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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO MESTRADO EM LETRAS – TEORIA DA LITERATURA MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA ALÉM DAS FÓRMULAS: Um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A Emparedada da Rua Nova. Recife 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO MESTRADO EM LETRAS – TEORIA DA LITERATURA

MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA

ALÉM DAS FÓRMULAS:Um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A

Emparedada da Rua Nova.

Recife2015

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MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA

ALÉM DAS FÓRMULAS:Um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A

Emparedada da Rua Nova.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco – PPGL/UFPE, como pré-requisito para obtenção do grau de Mestre em Teoria da Literatura sob orientação do Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira.

Recife2015

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria Valéria Baltar de Abreu Vasconcelos, CRB4 439

S586a Silva, Mirella Priscila Izídio da

Além das fórmulas: um estudo da estrutura folhetinesca e não folhetinesca no romance A Emparedada da Rua Nova / Mirella Priscila Izídio da Silva. - Recife: O Autor, 2015.

107 f.

Orientador: Anco Márcio Tenório Vieira.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de Artes e Comunicação. Letras, 2015.

Inclui referências.

1. Literatura brasileira. 2. Crítica textual. 3. Folhetins brasileiros. 4. Literatura - História e crítica - Teoria, etc. I. Vieira, Anco Márcio Tenório (Orientador). II.Titulo.

809 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2015-185)

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MIRELLA PRISCILA IZÍDIO DA SILVA

ALÉM DAS FÓRMULAS: Um Estudo da Estrutura Folhetinesca e Não Folhetinesca no Romance A Emparedada da Rua Nova

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para a obtenção do Grau de Mestre em TEORIA DA LITERATURA, em 27/8/2015.

DISSERTAÇÃO APROVADA PELA BANCA EXAMINADORA:

__________________________________ Prof. Dr. Anco Márcio Tenório Vieira

Orientador – LETRAS - UFPE

__________________________________ Prof. Dr. Antony Cardoso Bezerra

LETRAS - UFPE

__________________________________ Prof. Dr. André de Sena Wanderley

LETRAS - UFPE

Recife – PE 2015

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À memória do escritor Vilella.

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AGRADECIMENTOS

Ao professor Anco Márcio Tenório Vieira, pela recepção no Programa de Pós-

Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco, pela

orientação, pela compreensão e pela amizade.

Aos professores do PPGL pela vivência, pela troca de experiências dentro e

fora das salas de aula, pelos exemplos. A Lourival Holanda, a Lucila Nogueira e a

Ricardo Postal pela convivência e pelos desafios.

Ao professor Antony Cardoso Bezerra pela inspiração, pela confiança, pelo

comprometimento, pelo carinho e pela atenção de sempre.

Ao professor André de Sena pela presença na pré-banca, pela contribuição

valiosa, pela gentileza e vontade de ajudar.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

pelo auxílio financeiro importante para a execução material do curso.

Aos servidores do PPGL pela solicitude e presteza. A Jozaías Ferreira dos

Santos, Joza, e Diva pelo atendimento afetuoso.

Ao PPGL pelo suporte, pela oportunidade e pela ajuda material em duas

viagens para participação em eventos na área, com destino a Fortaleza (CE) e a

Uberlândia (MG), atividades importantes para a circulação de saberes e

compartilhamento de conhecimentos.

Aos amigos do mestrado, pela leveza e pela alegria. A Érika Albuquerque, a

Ingrid Rodrigues, a Vinicius Gomes, a Hudson Silva, a Thiago Pininga, a Joanita

Baú, a Fernando Ivo, a Suelany Mascena, a Thiago da Câmara Figueredo, a Patrícia

Tenório pelo companheirismo.

Aos amigos presentes, ainda que ausentes: Mariana Rocha, Gustavo Guerra

e Zaira Mello. Aos amigos que são presentes da vida: Thiago Nunes, Max Hainn,

Mayara Sá, Eduardo Aleixo, Débora Nascimento, Stênio Lima, Dyelle, Odomiro

Fonseca e Tito Souza.

Aos meus pais, Marta Maria da Silva e Osglay Izídio da Silva.

A Diego Carvalho, por ser descanso na loucura. Por ser tanto. Por ser antes,

durante e depois. Por ser a força e o afeto diários. Por ser, apenas.

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RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal analisar a estrutura do romance A

Emparedada da Rua Nova de Joaquim Maria Carneiro Vilella. Trata-se de uma

reflexão sobre uma construção narrativa que agrega a fórmula do gênero

folhetinesco com elementos de uma trama policial, ao passo em que foge de

algumas das principais fórmulas tradicionais na execução do enredo, na construção

das personagens e no desenvolvimento da trama. Para apoiar e contextualizar a

pretendida análise, foram abordados os aspectos teóricos do gênero romance e

elaborado um panorama histórico-social do folhetim no Brasil, além de situar

historicamente e ideologicamente o tempo e o espaço em que foi produzida a obra

mais conhecida de Carneiro Vilella.

Palavras-chave: A Emparedada da Rua Nova. Folhetim. Teoria do Romance.

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ABSTRACT

This study is meant to examine the structure of the novel A Emparedada da Rua

Nova Joaquim Maria Carneiro Vilella Street. It is a reflection on a narrative

construction that adds the formula of folhetinesco genre with elements of a police

plot, while they run away from some of the main traditional formulas in the execution

of the plot, the construction of characters and plot development. To support and

contextualize the analysis, the theoretical aspects of the novel genre and produced a

socio-historical panorama of the serial were addressed in Brazil, in addition to situate

historically and ideologically the time and the space where it was produced the best

known work of Carneiro Vilella .

Key-words: A Emparedada da Rua Nova. Folhetim. Novel Theory.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8

2 SOBRE ROMANCES – FORMAÇÕES, DIFUSÕES E FIRMAÇÕES ............. 11

2.1 A forma desenformada – O romance ......................................................... 11

2.2 As fórmulas da sedução – O folhetim ........................................................ 19

2.3 Episódio de hoje: o folhetim no Brasil ....................................................... 32

3 UM OLHAR SOBRE O MOVIMENTO DE IDEIAS NO SEGUNDO REINADO.............................................................................................................. 37

3.1 Cenário social, filosófico e cultural do Império brasileiro na segunda metade dos Oitocentos ..................................................................................... 37

3.2 Escola do Recife: um bando de ideias novas ........................................... 47

3.3 Um agitador de ideias: breve perfil intelectual de Carneiro Vilella ......... 55

4 PASSEANDO NUMA VELHA RUA – ANÁLISE ESTRUTURAL D’AEMPAREDADA DA RUA NOVA ......................................................................... 62

4.1 Desmembrando a narrativa – A obra, a construção, os elementos ........ 67

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 99

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................... 102

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1 INTRODUÇÃO

Folhetins, de maneira geral, vêm sendo matéria de poucos estudos no campo

das artes literárias. O escritor Joaquim Maria Carneiro Vilella1 também2. Agregando

esses dois temas relativamente pouco analisados, esta pesquisa propõe se debruçar

sobre a obra mais famosa do autor pernambucano, A Emparedada da Rua Nova, e

refletir sobre as estratégias folhetinescas e – como o título do trabalho sugere – não

folhetinescas envolvidas na construção da trama.

A Emparedada da Rua Nova é um volumoso romance de costumes,

composto por 80 capítulos. Agrega duas partes e um extenso epílogo, escritos de

forma não linear. A produção encerra muitas facetas e potenciais temas a serem

debatidos entrevistos em suas mais de 500 páginas3. Aqui nesta dissertação, a

ideia é analisar mais detidamente a urdidura que rege as estratégias de

encadeamento de episódios, a construção das personagens, o desenvolvimento do

enredo. Para isso foi preciso entender alguns pontos externos à obra e, mais ainda,

foi necessário retalhar os elementos constituintes do romance.

O primeiro capítulo – Sobre romances: formações, difusões e firmações – tem

por objetivo situar teoricamente o terreno em que se irá pisar: o romance. Para isso

busca-se traçar um panorama histórico, social e cultural que possibilitou a sua

gênese, firmação e difusão, além de apontar as principais esferas constituintes do

gênero. A seção baseia-se em obras e autores que se dedicaram ao estudo do

romance em suas profundidades teóricas como A Teoria do Romance de Georg

Lukács e Anatomia da Crítica de Northrop Frye. Ainda neste primeiro capítulo, o

1 Neste trabalho o nome do autor será grafado tal qual a assinatura que ele mesmo firmava: Vilella com duas letras “l”. 2 No Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL-UFPE) constam duas dissertações cuja temática gravita acerca da obra de Carneiro Vilella: LIMA, Fátima Batista Maria de. Um olhar sobre a cidade n’A Emparedada da Rua Nova de Carneiro Vilella. Recife: UFPE, 2005. 122 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005 e MENDONÇA, Helena Maria Ramos de. O Don Juan da Rua Nova: um estudo-itinerário sobre A Emparedada da Rua Nova, de Joaquim Maria Carneiro Vilela. Recife: O autor, 2008. 110. P. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008. 3 Para esta dissertação foram consultadas de forma mais recorrente duas edições da obra. São elas: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3 ed. Recife: Coleção Recife, 1984 e VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013. A terceira edição conta com prefácio de Lucilo Varejão Filho e a quinta, a mais recente republicação da obra, é prefaciada por Anco Márcio Tenório Vieira.

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recorte da temática diminui seu foco e se detém especificamente na análise do

romance enquanto manifestação folhetinesca. Para isso é indispensável marcar a

diferença existente entre a forma de folhetim e o gênero folhetim: enquanto a

primeira está ligada ao veículo de publicação, a segunda diz respeito à organização

temática, formal e estrutural da trama, o que não necessariamente está implicado no

modo como a produção é difundida, se em números divididos em uma publicação

periódica ou enfeixada na totalidade de um livro. Curioso perceber que praticamente

toda a literatura produzida e reproduzida no Brasil passou por um formato

folhetinesco – aqui a forma de veiculação do escrito – embora sejam poucas as

obras reconhecidas no gênero do romance folhetim no país, pelo menos dentre as

que se notabilizaram em sua expressão e fôlego para chegar aos dias atuais. As

referências principais no tratamento do tema contam com a obra fundamental,

devido ao seu caráter panorâmico que percorre uma ampla visão da história do

gênero, que é Folhetim: Uma História, de Marlyse Meyer, embora, seja válido

ressaltar recorrentemente, sobretudo no que tange ao tema deste trabalho, o lapso

que a pesquisadora comete ao mencionar de forma muito ligeira a sua constatação

de que A Emparedada da Rua Nova de Carneiro Vilella seria o único título de

relevância no romance folhetim brasileiro e que trata-se de um romance de tema

regionalista, revelando o pouco cuidado que autora dedicou à produção

pernambucana. Ainda no estudo do folhetim, destacam-se duas obras importantes

na realização da análise das estruturas do enredo: O Super-homem de Massa e

Apocalípticos e Integrados, ambos de Umberto Eco, pesquisador que dedica

especial atenção aos produtos ditos populares, entre eles as publicações

folhetinescas. Também é necessário entender o comportamento de outro tipo de

romance para voltar o olhar para a obra de Carneiro Vilella: os enredos policiais.

Assim como os folhetins, as tramas policialescas também mobilizam fórmulas

próprias e bastante características na disposição da narrativa. Como principal

referência nesse aspecto, reconhece-se a análise sociológica do romance policial

realizada por Ernest Mandel em Delícias do Crime. Buscou-se, então, emparelhar

os dois tópicos – tramas folhetinescas e policialescas – em suas aproximações e

distanciações e, ainda, tende-se a encaminhar a reflexão geral para se ponderar os

contrapontos entre esses subgêneros com o grande gênero que é o romance, a

forma sem fôrma, mas que admite diferentes fórmulas.

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O segundo capítulo – Um olhar sobre o movimento de ideias no Segundo

Reinado – busca desenvolver o contexto que permita situar o tempo em que a obra

foi gerada, abarcando a época e as suas correntes hegemônicas, alguns debates e

temas que mais forneceram matéria para as altercações nos jornais, nos cafés, nas

tribunas e nos palanques. Esse tópico é preciso para que se possa compreender as

influências no objeto de análise, A Emparedada da Rua Nova. Como fruto de seu

tempo, o romance de Carneiro Vilella é regido e infectado por ideologias presentes

no meio em que se desenvolveu. O romance traz, marcadamente, a chancela dos

movimentos das ideias deterministas, o anticlericalismo, a crítica às instituições

tradicionais carcomidas pela hipocrisia, o cientificismo, as questões debatidas pela

Escola do Recife. Pode-se constatar essas esferas tanto na montagem do enredo,

nas suas estratégias de montagem do tempo e das personagens, como nas próprias

temáticas retratadas. As bases de referência deste capítulo estão apoiadas em

autores que se dedicaram a pensar sobre o momento histórico e as ramificações

específicas de raciocínios que a época produziu. Destacam-se os nomes de autores

como os de Vamireh Chacon com o seu Da Escola do Recife ao Código Civil, Ivan

Lins e a História do Positivismo no Brasil e Antônio Paim pelas obras O Apostolado

Positivista e a República e A Escola do Recife.

Por último, a terceira seção deste trabalho – Passeando numa velha rua –

análise estrutura d’A Emparedada da Rua Nova – lança-se à temática propriamente

intitulada desta pesquisa: a análise da estrutura folhetinesca e não folhetinesca do

romance A Emparedada da Rua Nova de Joaquim Maria Carneiro Vilella. A ideia é

dispor de uma referência teórica somada a contextualização do surgimento da obra

para esquadrinhar seus elementos narrativos, o alinhavar dos capítulos, o efeito de

suspensão do enrede na gênese do comportamento folhetinesco que, ao mesmo

tempo, foge de estruturas e arquétipos, conseguindo conciliar fórmulas prontas com

desvios de receitas consolidadas. Busca-se, portanto, a compreensão de uma rede

estrutural que confirma e desmente códigos do romance folhetim e do romance

policial, resultando, por isso, em um peculiar jogo de estratégias e efeitos narrativos.

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2 SOBRE ROMANCES – FORMAÇÕES, DIFUSÕES E FIRMAÇÕES

2.2 A forma desenformada – O romance

É possível reconhecer nas manifestações da arte literária a existência de

determinadas estruturas: fórmulas que se cristalizam e que se repetem, formas que

podem expressar percepções de diferentes conjunturas históricas, sociais, culturais.

A esses alinhamentos de organizações estruturais compreende-se a formação de

gêneros – desde as formas simples como o mito, a saga e o ditado4 até as notórias

construções genéricas da literatura ocidental como a epopeia, a tragédia e o

romance.

Dentre os exemplos referidos, o romance surge com singulares

características. Trata-se de um gênero de estruturas maleáveis, desprendido de

regras exclusivas e dispensado de obediências temáticas, o que configura, talvez, a

própria característica do romance: a forma desobrigada da fôrma, isenta de um

modelo único e padronizado. Referência nas reflexões sobre o tema, A Teoria do

Romance, obra do filósofo húngaro Georg Lukács, apresenta considerações

históricas que apontam o surgimento e a expansão do gênero no ocidente:

O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso: eis por que jamais seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o círculo cuja completude constitui a essência transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num mundo fechado. Inventamos a produtividade do espírito: eis por que, para nós, os arquétipos perderam inapelavelmente sua obviedade objetiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito da aproximação jamais inteiramente concluída. 5

Este movimento de expansão dos limites em variados sentidos – na ciência e

na consciência, nas culturas, nos questionamentos e também nas demarcações

geográficas – não cabe mais em organizações artísticas de realidades que encerram

mundos equilibrados, fechados e completos. A partir desse momento, aponta

4 Cf. JOLLES, André. Formas Simples. Tradução de Álvaro Cabral. Editora Cultrix: São Paulo, 1976. 5 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. p. 30.

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Lukács, o pensamento literário distancia-se mais de sua base mítica na qual as

respostas já guardam desde o princípio suas próprias perguntas. Agora as

configurações tendem apenas a tangenciar as esferas da completude sem jamais

tocá-las: a aflição da proximidade inalcançável, a totalidade perdida para sempre,

vislumbrada no passado harmônico por um presente eivado de prefixos de

proposições negativas: desequilibrado, incompleto, desarmônico. Desterrado o

campo produtivo de obras que contenham suas próprias perguntas e respostas, e os

representantes máximos desses gêneros seriam as epopeias e as tragédias,

manifesta-se uma diferente organização artística que corresponda aos sentimentos

e sensações emergentes: o romance. Na definição do pensador húngaro, “o

romance é a epopeia do mundo abandonado por deus”6.

O que esse enunciado expressa revela-se nos elementos componentes da

estrutura do gênero: as personagens do romance, as suas representações

temporais e as temáticas retratadas divergem sensivelmente das formas clássicas.

Reconhecido pelo surgimento – simbolicamente demarcado pelo ano de 1605, data

de publicação da obra Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes –,

difusão e consolidação em um período de importantes transformações na sociedade

ocidental desde o final da Idade Média como a formação e expansão de grandes

centros urbanos e comerciais, o estabelecimento de colônias ultramarinas, a

Reforma Protestante acelerando o processo de diminuição do poder da Igreja

Católica, os impactos que a imprensa começava a produzir, a assimilação e

propagação dos princípios Renascentistas – humanismo, antropocentrismo.

Posteriormente, também a apreensão dos preceitos Iluministas – cognitivismo,

individualismo, universalismo, o romance figura como mais um componente

configurador e configurado na / pela sociedade em que a classe burguesa ascende à

posição de hegemonia econômica e de referência cultural no Velho Mundo. Diante

desse contexto, o gênero literário que, por excelência, exprime as novas e volúveis

configurações das realidades tende a desconstruir o mundo que lhe antecedia. Por

isso, o romance apresentou-se com primazia em sua potencialidade irônica. Assim,

a ironia poderia ser apontada como um traço constante que se arvora na forma que

o romance organiza e expressa o mundo: contrastando o discurso com as palavras,

6 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 89.

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a estrutura com o raciocínio. A ironia é a subversão de sentidos que no romance

assume o desenvolvimento com a refração da linguagem.

Desprovidas de devaneios heroicos no sentido clássico do termo – a

magnanimidade dos sacrifícios individuais ou realização de atos extraordinários com

objetivos de defesa das coletividades – as personagens do romance são lançadas à

própria sorte. Não há destinos a serem cumpridos, não há referências protetoras,

não há piedade do tempo7, das forças da natureza ou dos deuses, não há panaceia.

Pela escassez ou mesmo falta de traços identificadores que constroem

particularidades das personagens com o seu meio – sua família, seu povo, sua

comunidade, sua nação – em relação às formas clássicas, o romance tende a se

voltar para as grandes inquietações individuais, aquelas que movem as relações

interpessoais, mas que não são vistas como elementos vinculadores comuns de

corpos sociais. Por esse caráter individual, o gênero desenvolve-se por tentativa de

abrangência de uma totalidade, tal como a epopeia, no entanto difere

substancialmente desta última devido à intencionalidade biográfica –

intencionalidade, ressalte-se, essencialmente estética através da narrativa, a

realização de escolhas necessárias para os efeitos do enredo – que o romance

busca alcançar, enquanto “o herói da epopeia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde

sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino

pessoal, mas o de uma comunidade”8. A partir desse parâmetro, o gênero encontra

alternativas para resolver por si mesmo a problemática do tempo e do enredo: “A

forma biográfica realiza, no romance, a superação da má infinitude”9. A desmedida

é a própria organização do romance:

A arte – em relação à vida – é sempre um “apesar de tudo”; a criação de formas é a mais profunda confirmação que se pode pensar da existência da dissonância. Mas em todas as outras formas, inclusive na epopeia, por razões agora já óbvias, essa afirmação é algo anterior à figuração, enquanto no romance ela é a própria forma.10

7 “No romance separam-se sentido e vida, e portanto essencial e temporal; quase se pode dizer que toda a ação interna do romance não passa de uma luta contra o poder do tempo”. LUKÁCS, Georg. ATeoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 129. 8 Ibid., p. 67. 9 Ibid., p. 83. 10 Ibid., p. 72. (grifo nosso).

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Assim, Lukács manifesta em seu raciocínio a medida da deferência que

o mundo literário deve ao mundo real. Os fatores empíricos que convergem à

composição de obras literárias apresentam-se de maneira muito suave em relação

ao exercício da interioridade narrativa. Por essas razões

Drama, lírica e épica – em qualquer hierarquia que sejam pensados – não são tese, antítese e síntese de um processo dialético, mas cada qual é uma espécie de configuração do mundo de qualidade totalmente heterogênea das demais.11

Por sua vez, a forma do romance – invariavelmente por vir, nunca alcançando

estabilidades – (re)cria-se em cada autor, em cada obra de diferentes autores e em

obras diferentes de um mesmo autor. Importante trazer à memória recorrentemente

quando se trata da obra de Georg Lukács, em especial ao tratar-se da Teoria do

Romance – pelo impacto, influência e abrangência que o estudo produziu no campo

das pesquisas literárias –, que por motivos evidentes a análise compreende a

contemplação debruçada em obras literárias produzidas até o século XIX – recorte

temporal especialmente valioso para a pesquisa desenvolvida neste trabalho. A

ponderação é válida para que as perspectivas posteriores não se sujeitem a planos

de observações anacrônicos.

A obra de Georg Lukács sugere que a desobrigação de um modelo formal

específico não isenta o romance de suas próprias constantes, menos ostensivas, é

notável, por isso também mais sutis e, recorrentemente, mais sofisticadas do que as

formas fixas. Trata-se de entendimentos e expressões altamente individuais, mas

que, ao passo que alinham-se com diferentes perspectivas, delineiam um conjunto

grande e variado de interpretações de realidades.

Ao observar os elementos em suas individualidades, é possível analisar mais

detidamente alguns dos tons que formam o gênero. As personagens do romance

espelham-se nos homens e mulheres de vidas comuns, isto é, seres que a princípio

não possuem a incumbência de feitos extraordinários. Desde a pedra fundamental,

o fidalgo Alonso Quijano, o Don Quijote, e, sobretudo a partir do século XIX, os

entes representados nas obras literárias romanescas estão em constantes

processos de desalinhamento com o mundo em que vivem. A medida, antes

11 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 135.

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equilibrada e moderada pelas realidades de vivências do contexto de produção da

épica clássica, é danificada irremediavelmente pelo movimento de expansão do

círculo que mantinha o corpo social trancado, a comunidade fechada. As

personagens do romance são registros de heróis simetricamente invertidos, são

marcadamente anti-heróis.

O estado de inversão que as personagens do romance encontram-se em

relação aos gêneros clássicos não deixam de carregar – e por isso mesmo, talvez,

de forma mais acentuada – os resíduos de representações e moldes que advém de

expressões míticas: greco-latinas e bíblicas. Trata-se dos arquétipos que

sobrenadam as obras do gênero – “[...] o simbolismo da Bíblia, e em menor

extensão a mitologia clássica, como uma gramática dos arquétipos literários”12. –

imbuídos de processos incessantes de intertextualidades. Ressalte-se que as

relações intertextuais não se reduzem a meras repetições de métodos de

substituição simbólicas, mas a um diálogo inesgotável entre elementos

marcadamente simbólicos que resultam em horizontes de interpretação específicos.

Northrop Frye nos fornece exemplos consistentes para o entendimento do raciocínio.

Podemos levantar um deles para efeito compreensivo e ilustrativo:

Nos rituais e mitos, a terra que produz o renascimento é geralmente uma figura feminina; e a morte e ressurreição, ou o desaparecimento e retirada, de figuras humanas na comédia romanesca, envolvem geralmente a heroína. O fato de a heroína realizar amiúde o desenlace cômico disfarçando-se de menino é bastante conhecido13.

Frye cita os casos de Hero em Muito Barulho por Nada, de Helena em Tudo

está bem quando termina bem, de Taíse em Péricles, príncipe de Tiro, de Fidele em

Cimbelino e de Hermione no Conto de Inverno, todas as referências recorrentes na

obra de um único autor, William Shakespeare. Expandindo a percepção, este

arquétipo – que remonta, em primeira instância, à Donzela de Orléans, Joana d’Arc

–, arvora-se pelas páginas da literatura ocidental personagens como Diadorim de

Grande Sertão: Veredas (1956) de João Guimarães Rosa. Ressalte-se que as

inscrições arquetípicas das obras literárias não se restringem às figuras

notadamente humanas, mas se estendem aos elementos constituintes dos enredos

responsáveis por imprimir distintas personalidades às interpretações possíveis como

12 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Editora Cultrix, 1973, p. 137. (grifo nosso). 13 Ibid., p. 182. (grifos nossos).

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animais – corujas, serpentes, pombas –, vegetais – maçãs, carvalhos, lírios –, cores

– branco, preto, vermelho –, criaturas imaginárias – cavalos alados, quimeras,

dragões – e, ainda, elementos da natureza – água, rochas, estrelas. Os rearranjos e

as desconstruções arquetípicas, portanto, movem-se no terreno das simbologias,

interrelacionando-se com outras constituições textuais constantemente. Esses

fenômenos – referências arquetípicas e, por conseguinte, construções de

intertextualidades – estão assentados nas mais diversas manifestações artísticas e,

especialmente na literatura, encontram um terreno inventivo e amplo no romance.

Quando Umberto Eco especula em torno da ideia de que o mundo ficcional é

parasitário do mundo real14 está apontando uma relação em que acontecimentos

quotidianos – culturais, políticos, econômicos, sociais, científicos – não são

suficientes para as composições artísticas. A despeito da competência narrativa

como um aspecto que beira traços inerentes ao homem desde as mais tenras

idades, mencionada por linguistas e narratólogos, a construção de uma narrativa

que se inscreve na sensibilidade literária é sutilmente diferenciada de uma

exposição de acontecimentos comum. O romance, nesse aspecto, inaugura na

dimensão de um grande gênero, o movimento de passagem que marca a

diferenciação dos enredos puramente fictícios – marcadamente as novelas de

cavalaria, “gênero literário de cujos despojos se alimenta e ao mesmo tempo

ironiza”15 – em direção ao reconhecimento ficcional:

Contra a ingenuidade suposta pelo fictício, alimentando-se da ilusão indiscriminadora de seu território quanto ao da verdade, o ficcional moderno se alimenta da ironia, do distanciamento, da constituição de uma complexidade que, sem afastar o leitor comum, não se lhe entrega como uma forma de ilusionismo.16

Numa sucessão de ocorrências dentro do campo literário, e estamos falando

mais detidamente do romance, as expectativas transfiguram-se, atingem outros

níveis de apreensões e percepções. Isso pode expressar o fenômeno em que os

paradigmas da realidade se cruzam com uma série de sentimentos – desejos,

14 Cf. ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 15 PIRES, Antônia Cristina de Alencar. Costa Lima e o Teorema do Controle Ficcional. Revista de Estudos de Literatura, Belo Horizonte, v.2, p.97-110, out.94. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/aletria/article/download/1103/1204>. Acesso em: 01 abr. 2013, p. 99. 16 LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p.58 apud PIRES, Ibid., p. 99. (grifos nossos).

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medos, esperanças, ansiedades, inseguranças – para a formação de um novo

horizonte de entendimento, ajustando as medidas do verossímil. Costa Lima explica

que o processo de construção de verossimilhança

(...) sempre resulta de um cálculo sobre a possibilidade de real contida pelo texto e sua afirmação depende menos da obra que do juízo exercido pelo destinatário. A obra por si não se descobre verossímil ou não. Este caráter lhe é concedido de acordo com o grau de redundância que contém.17

Umberto Eco simplifica: “[...] o verossímil nada mais é que a aderência a um

sistema de expectativas partilhado habitualmente com a audiência”18. Relembrando

mais uma vez Georg Lukács: “a ironia é a objetividade do romance”19, fator que

induz outro traço marcante do “grande e autêntico romance”20: a indução aos atos

reflexivos que podem levar a uma profunda melancolia e a um entrever de

acontecimentos possíveis, abertos à sucessão – sobretudo em um mundo que não

guarda mais as chaves absolutas de equilíbrio, os destinos encerrados e

determinados por forças sobre-humanas.

Habitualmente – aqui lançando mão de um exemplo propositalmente explícito

– os efeitos causados pelo jogo verossímil impactam pelos desvios lógicos ou

naturais que se encaminham para outros desfechos: o contentamento

experimentado pelos ouvintes e leitores da narrativa de Chapeuzinho Vermelho dá-

se, em grande parte, pela surpresa de encontrar a avó da personagem-título viva

após ser retirada da barriga do Lobo Mau. Ora, é de conhecimento geral que seja

pouco provável a chance – trata-se mesmo de uma ideia bastante descabida – de

uma pessoa restar com o corpo intacto após ser devorada por uma fera, que dirá

sobreviver dentro de corpos alheios. No entanto, os seguidores do enredo trocam a

incredulidade pela satisfação, a descrença severa pelo sentimento de reparação

justa. A disposição mental que encadeia o jogo verossímil compraz-se pelas

possibilidades de um mundo minimamente satisfatório.

17 LIMA, Luiz Costa. Estruturalismo e Teoria da Literatura: Introdução às problemáticas estética e sistêmica. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 56. (grifos nossos). 18 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 21. (grifos nossos) 19 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 93.20 Ibid., p. 86.

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18

Na trajetória que permeia a transição, surgimento e expansão de diferentes

gêneros literários, é importante perceber que a sutileza de uma exposição linear da

hegemonia das formas não possui caráter de uma disposição evolutiva. A força de

determinas expressões artísticas não é apenas reflexos especulares de seu tempo,

mas próprio elemento constitutivo e constituinte de sua época. Lembremos o

célebre enunciado do frankfurtiano Walter Benjamin ao comentar a postura que o

pesquisador deve tomar ao se deparar com as obras produzidas pelos homens – os

despojos chamados de bens culturais – em diferentes tempos baseada nas

orientações do historiador francês Fustel de Coulanges:

Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. [...] Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.21

Também para Lukács, e de forma mais explícita para Frye, a ideia de um

aperfeiçoamento dos gêneros literários que culminaria no romance encontra-se fora

de consideração. A história assume nesse contexto o papel de mais um fator de

criação artística e não de um medidor dos níveis de convergências em direção a

determinados objetivos. Em estudo que se detém mais demoradamente na obra de

Georg Lukács, José Marcos Mariani de Macedo revela o cuidado de entendimento

que o pesquisador deve reservar ao deparar-se com os escritos do pensador

húngaro:

É nesse sentido que se deve entender A teoria do romance como um ensaio histórico-filosófico, a um tempo encarregado da dedução dos gêneros literários e de sua base histórica, ou melhor, incumbido de deduzi-los pelo fato mesmo de inserir a história como um ingrediente constitutivo.22

Lukács sintetiza a colocação de cada gênero em sua preponderância

histórica:

21 BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: ROUANET, Sérgio Paulo. (Org.). Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 6. ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 254. 22 MACEDO, José Marcos Mariani de. Posfácio do tradutor. In: LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 189.

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[...] a grande épica é uma forma ligada à empiria do momento histórico, e toda tentativa de configurar o utópico como existente acaba apenas por destruir a forma sem criar realidade. O romance é a forma da época da perfeita pecaminosidade, nas palavras de Fichte, e terá de permanecer a forma dominante enquanto o mundo permanecer sob o jugo dessa constelação.23

Numa exposição abreviada e ligeira, perpassamos uma visão panorâmica

acerca do surgimento, formação e algumas características que assinalam e se

sobressaem na constituição do romance como gênero. Forma esta que popularizou-

se intensamente devido a algumas razões como sua constituição geralmente não

versificada, bem como determinados momentos propícios cultural e socialmente –

difusão do hábito da leitura individual, o interesse por temáticas que satisfizessem

determinados anseios, sociabilidade e proximidade de escritores e editores – e ainda

o desenvolvimento de suportes materiais e tecnológicos que facilitaram a

disseminação do livro pessoal, das edições de bolso, da imprensa e das publicações

seriadas: os folhetins.

2.2 As fórmulas da sedução – O folhetim

Se a forma do romance expandiu-se e popularizou-se em decorrência de uma

série de fatores ocorridos com as transformações culturais, econômicas e sociais

que aconteceram a partir do século XVII, atingindo seu ápice de propagação e

influência no século XIX, suas expressões encontraram novos comportamentos,

outras fórmulas e manifestações. É justamente nos Oitocentos que se propiciarão

as condições favoráveis ao desenvolvimento do romance folhetim, gênero que difere

sensivelmente na estrutura – variações de tempo, construção de personagens,

modulação de pausas, capítulos, descrições – mas que se alinha à tradição do

romance em sua essência na origem e nos pontos de repetições fundamentais.

Os primeiros registros acerca do folhetim dizem respeito à cidade de Paris, na

França, no ano de 1836 quando o diretor de jornais Émile de Girardin dividiu a

novela espanhola Lazarillo de Tormes em partes separadas e publicadas

23 LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2009, p. 160. (grifos nossos).

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diariamente no feuilleton, correspondente ao rodapé das folhas do jornal, geralmente

na primeira página. O bloco destinado ao entretenimento dos periódicos era já

comum neste espaço dos jornais desde o início do século XIX. Ali era o lugar

destinado à publicação de amenidades: contos, anedotas, charadas, opiniões,

ensaios de poesias, pequenas dedicatórias, notícias menos importantes ao lado – ou

antes, abaixo – dos informes do dia, do noticiário político, das transações

econômicas e dos anúncios comerciais. Note-se que Girardin, inicialmente ao

conceber seu projeto, não precisou lançar mão de convênios ou combinações

dificultosas: a obra escolhida já estava finalizada – aliás, há cerca de trezentos anos

–, possui autoria incerta e elementos de enredo e estrutura especialmente atrativos

como organização epistolar, narrativa relativamente curta e temática de sofrimento.

Percebendo as características de viabilidade, interesse e lucratividade que

sua invenção prenunciava gerar, no final do mesmo ano de 1836 Émile de Girardin

encomenda uma obra especialmente direcionada para publicação no novo meio de

suporte literário – o autor é Honoré de Balzac, que se tornaria célebre e clássico

folhetinista, e a obra La Vieille Fille, em português, A Solteirona. Inicia-se, assim,

um novo entendimento de produção, divulgação e recepção das narrativas literárias:

Nota-se, pois, que na origem, e assim vai ser pelo romantismo afora (época em que o romance é o gênero literário dominante), o romance-folhetim é essencialmente uma nova concepção de lançamento de ficção, qualquer que seja seu autor e o campo que abranja.24

Esta forma de publicação atingiu rápida popularidade e resultados

surpreendentes, tanto em relação às crescentes somas de algarismos financeiros

como em relação à penetração, recepção e impactos socioculturais. Ao chancelar o

notável mote “continua no próximo número”, Émile de Girardin encetou mais do que

uma maneira de se aumentar lucros e vender edições de jornais: foi principiado o

movimento de formação de um novo gênero, o feuilleton-roman. Marlyse Meyer

realiza uma visão introdutória e geral acerca dessa transformação:

[...] justamente para atingir esse público mais amplo que fora a viga-mestra da publicação em série, esta vai acabar suscitando uma forma novelesca específica, aquela precisamente com que o termo folhetim vai acabar se confundido. A almejada adequação ao grande público, a necessidade do

24 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p.31. Este livro será bastante explorado ao longo deste trabalho por se tratar de uma das poucas obras de referência no tema no Brasil.

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corte sistemático num momento que deixe a atenção em “suspense” levam não só a novas concepções de estrutura (por exemplo, o problema dos fins de capítulos ou de série, a distribuição da matéria seguindo aquele esquema iterativo tão bem evidenciado por Umberto Eco) como a uma simplificação na caracterização dos personagens, muito romântica na sua distribuição maniqueísta, assim como uma série de outros cacoetes estilísticos. Verifica-se, além disso, genial adaptação à técnica do “suspense” e ao rápido e amplo ritmo folhetinesco dos grandes temas românticos: o herói vingador ou purificador, a jovem deflorada e pura, os terríveis homens do mal, os grandes mitos modernos da cidade devoradora, a História e as histórias fabulosas etc.25

Neste trecho, a pesquisadora aponta os principais ingredientes que fazem de

um folhetim um folhetim na concepção paradigmática. Entre as características mais

marcantes desse gênero está a intensificação das montagens arquetípicas nas mais

diferentes instâncias da narrativa. As personagens, extremamente tipificadas,

chegam ao ponto de se enformarem em clichês constituindo um dos traços

recorrentes na fórmula do folhetim. Northrop Frye direciona suas reflexões para o

tipo basilar das personagens do gênero:

O modo da história romanesca apresenta um mundo idealizado: na história romanesca os heróis são bravos, as heroínas belas, os vilões cheios de vilania, e as frustrações ambiguidades e obstáculos da vida comum são desconsiderados. Por isso suas imagens apresentam uma contrapartida humana do mundo apocalíptico, que podemos chamar a analogia da inocência.26

A construção arquetípica da chamada analogia da inocência converge para as

ideias maniqueístas nas quais se existe a inocência – e aqui entenda-se todo o

leque semântico de qualidades que se ligam a essa palavra como bem, bom,

pureza, simplicidade, ingenuidade, candura –, existe, por associação lógica e

intuitiva, o seu inverso, o nocivo – e, por sua vez, a rede semântica que se associa

ao termo: ardiloso, mal, peçonha, perigoso, astuto, impuro, malicioso. O romance

folhetim explora uma duplicidade extremamente simplificada de polos

comportamentais. O bom está ligado sempre ao bem, enquanto o mau ao mal. O

mundo expresso pelo enredo folhetinesco clássico permeará insistentemente uma

medição de forças de princípios opostos e inconciliáveis: o fundamento céu – inferno

repetindo-se em moldes fixados como pobre bom – rico mau, cavaleiro virtuoso –

femme fatale, donzela casta – gatuno oportunista. As variações e oscilações

25 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p.31. 26 FRYE, Northrop. Anatomia da Crítica. Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos. São Paulo: Editora Cultrix, 1973, p. 152. (grifos do autor).

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tendem a zero: as personagens desenvolvidas sob o imaginário arquetípico no

folhetim modelar não surpreenderão com vacilações assombrosas ou conversões

arrebatadoras, são apresentadas como figuras desumanamente constantes: “quem

se converte já era bom antes, quem era mau morre impenitente. Não acontece nada

que possa preocupar alguém”27. Invariavelmente, o desenlace da batalha que se

trava durante todo o enredo em inúmeras peripécias deve explicitar a vitória cabal e

definitiva do lado bom. As figurações arquetípicas dos folhetins servem como uma

espécie de caução em apostas que podem consagrar ou arruinar obras e escritores.

Ao comentar a execução dessa estratégia por Eugène Sue em Os Mistérios de Paris

Umberto Eco assegura que

Não há dúvida de que ele joga com arquétipos como inventor culto e genial; mas não para fazer do romance um itinerário para o conhecimento através do mito, à semelhança de Mann, e sim para empregar “modelos de funcionamento seguro”.28

Mais um traço arquetípico do romance folhetim é a chamada estrutura da

consolação. E aqui reside um dos pontos de maior intensificação nos arrolamentos

das diferenças entre o romance popular e o romance problemático: a característica

constante de que

no primeiro, sempre se desencadeará uma luta do bem contra o mal a ser resolvida sempre ou o mais das vezes (venha o desenlace embebido em felicidade ou em dor) a favor do bem, definido, este, nos termos da moralidade, dos valores e da ideologia corrente. O romance problemático propõe, ao contrário, finais ambíguos, justamente porque tanto a felicidade de Rastignac quanto o desespero de Emma Bovary colocam exata e ferozmente em questão a noção adquirida de “Bem” (e de “Mal”). Numa palavra, o romance popular tende para a paz, o romance problemático põe o leitor em guerra consigo mesmo.29

Exposta metodicamente por Umberto Eco30, esse tipo de estrutura consiste na

formulação de um enredo altamente enervante, suscitador de elevados níveis de

ansiedade e sofreguidão recompensados por um desfecho satisfatório a anseios

planificados de justiça, bondade, retidão. O mesmo domínio do desfecho confortável

27 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 76. 28 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 198. (grifos nossos). 29 ECO, op. cit., 1991, p. 25. 30 ECO, Ibid., p.62-76.

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é constante também em outras configurações estruturais de obras literárias afora o

folhetim. Para o economista belga e estudioso fascinado por romances policiais

Ernest Mandel

O romance policial é o império do final feliz – onde o criminoso é sempreapanhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e no final a legalidade, os valores, a sociedade burguesa sempre triunfam. É uma literatura reconfortante, socialmente integrante, apesar da preocupação com o crime, a violência e o assassinato.31

Esquematizando sua explanação, Umberto Eco destrincha a construção que

os folhetinistas desenvolvem: exasperação da sensibilidade com altíssimos níveis de

informação – leia-se dados complicadores de enredo que encaminhem a narrativa

para o ponto da imprevisibilidade e ainda:

Para que o leitor possa identificar-se seja com as condições de partida (personagens e situações antes da solução) seja com as condições de chegada (personagens e situações depois da solução) os elementos que as caracterizam deverão ser reiterados até que a identificação se torne possível. O enredo deverá portanto distribuir vastas faixas de redundância,isto é, deter-se longamente sobre o inesperado de modo a torná-lo familiar.32

A passagem é nítida ao valorizar a repetição como maneira de reforçar a

evidência das personagens e distingui-los uns dos outros como componentes

dotados de características extremamente particularizadoras, fixadas e determinadas:

os arquétipos. A expressão é grafada abertamente pelo pensador italiano: imprime-

se a palavra redundância, destacada por grifo, inclusive. A estrutura folhetinesca

obedece a uma ordem redundante na fixação das personagens, no conjunto de

embaraços e resoluções de ações, na retomada de enredos entrecruzados e

sobrepostos. Na análise de Eco: “O dever de informação exige que ocorram lances

teatrais; o dever de redundância impõe que esses lances se repitam a intervalos

31 É preciso enfatizar aqui que o paradigma de romance policial circunscrito nesta pesquisa e em parte estudado por Ernest Mandel remete aos modelos realmente considerados clássicos, as primeiras tramas policiais que continham uma estrutura própria bastante definida e reproduzida com poucas variações por inúmeros autores. Embora o romance policial tenha adquirido inúmeras facetas e variações ao longo do tempo, os primeiros esquemas narrativos serviram como referência a ser continuada, rompida ou adaptada. Ver MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 80-81. (grifos nossos). 32 ECO, O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 64. (grifos do autor).

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regulares”33. Na mesma esteira de montagem, o romance policial envolve-se por

completo na fórmula da redundância, pois

sob aparência de uma máquina que produz informação, o romance policial é, pelo contrário, uma máquina que produz redundância; fingindo abalar o leitor, na realidade ele o reconfirma numa espécie de preguiça imaginativa, e produz evasão não por narrar o desconhecido mas o já-conhecido.34

O projeto redundante dos folhetins paradigmáticos é facilmente relacionado

ao esquema iterativo, também observado com proximidade por Umberto Eco em

seus estudos sobre a narrativa popular. Um exemplo bastante perceptível do

programa iterativo encontra expressão forte também no romance policial em que

pode se observar em muitas das obras do gênero “a degustação de um esquema:

do delito à descoberta, através da cadeia de deduções”35. Eco adentrando em seu

próprio objeto de análise repete-se a si mesmo reiteradas vezes que uma das

características dos produtos de consumo reside na diversão de não haver

revelações de novidades, “mas por repetir-nos o que já sabíamos, o que

esperávamos ansiosamente ouvir repetir e que é a única coisa que nos diverte”36.

A partir dessas observações, identificam-se dois tipos basilares de narrativas

predominantes: a chamada curva constante – ou contínua – e a estrutura sinusoidal.

A primeira diz respeito à concentração, saturação de informações no enredo de

forma a provocar graus elevados de tencionamento, culminando com uma grandiosa

ruptura da situação, um alívio final causado por implosão e, mais recorrentemente,

uma explosão – resolução externa do conflito, não interna, ou seja: uma providência

com a qual os leitores não contavam por não constar como parte constituinte da

narrativa. Já a segunda diz respeito às construções que lançam mão de pequenos

nós seguidos de seus respectivos desatamentos: “tensão, desenlace, nova tensão,

novo desenlace, e assim por diante”37. Como todas as outras características

atribuídas às marcações folhetinescas, essas duas classificações não são referentes

a elementos exclusivos ou invenções folhetinescas, é possível perceber as duas

montagens em outros gêneros e em diferentes disposições. E dessa maneira, mais

33 ECO, O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 64. 34 Ibid., p. 170. 35 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 265. 36 Ibid., p. 298. 37 ECO, op. cit., 1991, p. 64.

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uma vez, a estrutura folhetinesca expressa sua aposta nas construções redundantes

– convergentes e recorrentes – nos seus enredos basilares. Importante ratificar-se

que essas duas disposições de enredo não se desvinculam das condições

essenciais de toda narrativa enunciadas por Aristóteles na sua Poética: início,

tensão, ponto culminante, desenlace e catarse. Esses pontos são praticamente

imutáveis em todas as expressões que se dispuserem a execução do ato de narrar –

escolher acontecimentos que compõem uma história a ser contada38.

Mais um elemento que contribui para a formação dos eventos em suspensão

no enredo de romances é a constituição dos instantes de agnição. O termo é

utilizado por Umberto Eco na exposição de sua tipologia do reconhecimento:

Entendemos por agnição o reconhecimento de duas ou mais pessoas, podendo ele ser recíproco (“O Senhor é meu pai!” “Você é meu filho!”) ou monodirecional (“Você é o assassino de meu filho!”, ou então: “Olhe para mim!” Eu sou Edmundo Dantès”).39

A partir do entendimento acerca da agnição, Umberto Eco distingue a

revelação como o “desatar violento e imprevisível de um nó do enredo, até então

ignorado pelo protagonista”40. A exemplificação é dada com um clássico:

[...] quando Édipo fica sabendo que é o assassino de Laio, temos uma revelação; mas ao saber que é também filho de Jocasta, torna-se protagonista de uma agnição recíproca.41

Eco também apresenta a forma mista que justapõe as duas estratégias, a agnição e

a revelação, ou ainda uma “forma particular” de agnição monodirecional: o

desmascaramento – que se apresenta componente recorrente de alguns romances

policiais. Dentre as formas de reconhecimentos que Umberto Eco desmonta em seu

estudo tipológico, diferenciam-se dois tipos principais de projeções narrativas muito

caras aos escritores e estimulantes aos leitores que saboreiam – ou sofrem – os

efeitos de um e de outro com prazer: o reconhecimento produzido e o

reconhecimento autêntico. Nas ajustadas explicações de Eco:

38 Conferir ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 194. 39 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 31. 40 Ibid., p. 31. 41 Ibid., p. 31.

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O reconhecimento produzido é aquele em que a personagem cai das nuvens diante da revelação, mas o leitor já sabe o que está acontecendo. Típico dessa categoria é o auto-desvendamento múltiplo de Monte Cristo aos seus inimigos, que o leitor espera e antegoza a partir da metade do livro. Poderíamos definir o reconhecimento autêntico como reconhecimento do enredo e o produzido, como reconhecimento no enredo.42

Verifica-se que o romance folhetim tende a ser composto por várias

estratégias e estruturas redundantes em sua essência. No entanto, o campo dos

reconhecimentos, agnições e desmascaramentos é um terreno para ser explorado

de forma comedida e cautelosa. Poucos são os casos de cadeias de

reconhecimentos que resultam em uma narrativa estimulante, contornando

aborrecimentos – O Conde de Monte Cristo seria o exemplo plenamente

desenvolvido desta exceção. A suspensão do enredo – ações, revelações,

pensamentos – do romance folhetim compõe a quintessência de sua formação. No

romance policial esse traço é levado a índices elevadíssimos de situações repletas

de reticências, pois o enredo se apoia em trechos de obscuridades: “o verdadeiro

tema dos primeiros romances policiais não é o crime ou o assassinato, mas o

enigma”43. Explica o estudioso belga que o legítimo ponto de inquietação do

romance policial clássico não reside, em absoluto, no crime, mas no mistério – ou

melhor: no regozijo provocado por acompanhar a montagem de um quebra-cabeça,

no deleite de se sentir impelido a seguir o encalço do enredo, saborear as

descobertas e as surpresas que a narrativa oferece aos seus leitores como tesouros

recompensatórios pela companhia em uma trilha sinuosa de pensamentos.

Para que o efeito da redundância obtenha maior impacto em seus

desdobramentos e potencialize os choques e contentamentos do desfecho, os

folhetinistas geralmente investem na sobreposição das personagens e seus

respectivos componentes complicadores. No folhetim modelar, o foco narrativo

possui o desprendimento de passear entre os mais diversos cenários, transitando

sem cerimônia nas variações temporais, resgatando ou abandonando as situações e

as personagens sem acanhamentos. Umberto Eco transcreve uma espécie de

teorização do romance episódico desenvolvida por um exímio folhetinista, Eugène

Sue:

42 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 32. (grifos do autor). 43 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 37. (grifos nossos).

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“Ao invés de acompanharmos esta severa unidade de interesses distribuída por um número estabelecido de personagens que, partindo do início do livro devem, bem ou mal, chegar ao fim para contribuir cada uma com sua parte para o desenlace”, é melhor não constituirmos blocos ao redor “das personagens que, não servindo de séquito forçado à abstração moral que constitui o per no do livro, poderão ser abandonadas no meio do caminho, segundo a oportunidade e a lógica dos acontecimentos”.44

A esse fenômeno provocado repetidamente pelos escritores de folhetins, o

pensador italiano aponta a intitulação de Jean-Louis Bory de romance centrífugo,

aquele que “multiplica lugares, tempos e ações”45 tendo como um dos consistentes

motivos para sua realização a captura da atenção dos leitores no intervalo entre uma

edição diária e outra. É presumível que todo esse jogo estratégico montado sob as

demandas do consumo e o desenvolvimento de enredos influenciasse a composição

das obras de acordo com as reações suscitadas pelos acontecimentos da história.

Neste caso, o romance construído no ritmo em que se dá sua publicação está

diretamente constrangido a um apelo externo que exerce poder sobre o andamento

da narrativa. Os efeitos dessa exposição podem ser facilmente observados em um

dos mais notórios folhetins de todos os tempos – mais do que um romance isolado,

conjunto transformado numa espécie de saga: Os dramas de Paris de Ponson du

Terrail. Obra bastante reconhecida – ou mesmo, muitas vezes, apenas identificada

– pela sua personagem principal, o Rocambole, figura que pela sua força plástica e

carismática ao gosto popular converteu suas características de liderança, astúcia,

vivacidade e a vocação para se envolver em situações problemáticas – mais ainda:

em se livrar dessas situações problemáticas – em adjetivo, rocambolesco. Para

ilustrar, o herói que protagonizou cerca de 15 obras

[...] debutou em 1857 n’A herança misteriosa de Ponson du Terrail e ganhou vida longa com a série Os dramas de Paris, também conhecida como Asproezas de Rocambole. Série essa, vale a curiosidade, peculiar pela sua persistência tenaz e pelo magnetismo impressionante concebendo volumes como A Ressurreição de Rocambole que depois de reviver vem com Aúltima palavra de Rocambole e surpreender com A verdade acerca de

44 A citação de Eugène Sue é indicada como parte do prefácio de Atar-Gull, romance de temática marítima de 1831 (cf. Jean-Louis Bory, Eugène Sue – Le roi du roman populaire, Hachette, Paris, 1962, p.102). Não foi possível detectar nenhuma publicação ou edição brasileira em português. ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 65. 45 Ibid., p. 65.

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Rocambole, que nem foi o derradeiro volume, para alegria de muitos leitores de jornais e desespero de tantos outros críticos da saga rocambolesca.46

Umberto Eco explana a sua percepção do fenômeno partindo de Aristóteles

para demonstrar sua observação acerca do desenvolvimento da personagem como

um elemento de consumo:

Tem-se um enredo trágico, estabelece Aristóteles, quando ocorre à personagem uma série de acontecimentos, peripécias e agnições, casos lamentáveis e terríficos, que culminam em catástrofe; tem-se um enredo romanesco, acrescentaremos, quando esses nós dramáticos se desenvolvem numa série contínua e articulada que, no romance popular, tornando-se fim em si mesma, deve, o mais possível, proliferar ad infinitum.Os Três Mosqueteiros, cujas aventuras continuam em Vinte Anos Depois, e terminam, por cansaço, no Visconde de Bragelonne (mas eis que intervêm narradores parasitas que continuam narrando as aventuras dos filhos dos mosqueteiros, o choque entre d’Artagnan e Cyrano de Bergerac, e assim por diante), é um exemplo de enredo narrativo que se multiplica como uma tênia, e aparece com tanto maior vitalidade quanto mais souber sustentar-se através de uma série indefinida de contrastes, oposições, crises e soluções.47

O apelo e a associação do folhetim a uma preocupação dominante na esfera

financeira-comercial dão-se justamente pelo envolvimento público de um

entretenimento por vendagem. Não é puramente com propósito de oferecer

oportunidades de publicação a romancistas que durante o grande período de edição

de folhetins, meados do século XIX, as diretorias de reconhecidos periódicos

europeus – fala-se aqui, sobretudo, da França, onde o folhetim germinou e frutificou

ao tempo em que se expandiu para outras localidades – disputavam a somas

hiperbólicas os folhetinistas mais estimados, que seriam aqueles que provocavam

com sua assinatura um boom de vendagens por edição e o peso de uma poderosa

grife, observe-se Alexandre Dumas e seus nègres, espécie de assistentes,

escritores auxiliares que dominem também, claro, as técnicas de atração, em

síntese: a construção de um romance folhetim. É Marlyse Meyer que aponta a

capciosa definição do escritor francês Louis Reybaud ao afirmar que “é

principalmente no corte que se reconhece o verdadeiro folhetinista”. E continua:

46 IZÍDIO, Mirella. De Concreto e de Neblina: um estudo jornalístico sobre a construção de realidades no folhetim A Emparedada da Rua Nova. Recife, 2011. 85 p. Monografia (graduação) – Departamento de Comunicação, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011, p. 16. 47 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 251. (grifos do autor).

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É preciso que cada número caia bem, que esteja amarrado ao seguinte por uma espécie de cordão umbilical, que peça, desperte o desejo, a impaciência de se ler a continuação. [...] esta é a arte. É a arte de fazer desejar, de se fazer esperar. E se o senhor puder colocar esse leitor entre uma assinatura e outra, ameaçando os pagadores atrasados de deixarem de saber o que acontece ao herói favorito, acontecerá então o mais belo sucesso da arte.48

O suspense do romance folhetim permeará as arestas do que se formará

como mais um tronco do gênero, o romance policial. Um e outro produto destas

definições – folhetim e policialesco – entrelaçam-se em pontos de contato mútuos

em diferentes fases. Ernest Mandel dispõe possíveis razões sociais – note-se o

subtítulo de seu estudo, história social do romance policial —, culturais, econômicas,

materiais – importante atentar-se para as informações apontadas na sua declaração

acerca da metodologia desenvolvida em sua obra: “meu enfoque é o método

dialético clássico como foi desenvolvido por Hegel e Marx”49 – formadoras das

preocupações estruturais, narrativas e estéticas de romances episódicos:

[...] a crescente preocupação com o crime na classe média e nas altas camadas da classe operária logo passou a exercer um impacto sobre os grandes romancistas da época, especialmente Balzac, Victor Hugo, Charles Dickens, Alexandre Dumas e até Dostoiévski. Por um lado, isto deu expressão a uma verdadeira preocupação social e uma motivação ideológica mais profunda. Porém existiam razões materiais para que os romancistas voltassem para as histórias policiais: as dificuldades financeiras, a busca de uma maior plateia, a possibilidade de receber vultosos pagamentos das novas revistas populares e a emergência do folhetim – seriado –, no qual escritores como Eugène Sue [...], Ponson du Terrail e Paul Feval conquistavam grande sucesso popular. Nos melodramas e nos folhetins, ainda prevalecia o “bom bandido”, vivendo às margens da sociedade. Os grandes escritores não traíam uma romântica admiração pelo “bom bandido”, tratando os criminosos pura e simplesmente como párias sociais. Por outro lado, a consciência da injustiça social, do antagonismo entre rico burguês e o pobre e a hipocrisia da dupla moralidade permaneciam bastante presentes. (Em Os Miseráveis, de Victor Hugo, a polícia age de maneira bem diversa para com um rico burguês que molesta uma mulher pobre, e com esta mesma mulher, quando ela tenta se defender. [...])50

O “bom bandido” ao qual Mandel refere-se é elemento inquietante nos

romances folhetinescos. Trata-se de mais uma espécie de personagens tipificadas

e elevadas à condição arquetípica: as figuras menos favorecidas na conjuntura

48 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 30-31. (grifos nossos). 49 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 11. 50 Ibid., p. 24.

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hierárquica de posições financeiras e sociais coagidas a viverem por subterfúgios de

uma lei própria – duvidosa ou mesmo criminosa aos olhos da normalidade

estabelecida pelos homens maus, mas absolutamente compreensível e mesmo

admirada pelos que partilham da mesma posição subalterna e ainda por aqueles

que pertencem ao outro lado, os poderosos simpatizantes da causa, pessoas

dispostas a ajudar essas personagens por meio de dinheiro ou pela influência

exercida em determinados círculos. A desforra promovida pelos tipos de bons

bandidos é um fator de purgação coletiva. A tipificação apontada por Ernest Mandel

encontra ponto convergente, tanto no arquétipo da personagem como no enredo

apoiado na narrativa punitiva em leis divergentes das do mundo convencional, no

Super Homem folhetinesco de Umberto Eco. Essa figura arquetípica foi bastante

recorrente, sobretudo nos primeiros momentos das publicações folhetinescas. Por

definição trata-se de “uma personagem de qualidades excepcionais, que põe a nu as

injustiças do mundo onde se insere, e intervém para repará-las com atos de

justiça.”51 Vale ressaltar que as ações colocadas em execução pelos super-homens

não estão inseridas em aspectos revolucionários e sim caritativos ou, mais

ajustadamente, reformistas. Não há luta de classes nem insubordinações à

disposição social hegemônica, o que acontece é um desvio particular de sujeição a

determinadas regras, bem longe de ser um movimento ordenado. O pensador

italiano aponta as especulações de Antonio Gramsci ao relacionar a linha de

raciocínio desenvolvida por Friedrich Nietzsche encontrando procedência num dos

mais emblemáticos heróis folhetinescos: Edmond Dantès, personagem-título do

grande romance de Alexandre Dumas, o Conde de Monte Cristo:

[...] mas não resta dúvida que em Monte Cristo a teoria do Super-homem é exposta mais pormenorizada e sistematicamente, e Dumas fornece, insinuava Gramsci, filosofemas a todos os futuros profetas laureados do Übermensch.52

Mais demoradamente, Umberto Eco prossegue a sua reflexão acerca do tema

questionando a relação da vingança engendrada por Edmond Dantès: “pode o

vingador encontrar o fundamento dos próprios gestos e das próprias escolhas no

fato de ser Super-homem?” Em outras palavras, busca-se argumentar sobre a

51 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 111. 52 Ibid., p. 100.

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profundidade reflexiva que a condição de Super-homem empresta ao personagem

em seu próprio criador e os reflexos resultantes no público receptor. A resposta

encaminha-se para explanação de que

A diferença entre Dumas e Nietzsche (não fosse outra) reside toda nisto: Nietzsche está historicamente maduro (e tem o vigor especulativo) para demolir as pontes com as justificações transcendentes, custe o que custar (e aceitando o isolamento a que o condenam); Dumas não possui vigor especulativo e precisa vender seu produto: é sobretudo o que dele exige o Espírito do Tempo. Mas não sabe mais onde colocá-lo. O Super-homem torna-se-á então um enviado do Senhor.53

Essa transformação da personagem provoca uma preocupação diante de

possíveis julgamentos que diminuam sua estima geral – inquietação expressada na

lembrança de que os escritos de Dumas obedeciam a uma lógica de mercado. No

entanto, a resolução do conflito encontra lugar ao diluir-se em um raciocínio

fascinante, pois divinal:

Monte Cristo é um anjo: é um enviado de Deus. Quase ao fim da empresa é tomado de dúvidas, teme haver prevaricado, mas afinal caem-lhe nas mãos os manuscritos secretos do Abade Faria, e ele lê a epígrafe: “Arrancarás os dentes ao dragão e esmagarás sob os pés os leões, disse o Senhor”. “Ah! Graças, eis a resposta!” brada Monte o Cristo. E isso o deixa tão exultante que, após haver edificado o leitor (não há super-homens que não sejam subdeuses), permite-se até mesmo infringir a regra de proterva castidade que a vingança lhe impusera: veleja feliz rumo a praias ignotas ao lado da mulher que o amava em silêncio, e volta a ser homem para não pôr em crise os compradores do folhetim.54

Umberto Eco detém-se mais na personagem de Edmond Dantès pelo seu

caráter paradigmático, no entanto é perceptível a sua intenção de distender o

raciocínio para a montagem dos romances folhetins de forma mais abrangente,

mesmo que essa relação seja expressa de maneira menos explícita do que na obra

de Alexandre Dumas. O peso da implacabilidade é carregado por praticamente

todos os heróis romanescos pois a qualidade de subdeuses carrega transições de

forças e fraquezas. A consoladora intervenção de sinais – interpretados como –

divinos devolve às figuras do enredo e, principalmente, aos seus leitores a

aproximação a uma almejada completude que, embora nunca alcançada pela

53 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 101. 54 Ibid., p. 102. (grifos nossos).

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personagem do romance moderno – é tangenciada como possibilidade, mesmo com

todo o apesar de.

2.3 Episódio de hoje: o folhetim no Brasil

Apenas dois anos após o primeiro romance fatiado ser oferecido ao público e

Émile de Girardin registrar o mote “continua no próximo capítulo”, aportava em terras

além-mar o mesmo princípio e também muitos dos romances que eram publicados

nas páginas diárias europeias, principalmente francesas, servindo como modelo aos

escritores brasileiros. A novidade chegou anunciada em

uma nota de rodapé do Jornal do Comércio de 31 de outubro de 1838 chama a atenção dos leitores para o acontecimento do dia: a publicação do primeiro capítulo de “linda novela, O capitão Paulo, novelo por Alexandre Dumas, traduzida por J. C. Muzzi.55

Muitos aspirantes e escritores iniciaram e solidificaram carreira permeando

espaços nos rodapés das folhas diárias. Homens públicos, personalidades notáveis,

políticos e estudantes das faculdades de Direito, Medicina e Engenharia formavam a

classe dos chamados homens de letras. Muitos deles vivenciaram os espaços de

discussões regulamentadas que passaram a se solidificar nos jornais, a praça

pública para debates, provocações, ensaios acerca das mais variadas temáticas e

disposição para arriscar obras literárias. É, inclusive, um desses homens tidos como

pertencentes à categoria dos homens de letras, Sílvio Romero, que observa os

frouxos limites entre as carreiras:

No Brasil, mais inda do que noutros países, a literatura conduz ao jornalismo e este à política que, no regime parlamentarista e até no simplesmente representativo, exige que seus adeptos sejam oradores.Quase sempre as quatro qualidades andam juntas: o literato é jornalista, é orador e é político56.

55 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 32. 56 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. 5. ed. 5 v. Rio de Janeiro, 1954, p. 1717, V apud SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 184. (grifos do autor).

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Social, cultural e economicamente, esse fenômeno foi responsável por

evidenciar grande parte dos escritores como personalidades públicas – e também

vice-versa: personagens públicas infundindo-se nos misteres das letras. Esses

movimentos fluidos entre as posições atraíam para o jornal os mais diferentes

homens com as mais distintas intenções. De maneira geral

Os homens de letras buscavam encontrar no jornal o que não encontravam no livro: notoriedade, em primeiro lugar; um pouco de dinheiro, se possível. [...] No inquérito organizado por Paulo Barreto, e depois reunido no volume O Momento Literário, uma das perguntas era esta: “O jornalismo, especialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?” A maioria respondeu que bom, naturalmente. Félix Pacheco esclareceu, com exatidão: “Toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e cinco anos[a declaração de Pacheco situa-se nos princípios do século XX] fez escala na imprensa”. Medeiros e Albuquerque viu outros aspectos da questão: “É certo que a necessidade de ganhar a vida em misteres subalternos de imprensa (sobretudo o que se chama a ‘cozinha’ dos jornais; a fabricação rápida de notícias vulgares), misteres que tomem muito tempo, pode impedir que os homens de certo valor deixem obras de mérito. Mas isto lhes sucederia se adotassem qualquer outro emprego na administração, no comércio, na indústria. O mal não é do jornalismo: é do tempo que lhes toma um ofício qualquer, não os deixa livres para a meditação e a produção”.57

Ponto merecedor de especial atenção é a diferenciação que se faz necessária

entre os gêneros, apesar de suportes difusores semelhantes – sobretudo ao falar-se

reservadamente dos episódios sucedidos em terras brasileiras. É certo que a

movimentação das obras literárias circulantes no país – entenda-se produzida,

traduzida e publicada no território nacional, ainda que não necessariamente em

língua portuguesa – está intimamente ligada à história da imprensa do Brasil. A

frase de Félix Pacheco é certeira: a literatura brasileira realiza escala na imprensa.

Poderia acrescentar-se a esta sentença a observação de que, a rigor, a literatura

brasileira realizou escalas na imprensa, mas – e aqui fazendo a leitura da temática

folhetinesca – não foi consistente em aglutinar a escola de romances folhetins que

dosassem os elementos do folhetim modelar resultando nos efeitos esperados dos

grandes folhetins: a mobilização cativante do público leitor, as atormentadoras

suspensões, os copiosos volumes em séries. Isso quer dizer que o fato de que

praticamente toda a literatura produzida no país tenha sido estampada nos rodapés

de periódicos, não faz com que as obras fatiadas se enquadrem nas características

57 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 292. (grifos nosso).

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basilares da formação do folhetim como gênero. Muitas foram as imitações, outras

tantas foram as reproduções / traduções, mas poucos os títulos que alcançaram a

maturidade e sobreviveram ao tempo na lembrança popular entre um capítulo e

outro, preenchendo os requesitos que fazem com que o enredo consiga “construir

uma obra narrativa destinada a um vasto público e visando a despertar o interesse

das massas populares e a curiosidade das classes abastadas [...]”58. Ou como

Ernest Mandel resume em relação ao seu objeto de análise especificamente – mas

aqui dilatado também para o romance folhetim de forma geral: “A arte do romance

policial é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos”. Marlyse Meyer conclui

em sua pesquisa sobre o tema que

[...] se consideramos o folhetim nacional explicitamente imitador do modelão europeu, sem rebuços nem paródia, com talvez idênticas ambições de vendagem, mais provavelmente como única forma de expressão de candidatos a romancistas, pode-se dizer com aquele articulista citado por Brito Broca, que escreve em 7 de abril de 1890 em Cidade do Rio: “Os esqueletos e as caveiras do paço tem fornecido assunto a nada menos de três romances que, valha a verdade, bem poderiam ficar guardados no fundo do tinteiro; a julgar por eles os Dumas, os Ponsons e os Montépins brasileiros ainda estão por nascer”.

A pesquisadora arremata:

[...] pode-se, de maneira geral, incluir os romances-folhetins nacionais na mesma categoria que aquele ficcional A maravilha, de Ernesto Souza, encontrado em um brechó por uma personagem nativa de uma das cidades mortas do vale do Paraíba evocadas por Monteiro Lobato: “romances descabelados, onde há lágrimas grandes como punhos, punhais vindicativos e virtudes premiadíssimas, de par com vícios arquicastigados pela intervenção final e apoteótica do Dedo de Deus [...]”.59

Tais romances indicam tentativas frustradas de se reproduzir a fórmula e

consequentemente os efeitos que o romance folhetim provoca: a química das

emoções60 que, embora a princípio aparente tratar-se de questões extremamente

subjetivas, revelam-se esquematizadas em planos bastante definidos, receitas

fixadas – mas nem por isso de execução simples.

58 ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 190. 59 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 309-310. 60 Conferir ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 19.

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Para efeitos metodológicos e didáticos, efetuam-se divisões – de acordo com

pontos de contato e, principalmente, obedecendo a uma lógica cronológica para

periodização –, compondo fases determinadas do romance popular. Umberto Eco

agrupa essas clivagens em três grandes quadras: o primeiro período seria intitulado

também como o período romântico-heróico – seria a fase iniciadora do folhetim nos

anos trinta do século XIX marcada pela presença de um público de leitores mais

ativo formado por pequenos-burgueses e artesãos-operários tendo como principais

nomes Sue e Dumas –, o segundo período denominado como período burguês –

compreende as últimas décadas do século XIX nas quais sobressaíram-se escritores

como Xavier de Montépin que abandonam as temáticas de vingança em nome do

protagonismo de humilhados – e, por último, o período neo-heróico – iniciado em

princípios do século XX e representado por Arsène Lupin, marcado por personagens

ainda mais individualistas61. Marlyse Meyer também apresenta sua cronologia

fragmentadora da trajetória do romance folhetim – no caso da pesquisadora

brasileira, esta disposição detém-se na origem e no desenvolvimento do gênero em

solo europeu. Em sua disposição, a primeira fase também diz respeito ao início das

publicações em série criadas por Émile de Girardin em 1836, estendendo-se até o

fenômeno de recepção – e reação – de Eugène Sue em fins da década de 1840. A

segunda fase, a partir de 1850, revela a implosão persistente da obra rocambolesca

do visconde Ponson du Terrail. A terceira e última grande fase do romance folhetim

europeu – e mais uma vez reiteramos a presença francesa provocando os ecos que

pautarão os ruídos a serem carregados pelos ventos – é retratada a partir de 1871

prolongando-se até 1914, esta última data maculada pela Primeira Guerra Mundial e

toda mudança que esse evento histórico catalisou62. A partir deste momento, o

romance policial -- e mais ainda o romance policial de investigação em detrimento do

seu equivalente focado na ação – adquire espaços mais generosos em produção,

em público, em vendas e ainda: sobrevivem fora do fatiamento diário dos periódicos.

Ainda marcam presença nas bancas de jornais e com os gazeteiros, mas agora em

livrinhos de bolso, edições de capa mole, produção em série de brochuras –

61 Conferir ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 83 - 84. 62 Conferir MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996.

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sobretudo no período entre as grandes guerras mundiais – e ainda: em séries

volumosas e numerosas63.

Curioso perceber que as fases apontadas pelos diferentes autores

entrelaçam-se em sobreposições de acontecimentos simultâneos que convergem

para provocação de transformações na forma de interpretar e atribuir sentido às

realidades e se expressarem como elementos constitutivos de seus tempos. O

gênero encontra caminho nas sinuosidades de sua época, compreendendo todo um

sistema palpitante de componentes: produtores, leitores, editores, tradutores

formando uma obra e toda interpretação e imaginário referente ao seu universo.

Como já comentado, no Brasil o movimento de produção de folhetins a partir

do século XIX desenhou-se nos contornos do suporte material de publicação e nas

traduções e imitações dos modelões europeus, principalmente os franceses.

Imitações essas que não passaram de arremedos grosseiros, tentativas que

resultavam em obras insossas, sem relevo e de pouca expressão estampando

estratégias narrativas mal montadas e insatisfatórias, provocando envolvimentos

bem abaixo da média dos efeitos conseguidos pelos folhetins bem realizados.64

Mas, de acordo com a pesquisadora do tema, Marlyse Meyer, há uma exceção

dentre as insípidas publicações que pretendem inscrever-se no gênero folhetim.

Cabe observar e registrar, no entanto, que Meyer não se detém em análises ou

considerações mais cuidadosas acerca da obra e mesmo comete um notável lapso

ao indicar que o romance possui “tema regionalista”, o que definitivamente não

condiz com o enredo mencionado. A obra, “excelente romance-folhetim de escrita

folhetinesco-policial”65, é A Emparedada da Rua Nova do escritor e jornalista

pernambucano Carneiro Vilella66.

63 Conferir MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988. 64 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 309-310 65 Ibid., p. 309-310.

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3 UM OLHAR SOBRE O MOVIMENTO DE IDEIAS NO SEGUNDO REINADO

3.1 Cenário social, filosófico e cultural do Império brasileiro na segunda metade dos Oitocentos

O século XIX foi marcado pelo surgimento de diversas correntes filosóficas na

Europa que passaram a refletir e alcançar questões sociais, políticas, econômicas e

artístico-culturais. O Brasil, desde princípios do século, tornara-se um lugar de

recepção das produções culturais do velho mundo, merecendo destaque o

sentimento francófilo que foi apropriado pela cultura brasileira.

No Segundo Reinado, já sob os mandos de D. Pedro II, o Brasil passou a

viver um período de estabilidade política a partir de meados dos anos 1840. Nesta

fase também foram surgindo novas formas de se pensar o Brasil, com o objetivo de

reforçar a identidade cultural do país com a do seu povo. Nesse ínterim surge o

Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB) que passou a agregar membros da

intelligentisia local e contou com o apoio do imperador que mostrou-se

entusiasmado com a criação desta instituição. A ideia era justamente construir uma

memória para o país recém-independente visando, assim, refletir sobre aspectos

particulares da cultura e da sociedade brasileira.

Desde 1808, portanto, quando abrigou a família real e a corte portuguesa, o

Rio de Janeiro consolidou-se como o grande centro de referência de novas

concepções, criações e projetos intelectuais, impulsionado por sua condição de

capital – simbolizando e mais: concretizando diversas esferas de poder. Já em

meados do Segundo Reinado reforçou o seu status de centro cultural e político do

país, afinal era a

Sede da Côrte e do Parlamento, centralizando a vida política do país e contando com numerosos estabelecimentos de ensino, além de vários centros culturais de valor, inclusive salões de conferências [...]. Possuía a capital do Império, no último quartel do século passado, diversas bibliotecas públicas, entre as quais se salientavam a Nacional, a Municipal, a Fluminense, a da Marinha, a do Exército e a do Real Gabinete Português de Leitura. Numerosos eram os seus institutos de ensino, particulares e oficiais, dedicando o Imperador a êstes últimos uma atenção desvelada e permanente. Destacavam-se, entre muitos outros, o Ginásio Padrão

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(Colégio Pedro II), a Escola Normal, o Colégio Militar, o Colégio de São Bento, o Colégio Abílio, o Liceu de Artes e Ofícios, o Liceu Literário Português, as Escolas Municipais de Santa Rita, da Glória, de São José e de São Sebastião, os Institutos dos Cegos e dos Surdos-Mudos. Além das Faculdades de Medicina e Farmácia e das Escolas de Engenharia, Guerra, Marinha e Belas-Artes, abrigava ainda o Rio de Janeiro estabelecimentos e associações culturais e científicas tais como o Museu Nacional, o Jardim Botânico, o Instituto Histórico e Geográfico, a Academia de Medicina, o Instituto Politécnico Brasileiro, o Instituto de Música, a Sociedade Propagadora das Belas-Artes, o Instituto Farmacêutico, a Sociedade Amante da Instrução, os Institutos dos Bacharéis em Letras, dos Advogados, os Clubes de Engenharia, Naval e Militar, o Clube Ginástico Português e outros. Reunia assim a capital do Império a sociedade mais requintada do país, não só pela riqueza, mas pela educação e cultura, afeita as recepções no Paço e nos salões diplomáticos, freqüentando com paixão companhias dramáticas e líricas.67

À parte a capital do Império, ponto convergente de pessoas com os mais

diversos objetivos – econômico-comerciais, artísticos, acadêmico-educacionais e,

por tabela, aglutinação das altas classes sociais – outras províncias do país

emergiram como focos de produções inventivas e debates ideológicos. Esses

movimentos, senão discrepantes dos que aconteciam no cenário do Rio de Janeiro,

por muitas vezes apresentaram-se como questionadores dos padrões cortesãos.

Por outras vezes, essas as províncias tidas como “periféricas” desempenharam o

papel de fendas em que se infiltraram correntes filosóficas estrangeiras também

“periféricas” que, por uma série de motivos, não conseguiram a mesma notoriedade

no ambiente cortesão.

Do ponto de vista oficial – aqui no sentido estabelecido pelo imaginário geral,

desenvolvido através de construções didáticas não específicas e de repetições

difundidas social e culturalmente – a segunda metade do século XIX no Brasil foi o

período em que ganhou grande impulso o movimento republicano, a campanha

abolicionista, a reconfiguração da economia e, consequentemente, de camadas

sociais. É também o momento em que foi absorvido para a arte nacional os ditames

do Romantismo e posteriormente do Naturalismo como matéria de análise social.

Todos esses movimentos e fenômenos, em maior ou menor grau, estavam

vinculados entre si e, todos eles espelham ocorrências externas, sobretudo

europeias, especialmente no que tange a França e o estilo de vida ditado por Paris.

É possível chegar a esta constatação a partir dos mais variados indícios legados

67 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p. 243-244.

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desta época, desde a predominância da língua francesa como segundo idioma

falado entre brasileiros e a persistência vocabular de termos e palavras – senão

exportadas e utilizadas in natura, adaptadas ao uso brasileiro –, passando pela

gastronomia e hábitos gerais – a aquisição de móveis e objetos mandados buscar

diretamente da capital francesa ou a feitura de cópias à moda dos utilizados na

Cidade Luz. Os reflexos dessa francofilia se fizeram presentes nas camadas mais

profundas da sociedade: em seus modelos de pensamento. No entanto, em

algumas províncias do Brasil essas ideias tomavam formas especialmente mais

pronunciadas, intensas, agitadas e nem sempre seguiam a regra geral dos ditames

exportados pela corte. Na avaliação de João Cruz Costa:

Se é certo, pois, que a nossa história intelectual tem sido, em grande parte, um tecido de vicissitudes da importação de idéias, de doutrinas, sobretudo de origem europeia, não menos certo é que essas idéias e doutrinas aqui se deformaram ou conformaram às condições de um novo meio.68

Os hábitos, posturas e ideias absorvidos e disseminados no Brasil por meio

da corte encontravam caminhos de irradiação nas províncias. Algumas delas

destacavam-se pela proeminência de atividades culturais, intelectuais e econômicas,

configurando-se como rota de circulação de preceitos – repetidores tradicionais e

inovadores aos padrões hegemônicos. Destacam-se as regiões de Salvador – com

importante polas ciências naturais na Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira do

país dedicada às ciências médicas, fundada em 18 de fevereiro de 1808, logo após

a chegada da família real ao Brasil – e de São Paulo – que além da proximidade da

corte portuguesa no país, abrigava, igualmente, a importância de uma das primeiras

instituições de ensino superior, neste caso direcionada aos estudos jurídicos: a

Faculdade de Direito de São Paulo, fundada em 11 de agosto de 1827. Uma dessas

províncias a que deverá ser direcionada especial atenção é Pernambuco, mais

precisamente a sua capital, Recife.

A capital pernambucana de meados do século XIX mantinha especial posição

no cenário do Império por uma série de fatores interligados e consequentes, tais

como o histórico ainda recente de glórias econômicas da capitania mais próspera da

era do açúcar; a estratégica localização geográfica no extremo oriental das Américas

que, pela maior proximidade da Europa e África, fomentaram movimentados portos

68 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 378.

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com ativo trânsito dos mais diferentes tipos de pessoas; a fundação da Faculdade

de Direito de Olinda – em 11 de agosto de 1827, mesmo dia de fundação de sua

congênere paulista, aquela posteriormente transferida para o Recife em 1854 e

denominada até os dias atuais como Faculdade de Direito do Recife (FDR) –, uma

das primeiras e mais importantes instituições de ensino da história das ideias no

país; a construção de uma imprensa efervescente, com forte atuação nos debates

das diversas questões políticas, culturais e econômicas nacionais numa frenética

atividade de fundação de vespertinos e matutinos, folhas ilustradas para

comerciantes ou para literatos, panfletos que serviam a grupos e projetos políticos

diversos, edições que duravam apenas o tempo de um número convivendo com

periódicos tradicionais, de longa data e grande vigor como o Diario de Pernambuco

– em circulação até os dias atuais, estampando diariamente o título de o mais antigo

jornal em circulação na América Latina; a formatação – ainda que de forma genérica

e não ordenada de movimentos que, em alguma medida, representavam traços em

comum, embora não aglutinassem seus presumidos membros nem os limitasse em

seus posicionamentos, a exemplo dos pensadores abolicionistas, do movimento

republicano e da Escola do Recife, esta última especificamente relevante à pesquisa

aqui desenvolvida69.

Esses são alguns dos fatores – não determinantes, porém possivelmente

facilitadores – que contribuíram para a entrada, a assimilação e a difusão de ideias

de forma mais intensa nesta província em relação a outras regiões do Império. Em

sua tese, Márcio Luiz do Nascimento realiza uma necessária análise sociológica – é

preciso destacar o caráter sociológico de sua pesquisa – e efetua um balanço dessa

soma de fatores:

Os letrados do Recife conviviam com a dupla condição de marginalizados: tanto eram excluídos políticos do establishment Imperial; como operavam com baixos capitais econômicos e de relações sociais. Esta condição de intelectuais periféricos duplamente marginalizados explica em grande parte a reação contra o projeto político-literário romântico, primeiramente inicia-se entre os integrantes da Escola do Recife. Bem como, historicamente o núcleo dos intelectuais do Recife estar entre os mais radicais adversários da monarquia e dos intelectuais da Corte aproximados do poder central.70

69 Devido a essa importância da Escola do Recife para a análise a ser desenvolvida, o movimento será exposto mais demoradamente nas páginas adiante. 70 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife: trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. São Paulo: USP, 2010. 256 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia do

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41

Portanto, a expressão de homens de letras, pensadores, intelectuais e

acadêmicos propiciou – além das inúmeras formas de reprodução de ideias e ideais

– a instauração de consciências de todas as condições mencionadas e sua

importância na diferenciação de contextos, o que também não implica a condição de

que esse encadeamento de situações tenha sido fomentador de processos

absolutamente originais, não: as discrepâncias de colocações direcionavam

diferentes apontamentos de paradigmas reproduzidos. Como exemplo, percebe-se

a refutação de modelos reconhecidamente franceses em preferência a padrões

germânicos.

Certamente muitas dessas viagens de idas e voltas sobre o Oceano Atlântico

provocaram inúmeras variações no processo de assimilação e na propagação das

correntes de pensamentos europeias, admitindo-se que, embora não tenha havido

movimentos genuinamente nacionais de destaque, as releituras ocorridas nos

diálogos entre o Velho e o Novo Mundo promoveram alguns traços originais e

completamente alterados em relação à fórmula primordial, contrariando o

pensamento do professor João Cruz Costa que sentenciava – referindo-se a um

caso específico, mas estendendo-se a uma suposta propensão na condição

filosófica nacional:

A primeira obra de divulgação positivista, livro que inaugura a tendência positivista no Brasil, vem marcada, assim, por um anseio de reforma prática, eficaz, ativa, que não existe nos demais filosofantes brasileiros, todos eles simples repetidores de doutrinas puras, sem aplicação à vida nacional, meros adornos de pessoas que se divertiam com o complicado jôgo das idéias filosóficas.71

Tal fenômeno – contrariando o pensamento do professor Cruz Costa – é

bastante perceptível com a própria doutrina positiva, o Positivismo. A corrente

filosófica gerada na França em princípios do século XIX, tendo como idealizadores

estudiosos como John Stuart Mill e Augusto Comte, adquiriu inúmeras variações em

suas propagações, entendimentos e releituras, nos mais diversos preceitos e

doutrinas em diversos lugares por onde foi levada.

Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 11. 71 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p.68. (grifos do autor).

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Sobre a disseminação do Positivismo no Brasil, é possível verificar em termos

textuais as nuances das divisões que demarcavam os limites das filiações nacionais,

basicamente repartidas entre as influências francesas e as alemãs. Em uma das

inúmeras contendas públicas travadas à época, o médico Luís Pereira Barreto

responde ao então diretor do Apostolado Positivista do Brasil72, Miguel Lemos, nos

seguintes tons:

[...] Não, não foi nada disso: o meu crime é um milhão de vêzes maior... ousei há vinte anos, em uma série de artigos na Província de São Paulo, preconizar a imigração alemã para o nosso Estado... O Sr. Lemos, que então achava-se em Paris, repudiando cordialmente Littré, que antes havia adorado, aproveitou a ocasião para honestamente intrigar-me com o Sr. Pierre Laffitte, e preparar seguramente a sua candidatura ao pontificado positivista brasileiro. Nessa época, mesmo os positivistas mais eminentes da França não podiam conter a sua indignação raivosa ante a menor manifestação de aprêço ou de justiça para com a Alemanha!73

E prossegue numa típica e clara exemplificação da animosidade contida e

transbordada através de altercações públicas que mobilizavam adeptos de ambos

os lados das polêmicas:

[...] tôdas as minhas opiniões são torcidas e desfiguradas com a mais hábil malignidade, de modo a fazer acreditar que eu era inimigo da França e que me declarava abertamente desligado do centro positivista francês; o Sr. Lemos só visava chegar a esta fulminante conclusão: Non, l’ideal de mr. Barreto c’est la germanisation du Brésil et-là-dessus Il exalte “la noble race alemande”, ce que nous lui avons déjà reproché.74

Que não diria o Sr. Lemos, seu eu tivesse ousado profetizar que vinte anos mais tarde, uma boa parte do exército francês seria comandada por um generalíssimo alemão?!75

A postura de Pereira Barreto, para o Professor Cruz Costa é decorrente de

sua posição crítica diante das experiências vivenciadas: “embora estudasse na

72 O Apostolado Positivista do Brasil foi um grupo formado por membros adeptos às ideias de August Comte no Brasil, sobretudo na Côrte do Rio de Janeiro, em meados da década de 1870 e liderado por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes. O Apostolado reivindicava o poder governamental nas mãos de intelectuais e acabou por congregar uma espécie de ritual religioso que produziria a Igreja Positivista do Brasil. Ver PAIM, Antônio. O Apostolado Positivista e A República. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981 e COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Brasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 73 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p.78. (grifos do autor). 74 Em tradução livre: “Não, o ideal do Sr. Barreto é a germanização do Brasil, em seguida ele exalta ‘a nobre raça alemã’, é o que nós lhe censuramos desde já”. 75 LINS, op. cit., p. 78-79.

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Europa (e talvez por isso mesmo), não ficou prêso aos encantos do transoceanismo

que enfeitiçaram tantos de nossos filosofantes, críticos e literatos”76. A declaração

supracitada consta em escritos de meados de 1901 publicados no Estado de São

Paulo. É preciso mencionar que, em outra ocasião, alguns anos depois – agora em

fins de 1917 – no mesmo periódico, Pereira Barreto escreveria:

Foi preciso que chegássemos ao ano de 1914, foi preciso que se amontoassem às nossas vidas as mais horrendas e criminosas hecatombes, para compreendermos que todos nós estávamos enganados e que só Comte exclusivamente Comte, estava com inteira razão.77

Tamanho grau de entusiasmo e convicção de ambos os lados – os que se

declaravam adeptos do Positivismo e os que combatiam seus preceitos – renderam

um acervo de episódios anedóticos que representam o espírito do momento. É o

caso, por exemplo, relatado por Gilberto Freyre

[...] de maneira um tanto galhofa, que em 14 de julho de 1909, um mês depois de empossado como Presidente da República, Nilo Peçanha (1867-1924), ao se dirigir de automóvel ao Teatro Municipal do Rio de Janeiro acompanhado dos seus Ministros e de várias outras autoridades, inclusive o Prefeito da Cidade – Inocêncio Serzedelo Correa (1858-1932) --, ouve, ao descer do veículo, um grito vindo da voz de um popular: “Eita, presidente científico”.78

Tratava-se da expressão de uma figura proeminente adjetivada com a marca

de uma tendência que encontrou espaço mesmo no senso comum de cidadãos

médios – ainda que de forma superficial e pouco sólida conceitualmente. O episódio

demonstra a popularidade que essas expressões, derivadas de universos

específicos terminaram por disseminar-se por meio de embates em artigos de

jornais, através da divulgação de livros, preceitos e doutrinas que alcançavam fortes

repercussões, chegando até mesmo a terem alguns dos seus termos e expressões

mencionados fora de contexto e assumindo conotações divergentes do sentido em

que eram inicialmente concebidas, como representado no caso apresentado por

Freyre. Ainda assim, Costa esclarece que apenas

76 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p.68. (grifos do autor). 77 Ibid., p. 86. (grifos do autor). 78 FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 1990, p.742-743 apudVIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 11.

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uma pequena porção da nossa elite intelectual foi ortodoxa, os adeptos do Apostolado Positivista do Brasil, chefiados por Miguel Lemos e por Raimundo Teixeira, mas a grande maioria dos positivistas aderiu apenas ao espírito cientificista da época.79

É fator nítido em muitas das obras literárias produzidas no século XIX a

substancial carga de influência que muitas ideologias obtiveram nas estruturas dos

enredos, na constituição das personagens, na aglutinação de elementos formadores

da ética e da estética das obras de arte80. Enquanto em algumas produções esses

traços emergiam de forma mais sutil e por meio de críticas. Já em outras é

perceptível no próprio discurso do narrador, imbuído de influência de determinadas

correntes, além de se apresentarem de forma recorrente, reafirmando a filiação e as

posturas que a obra assume. Os chamados homens de letras dos Oitocentos eram,

quase sempre, presentes em universos políticos e culturais da sociedade. Devido a

essa condição, não é difícil vislumbrar a carga ideológica presente nos escritos

literários produzidos nesse período, subordinados a um discurso correspondente a

muito do que se expunha nas tribunas, nas cátedras, nos gabinetes e nos jornais.81

O cientificismo tornou-se um dos pressupostos a servir de sustentáculo dos

estudos produzidos pelos estudiosos que circularam pela dita Escola do Recife.

Logo deveria ser manifestado nas mais diversas manifestações artísticas, a ponto de

poetas como Sílvio Romero, Tobias Barreto, Martins Júnior e Silva Jardim vestirem-

se com o pitoresco rótulo de poetas científicos. Uma cientificidade que vinha se

antepor diretamente à filosofia metafísica, exaustivamente debatida por décadas. É

Romero quem refuta violentamente esse conjunto filosófico ao anunciar a morte da

metafísica em sua tese de doutoramento apresentada na Faculdade de Direito do

Recife, Deve a Metafísica ser considerada morta? – finalizada em 1875 e chegando

incompleta aos dias atuais82.

79 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 385. (grifos do autor). 80 Observe-se, por exemplo, a constituição e a temática de romances como O Mulato e O Cortiço de Aluísio de Azevedo que ficaram bastante conhecidos – tanto autor como as suas obras – pelos traços deterministas, pelo esboço de perfis psicanalíticos e pelo cunho naturalista de suas produções.81 Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4. ed. (atualizada). Rio de Janeiro: Mauad, 1999. 82 Cf. PAIM, Antonio. A Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Vol. V. 3. ed. Londrina: Editora UEL, 1997.

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Nisto não há metaphysica. A metaphysica, treplica o doutorado [Sílvio Romero], não existe mais, Sr. Dr., se não sabia. Não sabia, repetio este. – Pois vá estudar e aprender para saber que a metaphysica está morta. – Foi o Sr. que a matou [?], pergunta-lhe então o Senr. Dr. Coelho Roiz – Foi o progresso, foi a civilisação – responde-lhe o Bacharel Sylvio Romero, que, acto continuo, ergue-se, toma um dois livros que estão sobre a mesa – diz – Não estou para aturar esta corja de ignorantes que não sabe nada e retira-se vociferando por esta sala afóra, donde não podemos os mais ouvil-o. Tudo isso foi presenciado e ouvido por um numeroso auditório e entre outros que fora escusado e difícil enumerar [...]. (sic).83

O pensador sergipano prega, portanto, a aniquilação do pensamento

metafísico que teria sido sacrificado sob a luz de um crescente aprimoramento e

desenvolvimento cultural e político das sociedades e das suas consequentes

mudanças no caminho da evolução do homem como ser social, em síntese do

próprio Romero: a metafísica foi morta pelo progresso e pela civilização.

A originalidade e a extravagância contidas na proposta de uma arte que

busca se proclamar científica reside justamente em uma tentativa recorrente de se

submeter a provas, bases e métodos que desempenhariam o papel de pontes com

uma pretensa realidade. O movimento distingue-se pelo desenvolvimento de obras

marcadamente inclinadas à exposição de doutrinas e correntes ideológicas geradas

no ventre de saberes científicos recentes no período como as ciências sociais com

seu iniciante campo antropológico de observação sociocultural do ser humano

inserido em conjuntos e redes de sociabilidades; como o escopo das ideias

socialistas tomando formas mais rígidas e rigorosas nos escritos de Karl Marx e

Friedrich Engels, o chamado socialismo científico ou marxismo, que foram tomadas

nas manifestações de produções que buscavam impingir determinados pontos de

83 Documentos do Concurso de Sílvio Romero em 1875. Vamireh Chacon realiza uma proveitosa compilação de documentos – pareceres e correspondências – acerca do famigerado concurso que marcou a história da Faculdade de Direito do Recife e assinalou o início das dificuldades de Romero em fazer progredir formalmente sua carreira universitária: “Desejando, pela natureza de meus estudos e pela necessidade de publicar os meus escriptos, estabelecer-me, depois de bacharelado, em um dos grandes centros populosos do paiz, procurei esta cidade, onde estudei e d’onde minha pobreza não me permite sahir, e neste intuito pretendi ocupar um dos logares do ensino secundario ou superior do Imperio. [...] Meu delicto, Senhor, é haver tido a coragem de, na qualidade de crítico e homem de leituras, profligar na imprensa algumas doutrinas acceitas e affagadas por alguns individuos, que, por sua posição official, são hoje chamados para julgar-me em um pleito scientifico!... Não posso ser bem sucedido, julgado por meus inimigos particulares e rivaes de doutrinas!”. (sic) O trecho é de uma missiva de Romero destinada ao Imperador D. Pedro II. O apêndice do trabalho de Vamireh Chacon ainda conta com a apresentação de Der Deutsche Kaempfer, correspondências ativa e passiva de Tobias Barreto e Artur Orlando, a prova escrita de Artur Orlando no concurso de 1885 e uma relação de títulos pertencentes à biblioteca alemã de Tobias Barreto, importantes documentos que fornecem materiais de leitura importantes à compreensão de questões imanentes à Escola do Recife e alguns de seus membros. Ver CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 202-2013.

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vista em relação à organização social de classes; como também os estudos de

análise psicológica e comportamental do ser humano como criatura complexa fruto

de experiências individuais e vivências compartilhadas nas esferas da consciência e

da inconsciência e toda a sorte de distúrbios neurológicos e alterações de

procedimento – com destaque para as patologias femininas, sobretudo as

degenerações histéricas. Ainda havia ganhado destaque as teorias ligadas às

derivações surgidas a partir dos apontamentos de Charles Darwin, o determinismo e

o evolucionismo, aos quais foram acrescentados a composição social que justificava

a analogia da utilização da teoria para análises nos contornos das comunidades

humanas dando forma ao que ficou conhecido como “Darwinismo social”. Muitas

outras abordagens ainda foram sendo apropriadas por escritores e poetas

científicos, inclusive a própria representatividade da linguagem como maneira de

apresentar e simbolizar os sentidos de realidade – os princípios que desembocariam

na linguística moderna e nos estudos semiológicos concebidos inicialmente por

Ferdinand de Saussure. O arsenal de novidades era bastante volumoso.

Todo esse universo de teorias, estudos, teses e construções científicas serviu

de matéria para abastecer muitos tratados, artigos de jornais e revistas, panfletos e

livros de bibliotecas inteiras. Porém se, num movimento que seria natural para todos

os preceitos científicos84, todo esse mobiliário foi modificado, suplantado e superado

por outros pensadores, filósofos e cientistas que sucederam tais experimentos e

teorias, determinadas produções revelam a um público mais abrangente os traços

desse período. São as obras artísticas – ainda que os autores destas tenham

revogado para si mesmos a chancela de cientificidade – que apresentam de maneira

diluída, porém efetiva, a aglutinação de muitos dos debates vigentes. Ante volumes

indigestos de obras truncadas que com o tempo foram ficando cada vez menos

procurados e manuseados, relegados à poeira e às traças das estantes, as poesias

e, principalmente, os romances – sobretudo os romances de costumes – obtiveram

vantagem em seu alcance de público. É possível, portanto, obter uma espécie de

conhecimento do período com todos os seus dilemas, influências e críticas a partir

da estética e ética (fatores indissociáveis: “[...] na verdade o projeto estético, que é a

crítica da velha linguagem pela confrontação com uma nova linguagem, já contém

84 Cf. WEBER, Max. Ciência e Política: duas vocações. Tradução: Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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em si o seu projeto ideológico”.85), a partir de toda estrutura e enredo que marcavam

o compasso de realidades circundantes. Somados a esses fatores, aconteciam

mudanças substanciais e eventos específicos sendo processados no território

brasileiro que ora potencializavam a entrada de novas ideias do continente europeu,

ora modificavam ou ainda minimizavam as influências estrangeiras. Um dos

principais pontos de catalisação e difusão cultural, político, filosófico e científico

neste período foi a Escola do Recife, movimento germinado nos bancos da

Faculdade de Direito do Recife.

3.2 Escola do Recife: um bando de ideias novas

O conjunto de elementos, membros, ideias, alcance e períodos que se

convencionou nomear com a expressão Escola do Recife é de complexa definição.

Trata-se de uma reunião por vezes bastante incoerente no âmbito interno, com

pouca ou nenhuma organização acertada dentre as peças do grupo de atuação

difusa em diversas áreas de produção científica e cultural que contrariam a noção

semântica que inicialmente associa-se ao termo “escola”. De maneira resumida,

Clóvis Bevilaqua explica que

A Escola do Recife não era um rígido conjunto de princípios, uma sistematização definitiva de ideias, mas sim uma orientação filosófica progressiva, que não impedia a cada um investigar por sua conta e ter ideias próprias, contanto que norteadas cientificamente.86

Reforça-se, de maneira bastante nítida, o caráter científico do movimento, ou

seja, um ponto que estabelece a conexão dentre as produções realizadas, uma base

de sustentação para aceitar ou rejeitar determinados membros. O norteamento

científico, segundo Bevilaqua, deve estar presente em todas as manifestações,

inclusive nas obras literárias e culturais. Também havia outras aproximações

possíveis que se pode apontar de maneira genérica. Em assuntos políticos, havia

uma consonância nas críticas à monarquia brasileira, o clamor pela reforma eleitoral

85 LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o Modernismo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p. 20. 86 BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2. ed. Brasília: INL, 1977, p. 375.

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e a combativa defesa do estado laico. Destoando com a cultura francófila importada

pela corte brasileira e intensamente reproduzida pelas altas classes do país,

obtendo notável presença na literatura produzida pelos membros do movimento

romântico, o núcleo situado na província pernambucana instituía um certo desprezo

ao prestígio da França, elegendo a Alemanha – e, principalmente, os seus filósofos

e cientistas sociais – como paradigmas do exercício da razão, da ciência e da

austeridade teórica, inclusive abraçando o pouco falado e inteligível (no Brasil)

idioma germânico que, ao contrário da língua francesa e do fenômeno galicista

bastante presentes na língua portuguesa e muito comum entre os habitantes do

país, era um código distante, incompreensível para boa parte dos brasileiros, mesmo

os mais estudados e considerados cultos. Mas, ainda que recorrente e comum no

período de maneira geral, a sintonia com a cultura francesa parece ter encontrado

significativa resistência no bloco intelectual da província pernambucana:

[...] Artur Orlando foi profético nas suas três grandes admirações por países, ao longo da vida: Alemanha, Rússia e Estados Unidos... Paris, tão querido (sic) dos numerosíssimos francófilos brasileiros ainda hoje predominantes, nunca foi o seu fraco... Nem o de ninguém da Escola do Recife.87

O mais lembrado nome na representatividade do devotamento intelectual

germânico do período é um dos fundadores da Escola: Tobias Barreto. Em reflexão,

Vamireh Chacon avalia:

Ninguém destacou, por exemplo, que Tobias foi o primeiro pensador brasileiro a proclamar a importância de Marx; aspecto que mal interessou a Zhakob Bazarian, da Academia de Ciências da U.R.S.S. Com efeito, parece ter sido Tobias, nisto precursor como em tantas outras coisas, quem citou Marx pela primeira vez no Brasil, em discurso de colação de grau dos bacharéis de 1883: “Karl Marx diz uma bela verdade, quando afirma que cada período tem as suas próprias leis... Logo que a vida atravessa um dado período evolutivo, logo que passa de um estádio a outro, ela começa também a ser dirigida por leis diferentes”. “A questão cardeal do nosso tempo não é política e nem religiosa: é eminentemente social e econômica”.88

E acrescenta em um tom de reminiscência nostálgica, chegando mesmo a

demonstrar-se comovido pelo seu achado:

87 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 110. (grifos do autor). 88 Ibid., p. 31-32.

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E lá vem a referência do próprio Tobias: lera a terceira edição d’O Capital(“dritte vermehrte Auflage”, de 1883), e anotara as páginas XV e XVII. Tivemos a emoção de consultar um dia, na Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, as páginas amarelecidas, lidas pelo provincianismo profético em tantas ocasiões. Só mesmo um apaixonado pela Alemanha descobriria Marx, para o Brasil, numa época de exacerbada francofilia.89

É essa francofobia que estimula Tobias a organizar, em 1877, o “Club

Popular” de Escada, município pernambucano distante cerca de 63 km do Recife e

refúgio do pensador sergipano durante dez anos devido ao seu casamento com a

filha de um proprietário de engenhos. A associação chegou a receber a visita do

príncipe Heinrich da Prússia, motivo pelo qual seu fundador faria a seguinte

declaração, deixando à mostra seu sentimento de desforra:

[...] ora, na terra enfim, onde eu fôra alvo de insólitos desdéns, como chefe da chamada escola teuto-sergipana, até da parte do jornalismo da corte, que um príncipe alemão se tornava objeto de contemplação e curiosidade geral. Oh! sem dúvida eu tinha motivo de rir! Realmente, eu me sentia triunfante.90

Foi também durante a sua permanência no município do interior de

Pernambuco que Tobias chegou a organizar, escrever e publicar um jornal redigido

inteiramente em língua alemã, intitulado com a expressiva designação Deutscher

Kämpfer, que em português corresponderia a O Lutador Alemão – ao que Costa

comentaria do jornal “composto por ele e, muito provavelmente, apenas por ele

lido...”91. Tobias também publicou, ao menos, três monografias no idioma alemão:

Brasilien wie es ist in literarischer Hinsichet betrachtet (Brasil, considerando-se uma

questão literária - 1876), Ein offener Brief an die Deutsche Presse (Uma carta aberta

à imprensa alemã – 1878) e Rechtsleben und Rechtstudium in Brasilien (Vida e

Direito, estudos no Brasil – 1880)92, além de outros textos, também em alemão,

sobre o pensamento ou a influência da Alemanha. Costa transcreve a impressão de

89 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 32. (grifos nossos). 90 Ibid., p. 36. (grifos nossos). 91 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 396. 92 Traduções livres do idioma alemão.

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Gilberto Amado em relação a Tobias: “Ao chegar à cultura alemã ficou louco,

delirante como uma criança que encontra numa loja brinquedos em profusão”93.

Na esfera literária, os integrantes tendiam a desnudar o esgotamento de um

modelo romântico. Em um resumo de tópicos recorrentes, pode-se listar:

Dentre os temas mais trabalhados pelos seus principais integrantes, observamos: ataques aos grupos católicos e à religião; proposta de ampliação dos direitos políticos e civis às mulheres e aos não católicos; liberdade religiosa; extinção do Poder Moderador; fim do Senado vitalício; defesa da descentralização do poder administrativo; e a proposta de superação do movimento literário romântico.94

A Escola do Recife teria instituído o Naturalismo filosófico, razão pela qual

Sílvio Romero reivindicaria o reconhecimento de uma influência do elemento no

panorama literário nacional ao afirmar que “o moderno Naturalismo do romance

brasileiro... é também um produto do movimento do Norte”95. Romero ainda foi

capaz de tecer uma avaliação própria do fenômeno, apontando o Naturalismo como

um “modo de compreender a sociedade semelhante a aquêle por que se

compreendem os fenômenos naturais”96. O pensador sergipano reconhece os

desvios e incompreensões que o termo teria causado nas artes e aponta “o grande

êrro do nosso tempo: a aplicação errada e também multuária dos métodos e

processos das ciências inferiores às ciências superiores”97. Vamireh Chacon

considera a ponderação de um outro membro da Escola do Recife:

A amizade que o unia a Tobias impediu-o de reconhecer aquilo que Sílvio Rabelo apontou com tanta felicidade: em Franklin Távora, Celso Magalhães, Domingos Olímpio, Carneiro Vilela, e até Graça Aranha, “essa influência carregada de muito cientificismo de Tobias teria de ser nefasta. Um excesso de espírito crítico haveria de fazer desses discípulos do mestre do Recife uns romancistas pesados demais em liberdade de criação”.98

93 COSTA, João Cruz. O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. OBrasil Monárquico: reações e transações. 8 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 396. 94 NASCIMENTO, Márcio Luiz do. Primeira Geração Romântica versus Escola do Recife:trajetórias de intelectuais da Corte e dos intelectuais periféricos da Escola do Recife. São Paulo: USP, 2010. 256 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 175. 95 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 148. 96 Loc. cit. 97 Ibid., p. 148. 98 Loc. cit. (grifos nossos).

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51

O próprio Vamireh Chacon expõe sua análise do contexto, argumentando,

inclusive, a discrepância de recepção e reconhecimento das chamadas obras

periféricas em relação às produções de autores estabelecidos na corte com atenção

especial a Carneiro Vilella:

Com efeito, todos os mencionados romancistas eram muito intencionais;embora sem o “Zolismo” de Aluízio de Azevedo ou doutros, Faria Neves Sobrinho, em sua novela Morbus e no conto “O Hidrófobo”, exala um determinismo que chega às raias do absurdo. Em Franklin Távora, Domingos Olímpio e Carneiro Vilela, o Naturalismo é temperado por um Provincianismo, mais que Regionalismo, que os humaniza, fincando-lhes as raízes na terra, fazendo-os descer da estratosfera cientificista para onde tinham sido lançados pelo sôpro violento de Tobias Barreto. Sílvio Rabelo referiu-se ao prejuízo que as paixões políticas devem ter trazido à construção das obras de Carneiro Vilela. Sucede que Franklin Távora se deixou empolgar ainda mais por elas, conforme o prova seu engajamento panfletário na Questão Religiosa, e nem por isso deixou de ser o romancista que foi. Acontece, porém, com Carneiro Vilela, idêntico fenômeno do tipo ocorrido com a Inconfidência baiana de 1789 e a Revolução pernambucana de 1848, tão carregadas do pioneiro sentido socialistas: se elas fossem mineiras ou paulistas, conforme disse irônicamente Barbosa Lima Sobrinho, seriam hoje muito mais conhecidas e festejadas... Cessariam alguns dos ataques, se a Escola não fôsse do Recife...99

Sílvio Romero, aliás, realiza essa e outras reivindicações de propriedades ou

pioneirismos intelectuais que estariam sendo usurpadas ou esquecidas pelos

próprios companheiros. Em carta a Artur Orlando, sem data, o pensador sergipano

protesta:

Êsses meus amigos daí têm a facilidade de 1º falar em escola do Recife sem me citarem como historiador de tal escola e até o criador do nome; 2º falar das fases da Escola, pulando a mais importante: a da reação; 3º falar em guerra ao romantismo no Brasil, esquecendo que fui o primeiro a romper nesse terreno, a luta; 4º falar em cientificismo na poesia, não lembrando que quem isto primeiro pregou no Brasil fui eu; 5º falar em nova intuição do Direito – sem lembrar que na minha defesa de tese da dissertação, já vêm as linhas capitais da coisa; 6º falar em História do Direito sem lembrar que, antes do Martins já eu tinha feito a História do antigo Direito em Espanha e Portugal.100

“Para mencionar o essencial”, segundo Antônio Paim, o conjunto de

produções englobadas pela Escola do Recife é bastante eclético e numeroso,

99 Mais sobre essas questões que tangem a obra e a imagem do autor d’A Emparedada da Rua Nova serão tratadas no terceiro capítulo desta dissertação. CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 149. (grifos do autor) / (grifos nossos).100 Ibid., p. 277-278. (grifos do autor) / (grifos nossos).

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abrangendo as áreas do direito, da política, estudos folclóricos, as inaugurações da

sociologia no Brasil, crítica literária, história da literatura no país, além das obras

literárias em si101. Diante da difusão temporária, empregam-se alguns marcadores

para delimitar, ao menos didaticamente, períodos ou fases da Escola. De maneira

geral, admite-se que o movimento teria se estendido por cerca de sessenta anos,

iniciando-se na década de 1860 e tendo fôlego até meados da segunda década do

século XX.

Existem três estágios principais que geralmente são apontados numa

cronologia da Escola e compreendem gerações ou ciclos de pensadores: o primeiro,

cujo nome sobressaliente é o do seu fundador, Tobias Barreto, apoiando-se

sobretudo, no darwinismo e no materialismo, estágio iniciado na década de 1860 e

finalizando-se no ano de 1875. A segunda fase, vista como um “processo de

diferenciação” inicia-se após a anunciação de morte da metafísica declarada por

Sílvio Romero, que é tido como principal representante desse momento, devido à

sua proximidade pessoal e profissional com Tobias Barreto, Romero estendeu as

ideias iniciais, ampliando-as e agregando outros raciocínios nos anos seguintes. É

nesse momento que a Escola do Recife inicia o seu processo de distanciamento do

positivismo em busca de uma nova doutrina, de uma posição autônoma que

diferenciasse das correntes vigentes do país e impelisse as suas produções a

romper criticamente com as ideias hegemônicas, levando cerca de dez anos nesse

processo. Sílvio Romero detalhou com suas próprias palavras – em A Filosofia no

Brasil, de 1878 – a sua relação com as ideias positivistas, mesmo considerando-se

um recente adversário de Comte: “outrora seu sectário, na ramificação dirigida por E.

Littré, só o deixei quando livros mais desprevinidos e fecundos me chegaram às

mãos”102. E esclarece quais seriam os autores dessas obras mais fecundas e

desprevinidas:

Comte só foi largado por amor a Spencer, a Darwin, a Haeckel, a Büchner, a Vogt, a Moleschott, a Huxley, e ainda hoje o lado inatacável, aquilo que sempre restará de sua brilhante organização filosófica, me prende complemente.103

101 PAIM, Antônio. A Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Vol. V. 3 ed. Londrina: Editora UEL, 1997. 102 LINS, Ivan. História do Positivismo no Brasil. 2. ed. revista e aumentada. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1967, p. 134. 103 Loc. cit.

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A terceira fase é considerada como o apogeu do movimento devido à intensa

atividade intelectual no campo da filosofia. Neste momento, houve uma

considerável produção e publicação de obras importantes no esboço da base da

Escola do Recife: Doutrina contra Doutrina (1894), Ensaios de Filosofia do Direito

(1895) e Ensaios de Sociologia e Literatura (1899), de Sílvio Romero; Esboços e

Fragmentos (1889) de Clóvis Bevilaqua; Ensaios de Crítica (1904) de Artur Orlando;

Cosmos do Direito e da Moral (1894/98) de Fausto Cardoso, além da organização e

da reedição de obras de Tobias Barreto por parte de Sílvio Romero104.

Como o nome do movimento já explicita, a gênese e a concentração da

Escola do Recife se deram na capital pernambucana, irradiando-se da sua

Faculdade de Direito, berço intelectual de muitos políticos, artistas e pensadores

brasileiros. No entanto, os debates suscitados a partir da instituição pernambucana

não se restringiram aos limites da província, alcançando considerável repercussão

pela divulgação de suas ideias por meio de materiais impressos, discursos e

discussões, além do constante trânsito de estudantes pelas regiões do país.

A Faculdade de Direito da capital pernambucana, por ser à época o único estabelecimento de ensino superior no Nordeste, recebia alunos das diversas províncias daquela região. Essa circunstância permitiu a irradiação das idéias da Escola do Recife [...].105

Portanto, a Faculdade de Direito do Recife, que já era reconhecidamente um

polo de disseminação intelectual e cultural do país, assentou-se como um centro

importante de novas ideias postas em debate em terras brasileiras. Antônio Paim

distingue, ainda, uma relação da Escola do Recife na influência do projeto cultural

modernista, que tem como data de referência histórica a Semana de Arte Moderna

de São Paulo, ocorrida em 1922106.

Por não ser um grupo fechado, coeso e consistente em relações interpessoais

– se consideramos os conjuntos geralmente apontados como partes inscritas no

movimento, pois é sabido que o núcleo fundador mantinha íntimas ligações tanto no

que tange ao campo intelectual, como nos laços de amizade e mesmo compadrio –,

o enquadramento dos seus membros também torna-se uma tarefa um tanto quanto

104 Cf. PAIM, Antônio. A Escola do Recife: Estudos Complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil. Vol. V. 3 ed. Londrina: Editora UEL, 1997. 105 Ibid., p. 47. 106 Ibid., p. 94.

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incerta, pois muitos dos que são descritos como integrantes da escola não se

autodeclaravam como tal. Existem os nomes que estão intimamente relacionados

desde a fundação do movimento e que são figuras infalíveis e certificadas como os

mais lembrados indubitavelmente: Tobias Barreto e Sílvio Romero. A listagem conta

com a presença de Clóvis Bevilaqua, Franklin Távora, José Higino, Araripe Júnior,

Aníbal Falcão, Plínio de Lima, Fausto Cardoso, Vitoriano Palhares, Artur Orlando,

Martins Júnior, Celso Magalhães, Inglês de Souza, Graça Aranha e Carneiro Vilella.

Vamireh Chacon comenta os critérios – ou a falta deles – na titulação dos nomes

que são apontados como membros da Escola do Recife, tece uma crítica ao avaliar

a fórmula que chega a inserir figuras como Castro Alves e apresenta uma espécie

de listagem, organizada por Graça Aranha, que seria mais razoável:

Êste critério – de considerar “Escola do Recife” os estudantes de Direito contemporâneos, em Pernambuco, a Tobias e Sílvio – é evidentemente abusivo. Alguns – como Castro Alves, Rui [Barbosa] e Fagundes [Varela] – pouco demoraram lá, e quase todos se colocaram mesmo contra Tobias. Sem dúvida, nenhum pôde ignorá-lo, o que já representa muito para a vitalidade intelectual do teuto-sergipano, porém “Escola” foi constituída apenas por seus discípulos, diretos ou indiretos. Graça Aranha – êle próprio um dos últimos discípulos diretos de Tobias – delimitou muito bem os círculos em tôrno do mestre: “No primeiro momento, no período do concurso [de Tobias Barreto ao ingressar na Faculdade de Direito do Recife], o grupo de Tobias Barreto se fortalecia nos seus adeptos Clóvis Beviláqua, Artur Orlando, Martins Júnior, Guimersindo Bessa, Fausto Cardoso, Oliveira Teles, Faelante da Câmera, Souza Bandeira e, entre outros menos expressivos, Urbanos Santos, Benedito Leite e Francisco Viveiros de Castro. Foram estes os principais representantes da ‘Escola do Recife’, inspirada também em Sílvio Romero. Os que mais possuíam a iniciação secreta de Tobias Barreto, os que mais participavam das suas confidências e o seguiam de perto, eram sem dúvida Artur Orlando, Gumersindo Bessa e Fausto Cardoso. Os outros tinham profundas ligações, mas por alguns lados escapavam à disciplina do mestre”.107

É certo que após a sucessão de fatos e o tempo decorrente entre o momento

de produção das obras inseridas no contexto da Escola do Recife possibilite uma

análise que aponte falhas intelectuais e desequilíbrios na dosagem teórica da

construção de suas produções culturais. Porém, no dizer de Chacon:

Não se pode julgar A Escola do Recife apenas por seus equívocos literários – repulsa de Tobias e Sílvio a Castro Alves, oposição a Taunay, Machado

107 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 122-123. (grifos nossos).

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de Assis e José Veríssimo – e sim por sua contribuição global à evolução nacional.108

A Escola do Recife reivindicou a distinção de um modelo advindo da corte,

buscando pensar, retratar e expor outras realidades do Brasil. Trata-se de um

deslocamento de eixo geográfico, cultural, político e social.

3.3 Um agitador de ideias: breve perfil intelectual de Carneiro Vilella

Foi no contexto desses tempos de ebulição cultural e de ideiais que A

Emparedada da Rua Nova foi gerada. A produção apoiou-se nas bases de debates

do período para compor a urdidora de elementos que resultou na montagem do mais

conhecido romance de Carneiro Vilella. O autor d’A Emparedada, aliás, fazia-se

bastante presente nos debates desenvolvidos no período, lançando mão de muitas

facetas e habilidades: nas produções literárias de romances e de poesias, na

atuação como jornalista em diversos periódicos da cidade, na virulenta pena de

cronista, nas estampa de folhetins e ainda na produção de peças teatrais, em

caricaturas e mesmo no campo da pintura, esta última esfera ainda menos

conhecida do que as outras manifestações de Carneiro Vilella. Luiz Delgado resume

a postura do escritor em uma sentença: “Era um poderoso agitador de ideias”109.

Carneiro Vilella iniciou os estudos na Faculdade de Direito do Recife no ano

de 1861, portanto circulou em ambiente e tempos próximos ao berçário da Escola do

Recife. Esteve inserido no contexto embrionário do movimento das ideias novas e

nos anos seguintes, marcados pelo desenvolvimento, tanto dos debates surgidos na

instituição pernambucana, como da sua própria produção intelectual e artística. Isso

não quer dizer que Vilella tenha sido alguma espécie de sócio ou membro declarado

da Escola – muitas vezes o jornalista esboçava justamente uma postura contrária a

filiações em determinados grupos, ainda que manifestasse consonância com

108 CHACON, Vamireh. Da Escola do Recife ao Código Civil: Artur Orlando e sua geração. Rio de Janeiro: Organizações Simões, Editora, 1969, p. 186. (grifos do autor). 109 Discurso de Luiz Delgado na ocasião da posse do escritor Aderbal Jurema na Academia Pernambucana de Letras (APL). Revista da APL, n. 17 – 1º semestre de 1967 apud VAREJÃO FILHO, Lucilo. Breve Notícia. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3 ed. Recife: Coleção Recife, 1984. Prefácio de Lucilo Varejão Filho.

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algumas ideias. Vilella, como muitos outros membros da Escola do Recife, não se

reconhecia como tal e não há registros de declarações, concessões ou

apontamentos do próprio autor em relação direta aos debates de ideias da Escola do

Recife. O que existem são inferências e constatações derivadas de análises que

permitem o enquadramento de Carneiro Vilella – bem como outros membros – nos

preceitos levantados pela Escola do Recife. Em alguns momentos é perceptível o

tom de pouca importância ou mesmo uma indisfarçada galhofa conferidos a

determinados temas que se tomavam como grandes questões do período. Na

crescente influência germânica que vinha germinando entre os membros da Escola

em contraponto à histórica francofilia irradiada a partir da corte, o cronista escreve

ao final de uma de suas cartas – crônicas publicadas no Diario de Pernambuco:

Agora, porém, reparo que comecei prometendo tratar de política e... De que fui ocupar-me? De uma poesia alemã, isto, de uma coisa que quase ninguém compreende, e da mentira de que tudo entendem, e da qual fujo às léguas, como o diabo da cruz.110

E, ainda, logo na crônica seguinte, fala acerca dos grandes assuntos do

momento com um teor de dissimulada admiração:

Quando alguém o acusava [ao seu amigo médico alemão do Rio Grande do Norte] por isso [pelo elevado número de doenças e de mortes ocorridas enquanto o doutor alemão esteve em atividade no hospital do Passo da Pátria], porém, o meu amigo, que além de médico era filósofo, ainda como o alemão, respondia fleumaticamente que sendo o povo do Rio Grande do Norte muito infeccionado de maus hábitos e de vícios hereditários, era preciso, em bem da humanidade, pôr em prática a teoria da seleção, não só para corrigir a natureza que andava muito torta, como para aperfeiçoar a raça humana... do Rio Grande do Norte. A mim parecia-me que era levar muito longe a tal teoria da seleção, mas como o homem era alemão, além de alemão, sábio, e, além de sábio, doutor... eu metia a viola no saco e resignava-me a receber, naquilo como em tudo o mais, um xeque-mate de fazer vergonha. Só numa coisa nunca consegui ele dar-me um xeque-mate: foi em fazer-me engolir o seu quinino.111

É bastante nítido, pelos exemplos transcritos acima, a postura de Carneiro

Vilella ante si mesmo e as realidades em que vivia. Faz uma arranhadura no cristal

erguido pelos adeptos das – então – novas correntes do evolucionismo social e

ainda escarnece de muitos dos seus colegas de província, de formação e de ofício

110 LIMA, Fátima Maria Batista de Lima. Cartas sem arte: Crônicas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 77. (grifos nossos). 111 Ibid., p. 79. (grifos nossos).

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fascinados por uma supremacia alemã em tudo, até na expressão linguística

(lembremos-nos do periódico de Tobias Barreto completamente redigido no idioma

alemão). Tratava-se de um homem inserido no tempo das novas ideias, apontado

recorrentemente como membro de um grupo que defendia algumas dessas linhas,

mas que mantinha uma forte autonomia intelectual, ressaltando sua individualidade.

Em muitos momentos, sugere mesmo uma ruptura ou afastamento dessas

organizações e grupos, tecendo críticas em tom de zombaria, lançando ao vento as

mais diversas teorias dos mais variados autores num só gesto de zombaria, de

crítica desdenhosa e irônica.

Alguns pontos na trajetória intelectual do escritor devem ser levados em

consideração na medida em que sugerem importantes traços para a compreensão

do contexto de produção e para o entendimento da rede de influências que estavam

em jogo no tempo de florescência das obras. Na compreensão de Umberto Eco, “só

explicamos e entendemos uma obra e um autor quando os inserimos em um

panorama”112.

Talvez a única sociedade a que o autor d’A Emparedada da Rua Nova

afiliava-se com afinco seja a Maçonaria. Sua adesão era bastante sólida e

declarada abertamente. Um episódio altamente emblemático remete à Questão

Religiosa ocorrida na primeira metade da década de 1870. O acontecimento foi

resultado de uma exacerbação de ânimos entre o Império brasileiro e a Igreja

Católica: o papa Pio IX havia proibido a ligação de membros da Igreja com a

Maçonaria, porém Pedro II, reconhecido maçom, ignorou a bula, anulando sua

validade em território brasileiro, devido ao sistema de padroado – pelo qual os

decretos papais só seriam legitimados ante o consentimento do imperador. Porém,

o bispo D. Macedo, de Belém, e D. Vital, do Recife e de Olinda, iniciaram o processo

de expulsão de membros da Maçonaria das irmandades católicas. D. Pedro II, por

sua vez, decretou a prisão dos dois bispos.113 Neste momento, Carneiro Vilella

apresentou-se como um ativo debatedor dos acontecimentos nos jornais do Recife,

voltando-se contra os que apoiavam a ordem do papa, inclusive contra D. Vital, seu

antigo colega dos tempos de colégio, portanto velhos conhecidos. Pará e

Pernambuco foram alguns dos estados em que os ânimos mais se exaltaram

112 ECO, Umberto. Como se faz uma tese. 3 ed. São Paulo, Editora Perspectiva, 1986, p. 10. 113 Cf. ALVES, Antônio. História: O Mundo – Idade Contemporânea / O Brasil: República até hoje. Recife: Liber, 1982.

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durante o episódio, abrigando severas reações entre as duas partes envolvidas,

bispos e maçons, gerando principalmente um intenso imbróglio entre o Estado e a

Igreja Católica Em reconhecimento à implacável crítica do jornalista, membros da

maçonaria do Pará convidaram Carneiro Vilella em 1876 para uma visita ao estado,

ocasião em que foi recebido com grande contentamento:

Por cartas particulares, vindas hoje do norte, sabe-se que chegou ao dia 17 ao Pará, o nosso comprovinciano, o Sr. Dr. Carneiro Vilella. Algumas comissões de diversas lojas maçônicas fretaram um rebocador e o foram receber a bordo, desembocando no meio de uma multidão, que o recebia de braços abertos e com verdadeiro entusiasmo.114

A notícia é do jornal pernambucano A Província de 28 de junho de 1876 e

demonstra o alcance atingido pela crítica do jornalista e o seu empenho na defesa

da laicidade do estado. Além da recepção calorosa, a notícia relata detalhes da

visita informando que as lojas maçônicas e o teatro da cidade estavam

embandeirados para que durante a noite houvesse iluminação especial e espetáculo

de exibição da peça Maçons e Jesuítas de autoria do próprio Carneiro Vilella, “sendo

o seu autor chamado ao palco por muitas vezes e, freneticamente, aplaudido” e

ainda ao final do último ato recebeu “dezoito buquês, com ricas fitas bordadas a ouro

e uma caneta e pena de ouro”, além de outros presentes dedicados à pessoa do

jornalista e a oferta de um baile preparado em comemoração pela presença do

escritor pernambucano115. O episódio da Questão Religiosa é elencado pela

historiografia brasileira como um dos fatores que teriam contribuído para acelerar a

decadência do governo imperial no Brasil.

Já na década de 1880 é possível verificar o envolvimento de Carneiro Vilella

durante a longa campanha abolicionista, encabeçada localmente por figuras como

Joaquim Nabuco e José Mariano Carneiro da Cunha. Apesar da carência de fontes,

pode-se inferir o seu apoio e participação junto ao Club do Cupim116, organização

abolicionista fundada em 1884 no Recife por João Ramos com o “único lema de

libertar os escravos por todos os meios”. O Club – com o muito apropriado e

114 VILELLA, Carmélio dos Santos. Carneiro Vilella: nascimento, vida e morte. Recife: Ed. Do Autor, 2005, p. 63. 115 Ibid., p. 117. 116 Para mais informações sobre o Club do Cupim conferir VILELA, Carneiro. O club do cupim. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano. Recife, 27:417-427 e Jornal Pequeno, Recife, 15 maio 1905. Texto das atas do Club do Cupim. In: SILVA, Leonardo Dantas. A abolição em Pernambuco. Recife: Fundaj, Editora Massangana, 1988, p. 30.

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sugestivo nome de Cupim – é lembrado, inclusive em texto comemorativo produzido

por Carneiro Vilella já em principios do século XX, onde são narradas algumas das

peripécias associadas às operações que tomavam os cativos e os levavam para

lugares em que viveriam em liberdade, como algumas cidades do Ceará e do Rio

Grande do Norte que já tinham posto fim ao regime escravista em principios da

década de 1880.

Três pilares marcam o tempo de produção que embasou as obras produzidas

por Joaquim Maria Carneiro Vilella: o individualismo, o cognitivismo e o

universalismo117. Essas colunas presentes na intelectualidade brasileira do século

XIX remontam a bases desenvolvidas no movimento iluminista. Elas formam uma

relação complementar umas às outras no que tange uma lin ha de raciocínio que

dialoga internamente, buscando contemplar pontos em comum. O individualismo

está pautado “tanto pelo direito do homem buscar a felicidade e a autorrealização

quanto pelo direito de ele exercer a crítica às normas sociais”118. Dessa forma, o

indivíduo encontra espaço para uma tentativa de ação que afrouxe os laços que o

prendem a uma visão pré-determinada em um grupo fechado, ao mesmo tempo em

que assume as responsabilidades e consequências – satisfatórias ou não, boas ou

ruins – das atitudes que emanam desse princípio. Numa perspectiva cognitivista, o

homem se vê impelido a exercer sua intelectualidade – ou seja, sua racionalidade –

ante as experiências vividas. Assim, libera-se a influência mística, religiosa,

espiritual e mesmo teleológica. A racionalidade do cognitivismo incide para romper

as possibilidades de acomodações esotéricas – aqui no sentido de compreensão

retida por poucos, disseminada como conhecimento hermético e obscuro –

obrigando o indivíduo a valer-se de sua própria percepção, transformando-a em

elementos organizados racionalmente. Por último, o universalismo fornece a

amalgama necessária para conter os dois pontos anteriores. Esse princípio

responde pelo entendimento de que a civilização humana está regida por leis gerais

que perpassam fatores de comportamento, de sentimentos, de percepções. Ao

admitir essa consciência universal, a linha de raciocínio não deixa de considerar ou

invalida as variações sociais, econômicas e culturais das diferentes comunidades,

cidades, países e sociedades, mas considera a distinção fundamental dessa esfera

117 Cf. VIEIRA, Anco Márcio Tenório Vieira. Crônicas de um sem papas na língua: Carneiro Vilella. In: LIMA, Fátima Maria Batista de Lima. Cartas sem arte: Crônicas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012. 118 Ibid., p. 12.

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como um costume frente a uma organização inexoravelmente presente que seria a

natureza. O pressuposto da universalidade convocaria ainda a derivação de três

outros princípios “[...] validadores do comportamento moral – o direito natural, o

empirismo e a conformidade com a própria razão [...]119. Esses três últimos

elementos, mais uma vez, complementares em todo o ciclo de pensamento,

integram as cadeias de parâmetros do racionalismo/cognitivismo, do individualismo

e estão pautados em uma lógica de universalidade, obedecendo a princípios morais

de humanidade.

Muitos dos escritores do século XIX foram encharcados por essas torrentes

de ideias. As estratégias de utilização desses parâmetros se arvoraram por

diferentes gêneros de obras. Na arte literária, os autores puderam se ancorar em

algumas condições estruturais e narrativas. Uma dessas principais peças no jogo

artístico – neste momento falamos, sobretudo, com relação às manifestações

artísticas escritas – foi a utilização da ironia como recurso crítico imanente às obras

em si. Ao valerem-se de uma criação sensivelmente irônica, as obras provocavam

ruídos entre o que se dizia e o que se referenciava, implicando em uma espécie de

estupor de sentidos. A ironia estava presente na forma – nos romances – e no

conteúdo, na crítica, nas crônicas, nos enredos.

Em certa medida, esses elementos estão presentes – em maior ou menor

grau – em quase todas as produções artísticas do período. Algumas dessas obras

perderam-se no tempo e na poeira das velhas bibliotecas, nas suas antigas e

poucas edições. Outras são consideradas obras-primas de determinados autores –

veja-se o clássico exemplo de Os Sertões de Euclides da Cunha. Uma parte

considerável dos escritos produzidos no século XIX carrega se não a defesa aberta

e ferrenha de certas ideias e/ou ideais, pelo menos a exposição de debates que

permeavam as conversas, os artigos de periódicos, os corredores das instituições de

ensino superior no país, enfim como alegou a historiadora Angela Alonso120, as

ideias estavam “em movimento” constante.

A obra de Joaquim Maria Carneiro Vilella está infectada por esses agentes

alteradores de pensamentos tão disseminados a partir de meados dos Oitocentos.

119 ROUANET, Sergio Paulo. Dilemas da moral Iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Companha das Letras, 2007, p. 211 apud VIEIRA, Anco Márcio Tenório Vieira. Crônicas de um sem papas na língua: Carneiro Vilella. In: LIMA, Fátima Maria Batista de Lima. Cartas sem arte:Crônicas. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2012, p. 12. 120 Ver ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

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É possível constatar os posicionamentos do escritor ao ler algumas linhas de suas

inúmeras crônicas – nessas obras o autor apresenta-se explicitamente em toda sua

característica virulência, porém sem abandonar a ironia latente de seus escritos – e

ao enveredar-se por algum enredo dos seus, pelo menos, 13 folhetins, além de uma

vasta obra em letras.

A Emparedada da Rua Nova, sem dúvida o título pelo qual o escritor é mais

facilmente lembrado, está prenhe de representatividade das confluências de

reflexões do século XIX – das quais abordamos em detalhes mais acima – em

diversos pontos: a busca de uma ponte com as experiências empíricas ao iniciar o

romance com uma notícia de jornal, montando o enredo a partir desse núcleo, por

exemplo. A frequente sugestão em uma tentativa de diluir os limites entre autor –

homem físico portador de documentação regular que assina a obra – e narrador –

elemento constituinte da produção literária que se responsabiliza pela exposição e

informação da trama, sendo também, no caso do narrador d’A Emparedada da Rua

Nova, uma personagem da trama; a crítica virulenta e persistente a tradicionais

instituições sociais como a família e, principalmente, o combate a determinadas

posturas envolvendo a religião católica – caracterizando o seu notável

anticlericalismo – sobrenadando o enredo do folhetim; a caracterização das

personagens obedecendo a uma lógica predominantemente determinista, eivada de

desígnios de raças e premissas de sangue, mas que ao mesmo tempo são

norteadas por um nivelamento moral despido de arquétipos ou pré-conceitos, uma

descrição que cede ao ímpeto individual pertencente à condição humana: são traços

extremamente patentes do tempo em que foi produzida e publicada A Emparedada

da Rua Nova de Carneiro Vilella121.

121 As características rapidamente apresentadas para ilustrar os pontos de contato com as correntes apresentadas neste capítulo serão analisadas com mais detalhes no terceiro capítulo desta dissertação.

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4 PASSEANDO NUMA VELHA RUA – ANÁLISE ESTRUTURAL D’AEMPAREDADA DA RUA NOVA

A Emparedada da Rua Nova figura como uma obra bastante peculiar na

produção literária brasileira. O romance mais notável de Carneiro Vilella alcançou

pífia difusão em território nacional. No entanto, a história romanceada de uma

sucessão de infortúnios que culmina com o assombroso crime de emparedamento

praticado por um descontrolado pai ao sacrificar sua filha grávida, encerrando-a nas

paredes da própria residência, alcançou notável posto na coleção de narrativas

assombrosas listadas pelo imaginário recifense. Mais até do que o livro em si, o

ca(u)so – lenda, mito ou, enfim, o texto – do acontecimento foi bastante apoderado

pelo conhecimento geral da cidade do Recife, sobretudo entre os moradores da

parte velha, tanto temporal como fisicamente.

O narrador d’A Emparedada da Rua Nova realiza um intrincado jogo

construtivo de forma a conduzir o seu leitor a um labirinto de significações que

impliquem numa delicada associação do que seria ficcional com o mundo real.122 A

narrativa inicia-se com um recorte completo de periódico: Jornal do Recife, 23 de

fevereiro de 1864, ou seja, nome de uma sólida publicação da cidade, data com mês

e ano, além da transcrição do texto na íntegra. Ao reproduzir em linhas

romanceadas a notícia de um estranho aparecimento de um corpo já em estado de

decomposição denunciado pelo voo concêntrico de urubus pairando sobre as

capoeiras do Engenho Suaçuna (sic) em Jaboatão, a narrativa ancorou suas bases

numa série sutil de emaranhadas circunstâncias descritivas que, por uma

sobreposição de episódios123, sugerem tantas inexatidões quanto convicções em

122 Para mais detalhes sobre este olhar acerca da obra de Carneiro Vilella ver IZÍDIO, Mirella. De Concreto e de Neblina: um estudo jornalístico sobre a construção de realidades no folhetim AEmparedada da Rua Nova. Recife, 2011. 85 p. Monografia (graduação) – Departamento de Comunicação, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011. 123 Em termos de gênero, será considerado formalmente episódio a definição estabelecida por Reis & Lopes: “uma unidade formalmente autônoma e destacada em relação a um todo narrativo cuja narração se processa com uma certa periodicidade, alargando-se por um lapso de tempo normalmente amplo. Em princípio, à autonomia formal dos episódios da série e do folhetim corresponde também uma certa autonomia em termos de ação.” E ainda a explicação semiótica: “unidade narrativa não necessariamente demarcada exteriormente, de extensão variável, na qual se narra uma ação autônoma em relação à totalidade da sintagmática narrativa, ação essa que estabelece conexão com o todo em que se insere por meio de qualquer fator de redundância (a personagem que protagoniza os diferentes episódios de uma narrativa, o espaço em que eles se desenrolam, as dominantes temáticas que regem a narrativa etc.). É justamente o fator redundância que permite, por um lado, conceber o agrupamento de vários episódios e, por outro, aproximá-lo e

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relação à história contada: a comprovação cabal do incidente relatado pelos jornais

da época facilmente verificável; a colocação de inúmeras pequenas informações

também prontamente constatáveis pelos jornais da época, como a passagem do

navio Magdalena pelo porto do Recife; a reportagem de situações e lugares

familiares aos recifenses e, ainda, a maneira como o acontecimento teria chegado

ao conhecimento do narrador: pelo relato de uma ex-escrava – de nome Joanna –

que teria servido na famigerada residência da Rua Nova e que “no ano de 1884 foi,

na Corte, criada do autor destas linhas”124 – aqui em uma espécie de amálgama com

o próprio autor, Carneiro Vilella, que residiu no Rio de Janeiro entre os anos de 1879

e 1886. A situação encaminhada pela construção narrativa suscita no leitor uma

débil divisão da nitidez estrutural do texto, “pois o narrador deixa de ser um

personagem de ficção para assumir uma condição extralinguística: a do autor”125.

Em outras palavras, poder-se-ia afirmar que toda edificação da narrativa

desenvolvida n’A Emparedada da Rua Nova tende a elevar os níveis de dúvidas

ante aos limites da narração, aos seus provocativos entraves que sinalizam certezas

desleais e deduções traiçoeiras. O comportamento discursivo que a obra assumiu

indica a possibilidade de alguns argumentos. Em primeiro lugar, destaque-se a

inserção do homem no seu tempo: a produção da obra de Carneiro Vilella encontra-

se mergulhada no espírito da movimentação de ideias dos fins do século XIX no

Brasil. Portanto, as influências da Escola do Recife e do Positivismo permeiam as

bases da construção narrativa do autor/narrador que, “dentro do espírito do

cientificismo que pautou a Escola do Recife, parece submeter a sua ficcionalidade

aos pressupostos científicos”126. É característica bastante nítida a notável

documentação, o diálogo constante com elementos que servem como pontes que

comprovem a irrefutabilidade dos fatos, a comunicação com referentes que se

encontram fora do âmbito da ficção, conferindo à obra uma singular distinção que a

distingui-lo da sequência: ‘Os episódios tendem a aparecer em feixes agrupados por uma isotopia específica. O seu ‘fechamento’ faz deles o equivalente de uma sequência semiótica, e a presença de uma isotopia unificadora agrupa-os numa unidade intermediária entre a sequência e o sintagma total do texto (Haidu).’” Ver REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina. M. Dicionário de Teoria Narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988, p. 33. 124 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 2013, p. 542. 125 VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 15. 126 Loc. cit.

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situa – sobretudo aos leitores leigos127 – num pantanoso terreno de indefinições

narrativas, pois é o próprio narrador quem desconstrói explicitamente o seu relato, a

despeito das linhas demarcatórias contornadoras do discurso que, em primeira

instância, se inscreve dentro de um texto de categoria narrativa definitivamente

ficcional.

Outro fator que contribui para esse aspecto são os chamados níveis

narrativos contidos n’A Emparedada da Rua Nova. O fenômeno consiste nas

versões que são dadas a determinadas construções narrativas partindo de um ponto

original e formulando círculos concêntricos a partir deste primeiro referencial. Assim,

cada círculo agrega novos elementos devido ao seu distanciamento do ponto inicial,

formando camadas, os níveis narrativos. Ao informar que a sua própria narrativa

não parte de um testemunho ocular, mas que foi adquirida por meio de uma outra

narração – a da criada que lhe serviu no Rio de Janeiro em 1884, Joanna – o

narrador matricula seus escritos em uma cadeia de desdobramentos narrativos.

Trata-se de uma declaração que possibilita medir a aproximação do relato que se lê

ante os acontecimentos sucedidos: não se está lidando com uma fonte primária. O

relato exposto pelo narrador, embora repleto de provas de (uma suposta)

confiabilidade, está enredado em um argumento recontado em um lugar e um tempo

distantes daqueles em que as tragédias se consumaram. No esclarecimento de

Anco Márcio Tenório Vieira:

Se por um lado, A Emparedada parece diluir os limites entre autor/narrador, por outro, em contraposição, a estória que nos é contada parece superar o estatuto ficcional da narrativa ao atribuir a sua fonte a um narrador – Joana – que pode ou não ser uma fonte fidedigna, que pode ou não estar fantasiando sobre o passado. Mais: se é Carneiro Vilela que narra AEmparedada, ele constrói essa narrativa a partir de uma outra narrativa, resgatada oralmente, por meio do recurso da memória, vinte anos depois dos fatos ocorridos. Logo, Carneiro Vilela, muito habilmente, desloca a relação autor/narrador para a relação de segundo narrador (Vilela)/primeiro narrador (Joana). Entre a sua narrativa e a narrativa primeira que foi resgatada da memória de Joana, dá-se uma tensão dialética entre linguagens (oral/documental), o que permite ao narrador construir, dentro do espaço romance, a fantasia, a matéria ilusória, a mimésis e a ficcionalidade. Ao leitor, cabe agora acatar o pacto que lhe é proposto pelo narrador: o de que n’A Emparedada, apesar de ter sido “fiel” às informações de Joana para

127 Por leitores leigos, de maneira geral, entendamos aqueles que não direcionam um olhar examinador e crítico no sentido de buscar entender os mecanismos de sentido que fazem parte da construção narrativa das obras. Em última análise, chamam-se leigos os leitores que buscam, com mais avidez e antes de qualquer outro motivo, a distração e o lazer sem objetivo de articular complexas construções acerca da estética, das considerações teóricas, das formulações narrativas, etc.

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as “cenas íntimas e violentas da família Favais”, ele, o narrador, precisou recorrer à imaginação para compor os demais enredos que formam a estória do romance.128

Esta singularidade d’A Emparedada da Rua Nova, por si, já é merecedora de

atenção: uma obra que dialoga, dentro de sua própria estrutura narrativa, com os

limites ficcionais, além de perpassar o imaginário de toda uma cidade por meio de

uma construção que agrega criação e/ou fundamentação lendária. Há outros

aspectos, porém, que serão analisados mais detidamente neste trabalho.

Com a data de publicação controversa129, o livro teria sido publicado pela

primeira vez em 1886. No entanto, por uma prática bastante difundida no período,

sua publicação em formato de folhetim aconteceu entre 3 de agosto de 1909 e 27 de

janeiro de 1912 no Jornal Pequeno, somando quase dois anos e meio de enlaces e

desenlaces no rodapé do periódico – a obra de Vilella durou mais tempo em

transmissão do que o célebre romance O Conde de Monte Cristo, de Alexandre

Dumas, ao qual se refere surpresa Marlyse Meyer: “uma publicação que segurou o

fôlego dos leitores durante um ano e meio!130. Vale salientar que o Jornal Pequeno,

hoje desaparecido131, era, neste momento, uma sólida e reconhecida instituição da

imprensa pernambucana que alardeava a posição de periódico mais lido na cidade

do Recife com a expressiva tiragem de 6.000 exemplares; era o mais antigo

vespertino em circulação no Norte do país. Ao considerar-se que Carneiro Vilella

128 VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 16. 129 A confusão se dá devido à existência do que seria a primeira edição d’A Emparedada da Rua Nova referente ao ano de 1886, ou seja, 23 anos antes da publicação da obra em folhetins pelo Jornal Pequeno, iniciada em 1909. A inexatidão torna-se ainda mais profunda quando se considera a possibilidade de a obra ter sido inicialmente intitulada Tragédias do Recife, publicada em fascículos pelo centenário Diario de Pernambuco e com descrições próximas a da obra mais famosa de Carneiro Vilella: composição de “factos dramáticos e reais” segundo seu autor, organização em 80 capítulos, inserção de quatro desenhos do autor, etc. Para mais detalhes acerca da temática conferir IZÍDIO, Mirella. De Concreto e de Neblina: um estudo jornalístico sobre a construção de realidades no folhetim A Emparedada da Rua Nova. Recife, 2011. 85 p. Monografia (graduação) – Departamento de Comunicação, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011; MENDONÇA, Helena Maria Ramos de. O Don Juan da Rua Nova: um estudo-itinerário sobre A Emparedada da Rua Nova, de Joaquim Maria Carneiro Vilela. Recife: O autor, 2008. 110 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.130 MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia da Letras, 1996, p. 62. 131 O Jornal Pequeno apareceu pela primeira vez no dia 1º de julho de 1888 sob o título de Pequeno Jornal e tendo como proprietário o arrendatário e gerente do Jornal do Recife Luís Pereira de Oliveira Faria, sob direção de Hersílio de Sousa, Paulo de Arruda e Júlio Falcão. Resistiu até o ano de 1958. Cf. NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954): Diários do Recife – 1829/1900. Vol. II. Recife: Imprensa Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1966.

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faleceu no ano de 1913 vítima de um acidente vascular cerebral (AVC) fatal, mas

que antes disso já havia sido acometido por dois derrames – em 1901 e 1908, este

último, inclusive, comprometendo seus movimentos do lado direito do corpo e

levando-o a desenvolver a ambidestreza para continuar escrevendo – a hipótese de

reapresentação d’A Emparedada da Rua Nova em formato de folhetim, devido às

dificuldades de criação de novas obras por conta de seu estado de saúde e às

necessidades financeiras, ganha força.

Embora a querela sobre a problemática da data original de publicação da obra

de Carneiro Vilella persista até que se comprove, de forma definitiva e transparente,

a correspondência entre os textos d’A Emparedada da Rua Nova e do que teria sido

o romance Mistérios do Recife, a forma de veiculação dos escritos não determina a

sua caracterização. Sabe-se: A Emparedada da Rua Nova corresponde a um

romance-folhetim em sua essência mais pronunciada: devido ao seu enredo, devido

à sua disposição narrativa, devido à tipificação de seus personagens baseados – ou

contrariando – velhos arquétipos, devido à sua temática e resolução e, ainda, devido

às suas surpresas e previsibilidades. Afirmar que o romance mais conhecido de

Carneiro Vilella remonta aos modelões europeus – dos quais são parâmetros

Eugène Sue, Alexandre Dumas e Ponson du Terrail – é procedente e bastante

pertinente, visto que muita influência europeia, sobretudo francesa, é distinguida nos

escritos do jornalista pernambucano: observe-se os títulos de Mistérios do Recife –

folhetim inconcluso publicado no Jornal da Tarde, do Recife132 – e de Os Mistérios

da Rua da Aurora (1891), o que pode ser uma referência emprestada ao estrondoso

sucesso de Eugène Sue, Os Mistérios de Paris (1842). Em nota da 3ª edição, Lucilo

Varejão Filho comenta a utilização da palavra corvo pelo narrador no trecho “Quatro

dias depois os corvos denunciava o lugar em que se achava o seu cadáver”.133 Para

Varejão, trata-se de influência das leituras europeias realizadas pelo seu

conterrâneo: “No Brasil não há corvos, mas urubus que são de outra família. As

aves que no Brasil correspondem aos corvos são as gralhas”134. Mais do que leitor

das literaturas europeias que atravessavam o Atlântico, há informações de que

Carneiro Vilella tenha desempenhado papel de tradutor de romances franceses para

a publicação de folhetins em periódicos locais. Pelo menos nos últimos anos de sua

132 NASCIMENTO, Luiz do. História da Imprensa de Pernambuco (1821-1954): Diários do Recife – 1829/1900. Vol. II. Recife: Imprensa Universitária da Universidade Federal de Pernambuco, 1966. 133 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3 ed. Recife: Coleção Recife, 2013, p. 22. 134 Loc. cit.

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vida, já com a saúde bastante debilitada, tanto física quanto mentalmente, o escritor

pernambucano assumiu o posto de tradutor de obras francesas para o jornal A

Província135. Entretanto, ao passo que A Emparedada da Rua Nova possui traços

que lhe aproximam das produções folhetinescas europeias, também agrega

elementos que destoam cabalmente das publicações fatiadas do Velho Mundo.

Portanto, os pontos centrais dos questionamentos deste trabalho residem nas

reflexões acerca da construção desse modelo, as possíveis fórmulas que produzem

o molde e até que ponto a imitação demarca as alternativas de originalidade. Se as

fôrmas já estavam prontas – descobertas, arquitetadas e implacavelmente

difundidas por hábeis franceses, mestres na arte da sedução e nos jogos de

suspensão de enredo – o que permite a alteração e até que ponto a mudança ainda

denota o mesmo modelo de modo que o chamariz continua no próximo capítulo

esteja sempre presente nas entrelinhas, ainda que não se tenha que esperar o

próximo número do jornal, a outra edição da revista ou o capítulo seguinte do

novelo? A arquitetura da excitação, doses mistas e crescentes de saciedade e

ansiedade convocam cada virada de página de modo que a suspensão do enredo

perturbe e regozije, estranhamente ao mesmo tempo. Busquemos vislumbrar as

veredas sinuosas dessa trajetória.

4.1 Desmembrando a narrativa – A obra, a construção, os elementos.

Em primeira análise, afirma-se sem grandes dificuldades que A Emparedada

da Rua Nova está inscrito na tradição dos romances-folhetins. O seu torvelinho de

acontecimentos e o emaranhado de informações, formando uma grande e

envolvente rede de tramoias, segredos e suas respectivas revelações que culminam

em um violento desenlace acompanhado de outras pequenas soluções que partem

de uma situação final, comum a todas as personagens envolvidas diretamente e

indiretamente na trama. Tradicionalmente, os romances-folhetins carregam a

redenção de vultosos finais felizes. A salvação é o consolo do leitor que aguarda,

pacientemente, tantos desprazeres, desventuras e injustiças na vida acompanhada

135 VILELLA, Carmélio dos Santos. Carneiro Vilella: nascimento, vida e morte. Recife: Ed. Do Autor, 2005, p. 118.

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pelos escritos do narrador. O happy ending, claro, não se estende para todos,

apenas para aqueles que o merecem, os que são bons, os flagelados pelos maus.

A estes últimos – os maus, ímpios, vis – caberá a justiça, a vingança, a pobreza, a

infelicidade e a morte. A punição dos maus, num mesmo grau que a chegada da

felicidade dos bons, é parte indispensável do final satisfatório clássico do romance-

folhetim tradicional. Não se pode simplesmente olvidar as maldades, os vilões não

podem ser esquecidos na impunidade: o sofrimento das criaturas infames é tão

importante quanto o sucesso dos injustiçados.

Isto posto, subentende-se a existência básica de bons e maus, a divisão

maniqueísta do mundo de forma polarizada contidas nas obras folhetinescas

tradicionais. As personagens devem estar de um dos lados e assumir um papel

claramente definido, nunca mutável. No romance-folhetim clássico o mundo não

admite regenerações ou corrupções no caráter: o bom não deturpa seu caráter em

nenhuma hipótese e sob nenhum tipo de pressão – financeira, social ou psicológica

– e o mau não encontra solução ou cura devido a amores, religiões ou purgações.

As essências nunca mudam porque esta é a disposição das coisas. A fórmula

tradicional requer esses elementos, é preciso a existência de um para justificar o

outro e as ações do enredo. No entanto, a obra de Carneiro Vilella foge a este

padrão e mesmo chega a ludibriar as expectativas do leitor, a escarnecer pelas

inusitadas possibilidades construídas pelas personagens. Observe-se.

O núcleo central da trama está cravado na família Favais, cujos membros são

os moradores da principal referência geográfica da obra: o sobrado – edificação que

une local de trabalho e residência de forma conjunta – localizado na Rua Nova. O

narrador alerta desde as primeiras descrições: o que aparentemente estampa uma

impressão, geralmente não corresponde à natureza, à essência dos seres. A

própria instituição familiar dos Favais representa a ideia de que, por mais que a

constituição e a situação externa fizesse julgar calmaria, tranquilidade e mesmo

felicidade – estabilidade financeira, educação tradicional para os filhos, hábitos e

comportamentos apoiados na moral religiosa cristã/católica, etc. –, no seu âmago,

na intimidade não penetrada por olhares superficiais, havia embates de sentimentos

e contradições de condutas que poderiam ser encobertos, mas não anulados. Aí

também, na construção das personagens e suas ações, se encontra ocasião para

dar-se vazão a um importante traço presente n’A Emparedada da Rua Nova: a

marca do cientificismo.

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A começar pela personagem-título do romance-folhetim: Clotilde Favais.

Percebe-se a proposta contestatória do narrador. De uma jovem nascida em uma

família estável e prestigiada na província pernambucana poder-se-ia esperar para

uma protagonista de folhetim – sabidamente, desde os princípios da obra devido ao

seu título, alvo de um crime hediondo – a descrição de uma inocente donzela,

condenada à morte por um pai tirano devido a um erro provocado por amor. Porém,

desde o primeiro contato, o narrador despe a complexidade que reside em Clotilde

Favais.

A descrição de seu tipo físico constrói misturas de povos diferentes – “De um

moreno claro – meio jambo e meio pêssego – produto de dois sangues, o europeu e

o americano”136. O cruzamento de raças que lhe conferiu uma singular beleza física

por outro lado revelou-se como uma perigosa associação de genes. Clotilde é

herdeira, portanto, das mais danosas características morais de dois povos distintos:

“[...] a mistura dos dois sangues, de que era oriunda, se lhe deu ao físico aquela perfeição material, deu-lhe ao espírito uma energia máscula e impetuosa, formou-lhe um coração capaz de todas as virtudes bem como de todos os vícios, conformo o lado para que o levasse a inspiração do momento.137

A expressão energia máscula expressa a inusitada descrição contida na

construção da personagem-título. E o que é mais: nada se pode fazer para invalidar

a existência desses traços no espírito de Clotilde Favais:

Era esse o fundo verdadeiro do seu caráter e nem ao menos a educação, que recebeu, concorrera para modificá-lo ou simplesmente esclarecê-lo com o conhecimento exato do mal e do bem [...].138

Em outras palavras: se há uma constante na índole de Clotilde Favais – e em

outras figuras apresentadas por Carneiro Vilella –, esta é justamente a sua

inconstância. A personagem não é boa ou má, trata-se de buscar entendimento do

contexto de suas ações, de sua disposição e, sobretudo, de seus interesses. Sua

personalidade também é marcada por posturas perniciosas:

136 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 45. 137 Loc. cit. 138 Loc. cit. (grifos nossos).

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Se mais alguma coisa trouxe para a casa paterna como prenda valiosa, foram sem dúvida umas lições práticas de hipocrisia e um ódio inveterado por tudo quanto fosse contrariedade e por tudo quanto lhe parecesse reclusão.139

No entanto, diferentemente das personagens do folhetim clássico tradicional,

Clotilde encontra uma espécie de justificativa para seus sentimentos:

A seleção quase conventual, em que vivera durante o período colegial, fizera-lhe adorar a liberdade. Os sofrimentos por que passara na observância religiosa de umas regras carrancas e aperreadoras, haviam acumulado no seu coração uns ódios intransigentes por tudo quanto lhe parecesse obrigação e tinham-lhe dado uma aptidão e uma presteza extraordinária para a revolta.140

Ou seja, Clotilde não surge com a personalidade definida, boa ou má, trata-se

de uma existência inclinada às mais variadas potencialidades de sentimentos e

ações. A intricada organização da postura de Clotilde Favais é percebida,

principalmente, nas passagens finais da narrativa. Comovida por uma violenta

paixão, a personagem fragiliza-se ante a possibilidade de rejeição, mas enfurece-se

ao descobrir-se enganada por Leandro Dantas e julgar-se traída pela sua própria

mãe, Josefina Favais, e por uma amiga da família, Celeste Cavalcanti.

Uma dor imensa e indefinível apoderava-se de sua alma e transformavatodos os seus sentimentos bons num ódio concentrado e sem limites. Essa nova manifestação da sua desilusão, esse resultado do aniquilamento de suas esperanças, esse ódio enfim abrangia não só a mulher de Cavalcanti como também a sua própria mãe. Esta estava prostrada no leito do sofrimento e quase sem acordo; a outra porém, nada sofria, e talvez mesmo que nada viesse a sofrer. Não! Não seria assim... Celeste havia de passar pelas mesmas torturas porque ela própria estava passando! Havia de pagar-lhe caro o ter-lhe roubado o amor e a posse do único homem que ela havia amado neste mundo. Como vingar-se, porém? Não o sabia ainda; iria ouvir o que ela ia dizer ao avô e, depois de senhora dos segredos da mísera mulher, formularia o seu plano de campanha.141

É bastante notável a diferença: Clotilde não se resigna, não se retrai para

sofrer as mágoas de um amor ferido, mas é movida pelos humaníssimos

sentimentos do ciúme, da inveja e do ódio. Sob o efeito de tais disposições de

espírito, a rapariga calcula sua desforra. Aqui mais uma distinção gritante entre as

fórmulas genéricas dos folhetins tradicionais: as ações – e suas consequências –

139 Ibid., p. 46. 140 Loc. cit. 141 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 462-463. (grifos nossos).

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são resultantes de interferências humanas, de suas movimentações na trama, das

provocações de atitudes pedestres com o objetivo de alcançar resultados

específicos ou impedir que outros alcancem. Não há providência divina, solução dos

céus, castigos e milagres dos deuses, pelo menos não a ponto de travar o livre

arbítrio. A fé manifestada pelas personagens construídas no folhetim d’A

Emparedada da Rua Nova é débil, faz parte de uma cartilha decorada sem que se

tenha conhecimento claro sobre seu sentido, por isso é preciso agir para mudar o

quadro estabelecido. O narrador chega a tecer uma espécie de deboche na

passagem em que Celeste Cavalcanti questiona-se sobre sua sorte ao perceber que

seu marido, o senhor de engenho Tomé Cavalcanti, tomara conhecimento dos

segredos de suas relações extraconjugais:

Mas como havia aquilo acontecido? que acaso fatal e diabólico o tinha feito surpreender a sua confissão e o puzera (sic) assim ao fato dos seus mais íntimos segredos? Celeste não podia adivinhar: nem sequer o suspeitava e portanto atribuira (sic) o fato a esse dedo fatídico e providencial de Deus, dedo que, segundo as crendices católicas e as abusões da ignorância, se intromete em toda a parte como um fura bolos, e leva o castigo e a punição, onde eles se tornam necessários à moralidade social e convencional do caso. Mas acaso, providência, ou dedo de Deus, o leito sabe que a causa da descoberta de Cavalcanti fora pura e simplesmente Clotilde.142

Nem por isso – pela ausência de soluções extraordinárias ao longo da trama

e, sobretudo, no seu arremate – o folhetim escrito por Carneiro Vilella abriu mão de

um dos trunfos que causam frisson na fórmula base do romance seriado: os lances

teatrais. Em outra apropriação, dir-se-ia até mesmo que A Emparedada da Rua

Nova possui sequências cinematográficas de revelações, reconhecimentos e

suspensões de enredo. A construção narrativa da obra é marcada pela plasticidade

de seus personagens – observem-se suas descrições, sobretudo de certos tipos

como o Hermínio ou Zarolho e o Bernardino, o Bigode de Arame –, pela imitação da

maneira de falar e expressões àquela época comuns143 e pelo comportamento das

regiões: trata-se de um romance de costumes.

A obstinação de Clotilde Favais pela vingança intensifica os seus ânimos e

estende o rancor ao seu pai e ao seu primo, João Paulo Favais – este último

142 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 462. (grifos do autor). 143 Cf. VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p.18.

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insistente candidato a um casamento valioso, veementemente rejeitado pela moça.

Ao ser colocada contra parede pelo pai para que fosse realizado o consórcio familiar

entre os primos, sua negativa recrudesce. Em uma violenta discussão com o pai,

brada: “- [...] ou Vosmecê despede aquele miserável [João Favais] já e já de sua

casa ou sou em quem vai denunciá-lo como o assassino de Leandro”144. E continua

a grave altercação: “- Eu já não tenho filha! – bradou o negociante com um gesto

melodramático e terrível.” Ao que a filha responde: “Bem como eu já não tenho pai!

– retrucou Clotilde, com acento de voz firme e segura.” A intensa discussão finaliza-

se com a implacabilidade provocativa da jovem:

Clotilde então atirou-se para o meio da sala e cruzando os braços sobre o seio, que ofegava desesperada e convulsivamente, apresentou-se completa de frente para receber o choque e a fúria de seu pai. - Mate-me! Disse ela com frieza esmagadora e irritante. E acrescentou logo num tom acerbo de ironia: - Não será a primeira vítima!145

No entanto, mais adiante, por estar em extrema situação adversa – acuada

fisicamente, consciente de seu estado de gestante e sem poder contar com a

proteção da mãe, enlouquecida, e do avô, o comendador Antônio Braga, falecido

devido aos desgostos vivenciados em sua família –, suplica ao pai por clemência,

sem sombra alguma da fúria que antes a fazia tão resoluta diante do debate com

Jaime Favais, no momento do emparedamento:

- Meu pai! – murmurou uma voz suplicante e cheia de soluços. - Cala-te! – rosnou o homem, continuando a sua faina. - Perdoe-me!... – soluçou mais fraca a mesma voz. - Tens o que mereces. - Em... nome... de meu filho.146

Observa-se a constante volubilidade no caráter da personagem de Clotilde

Favais construída pelo narrador ao longo do enredo em diversos momentos. Porém

não só a personagem-título encerra essa característica, esse é um traço que

sobrenada entre as figuras que se movem na trama. Seguindo a mesma linha de

Clotilde, os seus pais, Jaime e Josefina Favais, também são marcados pela

desmedida das suas condutas. A esposa do negociante, assim como a sua filha e a

144 VILELA, op. cit., 1984, p. 520. 145 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 521. 146 Ibid., p. 550.

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sua amiga, Celeste Cavalcanti, formam o conjunto das três mulheres seduzidas pelo

Don Juan baiano frequentador do Teatro de Santa Isabel, Leandro Dantas147.

Josefina seria o exemplo da virtude forjada, da frivolidade reprimida que não resiste

aos apelos de um conquistador desafiado pela incitação de um obstáculo mais

estimulante: a presumida qualidade moral invencível que não permitiria uma traição

por uma dama reconhecidamente distinta e respeitada pela sociedade recifense.

Josefina também representaria, em outras instâncias, uma espécie de sublevação

social feminina que, ao perceber-se infeliz após longa suposição de felicidade,

permite-se o conhecimento e a vivência de novas experiências – sexuais, sociais,

comportamentais, etc. – em detrimento daquilo que se julga honesto. No entanto,

apesar da coragem de suas ousadias, a consciência do pecado, da transgressão, da

culpa e do erro não é remediada pelos prazeres proporcionados pelos seus

sentimentos e atitudes. No fundo, o narrador tenta demonstrar que essa série de

fatores combinados – miscigenação de raças completamente diferentes, a educação

delegada à moral dos colégios (“moral tão relaxada como cômoda”148) permeada por

intensos discursos morais assentados na religiosidade católica e a vivência em uma

sociedade demarcada por relações hipócritas e interesseiras – resultam em produtos

semelhantes, como uma espécie de produção em série, como moldes

comportamentais:

Josefina não era, na realidade uma natureza tão corruta como Celeste, mas recebera a mesma educação que a sua amiga, no mesmo colégio, com os mesmos professores, ouvindo os mesmos conselhos, e ajoelhando-se ao pé dos mesmos sacerdotes. Ali se haviam desenvolvido nela os mesmos germens perniciosos e em sua alma se havia inoculado o mesmo virus (sic) venenoso e pestilento. Para o desenvolvimento de um e outros bastava-lhe apenas alguma circunstância favorável ou alguma ocasião propícia e adaptada. Devia forçosamente ter um fundo de moral idêntico ao de sua antiga companheira de colégio e aliás amiga íntima. Se até ali havia procedido de maneira diversa e conseguira por isso passar por honesta, -- e realmente o era – era isto devido pura e simplesmente às circunstâncias e condições involuntárias em que a sua posição e o seu casamento a haviam colocado. Não pertencia à roda a que pertencia a sua amiga e onde, -- diga-se a verdade embora amarga – são mais frequentes não só os momentos históricos como também as práticas da devassidão

147 Sobre a relação da personagem de Leandro Dantas, o “mito de Don Juan”, n’A Emparedada da Rua Nova conferir MENDONÇA, Helena Maria Ramos de. O Don Juan da Rua Nova: um estudo-itinerário sobre A Emparedada da Rua Nova, de Joaquim Maria Carneiro Vilela. Recife: O autor, 2008. 110 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras, Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.148 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 221.

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moral e material, que são quase levadas à conta de galanteios de salão ou de rasgos de espírito desenvolvido e livre.149

Percebe-se a influência das linhas de pensamentos hegemônicas à época de

produção do romance: os meios de vivências determinando fortes predomínios nos

ânimos das personagens envolvidas. O narrador atribui, portanto, o estilo de vida

levado por Josefina Favais ao casamento com um português focado nos assuntos

financeiros e nos negócios da família, com poucas relações sociais e divertimentos

públicos.

O comendador Jaime Favais, este sim o verdadeiro personagem central da

trama, encerra em si a grande complexidade das inconstâncias das figuras

desenvolvidas por Carneiro Vilella. Numa descrição de homem sisudo,

ensimesmado e taciturno, a trama inicia-se com o negociante já envolvido em uma

situação extremamente delicada: o comprometimento de sua liberdade, de seu

status social e de sua fortuna por estar às voltas com uma investigação de um

assassinato realizado sob sua encomenda e execução.

Portanto, a primeira impressão desenvolvida acerca da figura de Jaime Favais

está impregnada de assombros, asperezas e irritabilidades. O caráter da

personagem delineia-se pela sua trajetória de migração, sucesso comercial em

terras estrangeiras aliado ao amparo de seu tio já estabelecido no Brasil, o

comendador Antônio Braga, e a extrema ambição e perspicácia nas suas relações.

Da situação comum, o narrador revela o inusitado:

A história de Jaime Favais é, nem mais nem menos, a de todos esses portugueses, que, filhos de pais agricultores e pobres, vendo-se, em sua pátria sem recursos no presente e sem esperanças no futuro, emigram para o Brasil com o firme propósito de trabalhar sem descanso até adquirir a fortuna que sempre lhes faltou, mas com qual sempre sonharam. Natural de Favais, em Trás-os-Montes, apenas completou ele os quinze anos, seus pais, admirando a inteligência, a atividade e sobretudo a ambição, que já se revelavam nele em alto grau, remeteram-no para a terradas patacas, consignando a um tio materno, que aqui estava estabelecido com um grande e bem afreguesado armazém de secos e molhados.150

Jaime, ao contrário de sua mulher e de sua filha, não é resultado – explícito –

de cruzamento de dois povos. Sua personalidade se expressa demarcada desde

muito cedo: inteligente e ambicioso. Apesar da origem pobre, havia uma perspectiva

149 Ibid., p. 294. (grifos nossos). 150 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 37.

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de melhorias de vida para o menino, ainda que para isso tivesse que sair de sua

terra natal e atravessar o oceano para morar em outro continente sem a presença

dos seus pais. No entanto, o que pareceria um violento rompimento para uma

pessoa tão jovem, é descrito como o início de uma frieza espiritual já sedimentada

na personalidade do português:

O menino Jaime não sentira grande comoção ao deixar o pátrio ninho: antes secreto instinto instigava-lhe a alegria íntima e buzinava-lhe aos ouvidos que iam rasgar-se aos seus olhos e à sua ambição novos horizontes e vastos campos de operação e de colheita. Ouvia contar tantas maravilhas desse Eldorado dos ambiciosos!... fantasias nesse Brasil uma terra tão superabundante de riquezas, tão fabulosamente cheia de ouro e de diamantes... que não era de admirar que ao sentimento de saudade e à tristeza da separação sobrepujassem a curiosidade das viagens e a avidez dos grandes lucros.151

Embora a descrição da personalidade de Jaime aponte uma solidez de

escrúpulos, também marca a presença de sentimentos sinceros em sua jornada. Da

mesma forma, por exemplo, com que desejou estabelecer uma robusta fortuna pelo

seu trabalho também vislumbrou suas possibilidades de relação familiar com o tio

protetor. Ao requerer a mão de sua prima em casamento, possuía aspiração de

empossar-se ainda com mais direitos da herança que seria destinada à filha única

do Comendador Antônio Braga. No entanto, havia sensibilidade autêntica em sua

intenção:

Jaime, na qualidade de primo, contínua e constantemente em contato com ela, e de mais a mais instigado pelo demônio da ambição, com o propósito firme de obter o seu fim, não pode furtar-se à influência magnética dos seus olhos negros nem à atração amorosa e dominadora da sua bondade. Amou-a e foi ardentemente correspondido. Apenas, pois, chegou da Europa, abriu ao tio o seu coração com todas as aparências de franqueza e lealdade e expôs-lhe os seus projetos, menos, já se vê, a causa latente que o movia, concluindo por pedir-lhe a mão da priminha. A resposta não se fez esperar.152

O narrador completa através da visualização da expectativa do tio e com o

toque de ironia que lhe é tão caro:

Ativo e econômico, inteligente e sensato, trabalhador e honesto... o sobrinho apresentava todas as garantias possíveis para a felicidade do seu ídolo. De mais a mais, os dois primos adoravam-se e, o que não era menos, o seu

151 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 37. 152 Ibid., p. 39.

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dinheiro não passava a estranhos. Os portugueses sempre tiveram grande apego à família.153

Este panorama sintetiza de forma abrangente o perfil de Jaime Favais. Suas

transformações e interesses – a mudança do gênero de comércio, a peleja pelo

título de comendador, a inserção na vida social da província e as relações humanas

que travava – buscavam agregar poder, honra, glória e fortuna, mas também eram

movidas por sentimentos despertados por tentativa de agradar sua esposa e sua

filha, ainda que estes sejam motivadores em menores escalas. Pintado aos moldes

do que seria o clássico carrasco do enredo – o pai severo, o marido ríspido, o

homem frio e ganancioso – a personagem consegue expor suas fraquezas a ponto

de desconstruir as expectativas que lhes cercam. É no momento em que se

descobre enganado pela sua esposa que o negociante expressa toda sua

humanidade – diferente dos vilões formulados no folhetim tradicional em que os

aspectos psicológicos são diminuídos em detrimento das ações explosivas

motivadas pelas intenções de se fazer o mal porque se é mau, por interesses de

sobreposições em relação a outros ou desejos de destruição gratuitos. Ao expor a

angústia de Jaime Favais, o narrador convoca seus leitores a se apiedarem do

estado lastimoso de um homem traído e revela as dores – realmente sinceras – que

antecedem a futura vilania:

Para o negociante, esse isolamento foi um acréscimo de martírio e, face a face de si mesmo, deixou, deixou fazer explosão toda a dor que o consumia, e entregou-se de corpo e alma ao furor de sua vergonha. Atirando-se a uma cadeira, fechou os punhos nos olhos, como a querer arrancar daí uma visão perseguidora, e chorou de desespero, mordendo por vezes o lenço para abafar os soluços que lhe sublevaram o peito com um ansiar tormentoso e formidável. Era doloroso ver aquilo!... devia ser atroz o sofrimento daquele homem!154

Por mais que a frieza de ânimo e os interesses inerentes ao seu papel na

sociedade predominem na animação dos atos do negociante, o narrador apresenta o

homem em seu desespero irracional – assassinar a esposa com suas próprias mãos

em sua própria residência – e evidencia a retomada de consciência por parte do

Comendador Jaime Favais ao se atentar que esta ação seria extremamente

desfavorável a si mesmo, pois socialmente seria visto como um assassino, a causa

153 Ibid., p. 40. (grifos nossos). 154 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 385.

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de sua ação seria publicamente conhecida e sua infelicidade cairia nas graças do

povo como a de um marido traído – vingado, é verdade –, mas desonrado,

arrastando à lama toda a família, além do grande risco de suas perdas financeiras

com o escândalo na sua casa. Jaime é ainda mais racional e desenvolve seu

projeto de maneira que sua vingança seja consumada, o amante de sua esposa –

Leandro Dantas – deveria ser assassinado pelas suas próprias mãos, Josefina

Favais seria torturada pela ausência do seu amásio e a sua reputação de homem

digno de família honrada e próspera seja preservada.

A vítima da ira de Jaime Favais, o mancebo Leandro Dantas, é uma

personagem essencial e exemplar da construção figurativa do narrador d’A

Emparedada da Rua Nova. Reprodução arquetípica de personagens donjuanescas,

-- “Lovelace incorrigível” e “D. Juan cínico com as mulheres” nas próprias palavras

utilizadas pelo narrador – trata-se de um papel catalisador de turbulências na trama:

Leandro é a personagem que movimenta o enredo, perturba a aparente calmaria e a

suposta felicidade dominante nas classes mais altas da sociedade. Sua arma é ele

mesmo, sua artilharia a sedução de mulheres, sobretudo as casadas. Dessa

maneira divertia-se, encontrava penetração social e adquiria status e ria-se das

misérias das famílias hipócritas. O próprio Leandro Dantas tem consciência dos

desarranjos que provoca por onde passa e o que é mais: faz disso um objetivo, uma

maneira encontrada para aviltar aqueles que se julgam superiores devido às

condições sociais e financeiras. Em conversa com Jeréba – que será devidamente

apresentado adiante –, Leandro Dantas expressa o seu pensamento:

- [...] não queimo essas cartas, como não tenho queimado as outras, como não queimarei nenhuma... que provenha dessa gente [referindo-se às correspondências enviadas por Celeste Cavalcanti e outras de suas amantes]. Conservo-as todas as de todas, para delas poder fazer armas algum dia... quando qualquer dessas pretendidas fidalgas, por si ou pelos seus, quiser pisar-me sob os seus pés. Não vês que tudo isto são documentos preciosos, documentos que provam a infâmia, a baixeza, a miséria de toda essa fidalguia bastarda e podre, mais bastarda do que eu... mais podre do que... Ia dizer do que a classe de onde nasci, mas concluiu a frase enérgica e verdadeira, lembrando-se de sua mãe, e prosseguiu mudando de tom: - Não queimarei carta alguma... [...].155

155 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 285. (grifos do autor).

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Seus rancores encontraram em Josefina Favais uma concentração de

motivações para seus desejos de vingança:

Se as aristocráticas mulheres dos mais fidalgos figurões cediam à sua sedução e se curvavam vendidas ante a sua corte, como e porque não lhe havia de ceder também uma simples burguesa, filha de um ex-vendilhão enriquecido por artes de berliques e berloques, e mulher aí de um qualquer negociante... português? Leandro assim raciocinava e, na sua qualidade de... baiano em tudo, cordialmente odiava a todos os portugueses. Condenara-os em massa pelo crime do seu nascimento, pela infâmia de sua mãe e pela desonra de sua irmã. Tinha, pois, um ódio mortal a todos os patrícios de seu pai! Ora, que melhor meio de vigar-se deles do que desonrado-os e seduzindo-lhes as mulheres. Essa necessidade de expandir o seu ódio, - essa espécie de vendetta – realmente não era mais do que um pretexto para justificar o seu anelo, como se uma razão má pudesse servir de justificativa a um ato ou a uma tentativa ainda pior!156

A referência que o rapaz faz sobre sua condição diz respeito às suas origens

degeneradas. Leandro Dantas era filho de uma prostituta baiana – Carolina Dantas,

a Calu – com um rico português, mais uma personagem marcada por uma

procedência mestiça, elevando-lhe as potencialidades negativas da herança

genética aliadas às experiências que contribuíssem para o desenvolvimento dos

mais perigosos temperamentos a despeito de todos os esforços que se possam

fazer para formar o bom caráter de um cidadão como uma educação esmerada e

ensino de boas maneiras. Leandro é mais um artifício que o narrador lança mão

para expor as falsidades das aparências, as mentiras sociais e as hipocrisias das

relações.

Entretanto Leandro ia estudando e progredindo. Aos quatorze anos dava as mais significativas provas de inteligência, mas também as mais exuberantes de audácia e de libidinagem. No colégio – nessa sementeira de vícios e de maus costumes – por mais de uma vez merecera os mais ásperos castigos pela sua corrução e práticas morais. Passava dias inteiros em casa de seu pai, ouvindo os conselhos piedosos e honestos de sua, digamos, madrasta, presenciando os exemplos de virtude, de que era ela uma conscienciosa e emérita cultora; mas também freqüentava – e até preferia – a casa de sua mãe, onde recebia lições inteiramente contrárias às outras e mais agradáveis à sua índole e era testemunha de cenas e atos que, longe de repugnarem a sua natureza e revoltarem a sua qualidade de filho, lisonjeavam os seus vícios de homem e elevavam-no pela novidade e de alguma sorte por corresponderem aos secretos ardores do seu sangue, às impetuosidades fogosas de sua raça, à sua índole enfim.157

156 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 290-291. (grifos do autor). 157 Ibid., p. 264-265. (grifos nossos).

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A temática da mistura de raças assume evidência máxima na personagem do

jovem sedutor baiano. Leandro é descrito como a essência de misturas que aflora

traços em todos os seus trejeitos, em cada um dos seus pensamentos e vem à tona

indisfarçavelmente em sua aparência, no seu rosto, na sua pele, nos seus cabelos.

Mais ainda: o conjunto dos seus procedimentos e a sua maneira de agir evidenciam

o embaralhado de genes distintos que formam sua figura. A descrição realizada

pelo narrador evidencia as fortes influências cientificistas em termos como

espécimen, raça verdadeiramente brasileira e produto etnográfico além de

mencionar até mesmo a presença da herança indígena na formação da figura de

Leandro Dantas. Observem-se as palavras da minuciosa exposição na íntegra:

Com efeito! Era ele um belo mancebo, na acepção mais lata da palavra. O seu todo – cabeça e corpo – poderia servir de modelo e de espécimen da raça verdadeiramente brasileira, -- dessa raça nova e única que é o produto etnográfico das três outras, que povoaram o nosso solo: a raça europeia, a tupi e a africana. Ao vê-lo, conhecia-se logo que girava em suas veias o sangue dessas três raças e que nele se fundiam as três naturezas correspondentes. Devia ter a inteligência do europeu, a indolência do americano, e a impetuosidade dos filhos dos desertos da África.158

O nível dos teores cientificistas apresentados na composição da personagem

de Leandro Dantas talvez encontre o mesmo nível de semelhança apenas na

descrição de uma de suas amantes, a senhora de engenho Celeste Cavalcanti.

Igualmente educada na tão sórdida e indigesta formação dos colégios para moças,

juntamente com Josefina Favais – companheira que fora sua amiga nos bancos

colegiais e que na maturidade encontra oportunidade para retomar a relação. Mais

uma vez o narrador aproveita o ensejo para expor as piores mazelas adquiridas

após a temporada passada nos colégios.

Celeste frequentara o colégio e passara por ali tal qual como todas as outras daquele tempo e de hoje ainda e de amanhã talvez... sem um ensinamento útil para o coração e sadio para a consciência, mas eivada desses preconceitos piegas, cheia dessas crendices estultas, imbuída dessa fé falsificada e embrutecedora, vítima desse vícios, que se adquire ao pé dos confessionários ao ouvir a palavra insignificante, estúpida ou corruptora de um sacerdote sem idéias, sem princípios, sem moral, sem crenças, sem estudos como são em geral os nossos padres ainda hoje e o eram ainda piores há vinte anos: sacerdotes que fazem da religião um fanatismo; da moral um enigma; da verdade, um mito; da consciência, uma

158 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 238.

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futilidade; da razão, um monstro; do coração, uma besta; de Cristo, um mercador do templo; e de Deus, um capadócio!159

Note-se que os colégios das moças seriam ainda mais perniciosos, embora

todas as instituições – e aqui todas as instituições sociais, independente das

finalidades acadêmicas ou não, tais como a própria família, a Igreja e as

organizações do poder e da Justiça – pareçam comportar sua chancela de defeitos

morais, pois o colégio que frequentou Leandro Dantas, um rapaz, também é

apresentado como uma “sementeira de vícios e maus costumes”. No entanto, é com

a educação feminina que o narrador apresenta todo o azedume e a irritação da

discrepância no tratamento dos gêneros:

Com efeito, julgando insuficientes os estabelecimentos de instrução disseminados abundantemente pelo Recife, apenas o filho [de Josefina e de Jaime Favais] completou os dez anos, mandou-o para a Europa; e a filha, antes mesmo desta idade, meteu-a... no colégio das Irmãs de Caridade, situado na rua do Hospício. Tanto escrúpulo na educação masculina e tão pouco na educação feminina! Para o homem abriam-se todas as válvulas da civilização, franqueavam-se todos os caminhos da ciência, preparavam-lhe um futuro cheio de conhecimentos úteis, progressivos e portanto garantidos das mais altas virtudes. Para a mulher, porém, -- para a futura mãe de família, para a verdadeira base da sociedade moderna, -- estreitavam-se os horizontes intelectuais e morais, proibiam-lhe a liberdade de pensar e de sentir, entregavam-na aos corvos160 do fanatismo e da hipocrisia, asfixiavam-lhe o coração, envenenavam-lhe o espírito e, em vez de procurarem formar uma esposa e uma mãe com todas as aptidões para procriar cidadãos e homens de espírito, preparavam uma beata inútil e estúpida, apta apenas para dissertar sobre as problemáticas virtudes do rosário ou para engrolar ladainhas depois de indigestos perniciosos sermões jesuíticos!161

A índole de Celeste pende para a leviandade, a sensualidade exagerada, a

luxúria incontida que a faz ser reconhecida por toda a sociedade como uma grande

devassa que arrasta a honra do seu marido e um grande sobrenome de família

virtuosa e tradicionalíssima da província pernambucana na lama com seus namoros

159 Ibid., p. 221. A passagem possui mais uma nota contendo observações de Lucilo Varejão Filho sobre a conduta do próprio autor, Carneiro Vilela, em relação à crítica extravasada pelo narrador no que Varejão classifica como uma “manifestação do anticlericalismo de Carneiro Vilela”. E continua: “Anticlericalismo, aliás, tão comum nos meios intelectuais recifenses dos fins do século XIX. Essas manifestações são numerosas ao longo de todo o romance e vale a pena lembrar aqui, que, vigoroso jornalista militante, Carneiro Vilela, embora antigo colega de escola de D. Vital, em nenhum momento, durante a Questão Religiosa, tomou da pena para defender o seu antigo condiscípulo”. 160 Mais um registro que faz referência à palavra corvos. Ver página 36 desta pesquisa em que há uma observação sobre seu emprego pelo escritor d’A Emparedada da Rua Nova, Carneiro Vilela. 161 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 42-43. (grifos do autor).

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indecentes, com seu comportamento indecoroso. A descrição física realizada pelo

narrador acerca de Celeste Cavalcanti é uma importante expressão do envoltório

construído para designar a personagem:

Era ela uma senhora de trinta anos pouco mais ou menos. De estatura regular e bem feita de corpo, acusava na rigidez das formas e na pureza dos contornos o pleno desenvolvimento da beleza corpórea, feminina e crioula. Não era de uma formosura ideal nem tão pouco de impressionar como essas virgens de Murilo ou essas estátuas devidas ao cinzel grego, não: mas possuía, no conjunto das linhas do rosto, uma certa graça faceira e atraente, que a tornava simpática sem que todavia a fizesse bonita. Era alva; de beiços grossos, - dessa alvura de cútis um pouco áspera e dessa tumidês carnuda de lábios, que acusam resquícios de sangue africano, depurado por quatro ou cinco gerações. Atestavam ainda mis essa origem, -- aliás tão natural e adâmica como outra qualquer, -- os cabelos de um castanho fulvo, cheios de ondas pequenas, sucessivas e perfeitamente acentuadas; circunstância esta que lhe dava juntamente com o comprimento acima ou, com mais propriedade, abaixo do comum, uma formosura extraordinária.162

A partir da enumeração dos traços que formam a composição física de

Celeste Cavalcanti aliada à constituição de seu caráter e de sua postura moral

formados nos sórdidos colégios com a anuência e o incentivo da família, o narrador

circunscreve a figura da moça fogosa, incerta, dissoluta mesmo. Tal qual o seu

amante, Leandro Dantas – e o contexto deixa nítido de que o rapaz baiano não se

tratava do primeiro amásio da senhora de engenho – seria muito custoso à natureza

de ambos desoprimir-se da conduta carregada nas suas heranças genéticas: as

“impetuosidades fogosas de sua raça”163 estimulavam Leandro Dantas, o “referver-

lhe nas veias o sangue africano”164, acometendo Celeste Cavalcanti.

A Emparedada da Rua Nova possui demarcados dois núcleos de diferentes

estratificações sociais que se dividem em uma classe de grande poder financeiro e

de congregação de pessoas distintas – aquelas que transitam nos salões, que

residem nos sobrados e nos palacetes dos logradouros elegantes da cidade como a

Rua Nova, a Rua da Aurora, a Passagem da Madalena e que veraneiam em

Apipucos e no Monteiro, que desfilam suas sobrecasacas e ornamentos luxuosos

162 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 108-109. (grifos nossos). 163 Ibid., p. 265. 164 Ibid., p. 227.

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nas noites de espetáculo do Teatro de Santa Isabel e que ostentam sobrenomes

centenários ou títulos honoríficos – fazendo contraste com a massa de miseráveis,

pessoas pobres, a ralé que se abrigam em paupérrimos barracos dos Coelhos nas

vizinhanças do Hospital Pedro II e dos mangues fétidos do Rio Capibaribe ou em

velhos sobrados mal conservados e desvalorizados, são os frequentadores das

mesas de jogos da Rua de São Pedro, vivendo de favores, toda a sorte de

trambiques, prostituição e mesmo crimes; são estrangeiros, desertores, forasteiros

de futuro incerto e de passado duvidoso, gatunos e caixeiros, trabalhadores do porto

e a turba de pedestres anônima que povoam e constituem a escória social, a zona

licenciosa, libertina e disciplinada de uma cidade, a bas-fonds.

No entanto, embora as duas esferas estejam postas em ordens diferentes de

apresentação, o narrador expõe a promiscuidade que se amontoa nas relações

entre esses dois polos, mais uma vez insistindo na ideia das aparências ilusórias e

na complexidade das relações humanas. Observe-se que não há pureza na

constituição dos círculos, tanto individuais como coletivos. Não há nobres legítimos:

persiste por gerações a existência de manchas, nódoas sorrateiramente

dissimuladas, mas nunca encobertas de todo. São as origens duvidosas

denunciadas por cabelos estranhamente ondulados, lábios grossos e

comportamentos lascivos; as trajetórias de construção de fortunas partindo de

grandes pobrezas e aventuras; as procedências marcadas pelos pecados de

adultérios e produtos bastardos de relacionamentos ilícitos.

Ao contrário dos romances-folhetins clássicos, os pontos de magnanimidade

não são irrestritos e absolutos, mas esbarram em situações nas quais a áurea de

dignidade é salpicada com respingos de lama da podridão que lhe cerca. Um

exemplo concentra-se na figura do Comendador Antônio Braga – pai de Josefina, tio

e sogro de Jaime Favais, por conseguinte avô de Clotilde. O português,

extremamente respeitado na sociedade como um comerciante seguro, um pai de

família dedicado e digno e homem público merecedor de reverências, vê-se

envolvido num torvelinho vexatório: o genro e sobrinho, Jaime Favais, apontado

como mandante e assassino no crime que vitimou o amante de sua filha. Um

impasse se estabelece quando o chefe de Polícia confronta-se com uma prova

extremamente comprometedora para a família Favais: uma carta de Josefina – na

realidade forjada por Jaime Favais ao se passar pela esposa, utilizada como isca

para atrair Leandro Dantas às capoeiras do Engenho Suaçuna em Jaboatão com

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intuito de assassiná-lo. A missiva, encontrada no bolso do colete do corpo putrefato

e insepulto denunciado pelos corvos, é estrategicamente guardada pela autoridade,

porém não com objetivos de investigação ou ganas de justiça:

O capitalista e o chefe de Polícia conheciam-se de há muito; encontravam-se sempre na sociedade e entretinham-se entre si essas relações de conveniência e de etiqueta, que costumam manter pessoas bem educadas e de elevada posição social. Não eram propriamente amigos, mas havia entre eles mais ou menos alguma estima, mais ou menos alguma simpatia. No velho Comendador talvez questão de hábito ou de temperamento, que o fazia olhar para todo Magistrado como para um homem honrado e justiceiro: na autoridade, defeito ingênito e pressentimento interesseiro, que fazem com que se olhe com respeito e com extraordinária simpatia para quem quer que tenha muito dinheiro e por isso possa, qualquer dia, prestar-nos algum favor.165

Além de mais uma demonstração do intrincado jogo de interesses do espírito

humano, o narrador aponta a sincera inteireza do caráter do comendador Antônio

Braga. Ao construir a áurea de retidão límpida e virtuosa do velho comendador, o

narrador prepara o enredo para a sua fraqueza: nem mesmo a mais valorosa força

moral é plena e ilimitada.

Restituindo-lhe aquela carta e destruindo assim a única prova de criminalidade do genro e da falta da filha, o chefe de Polícia, ao passo que lhe dava uma prova exuberante de amizade, segurava a gratidão do velho capitalista e habilitava-se a, em qualquer tempo, poder exigir dele o que lhe fosse conveniente ou necessário. Era o que se chama matar de uma cajadada dois coelhos. [...] Acabrunhado e agradecido, portanto, [o comendador Antônio Braga] recebeu a carta que o chefe de Polícia lhe restituiu, fazendo-a assim desaparecer das peças do processo, que aliás não devia ter, como realmente não teve, nem andamento nem conseqüências, e guardando-a lentamente no bolso saiu da Secretaria de Polícia pensativo e cheio de uma cólera surda e formidável. Nunca passara por uma vergonha igual e parecia-lhe que era sobre sua própria honradez que vinham refletir-se a infâmia da filha e o crime do genro.166

Apesar de toda humilhação que se abateu sobre o comendador Antônio

Braga, a personagem se cala e, de certa forma, é cúmplice de um crime que poderia

comprometer toda a sua família. O senso de justiça é debelado ante uma situação

capciosa aos seus. Embora o narrador ainda insista no abatimento e na integridade

– ofendida, é bem verdade, mas latente – do sogro de Jaime Favais – “[...] não é da

165 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 471. (grifos nossos). 166 Ibid., p. 473.

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polícia que o senhor tem a temer: é de sua própria consciência”167. –, o fato é que a

medida da inteireza de caráter, honestidade e retidão do comendador Antônio Braga

foi atingida. A sua prostração ante o contexto em que se encontrava é também a

consciência de sua falha.

Postura semelhante o narrador d’A Emparedada da Rua Nova desenvolve na

montagem da figura de Tomé Cavalcanti, o senhor de engenho membro de

tradicionalíssima família pernambucana casado com Celeste. O Cavalcanti é

descrito como um homem bondoso – até mesmo ingênuo – e generoso. A desonra,

no seu caso, provém de seu consórcio com a dissoluta Celeste e a necessidade de

conservação das aparências com intuito de preservar o nome da família e a sua

própria dignidade. Ao descobrir-se traído e comprometido por um escândalo – a

mãe de Leandro Dantas, a ex-prostituta baiana Carolina Dantas, a Calu chantageia

Celeste com as cartas escritas ao amante –, Tomé Cavalcanti conforma-se com a

nódoa que atingiu o seu nome com o mau comportamento da esposa ao ceder à

chantagem da mãe do amásio de sua mulher.

Da mesma forma que a classe alta da sociedade recifense era encravada de

resquícios de pobrezas – escravos, pobres comerciantes e estrangeiros, etc. – o

movimento contrário também acontecia: a classe mais baixa em termos de status e

poder financeiro também era visitada frequentemente pelos distintos senhores e

senhoras da high society pernambucana, mostrando assim uma diluição de limites e

uma fronteira tênue entre as duas esferas. Ao mostrar os logradouros da cidade

habitados pelos mais diferentes tipos, é como se o narrador mostrasse que as

convivências ultrapassavam os limites dos espaços geográficos, mas entrelaçavam-

se em vinculações de interesses de ambas as partes. Aqui reside mais uma

discrepância do modelo desenvolvido n’A Emparedada da Rua Nova frente aos

modelões europeus que tendiam a representar uma dicotomia marcante em suas

obras: a representação dos homens e das mulheres pobres como criaturas boas,

injustiçadas pela vida, amarguradas e que, geralmente, ao final são contemplados

também com o estabelecimento uma confortável situação financeira, com uma

ressalva de que o dinheiro não será deturpador das suas índoles, mas uma maneira

de ressaltar suas virtudes por meio de caridades e o estabelecimento da justiça aos

que necessitam. Enquanto, por outro lado, as criaturas inicialmente endinheiradas

167 Ibid., p. 475.

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quase sempre apresentavam falhas graves de caráter, ganância desmedida e

desonestidade. No romance de Carneiro Vilella, definitivamente a medida – ou

antes: a desmedida – de homens e mulheres não é atrelada às suas posses, mas

aos seus interesses em contextos específicos de ação.

O Hermínio – Zarolho ou Dr. Pigarro – é uma típica personagem da zona de

miséria do enredo. O Zarolho é o principal companheiro de Jaime Favais no cálculo

e na execução do crime de assassinato de Leandro Dantas. Ambos são movidos

por interesses que lhe favoreçam de alguma forma: do lado do comerciante, a

vingança de uma traição realizada com a segurança da experiência de uma pessoa

familiarizada com o universo do crime; do lado do Hermínio, dinheiro e o

estabelecimento de relações de confiança com quem lhe poderia ser bastante útil

em outras situações de necessidade que lhe surgissem.

É sintomática a passagem em que os dois – o comendador Jaime Favais e o

Zarolho – reconhecem-se como pares equivalentes, como iguais mesmo, a despeito

do abismo social e financeiro demarcado entre eles, portanto conscientes de suas

semelhanças e de suas diferenças. A narração é extremamente representativa do

espírito que permeia essa questão bastante presente e recorrente na obra de

Carneiro Vilella. Observe-se o diálogo que se trava dentro do carro enquanto os

dois – Jaime Favais e o Hermínio – se dirigem ao local do crime ocorrido em

Jaboatão para presenciar a exumação do corpo encontrado em terras do Engenho

Suaçuna:

- [...] Sr. Hermínio, eu não sou homem que se arrependa do que faz. O que fiz, está feito, e se fosse mister tornar a fazê-lo, fá-lo-ia outra vez! - O Zarolho estava boquiaberto. Olhava-o de frente e – caso admirável e que provava o quanto era grande o seu entusiasmo ou a sua confiança – sem meter os olhos um pelo outro. Quase o abraça. - Eu também sou assim! – concordou ele com toda a franqueza e expansão – Nós nascemos um para o outro, comendador! À (sic) mim só o que me falta é dinheiro. O comendador não pode deixar de sorrir ante aquela expansão extemporânea. O Hermínio continuou: - E a V. Sa. Só lhe falta uma cousa. - Que é? - O querer. Ah! Que se o comendador fosse dos nossos!... E insensivelmente estendeu a mão ossuda, e deixou-a cair familiarmente sobre o ombro do negociante. Jaime estremeceu sem o querer talvez, e arredou-se lestamente como a repelir, cheio de repugnância, aquela familiaridade por demais reles e grosseira. Ao mesmo tempo cravava no imundo companheiro um olhar severo e, medindo-o de alto a baixo, fazia-o lembrar-se de quem era e da distância social que os separava. O Hermínio ia a encolher-se todo, tão avesado estava aos hábitos hipócritas da humanidade e da pequenez: atravessou-lhe, porém, o espírito um

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pensamento, rápido como o relâmpago, e verdadeiro como a luz – Orgulhoso! – murmurou-lhe a consciência – e pensar que estás nas minhas mãos e que posso perder-te de vez!...168

A clarividência resultante deste diálogo e destas ações é extremamente

límpida. Vale a conferência do trecho na íntegra para a plena percepção da

construção desenvolvida pelo narrador d’A Emparedada da Rua Nova:

[O Zarolho] Erigiu, portanto, o corpo como quem se resolve a aceitar a luta desesperada e, sustentando de frente o olhar severo do negociante ao mesmo tempo que lhe traspassava a alma com a lâmina fria de um riso cheio de ironia e de escárnio, fez-lhe por sua vez compreender que, se a posição social separa e abre entre alguns homens largo abismo, ações segredos existem que nivelam as condições mais heterogêneas e amarram aqueles indivíduos num só amplexo e com laços de um interesse comum: o crime por exemplo.O comendador compreendeu tudo isto. Era tão insistente, tão pertinaz, tão agressivo e verdadeiro o olhar do Zarolho, que o negociante não o pôde suportar por muito tempo. Abaixou a vista, pois; mas não querendo dar-se por vencido, nem estabelecer uma discussão que, além de intempestiva, seria perigosíssima e de péssimos efeitos, fingiu-se alheio à cólera surda e aos sentimentos manifestados pelo companheiro e, no tom mais natural e mais familiar deste mundo, continuou a conversar: - Deixemos isto por ora e tratemos de cousas que mais nos interessam. Diga-me cá: que pensa você sobre as diligências ordenadas pelo chefe de polícia? O Zarolho sorriu-se com toda a finura. Compreendeu que ganhara uma vitória, mas não quis abusar da posição. Respondeu, portanto, como também se nada tivesse havido.169

Outro momento extremamente representativo da acepção que o narrador

emprega à natureza humana, independente de posição social, acontece quando o

Jeréba170 encontra os matutos que participavam da cena de exumação do corpo

encontrado nas capoeiras do Engenho Suaçuna. A construção desenvolvida n’A

Emparedada da Rua Nova sugere o estabelecimento de uma medida humana –

atrelada em seus diferentes contextos a situações e vivências da personagem no

seu meio, porém não determinada por fatores sociais, financeiros, raciais ou de

gênero, etc.. Portanto os sentimentos são manifestados pelos mais diferentes tipos

das mais distintas pessoas: vaidades, luxúrias, invejas, amores, paixões, ganâncias,

vergonhas, falhas, orgulhos, alegrias sejam homens, mulheres, clérigos, ricos,

pobres, urbanos, rurais, magistrados, comerciantes, gatunos, prostitutas,

168 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 123. 169 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 123-124. (grifos nossos). 170 Mais adiante será devidamente apresentada e analisada a personagem Jeréba.

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vagabundos, estudantes, velhos e jovens. Dessa maneira, o narrador despe uma

faceta da natureza humana e desobriga a visão arquetípica de suas personagens.

Entenda-se com a exemplificação da referida passagem. A cena inicia-se com a

dispersão de uma multidão que acompanhara a exumação do cadáver de Suaçuna e

os matutos que desenterraram o corpo preparavam para enterrá-lo novamente na

cova quando o Jeréba – que acompanhara o acontecimento como expectador

passivo – tenta iniciar uma investigação própria mais detalhada.

Agarraram então o cadáver, um pela cabeça e o outro pelos pés, que tinham ficado calçados, e fizeram um pequeno balanço para jogarem-no na cova. O Jeréba, porém, adiantou-se rapidamente. - Fazem-me um favor? – pediu ele com interesse. Os homens cessaram o movimento. - Que é? – perguntaram de mau modo. - Demorem-se um pouquinho, enquanto eu examino este corpo com mais minuciosidade? - Ora, meu senhor... está um fedor desesperado... e nós não podemos mais suportá-lo. E, voltando-se para o companheiro, o que assim respondia concluiu cheio de impaciência e de mau humor: - Vamos logo, Totonho! Bota esse diabo na cova. - Esperem! – bradou o Jeréba, indignando-se – seja mais caridosos e humanos! Larguem esse corpo por alguns instantes e vocês não se hão-de arrepender. O Jeréba já conhecia perfeitamente a índole, a educação e o gênio do nosso povo, principalmente daquela qualidade de gente com que estava tratando nesse momento. Sabia que os matutos, em regra; altivos e insolentes para com os pequenos e os desconhecidos, são humildes, submissos, rasteiros com os grandes ou simplesmente com quem julgam tal. Assumiu, portanto, um ar de importância, e medindo o trabalhador de alto a baixo deu um passo para ele: - Se eu não pudesse dar ordens, não lhas dava! Larguem imediatamente este corpo... já... - Mas... - Vamos, depressa!... – continuou ele franzindo as sobrancelhas e batendo impacientemente com a chibatinha nas botas. Se o não fizerem já, apito para chamarem a minha gente e mando-os meter a ambos na cadeia. Os dois trabalhadores entreolharam-se, como que se consultando. E vosmecê, quem é, que mal pergunto? – gaguejou um deles timidamente. - Sou... o chefe de polícia!... - Foi tão grande o abalo dos dois ignorantes trabalhadores, que o cadáver quase lhes cai das mãos e rola para a cova.171

A consciência dos efeitos da autoridade, do comportamento daquela gente –

que seria a de toda a gente, em última instância –, e a mudança de postura

assumida pelas duas partes, tanto pelo Jeréba quanto pelos matutos são

absolutamente nítidas. A passagem suscita traços cômicos ao expor as diversas

171 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 156-157. (grifos do autor).

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máscaras assumidas por todos os atores sociais e expõe vaidades e falsidades que,

em grau maior ou menor, os seres humanos aplicam diante de seus interesses, de

seus medos e de suas dúvidas. Vale perceber a completa modificação ocorrida na

situação apresentada pelas palavras do narrador:

Os dois matutos depuseram delicadamente o corpo no chão e iam-se afastando. O Jeréba tirou do bolso os dois últimos charutos que possuía – e trouxera uma provisão – e deu-lhos generosamente: - Tomem: fumem isto para entreter o tempo e poderem suportar essas exalações mefíticas. Os pobres trabalhadores aceitaram o presente, trêmulos de susto, mas ao mesmo tempo orgulhosos por uma tal distinção. Iam fumar charutos do chefe de polícia!172

No mais, A Emparedada da Rua Nova possui outras personagens que

poderiam ser enquadradas na definição de Umberto Eco de papeis vicários: “[...] isto

é, existem personagens de segundo plano cuja função só se explica se forem vistas

como variação de um dos caracteres principais, do qual “portam” por assim dizer

algumas características.”173 Sendo assim, essas personagens seriam uma espécie

de atores coadjuvantes, embora todos eles contribuam com sua chancela

complicadora ao enredo, tais como a mãe de Leandro Dantas – a ex-prostituta Calu

– e o seu companheiro, seu Antônio – também mais um português comerciante, mas

aqui um marinheiro que não obteve o mesmo sucesso comercial e social de seus

compatriotas em terras brasileiras –; João Paulo Favais, primeiro caixeiro e sobrinho

de Jaime Favais que pretende traçar trajetória análoga ao do tio: obter fortuna pelo

compadrio e matrimônio com a filha do comendador; os escravos presentes no

sobrado da Rua Nova, sobretudo a mucama de nome Joanna – aquela que seria a

testemunha responsável por relatar os dramas passados no sobrado dos Favais ao

narrador que, por sua vez, divulga o enredo aos seus leitores.

Uma personagem, entretanto, destaca-se de forma diferenciada, sobretudo

para a análise daqueles que se propõem a examinar mais detidamente A

Emparedada da Rua Nova. Trata-se do Jeréba.

Fortunato Dias é o nome de batismo do mancebo que é apresentado como

um rapaz que teria tudo para brilhar na sociedade pelo nascimento em uma boa

172 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 157. (grifos nossos). 173 ECO, Umberto. O Super-homem de Massa: Retórica e Ideologia no Romance Popular. Tradução: Pérola de Carvalho. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 155.

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família, pela sorte, pelo brilhantismo de sua inteligência rara e pelas garantidas

recomendações no mercado que todos os fatores somados proporcionam ao

agraciado. No entanto, o Jeréba – fórmula de cumprimento utilizada pelo rapaz e

que acabou apelidando a si mesmo, “alcunha com a qual se conformava

alegremente”174 – é marcado por igual força de fatores que o fizeram um fracassado

ante a sociedade. Envolvido em um confuso episódio envolvendo comércio e

família, o rapaz ficou completamente abandonado e definitivamente desacreditado

para empregos dignos. Vivia pelo Recife lidando com todo tipo de gente, transitava

nos espetáculos do Teatro de Santa Isabel e nas casas de jogos da Rua de São

Pedro.

Trata-se de uma figura, portanto, bastante representativa dos

entrelaçamentos existentes entre características que seriam consideradas como

contrapostas ou inversas. Porém a peculiaridade dessa personagem não reside

apenas nessa característica, mas principalmente na sua importância para a

montagem estrutural d’A Emparedada da Rua Nova. O Jeréba permeia diversos

meios da trama, no entanto a sua ação não é ativamente decisiva para o enredo.

Exemplo disso é que as propostas de resumo da obra praticamente dispensam, sem

maiores prejuízos, as menções e referências à personagem. Apesar da aparente

dispensa, a narrativa sutilmente revela a absoluta importância e mesmo a

necessidade fundamental da figura do Jeréba no enredo: é por meio dele que se

acompanha momentos fundamentais da trama. Mais: é a personagem responsável

por guiar, apresentar e desvendar muitos dos segredos enroscados nas páginas do

romance.

Sem fugir à fórmula básica folhetinesca dos mistérios a serem elucidados e

das informações sigilosas que aguardam seus decifradores, o romance está repleto

de situações enigmáticas – para o leitor, inclusive, resultando em muitos

reconhecimentos autênticos, pela definição de Umberto Eco. No caso d’A

Emparedada da Rua Nova, não só há o apelo das situações truncadas de traições,

mentiras e turbulências familiares, mas ainda há situações de delitos criminais

graves: as primeiras frases da obra já informam aos leitores a existência de um

cadáver, encontrado em estado já adiantado de apodrecimento, portanto

irreconhecível em uma primeira análise, instaurando-se um mistério que mesmo ante

174 VILELA, op. cit., p. 87.

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os primeiros esclarecimentos – se trataria do suicídio de um jovem estrangeiro –,

persiste na penumbra, convidando à investigação. Portanto, o romance agrega,

além das atraentes fórmulas do romance-folhetim, o magnetismo que compõem os

elementos do romance policial. E, em consonância com esta última característica, a

sua estrutura reclama a existência do papel do investigador. Esse espaço é

preenchido pelo Jeréba.

Encarregado de seguir o encalço do comendador Jaime Favais a pedido de

seu sobrinho, João Paulo Favais, o Jeréba percebe-se mais envolvido com a

pesquisa do que inicialmente supunha apenas um pedido de favor de um amigo

numa tentativa de conseguir algo para comer em troca. Desde o primeiro momento,

o narrador apresenta a personalidade do Jeréba como de uma pessoa bastante

digna, despida de preconceitos e que, apesar da permanente e difícil situação

financeira em que se encontrava, desviava-se de negócios ilícitos ou de pessoas

apontadas como gatunas e criminosas. Ao referir-se ao Zarolho em conversa com o

sobrinho do comendador, o rapaz acaba por se entregar também:

- E... que mais é ele? [Pergunta João Paulo Favais ao Jeréba]- Também é ladrão; é jogador; é estelionatário; assassino. - Misericórdia!... - Se eu estou te dizendo que ele é tudo neste mundo. - Mas se ele fosse tudo isto... - Se ainda não o foi ou não é, pode vir a sê-lo; eis o que eu quero dizer; o Hermínio é um homem capaz de tudo. - De onde o conheces? - Conheço-o... O rapaz abaixou insensivelmente a cabeça; uma súbita e incompreensível vermelhidão invadiu-lhe todo o rosto. Dir-se-ia que tinha pejo de continuar. Por fim, tendo o caixeiro reiterado a pergunta, ergueu de novo a cabeça e respondeu com resolução: - Conheço-o da casa de jogo do pátio de S. Pedro. - E tu jogas, Jeréba?- Às vezes, João; quando não tenho o que comer. O caixeiro lançou sobre o amigo um olhar incisivo e perscrutador. - Aposto que hoje estás num desses dias. - Adivinhaste – suspirou o rapaz e acrescentou logo baixando um pouco a voz – foi por isso que ter procurei. Ainda não almocei; se pudesse me emprestar alguns cobres...175

Assim, o narrador constrói a figura do Jeréba como uma espécie de um herói

às avessas: sem dinheiro, sem fortuna, vivendo de favores pelas ruas do Recife e

sem grandes destaques de personalidade que o coloquem como centro da ação,

175 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 82.

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mas também como uma personagem destemida e dotada de grandes virtudes como

gratidão, senso de justiça, lealdade e mesmo elegância e beleza:

Vivia de pedir a um e a outro antigo companheiro ou a alguns amigos modernos e a título de empréstimo quantias que nunca restituía, mas que também nunca lhe cobravam. Davam-lhe o que podiam e de boa vontade, não só porque a mocidade é geralmente generosa como também porque o Jeréba nunca se recusava a qualquer serviço de que o encarregassem, nem deixava de fazer o favor que lhe pedissem. - Eu só tenho uma coisa boa comigo – dizia ele com convicção e seriedade – é não ser ingrato. E era verdade. Pelo amigo ou por quem o tivesse socorrido qualquer vez, era ele capaz de se atirar ao fogo. [...] Apesar da vida irregular, incerta, infeliz, quase sem casa, o Jeréba não era lambazão nem maltrapilho. Trajava com decência e asseio a roupa que lhe davam os camaradas e tinha essas maneiras distintas e elegantes que, uma vez aprendidas com a educação ou adquiridas com o traquejo social, nunca se perdem, nem mesmo com o contato da miséria. O homem que foi bem educado e é de raça e de família, mesmo sob os andrajos se revela.176

Um desses grandes amigos que o Jeréba adquire na vida é justamente

Leandro Dantas. Velhos conhecidos desde a infância nos bancos do colégio Vilar,

Leandro enxerga no rapaz mais que uma amizade: são quase irmãos. Jeréba é a

única pessoa que conhece toda a origem do rapaz baiano e mais: frequenta a casa

e se relaciona com a família – a mãe, Calu e Marocas, irmã de Leandro. Também é

ao Jeréba que o jovem sedutor revela seu intricado jogo de sedução e confidencia

sobre os desafios e as vitórias resultantes de suas conquistas.

Ao ser posto no encalce de Jaime Favais, o Jeréba desempenha o papel de

um guia no enredo, uma espécie de simulacro de um corifeu: aquele que será o

condutor nas descobertas dos mistérios e na busca por se fazer justiça aos

assassinos de seu amigo. As passagens que são alinhavadas pelo rapaz agregam

intensos momentos de excitação, expectativa e ansiedade: pequenos disfarces e

mentiras, corridas contra o tempo, enfrentamentos e perseguições, embates

corporais, suposições de mortes e ressurgimentos e revelações de segredos. Uma

das grandes jogadas realizadas pelo narrador d’A Emparedada da Rua Nova é

justamente a suspensão do enredo – uma dentre várias – quando o Jeréba

encontra-se em Jaboatão declarando-se sabedor de toda a verdadeira versão, o que

realmente era exato, e informando que tomaria as devidas providências para

denunciar o culpado, no caso Jaime Favais. Os comparsas do comendador,

176 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 86.

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Hermínio e Bigode de Arame, induzem o Jeréba a uma festa popular da região na

qual em meio a bebidas e brigas pensam ter dado cabo à vida do rapaz. O leitor

pode se consternar com a passagem, pois sem a personagem que serve de

investigador na trama o fio da meada se perde junto com sua vida. Grande é a

surpresa e o entusiasmo provocado pelo narrador ao estabelecer uma reviravolta,

mais um dos lances teatrais – ou mesmo cinematográficos – com o ressurgimento

do Jeréba recuperado do atentado que lhe tentou lhe matar e orgulhosamente altivo

ante o assassino de Leandro Dantas.

Em mais uma discrepância dos modelos clássicos, o romance folhetinesco-

policial de Carneiro Vilella também destoa do padrão no que diz respeito à figura do

detetive, o investigador da trama. Ernest Mendel considera que

O ato de detectar toma tempo; portanto, os detetives ou são profissionais pagos ou gente de bem que vive de rendas. Os assalariados não se encaixam em qualquer uma dessas categorias; não tem tempo de lazer para detectar crimes, uma vez que o tempo que possuem pertence a seus patrões. O patrão, por sua vez, prefere que seus empregados produzam mais valia e não que encontrem quem matou quem.177

Relevando-se o apelo material/dialético – um limitador analítico – que Mendel

confere à sua análise, sua explicação diz respeito a um modelo bastante recorrente

nas propostas de romances com foco no enredo de crimes e investigações. É de

fácil identificação: “O verdadeiro herói do romance policial, portanto, tinha que ser

um brilhante investigador oriundo da classe alta e não um esforçado policial.”178 No

entanto, observe-se que a personagem Jeréba não se enquadra como um detetive

profissional tampouco vive de rendas, nem mesmo é assalariado. A princípio, é

certo que o Jeréba inicia a missão encarregado como um profissional: por dinheiro e

confiança em sua presteza e lealdade. Porém, ao perceber-se envolvido

pessoalmente com a situação, o contexto muda. Suas motivações passam a ser

outras: ao vê-se com um segredo tão comprometedor nas mãos, o mancebo

enxerga uma fresta para se fazer protagonista do caso como o mocinho justiceiro:

Via-se de repente transformado em herói de legenda, e ouvia já – tanto pode a fantasia – ecoando o seu nome de boca em boca, acompanhado por um cortejo de aplausos e de pontos de admiração.

177 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 124. 178 Ibid., p.36.

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Qual é, com efeito, o moço que não se tenha deixado, pelo menos uma vez na vida, embalar um momento sequer pela idéia de tornar-se herói de uma ação grandiosa ou magnânima, ou mesmo de um feito qualquer de proporções mais modestas, porém que todavia chame e prenda a atenção pública? Quantas vezes mesmo, formando castelos no ar – ocupação essa que entretém durante tantas horas – não se tem tido desejos de salvar um afogado, de livrar alguma criança das chamas de um incêndio, para gozar depois do espetáculo comovente e entusiástico de um povo inteiro a nos aclamar ou de uma mãe a abraçar-nos os joelhos por entra as lágrimas do reconhecimento e as bênçãos da felicidade?179

Nota-se que mais uma vez o narrador expõe friamente os interesses da

condição humana. É certo que o Jeréba sofre o impacto de estar diante do cadáver

de um grande amigo, assassinado e anônimo, entregue aos urubus e a uma cova

indistinta em uma terra distante. Entretanto, mesmo ante essa situação, vislumbra-

se o interesse íntimo e particular de um ganho que se poderia resultar da sua

façanha. Mais adiante, após o retorno da personagem, quando se supunha morto,

ocorre mais uma variação de interesse por parte do Jeréba. O que antes lhe figurou

como um arroubo romântico, estabelece-se como um momento que requer frieza e a

racionalidade de quem se conforma com a injustiça e a impunidade, mas que ainda

lhe poderia ser extremamente útil. O Jeréba procura Jaime Favais, mas a sua

proposta é de negociador, ou mais nitidamente, na qualidade de chantagista. O

rapaz pede dinheiro pelo seu silêncio. O narrador demonstra a extrema

racionalidade do rapaz ao julgar estar diante da oportunidade de mudar de vida

definitivamente aproveitando-se de uma situação que, no fim das contas, ato de

heroísmo nenhum poderia modificar àquela altura: a morte consumada de seu

amigo. Em um diálogo repleto de jogos de ironias e de coerções o comendador

Jaime Favais e o Jeréba ajustam os negócios:

O Jeréba fez um pausa; atirou os cabelos para trás com um gesto que lhe era habitual e que havia adquirido na convivência do poeta Castro Alves, cofiou duas ou três vezes o bigode, e tomando uma posição completamente familiar, atirou às faces do negociante estas palavras de um desbragado cinismo: - Comendador, somos dois perfeitos tratantes e, por consequência, cartas na mesa e jogo franco! - É melhor, Sr. Dias. – concordou o negociante – deixemo-nos de subterfúgios e vamos diretamente ao que nos importa. Pelo que lhe ouvi, compreendo que se acha senhor dos fatos, que à primeira vista parecem criminosos e que me podem comprometer aos olhos da justiça e do comércio. - Exatamente.

179 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 161.

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- E que, usando e abusando da posição em que, portanto, se acha, para comigo, quer tirar o maior proveito possível dessa situação. Não será verdade? - O Sr. Comendador acaba de repetir exatamente o mesmo que eu ia lhe dizer. Parece que estava lendo no meu pensamento. O Comendador não pôde deixar de sorrir palidamente daquele cinismo do Jeréba.- Dir-se-ia – continuou o rapaz com uma ironia pungente e insinuante – que V. Sa. Está habituado a fazer dessas transações. O negociante mordeu novamente os lábios e substituiu o sorriso por uma expressão de angústia e de seriedade. Decididamente o valdevinos abusava da situação e impunha sua força. - Vamos, portanto ao caso – declarou o Jeréba finalmente. Sou moço; tenho disposição para o trabalho, aptidões para o comércio, habilidade, inteligência e coragem... - Bem se vê! – murmurou o negociante tristemente.180

É como se a personagem exercesse o seu método de fazer justiça aliado aos

seus interesses. A essa altura do enredo, o comendador Jaime Favais chega a ser

retratado como uma figura digna de comiseração, esperando permanentemente

seus algozes – o Zarolho e o Bigode de Arame; o próprio sobrinho, João Paulo

Favais, agora o Jeréba que o aterrorizava com a lembrança da família de Leandro

Dantas, etc. É perceptível a flexibilidade da natureza humana quando o narrador

expõe as consciências – ou as verdades que cada um conta a si mesmo – para

justificar os acontecimentos. Jaime Favais, por exemplo, não considera a sua ação

como um delito (“os fatos que à primeira vista parecem criminosos”). Não há

verdades nem certo e errado, há versões e justificativas para cada ação.

A Emparedada da Rua Nova quebra muitas expectativas do que se poderia

esperar de um romance folhetim clássico. O conjunto de suas discrepâncias somam

para se aglutinar em uma total rejeição da chamada estrutura da consolação.

Também é um desvio dos modelos de romance policial clássicos já que

O romance policial é o império do final feliz – onde o criminoso é sempreapanhado, a justiça é sempre feita, o crime não compensa e no final a legalidade, os valores, a sociedade burguesa sempre triunfam. É uma literatura reconfortante, socialmente integrante, apesar da preocupação com o crime, a violência e o assassinato.181

180 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 495. 181 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 80-81. (grifos nossos).

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O teor naturalista/realista da obra descarta o traquejo do final feliz: a

sucessão de infortúnios não encontra paradeiro em um arremate consolativo. Não

há bons para se recompensarem nem maus a serem punidos. Há consequências de

acontecimentos e mesmo fins incertos, como o de Celeste Cavalcanti o qual “não

podemos adiantar por ora, porque faz parte de outro romance, que não será

propriamente continuação deste mas que com ele tem grandes pontos de contato e

relações muito íntimas”182. A problemática do final é jogada no colo do leitor. As

últimas páginas, mais do que resolvem, perturbam. As personagens que possuem

seus encaminhamentos finais nítidos servem para explicitar o desarranjo da vida que

o final da obra não soluciona.

A obra também é filha do romantismo. As mulheres em seus ataques de

nevroses, desmaios, convulsões e febres causados por perturbações emocionais,

embora marcadamente discrepantes das pálidas donzelas românticas, não são

poupadas dos arroubos fantasiosos e exagerados, elementos também requeridos

pela fórmula folhetinesca clássica juntamente com as famosas suspensões de

capítulos e a sensação de uma espécie de diálogo do narrador com o leitor

direcionando – e frequentemente modificando – o olhar e o acompanhamento das

passagens, fornecendo a falsa impressão de que a narrativa está lhe saciando e

dirimindo as agonias quando na realidade está lhe excitando a curiosidade com

interrupções estratégicas e cortes precisos. É comum construções como “Voltemos

atrás algumas horas. O leitor há-de estar lembrado de que...”183; “Enquanto o

negociante e o Zarolho correm a caminho de Jaboatão, seguidos de perto pelo

emissário do caixeiro, reatemos nós a nossa narração, voltando de novo ao ponto

em que deixamos o avô e a neta”184; “Eis o Comendador a rodar de novo pela

estrada de Jaboatão”185. A este recurso, bastante difundido e utilizado nas obras

produzidas no século XIX, é dado o nome de metalepse quando em narrações

heterodiegéticas – nas quais o narrador não é uma de suas personagens – o

narrador “emerge brutalmente e/ou convida o leitor a fazer o mesmo.186” Trata-se de

uma exploração em grande intensidade das potencialidades de uma narração

heterodiegética centrada no narrador que

182 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 554. 183 VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 3. ed. Recife: Coleção Recife, 1984, p. 78. 184 Ibid., p. 106. 185 Ibid., p.207. 186 REUTER, Yves. Introdução à análise do romance. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 81.

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pode controlar todo o saber (ele sabe mais que as personagens), sem limitações de profundidade externa ou interna, em todos os lugares e em todos os tempos, o que lhe permite flash-backs e antecipações certas. Fala-se dele com de um narrador onisciente, na medida em que sua visão pode ser ilimitada e que ela não está ligada à focalização através desta ou daquela personagem. Ele certamente pode assumir todas as funções do narrador. Esta combinação foi muito utilizada na tradição clássica e reaista e pelos autores do romance-folhetim.187

O tempo n’A Emparedada da Rua Nova não é linear e retilíneo, mas encontra-

se em disposição de idas e voltas em diversas situações: meses para explicar como

determinadas personagens se conheceram, dias para explicitar determinadas

situações, anos para buscar as origens e as formações de indivíduos e famílias.

Constrói-se, assim, ante o recurso do flashback e das flutuações temáticas. Os

espaços, consequentemente, também sofrem esse fenômeno. Embora o ponto de

referência principal seja o Recife, sobretudo o sobrado da Rua Nova, os lugares

dimensionam-se em consonância com as variações de tempo – Jaboatão, Monteiro,

as capoeiras do Engenho Suaçuna, o Teatro de Santa Isabel, a Passagem da

Madalena, o Beco das Barreiras, etc. Esses efeitos construtivos, portanto,

classificam-se inteiramente no chamado romance centrífugo188 e são bastante

divergentes das fórmulas clássicas tanto do romance folhetim tradicional quanto do

romance policial que “em grande escala, marcam a volta da famosa regra de

Aristóteles em relação ao drama: unidade de tempo, lugar e ação”189. Além disso, o

nível de profundidade na apresentação das personagens também é discrepante nos

modelos tradicionais. Com isso, não se afirma que as figuras construídas por

Carneiro Vilella possuam extrema complexidade, porém apresentam estratos e

nuances que vão além das personagens planificadas e unidimensionais dos

romances populares de maneira geral.

Outra fórmula repetida ao longo de toda a obra é o dos constantes

enfrentamentos de situações conflituosas, revelações de segredos e

reconhecimentos autênticos – nos quais o leitor também participa da revelação – e

produzidos – aqueles que o leitor já possui conhecimento antes de serem revelados

187 Ibid., p. 75-76. 188 Conferir página 17 desta dissertação. 189 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 50.

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a determinadas personagens. O que figura-se irremediavelmente em uma estratégia

de estrutura sinusoidal: um labirinto de nós e desatamentos para se deparar mais

adiante com outras tenções e novos desenlaces, mas que no caso d’A Emparedada

da Rua Nova não finaliza-se com a diluição de todos os laços, já observou-se. O

que é mais: ao contrário de folhetins clássicos, não há informações soltas e aqui

essa tendência remete à estrutura do romance policial. Joga-se uma informação

para apanhá-la capítulos depois, o leitor deve seguir o rastro do fio de um novelo

embaraçado. Mais do que o crime em si, a disposição da obra privilegia os mistérios

e suas estratégias de revelações. Em diálogo com a esquematização trazida por

Ernest Mendel:

Em “As Vinte Regras do Romance Policial” (The American Magazine,setembro de 1928), S. S. Van Dine também salienta o que chama de “jogar limpo” com o leitor, uma das regras fundamentais do bom autor de um romance policial. “A luta de intelectos”, em outras palavras, se desenrola simultaneamente em dois níveis: entre o grande detetive e o criminoso e entre o autor e o leitor. Nessas duas lutas, o mistério é a identidade do culpado para o qual tanto o detetive quanto o leitor devem ser conduzidos através de um sistemático exame de pistas. Entretanto, enquanto o herói do romance sempre sai vencedor, o leitor não deve de forma alguma suplantar o autor, pois desta forma a necessidade psicológica à qual o romance policial deveria corresponder não será mitigada: não haverá tensão, “suspense”, uma solução surpreendente ou uma catarse.190

A arte do romance policial é atingir estas metas sem recorrer a truques baratos. As pistas devem estar todas presentes. Substituição secreta de um gêmeo idêntico por outro não é permitida, ou passagens secretas para escapar de quartos fechados por dentro. O leitor deve se surpreender ao saber a identidade do assassino e isto sem transgredir o “jogo limpo”. Surpreender sem enganar é demonstrar maestria do gênero191.

É Ernest Mendel ainda que evoca a configuração do crime como um esboço

de quebra-cabeças a ser montado de maneira que a trama esteja assentada na

lógica de uma construção contínua com objetivos definidos: a elucidação dos

mistérios. Tal é a exemplificação do modelo apresentado que em muitos casos o

crime em si acontece anteriormente ao início da trama – no caso d’A Emparedada

da Rua Nova ocorre justamente isso, no entanto, a obra de Carneiro Vilella

desestrutura a linearidade do tempo de forma que o crime perpasse o enredo do

início ao fim, inclusive (re)memorando e revelando o momento propriamente dito do

delito. Por isso, “os ocasionais crimes posteriores, cometidos à medida que a trama

190 Ou agnições autênticas na definição de Umberto Eco. 191 MANDEL, Ernest. Delícias do Crime: história social do romance policial. Tradução de Nilton Goldmann. São Paulo: Busca Vida, 1988, p. 37-38.

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se desenrola, são quase causais, com o propósito de estimular a investigação do

primeiro assassinato ou para fornecer pistas suplementares para a identificação do

assassino”192. Trata-se de uma espécie de crime assessório, que servem como

complementos ou coadjuvantes ao crime principal ou original.

Pode-se, portanto, utilizar-se de uma esquematização bastante direta para

planificar o perfil que confere as características tão particulares – “ingredientes

formais, estruturais e temáticos” – d’A Emparedada da Rua Nova de maneira muito

simples:

Primeiro, a forma do romance-folhetim; segundo, a estrutura do romance policial; terceiro, a figura de um sedutor compulsivo (Leandro Dantas), ao modo de Don Juan; quarto: crimes, traições maritais e descrições minuciosas do cotidiano social, político, religioso, e dos preconceitos sociais, linguísticos e de raça do seu tempo.193

É certo, portanto, que a obra mais conhecida de Carneiro Vilella encerra

padrões, modelos e mesmo fórmulas sedimentadas, mas a quebra de paradigmas e

a aglutinação de fatores de divergência das medidas oficiais conferem um teor

bastante peculiar e curioso à construção narrativa, sem perder o fôlego ao suscitar o

interesse de seus leitores e a curiosidade acerca de sua temática, além do

magnetismo de sua construção e a propriedade das suas personagens.

192 Ibid., p. 37-38. 193 VIEIRA, Anco Márcio Tenório. Mistérios e Costumes em um romance-folhetim: A Emparedada da Rua Nova, de Carneiro Vilela. In: VILELA, Carneiro. A Emparedada da Rua Nova. 5. ed. Recife: Cepe, 2013, p. 13.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao examinar A Emparedada da Rua Nova, percebe-se o quanto a obra

encerra temáticas passíveis de potenciais reflexões. Carneiro Vilella viabilizou a

construção de um romance que abriga desvios internos de estrutura, de

personagens presumidamente arquetípicas e do próprio enredo, ao mesmo tempo

em que espelha e reproduz as críticas sociais, as correntes predominantes na

segunda metade do século XIX e a ironia como forma de manifestação artística.

Esses fatores representam várias esferas de importâncias gravitando em um

mesmo espaço. O desvio na rota arquetípica da construção das personagens

remonta à uma reação aos modelos tradicionais do modelo literário do folhetim

dentro do próprio romance, bem como a ausência de um desfecho do “final feliz”

desestabilizando o roteiro folhetinesco provoca uma discrepância latente: algumas

das principais características que distinguem as tramas de folhetim são

abandonadas. Mais: além de recusar tais fórmulas, o narrador põe à prova as bases

da construção, negando-as, executando justamente os elementos opostos que a

receita tradicional prescreve.

A Emparedada da Rua Nova figura, portanto, como uma peculiar

manifestação da literatura brasileira: folhetim em tudo, na forma de veiculação e no

gênero, congrega trama policialesca em um romance de costumes que dialoga com

notícias de jornais pernambucanos que descreviam crimes sem resolução,

acontecimentos com desfecho incerto e cercados de uma atmosfera de mistério e

desconfianças. Em uma obra que evoca a si mesma o caráter de relato – ainda que

um conhecimento adquirido com distanciamento temporal e geográfico pronunciado

–, o narrador se inscreve em um ardiloso jogo de claro-escuro. O cientificismo,

então presente, sobrenadando os debates do período, encobre um areal pantanoso

de incertezas. A transcrição das matérias dos jornais da província com data e

mesmo dia da semana correspondentes, com noticiários de entradas e saídas de

navios no Porto do Recife sugerem o estabelecimento de provas na veracidade do

relato. No entanto, a contraprova dessas certezas estabelece-se na própria ficção:

na consciência de que as realidades existentes não são prerrogativas de

verossimilhanças, no entendimento de que mesmo os relatos, as provas, as

transcrições de determinados trechos e matérias de jornais e mesmo o narrador não

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são mais do que elementos criados em um mesmo sistema, portanto planificados em

um mesmo projeto, servindo ao mesmo fim: a construção ficcional – é preciso

ressaltar esse caráter ainda mais em casos como o do romance de Carneiro Vilella –

de uma obra literária.

Também por conter elementos ligados às tramas policiais tradicionais e

também por desviar de outros tantos traços desse gênero, A Emparedada da Rua

Nova dialoga com mais um ponto pouco usual no romance brasileiro.

Provavelmente pelo desvelo em organizar um enredo que construa uma lógica

investigativa pautado numa linha de raciocínio vestigial, o narrador não se permitiu

arroubos episódicos: cada um de seus oitenta capítulos encerra uma peça

fundamental para o entendimento da obra. Ainda mais: cada um de seus oitenta

capítulos é constituído por uma porção de elementos – caminhos, reminiscências,

conhecimentos, objetos, relações e uma apresentação de perfis e sentimentos – que

são extremamente fundamentais para a continuidade do enredo. Não há trechos

suprimíveis, assim como não há elementos-surpresa, pois as peças estão todas

dispostas em um jogo franco e aberto. O leitor é convidado para alinhavar os

retalhos da trama, coser as informações fornecidas em um capítulo para serem

dispostas dezenas e centenas de páginas depois. Nada n’A Emparedada da Rua

Nova flutua, o encadeamento interpela-se pelas páginas, ainda que circunscrito em

uma estrutura não linear. É como um imã nuclear que ao final, após atrair e

acumular informações suficientes, implode desnudando a complexa rede

esquemática traçada desde a primeira linha do romance pelo narrador.

Possivelmente, o narrador encontrou uma maneira de praticar com mais

desenvoltura a ironia, tanto na forma do romance como nas temáticas presentes na

obra. Ao refutar o happy ending e jogar no colo do leitor a problemática de uma

trama com o desfecho repleto de infortúnios e mesmo finais inconclusos, a obra

expõe a miséria da condição humana, as injustiças, a falência de uma sociedade

repleta de tradições fracassadas, hipócrita e egoísta. Expondo pressões que

acometem os mais diferentes tipos humanos – ricos, pobres, estrangeiros,

brasileiros, homens, mulheres, velhos e moças, a despeito de condições sociais,

financeiras e culturais, apesar da influência cientificista – é como se o narrador

tivesse a oportunidade de despir a todos ante o mesmo espelho das grandes e das

pequenas misérias humanas que permeiam a vida de toda a sociedade, a

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reafirmação de uma espécie de flagelo da espécie, inerente à condição da

existência.

A fundamental questão colhida ante a análise estrutural da forma folhetinesca

e não folhetinesca n’A Emparedada da Rua Nova diz respeito ao balanço de

ingredientes utilizados na obra para compor uma narrativa que ao mesmo tempo

remete e destoa da tradição dos folhetins e da tradição dos romances policiais

clássicos, divergindo e remetendo, sensivelmente, ao espírito do seu tempo:

cientificista e determinista, sobretudo. Todos esses fatores fazem d’A Emparedada

da Rua Nova de Carneiro Vilella uma trama folhetinesca com elementos policiais

que não se prendeu apenas a modelos pré-estabelecidos, utilizando-se e

enveredando-se por outras possibilidades que vão além de fórmulas prontas.

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