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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco como parte dos requisitos para obtenção do titulo de Mestre em Desenvolvimento Urbano do curso de Pós- Graduação Stricto-Sensu. DE TAPUITAPERA A VILLA D’ALCANTRA COMPOSIÇÃO URBANA E ARQUITETÔNICA DE ALCÂNTARA NO MARANHÃO Grete Pflueger Banca Examinadora: Profa Dra.Virgínia Pitta Pontual Orientadora Prof. Dr.Ney de Brito Dantas (examinador interno) Prof. Dr.José Luis Mota Menezes (examinador externo) UFPE, 24 de julho de 2002.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO URBANO

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco como parte dos requisitos para obteno do titulo de Mestre em Desenvolvimento Urbano do curso de Ps- Graduao Stricto-Sensu.

    DE TAPUITAPERA A VILLA DALCANTRA COMPOSIO URBANA E ARQUITETNICA DE

    ALCNTARA NO MARANHO

    Grete Pflueger

    Banca Examinadora: Profa Dra.Virgnia Pitta Pontual Orientadora Prof. Dr.Ney de Brito Dantas (examinador interno) Prof. Dr.Jos Luis Mota Menezes (examinador externo)

    UFPE, 24 de julho de 2002.

  • AGRADECIMENTOS

    Universidade Estadual do Maranho, pela realizao do mestrado em So Lus.

    Universidade Federal de Pernambuco, mestrado em Desenvolvimento Urbano -

    MDU e ao Centro de Conservao Integrada - CECI pela parceria firmada durante o curso.

    Aos professores da Universidade Federal de Pernambuco, Virginia Pontual,

    Thomas Lapa, Ana Rita, Lucia Leito, Ftima Furtado, De la Mora, Silvio Zanquetti e Norma

    Lacerda pela empatia e interao com os alunos e com as questes locais.

    Ao curso de Arquitetura e Urbanismo, em especial a Marluce Wall e Alex Oliveira

    pelo esforo para realizao do convnio.

    Aos professores do curso de Arquitetura, colegas do mestrado, parceiros nessa

    empreitada Hermes Fonseca, Clia Mesquita, Brbara Prado, Marluce Wall, Chico Maranho,

    Z Marcelo do Esprito Santo, Phelipe Andrs, Frederico Burnett, Mrcia Marques, Carlos

    Coelho, Margareth Figueiredo, Therezinha,Lcia Nascimento ,Luciana Caracas , Z Antonio e

    Deborah Garreto e especialmente Thais Zenkner pelas angustias e horas de estudos

    divididas.

    orientadora, Professora Virginia Pontual pela dedicao, persistncia,

    preocupao e parceria ao longo do trabalho.

    A minha famlia, especialmente meus pais Ernest e Theresa, pelo apoio

    incondicional, minhas irms Silvia e Ldia pelo incentivo permanente e meus irmos Fabio e

    Oswaldo pelas horas ocupadas em seus computadores. A Harms e Cia. pela ajuda com

    computadores e impressoras.

    Ao meu marido, Jos Wilson, pela ajuda com as meninas , e a Juliana e Lusa,

    minhas filhas pela compreenso e pacincia.

    historiadora Glria Correa, pelos valioso conselhos e pela oportunidade o acesso

    a documentos sobre o Maranho.

    Ao arquelogo Deusdedit Leite Filho por dividir as inquietaes sobre os mapas e

    pelo emprstimo de seus livros.

    A Mariana Sirene, incansvel na correo e normalizao do documento, alm de

    companheira nas horas de agonia e corrida contra o tempo.

    A Pedro Alcntara, pela confiana em deixar seus escritos e pela semente da

    inquietao sobre Alcntara e incentivo pesquisa plantada desde os tempos de Rio de Janeiro.

    amiga Mrcia Jardim, pela incansvel ajuda no Rio de Janeiro no acesso ao

    acervo da Mapoteca do Itamaraty.

  • A Juliana e Lusa, minhas filhas.

  • Resumo

    Estudo sobre a formao da cidade de Alcntara no Maranho, estabelecendo um dialogo entre o urbanismo e a histria, por meio da caracterizao da composio urbana e arquitetnica da cidade nos diferentes momentos da formao, questionando a existncia do planejamento urbano na perspectiva de que o resgate da formao urbana um instrumento fundamental compreenso dos dilemas do planejamento urbano da cidade atual. A cronologia de longa durao percorre trs sculos investigando inicialmente as origens da cidade a partir da hiptese da povoao transitria de Nazar e da aldeia indgena Tapuitapera, ponto estratgico de passagem dos conquistadores europeus no sculo XVI, a aldeia religiosa de Santo Antonio DAlcantra no sculo XVII marcada pela presena religiosa at a sede da aristocracia rural agro exportadora de algodo do sculo XVIII, quando finalmente consolida sua formao urbana e arquitetnica. Estabelecendo se uma comparao com a cidade de Mariana em Minas Gerais dentro do contexto do Barroco.

    Abstract

    This is a study about the formation of the city of Alcntara in Maranho,

    establishing a dialogue between urbanism and history through the caracterization of the citys urban and archietectonic composition at the diferent moments of formation, questioning the existence of urban planning in the prospective that the rescue of thje urban formation is a fundamental instrument to understand the urban plannning dilemmas of the city nowadays. The long term chronology covers three centuries investigating the origins of the city from the Nazars ephemeral population hyphotesis and the Tapuitaperaindigenous village which was a strategic gateway for the European conquerors in the XVI centurys:Santo AntonioDalcantra religious village in the XVII century was marked by strong religious presence up to the rural aristocracy that used to export cotton in the XVIII century when it finally consolidates its urban and architectonic formation.We establish then a comparison with the city of Mariana in Minas Gerais a baroque context.

  • SUMRIO

    p. INTRODUO.............................................................................................................. 9

    CAPITULO 1

    PRESSUPOSTOS GERAIS

    16

    1.1 Fontes e Mtodos de Pesquisa.......................................................................................... 16 1.2 Conceitos e Referncias Tericas...................................................................................... 22 1.3 Principal Debate: Cidades Portuguesas, Planejadas Ou espontneas?.............................. 25 1.4 O Barroco no Brasil:O Caso de Mariana em Minas Gerais............................................... 29 1.4.1 O Barroco Como Concepo de Mundo e o Urbanismo Barroco.................................... 29 1.4.2 Mariana: Cidade Espontnea ou Planejada........................................................................ 32

    CAPTULO 2

    ALCNTARA HOJE

    35

    2.1 Localizao e Caractersticas do Territrio....................................................................... 35 2.1.1 Tombamento de Alcntara................................................................................................. 37 2.1.2 Implantao do Centro de Lanamentos............................................................................ 38 2.2 Caractersticas Culturais ................................................................................................... 39 2.2.1 As manifestaes culturais................................................................................................ 37 2.2.2 Aspectos econmicos......................................................................................................... 38 2.3 Composio Urbana e Arquitetnica........................................................................ 42 2.3.1 Composio urbana (caractersticas)................................................................................. 42 2.3.2 Composio arquitetnica.................................................................................................. 45 2.4 Problemas de Alcntara face ao Planejamento da Conservao...................................... 49

    CAPTULO 3

    ALDEIA INDGENA E A PRESENA DOS CONQUISTADORES SECULO XVI

    52

    3.1 Os ndios e a Organizao Espacial........................................................ 58

    CAPTULO 4

    A ALDEIA RELIGIOSA DE SANTO ANTONIO DALCNTARA SCULO XVII

    65

    4.1 Presena Francesa Em Alcntara - 1612-1615.................................................................. 65 4.2 Relaes entre So Lus e Alcntara.................................................................................. 70 4.3 Eleio Da Vila De Alcntara........................................................................................... 72 4.4 Composio Urbanstica.................................................................................................... 74

    CAPTULO 5

    A VILLA DE SANTO ANTONIO DALCNTARA SCULO XVIII

    81

    5.1 O Apogeu Econmico e a Aristocracia Rural Agro-Exportadora.................................... 81 5.2 O Estudo de Pedro Alcntara............................................................................................. 85 5.3 A Composio Urbana de Alcntara no Sculo XVIII............................................. 88 5.3.1 O Stio................................................................................................................................ 90

  • 5.3.2 Os Conjuntos urbanos........................................................................................................ 91 5.3.2.1 O Conjunto urbano da Praa da Matriz............................................................................. 91 5.3.2.2 O Conjunto urbano do Carmo........................................................................................... 97 5.3.2.3 O Conjunto urbano das Mercs......................................................................................... 97 5.3.3 Traado.............................................................................................................................. 97 5.3.4 Fontes................................................................................................................................. 1035.4 Comparao com a cidade de Mariana em Minas Gerais no sculo XVIII....................... 1045.4.1 Os conjuntos urbanos......................................................................................................... 1055.5 A composio arquitetnica de Alcntara no sculo XVIII.............................................. 1085.5.1 Arquitetura civil urbana de Alcntara................................................................................ 1085.5.2 Os materiais de acabamento.............................................................................................. 1145.5.3 A arquitetura religiosa....................................................................................................... 122

    CONCLUSO

    129

    BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................

    132

  • NDICE DE FIGURAS

    CAPTULO 2

    2.1 PLANTA CADASTRAL DE ALCNTARA, 1970 , arquivo do arquiteto Pedro Alcntara.................................................................................................................................

    43

    2.2. PLANTA DIGITAL DA CIDADE DE ALCNTARA, em GPS, 2000 acervo PrefeituraMunicipal................................................................................................................................

    43

    2.3 CROQUI DA IGREJA MATRIZ. LEFVRE, Rene e COSTA filho, Odylo. Maranho: So Lus e Alcntara. So Paulo, 1971. Cia. Editora Nacional, EDUSP, p. 37.

    47

    CAPTULO 3

    3.1 MAPA DAS CAPITANIAS DO BRASIL - de Lus Teixeira, 1574, Mapoteca do Itamaraty Rio de Janeiro, reproduzido do livro de Mrio Meireles - Joo de Barros, primeiro donatrio do Maranho.ALUMAR1996..................................................................

    54

    3.2 FRAGMENTO DE MAPA - BRASILIA - autoria de Arnold F. Van Langeren de 1595, reproduzido da pesquisa de Alcntara na histria, de Pedro Alcntara, mimeo.

    57

    3.3 GRAVURAS DOS NDIOS, publicadas no livro Sur La France quinoxiale de Nicolas Fornerod, 2001..........................................................................................................

    59

    CAPTULO 4

    4.1 GRAVURA COM TRAADO DE SO LUS,1647, retirada do CDRoom, REIS Filho, Nestor Goulart. Imagens das vilas e cidades do Brasil colonial............................................

    71

    4.2 PLANTA DE SO LUS, 1759 autoria no identificada; um detalhe de um Manuscrito original em tons amarelados existente na Torre do Tombo de Lisboa, publicado no livro Imagens das vilas e cidades do Brasil Colonial. REIS Filho, Nestor Goulart. 2000..........................................................................................................................

    71

    4.3 PROVNCIA DO MARANHO 1631, a 33 carta contida no Portugalia Monumenta cartogrfica e o nmero 176, do catlogo da mapoteca do Itamaraty - RJ, por Joo Teixeira Albernaz, o velho. Reduo do livro de ADONIAS, Isa. ...............................................................................................................................................

    77

    4.4 DEMONSTRAO DO MARANHO ATE O RIO DAS PREGUIAS 1666 - o nmero 180, do catlogo da Mapoteca do Itamaraty; o mapa esta contido no Livro De toda a costa da Provncia de Santa Cruz, por Joo Teixeira Albernaz, o moo. ADONIAS, Isa. Op. Cit..........................................................................................................

    77

    4.5 ESTUDO DA FORMAO DE ALCANTRA NO SCULO XVII. Mapa base 1970,

    por Grete Pflueger................................................................................................................... 81

    CAPTULO 5

    5.1 ESTUDO DE PEDRO ALCNTARA Croquis da formao urbana no sc. XVIII......................................................................................................................................

    87

    5.2 TRANSFERNCIA DE INFORMAO DO MAPA 1755 SOBRE MAPA BASE

  • DE 1970.PFLUEGER,Grete.2002.......................................................................................... 89 5.3 VISTA AREA DA PRAA DA MATRIZ em Alcntara,retirada do Livro

    Arquitetura luso-brasileira no Maranho. SILVA, Olavo Pereira da. Belo Horizonte: 1998, Ed. Formato, p. 25........................................................................................................

    92

    5.4 CROQUI DO PELOURINHO EM ALCNTARA. PFLUEGER, Grete. 2002............... 93 5.5 CASA DE CMARA E CADEIA EM ALCNTARA. CUNHA, Gaudncio.

    Maranho 1908, p. 152........................................................................................................... 94

    5.6 DEMONSTRAO DA VILA E PORTO DE TAPUITAPERA , 1789, Mapoteca do Itamaraty, reproduzido do CDRoom Imagens das vilas e cidades do Brasil colonial, REIS Filho Nestor Goulart, 2000..........................................................................................

    96

    5.7 IDENTIFICAO DAS IGREJAS E PORTO no mapa 1789,Grete Pflueger................. 96 5.8 PLANTA DA VILA DE ALCNTARA, 1755, autoria no identificada, original

    existente na Torre do Tombo de Lisboa, publicado no livro Imagens das vilas e cidades do Brasil colonial. REIS Filho, Nestor Goulart. 2000..........................................................

    102

    5.9 IDENTIFICAO DE RUAS E IGREJAS da planta de 1755, por PFLUEGER, Grete.......................................................................................................................................

    102

    5.10 CROQUI DA FONTE DAS PEDRAS EM ALCNTARA. PFLUEGER, Grete. 2002. 103 5.11 CROQUI DA FONTE DA MIRITITIUA , em ALCNTARA. PFLUEGER, Grete.

    2002........................................................................................................................................ 103

    5.12 PLANTA DA CIDADE DE MARIANAMINAS GERAIS, SCULO XVIII ,livro Imagens das vilas e cidades do Brasil colonial.REIS Filho,Nestor Goulart. 2000........................................................................................................................................

    107

    5.13 MAPA SNTESE DE MARIANAMINAS GERAIS, SCULO XVIII ,Fonseca, Claudia Damasceno. Do arraial cidade: a trajetria de Mariana no contexto do urbanismo portugus. In Universo urbanstico Portugus (1415-1822), Lisboa 1998, p. 267 a 300................................................................................................................................

    107

    5.14 COMPARAO DO ALADO POMBALINO (Pelouro da Reabilitao de Lisboa), com o CROQUI DE CRO LIRA e a foto dos SOBRADOS DA PRAA MATRIZ............

    110

    5.15 ESTUDO DAS FACHADAS DA ARQUITETURA CIVIL EM ALCNTARA. PFLUEGER, Grete. 1999.......................................................................................................

    112

    5.16 PLANTA BAIXA MORADA INTEIRA E SOBRADO. PFLUEGER, Grete. 2002.............................................................................................................................

    112

    5.17 CROQUI DOS ELEMENTOS DO SOBRADO. PFLUEGER, Grete. 1989..................... 113 5.18 CROQUIS DE FECHADURAS E ALDRABAS DE SO LUIS E ALCNTARA.

    SILVA, Olavo Pereira da. Arquitetura Luso Brasileira no Maranho. 1998, p. 74 117

    5.19 CROQUIS DE GRADIS DE SO LUIS E ALCNTARA. SILVA, Olavo Pereira da. Arquitetura Luso-Brasileira no Maranho. 1998, p. 77..........................................................

    117

    5.20 ESQUADRIAS DE SO LUIS E ALCNTARA. SILVA, Olavo Pereira da. Arquitetura Luso Brasileira no Maranho. 1998, pg. 36......................................................

    118

    5.21 ALJUBE EM MARIANA. RODRIGUES, Jos Wasth. Documentrio Arquitetnico, p. 142...........................................................................................................................................

    120

    5.22 CASA DO DIVINO EM ALCNTARA do Guia dos Bens Tombados do Maranho, p. 4...............................................................................................................................................

    120

    5.23 CASA DE CMARA E CADEIA DE MARIANA Croqui de Jos Washt Rodrigues op.cit.......................................................................................................................................

    123

    5.24 CASA DE CMARA E CADEIA DE ALCNTARA. Croqui de Olavo Pereira da Silva..op.cit.............................................................................................................................

    123

    5.25 ESTUDO DAS FACHADAS DA ARQUITETURA RELIGIOSA EM ALCNTARA.Croqui de PFLUEGER, Grete. 1999.

    125

  • INTRODUO

    A escolha de Alcntara como objeto de estudo fruto de um interesse pessoal pela

    cidade histrica, tombada pelo Patrimnio Federal em 1948, e pesquisada anteriormente em vrias

    situaes: em bolsa de iniciao cientifica do CNPq em 1989, com orientao do arquiteto Antnio

    Pedro Gomes de Alcntara do IPHAN-RJ; em monografia do curso de especializao em

    Metodologia do Ensino superior (1997); em discusses acadmicas no mbito da Universidade

    Estadual do Maranho e em disciplinas tericas do curso de Arquitetura e Urbanismo.

    A trajetria de Alcntara construda a partir de Aldeia Tupinamb Tapuitapera, ponto

    estratgico na conquista do territrio maranhense no sculo XVI - XVII e testemunha das presenas

    francesa, portuguesa e holandesa no Estado. A aldeia indgena transformou-se na aldeia religiosa

    portuguesa, sendo elevada categoria de vila de Vila de Santo Antnio de Alcntara, em 1648.

    Alcntara foi um marco da catequese do sculo XVII, estruturada em torno dos

    conjuntos urbanos religiosos: Igreja e Convento do Carmo e Igreja e Convento das Mercs

    centralizadas pela Praa da Matriz, onde foram implantados o Pelourinho, a Casa de Cmara e cadeia

    e a Igreja Matriz de So Mathias. No havia nesse momento planejamento urbano e os caminhos

    entre os largos configuravam as ligaes que dariam origem ao traado do sculo XVIII.

    N sculo XVIII a vila tornou-se a sede da aristocracia rural agro exportadora de

    algodo, apresentando uma formao urbana de ruas e quadras em torno dos elementos originais

    conformando um traado que envolve os principais conjuntos religiosos onde a arquitetura civil se

    consolidou. Esse traado analisado a partir da cartografia de 1755 e 1789 demonstra a articulao

    entre os elementos originais e as edificaes. Hoje algumas pistas nos revelam as reminiscncias

    desse passado, a arquitetura civil do sculo XVIII e as runas das igrejas e dos sobrados.

    Da trade original: Igreja e Convento Mercs, Igreja da Matriz e Igreja e Convento do

    Carmo, s restou, em p, completa, a Igreja do Carmo. Da Igreja e convento das Mercs s restou o

    baldrame transformado em praa e da igreja Matriz restou a runa da fachada; alm de runas

    religiosas h um expressivo numero de runas de edificaes civis. E nos perguntamos qual o

    significado das runas? Permanncia, teimosia ou resistncia? Ruas inteiras, que antes representavam

    a sociedade emergente, transformaram-se em runas ,smbolo do abandono, da decadncia e da

    permanncia silenciosa, com a vegetao encobrindo caminhos.

  • 10

    Essas constataes nos motivaram a questionar a formao da cidade e rejeitar a cultura

    da decadncia imposta pelas razes econmicas que desativaram a sede da aristocracia rural agro-

    exportadora, levando ao esquecimento o significado dos monumentos marcados pelo processo de

    arruinamento.Deste modo, a cidade histrica de Alcntara enfrenta hoje um grave problema de

    transformao do seu espao urbano devido desapropriao, atravs de Decretos estadual e federal,

    de mais da metade do seu territrio, na dcada de 80, para implantao do Centro de Lanamentos de

    foguetes - CLA1.

    Este processo, que incluiu remanejamento e deslocamento compulsrio de centenas de

    famlias de comunidades rurais remanescente dos escravos para agrovilas inadequadas tradio

    cultural, gerou desagregaes social e urbana, provocando, na dcada de 90, um xodo para o centro

    histrico, sede do municpio. E o resultado foi uma crescente favelizao do ncleo histrico que

    comeou com a ocupao das encostas e dos mangues ao longo da avenida de anel de contorno e hoje

    se estende s reas de interesse arqueolgico, remanescentes do traado onde esto situadas as runas

    de antigos monumentos em alguns casos completamente desconhecidos da comunidade. O

    esquecimento dos marcos da cidade nos fez perceber que a cidade estava perdendo alguns pontos de

    referncia e que o crescimento desordenado os apagaria definitivamente.

    A percepo desse processo foi possvel durante dois anos de experincia profissional

    em Alcntara (1997-1999), onde se constatou que os problemas do inchamento da periferia, da

    decadncia cultural e econmica da cidade estavam ligados a uma realidade histrica distante, tanto

    quanto ao passado colonial quanto ao futuro da base espacial, situaes opostas que passaram a

    demonstrar como a memria da formao daquela cidade estava perdida no tempo.

    Naquele ano de 1997 houve a oportunidade de questionar novamente aspectos da

    formao de Alcntara, com o arquiteto Pedro Alcntara, que realizava consultoria para o processo

    de incluso de So Luis na lista de patrimnio mundial da UNESCO. Parte das conversas e

    inquietaes esto presentes neste trabalho, incentivadas pelos manuscritos deixados por Pedro para

    leitura e amadurecimento e pelo seu incentivo continuidade do trabalho por ele iniciado.

    Lamentavelmente, seu falecimento interrompeu nosso dialogo deixando apenas o desejo de responder

    e investigar questes pendentes.

    Posteriormente, quando a planta com o traado de Alcntara de 1755 foi publicada em

    2001 entrevistou-se informalmente a arquiteta Dora Alcntara, sua esposa, sobre a incluso dessa

    informao na pesquisa e o efeito causado pela constatao de um traado no sculo XVIII. Sua

    resposta foi de que certamente ele revisaria suas consideraes acerca da sua afirmao de que

    1 Centro de Lanamento de Alcntara, base militar para lanamento de foguetes.

  • 11

    Alcntara tinha sido construda sem uma inteno prvia, nem obedecendo a regras de construo de

    cidade.

    Dentre tantas razes, pessoais e profissionais passou-se a investigar os elementos de

    anlise do espao urbano dentro de um contexto maior que conectasse Alcntara rede urbana do

    Brasil Colonial. Entendeu-se que, para compreender a cidade atual seria necessrio um mergulho no

    passado. Um entendimento da formao do espao urbano ao longo dos trs sculos da histria da

    cidade na busca das especificidades da formao urbana.

    A busca das especificidades passa pela resposta das seguintes hipteses:

    a) Alcntara como uma cidade portuguesa foi construda a partir de um plano prvio;

    sua formao foi espontnea ou planejada?

    b) Alcntara como uma cidade portuguesa teve ao longo da histria de sua formao

    perodos de construo sem obedecer a regras urbansticas e em outros seguiu

    preceitos do urbanismo barroco?

    Observou-se que, embora Alcntara tenha sido amplamente estudada e pesquisada por

    uma gerao de historiadores maranhenses, que muitos nos honraram no sculo XIX, como Csar

    Marques, Jernimo Viveiros e Antonio Lopes, as dificuldades e desleixos com os documentos

    antigos no nosso Estado e a limitao de acesso s fontes primrias, em sua maioria arquivadas em

    Instituies europias, especialmente portuguesas, como a Torre do Tombo ou o Arquivo

    Ultramarino de Lisboa ,dificultaram uma reconstituio da histria urbana, que ainda repleta de

    pontos obscuros, dvidas e imprecises discutidas e apontadas pela nova gerao de historiadores do

    sculo XX, como Carlos Lima e Mrio Meireles ,e pelas reflexes do arquiteto Pedro Alcntara.

    No obstante, o esforo permanente desses historiadores, suas pesquisas limitavam-se as

    dimenses poltico e econmicas, relegando os aspectos urbanos e a formao da cidade, inclusive

    em razo das dificuldades de acesso aos mapas e plantas da cidade.

    No Brasil, ressalte-se a importncia da publicao em 2000 do Livro Imagens das vilas

    e cidades do Brasil Colonial, de Nestor Goulart Reis Filho, que reuniu um nmero expressivo de

    mapas e gravuras de todos os Estados brasileiros em uma publicao de qualidade, possibilitando o

    estudo comparativo entre cidades assim como o acesso ao acervo cartogrfico de Instituies

    europias e brasileiras.

    A formao das cidades brasileiras no contexto do Universo Urbanstico Portugus

    tem sido objeto de ampla investigao por parte de historiadores, arquitetos e urbanistas brasileiros e

    portugueses preocupados em desvendar aspectos obscuros das nossas origens urbanas.

  • 12

    As recentes dissertaes e teses apresentadas nas academias, as novas abordagens

    desenvolvidas, resultantes de seminrios e Congressos Internacionais, as coletneas de estudos

    realizadas e especialmente a parceria e interao na pesquisa entre os governos brasileiro e

    portugus, por ocasio das comemoraes dos 500 anos de descobrimento do Brasil, possibilitaram

    um novo olhar sobre as cidades, compartilhando idias e teorias, graas abertura dos arquivos e ao

    acesso documentao histrica primria (como as do Arquivo Ultramarino de Lisboa referentes a

    cada Estado brasileiro) e a cartografia antes desconhecida do sculo XVII e XVIII.

    Nessa perspectiva, esta dissertao busca resgatar a formao da cidade de Alcntara,

    estabelecendo um dialogo entre o Urbanismo e a Histria, por meio da caracterizao da

    configurao urbanstica e arquitetnica da cidade assim como contribuir para a discusso da

    polmica acerca das cidades portuguesas serem planejadas ou espontneas.

    A pesquisa foi feita atravs do levantamento de fontes primrias, como documentos,

    manuscritos, narrativa dos memorialistas, cartografia histrica e dos estudos e relatrios que

    possibilitaram a compreenso da configurao urbanstica da cidade e a definio das categorias de

    analise, considerando-se as especificidades do objeto de estudo. Tambm das fontes secundrias

    bibliogrficas de autores maranhenses sobre aspectos da histria da cidade e do Estado e de uma

    bibliografia geral de suporte pesquisa, percorrendo-se arquitetura, urbanismo, metodologia e

    histria.

    Essas fontes foram levantadas em Instituies de So Lus2, de Alcntara3 e do Rio de

    Janeiro4 em busca de pontos obscuros da formao da cidade para confront-los com a pesquisa de

    historiadores maranhenses e com os relatrios do arquiteto Pedro Alcntara, do IPHAN, do Rio de

    Janeiro.

    O contato com o universo da cartografia e sua simbologia na Mapoteca do Itamaraty, a

    riqueza de detalhes das gravuras antigas e o contedo histrico do Livro Grosso do Maranho, ambos

    do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a experincia na transcrio de documentos

    antigos no IHGB -RJ, o contato com livros raros como o de Yves DEvreux na Biblioteca Pblica de

    So Lus e o encantamento pela narrativa dos memorialistas foram experincias vividas durante a

    pesquisa inicial que nos trouxe a curiosidade da pesquisa histrica e suas descobertas.

    Os conceitos-chave utilizados foram a formao urbana de carter histrico e as

    categorias de anlise coletadas esto presentes nas obras de Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos,

    entretanto, adotou-se aquelas apropriadas cidade de Alcntara, ao recorte temtico e s fontes

    primrias e secundrias levantadas, quais sejam: a implantao do stio, a arquitetura religiosa, os

    2 Biblioteca Pblica, Casa Josu Montello, Arquivo Pblico, 3 SR IPHAN, PRODETUR, IHGB do Maranho. 3 Cartrio, Prefeitura Municipal e Museu Histrico de Alcntara. 4 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro , Museu e mapoteca do Itamaraty, Real Gabinete de Leitura Portuguesa, IHGB, IPHAN e MEC.

  • 13

    conjuntos urbanos e o traado (ruas e quadras) e fontes.Para complementar essa anlise, estabeleceu-

    se a comparao com uma cidade portuguesa no sculo XVIII, tendo sido escolhida a cidade histrica

    de Mariana em Minas Gerais.

    A escolha de Mariana deveu-se a algumas similaridades e diferenas significativas para

    anlise. A origem de Alcntara est na aldeia religiosa e a de Mariana, no arraial de minerao,

    porm em ambas observou-se a importncia dos conjuntos religiosos do Carmo como articuladores

    do espao, a presena da praa central com Casa de Cmara e cadeia e pelourinho, a implantao do

    stio prximo ao rio e a passagem de uma formao urbana espontnea ligado s origens (sculo

    XVII) para uma outra estabelecida por um traado com relativa regularidade no sculo XVIII.

    Assim como o estudo do arquiteto Pedro Alcntara serviu de referncia para este

    trabalho, tomar-se- ainda como referncia o estudo desenvolvido pela arquiteta Cludia Damasceno

    Fonseca sobre a cidade de Mariana, especialmente no que se refere s concluses de sua pesquisa

    confrontando-se as abordagens de ambos os pesquisadores com as nossas.

    A configurao arquitetnica de Alcntara foi analisada considerando-se as categorias

    colocadas por Olavo Pereira da Silva filho, no livro Arquitetura Luso-Brasileira no Maranho:

    implantao; fachadas, ferragens, esquadrias, alvenarias, pisos, coberturas, revestimentos, forros e

    escadas com a contribuio dos estudos de Dora Alcntara sobre a morada trrea e o sobrado onde se

    ressaltam alguns aspectos das similaridades e das diferenas com as caractersticas arquitetnicas da

    cidade de Mariana MG. Para tal utiliza-se o trabalho de Jos Washt Rodrigues e Afonso vila,

    destacando-se os principais elementos da arquitetura civil Barroca.

    A tipologia arquitetnica encontrada em Alcntara e em Mariana reflete a influncia do

    Alado pombalino, mdulo desenvolvido para reconstruo de Lisboa no sculo XVIII. Nas duas

    cidades encontrada a arquitetura civil dos sobrados de cinco portas e cinco janelas, com um ritmo

    de vos similares. Cada uma com sua especificidade, em Alcntara, ornamentos mais simples; em

    Mariana, mais clssicos com uma leitura de elementos decorativos mais barroca em mais requintes

    de acabamento. Algumas diferenas podem ser claramente observadas, como por exemplo, o uso da

    pedra de cantaria em Alcntara e da pedra sabo em Mariana, os oratrios em Mariana e os passos

    em Alcntara. Algumas edificaes so peculiares como as duas Casas de Cmara e Cadeia e o

    Aljube ou casa dos padres, parecidas e diferentes ao mesmo tempo. So as diferenas e similaridades

    que sero confrontadas no estudo da configurao arquitetnica.

    O trabalho divide-se em cinco captulos. No Capitulo 1, denominado Pressupostos

    Gerais (terico metodolgicos) descreve-se os acervos pesquisados e as fontes consultadas primrias

  • 14

    e secundrias, o mtodo utilizado, os principais conceitos e referncias tericas e as questes

    principais e debates sobre o planejamento urbano das cidades coloniais.

    No Capitulo 2, Alcntara Hoje, caracteriza-se a cidade atual e seus problemas urbanos

    atravs de informaes bsicas como a localizao geogrfica, dados populacionais e relaes de

    interdependncia com So Luis. Demonstra-se sua importncia como stio histrico tombado pelo

    Patrimnio Federal em 1948 e se tecem consideraes sobre a configurao urbanstica e

    arquitetnica da cidade, reforando-se a necessidade do entendimento da formao histrica da

    cidade como instrumento fundamental a compreenso dos dilemas do planejamento urbano hoje.

    No Capitulo 3, inicia-se a cronologia de longa durao com o sculo XVI - a aldeia

    religiosa e a presena dos conquistadores. Nesse capitulo trata-se da hiptese da povoao transitria

    de Nazar, smbolo das primeiras investidas no territrio maranhense e da posio estratgica das

    terras alcantarenses. Descreve-se a aldeia tupinamb Tapuitapera, com nfase ao entendimento do

    indgena no processo de colonizao atravs da narrativa dos memorialistas, especialmente de

    DAbbeville e DEvreux quanto viso do paraso, a perplexidade com os hbitos indgenas e as

    descobertas do Novo Mundo.

    No Capitulo 4, aborda-se o sculo XVII, da elevao da aldeia religiosa a Vila de Santo

    Antonio DAlcantra em 1648, analisando-se a presena da aldeia e vila na cartografia de 1631 e

    1666 e construindo o contexto histrico das ordens religiosas e do sistema do padroado na colnia. A

    composio urbana e arquitetnica de vila analisada atravs da implantao dos trs conjuntos

    originais, a Praa da Matriz, o Convento do Carmo e o Convento das Mercs. Reconhecendo-se a

    arquitetura religiosa como principal elemento na formao dos conjuntos urbanos articuladores do

    espao.

    A implantao da arquitetura religiosa o fator importante na consolidao da

    composio urbana da vila analisada a partir das categorias: a implantao do stio, a arquitetura

    religiosa, os caminhos e largos.

    No Capitulo 5, trata-se o sculo XVIII inicialmente com o entendimento do contexto

    histrico da sede da aristocracia rural agro exportadora de algodo.A consolidao da composio

    urbana da Vila de Santo Antnio de Alcntara analisada atravs da cartografia do sculo XVIII

    1755 e 1789, dos estudos de Pedro Alcntara, a partir das categorias de anlise da formao dos

    ncleos coloniais, retiradas da obra de Nestor Goulart Reis Filho e Paulo Santos, determinadas dentro

    da especificidade da cidade no perodo, resultando no estudo da formao, feito com a transferncia

    das informaes dos mapas histricos no mapa e das datas de construo das edificaes, utilizando-

    se como base o mapa de Alcntara da dcada de 70.

  • 15

    Aspectos da formao urbana de Alcntara so confrontados com a pesquisa

    desenvolvida pela arquiteta Claudia Damasceno Fonseca sobre a cidade de Mariana , onde ela coloca

    que a cidade formada pela sobreposio de diferentes momentos do planejamento , desde sua

    origem espontnea como arraial religioso de Nossa Senhora do Carmo at a vila planejada pelo

    Engenheiro Alpoim no sculo XVIII. Suas concluses nos permitiram compreender o processo de

    formao de Alcntara e seus diferentes momentos .

    A composio arquitetnica analisada pela influncia do Alado Pombalino, do

    Marques de Pombal, decorrente da reconstruo de Lisboa aps o terremoto de 1755, a partir de

    categorias estabelecidas dentro das caractersticas dominantes tendo como suporte o estudo de Olavo

    da Silva sobre arquitetura luso-maranhense, estabelecendo-se uma comparao com a cidade de

    Mariana em Minas Gerais.

    Por fim, na concluso retoma-se algumas questes relativas formao urbana com as

    caractersticas de cada sculo, reafirmando-se a questo da existncia de diferentes momentos do

    planejamento urbano.

  • CAPITULO 1

    PRESSUPOSTOS GERAIS 1.1 FONTES E MTODOS DE PESQUISA

    Nesta pesquisa utiliza-se o mtodo histrico em um perodo de longa durao (sculos

    XVI ao XVIII) na busca das especificidades cronolgicas da formao da cidade de Alcntara

    compreendendo todas as etapas da formao histrica desde o perodo das navegaes e povoaes

    transitrias do sculo XVI, a aldeia tupinamb Tapuitapera at a vila religiosa portuguesa de Santo

    Antonio DAlcantra do sculo XVIII.

    No mtodo histrico o primeiro passo pesquisar documentos, conhec-los e classific-

    los. Esta etapa pressupe conhecer os acervos existentes na cidade para a busca inicial de

    documentos, livros, plantas e informaes sobre o objeto de estudo.Desta forma o levantamento das

    fontes primrias (arquivisticas, iconogrficas e bibliogrficas) e das fontes secundrias bibliogrficas

    foi realizado em acervos de Instituies de So Luis, Alcntara e Rio de Janeiro.Consideram-se como

    fontes primrias bibliogrficas os livros dos memorialistas franceses, (Claude DAbbeville e Yves

    DEvreux do sc. XVII) que contriburam com importantes relatos sobre a aldeia. Estes livros foram

    encontrados no setor de obras raras da Biblioteca Pblica Benedito Leite de So Luis onde iniciamos

    nossa pesquisa. L foram encontradas ainda importantes fontes primrias que fazem parte de uma

    srie intitulada Documentos Maranhenses.

    Essa coleo, apoiada por empresas privadas, foi promovida pela Academia Maranhense

    de Letras e dedicada publicao de documentos originais sobre o Maranho nos sculo XVII e

    XVIII.Dessa srie consultou-se Jornada no Maranho por ordem de sua majestade no ano de 1614

    sobre a disputa com os franceses e conquista do Estado pelos portugueses e dos ndios de

    Tapuitapera; Histria dos animais e pssaros do Maranho de Frei Cristvo de 1625 com o nome

  • 17

    indgena dos animais; Annais histricos do Maranho em 1726/1729 do governador Bernardo P.

    Berredo com descries da villa de Santo Antonio de Alcntara, ressalta-se a importncia dessa

    coleo fundamental para a pesquisa histrica no Estado por possibilitar a leitura sistemtica e acesso

    a informaes contidas em livros raros restritos aos arquivos pblicos.

    No acervo da associao Comercial do Maranho encontrou-se uma edio fac-similar

    comemorativa do centenrio da fundao da Comisso da Praa, antigo nome da Instituio, da

    Histria do Comrcio do Maranho em 3 volumes ,de autoria de Jernimo Viveiros ,com

    importantes informaes sobre o comrcio no Estado entre 1612 1895.

    As fontes secundrias da biblioteca pblica so constitudas pela importante produo

    dos historiadores maranhenses do sculo XIX, Csar Marques com o Dicionrio histrico e

    geogrfico, Antonio Lopes com Subsdios para a histria de Alcntara e Jernimo Viveiros com

    Alcntara no seu passado. Estes autores fornecem um relato da Vila de Alcntara e do contexto

    social e econmico do Estado no sculo XVI e XIX.

    A biblioteca possui um excelente acervo de livros portugueses como o Dicionrio da

    colonizao de Beatriz Nizza da Silva muito consultado na fase inicial da pesquisa. No se encontrou

    nesse acervo iconografia sobre a cidade de Alcntara.Tambm a leitura do rarssimo livro de Yves

    DEvreux, viagem ao norte do Brasil, que estava incompleto na Biblioteca pblica foi possvel na

    Casa de Cultura Josu Montello onde foram encontradas fontes primrias e secundrias

    semelhantes ao acervo da Biblioteca Pblica e uma edio rara, de 1874, do memorialista Yves

    dEvreux, alm de outros memorialistas do sculo XIX como Kidder e Spix Von Martius assim como

    livros sobre a histria da colonizao portuguesa.

    No Arquivo Pblico Estadual pde-se analisar o Catlogo de resenhas de documentos

    do Arquivo Ultramarino de Lisboa relativos ao Maranho (1614-1833) com a cronologia dos

    documentos trocados entre o Maranho e Portugal. Trata-se de consultas e cartas rgias enviadas ao

    Reino sobre questes administrativas, prticas, religiosas e sociais correntes no Maranho.

    Lamentavelmente, os documentos resenhados no esto disponveis para consulta no

    arquivo. Este trabalho faz parte do projeto Resgate do Ministrio da Cultura, do levantamento no

    arquivo ultramarino de documentos de cada Estado brasileiro. Tais documentos esto em fase de

    processamento em arquivos digitais e ainda no foram disponibilizados. No entanto, estive-se em

    contato com a equipe que trabalhou em Portugal na elaborao da resenha dos documentos e tive-se

    acesso para leitura, atravs da historiadora Glria Correa ,de alguns documentos originais do sculo

    XVII como o documento 8 do arquivo ultramarino de Lisboa que contem o Regimento de Alexandre

    de Moura, sobre a conquista do Maranho e visita dos portugueses a Tapuitapera, assim como dois

    documentos sobre os ndios de Tapuitapera. O contato com esse documento do sculo XVII cuja

  • 18

    leitura s pode ser feita depois de transcrio por especialista devido s abreviaes e grafia peculiar

    revelou a importncia do conhecimento de uma fonte primria arquivistica com informaes

    importantes sobre a formao do nosso Estado.

    Visitou-se ainda o acervo do Instituto histrico e geogrfico do Maranho IHGB - MA,

    em busca de informao sobre o livro antigo de Alcntara, citado por Antonio Lopes, historiador

    maranhense, o qual esteve guardado naquela instituio.Lamentavelmente encontrou-se Instituto

    quase fechado, em precrias condies de funcionamento e sem noticia do acervo original. Foram

    Consultadas algumas revistas antigas do Instituto com artigos relativos a cidade e encontrou-se um

    interessante relato sobre a numismtica maranhense.

    Para o entendimento da cidade atual foi-se em busca de relatrios tcnicos e

    consultaram-se os arquivos dos rgos de Patrimnio estadual e federal. Na 3 Superintendncia

    Regional do IPHAN consultaram-se documentos relativos ao processo de tombamento de Alcntara,

    em 1948, e relatrios tcnicos sobre a necessidade da delimitao do permetro de tombamento e

    pesquisas arqueolgicas.

    No arquivo da Coordenadoria do Patrimnio Cultural do Estado tive-se acesso a

    relatrios tcnicos da equipe elaborados por consultores internacionais sobre a cidade entre as

    dcadas de 60 e 80. Dentre eles destacou-se uma importante fonte secundria consultada, que foi a

    pesquisa realizada pelo arquiteto Pedro Alcntara, do Patrimnio Nacional IPHAN - Rio de Janeiro,

    Sua pesquisa foi o primeiro trabalho dedicado a compreender a formao histrica e urbana da

    cidade, realizado na dcada de 60, perodo em que o arquiteto e sua esposa, a arquiteta Dora

    Alcntara moraram em Alcntara e produziram relatrios tcnicos visando a delimitao do

    permetro de tombamento e alternativas para a preservao do conjunto tombado.

    O relatrio intitulado Recuperao de Alcntara, de autoria de Pedro e Dora

    Alcntara, de 1963, foi publicado pela revista Acrpole, em abril de 1974. O plano consiste em uma

    tentativa setorial de integrar um planejamento para a preservao de bens culturais numa planificao

    mais ampla que visasse disciplinar, orientar e coordenar o crescimento de Alcntara. Esse

    documento faz um relato da cidade atual, do plano de recuperao, discorre sobre a pesquisa

    bibliogrfica e sobre o roteiro de uma exposio. Percorreram-se os acervos citados por Pedro

    Alcntara, no Rio de Janeiro, em busca de mais informaes sobre a cartografia e iconografia da

    cidade.

    A pesquisa de Pedro Alcntara foi fundamental para nosso trabalho por constituir-se no

    nico estudo sobre a formao urbana da cidade de Alcntara.

  • 19

    Nos Acervos do Maranho no forma encontradas fontes iconogrficas nem

    cartogrficas sobre Alcntara, nenhuma gravura ou mapa relativo aos sculos XVII e XVIII. Foi a

    publicao em 2000 do livro de Nestor Goulart Imagens das vilas e cidades do Brasil colonial que

    revelou uma planta com o traado da cidade, de 1755, original da Torre do Tombo de Lisboa e a

    Demonstrao da villa e porto de Tapuitapera com elevaes das edificaes religiosas em 1789.

    Em Alcntara, j se havia observado que os historiadores maranhenses lamentavam a

    destruio e perda de importantes acervos da cidade durante o perodo da decadncia econmica. Isto

    foi comprovado com uma busca sem sucesso de documentos na cidade. Consultou-se o acervo do

    Museu Histrico da cidade e foram feitas entrevistas informais com o diretor do Museu Sr. Heidimar

    Guimares, sobre a destruio e arruinamento da igreja da matriz e o uso do material para calamento

    da rua.

    No h Biblioteca Pblica em Alcntara, e no prdio da Prefeitura Municipal, antiga

    Casa de Cmara e Cadeia, devido s sucessivas reformas, o uso do imvel como presdio pblico

    estadual e os longos perodos de abandono, fizeram o acervo de documentos tornar-se quase todo

    perdido, restando o cartrio do primeiro ofcio como depositrio de alguns documentos relativos s

    edificaes, testamentos e s cpias de um documento intitulado Alcntara no antigo que se

    utilizou como fonte primria.

    Em Alcntara, a maior fonte de informao encontrada foi a prpria cidade, com as

    runas e os vestgios de sua formao histrica. A observao sistemtica dos problemas urbanos

    durante dois anos de residncia e trabalho profissional na rea de preservao do patrimnio histrico

    foi fundamental para a identificao dos monumentos, para o reconhecimento das descries e

    anlise da cartografia do sc XVIII.

    Diante da necessidade de conhecer a cartografia do sculo XVII e XVIII, tomou-se a

    deciso de consultar acervos no Rio de Janeiro onde se teve a oportunidade de pesquisar na

    Biblioteca Nacional, no setor de cartografia onde se tomou contato com a coletnea de mapas

    Portugalia Monumenta Cartogrfica, com vrias cartas geogrficas sobre o Maranho, alm dos

    mapas de Joo Albernaz, de 1631 e 1666, utilizados no trabalho. Pde-se observar no setor de

    manuscritos uma gravura de So Luis do sculo XVII, intitulada Histria della Guerra e mapas de

    Alcntara da dcada de 70. No setor de obras raras, consultaram-se os anais histricos da Biblioteca

    onde estava publicado O livro grosso do Maranho de onde foram retiradas informaes sobre as

    edificaes de Alcntara.

    Encontrou-se no IHGB-RJ, Instituto Histrico e Geogrfico do Rio de Janeiro, um rico

    acervo sobre Alcntara, proveniente do Arquivo Ultramarino de Lisboa, inclusive transcreveu-se a

  • 20

    descrio da villa de 1774, que foi o relato mais importante do sculo XVIII, encontrado sobre a

    formao urbana identificando a quantidade de ruas e as edificaes.

    Na Mapoteca do Museu do Itamaraty, encontrou-se o maior acervo iconogrfico

    organizado da Amrica latina, composto de 31.800 peas entre mapas, cartas e Atlas, alm de fotos,

    desenhos e gravuras, organizados pelo Baro do Rio Branco. A mapoteca tem acesso restrito a

    pesquisadores insistentes, pois no permitido manusear os mapas e visitas so difceis de agendar.

    Ainda assim conseguiu-se observar algumas redues de mapas sobre o Maranho, consultar o

    catlogo da mapoteca, reproduzir mapas do livro da Isa Adonias, Imagens da formao territorial

    brasileira e entrevistar a coordenadora da mapoteca, Sra.Marlene, sobre o acervo relativo a

    Alcntara.

    Lamentvel que a Biblioteca do Itamaraty, fechada h 4 anos, por falta de funcionrios,

    no pudesse ser consultada, pois se havia obtido referncia sobre os cdices existentes no acervo com

    importantes comunicaes entre os engenheiros militares e o Rei de Portugal. Visitou-se ainda no

    Rio de Janeiro o Real Gabinete de Leitura Portuguesa, jia da arquitetura manuelina no Rio, o qual

    possui um importante acervo sobre as navegaes portuguesas, sobre a cultura e literatura

    portuguesa.

    O segundo passo da pesquisa histrica, depois de reunidas todas as informaes

    coletadas nos diferentes acervos das trs cidades, foi proceder a uma crtica interna das fontes,

    visando-se a determinao dos fatos, pois o contedo das informaes encontradas vai delimitando

    novos caminhos para a pesquisa. A interpretao das informaes foi uma experincia de profundo

    amadurecimento pessoal que se refletiu na atividade acadmica quando se percebeu a apropriao

    em sala-de-aula das informaes e das experincias vividas na pesquisa.

    Finalmente, o terceiro passo foi a construo de uma narrativa, agrupando-se e

    ordenando-se os fatos numa seqncia lgica de consolidao das informaes, e a deciso final foi

    dividir por sculos e identificar os diferentes momentos da formao urbana. Nessa etapa, percebeu-

    se que mergulhar na pesquisa histrica foi uma experincia indita, na medida em que nos colocou

    em contato com um universo de livros raros, mapas antigos, acervos de difcil acesso, informaes

    que, como peas de um quebra-cabea iam- se encaixando e mostrando a difcil tarefa de desvendar a

    formao de uma cidade, atravs da interpretao das fontes.

    O contato com a narrativa dos memorialistas, cheia de perplexidades, sobre os ndios e

    seus costumes, revelou verdades diferentes, verdades de um tempo que a cartografia atravs de seus

    elementos simblicos foi mostrando lentamente.

  • 21

    A cartografia foi analisada a partir do entendimento de Boaventura Santos5 da qual os

    mapas so representaes simblicas da realidade. A principal caracterstica estrutural dos mapas

    reside em que, para desempenharem adequadamente suas funes, tem de inevitavelmente distorcer a

    realidade, e o fazem atravs de trs mecanismos principais: a escala, a projeo e a simbolizao.

    Os mapas no podem coincidir totalmente com a realidade, no podem represent-la em

    verdadeira grandeza; portanto, o grau de detalhamento envolve a deciso de privilegiar um foco

    principal.

    A escala o primeiro mecanismo de representao e distoro da realidade. E a relao

    entre a distancia no mapa e a distancia correspondente no terreno. Estas os mapas podem apresentar

    em grandes escalas e em menor grau de pormenorizao ou em pequenas escalas permitindo-se medir

    com exatido elementos como rios ou estradas.Outrossim, a projeo cria um campo de

    representao; cada mapa tem um centro, seleciona um ponto fixo, espao fsico ou simblico de

    posio privilegiada. Por exemplo, no caso do mapa de Alcntara o centro a Praa da Matriz, este

    elemento de fora pode ser observado tanto nos mapas cartogrficos quanto nos mapas mentais, que

    expressam a nossa percepo cognitiva do espao.

    A Simbolizao diz respeito aos smbolos grficos utilizados para identificar os

    elementos importantes, os monumentos significativos, uma linguagem cartogrfica utilizando sinais

    convencionais, a saber, a cruz vermelha para as igrejas com linhas para os conventos nas laterais, ou as linhas para ruas, ou os sinais icnicos que so signos naturalsticos convencionais que estabelecem

    uma relao de semelhana com a realidade representada como um conjunto de rvores para designar

    florestas, pontos para indicaes de mangue, de praias, igaraps, ou realar a topografia do terreno.

    Esses sinais so fundamentais para o entendimento do mapa.

    Foram utilizadas na pesquisa as cartas de 1631 e 1666 de Joo Albernaz, a planta de

    1755 e a demonstrao de 1789.

    Nos mapas do sculo XVII (1631 e 1666) observa-se apenas a descrio geogrfica da

    aldeia religiosa com nfase na localizao. Na cartografia do sculo XVIII observa-se a nfase nas

    descries dos monumentos em elevaes (demonstrao da barra de 1789) e da configurao

    urbanstica do traado das ruas e quadras com destaque para a implantao arquitetura religiosa

    presente no mapa de 1755.

    5 Cartografia simblica das representaes sociais: prolegmenos a uma concepo ps-moderna do direito.

  • 22

    1.2 CONCEITOS E REFERNCIAS TERICAS

    Os conceitos-chave utilizados so a formao urbana de carter histrico, em Paulo

    Santos e os elementos da formao espacial dos ncleos urbanos advindos das contribuies de

    Nestor Goulart Reis Filho de onde foram selecionadas as categorias de anlise a escolha do stio; a

    arquitetura religiosa; os conjuntos urbanos; o traado; as ruas; quadras e as fontes considerando-se

    as especificidades da cidade de Alcntara e os aspectos mais significativos identificados nos

    documentos histricos sobre a vila.

    Por formao urbana entende-se a associao dos fatos urbansticos com o contexto

    social econmico e poltico. Os fatos urbansticos so os elementos que compem o adensamento dos

    ncleos urbanos formando o stio, o traado, as ruas e as praas.A escolha do conceito de formao

    urbana de carter histrico foi devido constatao de que as vilas e cidades portuguesas no

    Brasil,do sculo XVII e XVIII, refletiam a sntese das experincias urbanas vigentes e estavam

    ligadas ao contexto socioeconmico e poltico europeu.

    As cidades do Brasil colonial conservaram, sob as mais diferentes condies, o cunho

    inequvoco da me ptria (Santos, 2001, pg. 17), que as caractersticas regionais no conseguiram

    apagar, e podem por isso ser consideradas mais como cidades portuguesas no Brasil de que cidades

    brasileiras, acusando sua dupla origem medieval e renascentista .

    Paulo Santos6, ao tratar a formao urbana, considera os seguintes componentes

    analticos:

    a) Os preceitos da urbanizao em voga no tempo focalizado, considerando as

    influncias na formao das cidades das experincias europias da cidade informal da

    idade mdia e a da cidade ideal Renascentista;

    b) A leitura da forma urbana por meio de plantas e das traas como expresso do

    urbanismo;

    c) A autoria dos traados, ressaltando a presena e orientao dos engenheiros militares

    na adoo do plano xadrez como modelo, oriunda da influncia hispnica pela

    aproximao dos povos celebrada no tratado de Madri de 1750. Destaca as Praas

    considerando como o centro da vida urbana, local para onde convergem os caminhos,

    as ligaes, o desembarcadouro e as ruas principais;

    d) Os fatos histricos e o contexto econmico e poltico que influenciaram a construo

    da traa.

    6 SANTOS, Paulo Ferreira. Formao de cidades no Brasil Colonial.Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001. Reedio atualizada, pg 45,

    Cap. III.

  • 23

    Sua contribuio ao nosso trabalho o entendimento de diferentes momentos na

    formao das cidades que se refletem na evoluo dos traados a partir de quatro tipos, admitindo

    opes intermedirias nos diferentes momentos da formao urbana:

    1) traados inteiramente irregulares;

    2) traados de relativa regularidade;

    3) traados que inicialmente foram irregulares, sendo depois refeitos para adquirirem

    perfeita regularidade;

    4) traados perfeitamente regulares

    Em sua concluso ele divide os comentadores da cidade em 4 grupos - primeiro os que

    consideram que a cidade no contradiz a natureza, exprimindo desleixo; segundo, os que encaram

    com complacncia, exprimindo solues de canhestra ingenuidade do colono; terceiro, os que

    consideram um progresso as cidades construdas com traados regulares; quarto, ao qual o autor

    pertence: Partindo do principio que a seduo que as cidades do plano informal despertam no

    homem moderno, e vai a ponto de as guindarem s altitudes de monumentos nacional, resulta da genuinidade dessas cidades como expresso sincera de vida, e de autenticidade como interpretao de um sistema de conceitos urbansticos cujas razes recuam at os obscuros tempos da idade mdia peninsular, muulmana a crist.(Santos, p.76).

    Considera ainda, o que nos parece muito peculiar: que o traado regular era um

    retrocesso, ao contrrio da valorizao colocada por autores portugueses como Rafael Moreira e

    Walter Rossa de que a engenharia militar seria um avano no urbanismo colonial. Os traados

    reguladores (xadrez quase perfeito), constituram, em determinado sentido, uma regresso

    urbanstica.Foram planos subjetivos, concebidos por inteiro e predeterminados na cabea dos

    projetistas, abstraes do esprito de que a vida no participou. (Santos, p. 76).

    Reis Filho7,ao reconhecer a existncia de uma rede urbana colonial, coloca a

    organizao dos ncleos urbanos a partir de algumas categorias: a situao, o stio, o traado e as

    construes. Sua pesquisa possibilitou uma compreenso mais ampla dos aspectos da uniformidade

    existentes na formao das cidades brasileiras e nela se percebem os diferentes momentos do

    planejamento urbano e a existncia de cidades espontneas e planejadas que, no entanto,

    apresentavam aspectos como escolha do stio, a implantao dos edifcios religiosos e praas centrais

    muito similares. A anlise desses elementos contribuiu para o entendimento e a adequao das

    categorias de anlise para a o caso de Alcntara, valorizando-se suas especificidades.

    A situao dos ncleos no sistema determinava modalidades de relao que seus

    habitantes poderiam estabelecer com outras reas do sistema ou com o exterior. As relaes de

    7 REIS FILHO, Nestor Goulart. Evoluo urbana do Brasil: 1500/1720. So Paulo: PINI, 2000 (terceira parte: a organizao dos ncleos

    urbanos pgs 117-192).

  • 24

    dependncia e de reciprocidade eram criadas entre vilas e cidades. A interdependncia interna e

    externa contribua na composio de uma rede urbana que alimentava as relaes comercias e as

    propriedades rurais produtivas.

    A escolha do Stio de uma aglomerao urbana a determinao do local sobre o qual

    ela ser assentada, o locus, onde vrios so os aspectos a serem considerados: a natureza do solo, o

    relevo, fontes de gua para o consumo, cursos ou massas de gua. O relevo, sobretudo influencia

    sobre a aparncia do conjunto e sobre o traado. No sculo XVI as cidades se implantaram em

    terrenos elevados, sobre promontrios, beira-mar ou prximas dos rios, por necessidade de defesa.

    Nos sculos XVIII e XIX, as cidades foram implantadas em stios planos, revelando interesse da

    ocupao interna.

    O traado, ou a traa, em sua definio significa plano, esboo, projeto; o traado a

    representao simblica dos mapas, que revelam, na definio utilizada por Celso Castro8, uma

    concepo de cidade em determinado momento histrico.Os traados estavam ligados ao conceito de

    cidade ideal do Renascimento. O esquema renascentista usava a forma radio-concntrica, mas sua

    forma prendia-se vantagem do plano xadrez utilizado na cidade italiana de Sabioneta, em 1560. Os

    critrios de racionalidade e geometrizao correspondiam a uma concepo cartesiana de ordenao

    urbanstica.

    Reis Filho concorda com Paulo Santos e admite que havia os traados irregulares que

    sofreram posterior geometrizao, como o caso de ncleos que inicialmente foram instalados em

    colinas e que foram ganhando espaos planos onde a rea de expanso adotou o traado regular ou

    um plano em xadrez. Afirma ainda que os ncleos menores mais antigos instalavam-se no topo das

    colinas, e possuam os seguintes aspectos: traado com caractersticas de irregularidade, ruas

    adaptadas s condies da topografia, valorizao do stio por meio de praas dos pontos de interesse

    comunitrio (Casa de Cmara e Cadeia, Igrejas e Conventos) ao modo da Grcia Antiga cujas

    preocupaes concentravam-se nos locais de reunio. No entanto, no sculo XVII verifica-se entre os

    centros menores a tendncia adoo de formas de traado relativamente regulares com forma de

    xadrez, com o aproveitamento das possibilidades oferecidas pela escolha do stio plano em

    decorrncia da reduo dos ataques.

    Dentre os elementos do traado esto as ruas, as praas, as quadras e os lotes. As ruas

    so meios de ligao, articulao entre monumentos. O arruamento possibilita a leitura das quadras e

    os limites das edificaes e acessos de entrada e sada da cidade. O comportamento das ruas com

    8 Castro ,Celso . in Do cosmgrafo ao satlite: mapas da cidade do Rio de Janeiro. CZAJKOWSKI, Jorge (Org.). . Rio de Janeiro:

    Secretaria Municipal de Urbanismo. Centro de Arquitetura e Urbanismo, 2000. Exposio de jul/set/2000.

  • 25

    relao ao eixo norte e sul determinante na nomenclatura das mesmas. As Ruas so elementos

    bsicos do urbanismo

    As praas constituam os pontos de ateno e focalizao urbanstica.Nelas eram

    construdos os principais edifcios religiosos e pblicos e atividade de interesse comum. Manuel

    Teixeira9 coloca a praa da cidade portuguesa, dentro da categoria de espaos que incluem praas,

    largos, terreiros e campos como elementos estruturadores ou geradores dos traados urbanos, onde os

    diferentes conceitos esto associados s suas morfologias e nas suas relaes com os outros

    elementos da malha urbana compreendendo a praa como expresso da crescente racionalizao e

    geometrizao dos traados urbanos portugueses.

    Quadra e lotes - As quadras completamente edificadas compunham-se de uma linha

    contnua de construes considerando o alinhamento das edificaes rua. O traado das ruas definia

    as quadras, que eram subdivididas em lotes. A uniformidade dos terrenos correspondia

    uniformidade dos partidos arquitetnicos.As construes: oficiais - Casa de Cmaras e Cadeia,

    Palcio dos governadores; civis - sobrados e solares, moradas trreas; para fins militares - fortalezas,

    portas, baluartes, muro; Religiosas - conventos, igrejas, passos. Acrescentaramos ainda as utilitrias:

    fontes e chafarizes e cemitrios.

    1.3 PRINCIPAL DEBATE: CIDADES PORTUGUESAS, PLANEJADAS OU ESPONTNEAS?

    No estudo da formao das cidades brasileiras de origem portuguesas ,nos sculos XVII

    e XVIII encontramos o debate sobre Ser ou no planejada, passando especialmente pela

    interpretao feita por Sergio Buarque de Holanda, Roberta Marx Delson e Paulo Santos.

    Para subsidiar esta discusso, foi-se buscar os estudos existentes sobre a formao das

    cidades brasileiras, percebeu-se ento que essa questo comeou a se desenvolver a partir dos anos

    30 e foi possvel depois que a Semana de Arte Moderna, em 1922, lanou as bases para um novo

    entendimento da cultura, arte e arquitetura no Brasil. Houve, ento, uma efervescncia cultural que

    gerou um momento de renovao na Historiografia Brasileira atravs dos seguintes autores:

    Caio Prado Jnior, foi o primeiro a fazer uma analise marxista da economia colonial

    brasileira; no livro Histria Econmica do Brasil, 1 edio de 1945, onde analisa em dois captulos a

    expanso e o apogeu da colnia, contribuindo para o entendimento do sistema colonial fundado na

    produo e exportao de matrias-primas, onde se encontra referencias sobre a importncia do

    algodo no Maranho e em Alcntara.

    9 A praas na cidade portuguesa disponvel em acessado em 18 maio. 2001 e 21.Nov.2001

  • 26

    somente quando se torna mercadoria de grande importncia no mercado internacional que o algodo comea a aparecer, tornando-se mesmo uma das principais riquezas da colnia. Verifica-se a, mais uma vez, o papel que representa na economia brasileira a funo exportadora (Prado Junior, 1987, p.81).

    Srgio Buarque de Holanda, influenciado pela sociologia de Max Weber, escreve em

    1936 o livro Razes do Brasil, inaugurando a coleo de documentos brasileiros, dirigida por

    Gilberto Freire. Afirmando que, para muitas naes conquistadoras, a construo de cidades foi o

    mais decisivo instrumento de dominao que conheceram. (Holanda, p. 61). Ele centra sua hiptese

    no sculo XVII na contraposio entre o rural e o urbano.

    No clssico capitulo IV O semeador e o ladrilhador, ele estabelece uma comparao

    entre a colonizao de espanhis e portugueses fazendo analogia ao portugus Semeador que criava

    cidades espontneas ou com traado irregulares (comuns no sculo XVII) e o espanhol ladrilhador

    que criava cidades como empresa da razo, contrariando a ordem natural e prevendo rigorosamente o

    plano em xadrez ou Damero, num esforo de vencer e retificar a paisagem agreste onde as ruas no

    se deixam modelar pela sinuosidade, mas pelo triunfo da linha reta. Em seu pargrafo polmico que

    seria amplamente discutido e interpretado, ele afirma:

    A cidade que os portugueses construram na Amrica no produto mental, no chega a

    contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaa na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum mtodo, nenhuma previdncia, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo. (Holanda,1989, p .76)

    Desse modo ele lana uma das idias fundadoras para anlise das cidades brasileiras,

    que passa a revelar a dualidade: planejadas ou espontneas, regulares ou irregulares. Percebe-se a

    influncia de sua obra em todos que pesquisaram sobre a formao das cidades nas dcadas de 60 e

    70, como, por exemplo, a anlise de Pedro Alcntara sobre a cidade de Alcntara.

    Esta construo teve interpretaes diferenciadas e foi refutada por Paulo Santos em

    1968, no V Colquio Internacional de Estudos Luso-brasileiros, quando publicou o trabalho

    Formao das cidades no Brasil colonial, reconhecendo as influncias medievais, revelando um

    compromisso entre a Idade Mdia e o Renascimento nos traados das cidades.

    Ele critica a afirmao de Buarque de que o aspecto predominante na cidade colonial a

    desordem, questiona como difcil conciliar esse retrato com o fato dessas mesmas cidades terem

    sido elevadas a Patrimnio Nacional Ouro Preto, So Joo Del Rei, Mariana, Tiradentes, Serro,

    Gois Velho, Ouro Preto, Salvador, Alcntara etc.. Afirma que naquela aparente desordem existe

    uma coerncia orgnica, uma correlao formal e uma unidade de esprito que lhe do genuinidade.

    Genuinidade como expresso espontnea e sincera de todo um sistema de vida, e que tantas vezes falta cidade regular, traada em rgido tabuleiro de xadrez. (Santos, 2001, pg 18).

  • 27

    A americana Roberta Delson10 expressa que a falta de planejamento no Brasil Colonial

    na realidade um mito e questiona a afirmao de Srgio Buarque que diz que a cidade dos

    portugueses no um produto mental em confronto com os estudos de Aroldo Azevedo, Paulo

    Santos, Reis Filho, Tito Lvio e Manoel Ferreira. Centrada no sculo XVIII trabalha os conceitos do

    traado e plano diretor barroco das praas, relacionando o compromisso de Portugal com o

    Absolutismo e Iluminismo e os projetos de planejamento urbano decorrentes da legislao

    determinante das cmaras na constituio das vilas e cidades do sculo XVIII.

    Paulo Santos e Roberta Delson afirmam que existia uma inteno mental na construo

    das cidades portuguesas no Brasil, o fato da organicidade do desenho da traa no significa desleixo

    nem aleatoriedade. Roberta mais contundente, pois mostra que a construo das cidades no Brasil

    foi um projeto do Marques de Pombal ,concretizado no sculo XVIII.No entanto, Buarque mostrava

    que os portugueses respeitavam ordem natural e no impunham natureza o rigor do Dameiro

    implantado sobre o terreno. De qualquer forma, o Semeador e o Ladrilhador11 exprimem apenas duas

    possibilidades opostas, ser ou no planejado. Buarque difere de Santos e Delson em no considerar

    outras possibilidades no planejamento.

    Observa-se na anlise de Paulo Santos uma flexibilidade quando a admisso de traados

    de formas inteiramente regulares, de relativa regularidade, que inicialmente foram irregulares e

    depois adquiriram perfeita regularidade, refletindo os casos em estudo de Alcntara e o caso de

    Mariana. No caso de Alcntara e Mariana, h espontaneidade e organicidade na implantao original

    no sculo XVII e geometrizao do traado no sculo XVIII. Ambas partem da estrutura inicial da

    implantao religiosa articulando um traado que lentamente tende a regularizao.

    Pedro Alcntara considera Alcntara uma cidade de formao espontnea e seu estudo

    demonstra a regularizao do traado no sculo XVIII. Damasceno afirma ser Mariana a fuso de

    duas experincias urbansticas a do arraial espontneo do sculo XVII e a experincia reguladora do

    engenheiro Alpoim, no sculo XVIII, refletindo em ambos os casos dois momentos do planejamento,

    quando no existe e quando existe planejamento urbano.

    Reis Filho 12 em Contribuio para um estudo da evoluo urbana do Brasil 1500 -

    1720 concorda com Paulo Santos, considerando a formao das cidades brasileiras como fruto das

    experincias europias, admite tambm que mesmo em ncleos menores espontneos a implantao

    dos primeiros edifcios religiosa e civil atendia a regras, refletindo uma inteno prvia na formao

    10 DELSON, Roberta. Marx. Novas vilas para o Brasil Colonial. [S.l.]: Editora Alva Ciord., 1997. O livro objeto de seu PHD

    (philosophy doctor) em Estudos Latinos Americanos e Histria na Universidade de Colmbia. 11 HOLANDA, Srgio Buarque de. Razes do Brasil. 21. Ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1989.Cap semeador e o ladrilhador, 12 Reis Filho. Nestor Goulart, em 1964, defende a tese de livre-docncia na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Banca

    composta por Srgio Buarque de Holanda e Paulo Santos (professor catedrtico da Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil e conselheiro do IPHAN). Esse estudo publicado em 1968 foi reeditado em 2001.

  • 28

    das vilas e cidades.Ressalta os aspectos da regularidade com que alguns elementos se repetem nas

    cidades, identificando os elementos da formao dos ncleos urbanos coloniais compreendendo a

    formao de uma rede urbana.Afirma que a regularidade dos traados estava, at o inicio do sculo

    XVIII, quase ausente no Brasil. No entanto, casos como o de So Lus so excees devido

    presena do Engenheiro-mor Frias de Mesquita. Na sua anlise, Alcntara se enquadra na

    classificao dos ncleos menores instalados em colinas com traados de relativa regularidade e ruas

    adaptadas topografia, cuja valorizao se d por meio de praas.

    Reis Filho convergente com Paulo Santos em aceitar diferentes momentos no

    planejamento urbano das cidades, entre ser ou no ser planejadas.

    A discusso das origens do planejamento urbano brasileiro foi dinamizada pela

    coletnea de estudos sobre o Universo Urbanstico Portugus (1415-1822)13 onde muitos conceitos

    foram revisados a partir do acesso aos acervos dos arquivos portugueses ampliando o estudo da

    histria do urbanismo portugus.Essas teorias sobre a formao das cidades ampliaram o

    entendimento dos diferentes momentos de existncia ou no do planejamento urbano no contexto do

    universo da expanso ultramarina da unio das Coroas que formaram a Monarquia Dual14 de

    Portugal e Espanha no perodo compreendido entre 1580-1640 e suas posteriores influncias.

    Esse contexto revela as intenes do colonizador portugus, que nos sculos XVI-XVII

    empreendeu esforos destinados ocupao e fortificao do territrio com objetivo de defesa militar

    contra a cobia de franceses e holandeses.At o final do XVI, a ocupao do territrio se limitava a

    poucos ncleos de colonizao costeira favorecendo o isolamento e o vazio poltico que possibilitava

    a cobia dos invasores.

    Algumas vilas e cidades fundadas no sculo XVII, sem a presena de engenheiros

    militares, apresentavam aspectos de espontaneidade na implantao das primeiras edificaes

    religiosas, civis e militares. No entanto, seguiam regras determinadas pela Coroa portuguesa como a

    escolha do stio e a implantao dos conjuntos religiosos e civis.

    Contudo, no sculo XVIII a consolidao das cidades exigiu do planejamento urbano a

    sistematizao dos traados para a expanso das cidades, impulsionadas pelo intenso movimento

    comercial entre Portugal e o litoral brasileiro. Nesse momento, ruas e quadras envolvem os conjuntos

    originais conformando um traado com regularidade.

    Estes dois momentos ocorreram em diversas cidades brasileiras como Alcntara no

    Maranho e Mariana em Minas Gerais, demonstrando a existncia de formas intermedirias do 13 Comisso Nacional para comemorao dos descobrimentos portugueses publicou a coletnea, em 1998, com autores portugueses e

    brasileiros sobre o urbanismo colonial. 14 LOPES, Adriana. Franceses e tupinambs na costa do Brasil. SENAC, So Paulo, 2001. p. 135.

  • 29

    planejamento com a percepo de que em momentos diferentes a cidade era espontnea ou regular.

    Essa inquietao de encontrar alternativas e compreender a formao das cidades uma questo

    ainda em aberto que justifica o estudo apronfundado da formao de cada cidade, no permitindo a

    existncia de uma s posio: ser ou ser planejada e admitindo formas intermedirias do

    planejamento.

    1.4 O BARROCO NO BRASIL: O CASO DA CIDADE DE MARIANA EM MINAS GERAIS

    1.4.1 O barroco como concepo de mundo e o urbanismo barroco

    Entre os sculos XV e XVIII uma nova concepo de mundo comea a tomar conta da

    Europa, um novo padro brotava de uma nova economia: o capitalismo mercantilista, e de uma nova

    estrutura poltica, o despotismo e a oligarquia centralizada, personificada em um Estado Nacional

    forte.At o sculo XVII essas mudanas eram confusas. De acordo com Munford (1998, p. 375) as

    culturas humanas no morrem num dado momento: suas partes podem permanecer existindo depois

    que o todo se desmancha; desta forma, a ordem medieval comeava a se desfazer.

    O Renascimento foi uma fase intermediria, antes da organizao barroca, que contestou

    o enclausuramento e a desordem que caracterizava a cidade da baixa Idade Mdia. Os urbanistas

    abriram as muralhas a fim de construir em linha reta a praa retangular aberta, baseados nos

    conceitos de amplido e clarificao geomtrica. A ordem renascentista transformou trechos das

    cidades italianas em espaos abertos, cujos smbolos eram a linha horizontal, o arco redondo, as

    colunas clssicas em fachadas bidimensionais.

    To logo a ordem barroca se tornou absoluta a clarificao cedeu lugar a

    arregimentao, a vastido vacuidade e grandeza grandiosidade.

    Os valores estavam em transformao: a universalidade medieval foi substituda pela

    uniformidade barroca, o localismo medieval pelo, centralismo barroco, e o absolutismo catlico pela

    Estado Nacional. Vainfas15 (2000, pg 69) explica que, para compreender o Barroco necessrio

    perceber a dimenso que exprime a conscincia aguda das contradies de uma ordem social em

    transformao. Estavam em cheque o papel do indivduo face a comunidade, o papel do Estado em

    formao face aos apelos religiosos gerando uma permanente tenso entre a materialidade das coisas

    e a espiritualidade. A realeza, fruto das transformaes polticas e econmicas, necessitava de novos

    espaos, novos bairros e at mesmo novas cidades para reis e prncipes; assim foram criadas as

    cidades barrocas de Versalhes, Karlsruhe e Potsdam e os novos prolongamentos urbanos.Essas

    15 VAINFAS, Ronaldo. Dicionrio do Brasil colonial. Objetiva. Rio de Janeiro. 2000 pg. 68-70.

  • 30

    construes, de acordo com Munford (1998, p.382), reuniam elementos contraditrios na arte e na

    arquitetura e exprimiam dois aspectos desse momento: o rigor geomtrico para os traados e a

    sensualidade para a arte.

    Na arte, pintura e escultura o lado sensual, rebelde, extravagante, anticlssico estava

    expresso nas roupas, no fanatismo religioso e no estadismo.Na arquitetura e urbanismo o uso de

    aspectos matemticos e abstratos estava expresso no rigoroso plano de ruas, nos traados urbanos

    formais e nos desenhos geometricamente ordenados de jardins e paisagens e nos prolongamentos

    urbanos.

    Dentre os smbolos mais significativos estava a avenida. Na impossibilidade de planejar

    toda a cidade no estilo barroco, novas avenidas ou novos bairros eram traados, com formas retas e

    geomtricas, facilitando a movimentao. Os edifcios dispostos de forma regular com fachadas

    simtricas serviam de cenrios para as avenidas, um campo de manobras, local de reunies de

    expectadores para as evolues dos exrcitos. Lei, ordem e uniformidade eram produtos das cidades

    barrocas; elas eram grandiosas, preocupavam-se com a arborizao das praas com os espaos de

    monumentalidade.

    As cidades barrocas eram grandiosas, preocupavam se com seus parques e vias

    arborizadas, suas praas abertas ou cercadas com ruas retas e avenidas diagonais, mas

    despreocupavam-se com a vizinhana como unidade integral e com a habitao familiar.

    O apogeu do urbanismo clssico corresponde ao perodo entre os sculos XVII e XVIII.

    Esse perodo, de acordo com Harouel (1990, pg. 61), essencialmente dominado pela influncia

    francesa, que substituiu a italiana no decorrer do sculo XVII.

    O ideal urbano reflete preocupaes de ordem prtica, de ordem esttica e poltica. Entre

    as preocupaes de ordem prtica destaca-se o esforo do poder real para limitar o crescimento de

    cidades como Paris, evitando o gigantismo urbano.Os imperativos de circulao exigem ruas largas e

    retas, destinadas a colocar em comunicao direta os diferentes bairros e principais edifcios e as

    exigncias com a salubridade, com a circulao do ar ,a higiene urbana e a infra estrutura bsica,os

    quais esto muito presentes nas cidades no sculo XVIII.

    Entre as preocupaes estticas esto o alinhamento das ruas, o traado urbano que deve

    corresponder a uma figura regular, a regularidade das fachadas, originando um urbanismo de

    decorao onde a cidade como um cenrio de teatro e a criao de praas, parques e jardins

    estabelecendo o contato da cidade com a natureza criando belas paisagens de contemplao.O

    urbanismo expressa tambm as aspiraes polticas atravs dos edifcios pblicos e das Praas

  • 31

    Reais com esttuas do soberano; elas significavam a exaltao do poder monrquico e sero

    difundidas por toda a Europa na segunda metade do sculo XVIII.

    Em Roma, o Barroco se concretiza com o plano ordenador do Papa Sisto V no final do

    sculo XVI, onde elaborada uma trama de largas vias retilneas permitindo a criao de novos

    bairros e, principalmente, a comunicao entre os principais santurios romanos no sculo XVIII ,e a

    concluso da Roma berniniana que consiste na ordenao das praas de Roma multiplicando o efeito

    surpresa e tratando a cidade como uma decorao de teatro de maneira a sugerir uma amplitude

    espacial.

    Na Espanha, a Plaza Mayor, de acordo Harouel (1990, p. 91) uma praa programada

    do sculo XVII, retangular e ladeada de casas com prticos, concebida, sobretudo para os

    espetculos, touradas, autos de f, e cerimnias religiosas.

    Em Lisboa, Portugal, aps o terremoto de 1755, que destruiu todo o centro da capital,

    efetuada uma grande reconstruo sob as orientaes do ministro Pombal, onde uma srie de decretos

    define a reconstruo como levantamento do parcelamento do solo antigo, nivelamento do sol nos

    bairros afetados. Depois, ele manda preparar um plano urbanstico. Trata-se de um vasto

    quadriculado possuindo uma hierarquia entre ruas onde as duas mais importantes tinham larguras de

    20 metros ligando duas praas, a do Rossio praa do Comrcio.

    As idias barrocas chegam tambm ao continente americano, trazida pelos portugueses e

    espanhis. As cidades coloniais, desde o sculo XVI, traduzem as preocupaes dos soberanos

    espanhis atravs de legislaes onde, dentre outras coisas foi estabelecido o plano da cidade

    projetada. As ruas e praas deveriam ser traadas a corda e rgua, partindo do corao da futura

    cidade, ou seja: da Plaza Mayor, qual deveria ser proporcional mdia da populao, levando-se

    em conta seu crescimento e traduzindo-se uma disposio regular e geomtrica.

    Em Portugal, a presena dos jesutas garantiu a introduo da esttica barroca, com a

    igreja de So Roque de Lisboa. Tradicionalmente, considera-se a Igreja Del Ges (1568), em Roma,

    como o primeiro exemplar e seus traos estavam associados a obras produzidas no Conclio de

    Trento (1545-63), marco da Contra Reforma catlica. No entanto, a mais celebre realizao

    urbanstica do sculo XVIII foi a reconstruo promovida pelo Marques de Pombal no centro da

    capital, aps o terremoto de 1755. O plano dos arquitetos portugueses Santos e Mardel implantam

    sobre a cidade medieval um traado regular e uma nova tipologia arquitetnica. Essa experincia

    urbanstica e arquitetnica exerceu enorme influncia nas colnias portuguesas.

  • 32

    No Brasil, de acordo com Correia, (1998, p. 145) no h um nico urbanismo barroco,

    mas vrias formas, por vezes convergentes, de desenho urbano na poca barroca, 16 que ele associa

    em duas grandes famlias de cidades. A primeira se reporta ao barroco romano, onde o efeito de

    surpresa, com uso da perspectiva e da vivencialidade teatralizada, e a segunda so as cidades que se

    aproximam das formas das cidades ideais do Renascimento, com seus modelos nas cidades -

    fortalezas da Europa ou nas cidades de expanso urbana no Novo Mundo, na qual se integra a Escola

    do Urbanismo Portugus.

    Esse tipo de cidade chega ao Novo Mundo pelas mos dos arquitetos e engenheiros

    militares encarregados de projetar e construir fortalezas, herdeiras formais das cidades ideais. o

    caso de So Luis, projetada pelo Engenheiro Frias de Mesquita.

    Reis Filho (1998, p. 473) afirma que os conjuntos urbanos constituem um dos aspectos

    mais interessantes do urbanismo barroco. Trata-se de conjuntos de edifcios, destinado a comercio e

    residncia, obedecendo a um projeto comum que, se tomado isoladamente, tem relativa importncia,

    mas, no conjunto, adquire uma monumentalidade tanto em termos arquitetnicos como em termos

    urbansticos. Considera ainda que um dos exemplos mais sofisticados constitudo pelos edifcios da

    praa principal da Vila de Alcntara, no Maranho, sem as dimenses avantajadas de outros

    exemplos. Os edifcios que envolvem aquela Praa obedecem a normas de relacionamento entre si,

    de extrema elegncia.

    Em Minas Gerais, o Brasil levou o refinamento Barroco Rococ mais longe que

    Portugal, graas ao gnio de Antnio Francisco Lisboa, (1738-1814) conhecido como O

    Aleijadinho.Os territrios ultramarinos, de acordo com Bazin (1993, pg. 237), sob dominao

    espanhola e portuguesa no se limitaram a repetir frmulas importadas das respectivas metrpoles,

    mas, sim, interpret-las com maior e ou menor nfase. Centros artsticos independentes formaram-se

    nas colnias, inventando formas originais que s vezes superavam a me ptria em sua elaborao

    das possibilidades do Barroco.

    1.4.2 Mariana: cidade espontnea ou planejada

    Contextualizando o momento do Barroco no Brasil partiu-se para identificao de uma

    cidade que apresentasse alguma similaridade com Alcntara para estabelecer-se um dialogo. A

    cidade escolhida foi Mariana em Minas Gerais. As razes da escolha foram especialmente

    influenciadas pelo trabalho de pesquisa da arquiteta Cludia Damasceno Fonseca e suas concluses 16 CORREIA, Jos Eduardo. Urbanismo da poca Barroca em Portugal. In Coletnea de Estudos do Universo Urbanstico Portugus 1415-

    1822. Lisboa, 1998. Pg. 145-153.

  • 33

    sobre a questo da existncia ou no do planejamento urbano nos diferentes momentos das formao

    da cidade de Mariana . Sua abordagem foi fundamental a construo da argumentao sobre a

    existncia ou no de planejamento em Alcntara

    Procedemos a um estudo sobre a configurao urbanstica a partir da pesquisa de

    doutorado de Cludia Damasceno Fonseca17, que afirma que o caso da cidade mineira de Mariana

    atpico apesar de ser considerado o caso mais documentado e exemplo mais visvel de interveno

    regularizadora em Minas. Ao contrrio do que afirma a historiografia mineira, a sua conformao

    regular no deve ser associada exclusivamente a suposta interveno do engenheiro militar Alpoim,

    uma vez que a escolha do stio, a definio do traado das ruas e determinao do local para

    construo dos novos edifcios pblicos da cidade foram objeto de vrios documentos trocados entre

    D. Joo V e as diversas autoridade da Capitania de Minas.

    Em sua pesquisa, a autora ressalta as origens espontneas da cidade de Mariana no

    sculo XVII, como arraial religioso de Nossa Senhoras do Carmo, mesma ordem implantada desde

    as origens de Alcntara, demonstrando as caractersticas urbanas de crescimento em torno dos largos

    religiosos no primeiro momento e no segundo momento o planejamento urbano materializado no

    traado do sculo XVIII.

    A autora destaca ainda a escolha do stio prxima de um rio, a existncia do terreiro que

    concentrava funes pblicas como a Praa da Matriz com Pelourinho, Casa de Cmara e Cadeia. Tal

    caracterstica observada em Alcntara e nas duas vilas h exemplares originais da arquitetura civil

    e pblica que possibilitam uma comparao hoje dos elementos (Casa de Cmara e Cadeia e Aljube,

    ou sobrado).

    O arraial religioso do Carmo foi implantado espontaneamente em 1693. O rio, ao longo

    do qual a igreja do Carmo havia sido construda, transbordou, inundando toda a Vila. Contudo,

    afirma Delson (1997, p. 36-39), a destruio redundou em proveito para a Coroa, pois os

    administradores aproveitaram a catstrofe para requerer a reconstruo da vila em terreno mais

    elevado. Surgiu ento a oportunidade de corrigir equvocos urbansticos e construir uma bela sede

    para a recm-criada diocese de Minas, e dessa forma Mariana seria elevada categoria de cidade.

    O projeto foi feito pelo coordenador da aula de fortificao e artilharia do Rio, Jos

    Francisco Pinto Alpoim . O local escolhido foi do outro lado do rio. Nessa rea foram construdas a

    Casa de Cmara e Cadeia e o Palcio Diocesano. A Vila de Ribeiro de Nossa Senhora do Carmo foi

    fundada em 1711, pelo Governador da Capitania de So Paulo e Minas de Ouro, Antnio Coelho de

    Carvalho. O traado apresentava irregularidade, comum em aglomeraes nascidas dos primitivos

    arraiais de miner