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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO DIRCEU ROGÉRIO CADENA DE MELO FILHO PARA ALÉM DA FISIONOMIA - IDENTIFICAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE Recife 2012

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO URBANO

DIRCEU ROGÉRIO CADENA DE MELO FILHO

PARA ALÉM DA FISIONOMIA -

IDENTIFICAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE

Recife

2012

DIRCEU ROGÉRIO CADENA DE MELO FILHO

PARA ALÉM DA FISIONOMIA -

IDENTIFICAÇÃO DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE

Dissertação apresentada como requisito para obtenção de Grau de

Mestre em Desenvolvimento Urbano, ao Programa de Pós-

Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de

Pernambuco, na linha de pesquisa de Conservação Integrada, sob a

orientação do Prof. Dra. Vera Lúcia Mayrinck de Oliveira Melo.

Recife

2012

.

Catalogação na fonte Bibliotecária Gláucia Cândida da Silva, CRB4-1662

M528p Melo Filho, Dirceu Rogério Cadena. Para além da fisionomia: identificação da paisagem cultural do centro do Recife / Dirceu Rogério Cadena Melo Filho. – Recife: O autor, 2012.

151p. : il. ; 30 cm.

Orientador: Vera Lúcia Mayrinck de Oliveira Melo. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco, CAC. Arquitetura, 2012.

Inclui bibliografia e anexos.

1. Desenvolvimento urbano. 2. Paisagem cultural. 3. Patrimônio cultural. 4. Significados (filosofia). I. Melo, Vera Lúcia Mayrinck de Oliveira (Orientador). II. Titulo. 711.4 CDD (22.ed.) UFPE (CAC 2012-17)

Para minha família,

que muitas vezes não entendiam o que eu fazia,

mas sempre me apoiavam

AGRADECIMENTOS

Gostaria de expressar meus agradecimentos a:

Vera Mayrinck, orientadora da dissertação, pelo seu papel fundamental na concepção e

desenvolvimento do trabalho;

Caio Maciel, pelo auxílio em minhas primeiras leituras da cidade do Recife;

Ana Rita Sá Carneiro, pelas constantes reflexões lançadas a respeito do tema paisagem;

Silvio Zancheti e Virginia Pontual, representantes do corpo docente do MDU, por serem

exemplos de professores e pesquisadores;

Giselle Gerson, por me ajudar a compreender melhor o mundo dos arquitetos;

Companheiros discentes do MDU, em especial Joelmir Marques, Alda Lemos, Juliana Melo,

Demetrius Ferreira, Michele Santana e Carolina Magalhães;

FACEPE pelo apoio financeiro durante a execução do trabalho.

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo a identificação dos elementos e significados que

compõem a paisagem cultural do centro do Recife, visando dar subsídios a futuros

instrumentos de conservação. A partir do reconhecimento do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional de que os atuais instrumentos de conservação não são capazes

de manter determinadas características dos bens, há uma necessidade de utilizar novas

categorias para a proteção patrimonial. A paisagem cultural surge como uma alternativa, por

associar os aspectos culturais, naturais e imateriais em um único bem. Contudo, apesar do

longo percurso acadêmico e das variadas utilizações do termo por parte dos gestores do

patrimônio, a categoria ainda carece de uma efetiva operacionalização para as políticas

patrimoniais. Em busca de superar essa limitação, o trabalho utilizou os conceitos

estabelecidos pela Nova Geografia Cultural, bem como algumas políticas patrimoniais que

utilizam o tema, como fundamento para identificar a paisagem do centro do Recife. A

escolha pela área central do Recife ocorreu pela constatação de que a fisionomia deste

território é marcada por uma forte relação entre elementos naturais e culturais,

constituindo uma unidade histórica, política e sentimental com a cidade. Neste contexto, o

presente trabalho busca contribuir com as novas categorias do patrimônio, compreendendo

que a identificação de uma paisagem cultural enquanto bem patrimonial deve ser pautada

para além dos aspetos fisionômicos existentes no território.

PALAVRAS-CHAVES: Paisagem Cultural. Patrimônio Cultural. Elementos. Significados.

ABSTRACT

This work aims to identify the cultural landscape of Recife’s central area, in order to give

subsidies to future conservation instruments. Due the recognition of Brazilian’s Heritage

Institution (IPHAN) that current conservation tools are not able to maintain certain

characteristics of the heritage, there is a need for new categories for conservation. The

cultural landscape emerges as an alternative because link the cultural, natural and intangible

aspect of heritage in a single way. However, despite the long journey of academics research

and varied uses of the term by the conservations decision makers, the category of cultural

landscape still lack an effective operational policies. In seeking to overcome this limitation,

this work used the methods established by the New Cultural Geography and some policies

that already have been applied to define the landscape of downtown Recife. The choice for

the central area was made both to exist at the site various instruments of protection that do

not achieve their goals and that the physiognomy of the territory is marked by a strong

relationship between natural and cultural elements, constituting a historical, political and

sentimental unit on the city. In this context, this work seeks to contribute to the new

categories of heritage conservation, considering that the definition of cultural landscape

should be understand beyond to the existing physiognomic aspect.

KEY WORDS: Cultural Landscape. Cultural Heritage. Elements. Meanings.

LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: ESQUEMA DA PESQUISA 27

FIGURA 2: FACHADA DO TEATRO SANTA ISABEL, LOCALIZADO NA PRAÇA DA REPÚBLICA. 56

FIGURA 3: BAIA ENTULHADA DO RECIFE, SEGUNDO J. C. BRANNER 67

FIGURA 4: PORTO E BARRA DE PERNAMBUCO EM 1630, CIRCULADO EM AMARELO. 69

FIGURA 5: PLANTA DO RECIFE EM 1631, PRODUZIDA POR DE A. DREWISCH. 71

FIGURA 6: MAPA DE GOLITJHA DE 1648. OBSERVASSE A OCUPAÇÃO DA ILHA DE ANTÔNIO VAZ. 72

FIGURA 7: DETALHE DO MAPA DE GOLITJHA, DE 1648. 73

FIGURA 8: VISTA DOS CAES DA PONTE D’UCHÔA NO SÉCULO XIX 79

FIGURA 9: VISTA DA PONTE NOVA DO RECIFE 80

FIGURA 10: CAMPO DAS PRINCEZAS (LARGO DO PALÁCIO) NO SÉCULO XIX 83

FIGURA 11: VISTA DO RECIFE (TOMADA DO TEATRO S. IZABEL). AO FUNDO RIO CAPIBARIBE. 84

FIGURA 12: VISTA DE SANTO ANTÔNIO, TIRADA DO RECIFE EM 1817. 87

FIGURA 13: PESCADOR SOBRE A PONTE MAURICIO DE NASSAU 101

FIGURA 14: MOMENTO DE JOGAR A SARRAFA NA PONTE MAURICIO DE NASSAU. 101

FIGURA 15: CASA DA CULTURA VISTA DA PONTE DA BOA VISTA 104

FIGURA 16: PARQUE DAS ESCULTURAS VISTO DO MARCO ZERO. 104

FIGURA 17: MARCO ZERO VISTO DO PARQUE DAS ESCULTURAS. 104

FIGURA 18: PONTES DO RECIFE VISTAS DO RIO CAPIBARIBE. 104

FIGURA 19: PONTE DO LIMOEIRO E O CAIS PARA EMBARCAÇÕES NO RIO CAPIBARIBE. 106

FIGURA 20: GALERIA DE ESGOTO ABAIXO DA PONTE DA BOA VISTA. 111

FIGURA 21: LIXO ACUMULADO NA BASE DA PONTE DA BOA VISTA. 111

FIGURA 22: OBRAS DA REFORMA DO PORTO DO RECIFE. AO FUNDO TORRE MALAKOFF. 113

FIGURA 23: MARCO ZERO. AS CONSTRUÇÕES FORMAM UM "ARCO" AO FUNDO 119

FIGURA 24: RUA DA AURORA, TOMBADA COMO FORMA DE EVITAR MAIORES TRANSFORMAÇÕES. 122

FIGURA 25: ALTAR DA IGREJA DE SÃO PEDRO DOS CLÉRIGOS 128

FIGURA 26: CAPELA DOURADA DO RECIFE. 128

FIGURA 27: IGREJA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DOS MILITARES DURANTE CELEBRAÇÃO DE MISSA. 128

FIGURA 28: PÁTIO E FACHADA DA IGREJA DO CARMO. 128

FIGURA 29: PÁTIO DA IGREJA DO LIVRAMENTO. 130

FIGURA 30: COMÉRCIO DE RUA NAS PROXIMIDADES DO MERCADO DE SÃO JOSÉ 132

LISTA DE GRÁFICOS

GRÁFICO 1: ELEMENTOS PATRIMONIALIZAVEIS DO CENTRO DO RECIFE OS PESCADORES. 103

GRÁFICO 2: ELEMENTOS DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE, SEGUNDO OS PESCADORES. 105

GRÁFICO 3: BENS PROTEGIDOS LEGALMENTE NO CENTRO DO RECIFE SEGUNDO OS COMERCIANTES. 108

GRÁFICO 4: ELEMENTOS PATRIMONIALIZAVEIS DO CENTRO DO RECIFE SEGUNDO OS COMERCIANTES. 109

GRÁFICO 5: ELEMENTOS DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE, SEGUNDO OS COMERCIANTES. 111

GRÁFICO 6: BENS PROTEGIDOS LEGALMENTE NO CENTRO DO RECIFE SEGUNDO OS VISITANTES 115

GRÁFICO 7: ELEMENTOS DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE, SEGUNDO OS VISITANTES 118

GRÁFICO 8: BENS PROTEGIDOS LEGALMENTE NO CENTRO DO RECIFE SEGUNDO OS MORADORES. 121

GRÁFICO 9: ELEMENTOS MERECEDORES DE RECONHECIMENTO PATRIMONIAL, SEGUNDO OS MORADORES. 123

GRÁFICO 10: ELEMENTOS DA PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE, SEGUNDO OS MORADORES. 125

GRÁFICO 11: PRINCIPAIS ELEMENTOS QUE COMPÕEM A PAISAGEM CULTURAL DO CENTRO DO RECIFE. 135

LISTA DE MAPAS

MAPA 1: BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO CAPIBARIBE E PRINCIPAIS OCUPAÇÕES URBANAS 67

MAPA 2: LOCAIS ONDE FORAM REALIZADAS AS ENTREVISTAS COM OS ATORES DO GRUPO USUÁRIOS 98

MAPA 3: PESCADORES ENTREVISTADOS NO CENTRO DO RECIFE 99

MAPA 4: COMERCIANTES ENTREVISTADOS NO CENTRO DO RECIFE 108

MAPA 5: VISITANTES ENTREVISTADOS NO CENTRO DO RECIFE 114

MAPA 6: MORADORES ENTREVISTADOS NO CENTRO DO RECIFE 120

MAPA 7: PAISAGEM CULTURAL DO RECIFE COM SEUS PRINCIPAIS ELEMENTOS 137

LISTA DE ABREVIATURAS

BID Banco Interamericano de Desenvolvimento

DPPC Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural

FUNDARPE Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco

HUL Historic Urban Landscapes

ICOMOS Conselho Internacional de Documentos e Sítios

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

PCR Prefeitura da Cidade do Recife

UFRPE Universidade Federal Rural de Pernambuco

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

WHC Convenção do Patrimônio Mundial

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

CAPÍTULO 1 - DEFININDO UMA CATEGORIA 29

1.1. DO MONUMENTO A PAISAGEM 30

1.2. PAISAGEM CULTURAL: Utilizações de um conceito 35

1.3. OPERACIONALIZANDO A CATEGORIA 44

CAPÍTULO 2 - ENTRE PROTEGER E ESQUECER: Os tombamentos aplicados no centro do Recife 52

2.1 TOMBAMENTOS DO ÂMBITO FEDERAL 53

2.2 TOMBAMENTOS DO ÂMBITO ESTADUAL 59

CAPÍTULO 3 - LEITURAS DA PAISAGEM DO CENTRO DO RECIFE 64

3.1. SÉCULO XVI A XVIII: Leituras de um território desconhecido e sua dominação 68

3.2. SÉCULO XIX: Tristeza e deleite nas leituras dos estrangeiros 76

3.3. SÉCULO XX: (DES) encantos modernos e luta pela tradição 85

CAPÍTULO 4 - PARA ALÉM DA FISIONOMIA: Leituras da paisagem pelos grupos envolvidos 95

4.1. LEITURAS DA PAISAGEM PARA OS USUÁRIOS: SEUS ELEMENTOS E SIGNIFICADOS 97

4.1.1. Leituras dos pescadores 99

4.1.2. Leituras dos comerciantes 106

4.1.3. Leituras dos visitantes 113

4.1.4. Leituras dos moradores 119

4.2. LEITURAS DA PAISAGEM PARA OS ESPECIALISTAS: SEUS ELEMENTOS E SIGNIFICADOS 125

CONCLUSÃO 138

REFERÊNCIAS 144

ANEXO A – Modelo de entrevista aplicada ao grupo dos usuários 151

ANEXO B – Modelo de entrevista aplicada ao grupo dos especialistas 152

INTRODUÇÃO

“Para conhecer uma paisagem não basta vê-la, é preciso muito mais, é preciso que as duas almas, a do

contemplador e a do lugar, cheguem a entender-se, quantas vezes elas nem mesmo se falam!”

Joaquim Nabuco, O’Paiz de 30 de Novembro de 1887 em Gouveia, 1990, p. 304.

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Este trabalho tem como objetivo principal identificar os elementos e significados

que compõem a paisagem cultural do centro do Recife1, em busca de fornecer subsídios à

construção de novos instrumentos de proteção patrimonial.

O estudo parte do problema indicado pela Chancela da Paisagem Cultural

Brasileira, publicada na portaria nº 127 de 30 de abril de 2009 pelo Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), onde os atuais instrumentos de conservação que

tratam do patrimônio cultural e natural, tomados individualmente, não contemplam o

conjunto de fatores implícitos nas paisagens culturais, falhando na proteção dos atributos

dos bens.

Nos diversos âmbitos de proteção patrimonial brasileira a conservação dos bens

é realizada através de instrumentos como o tombamento, o inventário e o registro cultural

(CASTRIOTA, 2010). Apesar de estes instrumentos coexistirem em um mesmo período e

terem possibilidade de aplicações simultâneas, suas utilizações diversas indicam o modo

como o patrimônio é compreendido ao longo do tempo.

Inicialmente visto como um bem isolado, o monumento era tratado como algo

dotado de uma singularidade excepcional, que remetia a algo importante do passado e

dotado de valores intrínsecos, sendo por isto merecedor de uma proteção específica. A

partir de um longo percurso do conceito de patrimônio e de orientações práticas variadas,

expressas nas cartas patrimoniais, surge a noção de patrimônio, onde o bem é

compreendido a partir das relações entre os diversos elementos que compõem sua

significância (CHOAY, 2006).

Com o desenvolvimento das teorias patrimoniais e das mudanças paradigmáticas

proporcionadas pela publicação do Relatório Nosso Futuro Comum, surge a necessidade de

superar a noção dicotômica entre homem e natureza, presente na esfera da conservação

(RIBEIRO, 2007). Em resposta a esta necessidade e com a constatação de que determinados

bens podiam ser protegidos tanto pelos seus fatores naturais quanto culturais, a

Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) cria em

1992 a categoria da paisagem cultural, definida como bem patrimonial onde é marcante a:

1 Neste trabalho o centro do Recife representa os primeiros locais de ocupação urbana de Pernambuco,

composto pelos atuais bairros do Recife, Santo Antônio e São José.

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“[...] evolução da sociedade e dos povoamentos ao longo dos tempos, sob a influência de constrangimentos físicos e/ou das vantagens oferecidas pelo seu ambiente natural e das sucessivas forças sociais, econômicas e culturais, internas e externas” (UNESCO, 2008, p.79-80).

Ao institucionalizar a categoria da paisagem cultural, a UNESCO deu uma

importante contribuição para a compreensão patrimonial. A paisagem, concepção antiga e

polissêmica proveniente dos pintores renascentistas do século XV e adotada

academicamente pela geografia no final do século XIX como um de seus principais conceitos,

é inserida oficialmente em mais um campo de trabalho: a conservação patrimonial. O

estabelecimento da categoria representou um avanço na utilização do conceito, saindo de

um contexto que utilizava o termo como algo que apenas contribuía para a atribuição de

valor do bem, para tornar-se o bem em si, sendo protegida pelos valores atribuídos às

diversas relações entre os seus elementos.

Após a UNESCO, a Convenção Europeia da Paisagem estabeleceu em 2000 que o

conceito deveria ser adotado pelos Estados partes como um componente essencial do

ambiente das pessoas, uma expressão da diversidade do patrimônio cultural e natural, assim

como base da identidade da sociedade. Com este reconhecimento cada País deveria

estabelecer e aplicar políticas da paisagem, voltadas a proteção, gestão e planejamento do

território (COUNCIL OF EUROPE, 2000).

Diferente do proposto pela UNESCO que busca por paisagens de excepcional

valor, a compreensão europeia expande a atenção a todos as tipologias existentes, não faz

distinção entre natural e cultural, e aproxima o conceito da gestão territorial. Alguns

documentos foram construídos pelos países como forma de inserir o tema em suas políticas

de planejamento, destacando-se os do Reino Unido (SWANWICK, 2002) e Espanha (NOGUE;

SALA, 2006) para o estabelecimento de inventários das paisagens nacionais.

No âmbito nacional apenas a partir de 2009 o tema se torna oficial junto ao

IPHAN com o reconhecimento da Categoria da Paisagem Cultural Brasileira. Apesar de o

assunto estar presente desde a criação do instituto, através do estabelecimento de um Livro

de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, a utilização do conceito estava limitada a

contribuir com o valor de algum bem maior (RIBEIRO, 2007, p. 65-101).

A Chancela define a Paisagem Cultural Brasileira como uma porção peculiar do

território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural,

14

à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores. Porém, não

indica como estas paisagens podem ser identificadas.

Neste trabalho, a paisagem é compreendida como uma leitura das relações

existentes entre sociedade e natureza, a partir dos elementos presentes em um território.

Estes elementos podem ser culturais e naturais constituindo seu aspecto visível, como

também invisível ou imaterial, representando o seu aspecto simbólico.

Compreender a paisagem como uma leitura das relações sociais a partir de seus

elementos materiais indica uma postura objetiva e ao mesmo tempo subjetiva. Desta forma

ela é compreendida como uma face exterior, uma fisionomia, que não nega os aspectos

invisíveis, mas reconhece que os elementos físicos escondem uma verdade, possível de

compreensão apenas a partir da leitura das relações existentes com estes elementos (BESSE,

2006, p.61-64).

Neste sentido, assumimos aqui a paisagem como um texto, sendo por isto

necessário a construção de um eixo de leitura para a interpretação das relações

estabelecidas entre a sociedade e os elementos que a compõem. A construção do eixo

central de leitura possibilita a definição de quais elementos são importantes para a

preservação daquele território, a partir dos grupos mais significativos que o utilizam e

vivenciam.

Com esta abordagem, a categoria pode ser operacionalizada no âmbito

patrimonial, já que a partir desta leitura podem ser definidos os elementos que a compõem

e os significados que estes elementos transmitem aos envolvidos. Conforme apontou Ribeiro

(2011, p. 10), um eixo de leitura da paisagem:

“[...] permite fugir de uma tendência que parece ser comum ao querer englobar todas as manifestações culturais dentro de uma mesma leitura da paisagem que é aquilo que vou chamar aqui de paisagem-inventário e no sentindo do mau inventário, aquele que é mera descrição de coisas, sem uma lógica [...] Sem um método ou um eixo central que a oriente, nela, não há um traço de leitura e a única coisa que aparentemente liga os elementos é sua coexistência espacial. Além disso o que preside a escolha desses elementos? Como considerar algo como “culturalmente relevante” na paisagem e outra coisa não?”

Mesmo com este debate aparentemente estabelecido e dos quase 20 anos da

utilização do conceito pelas instituições protetoras do patrimônio, ainda restam dúvidas em

relação a operacionalização da categoria. Como podemos definir uma paisagem cultural?

Quais elementos devemos efetivamente preservar? Quem são os principais grupos de

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interesse na conservação da paisagem? Como conservar uma paisagem, se ela tem a

transformação como principal característica? Estas são algumas das várias perguntas

relacionadas a efetivação da categoria junto aos órgãos patrimoniais (MASON, 2008, p.182).

Frente a estas questões, há a necessidade de se aprofundar metodologicamente

na identificação dos elementos que compõem as paisagens brasileiras e dos significados que

eles transmitem para os grupos culturais envolvidos, como forma de construir novos

instrumentos de preservação que tratem o patrimônio de forma holística. Como apontou

Mason (op. cit., p. 181) a “[...] identificação é o primeiro passo para a preservação de

paisagens culturais [...]”.

Ao contrário da conservação de sítios arqueológicos ou de obras de artes, a

conservação de paisagens culturais lida com elementos, atributos e processos de forma

muito específica. Zancheti (2009, p.2) ao debater a conservação sustentável em centros

históricos, definiu que estes são compostos de objetos, atributos e processos. Objetos são os

elementos físicos e imateriais transformados ou alterados pelos seres humanos. Cada objeto

possui atributos, definidos como todas as características dos objetos reconhecidos como

tendo valor patrimonial, seja material ou imaterial. Já o processo é o que gera a dinâmica

de áreas urbanas, tornando-as vivas e sujeitas à mudança contínua devido à ação humana.

A paisagem cultural dos centros urbanos apresentam estas características.

Elementos e objetos podem ser vistos como sinônimos, ambos são os aspectos materiais e

imateriais resultantes da ação do homem. Processos podem ser compreendidos como as

ações naturais e humanas que contribuem com a dinâmica de transformação na paisagem.

Porém, o que define a paisagem cultural é o seu atributo. Enquanto outros bens podem ter

como atributo sua beleza arquitetônica, a paisagem cultural é definida quando o atributo

dos elementos naturais e culturais é a relação entre a sociedade e a natureza num

determinado território. Se determinado território tem como principal atributo esta relação,

ele pode ser considerado uma paisagem cultural.

Desta forma, é fundamental para a futura elaboração de um instrumento de

auxílio à conservação, baseada na categoria da paisagem cultural, a proteção das relações

entre sociedade e natureza ocorridas no território. É importante destacar que a paisagem é

um bem dinâmico, onde a relação entre elementos está em constante alteração, mesmo

quando estas não são imediatamente perceptíveis. Logo, uma ação de conservação

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executada em uma paisagem cultural não pode objetivar a permanência destes elementos e

processos como forma única de preservação. Mas sim atuar sobre eles em busca de manter

o atributo que a constitui enquanto bem: a relação entre sociedade e natureza, ou seja, o

que dá vida a paisagem.

Frente às limitações dos atuais instrumentos de proteção patrimonial e as

especificidades impostas pela categoria da paisagem cultural, cabem os seguintes

questionamentos, que orientaram o estudo: 1) Será que um instrumento de proteção

patrimonial, baseado na paisagem cultural, contribuirá para a conservação integrada de

centros históricos? 2) A área central do Recife pode ser definida enquanto bem patrimonial,

segundo a categoria de paisagem cultural? 3) Pode a categoria da paisagem cultural suprir as

necessidades da conservação da área central do Recife?

Os questionamentos foram feitos tomando-se como referência os locais de

ocupação urbana inicial na cidade do Recife, porém não se limita as divisões políticas e

administrativas, devido a abordagem teórica adotada. A escolha por este recorte ocorreu,

principalmente, pela constatação de que os instrumentos de preservação patrimonial

aplicados no local, não são capazes de conservar os bens naturais e culturais que

caracterizam este núcleo de forma conjunta.

Na área central do Recife é presente um longo processo de decadência

socioeconômica iniciada a partir da década de 1930 (ZANCHETI; LACERDA, 1999). Estas

questões tiveram reflexos diretos no patrimônio do bairro, assim como nos aspectos

ambientais, tornando o centro uma periferia na centralidade. Segundo Lacerda (2007,

p.624):

“Na verdade, a área que conformava o centro histórico, particularmente o Bairro do Recife, entrou, na década de 1970, em um ritmo acelerado de degradação ambiental, passando a ser uma “periferia” da cidade. Daí surgiu um paradoxo: o bairro tornou-se uma “periferia” na centralidade. Por não se constituir em uma área de interesse do setor imobiliário, não era, conseqüentemente, alvo de disputas políticas quanto à legislação de uso e ocupação do solo”

Em busca de solucionar a perda do valor cultural e social gerado pelo enorme

estoque ocioso de capital construído (LACERDA; ZANCHETI, 2000) e de buscar utilizar a área

central como um atrativo turístico, diversas ações de recuperação foram empreendidas

pelos gestores municipais e estaduais, sobretudo no Bairro do Recife.

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No caso do bairro do Recife, os projetos de revitalização resultaram no

tombamento de uma área específica a partir das suas características arquitetônicas e

urbanísticas. O IPHAN reconheceu como patrimônio nacional um sítio urbano eclético, que

foi erguido após a demolição de uma parte do antigo bairro colonial, na ampla reforma que

ocorreu em 1910. Segundo Leite (2002, p.120):

“[...] a justificativa para o tombamento destaca, ante a inexistência de uma tradição colonial, aspectos que seriam constitutivos da formação “pluricultural” brasileira. O bairro, tido como um “exemplar íntegro da Paris de Haussmann” foi considerado, assim, [...] arquivo vivo e único da superposição das várias temporalidades que dominaram a história e a produção artística no Recife e no Brasil”.

Em um momento onde a proteção patrimonial ocorre pela valorização do

singular e do específico, o tombamento federal estabelecido em 1998 no bairro valorizou o

ecletismo, representando, na verdade, um ato político para atender as exigências do Banco

Interamericano de Desenvolvimento (BID) para inserção da cidade no programa

Monumenta.

Em função disto, na proposta de tombamento não é presente qualquer relação

entre a identidade cultural da sociedade com a área protegida. Não houve uma consulta aos

grupos envolvidos com o bem para definição de quais elementos deveriam ser protegidos

com base nos significados que eles têm para esses grupos, deixando a definição restrita aos

especialistas. Desta forma, “A dimensão da cidadania está completamente ausente na

proposta de tombamento, cujo principal enfoque é a dimensão de mercado” (LEITE 2007,

p.90).

Outra característica do tombamento federal executado na área é a ausência dos

aspectos naturais, marcantes na fisionomia do território. Apesar dos inúmeros relatos dos

viajantes, moradores e poetas existentes desde o século XVI e da tendência internacional à

época da definição da área protegida de tratar os aspectos naturais e culturais de forma

integrada, a proposta aprovada deixou de lado qualquer relação entre as águas dos rios e do

mar com a vida da cidade.

No âmbito estadual, a mesma tendência pode ser observada no processo de

tombamento da Rua da Aurora, localizada no bairro da Boa Vista, as margens do rio

Capibaribe. Apesar de a proposta apresentar um discurso construído com base em fontes

históricas e registros fotográficos onde se destaca a relação histórica entre o rio e esta rua,

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no parecer conclusivo, datado em 1984, não há qualquer referência as relações entre os

elementos construídos e naturais.

Portanto, existe uma necessidade de reformular os instrumentos de proteção

aplicados, inserindo os elementos a serem protegidos, a partir dos significados que têm

estes bens para os atores envolvidos no processo, tanto os especialistas como os demais

grupos da sociedade envolvidos, estabelecendo novos patrimônios e orientações as ações a

serem desenvolvidas na área.

Optou-se pela categoria da paisagem cultural como bem patrimonial para

embasar o trabalho, devido ao fato de que a área é fortemente marcada pela interação

entre o homem e as águas dos rios e do mar que a circunda, sendo de fundamental

importância na composição fisiográfica, social e econômica da cidade.

Estabelecida sobre uma planície aluvial e constituída em um conjunto de ilhas,

penínsulas, alagados e mangues, protegida do lado do mar por uma linha de arrecifes de

pedras e, do lado oposto, por uma pequena cadeia de montes que a separa das partes mais

altas, a fisionomia natural onde se assenta a cidade do Recife foi formada por um conjunto

de fatores, entre os quais se destacam os rios e o mar na atividade de constituição do solo

(CASTRO, 1957).

Esta composição fisiográfica exerceu grande influência na formação deste

território, através da relação do homem, que aqui foi se estabelecendo. Em função de suas

águas o Recife pôde se integrar com o Mundo no início do século XVI, através da exportação

do açúcar e pau-brasil, ao mesmo tempo em que as primeiras ocupações ao longo dos rios

Capibaribe e Beberibe, foram constituídas, formando os principais eixos de expansão da

cidade.

Inúmeras referências bibliográficas atestam a influência da fisiografia na

formação da cidade. No século XVI, poemas e descrições de Portugueses sobre as novas

terras ocupadas apresentavam o núcleo inicial do Recife como um importante porto de

Olinda. Após a dominação holandesa, como pode ser visto no relato de Sebastião da Rocha

Pita sobre a paisagem construída, a natureza e a arte estão presentes de forma conjunta:

“[...] A natureza as dividiu por um lagamar, que faz o rio Capibaribe, e outros mais, que ali se juntam; porém a arte as uniu com uma dilatada e espaçosa ponte, principiada pelos Holandeses, e acabada pelos Pernambucanos” (PITA, 1730, p.103).

19

Relatos de vários viajantes no século XIX contribuem para a constatação da

influência das águas dos rios na vida da cidade. Dentre vários registros, o relato de Maria

Graham (1992, p. 126) sobre o Recife do século XIX apresenta a importância dos elementos

naturais na constituição da paisagem cultural:

“[...] nada mais belo no gênero do que o vivo panorama verde, com o largo rio sinuoso através dele, que se avista de cada lado da ponte, e as construções brancas do Tesouro e da Casa da Moeda, os conventos e as casas particulares, a maioria das quais com seu jardim. A vegetação é deliciosa para os olhos ingleses. Não tenho dúvidas que os prados planos e os rios que fluem vagarosamente atraíram particularmente os holandeses, fundadores do Recife”.

Já no século XX, o cientista Josué de Castro destacou a importâncias dos

elementos naturais na formação da cidade do Recife. Dando uma grande ênfase aos rios, ele

mostra como os rios Capibaribe e Beberibe formam a fisionomia do território recifense:

“[...] Este ar e este solo onde assenta a cidade do Recife, e donde a cidade tira toda a vida de sua fisionomia, são efeitos exclusivos dos rios que a banham. Do Capibaribe e do Beberibe. Por toda a cidade eles correm em zigue-zague, passando ali, acolá, debaixo duma ponte, dando um ar de doçura à cidade. Cidade de paisagem doce, em pleno nordeste ardusto [...]”(CASTRO 1992, apud MELO, 2003, p. 100).

Gilberto Freyre apresentou a fisionomia da cidade intimamente ligada a seus

corpos de água, relatando que “não se compreende o Recife desquitado da água que lhe

vem distinguindo a fisionomia: a água do Capibaribe; a água do Beberibe; a água do mar; a

água do açude de Apipucos” (FREYRE, 2007, p.78).

Ainda no século XX, a relação entre cidade e rio foi bastante representada

através de poetas, que frente as mudanças impostas por uma modernização destruidora,

apresentaram seu saudosismo e satisfação ao admirar as permanências da paisagem cortada

por rio e pontes. O poema de Joaquim Cardozo, Tarde no Recife, pode ser utilizado como

exemplo:

Tarde no Recife. Da ponte Maurício o céu e a cidade. Fachada verde no Café Maxime, cais do abacaxi, gameleiras. Da torre do Telégrafo Ótico a voz colorida das bandeiras anuncia que vapores entraram no horizonte. Tanta gente apressada, tanta mulher bonita; a tagarelice dos bondes e dos automóveis. Um camelô gritando – alerta! Algazarra. Seis horas. Os sinos. Recife romântico dos crepúsculos das pontes, Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos

20

[holandeses, que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas, que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas do [Pacífico; Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do

[rio.

Outro fator que justificou a escolha da área central do Recife foram os aspectos

de ordem imaterial. O centro do Recife, formado pela constante relação entre homem e

natureza, representada através de relatos e poesias, é local de intensas manifestações

culturais como o carnaval ou eventos religiosos, constituindo em um verdadeiro símbolo2 da

cidade para uma significativa parcela da população, como pode ser atestado através de

pesquisas de opinião como, por exemplo, a realizada em setembro de 2002 pelo Banco Itaú

e divulgada nos jornais locais3.

Assim, o Recife tem desde sua gênese uma forte relação com os elementos

naturais que, além de influenciar a constituição e a forma de ocupação dos solos,

estabelecida a partir dos cursos d’água, é marcante na paisagem da cidade, sobretudo no

centro, constituindo não apenas “uma unidade geográfica, histórica, econômica e

sociológica, mas também sentimental e poética” (CHACON, 1959, p.9).

Portanto, é necessário destacar como esta paisagem do centro do Recife é um

reflexo desta constante relação, ainda viva nos espaços da cidade e como ela pode servir

como parâmetro aos planos de gestão, visando à conservação desta área que agrega tantos

bens patrimoniais. Desta forma, a busca de um instrumento de preservação de proteção

patrimonial visando a conservação integrada da área, deve ter como finalidade a

preservação do principal atributo que confere caráter patrimonial a esta paisagem: as

relações entre cidade e seus recursos hídricos.

Desta forma, o presente trabalho tem como objetivo geral identificar os

elementos que compõem a paisagem cultural do centro do Recife a partir dos grupos

culturais envolvidos e interpretar os seus significados, visando dar subsídios para a

conservação integrada desta área.

Já os objetivos específicos são:

2 “No sentido amplo, o simbolismo é um mecanismo básico de comunicação que tem sido definido de muitas

maneiras diferentes. No senso comum, um símbolo é simplesmente algo que representa ou é produzido para representar alguma outra coisa” (MUÑOZ VIÑAS, 2005, p. 45). 3 Conforme apresentado por Melo (2003) e Maciel (2005)

21

1. Construir um eixo de leitura da paisagem;

2. Identificar os grupos culturais envolvidos mais representativos da área central

do Recife;

3. Identificar os principais elementos que constituem a paisagem cultural do

centro do Recife, a partir dos grupos culturais envolvidos;

4. Interpretar os significados dos elementos para os grupos envolvidos

Visando alcançar os objetivos propostos, a metodologia do trabalho está dividida

em três etapas, conforme proposto por Minayo (2006): A fase explanatória; o trabalho de

campo; e a etapa correspondente ao tratamento do material.

A fase explanatória corresponde à primeira parte da pesquisa e refere-se aos

processos de delimitação do objeto empírico e aprofundamento da base teórica, em um

processo fortemente interligado, exigindo constantes idas e vindas entre as partes.

Como bases teóricas foram utilizadas o conceito de paisagem cultural tendo

como referência o campo disciplinar da geografia, e a categoria da paisagem cultural como

bem patrimonial, em busca de compreender suas definições e possíveis operacionalizações.

Desta forma, realizou-se uma análise da concepção patrimonial ao longo do tempo, partindo

do monumento enquanto bem isolado, para a noção de paisagem cultural que integra

diversos aspectos em um único patrimônio.

Para um aprofundamento sobre o desenvolvimento da noção de patrimônio,

foram utilizados os textos de Choay (2006), as Cartas Patrimoniais, publicadas pelo Conselho

Internacional de Documentos e Sítios (ICOMOS), além de documentos relevantes

disponibilizados pela Convenção do Patrimônio Mundial (WHC/UNESCO)4.

Além da compreensão sobre a evolução da concepção de patrimônio, foi

necessário debater conceitualmente as implicações da utilização do conceito de paisagem

nas políticas de conservação. Para o aprofundamento teórico foram utilizadas as teorias

propostas pelos Novos Geógrafos Culturais, responsáveis por um processo de renovação do

estudo da paisagem a partir da década de 1980, responsáveis por algumas renovações

4 Os sítios eletrônicos da WHC/UNESCO e do ICOMOS disponibilizam as Cartas Patrimoniais, bem como

documentos relevantes de auxilio à conservação. São eles: http://www.icomos.org.br/ e http://whc.unesco.org/

22

metodológicas. Neste contexto, os debates conceituais construídos por Duncan (1990),

McDowell (1996), Gomes (1996), Melo (2003), Antrop (2005, 2006a, 2006b), Besse (2006),

Ribeiro (2007), Geertz (2008), entre outros, foram fundamentais para desenvolver uma visão

critica do conceito de paisagem cultural e suas vinculações com o patrimônio.

Após compreender como o conceito de paisagem foi apropriado de algumas

ciências e sua vinculação às políticas patrimoniais, observou-se como a concepção de

paisagem cultural, enquanto categoria patrimonial vem sendo operacionalizada. Assim, foi

realizada no âmbito da UNESCO, da Convenção Europeia da Paisagem e do IPHAN, uma

análise crítica das ações de conservação.

Para contribuir com o entendimento dessa categoria, um debate entre as teorias

da conservação e os conceitos levantados foi articulado. Neste ponto, os textos de Muñoz

Viñas (2005), Zancheti (2009), Castriota (2010) e Ribeiro (2011) foram essenciais para a

construção de uma nova proposta para identificação da paisagem cultural.

Além da revisão bibliográfica conceitual, a fase explanatória contou com o aporte

de leituras sobre a área central do Recife, auxiliando na compreensão do objeto empírico e

orientando a construção do eixo de leitura. Nesta parte, os trabalhos de Gilberto Freyre

(2004, 2007), Josué de Castro (1954, 1957, 2007), Vamireh Chacon (1959), Mario Sette

(1978), bem como os relatos dos viajantes como os de Henry Koster (1978, 1992), Tollenare

(1978, 1992), Maria Graham (1992), Vauthier (2010), entre outros, contribuíram para a

leitura da paisagem do centro do Recife. Assim, foi mantido o diálogo entre as abordagens

teóricas e práticas, ao se compreender a formação da paisagem do local e como as políticas

de patrimônio foram implantadas.

Com estas aproximações foi possível iniciar a construção do eixo de leitura da

paisagem do centro do Recife. Para isto, foram realizadas visitas aos acervos da Fundação

Joaquim Nabuco/Biblioteca Blanche Knopf, Acervo do IPHAN, Biblioteca da Fundação do

Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE), Prefeitura do Recife (PCR) e

Arquivo Público do Estado de Pernambuco. A busca foi orientada, conforme indicou Pontual,

et. all. (2009), a procura de documentos que apresentassem a evolução da paisagem da área

central, dando destaque aos registros cartográficos históricos, bem como fotografias de

tempos passados, em virtude de sua importância para o entendimento das transformações

da forma e da vida urbana. Além disto, buscaram-se também as diversas representações

23

poéticas da paisagem do Recife, consideradas importantes fontes de estudo dos modos de

relacionamento entre sociedade e natureza na cidade, entre as quais podem ser destacadas

as de Joaquim Cardozo, João Cabral de Mello Neto e Carlos Pena Filho.

Após esta etapa, há o inicio da segunda fase da pesquisa: O trabalho de campo.

Este momento está diretamente relacionado às concepções teóricas construídas, tendo sido

utilizado o método de leitura da paisagem em um primeiro instante e posteriormente

entrevistas semiestruturas junto aos grupos significativos.

Indicado por Besse (2006, p. 72 – 74), a leitura da paisagem tem como objetivo

desenvolver um passeio inteligente por um território, em busca da compreensão profunda

da paisagem. Segundo o autor, este método é uma característica dos que consideram a

paisagem como uma fisionomia terrestre composta por elementos de um “gênero de vida”,

ou seja, os elementos expressivos de uma interação homem-meio em função de

determinada cultura. Sendo a paisagem a expressão das formas de relacionamento com o

meio, se faz necessário “compreendê-la como uma totalidade expressiva, animada por um

espírito interno do qual se pode extrair o sentido”.

Apenas o olhar treinado, aquele que sabe ver, pode compreender para além da

fisionomia, ou seja, dos elementos. A indicação metodológica mostra que, em um primeiro

momento, o olhar sobre a paisagem deve ser analítico ao distinguir elementos particulares,

naturais e humanos, materiais e imateriais, enquanto que no segundo momento ele deve ser

sintético, para possibilitar a compreensão das relações entre os elementos (BESSE, op. cit.).

A leitura da paisagem foi desenvolvida tendo com base este método. Em um

primeiro momento, se percorreu determinados espaços da área central, observando quais

seriam os principais elementos presentes e os possíveis agentes envolvidos com os diversos

processos do local. As visitas percorreram várias áreas do centro, inclusive realizadas pelas

águas, e ocorreram durante dias e horários distintos, pois há uma variação dos usos e dos

grupos culturais em função do horário e local.

Após estas etapas, pôde-se empreender o eixo de leitura da paisagem cultural do

Recife a partir de uma narrativa baseada na relação entre homem e natureza, tendo como

narrativa a relação entre cidade e as águas. Ao fim da leitura da paisagem também foram

24

definidos quais são os grupos representativos para se aferir os significados patrimoniais

atribuídos aos elementos que compõem a paisagem.

Muñoz Viñas (2005, p.209) afirma que há dois tipos principais de grupos

envolvidos a serem considerados nas ações patrimoniais: os acadêmicos ou usuários cultos e

os usuários futuros do bem. Zancheti (2009, p.11-12) considera que os principais grupos

envolvidos na conservação de um centro histórico podem ser: os especialistas no bem; os

residentes de longa data; os turistas; e grupos que contribuem de forma decisiva para a

significância do local (como exemplo, os representantes religiosos do Centro Histórico de

Olinda).

Através da leitura da paisagem realizada, com base nas referências bibliográficas,

nas observações feitas em campo e no debate conceitual estabelecido, foram considerados

para este trabalho que os principais grupos envolvidos, ou seja, aqueles que estão

diretamente relacionados a existência da relação sociedade e natureza no local, são

divididos em dois grupos maiores: os especialistas e os usuários em geral.

No grupo dos especialistas estão aqueles que têm capacidade legal de intervir no

bem ou realizaram trabalhos significativos para o reconhecimento dos elementos, atributos

e processos que compõem o local, que têm ou já tiveram atuação destacada nos processos

de proteção patrimonial, ou realizaram críticas aos trabalhos já aplicados na área.

No grupo dos usuários estão aqueles que têm algum envolvimento com o bem.

Neste conjunto é impossível definir com exatidão quem são todas as pessoas envolvidas com

o centro, não tendo uma delimitação precisa (MUÑOZ VIÑAS, 2005). Por outro lado, a

participação deste é vital para as políticas patrimoniais, pois: 1) se trata uma área da cidade

de extrema importância social; 2) muitas vezes nesse grupo estão atores com grande

influência nas decisões tomadas pelos gestores patrimoniais; e 3) eles serão diretamente

afetados por qualquer ação executada no bem.

Sendo assim, os grupos foram especificados da seguinte forma:

1) Especialistas

a) Gestor do patrimônio na esfera nacional – Representante do IPHAN/PE;

b) Gestor do patrimônio na esfera estadual – Representante da FUNDARPE;

25

c) Gestor do patrimônio na esfera municipal – Representante da Diretoria de

Preservação do Patrimônio Cultural (DPPC) da PCR;

d) Acadêmicos – Professores universitários com reconhecidos trabalhos sobre a área

central do recife

e) Representante de ONG – Instituto com ações a respeito do centro e do rio

2) Usuários

a) Moradores;

b) Pescadores;

c) Visitantes;

d) Comerciantes;

No grupo dos usuários é importante destacar que muito dos pescadores também

são habitantes do local, residindo em pensões e ou residências variadas. Sendo assim, foram

considerados pescadores aqueles entrevistados durante o exercício da atividade de pesca.

No grupo dos visitantes estão aqueles de outros estados ou países que vêm visitar o centro,

seja em passeios livres ou visitas orientadas por guias particulares ou os moradores do

Recife e adjacências que utilizam o bairro com frequência, seja em atividades de trabalho ou

em momentos de lazer.

Após a definição dos grupos envolvidos foram construídos dois modelos de

entrevistas semiestruturadas, com o objetivo de identificar quais os elementos são mais

representativos para cada grupo, bem como quais significados eles apresentam para cada

um. O modelo de entrevista aplicado ao grupo dos usuários está disponível no Anexo A,

enquanto o Anexo B apresenta o modelo aplicado junto aos especialistas.

A aplicação das entrevistas semiestruturadas facilitou a coleta de informações e

contribuiu de forma decisiva para a identificação dos elementos e interpretação dos

significados que compõem a paisagem cultural do centro do Recife. Este método de

entrevista é caracterizado por obedecer:

“[...] a um roteiro que é apropriado fisicamente e utilizado pelo pesquisador. Por ter um apoio claro na sequencia das questões, a entrevista semiaberta facilita a abordagem e assegura, sobretudo aos investigadores menos experientes, que suas hipóteses ou seus pressupostos serão cobertos na conversa” (MINAYO, 2006, p. 267).

Nas entrevistas as questões foram organizadas dentro de tópicos

semiestruturados, com a intenção de obter respostas às questões que se pretende

26

esclarecer, possibilitando o entrevistado se expressar livremente. Assim, as temáticas

aplicadas foram estruturadas da seguinte forma: a) Compreensão sobre os bens

patrimoniais; b) vinculações com os recursos hídricos; c) identificação dos elementos e

significados.

Foram realizadas 7 entrevistas junto ao grupo de especialistas e 70 junto ao

grupo de usuários, todas gravadas em meio digital. Como a área central apresenta uma

enorme quantidade de usuários, e o presente trabalho busca apresentar um método, o

número de entrevistas realizadas não representa nenhum tipo de amostragem, mas atende

os objetivos estabelecidos.

Para o conjunto composto por acadêmicos, buscou-se uma variação da atuação e

de campos disciplinares, com objetivo de apreender as diversas formas possíveis de se ler a

paisagem, com base nas experiências culturais de cada um. Assim foram entrevistados 1

Arquiteto, 1 Geógrafo e 1 Historiador.

Para o conjunto composto pelos usuários, as entrevistas foram aplicadas em

horários e locais diversificados do centro do Recife, sendo escolhidos pontos que estivessem

relacionados com o eixo de leitura proposto. Antes da aplicação a este grupo, uma pesquisa

teste foi realizada para verificar a eficácia das perguntas.

Com o fim das entrevistas, conclui-se o trabalho de campo e tem inicio a fase de

tratamento do material, última etapa do ciclo metodológico proposto por Minayo (2006),

onde os produtos culturais coletados foram ordenados, classificados e analisados.

O tratamento do material foi dividido em três momentos: 1) transcrição e

ordenamento das entrevistas; 2) Identificação dos elementos e seus atributos individuais; 3)

interpretação dos significados.

A transcrição e ordenamento das entrevistas ocorreram em paralelo a aplicação

das mesmas. Os resultados obtidos foram interpretados separadamente e, posteriormente,

foram comparados, visando dimensionar os dados qualitativos. Nessa direção, embora esta

pesquisa seja qualitativa, visando aferir o resultado das comparações feitas os dados foram

quantificados e, para uma melhor visualização, foram apresentados em gráficos.

Com este ordenamento, foram identificados os elementos mais relevantes que

compõem a paisagem cultural do centro do Recife a partir da análise dos conteúdos

27

existentes nos relatos orais coletados. Já os significados foram interpretados tomando como

base o método hermenêutico, que é de fundamental importância para a interpretação dos

significados que compõem a paisagem, ao colocar o pesquisador em uma posição ativa no

processo de interpretação.

Com base nisto, a pesquisa segue o esquema apresentado na figura 1:

Figura 1: Esquema da Pesquisa

Fonte: O autor, 2011.

A dissertação está organizada da seguinte maneira: No primeiro capítulo, a

reflexão busca um aprofundamento teórico, onde foi investigado o desenvolvimento da

compreensão de patrimônio, partindo do monumento isolado até chegar a categoria de

paisagem cultural, capaz de integrar vários aspectos em um único bem. Em seguida, foram

discutidas algumas das principais abordagens teóricas a respeito do conceito de paisagem

cultural, sobretudo as desenvolvidas pela Nova Geografia Cultural. Ao final, foram analisados

criticamente os métodos como a categoria é operacionalizada no âmbito internacional,

europeu e nacional, para, em seguida, propor uma forma de identificar as paisagens

culturais brasileiras, com base em alguns métodos de leitura e interpretação dos significados

dos elementos que constituem uma determinada paisagem.

O segundo capítulo apresenta uma análise de algumas propostas de

tombamentos aplicados na área central da cidade. Procura-se mostrar como o patrimônio é

compreendido ao longo dos anos nas esferas federais e estaduais, a fim de indicar as

características que orientaram a identificação dos bens.

O terceiro capítulo atende a proposta apresentada na parte teórica, e um dos

objetivos específicos, de se construir um eixo de leitura da paisagem cultural do centro do

28

Recife. Com base nisto, foi apresentado o desenvolvimento da área central da cidade em sua

relação com os recursos hídricos que a circundam. Para isto foram utilizadas diversas

narrativas e representações sobre o Recife ao longo dos séculos, como relato dos viajantes,

poemas, fotografias e registros cartográficos.

No quarto capítulo são apresentados os resultados do trabalho de campo, onde

são destacados a partir de gráficos e fotografias atuais quais os elementos mais significativos

para os grupos entrevistados. Também foi realizada a interpretação dos significados, sendo

ao final apresentado a definição da paisagem cultural do centro do Recife.

Por fim, a conclusão da dissertação apresenta as limitações e avanços do

método, ao mesmo tempo em que propõe futuras ações e trabalhos que versem sobre a

proteção, validação e avaliação deste patrimônio.

É na perspectiva de contribuir com novas formas de proteção patrimonial que

este trabalho se insere. Ele busca fornecer caminhos para que futuras ações desenvolvidas

na área central do Recife protejam as vinculações históricas, sociais, econômicas e poéticas,

estabelecidas a partir das relações entre natureza e cultura, visando a manutenção

sustentável do patrimônio da área.

CAPÍTULO 1 - DEFININDO UMA CATEGORIA

“A paisagem é um signo, ou um conjunto de signos, que se trata então de aprender a decifrar, a decriptar, num

esforço de interpretação que é um esforço de conhecimento, e que vai, portanto, além da fruição e da emoção.

A ideia é então que há de ler a paisagem”

Jean-Marc Besse, 2006, p.64

30

O presente capítulo procura delimitar os principais conceitos necessários a

alcançar os objetivos propostos. Primeiramente será apresentada como a compreensão do

patrimônio cultural partiu da ideia de monumento enquanto elemento isolado até a noção

de paisagem cultural, enquanto bem que integra vários aspectos. Em seguida será debatido

como os diversos conceitos sobre paisagem, principalmente os desenvolvidos pela Nova

Geografia Cultural, foram apropriados por algumas instituições gestoras do patrimônio,

apresentando caminhos teóricos e metodológicos elaborados acerca do tema. Por fim, o

debate destacará como a categoria da paisagem cultural contribui com a conservação

integrada, onde serão destacados métodos de interpretação que nortearão a identificação e

leitura da paisagem objeto deste estudo.

1.1. DO MONUMENTO A PAISAGEM

Monumentos, em seu conceito tradicional, representavam obras humanas

erguidas em comemoração a grandes feitos, pessoas ou crenças. Eles eram produzidos

intencionalmente para que as características das gerações atuais fossem lembradas pelas

gerações futuras.

“Por monumento, no sentido mais antigo e verdadeiramente original do termo, entende-se, uma obra criada pela mão do homem e edificada com o propósito preciso de conservar presente e viva, na consciência de gerações futuras, a lembrança de uma ação ou destino” (RIEGL, 2006, p.43)

No mesmo sentido, Choay (2006, p.18) traz uma definição de monumento

relacionado a lembrança e emoção de uma determinada geração:

“O sentido original do termo é do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere (“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva de seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas de tocar, pela emoção, uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos para rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem acontecimentos, sacrifícios, ritos ou crenças [...]”.

A compreensão do termo sofreu várias alterações ao longo do tempo. Com a

utilização e apreciação dos bens da antiguidade grega e romana, o monumento adquire na

renascença um valor histórico, instituindo o chamado monumento histórico.

Não devemos pensar que as categorias de monumento e monumento histórico

são sinônimas. Riegl (2006, p.49) mostra que o monumento é algo desejado para ser

lembrando, enquanto que o monumento histórico não é projetado para este fim. Ele assume

esta característica a partir do momento em que atribuímos um valor histórico, já que “[...]

31

não é a destinação original que confere a essas obras a significação de monumentos; somos

nós, sujeitos modernos, que lhes atribuímos essa designação”.

Apesar de algumas diferenças, estas duas concepções referem-se aos elementos

isolados construídos pelo homem e suas características históricas, artísticas e arqueológicas.

Na enorme lista de monumentos existentes não estavam presentes os elementos naturais,

as malhas urbanas de cidades antigas ou os aspectos intangíveis dos bens. Outro ponto era

que as características artísticas, históricas ou arqueológicas eram observadas, sem qualquer

associação entre elas.

Esta maneira de compreender o monumento passou por uma fase de

consagração, concluída pela publicação da Carta de Veneza. Com o advento da era industrial

e as transformações sociais e ambientais geradas, o monumento histórico passa a ser visto

como algo insubstituível, onde suas perdas são irremediáveis. Os processos de

industrialização foram tão variados entre os países, quanto a assimilação de seus impactos

sobre os monumentos históricos, o que gerou princípios de proteção diferenciados em

diversos locais (CHOAY, 2006, p.125-173). Inseridos neste contexto, as técnicas opostas de

conservação dos edifícios, estabelecidas por John Ruskin5 e Violet-Le-Duc6 com base em suas

realidades nacionais, e a posterior busca por um equilíbrio entre estas duas doutrinas

proposta por Camillo Boito7, contribuíram para a formação da conservação, muito próxima

de como a compreendemos atualmente (MUÑOZ VIÑAS, 2005).

Com a publicação da Carta de Veneza, em 1964, há uma ampliação efetiva sobre

o entendimento de quais bens devem ser alvos das práticas da conservação. O documento

produzido pelos participantes do Segundo Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos

dos Monumentos Históricos procurou rever as orientações apresentadas na Carta de

5 Defensor de um anti-intervencionismo radical na proteção patrimonial. Para o Inglês o trabalho das gerações

passadas confere a suas edificações um caráter sagrado, onde as marcas impressas pelo tempo fazem parte de sua essência, sendo assim um erro tentar recuperar uma estrutura original. Assim, a restauração significaria a maior destruição que um edifício pode sofrer (CHOAY, 2006, p.153-159) 6 O Francês defende um intervencionismo militante na conservação patrimonial, onde um edifício deveria ser

restaurado a qualquer custo, em busca de um estado completo, que talvez nem tenha existido, tomando assim uma postura idealista da arquitetura (idem.) 7 Um dos primeiros teóricos que tentou encontrar um equilíbrio nas propostas extremas de Ruskin e Viollet-le-

Duc. O arquiteto Italiano defendeu a compreensão do monumento como um documento histórico (MUÑOZ VIÑAS, 2005).

32

Atenas8, de 1931, propondo novas abordagens, frente aos problemas recentes enfrentados

pelas cidades.

Na Carta de Veneza, o monumento histórico é definido no artigo 1º da seguinte

forma:

“A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Entende-se não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural” (ICOMOS, Carta de Veneza, 1964, p.1)

Neste documento a compreensão a respeito do monumento se expande para um

entendimento mais amplo, incluindo obras humanas de menor porte, assim como as malhas

urbanas das cidades antigas. A partir desta carta há uma ampliação de três aspectos

patrimoniais: tipológica, onde novas formas são consideradas de interesse patrimonial;

cronológica, pois as etapas anteriormente desprezadas passam a ser consideradas dignas de

preservação; e geográfica, onde a noção de patrimônio se expande para além da Europa

(CHOAY, 2006).

Esta mudança de paradigma não acarreta apenas em mudanças de ordem

quantitativa, mas gera a adoção de uma perspectiva diferente na abordagem patrimonial,

ocasionando em novas formas de se intervir nos bens.

É importante destacar que nesta época a Europa ainda caminhava a passos

lentos para recuperar a destruição causada pela Segunda Guerra Mundial. Com a destruição

de bairros e até cidades inteiras, a consciência patrimonial ganhou mais força. Como aponta

POULOT (2009, p.31): “essa nova consciência de patrimonialização acompanha a promoção

de novas relíquias. Com efeito, em numerosos países, o patrimônio tornou-se um dos

desafios do desenvolvimento cultural”.

No contexto estabelecido após a Carta de Veneza, a preservação de conjuntos

urbanos torna-se possível, principalmente a partir da década de 1970 com a publicação da

Declaração de Amsterdã. Neste documento, se parte de uma compreensão ampla do

patrimônio construído, o qual procura abarcar os conjuntos como uma entidade cultural,

8 A Carta de Atenas recomenda: ”respeitar, na construção dos edifícios, o caráter e a fisionomia das cidades,

sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais” (ICOMOS, Carta de Atenas). Disponível em: http://www.icomos.org.br/cartas/Carta_de_Atenas_1931.pdf

33

não somente pela coerência de seu estilo, mas também pela marca da história dos grupos

humanos que ali viveram durante gerações.

O reconhecimento do patrimônio cultural insere-se nas políticas de gestão dos

conjuntos urbanos como algo fundamental para a manutenção da história e passa a incluir

não só os edifícios isolados de excepcional qualidade e o seu entorno, mas também todas as

áreas das cidades ou das vilas com interesse histórico ou cultural.

A Declaração de Amsterdã constitui um ponto central paras as políticas

patrimoniais Europeias e mundiais, tendo sido grande parte de suas propostas reconhecidas

no ano seguinte pela UNESCO, através da Declaração de Nairobi. As recomendações

inseridas nesta Declaração se voltam para a preservação dos conjuntos históricos, numa

época em que a expansão global das técnicas de construção ameaçava as características de

identidade local e regional. Para evitar uma possível homogeneização dos espaços, as áreas

antigas deveriam se integrar à vida cotidiana, assim como as novas criações, sem que sua

visibilidade e harmonia fossem alteradas.

Contudo, apesar destes documentos possibilitarem a compreensão do bem

patrimonial urbano, indissociável de seu contexto histórico e do ambiente em seu entorno,

ainda persistia nas políticas patrimoniais uma forte separação entre natureza e cultura. Em

1972, com a Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural, um pequeno

salto em direção a resolução desta dicotomia foi dado ao se considerar como patrimônio

cultural os lugares notáveis resultantes de obras humanas ou obras conjugadas do homem

com a natureza. Apesar deste esforço, as questões sobre paisagem, ambiente e recurso

natural ainda aguardariam para serem solucionadas (MENESES, 2002).

No texto da Convenção o patrimônio cultural está separado do natural, e a

paisagem é citada apenas como algo coadjuvante, que contribui para o valor universal

excepcional9. Como pode ser visto no 1º artigo, a paisagem é tratada como moldura de um

bem maior:

“[...] os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em virtude de sua arquitetura, unidade ou integração na paisagem, tenham um valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência” (UNESCO, 1972)

9 A compreensão do que é Valor Universal Excepcional (OUV) na própria UNESCO tem se alterado ao longo do

tempo. Jokilehto (2006) mostra que os valores aceitos pela instituição na construção das significâncias dependem da tipologia do bem e da intenção das propostas.

34

Esta concepção dicotômica do patrimônio era o reflexo de dois movimentos que

faziam parte da UNESCO: um grupo preocupado com os bens culturais que expressariam o

gênio criativo humano; outro buscava a preservação dos elementos da natureza sem a

intervenção do homem (RIBEIRO, 2007).

Contudo, este panorama já estava a caminho de ser superado com os debates

sobre sustentabilidade iniciados em 1970 e que culminaram com a publicação do Relatório

de Brundtland, onde o desenvolvimento deveria atender as necessidades das gerações

futuras no âmbito social, econômico e cultural, sem comprometer as necessidades das

gerações atuais e futuras10. A valorização do pensamento ambiental sustentável estimulou

debates em várias áreas do conhecimento, alterando diversos paradigmas anteriores e

resultando, na superação da tradicional dicotomia entre homem e natureza (ROHDE, 1994).

Em resposta a estes debates da sociedade e da observação que alguns bens

poderiam ser inscritos tanto como bens naturais ou culturais, a UNESCO estabeleceu em

1992 a categoria da paisagem cultural, a qual teria como função primordial a proteção de

forma integrada da relação estabelecida entre homem e natureza.

Para esta instituição, a paisagem cultural é definida como representativa do

trabalho conjunto entre homem e natureza, ilustrando a evolução das sociedades e

ocupações humanas através do tempo, sob a influência de oportunidades e/ou restrições

presentes no ambiente natural, bem como pelas sucessivas forças social, econômica e

cultural que nela interferem (UNESCO, 2008).

O diferencial desta proposta foi “[...] adotar a própria paisagem como um bem,

valorizando todas as inter-relações que ali coexistem” (RIBEIRO, 2007, p.40). Desta forma, há

um grande avanço no reconhecimento de que bens de interesse patrimoniais são

constituídos de forma única a partir do contexto cultural e integram os elementos naturais,

culturais e imateriais.

O desenvolvimento das concepções de patrimônio não termina com a categoria

da paisagem cultural, frente às possibilidades de utilizar novos conceitos para a proteção dos

10

O Relatório Nosso Futuro Comum é o resultado de debates acerca dos limites da produção humana e os impactos gerados sobre os bens naturais. Vários foram os momentos que contribuíram para esta discussão, entre os quais são destacados por Brüseke (1994) como anteriores ao documento de Brundtland: O Clube de Roma (1972), a Declaração de Cocoyok (1974), o Relatório Dag-Hammarskjöld (1975),

35

bens (RIBEIRO, 2011). O próprio conceito proposto pela UNESCO não é definitivo, gerando

inúmeros debates sobre sua utilização pelos gestores do patrimônio.

Neste primeiro momento, foi apresentado como o conceito de patrimônio foi

ampliado do culto ao bem isolado que separava homem e natureza, até ao estabelecimento

da paisagem cultural, enquanto bem que integra vários aspectos em um só. Em seguida,

veremos como o conceito de paisagem, sobretudo o elaborado pela geografia cultural, foi

apropriado por algumas instituições do patrimônio e como ele pode auxiliar na conservação

integrada.

1.2. PAISAGEM CULTURAL: Utilizações de um conceito

Falar em paisagem cultural pode ser algo redundante, já que ela é, em qualquer

perspectiva adotada, o reflexo de uma ou várias culturas sobre um território ao longo da

história. Porém, quando a UNESCO adjetivou a paisagem com o vocábulo “cultural”, buscou

expressar as interações humanas com o meio ambiente e a presença dos valores culturais

tangíveis e intangíveis, merecedores de proteção específica (UNESCO, 2009).

Somente em 1992 a concepção de paisagem cultural é inserida oficialmente no

âmbito do patrimônio, contudo, o conceito acadêmico é debatido desde o final do século

XVII e se mostra como um dos mais complexos de ser definido, tanto no âmbito científico

quanto no senso comum11.

No âmbito científico coube a geografia se ocupar com profundidade sobre o

conceito de paisagem. Considerada um dos temas chaves na ciência geográfica, várias

contribuições em busca de um método e de sua delimitação foram feitas por geógrafos de

escolas diversas.

A geografia proposta por Vidal de La Blache, considerado por muitos o fundador

da escola francesa, teve uma grande influência no desenvolvimento do conceito de

paisagem. Estabelecida a partir de um cruzamento de influências filosóficas, os estudos

geográficos vidalianos eram compostos por quatro idéias principais: organismo, meio, ação

humana e gênero de vida (GOMES, 1996).

11

O próprio termo parece não apresentar um consenso, sendo utilizado de diversas formas e com traduções variadas. Gomes (1996, p.237), citando Hartshorne, considera que a noção de landscape, como utilizada por alguns geógrafos, é “[...] carregada de ambigüidades e de imprecisões [...]” e que ela colocava “[...] mais problemas para a geografia do que lhe oferecia soluções”.

36

La Blache adota uma postura objetiva da paisagem, ao considerar que ela seria a

expressão da fisionomia terrestre, “um signo, ou um conjunto de signos, que se trata então

de apreender a decifrar, a decriptar, num esforço de interpretação que é um esforço de

conhecimento, e que vai, portanto, além da fruição e da emoção” (BESSE, 2006, p.64).

Com esta compreensão, a paisagem não é vista como uma mera representação

do olhar humano, mas uma construção material com uma base fundada em um sítio.

Contudo, esta postura objetiva não nega que haja importantes aspectos subjetivos

estabelecidos pelo contexto cultural de cada indivíduo, afinal a paisagem é um reflexo da

produção cultural humana, sendo por isto impregnada de valores e crenças.

Segundo Gomes (1996, p. 211), os geógrafos seguidores do pensamento

vidaliano valorizavam o contato direto com as regiões estudadas e “[...] produziam

interpretações a partir deste contato com seu objeto. A antiga tradição hermenêutica não

está muito longe do comportamento destes geógrafos, “leitores” eruditos das paisagens e

das regiões”.

Desta forma, cada construção seria feita com base no interesse da pesquisa, o

que possibilitaria leituras variadas de um mesmo fenômeno. Cada investigador iria destacar

a principal característica de uma região ou paisagem com base em verdadeiras leituras

“flexíveis”, realizadas para estabelecer como se deram as relações entre os elementos.

Assim, “para cada região, existe um movimento particular resultante das combinações

múltiplas entre os elementos que a compõem” (GOMES, 1996, p. 210).

Apenas um olhar preparado seria capaz de apreender as relações presentes na

paisagem. Os aspectos visíveis seriam observados por todos, mas apenas um olhar técnico

iria compreender como ocorrem as relações entre os elementos, compondo assim a

paisagem de aspectos subjetivos. Não se tratava de negar o visível, mas de considerar que

através da leitura dele era possível compreender as formas de organização do espaço,

estruturas, formas, fluxos, tensões, centralidades e periferias. Como aponta Besse (2006,

p.64), os geógrafos tradicionais tinham necessidade de exercer uma interpretação das

formas presentes, para encontrar as forças subjetivas que davam vida aquela paisagem. A

grande questão estabelecida por eles é “que há de se ler a paisagem”.

37

Com esta abordagem da escola francesa, iniciada por La Blache, podemos

considerar que a paisagem é objetiva: por possuir elementos concretos, ao mesmo tempo

em que é subjetiva: composta de múltiplos significados e processos, interpretados em

função da leitura realizada.

Apesar de o pensamento vidaliano ter uma grande influência na utilização da

paisagem pela UNESCO (RIBEIRO, 2010), outra corrente geográfica também exerceu um

importante papel no desenvolvimento do conceito e estabelecimento de um método de

leitura.

Geógrafos alemães tradicionais instituíram o termo paisagem cultural

(Kulturlandschaft) e paisagem natural (Naturlandschaft) para diferenciar os locais

transformados pelo homem dos que não sofreram mudanças culturais12. Estes geógrafos

tradicionais exerceram grande influência nos estudos da paisagem e foram tomados como

base por Carl Sauer em meados do século XX, quando ele estabelece o método morfológico

de análise. Para Sauer “a cultura é o agente, a área natural é o meio, a paisagem cultural o

resultado” (SAUER, 1998, p. 59). Apesar de fundamental para a criação da Geografia

Cultural, esta abordagem sofreu variadas críticas por desconsiderar os aspectos subjetivos

nas análises e adotar de um conceito de cultura considerado superorgânico13.

Além de estas críticas resultarem em um desenvolvimento do conceito de

paisagem, não faz mais sentido pensarmos o tema de uma forma tão dicotômica, quanto o

proposto pelos geógrafos alemães clássicos e pela geografia cultural tradicional (RIBEIRO,

2011). Neste sentido, o presente trabalho adota as concepções teórico-metodológicas do

movimento de renovação da geografia cultural, ou Nova Geografia Cultural, que teve início

em 1980.

Com a aproximação às ciências humanísticas, novos métodos de interpretação

da paisagem, objetivos, objetos e fontes foram adicionados a prática geográfica, em busca

de superar justamente o que o método morfológico havia deixado de lado: o caráter

simbólico. Métodos voltados para interpretação, descrição e introspecção assumem

12

Para uma melhor compreensão do tratamento dado pelos geógrafos alemães à paisagem no final do século XIX e início do século XX, consultar o trabalho de Gomes (2007). 13

Para uma melhor compreensão das críticas estabelecidas ao conceito de cultura utilizado pelos seguidores de Sauer, ler Duncan (2003).

38

importância, surgindo assim novas fontes de pesquisa como os discursos, as tradições

literárias, filosóficas, religiosas ou as artes plásticas (BESSE, 2006, p. 78).

Os adeptos a esta nova corrente consideram que para uma leitura da paisagem é

necessário interpretar os significados que ela apresenta para os diferentes grupos culturais,

visando compreender como as paisagens foram e são produzidas. Esta abordagem faz com

que eles não refutem totalmente as teorias elaboradas por Sauer, mas busquem uma

atualização de seus métodos, em oposição à analise espacial quantitativa, estabelecido no

âmbito da ciência geográfica entre as décadas de 1950 e 1970 (MELO, 2001).

Outra importante proposta levantada por esse grupo refere-se ao conceito de

cultura adotado. Enquanto para os seguidores de Sauer, a cultura era vista mais como uma

totalidade, os novos geógrafos culturais compreendem que a cultura é reproduzida por meio

de práticas sociais constituídas em uma variedade de escalas espaciais. Assim, os significados

e as práticas culturais tornam-se particulares a determinados grupos da sociedade, ao

mesmo tempo em que são passíveis de alterações e contestações (MCDOWELL, 1996, p.

164).

O conceito de cultura proposto por Clifford Geertz teve grande influência no

movimento de renovação da geografia cultural. Geertz (2008) adota um conceito semiótico

da cultura, ao acreditar que o homem é um animal amarrado a várias teias de significados

tecidos por ele mesmo em um contexto específico. Na análise etnográfica proposta pelo

autor não caberia o estudo da cidade, da vila ou do homem, sem a interpretação dessas

variadas teias de significados, produzidas pelo homem em interação com estes espaços.

Em seu trabalho ele vai contra o conceito “superorgânico” de cultura ao

considerar um erro pensar no termo como algo simplesmente objetivo ou subjetivo. Para o

autor, a cultura deve ser compreendida como as interpretações contextualizadas que

fazemos de signos específicos:

“Como um sistema entrelaçado de signos interpretáveis [...], a cultural não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade” (GEERTZ, op. cit., p.10).

Esta compreensão de cultura é uma das bases do trabalho etnográfico proposto,

onde o homem não é considerado um só, pois ele sofre várias influências do meio onde se

39

encontra, em constante transformação. Ao contrário do pensamento antropológico

tradicional, o autor procura substituir a visão estratigrafada das relações humanas, por uma

ciência sintética, onde os diversos fatores que compõem o ser humano são tratados como

variáveis dentro de um sistema de análise.

É a partir das influências desta concepção interpretativa da cultura, que uma

abordagem mais subjetiva alcança o âmbito da paisagem. Ela passa a ser concebida não

apenas por suas características materiais, mas também a partir das diversas interpretações

dos seus significados, pois “todas as paisagens possuem significados simbólicos porque são o

produto da apropriação e transformação do meio ambiente pelo homem” (COSGROVE,

1998, p. 108). A paisagem nesta abordagem “[...] não seria apenas o resultado material das

interações entre ambiente e sociedade, mas também a consequência de uma maneira

específica de olhar” (MCDOWELL, 1996, p. 176).

Denis Cosgrove e James Duncan estão entre os principais autores dessa nova

corrente geográfica. O primeiro autor se baseia em uma aproximação entre a teoria

materialista dialética e as interpretações da paisagem. Para Cosgrove (2003) tanto as ideias

marxistas quanto a geografia cultural moderna têm início em um mesmo momento

conceitual, ambas levantam a bandeira contra qualquer determinismo ou explicação linear

causal, insistindo em caracterizar a relação entre seres humanos e natureza como um fato

histórico.

Cosgrove propõe unir a Geografia Cultural Humanista a Geografia Social Marxista

para em conjunto, explorarem o mundo dos homens e as geografias da mente (MELO, 2001).

A paisagem geográfica seria uma expressão humana intencional, composta de muitas

camadas de significados e que poderia ser classificada em paisagens da cultura dominante e

paisagens alternativas. A primeira procura imprimir sua marca, ser vista e reconhecida pelo

mundo enquanto que a segunda é produzida por grupos menores que não tem domínio do

território e, logo, suas marcas e significados não são considerados no momento da leitura

(COSGROVE, 1998).

James Duncan (1990) parte da clássica concepção da leitura de paisagem para

dar um passo adiante na analise da relação entre paisagem e a manutenção do poder,

produzindo uma maneira especifica de interpretação a partir dos discursos produzidos.

40

Claramente influenciado pelos trabalhos de Clifford Geertz, ele aborda que a

paisagem deve ser lida como um texto considerando-a uma produção cultural, diretamente

ligada com a reprodução do poder político. O Autor propõe que para se interpretar a

paisagem como um texto deve-se, inicialmente, compreender o vínculo das pessoas com o

local e como suas leituras contribuem para a política de interpretação; em seguida é

necessário apreender quais os significados que a paisagem tem para os atores externos e

internos através do discurso realizado por eles; e por fim, considerar um sistema de

significação implícito à paisagem, onde o papel do investigador enquanto interprete externo

tem grande importância (MELO, 2003).

A partir de uma abordagem antropológica, Duncan (1990, p.17) desenvolve uma

interpretação dos textos produzidos por diversos setores de uma sociedade, em uma época

e local específico, onde, para ele:

“[...] paisagens, são um dos elementos centrais em um sistema cultural, pois, como um conjunto ordenado de objetos, um texto, age como um sistema significante através do qual um sistema social é comunicado, reproduzido, experimentado e explorado”

Já que a paisagem tem este caráter central em um sistema cultural, sua

compreensão depende da interpretação que se faz das partes do sistema. Assim, “[...] para

entendermos a natureza relacional do mundo, precisamos “preencher” muito do que é

invisível; ler os subtextos que estão para além do texto visível” (op. cit., p. 14).

A forma de leitura destes textos e seus subtextos propostas por Duncan não

pode ser realizada da maneira tradicional proposta pela geografia, onde a observação

objetiva era valorizada. Ele compartilha as ideias de Michel Foucault (2002, p.43) onde uma

observação inocente não é capaz de traduzir os textos visíveis ou de que “O mundo é

coberto de signos que é preciso decifrar [...]. Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca

visível ao que se diz através dela”.

Para realizar esta interpretação o autor focou na significação e na retórica da

paisagem. A significação da paisagem diz respeito ao que determinado local representa para

grupos específicos: habitantes locais; habitantes não locais (estrangeiros); e o próprio

pesquisador. Interessado nos significados que os textos poderiam exprimir, foram realizados

questionamentos perante os documentos escritos pelo alto poder religioso e político do

reino de Sri-Lanka, no final do século XIX (DUNCAN, 1990).

41

Para a interpretação dos discursos coletados foi utilizado o método

hermenêutico. Este método procura transformar um elemento distante em próximo através

de um discurso racional, orientado pelo diálogo entre o pesquisador e o objeto de estudo,

para que ele “nos fale” em uma língua compreensível. Com a reflexão posta a partir de uma

atitude hermenêutica, o estudo de um objeto desconhecido transforma-se na interpretação

de um objeto próximo e familiar (SANTOS, 1989).

A hermenêutica possibilita a interpretação de textos através de metáforas que

transformam a ciência em algo palpável para o senso comum e vice e versa. Ou, para

retomar novamente Foucault (op. cit, p. 39): “Chamemos hermenêutica o conjunto de

conhecimentos e de técnicas que permitem falar os signos e descobrir seu sentido [...]”

Já a retórica da paisagem seriam os mecanismos pelos quais as significações da

paisagem tomam lugar no território. A partir da retórica, podem-se compreender os

processos pelos quais a paisagem pode ser lida como um texto e, assim, funcionar como um

instrumento comunicativo que reproduz a ordem social (DUNCAN, 1990, p.19-22).

A concepção de paisagem adotada pela nova geografia cultural tem grande

influência na utilização do conceito pela UNESCO, assim como a própria ideia de paisagem

enquanto fisionomia terrestre, proposta pela geografia tradicional. Como mostra Ribeiro

(2007), com o estabelecimento de três subcategorias da paisagem houve uma tentativa de

englobar diferentes correntes de pensamento na categoria. Enquanto uma apresenta uma

forte influência geográfica tradicional através da compreensão evolutiva historicista, a

paisagem associativa utiliza-se da compreensão dos significados que uma área tem para a

população, apresentada pela Nova Geografia Cultural. Além destas, as paisagens claramente

definidas parecem estar muito mais ligadas a uma vertente paisagística, ligada aos

arquitetos da paisagem.

Tanto o conceito de paisagem proposto pela geografia, quanto a categoria

instituída pela UNESCO apresentam a abordagem integrada das relações estabelecidas entre

os aspectos culturais, naturais e subjetivos como algo primordial. No caso da abordagem

patrimonial, esta compreensão representa um grande salto ao tratar de forma integrada

bens culturais, naturais e imateriais. Porém, esta não é a única organização que utiliza o

42

conceito como um instrumento patrimonial. Dentre algumas outras14, uma das mais

significativas é proposta pela Convenção Europeia da Paisagem.

Com parâmetros mais abrangentes das instituídas pela UNESCO, a Convenção

tem o objetivo principal de introduzir regras para proteção, gerenciamento e planejamento

das paisagens europeias, constituindo um elemento fundamental para a gestão territorial.

Para a Convenção, a paisagem “[...] significa uma área, como percebida pelas

pessoas, cujo caráter é o resultado da ação e interação de fatores naturais e / ou humanos”

(COUNCIL OF EUROPE, 2000). Diferente da UNESCO cujas paisagens a serem protegidas têm

que apresentar um valor patrimonial universal de excepcionalidade, nenhuma distinção é

feita entre paisagem natural e cultural, tão pouco entre paisagens excepcionais e cotidianas,

rurais ou urbanas.

Esta perspectiva de abordagem se alinha com as concepções geográficas.

Primeiro, a paisagem é uma área que contém características físicas, que expressam a ação

humana, logo, pode ser gerenciada. A paisagem existe também a partir de como é percebida

pelas pessoas, e por isto suas características simbólicas devem ser consideradas em sua

gestão. Terceiro, a paisagem une a contínua interação entre a ação humana com os fatores

naturais existentes em determinado território (ANTROP, 2006b).

O documento tem como objetivo promover a proteção, gestão e planejamento

das paisagens Europeias, gerindo as mudanças ocasionadas por problemas como o aumento

dos espaços urbanos em detrimento dos rurais, impactos ambientais gerados pelos avanços

da agricultura, perda de identidade cultural frente à globalização, dentre outros.

Nos documentos europeus a paisagem é vista como algo dinâmico, merecedora

de atenção especial quanto a sua gestão e permanência visando às gerações futuras. Além

disto, nestes documentos não há uma valorização apenas das paisagens com bases agrícolas

em detrimento das características de ambientes urbanos. A convenção busca pela

sustentabilidade dos elementos e significados que torna o local importante para uma

população, considerando assim o tema como algo mutável ao longo do tempo.

14

Como a preservação da paisagem cultural está relacionada a proteção do patrimônio cultural e natural, diversas organizações estão envolvidas na operacionalização da categoria: The World Conservation Union (IUCN), The International Council of Monuments and Sites (ICOMOS), The International Association of Landscape Ecology (IALE), The International Federation of Landscape Architects (IFLA), entre outras (ANTROP, 2006a).

43

No Brasil, apesar de ser institucionalizada em 2009, com a publicação da portaria

Nº 127 de 30 de Abril que estabelece a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira, a paisagem

já era reconhecida pelo IPHAN15, sendo vista como uma moldura ao redor do monumento e

não como o bem em si. Com a criação da Chancela, o IPHAN reconhece que:

“os fenômenos contemporâneos de expansão urbana, globalização e massificação das paisagens urbanas e rurais colocam em risco contextos de vida e tradições locais em todo o planeta” e que os “instrumentos legais vigentes que tratam do patrimônio cultural e natural, tomados individualmente, não contemplam integralmente o conjunto de fatores implícitos nas paisagens culturais”

16.

A preservação dos bens ocorreria através de um pacto público entre a sociedade

civil, o poder público e os diversos níveis da iniciativa privada, que se tornariam responsáveis

pela identificação, monitoramento e proteção da área chancelada.

Diferente do tombamento, a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira reconhece

o caráter dinâmico da cultura imbuída na ação humana, como fundamental para a

preservação do bem, sendo um reflexo de como a compreensão patrimonial atual está

voltada para a manutenção das mudanças de forma orientada, e não para a cristalização do

bem.

O documento brasileiro adota uma compreensão ampla da paisagem, indo além

dos instrumentos tradicionais ao não necessitar de uma definição de polígonos, bastante

utilizados na proteção dos centros históricos. Tomando como base o conceito geográfico da

paisagem, esta não poderia se limitar a uma área restrita, indo além de limites políticos

administrativos. A preocupação é na preservação dos aspectos que tornam determinado

local significativo para uma população, a partir de um eixo de leitura especifico.

Um exemplo destas posturas pode ser visto no primeiro bem chancelado com

base na paisagem cultural brasileira. Em 2011, quando o conselho consultivo do IPHAN

chancelou os bens relacionados à imigração Europeia em Santa Catarina deu um importante

passo para as políticas públicas de patrimônio cultural. A proteção engloba diversos tipos de

bens patrimoniais em várias localidades diferentes do Estado e estimula a criação de um

15

Ribeiro (2007) dá vários exemplos da utilização da paisagem pelo IPHAN desde a criação do instituto até os dias atuais. 16

Portaria 127 de 30 de Abril de 2009 - Chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1070

44

roteiro turístico nacional baseado na imigração, como forma de garantir a geração de renda

e manutenção dos elementos importantes à área17.

Apesar de representar um grande avanço, a Chancela é apenas mais um

instrumento, que deve ser pensando de forma integrada às práticas de tombamento e

registro cultural. Além disto, a portaria necessita de um aparato legal que a torne realmente

efetiva para a política de patrimônio, ausente ainda hoje na legislação brasileira.

1.3. OPERACIONALIZANDO A CATEGORIA

Mesmo com a crescente utilização da paisagem pelas instituições que têm como

foco a proteção patrimonial, ainda falta uma clara definição de como converter o

desenvolvimento teórico em diretrizes que auxiliem na conservação. Próxima de completar

20 anos de sua institucionalização internacional, ainda há questionamentos sobre como

definir uma paisagem cultural, que elementos devemos proteger e como podemos

desenvolver ações efetivas para manter os aspectos importantes.

Talvez, estas questões sejam resultado das diversas concepções a respeito do

tema. Segundo Antrop (2006b, p. 33) “[...] não é de se surpreender que as abordagens sobre

paisagem sejam tão amplas e nem sempre claramente definidas. A maioria dos grupos vê

paisagens diferentes ao lidar com as mesmas áreas”. Mesmo com várias possibilidades

existentes em função das diversas acepções dado ao termo, algumas concepções em torno

da paisagem são aceitas pela maioria, enquanto categoria de estudos científicos.

O primeiro consenso da paisagem é que ela muda constantemente. Meneses

(2002, p.53) considerou que “[...] a paisagem é um organismo vivo, orgânico, dinâmico,

ainda que possa incluir objetos inorgânicos (naturais ou antrópicos) de maior estabilidade”.

No mesmo sentido, para Antrop (2005, p.22) as “[...] paisagens sempre mudam porque são a

expressão da interação dinâmica entre as forças naturais e culturais no ambiente”.

Outro consenso do conceito de paisagem é seu tratamento integrado dos fatores

naturais, culturais e subjetivos. Desde Alexander Von Humboldt até as utilizações mais

recentes do conceito, a paisagem é vista como a união dos diversos fatores sociais e naturais

de uma área.

17

Termo de cooperação técnica. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/portal/baixaFcdAnexo.do?id=1758

45

Sauer (1998, p.22), em sua abordagem da paisagem considerada tradicional,

observou que:

“Os objetos que existem juntos na paisagem existem em inter-relação. Nós afirmamos que eles constituem uma realidade como um todo que não é expressa por uma consideração das partes componentes separadamente”.

MCDOWELL (1996, p.175), ao tratar das transformações que passou a ciência

geográfica nos anos de 1960 e 1970, afirmou que a Geografia Humanista representa um elo

com a obra de Sauer, onde uma das características é a forma como a paisagem é

apreendida, sendo levada em consideração a sua totalidade, de uma forma holística. A

Geografia Humanista iria além das obras geográficas tradicionais ao tratar a paisagem a

partir da inserção dos aspectos imaginários, mantendo seu caráter integrador.

Da mesma forma, Ribeiro (2007, p. 111), ao tratar o tema e suas vinculações com

o patrimônio, observou que:

“A grande vantagem da categoria de paisagem cultural reside mesmo no seu caráter relacional e integrador de diferentes aspectos que as instituições de preservação do patrimônio no Brasil e no Mundo trabalharam historicamente de maneiras apartadas. É na possibilidade de valorização da integração entre material e imaterial, cultural e natural, entre outras, que reside a riqueza da abordagem do patrimônio através da Paisagem Cultural”

Neste sentido a paisagem deve ser compreendida como algo complexo, maior

que a soma de seus elementos. Isto indica que todos os elementos, materiais ou imateriais,

estão relacionados e compõem um sistema onde cada um é importante não por suas

características próprias, mas em função do contexto o qual se insere (ANTROP, 2006).

Portanto, o conjunto de signos de uma paisagem é composto por elementos

naturais e culturais, objetivos e subjetivos, que, devido sua relação direta com a cultura

humana, estão sempre em mudança, numa constante luta sem vencedores entre elementos

fugazes e duradouros.

No entanto, o caráter dinâmico e holístico da paisagem trazem, aparentemente,

alguns problemas para a utilização da categoria no âmbito patrimonial. Primeiro, se a

paisagem muda ao longo do tempo, o que devemos manter para as gerações futuras? Em

segundo lugar, se a paisagem une os aspectos naturais, culturais e imateriais, como

podemos efetivamente trabalhar com todos estes elementos de forma integrada? Em

terceiro lugar, como podemos trabalhar com diferentes narrativas possíveis?

46

Diante destas questões, alguns esforços têm sido desenvolvidos em busca de

operacionalizar o conceito. Segundo a UNESCO (2009, p.33), a conservação de uma

paisagem cultural deve estar voltada para a gestão da mudança:

“O propósito da gestão das paisagens culturais inscritas na Lista do Patrimônio Mundial é proteger o valor universal excepcional para as gerações presentes e futuras. A gestão tem como papel orientar as mudanças na paisagem cultural, mantendo os valores importantes”

No mesmo documento, a UNESCO apresentou seis princípios que devem orientar

os trabalhos desenvolvidos para proteção das paisagens culturais. São eles: 1) as pessoas

associadas com a paisagem cultural são os principais stakeholders para a gestão; 2) Uma

gestão bem sucedida é inclusiva, transparente e ações são modeladas através do diálogo e

acordo entre os stakeholders; 3) os valores da paisagem cultural estão baseados na

interação entre as pessoas e o meio ambiente, e o foco da gestão está nesta relação; 4) A

gestão deve estar pautada na orientação da mudança para manter os valores da paisagem

cultural; 5) A gestão das paisagens culturais deve ser integrada em um contexto amplo; 6)

uma gestão bem sucedida contribui para uma sociedade sustentável.

Observando estes princípios podemos notar duas características da

compreensão do patrimônio. Primeiro que a gestão das paisagens deve ser integrada em um

contexto mais amplo. Este princípio mostra como o patrimônio não é mais visto como uma

ilha isolada, mas são partes de um “sistema ecológico com ligações culturais em uma área

maior” (UNESCO, 2009, p. 36).

Outro importante ponto destacado é a relação entre patrimônio e

sustentabilidade, característica da paisagem cultural enquanto categoria. Segundo este

princípio, a gestão deve ser culturalmente e ecologicamente apropriada, além de

proporcionar benefícios econômicos para os usuários diretos, sem afetar a relação destes

com o meio (idem.).

Apesar destes princípios utilizados pela UNESCO serem amplos e possíveis de

aplicação a qualquer paisagem cultural, é observado na instituição uma presença de bens

inscritos com base em seus aspectos naturais, ou relacionados as comunidades tradicionais.

Assim, há uma necessidade de expandir a categoria visando a inclusão das cidades de porte

médio ou mesmo áreas metropolitanas (FOWLER, 2003; ANTROP, 2006a; RIBEIRO E

AZEVEDO, 2010).

47

Esta limitação da utilização do conceito restringe sua utilização e gera novas

categorias, que talvez não fossem necessários. Entre estas novidades resultantes da

associação da paisagem a locais bucólicos ou tradicionais, está a categoria da Paisagem

Urbana Histórica (Historic Urban Landscapes – HUL). O debate sobre a criação desta nova

categoria é reveladora da incapacidade da instituição de reconhecer que nas grandes áreas

urbanas também há uma forte integração entre homem e meio.

As Paisagens Urbanas Históricas são compreendidas a partir das alterações no

entendimento do patrimônio, relativas as mudanças na forma de tratar o bem: de um bem

estático compreende-se o patrimônio como dinâmico; de um objeto isolado, como algo

integrado. Além disto, a nova categoria procura superar a compreensão de áreas históricas

como um simples grupo de edificações ou um patrimônio imobiliário, aceitando que mesmo

uma Paisagem Urbana Histórica pode ser considerada um sítio representativo da criatividade

humana que apresenta vestígios da história de determinada ocupação (JOKILEHTO, 2009).

Esta nova categoria surgiu a partir das observações de que a gestão dos centros

históricos é caracterizada pelo dinamismo ao invés de uma noção mais estática, onde a

noção de HUL poderia suprir as necessidades de trabalhar com locais que são verdadeiras

testemunhas de acontecimentos passados (OERS, 2006).

Diante do exposto, esta concepção não reconhece que toda Paisagem Cultural já

é em si um bem único, que valoriza o pensamento holístico e necessita de ações de gestão

visando a conservação para manutenção de valores reconhecidos e validados como

universais. Além disto, a paisagem cultural compreendida tradicionalmente pela UNESCO já

é em si uma paisagem histórica, pois ela apresenta o acumulo de traços da ação humana ao

longo do tempo. Sendo assim fica a pergunta: porque uma área urbana não poderia ser

reconhecida como bem patrimonial pela UNESCO, segundo a categoria de paisagem

cultural?

No âmbito da Convenção Europeia da Paisagem, alguns documentos foram

produzidos pelos países signatários como forma de inserir a paisagem em suas políticas de

planejamento. Destacam-se os trabalhos produzidos pelo Reino Unido e Espanha para

identificação, classificação e avaliação das paisagens nacionais.

48

O documento Inglês, intitulado Landscapes Character Assessment Guidance for

England and Scotland, é destinado aos órgãos estaduais de planejamento e gestão, além de

organizações não governamentais e instituições privadas que estão envolvidas com as

transformações da paisagem. Como um verdadeiro guia, o documento apresenta a

metodologia para aplicar decisões a partir da caracterização das paisagens, podendo realizar

uma significativa diferença a proteção do meio ambiente e favorecer o desenvolvimento

sustentável de uma determinada área (SWANWICK, 2002).

Já o Catálogo de Paisagem foi elaborado para uma região especifica da Espanha.

A paisagem é conceituada como a fisionomia geográfica de um território com todos seus

elementos naturais e antrópicos, além dos sentimentos e emoções que despertam no

momento de sua contemplação (NOGUE; SALA, 2006).

O documento utiliza o conceito de “Unidade de Paisagem” como maneira de

definir territórios com característica dominantes. Unidades de Paisagens baseiam-se

principalmente sobre os elementos estruturadores do território (montanhas, rios, rede

rodoviária, etc.) e sua organização (terrenos agrícolas, florestais, urbanos, etc.), mas ao

mesmo tempo consideram que o cenário tem certa dinâmica, contribuindo para moldar sua

imagem atual. A natureza da Unidade dependerá, então, da combinação dos elementos

físicos, naturais e culturais, com a relação estabelecida entre as pessoas e o meio (NOGUE e

SALA, 2006).

O processo de construção da paisagem proposto pelo documento espanhol é

dividido em cinco etapas: 1) identificação e caracterização da paisagem, onde a partir da

combinação de variáveis paisagísticas diversas são construídas unidades de paisagem as

quais serão atribuídas valores que orientarão as ações aplicáveis; 2) Avaliação da paisagem,

onde são observadas quais as principais ameaças e oportunidades que determinada

paisagem apresenta; 3) Definição dos objetivos de qualidade paisagística, onde serão

escolhidas através de consulta pública quais ações serão executadas; 4) Estabelecimento de

medidas e propostas de ações; e, por fim, 5) estabelecimento de indicadores que auxiliem

na avaliação do desenvolvimento da paisagem.

A principal vantagem deste trabalho é considerar que sítios com bases urbanas

podem ser geridos a partir da ideia de paisagem, diferente do realizado pela UNESCO. O

49

processo de gestão parte da identificação das formas significativas, até a elaboração de

indicadores para avaliação da paisagem de uma área urbana.

Independente de qual metodologia será adotada, qualquer trabalho realizado

tendo como objeto a paisagem cultural, deve definir claramente o conceito a ser utilizado,

qual método de leitura será aplicado e qual aspecto se deseja proteger (RIBEIRO, 2011).

Desta forma, o eixo de leitura da paisagem é construído com base em

representações do território, realizadas em épocas passadas. Estas representações são

produtos culturais de grande valor para a interpretação das relações ocorridas no local, pois

são produtos culturais que expressam a maneira de ver de grupos específicos. Assim,

representações da paisagem de uma época são presentes em mapas históricos, relatos de

viajantes, poemas, músicas e fotografias antigas.

Neste contexto, o método de leitura deste trabalho será feito através de uma

narrativa. Para Cosgrove (1993, apud MELO, 2003), a narrativa é “a habilidade sintética de

selecionar e entrelaçar teoria e evidência dentro de convincentes representações de

momentos históricos e geográficos específicos”. Segundo Daniels (1997 apud MELO, 2003), a

narrativa é um método e, como forma de explanação, é parte da experiência cotidiana. Ela

expressa a dialética da descoberta e da construção envolvendo tanto a mediação entre a

visão do narrador, e dos participantes na história construída pelo narrador, como também

entre os incidentes particulares e os temas gerais. Nesse sentido, a interpretação e o

julgamento são componentes da narrativa e não ações a serem executadas antes ou depois

de as evidências terem sido coletadas e processadas.

Quando construímos nossa narrativa sobre uma determinada paisagem,

relacionamos representações do território de épocas distintas, mas que continuam existindo

no espaço. Estas diversas narrativas dialogam entre si, e funcionam como verdadeiras fontes

do saber histórico e cultural do espaço. A partir da construção de uma narrativa atual, os

elementos presentes na paisagem, seus atributos e processos, bem como seus significados,

podem ser identificados.

Uma paisagem é composta por elementos, atributos e processos, semelhante as

composições dos centros históricos. Zancheti (2009, p.2) compreendeu os objetos dos sítios

urbanos como: “[...] idênticos aos artefatos, compreendidos como entidades físicas, com um

50

substrato material, que foram alterados ou selecionados por seres humanos”, além dos

objetos não materiais que transmitem informações patrimoniais.

Os processos são as características que geram dinâmica ao local, que tornam o

ambiente vivo, em constante transformação através das ações humanas. Como exemplos de

processos significativos, podemos citar os rituais religiosos em Kandy, no Sri Lanka; as

formas de utilização dos recursos naturais em Matera, Itália; ou as atividades religiosas em

Olinda.

Porém estes elementos e processos não são significativos por si só. Eles não

podem ser considerados de interesse patrimonial por suas características físicas ou simples

presença no local18. Eles transmitem significados àqueles que os utilizam através de seus

atributos. Segundo Zancheti (idem.), atributos podem ser materiais ou imateriais, e são

todas e qualquer características de um objeto reconhecidas por uma população como

importante.

A definição de uma paisagem cultural tem semelhanças com esta compreensão.

Seus objetos devem ser culturais, naturais e imateriais, coexistindo num único lugar, em

uma relação que vai além da localização espacial. Os processos considerados para sua

dinâmica podem ser tanto resultantes de aspectos naturais quanto de intervenções

humanas, contanto que sejam definidores de sua fisionomia.

Já os atributos têm um papel fundamental na operacionalização da categoria.

Considerando as propostas teóricas do conceito, um local somente pode ser tratado como

uma paisagem cultural se seu atributo principal for a relação entre sociedade e natureza. Ou

seja, se os grupos envolvidos reconhecerem o território como sendo local onde um processo

histórico, econômico, social e simbólico das relações entre sociedade e meio ambiente foi

estabelecido ao longo do tempo.

Esta concepção permite uma operacionalização da categoria. A partir disto, os

elementos e processos que compõem a paisagem estariam em constante mudança, cabendo

18

Trabalhos que adotam as teorias tradicionais da conservação podem aceitar que algum objeto mereça ser conservado por alguma espécie de valor inerente ao bem. Contudo, trabalhos pautados em uma teoria contemporânea da conservação consideram que os objetos não têm valores patrimoniais intrínsecos, mas que estes são atribuídos em função dos diversos significados transmitidos para as pessoas como base na negociação entre diversos stakeholders. Sobre esta nova perspectiva da pratica da conservação, consultar Avrami et al. (2000), Mason (2002) e Muñoz Vinas (2005).

51

aos gestores desenvolverem ações sobre eles, em busca da manutenção do atributo que a

categoriza.

Todo este processo deve ser iniciado com a construção de um eixo de leitura. A

partir dele há a definição de quais elementos constituem a paisagem. Os elementos

formadores de uma paisagem seriam aqueles que contribuem para a leitura do eixo

construído, levando em consideração seus processos históricos naturais e sociais.

Quando não há uma definição sobre qual narrativa se deseja realizar a leitura da

paisagem, as ações de conservação se transformam numa mera descrição dos elementos

que se considera importante. “Sem um método ou um eixo central que a oriente, nela, não

há um traço de leitura e a única coisa que aparentemente liga os elementos é sua

coexistência espacial” (RIBEIRO, 2011, p. 10).

Sem a definição prévia do eixo central, o gestor vai, inevitavelmente, cair no erro

da descrição exaustiva de elementos, processos e atributos. Ele irá apresentar quais são os

elementos materiais e imateriais, com base em seus conhecimentos prévios, como eles são

vistos pela população e quais os processos mais significativos ocorrem, porém não irá

compreender como aquela paisagem se constituiu a partir das relações entre estes aspectos.

Com base na abordagem adotada, uma nova interpretação de uma paisagem

pode ser feita. Assim, a escolha do eixo norteador irá por si só delimitar quais elementos são

de interesse patrimonial e devem ser geridos de forma diferenciada, em busca de manter os

atributos gerados a partir da relação do homem com o meio.

Na busca de construir esta narrativa, o terceiro capítulo trará de forma prática

uma leitura da paisagem do centro do Recife, onde será abordado como o homem e a

natureza estabeleceram uma relação na cidade, ao longo de seu processo de formação,

expressa ainda hoje na fisionomia do território.

Após debater sobre estes apontamentos teóricos, o segundo capítulo irá

apresentar criticamente as principais características de alguns instrumentos federais e

estaduais aplicados na área central da cidade do Recife para a proteção do patrimônio

cultural, realizados em épocas e contextos variados.

CAPÍTULO 2 - ENTRE PROTEGER E ESQUECER: Os tombamentos aplicados no

centro do Recife

“Não temos mais a liberdade de esquecer, pois isto seria um crime”

Henri-Pierre Jeudy, 2005, p.15

53

O presente capítulo tem como objetivo analisar as aplicações de instrumentos de

proteção na área central do Recife. Nele serão observadas as características valorizadas na

proteção dos bens e quais outras não foram consideradas pelas instituições protetoras do

patrimônio cultural.

Serão analisados os tombamentos aplicados na área, já que este constitui o

principal instrumento de proteção patrimonial utilizado no centro do Recife. Assim, o foco

estará voltado para os pareceres conclusivos e processos de tombamentos, disponíveis nos

acervos do IPHAN e da FUNDARPE.

Desta forma, o presente capítulo está subdividido pela analise crítica das ações

desenvolvidas nos âmbitos federal e estadual, com a finalidade de observar as características

dos documentos inseridos nestas instituições. Não foram analisados todos os pareceres e

processos existentes sobre a área, pela extensão necessária para realizar o estudo de todo o

material, bem como em função da disponibilidade dos mesmos. No entanto, foram

selecionados exemplos que expressam bem os critérios adotados nos instrumentos para a

proteção na área central do Recife.

Observou-se que em função da época e do contexto na qual a política

patrimonial está inserida, determinados elementos foram considerados merecedores de

proteção em função de suas características morfológicas visíveis, enquanto outros não

foram considerados nesta perspectiva, ficando sem proteção ou reconhecimento legal.

2.1 TOMBAMENTOS DO ÂMBITO FEDERAL

O artigo 216 da Constituição Federal estabelece em seu parágrafo 1º que:

“O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” (BRASIL, 1988)

Apesar das diversas formas de proteção instituídas na lei, o tombamento tem

sido o principal instrumento utilizado pelo IPHAN para proteger e reconhecer o patrimônio

cultural brasileiro.

Este instrumento contém um conjunto de procedimentos administrativos no

qual o Poder Público declara o valor cultural de um bem móvel ou imóvel, inscrevendo-os no

respectivo Livro do Tombo, com base nos atributos reconhecidos como importantes para a

54

manutenção de seu valor patrimonial. Existindo desde o decreto lei nº 25, de 30 de

novembro de 1937, a organização da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional

considera em seu artigo 1º que:

“Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico ou artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata o art. 4º desta lei” (grifo nosso).

Observa-se que para um bem ser integrante do patrimônio histórico, ele deve

obrigatoriamente estar inserido em algum Livro de Tombo, invalidando outros instrumentos

como formas de reconhecimento do patrimônio nacional.

Os quatros Livros de Tombo formalizados no decreto lei são os mesmo válidos

até hoje:

“1) no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, as coisas pertencentes às categorias de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular[...];

2) no Livro do Tombo Histórico, as coisas de interesse histórico e as obras de arte histórica;

3) no Livro do Tombo das Belas Artes, as coisas de arte erudita, nacional ou estrangeira;

4) no Livro do Tombo das Artes Aplicadas, as obras que se incluírem na categoria das artes aplicadas, nacionais ou estrangeiras.”

Ribeiro (2007, p.68-100) apresentou como a inscrição nos Livros de Tombo foi

realizada pelo IPHAN sob a perspectiva da paisagem cultural, desde a criação da instituição

até momentos mais recentes. Apesar de inicialmente valorizar a arte barroca e os

monumentos individuais, sendo os bens inseridos em sua maioria no Livro de Belas Artes, a

partir da década de 1960 as maiorias dos tombamentos foram aplicados nos conjuntos

urbanos, seguindo a orientação internacional com a publicação da Carta de Veneza,

inserindo os bens nos Livro Histórico e no Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

A atuação do IPHAN no estado de Pernambuco segue esta tendência. Se de inicio

foram protegidas igrejas e antigas fortalezas militares, após 1968 com a proteção do

conjunto urbanístico e paisagístico de Olinda houve uma mudança nas ações.

Na cidade do Recife, as ações da instituição federal mantêm a atribuição de valor

baseada nos aspectos artísticos e culturais observados nos bens isolados. Com esta

perspectiva foi aprovado em 14/03/1938 o tombamento da Capela Dourada, do claustro e

55

da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco, constituindo o primeiro bem localizado na

capital pernambucana inscrito em um Livro de Tombo.

No decorrer do ano de 1938 treze outros monumentos foram tombados pelo

IPHAN com a inscrição no Livro de Belas Artes, dos quais apenas três foram

simultaneamente inscritos no Livro Histórico. Os três bens aos quais foi atribuído um valor

histórico simultâneo ao seu valor artístico foram: Os fortes do Brum e das Cinco Pontas; e o

Conjunto Religioso do Carmo.

Observa-se que na década de 1930, a atuação do IPHAN na cidade do Recife

voltou-se em sua maioria para os monumentos religiosos, representantes do estilo barroco,

em busca de valorizar o que seria um “[...] representante de uma arte e cultura

autenticamente brasileiras, construídas a partir de um modelo europeu, mas reapropriado e

reinventado pelos nacionais” (RIBEIRO, op. cit., p. 73).

O tombamento da Igreja de São Pedro dos Clérigos pode ser destacado como

uma das formas de valorização da arte barroca, enquanto bem de expressão tipicamente

nacional. A Igreja e seu conjunto arquitetônico, revalorizados a partir dos escritos de

Gilberto Freyre (2007, p.104) que considerava a construção ser “[...] uma das igrejas mais

românticas do Brasil [...]” com “[...] torres, das mais bonitas que tem a cidade.”, foi inscrita

no Livro de Belas Artes em 1938, porém apenas em 1978 seu conjunto foi reconhecido como

de valor, indicando a tendência internacional pós Carta de Veneza.

A partir de 1949 a inserção dos bens no Livro Histórico torna-se mais comum. Ao

observar o parecer escrito por Lúcio Costa para a proteção do Teatro de Santa Isabel

(FIGURA 2), notamos o reconhecimento histórico e social como forma de justificar a

proteção para além dos aspectos artísticos. O arquiteto afirma que o bem tem interesse

artístico limitado, porém não faltaria “[...] interesse do ponto de vista histórico e social,

relacionado como está com a significativa experiência americana do engenheiro Vauthier e

com a própria vida e o desenvolvimento urbano da cidade.” justificando a proteção como

forma de “[...] impedir as obras de adaptações agora pretendidas.”19

19

Parecer integrante do processo 401 – T- 49, assinado em 05 de setembro de 1949

56

Figura 2: Fachada do Teatro Santa Isabel, localizado na Praça da República.

Fonte: autor, 2011

Tombar a arquitetura religiosa continuaria a ser a principal ação do IPHAN no

município do Recife. Contudo, nota-se um aumento significativo na proteção de palácios,

palacetes e prédios que constituem exemplares arquitetônicos notáveis. Dentre estes

exemplos, podemos destacar o tombamento do Ginásio Pernambucano, edificação

localizada a Rua da Aurora, no Bairro de Santo Amaro.

Considerado pouco expressivo individualmente, o prédio do Ginásio

Pernambucano foi protegido em função de seus valores “[...] ambientais, históricos, culturais

e utilitários [...]” para o desenvolvimento histórico do Brasil. O parecer conclusivo, produzido

pelo arquiteto Antonio Pedro de Alcântara, indicou os atributos que expressariam os

respectivos valores, havendo uma longa descrição sobre a característica arquitetônica do

bem20.

Dentre os atributos, é destacada pelo arquiteto a localização da edificação às

margens do rio Capibaribe, a biblioteca com grande número de livros raros, o museu de

20

Parecer integrante do processo 1.010 – T- 83, assinado em 13 de janeiro de 1984

57

história natural; bem como a construção em estilo neoclássico. Apesar do tombamento do

edifício ser representativo da mudança de visão dentro do IPHAN ao conferir importância

aos valores históricos e sociais, os possíveis valores ambientais parecem ter sido deixados de

lado frente as características artísticas.

A ausência dos valores ambientais na proposta do tombamento do Ginásio

Pernambuco pode ser considerada um reflexo do pensamento vigente a época da década de

1980, quando as reflexões sobre sustentabilidade e a compreensão de que homem e

natureza compõem um grupo único davam os passos iniciais. Contudo, o mesmo não

poderia ser admitido no que tange a proposta de tombamento do bairro do Recife, realizada

em 1998.

Inscrito em 15/12/1998 nos livros de Belas Artes e Arqueológico, Etnográfico e

Paisagístico, o bairro foi considerado um exemplar único da “Paris no Brasil”, em função das

reformas portuárias realizadas em 1910 que conferiram um aspecto eclético, inspirado na

cidade europeia construída pelo Barão de Haussmann. Outra característica considerada foi a

importância histórica dado ao conjunto, já que ele seria o primeiro ponto de ocupação da

cidade, sendo um testemunho da evolução urbana e, assim, significativo para todo o País.

Apesar de desde 1987, com a publicação do Relatório de Brundtland, os

discursos internacionais pregarem uma integração entre homem e natureza,

compreendendo que natureza e cultura faziam parte de um mesmo âmbito e da já existência

da categoria da paisagem cultural no âmbito internacional no momento do tombamento da

área, esses aspectos foram deixados de lado como critério na proteção do bairro do Recife.

Mesmo que a caracterização da área de tombamento indicasse que o local

cresceu “[...] à sombra do porto”, na justificativa encontram-se somente questões relativas

aos valores arquitetônicos e históricos do bairro21, como pode ser constatado:

Pela importância histórica do sítio como referencial básico de uma das cidades mais

importantes dentro da estrutura urbana do país (demonstrativo do processo de

evolução e transformação do sítio);

21

Urb-Recife/IPHAN (1998). Revitalização do Bairro do Recife - Proposta de Tombamento a Nível Federal. Recife: Urb-Recife.

58

Pela singularidade do acervo eclético arquitetônico e urbano, único remanescente

íntegro completo no Brasil do pensamento urbano e arquitetônico da “belle epoque”

no Brasil (principalmente diante das perdas dos exemplares da Avenida Central no

Rio e da constatação de que pouco além de alguns prédios em Salvador constituem a

memória urbana das cidades brasileiras dessa tendência);

Pela diversidade dos estilos arquitetônicos e padrões urbanos resultantes da reforma

e seu impacto sobre as formações urbanas remanescentes;

Pela importância da memória individual e coletiva inscrita nesses exemplares ao

longo do tempo, notadamente aqueles gerados pelo capital comercial e financeiro

que definiram e definem “a cara” do Bairro do Recife como território eminente de

troca, desde a fundação da Cidade do Recife;

Pela urgência de uma preservação que se antecipe às questões levantadas pelo

recente sucesso da renovação do Bairro do Recife e pelas perdas nas quais possa-se

incorrer.

Segundo Leite (2002, p.120):

“[...] a justificativa para o tombamento destaca, ante a inexistência de uma tradição colonial, aspectos que seriam constitutivos da formação “pluricultural” brasileira. O bairro, tido como um “exemplar íntegro da Paris de Haussmann” foi considerado [...] arquivo vivo e único da superposição das várias temporalidades que dominaram a história e a produção artística no Recife e no Brasil”.

Em um momento onde a proteção patrimonial ocorre pela valorização do

singular e do específico, o tombamento federal estabelecido em 1998 no bairro valorizou o

ecletismo, representando, na verdade, um ato político para atender as exigências do BID na

inserção da cidade no programa Monumenta.

Na proposta de tombamento, apesar das referências a importância do local na

memória e identidade coletiva, não houve uma consulta junto aos grupos envolvidos com o

bem em busca de definir quais elementos deveriam ser protegidos com base nos significados

que eles apresentam para esses grupos, deixando a definição restrita ao corpo de

especialistas. Desta forma, “A dimensão da cidadania está completamente ausente na

proposta de tombamento, cujo principal enfoque é a dimensão de mercado” (LEITE 2007,

p.90).

59

Os aspectos naturais, fundamentais para a construção da fisionomia do local,

não foram considerados para a proteção, apesar da existência na constituição federal de um

instrumento e da referência ao porto e as águas na própria proposta de tombamento,

fatores determinantes na formação do tecido urbano e expressos na paisagem. Assim, o que

vemos no bairro do Recife é um “mercado de relíquias”22, resultando de um tombamento

pautado em opiniões de técnicos e especialistas que colocaram em dois pontos distintos

homem e natureza.

2.2 TOMBAMENTOS DO ÂMBITO ESTADUAL

Segundo Castriota (2009, p.192), após a década de 1970 tem início um “[...]

processo de descentralização das políticas de patrimônio no Brasil, com a criação de vários

órgãos estaduais e municipais de preservação.”. Inserida neste contexto de expansão, foi

criada em 17 de julho de 1973 FUNDARPE, órgão responsável pela proteção do patrimônio

histórico, artístico e cultural de Pernambuco.

No âmbito patrimonial, a instituição tem se destacado pela interiorização e

diversificação da política de proteção, ao aplicar o tombamento em municípios no sertão e

agreste pernambucano, bem como considerar bens imateriais como detentores de valor

cultural para o Estado.

Contudo, no município do Recife, a atuação da FUNDARPE ainda está voltada

para a proteção de bens materiais, já que a instituição não reconhece nenhum bem imaterial

presente na capital pernambucana. Outra característica da atuação da Fundação na cidade

do Recife é a utilização do tombamento como instrumento único de proteção23.

Apesar de a FUNDARPE apresentar diferenças em relação ao IPHAN no que diz

respeito a escolha dos bens protegidos, observamos que suas práticas na proteção dos

conjuntos urbanos seguem alguns parâmetros em comum.

Ao analisar o projeto de tombamento da Rua da Aurora, juntamente com o seu

parecer conclusivo, observarmos uma separação entre bens naturais e culturais. Da mesma

22

Segundo Leite (2007, p.79), o tombamento do bairro do Recife foi uma legitimação das práticas de gentrification. 23

Dentre os bens tombados, todos são considerados monumentos históricos, exceto o Conjunto Paisagístico e Ambiental do Prata, considerado um atrativo natural e ambiental. Dos 45 bens protegidos, 30 são edifícios urbanos isolados, sendo 13 localizados nos bairros do Recife, Santo Antônio e São José.

60

forma, a proposta é apresentada com base em registros técnicos e históricos, desvinculando

o conjunto da sociedade que a utiliza.

Justificou-se o tombamento do conjunto em função do valor histórico atribuído

às edificações construídas em sua maioria no século XIX as margens do rio Capibaribe, além

de considerarem a proteção sob este instrumento como:

“[...] bastante oportuna e urgente, em face do iminente risco de destruição, a exemplo de outros tantos exemplares, demolidos para dar lugar a edifícios comerciais indiferenciados que, rompendo a escala urbana ancestral, nada acrescentaram como contribuição social ou em termos de qualidade de vida”

24

Analisando esta justificativa, nota-se importância atribuída ao conjunto

arquitetônico como escala e coerência de estilos. A proposta analisa o desenvolvimento

histórico da rua no contexto da cidade, conferindo importância fundamental aos recursos

hídricos na formação da fisionomia da Rua da Aurora ao afirmar que a aparência do Recife é

única, pois ao contrário de outras cidades coloniais brasileiras ela é:

“[...] predominantemente fluvial, tornando-se evidente a ação dos rios Capibaribe e Beberibe na planície onde a cidade está localizada. [...] É na observação dessa estreita relação da água com a cidade que chegamos à rua da Aurora[...] Conquistada gradativamente ao rio no decorrer do século XIX é das poucas ruas que permanece fiel à vocação primitiva que definiu o caráter da cidade”

25

Apesar do reconhecimento deste caráter fluvial da cidade e da relação existente

com os recursos hídricos, este aspecto não foi efetivamente abordado. O que se observa é a

valorização dos aspectos arquitetônicos nas indicações para preservação, presentes na

proposta. Neste ponto são observados a recuperação dos edifícios degradados, aumento da

fiscalização quanto ao gabarito de novas construções e destaques individuais para os prédios

do Ginásio Pernambucano e da Assembleia Legislativa.

Apesar deste reconhecimento, o parecer conclusivo do projeto, assinado em 28

de dezembro de 1984, não indica qualquer ação que valorize a relação entre sociedade e

natureza, restringindo a atuação da proposta apenas ao controle do gabarito das edificações

e a práticas de recuperação de fachadas.

Sem propostas voltadas a preservação dos atributos ambientais, sobretudo dos

recursos hídricos, a proteção da Rua da Aurora fica restrita ao conjunto edificado, dando as

costas às margens do rio. Neste aspecto, a proteção não reconhece a necessidade de se

24

FUNDARPE - Proposta de Tombamento do Conjunto Urbano da Rua da Aurora, p.2 25

Idem. p. 29-31

61

revitalizar o corpo de água, nem de restabelecer a relação, existente no passado, da

sociedade com os recursos hídricos que a cerca.

Valorização dos atributos históricos tem sido uma constante nos tombamentos

propostos pela FUNDARPE, como pode ser observado no parecer conclusivo sobre a

proposta de tombamento nº 2201 de 02 de julho de 199126, referente ao Palácio do Campo

das Princesas.

Lendo o parecer é observado que a sede do governo Pernambucano foi

considerada de valor cultural, em função de estar localizada onde historicamente tem se

realizado a administração estadual. Na ampla pesquisa histórica realizada na proposta de

tombamento, ganha destaque o fato de o local ser o mesmo onde Nassau levantou seu

palácio administrativo, assim como ponto onde os governos revolucionários de 1817

administraram a região.

Observando a proposta que embasa o tombamento, os aspectos arquitetônicos

foram valorizados ao indicar tipologias remanescentes da época do palácio levantado por

Nassau. Segundo a proposta, apesar da destruição das construções em função dos interesses

políticos, o atual palácio do campo das princesas “[...] engloba várias edificações que foram

sendo paulatinamente transformadas ao longo do tempo” 27.

Outra característica das ações desenvolvidas pela FUNDARPE pode ser

exemplificada na proposta de tombamento da Antiga Casa de Detenção do Recife. O

processo nº 1001 de 09/04/1980 justifica a proteção do monumento, bem como da antiga

muralha ainda de pé e da ambiência composta pela Rua Floriano Peixoto, pelos seus

atributos arquitetônicos, históricos e pela valorização do engenheiro responsável enquanto

mestre da engenharia.

No parecer consultivo, elaborado em 22 de junho de 1980 pelo historiador

Fernando Pio dos Santos, fica clara a valorização das edificações construídas pelo engenheiro

José Mamede Alves Ferreira na década de 1980, fato que constituiria “[...] motivo suficiente

26

O parecer conclusivo foi assinado em 25 de junho de 2008, indicando um longo processo de definição do tombamento do palácio. 27

FUNDARPE – Análise Física da Proposta de Tombamento nº2201 de 02/07/1991, p.116

62

para preservação de qualquer trabalho de sua autoria, pelo seu extraordinário saber e

competência.”28

Por fim, outra característica das ações executadas pela FUNDARPE pode ser

identificada na proposta de tombamento nº 0431/1992 a respeito da Torre Malakoff,

localizada no bairro do Recife. Neste exemplo os aspectos arquitetônicos, referente a

semelhança do projeto as antigas mesquitas orientais, bem como o desejo de preservação

de um monumento constantemente ameaçado pelas obras de reforma portuária foram as

justificativas de sua proteção29.

Frente aos exemplos apresentados, observam-se dois aspectos marcantes na

proteção do patrimônio cultural na cidade do Recife: Primeiro que as atribuições de valores

são realizadas com base na opinião de técnicos vinculados aos órgãos de proteção. Esta

postura demonstra a separação do bem do ambiente onde ele está inserido, como também

atribui a ele um status que pode não ser reconhecido pela sociedade. O bem patrimonial só

será efetivamente protegido se for reconhecido coletivamente como tal. Os exemplos

mostram que propostas realizadas a partir de uma visão descolada da sociedade não serão

eficazes para a preservação das características importantes do bem.

A separação entre elementos naturais e culturais constitui outro aspecto

observado nas ações de proteção aplicadas no centro do Recife. Mesmo com os diversos

debates internacionais que buscam tratar homem e natureza como um corpo único, as

ações desenvolvidas parecem reforçar velhas tradições ao esquecer importantes elementos

naturais na constituição dos bens, sobretudo o rio Capibaribe.

O pensamento e a estrutura dicotômica, ainda presente nas diversas instituições

gestoras do patrimônio estadual, dificulta a utilização de ferramentas que tratem de forma

integrada os aspectos naturais e culturais. Para Castriota (2009, p. 189) um dos problemas

da gestão patrimonial brasileira é a separação entre políticas urbanas e as políticas do

patrimônio. Segundo o autor “[...] essas esferas ainda se mantém arraigadamente afastadas,

embora os discursos tanto dos órgãos de preservação quanto de planejamento urbano

tenham acolhido a premissa de sua integração.”. Neste sentido, enquanto não se efetivar a

28

FUNDARPE – Parecer Consultivo da Proposta de Tombamento nº 1001 de 09/04/1980, p.30. 29

FUNDARPE – Parecer Conclusivo da Proposta de Tombamento nº 04391 de 1992, p.36-38

63

aproximação de ações entre órgãos de defesa do patrimônio e de proteção ao meio

ambiente, o processo de integração entre sociedade e natureza será mais longo.

Um novo instrumento de proteção patrimonial deve superar essas limitações,

integrando os aspectos naturais e culturais, ao mesmo tempo em que busca inserir os

grupos envolvidos na construção dos valores, com base nos significados que os bens

apresentam. Com estas características, a categoria da paisagem cultural pode vir a ser uma

alternativa, pois ela reconhece a integração entre homem e natureza como essencial para o

reconhecimento patrimonial.

CAPÍTULO 3 - LEITURAS DA PAISAGEM DO CENTRO DO RECIFE

“[...] d'esta ponta da areia da banda de dentro se navega este rio até o varadouro, que está ao pé da Villa, com

caravelões e barcos, e do varadouro pára cima se navega com barcos de navios obra do meia légua, onde se faz

aguada fresca para as náos da ribeira que vem do engenho de Jeronymo de Albuquerque também se mettem

neste rio outras ribeiras por onde vão os barcos dos navios a buscar; os açúcares aos paços”

Gabriel Soares de Sousa, 1938, p.21-22

“[...] ao norte vê-se a cidade e os pitorescos oiteiros de Olinda; ao sul o rio Capibaribe, o aterro dos Afogados e

também o oceano. Canoas indígenas, escavadas num só tronco de árvores, conduzidas por negros nus e

munidos de compridas varas, cruzam-se em todos os sentidos sobre as águas mansas do rio [...]”

Louis-François Tollenare, 1978, p.23

“Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do rio”

Joaquim Cardozo, 1983, p.55

65

O presente capítulo tem como objetivo apresentar a importância dos recursos

hídricos na fisionomia da cidade do Recife, através de uma narrativa que se fundamenta na

leitura da paisagem da área central realizada ao logo da formação da cidade.

O direcionamento deste capítulo parte do entendimento dos aspectos

fisionômicos segundo os geógrafos tradicionais, conforme apresentado no primeiro capítulo.

A paisagem aqui é compreendida como um conjunto de signos, representativos de épocas e

culturas diversas, lida a partir de um eixo orientador.

Cabe lembrar que os fatos históricos sobre a evolução do sítio não constituem o

objetivo deste trabalho, porém auxiliam na construção da narrativa, bem como permitem

observar permanências ou mudanças nas relações entre sociedade e natureza ao longo do

tempo.

Vários foram os textos que enfatizaram a relação entre os recursos hídricos e a

cidade, contudo a presente leitura foi produzida conforme a realizada por Chacon (1959),

enfocando os recursos hídricos que cercam o território. Assim, a cidade é vista como

condicionada pelas águas do Mar e dos rios, sobretudo do Capibaribe, ao mesmo tempo em

que condiciona os aspectos naturais, estabelecendo uma relação entre natureza e cultura

que vai além de “[...] uma unidade geográfica, histórica, econômica e sociológica [...]”, mas

representa uma forte unidade “[...] sentimental e poética” (CHACON, op. cit., p. 9).

Segundo Gomes (2007, p.55 - 70), em função da presença de uma linha retilínea

de arrecifes de arenitos, uma enorme quantidade de sedimentos aluvionais30 vindos dos rios

Capibaribe, Beberibe, Tejipió, Jaboatão e Pirapama, acumulados em formas de coroas numa

planície formada pelas constantes transgressões e regressões marinhas, juntamente com os

sedimentos trazidos da plataforma continental por ondas influenciadas pelos ventos alísios e

a paulatina fixação de um solo lodoso graças a vegetação de mangue, formou-se o sítio

original da cidade do Recife.

A paisagem natural de onde se assenta a atual cidade do Recife foi constituída

pela ação conjunta destes diversos fatores naturais, os quais, segundo Lins (1978, p.101)

geraram:

30

Sedimentos inconsolidados transportados pela correnteza e depositados aos poucos nas desembocaduras dos rios.

66

“[...] Coroas e bancos de areia, cordões litorâneos arenosos ou restingas, associados tudo a pântanos de água salobra, manguezais, lagamares, esteiros e camboas, eis um resumo do sítio do Recife em sua origem, ou seja, do estuário afogado comum dos rios Capibaribe, Beberibe e Tejipió.”

Conhecida como Baía Entulhada do Recife31, a paisagem natural do sítio pode ser

representada pela figura 3, onde a consequência da atuação destes diversos elementos e

processos naturais pode ser visto. O comentário de Castro (1954, p.33-34) sobre a fisionomia

natural desta planície enfatiza as características fisiograficas deste sítio:

“A cidade se assenta nas terras baixas de uma extensa planície aluvionar que se estende desde as costas marinhas, frisadas, em quase toda a extensão por uma linha de arrecifes de pedra [...] É nessa planície constituída de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e pauis, envolvidos pelos braços de água dos rios que, rompendo passagem através da cinta sedimentar de colinas, se espraiam remansos pela planície inundável”

Apesar da atuação conjunta dos elementos fisiográficos serem fundamentais na

formação do sítio, o mais evidente na planície do Recife é, sem dúvida, o Rio Capibaribe

(OLIVEIRA, 1942).

Seja pela sua contribuição para a formação morfológica da área ou pela

influência na orientação das ocupações urbanas originais, o rio Capibaribe32 é um elemento

de referência na paisagem da cidade, especialmente na área central, onde ganha

importância sob vários aspectos e sofre com o acúmulo de graves problemas

socioambientais.

Com sua nascente localizada na Serra do Jacarará, a uma altitude de

aproximadamente mil metros, o Capibaribe percorre um total de 253 quilômetros até chegar

a sua foz, no centro do Recife, onde se expressam paisagens com características variadas

(MAPA 1).

31

“Os outeiros de Olinda e de Guararapes assinalam, com efeito, as extremidades do meio anfiteatro de colinas esculpidas nos sedimentos cenozóicos do Grupo Barreiras, [...] colinas cujo semicírculo contém aquilo que J. C. Branner denominou e fez representar, num seu desenho várias vezes já reproduzido, como “baía entulhada do Recife”, isto é, uma planície aluvial flúvio-marinha, réplica da que se desdobra ao sul de Santo Agostinho e ambas sucessivamente alargadas, enchidas e drenadas ao sabor de transgressões e regressões marinhas durante o Quaternário” (LINS, 1978, p. 104) 32

O nome Capibaribe deriva de “Caapiuar-y-be” ou “Capibara-yby”, significando “rio das capivaras” ou “dos porcos selvagens” (MELO, 2003, p 51).

67

Figura 3: Baia entulhada do Recife, segundo J. C. Branner

Fonte: CASTRO, 1957, p.200

MAPA 1: Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe e principais ocupações urbanas

Fonte: autor, 2011

Para construir a narrativa que orienta a leitura, o capítulo está dividido em

momentos históricos da seguinte forma: Inicialmente são interpretadas as diversas leituras

produzidas pelos exploradores portugueses e holandeses frente ao descobrimento de um

68

novo mundo. Neste momento foram narradas as descrições do local, realizadas por aqueles

que vieram em busca de consolidar a presença europeia na América. O Segundo momento

representa o século XIX, época caracterizada pela abertura dos portos, na qual o Recife

passou a ser intensamente frequentado por diversos estrangeiros que produziram em seus

relatos registros sobre o relacionamento entre os recursos hídricos e a cidade. Por fim, no

século XX a narrativa se baseia na produção artístico intelectual de um grupo desencantado

com os novos rumos da modernidade que caracterizou as reformas urbanas empreendidas

pela cidade, afetando diretamente nas condições ambientais do rio Capibaribe.

3.1. SÉCULO XVI A XVIII: Leituras de um território33 desconhecido e sua

dominação

Os arranjos hidrográficos, bem como a função portuária natural do Recife foram

representados no foral de Olinda34, datado de 1537. Com a publicação do Tratado

Descriptivo do Brasil em 1587 de autoria de Gabriel Soares de Sousa, outra descrição da

então pequena cidade do Recife e sua característica portuária foi dada:

“Neste porto de 0linda se entra pela boca de um arrecife, de pedra ao sudoéste e depois norte sul [...] por esta boca entra o salgado pela terra dentro uma légua, ao pé da Villa; e defronte do surgidouro dos navios faz este rio outra volta deixando no meio uma ponta de areia onde está uma ermida do Corpo Santo. Neste lugar vivem alguns pescadores e oficiais da ribeira, e estão alguns armazéns em que os mercadores agasalham os açúcares e outras mercadorias [...]perto de uma légua da boca deste arrecife está outro boqueirão, que chamam a Barreta, por onde podem entrar barcos pequenos, estando, o mar bonançoso[...]” (SOUSA, 1938, p.21 – 22)

A partir do trecho acima destacado, podemos observar a importância dos

recursos hídricos e do porto natural para a vida social e econômica na terceira década do

século XVI. O rio era a principal força para moer a cana, ao mesmo tempo em que era

utilizado como rota de escoamento da produção de açúcar e extração do Pau-Brasil.

Os primeiros núcleos surgiram desta função portuária, devido as águas dos rios e

do mar: verdadeiras rotas e portas para o novo mundo. Se nas várzeas do Capibaribe as

ocupações iriam aos poucos sendo ampliadas em função da construção de novos engenhos,

na foz conjunta com o rio Beberibe um pequeno agrupamento se espremia ao sul de Olinda,

num istmo com apenas 30 a 60 pés de largura (FIGURA 4).

33

Território é aqui compreendido como área delimitada pelas relações humanas ocorridas em um espaço material específico (SOUZA, 1995). 34

Cavalcanti (1978, p.226) destaca que no documento onde Olinda é elevada a categoria de Vila, o Rio Capibaribe é chamado de “Rio dos Cedros”.

69

Figura 4: Porto e barra de Pernambuco em 1630, circulado em amarelo.

Fonte: Menezes, 1988, p.17

Segundo Cavalcanti (1978, p.227 - 228), o atual bairro do Recife, nasceu sob o

signo de área comercial, onde a dinâmica era orientada pelos produtos levados ao porto

através dos rios, sendo a ocupação uma das poucas que não surgiu pela fundação de um

engenho, mas a partir da função de exportar os produtos produzidos por todos os outros,

localizados nas várzeas dos rios Capibaribe e Beberibe.

Gilberto Freyre (2004, p.62 - 72) registrou que apesar da ocupação adquirir uma

característica urbana na foz, foi na várzea do Capibaribe onde se consolidou de forma efetiva

residências que deram origem a primeira cultura da cana no Nordeste Brasileiro. A

conhecida sociedade do açúcar tinha no rio um elemento essencial para a dinâmica do local,

atendendo as necessidades pessoais da casa-grande e possibilitando a produção da cana.

Melo (2003, p 54) contribui com esta visão ao afirmar que:

“Os rios tiveram um papel fundamental para a produção do açúcar. Isso porque eles eram responsáveis pela fertilidade dos solos de aluvião onde se implantaram os engenhos, forneciam suas águas para moer a cana, abasteciam os engenhos e eram utilizados como via fluvial, para o transporte do açúcar ao porto, onde seria comercializado e exportado. O porto, os rios e os engenhos foram fatores determinantes na formação e estruturação da cidade do Recife, pois representavam o suporte para as atividades econômicas, baseadas na exploração agrícola, assim como contribuíram para a formação da sociedade existente naquele período.”

70

O período entre o final do século XVI e primeira metade do século XVII foi a

época na qual uma grande quantidade de engenhos seriam estabelecidos ao longo do

território Pernambucano, contribuindo para a dinâmica do porto localizado ao sul de Olinda.

Para Furtado (2007, p.77), este desenvolvimento foi o resultado de diversos investimentos

da metrópole portuguesa em busca de superar problemas iniciais enfrentados no processo

de ocupação do território.

O reflexo dos investimentos na produção nas várzeas gerou um aumento na

dinâmica da área portuária. Soma-se a isto a invasão do território em 1630 pelos

holandeses, proporcionando um significativo aumento nas ocupações, conforme pode ser

visto na figura 5. Além disto, contribuiu com o aumento da população do Recife a decisão

imposta pelos governadores holandeses de manter Olinda destruída35 (MELLO, 2007).

José Antonio Gonsalves de Mello (op. cit., p.78) mostrou que as intensas taxas de

ocupação no istmo do Recife, próxima dos 5 mil moradores, foi um dos grandes problemas

enfrentados pelos holandeses ao ocupar a área. Cavalcanti (1978, p.231) também considera

a ausência de terras propicias a construção de novas moradias como fator para uma alta

densidade demográfica e má distribuição dos habitantes. Segundo o autor, “Naquela área

estava alojada uma população nunca inferior a 2.700 habitantes, o que equivale a dizer, uma

média de 27 mil pessoas por quilometro quadrado”, distribuídos em torno de 130 casas e

alguns armazéns.

A ausência de solo propício a construção resultou numa iminente verticalização

das edificações localizadas neste território. Em uma área pequena, repleta de residentes e

população flutuante devido as atividades portuárias, surge a figura do sobrado alto e magro,

característico da cidade do Recife36, como alternativa para suprir a necessidade de moradia.

35

Segundo Mello (2007, p.73 – 74) “A mudança da sede da Câmera representou um terrível golpe para Olinda, que, pouco a pouco, ia sendo reconstruída. Não abandonaram, porém, os da terra [...]”. A reconstrução da cidade foi desencorajada pelos holandeses, para evitar prejuízos a Recife e Maurícia, além da necessidade de aproveitar as pedras das ruínas de Olinda para as novas construções. 36

“A solução para tal problema de habitação parece ter sido desde o início o sobrado. Sobrado de um e dois andares. Muitos com sótão. De 290 prédios recenseados no Recife pelo almoxarife do rei, quando da capitulação dos holandeses, cerca de 200 são de dois andares (i.é, térreo e primeiro andar) e cerca de 50 de três andares” (MELLO, op.cit., p.80).

71

Figura 5: Planta do Recife em 1631, produzida por de A. Drewisch.

Fonte: Mello, 1976, p.37

Ocupar de forma efetiva a ilha situada em frente ao istmo foi a alternativa

encontrada para suprir a falta de espaço. O local, formado por terra firme, mangues e

alagados, contava apenas com o convento de Santo Antonio e algumas poucas casas e

armazéns. Apesar de sua ocupação inicial preceder os anos de 1630, seria a partir do

domínio holandês que na ilha de Antônio Vaz37 se formaria um novo núcleo de habitações,

composto de casas, igrejas, edifícios institucionais, construídos sobre aterros, compondo

uma “[...] cidade moderna, de feitio a fugir dos moldes lusitanos. Ruas mais amplas, parques,

palácios bebidos em influência renascentistas” (SETTE, 1978, p.31), conforme representado

na figura 6.

37

Primeiro nome dado ao local onde hoje se encontram os bairros de Santo Antônio e São José

72

Figura 6: Mapa de Golitjha de 1648. Observasse a ocupação da ilha de Antônio Vaz.

Fonte: Menezes, 1988, p.22

As diferentes formas de ocupação dos núcleos podem ser vistas no detalhe de

outro mapa de Golithija de 1648 (FIGURA 7), onde o traçado do atual bairro do Recife

apresenta uma característica mais irregular, enquanto que a cidade Mauricia conta com

largas ruas e algumas praças (MENEZES, 1978, p.258). Mello (2007, p. 89) contribui com esta

observação ao notar que “[...] a futura capital foi iniciada com as características de cidade

segundo a concepção norte-europeia”.

A verdade é que nos dois núcleos iniciais do Recife podemos ver, através das

representações da época, a convivência de duas orientações urbanas distintas: “[...] a velha

e tradicional diretriz lusitana, resto de uma visão medieval da cidade, e outra moderna, fruto

da concepção da cidade renascentista” (MENEZES, idem.).

Pode-se observar que outra forma de relação entre sociedade e natureza foi

estabelecida a partir da chegada dos Holandeses em Pernambuco. Com o incêndio de Olinda

e a transferência da administração colonial para a planície do Recife, tiveram início uma série

73

de aterros e construções de diques, em busca de dinamizar o porto e oferecer novos locais

de construção, alterando efetivamente a foz do rio Capibaribe.

Figura 7: Detalhe do mapa de Golitjha, de 1648.

Fonte: Mello, 1976, p.57

Os palácios reforçavam a relação existente entre a cidade e os rios, ao mesmo

tempo em que indicavam as preferências culturais dos dominadores flamengos. Segundo

Melo (2003, p. 62 – 63), as referências culturais foram determinantes na escolha da

localização dos palácios, ambos voltados para o rio Capibaribe. Mello (2007, p.104) indica

que há significativas diferenças entre os palácios, para além de sua função. Enquanto o

palácio Vrijburg era “[...] verdadeiramente dominador, parecendo querer imprimir no

espírito dos da terra a convicção da solidez com que os conquistadores se firmaram na

colônia [...]”, sendo a moradia oficial e sede administrativa do governo, o da Boa Vista tem

um caráter mais acolhedor e parecia “[...] receber holandeses e brasileiros em espírito de

igualdade”, mantendo inclusive o nome português da construção e da ponte a sua frente38.

38

“E deve ser acentuado que o nome holandês que lhe é atribuído, Schoonzicht, é de pura invenção dos autores. Surge sempre nos documentos por nós examinados, de origem holandesa, com o nome de Boa Vista” (MELLO, 2007, p.111).

74

Neste ponto podemos observar como a paisagem é construída com base em suas

referências culturais. Assim, ela “[...] não seria apenas o resultado material das interações

entre ambiente e sociedade, mas também a consequência de uma maneira específica de

olhar” (MCDOWELL, 1996, p. 176), que no caso holandês pode ser expressa pela

proximidade com os recursos hídricos.

A descrição de Sebastião da Rocha Pita (1950, p.103) sobre a paisagem

construída pelos holandeses é valiosa por apresentar como este grupo cultural se relacionou

com a natureza unindo duas áreas antes separadas pelo rio, ao mesmo tempo em que

construíram um local de extrema importância econômica, cultural, social e religiosa:

“A natureza as dividiu por um lagamar, que faz o rio Capibaribe, e outros mais, que ali se juntam; porém a arte as uniu com uma dilatada e espaçosa ponte, principiada pelos Holandeses, e acabada pelos Pernambucanos”

Esta dilatada e espaçosa ponte, conforme mostra o relato foi construída por

Mauricio de Nassau para interligar o antigo núcleo do Recife, à cidade Mauricia, hoje bairro

de Santo Antônio, facilitando não somente o deslocamento da população, mas o envio de

água potável. Outro objetivo foi efetivar o desenvolvimento da Ilha de Antonio Vaz, ocupada

de forma irregular até então (MELLO, 2007, p.92 - 97).

Os avanços urbanos de Nassau também levaram o Recife a vencer a península e

chegar à terra firme, através de novas pontes e aterros, estimulando as ocupações no atual

bairro da Boa Vista. Mario Sette (1978, p.31-32) considerou que:

“Não se precisava mais recorrer às canoas e balsas: Nassau mandara lançar as pontes de contacto entre a península e a ilha, e entre esta e o continente, a Boa Vista admirada na verdura de seus sítios, de suas estâncias, de seus caminhos [...]”

A estes dois meios de ligação, posteriormente melhorados e reconstruídos,

seriam levantadas outras pontes na área central, constituindo nos tempos recentes

elementos que se destacam no centro do Recife, repletos de significados diversos, formando

a paisagem que representa a identidade cultural da cidade, conforme apresentado na

introdução39.

Após o retorno de Nassau à Holanda em 1644, os conflitos entre portugueses e

holandeses se acirraram. A instabilidade política, associada a crise do açúcar, juntamente

com a perda do poder político dos senhores de engenho culminou com a Insurreição

39

O trabalho de Jorge (2007) apresentou algumas interpretações sobre as relações estabelecidas entre os usuários e as pontes do centro do Recife.

75

Pernambucana, em 1645, que além de construir um sentimento nacional gerou reflexos

diretos na fisionomia do Recife. As construções na ilha de Antonio Vaz foram postas abaixo e

reconstruídas ao estilo português, mantendo o traçado urbano regular de estilo

renascentista de influência holandesa.

No final do século XVIII, a cidade possuía quase 20.000 habitantes, que

ocupavam tanto as partes mais elevadas do núcleo do Recife e da ilha de Santo Antônio,

evitando as inundações, como o continente, cujas áreas de manguezais, ao longo do rio

Capibaribe, foram sendo gradativamente aterradas para dar lugar a habitações (GOMES,

2007, p. 100 - 101).

Apesar da relação de dominação, a natureza representada pelos rios, mangues e

mar, ainda mantinha sua importância para a cidade ao servir de fonte de alimentos para

alguns estratos da população. Segundo relato de Manuel dos Santos (1992, p.62), no século

XVIII, “[...] era grande a quantidade de mariscos, caranguejos e camarões que os pobres e os

escravos de algumas famílias abastadas retiravam dos mangues ou coroas de areia nas

marés vazias”.

Nesta época coube a Domingos Loreto Couto, na sua obra Desagravo do Brasil e

Glorias de Pernambuco (apud CHACHON, 1959, p.78) representar o local onde o Recife

estava inserido da seguinte maneira:

“O caudaloso rio Capibaribe dilatando por este valle suas cristalinas correntes, parece que compassivo de sua sede quer sair a regalo. Occupa o centro deste ameno valle, em que se achão já fundadas mil cento e trese moradas de casa de pedra e cal, e muitas dellas de dous sobrados, feitas ao estilo moderno”.

Conforme narrado nas diversas leituras realizadas entre os séculos XVI e XVIII, os

aspectos aquáticos tiveram papel fundamental na formação fisionômica da cidade do Recife.

Os relatos, produzidos por colonizadores portugueses e holandeses, além de brasileiros,

mostram através da leitura das paisagens segundo suas referências culturais, a busca de

compreender e colonizar o território desconhecido.

No século XIX, com a abertura dos portos a outras nações e o crescimento do

pensamento de independência, as paisagens do Recife passaram por transformações, se

inserindo em outro contexto e constituindo um novo período das relações entre homem e

natureza.

76

3.2. SÉCULO XIX: Tristeza e deleite nas leituras dos estrangeiros

O nascer do século XIX vem acompanhado de inúmeras mudanças na economia,

política e vida social Brasileira. A partir da abertura dos portos em 1808, o mercado

brasileiro se liberta da exclusividade com Portugal e passa a negociar seus produtos com o

resto do Mundo. A chegada da corte de D. João VI ao país, associada às influências de

revoluções ocorridas na Europa, gerou um intenso debate sobre manutenção da monarquia

nacional, ocasionando várias revoltas que dariam inicio ao processo de independência.

Em decorrência desta mudança, os estrangeiros vindos para o território nacional

observaram as paisagens e as representaram de diferentes maneiras a partir de suas

referências culturais. Entre as representações, diversos foram os escritos produzidos, ao

longo do século XIX, por viajantes em busca de fortuna, realização pessoal ou pesquisadores

com o intuito de conhecer as características do “novo mundo”, ainda tão repleto de

surpresas.

Gilberto Freyre (2007, p.122-138) confere a presença estrangeira uma

importante influência na formação do Recife, a partir de marcas deixadas na arquitetura,

costumes, vida social, no vocabulário e na religiosidade. Assim, estes relatos constituem

verdadeiras fontes de análise e indicam de forma bastante expressiva, os modos como a

população construiu seu dialogo com a natureza.

Um dos relatos mais significativos foi o produzido por Henri Koster40, viajante que

veio a Pernambuco em 1809 com o objetivo de solucionar problemas de saúde. Em seu

relato, ele destaca os três núcleos centrais da cidade, apontando suas principais instituições,

comércio, arquitetura e características urbanísticas. A sua época, Santo Antônio já ocupava a

posição de núcleo mais importante da cidade devido a presença de instituições públicas,

religiosas e vasto comércio, dando inclusive nome ao Estado.41

Koster (1992, p. 83) aponta a importância histórica do rio Capibaribe, ao

considerar que ele foi “[...] tão famoso na história pernambucana [...]” e destaca como as

40

A justificativa dada por Koster de sua escolha por Pernambuco já é um indicador da forte inserção inglesa no Brasil do século XIX; local conhecido e destino de vários conterrâneos. Segundo ele: “Escolhi Pernambuco porque um velho amigo de família estava prestes a embarcar para essa província, e várias pessoas me haviam dado informações mais favoráveis sobre os habitantes e o clima” (KOSTER, 1992, p. 79). 41

“A vila de S. Antônio do Recife, comumente chamada Pernambuco, embora este seja propriamente o nome da Capitania, consiste em três bairros ligados por duas pontes” (KOSTER, op. cit., p. 82).

77

vistas das construções “[...] olham as águas”. A relação entre cidade e águas também era

exercida pelo abastecimento para a população, já que a “A cidade é suprida d’água

transportada em canoas, de Olinda ou do rio Capibaribe [...]”.

Apesar de o Capibaribe proporcionar uma vista “[...] excessivamente

encantadora, casas, árvores, jardins de cada banda. O rio faz a curva adiante e parece

perder-se no meio da mata. As canoas indo docemente descem com a maré, [...] e tudo

reunido forma um espetáculo delicioso” (KOSTER, 1978, p.38), havia também a ocorrência

das enchentes que traziam medo a população:

“O rio transborda para suas margens na estação das chuvas e, às vezes, com grande violência. As terras, através das quais ele passa, são extremamente baixas nessa região, e a inundação é muito temida por estender-se longe e largamente. As choupanas de palha, situadas nas bordas, são sempre carregadas e todos os arredores ficam debaixo d’água” (KOSTER, op. cit., p. 39).

As cheias do Capibaribe eram constantes ao longo dos séculos. Chacon (1959,

p.84-85) mostra que enchentes ocorridas em 1633, 1641 e 1650 já colocavam em risco as

intervenções humanas e prejudicavam a qualidade de vida na cidade. Já Melo (2003, p.75)

destacou a periodicidade das cheias do século XIX, ocorridas em 1854, 1869 e 1894, as quais

seriam causadas em função dos diversos aterros realizados.

Este relato é um indicativo da relação conflitante estabelecida entre os

moradores da cidade do Recife com os recursos hídricos. A necessidade de ocupar novas

terras para suprir o déficit de área para construção modificou o curso dos rios, assim como a

remoção da vegetação ciliar e a impermeabilização das margens favoreceram o

assoreamento do leito, contribuindo para as corriqueiras cheias na cidade.

Entre 1819 e 1821 foi James Henderson que descreveu suas impressões sobre o

Recife. Diplomata e estudioso das paisagens brasileiras, o inglês viu uma cidade ativa e

populosa, repleta de comércio, organizações religiosas, e com um porto que estava entre

“[...] as maravilhas da natureza” (HENDERSON, 1992, p. 109).

A narrativa construída por Henderson foi feita através de um percurso pela

cidade, iniciado no atual bairro do Recife e indo até os antigos arrabaldes de Casa-Forte e

Ponte D’Uchôa. Sua descrição destaca os diversos usos do local e a importância do rio como

via de acesso aos pontos mais afastados e de recreação para todos. Essa relação também foi

78

representada no Álbum de Luís Schlappriz42 (FIGURA 8), onde os aspectos de Pernambuco do

século XIX foram retratados, constituindo assim mais uma fonte a ser analisada.

Na figura podemos ver o transporte de pessoas, o acesso às casas localizadas nas

margens, feita através de pequenas escadas, bem como a presença de canoas, descritas por

Henderson (1992, p.116):

“Vêem-se inúmeras canoas deslizando ao longo do rio Capibaribe, impulsionadas com mais velocidade do que com o remo, por dois homens negros com varas [...] Uma família inteira, com mobília e todos os etecéteras, são carregados pelo rio para sua residência de verão dessa maneira [...]”

Em 1821, numa época de rebeldia e revoluções pró-independência do Brasil,

chegaria ao Recife Maria Graham para realizar, segundo Mario Sette (1978, p. 40-41), um

turismo a seu tempo, produzindo com base em seu olhar de nobre inglesa do século XIX uma

leitura de extrema importância para a compreensão do Recife e do Brasil daquela época.

Seus relatos são reveladores de uma cidade adequada para o comércio e que “[...] jamais se

submeterá pacificamente a Portugal” (idem.), devido as inúmeras revoluções ocorridas.

Além das observações quanto a resistência pernambucana frente à dominação

monarquista, as leituras do território feita por Graham destacaram a beleza dos aspectos

naturais, a formação urbana da cidade e o seu encantamento com uma paisagem já

conhecida através da leitura de relatos, mas que mesmo assim a surpreendia:

“Tudo isso eu sabia antes de desembarcar e pensava estar bem preparada para ver Pernambuco. Mas não há preparação que evite o encantamento de que se é tomado ao entrar neste porto extraordinário” (GRAHAM, 1992, p. 126).

Este relato é um indicador da importância do porto do Recife no século XIX. A

nobre inglesa, apesar de acostumada a frequentar locais diversos da América do Sul, se

encantou com as belezas e movimento do Recife, inclusive com seus aspectos naturais:

“[...] nada mais belo no gênero do que o vivo panorama verde, com o largo rio sinuoso através dele, que se avista de cada lado da ponte, e as construções brancas do Tesouro e da Casa da Moeda, os conventos e as casas particulares, a maioria das quais com seu jardim. A vegetação é deliciosa para os olhos ingleses. Não tenho dúvidas que os prados planos e os rios que fluem vagarosamente atraíram particularmente os holandeses, fundadores do Recife” (idem.).

42

Artista suíço que chegou ao Recife em março de 1858, acompanhado de seu irmão cônsul suíço em Pernambuco (FERREZ, 1981).

79

Figura 8: Vista dos Caes da Ponte D’Uchôa no século XIX

Fonte: Ferrez, 1981. p.71

Novamente o álbum de Schlappriz ilustra bem o descrito na figura 9, onde

podemos observar o centro do Recife cortado pelo rio Capibaribe, com pessoas caminhando

por suas margens ou atravessando a ponte. Ao fundo pode ser visto uma enorme

quantidade de mastros de navio, indicadores da importância do porto, uma vegetação ainda

reminiscente, no início da ponte, assim como o prédio da Alfândega e a atual Igreja da

Madre de Deus.

Outro viajante que representou a cidade em seus relatos foi o comerciante de

algodão Louis-François Tollenare, que registrou os acontecimentos durante os anos de 1816

e 1817. O Francês era um astuto observador, interessado em botânica, e escreveu suas

notas dominicais sobre a paisagem da cidade (SILVA; SOUTO MAIOR, 1992, p. 90).

Tollenare descreve os aspectos que observa com um misto de surpresa e

desapontamento. Se por um lado ele encontra em Santo Antonio “[...] várias bonitas igrejas

e conventos [...]” (TOLLENARE, 1978 p.22), por outro, relata o Recife como o local “[...] mais

mal edificado e o menos asseado” (idem., p.20).

80

Figura 9: Vista da Ponte Nova do Recife

Fonte: Ferrez, 1981, p.49

Sobre os momentos de repouso, suas leituras sobre as paisagens observadas no

Recife, se realizam a partir da ponte da Boa Vista, sobre o Capibaribe, ele considera o

panorama como:

“[...] encantador; ao norte vê-se a cidade e os pitorescos oiteiros de Olinda; ao sul o rio Capibaribe, o aterro dos Afogados e também o oceano. Canoas indígenas, escavadas num só tronco de árvores, conduzidas por negros nus e munidos de compridas varas, cruzam-se em todos os sentidos sobre as águas mansas do rio; [...]. O golpe de vista da ponte é sempre animado; é a passagem de tudo o que vem dos sertões ou florestas onde se cultiva o algodão; à tarde é o ponto de reunião dos homens que vão ali respirar o ar fresco; as jovens e bonitas mulatas, ricamente adornadas (...), vêm ali atirar as redes da sedução; [...]”Tollenare (op. cit., p. 23).

Outra importante observação feita pelo francês foi o uso da água como único

meio de prazer da sociedade, já que “[...] a cidade do Recife não oferece a nenhum

estrangeiro os prazeres de sociabilidade” (idem, p. 99):

“Mas, é nas margens do Capibaribe que cumpre ver famílias inteiras mergulhando no rio e nele passando parte do dia, abrigadas do sol sob pequenos telheiros de folhas de palmeira[...]”.

Indivíduos de outras nacionalidades e expressões culturais estiveram presentes

no Recife, ao longo dos séculos, lendo a paisagem e a representando através de variadas

81

formas43. Porém, os franceses tiveram uma das maiores participações na constituição da

cidade do Recife. Na metade de século XIX, a presença deste grupo cultural passa a ter maior

influência com a gestão de Francisco do Rego Barros, conhecido como o Conde da Boa Vista,

político que modernizou o Recife através de ações estruturadoras realizadas por

engenheiros franceses, com base em sua formação intelectual e seu contexto cultural.

Talvez o mais importante Francês que por aqui esteve no século XIX tenha sido

Louis-Léger Vauthier, considerado por Gilberto Freyre (2007, p. 132) como o “[...] verdadeiro

modernizador dos serviços públicos de engenharia nesta parte do Brasil”, e, conforme

aponta Vamireh Chacon (1959, p. 80) “[...] um dos primeiros a ocupar-se mais seriamente do

Capibaribe”.

A vinda do jovem engenheiro foi possibilitada pelo contexto estabelecido a partir

da decisão do Conde da Boa Vista de solucionar os problemas de infraestrutura da cidade. “A

abertura do país ao comércio exterior e o consequente contato com a cultura europeia fez

com que essas elites vissem as cidades brasileiras como "antiquadas" e "impróprias””

(ZANCHETI, 1989, p. 77) e por isso diversas tentativas de construir um novo Recife foram

empreendidas.

Nesse contexto, as propostas de urbanização foram estabelecidas segundo um

modelo europeu, mudando os hábitos e costumes da cidade. Assim, foram construídos às

margens do rio Capibaribe, na área central, o palácio do Governo, a penitenciária, o teatro

Santa Isabel, assim como foram criados passeios públicos, praças e jardins ribeirinhos,

incluindo alguns trechos da Rua da Aurora e da Rua do Sol (MELO, 2003, p.81).

Ao desembarcar no Recife, em 8 de setembro de 1840 as impressões de Vauthier

indicavam surpresa frente a paisagem, ao mesmo tempo em que demonstrou um

sentimento de estranheza frente as características do porto, como podemos constatar no

seguinte relato:

“Aspecto pitoresco de Pernambuco: casas brancas, com telhados emergindo da verde vegetação. Estava longe de imaginar esse cenário gracioso. O sol, ao levantar-se, tingiu de âmbar a paisagem, de modo muito pitoresco. [...] Aspecto bastante estranho do porto. De um lado, o recife onde se quebram as ondas; do

43

Gilberto Freyre (2007) destaca também a presença de Israelitas, Germânicos e Norte-Americanos como importantes grupos para a constituição Recifense. Para mais representações das paisagens do Recife através dos séculos por outros grupos culturais ver Silva e Souto Maior (1992).

82

outro, em quase toda a sua extensão, praias de areia ou casas construídas de modo desordenado.” (VAUTHIER, 2010, p. 83)

As relações estabelecidas entre o engenheiro francês e os aspectos naturais da

cidade do Recife foram fundamentais para o desenvolvimento de propostas de organização

urbana, sobretudo considerando a importância do rio Capibaribe:

“Vegetação luxuriante, mangueiras (árvore soberba), laranjeiras em profusão. Fragrâncias deliciosas pairam no ar. As margens do Capibaribe frondosas e belas. Tudo me agradava” (VAUTHIER, op.cit., p. 85).

Vauthier reconheceu a importância dos rios para a província, ao escrever em um

de seus relatórios técnicos enquanto engenheiro-chefe de Pernambuco, em 1845:

“Esta província é cortada por numerosos rios, que se estendem até uma considerável distância no interior, dar-lhe-ão certamente, no futuro, um magnífico sistema de navegação fluvial, que com alguns canais de junção, estabelecerá meios de comunicação entre as diversas partes, e as províncias vizinhas” (CHACON, 1959, p. 46).

A navegação pelo rio Capibaribe por meio de embarcações modernas é um

desejo antigo dos gestores urbanos do Recife. Chacon (op.cit, p. 46 - 51) apresenta uma série

de leis, normas e estudos que emitiam opiniões favoráveis a esta utilização, como forma de

dinamizar a economia e facilitar o transporte dos habitantes.

Os serviços de infraestrutura planejados no período da administração do Conde

da Boa Vista apontavam para melhorias significativas ao abastecimento de água e

locomoção da população. Foi planejado o abastecimento de água potável, além de serem

construídas as pontes da Madalena, de Afogados, de Jaboatão, a ponte pênsil da Caxangá, e

reformadas a do Recife e a da Boa Vista.

Como legado arquitetônico, Vauthier deixou sua principal marca na paisagem do

Recife expressa no Teatro de Santa Isabel, projetado às margens do rio Capibaribe,

tornando-se um dos principais pontos de lazer da alta sociedade da época. As figuras 10 e

11, retiradas do álbum de Luís Schlappriz, representam o teatro e seus arredores, indicando

sua importância para cidade.

Os projetos e ideias expressas por Vauthier são reveladores de sua formação

cultural. Suas experiências tiveram um papel decisivo na sua forma de interpretar e construir

as paisagens brasileiras. Tendo realizado seus estudos em Paris, seu legado indica que ele

considerou a importância do Capibaribe para cidade, a partir de suas experiências em uma

cidade que tem como referência natural o rio Sena.

83

A partir dos investimentos realizados, o Recife iniciou um novo estágio em seu

desenvolvimento. A cidade cresceu em número de habitantes, contando, em 1859, com

aproximadamente 100.000 moradores e se “modernizou” conforme relata o francês Robert

Avê-Lallemant (1967, p. 280-281):

“Pernambuco é uma cidade inteiramente comercial, embora conte com apenas 100.000 habitantes, e seja inferior em população às cidades do Rio de Janeiro e Bahia [...] Com todos esses elementos, é Pernambuco a verdadeira cidade do futuro do Brasil”

Figura 10: Campo das Princezas (Largo do Palácio) no século XIX

Fonte: Ferrez, 1981, p.47

Com o adensamento populacional, ocorreu a deterioração das condições

higiênicas e sanitárias, já que não havia um sistema de eliminação dos dejetos, resultando

em epidemias de cólera nos anos de 1856 e 1859, dizimando até cem pessoas por dia. O

agravamento da situação gerou o estabelecimento de uma concessão para a construção de

canais que levariam as águas servidas ao rio (SETTE, 1978, p.263).

Segundo Melo (2003, p.90) as relações entre o homem e as águas começaram a

modificar-se drasticamente no final do século XIX, pois, até então, mesmo que não houvesse

o devido respeito a esses recursos hídricos pelos senhores de engenhos, eles não o poluíam

na mesma proporção que passou a fazer com o advento das usinas.

84

Figura 11: Vista do Recife (tomada do Teatro S. Izabel). Ao fundo Rio Capibaribe.

Fonte: Ferrez, 1981, p.55

Outra importante mudança, no contexto político nacional, com influência direta

na constituição da fisionomia do Recife, se deu com o fim da escravidão. O reflexo dessa

enorme massa de trabalhadores agrícolas na cidade se materializou no aumento dos

mucambos as margens do Capibaribe, áreas desocupadas onde algumas residências

passaram a ser construídas.

Com as reformas realizadas na área portuária, a cidade entra no século XX com

outro aspecto fisionômico e econômico, alterando assim a relação com as águas, sobretudo

com os rios, que passam praticamente a não ser mais utilizado, sendo, assim, esquecido pela

população, com exceção de alguns poetas e cronistas.

Como apontou Menezes (1978, p.260), o século XIX pode ser considerado:

“[...] o grande século do Recife. Veremos o seu crescimento, mas também assistiremos o seu caminhar lento para a destruição que se processará nos seus últimos anos[...]”.

A partir das narrativas apresentadas, podemos ver como a relação estabelecida

entre sociedade e natureza ao longo dos séculos teve um caráter conflitante, constituindo

uma mistura de deleite e degradação. Estas leituras do século XIX mostram um Recife

encantador que mira na modernidade, mas que começa a apresentar graves problemas

socioambientais.

85

3.3. SÉCULO XX: (DES) encantos modernos e luta pela tradição

Segundo Rezende (1997, p. 26) o início do século XX representou para o Recife o

momento mais significativo de encontro entre as tensões da modernidade44 e a luta pela

tradição. “Tensões que se expressavam nos debates dos seus intelectuais, nas noticias e

opiniões registradas na imprensa, no cotidiano invadido por certas invenções e hábitos

modernos”.

Com a chegada do século XX a cidade iniciava sua busca por melhorias portuárias

e adaptação do traçado urbano para atender as novas necessidades, impostas pela

valorização do automóvel. Deste desejo, teve inicio em 1909 a reforma urbana no bairro do

Recife em busca de facilitar o acesso de mercadorias e proporcionar um aumento na

chegada de navios ao porto (LUBAMBO, 1988).

As ações realizadas compreenderam uma verdadeira destruição do antigo

traçado urbano colonial e construção de um novo tecido urbano sob as orientações do plano

urbanístico de Haussmann. Segundo Cavalcanti (1977, p. 67 - 68): “um traçado urbano,

merecedor de elogios por um lado, tornou-se deveras condenável, por outro. Decretada a

destruição das magníficas, históricas e artísticas construções, como a igreja do Corpo Santo,

e os Arcos [...]”. Este depoimento demonstra a contradição entre os novos ares da

modernidade e a tradição, expressas nas novas paisagens que foram sendo construídas.

Mario Sette (1978, p. 54-55) revela que as ações de modernização da área

central afetaram não só as construções históricas ali estabelecidas, mas também os gêneros

de vida já estabelecidos, expressos na fisionomia da paisagem:

“Pouco a pouco desaparecia aos olhos não um bairro, mas um cenário de milhares de criaturas no seu presente e no seu passado. [...] Comerciantes gordos de contos de réis, marinheiros de várias gradações, peregrinas do amor caro das pensões da Lingüeta, famílias modestas das habitações baratas em últimos andares de sobrados, quitandas e vendolas, quiosques e barracas, "raparigas" de fáceis leitos e pequenas pagas, arraigados moradores da freguesia por devotos do Senhor dos Passos ou da Conceição do Arco, tudo, tudo se deslocava enquanto as picaretas golpeavam e os tetos se abatiam. Os esqueletos dos prédios meio derrubados equilibravam-se, e devassavam-se interiores impudicamente: paredes com restos de pintura a óleo, outras de simples caiação, salas de visitas, alcovas, corredores, banheiros, cozinhas, mirantes, sotéias... [...] Tudo no chão. Nunca se vira uma loucura assim”.

44

Segundo Rezende (1997, p.117), baseado em diversos autores, “A modernidade [...] é um processo contraditório, cria conflitos, destrói valores, inventa concepções de mundo e de vida.”

86

Apesar das diversas dificuldades enfrentadas pela empresa responsável por

executar a reforma do porto, tais como os constantes defeitos nas dragas, dificuldades de

pagamento dos empregados, demora no estabelecimento das indenizações a serem pagas

aos proprietários dos imóveis, as obras foram vistas como o caminho para o Recife lograr

grandes progressos e vir a ser considerada “uma das mais importantes cidades de América

do Sul”.45

Problemas relativos à falta de saneamento também estavam presentes no início

do século XX, causando alta mortalidade na cidade e sendo também largamente publicada

nos jornais de grande circulação.46 Como forma de solucionar os problemas sanitários do

Recife, diversas ações foram empreendidas, culminando com a contratação do sanitarista

Saturnino de Brito, responsável pela construção da rede de esgoto da cidade.

Após o estabelecimento da República, o Recife já tinha uma fisionomia de cidade

moderna. Sua população em 1913 era estimada em 218.300 habitantes e entraria na década

de vinte com uma população de 238.843 (REZENDE, 1997, p.32).

A cidade deixou de ter uma configuração urbana tentacular em cinco direções

distintas, para apresentar uma verdadeira mancha urbana. Segundo Pontual (2001, p. 424)

“o rio permaneceu marcando a fisionomia da cidade, mas os bairros perderam os limites,

interligando-se, compondo uma tessitura contínua de quadras, ruas e edificações”.

Novas configurações urbanas exigiam ações para atender as necessidades de

uma população crescente. Segundo Arrais (2004, p.49) o urbanismo moderno foi a solução

encontrada pelos gestores da cidade para suprir os problemas sociais do Recife durante este

período; urbanismo que levou a um processo de destruição monumental, seguindo de uma

penosa reconstrução das áreas centrais do bairro de Santo Antônio, construindo uma

paisagem formada por longas e retas avenidas, que atendia os desejos do transporte

individual, em detrimento dos meios públicos de locomoção.

45

Diário de Pernambuco, 06/09/1909. Consulta realizada ao Arquivo Público Estadual constatou que as obras do porto foram, após a inauguração oficial das atividades, noticiadas diariamente em suas páginas entre julho e dezembro de 1909. 46

Em 22 de julho de 1909 foram publicadas no Diário de Pernambuco as taxas de mortalidade da cidade do Recife entre 1 a 15 de julho do mesmo ano. Com dados organizados pelo médico Dr. Octavio de Freitas, 342 pessoas morreram na cidade, dos quais 277 na área urbana. Desse total de mortos, 21 foram causadas por efeitos da disenteria. Em 20 de agosto de 1909, os dados relativos a outra quinzena mostra que 335 pessoas vieram a falecer, sendo 276 na área urbana. Então, somente no mês de julho de 1909, 553 habitantes do Recife faleceram, indicando as péssimas condições de saúde da cidade.

87

Segundo Antonio Paulo Rezende (op. cit., p.57 – 90), além das reformas urbanas

a luz elétrica chegou às ruas da cidade, jogos de futebol tornaram-se frequentes e

concorridos aos finais de semana, o cinema invadiu o cotidiano dos recifenses criando novos

sonhos, e as antigas pontes deram lugar às novas construções de concreto, sendo retirados

os tradicionais arcos de suas entradas, possibilitando o trafegar dos novos carros.

Porém o encanto proporcionado pela inserção de Pernambuco na modernidade

introduziu no Recife um paradoxo, que os intelectuais da época expressaram através de seus

escritos. Segundo Arrais (op. cit., p.27):

“Nos anos de 1930 e 1940, os intelectuais locais reagiram contra a intervenção urbanística que modificou grandes porções da forma espacial da cidade. O remodelamento que se dirigiu para o centro da cidade foi recebido por eles como perdas irreparáveis, contra os quais eles tenderam a orientar suas ações e sobretudo mobilizar sua escrita”

Tem início o desencanto frente aos aspectos modernos, seguido da valorização

do regionalismo. Vários atores utilizaram da escrita para expor suas críticas quanto as

mudanças ocorridas na cidade (ARRAIS, op. cit.). Surge assim a ideia nostálgica de um Recife

Antigo47 (FIGURA 12), da busca pela tradição e da valorização de uma época passada.

Figura 12: Vista de Santo Antônio, tirada do Recife em 1817.

Fonte: Ferrez, 1988, p.48

Como reflexo das mudanças, a relação entre os moradores da cidade e os

recursos hídricos também foi afetada, conforme mostrou Freyre (2004, p. 71):

47

Segundo Arrais (2004, p.59 - 60) foi com a publicação do livro de Fernando Pio “Meu Recife de outrora: Crônicas do Recife Antigo” em 1934, que parece ter surgido pela primeira vez a expressão Recife Antigo para designar uma época da história passada da cidade.

88

“As casas já não dão a frente para a água dos rios: dão-lhe as costas com nojo. Dão-lhe o traseiro com desdém. As moças e os meninos já não tomam banho de rio: só banho de mar. Só os moleques e os cavalos se lavam hoje na água suja dos rios. O rio não é mais respeitado pelos fabricantes de açúcar, que outrora se serviam dele até para lavar a louça da casa, mas não humilhavam nunca, antes o honravam sempre. [...] Esses rios secaram na paisagem social do Nordeste [...]. Em lugar deles correm uns rios sujos, sem dignidade nenhuma”.

Outro autor que também mostrou indignação ao considerar a degradação das

águas dos rios do Recife foi Vamireh Chacon (1959, p. 58 - 59):

“Constitui, pois, uma aberração que a capital de Pernambuco trate hoje tão mal seus rios. Não se satisfaz em dar as costas ao Capibaribe, pois antigamente as patriarcais casas da Madalena, Torre ou Monteiro tinham entradas pelo rio. [...] Hoje se inverteu o processo. [...] é o cúmulo suceder tal coisa”

No mesmo texto o autor vai mais além ao considerar que “Quando se fala do

Recife, fala-se necessariamente do Capibaribe. Não tem sentido, portanto, o desprezo por

ele. Dando as costas aos seus rios o Recife dá as costas a si mesmo” (CHACON, op. cit.,

p.101).

Mesmo com o contexto da degradação ambiental e das transformações

modernas, a relação da cidade com as águas continuou a encantar e inspirar a população.

Um reflexo disto são os diversos poemas escritos sobre a cidade e as águas, com críticas as

novas características e nostalgias em relação aos tempos passados.

Manuel Bandeira, um dos autores que teceu críticas as reformas urbanas,

apresentou em sua EVOCAÇÃO DO RECIFE (BANDEIRA, 1983, p.31) a cidade e a relação entre

homem e água:

[...] Capibaribe - Capibaribe Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas Com o xale vistoso de pano da Costa [...] Foi há muito tempo...

Ao sentimento de nostalgia se misturava o da tristeza de ver as modificações da

cidade. Joaquim Cardozo (1983, p. 53-54) expressou em seu poema RECIFE MORTO este

sentimento:

[...] Recife ao clamor desta hora noturna e mágica, vejo-te morto, mutilado, grande,

89

pregado à cruz das novas avenidas [...]

Porém, a paisagem da cidade cuja fisionomia tinha como principal característica

a mistura com as águas ainda fascinava o poeta. Em TARDE NO RECIFE (op.cit, p.55) ele

mostrou como, apesar do novo estilo de vida moderno, ainda é possível admirar a beleza

romântica das águas integradas à cidade:

Tarde no Recife. Da ponte Maurício o céu e a cidade. Fachada verde no Café Maxime, cais do abacaxi, gameleiras. Da torre do Telégrafo Ótico a voz colorida das bandeiras anuncia que vapores entraram no horizonte. Tanta gente apressada, tanta mulher bonita; a tagarelice dos bondes e dos automóveis. Um camelô gritando – alerta! Algazarra. Seis horas. Os sinos. Recife romântico dos crepúsculos das pontes, Dos longos crepúsculos que assistiram à passagem dos fidalgos [holandeses, que assistem agora ao movimento das ruas tumultuosas, que assistirão mais tarde à passagem dos aviões para as costas do [Pacífico; Recife romântico dos crepúsculos das pontes e da beleza católica do [rio.

Carlos Pena Filho (1983, p.179-188) ao produzir um GUIA PRÁTICO DA CIDADE

DO RECIFE apresentou uma cidade que se levanta das águas, formada por holandeses,

portugueses, igrejas e boemia:

No ponto onde o mar se extingue e as areias se levantam cavaram seus alicerces na surda sombra da terra e levantaram seus muros do frio sono das pedras [...] Ali é que o Recife é mais propriamente chamado com seu pecado diurno e seu noturno pecado, mas tudo muito tranqüilo, sereno e equilibrado. [...]

Alguns autores, talvez os mais envolvidos com a paisagem da cidade (ROCHA,

1967), extrapolam a associação da cidade com as águas, para mesclar sua própria vida a vida

90

do Capibaribe. Austro Costa (1983, p.58) chamou o rio de “meu” e atentou para a solidão de

ambos em seu poema CAPIBARIBE, MEU RIO:

Capibaribe, meu rio, espelho do meu olhar, quero fazer-te o elogio mas penso: se te elogio é a mim que estou a elogiar... [...] Capibaribe, meu rio. que vida levamos nós! Tu corres, eu rodopio... E há quarenta anos a fio: sempre juntos e tão sós! [...]

Esquecido e degradado, o rio Capibaribe fica, a partir de 1930, relegado as

ocupações de baixa renda. Mucambos e mucambeiros ocupam as margens, habitando em

condições subnormais, em contraste com as classes de maior poder aquisitivo da sociedade.

O fragmento do POEMA (ESCRITO PARA TETOS PALAFITAS PLANTADOS NA LAMA DO

CAPIBARIBE), de Edmir Domingues da Silva (1983, p.69-70), expressa essa situação, além de

indicar a poluição das águas, antes límpidas e transparentes, agora noturnas, como uma

eterna noite:

[...] “Rio, contém as águas na vazante que entre o rumor das sombras que se empurram estranhas residências se levantam do teu leito de lama e agonia. Rio, contém as águas na vazante, que homens, mulheres, velhos e crianças, compartilham da lama do teu leito enquanto ao lado os príncipes sorriem. Águas noturnas, rio, eterna noite, sobretudo as crianças, quando sofrem na completa ignorância do conforto. [...] Nada comove as pontes. E no entanto a agonia se esconde ao lado delas, sob os tetos de zinco, na fumaça negra dos lampiões de querozene, se êles são agonia ao pé da lama, madeira pôdre, som de desespero, ai, que as cores do trópico se casam freqüentemente às cores da miséria. [...] Ah, serpente bicéfala, cidade de esplendor e miséria inenarráveis, o seu poeta soffre ao magro chôro das crianças de lama que cultivas”.

91

Um dos poetas que mais se reportou ao rio Capibaribe foi João Cabral de Melo

Neto que descreve a relação entre o rio Capibaribe e suas margens. Em diversos dos seus

poemas, ele aponta a degradação das águas, decorrentes da forma de utilização pelo

homem, como um corpo indissociável que formam paisagens diversas ao longo do Estado de

Pernambuco.

Para João Cabral, em CÃO SEM PLUMAS (1983, p.134-144), o rio é “um cão sem

plumas”, que flui “como uma espada de líquido espesso” através das diversas paisagens

formadas por “homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas”, que igual

ao rio, eram como “cão sem plumas”, habitando as margens em mucambos, onde:

[...] difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; [...]

No poema O RIO (op. cit. 145-153) ele lê os diversos territórios por onde o rio

flui, indo do sertão até a foz no porto do Recife. Neste texto, o leitor é convidado a navegar

pelas águas do Capibaribe, enquanto o autor se coloca na posição do próprio rio, apontando

suas contradições expressas nas suas belezas e problemas ambientais, como pode ser

constatado neste trecho do poema:

[...] até o mar oceano para formar o Recife os rios vão sempre atulhando. Com água densa de terra onde muitas usinas urinaram, água densa de terra e de muitas ilhas engravidada. Com substância de vida é que os rios a vão aterrando, com esses lixos de vida que os rios viemos carreando. [...] um menino bastante guenzo de tarde olhava o rio como se filme de cinema; via-me, rio, passar com meu variado cortejo de coisas vivas, mortas,

92

coisas de lixo e de despejo; [...] Rio lento de várzea, vou agora ainda mais lento, que agora minhas águas de tanta lama me pesam. Vou agora tão lento, porque é pesado o que carrego: vou carregado de ilhas recolhidas enquanto desço; [...] Mas antes de ir ao mar, onde minha fala se perde, vou contar da cidade habitada por aquela gente que veio meu caminho e de quem fui o confidente. Lá pelo Beberibe aquela cidade também se estende pois sempre junto aos rios prefere se fixar aquela gente; sempre perto dos rios, companheiros de antigamente, como se não pudessem por um minuto somente dispensar a presença de seus conhecidos de sempre [...]

A leitura da paisagem construída por João Cabral de Melo Neto apresenta o

excluído, o morador do Mucambo, ao mesmo tempo em que interpreta as águas do

Capibaribe em algo vivo, o rio é visto como algo lírico, mas também de dor, conforme

também considerado por Freyre (2000, p. 75):

“Não é um rio apenas lírico, de serenatas melifluamente românticas nas noites de lua. Nem apenas de banhos alegres de estudantes com atrizes como outrora o Beberibe. Também dramático. Rio de afogamentos, de suicídios, de crimes. Rio de doenças que roem fígados, devastam intestinos, rasgam entranhas [...]”

Josué de Castro (1957, p.208 – 209) foi outro importante autor do século XX a

considerar os aspectos fisiográficos como fundamentais na formação da fisionomia do

Recife. Em grande parte de sua obra ele mostra através de uma análise crítica, por vezes

poética, como a cidade foi se configurando:

“[...] ainda incerta de terra e de água – que nasceu e cresceu a cidade do Recife, chamada de cidade anfíbia, como Amsterdã e Veneza, porque assenta as massas de sua construção quase dentro d’água, aparecendo numa perspectiva aérea, com seus diferentes bairros, flutuando esquecido à flor das águas”

93

Segundo o autor (op.cit, p.263) “Sempre a presença da água, sempre o mar ou os

rios – principalmente os rios – dirigindo a sua localização, a sua evolução e a sua direção,

enfim, a sua colonização urbana da paisagem”.

Para Josué de Castro as águas em si não apresentam importância, mas sim a

forma como a população se relaciona com elas ao longo do tempo construindo as paisagens.

Desta forma, ele observa o desenvolvimento social do Recife a partir das maneiras como a

sociedade sobrevive do rio. Com este olhar, Josué de Castro lê a paisagem do Recife a partir

do contraste estabelecido entre o excluído e as classes da sociedade de alto poder

aquisitivo.

Seus trabalhos enfocam os problemas de alimentação e habitação no Recife nas

áreas localizadas às margens dos rios e estabelecem a “sociedade dos caranguejos”,

constituída no contexto que se configura entre uma estrutura agrária feudal e uma estrutura

capitalista, geradora de enormes diferenças sociais. “Estruturas que persistem no Nordeste

do Brasil, lado a lado, sem se fundirem, sem se integrarem até hoje num mesmo tipo de

civilização” (CASTRO, 2001, p.14).

Em suas análises, o problema das ocupações a margem do rio é vista como

resultante de uma “[...] urbanização excludente, mas que deita suas raízes em um processo

de espoliação rural ligado ao latifúndio da cana-de-açúcar. [...] sem esconder um certo

encantamento pelo cenário grotesco dos mocambos” (LIRA, 1994, p. 52).

Para Castro (2008) o cenário dos mocambos localizados nas margens dos rios

expressa o relacionamento dos moradores com os recursos hídricos, sendo fundamental

para a sobrevivência desta classe social, que tiram das águas sua alimentação e moradia,

como é visto no seu romance “Homens e Caranguejos”:

“Para a chuva com a saída do sol e, à luz do dia, surge nítida esta estranha paisagem do charco, mistura incerta de terra e de água, povoada de estranhos seres anfíbios – os homens e os caranguejos que habitam os mangues do rio Capibaribe. [...] Tudo ai é, foi, ou está para ser, caranguejo, inclusive a lama e o homem que vive nela.[...] Quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive dela, cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, [...]. Por outro lado, o povo vive de pegar caranguejo [...] Nesta aparente placidez do charco desenrola-se, trágico e silencioso, o ciclo do caranguejo” (CASTRO, op.cit, p. 26-27).

Essa estética do caranguejo, levantada por Castro, juntamente com outros

autores como João Cabral de Melo Neto, tem influencia em épocas recentes. Em uma (re)

94

leitura da paisagem atual, diversas movimentações culturais estabeleceram o Recife como a

“Manguetown”, fundido as diversas expressões culturais tradicionais da música e folclore a

críticas sobre a situação socioambiental da cidade expressas em suas leituras da paisagem

através de músicas e manifestos, como os trechos abaixo:

[...] Ô Josué eu nunca vi Tamanha desgraça Quanto mais miséria tem Mais urubu ameaça [...]

48

“Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.”

49

A partir dos documentos culturais apresentados, podemos observar como a

leitura da paisagem produzida no século XX valorizou a busca por uma tradição, em

contraposição aos problemas gerados pelos avanços da modernidade na cidade do Recife.

A leitura da paisagem aqui construída enfocou apenas um dos eixos de

interpretação possíveis. Porém, na proposta estabelecida para o trabalho, ficou claro como

os recursos hídricos exercem fundamental papel na constituição fisionômica da paisagem

cultural da área central, estabelecendo uma relação que vai além da fisionomia física das

formas construídas, mas vincula-se estreitamente com os aspectos sentimentais e

simbólicos do Recife. Esse relacionamento é tão marcante na cidade, que foi ao pouco sendo

incorporada a identidade da população, já fazendo parte da memória coletiva, como foi

apresentado na introdução a partir dos trabalhos de Melo (2003) e Maciel (2008).

Esta leitura orientou a consulta junto aos grupos envolvidos com a área central,

definindo as perguntas realizadas na entrevista semiestruturada. O resultado das entrevistas

e suas análises são debatidos no próximo capítulo, onde serão identificados os elementos e

significados que constituem essa paisagem cultural.

48

Trecho da música “Da Lama ao Caos”, composta por Chico Science. Cf. Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao Caos, Sony Music Entertainment. 49

Trecho do manifesto “Caranguejo com Cérebro”, de autoria de Fred 04, jornalista e músico pernambucano. Disponível em http://pt.wikisource.org/wiki/Caranguejos_com_c%C3%A9rebro.

CAPÍTULO 4 - PARA ALÉM DA FISIONOMIA: Leituras da paisagem pelos grupos

envolvidos

“[...] defender o patrimônio público, defender áreas públicas, defender a memória, não é saudosismo idiota,

nem é atitude antiprogressista, é exatamente o contrário, é uma visão de totalidade que pensa no hoje e no

amanhã, e que dá sempre os melhores resultados”.

Relato obtido através da entrevista realizada pelo autor com historiador

96

Como visto nos capítulos anteriores, a paisagem cultural do centro do Recife é

uma construção inacabada decorrente dos diversos gêneros de vidas estabelecidos a partir

da relação dos grupos culturais com o meio ambiente ao longo dos séculos, expressa na

fisionomia de seu território e repleta de significados.

O presente capítulo procura definir quais elementos e significados constituem

esta paisagem, com base nos diversos grupos culturais atualmente envolvidos com a área,

ampliando a proteção do patrimônio de forma que ela integre tanto os aspectos naturais

quanto os culturais e subjetivos. Além disto, busca-se identificar se a relação entre homem e

meio ambiente construída ao longo dos séculos no centro do Recife ainda se mantém viva,

merecendo uma proteção especial.

O capítulo está dividido em duas partes. Na primeira, os resultados das 70

entrevistas semiestruturadas realizadas junto aos atores do grupo denominado de usuários

são apresentados. De acordo com a metodologia proposta, foram entrevistadas pessoas

inseridas nos grupos dos moradores, pescadores, visitantes e comerciantes. Esses grupos

foram selecionados em função da narrativa construída, que valorizou a relação histórica,

econômica e social entre cidade e recursos hídricos.

Na segunda parte, são apresentados os resultados das 7 entrevistas realizadas

junto ao corpo técnico compreendido como especialistas. Este grupo foi composto por

representantes da gestão patrimonial nas três esferas, bem como acadêmicos e

representantes de ONG’s com reconhecidos trabalhos sobre o centro do Recife.

Cada uma dessas entrevistas resultou em depoimentos orais, interpretados

como produtos culturais, reflexos das leituras pessoais dos grupos envolvidos na construção

da paisagem do centro do Recife. Essas leituras, apesar de construídas em um primeiro

momento a partir da relação com os aspectos fisionômicos, são também repletas de

aspectos subjetivos, que devem ser considerados na definição dos elementos que compõem

essa paisagem.

97

4.1. LEITURAS DA PAISAGEM PARA OS USUÁRIOS: SEUS ELEMENTOS E

SIGNIFICADOS

Neste item serão identificados os elementos que compõem a paisagem cultural

do centro do Recife e interpretados seus significados, a partir dos relatos orais obtidos junto

aos representantes do grupo denominado de usuários.

Segundo Muños Viñas (2005, p. 210), quando lidamos com elementos de grande

importância social, a voz dos usuários deve, muitas vezes, ser mais importante que as

opiniões dos técnicos e especialistas. Desta forma este grupo apresenta grande importância

na definição da paisagem cultural, afinal o centro da cidade é uma área significativa para

diversos setores da sociedade, como mostrado anteriormente.

Foram realizadas 70 entrevistas, distribuídas ao longo da área central, conforme

o mapa abaixo (MAPA 2). Destas, 13 foram realizadas com o grupo dos pescadores, 17 com

representantes do grupo dos comerciantes, 26 com atores considerados visitantes e 14 com

moradores da área.

A escolha desses grupos se deu devido a narrativa estabelecida. Neste caso, o

grupo dos pescadores está historicamente presente nas águas da área central, apresentando

a atividade desenvolvida por eles uma importante função social por ser fonte de

alimentação e renda da população. Já os comerciantes são marcantes na constituição

econômica e política da paisagem recifense, ao mesmo tempo em que continuam presentes

na área central. O grupo dos visitantes engloba tanto os turistas quanto os trabalhadores nas

instituições públicas e privadas localizadas na área central e o grupo dos moradores

representam os resquícios de uma antiga função do centro da cidade.

Nas entrevistas as questões foram organizadas dentro de tópicos

semiestruturados, com a intenção de obter respostas às questões que se pretende

esclarecer, possibilitando o entrevistado se expressar livremente. Assim, as temáticas

aplicadas a este grupo foram estruturadas da seguinte forma:

a) Compreensão sobre os bens patrimoniais;

b) Vinculações com os Recursos Hídricos;

c) Identificação dos elementos e significados.

98

O primeiro tópico busca identificar se a população em geral reconhece quais são

os bens patrimoniais presentes no território do centro, bem como se a associação entre os

elementos naturais e os produzidos pelo homem compõem parte do patrimônio de uma

cidade, o que possibilitaria a adoção da paisagem como um futuro instrumento de proteção.

O segundo tópico busca compreender quais as vinculações existentes dos usuários do centro

com os recursos hídricos, principais elementos naturais que constituem a fisionomia da área

central. Já o terceiro tópico busca identificar quais são os elementos e significados

constituintes da paisagem cultural do centro do Recife merecedores de proteção especial na

leitura desse grupo.

MAPA 2: Locais onde foram realizadas as entrevistas com os atores do grupo Usuários

Fonte: autor, 2011

99

4.1.1. Leituras dos pescadores

Este grupo foi composto pelas pessoas que estavam executando a atividade da

pesca durante a aplicação dos questionários ou que se identificaram como pescadores

profissionais. Foram realizadas 13 entrevistas, distribuídas ao longo da área central,

sobretudo sobre as pontes Mauricio de Nassau, Buarque de Macedo e cais da Av. Martins de

Barros50 (MAPA 3). Os locais onde foram realizadas as entrevistas foram escolhidos devido a

constante atuação desses atores na área.

MAPA 3: Pescadores entrevistados no centro do Recife

Fonte: autor, 2011

50

Pescadores localizados na Ponte do Limoeiro, onde há um pequeno cais de embarcações, optaram por não dar entrevista.

100

Antes de se comentar os resultados das entrevistas aplicadas é importante

caracterizar a atividade da pesca desenvolvida no centro do Recife, pois ela apresentou

características culturais significativas. Além disto, esta atividade, realizada diretamente nas

águas do rio Capibaribe, mostra como ainda há vinculações diretas com os elementos

naturais da paisagem, muitas vezes esquecidas pelos gestores da cidade.

Pode-se observar uma heterogeneidade no grupo de entrevistados referente as

condições sociais, objetivos da pesca, modos de execução da atividade, bem como na leitura

realizada da paisagem do centro.

Para estes atores há a transmissão da cultura tradicional, pois os conhecimentos

necessários para execução da atividade são passados através das gerações. Segundo um

pescador, entrevistado na Av. Martins de Barros: “Meu pai que me ensinou a me equilibrar

no barco e jogar a sarrafa, meu avô também já era pescador por aqui e hoje eu ensino o

meu filho também”.

Foi observado que a pesca realizada sobre as pontes pode ser feita através do

lançamento da sarrafa ou do jererê. A pesca realizada pelo jererê (FIGURA 13) tem como

objetivo a coleta do siri para consumo próprio ou venda espontânea. Segundo um pescador

entrevistado durante a atividade na Ponte Mauricio de Nassau:

“isso aqui é pra comer, mas quando a maré tá boa eu levo ali no mercado e vendo

lá ou aqui na ponte mesmo. Às vezes passa gente aqui na ponte e quer comprar na

hora”

A pesca realizada através do lançamento da sarrafa sobre as pontes (FIGURA 14)

também apresentou uma importância social, porém gerando um ciclo econômico muito

maior, ao gerar mais renda ao pescador e existir até atravessadores e vendedores de redes.

Segundo o artesão de sarrafas, morador da comunidade do Pilar, “[...] a pesca e o rio é o que

sustenta muitas famílias daqui. Mesmo eu não pescando mais ainda ganho algo do rio e da

pesca vendendo essas sarrafas”.

Outra característica dessa pesca é a variedade de espécimes de peixes que

podem ser coletadas diretamente do rio. Segundo um pescador, entrevistado na Ponte

Buarque de Macedo, na área “[...] tem tainha, bagre, tilápia, soia, tauna, siri mole, siri duro,

caranguejo, camarão [...]”. A diversidade de peixes mostra a presença de animais

característicos de água salgada, assim como de águas doces.

101

Figura 13: Pescador sobre a ponte Mauricio de Nassau

Fonte: autor, 2011

Figura 14: Momento de jogar a sarrafa na Ponte Mauricio de Nassau.

Fonte: autor, 2011

Por fim, a terceira forma de pesca identificada na área do centro foi a realizada

sobre os barcos, em baixo das pontes, nas proximidades do palácio do campo das princesas

ou nas proximidades do porto do Recife. Esta forma de pesca se caracterizou pela

transferência da cultura entre gerações, manutenção do modo de fazer e grande

importância comercial. Segundo um pescador, morador do bairro de Santa Tereza em

Olinda, disse que “[...] saio de madrugada de barco de casa e vou arrastando a rede dando a

volta aqui no Recife, mas sempre com comprador certo”. Nesse caso ele se refere aos

102

comerciantes de peixes localizados na Rua Martins de Barros, próximos a saída do Cais de

Santa Rita.

Sobre a compreensão desse grupo quanto os bens patrimoniais, ficou claro o

desconhecimento do tema. Dos treze entrevistados, todos não souberam citar quais seriam

os bens reconhecidos legalmente localizados na área central do Recife ou sequer

demonstraram conhecimento do que seria um patrimônio.

Dois pescadores consideraram que os recursos hídricos presentes no centro não

poderiam ser considerados um bem de interesse patrimonial. Segundo um deles,

entrevistado sobre a Ponte Mauricio de Nassau:

“[...] Para a gente que é pescador tanto faz, mas talvez fosse melhor porque iria melhorar a situação do rio e do pescador, pois ai teríamos o rio para pescar e arrumar um trocado”

Outro pescador considerou que o Rio Capibaribe não poderia vir a ser um

patrimônio, pois ele enfrenta sérios problemas ambientais. Em seu depoimento, recolhido

no pátio da Igreja do Carmo durante um evento sobre pesca artesanal organizado pela

Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), nota-se uma forte preocupação com as

questões socioambientais:

“Como patrimônio poderia, mas na situação que tá? Poderia se tivesse melhor. Quando a gente fala de um patrimônio de um país, de uma cidade, é uma coisa pura, é uma coisa limpa. Então como você vai colocar uma placa ali dizendo que é um patrimônio de uma coisa podre? Que exemplo a gente vai dar para as crianças? Que patrimônio é esse? Primeiro teria que tirar as palafitas e limpar, depois falar com o povo para não sujar, por causa de que é o povo que deixa o rio sujo, depois ter um saneamento de verdade, para ai sim ele ser um patrimônio de verdade”.

Este depoimento mostra como a leitura realizada da paisagem não é

desvinculada das formas observadas no cotidiano de cada um. O pescador em questão é

morador da comunidade de “Brasília Teimosa” e observa durante seus dias de pesca a

construção das palafitas nas margens da Bacia do Pina ou no próprio Rio Capibaribe, além do

lançamento de dejetos nas águas do rio pela ausência de uma política de saneamento e

urbanização efetiva.

Mesmo com os problemas ambientais, o Rio Capibaribe e as relações

estabelecidas entre o Recife e suas águas foram vistos como verdadeiros patrimônios para a

cidade, devido a seus significados sociais. Ele foi considerado pelo mesmo pescador acima

como:

103

“[...] uma mãe de família. Porque se você der uma volta dentro do rio, você vai ver a quantidade de gente que tem pescando. Então ainda é uma mãe. E se não fosse essa poluição não seria só mãe não, seria mãe, pai, irmão, tio...seria a família toda.”

Enquanto que outro pescador, entrevistado na Ponte 12 de Setembro, teve um

pensamento parecido ao afirmar que o Rio “é a mãe de milhares de pernambucanos. Sem

esse rio aqui muita gente estaria passando muita necessidade”.

Quando perguntados o que poderia vir a ser um bem patrimonial no centro do

Recife, as respostas tiveram o mesmo direcionamento. O gráfico 1 mostra que o Rio

Capibaribe foi citado 30% e o manguezal 15% do total de elementos citados pelo grupo,

representando a importância desses elementos para este grupo cultural.

Outra característica observada é que os elementos culturais citados como

merecedores do reconhecimento patrimonial são aqueles próximos dos recursos hídricos,

como pode ser visto nas imagens abaixo (FIGURA 15 a 18).

Gráfico 1: Elementos patrimonializaveis do centro do Recife os pescadores.

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

104

Figura 15: Casa da Cultura vista da Ponte da Boa Vista

Fonte: o autor, 2011

Figura 16: Parque das Esculturas visto do Marco

Zero.

Fonte: o autor, 2011

Figura 17: Marco Zero visto do Parque das

Esculturas.

Fonte: o autor, 2011

Figura 18: Pontes do Recife vistas do Rio

Capibaribe.

Fonte: o autor, 2011

O ponto referente às vinculações estabelecidas entre os representantes do

grupo com os recursos hídricos foi onde o Rio Capibaribe teve maior expressão, sendo

relacionado a aspectos sociais, econômicos e ambientais, misturados a sentimentos de

tristeza e nostalgia.

Segundo uma pescadora entrevistada a poluição é uma das piores características

das águas no centro da cidade, pois “os peixes estão se acabando, a poluição é demais,

muita poluição, muito lixo, muita calda e tá acabando com tudo. Já acabaram com o marisco

e agora sururu tem muito pouco”, contudo a principal característica do rio ainda é sua

função social de fornecer uma variedade de alimentos para essa população:

“É a sobrevivência para os pescadores, da gente que é marisqueira. Nele tem caranguejo, tem siri, tem unha de velho, marisco, tem ostra, tem peixe. Tudo para a gente pescar. A gente sobrevive dali, o rio não pode acabar”

105

A função econômica dos recursos hídricos foi vista para além do comércio de

peixes e crustáceos. Segundo um pescador, entrevistado sobre a ponte Buarque de Macedo,

o rio poderia servir como fonte de renda turística, se não sofresse com problemas de

poluição:

“[...] é uma fonte de renda (o Rio Capibaribe), pelo turismo hoje em dia. Você vê que a gente recebe turista de fora do país para fazer turismo numa água de merda dessa. E um turista perguntar: porque essa água tá preta desse jeito e você não poder responder? É triste”

Quanto aos significados ambientais, segundo um pescador sobre a Ponte

Mauricio de Nassau, o rio e a água são “[...] vida e se não tiver isso não se vive” e que

contribui para a qualidade de vida do local, pois é por onde se entra “[...] mais vento pra cá”.

No ultimo tópico da entrevista sobre a identificação dos elementos e

significados, novamente o Rio Capibaribe foi importante para esse grupo, representando

45% dos elementos destacados. O gráfico 2 mostra os elementos identificados após a análise

dos relatos orais do grupo dos pescadores, onde as pontes foram citadas em 18,8%.

Gráfico 2: Elementos da paisagem cultural do centro do Recife, segundo os pescadores.

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Durante a realização das entrevistas, às pontes do centro foi atribuído um

significado estético pela sua beleza marcante na paisagem. Pode-se notar que estes

elementos culturais de épocas e estilos variados formam com sua união às águas do Rio

Capibaribe uma paisagem marcante no centro do Recife e esteticamente agradável aos

frequentadores. Por outro lado, por ser o local de trabalho, as pontes também apresentaram

um significado social. Alguns pescadores as consideraram importantes, “porque eu tou aqui

106

todos os dias”, enquanto outros consideraram que sob as pontes os pescadores “[...]

deixavam os barcos guardados”. Neste último aspecto se faz referência a ponte do limoeiro,

local que funciona como cais de embarcações (FIGURA 19).

Figura 19: Ponte do Limoeiro e o cais para embarcações no rio Capibaribe.

Fonte: autor, 2011

Ao conjunto urbano do Recife Antigo e a Praça do Marco Zero foram lembradas

por serem locais de festividades com um significado social, por gerarem momentos onde é

possível complementar a renda através da coleta de latas de alumínio descartadas na via

pública.

Por fim, as áreas de mangue foram mencionadas por serem locais que fornecem

sustento a população. Segundo um pescador, entrevistado no Pátio do Carmo, “ali no

mangue da Casa da Cultura e da Polícia Federal ainda tem é muito caranguejo” enquanto

outro pescador, entrevistado no mesmo local, revelou que os caranguejos pescados nessas

áreas são voltados para o consumo próprio por serem “[...] mais gostosos e tem mais carne”.

4.1.2. Leituras dos comerciantes

Este grupo foi composto por aqueles que sobrevivem do comércio de algum

produto. Como visto na narrativa apresentada no capítulo 3, esse grupo teve grande

importância para o desenvolvimento da cidade, ao mesmo tempo em que permanece

presente de forma expressiva no centro do Recife.

107

Apesar de o grupo ser composto por um grande número de representantes,

foram contabilizadas apenas 17 entrevistas válidas, já que muitos se negaram a responder

algumas perguntas ou optaram pela não gravação dos relatos. Todas as entrevistas foram

realizadas durante a execução da atividade de comércio, em pontos distribuídos pela área

central como a Avenida Guararapes, Avenida Dantas Barreto, Rua da Moeda, Rua da Aurora,

Mercado de São José, Casa da Cultura, Praça Tiradentes e na Praça da independência (MAPA

4), sendo esses locais pontos tradicionais da atividade no centro.

Sobre a compreensão dos bens patrimoniais, este grupo apresentou

divergências em relação ao grupo anterior. Se por um lado 35% dos entrevistados desse

grupo não souberam citar quais são os elementos reconhecidos como de valor patrimonial,

por outro ao tentar citar quais seriam esses bens, destacaram patrimônios protegidos

legalmente (GRÁFICO 3).

Inscrito nos livros de tombamento Histórico e de Belas Artes em 1973 pelo

IPHAN, o Mercado de São José foi referenciado por 35% dos entrevistados. Contudo, a

quantidade de vezes que ele foi citado não representa um reconhecimento dos atributos

físicos que o tornam um patrimônio nacional, mas sim uma referência a algo presente no

cotidiano dos entrevistados. Neste aspecto, fica claro como o gênero de vida tem papel

significativo na leitura da paisagem. Diferente do especialista que atribui ao mercado uma

importância arquitetônica, para o comerciante o valor do elemento se manifesta através de

seu significado social. Segundo um comerciante entrevistado na Casa da Cultura, o mercado

é importante por ser: “[...] um local que todo mundo vai para comprar legumes e carne e

peixe”, tendo um significado devido sua função social de centro de comércio alimentar.

Já a Casa da Cultura foi reconhecida por 23% dos entrevistados como um

patrimônio para a cidade pelo seu significado econômico, por ser, segundo um comerciante

do Mercado de São José, “[...] local onde os turistas sempre vão”. Porém outro comerciante

do local afirmou que ela “[...] não tem condições de ser um patrimônio, porque a gente que

vive aqui sabe como ela é aqui dentro”, referindo-se a problemas administrativos e

funcionais da antiga prisão.

108

MAPA 4: Comerciantes entrevistados no centro do Recife

Fonte: autor, 2011

Gráfico 3: Bens protegidos legalmente no centro do Recife segundo os comerciantes.

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

109

Quando questionados quais bens do centro da cidade deveriam ser reconhecidos

como patrimônios, as respostas desse grupo foi semelhante ao grupo anterior com

referências a proteção dos recursos hídricos, como pode ser visto no gráfico 4.

Segundo os relatos obtidos, o Rio Capibaribe merece ser reconhecido como um

bem patrimonial por 41% dos entrevistados, pois ele “[...] já está aqui há muitos anos”,

tendo presenciado diversos acontecimentos. Nesse sentido, os recursos hídricos da área

central assumem um significado histórico, em função dos diversos processos ocorridos na

área com influência direta deles.

Gráfico 4: Elementos patrimonializaveis do centro do Recife segundo os comerciantes.

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Outra característica dos depoimentos dados para justificar a proteção do Rio

Capibaribe foi a preservação de seus aspectos ambientais. Alguns comerciantes apontaram

que o reconhecimento deste recurso como de interesse patrimonial, poderia contribuir para

uma melhoria da qualidade ambiental. Segundo um vendedor de frutas, entrevistado no

Mercado de São José:

“O rio tá muito sujo. Se fosse patrimônio talvez melhorasse, mas eu acho complicado. Ele é tão bom para a cidade, mas o povo joga lixo nele. Quando a maré tá baixando o pessoal se aproveita pra jogar cachorro morto, bicho morto, lixo de casa, porque ai a maré leva.”

Neste grupo as vinculações com os recursos hídricos não se mostraram

positivas. Apesar de reconhecerem estes elementos como importante ao ponto de merecer

110

proteção específica, tanto o rio quanto o mar são sempre citados pelos entrevistados como

“[...] muito sujos, cheio de lixo e esgoto” ou até mesmo “horrível”.

Os representantes do grupo responderam que não utilizavam desses recursos

hídricos para nada além da observação. Contudo a atividade de contemplação está sempre

associada a sentimentos de tristeza e repulsa. Segundo um comerciante localizado na

Avenida Guararapes: “eu só olho o rio para ver as coisas ruins dali”, enquanto que outro

relatou que contemplar o rio era na verdade uma obrigação, já que ele está no caminho

diário: “tem que ver né? Agora dizer que é bonito isso eu não acho. Acho é muito sujo, uma

porcaria”.

Em relação aos elementos que compõem a paisagem cultural do centro,

apresentados no gráfico 5, nota-se que os elementos materiais foram mais destacados,

sobretudo aqueles próximos aos recursos hídricos.

Novamente o espaço livre do Marco Zero parte integrante do conjunto

arqueológico, urbanísticos e paisagístico do Bairro do Recife, teve grande destaque sendo

citado em 47% das entrevistas. Relacionado às diversas festividades ocorridas ao longo do

ano, o local de origem da cidade e marcante pela presença dos recursos hídricos, conforme

visto anteriormente nas figuras 16 e 17, foi descrito como “[...] bom quando têm festas, ai é

bom pra gente poder curtir e ouvir uma musica na faixa”.

As pontes, juntamente com o Rio Capibaribe, foram consideradas como os

elementos que mais são “a cara do Recife”. Ambos os elementos receberem citações

quantitativamente próximas (41% e 35%, respectivamente), apesar de significados

diferentes. Mesmo sendo a cara do Recife, para alguns o conjunto pontes e rio é visto como

algo esquecido “mal cuidado, muito sujo e perigoso”. As figuras 20 e 21 mostram os

problemas relativos a sujeira relacionados com estes elementos.

Por outro lado, outros entrevistados preferiram fazer referências ao grupo

pontes e rio como um local que tem a função de apresentar o Recife para pessoas de fora,

mencionando também a tradicional relação da cidade com Veneza:

“Aqui é igual a Veneza. Dizem que é e eu acredito. Você não pensa no Recife sem essas pontes, e no rio também. Elas são os cartões postais daqui da cidade. Todo mundo vem de fora para ver o rio e essas pontes, eu sempre vejo turistas passando aqui e pelo Catamarã, batendo foto[...]”

111

Gráfico 5: Elementos da paisagem cultural do centro do Recife, segundo os comerciantes.

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Figura 20: Galeria de esgoto abaixo da Ponte da

Boa Vista.

Fonte: autor, 2011

Figura 21: Lixo acumulado na base da Ponte da Boa

Vista.

Fonte: autor, 2011

Apenas um comerciante destacou o atributo arquitetônico da ponte da Boa Vista

como algo significativo, considerando que ela representaria o centro do Recife por suas

estruturas de ferro. Outra característica atribuída foi à sua função de conexão entre dois

pontos comerciais importantes da cidade.

Nestes relatos pode ser observado que a vinculação entre ponte e rio ainda é

algo marcante para a identidade da cidade, conforme foi apresentando no capítulo 3 e já

112

destacado em pesquisas de opiniões desenvolvidas em 2002 apontadas por Melo (2003) e

Maciel (2005), já referenciadas na introdução.

Apesar da pouca representação quantitativa (11,76%), o elemento Porto do

Recife apresentou um importante significado para os entrevistados. Segundo um

comerciante, localizado na Rua da Moeda e frequentador do centro a 40 anos:

“recuperar o porto é a melhor coisa que podia ser feita para isso aqui voltar a ser como era antigamente. Isso aqui era lugar de boates, clubes, de pensão, hoje em dia quando dá 20h não tem mais ninguém. Ainda bem que os governos estão melhorando o porto, porque do jeito que está, tá complicado”

Neste relato, a leitura da paisagem se faz baseada na memória de alguém que

viu outra época do “Recife Antigo”. O saudosismo se volta para um momento do passado,

que dificilmente terá retorno, já que as obras de recuperação do porto do recife (FIGURA 22)

não apontam para a valorização de clubes, boates e hospedagem de baixo custo, mas para a

construção de outros tipos de equipamentos.

Por fim, é importante destacar os elementos imateriais presentes nos relatos de

vários comerciantes. Os entrevistados na Rua da Moeda destacaram as expressões culturais

como significativas para o centro. Segundo um vendedor de bebidas do local “[...] a cultura

aqui é o que é mais importante”. Os blocos líricos do carnaval de Pernambuco foram

descritos como “[...] uma das coisas mais bonitas que temos aqui”, assim como o Maracatu e

o Frevo como “o que mais marca a cidade são o Maracatu e o Frevo, principalmente no

carnaval”.

Expressões da cultura imaterial também foram consideradas atributos de

elementos culturais. Foi o caso da Rua da Moeda, considerada significativa por ser local onde

“[...] tem ensaios dos Maracatus, de bandas de frevo. Na sexta a noite tem show de Rock e

Blues mais pra lá (na proximidade do Paço Alfândega)”.

Com esta leitura da paisagem, a Rua da Moeda ao ser associada diretamente aos

aspectos imateriais, pode ser vista como tão representativa para o grupo dos comerciantes

quanto o rio Capibaribe. Neste aspecto o principal atributo da rua está para além das

qualidades arquitetônicas de seus casarios antigos, mas presente nas diversas manifestações

culturais ocorridas ao longo da semana.

113

Figura 22: Obras da reforma do porto do Recife. Ao fundo Torre Malakoff.

Fonte: autor, 2011

4.1.3. Leituras dos visitantes

Contemplando um total de 26 entrevistas, este grupo foi formado pelas pessoas

que frequentam o centro com objetivos diversos. Apesar de o grupo ser bastante

heterogêneo, composto por turistas, funcionários de empresas localizadas na área central,

usuários de bares e participantes de eventos diversos, a analise ocorre em conjunto para

facilitar a interpretação da paisagem.

Foram selecionadas pessoas que estavam utilizando os espaços livres do centro

para contemplação ou confraternização entre grupos, bem como aqueles que estavam de

passagem pelas vias públicas. Dentre os locais onde foram realizadas as entrevistas,

destacam-se as Praças da República, Arthur Oscar e Praça Tiradentes; o Marco Zero; a Rua

da Moeda, da Aurora; e a Ponte Mauricio de Nassau (MAPA 5).

A leitura do centro por esse grupo apresenta uma paisagem constituída de

significados contraditórios. Para alguns, o local remete as obrigações profissionais, para

outros ele é relacionado com momentos de diversão. Da mesma forma, algumas pessoas

entrevistadas relacionaram o território com satisfação e bem estar, enquanto outros com

apreensão e repulsa frente aos problemas ambientais e de segurança.

114

MAPA 5: Visitantes entrevistados no centro do Recife

Fonte: autor, 2011

Sobre a compreensão dos bens patrimoniais, o grupo dos visitantes fez

referência a vários elementos materiais que são protegidos pela lei. O gráfico 6 apresenta a

diversidade dos elementos que segundo esse grupo seriam legalmente reconhecidos como

de valor, variando entre tipologias diversas como espaços públicos, patrimônios religiosos,

patrimônios modernos, conjuntos urbanos, entre outros.

115

Do total de entrevistados 10 pessoas (38%) não souberam responder quais

seriam os patrimônios reconhecidos legalmente. Por outro lado é significativo notar que

muitos elementos culturais não protegidos institucionalmente foram citados, como é o caso

do prédio da prefeitura do Recife, do Obelisco localizado no cais da Alfândega e da Praça do

Diário.

Gráfico 6: Bens protegidos legalmente no centro do Recife segundo os visitantes

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Apesar da Praça da República não apresentar ainda uma proteção oficial de

tombamento51, sendo parte integrante da ZEPH-10 segundo a Prefeitura do Recife, os

elementos que compõem seu entorno foram bastante citados (Palácio do Campo das

Princesas: 34%; Teatro Santa Isabel: 23%; Palácio da Justiça: 11%). Segundo um entrevistado

na Praça da República: “O palácio do governo é um patrimônio, porque é o que está mais

bem cuidado aqui, até porque tinha que ser né... e o Teatro de Santa Isabel porque é muito

bonito, principalmente por dentro”.

Alguns elementos foram citados pelas suas características históricas, como as

pontes e a Torre Malakoff, enquanto outros como o Marco Zero, a Rua da Moeda e Praça

Arthur Oscar como local de divertimento ou descanso. Segundo um frequentador da Praça

Arthur Oscar: “Eu fico aqui sempre na minha hora do almoço, fico aqui o tempo todo porque

51

A Praça da República encontra-se em processo de tombamento junto ao IPHAN como Jardim Histórico, por ser obra do paisagista Roberto Burle Marx

116

é calmo, agradável, bom para passar o tempo e relaxar, a praça é boa por isto”. Outro

visitante da Rua da Moeda considerou:

“eu sempre estou aqui com a minha turma tomando uma no sábado a noite. É bacana, tem festa, tem liberdade. As vezes a gente sente que é meio perigoso quando vai ficando é mais tarde, mas aqui ainda é uma opção do centro para a turma se divertir”

Também é válido observar que a Igreja de Nossa Senhora do Pilar, protegido pelo

IPHAN em 1965 pelos seus atributos históricos e artísticos, foi lembrada pela primeira e

única vez. Segundo o entrevistado que a citou, frequentador do centro a 30 anos, a

construção era “uma igreja muito boa, mas que agora está esquecida”. Devido a vários

processos de transformações ocorridos através do tempo, com o entorno da Igreja sendo

ocupada por uma população de baixa renda, conhecida como “Comunidade do Pilar”, a

Igreja do Pilar e a sua comunidade no entorno são desconhecidas pelos visitantes da área

central do Recife. Neste caso a proteção patrimonial não tem qualquer eficiência já que o

bem foi esquecido pela sociedade, mostrando mais uma vez as falhas em se reconhecer um

patrimônio a partir de critérios baseados nos desejos de técnicos e especialistas.

Um total de 22 entrevistados (84%) julgou que os recursos hídricos do centro

poderiam se tornar um patrimônio, por motivos variados. Um dos entrevistados,

frequentador do centro há 40 anos, considerou que: “Apesar de ser coisa viva, é um

patrimônio. Porque o Recife em si é uma ilha.”, outro entrevistado leu a paisagem de forma

diferenciada:

“Constitui um patrimônio histórico no sentido que foi uma coisa que aconteceu no passado que hoje não acontece mais. Essa relação não acontece mais, porque é imundo. Apesar de ter esse barquinho que faz essa trajetória turística é irrelevante. Não é um meio de transporte, não acontece nada nesse rio fora isso ai, além de que eu acho que a pessoa passear num rio sujo desse, perde até um pouco da emoção de olhar a cidade e passar por suas pontes.”

Os dois relatos são significativos. No primeiro podemos observar como a noção

de patrimônio ainda está vinculada a ideia do que passou. Já o segundo depoimento associa

as águas do Capibaribe ao relacionamento histórico entre homem e natureza, que vem se

perdendo frente aos impactos ambientais. Nesse sentido, o rio assume um caráter

nostálgico ao não propiciar algo anteriormente possível.

Uma turista, entrevistada também na Praça da República, considerou a

integração do rio com a cidade como um fator que justificaria sua proteção, afinal, segundo

ela: “[...] um rio sempre está integrado na vida de uma cidade”.

117

Já os 4 entrevistados que julgaram o rio como não merecedor de um título

patrimonial, justificaram que a poluição seria o principal motivo para a negação de qualquer

título. Segundo algum deles: “Não. Porque o rio é muito poluído, sujo e deveria ser melhor.

Podia ser navegável”, outro afirmou que: “Não como deveria. Porque o que é patrimônio a

gente cuida e não é o que parece”.

Em relação as vinculações desses atores com os recursos hídricos, todos

consideraram que o rio é de extrema importância para a cidade, devido motivos diversos.

Para um entrevistado, ele é significativo devido as possibilidades de uso para o

desenvolvimento da cidade: “Porque corta quase toda a cidade. É uma ilha, o rio corta todo

o centro. E ai é onde eu falo que o rio deveria ser navegável por causa dessa geografia que

nós temos”. Já outro, consultado as margens do rio Capibaribe, disse que ele “[...]

representa a cidade. A cidade nasceu dele. Se não fosse ele, isso aqui não existiria. Nada

disso existiria se não fosse esse rio”.

Também foram presentes nesse grupo significados de repulsa e negação em

função da situação das águas:

“Elas fedem pra caralho e é um inferno atravessar as pontes. É feio para quem vem visitar. As pessoas vêm com aquela história de Veneza brasileira, mas se você olhar, a água é uma merda, é feio pra caramba. Baixo astral. É uma coisa que desagrada muito. De certa forma, o rio é bonito, mas é baixo astral”

Da mesma forma outro entrevistado considerou as águas como: “Uma nojeira,

uma merda. Falta muito para o governador ajeitar isso”.

No âmbito dos elementos e significados que compõem a paisagem cultural do

centro do Recife, nota-se uma semelhança dos elementos selecionados com os grupos

anteriores. Como pode ser visto no gráfico 7, o Marco Zero foi citado por 57% dos

entrevistados nesse grupo.

Um entrevistado na Praça Arthur Oscar destacou que o local é “[...] o que mais

lembra mesmo a cidade”, da mesma forma outro considerou o espaço significativo “por ser

um centro cultural”. Outro entrevistado interpretou o elemento como "um local que tem

sua importância, aonde as pessoas vão para se divertir e apreciar a cultura pernambucana".

118

Gráfico 7: Elementos da paisagem cultural do centro do Recife, segundo os visitantes

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Por outro lado, outros entrevistados consideraram o espaço como “um ar livre e

bom de ser lembrado”, “um local muito bonito [...]” ou “aquele arco do marco zero é um dos

pontos chaves do bairro do Recife”. Aqui o Marco Zero ganha o significado de beleza em

função de suas constituições arquitetônicas e ambientais. Se as construções em formato de

arco são belas e atrativas, por outro o fluxo de vento no final da tarde como também a

presença das águas, dos arrecifes e do mar, contribuem para a leitura positiva do espaço,

como visto nas figuras 16, 17 e 23.

Novamente o conjunto das Pontes do Recife (30% dos entrevistados) com o Rio

Capibaribe (26%) foi destacado. Segundo um dos entrevistados, esses dois elementos “[...]

são as coisas principais daqui do centro”. Já outro considerou que a junção dos dois “formam

a cara da cidade”, enquanto que um terceiro entrevistado considerou que eles são “a coisa

mais bonita daqui que vale a pena mostrar”.

Por fim, novamente o conjunto da Praça da República apresenta bastantes

referências e significados expressivos. Segundo os entrevistados o local é “[...] especial, um

lugar bonito [...]”, representando um significado de cunho estético. Outro importante

significado foi o político, já que o local tem uma “representatividade política na cidade”.

Assim, o conjunto da Praça da República, resultado da criação de engenheiros e arquitetos

como Vauthier e Burle Marx, representa um importante elemento da paisagem cultural do

119

centro do Recife, já que agrega significados diversos em um ambiente diretamente ligado a

natureza.

Figura 23: Marco Zero. As construções formam um "arco" ao fundo

Fonte: autor, 2011

4.1.4. Leituras dos moradores

Composto pelos moradores do centro do Recife, o último grupo dos usuários

entrevistados é formado por pessoas de média e baixa renda. Do total de 14 entrevistados

(MAPA 6), 7 são residentes em pensões ou ocupações ilegais no Bairro do Recife, enquanto

que os outros 7 moram em endereços tradicionais da cidade, sendo 3 entrevistados na Rua

da Aurora, 3 na Rua da União e 1 na Ponte Buarque de Macedo.

Como resultado das diferenças sociais, a paisagem também foi lida de forma

diferenciada por cada um deles. Na leitura podemos ver o encantamento de morar no

centro transmitido pela população de classe média, enquanto que os moradores de baixa

renda não demonstraram qualquer tipo de vinculação com a paisagem.

Sobre a compreensão dos bens patrimoniais, o grupo dos moradores

apresentou uma significativa diferença em relação aos outros atores. Se nos outros relatos a

Praça do Marco Zero foi constantemente citada, tanto como um bem patrimonial ou como

possível de ser protegida, nesse grupo a Rua da Aurora foi mais destacada, conforme

apresentando no gráfico 8, sendo citada por 57% dos entrevistados.

120

MAPA 6: Moradores entrevistados no centro do Recife

Fonte: autor, 2011

Como pode ser visto no gráfico abaixo, o tombamento aplicado a Rua da Aurora

apresenta um reconhecimento para o grupo de moradores, sobretudo aqueles que habitam

nela ou em sua proximidade. Segundo um entrevistado, morador da Rua da União:

“A Rua da Aurora é uma das marcas da paisagem da cidade, pela sua beleza e importância. Tem aquela história de que Gilberto Freyre disse que ela é a mais recifense de todas, e é mesmo, a beleza dela é um cartão postal para toda a cidade com os casarios, o ginásio pernambucano e o rio”

121

Gráfico 8: Bens protegidos legalmente no centro do Recife segundo os moradores.

Fonte: Entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Através deste relato pode-se observar como a Rua está diretamente associada a

cidade como um todo, indo para além da paisagem do centro, tendo sua proteção uma

importância para o reconhecimento e manutenção de algo já bastante transformado

(FIGURA 24). O mesmo entrevistado considerou que o tombamento é importante, pois

segundo ele:

“[...] ainda bem que ela é protegida, porque já foi bastante transformada. Tem poucos casarões de antigamente, mas você observa que muitos dos que ainda restam estão meio abandonados. Isso eu considero que deveria melhorar, cuidar melhor da fachada e da utilização desse casario, que é muito bonito para a cidade”

Mesmo com a grande quantidade de pessoas que consideraram não saber quais

são os patrimônios reconhecidos no centro na cidade, os bens que foram destacados são

protegidos em alguma instância, indicando que para os moradores do centro a atuação dos

órgãos de defesa patrimonial tem algum reconhecimento, afinal esta atuação ocorre em

elementos que eles interagem constantemente e representam partes importantes de suas

interpretações da paisagem.

Quando perguntados sobre quais elementos poderiam vir a ser reconhecidos

como um patrimônio para a cidade, observa-se uma confluência de respostas, expressa no

gráfico 9.

122

Figura 24: Rua da Aurora, tombada como forma de evitar maiores transformações.

Fonte: autor, 2011

Novamente o conjunto das pontes com o Rio Capibaribe aparecem como

elementos que juntos formam o que “é mais bonito na cidade”, segundo um entrevistado na

Rua da Aurora. O recurso hídrico é marcante na leitura da paisagem para esse grupo, pois

para este entrevistado:

“[...] o Capibaribe tem uma relação, e por isso que eu estava sentado do lado do João Cabral, acho que o Capibaribe tem uma relação impar com o Recife em termo de identidade. É uma pena a sujeira do Capibaribe, mas o visual do Recife, o clima do Recife, tudo isso, de alguma forma, tem uma relação extrema e indissociável com o Capibaribe.”

Em relação às pontes, outro entrevistado destacou seu significado estético e a

marcante presença delas no dia a dia da cidade como fator para justificar sua

patrimonialização: “Porque são bonitas e querendo ou não é um patrimônio. São pontes

antigas e estamos acostumados e ver toda vez que passamos”.

Para um representante desse grupo, um novo elemento surge como merecedor

de proteção especial: o atual Espaço Pasárgada, localizado na Rua da União. Segundo o

entrevistado, a construção onde morou Manoel Bandeira durante parte de sua infância deve

ser protegida por ser “um local importante para a história do Recife, pois um de nossos

principais poetas expressou em seus poemas”52.

52

Importante destacar que o Espaço Pasárgada é tombado pela FUNDARPE desde 1986

123

Em relação às vinculações desses atores com os recursos hídricos, as águas

foram vistas como importantes para o passado da cidade, mas que atualmente estão em

esquecimento.

Para um entrevistado, apesar de o Rio Capibaribe ser importante, ele é “Um

patrimônio que nós mesmos estamos destruindo, mas que ainda é um patrimônio. Porque

faz parte de nossa história, de nossa cultura”. Neste aspecto, o rio tem um significado

histórico, já que através dele houve o desenvolvimento cultural do Recife.

Gráfico 9: Elementos merecedores de reconhecimento patrimonial, segundo os moradores.

Fonte: entrevistas semi estruturadas aplicadas pelo autor, 2011

Algumas leituras buscaram encontrar os responsáveis pelos aspectos negativos

da paisagem. Um morador da Rua da Aurora comentou que as águas “[...] andam muito

poluídas, pescadores estão acabando com elas, deixando bagunça nas pontes e nos

mangues, que não se vê mais caranguejo, nem siri”.

Com este relato podemos compreender como a leitura da paisagem é permeada

por crenças, valores e interesses, orientada pelo relacionamento cultural que determinada

pessoa apresenta com o território. Como visto anteriormente, para compreender a

paisagem é necessário entender os vínculos estabelecidos com o local e como suas leituras

pessoais contribuem para uma política de interpretação estabelecida entre os atores (MELO,

2003). Neste aspecto, então, a política de interpretação realizada pelo entrevistado coloca

os pescadores como principais agentes poluidores do recurso hídrico, sem considerar

124

aspectos mais significativos, como por exemplo, o despejo de resíduos nas águas do rio pelas

usinas de cana ou, em épocas mais recentes, pelas indústrias de confecção têxtil no alto e

médio curso do Capibaribe.

Já os moradores de baixa renda, sobretudo os localizados na comunidade do

Pilar, não demonstraram qualquer vinculação positiva com as águas do Rio. Para um deles, o

Capibaribe “Ta lá....acho que é importante. O pessoal as vezes vai lá pescar nele” ou “eu nem

olho para o rio, daqui eu vou catar latinha, depois volto pra casa”. Os dois relatos mostram

um distanciamento com os recursos hídricos, apesar do local ainda possibilitar para algumas

pessoas uma fonte de alimentação.

Por fim, os elementos e significados identificados com base nos relatos dos

representantes desse grupo, mostrou o aspecto imaterial como significativo da paisagem

cultural do centro do Recife. Como pode ser observado no gráfico 10, o carnaval surge como

o elemento mais importante para os entrevistados.

Para os moradores de alta renda, representando 50% dos entrevistados no

grupo, as festividades do carnaval são os momentos onde “[...] a cultura pernambucana mais

se expressa” ou “Que é o que mais marca o centro e mais marcou minha juventude aqui na

cidade”. Os dois relatos, apresentados por moradores da Rua da União, colocam a

manifestação cultural como algo significativo para a memória, remetendo a uma infância

onde a diversão ocorria de forma mais segura. Segundo um morador da Rua da Aurora:

“[...] na minha infância a gente brincava o carnaval aqui sem se preocupar. Tinha menos perigo, a gente ia pro Galo e lá ficava até mais tarde, se divertindo, depois voltava andando de noite mesmo, pelas pontes. Hoje em dia fazer isso é mais perigoso”.

Estes relatos mostram como a leitura da paisagem não é dissociada de suas

características intangíveis. A paisagem interpretada por estes representantes está permeada

pelos aspectos da memória e da cultura, elementos subjetivos, indispensáveis para uma

verdadeira compreensão que vai para além das formas visíveis (BESSE, 2006, p. 64).

Outro elemento imaterial destacado por um morador da Rua da União foram as

expressões poéticas que expressam o centro do Recife. Segundo este morador: “O que mais

representa o centro do Recife é sua poesia. A poesia de Joaquim Cardozo, Capiba, Manuel

Bandeira. Isso é a cara do Recife”.

125

O Mercado de São José também foi destacado, pois, segundo um dos

entrevistados, morador de uma pensão no bairro do Recife, “o centro do Recife é ali”, pois é

o local onde se encontra uma variedade de alimentos e utensílios para o dia a dia. Além

disso, a interpretação deste elemento extrapola suas construções físicas, compreendendo

também todo o comércio de rua a seu redor.

Gráfico 10: Elementos da paisagem cultural do centro do Recife, segundo os moradores.

Fonte: entrevistas orais realizadas pelo autor, 2011

Para outro entrevistado, o mercado tem uma função estética em virtude de seus

atributos arquitetônicos, sendo “uma das coisas mais bonitas da nossa cidade”. Este

elemento então une as funções de beleza e de funcionalidade, servindo como local de

grande importância para a leitura da paisagem cultural do centro do Recife.

4.2. LEITURAS DA PAISAGEM PARA OS ESPECIALISTAS: SEUS ELEMENTOS E

SIGNIFICADOS

Após definir os elementos e significados que compõem a paisagem cultural do

centro do Recife para o grupo dos usuários, será apresentando o resultado das entrevistas

semiestruturadas aplicadas com os representantes do grupo dos especialistas.

Este grupo é composto por pessoas que estão diretamente vinculadas a gestão

municipal, estadual e federal, acadêmicos e representantes de ONG’s que desenvolveram

estudos significativos sobre o centro da cidade. Segundo Muñoz Viñas (2005), esses atores

são importantes, pois a tomada de decisão das políticas de conservação é sempre realizada

pelos gestores do patrimônio, mesmo quando há uma ampla participação dos grupos

envolvidos. Ao mesmo tempo os integrantes deste grupo possuem um treinamento

126

específico que possibilita a identificação e interpretação de elementos que são bens

patrimoniais, os quais outros atores não seriam capazes de realizar.

Em busca de obter uma leitura da paisagem a partir de abordagens variadas,

foram realizadas entrevistas com especialistas de atuações diversas. Nas instituições

gestoras do patrimônio a consulta foi realizada com um representante de cada esfera. Já os

acadêmicos abrangeram áreas variadas do conhecimento, sendo consultado: 1 historiador, 1

geógrafo, 1 arquiteto e 1 educador ambiental vinculado a ONG “Eu Quero Nadar no

Capibaribe...e você?”.

Dentre os elementos destacados pelo grupo como significativos na composição

da paisagem do centro do Recife, observa-se uma valorização ao patrimônio religioso do

centro do Recife. As Igrejas e seus pátios foram elementos apresentados como

representativos da cidade, pelos seus atributos artísticos ou por representarem locais de

tranquilidade em uma área tão movimentada.

Apesar desta importância, as condições de conservação desses patrimônios

estão abaixo do desejado para elementos já tombados por legislação federal e estadual.

Segundo o Arquiteto consultado, este fato não decorre de uma deficiência da legislação, mas

sim pela situação de abandono do centro, associado a deficiências políticas para arrecadação

de recursos. Segundo ele:

“Você tem uma cidade cujo centro morreu [...]. O centro foi esvaziado por três motivos: 1º pelo shopping; 2º pela dificuldade de se chegar ao centro; 3º pelos fechamentos absurdos de ruas. Enfim, por uma série de erros que se acumulam [...]. Quer dizer, o esvaziamento das igrejas no centro, esvaziamento necessariamente pela própria ausência do fiel [...], fazem com que as igrejas vivam numa míngua [...]. O fiel que passa e entra na igreja é um pobre coitado que não tem o dinheiro nem para almoçar, quanto mais para dar dinheiro para padre. Então, essas igrejas estão a sabor da proteção, quando tombados, do IPHAN. Ora, o IPHAN é um órgão de cultura, e cultura no Brasil é coisa secundária. Cultura não é estaleiro, cultura não é refinaria. Cultura dá e não recebe. Quer dizer, a cultura dá e não retorna. Não retorna porque a cultura está orientada por um turismo de péssima qualidade, que existe no Recife. [...]”

53.

Para este professor, uma valorização das práticas turísticas pode reverter o

quadro de abandono financeiro das Igrejas, auxiliando na conservação de suas estruturas

físicas e de seu indubitável valor. Dentre esse patrimônio religioso, o arquiteto destacou

elementos que não foram mencionados por qualquer representante do grupo dos usuários.

53

J.L.M.N – Arquiteto e Urbanista. Professor Aposentado da UFPE. Vinculado ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPE). Entrevista concedida em novembro de 2011

127

Segundo ele, merecem destaque a Igreja de São Pedro dos Clérigos, como algo

“importantíssimo para a história da arte barroca brasileira, [...] fantástica”, assim como a

Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, Igreja do Carmo e a Capela Dourada,

considerada por ele como “[...] uma das mais belas igrejas do barroco dourado” (FIGURAS 25

a 28).

Outros dois elementos destacados pelo grupo dos usuários, também foi

considerado significativo pelo Arquiteto. A Rua do Bom Jesus foi vista como algo que

mantém sua integridade ao longo dos séculos, sendo importante “[...] pela sua antiguidade.

É uma rua que atravessou o tempo. Ela é uma rua que foi definida em 1638 e permanece

com suas características espaciais até hoje”. Já o Mercado de São José foi destacado por

seus atributos funcionais, sendo um elemento significativo para a leitura da paisagem, pois

“[...] sob do ponto de vista comercial é um dos últimos e mais importantes mercados de

ferro do Brasil”.

Apesar de realizar uma leitura diferenciada, o geógrafo consultado54 também

destacou as Igrejas como importantes definidoras da ocupação do espaço, e o Mercado de

São José, juntamente com as ruas comerciais do centro do Recife, como essenciais para a

compreensão da complexa paisagem da cidade. Segundo ele:

“[...] o centro do Recife é complicado, porque nele tem a expressão de todas as identidades culturais que construíram a cidade, e como elas são justapostas, o pessoal não gostava do centro, já que ele não era um único ente. [...] Tinha o centro do Recife das Igrejas, das ordens monásticas que estavam presentes no pátio e nas torres, [...] tinha outra parte que era o Recife dos Comerciantes, presentes até hoje [...]. E tinha o Recife dos senhores de engenhos, expresso em suas propriedades no centro.”

54

J.B – Geógrafo. Professor da UFPE. Entrevista concedida em Novembro de 2011

128

Figura 25: Altar da Igreja de São Pedro dos Clérigos

Fonte: Autor, 2011

Figura 26: Capela dourada do Recife.

Fonte: Autor, 2011

Figura 27: Igreja de Nossa Senhora da Conceição

dos Militares durante celebração de missa.

Fonte: Autor, 2011

Figura 28: Pátio e fachada da Igreja do Carmo.

Fonte: Autor, 2011

Essa mistura de identidades, tão valorizada por alguns, segundo a leitura do

entrevistado, contribuiu para um sentimento de desapego das pessoas com o centro da

cidade. O comércio é o principal ponto a ser destacado naquela localidade, contribuindo de

forma decisiva para a vida, tendo como principais elementos materiais e imateriais o

Mercado de São José e as utilizações das ruas no entorno.

A leitura produzida pelo geógrafo é associada a um sentimento de raiva frente o

desinteresse pela cidade por parte dos grupos mais importante na construção do território

do centro. Segundo o entrevistado, desde as obras da década de 1960 há um esquecimento

129

da cidade, já que muitas das avenidas construídas parecem ter sido pensadas para “[...]

destruir os pátios das Igrejas” (FIGURA 29). Atualmente o desinteresse se expressa na

constante busca pela substituição do antigo para construção de uma cidade moldada por

exemplos estrangeiros:

“[...] e a raiva que eu tenho é exatamente porque os grupos mais importantes da cidade são na realidade desinteressados pela cidade. Estão interessados em construir outra coisa. Construir no modelo de Dubai. Eu sei que muitos arquitetos vão lá agora, a onda não é mais imitar as cidades europeias. A questão é imitar o oriente, onde se destrói tudo, onde tudo está mais acelerado”.

Tanto o geógrafo quanto o historiador compartilharam o pensamento de que os

instrumentos de proteção patrimonial aplicados no centro são lentos, quando comparados

com aos processos que contribuem para a degradação. Para o primeiro: ”a conservação do

magnífico patrimônio do centro anda muito lenta, e me parece que a degradação anda mais

rápido que a proteção [...], já que não há, de fato, um grande investimento nesta área”.

O segundo, de forma semelhante, considerou:

“[...] o patrimônio ainda é lento e limitado. Não estou falando das pessoas, mas dos instrumentos, a discussão. Não é que a gente vá carimbar tudo de histórico, mas você não vê critérios gerais, você tem surtos as vezes e depois aquilo reflui, e muitas vezes reflui de forma negativa. Um exemplo disso são as “duas torres”, um exemplo disso é a alienação do pátio ferroviário, do cais José estelita, que é sob qualquer ponto de vista uma estupidez contra a cidade, contra os interesses do futuro, contra os interesses do presente.”

55

Para o historiador, o patrimônio do centro do Recife sofre com o problema

gerado pelos interesses privados, que “[...] são imediatistas, que são limitados, que pouco

consideram o aspecto do patrimônio, que podem eventualmente conservar apenas para

fazer de conta um galpãozinho, um simulacro de museu [...]”.

Diferente dos outros dois professores entrevistados, o centro do Recife para o

historiador não está morto. Segundo sua visão, ainda há um forte relacionamento da

população com a área central:

“Eu sinto que tem uma relação viva. Quando eu passeio pelos bairros, eu vejo que aquilo está vivo. Aquilo não precisa de política de revitalização. Santo Antonio e São José não precisam revitalizar. O que é preciso é dar um salto na relação da população com a consciência desse patrimônio.”

55

D.B. Historiador. Professor da UFPE. Entrevista concedida em Outubro de 2011

130

Figura 29: Pátio da Igreja do Livramento.

Fonte: Autor, 2010

Para ele, este salto na consciência patrimonial pode se realizar com ações

simples, apesar da facilidade com que a memória urbana se desfaz, em virtude de sua

constante mudança. Neste ponto, segundo ele, não se trata apenas de tombar, afinal não se

deseja “[...] carimbar tudo de histórico”, porém ações com a construção de galerias ou

painéis que apresentassem o que tinha antes no local alterado traria uma consciência

histórica e patrimonial aos cidadãos.

A leitura da paisagem empreendida pelo historiador foi repleta de significados e

contradições entre o passado e o presente. Apresentando o que compõe suas primeiras

imagens da cidade, o centro não foi descrito por diversos elementos agrupados, porém pelo

conjunto onde o Rio Capibaribe, a Praça da Independência, Rua da Aurora, bares, pessoas,

porto e igreja compõem uma paisagem viva:

“Olha eu vou expandir um pouco a ideia do centro. Eu posso responder sua pergunta sob dois aspectos: Aquilo que está ainda existente e aquilo que já não existe. [...], então a primeira imagem que eu tenho do Recife é da beira do Capibaribe, de certos trechos do Capibaribe que não existem mais, dos parapeitos, das muradas, que não existem mais. Da pracinha do Diário, imagem da Guararapes, aquela coisa viva, do entorno dos equipamentos na época [...], da praça do governo, Santa Isabel, a praça propriamente, do Cais da Aurora, da Casa de Detenção, Santo Antônio, Igrejas, Conventos, Porto. E aquilo que foi sendo mudado e eu acho que ai passa para pior. Porque está tudo esteticamente degradado, que é a conde da boa vista. [...] É uma imagem misturada com emoção com certas ruas, eventos, percursos e ao mesmo tempo certa tristeza e nostalgia com o que já não é.”

131

Todos esses elementos, juntamente com o porto da cidade e o comércio de rua,

são importantes devido a três tipos de significados: a memória boêmia, já que o centro era

para o entrevistado um local de diversão; a memória política, que encontra na praça da

independência o centro de concentração das manifestações políticas ocorridas entre os anos

1960 e 1970; e a memória cultural, importante na área central por ser local onde se

encontravam cinemas, cafés, livrarias e a universidade56.

Diferente das três leituras apresentadas acima, a partir do relato oferecido pelo

representante da ONG “Eu quero nadar no Capibaribe...e você?” podemos identificar dois

elementos como significativos para a cidade do Recife: o Rio Capibaribe e o comércio de rua

(FIGURA 30).

“[...], por exemplo, no casario da Rua da Aurora, ele não teria a mesma relevância

se não existisse o rio Capibaribe ali. É tanto que na Rua da União também tem e

não tem tanto esse apego afetivo como essa discussão de patrimônio. Então eu

acho que os conjuntos desses prédios históricos que estão na beira do Capibaribe

eles são mais expressivos porque estão na margem de um rio.”57

Apesar dessa importância, o entrevistado não vê uma relação afetiva da

população com as águas do rio, sobretudo no centro da cidade. Segundo ele:

“[...] não existe uma relação sentimental com o rio. A muito tempo atrás já existiu,

tanto que os casarões foram feitos olhando para o rio no século XIX e XX, depois

disso todo mundo deu as costas para o rio.”

Esse ato de dar as costas ao rio vem acompanhado do fato do rio ser local onde

se jogam dejetos, sem haver por parte da população um maior envolvimento em políticas de

defesa e valorização do recurso hídrico. Mesmo os pescadores, utilizadores constantes das

águas do Capibaribe, foram interpretados pelo entrevistado como sem uma relação afetiva

com as águas:

“[...] A relação das pessoas com o rio é a partir da ponte. Então a relação mesmo

com o rio eu acho muito pequena. De um tempo para cá, por conta do barco escola

da prefeitura e desse catamarã, começou a se revalorizar muito mais, mas ainda

assim é muito pouco, restrita a passar sobre o rio ou jogar o seu entulho sobre o rio

56

Sobre a história da universidade no centro da cidade do Recife, consultar o artigo “Quando a cidade era universitária: a geografia da Univer-cidade do Recife antes da construção do campus da UFPE.” (PEREIRA, J; BERNARDES, D, 2011) 57

A.R. Educador Ambiental. Entrevista realizada em Novembro de 2011

132

e utilizar o rio como algo que serve apenas para lançar os dejetos.[...] Os

pescadores, [...] reclamavam muito do rio, da qualidade da água, da sujeira, que ele

não consegue pescar mais o que ele pescava antigamente, mas ao mesmo tempo

não existe um envolvimento dos pescadores para defender o rio. Então, por mais

que você diga assim “os pescadores tem uma relação”, ele tem relação com o

produto que tá lá e não com o rio. Porque se ele tivesse uma relação com o rio, ele

estaria defendendo o Capibaribe.”

Figura 30: Comércio de rua nas proximidades do Mercado de São José

Fonte: autor, 2010

Contudo, deve ser observado que os pescadores, devido a sua condição social,

estão preocupados com sua sobrevivência. Assim, deve-se compreender a inserção de cada

ator em seus contextos sociais, que dificultam uma aproximação entre saber dos problemas

vinculados a poluição e ter consciência para mitigar essa situação.

Por fim, analisando os relatos obtidos pelos gestores do patrimônio na cidade do

Recife, há uma diversificação de elementos significativos que compõem a paisagem cultural.

Observa-se que ainda existe uma resistência quanto a inserção de elementos naturais nas

políticas patrimoniais e um desconhecimento quanto a utilização efetiva de outros

instrumentos de proteção que não o tombamento e o inventário.

Segundo o gestor do IPHAN, a Chancela da Paisagem Cultural Brasileira tem uma

efetivação complexa, devido à necessidade de realizar um pacto entre os municípios e

outros órgãos governamentais, sendo este pacto considerado como:

133

“[...] um pouco frágil como instrumento, por que como ele tem que estar sempre se renovando e o tempo todo sendo monitorado, o IPHAN têm problemas sérios estruturais com relação a poucos técnicos e poucos recursos.”

58

Por outro lado, o responsável pela defesa patrimonial da cidade do Recife59

considerou a Chancela bastante significativa para a conservação no âmbito municipal, em

função de sua característica mutável:

“Como no Recife nós não temos o tombe-se, como tem no IPHAN, mas sim a proteção de áreas, acredito que a Chancela possa ser mais interessante. Porém é preciso ver como utilizar, afinal, o que é a paisagem? Como definir uma paisagem?”

Apesar da existência da categoria há 20 anos pela UNESCO, no Brasil ainda é

recente a criação da Chancela da Paisagem Cultural, além disto, as instituições gestoras do

patrimônio são resistentes quanto a associação efetiva entre os aspectos culturais e naturais

na conservação. Essa resistência pode ser vista no depoimento da representante do IPHAN:

“[...] hoje o que eu sinto é que o rio Capibaribe e o rio Beberibe, que antes eram rios de fato pela sua escala, hoje para mim é um córrego, porque [...] você olha a escala dos edifícios e a altura que estão sendo construídos e olhar o rio, ele é basicamente um córrego. [...] Não é mais aquele rio expressivo que corre águas, que traz a economia que trazia a pesca. [...]”

O relato demonstra um grande desconhecimento do centro do Recife, no que diz

respeito a sua organização espacial e a sua escala, pois nesta área da cidade é onde se

expressa a presença das águas dos rios e do mar de forma mais marcante. As águas do Rio

Capibaribe, considerada por alguns dos entrevistados como um importante local de

desafogo da densidade urbana do centro, dificilmente pode ser comparado a um simples

córrego. Outra questão é o não reconhecimento da economia gerada pelo rio através da

pesca e da função social de alimentar algumas parcelas da sociedade.

Mesmo com esse distanciamento, a área portuária do Recife juntamente com

suas estruturas ferroviárias, foi considerada importantíssima para o centro e para a cidade.

Esse conjunto foi visto como único pelo representante do IPHAN, já que “[...] hoje no norte

nordeste é o único pátio ferroviário que mantém a ligação direta com o porto, então ele é

exemplar, é significativo, é singular.”.

Entre outros elementos destacados pelos gestores do patrimônio, estão a Rua da

Aurora, as pontes, as Igrejas, devido a seus significados históricos e estéticos. Por fim, as

58

E.L. Arquiteta e Urbanista. Técnica do IPHAN. Entrevista realizada em Novembro de 2011 59

L.V. Arquiteta e Urbanista. Chefe da Diretoria de Preservação do Patrimônio Cultural do Recife (DPPC). Entrevista realizada em Novembro de 2011

134

festividades de carnaval foram consideradas importantes para o centro, “[...] apesar dos

problemas causados pela festa, ele é um marco importante para a cidade, que não deve

acabar”60.

O presente capítulo procurou mostrar como são interpretados os diversos

elementos que compõem a paisagem cultural do Recife a partir dos relatos dos grupos

envolvidos. De acordo com o que se apreendeu a partir dos depoimentos orais, os

elementos e significados que compõem a paisagem cultural do centro do Recife são

diversos, mas não conflitantes. Mesmo com diferentes leituras, alguns elementos foram

recorrentes entre os diversos grupos consultados, porém com significados variados,

sobretudo quando comparados os grupos dos usuários com o dos especialistas.

Como aponta Muños Vinãs (2005, p.210) o processo de definição dos elementos

e significados que compõem um patrimônio não se trata de contar os mais votados nas

pesquisas realizadas. Este processo é uma escolha baseada em critérios estabelecidos para

um determinado momento, que destaca alguns aspectos enquanto outros são esquecidos.

No caso da paisagem, como ela é por si complexa e ampla, deve-se evitar o erro comum de

tentar abarcar todos os elementos e significados, conforme apontou Ribeiro (2010).

Neste sentido, o gráfico 11 apresenta alguns dos elementos obtidos pelas

entrevistas, organizados quantitativamente em grupo. A escolha dos bens que compõem a

paisagem cultural ocorreu em função da narrativa apresentada ao longo do capítulo 3, ou

seja, a que busca a relação entre a cidade e os recursos hídricos.

A variedade de elementos presentes no gráfico indica uma paisagem ampla, com

uma grande diversidade de atributos. Nota-se que o conjunto formado pelo rio Capibaribe,

citado em 38,96% do total das entrevistas, juntamente com as pontes do Recife, citadas em

32,46%, compõem o principal elemento desta paisagem, sendo citados pelos 5 grupos

culturais envolvidos com o centro, apresentando significados diversos, como estéticos,

econômicos e sociais.

60

R.B. Arquiteta e Urbanista. Diretora de Preservação Cultural da FUNDARPE. Entrevista realizada em outubro de 2011

135

Gráfico 11: Principais elementos que compõem a paisagem cultural do centro do Recife.

Fonte: entrevistas semiestruturadas realizadas pelo autor, 2011

O conjunto da Praça da República, formada pela própria praça, o palácio da

justiça, o palácio do governo, o teatro Santa Isabel e o pé de baobá foram significativos para

todos os grupos pesquisados. A importância da paisagem cultural do centro do Recife ocorre

pelo seu aspecto estético, político e social, onde as vinculações entre a cidade e a natureza

ocorrem em ambiente de reconhecida beleza e organização política.

Já o conjunto do Recife Antigo, tombando pelo IPHAN em 1998, foi visto como

importante pelos diversos atores com atributos como a Praça do Marco Zero, sendo o

elemento mais citado quantitativamente sendo local onde a relação visual entre cultura e

meio ambiente ocorre intensamente. A Sinagoga dos Judeus, a Rua da Moeda, a Rua do Bom

Jesus e as manifestações culturais ocorridas no local foram outros importantes atributos

destacados pelos usuários. Deve-se acrescentar à área tombada, os elementos portuários

como outro importante aspecto a ser considerado na leitura da paisagem proposta, devido

suas vinculações históricas com o desenvolvimento da cidade.

A Rua da Aurora também foi vista como marcante na paisagem, sendo

importante local de moradia no centro voltada para a classe média, além de manter as

vinculações diretas ao rio Capibaribe através do espaço público do Parque Rua da Aurora e

do cais de embarcações para a comunidade de pescadores.

136

Os bens religiosos, citados por todos os especialistas consultados, podem ser

considerados significativos para a paisagem cultural, por representarem um importante viés

turístico para a cidade, podendo contribuir para a manutenção financeira do bem.

Da mesma forma, a Casa da Cultura deve ser valorizada como centro de lazer,

voltada para o turismo e divulgação das produções culturais pernambucanas. Enquanto que

o Mercado de São José é importante por servir de centro físico das atividades comerciais,

sendo local destacado para todos os grupos culturais envolvidos com o centro.

Por fim, o aspecto imaterial, expresso pelo carnaval e por outras manifestações

culturais também deve ser considerado na gestão da paisagem cultural do centro do Recife,

por representar uma importante memória da população envolvida com o centro e significar

um aspecto característico da cidade.

Desta forma, a paisagem cultural pode ser definida no mapa 7 abaixo, que não

cria um polígono, mas destaca elementos nos quais as ações de conservação devem

desenvolver políticas, em busca de manter a relação homem e natureza estabelecida no

território.

137

MAPA 7: Paisagem Cultural do Recife com seus principais elementos

Mapa 7: Paisagem Cultural do Recife com seus principais elementos

Fonte: Autor, 2011

CONCLUSÃO

“A “leitura da paisagem” significa constantemente virar as páginas, ler nas entrelinhas, saber a língua e a

gramática da natureza e da cultura [...]”

Randall Mason, 2008, p.181

139

O presente trabalho teve como objetivo identificar a paisagem cultural do centro

do Recife, tomando como base as diversas leituras realizadas pelos grupos envolvidos com

este território, visando contribuir com futuros instrumentos de conservação a serem

aplicados no local.

Seguindo os métodos propostos pela Nova Geografia Cultural e as práticas

contemporâneas de gestão do patrimônio cultural, foi construída uma metodologia de

identificação dos elementos a partir da interpretação dos significados constituintes de uma

paisagem, com base nos grupos envolvidos, superando assim um dos principais entraves

práticos da categoria.

A paisagem foi vista ao longo do trabalho com um conjunto de signos repletos de

significados que se trata de decifrar através da leitura dos elementos naturais e culturais

presentes no território. Neste sentido, foi posta a ideia de que “[...] há de se ler a paisagem”

(BESSE, 2006, p.64).

Adotar a paisagem cultural, como categoria patrimonial, representa um esforço

em buscar interpretar as diversas leituras que variados usuários apresentam com relação a

determinado local, para em seguida definir quais elementos e significados deverão ser

considerados importantes na formulação de políticas patrimoniais, inserindo a ideia de que a

gestão do patrimônio deve ser fundamentada para além dos aspectos presentes na

fisionomia do território e incluir as vinculações subjetivas da população envolvida com o

bem.

A categoria da paisagem cultural tem como principal atributo a relação entre

sociedade e natureza existente no território, manifestada através de seus diversos

elementos materiais e imateriais. Ou seja, para que uma paisagem cultural seja definida em

determinado local, os grupos envolvidos devem reconhecer o território como sendo local

onde um processo histórico, econômico, social e poético das relações entre sociedade e

meio ambiente foi estabelecido ao longo do tempo.

Como a paisagem é complexa, podendo ser lida através de diversas perspectivas,

sendo uma maneira muito específica da interpretação pessoal (MCDOWELL, 1996), estando

em constante mudança, tanto nos elementos materiais quanto na forma como

140

interpretamos, é necessário realizar escolhas visando contribuir com a formulação de

políticas patrimoniais.

Neste trabalho, optou-se pela construção da narrativa que relaciona o

desenvolvimento do centro do Recife aos recursos hídricos que cortam a cidade, o que

serviu de eixo norteador durante todo o desenvolvimento do trabalho.

Assim, foi narrado no capítulo 3 do presente trabalho o desenvolvimento das

vinculações estabelecidas entre a cidade do Recife e seus recursos hídricos, onde foi

mostrado como a área central se configura em “uma unidade geográfica, histórica,

econômica e sociológica, mas também sentimental e poética” (CHACON, 1959, p.9), formada

desde as ocupações iniciais do território até as representações poéticas do século XX.

Quando não há uma definição sobre qual narrativa se deseja realizar a leitura da

paisagem, as ações de conservação se transformam numa mera descrição dos elementos

que se consideram importantes. Ou seja, “sem um método ou um eixo central que a oriente,

nela, não há um traço de leitura e a única coisa que aparentemente liga os elementos é sua

coexistência espacial” (RIBEIRO, 2011, p. 10).

Tendo em vista o questionamento realizado na introdução do trabalho, sobre a

contribuição da categoria da paisagem cultural com a conservação de áreas urbanas, ficou

claro o significativo papel à identificação dos elementos que compõem os centros históricos

de áreas urbanas, sem haver necessidade do estabelecimento de novas categoriais que

utilizem o mesmo conceito como as Paisagens Urbanas Históricas.

Já em resposta ao segundo questionamento, sobre a possibilidade de definir

uma paisagem cultural para o centro do Recife, fica claro que o centro do Recife pode ser

visto a partir da narrativa proposta como uma paisagem cultural ao se definir os seus

elementos associados a aspectos culturais, naturais e imateriais em um único território, em

constante transformação decorrente dos processos naturais e culturais expressos através

do: do controle do curso do rio e dos aterros feitos ao longo do tempo; dos aspectos

históricos, que descrevem variadas perspectivas da construção da cidade; da

heterogeneidade de expressões poéticas sobre os elementos da área, das manifestações

culturais ao longo de todo o ano; por fim, dos usos tradicionais como a pesca, comércio e

moradia ainda presentes na área, ao mesmo tempo em novas frentes contemporâneas de

141

transformação existentes, como a construção de empreendimentos imobiliários ou reformas

na área portuária.

Apesar destas características, ainda persiste na área central da cidade uma

gestão patrimonial baseada no reconhecimento dos elementos culturais, devido seus

atributos artísticos e arquitetônicos, sendo relegados os elementos naturais, reconhecidos

em diversas manifestações culturais, e nos depoimentos feitos como significativos para a

cidade. Como resultado desse processo, temos no centro patrimônios desconhecidos pela

população, assim como elementos reconhecidos pelo público, mas negados pelos gestores

do patrimônio.

Procurando evitar esses antigos erros, o grupo dos usuários foi visto neste

trabalho como mais significativo para a definição dos elementos e significados, seguindo a

indicação de Muñoz Viñas (2005), já que a área tem grande importância social para a cidade.

Cada grupo realizou uma leitura muito peculiar da paisagem, apresentando elementos e

significados variados, em função de seu gênero de vida.

Foi observado que, para os representantes dos grupos entrevistados, há um

reconhecimento da relação entre homem e natureza como principal atributo do patrimônio

da cidade, onde o Rio Capibaribe, as Pontes do Recife e o porto da cidade são expressões

materiais dessa qualidade.

No entanto, como a compreensão da paisagem deve ir além dos aspectos

fisionômicos existentes no sítio, também foi importante a constatação, por parte dos grupos

culturais consultados, de que os elementos imateriais são significativos para a vida na

cidade, como o carnaval, o maracatu, o frevo, enfim, as expressões folclóricas.

Também pode ser visto no capítulo 4 a importância do grupo dos pescadores

para a manutenção da relação entre a cidade e os recursos hídricos. Este grupo, apesar de

não executar diretamente ações que procurem resguardar essa relação, realiza uma

atividade histórica, econômica e social nas margens do rio Capibaribe, contribuindo com a

dinâmica local da paisagem.

Outros estudos podem construir narrativas sobre o mesmo território e definir

uma paisagem com elementos, significados e atributos diferentes dos que foram

identificados neste trabalho, o que irá influenciar diretamente nos valores a serem

142

atribuídos em etapas futuras do processo de conservação. Da mesma forma, a construção da

narrativa irá definir quais especialistas e grupos culturais devem ser consultados. O

importante é compreender que não há uma narrativa certa ou errada, mas sim escolhas

realizadas em um momento específico.

Vale salientar que a paisagem não representa uma categoria de proteção

patrimonial que deva ser adotada isoladamente. Outras categorias, com outros conceitos,

devem ser estabelecidas para uma melhor conservação dos bens, sem deixar de lado as

categorias já estabelecidas. Neste sentido, deve-se pensar em uma associação dos

instrumentos de proteção patrimonial à categoria da paisagem, como tombamento, o

registro cultural e o inventário, bem como uma aplicação de novos conceitos à gestão

patrimonial, como o de território e de região.

A paisagem cultural definida para a área tem como pressuposto uma abordagem

integrada dos elementos naturais, culturais e imateriais, e considera que o aspecto da

transformação do centro do Recife deve ser visto como algo intrínseco à categoria, cabendo

aos gestores do patrimônio a orientação das mudanças futuras. Neste sentido, conforme

apontou Mason (2008), pensar a gestão de uma paisagem cultural significa refletir sobre a

continuidade e mudanças desejáveis para o local, através de formulação de projetos que

integrem diversos setores da sociedade de forma contínua.

Outro aspecto é que os projetos visando a gestão da paisagem cultural como

bem patrimonial devem buscar por sua sustentabilidade a partir de ações de longo prazo

considerando o desenvolvimento econômico, social e cultural, com ações coordenadas pelo

poder público, integrando tanto os gestores do patrimônio quanto os setores da sociedade

civil responsáveis pelos aspectos sociais e ambientais da cidade. Desta forma, como

indicação de diretrizes para subsidiar projetos futuros de conservação, sugerimos algumas

ações como forma de manter viva a relação entre homem e natureza na cidade do Recife

como: a construção de espaços de convivência comuns na área central às margens do rio

Capibaribe, resgatando os passeios públicos existentes no século XIX; recuperação das águas

através da implantação de sistemas de saneamento, drenagem e gestão dos resíduos

industriais despejados no alto curso, como também tratamento das margens do rio;

valorização dos roteiros turísticos na área central, como por exemplo, o circuito da poesia e

desenvolvimento do transporte fluvial de passageiros e turístico; estimular o retorno da

143

moradia na área central da cidade; estimular o desenvolvimento de associações de grupos

de cultura, como pescadores, músicos, artistas e artesões; e a recuperação das estruturas

físicas e econômicas do porto do Recife, fundamental para a manutenção da relação homem

e natureza desta paisagem.

Foi neste sentido que o presente trabalhou buscou contribuir com a

operacionalização da paisagem cultural. Trabalhos futuros podem, a partir do exposto,

buscar respostas para o terceiro questionamento levantando na introdução. A confirmação

se a categoria da paisagem cultural vai suprir as necessidades da conservação da área central

do Recife, depende de um estudo maior sobre as etapas seguintes da gestão patrimonial.

Assim, a partir da identificação aqui realizada, outros trabalhos podem focar na atribuição

valores aos elementos com base nos grupos envolvidos, utilizando uma tipologia adequada à

paisagem e construir instrumentos de conservação integrada para a área.

Por fim, é importante destacar que a paisagem cultural do centro do Recife é

uma construção inacabada, pois ela está em constante transformação. Utilizar uma

categoria nova para a proteção patrimonial exige que os órgãos gestores da cidade pensem

o patrimônio como algo em constante transformação, que integra os diversos aspectos

presentes no território, sejam eles naturais ou culturais, objetivos ou subjetivos.

144

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150

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______. What is sustainable conservation of urban heritage sites? Mimeo, 2009.

151

ANEXO A – Modelo de entrevista aplicada ao grupo dos usuários

Universidade Federal de Pernambuco

Mestrado em Desenvolvimento Urbano

ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

Objetivo: Identificar, a partir das leituras construídas pelo grupo cultural denominado de “usuários”, elementos, atributos e significados que constituem a paisagem cultural do centro do Recife, bem como a compreensão destes frente aos bens patrimoniais e suas vinculações com os recursos hídricos.

INFORMAÇÕES GERAIS:

Data e hora:

Local da entrevista:

Nº do arquivo:

PERFIL DO ENTREVISTADO:

Sexo:

Ocupação:

Grau de Instrução:

Local de moradia:

Local de trabalho:

Tempo em que frequenta o centro:

COMPREENSÃO SOBRE OS BENS PATRIMONIAIS:

1º) Você sabe quais os patrimônios reconhecidos legalmente que estão localizados no centro da cidade?

Poderia citar alguns?

2º) Em sua opinião, o que deveria ser reconhecido como patrimônio do centro do Recife?

3º) Para você as águas do rio Capibaribe e a relação existente entre elas e a cidade constituem um

patrimônio? Por quê?

VINCULAÇÕES COM OS RECURSOS HÍDRICOS:

1º) Qual sua opinião a respeito das águas nessa área do centro?

2º) Você considera o rio importante para a cidade? Por quê?

3º) Você utiliza o rio Capibaribe ou o mar aqui no centro para algo?

ELEMENTOS, ATRIBUTOS E SIGNIFICADOS:

1º) Se tiver de lembrar algo que represente o centro do Recife, o que seria? Por quê?

2º) Se você fosse mostrar o centro do Recife para alguém que o estivesse visitando, o que você mostraria?

Por quê?

3º) O centro do Recife tem algum significado para você? Qual seria? Por quê?

152

ANEXO B – Modelo de entrevista aplicada ao grupo dos especialistas

Universidade Federal de Pernambuco

Mestrado em Desenvolvimento Urbano

ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

Objetivo: Identificar, a partir das leituras construídas pelo grupo cultural denominado de “especialistas”, elementos, atributos e significados que constituem a paisagem cultural do centro do Recife, bem como a compreensão dos técnicos e acadêmicos frente a gestão patrimonial da cidade.

INFORMAÇÕES GERAIS:

Data e Hora:

Local da Entrevista:

Cargo:

Formação:

Tempo de trabalho/estudo relacionado ao tema:

INSTRUMENTOS DE PROTEÇÃO PATRIMONIAL:

1º) Qual sua opinião sobre os instrumentos de proteção patrimonial existentes no centro do Recife? Eles são

efetivos? Atendem as necessidades dos bens?

2º) Considerando estes instrumentos, você considera que há uma necessidade de incorporar novos

elementos que não foram anteriormente contemplados? Por quê? Quais seriam esses novos elementos?

3º) Você conhece o instrumento categorizado como paisagem cultural? Qual sua opinião sobre ele?

4º) Você considera que os recursos hídricos presentes no centro e relação existente entre eles e a cidade

compõem um bem patrimonial? Por quê?

PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NAS POLÍTICAS PATRIMONIAIS:

1º) Qual sua opinião sobre incorporar nos instrumentos de proteção uma consulta junto a sociedade a

respeito de quais elementos deveriam ser reconhecidos como patrimônio no centro do Recife?

2º) Com base em suas observações pessoais e profissionais, como você observa a relação estabelecida entre

sociedade e natureza na área central do Recife?

3º) Que ações poderiam ser executadas para manter viva para as gerações futuras esta relação?

ELEMENTOS, ATRIBUTOS E SIGNFICADOS:

1º) Se tiver de lembrar algo que represente o centro do Recife, o que seria? Por quê?

2º) Se você fosse mostrar o centro do Recife para alguém que o estivesse visitando, o que você mostraria?

Por quê?

3º) O centro do Recife tem algum significado para você? Qual seria? Por quê?