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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RIO GRANDE DO NORTE UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA ANTONIO PEREIRA JÚNIOR A SUPERAÇÃO DA SUPERAÇÃO: apropriação/superação da dúvida acadêmica na busca da verdade na filosofia da interioridade de Santo Agostinho RECIFE 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RIO GRANDE DO NORTE

UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA

PROGRAMA INTEGRADO DE DOUTORADO EM FILOSOFIA

ANTONIO PEREIRA JNIOR

A SUPERAO DA SUPERAO:

apropriao/superao da dvida acadmica na busca da verdade na

filosofia da interioridade de Santo Agostinho

RECIFE

2017

ANTONIO PEREIRA JNIOR

A SUPERAO DA SUPERAO:

apropriao/superao da dvida acadmica na busca da verdade na

filosofia da interioridade de Santo Agostinho

Tese de Doutorado apresentada como requisito

parcial para obteno do ttulo de Doutor em

Filosofia, pelo Programa Integrado de

Doutorado em Filosofia da UFPB-UFPE-

UFRN.

Linha de Pesquisa: Metafsica.

Orientador: Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes

Costa.

RECIFE

2017

Catalogao na fonte

Bibliotecria Maria Janeide Pereira da Silva, CRB4-1262

Pereira Jnior, Antonio.

A superao da superao : apropriao/superao da dvida

acadmica na busca da verdade na filosofia da interioridade de Santo

Agostinho / Antonio Pereira Jnior. 2017.

209 f. ; 30 cm.

Orientador : Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa.

Tese (doutorado) - Universidade Federal de Pernambuco, CFCH.

Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Recife, 2017.

Inclui Referncias.

1. Filosofia. 2. Ceticismo. 3. Verdade. 4. Dvida razovel. 5.

Iluminao Religio. 6. Iluminao divina. I. Costa, Marcos

Roberto Nunes (Orientador). II. Ttulo.

100 CDD (22. ed.) UFPE (BCFCH2017-123)

ANTONIO PEREIRA JNIOR

A SUPERAO DA SUPERAO: APROPRIAO/SUPERAO DA DVIDA

ACADMICA NA BUSCA DA VERDADE NA FILOSOFIA DA INTERIORIDADE

DE SANTO AGOSTINHO

Tese apresentada ao Programa de Doutorado

Integrado em Filosofia UFPE/UFRN/UFPB,

como requisito parcial para a obteno do ttulo

de Doutor em Filosofia.

Aprovada em 02/06/2017.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (Orientador)

Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Jesus Vasquez Torres (1 Examinador Interno)

Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Alfredo de Oliveira Moraes (2 Examinador Interno)

Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Nilo Csar Batista da Silva (1 Examinador Externo)

Universidade Federal de Sergipe

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Ricardo Evangelista Brando (2 Examinador Externo)

Instituto Federal de Alagoas

Verdade Eterna,

Luz imutvel, o Deus imanente-transcendente

de Aurelius Augustinus.

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Antonio Pereira da Silva (in memoriam) e Terezinha de Paiva Pereira

pelo amor e dedicao ao longo da minha vida.

Aos meus irmos pelo apoio e incentivo.

minha esposa Alessandra Rosa da Silva, meu seguro porto nesta extensa jornada de

estudos. Grato por amor, carinho, apoio e dedicao nos perodos em que no pude estar

presente.

Aos meus filhos Maria Isabel e Bernardo Augusto pela compreenso nas minhas mui

dolorosas ausncias.

Ao meu orientador, o Professor Dr. Marcos Roberto Nunes Costa pela amizade, pelos

inestimveis conhecimentos passados, pela pacincia, compreenso, dedicao e

acompanhamento ao longo de todo este trabalho.

Aos membros da banca examinadora os professores: Dr. Nilo Csar Batista da Silva

(UFS), Dr. Ricardo Evangelista Brando (IFAL), Dr. Alfredo Moraes (UFPE) e o Dr. Jesus

Vasquez (UFPE) pelas valiosas contribuies que muito enriqueceram este trabalho.

Aos colegas do Departamento de Administrao da UERN pelo suporte e apoio.

Comunidade Catlica Shekin e ao seu Departamento de Estudos Bblicos e

Religiosos - DEBIR por despertar em meu esprito o ardente desejo pelo estudo da Filosofia.

Enfim, a todos que contriburam direta ou indiretamente para o desenvolvimento desta

pesquisa, meu muito obrigado!

Empenhei o meu corao no conhecimento da sabedoria, do engano e da loucura; e

percebi que isso tambm sofrimento e angstia para o esprito. Porque na muita

sabedoria, h muito enfado, e quem aumenta em cincia, aumenta tambm na dor

(Ecle. I, 17-18 - traduo nossa).

Dedique cor meum ut scirem prudentiam atque doctrinam erroresque et stultitiam et

agnovi quod in his quoque esset labor et adflictio spiritus eo quod in multa sapientia

multa sit indignatio et qui addit scientiam addat et laborem (Ecle. I, 17-18).

RESUMO

Nossa tese est assentada na hiptese de que Santo Agostinho se apropriou da dvida ctico-

acadmica, incorporando-a em seu mtodo dialtico-investigativo de busca da Verdade, com o

intuito de superar o ceticismo vigente na Academia Mdia de Plato. Para isso, apresentou

argumentos contra o ceticismo enquadrando-os em todos os segmentos das pathematas da alma

apresentadas no livro VI de A Repblica, as quais esto dispostas no esquema da linha

dividida do ilustre Filsofo grego: eikasia, pistis, dianoia e noesis. Dentre os argumentos

apresentados pelo Santo Doutor de Hipona, ganha destaque sua arrojada frmula si fallor, sun

se me engano, existo , denominada por ns neste estudo de dvida ontolgico-existencial.

Contudo, a Verdade s ser efetivamente alcanada no nvel notico de pensamento, mediante

processo de Iluminao divina, que acontece no intelecto humano, momento que em h uma

superao da prpria filosofia/dialtica, cuja denominao emblema o ttulo de nosso trabalho:

a superao da superao.

Palavras-chave: Santo Agostinho. Dvida. Verdade. Ceticismo. Iluminao Divina.

ABSTRACT

Our thesis is based on the hypothesis that St. Augustine appropriated the skeptic-academic

doubt, incorporating it into his dialectical-investigative method of seeking the Truth, with the

aim of overcoming the skepticism prevailing in Plato's Middle Academy. In order to do so, he

presented arguments against skepticism by framing them in all segments of the soul pathematas

presented in Book VI of "The Republic", which are arranged in the "divided line" scheme of

the illustrious Greek Philosopher: eikasia, pistis, dianoia And noesis. Among the arguments

presented by the Holy Doctor of Hippo, his bold formula stands out as si fallor, sun - if I am

mistaken, I exist -, called by us in this study of existential ontological doubt. However, the

Truth will only be effectively achieved at the noetic level of thought, through a process of divine

enlightenment, which takes place in the human intellect, a moment in which there is an

overcoming of philosophy / dialectic itself, whose denomination emblems the title of our work:

the overcoming of overcoming".

Keywords: Saint Augustine. Doubt. Truth. Skepticism. Divine Illumination.

SUMRIO

1 INTRODUO ............................................................................................................ 12

2 AGOSTINHO E O CETICISMO: APONTAMENTOS PRELIMINARES ............... 18

2.1 O CETICISMO GREGO E SUA INFLUNCIA NO PENSAMENTO DE SANTO

AGOSTINHO ................................................................................................................ 19

2.1.1 O ceticismo grego: um apanhado histrico ................................................................ 20

2.1.2 A tradio pirrnica: principais expoentes ................................................................. 22

2.2 A TRADIO ACADMICA ........................................................................................ 28

2.3 O ECLETISMO ROMANO DE MARCUS TULLIUS CICERO: HISTRICO ............. 47

2.3.1 O ceticismo acadmico de Ccero ................................................................................ 49

2.3.2 A obra Academica de Ccero ....................................................................................... 52

3 EM BUSCA DA VERDADE: PRIMEIRAS INQUIETAES ................................ 54

3.1 A TRAJETRIA INTELECTUAL DE SANTO AGOSTINHO: SEUS PRIMEIROS

ESTUDOS, O HORTENSIUS E O NEOPLATONISMO............................................... 54

3.1.1 A influncia de Ccero e a leitura do Hortensius ....................................................... 56

3.1.2 Agostinho e o maniquesmo ........................................................................................ 60

3.1.3 Uma curta temporada no ceticismo ............................................................................. 63

3.1.4 De frente com Ambrsio, Bispo de Milo ................................................................... 67

3.1.5 O encontro com a ontologia grega: a leitura dos Libri Platonicorum ...................... 69

3.2 A INFLUNCIA NEOPLATNICA NO PENSAMENTO DE AGOSTINHO ............... 78

3.2.1 As trades hipostticas de Plotino e o Deus Tri-Uno cristo ...................................... 79

3.2.2 A superao da teoria da participao de Plotino pelo vnculo ontolgico das criaturas

com o Criador em Santo Agostinho ............................................................................ 81

3.2.3 Agostinho e o problema ontolgico do mal: uma explicao plotiniana .................. 84

3.2.4 O modelo asctico-mstico de retorno da alma a Deus pelo movimento de converso

da psych ao Uno ......................................................................................................... 85

4 APROPRIAO E SUPERAO DA DVIDA ACADMICA NA BUSCA DA

VERDADE ................................................................................................................... 88

4.1 O MTODO DIALTICO-AGOSTINIANO DE BUSCA DA VERDADE .................... 92

4.1.1 Caractersticas do mtodo dialtico-agostiniano ........................................................ 92

4.1.2 mtodo dialtico ( ) no horizonte histrico-filosfico .............. 96

4.1.2.1 A dialtica platnica ..................................................................................................... 96

4.1.2.2 A dialtica aristotlica.................................................................................................. 99

4.1.2.3 A dialtica dos esticos .............................................................................................. 101

4.1.3 Linguagem e dialtica no pensamento de Santo Agostinho .................................... 103

4.1.4 O mtodo agostiniano inquiridor: discusso (disputatio), questo (quaestio),

descoberta (inventio) .................................................................................................. 109

4.1.5 O ncleo a priori do mtodo investigativo-agostiniano: credo ut intelligam,

intelligo ut credam ................................................................................................... 112

4.2 A APROPRIAO DA DVIDA CTICA-ACADMICA COMO INSTRUMENTO DE

BUSCA DA VERDADE ............................................................................................... 119

4.2.1 O mtodo dialtico-socrtico-agostiniano de perguntas e respostas ....................... 120

4.3 A SUPERAO DA DVIDA CTICA-ACADMICA ............................................. 124

4.3.1 A gnosiologia agostiniana ......................................................................................... 125

4.3.1.1 A constituio fsica, metafsica e ontolgica do homem ........................................... 126

4.3.1.2 A teoria da sensao agostiniana e sua relao com o processo de construo do

conhecimento sensvel ................................................................................................ 143

4.3.2 A teoria do conhecimento de Agostinho e sua relao com a linha dividida de

Plato ....................................................................................................................... 148

4.3.3 A apreenso do conhecimento sensvel eikasia/pistis: as imagens, os ob-jectos e o

mundo ........................................................................................................................ 153

4.3.4 A apreenso do conhecimento dianotico: as evidncias matemticas ................ 160

4.3.5 Si fallor sum a superao dvida ontolgica-existencial em Santo Agostinho: a

autonotica ................................................................................................................. 164

4.3.5.1 Enquadramento terminolgico: o vocbulo autonotica ....................................... 164

4.3.5.2 O processo de superao da dvida ontolgica-existencial em Agostinho ............... 165

5 A SUPERAO DA SUPERAO: O ENCONTRO COM A VERDADE NA

DOUTRINA DA ILUMINAO DIVINA ............................................................ 173

5.1 A TEORIA DA ILUMINAO DIVINA DE SANTO AGOSTINHO:

CONSIDERAES INICIAIS .................................................................................. 174

5.2 A ILUMINAO DIVINA: UMA SUPERAO/(RE)INTERPRETAO CRIST

DA TEORIA DA REMINISCNCIA PLATNICA ................................................ 176

5.3 A SUPERAO DA SUPERAO: SALTO, TRANSCENDNCIA E

ILUMINAO NA GNOSIOLOGIA AGOSTINIANA ........................................... 187

5.4 MAPEAMENTO SINTTICO DO MODELO DE APROPRIAO/SUPERAO DA

DVIDA ACADMICA NA FILOSOFIA DA INTERIORIDADE DE SANTO

AGOSTINHO .............................................................................................................. 193

5.4.1 A apropriao da dvida ctico-acadmica ........................................................... 193

5.4.2 A superao da dvida ctico-acadmica ............................................................... 195

5.4.3 A superao da superao: a Iluminao divina no homem ................................ 196

6 CONCLUSO ........................................................................................................... 198

REFERNCIAS ................................................................................................................... 204

APNDICE ........................................................................................................................... 208

12

1 INTRODUO

A formao completa do homem no sculo IV se dava mediante o cumprimento das

chamadas Artes Liberais, compostas pelo trivium (gramtica, dialtica e retrica) e o

quadrivium (aritmtica, geometria, msica e astronomia). Agostinho passou por todo este

processo de formao intelectual, alm de experienciar e conhecer doutrinas filosfico-

religiosas materialistas como o maniquesmo; a grande filosofia grega representada pelo

racionalismo dialtico de Plato; e ainda, a filosofia cosmolgico-espiritualista dos

neoplatnicos Plotino, Porfrio, Jmblico e Apuleio.

Toda esta slida formao intelectual, mostrou-se fator determinante para que o nosso

Filsofo, fosse capaz de tratar de forma maestral uma vasta gama de assuntos filosficos-

teolgicos ao longo de toda a sua vida. Todavia, nenhum tema despertou mais ateno de

Agostinho do que a Verdade (Veritas). Toda a construo do sistema filosfico-metafsico-

teleolgico agostiniano se deu a partir de suas elucubraes acerca da Verdade. Da, ser esta

mesma Verdade, vertente transversal em praticamente toda a sua obra.

Deste modo, o Santo Doutor idealizou um mtodo dialtico-investigativo-filosfico,

especialmente usado em seus primeiros dilogos, que muito contribuiu para a superao do

ceticismo e da dvida quanto ao conhecimento em nvel sensvel e, consequentemente, para a

descoberta das realidades inteligveis que culminaria na contemplao intelectiva da eterna

Verdade transcendente, que tanto desassossego causou ao cor inquietum do Nosso Pensador.

Com isto em mente, indagamos de que forma foi desenvolvido o mtodo filosfico-

perquiridor de busca da Verdade de Santo Agostinho, como est composto o arcabouo

estrutural deste modelo de investigao filosfica e at que ponto o pensamento platnico

afetou na construo do seu modelo dialtico-especulativo e em sua teoria da Iluminao

Divina.

Para responder a problemtica supracitada, sustentaremos a hiptese de que nosso

Filsofo se apropriou da dvida acadmica, incorporando-a em seu mtodo dialtico-

investigativo de busca da Verdade, com o intuito de superar o ceticismo vigente da Nova

Academia. E ainda, que ao expor seus argumentos contra os cticos, o Santo Doutor atravessou

todas as pathematas da alma apresentadas no livro VI de A Repblica de Plato, as quais

esto dispostas no esquema da linha dividida do Filsofo ateniense: eikasia, pistis, dianoia e

noesis. Contudo, a Verdade s ser efetivamente alcanada no nvel notico de pensamento

mediante processo de Iluminao divina, que acontece no intelecto humano, momento que em

13

h uma superao da prpria filosofia/dialtica cuja denominao, emblema o ttulo de nosso

trabalho: superao da superao.

Entrementes, nossa hiptese principal desdobra-se em trs sub-hipteses distintas,

onde primeiramente demonstraremos que a dvida, entendida como mtodo investigativo da

verdade, alm de ser resqucio da poca em que Agostinho aderiu a doutrina ctica, surgiu

tambm da sua inquietao e do seu descontentamento com a doutrina do no-assentimento da

verdade.

Em meio a isto, defenderemos que ao ultrapassar o nvel dianotico de pensamento,

Santo Agostinho supera o platonismo, no momento em que reveste a dvida com um carter

ontolgico-existencial representado na frmula si, fallor sum deslocando o ngulo de

pensamento, de uma realidade ad extra para uma realidade ad intra, em que o eu-pensante

reflete sobre a sua prpria existencialidade no mundo, numa pathemata anmica bastante

especfica deste campo do conhecimento agostiniano, a qual ser denominado por ns de:

afeco autonotica.

Por fim, testificaremos que a que a dvida acadmica passa a ser o elemento primordial

que impulsiona o homem rumo ao conhecimento de si mesmo e, consequentemente, das

verdades eternas e inteligveis veladas no interior do homem. Entretanto, esta Verdade

inteligvel-transcendente s ser alcanada mediante a superao da superao, ou seja, pelo

deslocamento da busca, do campo da razo para o transcendente por meio de uma espcie de

salto metafsico da alma, do nvel de afeco autonotico para o notico propriamente dito.

Isto posto, nossa pesquisa pretende demonstrar como Santo Agostinho se apropriou da

dvida ctico-acadmica utilizando-a como instrumento capaz de superar o prprio ceticismo

vigente na Nova Academia de Plato, com o fim de alcanar a Verdade inteligvel velada no

interior do homem, a qual s poder ser alcanada em sua plenitude mediante processo de

Iluminao divina, no exato instante em que ocorre o salto metafsico da alma no inteligvel-

transcendente, efetivando com isto, a contemplao das Ideias eternas e da prpria Verdade, no

interior do homem.

Assim, em linhas gerais, esta tese trata-se de um estudo gnosiolgico sobre o itinerrio

dialtico-intelectual traado por Aurelius Augustinus em sua inquietante busca pela Verdade.

, em outras palavras, uma investigao filosfica sobre a metafsica da interioridade

agostiniana, meio pelo qual, nosso Filsofo se utilizou para estabelecer o processo de

apropriao e superao da dvida ctico-acadmica, em detrimento da incerteza do

assentimento racional da Verdade, que s poder ser alcanada mediante a transcendncia da

14

prpria filosofia/dialtica, em um novo movimento anmico-intelectivo, por ns denominado

de superao da superao.

Tal singularidade, assenta nossa tnica (a Verdade), entre as mais proeminentes

temticas j estudadas no agostinianismo, seja num remoto passado perodo medievo , seja

hodiernamente. Dessarte, o fato de ser uma matria to amplamente estudada, em nada reduz

sua relevncia, tampouco implica este fato, no esgotamento das possibilidades de uma

hermenutica slida e adjacente ao genuno pensamento do Santo Doutor. Ao contrrio, o

tpico se mantm fecundo, alavancando a produo do conhecimento metafsico-filosfico e,

consequentemente, contribuindo para o enriquecimento e a difuso de todo o corpus

agostiniano at os dias de hoje.

Em termos metodolgicos, ser utilizado o mtodo hipottico-dedutivo, dada a sua

capacidade de encontrar solues para problemas por meio do uso da razo, a partir da

formulao de hipteses previamente estabelecidas.

Assim sendo, nosso trabalho constitui-se uma pesquisa bibliogrfica que ser

norteada pela leitura do Contra Academicos obra principal deste estudo -,e de outras obras

do Santo Doutor como, os Soliloquiorum, De Beata Vita, De Dialectica, De Libero Arbitrio,

alm de obras mais tardias como, Confissiones, De Civitate Dei e De Trinitate que tambm

abordaram a questo da dvida ctica e o problema do assentamento e encontro com a

Verdade. Desta forma, com o intuito de ser o mais fiel possvel s fontes latinas primrias e,

consequentemente, ao pensamento do hipponensis, optamos pela leitura dos textos originais

em latim, extrados das Obras Completas de San Agustn (edio bilingue) publicada pela

Biblioteca de Autores Cristianos BAC.

Alm disso, dada especificidade e carater do tema proposto, realizar-se- uma

pesquisa bibliogrfica junto aos principais autores e comentadores de Santo Agostinho que

trataram a temtica em questo, ressaltando quelas obras clssicas, por assim dizer, que

acabaram se tornando fontes obrigatrias a todos aqueles que se propuseram a estudar o tema

proposto, como por exemplo, a obra do grande medievalista da Academia francesa tienne

Gilson, intitulada Introduction ltude de saint Augustin; a reconhecida obra do professor

Maurice Testard, Saint Augustin et Cicron: Cicron dans la Formation et dans Loeuvre de

Saint Augustin; tambm no poderamos deixar de consultar o padre Victorino Capnaga e sua

obra Agustn de Hipona: Maestro de la Conversin Cristiana; por fim, fizemos uso do

possante Diccionario de San Agustn do monge e pesquisador agostiniano Allan Fitzgerald,

que muito nos auxiliou ao longo de toda dissertao de nossa tese.

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Em pronta apresentao terica, temos primeiramente, que todo o mtodo

especulativo-filosfico de busca da Verdade de Santo Agostinho, precedido pelo que

denominamos ncleo a priori do mtodo agostiniano, cuja legenda representada na

mxima: credo ut intelligam, intelligo ut credam (creio para compreender, compreendo para

crer). Agostinho no abre mo desta condio fundamental do filosofar cristo, ela que

anteriorizar todo esquema metafsico-terico do mtodo proposto pelo Santo Doutor.

Com isto em mente, Santo Agostinho inicia seu debate (disputatio) sobre a Verdade,

discursando contra os cticos acadmicos, que em sua poca estavam vinculados Nova

Academia ou Terceira Academia, os quais negavam a possibilidade de assentimento da verdade.

Para tal, Agostinho, em um retiro filosfico no vilarejo de Cassicaco, escreve o Contra

Academicos onde, com o intuito de combater os argumentos daqueles Filsofos, se apropria da

dvida ctica e a utiliza como instrumento metodolgico em seu processo epistemolgico-

dialtico de busca da verdade.

No entanto, diferentemente dos acadmicos, o Bispo de Hippo no estaciona na dvida

(quaestio), ao contrrio, ele a supera demonstrando aos cticos que possvel apreender e

assentir algumas verdades filosficas. Entrementes, na construo dos seus argumentos,

notaremos que Santo Agostinho desenvolve-os medida que percorre o caminho gnosiolgico

apresentado por Plato no livro VI de A Repblica o qual convencionou-se denominar, teoria

da linha dividida: eikasia, pistis, dianoia e noesis.

Assim sendo, ao ultrapassar a pathemata dianotica Agostinho, ainda de posse de seu

instrumento dubitativo neste caso, a dvida ontolgico-existencial , promove pela primeira

vez na histria da filosofia, uma reflexo ontolgica sobre a sua prpria existencialidade no

mundo, representada na frmula: Si fallor, sum (Se me engano, existo). Por se tratar de uma

autorreflexo sobre si-mesmo, denominamos esta afeco: autonosis.

Neste itinerrio dialtico-metafsico-gnosiolgico de investigao da Verdade,

podemos ainda notar um terceiro momento, que colocar o homem em contato direto com o

inteligvel-transcendente (inventio), o que denominaremos neste estudo de: superao da

superao, a qual faz ponto coincidente com eminente doutrina agostiniana da iluminao

divina.

Como bem percebemos, trs elementos gravitam em torno do esquema especulativo-

inquiridor de busca da Verdade de Agostinho: o ncleo a priori credo ut intelligam, intelligo

ut credam; a apropriao e superao da dvida acadmica; e por fim, a superao da

superao. Pari passo, na medida em que o mtodo transcorre seu curso dialtico, identificamos

como partes integrantes do processo de apropriao/superao da dvida acadmica, a

16

disputatio (discurso), a quaestio (questo ou dvida) e a inventio (descoberta) que apontam

para aplicao prtica deste mesmo processo, do qual nos propomos a estudar.

Isto posto, nossa pesquisa integra uma estrutura formada por quatro captulos. A

primeira parte destinada a um captulo propedutico sobre a histria do ceticismo grego.

Nosso intuito localizar no tempo e no espao, o tipo exato de ceticismo combatido por Santo

Agostinho no Contra Academicos, bem como, em outras de suas obras mais tardias. Alm disso,

um apanhado histrico sobre o ceticismo, em muito auxiliar o leitor interessado, na

compreenso de algumas terminologias cticas usadas por Agostinho como, por exemplo, o

pithanon e o eulogon , que somente luz de um entendimento mais acurado sobre esta escola,

seria possvel entender a carga semntica que envolve estas terminologias.

No segundo captulo, apresentaremos a trajetria intelectual de Aurelius Augustinus,

suas principais influncias de Plato a Ambrsio de Milo , sua experincia frustrante com

o maniquesmo, sua curta temporada no ceticismo, seu contato com a ontologia grega atravs

dos libri platonicorum; e como tudo isto afetou intelectualmente o Filsofo africano, na

construo do seu mtodo de busca do conhecimento/Verdade.

O terceiro captulo , sem dvida, o ncleo medular de toda tese. Nele ser apresentado

todo processo de apropriao/superao da dvida ctico-acadmica com todas as suas

caractersticas prprias, sejam: quanto a sua funo teleolgica, quanto ao seu carter

ascensional, quanto sua interioridade etc. Dado ao carter de interioridade do mtodo

agostiniano, procuramos delinear neste captulo, ainda que de forma rudimentar e limitada, a

estrutura da alma humana segundo pensada pelo Santo Doutor, para que atravs do

conhecimento da alma, conhea-se tambm, o itinerrio a ser tomado rumo Verdade.

Ainda neste captulo, mostraremos tambm, como o processo que reveste o mtodo

dialtico-agostiniano disputatio, quaestio einventio corresponde ao modelo de

apropriao/superao da dvida acadmica, conforme sugerimos em nosso estudo. Na

sequncia, apresentaremos como se d o processo de construo do conhecimento sensvel em

Agostinho, assim como, a relao sensao/corpo/alma no mbito sensvel.

Enfim, privilegiaremos tambm um espao neste tpico para abordar a relao da

gnosiologia agostiniana com a teoria da linha dividida de Plato, onde veremos como

Agostinho percorreu todos os nveis de afeco da alma da linha dividida, evidenciando a

possibilidade de conhecimento em todos os seguimentos da referida linha. Mais que isto,

ultrapassando a lgica do pensamento platnico e ainda tomando a dvida como instrumento

norteador do seu mtodo, Agostinho avanou ainda mais, ao propor um novo modo de pensar

na filosofia, o pensar na primeira pessoa, onde o eu-pensante reflete, sobre sua prpria

17

existencialidade no mundo. Neste momento, Agostinho eleva a dvida ao seu estado mais

desesperador e angustiante ao permitir-se cogitar sobre a possibilidade de sua no-existncia

no mundo, pensamento este representado na frmula: si fallor, sum.

Alm da alegoria da linha dividida, outras metforas platnicas adjacentes a esta,

reverberam-se no pensamento Santo Agostinho, como o caso, da metfora do sol e do clebre

mito da caverna, que designam no projeto gnosiolgico construdo pelo Bispo de Hipona, a

trajetria da interioridade-ascensional da alma, cuja imagem do sol representao comum a

ambas alegorias platnicas mantm fina relao com a doutrina da Iluminao divina

agostiniana, a qual ser abordada no captulo subsequente.

Desta forma, o quarto e ltimo captulo da nossa tese ser destinado superao da

superao, ou seja, ao momento em que, aps remover a dvida acadmica do caminho da

Verdade, Agostinho realiza um novo movimento intelectivo-racional em direo esta mesma

Verdade, que encontra-se paradoxalmente em seu interior ao mesmo tempo que o transcende.

Assim, esta nova manobra intelectiva da alma, pode ser entendida como um salto

metafsico na mais profunda camada anmica j experimentada pelo homem. Um local no-

espacial da alma, to ntimo e penetrante que transcende o seu prprio interior ou, porque no

dizer, o prprio esprito (spiritus) do homem, que aqui se confunde com sua prpria mens. No

foroso lembrar que todo este movimento acontece na pathemata notica de pensamento, via

processo de iluminao divina, a qual ser apresentada e detalhada no decorrer do captulo.

Isto posto, podemos ento considerar a superao da superao como o fim teleolgico

de todo o sistema epistemolgico-metafsico-filosfico de Santo Agostinho. nela (superao

da superao) onde se efetiva o (re)encontro do homem com o seu Princpio Ontolgico

(Deus/Verdade), o que faz desta superao um momento incisivo e determinante no pensamento

do Santo Doutor, haja vista ser neste ponto da linha segmentada (nvel notico), onde se realiza

a felicidade plena do Filsofo-cristo. Nisto consiste o eudaimonismo ()

agostiniano, a busca pelo Sagrado que h em ns.

18

2 AGOSTINHO E O CETICISMO: APONTAMENTOS PRELIMINARES

No sculo IV, o cristianismo havia se consolidado ante o Imprio Romano. Porm,

apesar da fora do seu crescimento, muitas outras doutrinas surgiam e se difundiam ameaando

a f crist. Algumas ainda resistiam ao tempo, como foi o caso do Ceticismo Grego, que havia

se instaurado na Academia de Plato por meio de seus escolarcas Arcesilau e Carnades,

sculos depois da morte do seu fundador.

O ceticismo foi uma corrente filosfica que floresceu na Grcia Antiga entre os

sculos III e IV a.C. assegurando a impossibilidade do conhecimento. Acredita-se que o

ceticismo teve sua origem com Pirro de lis (365-270 a.C.), Filsofo que elevou a conduta

ctica ao seu mais alto grau de radicalismo. Numa anlise etimolgica, verificamos que o termo

ceticismo deriva do grego skeptomai () que pode ser traduzido por olhar

atentamente, perscrutar ou examinar. Sua etimologia remonta palavra grega skepsis

(), que numa traduo literal significa exame. Esta, por sua vez, remete ao substantivo

grego busca.

Quanto a sua filosofia, os cticos pirrnicos, como eram assim denominados os antigos

adeptos do ceticismo, asseguravam que nenhum tipo de conhecimento era possvel conforme

escreve Santo Agostinho no Contra Academicos: O homem no pode saber nada ao certo

(Contra acad., 3, 7 - traduo nossa)1. Esse posicionamento antidogmtico prevaleceu durante

algum tempo nesta escola, sendo aos poucos amenizada, porm, sempre prevalecendo a ideia

da no possibilidade do assentimento da verdade dada incapacidade dos sentidos em

apreender as coisas externas.

Tomando isto como base, o conhecimento no seria possvel e, consequentemente a

verdade tambm no poderia ser jamais apreendida nem tampouco assentida. Entrementes, o

Doutor de Hipona se apresenta como uma importante personagem contra os cticos, em defesa

do assentimento da Verdade, e a principal obra onde este embate epistemolgico acontece no

Contra Academicos.

O Contra Academicos foi a primeira obra escrita de Santo Agostinho que chegou at

ns. Foi redigida logo aps sua converso ao cristianismo, na vila de Cassicaco, lugar onde o

Santo Doutor havia se retirado para dar incio o seu otium philosophicum comumente chamado

1 l homme ne peut rien savoir dune manire certaine". A presente citao refere-se, na verdade, ao fragmento

101 do livro Hortensius, de Cceron. Este livro, hoje perdido, foi o responsvel pelo despertar de Santo Agostinho

para filosofia. Conforme ele prprio cita em suas Confisses, o mesmo se tratava de uma exortao ao estudo da

filosofia.

19

de retiro de Cassicaco, juntamente com sua me e alguns parentes e amigos. Trata-se de um

dilogo que tem como personagens Navgio, irmo de Agostinho, seu amigo Alpio, e seus dois

discpulos: Licnio e Trigcio, filhos de Romaniano, seu amigo e antigo mecenas, alm claro,

do prprio Agostinho que protagoniza todo o dilogo.

O tema central discutido no Contra Academicos o conhecimento, ou mais

precisamente, a possibilidade de acesso do homem a este conhecimento. O tema levantado

por Santo Agostinho em consequncia forte influncia do ceticismo em sua poca, o qual

sustentava a impossibilidade de apreenso de qualquer conhecimento por parte do indivduo,

devido incapacidade dos sentidos para alcanar realidade das coisas.

Em sua estrutura, o Contra Academicos est divido em trs livros, nos quais so

apresentadas seis discusses sobre a questo epistemolgica da possibilidade de apreenso da

Verdade. Dessa forma, so estas as principais problemticas que contornam a obra em questo

e que Santo Agostinho tentar resolver: a Verdade acessvel ao homem? Podemos ser felizes

apenas buscando a Verdade sem a pretenso de encontr-la? O sbio pode dar o seu

assentimento a alguma coisa? E, podemos confiar em nossos sentidos como fonte de nossos

conhecimentos? Para solucionar essas aporias, Santo Agostinho apresenta uma srie de

argumentos que tentam resolver o problema ctico do conhecimento os quais sero

problematizados e analisados nesta pesquisa.

2.1 O CETICISMO GREGO E SUA INFLUNCIA NO PENSAMENTO DE SANTO

AGOSTINHO

Que a verdade? A resposta para essa pergunta vem inquietando filsofos do mundo

inteiro desde a antiguidade. Porm, tal problema assume uma dimenso ainda mais profunda

quando acompanhado a este, associamos outra questo no menos dificultosa: possvel se

conhecer a verdade? Uma grande corrente filosfica conhecida pelo nome de Ceticismo

Acadmico defendia que verdade nenhuma poderia ser alcanada, mas, apenas procurada

incansavelmente sem a pretenso de encontr-la, posto que a mesma encontrava-se velada e

inacessvel ao homem.

Santo Agostinho se ops a esta corrente, a qual passou a combater, imputando-lhes

argumentos bastante slidos e dificultosos de serem refutados. Em meio a tais argumentos,

ganha destaque o Si fallor, sum (se me engano, existo), um autntico e arrojado esquema

axiomtico desenvolvido pelo Santo Doutor para desmontar o ceticismo em seu prprio solo.

Tal argumento ser detalhado mais adiante.

20

Porm, para uma melhor compreenso do posicionamento de Agostinho sobre o

ceticismo grego, bem como, entender os principais contrapontos levantados por este Filsofo

esta escola, mister se faz conhecer primeiramente a origem do ceticismo, seus principais

representantes e ensinamentos.

2.1.1 O ceticismo grego: um apanhado histrico

Como anunciamos no incio este captulo, o ceticismo foi uma corrente filosfica que

floresceu na Grcia antiga entre os sculos III e IV a.C. assegurando a impossibilidade do

conhecimento ou do acesso verdade. Acredita-se que o ceticismo teve sua origem com Pirro

de lis (365-270 a.C.), filsofo que elevou a conduta ctica ao seu mais alto grau de

radicalismo.

Tal movimento filosfico pode ser caracterizado segundo a sua conduta ou modo de

agir. Assim, o carter investigativo atribui aos cticos a denominao de zetticos ()

ou aqueles dispostos ou aptos a investigar; da: por suspenderem seu juzo ante a

equipolncias dos argumentos, foram chamados de efticos (); por costumeiramente

duvidarem de tudo, exceto dos fenmenos, foram denominados aporticos () e, por

fim, os cticos so considerados pirrnicos devido ao seu fundador Pirro de lis.

Na histria do ceticismo ainda possvel perceber algumas mudanas de ordem

gnosiolgica no pensamento ctico. Seus representantes foram aos poucos se afastando do

modo de vida adotado pelo seu fundador e consequentemente dando uma nova roupagem ao

movimento em relao s suas origens. Esse distanciamento, de certa forma, acabou

acarretando o surgimento do que os historiadores denominaram de fases do ceticismo.

A primeira fase corresponde ao ceticismo antigo que se desenvolveu entre os sculos

IV e III a.C., tendo como principais representantes o seu fundador, Pirro de lis e seu discpulo

Timo. Foi nessa fase que o ceticismo viveu a sua forma mais radical, negando a existncia at

mesmo dos fenmenos (), ou seja, daquilo que aparece e est nossa frente.

Todo esse radicalismo seria amenizado na segunda fase desta escola, o ceticismo acadmico.

A segunda fase do ceticismo recebeu a denominao de Acadmico por ter se

desenvolvido no seio da Academia de Plato aps sua morte em 347 a.C. Seus principais

representantes foram Arcesilau, que segundo Digenes Lartios foi o fundador da Academia

Mdia e o primeiro a adotar a epoch () (cf. Vidas, IV, 28) e Carnades que adotou o

21

pithanon ()2 como resposta a questo das representaes que ora se apresentam como

verdadeiras, ora como falsas.

A terceira fase do ceticismo foi caracterizada pelo seu cunho dialtico. Sua finalidade

principal foi combater o dogmatismo da doutrina platnica e seus principais nomes foram

Enesidemo e Agripa. Enesidemo foi considerado por muitos Filsofos como um dos mais fortes

representantes do ceticismo grego. Em sua doutrina apresentou os dez tropos () (cf.

Vidas, IX, 78-79) ou modos que asseguram os motivos pelos quais o ctico deve suspender seu

juzo. Sobre Agripa pouco se sabe, a no ser pelos doxgrafos Sexto Emprico e Digenes

Larcio (cf. H.P. I, 167-177 e Vidas, IX, 88-99), que afirmam ter Agripa acrescentado mais

cinco tropos aos j existentes.

Por fim, a quarta e ltima fase do ceticismo grego est sob a orientao dos mdicos

empiristas Sexto, Menodoto e Teodas. Brochard (1959) divide esta fase em duas partes

distintas: uma parte denominada por ele de negativa ou destrutiva e outra de positiva ou

construtiva. Na parte negativa o ceticismo emprico assemelha-se ao ceticismo dialtico,

principalmente no que diz respeito desconstruo das teses dos dogmticos, opondo

experincia ou observao filosofia. Nisso no diferenciaram muito de Enesidemo e Agripa.

A parte positiva do ceticismo emprico est relacionada sua adeso ao fenmeno ou s coisas

evidentes. Sexto Emprico confirma:

Quem afirma que o ctico no admite aquilo que aparece no compreendeu o que

dissemos. Pois, como dissemos anteriormente, certamente no refutamos as

aparncias sensveis. Mas quando investigamos a essncia tal qual aparece assentimos

sobre aquilo que aparece, o que est evidente, mas [quando] investigamos o que

aparece sobre o que se diz acerca do que aparece (H.P. I, 19 - traduo nossa)3.

Como podemos perceber na citao de Sexto Emprico, o ceticismo emprico concede

o assentimento () s coisas evidentes, que fazem parte do dia-a-dia do ctico, como

foi mostrado anteriormente, o que se questiona se as coisas que aparecem condizem de fato

com sua essncia. Sobre esse ponto especfico, Sexto Emprico aconselha a suspenso de juzo

ou utilizando o termo grego, a epoch.

Perpassando essas fases, percebemos um determinado afastamento do ceticismo

pirrnico na fase inerente ao ceticismo acadmico, ficando, assim, a primeira, a terceira e a

2 Traduo: Provvel. Ccero utiliza o termo latino fortasse (provvel) para traduzir a palavra grega . Da

Carnades ser considerado um ctico probabilista. 3 '

,

. , ,

, ' .

22

quarta fases relacionadas tradio pirrnica propriamente dita, enquanto a segunda fase

ligava-se ao que se convencionou chamar de tradio acadmica.

A fim de auxiliar no cumprimento dos objetivos propostos por esta pesquisa, o presente

trabalho obedecer a uma estrutura no relacionada s fases do ceticismo, mas s tradies nelas

existentes. O intuito isolar a fase acadmica em um captulo parte para melhor analis-la,

uma vez que, ao que tudo indica, foi a essa fase que Santo Agostinho direcionou a sua crtica,

a qual pode ser encontrada nos registros de Contra Academicos.

2.1.2 A tradio pirrnica: principais expoentes

Sobre a tradio pirrnica, compartilha desse pensamento o ceticismo desenvolvido

nas seguintes fases: o antigo ou pirrnico, como no poderia deixar de ser, devido ao seu

fundador, bem como o ceticismo dialtico e o emprico, ambos com uma postura bem mais

amena e menos radical do que o ceticismo pirrnico. Porm, antes de tratar da tradio pirrnica

propriamente dita, convm considerar ainda que, segundo Brochard (1959), alguns

historiadores fizeram uma diviso bastante simples do ceticismo: diferenciaram-no apenas

como sendo o antigo e o novo ceticismo, colocando nessa ltima diviso os acadmicos.

As semelhanas e diferenas existentes entre as fases do ceticismo j foram abordadas

no tpico anterior, porm, faz-se necessrio notar que, no que diz respeito tradio do

ceticismo, h algumas divergncias de opinies quanto ao incio do novo ceticismo. O problema

gira em torno da localizao de Enesidemo nessa diviso. O doxgrafo Digenes Larcio,

sempre, ao referir-se a Enesidemo, coloca-o ao lado de Pirro e de seu discpulo Timo,

representantes do ceticismo antigo. Assim, lemos em Digenes Larcio:

Pode-se compreender todo o modo de dedues conclusivas dos cticos lendo suas

obras conservadas. O prprio Pirro, na verdade, nada deixou escrito, porm seus

discpulos e companheiros de investigao Timo, Aenesdemos, Nausifanes e ainda

outros , deixaram (Vidas, IX, 102).

Assim, Enesidemo colocado no apenas como fazendo parte dessa tradio, mas

tambm como companheiro de Pirro e Timo. Se assim o for, Enesidemo enquadrar-se-ia no

ceticismo antigo. No entanto, Brochard (1959) alerta para a diferena nas doutrinas desses

Filsofos, citando Eusbio de Cesareia em sua Praeparatio Evangelica: Enesidemo renovou

o ceticismo, que sofrera um eclipse durante muito tempo (EUSEBIO DE CESARIA, apud

BROCHARD, 1959, p. 36 - traduo nossa)4. Ora, tal renovao coloc-lo-ia no no antigo

ceticismo, mas diretamente no novo. Esse trabalho seguir a linha de pensamento de Brochard,

4 Aenesideme renouvela le scepticisme qui avait, pendant um temps assez long, subi une clipse.

23

localizando Enesidemo no incio do novo ceticismo ou, segundo a diviso deste trabalho, no

ceticismo dialtico.

a) O ceticismo antigo: Pirro e Timo

O ceticismo antigo surgiu com Pirro de lis por volta do ano 365 a.C. O Filsofo em

questo viveu o ceticismo em sua mais austera forma; depois de Pirro, nenhum outro seguidor

conseguiu ser to fiel a essa doutrina. Pirro no deixou nada escrito, ficando aos seus discpulos

e seguidores a misso de registrar a sua doutrina na histria da filosofia.

O fato de nada ter deixado escrito alinha-se perfeitamente com a sua conduta e o seu

pensamento: Pirro afirmava que nada honroso ou vergonhoso, nada justo ou injusto, e

aplicava igualmente a todas as coisas o princpio de que nada existe realmente [...] (Vidas, IX,

63). Assim sendo, Pirro jamais cairia na incoerncia de deixar registrada sua doutrina, sua

indiferena () o impedia.

A vida de Pirro, segundo Digenes Larcio, foi um exemplo de fidelidade ao seu

pensamento, o que lhe custou inmeras histrias pitorescas baseadas em fatos jocosos do seu

cotidiano (cf. Vidas, IX, 62-67). Acompanhou a expedio de Alexandre, o Grande, sia, o

que lhe conferiu contato com a cultura e filosofia do Oriente.

Sobre sua doutrina, graas ao testemunho de Digenes Larcio, sabe-se que adotava a

epoch devido equipolncia dos argumentos: Pirro introduziu e adotou os princpios do

agnosticismo e da suspenso de juzo, como diz Ascnio de Abdera (Vidas, IX, 61). Porm,

veremos esse testemunho entrar em contradio se nos depararmos com outra citao de

Digenes Larcio: Arcesilao, filho de Seute [...] nasceu em Pitane, na Elia. Com ele comea

a Academia mdia; foi o primeiro a suspender o juzo por causa da contradio de argumentos

opostos (Vidas, IV, 28).

Como se percebe, h certa contradio nas citaes desse doxgrafo, j que ora aponta

Pirro como introdutor da epoch no ceticismo, ora aponta esse feito para Arcesilau. Porm, se

aceitarmos o ponto de vista dos historiadores que defendem Pirro como o pai do ceticismo e

considerarmos que Arcesilau tenha nascido cinquenta anos aps o florescimento desse

filsofo5, bem como o modo de vida indiferente que levava, alis uma caracterstica bem

5 Se acompanharmos a tese de Brochard de que Pirro nasceu por volta do ano 365 a.C. e que, segundo os antigos

doxgrafos, tenha vivido at os noventa anos, temos uma base para situar sua morte em torno do ano 275 a.C.

Considerando ainda que Arcesilau tenha florescido por volta de 315 a.C. e morrido em 240 a.C., por meio de um

simples raciocnio, justificamos a situao supracitada.

24

marcante de Pirro, isso tudo nos daria subsdios e motivos suficientes para considerar Pirro o

autor da epoch.

Pirro teve alguns discpulos, porm o mais ilustre sem dvida foi Timo de Fliunte

(325-235 a.C.), considerado o sucessor mais legtimo da doutrina de Pirro, devido semelhana

entre o seu pensamento e o do seu mestre. Escreveu inmeros livros, no entanto, quase todos

se perderam, restando apenas alguns fragmentos da sua mais famosa obra, Silos, e da obra

Imagens (). Por meio desses fragmentos, podemos ter acesso ao pensamento de Timo.

Segundo Brochard (1959), Silos uma pardia ao canto de Homero e uma obra

destinada a menosprezar e destruir a importncia dos filsofos que defendiam a segurana das

impresses sensveis. No primeiro livro dos Silos, Timo, referindo-se a Pirro, escreveu: ao

qual nenhum mortal capaz de resistir (BROCHARD, 1959, p. 83 - traduo nossa)6. Essa

citao demonstra a admirao de Timo por Pirro, assim como a importncia deste para o

ceticismo que se iniciava.

A segunda obra que restou, Imagens, refere-se, numa primeira interpretao, aos

fenmenos observveis e necessrios vida comum de qualquer pessoa. Sob outro ponto de

vista, a obra diz respeito s aparncias enganosas que servem de obstculo vida feliz do

Filsofo. Diferentemente de Silos, um livro que trata dos modos pelos quais se pode chegar

ataraxia.

Outra pista sobre o pensamento desse Filsofo ctico quem nos d Digenes Larcio

(cf. Vidas, IX, 76). Segundo ele, Timo, em Pton, obra hoje perdida, interpretava a frmula

no mais () como no definir coisa alguma, ou antes, no aderir a opinio

alguma. Em outras palavras, conforme seu mestre, suspender o juzo.

b) O ceticismo dialtico: Enesidemo e Agripa

Como j acenamos, o ceticismo dialtico teve como seus representantes Enesidemo e

Agripa. Enesidemo certamente foi o mais notvel deles. Nasceu em Cnossos, Creta. Ensinou

em Alexandria. A data exata do seu nascimento incerta; alguns historiadores sustentam que

viveu por volta do ano 130 d.C., outros o colocam como contemporneo de Ccero. Talvez,

suas mais significativas contribuies ao ceticismo tenham sido: 1) a organizao dos dez

modos (), trazendo tona os argumentos que invalidam qualquer possibilidade de

apreenso da realidade (), dada a insegurana dos sentidos; 2) os oito modos do

6 Auquel nulmortel nest capable de rsister.

25

ceticismo destinados a desconstruir as teses dos dogmticos. Todos esses modos oferecem as

razes necessrias e fundamentais para levar qualquer pessoa suspenso de juzo (),

abstendo-se, assim, de todo assentimento.

Sumariamente, temos que Enesidemo (cf. H.P., XIV, 36-175), em seus dez modos,

apresenta uma srie de sinais relacionados s inmeras diferenas de percepo existentes entre

os homens e os animais e nos homens entre si, os quais anulam qualquer tentativa de

pronunciamento sobre a realidade das coisas externas. Assim, no primeiro modo, teramos que

as coisas externas nos afetam de forma diversa da que ocorre com os outros animais. Por

exemplo, a viso da abelha diferente da viso do homem, o olfato do co difere tambm do

olfato dos seres humanos, de modo que no existe razo alguma para privilegiar uma outra.

Entre os homens, ocorre tambm algo semelhante: as particularidades inatas dos seres

humanos ou as idiossincrasias (), se utilizarmos o termo grego encontrado nos

antigos registros das Hipotiposis, so tantas que no se pode dar assentimento sobre qualquer

tipo de comportamento como sendo o correto. Para uns, determinadas substncias so

prejudiciais, para outros, no; ento pergunta-se: qual o critrio de escolha? O da maioria?

Esta resposta no suficiente e, portanto, no satisfaz a escolha.

Enesidemo apresenta ainda outros argumentos relacionados diferena dos

sentidos que envolvem as circunstncias bem como distncia das coisas, que se apresentam

de uma determinada forma quando distantes e de outra quando prximas. Da tiraramos que

aquilo a que temos acesso so apenas fantasias (), impresses das coisas reais; o real,

ou a realidade das coisas, de fato inacessvel para o ctico. No possvel dar assentimento

quanto natureza das coisas tambm devido s misturas que compem os objetos. Em outras

palavras, no possvel separar os objetos daquilo que os envolve, como luz, calor etc., para,

assim, poder examin-lo com mais cuidado; a quantidade, a relatividade das coisas, a raridade

com que aparecem ao sujeito assim como os seus costumes e valores finalizariam os dez modos

de Enesidemo.

Sobre os seus oito modos, sem a inteno de enumer-los um a um, temos que foram

dirigidos contra os dogmticos, que procuravam explicar os fenmenos por meio de suas

causas. Para Enesidemo, as causas de um determinado fenmeno tambm no nos so

acessveis. Essas causas atribudas aos fenmenos pelos dogmticos so apenas especulaes

ou hipteses que podem ser ou no verdadeiras; no entanto, quanto sua exatido, no existe

certeza alguma.

O sucessor de Enesidemo no ceticismo foi Agripa. Quase nada de informao nos

chegou sobre esse Filsofo ctico. Sexto Emprico no menciona uma s vez o seu nome em

26

seus livros. O que encontramos so registros de cinco modos atribudos por Sexto aos novos

cticos ( )7, que, no texto de Digenes Larcio (cf. Vidas, IX, 88-89), so

relacionados ao nome de Agripa. Supomos, com grande possibilidade de acerto, dada a

semelhana de contedo desses dois manuscritos, que foi a esse Filsofo que Sexto Emprico

(cf. H.P., I, 167-177) se referiu ao expor os cinco modos de suspenso de juzo.

Os cinco modos de Agripa dizem respeito a: (i) discordncia das percepes; (ii)

regresso ao infinito; (iii) relao; (iv) hiptese; e (v) raciocnio circular ou dialelo ().

Sobre a discordncia, Agripa alerta para as proposies que os Filsofos dogmticos

asseguram; ora, tais proposies so amide defendidas por determinados dogmticos e

refutadas por outros, como o caso dos esticos e epicuristas, o que evidencia um conflito de

opinies em que no h qualquer meio para se optar por esta ou aquela afirmao.

Na regresso ao infinito, as provas apresentadas para determinados axiomas no tm

validade alguma, porque elas precisam ser comprovadas, como tambm a comprovao desta e

assim por diante. No modo da relao, suspende-se o juzo porque nunca podemos saber a

natureza real das coisas, somente como ela aparece em relao ao sujeito, o que considerado

insuficiente do ponto de vista ctico. No quarto modo, Agripa questiona a atitude dos

dogmticos, que, no encontrando uma sada para a regresso ao infinito, aceitam como certos

alguns axiomas sem necessariamente test-los.

Por fim, o raciocnio ou inferncia circular, que consiste em recorrer ao prprio objeto

para poder demonstr-lo, como exemplifica Digenes Larcio: Por exemplo, algum que

pretenda demonstrar a existncia dos poros pelas emanaes serve-se da existncia dos poros

para confirmar a ocorrncia das emanaes (Vidas, IX, 89).

Esses seriam, ento, os principais argumentos e razes expostos por Enesidemo e

Agripa que justificariam a suspenso de julgamento por parte do ctico. Foram argumentos

slidos que aliceraram toda a base filosfica do ceticismo grego e que durante muito tempo

permaneceram como frmulas difceis de serem superadas; problemas levantados pelos cticos

quase que intransponveis e que tantos transtornos trouxeram para os dogmticos daquela

poca.

7Cf. H.P. I, 164. Sob nossa traduo, temos que: Os novos cticos transmitiram estes cinco modos da suspenso

de juzo: primeiro, o da discordncia, segundo, o da regresso ao infinito, terceiro, o da relao, quarto, o da

suposio (hiptese), e quinto, o do crculo vicioso - d

, , , ,

, .

27

c) O ceticismo emprico: Menodoto, Teodas e Sexto Emprico

O ceticismo emprico est intimamente ligado medicina grega. Esta, aps ter passado

por uma fase bastante obscura, foi, conforme afirma J. Dias Pereira (2007), a partir do sculo

V a.C., tornando-se mais culta e tambm mais prxima dos problemas filosficos. No entanto,

a escola emprica acabou por se dividir, adotando duas vises distintas, uma que passou a ser

denominada de racionalista e outra, empirista.

Os racionalistas () acreditavam que a medicina deveria ultrapassar as fronteiras

da experincia, alcanando o inobservvel, assim, seria possvel se chegar causa das

enfermidades e da cura das doenas. Os empiristas () se opunham a esse

pensamento. Para eles, nada que no fosse observvel poderia ser tido como verdadeiro,

portanto, os mdicos racionalistas estavam equivocados.

Entretanto, sculos mais tarde, surgia outra escola, conhecida como metdica, mais

prxima do ceticismo, que questionava o pensamento dos empiristas e dos racionalistas.

Concordava com aqueles no tocante impossibilidade do conhecimento do inobservvel,

discordando deles no que diz respeito sua afirmao dogmtica de que o conhecimento s

seria possvel no mbito do observvel. Assim, ainda conforme J. Dias Pereira,

Todo esse debate, de natureza em ltima anlise epistemolgica, entre as diferentes

correntes da medicina grega, se desenvolveu fora das escolas filosficas [...]. Coube,

porm, ao ceticismo grego a incorporao dessa epistemologia empirista ao campo da

filosofia propriamente dito (PEREIRA, 2007, p. 28).

Tendo em mente o que foi dito, temos, de forma resumida, que, conforme citam Annas

e Barnes na introduo das Outlines of Scepticism: Os mdicos teoristas e prticos poderiam

ser distribudos em trs grandes escolas de pensamento: racionalismo, empirismo e metodismo

(ANNAS; BARNES, 2000, p. 12 - traduo nossa)8.

Isso posto, encontramos a os primeiros passos do ceticismo emprico. o incio do

ltimo perodo do ceticismo grego. Os empricos () eram, como dizia Brochard

(1959), antes de qualquer coisa, fenomenistas, ou seja, aceitavam o fenmeno como critrio

para a aplicao do seu mtodo empirista, e no teria como ser diferente.

Antes de tudo, possuam caractersticas marcantes do ceticismo dialtico, chegando

alguns historiadores a no fazer qualquer distino entre o ceticismo dialtico e o ceticismo

emprico. Assim, os representantes do ceticismo dialtico, estavam determinados a destruir todo

8Medical theorists e medical practitioners could be distributed among three broad schools of thought:

rationalism, empiricism, Methodism.

28

tipo de dogmatismo, misso que foi tomada similarmente pelos empiristas. Prova disso so os

registros dos modos de Enesidemo e Agripa nas Hipotiposis Pirrnicas, pois juntos

constituram a principal causa de tormentos dos dogmticos de sua poca.

Dessa forma, os mais importantes representantes foram os mdicos Menodoto, Teodas

e Sexto Emprico. Pouco se sabe sobre os dois primeiros. Digenes Larcio cita-os vagamente,

sem se aprofundar na sua histria e na sua doutrina, limitando-se a escrever: [...] deste

Antocos foram discpulos Mendotos de Nicomdia, mdico emprico, e Teiodas de Laodicea.

De Mendotos foi discpulo Herdotos de Tarso, filho de Arieus (Vidas, IX, 116). Brochard

(1959) afirma que foi a partir desses dois Filsofos que a medicina foi incorporada de vez ao

ceticismo e que Teodas parece ter sido o primeiro a utilizar o termo (observao) em

substituio a (autopsia).

Assim como seus antecessores, pouco se sabe sobre Sexto Emprico. Seus pais e sua

origem permanecem desconhecidos. O nome Emprico se d pela sua relao com o empirismo.

De sua obra, sobreviveram dois livros: Hipotiposis Pirrnicas e Adversus Mathematicos, sendo

estas as mais confiveis fontes sobre o ceticismo antigo. Graas conservao delas, hoje

podemos ter acesso sua doutrina, assim como grande parte do conhecimento da histria do

ceticismo grego.

Tendo tudo isso em vista, e dando seguimento pesquisa, apresentamos a seguir o

ceticismo acadmico, lembrando que a estrutura deste trabalho no est seguindo a ordem

cronolgica da histria do ceticismo. Nossa proposta foi apresentar sob forma esquemtica as

tradies pelas quais passou o ceticismo grego. A razo para tal foi detalhar e,

consequentemente, analisar de modo mais especfico, o tipo de ceticismo que foi alvo das

crticas de Santo Agostinho.

2.2 A TRADIO ACADMICA

A histria da Academia teve incio com Plato, por volta do ano 387 a.C., quando ele

fundou nos jardins localizados aos arredores de Atenas, que outrora pertenceram ao heri grego

Academo () da o nome Academia , uma instituio onde se versava sobre os

diversos saberes daquela poca, tais como: filosofia, geometria, msica, dentre outros.

Aps a morte de Plato, em 347 a.C., a Academia foi assumida por Espeusipo,

permanecendo este como seu dirigente at 338 a.C. Outros escolarcas passaram por ela, como

Xencrates (338-314 a.C.), Polmon (314-269 a.C.) e Crates (269-264 a.C.). Entretanto, foi

somente com Arcesilau que o germe do ceticismo parece ter se fixado na Academia, afastando-

29

a cada vez mais da doutrina do seu mestre e fundador. O incio desse perodo ficou conhecido

como Academia mdia.

Os principais expoentes dessa fase foram Arcesilau e Carnades. A crtica de Santo

Agostinho ao ceticismo direcionada a esse perodo da Academia. Os dois acadmicos acima

citados tiveram seus pensamentos expostos em Contra Academicose foram mencionados vrias

vezes por Agostinho em sua obra, o que ressalta a importncia dessa fase da Academia para

esta pesquisa. A prxima fase da Academia caracterizada por uma forte tendncia dogmtica

e encontra em Filo de Larissa o seu mais ilustre representante.

Dessa forma, so reconhecidos os seguintes perodos na Academia de Plato: a antiga,

a mdia e a nova Academia. Essa diviso pode ser encontrada nos antigos registros de Digenes

Larcio, que j utilizava o termo Academia mdia em seus escritos. sobre Arcesilau que ele

se refere na citao que se segue: Com ele comea a academia mdia (Vidas, IV, 28).

Entretanto, Brochard aponta outras divises:

Os antigos distinguem at cinco Academias: a de Plato, a de Arcesilau, a de

Carnades e de Clitmaco, a de Filo e de Crmide e a de Antoco. Uma tradio mais

autorizada, com a qual concordamos, distingue apenas duas: a Antiga e a Nova, a de

Plato e aquela de Arcesilau (BROCHARD, 1959, p. 99 - traduo nossa)9.

Mondolfo, em aluso ao perodo em que a Academia teve como escolarca Arcesilau,

diz: Esta fase chamada Nova Academia, ou tambm Mdia, por quem chama de Nova a

posterior fase ecltica (MONDOLFO, 1959, p. 150 - traduo nossa)10.

Como se percebe, as diversas fases pelas quais passou a Academia foram distinguidas

ora por apenas antiga e nova Academia, ora por antiga, mdia e nova Academia. Essa distino

ou diviso fundamenta-se na viso de cada doxgrafo ou estudioso do ceticismo antigo em

relao doutrina prevalecente em cada perodo. Para efeito de metodologia e com o intuito de

melhor enfatizar essas fases, relacionando cada uma a seus devidos representantes, optaremos

pela diviso que nos parece mais adequada: antiga, mdia e nova Academia.

A primeira diviso, na citao apresentada por Brochard e Mondolfo, tem como base

os registros de Sexto Emprico em suas Hipotiposis Pirrnicas e a segunda, o testemunho de

Ccero em De Oratore. Outras divergncias podem ser percebidas quando se refere s fontes

disponveis do ceticismo. Dumont (1986, p. 719-723) assegura que Ccero, por no conhecer o

termo grego skeptikos (), no poderia interpretar corretamente o ceticismo. Essa talvez

9Les anciens distinguaient parfois jusqu cinq acadmiens :celle de Platon, celle dArcsilas, celle de Carnade

et de Clitomaques, celle de Phillon et de Charmide, celle dAntiochus. Une tradicion plus autorise, a laquelle

nous nous conformerons, nen distingue que deux : lAncienne et la Nouvelle, celle de Platon, et celle dArcsilas. 10Esta fase llamada nueva Academia, o tambin media, por quien llama nueva a la posterior fase eclctica.

30

seja uma das causas para justificar as diferenas de pensamento entre essas duas fontes e o

porqu de a crtica de Agostinho no se aplicar ao ceticismo encontrado nos registros de Sexto

Emprico.

O problema consiste no fato de que Ccero, excetuando o conceito do provvel, em

certos momentos, confere aos acadmicos um pensamento muito mais prximo do Pirronismo

do que da Academia mdia:

De minha parte, alis, certo como estou de que existe algo que pode ser

compreendido (tenho defendido esse ponto j h muito tempo), estou ainda mais

seguro de que o homem sbio nunca mantm uma opinio, isto , nunca assente uma

coisa que seja falsa ou desconhecida (Acad., II, 59 - traduo nossa)11.

Ora, afirmar que o sbio no deve formar uma opinio a favor das coisas no seria um

pensamento muito prximo daquele adotado pelo pirronismo? Isso no acabaria,

inevitavelmente, deslocando a crtica de Agostinho do ceticismo acadmico para o pirrnico?

Isso no seria, ainda como diz Dumont (1986), qualificar os cticos como Filsofos que no

afirmam nada?

Fato que parece haver uma semelhana considervel entre essas duas escolas. O tema

em questo j estava presente em Noites ticas, de Aulo Glio:

Velha porm a questo, e por muitos escritores gregos tratada: se acaso alguma

diferena haja, e quanto, entre os Filsofos pirrneos e os acadmicos. Uns e outros

com efeito skeptikoi, efektikoi, aporetikoi so ditos, porque uns e outros nada afirmam

e pensam nada ser compreendido (Noites, XI, V, 6).

Esta citao, datada do sculo II a.C., confirma o pensamento de Santo Agostinho em

Contra Academicos de que os cticos acadmicos nada podem afirmar: Os Acadmicos

sustentam duas coisas (...) nada se pode conhecer e no se deve dar assentimento a nada

(Contra Acad., III, X, 22 - traduo nossa)12. Em continuidade, o nosso compendiador latino

encerra o pargrafo cinco do livro XI de Noites, com uma nota esclarecedora:

Embora isso ento de modo todo semelhante tanto os pirrneos digam quanto os

acadmicos, eles foram considerados que diferem todavia entre si, tanto por causa de

outras coisas como at principalmente porque os acadmicos ao menos compreendem

isso mesmo, que nada pode ser compreendido, e decidem por assim dizer que nada

pode ser decidido; os pirrneos nem sequer isso de alguma maneira por verdadeiro

dizem parecer, porque nada parece ser verdadeiro (Noites, XI, V, 8).

11Mihi porro non tam certum est esse aliquid quod comprendi possit (de quo iam nimium etiam diu disputo) quam

sapientem nihil opinari, id est numquam adsentiri rei vel falsae vel incognitae. 12 Duo sunt quae ab Academicis dicuntur (...) Nihil posse percipi; et: Nulli rei debere assentiri.

31

Outra distino bastante significativa e elucidativa quanto a essa questo encontramos

em Brochard. Os limites que separam o ceticismo acadmico do pirronismo ou do ceticismo

antigo, como tambm chamado, esto assim descritos:

Alm disso, os pirrnicos se limitam a dizer que a verdade no foi encontrada: eles

no dizem que inacessvel; no desesperam em v-la um dia descoberta; eles a

buscam; so zetticos. Arcesilau acredita que a verdade no somente no foi

descoberta, mas que no pode ser, e a razo que ele d que no h representao

verdadeira [elas] so tais que no se possa encontrar uma falsa absolutamente

semelhante (BROCHARD, 1959, p. 97 - traduo e destaque nossos)13.

O fato de a Academia, conforme Brochard (1959), negar a possibilidade de se

encontrar a verdade foi fator preponderante na construo da crtica agostiniana ao ceticismo.

Isso pode ser percebido ao longo de todo o segundo livro do Contra Academicos, no qual Santo

Agostinho problematiza a razo pela qual algum se enveredaria na busca de algo sem que

nunca tivesse a pretenso de encontrar esse algo. Nisso consiste a filosofia do ctico acadmico,

ir em busca da verdade, mesmo sem pretender encontr-la. Esse problema ser pormenorizado

no terceiro captulo desta pesquisa.

Esclarecida a distino entre o ceticismo desenvolvido na Academia e aquele que teve

incio com Pirro, passemos ento Academia Antiga, com a finalidade de compreender melhor

a origem dessa fase do ceticismo que deu incio tradio acadmica.

a) A antiga academia: Plato, Espeusipo e Xencrates

Soa um tanto estranho falar sobre ceticismo em Plato, porm o intuito aqui no

determinar se houve ou no ceticismo em Plato, muito embora o mtodo dialtico de

investigao apresentado em seus dilogos muito se assemelhe quele utilizado pelos cticos.

O prprio Sexto Emprico acena para esse impasse: Uns consideram Plato dogmtico, outros,

aporticos, outros, ainda, parte aportico e parte dogmtico (H.P. I, 221 - traduo nossa)14.

Relembrando, aporticos so todos aqueles que dizem no crer em nada, exceto nos

fenmenos. Os prprios cticos, segundo Sexto Emprico, se autodenominam aporticos,

portanto, tentar enquadrar Plato como aportico ao mesmo tempo consider-lo ctico, e nisso

os antigos j divergiam, como podemos notar nos fragmentos das Hipotiposis.

13 En outre, les pyrrhoniens se bornent dire que la vrit nest pas encore trouve : ils ne disent pas quelle soit

inaccessible ; ils ne dsesprent pas de la voir dcouvrir un jour ; mme ils la cherchent ; il sont zettiques.

Arcsilas croit que la verit non seulement nest pas trouve, mais quelle ne peut ltre ; et la raison quil en

done, est quil ny a pas representation vraie qui sont telle quon nen puisse trouver une fause absolutamet

semblable . 14 t , ,

.

32

Outra citao acerca dos supostos vestgios de ceticismo em Plato pode ser

encontrada em Ccero: Plato [...] cujos livros nada afirmam (Acad., I, XII, 46 - traduo

nossa)15. Em outra passagem, encontramos:

Assim, muitos dilogos tm sido postos por escrito, o que torna impossvel duvidar

que Scrates considerou que nada pode ser conhecido, ele fez apenas uma exceo,

no mais, ele disse que sabia que nada sabia. Por que eu deveria falar sobre Plato?

Ele certamente no teria criado essas doutrinas em tantos volumes se no as tivesse

aceitado, pois de outra forma, no haveria sentido em definir a ironia do [seu] mestre

(Acad., II, 74 - traduo nossa)16.

Nas duas passagens acima, Ccero vale-se do fato de que, nos dilogos platnicos,

Scrates, em certas ocasies, parece deixar uma lacuna aberta ao abordar determinados

assuntos, como, por exemplo, a justia, a coragem etc. No entanto, salvo em certos casos

isolados, h inmeras questes na doutrina platnica que podem certamente enquadr-la como

uma doutrina eminentemente dogmtica, como o caso da Teoria das Ideias, dos Contrrios e

da Imortalidade da alma, dentre outras.

A doutrina da Academia, como no poderia deixar de ser, girava em torno das teorias

acima citadas, continuando assim at o ceticismo se instaurar por meio dos seus novos diretores,

Arcesilau e Carnades, sculos depois da morte de Plato. Esse talvez tenha sido um dos

motivos que levou Santo Agostinho a confrontar-se com os acadmicos, sua forte influncia

platnica pode o ter levado a tomar um partido.

Quando apontamos que o abandono do pensamento de Plato por parte da Academia

pode ter motivado Agostinho a se levantar contra o ceticismo, fazemos isso tendo em vista que

Agostinho alicerava boa parte de sua filosofia sobre a filosofia platnica, como, por exemplo,

na Teoria das Ideias, largamente disseminada na Academia mesmo aps a morte de seu

fundador.Agostinho aceitava a tese das ideias e divergia de Plato apenas sobre o local em que

se encontravam essas ideias, e o meio para alcan-las, porm o princpio era o mesmo.

Enquanto Plato localizava suas ideias num mundo suprassensvel, invisvel e metafsico,

Agostinho as localizava na mente de Deus. E enquanto Plato advoga a reminiscncia como

meio de atingi-las, Agostinho defende que elas chegam at ns por Iluminao divina. Assim,

uma desconstruo da filosofia platnica por consequncia a desconstruo da filosofia

agostiniana.

15Platonem [...] cuius in libris nihil adfirmatur. 16Ita multi sermones perscripti sunt e quibus dubitari non possit quin Socrati nihil sit visum sciri posse; excepit

unum tantum, scire se nihil se scire, nihil amphus. Quid dicam de Platone? qui certe tam multis libris haec

persecutus non esset nisi probavisset, ironiam enim alterius, perpetuam praesertim, nuha fuit ratio persequi.

33

Outro ponto importante na doutrina de Plato a ser considerado encontra-se no dilogo

Teeteto. O dilogo de cunho epistemolgico trata do encontro de Scrates com o jovem Teeteto,

no qual se desenrola uma conversa que tem por finalidade descobrir uma definio para o

conhecimento. Segue citao na ntegra:

De fato, se posso me aventurar, a assim dizer, no uma m definio do

conhecimento que voc apresentou e que Protgoras tambm usou. Ele disse a mesma

coisa de maneira diferente. Ele disse em algum lugar que o homem a medida de

todas as coisas, das que existem e das que no existem (PLATO, Teet., 2006, p. 40

- traduo nossa)17.

Como se pode perceber, na citao acima, encontramos a clebre frmula de

Protgoras: o homem a medida de todas as coisas. Assim, partindo dessa proposio,

podemos, ento, deduzir que a realidade das coisas externas vai depender da pessoa que as

observa, de modo que uma pessoa pode ter uma determinada impresso de um objeto e outra

ter uma impresso completamente diferente do mesmo objeto. Por essa razo, o homem seria a

medida de tudo mais que existe fora dele, o conhecimento, sob essa ptica, seria relativo ao

observador.

Plato contesta a veracidade da proposio de Protgoras, pois, segundo esse

raciocnio, tudo leva a crer que o conhecimento no passa de sensao, deduo que o referido

Filsofo resiste em aceitar, pois, caso aceite tal proposio, consequentemente, ele ser tambm

obrigado a aceitar que no se pode ensinar nada a ningum, haja vista que o conhecimento

inerente nica e exclusivamente pessoa e nada pode mudar isso: Ento para mim a minha

percepo verdadeira, pois, em cada caso, sempre parte do meu ser, e eu sou,

como diz Protgoras, o juiz da existncia das coisas que so para mim e da no

existncia daqueles que no so para mim (PLATO, Teet., 2006, p. 73 - traduo nossa)18.

O que fazer agora com todo ensinamento passado na Academia? O que fazer agora

com a prpria Academia? Aceitar a tese de Protgoras condenar toda filosofia de sua poca a

um interminvel relativismo do qual ela no poderia sair jamais.

Ainda no Teeteto, encontramos o problema dos sentidos, que muito se assemelha aos

questionamentos cticos sobre a possibilidade de assentimento das coisas externas: Como bem

sabes, em tudo isto a doutrina que apresentamos parece ser refutada, pois certamente temos

falsas sensaes, e de modo algum verdade que tudo para cada homem [exatamente] o

17 , o .

a . , , , ,

, . 18 :

, , , n.

34

que lhe aparece, ao contrrio, nada o que parece (PLATO, Teet., 2006, p. 61 - traduo

nossa)19.

Como se v na citao acima, o fato de as coisas no se apresentarem exatamente como

elas so j era um pensamento presente na filosofia platnica, o qual foi passado adiante

provavelmente na antiga Academia pelos discpulos do seu fundador e, possivelmente, este foi

um dos motivos que levou Filo, sculos mais tarde, a defender a tese de que houve apenas uma

nica Academia e no vrias, como est sendo apresentado nesta pesquisa. O fato que Plato

levanta vrias questes que muito se assemelham ao ceticismo, apesar de que, vrias vezes, ele

as traz tona para em seguida refut-las.

O sucessor de Plato na Academia foi Espeusipo, que assumiu a direo da Academia

por volta do ano 347 a.C. Pouco se sabe sobre esse Filsofo; h indcios de que tenha sido

sobrinho de Plato. Conta-se que, apesar de embelezar a Academia, muito prejuzo trouxe para

a instituio. Esses prejuzos de ordem doutrinria provocaram o descontentamento daqueles

que permaneciam fiis ao mestre. Os chamados neoplatnicos vieram a dedicar parte de sua

obra a assuntos relacionados moral, mas o principal assunto discutido nesse perodo parece

ter sido a formao dos mistos, ou seja, a explicao da existncia dos mltiplos na realidade.

Para explicar esse fenmeno, foi necessrio recorrer teoria dos contrrios do seu mestre. No

final de sua vida, Espeusipo foi acometido de uma paralisia e passou a direo da escola para

Xencrates, em 339 a.C.

A Academia dirigida por Xencrates voltou a se aproximar da doutrina deixada por

Plato. Aquele escolarca realizou um trabalho de classificao de toda a filosofia deixada por

Plato. Foi concorde com a filosofia dos Pitagricos e formulou um dos primeiros exerccios

de anlise combinatria, calculando os nmeros possveis de slabas que poderiam ser formadas

a partir das letras do alfabeto.

Xencrates foi avesso ao pensamento do seu antecessor. Enquanto Espeusipo quebrava

a possibilidade de continuidade das formas do Ser, Xencrates defendia essa possibilidade, haja

vista que fora fundamental para o desenvolvimento de seu pensamento acerca dos nmeros.

Xencrates associou as ideias de Plato aos nmeros e permaneceu como dirigente da

Academia at o ano 314 a.C.

Esses foram, ento, os principais nomes da Antiga Academia. Como se percebe, a

doutrina vigente na escola de Plato no sculo IV a.C. foi marcada por um carter dogmtico.

19 ,

, t ,

.

35

O que daqui se conclui que, com a morte do fundador da Academia, esta no se afasta muito

do pensamento original deixado por Plato. Aps a morte de Xencrates, outros diretores

platnicos passaram pela Academia. So eles: Polmon (314-269 a.C.) e Crates (269-264 a.C.),

ltimo dirigente da Academia Antiga.

b) A Academia Mdia: Arcesilau e Carnades

Essa fase da Academia corresponde quela qual a crtica de Santo Agostinho

direcionada. Aqui, a Academia toma um rumo completamente novo, o ceticismo instaurado

na escola de Plato e o responsvel por essa mudana Arcesilau, motivado pelo desejo de

combater a presuno dos estoicos de afirmarem ter encontrado a verdade. Para Arcesilau, a

verdade no apenas no havia sido encontrada, mas tambm ningum jamais poderia encontr-

la.

Essa tendncia dogmtica, como j foi dito, j estava presente no seio da Antiga

Academia, que, segundo Brochard (1959), depois de Plato, no passara por muitas mudanas,

j que seus sucessores praticamente se limitaram a dar seguimento doutrina de seu mestre, no

sentido de estudar e entender melhor sua filosofia, sem, no entanto, ambicionar grandes

modificaes em seu pensamento, pois a verdade j havia sido encontrada.

Surpreendentemente, h quem sustente que o ceticismo de Arcesilau tenha se

originado do modelo dialtico desenvolvido por Scrates. Essa uma hiptese a ser

considerada, se levarmos em conta o fato de que Scrates afirmava nada sei, muito embora

essa sentena fosse precedida pela afirmao: sei. No caso de Arcesilau, nem mesmo isso ele

considerava como verdadeiro. Fato que, ao introduzir a dvida na Academia, Arcesilau

inovou, abalando toda uma estrutura que havia sido construda sobre os alicerces de verdades

j estabelecidas e que vinha sendo disseminada junto aos discpulos da Academia.

Contudo, uma questo em particular bastante discutida na Academia mdia,

especialmente por Arcesilau, foi a frmula denominada Definio de Zeno ou Critrio da

Verdade, desenvolvida pelo fundador do estoicismo, Zeno de Ccio (333 262 a.C).

Esta discusso teve sua origem na Grcia em decorrncia de um problema de cunho

eminentemente epistemolgico, que envolvia a distino entre as coisas que aparecem,

36

phainomenon (),20 e as coisas que podem ser pensadas, noumnon ()21.

Essa problemtica consiste na dificuldade em determinar se as aparncias condizem, de fato,

com a realidade ()22 ou se so meras impresses (), impossveis de serem

corretamente apreendidas pelos sentidos, uma vez que os cticos, embora no neguem a

existncia dos sentidos, relutam em afirmar que estes sejam confiveis.

Ento engana-se fortemente quem diz que a academia aboliu os sentidos: os

Acadmicos jamais afirmaram que no existe cor, nem sabor, nem som; tudo que eles

buscam estabelecer que no h nessas sensaes um carter de certeza e de verdade

que no possa nunca se encontrar em outra parte (Acad., II, XXXII, 103 - traduo

nossa)23.

Os contra-argumentos de Arcesilau direcionados ao Critrio da Verdade de Zeno

sero tema central do Contra Academicos de Santo Agostinho, que, segundo Matthews (2007),

tentar provar que possvel ao sbio conhecer a verdade. O ponto de partida para essa

empreitada , sem dvida, o Critrio da Verdade de Zeno. Por esse motivo, segue o

detalhamento dessa frmula.

Primeiramente, acentuamos a dificuldade de expor a frmula que define o Critrio da

Verdade de Zeno em seu sentido autntico, devido s vrias formas e configuraes que a

mesma tomou ao longo do tempo. O prprio Ccero (fonte do Hiponense) e o prprio Santo

Agostinho revelam-nos apenas o seu sentido, e no a frmula em si24. Agostinho, mesmo em

Contra Academicos, apresenta duas ou trs formas diferentes dessa definio, todas contendo

um s sentido, mas estruturas diferentes.

Em Academica, de Ccero, encontramos talvez a fonte mais primitiva e certamente a

mais prxima da frmula originalde Zeno: [Uma representao] de tal modo verdadeira que

tal [representao] no pode ser falsa (Acad. II, XXXV, 113 - traduo nossa) 25.

20 O termo phainomenon uma transliterao da palavra grega e possui uma ligao muito estreita

com as coisas ou os objetos que esto nossa vista. Dentre as muitas tradues, destacamos: aparecer, fazer

conhecer, manifestar, surgir e parecer. Com isso, o termo phainomenon pode ser entendido como tudo que pode

ser percebido e apreendido por meio do uso dos sentidos. 21 O termo grego noumnon () pode ser tambm traduzido por coisas inteligveis e tambm por coisas

que podem ser pensadas. O frequentemente se apresentava em contraposio ao , o que

acabou determinando o carter investigativo do ceticismo. 22 O vocbulo aletheia () se constitui como um termo chave para a nossa pesquisa, uma vez que

compreende em sua traduo o significado de realidade e/ou verdade. Ora, o assentimento da verdade se d

justamente pela apreenso da realidade do objeto, ou seja, no que consiste ao objeto em sua mais pura essncia

(), da sua relevncia. 23

Itaque ait vehementer errare eos qui dicant ab Academia sensus eripi, a quibus numquam dictum sit aut

colorem aut saporem aut sonum nullum esse, illud sit disputatum, non inesse in iis propriam quae nusquam alibi

esset veri et certi notam. 24 Cf. Acad., I, XI, 41; II, VI, 18; II, XX, 66; II, XXXV, 113. Contra Acad.. II, V, 11; III, IX, 18; III, IX, 21. 25 tale verum quale falsum esse non possit.

37

Assim, mediante estudo e anlise dos antigos fragmentos, podemos apresentar o

Critrio da Verdade de Zeno na seguinte frmula: uma apario s pode ser apreendida como

real se ela se apresentar de tal modo que no possa parecer uma falsidade.

Analisando a definio de Zeno, temos inicialmente que o Filsofo estico vai se

utilizar da expresso representao compreensiva ou representao catalptica (

) para assegurar seu Critrio da Verdade. Porm, antes de adentrar numa anlise

mais pormenorizada desta definio, cabe explicar a ausncia da expresso representao

compreensiva na frmula apresentada.

Antes de tudo, bom lembrar que em grego a palavra empregada para

designar as impresses ou a apario de coisas e o termo pode ser traduzido

como compreenso. Para efeito de esclarecimento, o ato de compreender pode ser entendido

como o ato de apreender na mente algo que foi captado pelos sentidos. Destarte, fica ento

evidente a presena implcita do conceito ou do termo , de modo que

podemos, com isso, dar seguimento explicao do Critrio da Verdade.

Uma representao catalptica pode ser entendida como o ato de a mente humana

apreender um determinado objeto externo a ela, de modo que a percepo do sujeito em relao

a esse objeto seja uma representao idntica ao prprio objeto. Com isso, deduz-se que nem

toda representao compreensiva. A mente pode apreender um determinado objeto e se

enganar quanto sua realidade, como o caso de algumas iluses causadas pela mente.

Em todos esses casos supracitados (iluses), as representaes no so verdadeiras, o

mais apropriado seria denomin-las acatalpticas (). Para que uma representao

seja compreensiva, o objeto necessariamente tem que ser impresso na mente de tal forma que

nada distinto dele possa ser apreendido pela mente, apenas o objeto em si. Se assim for possvel,

a representao verdadeira. Para ratificar o que foi dito, Digenes Larcio diz:

H duas espcies de apresentaes; uma apreende imediatamente a realidade, e a outra

apreende a realidade com pouca ou nenhuma nitidez. A primeira, que os esticos

definem como critrio da realidade, determinada pelo existente, de conformidade

como prprio existente, e impressa e estampada na alma. A outra no determinada

pelo existente, e no , portanto, nem clara nem distinta (Vidas, VI, 47).

Foi sob esse Critrio da Verdade que a Academia mdia, em especial Arcesilau,

ironicamente se firmou. Arcesilau aceitou o critrio da verdade dos estoicos, no entanto, alegou

que no havia representaes compreensivas e, se no existem tais representaes, no h

critrio de verdade. No havendo critrio de verdade de fato, o sbio jamais poderia dar o seu

assentimento a qualquer coisa.

38

No entanto, em que Arcesilau se baseia para afirmar que no h representaes

catalpticas? Primeiramente, os esticos afirmavam que uma representao compreensiva

difere de uma representao considerada falsa, coisa que para o acadmico no possvel, haja

vista que no h meios para diferenciar tais representaes. Da se conclui que a tese do Critrio

da Verdade no vlida.

Arcesilau tambm recorria falibilidade dos sentidos para refutar os estoicos em suas

prprias teorias, como o caso das impresses que temos durante o sonho, na embriaguez, na

loucura etc. Todas essas iluses so prova contundente de que as representaes verdadeiras

no existem, portanto, no h meios de se alcanar a verdade.

Diante de tudo, qual seria ento a atitude do Filsofo ou do sbio? Suspender o juzo.

Essa seria a atitude mais prudente a ser tomada. Alis, a Arcesilau que muitos estudiosos

atribuem a inveno da epoch (). Contudo, essa atitude ctica coloca Arcesilau numa

situao bastante complicada. Ele teria que responder uma questo ainda mais dificultosa: como

viver sem acreditar em nada? Viver segundo essa doutrina implica necessariamente uma inao

absoluta por parte do Filsofo ctico, e isso impossvel. No d para viver sem agir; a ao

est sempre ligada vida prtica do ser humano.

Esse problema se torna ainda mais complicado se levarmos em considerao que na

Grcia antiga o que se esperava da filosofia, alm do conhecimento sobre causas e origem das

coisas, era uma determinada forma de conduta de vida no cotidiano prtico do sujeito. Essa

uma questo da qual Arcesilau no tem como se desviar. Era preciso se livrar desse impasse e

a sada que Arcesilau encontrou foi o argumento do eulogon () ou razovel.

Todavia, o que seria o eulogon citado por Arcesilau? Sabe-se que pode ser traduzido

por razovel