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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO MESTRADO EM LETRAS – TEORIA DA LITERATURA
MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA
ALÉM DAS FÓRMULAS:Um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A
Emparedada da Rua Nova.
Recife2015
MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA
ALÉM DAS FÓRMULAS:Um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A
Emparedada da Rua Nova.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco – PPGL/UFPE, como pré-requisito para obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura sob orientação do Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira.
Recife2015
Catalogação na fonte
Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4 439
S586a Silva, Mirella Priscila Izídio da
Além das fórmulas: um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A Emparedada da Rua Nova / Mirella Priscila Izídio da Silva. - Recife: O Autor, 2015.
107 f.
Orientador: Anco Márcio Tenório Vieira.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Letras, 2015.
Inclui referências.
1. Literatura brasileira. 2. Crítica textual. 3. Folhetins brasileiros. 4. Literatura - História e crítica - Teoria, etc. I. Vieira, Anco Márcio Tenório (Orientador). II.Titulo.
809 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2015-185)
MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA
ALÉM DAS FÓRMULAS: Um Estudo da Estrutura Folhetinesca e Não Folhetinesca no Romance A Emparedada da Rua Nova
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para a obtenção do Grau de Mestre em TEORIA DA LITERATURA, em 27/8/2015.
DISSERTAÇÃO APROVADA PELA BANCA EXAMINADORA:
__________________________________ Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira
Orientador – LETRAS - UFPE
__________________________________ Prof. Dr. Antony Cardoso Bezerra
LETRAS - UFPE
__________________________________ Prof. Dr. André de Sena Wanderley
LETRAS - UFPE
Recife – PE 2015
À memória do escritor Vilella.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Anco Márcio Tenório Vieira, pela recepção no Programa de Pós-
Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco, pela
orientação, pela compreensão e pela amizade.
Aos professores do PPGL pela vivência, pela troca de experiências dentro e
fora das salas de aula, pelos exemplos. A Lourival Holanda, a Lucila Nogueira e a
Ricardo Postal pela convivência e pelos desafios.
Ao professor Antony Cardoso Bezerra pela inspiração, pela confiança, pelo
comprometimento, pelo carinho e pela atenção de sempre.
Ao professor André de Sena pela presença na pré-banca, pela contribuição
valiosa, pela gentileza e vontade de ajudar.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)
pelo auxílio financeiro importante para a execução material do curso.
Aos servidores do PPGL pela solicitude e presteza. A Jozaías Ferreira dos
Santos, Joza, e Diva pelo atendimento afetuoso.
Ao PPGL pelo suporte, pela oportunidade e pela ajuda material em duas
viagens para participação em eventos na área, com destino a Fortaleza (CE) e a
Uberlândia (MG), atividades importantes para a circulação de saberes e
compartilhamento de conhecimentos.
Aos amigos do mestrado, pela leveza e pela alegria. A Érika Albuquerque, a
Ingrid Rodrigues, a Vinicius Gomes, a Hudson Silva, a Thiago Pininga, a Joanita
Baú, a Fernando Ivo, a Suelany Mascena, a Thiago da Câmara Figueredo, a Patrícia
Tenório pelo companheirismo.
Aos amigos presentes, ainda que ausentes: Mariana Rocha, Gustavo Guerra
e Zaira Mello. Aos amigos que são presentes da vida: Thiago Nunes, Max Hainn,
Mayara Sá, Eduardo Aleixo, Débora Nascimento, Stênio Lima, Dyelle, Odomiro
Fonseca e Tito Souza.
Aos meus pais, Marta Maria da Silva e Osglay Izídio da Silva.
A Diego Carvalho, por ser descanso na loucura. Por ser tanto. Por ser antes,
durante e depois. Por ser a força e o afeto diários. Por ser, apenas.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo principal analisar a estrutura do romance A
Emparedada da Rua Nova de Joaquim Maria Carneiro Vilella. Trata-se de uma
reflexão sobre uma construção narrativa que agrega a fórmula do gênero
folhetinesco com elementos de uma trama policial, ao passo em que foge de
algumas das principais fórmulas tradicionais na execução do enredo, na construção
das personagens e no desenvolvimento da trama. Para apoiar e contextualizar a
pretendida análise, foram abordados os aspectos teóricos do gênero romance e
elaborado um panorama histórico-social do folhetim no Brasil, além de situar
historicamente e ideologicamente o tempo e o espaço em que foi produzida a obra
mais conhecida de Carneiro Vilella.
Palavras-chave: A Emparedada da Rua Nova. Folhetim. Teoria do Romance.
ABSTRACT
This study is meant to examine the structure of the novel A Emparedada da Rua
Nova Joaquim Maria Carneiro Vilella Street. It is a reflection on a narrative
construction that adds the formula of folhetinesco genre with elements of a police
plot, while they run away from some of the main traditional formulas in the execution
of the plot, the construction of characters and plot development. To support and
contextualize the analysis, the theoretical aspects of the novel genre and produced a
socio-historical panorama of the serial were addressed in Brazil, in addition to situate
historically and ideologically the time and the space where it was produced the best
known work of Carneiro Vilella .
Key-words: A Emparedada da Rua Nova. Folhetim. Novel Theory.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8
2 SOBRE ROMANCES – FORMAÇÕES, DIFUSÕES E FIRMAÇÕES ............. 11
2.1 A forma desenformada – O romance ......................................................... 11
2.2 As fórmulas da sedução – O folhetim ........................................................ 19
2.3 Episódio de hoje: o folhetim no Brasil ....................................................... 32
3 UM OLHAR SOBRE O MOVIMENTO DE IDEIAS NO SEGUNDO REINADO.............................................................................................................. 37
3.1 Cenário social, filosófico e cultural do Império brasileiro na segunda metade dos Oitocentos ..................................................................................... 37
3.2 Escola do Recife: um bando de ideias novas ........................................... 47
3.3 Um agitador de ideias: breve perfil intelectual de Carneiro Vilella ......... 55
4 PASSEANDO NUMA VELHA RUA – ANÁLISE ESTRUTURAL D’AEMPAREDADA DA RUA NOVA ......................................................................... 62
4.1 Desmembrando a narrativa – A obra, a construção, os elementos ........ 67
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 99
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 102
8
1 INTRODUÇÃO
Folhetins, de maneira geral, vêm sendo matéria de poucos estudos no campo
das artes literárias. O escritor Joaquim Maria Carneiro Vilella1 também2. Agregando
esses dois temas relativamente pouco analisados, esta pesquisa propõe se debruçar
sobre a obra mais famosa do autor pernambucano, A Emparedada da Rua Nova, e
refletir sobre as estratégias folhetinescas e – como o título do trabalho sugere – não
folhetinescas envolvidas na construção da trama.
A Emparedada da Rua Nova é um volumoso romance de costumes,
composto por 80 capítulos. Agrega duas partes e um extenso epílogo, escritos de
forma não linear. A produção encerra muitas facetas e potenciais temas a serem
debatidos entrevistos em suas mais de 500 páginas3. Aqui nesta dissertação, a
ideia é analisar mais detidamente a urdidura que rege as estratégias de
encadeamento de episódios, a construção das personagens, o desenvolvimento do
enredo. Para isso foi preciso entender alguns pontos externos à obra e, mais ainda,
foi necessário retalhar os elementos constituintes do romance.
O primeiro capítulo – Sobre romances: formações, difusões e firmações – tem
por objetivo situar teoricamente o terreno em que se irá pisar: o romance. Para isso
busca-se traçar um panorama histórico, social e cultural que possibilitou a sua
gênese, firmação e difusão, além de apontar as principais esferas constituintes do
gênero. A seção baseia-se em obras e autores que se dedicaram ao estudo do
romance em suas profundidades teóricas como A Teoria do Romance de Georg
Lukács e Anatomia da Crítica de Northrop Frye. Ainda neste primeiro capítulo, o
1 Neste trabalho o nome do autor será grafado tal qual a assinatura que ele mesmo firmava: Vilella com duas letras “l”. 2 No Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL-UFPE) constam duas dissertações cuja temática gravita acerca da obra de Carneiro Vilella: LIMA, Fátima Batista Maria de. Um olhar sobre a cidade n’A Emparedada da Rua Nova de Carneiro Vilella. Recife: UFPE, 2005. 122 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005 e MENDONÇA, Helena Maria Ramos de. O Don Juan da Rua Nova: um estudo-itinerário sobre A Emparedada da Rua Nova, de Joaquim Maria Carneiro Vilela. Recife: O autor, 2008. 110. P. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. 3 Para esta dissertação foram consultadas de forma mais recorrente duas edições da obra. São elas: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3 ed. Recife: Coleção Recife, 1984 e VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013. A terceira edição conta com prefácio de Lucilo Varejão Filho e a quinta, a mais recente republicação da obra, é prefaciada por Anco Márcio Tenório Vieira.
9
recorte da temática diminui seu foco e se detém especificamente na análise do
romance enquanto manifestação folhetinesca. Para isso é indispensável marcar a
diferença existente entre a forma de folhetim e o gênero folhetim: enquanto a
primeira está ligada ao veículo de publicação, a segunda diz respeito à organização
temática, formal e estrutural da trama, o que não necessariamente está implicado no
modo como a produção é difundida, se em números divididos em uma publicação
periódica ou enfeixada na totalidade de um livro. Curioso perceber que praticamente
toda a literatura produzida e reproduzida no Brasil passou por um formato
folhetinesco – aqui a forma de veiculação do escrito – embora sejam poucas as
obras reconhecidas no gênero do romance folhetim no país, pelo menos dentre as
que se notabilizaram em sua expressão e fôlego para chegar aos dias atuais. As
referências principais no tratamento do tema contam com a obra fundamental,
devido ao seu caráter panorâmico que percorre uma ampla visão da história do
gênero, que é Folhetim: Uma História, de Marlyse Meyer, embora, seja válido
ressaltar recorrentemente, sobretudo no que tange ao tema deste trabalho, o lapso
que a pesquisadora comete ao mencionar de forma muito ligeira a sua constatação
de que A Emparedada da Rua Nova de Carneiro Vilella seria o único título de
relevância no romance folhetim brasileiro e que trata-se de um romance de tema
regionalista, revelando o pouco cuidado que autora dedicou à produção
pernambucana. Ainda no estudo do folhetim, destacam-se duas obras importantes
na realização da análise das estruturas do enredo: O Super-homem de Massa e
Apocalípticos e Integrados, ambos de Umberto Eco, pesquisador que dedica
especial atenção aos produtos ditos populares, entre eles as publicações
folhetinescas. Também é necessário entender o comportamento de outro tipo de
romance para voltar o olhar para a obra de Carneiro Vilella: os enredos policiais.
Assim como os folhetins, as tramas policialescas também mobilizam fórmulas
próprias e bastante características na disposição da narrativa. Como principal
referência nesse aspecto, reconhece-se a análise sociológica do romance policial
realizada por Ernest Mandel em Delícias do Crime. Buscou-se, então, emparelhar
os dois tópicos – tramas folhetinescas e policialescas – em suas aproximações e
distanciações e, ainda, tende-se a encaminhar a reflexão geral para se ponderar os
contrapontos entre esses subgêneros com o grande gênero que é o romance, a
forma sem fôrma, mas que admite diferentes fórmulas.
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O segundo capítulo – Um olhar sobre o movimento de ideias no Segundo
Reinado – busca desenvolver o contexto que permita situar o tempo em que a obra
foi gerada, abarcando a época e as suas correntes hegemônicas, alguns debates e
temas que mais forneceram matéria para as altercações nos jornais, nos cafés, nas
tribunas e nos palanques. Esse tópico é preciso para que se possa compreender as
influências no objeto de análise, A Emparedada da Rua Nova. Como fruto de seu
tempo, o romance de Carneiro Vilella é regido e infectado por ideologias presentes
no meio em que se desenvolveu. O romance traz, marcadamente, a chancela dos
movimentos das ideias deterministas, o anticlericalismo, a crítica às instituições
tradicionais carcomidas pela hipocrisia, o cientificismo, as questões debatidas pela
Escola do Recife. Pode-se constatar essas esferas tanto na montagem do enredo,
nas suas estratégias de montagem do tempo e das personagens, como nas próprias
temáticas retratadas. As bases de referência deste capítulo estão apoiadas em
autores que se dedicaram a pensar sobre o momento histórico e as ramificações
específicas de raciocínios que a época produziu. Destacam-se os nomes de autores
como os de Vamireh Chacon com o seu Da Escola do Recife ao Código Civil, Ivan
Lins e a História do Positivismo no Brasil e Antônio Paim pelas obras O Apostolado
Positivista e a República e A Escola do Recife.
Por último, a terceira seção deste trabalho – Passeando numa velha rua –
análise estrutura d’A Emparedada da Rua Nova – lança-se à temática propriamente
intitulada desta pesquisa: a análise da estrutura folhetinesca e não folhetinesca do
romance A Emparedada da Rua Nova de Joaquim Maria Carneiro Vilella. A ideia é
dispor de uma referência teórica somada a contextualização do surgimento da obra
para esquadrinhar seus elementos narrativos, o alinhavar dos capítulos, o efeito de
suspensão do enrede na gênese do comportamento folhetinesco que, ao mesmo
tempo, foge de estruturas e arquétipos, conseguindo conciliar fórmulas prontas com
desvios de receitas consolidadas. Busca-se, portanto, a compreensão de uma rede
estrutural que confirma e desmente códigos do romance folhetim e do romance
policial, resultando, por isso, em um peculiar jogo de estratégias e efeitos narrativos.
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2 SOBRE ROMANCES – FORMAÇÕES, DIFUSÕES E FIRMAÇÕES
2.2 A forma desenformada – O romance
É possível reconhecer nas manifestações da arte literária a existência de
determinadas estruturas: fórmulas que se cristalizam e que se repetem, formas que
podem expressar percepções de diferentes conjunturas históricas, sociais, culturais.
A esses alinhamentos de organizações estruturais compreende-se a formação de
gêneros – desde as formas simples como o mito, a saga e o ditado4 até as notórias
construções genéricas da literatura ocidental como a epopeia, a tragédia e o
romance.
Dentre os exemplos referidos, o romance surge com singulares
características. Trata-se de um gênero de estruturas maleáveis, desprendido de
regras exclusivas e dispensado de obediências temáticas, o que configura, talvez, a
própria característica do romance: a forma desobrigada da fôrma, isenta de um
modelo único e padronizado. Referência nas reflexões sobre o tema, A Teoria do
Romance, obra do filósofo húngaro Georg Lukács, apresenta considerações
históricas que apontam o surgimento e a expansão do gênero no ocidente:
O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso: eis por que jamais seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o círculo cuja completude constitui a essência transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num mundo fechado. Inventamos a produtividade do espírito: eis por que, para nós, os arquétipos perderam inapelavelmente sua obviedade objetiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito da aproximação jamais inteiramente concluída. 5
Este movimento de expansão dos limites em variados sentidos – na ciência e
na consciência, nas culturas, nos questionamentos e também nas demarcações
geográficas – não cabe mais em organizações artísticas de realidades que encerram
mundos equilibrados, fechados e completos. A partir desse momento, aponta
4 Cf. JOLLES, André. Formas Simples. Tradução de Álvaro Cabral. Editora Cultrix: São Paulo, 1976. 5 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. p. 30.
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Lukács, o pensamento literário distancia-se mais de sua base mítica na qual as
respostas já guardam desde o princípio suas próprias perguntas. Agora as
configurações tendem apenas a tangenciar as esferas da completude sem jamais
tocá-las: a aflição da proximidade inalcançável, a totalidade perdida para sempre,
vislumbrada no passado harmônico por um presente eivado de prefixos de
proposições negativas: desequilibrado, incompleto, desarmônico. Desterrado o
campo produtivo de obras que contenham suas próprias perguntas e respostas, e os
representantes máximos desses gêneros seriam as epopeias e as tragédias,
manifesta-se uma diferente organização artística que corresponda aos sentimentos
e sensações emergentes: o romance. Na definição do pensador húngaro, “o
romance é a epopeia do mundo abandonado por deus”6.
O que esse enunciado expressa revela-se nos elementos componentes da
estrutura do gênero: as personagens do romance, as suas representações
temporais e as temáticas retratadas divergem sensivelmente das formas clássicas.
Reconhecido pelo surgimento – simbolicamente demarcado pelo ano de 1605, data
de publicação da obra Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes –,
difusão e consolidação em um período de importantes transformações na sociedade
ocidental desde o final da Idade Média como a formação e expansão de grandes
centros urbanos e comerciais, o estabelecimento de colônias ultramarinas, a
Reforma Protestante acelerando o processo de diminuição do poder da Igreja
Católica, os impactos que a imprensa começava a produzir, a assimilação e
propagação dos princípios Renascentistas – humanismo, antropocentrismo.
Posteriormente, também a apreensão dos preceitos Iluministas – cognitivismo,
individualismo, universalismo, o romance figura como mais um componente
configurador e configurado na / pela sociedade em que a classe burguesa ascende à
posição de hegemonia econômica e de referência cultural no Velho Mundo. Diante
desse contexto, o gênero literário que, por excelência, exprime as novas e volúveis
configurações das realidades tende a desconstruir o mundo que lhe antecedia. Por
isso, o romance apresentou-se com primazia em sua potencialidade irônica. Assim,
a ironia poderia ser apontada como um traço constante que se arvora na forma que
o romance organiza e expressa o mundo: contrastando o discurso com as palavras,
6 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 89.
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a estrutura com o raciocínio. A ironia é a subversão de sentidos que no romance
assume o desenvolvimento com a refração da linguagem.
Desprovidas de devaneios heroicos no sentido clássico do termo – a
magnanimidade dos sacrifícios individuais ou realização de atos extraordinários com
objetivos de defesa das coletividades – as personagens do romance são lançadas à
própria sorte. Não há destinos a serem cumpridos, não há referências protetoras,
não há piedade do tempo7, das forças da natureza ou dos deuses, não há panaceia.
Pela escassez ou mesmo falta de traços identificadores que constroem
particularidades das personagens com o seu meio – sua família, seu povo, sua
comunidade, sua nação – em relação às formas clássicas, o romance tende a se
voltar para as grandes inquietações individuais, aquelas que movem as relações
interpessoais, mas que não são vistas como elementos vinculadores comuns de
corpos sociais. Por esse caráter individual, o gênero desenvolve-se por tentativa de
abrangência de uma totalidade, tal como a epopeia, no entanto difere
substancialmente desta última devido à intencionalidade biográfica –
intencionalidade, ressalte-se, essencialmente estética através da narrativa, a
realização de escolhas necessárias para os efeitos do enredo – que o romance
busca alcançar, enquanto “o herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde
sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino
pessoal, mas o de uma comunidade”8. A partir desse parâmetro, o gênero encontra
alternativas para resolver por si mesmo a problemática do tempo e do enredo: “A
forma biográfica realiza, no romance, a superação da má infinitude”9. A desmedida
é a própria organização do romance:
A arte – em relação à vida – é sempre um “apesar de tudo”; a criação de formas é a mais profunda confirmação que se pode pensar da existência da dissonância. Mas em todas as outras formas, inclusive na epopeia, por razões agora já óbvias, essa afirmação é algo anterior à figuração, enquanto no romance ela é a própria forma.10
7 “No romance separam-se sentido e vida, e portanto essencial e temporal; quase se pode dizer que toda a ação interna do romance não passa de uma luta contra o poder do tempo”. LUKÁCS, Georg. ATeoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 129. 8 Ibid., p. 67. 9 Ibid., p. 83. 10 Ibid., p. 72. (grifo nosso).
14
Assim, Lukács manifesta em seu raciocínio a medida da deferência que
o mundo literário deve ao mundo real. Os fatores empíricos que convergem à
composição de obras literárias apresentam-se de maneira muito suave em relação
ao exercício da interioridade narrativa. Por essas razões
Drama, lírica e épica – em qualquer hierarquia que sejam pensados – não são tese, antítese e síntese de um processo dialético, mas cada qual é uma espécie de configuração do mundo de qualidade totalmente heterogênea das demais.11
Por sua vez, a forma do romance – invariavelmente por vir, nunca alcançando
estabilidades – (re)cria-se em cada autor, em cada obra de diferentes autores e em
obras diferentes de um mesmo autor. Importante trazer à memória recorrentemente
quando se trata da obra de Georg Lukács, em especial ao tratar-se da Teoria do
Romance – pelo impacto, influência e abrangência que o estudo produziu no campo
das pesquisas literárias –, que por motivos evidentes a análise compreende a
contemplação debruçada em obras literárias produzidas até o século XIX – recorte
temporal especialmente valioso para a pesquisa desenvolvida neste trabalho. A
ponderação é válida para que as perspectivas posteriores não se sujeitem a planos
de observações anacrônicos.
A obra de Georg Lukács sugere que a desobrigação de um modelo formal
específico não isenta o romance de suas próprias constantes, menos ostensivas, é
notável, por isso também mais sutis e, recorrentemente, mais sofisticadas do que as
formas fixas. Trata-se de entendimentos e expressões altamente individuais, mas
que, ao passo que alinham-se com diferentes perspectivas, delineiam um conjunto
grande e variado de interpretações de realidades.
Ao observar os elementos em suas individualidades, é possível analisar mais
detidamente alguns dos tons que formam o gênero. As personagens do romance
espelham-se nos homens e mulheres de vidas comuns, isto é, seres que a princípio
não possuem a incumbência de feitos extraordinários. Desde a pedra fundamental,
o fidalgo Alonso Quijano, o Don Quijote, e, sobretudo a partir do século XIX, os
entes representados nas obras literárias romanescas estão em constantes
processos de desalinhamento com o mundo em que vivem. A medida, antes
11 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 135.
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equilibrada e moderada pelas realidades de vivências do contexto de produção da
épica clássica, é danificada irremediavelmente pelo movimento de expansão do
círculo que mantinha o corpo social trancado, a comunidade fechada. As
personagens do romance são registros de heróis simetricamente invertidos, são
marcadamente anti-heróis.
O estado de inversão que as personagens do romance encontram-se em
relação aos gêneros clássicos não deixam de carregar – e por isso mesmo, talvez,
de forma mais acentuada – os resíduos de representações e moldes que advém de
expressões míticas: greco-latinas e bíblicas. Trata-se dos arquétipos que
sobrenadam as obras do gênero – “[...] o simbolismo da Bíblia, e em menor
extensão a mitologia clássica, como uma gramática dos arquétipos literários”12. –
imbuídos de processos incessantes de intertextualidades. Ressalte-se que as
relações intertextuais não se reduzem a meras repetições de métodos de
substituição simbólicas, mas a um diálogo inesgotável entre elementos
marcadamente simbólicos que resultam em horizontes de interpretação específicos.
Northrop Frye nos fornece exemplos consistentes para o entendimento do raciocínio.
Podemos levantar um deles para efeito compreensivo e ilustrativo:
Nos rituais e mitos, a terra que produz o renascimento é geralmente uma figura feminina; e a morte e ressurreição, ou o desaparecimento e retirada, de figuras humanas na comédia romanesca, envolvem geralmente a heroína. O fato de a heroína realizar amiúde o desenlace cômico disfarçando-se de menino é bastante conhecido13.
Frye cita os casos de Hero em Muito Barulho por Nada, de Helena em Tudo
está bem quando termina bem, de Taíse em Péricles, príncipe de Tiro, de Fidele em
Cimbelino e de Hermione no Conto de Inverno, todas as referências recorrentes na
obra de um único autor, William Shakespeare. Expandindo a percepção, este
arquétipo – que remonta, em primeira instância, à Donzela de Orléans, Joana d’Arc
–, arvora-se pelas páginas da literatura ocidental personagens como Diadorim de
Grande Sertão: Veredas (1956) de João Guimarães Rosa. Ressalte-se que as
inscrições arquetípicas das obras literárias não se restringem às figuras
notadamente humanas, mas se estendem aos elementos constituintes dos enredos
responsáveis por imprimir distintas personalidades às interpretações possíveis como
12 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Editora Cultrix, 1973, p. 137. (grifo nosso). 13 Ibid., p. 182. (grifos nossos).
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animais – corujas, serpentes, pombas –, vegetais – maçãs, carvalhos, lírios –, cores
– branco, preto, vermelho –, criaturas imaginárias – cavalos alados, quimeras,
dragões – e, ainda, elementos da natureza – água, rochas, estrelas. Os rearranjos e
as desconstruções arquetípicas, portanto, movem-se no terreno das simbologias,
interrelacionando-se com outras constituições textuais constantemente. Esses
fenômenos – referências arquetípicas e, por conseguinte, construções de
intertextualidades – estão assentados nas mais diversas manifestações artísticas e,
especialmente na literatura, encontram um terreno inventivo e amplo no romance.
Quando Umberto Eco especula em torno da ideia de que o mundo ficcional é
parasitário do mundo real14 está apontando uma relação em que acontecimentos
quotidianos – culturais, políticos, econômicos, sociais, científicos – não são
suficientes para as composições artísticas. A despeito da competência narrativa
como um aspecto que beira traços inerentes ao homem desde as mais tenras
idades, mencionada por linguistas e narratólogos, a construção de uma narrativa
que se inscreve na sensibilidade literária é sutilmente diferenciada de uma
exposição de acontecimentos comum. O romance, nesse aspecto, inaugura na
dimensão de um grande gênero, o movimento de passagem que marca a
diferenciação dos enredos puramente fictícios – marcadamente as novelas de
cavalaria, “gênero literário de cujos despojos se alimenta e ao mesmo tempo
ironiza”15 – em direção ao reconhecimento ficcional:
Contra a ingenuidade suposta pelo fictício, alimentando-se da ilusão indiscriminadora de seu território quanto ao da verdade, o ficcional moderno se alimenta da ironia, do distanciamento, da constituição de uma complexidade que, sem afastar o leitor comum, não se lhe entrega como uma forma de ilusionismo.16
Numa sucessão de ocorrências dentro do campo literário, e estamos falando
mais detidamente do romance, as expectativas transfiguram-se, atingem outros
níveis de apreensões e percepções. Isso pode expressar o fenômeno em que os
paradigmas da realidade se cruzam com uma série de sentimentos – desejos,
14 Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 15 PIRES, Antônia Cristina de Alencar. Costa Lima e o Teorema do Controle Ficcional. Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v.2, p.97-110, out.94. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/download/1103/1204>. Acesso em: 01 abr. 2013, p. 99. 16 LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p.58 apud PIRES, Ibid., p. 99. (grifos nossos).
17
medos, esperanças, ansiedades, inseguranças – para a formação de um novo
horizonte de entendimento, ajustando as medidas do verossímil. Costa Lima explica
que o processo de construção de verossimilhança
(...) sempre resulta de um cálculo sobre a possibilidade de real contida pelo texto e sua afirmação depende menos da obra que do juízo exercido pelo destinatário. A obra por si não se descobre verossímil ou não. Este caráter lhe é concedido de acordo com o grau de redundância que contém.17
Umberto Eco simplifica: “[...] o verossímil nada mais é que a aderência a um
sistema de expectativas partilhado habitualmente com a audiência”18. Relembrando
mais uma vez Georg Lukács: “a ironia é a objetividade do romance”19, fator que
induz outro traço marcante do “grande e autêntico romance”20: a indução aos atos
reflexivos que podem levar a uma profunda melancolia e a um entrever de
acontecimentos possíveis, abertos à sucessão – sobretudo em um mundo que não
guarda mais as chaves absolutas de equilíbrio, os destinos encerrados e
determinados por forças sobre-humanas.
Habitualmente – aqui lançando mão de um exemplo propositalmente explícito
– os efeitos causados pelo jogo verossímil impactam pelos desvios lógicos ou
naturais que se encaminham para outros desfechos: o contentamento
experimentado pelos ouvintes e leitores da narrativa de Chapeuzinho Vermelho dá-
se, em grande parte, pela surpresa de encontrar a avó da personagem-título viva
após ser retirada da barriga do Lobo Mau. Ora, é de conhecimento geral que seja
pouco provável a chance – trata-se mesmo de uma ideia bastante descabida – de
uma pessoa restar com o corpo intacto após ser devorada por uma fera, que dirá
sobreviver dentro de corpos alheios. No entanto, os seguidores do enredo trocam a
incredulidade pela satisfação, a descrença severa pelo sentimento de reparação
justa. A disposição mental que encadeia o jogo verossímil compraz-se pelas
possibilidades de um mundo minimamente satisfatório.
17 LIMA, Luiz Costa. Estruturalismo e Teoria da Literatura: Introdução às problemáticas estética e sistêmica. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 56. (grifos nossos). 18 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 21. (grifos nossos) 19 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 93.20 Ibid., p. 86.
18
Na trajetória que permeia a transição, surgimento e expansão de diferentes
gêneros literários, é importante perceber que a sutileza de uma exposição linear da
hegemonia das formas não possui caráter de uma disposição evolutiva. A força de
determinas expressões artísticas não é apenas reflexos especulares de seu tempo,
mas próprio elemento constitutivo e constituinte de sua época. Lembremos o
célebre enunciado do frankfurtiano Walter Benjamin ao comentar a postura que o
pesquisador deve tomar ao se deparar com as obras produzidas pelos homens – os
despojos chamados de bens culturais – em diferentes tempos baseada nas
orientações do historiador francês Fustel de Coulanges:
Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. [...] Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.21
Também para Lukács, e de forma mais explícita para Frye, a ideia de um
aperfeiçoamento dos gêneros literários que culminaria no romance encontra-se fora
de consideração. A história assume nesse contexto o papel de mais um fator de
criação artística e não de um medidor dos níveis de convergências em direção a
determinados objetivos. Em estudo que se detém mais demoradamente na obra de
Georg Lukács, José Marcos Mariani de Macedo revela o cuidado de entendimento
que o pesquisador deve reservar ao deparar-se com os escritos do pensador
húngaro:
É nesse sentido que se deve entender A teoria do romance como um ensaio histórico-filosófico, a um tempo encarregado da dedução dos gêneros literários e de sua base histórica, ou melhor, incumbido de deduzi-los pelo fato mesmo de inserir a história como um ingrediente constitutivo.22
Lukács sintetiza a colocação de cada gênero em sua preponderância
histórica:
21 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ROUANET, Sérgio Paulo. (Org.). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 6. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 254. 22 MACEDO, José Marcos Mariani de. Posfácio do tradutor. In: LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 189.
19
[...] a grande épica é uma forma ligada à empiria do momento histórico, e toda tentativa de configurar o utópico como existente acaba apenas por destruir a forma sem criar realidade. O romance é a forma da época da perfeita pecaminosidade, nas palavras de Fichte, e terá de permanecer a forma dominante enquanto o mundo permanecer sob o jugo dessa constelação.23
Numa exposição abreviada e ligeira, perpassamos uma visão panorâmica
acerca do surgimento, formação e algumas características que assinalam e se
sobressaem na constituição do romance como gênero. Forma esta que popularizou-
se intensamente devido a algumas razões como sua constituição geralmente não
versificada, bem como determinados momentos propícios cultural e socialmente –
difusão do hábito da leitura individual, o interesse por temáticas que satisfizessem
determinados anseios, sociabilidade e proximidade de escritores e editores – e ainda
o desenvolvimento de suportes materiais e tecnológicos que facilitaram a
disseminação do livro pessoal, das edições de bolso, da imprensa e das publicações
seriadas: os folhetins.
2.2 As fórmulas da sedução – O folhetim
Se a forma do romance expandiu-se e popularizou-se em decorrência de uma
série de fatores ocorridos com as transformações culturais, econômicas e sociais
que aconteceram a partir do século XVII, atingindo seu ápice de propagação e
influência no século XIX, suas expressões encontraram novos comportamentos,
outras fórmulas e manifestações. É justamente nos Oitocentos que se propiciarão
as condições favoráveis ao desenvolvimento do romance folhetim, gênero que difere
sensivelmente na estrutura – variações de tempo, construção de personagens,
modulação de pausas, capítulos, descrições – mas que se alinha à tradição do
romance em sua essência na origem e nos pontos de repetições fundamentais.
Os primeiros registros acerca do folhetim dizem respeito à cidade de Paris, na
França, no ano de 1836 quando o diretor de jornais Émile de Girardin dividiu a
novela espanhola Lazarillo de Tormes em partes separadas e publicadas
23 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 160. (grifos nossos).
20
diariamente no feuilleton, correspondente ao rodapé das folhas do jornal, geralmente
na primeira página. O bloco destinado ao entretenimento dos periódicos era já
comum neste espaço dos jornais desde o início do século XIX. Ali era o lugar
destinado à publicação de amenidades: contos, anedotas, charadas, opiniões,
ensaios de poesias, pequenas dedicatórias, notícias menos importantes ao lado – ou
antes, abaixo – dos informes do dia, do noticiário político, das transações
econômicas e dos anúncios comerciais. Note-se que Girardin, inicialmente ao
conceber seu projeto, não precisou lançar mão de convênios ou combinações
dificultosas: a obra escolhida já estava finalizada – aliás, há cerca de trezentos anos
–, possui autoria incerta e elementos de enredo e estrutura especialmente atrativos
como organização epistolar, narrativa relativamente curta e temática de sofrimento.
Percebendo as características de viabilidade, interesse e lucratividade que
sua invenção prenunciava gerar, no final do mesmo ano de 1836 Émile de Girardin
encomenda uma obra especialmente direcionada para publicação no novo meio de
suporte literário – o autor é Honoré de Balzac, que se tornaria célebre e clássico
folhetinista, e a obra La Vieille Fille, em português, A Solteirona. Inicia-se, assim,
um novo entendimento de produção, divulgação e recepção das narrativas literárias:
Nota-se, pois, que na origem, e assim vai ser pelo romantismo afora (época em que o romance é o gênero literário dominante), o romance-folhetim é essencialmente uma nova concepção de lançamento de ficção, qualquer que seja seu autor e o campo que abranja.24
Esta forma de publicação atingiu rápida popularidade e resultados
surpreendentes, tanto em relação às crescentes somas de algarismos financeiros
como em relação à penetração, recepção e impactos socioculturais. Ao chancelar o
notável mote “continua no próximo número”, Émile de Girardin encetou mais do que
uma maneira de se aumentar lucros e vender edições de jornais: foi principiado o
movimento de formação de um novo gênero, o feuilleton-roman. Marlyse Meyer
realiza uma visão introdutória e geral acerca dessa transformação:
[...] justamente para atingir esse público mais amplo que fora a viga-mestra da publicação em série, esta vai acabar suscitando uma forma novelesca específica, aquela precisamente com que o termo folhetim vai acabar se confundido. A almejada adequação ao grande público, a necessidade do
24 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p.31. Este livro será bastante explorado ao longo deste trabalho por se tratar de uma das poucas obras de referência no tema no Brasil.
21
corte sistemático num momento que deixe a atenção em “suspense” levam não só a novas concepções de estrutura (por exemplo, o problema dos fins de capítulos ou de série, a distribuição da matéria seguindo aquele esquema iterativo tão bem evidenciado por Umberto Eco) como a uma simplificação na caracterização dos personagens, muito romântica na sua distribuição maniqueísta, assim como uma série de outros cacoetes estilísticos. Verifica-se, além disso, genial adaptação à técnica do “suspense” e ao rápido e amplo ritmo folhetinesco dos grandes temas românticos: o herói vingador ou purificador, a jovem deflorada e pura, os terríveis homens do mal, os grandes mitos modernos da cidade devoradora, a História e as histórias fabulosas etc.25
Neste trecho, a pesquisadora aponta os principais ingredientes que fazem de
um folhetim um folhetim na concepção paradigmática. Entre as características mais
marcantes desse gênero está a intensificação das montagens arquetípicas nas mais
diferentes instâncias da narrativa. As personagens, extremamente tipificadas,
chegam ao ponto de se enformarem em clichês constituindo um dos traços
recorrentes na fórmula do folhetim. Northrop Frye direciona suas reflexões para o
tipo basilar das personagens do gênero:
O modo da história romanesca apresenta um mundo idealizado: na história romanesca os heróis são bravos, as heroínas belas, os vilões cheios de vilania, e as frustrações ambiguidades e obstáculos da vida comum são desconsiderados. Por isso suas imagens apresentam uma contrapartida humana do mundo apocalíptico, que podemos chamar a analogia da inocência.26
A construção arquetípica da chamada analogia da inocência converge para as
ideias maniqueístas nas quais se existe a inocência – e aqui entenda-se todo o
leque semântico de qualidades que se ligam a essa palavra como bem, bom,
pureza, simplicidade, ingenuidade, candura –, existe, por associação lógica e
intuitiva, o seu inverso, o nocivo – e, por sua vez, a rede semântica que se associa
ao termo: ardiloso, mal, peçonha, perigoso, astuto, impuro, malicioso. O romance
folhetim explora uma duplicidade extremamente simplificada de polos
comportamentais. O bom está ligado sempre ao bem, enquanto o mau ao mal. O
mundo expresso pelo enredo folhetinesco clássico permeará insistentemente uma
medição de forças de princípios opostos e inconciliáveis: o fundamento céu – inferno
repetindo-se em moldes fixados como pobre bom – rico mau, cavaleiro virtuoso –
femme fatale, donzela casta – gatuno oportunista. As variações e oscilações
25 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p.31. 26 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Editora Cultrix, 1973, p. 152. (grifos do autor).
22
tendem a zero: as personagens desenvolvidas sob o imaginário arquetípico no
folhetim modelar não surpreenderão com vacilações assombrosas ou conversões
arrebatadoras, são apresentadas como figuras desumanamente constantes: “quem
se converte já era bom antes, quem era mau morre impenitente. Não acontece nada
que possa preocupar alguém”27. Invariavelmente, o desenlace da batalha que se
trava durante todo o enredo em inúmeras peripécias deve explicitar a vitória cabal e
definitiva do lado bom. As figurações arquetípicas dos folhetins servem como uma
espécie de caução em apostas que podem consagrar ou arruinar obras e escritores.
Ao comentar a execução dessa estratégia por Eugène Sue em Os Mistérios de Paris
Umberto Eco assegura que
Não há dúvida de que ele joga com arquétipos como inventor culto e genial; mas não para fazer do romance um itinerário para o conhecimento através do mito, à semelhança de Mann, e sim para empregar “modelos de funcionamento seguro”.28
Mais um traço arquetípico do romance folhetim é a chamada estrutura da
consolação. E aqui reside um dos pontos de maior intensificação nos arrolamentos
das diferenças entre o romance popular e o romance problemático: a característica
constante de que
no primeiro, sempre se desencadeará uma luta do bem contra o mal a ser resolvida sempre ou o mais das vezes (venha o desenlace embebido em felicidade ou em dor) a favor do bem, definido, este, nos termos da moralidade, dos valores e da ideologia corrente. O romance problemático propõe, ao contrário, finais ambíguos, justamente porque tanto a felicidade de Rastignac quanto o desespero de Emma Bovary colocam exata e ferozmente em questão a noção adquirida de “Bem” (e de “Mal”). Numa palavra, o romance popular tende para a paz, o romance problemático põe o leitor em guerra consigo mesmo.29
Exposta metodicamente por Umberto Eco30, esse tipo de estrutura consiste na
formulação de um enredo altamente enervante, suscitador de elevados níveis de
ansiedade e sofreguidão recompensados por um desfecho satisfatório a anseios
planificados de justiça, bondade, retidão. O mesmo domínio do desfecho confortável
27 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 76. 28 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 198. (grifos nossos). 29 ECO, op. cit., 1991, p. 25. 30 ECO, Ibid., p.62-76.
23
é constante também em outras configurações estruturais de obras literárias afora o
folhetim. Para o economista belga e estudioso fascinado por romances policiais
Ernest Mandel
O romance policial é o império do final feliz – onde o criminoso é sempreapanhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e no final a legalidade, os valores, a sociedade burguesa sempre triunfam. É uma literatura reconfortante, socialmente integrante, apesar da preocupação com o crime, a violência e o assassinato.31
Esquematizando sua explanação, Umberto Eco destrincha a construção que
os folhetinistas desenvolvem: exasperação da sensibilidade com altíssimos níveis de
informação – leia-se dados complicadores de enredo que encaminhem a narrativa
para o ponto da imprevisibilidade e ainda:
Para que o leitor possa identificar-se seja com as condições de partida (personagens e situações antes da solução) seja com as condições de chegada (personagens e situações depois da solução) os elementos que as caracterizam deverão ser reiterados até que a identificação se torne possível. O enredo deverá portanto distribuir vastas faixas de redundância,isto é, deter-se longamente sobre o inesperado de modo a torná-lo familiar.32
A passagem é nítida ao valorizar a repetição como maneira de reforçar a
evidência das personagens e distingui-los uns dos outros como componentes
dotados de características extremamente particularizadoras, fixadas e determinadas:
os arquétipos. A expressão é grafada abertamente pelo pensador italiano: imprime-
se a palavra redundância, destacada por grifo, inclusive. A estrutura folhetinesca
obedece a uma ordem redundante na fixação das personagens, no conjunto de
embaraços e resoluções de ações, na retomada de enredos entrecruzados e
sobrepostos. Na análise de Eco: “O dever de informação exige que ocorram lances
teatrais; o dever de redundância impõe que esses lances se repitam a intervalos
31 É preciso enfatizar aqui que o paradigma de romance policial circunscrito nesta pesquisa e em parte estudado por Ernest Mandel remete aos modelos realmente considerados clássicos, as primeiras tramas policiais que continham uma estrutura própria bastante definida e reproduzida com poucas variações por inúmeros autores. Embora o romance policial tenha adquirido inúmeras facetas e variações ao longo do tempo, os primeiros esquemas narrativos serviram como referência a ser continuada, rompida ou adaptada. Ver MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 80-81. (grifos nossos). 32 ECO, O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 64. (grifos do autor).
24
regulares”33. Na mesma esteira de montagem, o romance policial envolve-se por
completo na fórmula da redundância, pois
sob aparência de uma máquina que produz informação, o romance policial é, pelo contrário, uma máquina que produz redundância; fingindo abalar o leitor, na realidade ele o reconfirma numa espécie de preguiça imaginativa, e produz evasão não por narrar o desconhecido mas o já-conhecido.34
O projeto redundante dos folhetins paradigmáticos é facilmente relacionado
ao esquema iterativo, também observado com proximidade por Umberto Eco em
seus estudos sobre a narrativa popular. Um exemplo bastante perceptível do
programa iterativo encontra expressão forte também no romance policial em que
pode se observar em muitas das obras do gênero “a degustação de um esquema:
do delito à descoberta, através da cadeia de deduções”35. Eco adentrando em seu
próprio objeto de análise repete-se a si mesmo reiteradas vezes que uma das
características dos produtos de consumo reside na diversão de não haver
revelações de novidades, “mas por repetir-nos o que já sabíamos, o que
esperávamos ansiosamente ouvir repetir e que é a única coisa que nos diverte”36.
A partir dessas observações, identificam-se dois tipos basilares de narrativas
predominantes: a chamada curva constante – ou contínua – e a estrutura sinusoidal.
A primeira diz respeito à concentração, saturação de informações no enredo de
forma a provocar graus elevados de tencionamento, culminando com uma grandiosa
ruptura da situação, um alívio final causado por implosão e, mais recorrentemente,
uma explosão – resolução externa do conflito, não interna, ou seja: uma providência
com a qual os leitores não contavam por não constar como parte constituinte da
narrativa. Já a segunda diz respeito às construções que lançam mão de pequenos
nós seguidos de seus respectivos desatamentos: “tensão, desenlace, nova tensão,
novo desenlace, e assim por diante”37. Como todas as outras características
atribuídas às marcações folhetinescas, essas duas classificações não são referentes
a elementos exclusivos ou invenções folhetinescas, é possível perceber as duas
montagens em outros gêneros e em diferentes disposições. E dessa maneira, mais
33 ECO, O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 64. 34 Ibid., p. 170. 35 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 265. 36 Ibid., p. 298. 37 ECO, op. cit., 1991, p. 64.
25
uma vez, a estrutura folhetinesca expressa sua aposta nas construções redundantes
– convergentes e recorrentes – nos seus enredos basilares. Importante ratificar-se
que essas duas disposições de enredo não se desvinculam das condições
essenciais de toda narrativa enunciadas por Aristóteles na sua Poética: início,
tensão, ponto culminante, desenlace e catarse. Esses pontos são praticamente
imutáveis em todas as expressões que se dispuserem a execução do ato de narrar –
escolher acontecimentos que compõem uma história a ser contada38.
Mais um elemento que contribui para a formação dos eventos em suspensão
no enredo de romances é a constituição dos instantes de agnição. O termo é
utilizado por Umberto Eco na exposição de sua tipologia do reconhecimento:
Entendemos por agnição o reconhecimento de duas ou mais pessoas, podendo ele ser recíproco (“O Senhor é meu pai!” “Você é meu filho!”) ou monodirecional (“Você é o assassino de meu filho!”, ou então: “Olhe para mim!” Eu sou Edmundo Dantès”).39
A partir do entendimento acerca da agnição, Umberto Eco distingue a
revelação como o “desatar violento e imprevisível de um nó do enredo, até então
ignorado pelo protagonista”40. A exemplificação é dada com um clássico:
[...] quando Édipo fica sabendo que é o assassino de Laio, temos uma revelação; mas ao saber que é também filho de Jocasta, torna-se protagonista de uma agnição recíproca.41
Eco também apresenta a forma mista que justapõe as duas estratégias, a agnição e
a revelação, ou ainda uma “forma particular” de agnição monodirecional: o
desmascaramento – que se apresenta componente recorrente de alguns romances
policiais. Dentre as formas de reconhecimentos que Umberto Eco desmonta em seu
estudo tipológico, diferenciam-se dois tipos principais de projeções narrativas muito
caras aos escritores e estimulantes aos leitores que saboreiam – ou sofrem – os
efeitos de um e de outro com prazer: o reconhecimento produzido e o
reconhecimento autêntico. Nas ajustadas explicações de Eco:
38 Conferir ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 194. 39 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 31. 40 Ibid., p. 31. 41 Ibid., p. 31.
26
O reconhecimento produzido é aquele em que a personagem cai das nuvens diante da revelação, mas o leitor já sabe o que está acontecendo. Típico dessa categoria é o auto-desvendamento múltiplo de Monte Cristo aos seus inimigos, que o leitor espera e antegoza a partir da metade do livro. Poderíamos definir o reconhecimento autêntico como reconhecimento do enredo e o produzido, como reconhecimento no enredo.42
Verifica-se que o romance folhetim tende a ser composto por várias
estratégias e estruturas redundantes em sua essência. No entanto, o campo dos
reconhecimentos, agnições e desmascaramentos é um terreno para ser explorado
de forma comedida e cautelosa. Poucos são os casos de cadeias de
reconhecimentos que resultam em uma narrativa estimulante, contornando
aborrecimentos – O Conde de Monte Cristo seria o exemplo plenamente
desenvolvido desta exceção. A suspensão do enredo – ações, revelações,
pensamentos – do romance folhetim compõe a quintessência de sua formação. No
romance policial esse traço é levado a índices elevadíssimos de situações repletas
de reticências, pois o enredo se apoia em trechos de obscuridades: “o verdadeiro
tema dos primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato, mas o
enigma”43. Explica o estudioso belga que o legítimo ponto de inquietação do
romance policial clássico não reside, em absoluto, no crime, mas no mistério – ou
melhor: no regozijo provocado por acompanhar a montagem de um quebra-cabeça,
no deleite de se sentir impelido a seguir o encalço do enredo, saborear as
descobertas e as surpresas que a narrativa oferece aos seus leitores como tesouros
recompensatórios pela companhia em uma trilha sinuosa de pensamentos.
Para que o efeito da redundância obtenha maior impacto em seus
desdobramentos e potencialize os choques e contentamentos do desfecho, os
folhetinistas geralmente investem na sobreposição das personagens e seus
respectivos componentes complicadores. No folhetim modelar, o foco narrativo
possui o desprendimento de passear entre os mais diversos cenários, transitando
sem cerimônia nas variações temporais, resgatando ou abandonando as situações e
as personagens sem acanhamentos. Umberto Eco transcreve uma espécie de
teorização do romance episódico desenvolvida por um exímio folhetinista, Eugène
Sue:
42 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 32. (grifos do autor). 43 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 37. (grifos nossos).
27
“Ao invés de acompanharmos esta severa unidade de interesses distribuída por um número estabelecido de personagens que, partindo do início do livro devem, bem ou mal, chegar ao fim para contribuir cada uma com sua parte para o desenlace”, é melhor não constituirmos blocos ao redor “das personagens que, não servindo de séquito forçado à abstração moral que constitui o per no do livro, poderão ser abandonadas no meio do caminho, segundo a oportunidade e a lógica dos acontecimentos”.44
A esse fenômeno provocado repetidamente pelos escritores de folhetins, o
pensador italiano aponta a intitulação de Jean-Louis Bory de romance centrífugo,
aquele que “multiplica lugares, tempos e ações”45 tendo como um dos consistentes
motivos para sua realização a captura da atenção dos leitores no intervalo entre uma
edição diária e outra. É presumível que todo esse jogo estratégico montado sob as
demandas do consumo e o desenvolvimento de enredos influenciasse a composição
das obras de acordo com as reações suscitadas pelos acontecimentos da história.
Neste caso, o romance construído no ritmo em que se dá sua publicação está
diretamente constrangido a um apelo externo que exerce poder sobre o andamento
da narrativa. Os efeitos dessa exposição podem ser facilmente observados em um
dos mais notórios folhetins de todos os tempos – mais do que um romance isolado,
conjunto transformado numa espécie de saga: Os dramas de Paris de Ponson du
Terrail. Obra bastante reconhecida – ou mesmo, muitas vezes, apenas identificada
– pela sua personagem principal, o Rocambole, figura que pela sua força plástica e
carismática ao gosto popular converteu suas características de liderança, astúcia,
vivacidade e a vocação para se envolver em situações problemáticas – mais ainda:
em se livrar dessas situações problemáticas – em adjetivo, rocambolesco. Para
ilustrar, o herói que protagonizou cerca de 15 obras
[...] debutou em 1857 n’A herança misteriosa de Ponson du Terrail e ganhou vida longa com a série Os dramas de Paris, também conhecida como Asproezas de Rocambole. Série essa, vale a curiosidade, peculiar pela sua persistência tenaz e pelo magnetismo impressionante concebendo volumes como A Ressurreição de Rocambole que depois de reviver vem com Aúltima palavra de Rocambole e surpreender com A verdade acerca de
44 A citação de Eugène Sue é indicada como parte do prefácio de Atar-Gull, romance de temática marítima de 1831 (cf. Jean-Louis Bory, Eugène Sue – Le roi du roman populaire, Hachette, Paris, 1962, p.102). Não foi possível detectar nenhuma publicação ou edição brasileira em português. ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 65. 45 Ibid., p. 65.
28
Rocambole, que nem foi o derradeiro volume, para alegria de muitos leitores de jornais e desespero de tantos outros críticos da saga rocambolesca.46
Umberto Eco explana a sua percepção do fenômeno partindo de Aristóteles
para demonstrar sua observação acerca do desenvolvimento da personagem como
um elemento de consumo:
Tem-se um enredo trágico, estabelece Aristóteles, quando ocorre à personagem uma série de acontecimentos, peripécias e agnições, casos lamentáveis e terríficos, que culminam em catástrofe; tem-se um enredo romanesco, acrescentaremos, quando esses nós dramáticos se desenvolvem numa série contínua e articulada que, no romance popular, tornando-se fim em si mesma, deve, o mais possível, proliferar ad infinitum.Os Três Mosqueteiros, cujas aventuras continuam em Vinte Anos Depois, e terminam, por cansaço, no Visconde de Bragelonne (mas eis que intervêm narradores parasitas que continuam narrando as aventuras dos filhos dos mosqueteiros, o choque entre d’Artagnan e Cyrano de Bergerac, e assim por diante), é um exemplo de enredo narrativo que se multiplica como uma tênia, e aparece com tanto maior vitalidade quanto mais souber sustentar-se através de uma série indefinida de contrastes, oposições, crises e soluções.47
O apelo e a associação do folhetim a uma preocupação dominante na esfera
financeira-comercial dão-se justamente pelo envolvimento público de um
entretenimento por vendagem. Não é puramente com propósito de oferecer
oportunidades de publicação a romancistas que durante o grande período de edição
de folhetins, meados do século XIX, as diretorias de reconhecidos periódicos
europeus – fala-se aqui, sobretudo, da França, onde o folhetim germinou e frutificou
ao tempo em que se expandiu para outras localidades – disputavam a somas
hiperbólicas os folhetinistas mais estimados, que seriam aqueles que provocavam
com sua assinatura um boom de vendagens por edição e o peso de uma poderosa
grife, observe-se Alexandre Dumas e seus nègres, espécie de assistentes,
escritores auxiliares que dominem também, claro, as técnicas de atração, em
síntese: a construção de um romance folhetim. É Marlyse Meyer que aponta a
capciosa definição do escritor francês Louis Reybaud ao afirmar que “é
principalmente no corte que se reconhece o verdadeiro folhetinista”. E continua:
46 IZÍDIO, Mirella. De Concreto e de Neblina: um estudo jornalístico sobre a construção de realidades no folhetim A Emparedada da Rua Nova. Recife, 2011. 85 p. Monografia (graduação) – Departamento de Comunicação, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011, p. 16. 47 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 251. (grifos do autor).
29
É preciso que cada número caia bem, que esteja amarrado ao seguinte por uma espécie de cordão umbilical, que peça, desperte o desejo, a impaciência de se ler a continuação. [...] esta é a arte. É a arte de fazer desejar, de se fazer esperar. E se o senhor puder colocar esse leitor entre uma assinatura e outra, ameaçando os pagadores atrasados de deixarem de saber o que acontece ao herói favorito, acontecerá então o mais belo sucesso da arte.48
O suspense do romance folhetim permeará as arestas do que se formará
como mais um tronco do gênero, o romance policial. Um e outro produto destas
definições – folhetim e policialesco – entrelaçam-se em pontos de contato mútuos
em diferentes fases. Ernest Mandel dispõe possíveis razões sociais – note-se o
subtítulo de seu estudo, história social do romance policial —, culturais, econômicas,
materiais – importante atentar-se para as informações apontadas na sua declaração
acerca da metodologia desenvolvida em sua obra: “meu enfoque é o método
dialético clássico como foi desenvolvido por Hegel e Marx”49 – formadoras das
preocupações estruturais, narrativas e estéticas de romances episódicos:
[...] a crescente preocupação com o crime na classe média e nas altas camadas da classe operária logo passou a exercer um impacto sobre os grandes romancistas da época, especialmente Balzac, Victor Hugo, Charles Dickens, Alexandre Dumas e até Dostoiévski. Por um lado, isto deu expressão a uma verdadeira preocupação social e uma motivação ideológica mais profunda. Porém existiam razões materiais para que os romancistas voltassem para as histórias policiais: as dificuldades financeiras, a busca de uma maior plateia, a possibilidade de receber vultosos pagamentos das novas revistas populares e a emergência do folhetim – seriado –, no qual escritores como Eugène Sue [...], Ponson du Terrail e Paul Feval conquistavam grande sucesso popular. Nos melodramas e nos folhetins, ainda prevalecia o “bom bandido”, vivendo às margens da sociedade. Os grandes escritores não traíam uma romântica admiração pelo “bom bandido”, tratando os criminosos pura e simplesmente como párias sociais. Por outro lado, a consciência da injustiça social, do antagonismo entre rico burguês e o pobre e a hipocrisia da dupla moralidade permaneciam bastante presentes. (Em Os Miseráveis, de Victor Hugo, a polícia age de maneira bem diversa para com um rico burguês que molesta uma mulher pobre, e com esta mesma mulher, quando ela tenta se defender. [...])50
O “bom bandido” ao qual Mandel refere-se é elemento inquietante nos
romances folhetinescos. Trata-se de mais uma espécie de personagens tipificadas
e elevadas à condição arquetípica: as figuras menos favorecidas na conjuntura
48 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 30-31. (grifos nossos). 49 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 11. 50 Ibid., p. 24.
30
hierárquica de posições financeiras e sociais coagidas a viverem por subterfúgios de
uma lei própria – duvidosa ou mesmo criminosa aos olhos da normalidade
estabelecida pelos homens maus, mas absolutamente compreensível e mesmo
admirada pelos que partilham da mesma posição subalterna e ainda por aqueles
que pertencem ao outro lado, os poderosos simpatizantes da causa, pessoas
dispostas a ajudar essas personagens por meio de dinheiro ou pela influência
exercida em determinados círculos. A desforra promovida pelos tipos de bons
bandidos é um fator de purgação coletiva. A tipificação apontada por Ernest Mandel
encontra ponto convergente, tanto no arquétipo da personagem como no enredo
apoiado na narrativa punitiva em leis divergentes das do mundo convencional, no
Super Homem folhetinesco de Umberto Eco. Essa figura arquetípica foi bastante
recorrente, sobretudo nos primeiros momentos das publicações folhetinescas. Por
definição trata-se de “uma personagem de qualidades excepcionais, que põe a nu as
injustiças do mundo onde se insere, e intervém para repará-las com atos de
justiça.”51 Vale ressaltar que as ações colocadas em execução pelos super-homens
não estão inseridas em aspectos revolucionários e sim caritativos ou, mais
ajustadamente, reformistas. Não há luta de classes nem insubordinações à
disposição social hegemônica, o que acontece é um desvio particular de sujeição a
determinadas regras, bem longe de ser um movimento ordenado. O pensador
italiano aponta as especulações de Antonio Gramsci ao relacionar a linha de
raciocínio desenvolvida por Friedrich Nietzsche encontrando procedência num dos
mais emblemáticos heróis folhetinescos: Edmond Dantès, personagem-título do
grande romance de Alexandre Dumas, o Conde de Monte Cristo:
[...] mas não resta dúvida que em Monte Cristo a teoria do Super-homem é exposta mais pormenorizada e sistematicamente, e Dumas fornece, insinuava Gramsci, filosofemas a todos os futuros profetas laureados do Übermensch.52
Mais demoradamente, Umberto Eco prossegue a sua reflexão acerca do tema
questionando a relação da vingança engendrada por Edmond Dantès: “pode o
vingador encontrar o fundamento dos próprios gestos e das próprias escolhas no
fato de ser Super-homem?” Em outras palavras, busca-se argumentar sobre a
51 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 111. 52 Ibid., p. 100.
31
profundidade reflexiva que a condição de Super-homem empresta ao personagem
em seu próprio criador e os reflexos resultantes no público receptor. A resposta
encaminha-se para explanação de que
A diferença entre Dumas e Nietzsche (não fosse outra) reside toda nisto: Nietzsche está historicamente maduro (e tem o vigor especulativo) para demolir as pontes com as justificações transcendentes, custe o que custar (e aceitando o isolamento a que o condenam); Dumas não possui vigor especulativo e precisa vender seu produto: é sobretudo o que dele exige o Espírito do Tempo. Mas não sabe mais onde colocá-lo. O Super-homem torna-se-á então um enviado do Senhor.53
Essa transformação da personagem provoca uma preocupação diante de
possíveis julgamentos que diminuam sua estima geral – inquietação expressada na
lembrança de que os escritos de Dumas obedeciam a uma lógica de mercado. No
entanto, a resolução do conflito encontra lugar ao diluir-se em um raciocínio
fascinante, pois divinal:
Monte Cristo é um anjo: é um enviado de Deus. Quase ao fim da empresa é tomado de dúvidas, teme haver prevaricado, mas afinal caem-lhe nas mãos os manuscritos secretos do Abade Faria, e ele lê a epígrafe: “Arrancarás os dentes ao dragão e esmagarás sob os pés os leões, disse o Senhor”. “Ah! Graças, eis a resposta!” brada Monte o Cristo. E isso o deixa tão exultante que, após haver edificado o leitor (não há super-homens que não sejam subdeuses), permite-se até mesmo infringir a regra de proterva castidade que a vingança lhe impusera: veleja feliz rumo a praias ignotas ao lado da mulher que o amava em silêncio, e volta a ser homem para não pôr em crise os compradores do folhetim.54
Umberto Eco detém-se mais na personagem de Edmond Dantès pelo seu
caráter paradigmático, no entanto é perceptível a sua intenção de distender o
raciocínio para a montagem dos romances folhetins de forma mais abrangente,
mesmo que essa relação seja expressa de maneira menos explícita do que na obra
de Alexandre Dumas. O peso da implacabilidade é carregado por praticamente
todos os heróis romanescos pois a qualidade de subdeuses carrega transições de
forças e fraquezas. A consoladora intervenção de sinais – interpretados como –
divinos devolve às figuras do enredo e, principalmente, aos seus leitores a
aproximação a uma almejada completude que, embora nunca alcançada pela
53 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 101. 54 Ibid., p. 102. (grifos nossos).
32
personagem do romance moderno – é tangenciada como possibilidade, mesmo com
todo o apesar de.
2.3 Episódio de hoje: o folhetim no Brasil
Apenas dois anos após o primeiro romance fatiado ser oferecido ao público e
Émile de Girardin registrar o mote “continua no próximo capítulo”, aportava em terras
além-mar o mesmo princípio e também muitos dos romances que eram publicados
nas páginas diárias europeias, principalmente francesas, servindo como modelo aos
escritores brasileiros. A novidade chegou anunciada em
uma nota de rodapé do Jornal do Comércio de 31 de outubro de 1838 chama a atenção dos leitores para o acontecimento do dia: a publicação do primeiro capítulo de “linda novela, O capitão Paulo, novelo por Alexandre Dumas, traduzida por J. C. Muzzi.55
Muitos aspirantes e escritores iniciaram e solidificaram carreira permeando
espaços nos rodapés das folhas diárias. Homens públicos, personalidades notáveis,
políticos e estudantes das faculdades de Direito, Medicina e Engenharia formavam a
classe dos chamados homens de letras. Muitos deles vivenciaram os espaços de
discussões regulamentadas que passaram a se solidificar nos jornais, a praça
pública para debates, provocações, ensaios acerca das mais variadas temáticas e
disposição para arriscar obras literárias. É, inclusive, um desses homens tidos como
pertencentes à categoria dos homens de letras, Sílvio Romero, que observa os
frouxos limites entre as carreiras:
No Brasil, mais inda do que noutros países, a literatura conduz ao jornalismo e este à política que, no regime parlamentarista e até no simplesmente representativo, exige que seus adeptos sejam oradores.Quase sempre as quatro qualidades andam juntas: o literato é jornalista, é orador e é político56.
55 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 32. 56 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 5. ed. 5 v. Rio de Janeiro, 1954, p. 1717, V apud SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 184. (grifos do autor).
33
Social, cultural e economicamente, esse fenômeno foi responsável por
evidenciar grande parte dos escritores como personalidades públicas – e também
vice-versa: personagens públicas infundindo-se nos misteres das letras. Esses
movimentos fluidos entre as posições atraíam para o jornal os mais diferentes
homens com as mais distintas intenções. De maneira geral
Os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível. [...] No inquérito organizado por Paulo Barreto, e depois reunido no volume O Momento Literário, uma das perguntas era esta: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?” A maioria respondeu que bom, naturalmente. Félix Pacheco esclareceu, com exatidão: “Toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e cinco anos[a declaração de Pacheco situa-se nos princípios do século XX] fez escala na imprensa”. Medeiros e Albuquerque viu outros aspectos da questão: “É certo que a necessidade de ganhar a vida em misteres subalternos de imprensa (sobretudo o que se chama a ‘cozinha’ dos jornais; a fabricação rápida de notícias vulgares), misteres que tomem muito tempo, pode impedir que os homens de certo valor deixem obras de mérito. Mas isto lhes sucederia se adotassem qualquer outro emprego na administração, no comércio, na indústria. O mal não é do jornalismo: é do tempo que lhes toma um ofício qualquer, não os deixa livres para a meditação e a produção”.57
Ponto merecedor de especial atenção é a diferenciação que se faz necessária
entre os gêneros, apesar de suportes difusores semelhantes – sobretudo ao falar-se
reservadamente dos episódios sucedidos em terras brasileiras. É certo que a
movimentação das obras literárias circulantes no país – entenda-se produzida,
traduzida e publicada no território nacional, ainda que não necessariamente em
língua portuguesa – está intimamente ligada à história da imprensa do Brasil. A
frase de Félix Pacheco é certeira: a literatura brasileira realiza escala na imprensa.
Poderia acrescentar-se a esta sentença a observação de que, a rigor, a literatura
brasileira realizou escalas na imprensa, mas – e aqui fazendo a leitura da temática
folhetinesca – não foi consistente em aglutinar a escola de romances folhetins que
dosassem os elementos do folhetim modelar resultando nos efeitos esperados dos
grandes folhetins: a mobilização cativante do público leitor, as atormentadoras
suspensões, os copiosos volumes em séries. Isso quer dizer que o fato de que
praticamente toda a literatura produzida no país tenha sido estampada nos rodapés
de periódicos, não faz com que as obras fatiadas se enquadrem nas características
57 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 292. (grifos nosso).
34
basilares da formação do folhetim como gênero. Muitas foram as imitações, outras
tantas foram as reproduções / traduções, mas poucos os títulos que alcançaram a
maturidade e sobreviveram ao tempo na lembrança popular entre um capítulo e
outro, preenchendo os requesitos que fazem com que o enredo consiga “construir
uma obra narrativa destinada a um vasto público e visando a despertar o interesse
das massas populares e a curiosidade das classes abastadas [...]”58. Ou como
Ernest Mandel resume em relação ao seu objeto de análise especificamente – mas
aqui dilatado também para o romance folhetim de forma geral: “A arte do romance
policial é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos”. Marlyse Meyer conclui
em sua pesquisa sobre o tema que
[...] se consideramos o folhetim nacional explicitamente imitador do modelão europeu, sem rebuços nem paródia, com talvez idênticas ambições de vendagem, mais provavelmente como única forma de expressão de candidatos a romancistas, pode-se dizer com aquele articulista citado por Brito Broca, que escreve em 7 de abril de 1890 em Cidade do Rio: “Os esqueletos e as caveiras do paço tem fornecido assunto a nada menos de três romances que, valha a verdade, bem poderiam ficar guardados no fundo do tinteiro; a julgar por eles os Dumas, os Ponsons e os Montépins brasileiros ainda estão por nascer”.
A pesquisadora arremata:
[...] pode-se, de maneira geral, incluir os romances-folhetins nacionais na mesma categoria que aquele ficcional A maravilha, de Ernesto Souza, encontrado em um brechó por uma personagem nativa de uma das cidades mortas do vale do Paraíba evocadas por Monteiro Lobato: “romances descabelados, onde há lágrimas grandes como punhos, punhais vindicativos e virtudes premiadíssimas, de par com vícios arquicastigados pela intervenção final e apoteótica do Dedo de Deus [...]”.59
Tais romances indicam tentativas frustradas de se reproduzir a fórmula e
consequentemente os efeitos que o romance folhetim provoca: a química das
emoções60 que, embora a princípio aparente tratar-se de questões extremamente
subjetivas, revelam-se esquematizadas em planos bastante definidos, receitas
fixadas – mas nem por isso de execução simples.
58 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 190. 59 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 309-310. 60 Conferir ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 19.
35
Para efeitos metodológicos e didáticos, efetuam-se divisões – de acordo com
pontos de contato e, principalmente, obedecendo a uma lógica cronológica para
periodização –, compondo fases determinadas do romance popular. Umberto Eco
agrupa essas clivagens em três grandes quadras: o primeiro período seria intitulado
também como o período romântico-heróico – seria a fase iniciadora do folhetim nos
anos trinta do século XIX marcada pela presença de um público de leitores mais
ativo formado por pequenos-burgueses e artesãos-operários tendo como principais
nomes Sue e Dumas –, o segundo período denominado como período burguês –
compreende as últimas décadas do século XIX nas quais sobressaíram-se escritores
como Xavier de Montépin que abandonam as temáticas de vingança em nome do
protagonismo de humilhados – e, por último, o período neo-heróico – iniciado em
princípios do século XX e representado por Arsène Lupin, marcado por personagens
ainda mais individualistas61. Marlyse Meyer também apresenta sua cronologia
fragmentadora da trajetória do romance folhetim – no caso da pesquisadora
brasileira, esta disposição detém-se na origem e no desenvolvimento do gênero em
solo europeu. Em sua disposição, a primeira fase também diz respeito ao início das
publicações em série criadas por Émile de Girardin em 1836, estendendo-se até o
fenômeno de recepção – e reação – de Eugène Sue em fins da década de 1840. A
segunda fase, a partir de 1850, revela a implosão persistente da obra rocambolesca
do visconde Ponson du Terrail. A terceira e última grande fase do romance folhetim
europeu – e mais uma vez reiteramos a presença francesa provocando os ecos que
pautarão os ruídos a serem carregados pelos ventos – é retratada a partir de 1871
prolongando-se até 1914, esta última data maculada pela Primeira Guerra Mundial e
toda mudança que esse evento histórico catalisou62. A partir deste momento, o
romance policial -- e mais ainda o romance policial de investigação em detrimento do
seu equivalente focado na ação – adquire espaços mais generosos em produção,
em público, em vendas e ainda: sobrevivem fora do fatiamento diário dos periódicos.
Ainda marcam presença nas bancas de jornais e com os gazeteiros, mas agora em
livrinhos de bolso, edições de capa mole, produção em série de brochuras –
61 Conferir ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 83 - 84. 62 Conferir MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996.
36
sobretudo no período entre as grandes guerras mundiais – e ainda: em séries
volumosas e numerosas63.
Curioso perceber que as fases apontadas pelos diferentes autores
entrelaçam-se em sobreposições de acontecimentos simultâneos que convergem
para provocação de transformações na forma de interpretar e atribuir sentido às
realidades e se expressarem como elementos constitutivos de seus tempos. O
gênero encontra caminho nas sinuosidades de sua época, compreendendo todo um
sistema palpitante de componentes: produtores, leitores, editores, tradutores
formando uma obra e toda interpretação e imaginário referente ao seu universo.
Como já comentado, no Brasil o movimento de produção de folhetins a partir
do século XIX desenhou-se nos contornos do suporte material de publicação e nas
traduções e imitações dos modelões europeus, principalmente os franceses.
Imitações essas que não passaram de arremedos grosseiros, tentativas que
resultavam em obras insossas, sem relevo e de pouca expressão estampando
estratégias narrativas mal montadas e insatisfatórias, provocando envolvimentos
bem abaixo da média dos efeitos conseguidos pelos folhetins bem realizados.64
Mas, de acordo com a pesquisadora do tema, Marlyse Meyer, há uma exceção
dentre as insípidas publicações que pretendem inscrever-se no gênero folhetim.
Cabe observar e registrar, no entanto, que Meyer não se detém em análises ou
considerações mais cuidadosas acerca da obra e mesmo comete um notável lapso
ao indicar que o romance possui “tema regionalista”, o que definitivamente não
condiz com o enredo mencionado. A obra, “excelente romance-folhetim de escrita
folhetinesco-policial”65, é A Emparedada da Rua Nova do escritor e jornalista
pernambucano Carneiro Vilella66.
63 Conferir MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988. 64 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 309-310 65 Ibid., p. 309-310.
37
3 UM OLHAR SOBRE O MOVIMENTO DE IDEIAS NO SEGUNDO REINADO
3.1 Cenário social, filosófico e cultural do Império brasileiro na segunda metade dos Oitocentos
O século XIX foi marcado pelo surgimento de diversas correntes filosóficas na
Europa que passaram a refletir e alcançar questões sociais, políticas, econômicas e
artístico-culturais. O Brasil, desde princípios do século, tornara-se um lugar de
recepção das produções culturais do velho mundo, merecendo destaque o
sentimento francófilo que foi apropriado pela cultura brasileira.
No Segundo Reinado, já sob os mandos de D. Pedro II, o Brasil passou a
viver um período de estabilidade política a partir de meados dos anos 1840. Nesta
fase também foram surgindo novas formas de se pensar o Brasil, com o objetivo de
reforçar a identidade cultural do país com a do seu povo. Nesse ínterim surge o
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) que passou a agregar membros da
intelligentisia local e contou com o apoio do imperador que mostrou-se
entusiasmado com a criação desta instituição. A ideia era justamente construir uma
memória para o país recém-independente visando, assim, refletir sobre aspectos
particulares da cultura e da sociedade brasileira.
Desde 1808, portanto, quando abrigou a família real e a corte portuguesa, o
Rio de Janeiro consolidou-se como o grande centro de referência de novas
concepções, criações e projetos intelectuais, impulsionado por sua condição de
capital – simbolizando e mais: concretizando diversas esferas de poder. Já em
meados do Segundo Reinado reforçou o seu status de centro cultural e político do
país, afinal era a
Sede da Côrte e do Parlamento, centralizando a vida política do país e contando com numerosos estabelecimentos de ensino, além de vários centros culturais de valor, inclusive salões de conferências [...]. Possuía a capital do Império, no último quartel do século passado, diversas bibliotecas públicas, entre as quais se salientavam a Nacional, a Municipal, a Fluminense, a da Marinha, a do Exército e a do Real Gabinete Português de Leitura. Numerosos eram os seus institutos de ensino, particulares e oficiais, dedicando o Imperador a êstes últimos uma atenção desvelada e permanente. Destacavam-se, entre muitos outros, o Ginásio Padrão
38
(Colégio Pedro II), a Escola Normal, o Colégio Militar, o Colégio de São Bento, o Colégio Abílio, o Liceu de Artes e Ofícios, o Liceu Literário Português, as Escolas Municipais de Santa Rita, da Glória, de São José e de São Sebastião, os Institutos dos Cegos e dos Surdos-Mudos. Além das Faculdades de Medicina e Farmácia e das Escolas de Engenharia, Guerra, Marinha e Belas-Artes, abrigava ainda o Rio de Janeiro estabelecimentos e associações culturais e científicas tais como o Museu Nacional, o Jardim Botânico, o Instituto Histórico e Geográfico, a Academia de Medicina, o Instituto Politécnico Brasileiro, o Instituto de Música, a Sociedade Propagadora das Belas-Artes, o Instituto Farmacêutico, a Sociedade Amante da Instrução, os Institutos dos Bacharéis em Letras, dos Advogados, os Clubes de Engenharia, Naval e Militar, o Clube Ginástico Português e outros. Reunia assim a capital do Império a sociedade mais requintada do país, não só pela riqueza, mas pela educação e cultura, afeita as recepções no Paço e nos salões diplomáticos, freqüentando com paixão companhias dramáticas e líricas.67
À parte a capital do Império, ponto convergente de pessoas com os mais
diversos objetivos – econômico-comerciais, artísticos, acadêmico-educacionais e,
por tabela, aglutinação das altas classes sociais – outras províncias do país
emergiram como focos de produções inventivas e debates ideológicos. Esses
movimentos, senão discrepantes dos que aconteciam no cenário do Rio de Janeiro,
por muitas vezes apresentaram-se como questionadores dos padrões cortesãos.
Por outras vezes, essas as províncias tidas como “periféricas” desempenharam o
papel de fendas em que se infiltraram correntes filosóficas estrangeiras também
“periféricas” que, por uma série de motivos, não conseguiram a mesma notoriedade
no ambiente cortesão.
Do ponto de vista oficial – aqui no sentido estabelecido pelo imaginário geral,
desenvolvido através de construções didáticas não específicas e de repetições
difundidas social e culturalmente – a segunda metade do século XIX no Brasil foi o
período em que ganhou grande impulso o movimento republicano, a campanha
abolicionista, a reconfiguração da economia e, consequentemente, de camadas
sociais. É também o momento em que foi absorvido para a arte nacional os ditames
do Romantismo e posteriormente do Naturalismo como matéria de análise social.
Todos esses movimentos e fenômenos, em maior ou menor grau, estavam
vinculados entre si e, todos eles espelham ocorrências externas, sobretudo
europeias, especialmente no que tange a França e o estilo de vida ditado por Paris.
É possível chegar a esta constatação a partir dos mais variados indícios legados
67 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p. 243-244.
39
desta época, desde a predominância da língua francesa como segundo idioma
falado entre brasileiros e a persistência vocabular de termos e palavras – senão
exportadas e utilizadas in natura, adaptadas ao uso brasileiro –, passando pela
gastronomia e hábitos gerais – a aquisição de móveis e objetos mandados buscar
diretamente da capital francesa ou a feitura de cópias à moda dos utilizados na
Cidade Luz. Os reflexos dessa francofilia se fizeram presentes nas camadas mais
profundas da sociedade: em seus modelos de pensamento. No entanto, em
algumas províncias do Brasil essas ideias tomavam formas especialmente mais
pronunciadas, intensas, agitadas e nem sempre seguiam a regra geral dos ditames
exportados pela corte. Na avaliação de João Cruz Costa:
Se é certo, pois, que a nossa história intelectual tem sido, em grande parte, um tecido de vicissitudes da importação de idéias, de doutrinas, sobretudo de origem europeia, não menos certo é que essas idéias e doutrinas aqui se deformaram ou conformaram às condições de um novo meio.68
Os hábitos, posturas e ideias absorvidos e disseminados no Brasil por meio
da corte encontravam caminhos de irradiação nas províncias. Algumas delas
destacavam-se pela proeminência de atividades culturais, intelectuais e econômicas,
configurando-se como rota de circulação de preceitos – repetidores tradicionais e
inovadores aos padrões hegemônicos. Destacam-se as regiões de Salvador – com
importante polas ciências naturais na Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do
país dedicada às ciências médicas, fundada em 18 de fevereiro de 1808, logo após
a chegada da família real ao Brasil – e de São Paulo – que além da proximidade da
corte portuguesa no país, abrigava, igualmente, a importância de uma das primeiras
instituições de ensino superior, neste caso direcionada aos estudos jurídicos: a
Faculdade de Direito de São Paulo, fundada em 11 de agosto de 1827. Uma dessas
províncias a que deverá ser direcionada especial atenção é Pernambuco, mais
precisamente a sua capital, Recife.
A capital pernambucana de meados do século XIX mantinha especial posição
no cenário do Império por uma série de fatores interligados e consequentes, tais
como o histórico ainda recente de glórias econômicas da capitania mais próspera da
era do açúcar; a estratégica localização geográfica no extremo oriental das Américas
que, pela maior proximidade da Europa e África, fomentaram movimentados portos
68 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 378.
40
com ativo trânsito dos mais diferentes tipos de pessoas; a fundação da Faculdade
de Direito de Olinda – em 11 de agosto de 1827, mesmo dia de fundação de sua
congênere paulista, aquela posteriormente transferida para o Recife em 1854 e
denominada até os dias atuais como Faculdade de Direito do Recife (FDR) –, uma
das primeiras e mais importantes instituições de ensino da história das ideias no
país; a construção de uma imprensa efervescente, com forte atuação nos debates
das diversas questões políticas, culturais e econômicas nacionais numa frenética
atividade de fundação de vespertinos e matutinos, folhas ilustradas para
comerciantes ou para literatos, panfletos que serviam a grupos e projetos políticos
diversos, edições que duravam apenas o tempo de um número convivendo com
periódicos tradicionais, de longa data e grande vigor como o Diario de Pernambuco
– em circulação até os dias atuais, estampando diariamente o título de o mais antigo
jornal em circulação na América Latina; a formatação – ainda que de forma genérica
e não ordenada de movimentos que, em alguma medida, representavam traços em
comum, embora não aglutinassem seus presumidos membros nem os limitasse em
seus posicionamentos, a exemplo dos pensadores abolicionistas, do movimento
republicano e da Escola do Recife, esta última especificamente relevante à pesquisa
aqui desenvolvida69.
Esses são alguns dos fatores – não determinantes, porém possivelmente
facilitadores – que contribuíram para a entrada, a assimilação e a difusão de ideias
de forma mais intensa nesta província em relação a outras regiões do Império. Em
sua tese, Márcio Luiz do Nascimento realiza uma necessária análise sociológica – é
preciso destacar o caráter sociológico de sua pesquisa – e efetua um balanço dessa
soma de fatores:
Os letrados do Recife conviviam com a dupla condição de marginalizados: tanto eram excluídos políticos do establishment Imperial; como operavam com baixos capitais econômicos e de relações sociais. Esta condição de intelectuais periféricos duplamente marginalizados explica em grande parte a reação contra o projeto político-literário romântico, primeiramente inicia-se entre os integrantes da Escola do Recife. Bem como, historicamente o núcleo dos intelectuais do Recife estar entre os mais radicais adversários da monarquia e dos intelectuais da Corte aproximados do poder central.70
69 Devido a essa importância da Escola do Recife para a análise a ser desenvolvida, o movimento será exposto mais demoradamente nas páginas adiante. 70 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. São Paulo: USP, 2010. 256 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia do
41
Portanto, a expressão de homens de letras, pensadores, intelectuais e
acadêmicos propiciou – além das inúmeras formas de reprodução de ideias e ideais
– a instauração de consciências de todas as condições mencionadas e sua
importância na diferenciação de contextos, o que também não implica a condição de
que esse encadeamento de situações tenha sido fomentador de processos
absolutamente originais, não: as discrepâncias de colocações direcionavam
diferentes apontamentos de paradigmas reproduzidos. Como exemplo, percebe-se
a refutação de modelos reconhecidamente franceses em preferência a padrões
germânicos.
Certamente muitas dessas viagens de idas e voltas sobre o Oceano Atlântico
provocaram inúmeras variações no processo de assimilação e na propagação das
correntes de pensamentos europeias, admitindo-se que, embora não tenha havido
movimentos genuinamente nacionais de destaque, as releituras ocorridas nos
diálogos entre o Velho e o Novo Mundo promoveram alguns traços originais e
completamente alterados em relação à fórmula primordial, contrariando o
pensamento do professor João Cruz Costa que sentenciava – referindo-se a um
caso específico, mas estendendo-se a uma suposta propensão na condição
filosófica nacional:
A primeira obra de divulgação positivista, livro que inaugura a tendência positivista no Brasil, vem marcada, assim, por um anseio de reforma prática, eficaz, ativa, que não existe nos demais filosofantes brasileiros, todos eles simples repetidores de doutrinas puras, sem aplicação à vida nacional, meros adornos de pessoas que se divertiam com o complicado jôgo das idéias filosóficas.71
Tal fenômeno – contrariando o pensamento do professor Cruz Costa – é
bastante perceptível com a própria doutrina positiva, o Positivismo. A corrente
filosófica gerada na França em princípios do século XIX, tendo como idealizadores
estudiosos como John Stuart Mill e Augusto Comte, adquiriu inúmeras variações em
suas propagações, entendimentos e releituras, nos mais diversos preceitos e
doutrinas em diversos lugares por onde foi levada.
Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 11. 71 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p.68. (grifos do autor).
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Sobre a disseminação do Positivismo no Brasil, é possível verificar em termos
textuais as nuances das divisões que demarcavam os limites das filiações nacionais,
basicamente repartidas entre as influências francesas e as alemãs. Em uma das
inúmeras contendas públicas travadas à época, o médico Luís Pereira Barreto
responde ao então diretor do Apostolado Positivista do Brasil72, Miguel Lemos, nos
seguintes tons:
[...] Não, não foi nada disso: o meu crime é um milhão de vêzes maior... ousei há vinte anos, em uma série de artigos na Província de São Paulo, preconizar a imigração alemã para o nosso Estado... O Sr. Lemos, que então achava-se em Paris, repudiando cordialmente Littré, que antes havia adorado, aproveitou a ocasião para honestamente intrigar-me com o Sr. Pierre Laffitte, e preparar seguramente a sua candidatura ao pontificado positivista brasileiro. Nessa época, mesmo os positivistas mais eminentes da França não podiam conter a sua indignação raivosa ante a menor manifestação de aprêço ou de justiça para com a Alemanha!73
E prossegue numa típica e clara exemplificação da animosidade contida e
transbordada através de altercações públicas que mobilizavam adeptos de ambos
os lados das polêmicas:
[...] tôdas as minhas opiniões são torcidas e desfiguradas com a mais hábil malignidade, de modo a fazer acreditar que eu era inimigo da França e que me declarava abertamente desligado do centro positivista francês; o Sr. Lemos só visava chegar a esta fulminante conclusão: Non, l’ideal de mr. Barreto c’est la germanisation du Brésil et-là-dessus Il exalte “la noble race alemande”, ce que nous lui avons déjà reproché.74
Que não diria o Sr. Lemos, seu eu tivesse ousado profetizar que vinte anos mais tarde, uma boa parte do exército francês seria comandada por um generalíssimo alemão?!75
A postura de Pereira Barreto, para o Professor Cruz Costa é decorrente de
sua posição crítica diante das experiências vivenciadas: “embora estudasse na
72 O Apostolado Positivista do Brasil foi um grupo formado por membros adeptos às ideias de August Comte no Brasil, sobretudo na Côrte do Rio de Janeiro, em meados da década de 1870 e liderado por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes. O Apostolado reivindicava o poder governamental nas mãos de intelectuais e acabou por congregar uma espécie de ritual religioso que produziria a Igreja Positivista do Brasil. Ver PAIM, Antônio. O Apostolado Positivista e A República. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981 e COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 73 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p.78. (grifos do autor). 74 Em tradução livre: “Não, o ideal do Sr. Barreto é a germanização do Brasil, em seguida ele exalta ‘a nobre raça alemã’, é o que nós lhe censuramos desde já”. 75 LINS, op. cit., p. 78-79.
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Europa (e talvez por isso mesmo), não ficou prêso aos encantos do transoceanismo
que enfeitiçaram tantos de nossos filosofantes, críticos e literatos”76. A declaração
supracitada consta em escritos de meados de 1901 publicados no Estado de São
Paulo. É preciso mencionar que, em outra ocasião, alguns anos depois – agora em
fins de 1917 – no mesmo periódico, Pereira Barreto escreveria:
Foi preciso que chegássemos ao ano de 1914, foi preciso que se amontoassem às nossas vidas as mais horrendas e criminosas hecatombes, para compreendermos que todos nós estávamos enganados e que só Comte exclusivamente Comte, estava com inteira razão.77
Tamanho grau de entusiasmo e convicção de ambos os lados – os que se
declaravam adeptos do Positivismo e os que combatiam seus preceitos – renderam
um acervo de episódios anedóticos que representam o espírito do momento. É o
caso, por exemplo, relatado por Gilberto Freyre
[...] de maneira um tanto galhofa, que em 14 de julho de 1909, um mês depois de empossado como Presidente da República, Nilo Peçanha (1867-1924), ao se dirigir de automóvel ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro acompanhado dos seus Ministros e de várias outras autoridades, inclusive o Prefeito da Cidade – Inocêncio Serzedelo Correa (1858-1932) --, ouve, ao descer do veículo, um grito vindo da voz de um popular: “Eita, presidente científico”.78
Tratava-se da expressão de uma figura proeminente adjetivada com a marca
de uma tendência que encontrou espaço mesmo no senso comum de cidadãos
médios – ainda que de forma superficial e pouco sólida conceitualmente. O episódio
demonstra a popularidade que essas expressões, derivadas de universos
específicos terminaram por disseminar-se por meio de embates em artigos de
jornais, através da divulgação de livros, preceitos e doutrinas que alcançavam fortes
repercussões, chegando até mesmo a terem alguns dos seus termos e expressões
mencionados fora de contexto e assumindo conotações divergentes do sentido em
que eram inicialmente concebidas, como representado no caso apresentado por
Freyre. Ainda assim, Costa esclarece que apenas
76 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p.68. (grifos do autor). 77 Ibid., p. 86. (grifos do autor). 78 FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990, p.742-743 apudVIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 11.
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uma pequena porção da nossa elite intelectual foi ortodoxa, os adeptos do Apostolado Positivista do Brasil, chefiados por Miguel Lemos e por Raimundo Teixeira, mas a grande maioria dos positivistas aderiu apenas ao espírito cientificista da época.79
É fator nítido em muitas das obras literárias produzidas no século XIX a
substancial carga de influência que muitas ideologias obtiveram nas estruturas dos
enredos, na constituição das personagens, na aglutinação de elementos formadores
da ética e da estética das obras de arte80. Enquanto em algumas produções esses
traços emergiam de forma mais sutil e por meio de críticas. Já em outras é
perceptível no próprio discurso do narrador, imbuído de influência de determinadas
correntes, além de se apresentarem de forma recorrente, reafirmando a filiação e as
posturas que a obra assume. Os chamados homens de letras dos Oitocentos eram,
quase sempre, presentes em universos políticos e culturais da sociedade. Devido a
essa condição, não é difícil vislumbrar a carga ideológica presente nos escritos
literários produzidos nesse período, subordinados a um discurso correspondente a
muito do que se expunha nas tribunas, nas cátedras, nos gabinetes e nos jornais.81
O cientificismo tornou-se um dos pressupostos a servir de sustentáculo dos
estudos produzidos pelos estudiosos que circularam pela dita Escola do Recife.
Logo deveria ser manifestado nas mais diversas manifestações artísticas, a ponto de
poetas como Sílvio Romero, Tobias Barreto, Martins Júnior e Silva Jardim vestirem-
se com o pitoresco rótulo de poetas científicos. Uma cientificidade que vinha se
antepor diretamente à filosofia metafísica, exaustivamente debatida por décadas. É
Romero quem refuta violentamente esse conjunto filosófico ao anunciar a morte da
metafísica em sua tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Direito do
Recife, Deve a Metafísica ser considerada morta? – finalizada em 1875 e chegando
incompleta aos dias atuais82.
79 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 385. (grifos do autor). 80 Observe-se, por exemplo, a constituição e a temática de romances como O Mulato e O Cortiço de Aluísio de Azevedo que ficaram bastante conhecidos – tanto autor como as suas obras – pelos traços deterministas, pelo esboço de perfis psicanalíticos e pelo cunho naturalista de suas produções.81 Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 82 Cf. PAIM, Antonio. A Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Vol. V. 3. ed. Londrina: Editora UEL, 1997.
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Nisto não há metaphysica. A metaphysica, treplica o doutorado [Sílvio Romero], não existe mais, Sr. Dr., se não sabia. Não sabia, repetio este. – Pois vá estudar e aprender para saber que a metaphysica está morta. – Foi o Sr. que a matou [?], pergunta-lhe então o Senr. Dr. Coelho Roiz – Foi o progresso, foi a civilisação – responde-lhe o Bacharel Sylvio Romero, que, acto continuo, ergue-se, toma um dois livros que estão sobre a mesa – diz – Não estou para aturar esta corja de ignorantes que não sabe nada e retira-se vociferando por esta sala afóra, donde não podemos os mais ouvil-o. Tudo isso foi presenciado e ouvido por um numeroso auditório e entre outros que fora escusado e difícil enumerar [...]. (sic).83
O pensador sergipano prega, portanto, a aniquilação do pensamento
metafísico que teria sido sacrificado sob a luz de um crescente aprimoramento e
desenvolvimento cultural e político das sociedades e das suas consequentes
mudanças no caminho da evolução do homem como ser social, em síntese do
próprio Romero: a metafísica foi morta pelo progresso e pela civilização.
A originalidade e a extravagância contidas na proposta de uma arte que
busca se proclamar científica reside justamente em uma tentativa recorrente de se
submeter a provas, bases e métodos que desempenhariam o papel de pontes com
uma pretensa realidade. O movimento distingue-se pelo desenvolvimento de obras
marcadamente inclinadas à exposição de doutrinas e correntes ideológicas geradas
no ventre de saberes científicos recentes no período como as ciências sociais com
seu iniciante campo antropológico de observação sociocultural do ser humano
inserido em conjuntos e redes de sociabilidades; como o escopo das ideias
socialistas tomando formas mais rígidas e rigorosas nos escritos de Karl Marx e
Friedrich Engels, o chamado socialismo científico ou marxismo, que foram tomadas
nas manifestações de produções que buscavam impingir determinados pontos de
83 Documentos do Concurso de Sílvio Romero em 1875. Vamireh Chacon realiza uma proveitosa compilação de documentos – pareceres e correspondências – acerca do famigerado concurso que marcou a história da Faculdade de Direito do Recife e assinalou o início das dificuldades de Romero em fazer progredir formalmente sua carreira universitária: “Desejando, pela natureza de meus estudos e pela necessidade de publicar os meus escriptos, estabelecer-me, depois de bacharelado, em um dos grandes centros populosos do paiz, procurei esta cidade, onde estudei e d’onde minha pobreza não me permite sahir, e neste intuito pretendi ocupar um dos logares do ensino secundario ou superior do Imperio. [...] Meu delicto, Senhor, é haver tido a coragem de, na qualidade de crítico e homem de leituras, profligar na imprensa algumas doutrinas acceitas e affagadas por alguns individuos, que, por sua posição official, são hoje chamados para julgar-me em um pleito scientifico!... Não posso ser bem sucedido, julgado por meus inimigos particulares e rivaes de doutrinas!”. (sic) O trecho é de uma missiva de Romero destinada ao Imperador D. Pedro II. O apêndice do trabalho de Vamireh Chacon ainda conta com a apresentação de Der Deutsche Kaempfer, correspondências ativa e passiva de Tobias Barreto e Artur Orlando, a prova escrita de Artur Orlando no concurso de 1885 e uma relação de títulos pertencentes à biblioteca alemã de Tobias Barreto, importantes documentos que fornecem materiais de leitura importantes à compreensão de questões imanentes à Escola do Recife e alguns de seus membros. Ver CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 202-2013.
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vista em relação à organização social de classes; como também os estudos de
análise psicológica e comportamental do ser humano como criatura complexa fruto
de experiências individuais e vivências compartilhadas nas esferas da consciência e
da inconsciência e toda a sorte de distúrbios neurológicos e alterações de
procedimento – com destaque para as patologias femininas, sobretudo as
degenerações histéricas. Ainda havia ganhado destaque as teorias ligadas às
derivações surgidas a partir dos apontamentos de Charles Darwin, o determinismo e
o evolucionismo, aos quais foram acrescentados a composição social que justificava
a analogia da utilização da teoria para análises nos contornos das comunidades
humanas dando forma ao que ficou conhecido como “Darwinismo social”. Muitas
outras abordagens ainda foram sendo apropriadas por escritores e poetas
científicos, inclusive a própria representatividade da linguagem como maneira de
apresentar e simbolizar os sentidos de realidade – os princípios que desembocariam
na linguística moderna e nos estudos semiológicos concebidos inicialmente por
Ferdinand de Saussure. O arsenal de novidades era bastante volumoso.
Todo esse universo de teorias, estudos, teses e construções científicas serviu
de matéria para abastecer muitos tratados, artigos de jornais e revistas, panfletos e
livros de bibliotecas inteiras. Porém se, num movimento que seria natural para todos
os preceitos científicos84, todo esse mobiliário foi modificado, suplantado e superado
por outros pensadores, filósofos e cientistas que sucederam tais experimentos e
teorias, determinadas produções revelam a um público mais abrangente os traços
desse período. São as obras artísticas – ainda que os autores destas tenham
revogado para si mesmos a chancela de cientificidade – que apresentam de maneira
diluída, porém efetiva, a aglutinação de muitos dos debates vigentes. Ante volumes
indigestos de obras truncadas que com o tempo foram ficando cada vez menos
procurados e manuseados, relegados à poeira e às traças das estantes, as poesias
e, principalmente, os romances – sobretudo os romances de costumes – obtiveram
vantagem em seu alcance de público. É possível, portanto, obter uma espécie de
conhecimento do período com todos os seus dilemas, influências e críticas a partir
da estética e ética (fatores indissociáveis: “[...] na verdade o projeto estético, que é a
crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém
84 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2006.
47
em si o seu projeto ideológico”.85), a partir de toda estrutura e enredo que marcavam
o compasso de realidades circundantes. Somados a esses fatores, aconteciam
mudanças substanciais e eventos específicos sendo processados no território
brasileiro que ora potencializavam a entrada de novas ideias do continente europeu,
ora modificavam ou ainda minimizavam as influências estrangeiras. Um dos
principais pontos de catalisação e difusão cultural, político, filosófico e científico
neste período foi a Escola do Recife, movimento germinado nos bancos da
Faculdade de Direito do Recife.
3.2 Escola do Recife: um bando de ideias novas
O conjunto de elementos, membros, ideias, alcance e períodos que se
convencionou nomear com a expressão Escola do Recife é de complexa definição.
Trata-se de uma reunião por vezes bastante incoerente no âmbito interno, com
pouca ou nenhuma organização acertada dentre as peças do grupo de atuação
difusa em diversas áreas de produção científica e cultural que contrariam a noção
semântica que inicialmente associa-se ao termo “escola”. De maneira resumida,
Clóvis Bevilaqua explica que
A Escola do Recife não era um rígido conjunto de princípios, uma sistematização definitiva de ideias, mas sim uma orientação filosófica progressiva, que não impedia a cada um investigar por sua conta e ter ideias próprias, contanto que norteadas cientificamente.86
Reforça-se, de maneira bastante nítida, o caráter científico do movimento, ou
seja, um ponto que estabelece a conexão dentre as produções realizadas, uma base
de sustentação para aceitar ou rejeitar determinados membros. O norteamento
científico, segundo Bevilaqua, deve estar presente em todas as manifestações,
inclusive nas obras literárias e culturais. Também havia outras aproximações
possíveis que se pode apontar de maneira genérica. Em assuntos políticos, havia
uma consonância nas críticas à monarquia brasileira, o clamor pela reforma eleitoral
85 LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 20. 86 BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: INL, 1977, p. 375.
48
e a combativa defesa do estado laico. Destoando com a cultura francófila importada
pela corte brasileira e intensamente reproduzida pelas altas classes do país,
obtendo notável presença na literatura produzida pelos membros do movimento
romântico, o núcleo situado na província pernambucana instituía um certo desprezo
ao prestígio da França, elegendo a Alemanha – e, principalmente, os seus filósofos
e cientistas sociais – como paradigmas do exercício da razão, da ciência e da
austeridade teórica, inclusive abraçando o pouco falado e inteligível (no Brasil)
idioma germânico que, ao contrário da língua francesa e do fenômeno galicista
bastante presentes na língua portuguesa e muito comum entre os habitantes do
país, era um código distante, incompreensível para boa parte dos brasileiros, mesmo
os mais estudados e considerados cultos. Mas, ainda que recorrente e comum no
período de maneira geral, a sintonia com a cultura francesa parece ter encontrado
significativa resistência no bloco intelectual da província pernambucana:
[...] Artur Orlando foi profético nas suas três grandes admirações por países, ao longo da vida: Alemanha, Rússia e Estados Unidos... Paris, tão querido (sic) dos numerosíssimos francófilos brasileiros ainda hoje predominantes, nunca foi o seu fraco... Nem o de ninguém da Escola do Recife.87
O mais lembrado nome na representatividade do devotamento intelectual
germânico do período é um dos fundadores da Escola: Tobias Barreto. Em reflexão,
Vamireh Chacon avalia:
Ninguém destacou, por exemplo, que Tobias foi o primeiro pensador brasileiro a proclamar a importância de Marx; aspecto que mal interessou a Zhakob Bazarian, da Academia de Ciências da U.R.S.S. Com efeito, parece ter sido Tobias, nisto precursor como em tantas outras coisas, quem citou Marx pela primeira vez no Brasil, em discurso de colação de grau dos bacharéis de 1883: “Karl Marx diz uma bela verdade, quando afirma que cada período tem as suas próprias leis... Logo que a vida atravessa um dado período evolutivo, logo que passa de um estádio a outro, ela começa também a ser dirigida por leis diferentes”. “A questão cardeal do nosso tempo não é política e nem religiosa: é eminentemente social e econômica”.88
E acrescenta em um tom de reminiscência nostálgica, chegando mesmo a
demonstrar-se comovido pelo seu achado:
87 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 110. (grifos do autor). 88 Ibid., p. 31-32.
49
E lá vem a referência do próprio Tobias: lera a terceira edição d’O Capital(“dritte vermehrte Auflage”, de 1883), e anotara as páginas XV e XVII. Tivemos a emoção de consultar um dia, na Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, as páginas amarelecidas, lidas pelo provincianismo profético em tantas ocasiões. Só mesmo um apaixonado pela Alemanha descobriria Marx, para o Brasil, numa época de exacerbada francofilia.89
É essa francofobia que estimula Tobias a organizar, em 1877, o “Club
Popular” de Escada, município pernambucano distante cerca de 63 km do Recife e
refúgio do pensador sergipano durante dez anos devido ao seu casamento com a
filha de um proprietário de engenhos. A associação chegou a receber a visita do
príncipe Heinrich da Prússia, motivo pelo qual seu fundador faria a seguinte
declaração, deixando à mostra seu sentimento de desforra:
[...] ora, na terra enfim, onde eu fôra alvo de insólitos desdéns, como chefe da chamada escola teuto-sergipana, até da parte do jornalismo da corte, que um príncipe alemão se tornava objeto de contemplação e curiosidade geral. Oh! sem dúvida eu tinha motivo de rir! Realmente, eu me sentia triunfante.90
Foi também durante a sua permanência no município do interior de
Pernambuco que Tobias chegou a organizar, escrever e publicar um jornal redigido
inteiramente em língua alemã, intitulado com a expressiva designação Deutscher
Kämpfer, que em português corresponderia a O Lutador Alemão – ao que Costa
comentaria do jornal “composto por ele e, muito provavelmente, apenas por ele
lido...”91. Tobias também publicou, ao menos, três monografias no idioma alemão:
Brasilien wie es ist in literarischer Hinsichet betrachtet (Brasil, considerando-se uma
questão literária - 1876), Ein offener Brief an die Deutsche Presse (Uma carta aberta
à imprensa alemã – 1878) e Rechtsleben und Rechtstudium in Brasilien (Vida e
Direito, estudos no Brasil – 1880)92, além de outros textos, também em alemão,
sobre o pensamento ou a influência da Alemanha. Costa transcreve a impressão de
89 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 32. (grifos nossos). 90 Ibid., p. 36. (grifos nossos). 91 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 396. 92 Traduções livres do idioma alemão.
50
Gilberto Amado em relação a Tobias: “Ao chegar à cultura alemã ficou louco,
delirante como uma criança que encontra numa loja brinquedos em profusão”93.
Na esfera literária, os integrantes tendiam a desnudar o esgotamento de um
modelo romântico. Em um resumo de tópicos recorrentes, pode-se listar:
Dentre os temas mais trabalhados pelos seus principais integrantes, observamos: ataques aos grupos católicos e à religião; proposta de ampliação dos direitos políticos e civis às mulheres e aos não católicos; liberdade religiosa; extinção do Poder Moderador; fim do Senado vitalício; defesa da descentralização do poder administrativo; e a proposta de superação do movimento literário romântico.94
A Escola do Recife teria instituído o Naturalismo filosófico, razão pela qual
Sílvio Romero reivindicaria o reconhecimento de uma influência do elemento no
panorama literário nacional ao afirmar que “o moderno Naturalismo do romance
brasileiro... é também um produto do movimento do Norte”95. Romero ainda foi
capaz de tecer uma avaliação própria do fenômeno, apontando o Naturalismo como
um “modo de compreender a sociedade semelhante a aquêle por que se
compreendem os fenômenos naturais”96. O pensador sergipano reconhece os
desvios e incompreensões que o termo teria causado nas artes e aponta “o grande
êrro do nosso tempo: a aplicação errada e também multuária dos métodos e
processos das ciências inferiores às ciências superiores”97. Vamireh Chacon
considera a ponderação de um outro membro da Escola do Recife:
A amizade que o unia a Tobias impediu-o de reconhecer aquilo que Sílvio Rabelo apontou com tanta felicidade: em Franklin Távora, Celso Magalhães, Domingos Olímpio, Carneiro Vilela, e até Graça Aranha, “essa influência carregada de muito cientificismo de Tobias teria de ser nefasta. Um excesso de espírito crítico haveria de fazer desses discípulos do mestre do Recife uns romancistas pesados demais em liberdade de criação”.98
93 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 396. 94 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife:trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. São Paulo: USP, 2010. 256 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 175. 95 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 148. 96 Loc. cit. 97 Ibid., p. 148. 98 Loc. cit. (grifos nossos).
51
O próprio Vamireh Chacon expõe sua análise do contexto, argumentando,
inclusive, a discrepância de recepção e reconhecimento das chamadas obras
periféricas em relação às produções de autores estabelecidos na corte com atenção
especial a Carneiro Vilella:
Com efeito, todos os mencionados romancistas eram muito intencionais;embora sem o “Zolismo” de Aluízio de Azevedo ou doutros, Faria Neves Sobrinho, em sua novela Morbus e no conto “O Hidrófobo”, exala um determinismo que chega às raias do absurdo. Em Franklin Távora, Domingos Olímpio e Carneiro Vilela, o Naturalismo é temperado por um Provincianismo, mais que Regionalismo, que os humaniza, fincando-lhes as raízes na terra, fazendo-os descer da estratosfera cientificista para onde tinham sido lançados pelo sôpro violento de Tobias Barreto. Sílvio Rabelo referiu-se ao prejuízo que as paixões políticas devem ter trazido à construção das obras de Carneiro Vilela. Sucede que Franklin Távora se deixou empolgar ainda mais por elas, conforme o prova seu engajamento panfletário na Questão Religiosa, e nem por isso deixou de ser o romancista que foi. Acontece, porém, com Carneiro Vilela, idêntico fenômeno do tipo ocorrido com a Inconfidência baiana de 1789 e a Revolução pernambucana de 1848, tão carregadas do pioneiro sentido socialistas: se elas fossem mineiras ou paulistas, conforme disse irônicamente Barbosa Lima Sobrinho, seriam hoje muito mais conhecidas e festejadas... Cessariam alguns dos ataques, se a Escola não fôsse do Recife...99
Sílvio Romero, aliás, realiza essa e outras reivindicações de propriedades ou
pioneirismos intelectuais que estariam sendo usurpadas ou esquecidas pelos
próprios companheiros. Em carta a Artur Orlando, sem data, o pensador sergipano
protesta:
Êsses meus amigos daí têm a facilidade de 1º falar em escola do Recife sem me citarem como historiador de tal escola e até o criador do nome; 2º falar das fases da Escola, pulando a mais importante: a da reação; 3º falar em guerra ao romantismo no Brasil, esquecendo que fui o primeiro a romper nesse terreno, a luta; 4º falar em cientificismo na poesia, não lembrando que quem isto primeiro pregou no Brasil fui eu; 5º falar em nova intuição do Direito – sem lembrar que na minha defesa de tese da dissertação, já vêm as linhas capitais da coisa; 6º falar em História do Direito sem lembrar que, antes do Martins já eu tinha feito a História do antigo Direito em Espanha e Portugal.100
“Para mencionar o essencial”, segundo Antônio Paim, o conjunto de
produções englobadas pela Escola do Recife é bastante eclético e numeroso,
99 Mais sobre essas questões que tangem a obra e a imagem do autor d’A Emparedada da Rua Nova serão tratadas no terceiro capítulo desta dissertação. CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 149. (grifos do autor) / (grifos nossos).100 Ibid., p. 277-278. (grifos do autor) / (grifos nossos).
52
abrangendo as áreas do direito, da política, estudos folclóricos, as inaugurações da
sociologia no Brasil, crítica literária, história da literatura no país, além das obras
literárias em si101. Diante da difusão temporária, empregam-se alguns marcadores
para delimitar, ao menos didaticamente, períodos ou fases da Escola. De maneira
geral, admite-se que o movimento teria se estendido por cerca de sessenta anos,
iniciando-se na década de 1860 e tendo fôlego até meados da segunda década do
século XX.
Existem três estágios principais que geralmente são apontados numa
cronologia da Escola e compreendem gerações ou ciclos de pensadores: o primeiro,
cujo nome sobressaliente é o do seu fundador, Tobias Barreto, apoiando-se
sobretudo, no darwinismo e no materialismo, estágio iniciado na década de 1860 e
finalizando-se no ano de 1875. A segunda fase, vista como um “processo de
diferenciação” inicia-se após a anunciação de morte da metafísica declarada por
Sílvio Romero, que é tido como principal representante desse momento, devido à
sua proximidade pessoal e profissional com Tobias Barreto, Romero estendeu as
ideias iniciais, ampliando-as e agregando outros raciocínios nos anos seguintes. É
nesse momento que a Escola do Recife inicia o seu processo de distanciamento do
positivismo em busca de uma nova doutrina, de uma posição autônoma que
diferenciasse das correntes vigentes do país e impelisse as suas produções a
romper criticamente com as ideias hegemônicas, levando cerca de dez anos nesse
processo. Sílvio Romero detalhou com suas próprias palavras – em A Filosofia no
Brasil, de 1878 – a sua relação com as ideias positivistas, mesmo considerando-se
um recente adversário de Comte: “outrora seu sectário, na ramificação dirigida por E.
Littré, só o deixei quando livros mais desprevinidos e fecundos me chegaram às
mãos”102. E esclarece quais seriam os autores dessas obras mais fecundas e
desprevinidas:
Comte só foi largado por amor a Spencer, a Darwin, a Haeckel, a Büchner, a Vogt, a Moleschott, a Huxley, e ainda hoje o lado inatacável, aquilo que sempre restará de sua brilhante organização filosófica, me prende complemente.103
101 PAIM, Antônio. A Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Vol. V. 3 ed. Londrina: Editora UEL, 1997. 102 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p. 134. 103 Loc. cit.
53
A terceira fase é considerada como o apogeu do movimento devido à intensa
atividade intelectual no campo da filosofia. Neste momento, houve uma
considerável produção e publicação de obras importantes no esboço da base da
Escola do Recife: Doutrina contra Doutrina (1894), Ensaios de Filosofia do Direito
(1895) e Ensaios de Sociologia e Literatura (1899), de Sílvio Romero; Esboços e
Fragmentos (1889) de Clóvis Bevilaqua; Ensaios de Crítica (1904) de Artur Orlando;
Cosmos do Direito e da Moral (1894/98) de Fausto Cardoso, além da organização e
da reedição de obras de Tobias Barreto por parte de Sílvio Romero104.
Como o nome do movimento já explicita, a gênese e a concentração da
Escola do Recife se deram na capital pernambucana, irradiando-se da sua
Faculdade de Direito, berço intelectual de muitos políticos, artistas e pensadores
brasileiros. No entanto, os debates suscitados a partir da instituição pernambucana
não se restringiram aos limites da província, alcançando considerável repercussão
pela divulgação de suas ideias por meio de materiais impressos, discursos e
discussões, além do constante trânsito de estudantes pelas regiões do país.
A Faculdade de Direito da capital pernambucana, por ser à época o único estabelecimento de ensino superior no Nordeste, recebia alunos das diversas províncias daquela região. Essa circunstância permitiu a irradiação das idéias da Escola do Recife [...].105
Portanto, a Faculdade de Direito do Recife, que já era reconhecidamente um
polo de disseminação intelectual e cultural do país, assentou-se como um centro
importante de novas ideias postas em debate em terras brasileiras. Antônio Paim
distingue, ainda, uma relação da Escola do Recife na influência do projeto cultural
modernista, que tem como data de referência histórica a Semana de Arte Moderna
de São Paulo, ocorrida em 1922106.
Por não ser um grupo fechado, coeso e consistente em relações interpessoais
– se consideramos os conjuntos geralmente apontados como partes inscritas no
movimento, pois é sabido que o núcleo fundador mantinha íntimas ligações tanto no
que tange ao campo intelectual, como nos laços de amizade e mesmo compadrio –,
o enquadramento dos seus membros também torna-se uma tarefa um tanto quanto
104 Cf. PAIM, Antônio. A Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Vol. V. 3 ed. Londrina: Editora UEL, 1997. 105 Ibid., p. 47. 106 Ibid., p. 94.
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incerta, pois muitos dos que são descritos como integrantes da escola não se
autodeclaravam como tal. Existem os nomes que estão intimamente relacionados
desde a fundação do movimento e que são figuras infalíveis e certificadas como os
mais lembrados indubitavelmente: Tobias Barreto e Sílvio Romero. A listagem conta
com a presença de Clóvis Bevilaqua, Franklin Távora, José Higino, Araripe Júnior,
Aníbal Falcão, Plínio de Lima, Fausto Cardoso, Vitoriano Palhares, Artur Orlando,
Martins Júnior, Celso Magalhães, Inglês de Souza, Graça Aranha e Carneiro Vilella.
Vamireh Chacon comenta os critérios – ou a falta deles – na titulação dos nomes
que são apontados como membros da Escola do Recife, tece uma crítica ao avaliar
a fórmula que chega a inserir figuras como Castro Alves e apresenta uma espécie
de listagem, organizada por Graça Aranha, que seria mais razoável:
Êste critério – de considerar “Escola do Recife” os estudantes de Direito contemporâneos, em Pernambuco, a Tobias e Sílvio – é evidentemente abusivo. Alguns – como Castro Alves, Rui [Barbosa] e Fagundes [Varela] – pouco demoraram lá, e quase todos se colocaram mesmo contra Tobias. Sem dúvida, nenhum pôde ignorá-lo, o que já representa muito para a vitalidade intelectual do teuto-sergipano, porém “Escola” foi constituída apenas por seus discípulos, diretos ou indiretos. Graça Aranha – êle próprio um dos últimos discípulos diretos de Tobias – delimitou muito bem os círculos em tôrno do mestre: “No primeiro momento, no período do concurso [de Tobias Barreto ao ingressar na Faculdade de Direito do Recife], o grupo de Tobias Barreto se fortalecia nos seus adeptos Clóvis Beviláqua, Artur Orlando, Martins Júnior, Guimersindo Bessa, Fausto Cardoso, Oliveira Teles, Faelante da Câmera, Souza Bandeira e, entre outros menos expressivos, Urbanos Santos, Benedito Leite e Francisco Viveiros de Castro. Foram estes os principais representantes da ‘Escola do Recife’, inspirada também em Sílvio Romero. Os que mais possuíam a iniciação secreta de Tobias Barreto, os que mais participavam das suas confidências e o seguiam de perto, eram sem dúvida Artur Orlando, Gumersindo Bessa e Fausto Cardoso. Os outros tinham profundas ligações, mas por alguns lados escapavam à disciplina do mestre”.107
É certo que após a sucessão de fatos e o tempo decorrente entre o momento
de produção das obras inseridas no contexto da Escola do Recife possibilite uma
análise que aponte falhas intelectuais e desequilíbrios na dosagem teórica da
construção de suas produções culturais. Porém, no dizer de Chacon:
Não se pode julgar A Escola do Recife apenas por seus equívocos literários – repulsa de Tobias e Sílvio a Castro Alves, oposição a Taunay, Machado
107 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 122-123. (grifos nossos).
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de Assis e José Veríssimo – e sim por sua contribuição global à evolução nacional.108
A Escola do Recife reivindicou a distinção de um modelo advindo da corte,
buscando pensar, retratar e expor outras realidades do Brasil. Trata-se de um
deslocamento de eixo geográfico, cultural, político e social.
3.3 Um agitador de ideias: breve perfil intelectual de Carneiro Vilella
Foi no contexto desses tempos de ebulição cultural e de ideiais que A
Emparedada da Rua Nova foi gerada. A produção apoiou-se nas bases de debates
do período para compor a urdidora de elementos que resultou na montagem do mais
conhecido romance de Carneiro Vilella. O autor d’A Emparedada, aliás, fazia-se
bastante presente nos debates desenvolvidos no período, lançando mão de muitas
facetas e habilidades: nas produções literárias de romances e de poesias, na
atuação como jornalista em diversos periódicos da cidade, na virulenta pena de
cronista, nas estampa de folhetins e ainda na produção de peças teatrais, em
caricaturas e mesmo no campo da pintura, esta última esfera ainda menos
conhecida do que as outras manifestações de Carneiro Vilella. Luiz Delgado resume
a postura do escritor em uma sentença: “Era um poderoso agitador de ideias”109.
Carneiro Vilella iniciou os estudos na Faculdade de Direito do Recife no ano
de 1861, portanto circulou em ambiente e tempos próximos ao berçário da Escola do
Recife. Esteve inserido no contexto embrionário do movimento das ideias novas e
nos anos seguintes, marcados pelo desenvolvimento, tanto dos debates surgidos na
instituição pernambucana, como da sua própria produção intelectual e artística. Isso
não quer dizer que Vilella tenha sido alguma espécie de sócio ou membro declarado
da Escola – muitas vezes o jornalista esboçava justamente uma postura contrária a
filiações em determinados grupos, ainda que manifestasse consonância com
108 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 186. (grifos do autor). 109 Discurso de Luiz Delgado na ocasião da posse do escritor Aderbal Jurema na Academia Pernambucana de Letras (APL). Revista da APL, n. 17 – 1º semestre de 1967 apud VAREJÃO FILHO, Lucilo. Breve Notícia. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3 ed. Recife: Coleção Recife, 1984. Prefácio de Lucilo Varejão Filho.
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algumas ideias. Vilella, como muitos outros membros da Escola do Recife, não se
reconhecia como tal e não há registros de declarações, concessões ou
apontamentos do próprio autor em relação direta aos debates de ideias da Escola do
Recife. O que existem são inferências e constatações derivadas de análises que
permitem o enquadramento de Carneiro Vilella – bem como outros membros – nos
preceitos levantados pela Escola do Recife. Em alguns momentos é perceptível o
tom de pouca importância ou mesmo uma indisfarçada galhofa conferidos a
determinados temas que se tomavam como grandes questões do período. Na
crescente influência germânica que vinha germinando entre os membros da Escola
em contraponto à histórica francofilia irradiada a partir da corte, o cronista escreve
ao final de uma de suas cartas – crônicas publicadas no Diario de Pernambuco:
Agora, porém, reparo que comecei prometendo tratar de política e... De que fui ocupar-me? De uma poesia alemã, isto, de uma coisa que quase ninguém compreende, e da mentira de que tudo entendem, e da qual fujo às léguas, como o diabo da cruz.110
E, ainda, logo na crônica seguinte, fala acerca dos grandes assuntos do
momento com um teor de dissimulada admiração:
Quando alguém o acusava [ao seu amigo médico alemão do Rio Grande do Norte] por isso [pelo elevado número de doenças e de mortes ocorridas enquanto o doutor alemão esteve em atividade no hospital do Passo da Pátria], porém, o meu amigo, que além de médico era filósofo, ainda como o alemão, respondia fleumaticamente que sendo o povo do Rio Grande do Norte muito infeccionado de maus hábitos e de vícios hereditários, era preciso, em bem da humanidade, pôr em prática a teoria da seleção, não só para corrigir a natureza que andava muito torta, como para aperfeiçoar a raça humana... do Rio Grande do Norte. A mim parecia-me que era levar muito longe a tal teoria da seleção, mas como o homem era alemão, além de alemão, sábio, e, além de sábio, doutor... eu metia a viola no saco e resignava-me a receber, naquilo como em tudo o mais, um xeque-mate de fazer vergonha. Só numa coisa nunca consegui ele dar-me um xeque-mate: foi em fazer-me engolir o seu quinino.111
É bastante nítido, pelos exemplos transcritos acima, a postura de Carneiro
Vilella ante si mesmo e as realidades em que vivia. Faz uma arranhadura no cristal
erguido pelos adeptos das – então – novas correntes do evolucionismo social e
ainda escarnece de muitos dos seus colegas de província, de formação e de ofício
110 LIMA, Fátima Maria Batista de Lima. Cartas sem arte: Crônicas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 77. (grifos nossos). 111 Ibid., p. 79. (grifos nossos).
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fascinados por uma supremacia alemã em tudo, até na expressão linguística
(lembremos-nos do periódico de Tobias Barreto completamente redigido no idioma
alemão). Tratava-se de um homem inserido no tempo das novas ideias, apontado
recorrentemente como membro de um grupo que defendia algumas dessas linhas,
mas que mantinha uma forte autonomia intelectual, ressaltando sua individualidade.
Em muitos momentos, sugere mesmo uma ruptura ou afastamento dessas
organizações e grupos, tecendo críticas em tom de zombaria, lançando ao vento as
mais diversas teorias dos mais variados autores num só gesto de zombaria, de
crítica desdenhosa e irônica.
Alguns pontos na trajetória intelectual do escritor devem ser levados em
consideração na medida em que sugerem importantes traços para a compreensão
do contexto de produção e para o entendimento da rede de influências que estavam
em jogo no tempo de florescência das obras. Na compreensão de Umberto Eco, “só
explicamos e entendemos uma obra e um autor quando os inserimos em um
panorama”112.
Talvez a única sociedade a que o autor d’A Emparedada da Rua Nova
afiliava-se com afinco seja a Maçonaria. Sua adesão era bastante sólida e
declarada abertamente. Um episódio altamente emblemático remete à Questão
Religiosa ocorrida na primeira metade da década de 1870. O acontecimento foi
resultado de uma exacerbação de ânimos entre o Império brasileiro e a Igreja
Católica: o papa Pio IX havia proibido a ligação de membros da Igreja com a
Maçonaria, porém Pedro II, reconhecido maçom, ignorou a bula, anulando sua
validade em território brasileiro, devido ao sistema de padroado – pelo qual os
decretos papais só seriam legitimados ante o consentimento do imperador. Porém,
o bispo D. Macedo, de Belém, e D. Vital, do Recife e de Olinda, iniciaram o processo
de expulsão de membros da Maçonaria das irmandades católicas. D. Pedro II, por
sua vez, decretou a prisão dos dois bispos.113 Neste momento, Carneiro Vilella
apresentou-se como um ativo debatedor dos acontecimentos nos jornais do Recife,
voltando-se contra os que apoiavam a ordem do papa, inclusive contra D. Vital, seu
antigo colega dos tempos de colégio, portanto velhos conhecidos. Pará e
Pernambuco foram alguns dos estados em que os ânimos mais se exaltaram
112 ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 3 ed. São Paulo, Editora Perspectiva, 1986, p. 10. 113 Cf. ALVES, Antônio. História: O Mundo – Idade Contemporânea / O Brasil: República até hoje. Recife: Liber, 1982.
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durante o episódio, abrigando severas reações entre as duas partes envolvidas,
bispos e maçons, gerando principalmente um intenso imbróglio entre o Estado e a
Igreja Católica Em reconhecimento à implacável crítica do jornalista, membros da
maçonaria do Pará convidaram Carneiro Vilella em 1876 para uma visita ao estado,
ocasião em que foi recebido com grande contentamento:
Por cartas particulares, vindas hoje do norte, sabe-se que chegou ao dia 17 ao Pará, o nosso comprovinciano, o Sr. Dr. Carneiro Vilella. Algumas comissões de diversas lojas maçônicas fretaram um rebocador e o foram receber a bordo, desembocando no meio de uma multidão, que o recebia de braços abertos e com verdadeiro entusiasmo.114
A notícia é do jornal pernambucano A Província de 28 de junho de 1876 e
demonstra o alcance atingido pela crítica do jornalista e o seu empenho na defesa
da laicidade do estado. Além da recepção calorosa, a notícia relata detalhes da
visita informando que as lojas maçônicas e o teatro da cidade estavam
embandeirados para que durante a noite houvesse iluminação especial e espetáculo
de exibição da peça Maçons e Jesuítas de autoria do próprio Carneiro Vilella, “sendo
o seu autor chamado ao palco por muitas vezes e, freneticamente, aplaudido” e
ainda ao final do último ato recebeu “dezoito buquês, com ricas fitas bordadas a ouro
e uma caneta e pena de ouro”, além de outros presentes dedicados à pessoa do
jornalista e a oferta de um baile preparado em comemoração pela presença do
escritor pernambucano115. O episódio da Questão Religiosa é elencado pela
historiografia brasileira como um dos fatores que teriam contribuído para acelerar a
decadência do governo imperial no Brasil.
Já na década de 1880 é possível verificar o envolvimento de Carneiro Vilella
durante a longa campanha abolicionista, encabeçada localmente por figuras como
Joaquim Nabuco e José Mariano Carneiro da Cunha. Apesar da carência de fontes,
pode-se inferir o seu apoio e participação junto ao Club do Cupim116, organização
abolicionista fundada em 1884 no Recife por João Ramos com o “único lema de
libertar os escravos por todos os meios”. O Club – com o muito apropriado e
114 VILELLA, Carmélio dos Santos. Carneiro Vilella: nascimento, vida e morte. Recife: Ed. Do Autor, 2005, p. 63. 115 Ibid., p. 117. 116 Para mais informações sobre o Club do Cupim conferir VILELA, Carneiro. O club do cupim. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Recife, 27:417-427 e Jornal Pequeno, Recife, 15 maio 1905. Texto das atas do Club do Cupim. In: SILVA, Leonardo Dantas. A abolição em Pernambuco. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 1988, p. 30.
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sugestivo nome de Cupim – é lembrado, inclusive em texto comemorativo produzido
por Carneiro Vilella já em principios do século XX, onde são narradas algumas das
peripécias associadas às operações que tomavam os cativos e os levavam para
lugares em que viveriam em liberdade, como algumas cidades do Ceará e do Rio
Grande do Norte que já tinham posto fim ao regime escravista em principios da
década de 1880.
Três pilares marcam o tempo de produção que embasou as obras produzidas
por Joaquim Maria Carneiro Vilella: o individualismo, o cognitivismo e o
universalismo117. Essas colunas presentes na intelectualidade brasileira do século
XIX remontam a bases desenvolvidas no movimento iluminista. Elas formam uma
relação complementar umas às outras no que tange uma lin ha de raciocínio que
dialoga internamente, buscando contemplar pontos em comum. O individualismo
está pautado “tanto pelo direito do homem buscar a felicidade e a autorrealização
quanto pelo direito de ele exercer a crítica às normas sociais”118. Dessa forma, o
indivíduo encontra espaço para uma tentativa de ação que afrouxe os laços que o
prendem a uma visão pré-determinada em um grupo fechado, ao mesmo tempo em
que assume as responsabilidades e consequências – satisfatórias ou não, boas ou
ruins – das atitudes que emanam desse princípio. Numa perspectiva cognitivista, o
homem se vê impelido a exercer sua intelectualidade – ou seja, sua racionalidade –
ante as experiências vividas. Assim, libera-se a influência mística, religiosa,
espiritual e mesmo teleológica. A racionalidade do cognitivismo incide para romper
as possibilidades de acomodações esotéricas – aqui no sentido de compreensão
retida por poucos, disseminada como conhecimento hermético e obscuro –
obrigando o indivíduo a valer-se de sua própria percepção, transformando-a em
elementos organizados racionalmente. Por último, o universalismo fornece a
amalgama necessária para conter os dois pontos anteriores. Esse princípio
responde pelo entendimento de que a civilização humana está regida por leis gerais
que perpassam fatores de comportamento, de sentimentos, de percepções. Ao
admitir essa consciência universal, a linha de raciocínio não deixa de considerar ou
invalida as variações sociais, econômicas e culturais das diferentes comunidades,
cidades, países e sociedades, mas considera a distinção fundamental dessa esfera
117 Cf. VIEIRA, Anco Márcio Tenório Vieira. Crônicas de um sem papas na língua: Carneiro Vilella. In: LIMA, Fátima Maria Batista de Lima. Cartas sem arte: Crônicas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. 118 Ibid., p. 12.
60
como um costume frente a uma organização inexoravelmente presente que seria a
natureza. O pressuposto da universalidade convocaria ainda a derivação de três
outros princípios “[...] validadores do comportamento moral – o direito natural, o
empirismo e a conformidade com a própria razão [...]119. Esses três últimos
elementos, mais uma vez, complementares em todo o ciclo de pensamento,
integram as cadeias de parâmetros do racionalismo/cognitivismo, do individualismo
e estão pautados em uma lógica de universalidade, obedecendo a princípios morais
de humanidade.
Muitos dos escritores do século XIX foram encharcados por essas torrentes
de ideias. As estratégias de utilização desses parâmetros se arvoraram por
diferentes gêneros de obras. Na arte literária, os autores puderam se ancorar em
algumas condições estruturais e narrativas. Uma dessas principais peças no jogo
artístico – neste momento falamos, sobretudo, com relação às manifestações
artísticas escritas – foi a utilização da ironia como recurso crítico imanente às obras
em si. Ao valerem-se de uma criação sensivelmente irônica, as obras provocavam
ruídos entre o que se dizia e o que se referenciava, implicando em uma espécie de
estupor de sentidos. A ironia estava presente na forma – nos romances – e no
conteúdo, na crítica, nas crônicas, nos enredos.
Em certa medida, esses elementos estão presentes – em maior ou menor
grau – em quase todas as produções artísticas do período. Algumas dessas obras
perderam-se no tempo e na poeira das velhas bibliotecas, nas suas antigas e
poucas edições. Outras são consideradas obras-primas de determinados autores –
veja-se o clássico exemplo de Os Sertões de Euclides da Cunha. Uma parte
considerável dos escritos produzidos no século XIX carrega se não a defesa aberta
e ferrenha de certas ideias e/ou ideais, pelo menos a exposição de debates que
permeavam as conversas, os artigos de periódicos, os corredores das instituições de
ensino superior no país, enfim como alegou a historiadora Angela Alonso120, as
ideias estavam “em movimento” constante.
A obra de Joaquim Maria Carneiro Vilella está infectada por esses agentes
alteradores de pensamentos tão disseminados a partir de meados dos Oitocentos.
119 ROUANET, Sergio Paulo. Dilemas da moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companha das Letras, 2007, p. 211 apud VIEIRA, Anco Márcio Tenório Vieira. Crônicas de um sem papas na língua: Carneiro Vilella. In: LIMA, Fátima Maria Batista de Lima. Cartas sem arte:Crônicas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 12. 120 Ver ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
61
É possível constatar os posicionamentos do escritor ao ler algumas linhas de suas
inúmeras crônicas – nessas obras o autor apresenta-se explicitamente em toda sua
característica virulência, porém sem abandonar a ironia latente de seus escritos – e
ao enveredar-se por algum enredo dos seus, pelo menos, 13 folhetins, além de uma
vasta obra em letras.
A Emparedada da Rua Nova, sem dúvida o título pelo qual o escritor é mais
facilmente lembrado, está prenhe de representatividade das confluências de
reflexões do século XIX – das quais abordamos em detalhes mais acima – em
diversos pontos: a busca de uma ponte com as experiências empíricas ao iniciar o
romance com uma notícia de jornal, montando o enredo a partir desse núcleo, por
exemplo. A frequente sugestão em uma tentativa de diluir os limites entre autor –
homem físico portador de documentação regular que assina a obra – e narrador –
elemento constituinte da produção literária que se responsabiliza pela exposição e
informação da trama, sendo também, no caso do narrador d’A Emparedada da Rua
Nova, uma personagem da trama; a crítica virulenta e persistente a tradicionais
instituições sociais como a família e, principalmente, o combate a determinadas
posturas envolvendo a religião católica – caracterizando o seu notável
anticlericalismo – sobrenadando o enredo do folhetim; a caracterização das
personagens obedecendo a uma lógica predominantemente determinista, eivada de
desígnios de raças e premissas de sangue, mas que ao mesmo tempo são
norteadas por um nivelamento moral despido de arquétipos ou pré-conceitos, uma
descrição que cede ao ímpeto individual pertencente à condição humana: são traços
extremamente patentes do tempo em que foi produzida e publicada A Emparedada
da Rua Nova de Carneiro Vilella121.
121 As características rapidamente apresentadas para ilustrar os pontos de contato com as correntes apresentadas neste capítulo serão analisadas com mais detalhes no terceiro capítulo desta dissertação.
62
4 PASSEANDO NUMA VELHA RUA – ANÁLISE ESTRUTURAL D’AEMPAREDADA DA RUA NOVA
A Emparedada da Rua Nova figura como uma obra bastante peculiar na
produção literária brasileira. O romance mais notável de Carneiro Vilella alcançou
pífia difusão em território nacional. No entanto, a história romanceada de uma
sucessão de infortúnios que culmina com o assombroso crime de emparedamento
praticado por um descontrolado pai ao sacrificar sua filha grávida, encerrando-a nas
paredes da própria residência, alcançou notável posto na coleção de narrativas
assombrosas listadas pelo imaginário recifense. Mais até do que o livro em si, o
ca(u)so – lenda, mito ou, enfim, o texto – do acontecimento foi bastante apoderado
pelo conhecimento geral da cidade do Recife, sobretudo entre os moradores da
parte velha, tanto temporal como fisicamente.
O narrador d’A Emparedada da Rua Nova realiza um intrincado jogo
construtivo de forma a conduzir o seu leitor a um labirinto de significações que
impliquem numa delicada associação do que seria ficcional com o mundo real.122 A
narrativa inicia-se com um recorte completo de periódico: Jornal do Recife, 23 de
fevereiro de 1864, ou seja, nome de uma sólida publicação da cidade, data com mês
e ano, além da transcrição do texto na íntegra. Ao reproduzir em linhas
romanceadas a notícia de um estranho aparecimento de um corpo já em estado de
decomposição denunciado pelo voo concêntrico de urubus pairando sobre as
capoeiras do Engenho Suaçuna (sic) em Jaboatão, a narrativa ancorou suas bases
numa série sutil de emaranhadas circunstâncias descritivas que, por uma
sobreposição de episódios123, sugerem tantas inexatidões quanto convicções em
122 Para mais detalhes sobre este olhar acerca da obra de Carneiro Vilella ver IZÍDIO, Mirella. De Concreto e de Neblina: um estudo jornalístico sobre a construção de realidades no folhetim AEmparedada da Rua Nova. Recife, 2011. 85 p. Monografia (graduação) – Departamento de Comunicação, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011. 123 Em termos de gênero, será considerado formalmente episódio a definição estabelecida por Reis & Lopes: “uma unidade formalmente autônoma e destacada em relação a um todo narrativo cuja narração se processa com uma certa periodicidade, alargando-se por um lapso de tempo normalmente amplo. Em princípio, à autonomia formal dos episódios da série e do folhetim corresponde também uma certa autonomia em termos de ação.” E ainda a explicação semiótica: “unidade narrativa não necessariamente demarcada exteriormente, de extensão variável, na qual se narra uma ação autônoma em relação à totalidade da sintagmática narrativa, ação essa que estabelece conexão com o todo em que se insere por meio de qualquer fator de redundância (a personagem que protagoniza os diferentes episódios de uma narrativa, o espaço em que eles se desenrolam, as dominantes temáticas que regem a narrativa etc.). É justamente o fator redundância que permite, por um lado, conceber o agrupamento de vários episódios e, por outro, aproximá-lo e
63
relação à história contada: a comprovação cabal do incidente relatado pelos jornais
da época facilmente verificável; a colocação de inúmeras pequenas informações
também prontamente constatáveis pelos jornais da época, como a passagem do
navio Magdalena pelo porto do Recife; a reportagem de situações e lugares
familiares aos recifenses e, ainda, a maneira como o acontecimento teria chegado
ao conhecimento do narrador: pelo relato de uma ex-escrava – de nome Joanna –
que teria servido na famigerada residência da Rua Nova e que “no ano de 1884 foi,
na Corte, criada do autor destas linhas”124 – aqui em uma espécie de amálgama com
o próprio autor, Carneiro Vilella, que residiu no Rio de Janeiro entre os anos de 1879
e 1886. A situação encaminhada pela construção narrativa suscita no leitor uma
débil divisão da nitidez estrutural do texto, “pois o narrador deixa de ser um
personagem de ficção para assumir uma condição extralinguística: a do autor”125.
Em outras palavras, poder-se-ia afirmar que toda edificação da narrativa
desenvolvida n’A Emparedada da Rua Nova tende a elevar os níveis de dúvidas
ante aos limites da narração, aos seus provocativos entraves que sinalizam certezas
desleais e deduções traiçoeiras. O comportamento discursivo que a obra assumiu
indica a possibilidade de alguns argumentos. Em primeiro lugar, destaque-se a
inserção do homem no seu tempo: a produção da obra de Carneiro Vilella encontra-
se mergulhada no espírito da movimentação de ideias dos fins do século XIX no
Brasil. Portanto, as influências da Escola do Recife e do Positivismo permeiam as
bases da construção narrativa do autor/narrador que, “dentro do espírito do
cientificismo que pautou a Escola do Recife, parece submeter a sua ficcionalidade
aos pressupostos científicos”126. É característica bastante nítida a notável
documentação, o diálogo constante com elementos que servem como pontes que
comprovem a irrefutabilidade dos fatos, a comunicação com referentes que se
encontram fora do âmbito da ficção, conferindo à obra uma singular distinção que a
distingui-lo da sequência: ‘Os episódios tendem a aparecer em feixes agrupados por uma isotopia específica. O seu ‘fechamento’ faz deles o equivalente de uma sequência semiótica, e a presença de uma isotopia unificadora agrupa-os numa unidade intermediária entre a sequência e o sintagma total do texto (Haidu).’” Ver REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. M. Dicionário de Teoria Narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988, p. 33. 124 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 2013, p. 542. 125 VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 15. 126 Loc. cit.
64
situa – sobretudo aos leitores leigos127 – num pantanoso terreno de indefinições
narrativas, pois é o próprio narrador quem desconstrói explicitamente o seu relato, a
despeito das linhas demarcatórias contornadoras do discurso que, em primeira
instância, se inscreve dentro de um texto de categoria narrativa definitivamente
ficcional.
Outro fator que contribui para esse aspecto são os chamados níveis
narrativos contidos n’A Emparedada da Rua Nova. O fenômeno consiste nas
versões que são dadas a determinadas construções narrativas partindo de um ponto
original e formulando círculos concêntricos a partir deste primeiro referencial. Assim,
cada círculo agrega novos elementos devido ao seu distanciamento do ponto inicial,
formando camadas, os níveis narrativos. Ao informar que a sua própria narrativa
não parte de um testemunho ocular, mas que foi adquirida por meio de uma outra
narração – a da criada que lhe serviu no Rio de Janeiro em 1884, Joanna – o
narrador matricula seus escritos em uma cadeia de desdobramentos narrativos.
Trata-se de uma declaração que possibilita medir a aproximação do relato que se lê
ante os acontecimentos sucedidos: não se está lidando com uma fonte primária. O
relato exposto pelo narrador, embora repleto de provas de (uma suposta)
confiabilidade, está enredado em um argumento recontado em um lugar e um tempo
distantes daqueles em que as tragédias se consumaram. No esclarecimento de
Anco Márcio Tenório Vieira:
Se por um lado, A Emparedada parece diluir os limites entre autor/narrador, por outro, em contraposição, a estória que nos é contada parece superar o estatuto ficcional da narrativa ao atribuir a sua fonte a um narrador – Joana – que pode ou não ser uma fonte fidedigna, que pode ou não estar fantasiando sobre o passado. Mais: se é Carneiro Vilela que narra AEmparedada, ele constrói essa narrativa a partir de uma outra narrativa, resgatada oralmente, por meio do recurso da memória, vinte anos depois dos fatos ocorridos. Logo, Carneiro Vilela, muito habilmente, desloca a relação autor/narrador para a relação de segundo narrador (Vilela)/primeiro narrador (Joana). Entre a sua narrativa e a narrativa primeira que foi resgatada da memória de Joana, dá-se uma tensão dialética entre linguagens (oral/documental), o que permite ao narrador construir, dentro do espaço romance, a fantasia, a matéria ilusória, a mimésis e a ficcionalidade. Ao leitor, cabe agora acatar o pacto que lhe é proposto pelo narrador: o de que n’A Emparedada, apesar de ter sido “fiel” às informações de Joana para
127 Por leitores leigos, de maneira geral, entendamos aqueles que não direcionam um olhar examinador e crítico no sentido de buscar entender os mecanismos de sentido que fazem parte da construção narrativa das obras. Em última análise, chamam-se leigos os leitores que buscam, com mais avidez e antes de qualquer outro motivo, a distração e o lazer sem objetivo de articular complexas construções acerca da estética, das considerações teóricas, das formulações narrativas, etc.
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as “cenas íntimas e violentas da família Favais”, ele, o narrador, precisou recorrer à imaginação para compor os demais enredos que formam a estória do romance.128
Esta singularidade d’A Emparedada da Rua Nova, por si, já é merecedora de
atenção: uma obra que dialoga, dentro de sua própria estrutura narrativa, com os
limites ficcionais, além de perpassar o imaginário de toda uma cidade por meio de
uma construção que agrega criação e/ou fundamentação lendária. Há outros
aspectos, porém, que serão analisados mais detidamente neste trabalho.
Com a data de publicação controversa129, o livro teria sido publicado pela
primeira vez em 1886. No entanto, por uma prática bastante difundida no período,
sua publicação em formato de folhetim aconteceu entre 3 de agosto de 1909 e 27 de
janeiro de 1912 no Jornal Pequeno, somando quase dois anos e meio de enlaces e
desenlaces no rodapé do periódico – a obra de Vilella durou mais tempo em
transmissão do que o célebre romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre
Dumas, ao qual se refere surpresa Marlyse Meyer: “uma publicação que segurou o
fôlego dos leitores durante um ano e meio!130. Vale salientar que o Jornal Pequeno,
hoje desaparecido131, era, neste momento, uma sólida e reconhecida instituição da
imprensa pernambucana que alardeava a posição de periódico mais lido na cidade
do Recife com a expressiva tiragem de 6.000 exemplares; era o mais antigo
vespertino em circulação no Norte do país. Ao considerar-se que Carneiro Vilella
128 VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 16. 129 A confusão se dá devido à existência do que seria a primeira edição d’A Emparedada da Rua Nova referente ao ano de 1886, ou seja, 23 anos antes da publicação da obra em folhetins pelo Jornal Pequeno, iniciada em 1909. A inexatidão torna-se ainda mais profunda quando se considera a possibilidade de a obra ter sido inicialmente intitulada Tragédias do Recife, publicada em fascículos pelo centenário Diario de Pernambuco e com descrições próximas a da obra mais famosa de Carneiro Vilella: composição de “factos dramáticos e reais” segundo seu autor, organização em 80 capítulos, inserção de quatro desenhos do autor, etc. Para mais detalhes acerca da temática conferir IZÍDIO, Mirella. De Concreto e de Neblina: um estudo jornalístico sobre a construção de realidades no folhetim A Emparedada da Rua Nova. Recife, 2011. 85 p. Monografia (graduação) – Departamento de Comunicação, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011; MENDONÇA, Helena Maria Ramos de. O Don Juan da Rua Nova: um estudo-itinerário sobre A Emparedada da Rua Nova, de Joaquim Maria Carneiro Vilela. Recife: O autor, 2008. 110 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.130 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 62. 131 O Jornal Pequeno apareceu pela primeira vez no dia 1º de julho de 1888 sob o título de Pequeno Jornal e tendo como proprietário o arrendatário e gerente do Jornal do Recife Luís Pereira de Oliveira Faria, sob direção de Hersílio de Sousa, Paulo de Arruda e Júlio Falcão. Resistiu até o ano de 1958. Cf. NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954): Diários do Recife – 1829/1900. Vol. II. Recife: Imprensa Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1966.
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faleceu no ano de 1913 vítima de um acidente vascular cerebral (AVC) fatal, mas
que antes disso já havia sido acometido por dois derrames – em 1901 e 1908, este
último, inclusive, comprometendo seus movimentos do lado direito do corpo e
levando-o a desenvolver a ambidestreza para continuar escrevendo – a hipótese de
reapresentação d’A Emparedada da Rua Nova em formato de folhetim, devido às
dificuldades de criação de novas obras por conta de seu estado de saúde e às
necessidades financeiras, ganha força.
Embora a querela sobre a problemática da data original de publicação da obra
de Carneiro Vilella persista até que se comprove, de forma definitiva e transparente,
a correspondência entre os textos d’A Emparedada da Rua Nova e do que teria sido
o romance Mistérios do Recife, a forma de veiculação dos escritos não determina a
sua caracterização. Sabe-se: A Emparedada da Rua Nova corresponde a um
romance-folhetim em sua essência mais pronunciada: devido ao seu enredo, devido
à sua disposição narrativa, devido à tipificação de seus personagens baseados – ou
contrariando – velhos arquétipos, devido à sua temática e resolução e, ainda, devido
às suas surpresas e previsibilidades. Afirmar que o romance mais conhecido de
Carneiro Vilella remonta aos modelões europeus – dos quais são parâmetros
Eugène Sue, Alexandre Dumas e Ponson du Terrail – é procedente e bastante
pertinente, visto que muita influência europeia, sobretudo francesa, é distinguida nos
escritos do jornalista pernambucano: observe-se os títulos de Mistérios do Recife –
folhetim inconcluso publicado no Jornal da Tarde, do Recife132 – e de Os Mistérios
da Rua da Aurora (1891), o que pode ser uma referência emprestada ao estrondoso
sucesso de Eugène Sue, Os Mistérios de Paris (1842). Em nota da 3ª edição, Lucilo
Varejão Filho comenta a utilização da palavra corvo pelo narrador no trecho “Quatro
dias depois os corvos denunciava o lugar em que se achava o seu cadáver”.133 Para
Varejão, trata-se de influência das leituras europeias realizadas pelo seu
conterrâneo: “No Brasil não há corvos, mas urubus que são de outra família. As
aves que no Brasil correspondem aos corvos são as gralhas”134. Mais do que leitor
das literaturas europeias que atravessavam o Atlântico, há informações de que
Carneiro Vilella tenha desempenhado papel de tradutor de romances franceses para
a publicação de folhetins em periódicos locais. Pelo menos nos últimos anos de sua
132 NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954): Diários do Recife – 1829/1900. Vol. II. Recife: Imprensa Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1966. 133 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3 ed. Recife: Coleção Recife, 2013, p. 22. 134 Loc. cit.
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vida, já com a saúde bastante debilitada, tanto física quanto mentalmente, o escritor
pernambucano assumiu o posto de tradutor de obras francesas para o jornal A
Província135. Entretanto, ao passo que A Emparedada da Rua Nova possui traços
que lhe aproximam das produções folhetinescas europeias, também agrega
elementos que destoam cabalmente das publicações fatiadas do Velho Mundo.
Portanto, os pontos centrais dos questionamentos deste trabalho residem nas
reflexões acerca da construção desse modelo, as possíveis fórmulas que produzem
o molde e até que ponto a imitação demarca as alternativas de originalidade. Se as
fôrmas já estavam prontas – descobertas, arquitetadas e implacavelmente
difundidas por hábeis franceses, mestres na arte da sedução e nos jogos de
suspensão de enredo – o que permite a alteração e até que ponto a mudança ainda
denota o mesmo modelo de modo que o chamariz continua no próximo capítulo
esteja sempre presente nas entrelinhas, ainda que não se tenha que esperar o
próximo número do jornal, a outra edição da revista ou o capítulo seguinte do
novelo? A arquitetura da excitação, doses mistas e crescentes de saciedade e
ansiedade convocam cada virada de página de modo que a suspensão do enredo
perturbe e regozije, estranhamente ao mesmo tempo. Busquemos vislumbrar as
veredas sinuosas dessa trajetória.
4.1 Desmembrando a narrativa – A obra, a construção, os elementos.
Em primeira análise, afirma-se sem grandes dificuldades que A Emparedada
da Rua Nova está inscrito na tradição dos romances-folhetins. O seu torvelinho de
acontecimentos e o emaranhado de informações, formando uma grande e
envolvente rede de tramoias, segredos e suas respectivas revelações que culminam
em um violento desenlace acompanhado de outras pequenas soluções que partem
de uma situação final, comum a todas as personagens envolvidas diretamente e
indiretamente na trama. Tradicionalmente, os romances-folhetins carregam a
redenção de vultosos finais felizes. A salvação é o consolo do leitor que aguarda,
pacientemente, tantos desprazeres, desventuras e injustiças na vida acompanhada
135 VILELLA, Carmélio dos Santos. Carneiro Vilella: nascimento, vida e morte. Recife: Ed. Do Autor, 2005, p. 118.
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pelos escritos do narrador. O happy ending, claro, não se estende para todos,
apenas para aqueles que o merecem, os que são bons, os flagelados pelos maus.
A estes últimos – os maus, ímpios, vis – caberá a justiça, a vingança, a pobreza, a
infelicidade e a morte. A punição dos maus, num mesmo grau que a chegada da
felicidade dos bons, é parte indispensável do final satisfatório clássico do romance-
folhetim tradicional. Não se pode simplesmente olvidar as maldades, os vilões não
podem ser esquecidos na impunidade: o sofrimento das criaturas infames é tão
importante quanto o sucesso dos injustiçados.
Isto posto, subentende-se a existência básica de bons e maus, a divisão
maniqueísta do mundo de forma polarizada contidas nas obras folhetinescas
tradicionais. As personagens devem estar de um dos lados e assumir um papel
claramente definido, nunca mutável. No romance-folhetim clássico o mundo não
admite regenerações ou corrupções no caráter: o bom não deturpa seu caráter em
nenhuma hipótese e sob nenhum tipo de pressão – financeira, social ou psicológica
– e o mau não encontra solução ou cura devido a amores, religiões ou purgações.
As essências nunca mudam porque esta é a disposição das coisas. A fórmula
tradicional requer esses elementos, é preciso a existência de um para justificar o
outro e as ações do enredo. No entanto, a obra de Carneiro Vilella foge a este
padrão e mesmo chega a ludibriar as expectativas do leitor, a escarnecer pelas
inusitadas possibilidades construídas pelas personagens. Observe-se.
O núcleo central da trama está cravado na família Favais, cujos membros são
os moradores da principal referência geográfica da obra: o sobrado – edificação que
une local de trabalho e residência de forma conjunta – localizado na Rua Nova. O
narrador alerta desde as primeiras descrições: o que aparentemente estampa uma
impressão, geralmente não corresponde à natureza, à essência dos seres. A
própria instituição familiar dos Favais representa a ideia de que, por mais que a
constituição e a situação externa fizesse julgar calmaria, tranquilidade e mesmo
felicidade – estabilidade financeira, educação tradicional para os filhos, hábitos e
comportamentos apoiados na moral religiosa cristã/católica, etc. –, no seu âmago,
na intimidade não penetrada por olhares superficiais, havia embates de sentimentos
e contradições de condutas que poderiam ser encobertos, mas não anulados. Aí
também, na construção das personagens e suas ações, se encontra ocasião para
dar-se vazão a um importante traço presente n’A Emparedada da Rua Nova: a
marca do cientificismo.
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A começar pela personagem-título do romance-folhetim: Clotilde Favais.
Percebe-se a proposta contestatória do narrador. De uma jovem nascida em uma
família estável e prestigiada na província pernambucana poder-se-ia esperar para
uma protagonista de folhetim – sabidamente, desde os princípios da obra devido ao
seu título, alvo de um crime hediondo – a descrição de uma inocente donzela,
condenada à morte por um pai tirano devido a um erro provocado por amor. Porém,
desde o primeiro contato, o narrador despe a complexidade que reside em Clotilde
Favais.
A descrição de seu tipo físico constrói misturas de povos diferentes – “De um
moreno claro – meio jambo e meio pêssego – produto de dois sangues, o europeu e
o americano”136. O cruzamento de raças que lhe conferiu uma singular beleza física
por outro lado revelou-se como uma perigosa associação de genes. Clotilde é
herdeira, portanto, das mais danosas características morais de dois povos distintos:
“[...] a mistura dos dois sangues, de que era oriunda, se lhe deu ao físico aquela perfeição material, deu-lhe ao espírito uma energia máscula e impetuosa, formou-lhe um coração capaz de todas as virtudes bem como de todos os vícios, conformo o lado para que o levasse a inspiração do momento.137
A expressão energia máscula expressa a inusitada descrição contida na
construção da personagem-título. E o que é mais: nada se pode fazer para invalidar
a existência desses traços no espírito de Clotilde Favais:
Era esse o fundo verdadeiro do seu caráter e nem ao menos a educação, que recebeu, concorrera para modificá-lo ou simplesmente esclarecê-lo com o conhecimento exato do mal e do bem [...].138
Em outras palavras: se há uma constante na índole de Clotilde Favais – e em
outras figuras apresentadas por Carneiro Vilella –, esta é justamente a sua
inconstância. A personagem não é boa ou má, trata-se de buscar entendimento do
contexto de suas ações, de sua disposição e, sobretudo, de seus interesses. Sua
personalidade também é marcada por posturas perniciosas:
136 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 45. 137 Loc. cit. 138 Loc. cit. (grifos nossos).
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Se mais alguma coisa trouxe para a casa paterna como prenda valiosa, foram sem dúvida umas lições práticas de hipocrisia e um ódio inveterado por tudo quanto fosse contrariedade e por tudo quanto lhe parecesse reclusão.139
No entanto, diferentemente das personagens do folhetim clássico tradicional,
Clotilde encontra uma espécie de justificativa para seus sentimentos:
A seleção quase conventual, em que vivera durante o período colegial, fizera-lhe adorar a liberdade. Os sofrimentos por que passara na observância religiosa de umas regras carrancas e aperreadoras, haviam acumulado no seu coração uns ódios intransigentes por tudo quanto lhe parecesse obrigação e tinham-lhe dado uma aptidão e uma presteza extraordinária para a revolta.140
Ou seja, Clotilde não surge com a personalidade definida, boa ou má, trata-se
de uma existência inclinada às mais variadas potencialidades de sentimentos e
ações. A intricada organização da postura de Clotilde Favais é percebida,
principalmente, nas passagens finais da narrativa. Comovida por uma violenta
paixão, a personagem fragiliza-se ante a possibilidade de rejeição, mas enfurece-se
ao descobrir-se enganada por Leandro Dantas e julgar-se traída pela sua própria
mãe, Josefina Favais, e por uma amiga da família, Celeste Cavalcanti.
Uma dor imensa e indefinível apoderava-se de sua alma e transformavatodos os seus sentimentos bons num ódio concentrado e sem limites. Essa nova manifestação da sua desilusão, esse resultado do aniquilamento de suas esperanças, esse ódio enfim abrangia não só a mulher de Cavalcanti como também a sua própria mãe. Esta estava prostrada no leito do sofrimento e quase sem acordo; a outra porém, nada sofria, e talvez mesmo que nada viesse a sofrer. Não! Não seria assim... Celeste havia de passar pelas mesmas torturas porque ela própria estava passando! Havia de pagar-lhe caro o ter-lhe roubado o amor e a posse do único homem que ela havia amado neste mundo. Como vingar-se, porém? Não o sabia ainda; iria ouvir o que ela ia dizer ao avô e, depois de senhora dos segredos da mísera mulher, formularia o seu plano de campanha.141
É bastante notável a diferença: Clotilde não se resigna, não se retrai para
sofrer as mágoas de um amor ferido, mas é movida pelos humaníssimos
sentimentos do ciúme, da inveja e do ódio. Sob o efeito de tais disposições de
espírito, a rapariga calcula sua desforra. Aqui mais uma distinção gritante entre as
fórmulas genéricas dos folhetins tradicionais: as ações – e suas consequências –
139 Ibid., p. 46. 140 Loc. cit. 141 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 462-463. (grifos nossos).
71
são resultantes de interferências humanas, de suas movimentações na trama, das
provocações de atitudes pedestres com o objetivo de alcançar resultados
específicos ou impedir que outros alcancem. Não há providência divina, solução dos
céus, castigos e milagres dos deuses, pelo menos não a ponto de travar o livre
arbítrio. A fé manifestada pelas personagens construídas no folhetim d’A
Emparedada da Rua Nova é débil, faz parte de uma cartilha decorada sem que se
tenha conhecimento claro sobre seu sentido, por isso é preciso agir para mudar o
quadro estabelecido. O narrador chega a tecer uma espécie de deboche na
passagem em que Celeste Cavalcanti questiona-se sobre sua sorte ao perceber que
seu marido, o senhor de engenho Tomé Cavalcanti, tomara conhecimento dos
segredos de suas relações extraconjugais:
Mas como havia aquilo acontecido? que acaso fatal e diabólico o tinha feito surpreender a sua confissão e o puzera (sic) assim ao fato dos seus mais íntimos segredos? Celeste não podia adivinhar: nem sequer o suspeitava e portanto atribuira (sic) o fato a esse dedo fatídico e providencial de Deus, dedo que, segundo as crendices católicas e as abusões da ignorância, se intromete em toda a parte como um fura bolos, e leva o castigo e a punição, onde eles se tornam necessários à moralidade social e convencional do caso. Mas acaso, providência, ou dedo de Deus, o leito sabe que a causa da descoberta de Cavalcanti fora pura e simplesmente Clotilde.142
Nem por isso – pela ausência de soluções extraordinárias ao longo da trama
e, sobretudo, no seu arremate – o folhetim escrito por Carneiro Vilella abriu mão de
um dos trunfos que causam frisson na fórmula base do romance seriado: os lances
teatrais. Em outra apropriação, dir-se-ia até mesmo que A Emparedada da Rua
Nova possui sequências cinematográficas de revelações, reconhecimentos e
suspensões de enredo. A construção narrativa da obra é marcada pela plasticidade
de seus personagens – observem-se suas descrições, sobretudo de certos tipos
como o Hermínio ou Zarolho e o Bernardino, o Bigode de Arame –, pela imitação da
maneira de falar e expressões àquela época comuns143 e pelo comportamento das
regiões: trata-se de um romance de costumes.
A obstinação de Clotilde Favais pela vingança intensifica os seus ânimos e
estende o rancor ao seu pai e ao seu primo, João Paulo Favais – este último
142 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 462. (grifos do autor). 143 Cf. VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p.18.
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insistente candidato a um casamento valioso, veementemente rejeitado pela moça.
Ao ser colocada contra parede pelo pai para que fosse realizado o consórcio familiar
entre os primos, sua negativa recrudesce. Em uma violenta discussão com o pai,
brada: “- [...] ou Vosmecê despede aquele miserável [João Favais] já e já de sua
casa ou sou em quem vai denunciá-lo como o assassino de Leandro”144. E continua
a grave altercação: “- Eu já não tenho filha! – bradou o negociante com um gesto
melodramático e terrível.” Ao que a filha responde: “Bem como eu já não tenho pai!
– retrucou Clotilde, com acento de voz firme e segura.” A intensa discussão finaliza-
se com a implacabilidade provocativa da jovem:
Clotilde então atirou-se para o meio da sala e cruzando os braços sobre o seio, que ofegava desesperada e convulsivamente, apresentou-se completa de frente para receber o choque e a fúria de seu pai. - Mate-me! Disse ela com frieza esmagadora e irritante. E acrescentou logo num tom acerbo de ironia: - Não será a primeira vítima!145
No entanto, mais adiante, por estar em extrema situação adversa – acuada
fisicamente, consciente de seu estado de gestante e sem poder contar com a
proteção da mãe, enlouquecida, e do avô, o comendador Antônio Braga, falecido
devido aos desgostos vivenciados em sua família –, suplica ao pai por clemência,
sem sombra alguma da fúria que antes a fazia tão resoluta diante do debate com
Jaime Favais, no momento do emparedamento:
- Meu pai! – murmurou uma voz suplicante e cheia de soluços. - Cala-te! – rosnou o homem, continuando a sua faina. - Perdoe-me!... – soluçou mais fraca a mesma voz. - Tens o que mereces. - Em... nome... de meu filho.146
Observa-se a constante volubilidade no caráter da personagem de Clotilde
Favais construída pelo narrador ao longo do enredo em diversos momentos. Porém
não só a personagem-título encerra essa característica, esse é um traço que
sobrenada entre as figuras que se movem na trama. Seguindo a mesma linha de
Clotilde, os seus pais, Jaime e Josefina Favais, também são marcados pela
desmedida das suas condutas. A esposa do negociante, assim como a sua filha e a
144 VILELA, op. cit., 1984, p. 520. 145 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 521. 146 Ibid., p. 550.
73
sua amiga, Celeste Cavalcanti, formam o conjunto das três mulheres seduzidas pelo
Don Juan baiano frequentador do Teatro de Santa Isabel, Leandro Dantas147.
Josefina seria o exemplo da virtude forjada, da frivolidade reprimida que não resiste
aos apelos de um conquistador desafiado pela incitação de um obstáculo mais
estimulante: a presumida qualidade moral invencível que não permitiria uma traição
por uma dama reconhecidamente distinta e respeitada pela sociedade recifense.
Josefina também representaria, em outras instâncias, uma espécie de sublevação
social feminina que, ao perceber-se infeliz após longa suposição de felicidade,
permite-se o conhecimento e a vivência de novas experiências – sexuais, sociais,
comportamentais, etc. – em detrimento daquilo que se julga honesto. No entanto,
apesar da coragem de suas ousadias, a consciência do pecado, da transgressão, da
culpa e do erro não é remediada pelos prazeres proporcionados pelos seus
sentimentos e atitudes. No fundo, o narrador tenta demonstrar que essa série de
fatores combinados – miscigenação de raças completamente diferentes, a educação
delegada à moral dos colégios (“moral tão relaxada como cômoda”148) permeada por
intensos discursos morais assentados na religiosidade católica e a vivência em uma
sociedade demarcada por relações hipócritas e interesseiras – resultam em produtos
semelhantes, como uma espécie de produção em série, como moldes
comportamentais:
Josefina não era, na realidade uma natureza tão corruta como Celeste, mas recebera a mesma educação que a sua amiga, no mesmo colégio, com os mesmos professores, ouvindo os mesmos conselhos, e ajoelhando-se ao pé dos mesmos sacerdotes. Ali se haviam desenvolvido nela os mesmos germens perniciosos e em sua alma se havia inoculado o mesmo virus (sic) venenoso e pestilento. Para o desenvolvimento de um e outros bastava-lhe apenas alguma circunstância favorável ou alguma ocasião propícia e adaptada. Devia forçosamente ter um fundo de moral idêntico ao de sua antiga companheira de colégio e aliás amiga íntima. Se até ali havia procedido de maneira diversa e conseguira por isso passar por honesta, -- e realmente o era – era isto devido pura e simplesmente às circunstâncias e condições involuntárias em que a sua posição e o seu casamento a haviam colocado. Não pertencia à roda a que pertencia a sua amiga e onde, -- diga-se a verdade embora amarga – são mais frequentes não só os momentos históricos como também as práticas da devassidão
147 Sobre a relação da personagem de Leandro Dantas, o “mito de Don Juan”, n’A Emparedada da Rua Nova conferir MENDONÇA, Helena Maria Ramos de. O Don Juan da Rua Nova: um estudo-itinerário sobre A Emparedada da Rua Nova, de Joaquim Maria Carneiro Vilela. Recife: O autor, 2008. 110 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.148 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 221.
74
moral e material, que são quase levadas à conta de galanteios de salão ou de rasgos de espírito desenvolvido e livre.149
Percebe-se a influência das linhas de pensamentos hegemônicas à época de
produção do romance: os meios de vivências determinando fortes predomínios nos
ânimos das personagens envolvidas. O narrador atribui, portanto, o estilo de vida
levado por Josefina Favais ao casamento com um português focado nos assuntos
financeiros e nos negócios da família, com poucas relações sociais e divertimentos
públicos.
O comendador Jaime Favais, este sim o verdadeiro personagem central da
trama, encerra em si a grande complexidade das inconstâncias das figuras
desenvolvidas por Carneiro Vilella. Numa descrição de homem sisudo,
ensimesmado e taciturno, a trama inicia-se com o negociante já envolvido em uma
situação extremamente delicada: o comprometimento de sua liberdade, de seu
status social e de sua fortuna por estar às voltas com uma investigação de um
assassinato realizado sob sua encomenda e execução.
Portanto, a primeira impressão desenvolvida acerca da figura de Jaime Favais
está impregnada de assombros, asperezas e irritabilidades. O caráter da
personagem delineia-se pela sua trajetória de migração, sucesso comercial em
terras estrangeiras aliado ao amparo de seu tio já estabelecido no Brasil, o
comendador Antônio Braga, e a extrema ambição e perspicácia nas suas relações.
Da situação comum, o narrador revela o inusitado:
A história de Jaime Favais é, nem mais nem menos, a de todos esses portugueses, que, filhos de pais agricultores e pobres, vendo-se, em sua pátria sem recursos no presente e sem esperanças no futuro, emigram para o Brasil com o firme propósito de trabalhar sem descanso até adquirir a fortuna que sempre lhes faltou, mas com qual sempre sonharam. Natural de Favais, em Trás-os-Montes, apenas completou ele os quinze anos, seus pais, admirando a inteligência, a atividade e sobretudo a ambição, que já se revelavam nele em alto grau, remeteram-no para a terradas patacas, consignando a um tio materno, que aqui estava estabelecido com um grande e bem afreguesado armazém de secos e molhados.150
Jaime, ao contrário de sua mulher e de sua filha, não é resultado – explícito –
de cruzamento de dois povos. Sua personalidade se expressa demarcada desde
muito cedo: inteligente e ambicioso. Apesar da origem pobre, havia uma perspectiva
149 Ibid., p. 294. (grifos nossos). 150 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 37.
75
de melhorias de vida para o menino, ainda que para isso tivesse que sair de sua
terra natal e atravessar o oceano para morar em outro continente sem a presença
dos seus pais. No entanto, o que pareceria um violento rompimento para uma
pessoa tão jovem, é descrito como o início de uma frieza espiritual já sedimentada
na personalidade do português:
O menino Jaime não sentira grande comoção ao deixar o pátrio ninho: antes secreto instinto instigava-lhe a alegria íntima e buzinava-lhe aos ouvidos que iam rasgar-se aos seus olhos e à sua ambição novos horizontes e vastos campos de operação e de colheita. Ouvia contar tantas maravilhas desse Eldorado dos ambiciosos!... fantasias nesse Brasil uma terra tão superabundante de riquezas, tão fabulosamente cheia de ouro e de diamantes... que não era de admirar que ao sentimento de saudade e à tristeza da separação sobrepujassem a curiosidade das viagens e a avidez dos grandes lucros.151
Embora a descrição da personalidade de Jaime aponte uma solidez de
escrúpulos, também marca a presença de sentimentos sinceros em sua jornada. Da
mesma forma, por exemplo, com que desejou estabelecer uma robusta fortuna pelo
seu trabalho também vislumbrou suas possibilidades de relação familiar com o tio
protetor. Ao requerer a mão de sua prima em casamento, possuía aspiração de
empossar-se ainda com mais direitos da herança que seria destinada à filha única
do Comendador Antônio Braga. No entanto, havia sensibilidade autêntica em sua
intenção:
Jaime, na qualidade de primo, contínua e constantemente em contato com ela, e de mais a mais instigado pelo demônio da ambição, com o propósito firme de obter o seu fim, não pode furtar-se à influência magnética dos seus olhos negros nem à atração amorosa e dominadora da sua bondade. Amou-a e foi ardentemente correspondido. Apenas, pois, chegou da Europa, abriu ao tio o seu coração com todas as aparências de franqueza e lealdade e expôs-lhe os seus projetos, menos, já se vê, a causa latente que o movia, concluindo por pedir-lhe a mão da priminha. A resposta não se fez esperar.152
O narrador completa através da visualização da expectativa do tio e com o
toque de ironia que lhe é tão caro:
Ativo e econômico, inteligente e sensato, trabalhador e honesto... o sobrinho apresentava todas as garantias possíveis para a felicidade do seu ídolo. De mais a mais, os dois primos adoravam-se e, o que não era menos, o seu
151 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 37. 152 Ibid., p. 39.
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dinheiro não passava a estranhos. Os portugueses sempre tiveram grande apego à família.153
Este panorama sintetiza de forma abrangente o perfil de Jaime Favais. Suas
transformações e interesses – a mudança do gênero de comércio, a peleja pelo
título de comendador, a inserção na vida social da província e as relações humanas
que travava – buscavam agregar poder, honra, glória e fortuna, mas também eram
movidas por sentimentos despertados por tentativa de agradar sua esposa e sua
filha, ainda que estes sejam motivadores em menores escalas. Pintado aos moldes
do que seria o clássico carrasco do enredo – o pai severo, o marido ríspido, o
homem frio e ganancioso – a personagem consegue expor suas fraquezas a ponto
de desconstruir as expectativas que lhes cercam. É no momento em que se
descobre enganado pela sua esposa que o negociante expressa toda sua
humanidade – diferente dos vilões formulados no folhetim tradicional em que os
aspectos psicológicos são diminuídos em detrimento das ações explosivas
motivadas pelas intenções de se fazer o mal porque se é mau, por interesses de
sobreposições em relação a outros ou desejos de destruição gratuitos. Ao expor a
angústia de Jaime Favais, o narrador convoca seus leitores a se apiedarem do
estado lastimoso de um homem traído e revela as dores – realmente sinceras – que
antecedem a futura vilania:
Para o negociante, esse isolamento foi um acréscimo de martírio e, face a face de si mesmo, deixou, deixou fazer explosão toda a dor que o consumia, e entregou-se de corpo e alma ao furor de sua vergonha. Atirando-se a uma cadeira, fechou os punhos nos olhos, como a querer arrancar daí uma visão perseguidora, e chorou de desespero, mordendo por vezes o lenço para abafar os soluços que lhe sublevaram o peito com um ansiar tormentoso e formidável. Era doloroso ver aquilo!... devia ser atroz o sofrimento daquele homem!154
Por mais que a frieza de ânimo e os interesses inerentes ao seu papel na
sociedade predominem na animação dos atos do negociante, o narrador apresenta o
homem em seu desespero irracional – assassinar a esposa com suas próprias mãos
em sua própria residência – e evidencia a retomada de consciência por parte do
Comendador Jaime Favais ao se atentar que esta ação seria extremamente
desfavorável a si mesmo, pois socialmente seria visto como um assassino, a causa
153 Ibid., p. 40. (grifos nossos). 154 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 385.
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de sua ação seria publicamente conhecida e sua infelicidade cairia nas graças do
povo como a de um marido traído – vingado, é verdade –, mas desonrado,
arrastando à lama toda a família, além do grande risco de suas perdas financeiras
com o escândalo na sua casa. Jaime é ainda mais racional e desenvolve seu
projeto de maneira que sua vingança seja consumada, o amante de sua esposa –
Leandro Dantas – deveria ser assassinado pelas suas próprias mãos, Josefina
Favais seria torturada pela ausência do seu amásio e a sua reputação de homem
digno de família honrada e próspera seja preservada.
A vítima da ira de Jaime Favais, o mancebo Leandro Dantas, é uma
personagem essencial e exemplar da construção figurativa do narrador d’A
Emparedada da Rua Nova. Reprodução arquetípica de personagens donjuanescas,
-- “Lovelace incorrigível” e “D. Juan cínico com as mulheres” nas próprias palavras
utilizadas pelo narrador – trata-se de um papel catalisador de turbulências na trama:
Leandro é a personagem que movimenta o enredo, perturba a aparente calmaria e a
suposta felicidade dominante nas classes mais altas da sociedade. Sua arma é ele
mesmo, sua artilharia a sedução de mulheres, sobretudo as casadas. Dessa
maneira divertia-se, encontrava penetração social e adquiria status e ria-se das
misérias das famílias hipócritas. O próprio Leandro Dantas tem consciência dos
desarranjos que provoca por onde passa e o que é mais: faz disso um objetivo, uma
maneira encontrada para aviltar aqueles que se julgam superiores devido às
condições sociais e financeiras. Em conversa com Jeréba – que será devidamente
apresentado adiante –, Leandro Dantas expressa o seu pensamento:
- [...] não queimo essas cartas, como não tenho queimado as outras, como não queimarei nenhuma... que provenha dessa gente [referindo-se às correspondências enviadas por Celeste Cavalcanti e outras de suas amantes]. Conservo-as todas as de todas, para delas poder fazer armas algum dia... quando qualquer dessas pretendidas fidalgas, por si ou pelos seus, quiser pisar-me sob os seus pés. Não vês que tudo isto são documentos preciosos, documentos que provam a infâmia, a baixeza, a miséria de toda essa fidalguia bastarda e podre, mais bastarda do que eu... mais podre do que... Ia dizer do que a classe de onde nasci, mas concluiu a frase enérgica e verdadeira, lembrando-se de sua mãe, e prosseguiu mudando de tom: - Não queimarei carta alguma... [...].155
155 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 285. (grifos do autor).
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Seus rancores encontraram em Josefina Favais uma concentração de
motivações para seus desejos de vingança:
Se as aristocráticas mulheres dos mais fidalgos figurões cediam à sua sedução e se curvavam vendidas ante a sua corte, como e porque não lhe havia de ceder também uma simples burguesa, filha de um ex-vendilhão enriquecido por artes de berliques e berloques, e mulher aí de um qualquer negociante... português? Leandro assim raciocinava e, na sua qualidade de... baiano em tudo, cordialmente odiava a todos os portugueses. Condenara-os em massa pelo crime do seu nascimento, pela infâmia de sua mãe e pela desonra de sua irmã. Tinha, pois, um ódio mortal a todos os patrícios de seu pai! Ora, que melhor meio de vigar-se deles do que desonrado-os e seduzindo-lhes as mulheres. Essa necessidade de expandir o seu ódio, - essa espécie de vendetta – realmente não era mais do que um pretexto para justificar o seu anelo, como se uma razão má pudesse servir de justificativa a um ato ou a uma tentativa ainda pior!156
A referência que o rapaz faz sobre sua condição diz respeito às suas origens
degeneradas. Leandro Dantas era filho de uma prostituta baiana – Carolina Dantas,
a Calu – com um rico português, mais uma personagem marcada por uma
procedência mestiça, elevando-lhe as potencialidades negativas da herança
genética aliadas às experiências que contribuíssem para o desenvolvimento dos
mais perigosos temperamentos a despeito de todos os esforços que se possam
fazer para formar o bom caráter de um cidadão como uma educação esmerada e
ensino de boas maneiras. Leandro é mais um artifício que o narrador lança mão
para expor as falsidades das aparências, as mentiras sociais e as hipocrisias das
relações.
Entretanto Leandro ia estudando e progredindo. Aos quatorze anos dava as mais significativas provas de inteligência, mas também as mais exuberantes de audácia e de libidinagem. No colégio – nessa sementeira de vícios e de maus costumes – por mais de uma vez merecera os mais ásperos castigos pela sua corrução e práticas morais. Passava dias inteiros em casa de seu pai, ouvindo os conselhos piedosos e honestos de sua, digamos, madrasta, presenciando os exemplos de virtude, de que era ela uma conscienciosa e emérita cultora; mas também freqüentava – e até preferia – a casa de sua mãe, onde recebia lições inteiramente contrárias às outras e mais agradáveis à sua índole e era testemunha de cenas e atos que, longe de repugnarem a sua natureza e revoltarem a sua qualidade de filho, lisonjeavam os seus vícios de homem e elevavam-no pela novidade e de alguma sorte por corresponderem aos secretos ardores do seu sangue, às impetuosidades fogosas de sua raça, à sua índole enfim.157
156 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 290-291. (grifos do autor). 157 Ibid., p. 264-265. (grifos nossos).
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A temática da mistura de raças assume evidência máxima na personagem do
jovem sedutor baiano. Leandro é descrito como a essência de misturas que aflora
traços em todos os seus trejeitos, em cada um dos seus pensamentos e vem à tona
indisfarçavelmente em sua aparência, no seu rosto, na sua pele, nos seus cabelos.
Mais ainda: o conjunto dos seus procedimentos e a sua maneira de agir evidenciam
o embaralhado de genes distintos que formam sua figura. A descrição realizada
pelo narrador evidencia as fortes influências cientificistas em termos como
espécimen, raça verdadeiramente brasileira e produto etnográfico além de
mencionar até mesmo a presença da herança indígena na formação da figura de
Leandro Dantas. Observem-se as palavras da minuciosa exposição na íntegra:
Com efeito! Era ele um belo mancebo, na acepção mais lata da palavra. O seu todo – cabeça e corpo – poderia servir de modelo e de espécimen da raça verdadeiramente brasileira, -- dessa raça nova e única que é o produto etnográfico das três outras, que povoaram o nosso solo: a raça europeia, a tupi e a africana. Ao vê-lo, conhecia-se logo que girava em suas veias o sangue dessas três raças e que nele se fundiam as três naturezas correspondentes. Devia ter a inteligência do europeu, a indolência do americano, e a impetuosidade dos filhos dos desertos da África.158
O nível dos teores cientificistas apresentados na composição da personagem
de Leandro Dantas talvez encontre o mesmo nível de semelhança apenas na
descrição de uma de suas amantes, a senhora de engenho Celeste Cavalcanti.
Igualmente educada na tão sórdida e indigesta formação dos colégios para moças,
juntamente com Josefina Favais – companheira que fora sua amiga nos bancos
colegiais e que na maturidade encontra oportunidade para retomar a relação. Mais
uma vez o narrador aproveita o ensejo para expor as piores mazelas adquiridas
após a temporada passada nos colégios.
Celeste frequentara o colégio e passara por ali tal qual como todas as outras daquele tempo e de hoje ainda e de amanhã talvez... sem um ensinamento útil para o coração e sadio para a consciência, mas eivada desses preconceitos piegas, cheia dessas crendices estultas, imbuída dessa fé falsificada e embrutecedora, vítima desse vícios, que se adquire ao pé dos confessionários ao ouvir a palavra insignificante, estúpida ou corruptora de um sacerdote sem idéias, sem princípios, sem moral, sem crenças, sem estudos como são em geral os nossos padres ainda hoje e o eram ainda piores há vinte anos: sacerdotes que fazem da religião um fanatismo; da moral um enigma; da verdade, um mito; da consciência, uma
158 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 238.
80
futilidade; da razão, um monstro; do coração, uma besta; de Cristo, um mercador do templo; e de Deus, um capadócio!159
Note-se que os colégios das moças seriam ainda mais perniciosos, embora
todas as instituições – e aqui todas as instituições sociais, independente das
finalidades acadêmicas ou não, tais como a própria família, a Igreja e as
organizações do poder e da Justiça – pareçam comportar sua chancela de defeitos
morais, pois o colégio que frequentou Leandro Dantas, um rapaz, também é
apresentado como uma “sementeira de vícios e maus costumes”. No entanto, é com
a educação feminina que o narrador apresenta todo o azedume e a irritação da
discrepância no tratamento dos gêneros:
Com efeito, julgando insuficientes os estabelecimentos de instrução disseminados abundantemente pelo Recife, apenas o filho [de Josefina e de Jaime Favais] completou os dez anos, mandou-o para a Europa; e a filha, antes mesmo desta idade, meteu-a... no colégio das Irmãs de Caridade, situado na rua do Hospício. Tanto escrúpulo na educação masculina e tão pouco na educação feminina! Para o homem abriam-se todas as válvulas da civilização, franqueavam-se todos os caminhos da ciência, preparavam-lhe um futuro cheio de conhecimentos úteis, progressivos e portanto garantidos das mais altas virtudes. Para a mulher, porém, -- para a futura mãe de família, para a verdadeira base da sociedade moderna, -- estreitavam-se os horizontes intelectuais e morais, proibiam-lhe a liberdade de pensar e de sentir, entregavam-na aos corvos160 do fanatismo e da hipocrisia, asfixiavam-lhe o coração, envenenavam-lhe o espírito e, em vez de procurarem formar uma esposa e uma mãe com todas as aptidões para procriar cidadãos e homens de espírito, preparavam uma beata inútil e estúpida, apta apenas para dissertar sobre as problemáticas virtudes do rosário ou para engrolar ladainhas depois de indigestos perniciosos sermões jesuíticos!161
A índole de Celeste pende para a leviandade, a sensualidade exagerada, a
luxúria incontida que a faz ser reconhecida por toda a sociedade como uma grande
devassa que arrasta a honra do seu marido e um grande sobrenome de família
virtuosa e tradicionalíssima da província pernambucana na lama com seus namoros
159 Ibid., p. 221. A passagem possui mais uma nota contendo observações de Lucilo Varejão Filho sobre a conduta do próprio autor, Carneiro Vilela, em relação à crítica extravasada pelo narrador no que Varejão classifica como uma “manifestação do anticlericalismo de Carneiro Vilela”. E continua: “Anticlericalismo, aliás, tão comum nos meios intelectuais recifenses dos fins do século XIX. Essas manifestações são numerosas ao longo de todo o romance e vale a pena lembrar aqui, que, vigoroso jornalista militante, Carneiro Vilela, embora antigo colega de escola de D. Vital, em nenhum momento, durante a Questão Religiosa, tomou da pena para defender o seu antigo condiscípulo”. 160 Mais um registro que faz referência à palavra corvos. Ver página 36 desta pesquisa em que há uma observação sobre seu emprego pelo escritor d’A Emparedada da Rua Nova, Carneiro Vilela. 161 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 42-43. (grifos do autor).
81
indecentes, com seu comportamento indecoroso. A descrição física realizada pelo
narrador acerca de Celeste Cavalcanti é uma importante expressão do envoltório
construído para designar a personagem:
Era ela uma senhora de trinta anos pouco mais ou menos. De estatura regular e bem feita de corpo, acusava na rigidez das formas e na pureza dos contornos o pleno desenvolvimento da beleza corpórea, feminina e crioula. Não era de uma formosura ideal nem tão pouco de impressionar como essas virgens de Murilo ou essas estátuas devidas ao cinzel grego, não: mas possuía, no conjunto das linhas do rosto, uma certa graça faceira e atraente, que a tornava simpática sem que todavia a fizesse bonita. Era alva; de beiços grossos, - dessa alvura de cútis um pouco áspera e dessa tumidês carnuda de lábios, que acusam resquícios de sangue africano, depurado por quatro ou cinco gerações. Atestavam ainda mis essa origem, -- aliás tão natural e adâmica como outra qualquer, -- os cabelos de um castanho fulvo, cheios de ondas pequenas, sucessivas e perfeitamente acentuadas; circunstância esta que lhe dava juntamente com o comprimento acima ou, com mais propriedade, abaixo do comum, uma formosura extraordinária.162
A partir da enumeração dos traços que formam a composição física de
Celeste Cavalcanti aliada à constituição de seu caráter e de sua postura moral
formados nos sórdidos colégios com a anuência e o incentivo da família, o narrador
circunscreve a figura da moça fogosa, incerta, dissoluta mesmo. Tal qual o seu
amante, Leandro Dantas – e o contexto deixa nítido de que o rapaz baiano não se
tratava do primeiro amásio da senhora de engenho – seria muito custoso à natureza
de ambos desoprimir-se da conduta carregada nas suas heranças genéticas: as
“impetuosidades fogosas de sua raça”163 estimulavam Leandro Dantas, o “referver-
lhe nas veias o sangue africano”164, acometendo Celeste Cavalcanti.
A Emparedada da Rua Nova possui demarcados dois núcleos de diferentes
estratificações sociais que se dividem em uma classe de grande poder financeiro e
de congregação de pessoas distintas – aquelas que transitam nos salões, que
residem nos sobrados e nos palacetes dos logradouros elegantes da cidade como a
Rua Nova, a Rua da Aurora, a Passagem da Madalena e que veraneiam em
Apipucos e no Monteiro, que desfilam suas sobrecasacas e ornamentos luxuosos
162 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 108-109. (grifos nossos). 163 Ibid., p. 265. 164 Ibid., p. 227.
82
nas noites de espetáculo do Teatro de Santa Isabel e que ostentam sobrenomes
centenários ou títulos honoríficos – fazendo contraste com a massa de miseráveis,
pessoas pobres, a ralé que se abrigam em paupérrimos barracos dos Coelhos nas
vizinhanças do Hospital Pedro II e dos mangues fétidos do Rio Capibaribe ou em
velhos sobrados mal conservados e desvalorizados, são os frequentadores das
mesas de jogos da Rua de São Pedro, vivendo de favores, toda a sorte de
trambiques, prostituição e mesmo crimes; são estrangeiros, desertores, forasteiros
de futuro incerto e de passado duvidoso, gatunos e caixeiros, trabalhadores do porto
e a turba de pedestres anônima que povoam e constituem a escória social, a zona
licenciosa, libertina e disciplinada de uma cidade, a bas-fonds.
No entanto, embora as duas esferas estejam postas em ordens diferentes de
apresentação, o narrador expõe a promiscuidade que se amontoa nas relações
entre esses dois polos, mais uma vez insistindo na ideia das aparências ilusórias e
na complexidade das relações humanas. Observe-se que não há pureza na
constituição dos círculos, tanto individuais como coletivos. Não há nobres legítimos:
persiste por gerações a existência de manchas, nódoas sorrateiramente
dissimuladas, mas nunca encobertas de todo. São as origens duvidosas
denunciadas por cabelos estranhamente ondulados, lábios grossos e
comportamentos lascivos; as trajetórias de construção de fortunas partindo de
grandes pobrezas e aventuras; as procedências marcadas pelos pecados de
adultérios e produtos bastardos de relacionamentos ilícitos.
Ao contrário dos romances-folhetins clássicos, os pontos de magnanimidade
não são irrestritos e absolutos, mas esbarram em situações nas quais a áurea de
dignidade é salpicada com respingos de lama da podridão que lhe cerca. Um
exemplo concentra-se na figura do Comendador Antônio Braga – pai de Josefina, tio
e sogro de Jaime Favais, por conseguinte avô de Clotilde. O português,
extremamente respeitado na sociedade como um comerciante seguro, um pai de
família dedicado e digno e homem público merecedor de reverências, vê-se
envolvido num torvelinho vexatório: o genro e sobrinho, Jaime Favais, apontado
como mandante e assassino no crime que vitimou o amante de sua filha. Um
impasse se estabelece quando o chefe de Polícia confronta-se com uma prova
extremamente comprometedora para a família Favais: uma carta de Josefina – na
realidade forjada por Jaime Favais ao se passar pela esposa, utilizada como isca
para atrair Leandro Dantas às capoeiras do Engenho Suaçuna em Jaboatão com
83
intuito de assassiná-lo. A missiva, encontrada no bolso do colete do corpo putrefato
e insepulto denunciado pelos corvos, é estrategicamente guardada pela autoridade,
porém não com objetivos de investigação ou ganas de justiça:
O capitalista e o chefe de Polícia conheciam-se de há muito; encontravam-se sempre na sociedade e entretinham-se entre si essas relações de conveniência e de etiqueta, que costumam manter pessoas bem educadas e de elevada posição social. Não eram propriamente amigos, mas havia entre eles mais ou menos alguma estima, mais ou menos alguma simpatia. No velho Comendador talvez questão de hábito ou de temperamento, que o fazia olhar para todo Magistrado como para um homem honrado e justiceiro: na autoridade, defeito ingênito e pressentimento interesseiro, que fazem com que se olhe com respeito e com extraordinária simpatia para quem quer que tenha muito dinheiro e por isso possa, qualquer dia, prestar-nos algum favor.165
Além de mais uma demonstração do intrincado jogo de interesses do espírito
humano, o narrador aponta a sincera inteireza do caráter do comendador Antônio
Braga. Ao construir a áurea de retidão límpida e virtuosa do velho comendador, o
narrador prepara o enredo para a sua fraqueza: nem mesmo a mais valorosa força
moral é plena e ilimitada.
Restituindo-lhe aquela carta e destruindo assim a única prova de criminalidade do genro e da falta da filha, o chefe de Polícia, ao passo que lhe dava uma prova exuberante de amizade, segurava a gratidão do velho capitalista e habilitava-se a, em qualquer tempo, poder exigir dele o que lhe fosse conveniente ou necessário. Era o que se chama matar de uma cajadada dois coelhos. [...] Acabrunhado e agradecido, portanto, [o comendador Antônio Braga] recebeu a carta que o chefe de Polícia lhe restituiu, fazendo-a assim desaparecer das peças do processo, que aliás não devia ter, como realmente não teve, nem andamento nem conseqüências, e guardando-a lentamente no bolso saiu da Secretaria de Polícia pensativo e cheio de uma cólera surda e formidável. Nunca passara por uma vergonha igual e parecia-lhe que era sobre sua própria honradez que vinham refletir-se a infâmia da filha e o crime do genro.166
Apesar de toda humilhação que se abateu sobre o comendador Antônio
Braga, a personagem se cala e, de certa forma, é cúmplice de um crime que poderia
comprometer toda a sua família. O senso de justiça é debelado ante uma situação
capciosa aos seus. Embora o narrador ainda insista no abatimento e na integridade
– ofendida, é bem verdade, mas latente – do sogro de Jaime Favais – “[...] não é da
165 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 471. (grifos nossos). 166 Ibid., p. 473.
84
polícia que o senhor tem a temer: é de sua própria consciência”167. –, o fato é que a
medida da inteireza de caráter, honestidade e retidão do comendador Antônio Braga
foi atingida. A sua prostração ante o contexto em que se encontrava é também a
consciência de sua falha.
Postura semelhante o narrador d’A Emparedada da Rua Nova desenvolve na
montagem da figura de Tomé Cavalcanti, o senhor de engenho membro de
tradicionalíssima família pernambucana casado com Celeste. O Cavalcanti é
descrito como um homem bondoso – até mesmo ingênuo – e generoso. A desonra,
no seu caso, provém de seu consórcio com a dissoluta Celeste e a necessidade de
conservação das aparências com intuito de preservar o nome da família e a sua
própria dignidade. Ao descobrir-se traído e comprometido por um escândalo – a
mãe de Leandro Dantas, a ex-prostituta baiana Carolina Dantas, a Calu chantageia
Celeste com as cartas escritas ao amante –, Tomé Cavalcanti conforma-se com a
nódoa que atingiu o seu nome com o mau comportamento da esposa ao ceder à
chantagem da mãe do amásio de sua mulher.
Da mesma forma que a classe alta da sociedade recifense era encravada de
resquícios de pobrezas – escravos, pobres comerciantes e estrangeiros, etc. – o
movimento contrário também acontecia: a classe mais baixa em termos de status e
poder financeiro também era visitada frequentemente pelos distintos senhores e
senhoras da high society pernambucana, mostrando assim uma diluição de limites e
uma fronteira tênue entre as duas esferas. Ao mostrar os logradouros da cidade
habitados pelos mais diferentes tipos, é como se o narrador mostrasse que as
convivências ultrapassavam os limites dos espaços geográficos, mas entrelaçavam-
se em vinculações de interesses de ambas as partes. Aqui reside mais uma
discrepância do modelo desenvolvido n’A Emparedada da Rua Nova frente aos
modelões europeus que tendiam a representar uma dicotomia marcante em suas
obras: a representação dos homens e das mulheres pobres como criaturas boas,
injustiçadas pela vida, amarguradas e que, geralmente, ao final são contemplados
também com o estabelecimento uma confortável situação financeira, com uma
ressalva de que o dinheiro não será deturpador das suas índoles, mas uma maneira
de ressaltar suas virtudes por meio de caridades e o estabelecimento da justiça aos
que necessitam. Enquanto, por outro lado, as criaturas inicialmente endinheiradas
167 Ibid., p. 475.
85
quase sempre apresentavam falhas graves de caráter, ganância desmedida e
desonestidade. No romance de Carneiro Vilella, definitivamente a medida – ou
antes: a desmedida – de homens e mulheres não é atrelada às suas posses, mas
aos seus interesses em contextos específicos de ação.
O Hermínio – Zarolho ou Dr. Pigarro – é uma típica personagem da zona de
miséria do enredo. O Zarolho é o principal companheiro de Jaime Favais no cálculo
e na execução do crime de assassinato de Leandro Dantas. Ambos são movidos
por interesses que lhe favoreçam de alguma forma: do lado do comerciante, a
vingança de uma traição realizada com a segurança da experiência de uma pessoa
familiarizada com o universo do crime; do lado do Hermínio, dinheiro e o
estabelecimento de relações de confiança com quem lhe poderia ser bastante útil
em outras situações de necessidade que lhe surgissem.
É sintomática a passagem em que os dois – o comendador Jaime Favais e o
Zarolho – reconhecem-se como pares equivalentes, como iguais mesmo, a despeito
do abismo social e financeiro demarcado entre eles, portanto conscientes de suas
semelhanças e de suas diferenças. A narração é extremamente representativa do
espírito que permeia essa questão bastante presente e recorrente na obra de
Carneiro Vilella. Observe-se o diálogo que se trava dentro do carro enquanto os
dois – Jaime Favais e o Hermínio – se dirigem ao local do crime ocorrido em
Jaboatão para presenciar a exumação do corpo encontrado em terras do Engenho
Suaçuna:
- [...] Sr. Hermínio, eu não sou homem que se arrependa do que faz. O que fiz, está feito, e se fosse mister tornar a fazê-lo, fá-lo-ia outra vez! - O Zarolho estava boquiaberto. Olhava-o de frente e – caso admirável e que provava o quanto era grande o seu entusiasmo ou a sua confiança – sem meter os olhos um pelo outro. Quase o abraça. - Eu também sou assim! – concordou ele com toda a franqueza e expansão – Nós nascemos um para o outro, comendador! À (sic) mim só o que me falta é dinheiro. O comendador não pode deixar de sorrir ante aquela expansão extemporânea. O Hermínio continuou: - E a V. Sa. Só lhe falta uma cousa. - Que é? - O querer. Ah! Que se o comendador fosse dos nossos!... E insensivelmente estendeu a mão ossuda, e deixou-a cair familiarmente sobre o ombro do negociante. Jaime estremeceu sem o querer talvez, e arredou-se lestamente como a repelir, cheio de repugnância, aquela familiaridade por demais reles e grosseira. Ao mesmo tempo cravava no imundo companheiro um olhar severo e, medindo-o de alto a baixo, fazia-o lembrar-se de quem era e da distância social que os separava. O Hermínio ia a encolher-se todo, tão avesado estava aos hábitos hipócritas da humanidade e da pequenez: atravessou-lhe, porém, o espírito um
86
pensamento, rápido como o relâmpago, e verdadeiro como a luz – Orgulhoso! – murmurou-lhe a consciência – e pensar que estás nas minhas mãos e que posso perder-te de vez!...168
A clarividência resultante deste diálogo e destas ações é extremamente
límpida. Vale a conferência do trecho na íntegra para a plena percepção da
construção desenvolvida pelo narrador d’A Emparedada da Rua Nova:
[O Zarolho] Erigiu, portanto, o corpo como quem se resolve a aceitar a luta desesperada e, sustentando de frente o olhar severo do negociante ao mesmo tempo que lhe traspassava a alma com a lâmina fria de um riso cheio de ironia e de escárnio, fez-lhe por sua vez compreender que, se a posição social separa e abre entre alguns homens largo abismo, ações segredos existem que nivelam as condições mais heterogêneas e amarram aqueles indivíduos num só amplexo e com laços de um interesse comum: o crime por exemplo.O comendador compreendeu tudo isto. Era tão insistente, tão pertinaz, tão agressivo e verdadeiro o olhar do Zarolho, que o negociante não o pôde suportar por muito tempo. Abaixou a vista, pois; mas não querendo dar-se por vencido, nem estabelecer uma discussão que, além de intempestiva, seria perigosíssima e de péssimos efeitos, fingiu-se alheio à cólera surda e aos sentimentos manifestados pelo companheiro e, no tom mais natural e mais familiar deste mundo, continuou a conversar: - Deixemos isto por ora e tratemos de cousas que mais nos interessam. Diga-me cá: que pensa você sobre as diligências ordenadas pelo chefe de polícia? O Zarolho sorriu-se com toda a finura. Compreendeu que ganhara uma vitória, mas não quis abusar da posição. Respondeu, portanto, como também se nada tivesse havido.169
Outro momento extremamente representativo da acepção que o narrador
emprega à natureza humana, independente de posição social, acontece quando o
Jeréba170 encontra os matutos que participavam da cena de exumação do corpo
encontrado nas capoeiras do Engenho Suaçuna. A construção desenvolvida n’A
Emparedada da Rua Nova sugere o estabelecimento de uma medida humana –
atrelada em seus diferentes contextos a situações e vivências da personagem no
seu meio, porém não determinada por fatores sociais, financeiros, raciais ou de
gênero, etc.. Portanto os sentimentos são manifestados pelos mais diferentes tipos
das mais distintas pessoas: vaidades, luxúrias, invejas, amores, paixões, ganâncias,
vergonhas, falhas, orgulhos, alegrias sejam homens, mulheres, clérigos, ricos,
pobres, urbanos, rurais, magistrados, comerciantes, gatunos, prostitutas,
168 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 123. 169 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 123-124. (grifos nossos). 170 Mais adiante será devidamente apresentada e analisada a personagem Jeréba.
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vagabundos, estudantes, velhos e jovens. Dessa maneira, o narrador despe uma
faceta da natureza humana e desobriga a visão arquetípica de suas personagens.
Entenda-se com a exemplificação da referida passagem. A cena inicia-se com a
dispersão de uma multidão que acompanhara a exumação do cadáver de Suaçuna e
os matutos que desenterraram o corpo preparavam para enterrá-lo novamente na
cova quando o Jeréba – que acompanhara o acontecimento como expectador
passivo – tenta iniciar uma investigação própria mais detalhada.
Agarraram então o cadáver, um pela cabeça e o outro pelos pés, que tinham ficado calçados, e fizeram um pequeno balanço para jogarem-no na cova. O Jeréba, porém, adiantou-se rapidamente. - Fazem-me um favor? – pediu ele com interesse. Os homens cessaram o movimento. - Que é? – perguntaram de mau modo. - Demorem-se um pouquinho, enquanto eu examino este corpo com mais minuciosidade? - Ora, meu senhor... está um fedor desesperado... e nós não podemos mais suportá-lo. E, voltando-se para o companheiro, o que assim respondia concluiu cheio de impaciência e de mau humor: - Vamos logo, Totonho! Bota esse diabo na cova. - Esperem! – bradou o Jeréba, indignando-se – seja mais caridosos e humanos! Larguem esse corpo por alguns instantes e vocês não se hão-de arrepender. O Jeréba já conhecia perfeitamente a índole, a educação e o gênio do nosso povo, principalmente daquela qualidade de gente com que estava tratando nesse momento. Sabia que os matutos, em regra; altivos e insolentes para com os pequenos e os desconhecidos, são humildes, submissos, rasteiros com os grandes ou simplesmente com quem julgam tal. Assumiu, portanto, um ar de importância, e medindo o trabalhador de alto a baixo deu um passo para ele: - Se eu não pudesse dar ordens, não lhas dava! Larguem imediatamente este corpo... já... - Mas... - Vamos, depressa!... – continuou ele franzindo as sobrancelhas e batendo impacientemente com a chibatinha nas botas. Se o não fizerem já, apito para chamarem a minha gente e mando-os meter a ambos na cadeia. Os dois trabalhadores entreolharam-se, como que se consultando. E vosmecê, quem é, que mal pergunto? – gaguejou um deles timidamente. - Sou... o chefe de polícia!... - Foi tão grande o abalo dos dois ignorantes trabalhadores, que o cadáver quase lhes cai das mãos e rola para a cova.171
A consciência dos efeitos da autoridade, do comportamento daquela gente –
que seria a de toda a gente, em última instância –, e a mudança de postura
assumida pelas duas partes, tanto pelo Jeréba quanto pelos matutos são
absolutamente nítidas. A passagem suscita traços cômicos ao expor as diversas
171 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 156-157. (grifos do autor).
88
máscaras assumidas por todos os atores sociais e expõe vaidades e falsidades que,
em grau maior ou menor, os seres humanos aplicam diante de seus interesses, de
seus medos e de suas dúvidas. Vale perceber a completa modificação ocorrida na
situação apresentada pelas palavras do narrador:
Os dois matutos depuseram delicadamente o corpo no chão e iam-se afastando. O Jeréba tirou do bolso os dois últimos charutos que possuía – e trouxera uma provisão – e deu-lhos generosamente: - Tomem: fumem isto para entreter o tempo e poderem suportar essas exalações mefíticas. Os pobres trabalhadores aceitaram o presente, trêmulos de susto, mas ao mesmo tempo orgulhosos por uma tal distinção. Iam fumar charutos do chefe de polícia!172
No mais, A Emparedada da Rua Nova possui outras personagens que
poderiam ser enquadradas na definição de Umberto Eco de papeis vicários: “[...] isto
é, existem personagens de segundo plano cuja função só se explica se forem vistas
como variação de um dos caracteres principais, do qual “portam” por assim dizer
algumas características.”173 Sendo assim, essas personagens seriam uma espécie
de atores coadjuvantes, embora todos eles contribuam com sua chancela
complicadora ao enredo, tais como a mãe de Leandro Dantas – a ex-prostituta Calu
– e o seu companheiro, seu Antônio – também mais um português comerciante, mas
aqui um marinheiro que não obteve o mesmo sucesso comercial e social de seus
compatriotas em terras brasileiras –; João Paulo Favais, primeiro caixeiro e sobrinho
de Jaime Favais que pretende traçar trajetória análoga ao do tio: obter fortuna pelo
compadrio e matrimônio com a filha do comendador; os escravos presentes no
sobrado da Rua Nova, sobretudo a mucama de nome Joanna – aquela que seria a
testemunha responsável por relatar os dramas passados no sobrado dos Favais ao
narrador que, por sua vez, divulga o enredo aos seus leitores.
Uma personagem, entretanto, destaca-se de forma diferenciada, sobretudo
para a análise daqueles que se propõem a examinar mais detidamente A
Emparedada da Rua Nova. Trata-se do Jeréba.
Fortunato Dias é o nome de batismo do mancebo que é apresentado como
um rapaz que teria tudo para brilhar na sociedade pelo nascimento em uma boa
172 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 157. (grifos nossos). 173 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 155.
89
família, pela sorte, pelo brilhantismo de sua inteligência rara e pelas garantidas
recomendações no mercado que todos os fatores somados proporcionam ao
agraciado. No entanto, o Jeréba – fórmula de cumprimento utilizada pelo rapaz e
que acabou apelidando a si mesmo, “alcunha com a qual se conformava
alegremente”174 – é marcado por igual força de fatores que o fizeram um fracassado
ante a sociedade. Envolvido em um confuso episódio envolvendo comércio e
família, o rapaz ficou completamente abandonado e definitivamente desacreditado
para empregos dignos. Vivia pelo Recife lidando com todo tipo de gente, transitava
nos espetáculos do Teatro de Santa Isabel e nas casas de jogos da Rua de São
Pedro.
Trata-se de uma figura, portanto, bastante representativa dos
entrelaçamentos existentes entre características que seriam consideradas como
contrapostas ou inversas. Porém a peculiaridade dessa personagem não reside
apenas nessa característica, mas principalmente na sua importância para a
montagem estrutural d’A Emparedada da Rua Nova. O Jeréba permeia diversos
meios da trama, no entanto a sua ação não é ativamente decisiva para o enredo.
Exemplo disso é que as propostas de resumo da obra praticamente dispensam, sem
maiores prejuízos, as menções e referências à personagem. Apesar da aparente
dispensa, a narrativa sutilmente revela a absoluta importância e mesmo a
necessidade fundamental da figura do Jeréba no enredo: é por meio dele que se
acompanha momentos fundamentais da trama. Mais: é a personagem responsável
por guiar, apresentar e desvendar muitos dos segredos enroscados nas páginas do
romance.
Sem fugir à fórmula básica folhetinesca dos mistérios a serem elucidados e
das informações sigilosas que aguardam seus decifradores, o romance está repleto
de situações enigmáticas – para o leitor, inclusive, resultando em muitos
reconhecimentos autênticos, pela definição de Umberto Eco. No caso d’A
Emparedada da Rua Nova, não só há o apelo das situações truncadas de traições,
mentiras e turbulências familiares, mas ainda há situações de delitos criminais
graves: as primeiras frases da obra já informam aos leitores a existência de um
cadáver, encontrado em estado já adiantado de apodrecimento, portanto
irreconhecível em uma primeira análise, instaurando-se um mistério que mesmo ante
174 VILELA, op. cit., p. 87.
90
os primeiros esclarecimentos – se trataria do suicídio de um jovem estrangeiro –,
persiste na penumbra, convidando à investigação. Portanto, o romance agrega,
além das atraentes fórmulas do romance-folhetim, o magnetismo que compõem os
elementos do romance policial. E, em consonância com esta última característica, a
sua estrutura reclama a existência do papel do investigador. Esse espaço é
preenchido pelo Jeréba.
Encarregado de seguir o encalço do comendador Jaime Favais a pedido de
seu sobrinho, João Paulo Favais, o Jeréba percebe-se mais envolvido com a
pesquisa do que inicialmente supunha apenas um pedido de favor de um amigo
numa tentativa de conseguir algo para comer em troca. Desde o primeiro momento,
o narrador apresenta a personalidade do Jeréba como de uma pessoa bastante
digna, despida de preconceitos e que, apesar da permanente e difícil situação
financeira em que se encontrava, desviava-se de negócios ilícitos ou de pessoas
apontadas como gatunas e criminosas. Ao referir-se ao Zarolho em conversa com o
sobrinho do comendador, o rapaz acaba por se entregar também:
- E... que mais é ele? [Pergunta João Paulo Favais ao Jeréba]- Também é ladrão; é jogador; é estelionatário; assassino. - Misericórdia!... - Se eu estou te dizendo que ele é tudo neste mundo. - Mas se ele fosse tudo isto... - Se ainda não o foi ou não é, pode vir a sê-lo; eis o que eu quero dizer; o Hermínio é um homem capaz de tudo. - De onde o conheces? - Conheço-o... O rapaz abaixou insensivelmente a cabeça; uma súbita e incompreensível vermelhidão invadiu-lhe todo o rosto. Dir-se-ia que tinha pejo de continuar. Por fim, tendo o caixeiro reiterado a pergunta, ergueu de novo a cabeça e respondeu com resolução: - Conheço-o da casa de jogo do pátio de S. Pedro. - E tu jogas, Jeréba?- Às vezes, João; quando não tenho o que comer. O caixeiro lançou sobre o amigo um olhar incisivo e perscrutador. - Aposto que hoje estás num desses dias. - Adivinhaste – suspirou o rapaz e acrescentou logo baixando um pouco a voz – foi por isso que ter procurei. Ainda não almocei; se pudesse me emprestar alguns cobres...175
Assim, o narrador constrói a figura do Jeréba como uma espécie de um herói
às avessas: sem dinheiro, sem fortuna, vivendo de favores pelas ruas do Recife e
sem grandes destaques de personalidade que o coloquem como centro da ação,
175 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 82.
91
mas também como uma personagem destemida e dotada de grandes virtudes como
gratidão, senso de justiça, lealdade e mesmo elegância e beleza:
Vivia de pedir a um e a outro antigo companheiro ou a alguns amigos modernos e a título de empréstimo quantias que nunca restituía, mas que também nunca lhe cobravam. Davam-lhe o que podiam e de boa vontade, não só porque a mocidade é geralmente generosa como também porque o Jeréba nunca se recusava a qualquer serviço de que o encarregassem, nem deixava de fazer o favor que lhe pedissem. - Eu só tenho uma coisa boa comigo – dizia ele com convicção e seriedade – é não ser ingrato. E era verdade. Pelo amigo ou por quem o tivesse socorrido qualquer vez, era ele capaz de se atirar ao fogo. [...] Apesar da vida irregular, incerta, infeliz, quase sem casa, o Jeréba não era lambazão nem maltrapilho. Trajava com decência e asseio a roupa que lhe davam os camaradas e tinha essas maneiras distintas e elegantes que, uma vez aprendidas com a educação ou adquiridas com o traquejo social, nunca se perdem, nem mesmo com o contato da miséria. O homem que foi bem educado e é de raça e de família, mesmo sob os andrajos se revela.176
Um desses grandes amigos que o Jeréba adquire na vida é justamente
Leandro Dantas. Velhos conhecidos desde a infância nos bancos do colégio Vilar,
Leandro enxerga no rapaz mais que uma amizade: são quase irmãos. Jeréba é a
única pessoa que conhece toda a origem do rapaz baiano e mais: frequenta a casa
e se relaciona com a família – a mãe, Calu e Marocas, irmã de Leandro. Também é
ao Jeréba que o jovem sedutor revela seu intricado jogo de sedução e confidencia
sobre os desafios e as vitórias resultantes de suas conquistas.
Ao ser posto no encalce de Jaime Favais, o Jeréba desempenha o papel de
um guia no enredo, uma espécie de simulacro de um corifeu: aquele que será o
condutor nas descobertas dos mistérios e na busca por se fazer justiça aos
assassinos de seu amigo. As passagens que são alinhavadas pelo rapaz agregam
intensos momentos de excitação, expectativa e ansiedade: pequenos disfarces e
mentiras, corridas contra o tempo, enfrentamentos e perseguições, embates
corporais, suposições de mortes e ressurgimentos e revelações de segredos. Uma
das grandes jogadas realizadas pelo narrador d’A Emparedada da Rua Nova é
justamente a suspensão do enredo – uma dentre várias – quando o Jeréba
encontra-se em Jaboatão declarando-se sabedor de toda a verdadeira versão, o que
realmente era exato, e informando que tomaria as devidas providências para
denunciar o culpado, no caso Jaime Favais. Os comparsas do comendador,
176 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 86.
92
Hermínio e Bigode de Arame, induzem o Jeréba a uma festa popular da região na
qual em meio a bebidas e brigas pensam ter dado cabo à vida do rapaz. O leitor
pode se consternar com a passagem, pois sem a personagem que serve de
investigador na trama o fio da meada se perde junto com sua vida. Grande é a
surpresa e o entusiasmo provocado pelo narrador ao estabelecer uma reviravolta,
mais um dos lances teatrais – ou mesmo cinematográficos – com o ressurgimento
do Jeréba recuperado do atentado que lhe tentou lhe matar e orgulhosamente altivo
ante o assassino de Leandro Dantas.
Em mais uma discrepância dos modelos clássicos, o romance folhetinesco-
policial de Carneiro Vilella também destoa do padrão no que diz respeito à figura do
detetive, o investigador da trama. Ernest Mendel considera que
O ato de detectar toma tempo; portanto, os detetives ou são profissionais pagos ou gente de bem que vive de rendas. Os assalariados não se encaixam em qualquer uma dessas categorias; não tem tempo de lazer para detectar crimes, uma vez que o tempo que possuem pertence a seus patrões. O patrão, por sua vez, prefere que seus empregados produzam mais valia e não que encontrem quem matou quem.177
Relevando-se o apelo material/dialético – um limitador analítico – que Mendel
confere à sua análise, sua explicação diz respeito a um modelo bastante recorrente
nas propostas de romances com foco no enredo de crimes e investigações. É de
fácil identificação: “O verdadeiro herói do romance policial, portanto, tinha que ser
um brilhante investigador oriundo da classe alta e não um esforçado policial.”178 No
entanto, observe-se que a personagem Jeréba não se enquadra como um detetive
profissional tampouco vive de rendas, nem mesmo é assalariado. A princípio, é
certo que o Jeréba inicia a missão encarregado como um profissional: por dinheiro e
confiança em sua presteza e lealdade. Porém, ao perceber-se envolvido
pessoalmente com a situação, o contexto muda. Suas motivações passam a ser
outras: ao vê-se com um segredo tão comprometedor nas mãos, o mancebo
enxerga uma fresta para se fazer protagonista do caso como o mocinho justiceiro:
Via-se de repente transformado em herói de legenda, e ouvia já – tanto pode a fantasia – ecoando o seu nome de boca em boca, acompanhado por um cortejo de aplausos e de pontos de admiração.
177 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 124. 178 Ibid., p.36.
93
Qual é, com efeito, o moço que não se tenha deixado, pelo menos uma vez na vida, embalar um momento sequer pela idéia de tornar-se herói de uma ação grandiosa ou magnânima, ou mesmo de um feito qualquer de proporções mais modestas, porém que todavia chame e prenda a atenção pública? Quantas vezes mesmo, formando castelos no ar – ocupação essa que entretém durante tantas horas – não se tem tido desejos de salvar um afogado, de livrar alguma criança das chamas de um incêndio, para gozar depois do espetáculo comovente e entusiástico de um povo inteiro a nos aclamar ou de uma mãe a abraçar-nos os joelhos por entra as lágrimas do reconhecimento e as bênçãos da felicidade?179
Nota-se que mais uma vez o narrador expõe friamente os interesses da
condição humana. É certo que o Jeréba sofre o impacto de estar diante do cadáver
de um grande amigo, assassinado e anônimo, entregue aos urubus e a uma cova
indistinta em uma terra distante. Entretanto, mesmo ante essa situação, vislumbra-
se o interesse íntimo e particular de um ganho que se poderia resultar da sua
façanha. Mais adiante, após o retorno da personagem, quando se supunha morto,
ocorre mais uma variação de interesse por parte do Jeréba. O que antes lhe figurou
como um arroubo romântico, estabelece-se como um momento que requer frieza e a
racionalidade de quem se conforma com a injustiça e a impunidade, mas que ainda
lhe poderia ser extremamente útil. O Jeréba procura Jaime Favais, mas a sua
proposta é de negociador, ou mais nitidamente, na qualidade de chantagista. O
rapaz pede dinheiro pelo seu silêncio. O narrador demonstra a extrema
racionalidade do rapaz ao julgar estar diante da oportunidade de mudar de vida
definitivamente aproveitando-se de uma situação que, no fim das contas, ato de
heroísmo nenhum poderia modificar àquela altura: a morte consumada de seu
amigo. Em um diálogo repleto de jogos de ironias e de coerções o comendador
Jaime Favais e o Jeréba ajustam os negócios:
O Jeréba fez um pausa; atirou os cabelos para trás com um gesto que lhe era habitual e que havia adquirido na convivência do poeta Castro Alves, cofiou duas ou três vezes o bigode, e tomando uma posição completamente familiar, atirou às faces do negociante estas palavras de um desbragado cinismo: - Comendador, somos dois perfeitos tratantes e, por consequência, cartas na mesa e jogo franco! - É melhor, Sr. Dias. – concordou o negociante – deixemo-nos de subterfúgios e vamos diretamente ao que nos importa. Pelo que lhe ouvi, compreendo que se acha senhor dos fatos, que à primeira vista parecem criminosos e que me podem comprometer aos olhos da justiça e do comércio. - Exatamente.
179 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 161.
94
- E que, usando e abusando da posição em que, portanto, se acha, para comigo, quer tirar o maior proveito possível dessa situação. Não será verdade? - O Sr. Comendador acaba de repetir exatamente o mesmo que eu ia lhe dizer. Parece que estava lendo no meu pensamento. O Comendador não pôde deixar de sorrir palidamente daquele cinismo do Jeréba.- Dir-se-ia – continuou o rapaz com uma ironia pungente e insinuante – que V. Sa. Está habituado a fazer dessas transações. O negociante mordeu novamente os lábios e substituiu o sorriso por uma expressão de angústia e de seriedade. Decididamente o valdevinos abusava da situação e impunha sua força. - Vamos, portanto ao caso – declarou o Jeréba finalmente. Sou moço; tenho disposição para o trabalho, aptidões para o comércio, habilidade, inteligência e coragem... - Bem se vê! – murmurou o negociante tristemente.180
É como se a personagem exercesse o seu método de fazer justiça aliado aos
seus interesses. A essa altura do enredo, o comendador Jaime Favais chega a ser
retratado como uma figura digna de comiseração, esperando permanentemente
seus algozes – o Zarolho e o Bigode de Arame; o próprio sobrinho, João Paulo
Favais, agora o Jeréba que o aterrorizava com a lembrança da família de Leandro
Dantas, etc. É perceptível a flexibilidade da natureza humana quando o narrador
expõe as consciências – ou as verdades que cada um conta a si mesmo – para
justificar os acontecimentos. Jaime Favais, por exemplo, não considera a sua ação
como um delito (“os fatos que à primeira vista parecem criminosos”). Não há
verdades nem certo e errado, há versões e justificativas para cada ação.
A Emparedada da Rua Nova quebra muitas expectativas do que se poderia
esperar de um romance folhetim clássico. O conjunto de suas discrepâncias somam
para se aglutinar em uma total rejeição da chamada estrutura da consolação.
Também é um desvio dos modelos de romance policial clássicos já que
O romance policial é o império do final feliz – onde o criminoso é sempreapanhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e no final a legalidade, os valores, a sociedade burguesa sempre triunfam. É uma literatura reconfortante, socialmente integrante, apesar da preocupação com o crime, a violência e o assassinato.181
180 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 495. 181 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 80-81. (grifos nossos).
95
O teor naturalista/realista da obra descarta o traquejo do final feliz: a
sucessão de infortúnios não encontra paradeiro em um arremate consolativo. Não
há bons para se recompensarem nem maus a serem punidos. Há consequências de
acontecimentos e mesmo fins incertos, como o de Celeste Cavalcanti o qual “não
podemos adiantar por ora, porque faz parte de outro romance, que não será
propriamente continuação deste mas que com ele tem grandes pontos de contato e
relações muito íntimas”182. A problemática do final é jogada no colo do leitor. As
últimas páginas, mais do que resolvem, perturbam. As personagens que possuem
seus encaminhamentos finais nítidos servem para explicitar o desarranjo da vida que
o final da obra não soluciona.
A obra também é filha do romantismo. As mulheres em seus ataques de
nevroses, desmaios, convulsões e febres causados por perturbações emocionais,
embora marcadamente discrepantes das pálidas donzelas românticas, não são
poupadas dos arroubos fantasiosos e exagerados, elementos também requeridos
pela fórmula folhetinesca clássica juntamente com as famosas suspensões de
capítulos e a sensação de uma espécie de diálogo do narrador com o leitor
direcionando – e frequentemente modificando – o olhar e o acompanhamento das
passagens, fornecendo a falsa impressão de que a narrativa está lhe saciando e
dirimindo as agonias quando na realidade está lhe excitando a curiosidade com
interrupções estratégicas e cortes precisos. É comum construções como “Voltemos
atrás algumas horas. O leitor há-de estar lembrado de que...”183; “Enquanto o
negociante e o Zarolho correm a caminho de Jaboatão, seguidos de perto pelo
emissário do caixeiro, reatemos nós a nossa narração, voltando de novo ao ponto
em que deixamos o avô e a neta”184; “Eis o Comendador a rodar de novo pela
estrada de Jaboatão”185. A este recurso, bastante difundido e utilizado nas obras
produzidas no século XIX, é dado o nome de metalepse quando em narrações
heterodiegéticas – nas quais o narrador não é uma de suas personagens – o
narrador “emerge brutalmente e/ou convida o leitor a fazer o mesmo.186” Trata-se de
uma exploração em grande intensidade das potencialidades de uma narração
heterodiegética centrada no narrador que
182 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 554. 183 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 78. 184 Ibid., p. 106. 185 Ibid., p.207. 186 REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 81.
96
pode controlar todo o saber (ele sabe mais que as personagens), sem limitações de profundidade externa ou interna, em todos os lugares e em todos os tempos, o que lhe permite flash-backs e antecipações certas. Fala-se dele com de um narrador onisciente, na medida em que sua visão pode ser ilimitada e que ela não está ligada à focalização através desta ou daquela personagem. Ele certamente pode assumir todas as funções do narrador. Esta combinação foi muito utilizada na tradição clássica e reaista e pelos autores do romance-folhetim.187
O tempo n’A Emparedada da Rua Nova não é linear e retilíneo, mas encontra-
se em disposição de idas e voltas em diversas situações: meses para explicar como
determinadas personagens se conheceram, dias para explicitar determinadas
situações, anos para buscar as origens e as formações de indivíduos e famílias.
Constrói-se, assim, ante o recurso do flashback e das flutuações temáticas. Os
espaços, consequentemente, também sofrem esse fenômeno. Embora o ponto de
referência principal seja o Recife, sobretudo o sobrado da Rua Nova, os lugares
dimensionam-se em consonância com as variações de tempo – Jaboatão, Monteiro,
as capoeiras do Engenho Suaçuna, o Teatro de Santa Isabel, a Passagem da
Madalena, o Beco das Barreiras, etc. Esses efeitos construtivos, portanto,
classificam-se inteiramente no chamado romance centrífugo188 e são bastante
divergentes das fórmulas clássicas tanto do romance folhetim tradicional quanto do
romance policial que “em grande escala, marcam a volta da famosa regra de
Aristóteles em relação ao drama: unidade de tempo, lugar e ação”189. Além disso, o
nível de profundidade na apresentação das personagens também é discrepante nos
modelos tradicionais. Com isso, não se afirma que as figuras construídas por
Carneiro Vilella possuam extrema complexidade, porém apresentam estratos e
nuances que vão além das personagens planificadas e unidimensionais dos
romances populares de maneira geral.
Outra fórmula repetida ao longo de toda a obra é o dos constantes
enfrentamentos de situações conflituosas, revelações de segredos e
reconhecimentos autênticos – nos quais o leitor também participa da revelação – e
produzidos – aqueles que o leitor já possui conhecimento antes de serem revelados
187 Ibid., p. 75-76. 188 Conferir página 17 desta dissertação. 189 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 50.
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a determinadas personagens. O que figura-se irremediavelmente em uma estratégia
de estrutura sinusoidal: um labirinto de nós e desatamentos para se deparar mais
adiante com outras tenções e novos desenlaces, mas que no caso d’A Emparedada
da Rua Nova não finaliza-se com a diluição de todos os laços, já observou-se. O
que é mais: ao contrário de folhetins clássicos, não há informações soltas e aqui
essa tendência remete à estrutura do romance policial. Joga-se uma informação
para apanhá-la capítulos depois, o leitor deve seguir o rastro do fio de um novelo
embaraçado. Mais do que o crime em si, a disposição da obra privilegia os mistérios
e suas estratégias de revelações. Em diálogo com a esquematização trazida por
Ernest Mendel:
Em “As Vinte Regras do Romance Policial” (The American Magazine,setembro de 1928), S. S. Van Dine também salienta o que chama de “jogar limpo” com o leitor, uma das regras fundamentais do bom autor de um romance policial. “A luta de intelectos”, em outras palavras, se desenrola simultaneamente em dois níveis: entre o grande detetive e o criminoso e entre o autor e o leitor. Nessas duas lutas, o mistério é a identidade do culpado para o qual tanto o detetive quanto o leitor devem ser conduzidos através de um sistemático exame de pistas. Entretanto, enquanto o herói do romance sempre sai vencedor, o leitor não deve de forma alguma suplantar o autor, pois desta forma a necessidade psicológica à qual o romance policial deveria corresponder não será mitigada: não haverá tensão, “suspense”, uma solução surpreendente ou uma catarse.190
A arte do romance policial é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos. As pistas devem estar todas presentes. Substituição secreta de um gêmeo idêntico por outro não é permitida, ou passagens secretas para escapar de quartos fechados por dentro. O leitor deve se surpreender ao saber a identidade do assassino e isto sem transgredir o “jogo limpo”. Surpreender sem enganar é demonstrar maestria do gênero191.
É Ernest Mendel ainda que evoca a configuração do crime como um esboço
de quebra-cabeças a ser montado de maneira que a trama esteja assentada na
lógica de uma construção contínua com objetivos definidos: a elucidação dos
mistérios. Tal é a exemplificação do modelo apresentado que em muitos casos o
crime em si acontece anteriormente ao início da trama – no caso d’A Emparedada
da Rua Nova ocorre justamente isso, no entanto, a obra de Carneiro Vilella
desestrutura a linearidade do tempo de forma que o crime perpasse o enredo do
início ao fim, inclusive (re)memorando e revelando o momento propriamente dito do
delito. Por isso, “os ocasionais crimes posteriores, cometidos à medida que a trama
190 Ou agnições autênticas na definição de Umberto Eco. 191 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 37-38.
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se desenrola, são quase causais, com o propósito de estimular a investigação do
primeiro assassinato ou para fornecer pistas suplementares para a identificação do
assassino”192. Trata-se de uma espécie de crime assessório, que servem como
complementos ou coadjuvantes ao crime principal ou original.
Pode-se, portanto, utilizar-se de uma esquematização bastante direta para
planificar o perfil que confere as características tão particulares – “ingredientes
formais, estruturais e temáticos” – d’A Emparedada da Rua Nova de maneira muito
simples:
Primeiro, a forma do romance-folhetim; segundo, a estrutura do romance policial; terceiro, a figura de um sedutor compulsivo (Leandro Dantas), ao modo de Don Juan; quarto: crimes, traições maritais e descrições minuciosas do cotidiano social, político, religioso, e dos preconceitos sociais, linguísticos e de raça do seu tempo.193
É certo, portanto, que a obra mais conhecida de Carneiro Vilella encerra
padrões, modelos e mesmo fórmulas sedimentadas, mas a quebra de paradigmas e
a aglutinação de fatores de divergência das medidas oficiais conferem um teor
bastante peculiar e curioso à construção narrativa, sem perder o fôlego ao suscitar o
interesse de seus leitores e a curiosidade acerca de sua temática, além do
magnetismo de sua construção e a propriedade das suas personagens.
192 Ibid., p. 37-38. 193 VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 13.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao examinar A Emparedada da Rua Nova, percebe-se o quanto a obra
encerra temáticas passíveis de potenciais reflexões. Carneiro Vilella viabilizou a
construção de um romance que abriga desvios internos de estrutura, de
personagens presumidamente arquetípicas e do próprio enredo, ao mesmo tempo
em que espelha e reproduz as críticas sociais, as correntes predominantes na
segunda metade do século XIX e a ironia como forma de manifestação artística.
Esses fatores representam várias esferas de importâncias gravitando em um
mesmo espaço. O desvio na rota arquetípica da construção das personagens
remonta à uma reação aos modelos tradicionais do modelo literário do folhetim
dentro do próprio romance, bem como a ausência de um desfecho do “final feliz”
desestabilizando o roteiro folhetinesco provoca uma discrepância latente: algumas
das principais características que distinguem as tramas de folhetim são
abandonadas. Mais: além de recusar tais fórmulas, o narrador põe à prova as bases
da construção, negando-as, executando justamente os elementos opostos que a
receita tradicional prescreve.
A Emparedada da Rua Nova figura, portanto, como uma peculiar
manifestação da literatura brasileira: folhetim em tudo, na forma de veiculação e no
gênero, congrega trama policialesca em um romance de costumes que dialoga com
notícias de jornais pernambucanos que descreviam crimes sem resolução,
acontecimentos com desfecho incerto e cercados de uma atmosfera de mistério e
desconfianças. Em uma obra que evoca a si mesma o caráter de relato – ainda que
um conhecimento adquirido com distanciamento temporal e geográfico pronunciado
–, o narrador se inscreve em um ardiloso jogo de claro-escuro. O cientificismo,
então presente, sobrenadando os debates do período, encobre um areal pantanoso
de incertezas. A transcrição das matérias dos jornais da província com data e
mesmo dia da semana correspondentes, com noticiários de entradas e saídas de
navios no Porto do Recife sugerem o estabelecimento de provas na veracidade do
relato. No entanto, a contraprova dessas certezas estabelece-se na própria ficção:
na consciência de que as realidades existentes não são prerrogativas de
verossimilhanças, no entendimento de que mesmo os relatos, as provas, as
transcrições de determinados trechos e matérias de jornais e mesmo o narrador não
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são mais do que elementos criados em um mesmo sistema, portanto planificados em
um mesmo projeto, servindo ao mesmo fim: a construção ficcional – é preciso
ressaltar esse caráter ainda mais em casos como o do romance de Carneiro Vilella –
de uma obra literária.
Também por conter elementos ligados às tramas policiais tradicionais e
também por desviar de outros tantos traços desse gênero, A Emparedada da Rua
Nova dialoga com mais um ponto pouco usual no romance brasileiro.
Provavelmente pelo desvelo em organizar um enredo que construa uma lógica
investigativa pautado numa linha de raciocínio vestigial, o narrador não se permitiu
arroubos episódicos: cada um de seus oitenta capítulos encerra uma peça
fundamental para o entendimento da obra. Ainda mais: cada um de seus oitenta
capítulos é constituído por uma porção de elementos – caminhos, reminiscências,
conhecimentos, objetos, relações e uma apresentação de perfis e sentimentos – que
são extremamente fundamentais para a continuidade do enredo. Não há trechos
suprimíveis, assim como não há elementos-surpresa, pois as peças estão todas
dispostas em um jogo franco e aberto. O leitor é convidado para alinhavar os
retalhos da trama, coser as informações fornecidas em um capítulo para serem
dispostas dezenas e centenas de páginas depois. Nada n’A Emparedada da Rua
Nova flutua, o encadeamento interpela-se pelas páginas, ainda que circunscrito em
uma estrutura não linear. É como um imã nuclear que ao final, após atrair e
acumular informações suficientes, implode desnudando a complexa rede
esquemática traçada desde a primeira linha do romance pelo narrador.
Possivelmente, o narrador encontrou uma maneira de praticar com mais
desenvoltura a ironia, tanto na forma do romance como nas temáticas presentes na
obra. Ao refutar o happy ending e jogar no colo do leitor a problemática de uma
trama com o desfecho repleto de infortúnios e mesmo finais inconclusos, a obra
expõe a miséria da condição humana, as injustiças, a falência de uma sociedade
repleta de tradições fracassadas, hipócrita e egoísta. Expondo pressões que
acometem os mais diferentes tipos humanos – ricos, pobres, estrangeiros,
brasileiros, homens, mulheres, velhos e moças, a despeito de condições sociais,
financeiras e culturais, apesar da influência cientificista – é como se o narrador
tivesse a oportunidade de despir a todos ante o mesmo espelho das grandes e das
pequenas misérias humanas que permeiam a vida de toda a sociedade, a
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reafirmação de uma espécie de flagelo da espécie, inerente à condição da
existência.
A fundamental questão colhida ante a análise estrutural da forma folhetinesca
e não folhetinesca n’A Emparedada da Rua Nova diz respeito ao balanço de
ingredientes utilizados na obra para compor uma narrativa que ao mesmo tempo
remete e destoa da tradição dos folhetins e da tradição dos romances policiais
clássicos, divergindo e remetendo, sensivelmente, ao espírito do seu tempo:
cientificista e determinista, sobretudo. Todos esses fatores fazem d’A Emparedada
da Rua Nova de Carneiro Vilella uma trama folhetinesca com elementos policiais
que não se prendeu apenas a modelos pré-estabelecidos, utilizando-se e
enveredando-se por outras possibilidades que vão além de fórmulas prontas.
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