,

completa Japiassu: “a obra de ficção Nova Atlântida é uma utopia técnica, situada numa ilha

35 Toda a discussão desenvolvida nesse parágrafo pode ser conferida em: (OLIVEIRA, em

KRITERION, Belo Horizonte, nº 106, Dez/2002, pp. 47-49).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 64

de felicidade, abrigando um “Templo de Salomão” ou uma “universidade técnica” onde se

fabricam objetos extraordinariamente úteis à vida humana” (JAPIASSU, 1995, p. 26).

Assim, voltando à questão acerca dos resultados oriundos da educação e da prática

científica em Bensalém, escreve Bacon:

Temos ainda diversas artes mecânicas... bem como produtos obtidos por

meio delas, como o papel, o linho, a seda, tecidos... temos calores que

imitam o calor do sol e dos corpos celestes, ... Temos certos aparelhos que,

aplicados ao ouvido, aumentam a audição, ... Imitamos ainda o vôo dos

pássaros e dispomos de algumas formas de voar pelo ar; navios e barcos que

vão sob a água e que são capazes de suportar a violência dos mares, ...

Imitamos ainda os movimentos das criaturas vivas, como os do homem, dos

animais, dos pássaros, dos peixes e das serpentes. (BACON, 1999, pp. 249-

251).

A citação ilustra bem o que Bacon entendia por avanços da ciência e progresso.

Provavelmente, estejam aí elementos que fundamentam a tese de Oliveira, para quem, em

Bacon encontra-se fundamentação para a ciência como tecnologia. Ciência e tecnologia

aparecem muito próximas. O filósofo concebe coisas que só serão concretizadas séculos

depois. É o caso do avião, do submarino, dos aparelhos auditivos, da robótica, etc. Todos

esses aspectos podem ser discutidos e foram pensados pelo inglês. Talvez seja por isso que

Japiassu considera o filósofo um profeta da ciência moderna.

Não resta dúvida que o universo de Bacon ainda é bastante pré-científico.

Mas ele contribuiu para lançar o homem na conquista da natureza. Homem

de transição, uma espécie de novo Moisés, mostrou à humanidade a terra

prometida. Mas não conseguiu entrar nela. Foi o profeta da revolução

científica, não seu realizador, seu herói e ser mártir. (JAPIASSU, 1995, p.

22).

Estudando a natureza e imitando o movimento das criaturas vivas como o homem, os

animais, pássaros, peixes e serpentes, tornaria possível criar uma segunda natureza. Teríamos

aí, o que se pode chamar em termos baconianos, a plasticidade. Porém, nada disso seria

efetivado se uma educação eficiente, criativa, ampla e voltada para a prática não fosse

implementada. Esse seria o caminho para que o homem pudesse controlar a natureza. Por isso,

acrescenta Japiassu ao se referir à Nova Atlântida, “as instalações da ilha devem comportar

laboratórios de todos os tipos, onde todos os aparelhos precisam ser estudados e aprimorados

para o melhor bem-estar técnico da humanidade e para sua maior felicidade geral”

(JAPIASSU, 1995, p. 21). O barco deveria navegar tendo em vista este porto: ampliação do

conhecimento da natureza e felicidade para a humanidade. Lembrando que, para Bacon, porto

não significaria acabamento, apreensão total da verdade, nem tão pouco conformar-se ou

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 65

aceitar o estabelecido inquestionavelmente. O porto seria um estágio, uma pausa, um

momento de espera até iniciar a próxima viagem. Pois, a pesquisa deve ser contínua.

Entretanto, vale lembrar igualmente, nessa conjuntura de barco, mar, viagem e porto –

imagens que são trabalhadas por Bacon –, o naufrágio também se insere como possibilidade.

d) É preciso investir na prática de experimentações. Declara Bacon, “dificilmente se

fará avanço importante no desvelamento da natureza se não se designam fundos para gastos

de experimentação...”. (BACON, 2007, p. 107).

e) É fundamental que se requisite os mais preparados professores – investigadores da

natureza – e pague a estes pesquisadores salários que lhes permitam viver dignamente. Pontua

o filósofo inglês,

Pois para o progresso das ciências é necessário que os professores sejam

escolhidos entre os homens mais capazes e eficientes... Isto não será possível

se sua condição e remuneração não são tais que possam persuadir o mais

capacitado a dedicar todo seu esforço e permanecer toda sua vida nessa

função e serviço... (BACON, 2007, pp. 105-106).

f) Além dos investimentos em pesquisas, reconhecimento e valorização do papel dos

pesquisadores inclusive pagando-os bem, indica Bacon, é preciso que haja fiscalização nos

serviços de educação com a seguinte finalidade: o que estiver adequado deve ser mantido,

porém, o que estiver desajustado deve sofrer intervenção e reforma. Declara o filósofo:

Outro defeito que observo é uma negligência e descuido, nas consultorias

dos reitores das universidades, e nas inspeções dos príncipes ou superiores,

para tomar em consideração e examinar se as aulas, exercícios e outras

coisas habitualmente associadas ao saber, iniciadas em tempos antigos

[Bacon não ignora o saber antigo] e desde então mantidas, estão bem

instituídas ou não, e sobre isso fundamentar uma emenda ou reforma daquilo

que pareça inadequado. (BACON, 2007, p. 107). Destaque meu.

Não é bom que se opere a educação com descuidos. O acompanhamento por parte do

Estado e sua responsabilidade no quesito educação e pesquisa é fundamental para que o saber

torne-se eficiente, avance e seja útil para a humanidade. A educação e a pesquisa sobre a

natureza precisam ser levadas a sério.

g) É extremamente relevante – ante a tarefa de procurar conhecer a natureza na sua

complexidade – que haja intercâmbio e permanente diálogo entre as universidades e as

instituições de pesquisas. Trocar experiências é indispensável ao avanço do saber. Esse

posicionamento do inglês está contemplado não só em O Progresso do Conhecimento,

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 66

quando ele escreve que “o progresso do conhecimento..., conheceria ainda maior avanço se

houvesse mais inteligência mútua entre as universidades...” (BACON, 2007, p. 109), como

igualmente em A Nova Atlântida. A ilha de Bensalém na qual foi estabelecida a Casa de

Salomão, tendo em vista a divulgação da ciência produzida por lá, a troca de saberes e de

experiências com outras instituições de pesquisa, estabeleceu o seguinte regulamento:

que cada doze anos seriam enviados para fora do reino dois navios, para

várias viagens; que em cada um deles fosse uma comissão de três dos

membros ou irmãos da Casa de Salomão, cuja missão seria apenas a de nos

dar a conhecer os assuntos e o estado, naqueles países para os quais fossem

enviados, especialmente, das ciências, artes, manufaturas e invenções de

todo o mundo; e também trazer livros, instrumentos e modelos de toda

espécie... (BACON, 1999, p. 237).

A primeira inferência da citação „cada doze anos...‟ aponta para a paciência que deve

ser cultivada no desempenho da pesquisa. A natureza, possuidora de estratos profundos, de

uma enorme complexidade e, portanto, superior aos sentidos e ao intelecto do homem, não

pode ser conhecida adequadamente se as pesquisas forem apressadas e imediatistas. Embora,

Bacon fosse entusiasta do conhecimento voltado para a utilidade, todavia, a construção desse

conhecimento envolve: paciência, humildade e foco no bem-estar da humanidade. Por isso a

importância de não restringir-se somente às palavras. Estas podem nos impor falsas

aparências. “A cautela que se tome contra elas [as palavras] é de suma importância para a reta

direção do juízo humano”. (BACON, 2007, p. 201). Destaque meu.

h) Considerar e avaliar as diversas opiniões que se tem sobre a natureza. Assevera o

filósofo, “convém ver as diversas glosas e opiniões que se tem dado sobre a natureza, nas

quais pode suceder que cada um tenha visto mais claro numa questão que seus colegas”.

(BACON, 2007, p. 161). Essa postura do inglês aponta para a importância de se considerar as

atividades que envolvam outras instituições de pesquisas, outros grupos de pesquisadores,

outros estudos desenvolvidos em períodos diferentes, inclusive o saber dos antigos. Seria

extremamente frutífero ao progresso do conhecimento, reunir a diversidade de opiniões acerca

da natureza. O próprio Bacon planejava desenvolver trabalho nesta perspectiva. Fazia parte do

seu objetivo, recompor a história da natureza. A Instauração era um projeto enciclopédico.

Nos termos de Japiassu, “Bacon revela uma universal curiosidade. E sua sede de maravilhas

já se projeta num programa enciclopédico. A Grande Instauração define um inventário das

possibilidades técnicas e científicas da humanidade” (JAPIASSU, 1995, p. 20). Considerar as

diversas opiniões sobre a natureza pode ainda apontar, dentro da filosofia baconiana, para o

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 67

diálogo que deve haver entre os pesquisadores e outras áreas do saber. Mas não apenas isso.

Aponta também para a importância de considerar os saberes não acadêmicos, as experiências

dos homens comuns. Os exemplos comuns e familiares não podem ser desperdiçados. “Temos

abandonado muito prematuramente e nos afastado excessivamente dos particulares”

(BACON, 2007, p. 149). Conhecer a totalidade de uma determinada realidade é extremamente

relevante. Porém, não se pode esquecer das partes.

i) É preciso afastar-se da fragmentação do saber. O filósofo criticou veementemente a

fragmentação dos conhecimentos. O objetivo da Grande Instauração era recuperar essa

fragmentação. No Progresso do Conhecimento, ele escreve: “e em geral há de seguir-se esta

norma, aceitar todas as partições dos conhecimentos mais como linhas e veias que como

seções e separações, e manter a continuidade e integridade do conhecimento”. (BACON,

2007, p. 163). Destaque meu. Nesse sentido, ouvir o(s) outro(s) contribui em larga medida

para que o conhecimento seja aperfeiçoado, menos quebradiço. Esse aspecto é encontrado

também na Nova Atlântida, mediante a saída periódica de uma embarcação, cuja finalidade é

aprender coisas novas, informar-se a respeito do que está acontecendo no mundo, agregar

novas técnicas e saberes. Ao escrever sobre a divisão e classificação do conhecimento, haja

vista o projeto da Grande Instauração, Menna, amparado em um posicionamento de Zagorin,

expressa: “Bacon considera todas as regiões do conhecimento como partes interligadas e

igualmente importantes do „globo intelectual‟, e portanto evita fazer uma organização

hierárquica das diferentes ciências”. (MENNA, 2011, p. 45). Assim, fica claro que o diálogo

entre pesquisadores, instituições de pesquisas, diferentes áreas do conhecimento e a troca de

experiências eram extremamente bem vistos e admitidos pelo Barão de Verulam.

Encontramos aí uma nuance metodológica. Abre-se até uma janela para formular a seguinte

questão: teríamos aqui sementes da chamada interdisciplinaridade36

?

36

Segundo José de Ávila Aguiar Coimbra, a interdisciplinaridade entrou para o vocabulário acadêmico usual,

timidamente e tateando, há cerca de dois decênios. “O vocábulo “interdisciplinaridade” apresenta-se

despretensioso na sua origem, ambíguo na sua acepção corrente e complexo na sua aplicação. Na verdade,

parece que tais características se verificam facilmente. Tome-se como ponto de partida a gênese da palavra, na

sua conceituação etimológica. Sua formação deu-se efetivamente pela união da preposição latina inter ao

substantivo disciplinaridade, resultando num conceito que é gráfica, fonética e semanticamente diferente de

outros afins, como a multidisciplinaridade, a transdisciplinaridade e a intradisciplinaridade”. (COIMBRA, 2000,

p. 54). Conforme Coimbra, a interdisciplinaridade tem a ver com um tema, um objeto ou abordagem em que

duas ou mais disciplinas intencionalmente estabelecem nexo e vínculo com o objetivo de apresentar como

resultado um conhecimento amplo, mas ao mesmo tempo diversificado e unificado. A imagem que serve para

ilustrar a interdisciplinaridade é a do balé. (Cf. Idem, p. 58). No balé, tem-se uma série de movimentos, porém

essa diversidade de movimento é coordenada, harmônica, ensaiada, discutida, portanto, unificada.

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 68

O conhecimento da natureza é processo e não teria êxito se se desse isoladamente,

portanto, na perspectiva apenas do gênio e do indivíduo. Segundo argumenta Rossi, “Bacon

introduziu um conceito de grande importância que ficará no centro de sua obra de reforma do

saber: na ciência podem-se alcançar resultados efetivos e consistentes apenas mediante uma

sucessão de pesquisadores e um trabalho de colaboração entre os cientistas”. (ROSSI, 2006, p.

121). Nessa mesma referência, Rossi declara que na filosofia de Bacon, a ciência deve

abandonar a genialidade não controlada de um indivíduo, deve abandonar o acaso, a

arbitrariedade, a síntese apressada em detrimento de tomar como base, um experimentalismo

construído e bem fundado no conhecimento da natureza. Um pouco mais adiante, assenta

Rossi, “A luta em favor de uma coletividade organizada de cientistas, financiados pelo Estado

ou por outras instituições de utilidade pública, e a tentativa de criar uma espécie de

internacional da ciência foram levados adiante por Bacon, com extrema coerência, durante

toda a sua vida”. (ROSSI, 2006, p. 122). Em nossa consideração, esse posicionamento de

Bacon ao propor uma ciência dialógica, colaborativa, agregadora e não „individualizadora‟ ou

individualista, pode muito contribuir com o nosso tempo, inclusive com os estudos a respeito

da natureza e do meio ambiente. Nos termos de Rossi,

A partir dessa identificação da atividade científica com uma obra de

colaboração e com uma sucessão de pesquisas que necessita, para viver, de

instrumentos técnicos, de contatos humanos, de trocas contínuas e da

“publicidade” dos resultados, nascia a exigência de um método rigoroso,

formulado em uma linguagem compreensível e intersubjetiva que pudesse

fornecer regras à atividade humana e que tivesse condições de assegurar seu

progresso. (ROSSI, 2006, p. 125)

Conforme a citação de Rossi, o progresso da ciência está relacionado com a

colaboração entre pesquisadores e instituições de pesquisas, com o uso de instrumentos

técnicos, com as trocas contínuas de saberes, com o estabelecimento de um método, com a

divulgação dos resultados oriundos das pesquisas, mas também com o uso de uma linguagem

que permita acesso e compreensão. A Esfinge costumava ocupar o cume das montanhas de

Tebas. Habitava o alto. Certamente, lugares inacessíveis e dificultosos. A ciência, sugere

Bacon, precisa descer do cume da montanha e atender as necessidades gerando soluções para

o mundo dos homens. Dentro da perspectiva de uma linguagem clara, acessível e objetiva que

sirva de canal ou elo entre a ciência e o homem, Bacon formula a teoria dos ídolos, identifica-

os, critica-os e propõe que nos afastemos deles.

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 69

Bacon, no Novum Organum, destaca quatro tipos de ídolos. São eles: da tribo, da

caverna, do foro e do teatro. No aforismo (I: 52), ele explica o que seriam os ídolos da tribo.

Afirma que eles “têm origem na uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus

preconceitos, (...) ou ainda na interferência dos sentimentos ou na incompetência dos sentidos

ou no modo de receber impressões”. São ídolos próprios da natureza humana. Alimentam os

preconceitos e são reforçados pela tradição em certa medida. Segundo Menna, “os ídolos da

tribo são aqueles que são próprios do gênero ou da “tribo” humana em geral; provêm das

limitações e debilidades da natureza humana”. (MENNA, 2011, p. 192). Cabe a ideia, por

exemplo, de que os sentidos são limitados.

No aforismo (I: 53), encontramos a explicação para os ídolos da caverna. Segundo

Bacon, eles “têm origem na peculiar constituição da alma e do corpo de cada um; e também

na educação, no hábito ou em eventos fortuitos”. A fronteira entre os ídolos da tribo e os

ídolos da caverna é bastante tênue. Esse tipo de ídolos também se relaciona com as esferas da

tradição. É próprio de cada um, mas pode incorrer em diversas consequências, frente à

educação que se adquire, os hábitos que são ensinados, etc. Acerca dessa classe de ídolos,

escreve Menna, “os ídolos da caverna são em parte inatos (“devidos à natureza própria e

singular de cada um”) e em parte adquiridos (“educação”, “autoridade”). (MENNA, 2011, p.

194). É preciso despojar-se de tais ídolos. No aforismo (I: 58), Bacon justifica porque

devemos nos livrar dos ídolos da caverna. Pois, eles “provêm de alguma disposição

predominante no estudo, ou do excesso de síntese ou de análise, ou do zelo por certas épocas,

ou ainda da magnitude ou pequenez dos objetos considerados”. E alerta em seguida que “todo

estudioso da natureza deve ter por suspeito o que o intelecto capta e retém com predileção”.

Pois, conforme apresentamos no capítulo anterior, não podemos esquecer que a natureza é

complexa e superior ao intelecto.

Os ídolos do foro são descritos por Bacon no aforismo (I: 59). De acordo com o

filósofo, é preciso muito cuidado com essa classe de ídolos. Pois, eles “são de todo os mais

perturbadores: insinuam-se no intelecto graças ao pacto de palavras e nomes”. Têm a ver com

a linguagem. Acerca deles complementa Menna,

Os ídolos do foro estão relacionados a problemas da linguagem (I: 43). Seu

nome – „do foro‟ ou „do „mercado‟ – provém do fato de que os homens,

graças à sua capacidade de discurso, se reúnem em lugares públicos com a

finalidade de falar. Para Bacon, estes ídolos surgem da confusão originada

pelo uso de termos imprecisos, ou mal definidos, ou aplicados a coisas

inexistentes. (MENNA, 2011, p. 194).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 70

Quanto aos ídolos do teatro, de acordo com os aforismos (I: 61), argumenta Bacon,

“não são inatos, nem se insinuaram às ocultas no intelecto, mas foram abertamente incutidos e

recebidos por meio de fábulas dos sistemas e das pervertidas leis de demonstração”. Esse

grupo de ídolos se refere aos sistemas filosóficos predecessores a Bacon. Nos termos de

Menna, “São os dogmas “fixados na mente” que derivam das falsas doutrinas filosóficas e das

falsas demonstrações. O nome destes ídolos – „do teatro‟ – provém do fato de que Bacon

considera os sistemas filosóficos como fábulas ou fantasias representadas no teatro do

mundo”. (MENNA, 2011, p. 195). Marilena Chaui, também desenvolve análise acerca da

teoria baconiana dos ídolos. Segundo ela, para Bacon, esses quatro tipos de ídolos ou de

imagens corroboram para que opiniões e preconceitos sejam difundidos e cristalizados. Eles

atrofiam a verdade. Vejamos o que acrescenta Chaui.

Em relação aos ídolos da caverna, eles têm a ver com “as opiniões que se formam em

nós por erros e defeitos de nossos órgãos dos sentidos”. Já os ídolos do fórum – ou foro –,

“são as opiniões que se formam em nós como conseqüência da linguagem e de nossas

relações com os outros”. Os ídolos do teatro dizem respeito às “opiniões formadas em nós em

decorrência dos poderes das autoridades que nos impõem seus pontos de vista e os

transformam em decretos e leis inquestionáveis”. Chaui distingue o fórum do teatro. Enquanto

o primeiro é lugar das discussões e dos debates públicos, era assim, inclusive na Roma

Antiga. O segundo, por sua vez, “é o lugar em que ficamos passivos, onde somos apenas

espectadores e receptores de mensagens”. Por fim, os ídolos da tribo. De acordo com Chaui, a

tribo se refere a um agrupamento de pessoas em que todas possuem a mesma origem, o

mesmo destino, as mesmas características e os mesmos comportamentos. Eles se caracterizam

pelas “opiniões que se formam em nós em decorrência da natureza humana. A demolição dos

ídolos é, portanto, uma reforma do intelecto, dos conhecimentos e da sociedade”37

, encerra

Chaui.

Após descrever os quatro tipos de ídolos que interferem e perturbam o intelecto,

utilizou-se da pena Bacon, no aforismo (I: 68), e escreveu: “Por decisão solene e

inquebrantável todos [os ídolos] devem ser abandonados e abjurados. O intelecto deve ser

liberado e expurgado de todos eles (...)”. A reforma do saber não poderia tornar-se alheia aos

problemas da linguagem. É preciso, faço aqui uma analogia com o mito da Esfinge

interpretado pelo filósofo em A sabedoria dos antigos, que as pessoas, os homens comuns –

por via da educação que visa o progresso – sejam capazes e adquiram o poder de, igualmente

37

Todas as citações de Chaui, assentadas nesse parágrafo, estão em: (CHAUI, 2006, p. 126).

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 71

a Édipo, desvendarem os enigmas da Esfinge. A falta de clareza na linguagem, sem dúvida,

compromete a colaboração entre os pesquisadores e prejudica o projeto baconiano de ciência,

tal como consta na tese de Da magia à ciência, a ciência deve ser de “caráter público,

democrático, colaborativo; é feita de contribuições individuais que visam um sucesso comum,

patrimônio de todos”. (ROSSI, 2006, p. 128).

Portanto, nesse capítulo percorremos o seguinte caminho. No primeiro momento,

mostramos a trajetória que a ideia de progresso percorreu desde os gregos até o Renascimento

e início da modernidade. Para isso nos serviu de referência a obra de Dupas intitulada O mito

do progresso. No segundo momento, apresentamos os problemas que dificultavam a

ampliação do conhecimento. Vimos que estas dificuldades ao avanço da ciência radicavam

em três grupos distintos: teólogos, políticos e acadêmicos. Ao apontar esses grupos que em

larga medida serviam de ferrolhos ao avanço da ciência, Bacon defendeu a importância de se

avançar no conhecimento da natureza. Criticou a falta de interesse dos Estados em não

investirem em estudos aprofundados nem em seus pesquisadores. Criticou duramente a

arrogância na produção do conhecimento e, paralelamente, propôs que se vincule o

conhecimento ao bem da humanidade e aos valores éticos. Pois, de acordo com o que escreve

Rossi em Da magia à ciência,

a ciência não é, portanto, para Bacon, uma realidade cultural indiferente aos

valores éticos: alguns, ele escreve, dedicam-se à ciência apenas devido a

uma curiosidade superficial, outros, para obter reputação, outros ainda, para

se sobressaírem nas disputas; pouquíssimos buscam-na para seu verdadeiro

fim que é a vantagem do inteiro gênero humano. (ROSSI, 2006, p. 129).

Na terceira parte procuramos apresentar uma série de nuances que dão corpo ao

projeto de reformulação do conhecimento concebido por Bacon. Por exemplo, entre os

diversos aspectos trabalhados, vimos que o saber meramente professoral e repetitivo é

fortemente criticado pelo filósofo. É preciso que se provoque a curiosidade e a capacidade de

se inventar coisas novas. Vimos que o inglês sugere que as universidades alinhem as suas

pesquisas com a realidade concreta da sociedade, que os seus exercícios tenham

correspondência com a vida prática, que se volte para o estudo das coisas mesmas, etc. O

programa de reforma do conhecimento baconiano, segundo escreve Bernardo de Oliveira,

procura transformar as simples e limitadas experiências e observações em

um empreendimento organizado e sistemático para aumento do

conhecimento e do controle sobre a natureza, seja apontando as falhas de

outras práticas experienciais, seja na transposição de práticas investigativas

de outros campos para o terreno da filosofia natural, ou no detalhamento de

Capítulo 2 - O progresso do conhecimento, o bem da humanidade e a obediência à natureza 72

passos que tornassem mais seguro e efetivo seu desenvolvimento.

(OLIVEIRA, 2002, p. 159).

Esta perspectiva de se produzir conhecimento cujo objetivo fosse principalmente a

descoberta de coisas novas, certamente levou Bacon a criticar os ídolos, os preconceitos, a

incapacidade de se refletir acerca dos dados que recebemos da tradição, inclusive os sistemas

filosóficos estabelecidos. Em contra partida, Bacon defendeu o intercâmbio e diálogo

constante entre os pesquisadores. Defendeu o uso de uma linguagem clara, objetiva e

acessível como instrumento de comunicação da ciência e dos seus resultados. Atacou a

genialidade individual – embora reconhecesse as contribuições que pudessem advir dos

indivíduos estudiosos da natureza – em detrimento da valorização da pesquisa colaborativa,

de caráter público, democrático, que considere a esfera do possível e que se preocupe

permanentemente com o bem estar de todos. Estes foram alguns entre outros aspectos que

abordamos na terceira parte deste capítulo. Consideramos, portanto que, provavelmente,

somente um julgamento apressado e distanciado do texto baconiano, nos levaria a afirmar que

a noção de progresso, concebida pelo autor do Novum Organum, caminha apenas numa única

direção, sem deixar de reconhecer a outra face da moeda, ou seja, a decadência, o naufrágio e

a angústia. Que a noção de progresso abarca consigo o germe ou o vírus da destruição da

natureza. Que o progresso defendido por Bacon é a causa dos danos e males que têm assolado

os tempos posteriores. A ciência e a técnica necessitam avançar, mas há limites. Se o homem

negligenciar a responsabilidade de “adentrar-se em si mesmo ou chamar a si mesmo às contas

(BACON, 2007, p. 91)”, as consequências podem ser desastrosas. A Esfinge, ao invés de

Musa, tornar-se-á monstro que mata e destrói. Essa é uma questão que trabalharemos no

próximo capítulo.

73

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais

“O homem inculto não sabe o que é adentrar-se em si mesmo ou chamar a si mesmo às contas ...”

(BACON, 2007, p. 91)

“No han faltado, tampoco, críticas al proyecto baconiano, en especial aquellas que lo acusan de

desarrollar una ciencia de ingenieros, esto es, un saber que sólo propende al desarrollo de artefactos

y obras, las que lo acusan de haber subordinado la verdad a la utilidad, o las que desechan su método

inductivo, entre otras acusaciones”.

(DUSSÁN, 2009, p. 100)

Nesse último capítulo, haja vista a interdisciplinaridade, o objetivo é problematizar a

recepção da filosofia baconiana nas discussões ambientais. Em meio a essas discussões,

encontramos autor como é o caso do sociólogo português, Boaventura, no qual há

convergência entre pontos de sua sociologia e aspectos que são encontrados na filosofia de

Bacon. Por exemplo, a adequação entre teoria e prática. A valorização da diversidade de

experiências. A função que deve cumprir o conhecimento científico. No entanto, uma série de

autores, entre eles, Hans Jonas, Mauro Grün, Andrew Brennan, Carolyn Merchant,

empreendem crítica e divergem do pensamento baconiano. Há problema em criticar e

divergir? Claro que não. O problema consiste no modo como se dá ou como se faz tal crítica.

Na verdade, esses autores incorrem num problema de interpretação e forjam uma imagem de

Bacon que não corresponde ao seu pensamento. Tais interpretações findam contribuindo para

preconceitos em torno do pensamento baconiano.

Em Jonas, Bacon é acusado de elaborar uma noção de progresso, cujo desdobramento

e efetivação nos séculos seguintes se tornou uma ameaça. Uma ameaça para o homem. Uma

ameaça para a natureza. Uma ameaça para o meio ambiente, ferindo, assim, o direito de

existir das gerações futuras. O desenvolvimento da técnica moderna, segundo Jonas, está

desenfreado. É preciso uma nova ética, a chamada ética da responsabilidade. Jonas menciona

Bacon, na crítica que faz ao poderio concretizado pela técnica moderna, porém não o cita.

Esse é um problema que identificamos. Brennan, ao prefaciar Em busca da dimensão ética da

educação ambiental, afirma que a imagem símbolo da ciência moderna, sobretudo concebida

por Bacon e Descartes, é a máquina de terraplanagem. A imagem da máquina que devasta a

floresta e arrasta à força tudo que vem pela frente, Segundo Brennan, se equipara aos

pensamentos desenvolvidos pelos dois filósofos setecentistas. Bacon seria uma espécie de

„pregador‟ da destruição da natureza. Merchant sustenta que Bacon pensa a natureza de modo

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 74

machista. A natureza é fêmea, frágil, por isso pode ser torturada e dominada. Grün, por sua

vez, vê em Bacon um autor aistórico, que rejeita em absoluto a tradição e os ensinamentos dos

antigos. O passado em nada contribui. Levando em consideração estas interpretações,

pergunta-se: os danos causados à natureza, os dilemas suscitados pelo avanço da ciência e da

técnica, têm mesmo como matriz originária a filosofia do autor do Novum Organum? Foi

Bacon um defensor da falta de limites para os avanços da ciência e da técnica?

Com o objetivo de discutir essas questões, estruturamos o texto da seguinte maneira.

Num primeiro momento, apresentamos sinais que apontam aspectos da filosofia baconiana em

Boaventura. Alguns requisitos apontados por Boaventura, no que diz respeito à construção de

uma ciência adjetivada nova, podem ser encontrados em Bacon. Boaventura afirma, por

exemplo, que a nossa racionalidade prima pelo fazer e pelo agir em detrimento do

compreender. Para Bacon, a intervenção, modificação, transformação ou, se quisermos um

termo mais na moda, a ação antrópica só deveria acontecer na natureza após uma

compreensão ou interpretação adequada da mesma. Boaventura, em A sociologia das

ausências, critica fortemente o desajuste entre as teorias e as suas aplicações na prática. O

inglês não pensou distante disso. Não só em A sabedoria dos antigos, de modo especial o

mito da Esfinge, como no Novum Organum – ao tratar da importância do trabalho da mente e

trabalho da mão – também em O progresso do conhecimento, em todos esses textos Bacon

claramente propõe que haja harmonia e adequação entre o conhecimento teórico e a realidade

concreta, a realidade da vida. São marcas do pensamento baconiano: crítica ao lucro

exacerbado. Crítica à falta de investimentos por parte dos Estados em pesquisa. Valorização

dos pesquisadores. Crítica à vaidade e à arrogância na academia. Importância do intercâmbio

entre pesquisadores. Proposição de que a ciência seja um encontro entre colaborações

individuais – mas não individualistas –, esforços gigantescos para se conhecer adequada e

amplamente a realidade natural, mas, sobretudo, a solução de problemas tendo em vista o

melhoramento das condições de vida da humanidade.

Num segundo instante, discutiremos as preocupações de Hans Jonas e a crítica

superficial, equivocada e inadequada que ele faz a Bacon. Veremos que o foco de sua análise

se concentra no avanço da técnica moderna. Como ele mesmo afirma, “As novas faculdades

que tenho em mente são, evidentemente, as da técnica moderna” (JONAS, 2006, p. 29).

Segundo Jonas, a técnica moderna avançou de tal maneira que nos encontramos diante de uma

grande possibilidade de catástrofe, o que se faz necessário pensar uma nova ética. Pois, as

éticas tradicionais não dão conta do dilema que envolve, principalmente, os avanços da

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 75

técnica, a possibilidade de catástrofe e a possibilidade de inexistência das gerações futuras.

Nesse contexto de crítica aos avanços da técnica moderna, Jonas insere Bacon. A tese é que o

panorama ou “paradigma” que fundamenta o desenvolvimento da técnica e da ciência, e que

atinge agora índices alarmantes, constituindo-se em ameaças para a natureza, para o homem

do presente e para as gerações futuras, deve-se, em larga medida, a Francis Bacon. Não

obstante a relevância da reflexão de Jonas, sobretudo no que toca às discussões em matéria de

ética ambiental, nos parece exagero admitir que as ameaças que circundam o homem e a

natureza em virtude do avanço tecnológico sejam por conta da filosofia baconiana.

Por fim, na terceira e última parte, trabalharemos as interpretações de Brennan e Grün.

O primeiro concebe a ciência moderna – e nesse contexto insere Bacon e Descartes como

mentores – semelhante a uma máquina de terraplanagem, conforme já havíamos dito. Grün,

afirma que Bacon rejeita completamente a tradição. Que o passado não nos acrescenta nada.

O que mais nos causa estranheza nas críticas de Jonas, Brennan e Grün, é que eles não citam

os textos de Bacon. Grün cita apenas um trecho do Novum Organum, mas se baseia

fundamentalmente nas ideias de Merchant. Portanto, é dentro dessa conjuntura que se dará a

análise e o objeto de reflexão deste terceiro e último capítulo.

3.1 Considerações acerca das epígrafes iniciais, rastros e ecos da filosofia baconina na

sociologia de Boaventura

Iniciamos o capítulo recorrendo a duas epígrafes. A primeira é de Dussán. Nela, ele

afirma que não tem faltado críticas a Bacon. Muitas dessas críticas acusam o filósofo de ter

desenvolvido uma ciência de engenheiros cujo fim está direcionado somente a criar

instrumentos e objetos. Uma ciência que, em última instância, subordina a verdade à utilidade.

A segunda epígrafe, no entanto, é do próprio Bacon, e por si só, contraria em larga medida o

tom das críticas denunciadas por Dussán. De saída, o filósofo nos situa, que tais críticas não

correspondem com o que ele pensou a respeito da natureza e do avanço da ciência e da

técnica. Conforme mostramos no primeiro capítulo, para Bacon, o domínio da natureza está

atrelado a duas esferas. De um lado as ciências. Do outro, as artes. As ciências e as artes são

as duas vias em função das quais o homem se relaciona com a natureza e a pode “controlá-la”.

Assim, aperfeiçoar e fazer avançar o conhecimento são imprescindíveis para que a vida

humana alcance benefícios e longevidade. Entretanto, destaca o inglês, o processo de

ampliação do conhecimento não pode ser desvinculado da reflexão. Por isso a pertinência da

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 76

segunda epígrafe. Os homens cultos – e deste rol fazem parte os filósofos e cientistas –

precisam refletir e avaliar suas responsabilidades e funções. Os operadores da ciência

precisam adentrar-se em si mesmos e chamarem a si mesmos às contas. Uma vez que os

homens incultos, ao contrário, não teriam essa capacidade. O que fica claro, portanto, é que,

para o Lord, reflexão e ação compõem um par.

Acerca das críticas que geralmente são atribuídas a Bacon, Dussán salienta que duas

são as leituras que se sobressaem. A primeira toma como foco de interesses os aspectos

epistemológicos, especialmente, “el método inductivo de la ciencia”. Já a segunda, sobretudo,

num tom mais severo de crítica e até de certo „desprezo‟,

es la acusación que se ha hecho a Bacon de promover un tecnicismo que se

expande desde la producción de artefactos hacia los demás dominios

humanos sin restricción alguna, incluidos los dominios ético y político. De

acuerdo com la interpretación que de él hicieran Horkheimer y Adorno

(1994, p. 60), Bacon aparece como promotor del utilitarismo o como el

germen del dominio de la razón instrumental. (Dussán, 2009, p. 100).

Interpretações desta natureza, pondera Dussán, forjam uma imagem de Bacon, que

apresenta o último como sendo um autor de pouca importância tanto para o pensamento

filosófico quanto para o pensamento científico. O que não é verdade. Segundo Dussán,

“Bacon concibe el proyecto de renovación metodológica de la filosofía natural y su posterior

efecto en el bienestar humano a partir de la transformación de las condiciones materiales,

enlazado íntimamente a una reforma moral de la filosofía y de los filósofos” (DUSSÁN,

2009, p. 100). A proposta de Bacon no sentido de reformular a filosofia natural, abrir novo

caminho que possibilite um conhecimento progressivo e adequado da natureza, não deixa de

considerar os limites que são oriundos das esferas epistemológica e ética. Além disso, é

extremamente importante ressaltar que, o avanço da ciência e da técnica não é para perturbar,

nem prejudicar o homem. Mas, melhorar as condições de vida sobre o planeta. A ciência e a

técnica deveriam proporcionar, o que poderíamos chamar em termos atuais, „qualidade de

vida‟. No Progresso do conhecimento, seu autor declara: “que apliquemos nosso

conhecimento de modo que nos dê repouso e contentamento, e não inquietude ou

insatisfação”. (BACON, 2007, p. 22). Esse traço, pode-se dizer, é uma espécie de fio

condutor na filosofia baconiana. Não há como deixar de reconhecer a dimensão ética que

subjaz ou que acompanha a filosofia do Lord. Acrescenta o filósofo:

mas antes aspirem os homens a um avanço ou progresso ilimitados em

ambas [teologia e filosofia[natural]]; cuidando, isso sim, de aplicá-las à

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 77

caridade, e não ao envaidecimento; ao uso, e não à ostentação; e também de

não misturar ou confundir imprudentemente esses saberes entre si. (BACON,

2007, p. 25).

Analisando as duas citações, encontramos pontos relevantes do pensamento de Bacon,

mas que não são lidos quando se discute natureza, progresso técnico-científico e tantos outros

temas ligados ao meio ambiente. Para o inglês, a aplicação da técnica e da ciência deveria

visar repouso e contentamento. Não o contrário. Uma possibilidade para tornar isso real seria,

de um lado, distinguir os saberes, não misturar teologia e filosofia, portanto, separar religião e

ciência – coisa que Jonas não faz, pois fundamenta sua ética exatamente sobre bases religiosas

–. Aspirar ou desejar o progresso – até mesmo na teologia –, mas agregar a ele caridade, não

vaidade, não ostentação, portanto, uso. O progresso, enquanto resultado dos avanços técnico-

científicos, assume estado de utilidade, na medida em que os conhecimentos são aplicados ao

uso e à prática. No ato de operar essa passagem a caridade não faz mal. O que prejudica a

utilidade do saber, conforme o inglês, seria a vaidade e à ostentação. Delas o pesquisador, o

intérprete da natureza precisa se afastar.

Mais adiante, ao apontar uma das causas que levou Roma à ruína – o apego à riqueza –

, escreve o inglês, “mas estes e todos os demais males cessarão quando cessar o culto ao

dinheiro...” (BACON, 2007, p. 36). Aspectos como o desapego ao dinheiro e ao lucro,

alinhamento entre produção de conhecimento e aplicação à realidade, orientação para que o

saber seja construído e os resultados postos na perspectiva do bem estar coletivo, são marcas

da filosofia baconiana. Marcas essas, que parecem ser ignoradas por autores do meio

ambiente, como é o caso de Jonas, Brennan e Grün, por exemplo. Referindo-se à filosofia

baconiana, Dussán afirma, “su propósito último es hacer que la filosofía llegue al hombre

común y corriente” (DUSSÁN, 2009, p. 103). Dussán completa e cita Bacon, “al que no se

llega si no es por medio de lo útil y de las obras” (BACON, 1985, p. 77). Quando Bacon

pensa que os resultados da ciência só serão frutíferos na medida em que alcancem os homens

comuns, esse é um traço que se vê, por exemplo, em Um discurso sobre as ciências, de

Boaventura. Ali, o sociólogo português propõe que os resultados da ciência se voltem para o

senso comum. Ou seja, o conhecimento será frutífero quando conseguir alcançar as pessoas

comuns em suas realidades.

De acordo com a análise de Dussán, o objetivo da reforma baconiana seria fazer com

que a filosofia se afastasse da esterilidade, se tornasse frutífera e fizesse com que os seus

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 78

frutos alcançassem os homens comuns. Esses, aliás, não foram ignorados pela filosofia do

inglês. Escreve Dussán nesse sentido que,

El hombre común se convierte en parte de la construcción de conocimiento,

y se forma parte desde la posición de quien juzga dicha construcción. Así, el

conocimiento comienza a romper sus fronteras y se abre a actores que antes

no habían sido tenidos en cuenta. Bacon propone un conocimiento que no

está centrado más en las discusiones de las academias ni en el saber de

iluminados (magia y alquimia), sino que se hace público en la medida en que

los hombres comunes lo valoran. (DUSSÁN, 2009, p. 103).

Para nós, a discussão encabeçada por Dussán a respeito do papel que o homem comum

assume na filosofia de Bacon é extremamente relevante. Sobretudo, porque nos debates que

tematizam sociedade, natureza e meio ambiente, o homem comum tem sido convocado a ser

não apenas ator, mas protagonista. Lembramos aqui, por exemplo, de Boaventura. Este, nas

discussões que empreende a respeito de problemas e questões sócio-ambientais, defende

estreita proximidade entre ciência e senso comum, adequação entre teoria e aplicação à

realidade, pois, na sua concepção, “nosso primeiro problema [especialmente] para quem vive

no Sul é que as teorias estão fora de lugar: não se ajustam realmente a nossas realidades

sociais” (SANTOS, 2007, p. 19). O sociólogo português admite amplamente a importância do

homem comum na relação que envolve a natureza, a sociedade e a construção do saber.

Vejamos o que ele declara.

O que estou tentando fazer aqui hoje é uma crítica à razão indolente,

preguiçosa, que se considera única, exclusiva, e que não se exercita o

suficiente para poder ver a riqueza inesgotável do mundo. Penso que o

mundo tem uma diversidade epistemológica inesgotável, e nossas categorias

são muito reducionistas. (SANTOS, 2007, p. 25).

Essa postura de Santos, apresenta duplo aspecto. Por um lado, critica e reforça a visão

que se tem da chamada ciência moderna, ciência essa que opera dicotomicamente: separa

sujeito e objeto, homem e natureza, mente e corpo, ciência e senso comum, etc.. Por outro,

considera em larga medida o papel das pessoas ou, se quisermos, dos atores comuns. Não

perder de vista “a riqueza inesgotável do mundo”, segundo o autor de A sociologia das

ausências, significa não fechar os olhos para o papel que exercem os grupos, as pessoas

comuns. Ainda nessa direção, pontua Santos, “a meu ver, o primeiro desafio é enfrentar esse

desperdício de experiências sociais que é o mundo”. (SANTOS, 2007, p. 24). Na sua

avaliação, é preciso que se considere o particular e o local, uma vez que estes são tornados

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 79

invisíveis, descartáveis, desprezados. É necessário construir uma ciência que considere o

particular, o local e o invisível em contraposição ao global, ao universal e ao hegemônico.

Conforme o autor português, é fundamental que “o saber científico possa dialogar com

o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações

urbanas marginais, com o saber camponês. (SANTOS, 2007, p. 33). Sem dúvida, à luz do que

tem proposto Santos, as pessoas comuns não podem ser tornadas invisíveis. Elas têm um

papel. Elas desenvolvem ações. Se pensarmos nas comunidades indígenas – esse inclusive é

um exemplo que ele mesmo apresenta – elas são extremamente relevantes no tocante à

conservação da biodiversidade amazônica. Até porque, destaca o português, o modo como

essas comunidades se relacionam com o ambiente foge às nossas categorias hegemônicas e

dicotômicas de ver as coisas muita das vezes. O tempo para nós não é o mesmo que para eles.

Isso conta bastante.

Não queremos incorrer em anacronismo. Sabemos que o foco, as preocupações e

inquietações de Bacon eram extremamente distintas das de Santos. Porém, levando em

consideração as discussões que o sociólogo português empreende a respeito dos temas

„natureza e sociedade‟, recorrermos brevemente à sua sociologia porque, embora ele não seja

um estudioso da filosofia de Bacon, é possível encontrar nas suas proposituras marcas, sinais

e ecos do pensamento baconiano. Ambos defendem alinhamento entre teoria e prática. Ambos

defendem a valorização da diversidade de experiências. Bacon, não obstante as limitações do

seu tempo, defendia que se viajasse e que se desse volta ao mundo. Na Nova Atlântida

encontramos a ideia de se lançar para fora. De períodos em períodos partia de Bensalém

embarcação cujo destino era conhecer outras culturas. Dialogar com o diferente era

fundamental. Santos, claro, em outro tempo, não só defende a diversidade de experiências

como desenvolveu pesquisa em diversas partes do mundo, inclusive países orientais e

africanos. Qual objetivo? Aprender com as diferenças, ampliar o conhecimento e buscar cada

vez mais construir uma ciência que não seja hegemônica, que não seja uma ditadura dos

países mais ricos, mas que seja dialógica, inclusiva e que traga a invisibilidade para a esfera

do visível.

Em A sociologia das ausências, por exemplo, Santos expressa: “nossa racionalidade se

baseia na idéia da transformação do real, mas não na compreensão do real. E este é nosso

problema hoje: a transformação sem compreensão está nos levando a situação de desastre”.

(SANTOS, 2007, p. 28). Sem dúvida, esse texto do português está carregado de uma crítica à

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 80

racionalidade oriunda ou decorrente da ciência moderna. Santos denuncia que a nossa

racionalidade tem priorizado a ação e a transformação em detrimento da compreensão. Ora!

Conforme mostramos no primeiro capítulo dessa dissertação, Bacon, no seu Novum Organum,

alerta: “O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata, pela

observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza; não sabe nem

pode mais”. (I: 1). Na compreensão do inglês, o agir não deve preceder à compreensão. O

homem é ministro, servidor, intérprete e agente na natureza. Todavia, sua ação deve

considerar os limites: epistemológico e ético. As intervenções na natureza devem ser baseadas

no conhecimento adequado sobre ela, sobre suas leis, e ter como fim beneficiar a humanidade.

Segundo Santos, o conhecimento científico deve manter com o senso comum uma relação de

proximidade. Ciência e senso comum formam uma dicotomia que precisa ser desfeita. Bacon

muito antes propôs estreita relação entre ciência e humanidade, ou, assentando em outros

termos, ciência e beneficiamento da sociedade.

Essa idéia – que a ciência deve ser desenvolvida para beneficiar a

humanidade/sociedade – é reforçada na Nova Atlântida por meio da Casa de Salomão e dos

resultados que esta fornece à sociedade de Bensalém. Conforme Bacon, o saber adquirido

deve ser posto a serviço da coletividade e propiciar bem estar para todos, independentemente

da etnia, posição social, econômica ou política. Jonas, Merchant, Grün e Brennan, ao que tudo

indica, não interpretam a Nova Atlântida dessa forma. A Nova Atlântida, embora seja um

texto do âmbito da ficção, todavia, indiscutivelmente é também um texto filosófico.

Provavelmente, por meio desse texto fictício, Bacon tivesse como pretensão atingir um

público maior e distinto do público especializado, acadêmico. Uma vez que, para ele, era

muito importante que as vias do conhecimento fossem acessíveis.

Ainda sobre os “encontros” entre Bacon e Santos, no prefácio de Um discurso sobre

as ciências, Santos afirma: “defendo que todo o conhecimento científico é socialmente

construído, que o seu rigor tem limites inultrapassáveis”. (SANTOS, 2008, p. 9). Para o

português, a construção do conhecimento não é um ato isolado nem individual. Ao

retrocedermos à filosofia de Bacon, vemos que ele criticou severamente a autoridade e a

predominância do gênio/indivíduo na construção do saber. Nesse sentido, reforça Rossi, “os

procedimentos cotidianos dos artesãos, dos engenheiros, dos técnicos, dos navegantes, dos

inventores são elevados à dignidade de fato cultural, sendo que homens como Bacon, Harvey,

Galileu reconhecem explicitamente sua “dívida” para com os artesãos”. (ROSSI, 2006, p. 84).

A citação mostra bem que, para Bacon, o diálogo entre pesquisadores, o intercambio entre

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 81

eles, a colaboração e o compartilhamento de experiências são extremamente proveitosos. E

não somente entre os acadêmicos. Os artesão e homens que dominam determinadas técnicas

podem muito contribuir com a ampliação do conhecimento. No processo de estudo e

interpretação da natureza, destaca Bacon, “conviene ver las diversas glossas y opiniones que

se han dado sobre la naturaleza”, (BACON, 1988, p. 115). Sobretudo, porque na concepção

de Bacon, a ciência, insiste Rossi, é “uma obra de colaboração e com uma sucessão de

pesquisas que necessita, para viver, de instrumentos técnicos, de contatos humanos, de trocas

contínuas e da “publicidade” dos resultados” (ROSSI, 2006, p. 125). A ciência na concepção

baconiana tem “caráter público, democrático, colaborativa, é feita de contribuições

individuais [mas] que visam um sucesso comum, patrimônio de todos”. (ROSSI, 2006, p.

128).

Pode-se afirmar que, para Bacon, a ciência é uma construção social na qual as pessoas

comuns e a valorização da diversidade de experiências são consideradas. Para Santos, a

relação entre ciência e senso comum deve ser estreita. Ou seja, os resultados produzidos pela

primeira precisam está conectados com as necessidades sociais. No final do caminho, ciência

e senso comum precisam se encontrar. Enquanto em Santos ciência e senso comum mantém

estreita relação, em Bacon, deve haver vínculo estreito entre ciência e humanidade. O

conhecimento sobre a natureza, pode-se dizer, é teleológico. Sua finalidade não é o

envaidecimento nem a vanglória acadêmica, mas o melhoramento das condições de vida das

pessoas. Portanto, os pensamentos de ambos são bastante parecidos.

Em virtude, portanto, desses aspectos que foram elencados acima acerca da filosofia

baconiana, cabe o posicionamento de Paolo Rossi:

Os pós-modernos pensam que a modernidade pode caracterizar-se como a

época da autolegitimação do saber científico e da plena e total coincidência

entre verdade e auto-emancipação. Pensam também a modernidade como a

época do tempo linear caracterizada pela “superação”. Pensam ainda que o

moderno é a época de uma razão forte... Pensando essas coisas, pensaram

mal. (...) Não leram os modernos, mas os manuais que falam deles. (ROSSI,

2000, pp. 116-117).

Não são poucas as críticas empreendidas à ciência moderna. Contudo, ainda nos

movimentamos muito sobre os métodos, procedimentos e conceitos que foram fornecidos por

ela. O próprio Boaventura escreve que o campo teórico sobre o qual trabalhamos fora

elaborado por cientistas que viveram entre o século XVIII e início do século XX. É verdade

que precisamos pensar nossos dilemas, precisamos pensar nossa relação com a natureza e o

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 82

modo como construímos nossos ambientes. Assim, conceitos são revistos, modificados,

reinventados. Porém, nos alerta Paolo Rossi, seria prudente pelo menos se estudar com

cuidado os denominados autores modernos. Jonas, Brennan e Grün, provavelmente, puseram

num segundo plano o alerta de Rossi.

3.2 O Foco da análise de Hans Jonas

O principal objeto da análise de Jonas é a técnica moderna. Escreve ele, “as novas

faculdades que tenho em mente são, evidentemente, as da técnica moderna. Portanto, minha

primeira questão é a respeito do modo como essa técnica afeta a natureza do nosso agir”

(JONAS, 2006, p. 29). Segundo Jonas, o homem nunca esteve desprovido de técnica. Assim,

durante todos os períodos da história da humanidade se percebe o homo faber. Da

modernidade para cá, o fazer humano que envolve a ciência e a tecnologia tem alcançado

proporções tão grandiosas de modo que o agir modifica-se ligeira, permanente e

distintamente. Os efeitos da técnica moderna, a preocupação com as ações que decorram ou

estejam ligadas a esse feitio constituem a grande preocupação do autor alemão. Nos seus

termos, “a técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais

novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais enquadrá-

las” (JONAS, 2006, p. 39). O saber técnico avançou de tal maneira que não há como evitar

intervenções diversas e com consequências inúmeras sobre a natureza, sobre o ambiente.

Aliás, assevera o alemão, “a violação da natureza e a civilização do homem caminham de

mãos dadas” (JONAS, 2006, p.32).

Segundo Jonas, a técnica antiga é distinta da técnica moderna. Qual diferença se pode

apontar entre uma e outra? Referindo-se à primeira, declara Jonas. “Àquela época, como

vimos, a técnica era um tributo cobrado pela necessidade, e não o caminho para um fim

escolhido pela humanidade – [a técnica era] um meio com um grau finito de adequação a fins

próximos, claramente definidos” (JONAS, 2006, p. 43). Temos aqui a caracterização da

técnica antiga. A utilização da última estava voltada para as necessidades mais próximas e

pontuais. Percebe-se, portanto, que o alcance dela era limitado, local e curto. Já em relação à

técnica moderna, escreve Jonas: “hoje, na forma da moderna técnica, a techene transformou-

se em um infinito impulso da espécie para adiante [o progresso], seu empreendimento mais

significativo” (JONAS, 2006, p. 43). O deslocamento entre o suprir a necessidade e tornar-se

um impulso infinito da espécie faz com que a técnica moderna constitua-se objeto de

preocupação e análise. Esse deslocamento de modo irrecusável afeta e afetará sempre o agir.

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 83

O avanço da técnica moderna provocou profunda modificação entre as esferas natural e

artificial. De maneira que, encerra o alemão, “o natural desapareceu, o natural foi tragado pela

esfera do artificial” (JONAS, 2006, p. 44). A segunda natureza tem prevalecido.

O avanço tecnológico atingiu um estágio tal que, provavelmente, se consiga até driblar

a morte. Provavelmente se consiga “o privilégio de não mais ter que morrer”. O exemplo dado

por Jonas é do progresso na biologia celular. Afirma o autor de O princípio responsabilidade

que,

certos progressos na biologia celular nos acenam com a perspectiva de atuar

sobre os processos bioquímicos de envelhecimento, ampliando a duração da

vida humana, talvez indefinidamente. A morte não parece mais ser uma

necessidade pertinente à natureza do vivente, mas uma falha orgânica

evitável; suscetível, pelo menos, de ser em princípio tratável e adiável por

longo tempo. Um desejo da humanidade parece aproximar-se de sua

realização. (JONAS, 2006, p. 58).

Percebemos sem muita dificuldade que boa parte do que está posto nessa citação é

uma realidade. Não se conseguiu ainda evitar a morte totalmente. Mas, adiá-la, sim. Pacientes

com câncer, por exemplo, a depender do poder aquisitivo e do acesso a determinados centros

de tratamento têm conseguido pelo menos adiar a morte. O problema é que um efeito desta

natureza – adiar a morte – desemboca num dilema ético. O próprio Jonas nos incita a

questionar: quem teria acesso a esse tipo de proeza? Seria um resultado barato e disponível

efetivamente para todos? Quem poderá pagar pelo livramento da morte? Quais consequências

seriam causadas à natureza, ou, ao ambiente, se conseguíssemos definitivamente livrarmo-nos

desse mal? As respostas parecem óbvias. Os tratamentos mais sofisticados do câncer, por

exemplo, estão muito distantes de ser um benefício para a humanidade. Caso se descobrisse

uma técnica ou procedimento capaz de evitar a morte, só uma meia dúzia de pessoas

poderiam arcar com tal custo e alcançar o status da imortalidade.

Outro exemplo apontado por Jonas, diz respeito ao controle do comportamento.

Semelhante ao avanço da biologia celular, escreve Jonas:

O mesmo ocorre com todas as outras possibilidades quase utópicas que o

progresso das ciências biomédicas em parte já disponibiliza – traduzido em

poderio técnico – e em parte acena como possibilidade. Entre elas, o controle

de comportamento encontra-se consideravelmente mais próximo do estágio

de aplicação prática do que o caso, por enquanto ainda hipotético, que acabei

de discutir. (JONAS, 2006, p. 59).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 84

Com os exemplos apresentados, Jonas mostra que os avanços da técnica moderna

suscitam novos modos de agir e, por isso, trazem consigo a necessidade de se pensar uma

ética nova, completamente distinta das chamadas éticas tradicionais. A manipulação genética

também é uma marca do avanço da técnica moderna. “O homem quer tomar em suas mãos a

sua própria evolução, a fim não meramente de conservar a espécie em sua integridade, mas de

melhorá-la e modificá-la segundo seu próprio projeto” (JONAS, 2006, p. 61). O controle do

comportamento, o prolongamento da vida e a manipulação genética, de acordo com Jonas, são

exemplos de avanços tecnológicos, possíveis de serem aplicados na realidade, mas com um

agravante: o homem seria o próprio objeto dessas aplicações tecnológicas.

Todavia, não só o homem tornou-se objeto da técnica como também a natureza.

Conforme Jonas, a civilização da técnica alcançou poderes em larga escala de tal modo que

ampliou o potencial de destruição. Para o alemão, seria fundamental que houvesse

solidariedade, ligação e congruência entre os interesses do homem e o mundo orgânico. Em

virtude dos poderes tecnológicos incorporados às ações humanas, o meio ambiente está

degradado “(e em grande parte substituído por artefatos)” (JONAS, 2006, p. 229). A

civilização da técnica está consolidada e nessa conjuntura o homem findou se tornando

perigoso “não só para si, mas para toda a biosfera”. Homem e natureza estão separados. Jonas

declara que, “quando a luta pela existência frequentemente impõe a escolha entre o homem e

a natureza, o homem, de fato, vem em primeiro lugar. Mesmo que se reconheça à natureza a

sua dignidade, ela deve se curvar à nossa dignidade superior”. (JONAS, 2006, pp. 229-230).

A natureza tornara-se fortemente ameaçada em virtude do deslocamento entre a

ciência antiga e a ciência moderna. Em relação à primeira, afirma Jonas, “para Aristóteles, a

razão humana, graças à qual o homem se destacava da natureza, seria incapaz de lesar essa

mesma natureza pela sua contemplação” (JONAS, 2006, p. 231). Sob essa perspectiva, o

homem não significava uma ameaça para a natureza. A ciência antiga era contemplativa e a

técnica estava voltada somente para as necessidades pontuais.

Na modernidade, com efeito, assevera o alemão, “o intelecto prático emancipado, que

produziu a “ciência”, uma herança daquele intelecto teórico [vivo na ciência antiga],

confronta a natureza não só com o seu pensamento, mas com o seu fazer” (JONAS, 2006, p.

231). A problemática modifica-se completamente. O desenvolvimento do poder da técnica

moderna, a busca pelo progresso enquanto um impulso infinito da espécie e a ideia de

emancipação findaram não só potencializando a capacidade de ação do homem, como

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 85

também tornando o último uma ameaça, uma perturbação para a natureza e para si mesmo.

Nos termos de Jonas, “apenas com a superioridade do pensamento e com o poder da

civilização técnica, que ele traz consigo, foi possível que uma forma de vida, “o homem”,

fosse capaz de ameaçar todas as demais formas (e com isso a si mesma também)” (JONAS,

2006, pp. 230-231). Encerra o alemão, “com o homem, a natureza perturbou-se”.

Para Jonas, a técnica moderna torna-se motivo de preocupação porque ela modifica

radicalmente a esfera da ação do homem. Sem dúvida, isto incorre em consequências sérias e

abrangentes para o meio natural. Em virtude da ação do homem potencializada pela

tecnologia, ou da necessidade de se regular estas ações, se estabeleceu a(s) ética(s). Porém,

destaca Jonas, a realidade decorrente da civilização fundada na técnica moderna é

completamente peculiar, nova, portanto, incongruente com as éticas tradicionais. Propor,

portanto, uma ética nova que regule e atenda aos dilemas oriundos dessa realidade peculiar,

pode se dizer, é a segunda grande preocupação do pensador alemão.

Conforme Jonas, as éticas tradicionais elaboradas até o momento primaram pelos

interesses do homem, deixaram num segundo plano a natureza e ignoraram totalmente as

gerações futuras. Foram éticas orientadas pelo presente, focadas no presente, voltadas para o

“aqui e agora”. O foco nos homens do presente e no presente dos homens é o que caracteriza

as chamadas éticas tradicionais, segundo Jonas. É preciso fazer surgir outra ética. Nesse

sentido, pondera o alemão,

a nova ética deve achar a sua teoria, na qual se fundamentam deveres e

proibições, em suma, um sistema do “tu deves” e “tu não deves”. Ou seja,

antes de se perguntar sobre que poderes representariam ou influenciariam o

futuro, devemos nos perguntar sobre qual perspectiva ou qual conhecimento

valorativo deve representar o futuro no presente. (JONAS, 2006, p. 64).

O fator que distingue a nova ética das éticas tradicionais, conforme Jonas, seria a

inserção das preocupações com o futuro. A nova ética, também denominada ética da

responsabilidade38

, tem como objetivo inserir entre as preocupações do presente, o cuidado

com o estabelecimento e a propiciação de condições que garantam às gerações futuras o

direito de existirem. É preciso que haja uma ética capaz de controlar os poderes extremos

“que hoje possuímos e que nos vemos obrigados a seguir conquistando e exercendo” (Idem, p.

65). Jonas justifica a necessidade dessa ética escrevendo o seguinte:

38

Eis a definição de responsabilidade para Jonas. “A responsabilidade é o cuidado reconhecido como obrigação

em relação a um outro ser, que se torna “preocupação” quando há uma ameaça à sua vulnerabilidade”. (JONAS,

2006, p. 352).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 86

O nosso agir coletivo-cumulativo-tecnológico é de um tipo novo (...) É

somente sob a pressão de hábitos de ação concretos, e de maneira geral do

fato de que os homens agem sem que para tal precisem ser mandados, que a

ética entra em cena como regulação desse agir, indicando-nos como uma

estrela-guia aquilo que é o bem ou o permitido. (JONAS, 2006, p. 66).

Há um vácuo ético frente a essa realidade nova desenhada pela civilização da técnica.

Com a ética da responsabilidade Jonas pretende preencher esse vácuo. Essa ética proposta

pelo alemão deve englobar diversas esferas. Por exemplo, educação, política, família, religião,

etc. O quarto capítulo de O princípio responsabilidade traz essa abordagem acerca dos

elementos que fundamentam a responsabilidade tal como proposta pelo alemão. O

estabelecimento dessa nova ética pensada por Jonas mantém um nexo com o nosso trabalho,

pois, é por intermédio dessa reflexão, que o alemão critica os desdobramentos decorrentes da

técnica moderna, e nesse contexto, o filósofo empreende crítica contra Francis Bacon.

Vejamos o tópico a seguir.

3.3 A crítica de Jonas à filosofia baconiana

De acordo com o que apresentamos no tópico anterior, vimos que Jonas toma como

principal objeto de análise, a técnica moderna, sobretudo, os efeitos que são causados por ela.

Isto porque os efeitos da técnica moderna têm afetado tanto o homem quanto a natureza. O

campo de ação fora ampliado. A relação dos homens entre si e dos homens frente à natureza

modificou-se completamente. Dada essa realidade extremamente distinta, Jonas sustenta que

se faz necessário arquitetar uma nova ética. Ou seja, torna-se fundamental que se estabeleça a

chamada ética da responsabilidade. Para o filósofo alemão,

...toda a ética anterior se orientava pelo presente, como uma ética do

simultâneo, usando diferentes formas éticas no passado. Podemos considerar

os três exemplos seguintes: a condução da vida terrena, a ponto de sacrificar

sua felicidade, em vista da salvação eterna da alma; a preocupação

previdente do legislador e do estadista com o futuro bem comum; e a política

da utopia, com a disposição de utilizar os que agora vivem como simples

meio para um fim que se encontra além deles ou eliminá-los como

obstáculos a esse fim – da qual o marxismo revolucionário é o exemplo

proeminente. (JONAS, 2006, p. 51).

A ética da responsabilidade traz como objetivo arrastar o futuro para o presente. O

avanço da técnica potencializou a capacidade de ação do homem. Isso findou tornando o

homem perigoso não só para si próprio como também para a natureza. O homem em virtude

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 87

do poder tecnológico ameaça os demais homens, seres e perturba o meio orgânico,

profundamente degradado, afirma Jonas. É preciso que se cuide e se preserve os recursos

naturais a fim de que as gerações futuras tenham o direito não só de existirem como de

desfrutar igualmente esses recursos. Nesse sentido, faz-se preciso uma ética que ponha freio

aos poderes ilimitados da técnica. As intervenções técnicas do homem têm levado a natureza a

um estado de vulnerabilidade. O homem, os seres vivos em geral e os recursos naturais estão

sob ameaça, inclusive de extinção. Por isso, afirma Hans Jonas, “torna-se necessário agora, a

menos que seja a própria catástrofe que nos imponha um limite, um poder sobre o poder – a

superação da impotência em relação à compulsão do poder que se nutre de si mesmo na

medida de seu exercício” (JONAS, 2006, p. 236). Esse controle, ou, poder sobre o poder seria

possível mediante a nova ética, ou seja, mediante a ética da responsabilidade. Não obstante,

para não perder de vista o objeto da análise, podemos indagar: aonde se insere a crítica de

Jonas à filosofia de Bacon?

Uma resposta plausível é que a crítica de Jonas à filosofia de Bacon tenha sido

arquitetada, exatamente na conjuntura e calor da sua crítica à técnica moderna, aos avanços

desta e aos efeitos causados por ela. Segundo Jonas, o avanço ilimitado do poderio

tecnológico é consequência e desdobramento da proposta e concepção de progresso esboçados

por Bacon. Para emitir sua crítica ao pensamento baconiano, Jonas, em O princípio

responsabilidade, elege tópico com a seguinte denominação: „a ameaça tenebrosa contida no

ideal baconiano‟. Nesse tópico o alemão expressa:

Tudo o que dissemos aqui é válido sob a pressuposição de que vivemos em

situação apocalíptica, às vésperas de uma catástrofe, caso deixemos que as

coisas sigam o curso atual. É preciso traçar algumas considerações, ainda

que o assunto seja bem conhecido. O perigo decorre da dimensão excessiva

da civilização técnico-industrial, baseada nas ciências naturais. O que

chamamos de programa baconiano – ou seja, colocar o saber a serviço da

dominação da natureza e utilizá-la para melhorar a sorte da humanidade –

não contou desde as origens, na sua execução capitalista, com a

racionalidade e a retidão que lhe seriam adequadas; porém, sua dinâmica de

êxito, que conduz obrigatoriamente aos excessos de produção e consumo,

teria subjugado qualquer sociedade (...). (JONAS, 2006, p. 235).

Segundo Jonas, o programa baconiano traz como fórmula „saber é poder‟. No entanto,

explica o alemão, esse programa, no ápice do seu triunfo, se mostra insuficiente,

contraditório, e “incapaz de proteger o homem de si mesmo, e a natureza, do homem”. Por

conta da magnitude do poder que se conseguiu através do progresso técnico, tanto o homem

quanto a natureza se tornaram vítimas, objetos subjugados e seres ameaçados, complementa o

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 88

alemão. O que Jonas desconhece, no entanto, é que a possibilidade do naufrágio fora

advertida por Bacon. Para o último, na levada do progresso, benefícios ou danos poderiam

acontecer. Daí a importância dos homens cultos, sábios, doutos e pesquisadores adentrarem

em si mesmos, pedirem a si mesmos contas, chamarem a si mesmos à responsabilidade. As

pesquisas, as atividades técnicas não podem se desenvolver divorciadas da reflexão e do

pensamento. A questão é: isso fora levado em consideração? No mito da Esfinge, Bacon

apresenta claramente as duas perspectivas nas quais o progresso científico pode se desdobrar.

Não há como deixar de reconhecer que de fato estamos diante de uma conjuntura real

bastante complexa, paradoxal, marcada por absurdos e dilemas provocados pelos avanços da

tecnologia. As ameaças estão por várias partes. No campo bélico, no âmbito da produção

alimentícia, na área de produção energética, na fabricação de substâncias químicas, etc. O

saber que deveria solucionar problemas, causar conforto e felicidade acaba se mostrando

ineficaz e, ao mesmo tempo, gerador de problemas ainda maiores. A busca para se produzir

cada vez mais, num curto espaço territorial e de tempo, em virtude do aumento do consumo,

por exemplo, tem se desdobrado em problemas sérios de saúde.

Contudo, consideramos, de acordo com o que procuramos mostrar no capítulo

anterior, Bacon, embora defensor da ideia de progresso e entusiasta da ampliação do

conhecimento, todavia sinalizou bem que tal barco poderia naufragar. Uma provável saída

seria contrapor à Esfinge, Édipo. A ciência e a técnica possuem facetas variadas. Procurar

avançar na tarefa de conhecer é fundamental. Porém, é preciso coxear, é preciso reflexão

acerca das nuances resultantes da ciência e da técnica. É extremamente relevante que em lugar

da arrogância, da vaidade e do protagonismo egoísta, se ponha o diálogo, a capacidade de

ouvir o outro, a humildade. Para Bacon, não se pode esquecer da importância que tem a

cautela, o equilíbrio, a humildade, a obediência à natureza e a confluência entre natureza,

conhecimento e sociedade.

Jonas critica a modernidade por conta dos avanços tecnológicos. Afirma que tais

avanços são desdobramentos e concretização das ideias baconianas. Propõe, então, como

instrumento capaz de regular e de pôr freios ao poder da tecnologia, a ética da

responsabilidade. Todavia, encontramos nessa conjuntura jonasiana alguns problemas.

Primeiro, o alemão direciona crítica ao autor do Novum Organum, mas passa ao largo dos

textos do inglês. Jonas não cita Bacon. Tece uma crítica que não pauta pelas obras de Bacon.

Portanto, consideramos uma crítica rasteira, equivocada, desleal intelectualmente falando. É

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 89

uma crítica que toma a parte como se fosse o todo, quando na verdade esqueceu de avaliar e

considerar esse todo. Qual consequência poderá decorrer de uma crítica ou interpretação

como essa, se não o preconceito? Segundo, tem a ver com a fundação da própria ética que ele

sugere. Larrère nos ajuda nessa compreensão e aponta as dificuldades que circundam as bases

da ética da responsabilidade. Para Larrère, e nesse sentido ela evoca também os

posicionamentos de Bernard Sève, a ética de Jonas se fundamenta em um medo que é

provocado. Um medo que deve ser mantido “da mesma forma que se ameaçam os crentes

com os horrores do inferno” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 274). Um medo, segundo

Sève, que vem da dimensão religiosa e que pode ser taxado de hiperbólico. Apenas o

conteúdo desse medo é secularizado. Na medida em que, se desloca o inferno enquanto

punição para o pecador e o admite como sendo o mal supremo de “uma natureza destruída, no

homem e fora do homem” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 274).

Segundo Larrère & Larrére, o que fundamenta a ética de Jonas é a crença e a

convicção numa catástrofe inevitável. Declara a autora francesa, “Jonas continua prisioneiro

da ilusão de omnipotência da modernidade. Ao agitar uma ameaça hiperbólica, introduz de

fato uma nova ética de convicção (a crença numa catástrofe inevitável). A esperança torna-se

medo, é a ética, negativa, da profecia da desgraça” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p.

275). São bases da ética de Jonas, a crença na catástrofe e o medo. Mas não só. Sève afirma

que, a “ética da responsabilidade é uma ética religiosa: uma ética ascética da abstinência, do

sacrifício, mais do que da moderação” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 274). O próprio

Jonas afirma:

Em todo caso, em função de nosso princípio primeiro – que deve nos dizer

por que os homens do futuro importam na medida em que nos mostra que o

“o homem” importa –, não podemos nos poupar da ousada incursão na

ontologia... Já demos a entender que a fé religiosa possui aqui respostas que

a filosofia ainda tem de buscar, com perspectivas incertas de sucesso. (Por

exemplo, pode-se extrair da “ordem da criação” a ideia de que, segundo a

vontade divina, os homens devem estar ali à sua imagem e semelhança, e

toda ordem deve permanecer inviolada.) A fé pode fornecer fundamentos à

ética... (JONAS, 2006, pp. 96-97).

Jonas critica as éticas tradicionais, declara que elas são antropocêntricas, voltam-se

apenas para o presente e ignoram o futuro, critica, sobretudo, a ética heleno-judaico-cristã,

mas fundamenta sua ética da responsabilidade exatamente sobre bases da religião, da fé, ou da

teologia, como queiramos dizer. E o que torna mais grave a fundação da responsabilidade

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 90

sobre o medo, a crença na catástrofe e a convicção religiosa, aponta o casal Larrère, são as

implicações políticas. Nesse sentido, escrevem os autores franceses,

daí a dificuldade de inscrever esta ética da convicção no campo político. Ela

não se presta, como Bernard Sève demonstra, ao debate democrático:

governar sob a ameaça supõe que esta última não possa ser posta em dúvida,

exclui-se o debate público que examinaria os riscos. Jonas não acredita na

capacidade das democracias para se libertarem dos seus interesses presentes,

para preverem a ameaça e imporem a si mesmas a obrigação provinda do

futuro. (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 275).

Esses foram os problemas que identificamos em relação a Jonas. Paradoxos o cercam.

O alemão discute a modernidade, mas recaindo em elementos que são pré-modernos,

podemos afirmar. Propõe uma ética que deve ser aceita sem se questionar, que deve ser

tomada como acima de qualquer suspeita, uma ética que não precisa dialogar, não precisa

inserir-se no debate público. Para ele, a modernidade se definiu como poderosa, aliou ciência

e tecnologia, amparou-se no princípio de que “saber é poder”. Transformou a técnica num

impulso infinito da espécie. O poderio causado pela tecnologia perdeu o controle de si

mesmo, tornou-se uma ameaça por conta dos estragos apocalípticos que são possíveis, só a

responsabilidade seria capaz de barrar esse descontrole e garantir às gerações futuras

condições para existirem.

Conforme Larrère & Larrère, ao invés de uma ética que rejeita o debate público, deve-

se pensar o princípio da precaução, uma vez que esse se relaciona bem com a prudência39

, o

bom uso e o debate público. Escreve o casal Larrère, “tomar em consideração as gerações

futuras exige conceitos mais especificados, que permitam apreender as gerações na sua

sucessão e diferença. A noção de património40

parece cumprir essa função...” (LARRÈRE &

LARRÈRRE, 1997, p. 286). Essa noção, complementa os franceses, é adequada porque

“evoca prioritariamente o universo doméstico, a transmissão de bens entre diferentes gerações

de uma família: O património evoca a ideia de uma herança legada pelas gerações que nos

precederam e que nós devemos transmitir intacto às gerações que nos hão-de suceder”

(LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, pp. 286-287). A noção de patrimônio é bem vista por

Larrère, porque trata-se de um conceito, cuja origem é romana, pré-moderna, portanto, uma

noção que ignora a dualidade sujeito e objeto. Superar essa dualidade ou dicotomia tem sido a

39

A prudência enquanto uma “virtude grega do limite e da medida, atenta à singularidade dos casos, que é capaz

para deliberar e decidir num momento de incerteza, marcada pela contingência”. (LARRÈRE, 1997, p. 280). 40

Em relação ao conceito de patrimônio, afirma Larrère, “o mesmo conceito, de ordem jurídica, foi recuperado

pela sociologia (o património cultural), antes de ser adoptado pelo ambientalismo: fala-se de património natural,

de património comum da humanidade, noção reconhecida em direito internacional”. (Idem, p. 286).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 91

tônica das discussões ambientais. Boaventura critica a racionalidade moderna exatamente por

“operar” tomando como base essa dicotomia. Pensar essas questões passa fundamentalmente

pela necessidade do debate. A convicção, ao contrário, elimina o debate e ignora a

racionalidade argumentativa. De acordo com Larrère & Larrère, “se Jonas se inclina para uma

solução autoritária dos problemas ambientais – o que lhe valeu numerosas críticas – isso

deve-se mais a uma incapacidade para compreender a política do que uma inclinação pela

ditadura” (LARRÈRE & LARRÈRRE, 1997, p. 275).

3.4 As interpretações de Brennan e Grün: Bacon, a máquina de terraplanagem, a

natureza fêmea e a negação da tradição e do passado

No prefácio de Em busca da dimensão ética da educação ambiental, Brennan infere:

“a máquina de terraplanagem é o emblema da modernidade. Com sua enorme pá, ela suprime

a vegetação, os prédios velhos, árvores consideradas verdadeiros tesouros, paisagens para

guardar na memória, deixando aberta uma vastidão para o desenvolvimento”. (BRENNAN,

2007, p. 7). Essa é a visão que predomina a respeito da modernidade e da ciência moderna. O

emblema desse período é a máquina de terraplanagem que com sua pá, força e imponência se

impõe e destrói tudo que vem pela frente. Não fica pedra sobre pedra. Com todas as letras

Brennan declara que, “a filosofia moderna partiu do equivalente intelectual da máquina de

terraplanagem. Francis Bacon achava que não tínhamos nada para aproveitar do passado...”

(BRENNAN, 2007, p. 7). Tal visão predomina em muitas das teorizações acerca do meio

ambiente. A afirmativa de Brennan aponta o caminho que percorrerá Grün, no primeiro

capítulo de Em busca da dimensão ética..., aonde o último sustenta que Bacon é ahistórico,

portanto, negador da tradição. A pergunta que se põe, no entanto, é: será que Bacon ignora

completamente os acontecimentos do passado? Se a resposta for positiva, por que, então, na

proposição do filósofo inglês com o objetivo de reformular a filosofia natural, seria

fundamental recompor a história da natureza? E não só isso. Por que o inglês escreveu uma

obra cujo título versa exatamente sobre a sabedoria dos antigos?

Interpretações dessa natureza incorrem no que Dussán afirma. “Tales críticas han

hecho que en ocasiones se olviden aspectos centrales del proyecto baconiano o que Bacon sea

considerado como un autor de poca importancia para el pensamiento filosófico y científico”.

(DUSSÁN, 2009, p. 100). Provavelmente, Brennan e Grün ignoram A sabedoria dos Antigos,

O progresso do conhecimento e a Nova Atlântida pelo menos. No primeiro texto, Bacon

concentra sua análise em mitos antigos dos gregos. O filósofo interpreta esses mitos e mostra

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 92

que é possível extrair saber por meio deles. Segundo Raul Fiker, “Bacon está firmemente

convencido de que o véu das fábulas é um elo entre a sabedoria antiga e os séculos seguintes”.

(FIKER, 1996, p. 11). Os mitos apresentam significado alegórico e têm função pedagógica. É

possível compreender, por exemplo, que o conhecimento científico – tomando como base o

mito da Esfinge – pode desdobrar-se em duas perspectivas: ou ser útil e beneficiar a

humanidade, ou causar-lhe angústia, naufrágio e amedrontamento. O conhecimento científico

precisa ser buscado tendo em vista o conforto, a tranquilidade e o melhoramento das

condições de vida do homem sobre a terra. Porém, a depender do modo como seja conduzido

e operado, pode se voltar contra o próprio homem, as demais coisas e destruí-los. Por

intermédio dos mitos de Dédalo e de Ícaro alado, o filósofo discute a questão da ética e do

equilíbrio nos processos de pesquisas sobre a natureza. Fiker declara que,

para Bacon os poderes do homem não são infinitos, estando sujeitos às leis

da natureza. No sentido de consolidar seu limitado poder, o homem deve se

adaptar à natureza, submeter-se a seus comandos e assisti-las no

desenvolvimento de suas operações. Só assim ele pode obter a verdadeira

dominação da natureza, porque para dominá-la, ele deve tornar-se seu “servo

e intérprete”. (FIKER, 1996, p. 110).

Uma diferença que se nota claramente entre o texto de Fiker e os textos de Brennan e

Grün, é que o primeiro cita, evoca, vai aos textos mesmos do inglês. Os dois últimos,

sobretudo Brennan, não. Por um lado, pode-se afirmar, Bacon incentiva o avanço sobre as

águas do bravo e desconhecido mar – especialmente, a natureza. Mas, por outro, o filósofo

destaca que é preciso ter cautela na pesquisa, demorar-se nas observações e experimentos,

dialogar, afastar-se da vaidade, considerar a humildade e não perder de vista o meio termo. A

prudência, a moderação integram o pensamento baconiano. Segundo Fiker, “acredita-se na

simplificação da ciência e na importância da “humildade” (que para Bacon, no trato com a

natureza, é arma para dominá-la), tanto na natureza como entre os homens, para promover o

progresso científico”. (FIKER, 1996, p. 96). Fiker escreve que Bacon defende severamente a

pesquisa séria em contraposição à forma de conhecimento que favoreça a verbosidade. Nesse

sentido, sua interpretação se aproxima da interpretação de Rossi. Esse último explica em Da

magia à ciência, que Bacon critica a cultura das palavras, a cultura livresca e meramente

retórica. É preciso voltar-se para o estudo das coisas mesmas. Discutimos essa questão

inclusive no capítulo anterior.

Se analisarmos com cuidado a filosofia baconiana, chegaremos à compreensão de que

o progresso científico não está desvinculado do reconhecimento das limitações que o homem

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 93

possui. É preciso alçar vôo. Porém, esse vôo deve considerar limites. “Ícaro foi instruído pelo

pai a não seguir um curso muito alto nem muito baixo enquanto voasse sobre o oceano”.

(BACON, 2002, pp. 86-87). A ideia que subjaz aí é de moderação, equilíbrio, prudência. Em

A sabedoria dos antigos, explica Fiker, quatro temas filosóficos podem ser discutidos. i)

Distinção entre teologia e filosofia, entre fé e ciência. ii) As vantagens do naturalismo

materialista. iii) Função da pesquisa filosófica e necessidade de estabelecer o método. iv)

Defesa de um realismo político, inspirado por Maquiavel41

.

De acordo com Fiker, mediante o mito de Prometeu, Bacon desenvolve o tema da

separação entre teologia e filosofia, separação entre fé e ciência – abordamos essa questão no

capítulo anterior –, toca o terceiro tema, isto é, a função da pesquisa, “além de fazer

observações de caráter moral e psicológico. Este mito, da mesma forma que é central na

exegese baconiana é, em geral, particularmente vigoroso no Renascimento...” (FIKER, 1996,

p. 112). Conforme o mito de Prometeu, diz-se que o homem é dotado de faculdades e poderes.

Que o homem parece ser o centro do mundo. Que as coisas parecem obedecer às necessidade

dele e não às suas próprias. Que o homem é composto por partículas retiradas de diferentes

animais e misturadas com o barro. Que o homem é um pequeno mundo. Na concepção dos

alquimistas, por se encontrar no homem todos os minerais, vegetais, etc., aquele pode ser

definido como um microcosmo.

Não obstante, vemos que o homem se mostra nu e indefeso na primeira fase

de sua existência, tardo em ajudar-se e cheio de necessidades. Por isso

Prometeu apressou-se a inventar o fogo, o grande dispensador de alívio e

amparo em todas as indigências e negócios humanos. (...) o fogo merece ser

corretamente chamado de auxílio dos auxílios ou recurso dos recursos.

(BACON, 2002, p. 79).

Pensando na perspectiva da função da pesquisa, assim como Prometeu melhorou a

condição humana, através da invenção e doação do fogo, é função da pesquisa propiciar o

mesmo. A pesquisa precisa visar: alívio da dor, auxílio nos negócios, resolução e suprimento

das necessidades. Apesar de Prometeu ter beneficiado os homens com o fogo, aqueles não lhe

foram gratos e o denunciaram a Júpiter. De modo que Prometeu findou sendo punido.

Todavia, Prometeu findou se reconciliando com os homens. O ato da denúncia não foi objeto

de punição para os homens. Pelo contrário. A denúncia contra Prometeu, interpreta Bacon, é

vista como uma postura não dogmática. Tal postura é fundamental no exercício da pesquisa.

Ainda sobre a reconciliação de Prometeu com os homens, afirma Bacon:

41

Cf. (FIKER, 1996, p. 112).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 94

a súbita reconciliação dos homens com Prometeu, depois que se frustraram

suas esperanças, contém igualmente uma observação sábia e proveitosa.

Alude à precipitação e leviandade dos homens nos experimentos. Quando

estes não dão o resultado pretendido, eles se apressam a classificar a

tentativa de fracasso... (BACON, 2002, p. 82).

Vejamos quantos aspectos são sublinhados por Bacon, cujo terreno é a sabedoria, os

ensinamentos dos antigos mediante alegorias. Através do mito de Prometeu, Bacon, ao

discutir elementos que precisam integrar o método científico e a atividade da pesquisa,

destaca a necessidade da paciência, a importância da persistência, a insistência nos

experimentos. Adentrando, por assim dizer, na esfera do psicológico, o pesquisador não pode

se sentir fracassado, abandonar sua empreitada, simplesmente porque os resultados

pretendidos não foram alcançados. A pesquisa é uma caçada. Como caçada, tem as suas

dificuldades, desafios, obstáculos. Não perder o ânimo e persistir na pesquisa é via para se

alcançar conhecimentos novos e descobertas. Basta analisar com cuidado A sabedoria dos

antigos, para se perceber a importância dos antigos no pensamento baconiano. Os antigos,

pode-se inferir, enxergaram longe. Ainda conforme a alegoria de Prometeu, escreve o inglês:

quanto ao presente que os homens teriam recebido em recompensa de sua

denúncia, ou seja, o florir eterno da juventude, parece mostrar que métodos e

remédios para o retardamento da idade e o prolongamento da vida eram

considerados, pelos antigos, não como coisa impossível, ou jamais

proporcionada, mas do número daquelas que os homens possuíram outrora e

perderam por negligência. (BACON, 2002, p. 81).

Há uma crítica à negligência. Bons resultados poderão acontecer, a depender do modo

como se conduza as pesquisas. O ânimo, a persistência nos experimentos, o alinhamento entre

trabalho da mente e trabalho das mãos, a continuidade da pesquisa e a paciência são requisitos

discutidos por Bacon, são ensinamentos que podemos encontrar na sabedoria e cultura dos

antigos.

Nos próprios termos de Bacon, após se discutir a condição humana tomando como

base o mito de Prometeu, “a parábola se volta para a Religião”. O uso dos dois bois, um cheio

de gordura e carne, o outro apenas com ossos, que serviram para Prometeu enganar Júpiter,

“isso alude aos ritos exteriores e vazios com que os homens sobrecarregam e atulham o

serviço religioso” (BACON, 2002, pp. 82-83). Agem com hipocrisia.

A parábola se volta [também] para a moral e o estado da vida humana. Em

geral,... entendeu-se Pandora como Volúpia e Libertinagem... Os seguidores

de Epimeteu [esse era irmão de Prometeu e abriu a caixa de Pandora] são os

imprevidentes, que não cuidam do futuro e só pensam nos prazeres do

momentos. (BACON, 2002, p. 83).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 95

Em relação ao crime cometido por Prometeu ao tentar contra a castidade de Minerva,

escreve Bacon, “o crime mencionado não parece ser outro senão aquele em que os homens

freqüentemente incidem quando orgulhosos de suas artes e conhecimentos: tentar curvar a

própria sabedoria divina ao jugo dos sentidos e da razão” (BACON, 2002, p. 85).

Conhecimento divino e conhecimento humano são coisas distintas, portanto, não podem ser

misturadas. Encerra o inglês, “devem, pois, os homens distinguir com sobriedade e modéstia

entre as coisas divinas e humanas, entre os oráculos dos sentidos e da fé” (Idem, mesma

página). De acordo com a análise de Fiker, “A crença cristã vê Deus como o verdadeiro

Prometeu. ... Prometeu representa um herói humano, o herói cultural, o portador da ciência e

da ordem moral e política que reformou os homens lhes dando uma nova essência” (FIKER,

1996, p. 113). Mostramos através do mito de Prometeu, a discussão que Bacon faz a respeito

da função da pesquisa, da possibilidade de se extrair ensinamentos morais e da separação que

deve haver entre fé e ciência.

Além desses pontos, há um evento na parábola de Prometeu, que Bacon interpreta e

aproveita para defender a necessidade de se trabalhar a ciência na perspectiva da colaboração

e da coletividade. Trata-se das corridas com tochas acesas, instituídas em honra a Prometeu.

As corridas com tochas acesas, envolvendo competição e competidores, “alude às artes e

ciências e adverte com prudência que a perfeição do conhecimento não cabe à rapidez ou

habilidade de um só investigador, mas de muitos” (BACON, 2002, p. 85). Destaque meu.

Tudo indica que Brennan, provavelmente desconhece A sabedoria dos antigos e as discussões

que nessa obra Bacon desenvolve.

Quanto ao segundo tema apontado por Fiker em A sabedoria dos antigos, as vantagens

do materialismo naturalista, trabalhamos essa temática nos tópicos 1.3 e 1.4 do primeiro

capítulo. Vimos, por meio dos mitos de Pã, Celo e Proteu, que o atomismo, sobretudo de

Demócrito, comparece em larga medida na filosofia de Bacon. Apesar da crítica que Bacon

fez contra a escola atomista pelo fato de não se preocuparem com a compreensão ampla da

realidade, contudo, o modo como os atomistas lidavam com as partículas e a pesquisa acerca

da natureza era bem visto pelo filósofo. Somente voltando-se para as coisas mesmas poderia

se descobrir conhecimentos novos e úteis.

Em O progresso do conhecimento, o inglês esboça uma série de fatores que deveriam

ser considerados no processo de reformulação da filosofia natural, conhecimento da natureza,

exercício da ciência e progresso da mesma. Entre eles, o Lord destaca: vigência de currículos

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 96

que contenham conteúdos correspondentes à prática, à vida e à realidade42

. Vinculação entre

produção do conhecimento e aplicabilidade com vistas ao bem da humanidade. Convergência

entre pesquisador, ciência e humildade. Defesa de uma educação livre que permita formação

em diversas áreas do saber, tendo em vista preparar pessoas para o exercício da pesquisa e

para os serviços do Estado43

. Exigência de que a ação não seja desvinculada da reflexão. “Se

alguém pensa que a filosofia e o conhecimento do universal são estudos ociosos, é alguém

que não tem em conta que todas as profissões se servem e suprem deles” (BACON, 2007, p.

105).

Na Nova Atlântida, com efeito, encontramos valorização da experiência e dos

experimentos. Enaltecimento das descobertas e inventos. Respeito e procura por

conhecimento de culturas diversas da de Bensalém. Conjugação entre esforço, dedicação à

pesquisa, conhecimento e produção de inventos que imitam a natureza. Encontra-se resultados

que beneficiam não apenas um grupo de pessoas, mas toda a sociedade da ilha.

A síntese das características ou discussões que se pode fazer das três obras baconianas

mencionadas no segundo parágrafo desse tópico, nos incita a insistir na indagação: uma

filosofia com estes pilares, seria uma filosofia que propõe a destruição da natureza, que se

comporta semelhantemente a uma máquina de terraplanagem – que desmata e reforça os

interesses capitalistas – e que, não obstante a crítica e análise da tradição, nega por completo o

papel da última? Para Brennan, a filosofia de Bacon é interpretada como sendo a máquina de

terraplanagem. A premissa baconiana de que é preciso dominar a natureza tomou proporções

cujos desdobramentos causaram consequências destrutivas à natureza. Brennan afirma ainda –

e depois essa ideia é retomada por Grün – que, para o inglês, não há nada que possamos

aproveitar do passado. Essa é uma interpretação distorcida. Argumentamos e Fiker nos ajuda,

para Bacon, o passado e a antiguidade nos ensinam. O que não se pode é aceitar as coisas de

modo dogmático. Criticar a tradição é não aceitá-la dogmaticamente. Não que ela não possa

em nada contribuir. A crítica, o questionamento, a indagação são imprescindíveis e

extremamente frutíferos no processo de conhecer. Lembrando a parábola de Prometeu, os

homens, ao invés de se tornarem gratos eternamente a Prometeu pelo fato de ganharem o

fogo, findaram o denunciando. Todavia, tal comportamento não fora punido pelo deus. A

denúncia fora entendida como uma postura não dogmática, portanto, bem vista e até

“perdoada” por Prometeu.

42

Cf. discussão em (BACON, 2007, p. 109). 43

(BACON, 2007, p. 105).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 97

Grün, por sua vez, tomando como referencia posicionamentos de Merchant, apresenta

várias acusações contra Bacon. Uma delas, é que “o filósofo inglês Francis Bacon, nos

séculos XVI e XVII, desenhou uma nova ética na qual sanciona a dominação da natureza”

(MERCHANT apud GRÜN, 2007, p. 27). A primeira acusação é que o inglês instaura uma

ética da dominação da natureza. Segundo Merchant, Bacon é mentor de um discurso contra as

mulheres. O inglês desenvolveu uma linguagem que reduz a natureza à condição de fêmea e

de recurso para a produção econômica. O filósofo descreveu a “natureza como se fosse uma

bruxa na Inquisição a ser torturada para que nos contasse seus mais íntimos segredos”

(MERCHANT apud GRÜN, 2007, p. 28). Para Merchant, encontramos em Bacon um filósofo

que representava o homem branco, europeu, empresário de classe média. A historiadora

ecofeminista sustenta que Bacon era apologista da dominação da natureza; defensor da ideia

de que a natureza deveria estar a serviço do homem, portanto, escrava moldada pelas artes

mecânicas. Que na filosofia baconiana, a natureza recebe denotação de gênero feminino, e por

conta desta concepção, se viabilizou a exploração e a degradação do ambiente natural. De

acordo com Merchant, a degradação do meio natural tem como raiz a filosofia de Bacon, de

modo especial, sua concepção de natureza.

Outro teórico que serve de referência a Grün é o filósofo ambiental Max Oelschlaeger.

Na interpretação de Oelschlaeger, Bacon estava ciente dos julgamentos de mulheres acusadas

de bruxarias e isto lhe serviu de inspiração, no que se refere ao tratamento que a natureza

deveria receber dos cientistas. “Ou seja, a natureza deveria ser torturada para nos contar seus

segredos” (GRÜN, 2007, p. 28). Sob esta perspectiva, os cientistas deveriam se comportar

frente à natureza semelhantemente aos inquisidores. A acepção de Bacon enquanto filósofo

que pregou a dominação, a tortura da natureza e o progresso científico, abre margem para

críticas que permeiam teóricos do meio ambiente como é o caso de Jonas, Oelschlaeger,

Merchant e Grün.

Vimos, portanto, que os referenciais teóricos com os quais Grün desenvolve seu

primeiro capítulo de Em busca da dimensão ética da educação ambiental, intitulado: „Francis

Bacon, a modernidade e a educação ambiental‟, tecem uma série de críticas a Bacon, de modo

que caminham todas para um ponto comum. Bacon instaurou uma ética cujo conteúdo interno

é o da dominação da natureza. O desdobramento do pensamento baconiano causou efeitos

extremamente destrutivos, ameaçadores e paradoxais. Essa é a imagem de Bacon que

predomina largamente nas discussões ambientais.

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 98

Não obstante essas críticas, Grün, ao mencionar o objetivo da sua abordagem em

relação à filosofia de Bacon, acrescenta mais uma acusação contra o filósofo. Escreve Grün:

o que eu gostaria de tratar, no entanto, é de um outro aspecto da filosofia de

Bacon que nem sempre é citado por historiadores, ambientalistas e

educadores ambientais. Trata-se do processo de esquecimento da tradição,

ou seja, o caráter aistórico da filosofia de Bacon. (...) ele [Bacon] aborda o

passado como algo de que deveríamos nos libertar, pois este seria

extremamente maléfico ao desenvolvimento científico. (GRÜN, 2007, p.

29).

Compreende-se a preocupação de Grün, sua tentativa de apresentar uma “nova”

dimensão para a educação ambiental, dimensão esta que considera em larga medida o papel

de uma linguagem voltada para a compreensão. Segundo ele, “pode-se argumentar, então, que

as coisas, inclusive o ambiente, emergem, persistem e são alterados na linguagem” (GRÜN,

2007, p. 119). Sob esta perspectiva, é claro que a tradição é evocada a assumir um papel. Na

sua proposta de se buscar uma nova dimensão ética para a educação ambiental, Grün escreve:

o verdadeiro ser da linguagem só pode estar presente na conservação,

unicamente presente no “vir-à-interpretação”. Essa, então, é a forma mais

fundamental de compreender a Natureza em termos não instrumentais, mas

como algo que emerge à superfície na nossa hermenêutica do ouvir.

[Completa ele citando Gadamer], O compreender “é um processo vivo em

que a comunidade da vida existe”. (GRÜN, 2007, pp. 118-119).

Grün defende a ideia de que o mundo e a linguagem exercem uma relação muito

estreita. Baseado nessa concepção, ele declara que “o mesmo pode ser dito sobre a Natureza.

Não devemos buscar sair da Natureza para transformá-la em objeto de compreensão, pois tal

objetificação foi precisamente o que Descartes buscou fazer” (GRÜN, 2007, p. 120).

Consideramos extremamente relevante essa tentativa de novamente ligar ou religar o homem

à natureza, ou ainda, nos chamar para a compreensão de que o homem é também natureza.

No entanto, o que nos causa estranheza diante da análise que Grún desenvolve no seu

primeiro capítulo de Em busca da dimensão ética... é o fato de quase não citar Bacon. Grün se

posiciona sempre baseado em Oelschlaeger, Merchant, Farrington, mas não navega pelos

textos do próprio Bacon. Não resta dúvida que encontramos em Bacon uma forte crítica à

tradição. Vários teóricos admitem este aspecto. Por exemplo, Rossi, Oliveira, Menna, Becker,

Marinoé, Guimarães e Santos, Fiker, Silvia Manzo44

. Porém, é preciso se perguntar a quais

tradições o inglês direcionou sua crítica. Essa resposta pode ser encontrada, por exemplo, se

44

Mencionamos esses autores, porém não se trata de uma afirmativa solta. O tema da crítica baconiana à

tradição, trabalhado por cada um deles, pode ser conferido nos seus textos que estão devidamente informados na

parte das referências, no final dessa dissertação.

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 99

analisarmos especialmente o Novum Organum e O progresso do conhecimento. Nesses textos

compreendemos que a crítica baconiana se dirige à tradição hermético-mágica e à tradição

filosófica orientada pela filosofia aristotélica. O que não significa dizer que Bacon fosse

aistórico e negador absoluto do passado. Mesmo criticando a tradição mágica, por exemplo, o

filósofo não deixa de reconhecer a importância dos experimentos utilizados nas pesquisas

alquímicas45

. Rossi, e depois Fiker recupera, reconhece certa herança da tradição mágica no

pensamento de Bacon. Assim, entendemos, que na verdade, não só Grün, mas também

Brennan e Merchant interpretam Bacon de maneira não condizente à filosofia do inglês.

Bacon critica a tradição mágico-alquímica, principalmente por conta dos processos

secretos que seus integrantes operavam. Para ele, o saber deve se deslocar da esfera do

secreto, do obscuro, do indivíduo – do gênio – e passar para a esfera da construção

colaborativa, dialógica e de caráter público. O saber deve sair da esfera do secreto e adentrar

na esfera do visível, do „mostrável‟, daquilo que é possível comunicar, ensinar, estabelecer

um caminho capaz de permitir o trânsito e a passagem de outros pesquisadores e intérpretes.

Já a crítica direcionada à tradição escolástico-aristotélica acontece numa rejeição ao cultivo

meramente das palavras, da retórica e da contemplação. Segundo o Barão de Verulam, é

preciso estudar, investigar, examinar as coisas mesmas. Nesse voltar-se para as coisas

mesmas, Bacon insere um princípio que é completamente ignorado por Grün, embora este

também proponha algo sinônimo, a saber, a compreensão. Não é verdade que Bacon defenda

ou proponha uma intervenção cega e impositiva sobre a natureza. Compreendê-la, estudá-la

séria e pacientemente, considerar os seus limites constituem colunas do pensamento

baconiano acerca da natureza. Mesmo porque, na compreensão do Lord, “a natureza supera

em muito, em complexidade, os sentidos e o intelecto” (I: 10). Quanto ao argumento de que

Bacon é aistórico, a tese de Raul Fiker, especificamente o quarto capítulo de O conhecimento

e o saber em Francis Bacon, mostra o contrário.

O objetivo deste terceiro capítulo, portanto, foi analisar de que modo – haja vista a

tentativa de dialogar com outros autores [ainda que no caso de alguns indiretamente] e, assim,

nos aproximarmos da interdisciplinaridade – a filosofia de Bacon é recepcionada nas

discussões que refletem sobre o meio ambiente. Mencionamos pelo menos cinco autores. O

sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Mediante seus textos A sociologia das

ausências e Um discurso sobre as ciências foi possível identificar pontos ou posturas que

sinalizam ecos de preceitos encontrados em Bacon. Jonas, através do seu texto O princípio

45

Confira (FIKER, 1996, p. 110).

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 100

responsabilidade. A recorrência a Brennan e Merchant foi feita de modo indireto, ou seja,

mediante o texto de Grün, Em busca da dimensão ética da educação ambiental. Vimos que

várias foram as críticas disparadas contra Bacon, ao que tudo sinaliza, críticas que não

correspondem efetivamente com os objetivos da filosofia baconiana.

Para Jonas, por exemplo, o antropocentrismo e as preocupações imediatistas nos

fazem “pensar” apenas no presente. É fundamental que se traga para o presente, o cuidado

com a natureza e que se tenha em mente, que as gerações futuras precisam ter assegurado o

direito não só de existir, como igualmente, de desfrutar dos recursos naturais do planeta. Por

isso a importância da ética da responsabilidade, ética essa que envolve a educação, a família,

as crianças, etc. Uma ética, no entanto, conforme mostramos e nesse sentido nos ajudaram

Larrère & Larrère, que é problemática quando se refere à fundação e às implicações políticas.

Segundo Jonas, a técnica tornou-se uma espada de dois gumes e agora se volta muito

desfavoravelmente contra a natureza, o mundo orgânico e o próprio homem. Os riscos, a

ameaça e a possibilidade da catástrofe são resultados do desdobramento do pensamento

baconiano. A visão de que Bacon propôs uma razão instrumental e uma ciência voltada

meramente para a produção de engenheiros predomina nas discussões acerca do meio

ambiente. Seja nos debates acerca da educação ambiental como, por exemplo, o que faz

Mauro Grün. Seja nos debates acerca da ética ambiental, como é o caso de Jonas.

Segundo Brennan, o emblema da modernidade ou imagem que melhor a representa,

principalmente por conta das filosofias de Bacon e de Descartes, é a máquina de

terraplanagem. Ao lado dessa adjetivação à filosofia de Bacon – concebida como combustível

para a máquina de terraplanagem destruir as matas, arrancar as árvores e derrubar os símbolos

culturais e históricos –, vimos que, de acordo com os referenciais evocados por Grün, o inglês

fora acusado de machista, de defensor do homem rico, europeu e branco, de filósofo que

ignora completamente o papel do passado, da tradição e que defende amplamente a

dominação e tortura da natureza. Bastaria uma leitura cuidadosa da primeira parte do Novum

Organum, de O progresso do conhecimento e de alguns mitos interpretados pelo filósofo em

A sabedoria dos antigos, para se perceber que a filosofia da natureza esboçada por Bacon, não

é uma filosofia da destruição da natureza. Também não é uma filosofia que considere apenas

os pontos favoráveis oriundos do progresso científico. Fiker, em uma nota de sua tese sobre

Bacon, escreve:

em sua interpretação do mito de Dédalo (Dedalus sive mechanicus), no

entanto, Bacon refreia um pouco seu entusiasmo pelas artes mecânicas ao

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 101

considerar seu uso na produção de instrumentos de morte e destruição. Ele

vai enfatizar as vantagens da moderação na pesquisa científica. Para Bacon,

aliás, a moderação é sempre recomendável... (FIKER, 1996, p. 141).

O mito da Esfinge também mostra que Bacon não era um entusiasta cego a respeito do

progresso científico. Inventar, criar objetos, recursos, medicamentos, transportes, técnicas que

melhorem a produção de alimento, instrumentos que corrijam deficiência como aparelhos

auditivos, tudo isso é bem vistos por Bacon e foi tematizado por ele na Nova Atlântida.

Porém, não se pode esquecer da formação humanista e da preocupação com o bem da

humanidade. Aliás, é para o bem da humanidade que as pesquisas científicas devem ser

desenvolvidas. Considerando, claro, as leis da natureza e a submissão à última.

Por que encontramos em meio às discussões ambientais, muito mais o jargão „Bacon

pregou a dominação da natureza‟ do que a recomendação mesma do filósofo, quando afirma

que „a natureza não se domina, senão obedecendo-lhe‟? O que há por trás dessas acusações as

vezes soltas atiradas contra o autor do Novum Organum? Provavelmente, o que se esconde

por trás dessas acusações contra Bacon e contra outros filósofos modernos é uma visão

romântica da natureza. Tal visão, explica Antônio Carlos dos Santos, “começou na Alemanha,

nos fins do século XVIII, com Goethe (1749-1832) e Holderlin (1770-1843)” (SANTOS,

2012, p. 42). Santos, nessa discussão a respeito da visão romântica da natureza, destaca o

seguinte. “Desde o surgimento da Ciência, o homem apresentava uma visão dicotômica,

pondo de um lado o homem e de outro a natureza, do mesmo modo o sujeito e o objeto, a

matéria e o espírito, o visível e o mundo oculto...” (SANTOS, 2012, p. 43). Essa postura é

rejeitada pela perspectiva romântica. Segundo Santos, o “movimento romântico” se contrapôs

à racionalidade iluminista. Ao caracterizar o “movimento romântico”, declara Santos,

trata-se, pois, de uma visão de mundo centrada nos indivíduos e em suas

subjetividades, na identificação e exaltação de suas raízes histórico-

nacionais, como também, no drama humano, nos amores trágicos e

impossíveis, nas ideias utópicas, no sentimentalismo exacerbado. Uma das

marcas do movimento romântico é o sonho exagerado, por um lado, e a

busca constante pelo exótico e inóspito por outro, ... com fuga à realidade.

(...) o Romantismo privilegiou a imaginação no lugar da determinação, o

sonho em vez da realidade, a divagação no lugar da análise rigorosa e

objetiva do mundo. (SANTOS, 2012, p. 42).

Essa visão tem alimentado, em larga medida, críticas, sobretudo, contra a ciência

moderna. A visão romântica da natureza, de acordo com o que se vê na análise de dos Santos,

não só tem desdobramentos teórico-intelectual-filosóficos, como também, desdobramentos

políticos. De alguma maneira, sua irradiação toca o debate em torno da ética ambiental. A

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 102

ética ambiental, segundo dos Santos, abriga como conteúdo essencial, a pergunta sobre o

lugar do homem no universo. Nessa conjuntura, três correntes de debate surgem, mostra dos

Santos. Tem-se a corrente antropocêntrica, a qual fora “originada no Humanismo, ou seja, no

Renascimento, remontando à obra “Da dignidade do homem”, de Pico della Mirandola..., a de

que o homem é o centro de toda criação e, por isso mesmo, tem um lugar especial no mundo,

razão pela qual é preciso protegê-lo” (SANTOS, 2012, p. 40). Tem-se a tendência

denominada “zoocentrismo”, para a qual, explica dos Santos, se “concede status moral a seres

não-humanos”. Do ponto de vista dessa segunda tendência o homem deixa de ocupar a

posição de centro e é igualado aos demais animais. Terceira e última, tem-se a vertente

denominada “biocentrismo”. Nos termos de dos Santos, essa terceira vertente “reivindica

tanto os direitos da fauna quanto os da flora, da natureza como tal, incluindo os vegetais e

minerais” (SANTOS, 2012, p. 41).

Analisando as três vertentes, percebe-se que a visão romântica da natureza se

aproxima e, provavelmente fornece elementos às duas últimas vertentes. Conforme tínhamos

dito, essas concepções provocaram consequências em atitudes políticas. Dentro dessa

perspectiva romântica, nos parece, se tem criado, em várias partes do mundo, parques e as

chamadas áreas verdes. A visão biocentrica do mundo, esclarece dos Santos, fez com que, “o

modelo ético adotado, por exemplo, nos Estados Unidos, pioneiros na política de preservação,

foi o de separar, radical e efetivamente, dos homens a flora e a fauna, priorizando a proteção

da natureza selvagem e intocada” (SANTOS, 2012, pp. 43-44). Constitui-se uma política de

preservação que ao invés de unir homem e natureza, separa-os ainda mais, e com um

agravante. Qual é esse agravante? Na visão de dos Santos, “para essa política de proteção, o

homem não passa de um “visitador temporário”, porque ele é uma ameaça constante às

espécies protegidas e ao próprio espaço físico (temor de queimadas, exploração das riquezas

minerais, etc.)” (SANTOS, 2012, p. 44). A criação de áreas verdes ou de parques finda

esbarrando em dilemas e problemas de ordem social. Por exemplo, o que fazer com as

populações que habitam nesses locais?

Portanto, nada está acabado. Como o próprio Bacon chamava a atenção ainda no

século XVII, o que precisamos na verdade constantemente exercitar é procurar se afastar dos

pontos fixos. Criticamos as categorias da ciência moderna como, por exemplo, a categoria de

análise, de separação, de decomposição, etc., porém não conseguimos operar diferentemente.

A visão romantizada da natureza critica a perspectiva humanista, em virtude dessa última

abrir caminho para que se busque conhecer, intervir e transformar a natureza, mas também

Capítulo 3 - A recepção da filosofia de Bacon nas discussões ambientais 103

recai em problemas. Sem falar das interpretações preconceituosas e desconexas que alimenta

no que tange a determinados autores e textos modernos, como acontece com Bacon. Critica-

se, por exemplo, como faz Jonas, os avanços da tecnologia, os interesses do presente. Propõe-

se um deslocamento do futuro para o presente, uma ética da responsabilidade voltada para as

questões ligadas às gerações futuras, todavia, abandona-se o debate, as discussões

democráticas. Tomando emprestado termos de dos Santos, uma postura plausível e que não

pode se perder de vista consiste no seguinte.

Todas as disciplinas do conhecimento, todos os saberes, todos os humanos

devem fazer parte dessa mesma preocupação [cuidar de si, cuidar da

natureza], independente de ser antropocentrista ou biocentrista. Afinal, se

um dia a natureza desaparecer, ela não irá cobrar o fato de ter pertencido a

uma tendência ou outra, porque todos nós fazemos parte dela. (SANTOS,

2012, p. 44). Destaque meu.

Para lembrar a assertiva baconiana posta na segunda epígrafe do início desse capítulo,

„adentrar em si mesmo e chamar a si mesmo às contas‟ é papel de cada um de nós. Tanto nas

nossas relações com os demais seres humanos quanto nas relações com as coisas da natureza.

104

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O problema central da nossa investigação, conforme mostramos, girou em torno do

modo como a filosofia baconiana comparece em determinadas discussões das ciências

ambientais. Nesse sentido, estruturamos a dissertação em três partes. Na primeira,

trabalhamos o conceito baconiano de natureza. Na segunda, discutimos elementos que

compõem a noção de progresso. Na terceira e última, confrontamos aspectos do pensamento

de Bacon com interpretações elaboradas por autores, entre eles, principalmente Jonas e Grün.

Ouvimos o Prof. Antônio Carlos Diegues, em uma conferência ministrada no auditório

do Ministério Público do Estado de Sergipe, no primeiro semestre de 2012, afirmar mais ou

menos o seguinte: “Bacon disse: é preciso dominar a natureza”. Essa é a visão corrente que

encontramos em muitas das discussões ambientais quando se refere à filosofia do inglês.

Inferir que Bacon mandou acossar, dominar, forçar a natureza e tratá-la como bruxa perante o

tribunal da inquisição tem se tornado jargão. Em determinadas interpretações como as que

fazem Jonas, Brennan, Merchant e Grün, autores com os quais discutimos, a impressão que

nos causa é que a filosofia de Bacon constitui „matriz originária‟ dos danos, descuidos e

exploração da natureza. Ao se falar do autor do Novum Organum, a primeira ideia que se

lembra é que ele propôs dominar a natureza. Tentar desfazer um pouco essa imagem, a nosso

ver distorcida, é finalidade da nossa pesquisa. Sendo assim, se pode perguntar: o que seria a

natureza para Bacon? De que modo devemos acossar e controlá-la? A natureza é mero objeto

que pode receber intervenções livre de se preocupar com limites? Tais indagações permearam

esse trabalho.

Conforme argumentamos, o conceito baconiano de natureza não se prende apenas a

uma única definição. Ao contrário, comporta e agrega várias acepções e características. Se

tomarmos o aforismo (I: 1) do Novum Organum, por exemplo, a natureza aparece como algo

passível de interpretação, como algo que contem ordem. Se tomarmos o (I: 3), a natureza é

tida como algo que pode ser “vencido”. O (I: 4) apresenta a natureza como algo ativo, que

possui capacidade própria de trabalho e de movimento. O aforismo (I: 10) define a natureza

como complexa e superior aos sentidos e ao intelecto. Não há como conhecê-la somente

através da contemplação ou dos livros e especulações. A natureza, segundo Bacon, não pode

ser vista como algo amedrontador, impenetrável. Na verdade, o objetivo do inglês é saltar da

concepção de ciência contemplativa, ancorada na filosofia de Aristóteles e cultivada pela

escolástica, e alcançar a ciência prática cujo fundamento radica no método experimental-

Considerações Finais 105

indutivo. No aforismo (I: 18), está posto que a natureza abarca estratos profundos. O (I: 75)

mostra que há uma sutileza na natureza. Assim, interpretar e conhecê-la é um processo que

como tal exige paciência, disposição para os desafios, continuidade nas pesquisas e esforço

conjunto de muitos pesquisadores. Entre outras definições e características passíveis de se

extrair no Novum Organum, no aforismo (I: 129), Bacon, na verdade, fecha um ciclo cuja

abertura encontra-se no aforismo (I: 3): aparece novamente a ideia de que a natureza é algo

que pode ser vencido, mas, assim como foi posto no (I: 3), no (I: 129) repete-se o mesmo

princípio: “a natureza não se domina, senão obedecendo-lhe”. Eis aí dois aforismos – o (I:

3) e o (I: 129) – que os autores mencionados no parágrafo anterior, ao que tudo indica,

relegam largamente. Para Bacon, controle da natureza e obediência à sua ordem e leis

constituem um par que deve funcionar de maneira harmônica. De acordo com o filósofo, a

maneira adequada de se dominar a natureza é obedecer e se submeter às suas leis. Essas foram

as características e definições que apresentamos no tópico 1.2 do primeiro capítulo.

Mostramos no tópico 1.3, que baseado em alguns mitos de A sabedoria dos antigos,

Bacon também encontrou definições para a natureza e dialogou, sobretudo, com as duas

principais vertentes que explicam a origem da natureza. Baseado no mito de Pã, a natureza é

definida como a universalidade das coisas. Se se toma os mitos de Celo e de Proteu, a

natureza pode ser entendida como a totalidade da matéria, como reacionária no sentido de

movimentar-se em si mesma com o fim de permanecer sendo. As vertentes refletidas por

Bacon acerca da origem da natureza são: de um lado o atomismo, do outro o judaísmo-cristão.

No tópico 1.4, vimos que, para Bacon, a natureza existe no seu curso normal, nos seus erros e

variações e na esfera trabalhada ou alterada. Dizendo em termos de Oliveira, a natureza

possui três estágios: livre, errática e constrangida. Estudá-la com seriedade é a palavra de

ordem.

No segundo capítulo, o foco de análise concentrou-se na ideia de progresso, sobretudo,

cultivada pela filosofia de Bacon. Pois, conforma argumenta Gilberto Dupas, a ideia de

progresso não é exclusivamente da modernidade, pois, pode ser encontrada inclusive nos

gregos antigos. Claro que com outra roupagem. Prometeu seria a alegoria emblemática dessa

ideia. Em virtude de doar à humanidade o recurso do fogo, Prometeu mudou radicalmente a

condição humana. Porém, destaca Dupas, é principalmente com Bacon que a ideia de

progresso ganha corpo. O progresso, consoante o pensamento baconiano, está vinculado à

ampliação do conhecimento da natureza e à capacidade de aprimorar as técnicas provocando,

assim, conforto, tranquilidade, alívio da dor e felicidade para a humanidade. É nessa direção

Considerações Finais 106

que a ciência deveria caminhar. O progresso – inclusive nos dias hodiernos – carrega a

conotação de algo bom. Permeia vários discursos. Uma imagem admitida por Bacon para

ilustrar o progresso é a da embarcação. Navegar mar a dentro, enfrentar os medos, as

tempestades, aprender com as deficiências, dialogar com outros navegadores e retornar

munido de novos conhecimentos sinaliza o progresso. A Nova Atlântida mostra bem essa

noção. As questões, no entanto, são: de que modo deve ser feita essa navegação? O progresso

comporta apenas coisas boas? Quais elementos devem compor o seu conteúdo?

O primeiro detalhe a ser observado na marcha pelo progresso, destaca Bacon, é que a

navegação deve ser feita com moderação. Essa ideia é debatida pelo Lord em várias partes de

sua obra. Fiquemos apenas com alguns mitos interpretados por ele em A sabedoria dos

antigos. O primeiro é o mito de Dédalo. Fiker, em uma nota explicativa do seu: O conhecer e

o saber em Bacon, afirma: “em sua interpretação do mito de Dédalo..., Bacon refreia um

pouco seu entusiasmo pelas artes mecânicas ao considerar seu uso na produção de

instrumentos de morte e destruição. Ele vai enfatizar as vantagens da moderação na pesquisa

científica” (FIKER, 1996, p. 141). E nessa mesma nota, encerra Fiker, “para Bacon, aliás, a

moderação é sempre recomendável...”. O segundo é o mito de Prometeu. O curioso é que ao

lado das discussões sobre a engenhosidade mecânica e as invenções decorrentes dela, Bacon

sempre apresenta o tema da moderação. Prometeu é caracterizado como astuto, sagaz,

inteligente, inventor. Foi ele quem inventou o fogo e doou à humanidade. Todavia, são

igualmente características de Prometeu, o cálculo, a análise, a prudência, a razão, a ética, a

moralidade. Prometeu recusou abrir a caixa de Pandora. Embora astuto e curioso, conteve-se.

Ao contrário do seu irmão Epimeteu. Esse, irrefletidamente, movido apenas pelo impulso da

conjuntura na qual estava inserido, assim que lhe propuseram, abriu a caixa de Pandora.

Dando conta-se dos males que havia liberado e exposto todos aos riscos, rapidamente fechou

a caixa e por pouco não perdeu a esperança. A esperança, aliás, que se encontrava bem no

fundo da caixa de Pandora. A ideia da moderação é discutida também no mito de Ícaro alado.

Tem-se, de um lado Cila e do outro Caribides. De um lado a monstruosidade, a violência das

águas, os medos, as inseguranças, os ídolos que perturbam o intelecto. Do outro, a montanha,

os obstáculos, os empecilhos físicos, as deficiências da técnica. Qual a saída? A saída é

procurar afastar-se desses extremos. A via, portanto, é o caminho do meio. A busca pelo

progresso não pode perder de vista a recomendação da prudência.

O segundo detalhe, nos põe a pensar Bacon, consiste no seguinte: o progresso não é

apenas preenchido de coisas boas. Talvez, a caixa de Pandora sirva de ilustração. É preciso

Considerações Finais 107

tomar cuidado no ato de abri-la. Não se pode destravá-la tomando como base apenas a

vontade, o desejo. No percurso da navegação, as tempestades fazem parte, o naufrágio é real

possibilidade. Argumentam Guimarães e Santos, “a ideia de progresso é, concomitantemente,

razão de entusiasmo e de desconforto frente às novas descobertas: sobre o universo, sobre a

natureza, sobre as relações sociais e políticas...” (GUIMARÃES e SANTOS, 2010, p. 31). No

mito da Esfinge, Bacon discute a faceta destrutiva do progresso. A esfinge – considerada pelo

inglês como sendo a ciência/progresso – é multifacetada. Encanta, amedronta, põe enigmas,

habita nas alturas, mas iguala-se aos homens e finda os matando. Essas são as características

que envolvem a Esfinge/ciência. O que fazer? A dica é seguir o comportamento de Édipo. O

caminho para vencer a Esfinge exige: não ser afoito – mas manter a ousadia da persistência

frente o desconhecido –; encarar com habilidade e sabedoria os enigmas e problemas que por

ela são propostos; abster-se da vaidade e da arrogância em contraposição à consideração da

humildade. Édipo era coxo. Andava com dificuldades. Possuía suas limitações, porém foi o

único capaz de vencer a Esfinge, tornar-se soberano de Tebas e livrar aquela gente dos

tormentos causados pelo monstro. O coxear aponta para essa direção: limites, moderação,

humildade do pesquisador, obediência às leis da natureza.

Resta responder sobre os elementos que deveriam compor o conteúdo ou cerne da

noção baconiana de progresso. Tais elementos foram elencados no tópico 2.3, do segundo

capítulo. Antes, porém, no tópico 2.2, vemos que Bacon faz uma espécie de diagnóstico em

torno dos problemas que estavam aprisionando e impedindo o progresso. Para Bacon, três

esferas encurralavam o progresso. A primeira era a esfera teológica. Nessa vertente, a

natureza é criação de Deus, e como tal, possui segredos que não se pode tentar descobrir.

Penetrar esse limite é incorrer em pecado contra Deus. O conhecimento é luxuria, é vaidade.

A segunda era a esfera da política. De acordo com a explicação de Bacon, para os políticos da

época, propiciar aos homens condições de se adquirir avanços no conhecimento acarretaria

como consequências a preguiça, a inabilidade nos negócios e, por fim, a desobediência civil.

Mutatis mutantes, quanto maior a ignorância, melhor. Essa era a visão política que

predominava na época. A última esfera de obstáculo ao progresso, destaca Bacon, era a dos

homens doutos, portanto, a própria academia. Isso por conta da natureza de suas pesquisas. Os

temas teológicos eram vigentes. Predominava, na verdade, a cultura livresca, da retórica e da

especulação. Ao identificar esses problemas que eram de ordem teológica, política e

acadêmica, Bacon propõe, então, o que deveria compor ou orientar a via do progresso.

Considerações Finais 108

Somente após diagnosticar a conjuntura do seu tempo, Bacon apresenta sua proposta de

reforma tendo em vista o progresso e o bem para a humanidade.

O primeiro artigo dessa reforma, pode-se dizer, seria o afastamento do saber livresco e

professoral. Ao invés de se olhar o céu, o olhar deve ser direcionado para o „chão‟, para a

realidade, para a natureza. O olhar deve se voltar para aquilo que nos ambienta. Na distinção

que faz entre conhecimento divino e conhecimento humano, Bacon chega à conclusão que, só

podemos conhecer o que está no âmbito do humano. A esfera do divino é inalcançável pelo

intelecto. Os demais artigos que regulamentam a reforma baconiana e, concomitantemente,

servem de esteio à noção de progresso são: a) pesquisar com paciência e afinco as coisas da

natureza. b) Operar uma educação que estrangule a repetição do mesmo e a mera decoração.

Estabelecer uma educação que prime pela criatividade, que se desgarre dos pontos fixos tão

apreciados pela natureza humana, que se volte para o mundo da prática e trabalhe conteúdos

que tenham vinculação com a vida e com a realidade. c) Investir em pesquisas, laboratórios,

ambientes que propiciem a prática da experimentação. d) Fiscalizar os recursos. e) Selecionar,

reconhecer, honrar os melhores pesquisadores, até mesmo para que sirva de exemplo e de

despertar outras pessoas para tal atividade, e lhes pagar salários condizentes com a excelência

de tal função. f) Promover intercâmbio e permanente diálogo com outras instituições e centros

de pesquisas. g) Considerar a diversidade de opiniões, inclusive, a dos homens comuns. As

experiências individuais praticadas, as vezes, no âmbito familiar podem contribuir com o

aprimoramento de técnicas e de conhecimento. h) Apresentar um saber que não seja

fragmentado, que valorize as partes, mas não se esqueça do todo. Grosso modo, esses são os

fatores que integram a noção de progresso para Bacon.

Por que recorremos aos conceitos de natureza e progresso? Porque, na nossa avaliação,

por um lado as discussões ambientais viram e voltam se reportam a esses conceitos. Por outro,

estudá-los nos daria substância para analisar determinadas interferências, apropriações e

interpretações a respeito. Mostramos uma gama de desencontros entre o que Bacon pensou a

respeito da natureza, da ciência e do progresso e o que dizem dele, especificamente, Hans

Jonas, Brennan, Merchant, Max Oelschlaeger46

. O que queremos afirmar com isso? Que a

verdade é exclusiva de Bacon? Que não se pode discordar dele, pois sua filosofia é a melhor

que existe? Não é isso completamente. O que identificamos, na verdade, é que esses

46

Brennan, Merchant e Oelschlaeger foram inseridos nas discussões desse trabalho de maneira indireta. Ou seja,

a fonte que nos permitiu incluí-los foi o texto de Grün, intitulado Em busca da dimensão ética da educação

ambiental, uma vez que, aqueles autores serviram de referencial teórico para o último.

Considerações Finais 109

desencontros se propagam exatamente pela ausência de cuidado nas interpretações dos textos

do inglês. Quais são os argumentos destes autores? Para Jonas, o homem e a natureza estão

sob ameaça de catástrofe, por conta dos avanços tecnológicos. O poderio da tecnologia

encontrou fundamentação no ideal baconiano de progresso. Segundo Brennan, a filosofia de

Bacon se assemelha a uma máquina de terraplanagem. No seu pensamento estão as bases para

o domínio e exploração da natureza. Merchant, por sua vez, historiadora ecofeminista,

sustenta que Bacon atribui tratamento machista contra a natureza. A natureza não passa de

uma fêmea subjugada aos caprichos do homem. Oelschlaeger afirma que os julgamentos de

mulheres acusadas de bruxarias inspiraram Bacon. Assim, os cientistas deveriam proceder

com a natureza semelhantemente ao modo como os inquisidores agiam com as mulheres

acusadas de bruxarias. Por fim, Grün, para quem Bacon não dar a menor importância à

tradição e ao passado. Levando em consideração as razões que apresentamos nos dois

primeiros capítulos e retomamo-las há pouco, não são plausíveis tais argumentos. Combatê-

los é sinalizar para que tenhamos cautela e cuidado com as interpretações, sobretudo, quando

estamos envolvidos com alguma causa. Como é o caso da causa ambiental. A crítica não pode

ser afastada do seu objeto. O que se percebe, provavelmente, e nos ajuda nessa desconfiança

Antônio Carlos dos Santos, é que por trás dessas interpretações subjaz uma certa visão

romântica da natureza. Estes foram os problemas e possíveis resultados que encontramos no

decorrer da pesquisa.

Vincular a filosofia de Bacon às discussões ambientais foi um desafio, mas, ao mesmo

tempo, uma viagem agradável. Nisso consistem a relevância e a contribuição da nossa

pesquisa no que se refere à atualidade do pensamento baconiano. Foi uma pesquisa do tipo

fundamental e bibliográfica. Portanto, a análise de texto constituiu indispensável ferramenta.

O que podemos extrair a título dessa viagem pode ser expresso do seguinte modo. É possível

encontrar na correnteza da filosofia baconiana subsídios para o debate ambiental. Nela,

natureza, homem, ciência e progresso devem compor uma relação de harmonia. O progresso

não está acima das leis da natureza. Acossar a natureza não é o mesmo que explorá-la ao

infinito. Até porque a visão de natureza que Bacon detém não é reducionista. A natureza é a

universalidade das coisas. A natureza é a unidade na multiplicidade. De acordo com o inglês,

a relação do homem com a natureza deve ser pautada na interpretação, na compreensão e no

conhecimento. Assim, homem, ciência, progresso e natureza se encontram. O comportamento

e as ações podem ser espelhados na postura de Prometeu. Portanto, a relação dos homens

entre si e dos homens com a prática científica e as coisas da natureza deve ter como esteio a

prudência, o caminho do meio, a moderação.

110

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