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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – CFCH DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DCS CURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS ITAMÁ WINICIUS DO NASCIMENTO SILVA FUTEBOL BRASILEIRO, COPAS DO MUNDO E IDENTIDADE NACIONAL: UMA INVESTIGAÇÃO DOS JINGLES COMO REFORÇO DA BRASILIDADE RECIFE 2020

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE CENTRO DE ... · Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para conclusão do curso de graduação

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO – UFPE CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – CFCH

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS – DCSCURSO DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS SOCIAIS

ITAMÁ WINICIUS DO NASCIMENTO SILVA

FUTEBOL BRASILEIRO, COPAS DO MUNDO E IDENTIDADE

NACIONAL: UMA INVESTIGAÇÃO DOS JINGLES COMO REFORÇO

DA BRASILIDADE

RECIFE

2020

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FUTEBOL BRASILEIRO, COPAS DO MUNDO E IDENTIDADENACIONAL: UMA INVESTIGAÇÃO DOS JINGLES COMO REFORÇO DA

BRASILIDADE

Trabalho de conclusão de curso apresentado aoDepartamento de Ciências Sociais, do Centro deFilosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federalde Pernambuco, como requisito para conclusão docurso de graduação em Licenciatura em CiênciasSociais.

Orientador Prof.º Msc. TÚLIO AUGUSTO VELHO BARRETO DE ARAÚJO

RECIFE2020

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FUTEBOL BRASILEIRO, COPAS DO MUNDO E IDENTIDADENACIONAL: UMA INVESTIGAÇÃO DOS JINGLES COMO REFORÇO DA

BRASILIDADE

Trabalho de conclusão de curso apresentado aoDepartamento de Ciências Sociais, do Centro deFilosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federalde Pernambuco, como requisito parcial para conclusãodo curso de graduação em Licenciatura em CiênciasSociais.

Data de Aprovação:_______/________/_______

Banca Examinadora

______________________________________________________________________

Prof. Msc. TÚLIO AUGUSTO VELHO BARRETO DE ARAÚJOFUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO (ORIENTADOR)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. FRANCISCO SÁ BARRETO DOS SANTOSUNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO (AVALIADOR)

______________________________________________________________________

Prof. Dr. ARTUR FRAGOSO DE ALBUQUERQUE PERRUSIUNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO (AVALIADOR)

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos (as) que estiveram comigo durante todo esse processo, tanto

antes quanto durante minha graduação. Agradeço a meu tio, Iraquitan Manoel do

Nascimento, ou simplesmente “Tio Catan”, por me ajudar financeiramente no começo

da minha graduação. Sem sua ajuda, jamais teria conseguido superar os desafios de

entrar numa Universidade Pública sem auxílio financeiro imediato. Agradeço também a

três grandes amigos que considero como irmãos: Vinícius Matias, Hisla Cavalcante e

Lívia Marília. Agradeço por cada conversa e pelo estímulo durante esses anos de

convivência. Vocês também fazem parte desse processo. A minha sobrinha, Sarah

Cecília, que ela possa ler esse trabalho futuramente e que tome a trajetória do seu tio

como um exemplo daqueles que só podem crescer através da educação.

Agradeço a diversos professores que passaram pela minha vida e que me

ajudaram de alguma forma na minha formação intelectual e humana antes do meu

ingresso na Universidade Federal de Pernambuco. Entre esses, destaco: professora

Edivanete Vieira, ou simplesmente, “Tia Edivanete”, que sempre teve paciência frente à

minha indisciplina; professora Josepha de Geografia, que despertou meu interesse pelos

estudos no Colégio e Curso Bandeira; professor Marcilio Costa, com suas reflexões nas

aulas de Ética e Cidadania e o professor Eduardo Andrade, profissional excelente que

sempre conseguiu enxergar potencial em mim. Além desses profissionais, destaco

outros três que se tornaram meus amigos e neles me inspiro diariamente na minha

prática docente: falo dos professores Bruno Leonardo, aquele que primeiro despertou

meu interesse pela Sociologia e me incentivava diariamente nos meus dois primeiros

anos no Ensino Médio; Erick Moura, não só pelas aulas de Geografia no pré-vestibular,

mas também por nossas conversas sobre diversos assuntos da vida; e, por último,

Danúbio Santos, aquele que me instigou a pensar criticamente a realidade e que

considero como um mestre não só do saber, mais também da vida.

Agradeço a todos (as) que pude conviver no Programa de Educação Tutorial de

Ciências Sociais (PET CS) durante 03 anos e 09 meses em que estive como petiano. Em

especial, agradeço a Prof. Dra. Eliane Maria Monteiro da Fonte, por suas orientações.

Foi um prazer ser petiano e conviver com pessoas tão incríveis que me ajudaram em

minha formação intelectual e pessoal. Agradeço a meu orientador, Prof. Msc. Túlio

Velho Barreto, pela paciência e ajuda durante a construção desse trabalho. Estamos

unidos não só pela Sociologia, mas também pelo glorioso Clube Náutico Capibaribe.

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Por fim, agradeço a Deus e aos bons Espíritos por terem me concedido força

durante essa jornada. Como estudante de baixa renda, que só conseguiu concluir sua

graduação com ajuda dos auxílios oferecidos pela UFPE, sei o quanto foi difícil me

manter produtivo para a academia. Destaco aqui a importância desses programas para

universitários de baixa renda e que outros e outras possam ter a vida transformada

graças a esses incentivos. Encerro esse agradecimento com um pequeno trecho da

canção “A Vida é um Desafio”, do grupo de Rap Racionais MC’s. O trecho diz o

seguinte: “É necessário sempre acreditar que um sonho é possível/ Que o céu é o limite

e você, truta, é imbatível/ Que o tempo ruim vai passar é só uma fase/ Que o sofrimento

alimenta mais a sua coragem”.

“O conhecimento do Brasil passa pelo futebol.” – José Lins do Rego.

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RESUMO

O presente trabalho se debruça sobre as ligações entre Futebol Brasileiro, Copas doMundo e Identidade Nacional tendo como recorte a análise dos jingles produzidos comotrilha sonora da Seleção Brasileira de Futebol. A investigação das letras desses jinglespodem mostrar que, além de meras trilhas sonoras de uma nova saga em busca da taçade campeão do mundo, elas reproduzem imaginações e tradições sobre o país e seushabitantes. No caso específico, duas tradições são reforçadas nessas letras: as ideias defutebol-arte e pátria em chuteiras. Essa forma diferenciada de jogar típica do brasileiro,acumulado a um suposto interesse nacional e majoritário pelo futebol, trazem à tonaconstruções identitárias que estão associadas a uma imaginada brasilidade. Com isso,são as implicações e o reforço dessa brasilidade levantada a cada quatro anos numaespécie de nacionalismo cíclico que procuramos analisar sob um prisma histórico esociológico tendo a produção musical como relevo.

Palavras-chave: Futebol Brasileiro. Copas do Mundo. Identidade Nacional. Brasil. Jingles.

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Índice

INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………………. 08

1. ENTRE O FOOTBALL MULATO E O COMPLEXO DE VIRA-LATAS: UMA ANÁLISE SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE 1938 E 1950………………………………………………. 10

1.1 1938: A GÊNESE DO FUTEBOL BRASILEIRO COMO ARTE………………………... 13

1.2 1950: A TRAGÉDIA DO MARACANAZO E O COMPLEXO DE VIRA-LATA……….. 21

1.3 NELSON RODRIGUES E O “COMPLEXO DE VIRA-LATAS”………………………… 29

2. BRASIL, UMA PÁTRIA EM CHUTEIRAS: NO ENCALÇO DO TRICAMPEONATO….. 34

2.1 1958: A TAÇA DO MUNDO É NOSSA E TAMBÉM O OTIMISMO………………….. 36

2.2 1962: O FREVO DO BI E A CONSOLIDAÇÃO DA PÁTRIA EM CHUTEIRAS…….. 44

2.3 1970: PRA FRENTE, BRASIL! FUTEBOL ARTE E UFANISMO……………………… 54

3. A MANUTENÇÃO DAS TRADIÇÕES: O FUTEBOL BRASILEIRO NA ERA POS-MODERNA…………………………………………………………………………………………. 68

3.1 1974 E 1978: OS ANOS 1970 E A CONTINUAÇÃO DO UFANISMO…………….. 72

3.2 1982: VOA CANARINHO E O RESGATE DO FUTEBOL-ARTE……………………… 82

4. AS TRADIÇÕES EM MEIO À CRISE DA PÁTRIA EM CHUTEIRAS: OS ANOS 1990 e 2000………………………………………………………………………………………………... 91

4.1 1994: TETRACAMPEONATO COM DIREITO A REPLAY…………………………….. 95

4.2 2002 e 2014: DO PENTA AO MINEIRAÇO, VELHAS TRADIÇÕES E CRISE DO FUTEBOL BRASILEIRO………………………………………………………………………… 102

5. METODOLOGIA……………………………………………………………………………… 108

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS…………………………………………………………………. 111

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS………………………………………………………… 114

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INTRODUÇÃO

A Sociologia do futebol é um campo de estudo relativamente novo. No Brasil sua

origem remonta da obra Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira, organizado e

publicado pelo antropólogo Roberto DaMatta em 1982. Isso quando falamos da origem dita

oficial, ou seja, aquela vinculada diretamente ao mundo acadêmico. Porque já nos anos de

1940 encontramos obras que buscavam explicar a sociedade brasileira tendo o futebol como

relevo, vide a publicação de O Negro no Futebol Brasileiro do jornalista Mario Filho, de

1947.

Enfim, a Sociologia do futebol se desenvolve atrelada ao anseio de buscar

explicações analíticas desse esporte, então vinculado por vários pensadores como mero

instrumento de alienação das massas (HELAL; LOVISOLO; SOARES, 2011). Com isso, a

importância da pesquisa se encontra em um campo teórico e ligado primordialmente aos

debates referentes à identidade nacional que giram em torno da Sociologia do futebol que há

tempo enxerga nesse esporte de multidões um potencial integrativo e simbólico sobre a

sociedade brasileira (DAMATTA, 2006), porém, acaba que, de forma secundária, sendo

relevante para a Sociologia da música ao buscar demonstrar como a musicalidade pode ser

uma ferramenta importante na criação de tradições e desenvolvimento de imaginações sobre

uma coletividade.

Ademais, sua preocupação com a análise dos jingles acrescenta a uma produção

acadêmica futebolística que apenas o retratou de forma superficial como podemos observar

em Helal e Cabo (2014); unindo bibliografia presente em temáticas como futebol, música e

identidade nacional.

Além desta introdução, a presente monografia será composta por cinco capítulos e as

considerações finais. No primeiro, intitulado “Entre o Football Mulato e o complexo de

vira-latas: um pouco sobre as experiências de 1938 e 1950”, será debatido a origem da ideia

desenvolvida pelo sociólogo Gilberto Freyre sobre o que conhecemos como Football

Mulato ou futebol-arte; assim como as origens do complexo de vira-latas, termo utilizado

pelo jornalista Nelson Rodrigues. Essas duas ideias, difundidas fortemente no senso comum,

serão bastante caras para o objetivo da obra.

No segundo capítulo, intitulado “Brasil em chuteiras: nos pés do ciclo do

tricampeonato mundial”, será debatido o contexto das edições das Copas do Mundo de 1958

(Suécia), 1962 (Chile) e 1970 (México). Atrelado a essa contextualização, analisaremos as

músicas que embalaram essas campanhas como A Taça do Mundo é Nossa, de 1958; Frevo

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do Bi, de 1962; e Pra Frente Brasil, de 1970 entre outras. Uma tradição bastante cara para

esse trabalho será debatida neste capítulo, falo da ideia de pátria em chuteiras, desenvolvido

por Nelson Rodrigues. No terceiro capítulo, intitulado “A Manutenção das tradições”,

veremos como a invenção das tradições (o futebol-arte e a pátria em chuteiras) foram se

reproduzindo nas músicas que embalaram a Seleção Brasileira de Futebol nos anos de 1970,

1980 e 1990. As edições presentes são: 1974, com a canção Cem Milhões de Coração; 1978,

com a canção Corrente 78; 1982, com a famosa Meu Canarinho e, por último, a edição de

1994 com a música Coração Verde e Amarelo.

No quarto capítulo, “As tradições em meio a crise da pátria em chuteiras: os anos

2000”, iremos discutir como foram movimentadas as tradições em torno das Copas do

Mundo de 2002 e 2014; a primeira edição referente ao último título conquistado pela

Seleção Brasileira e a última em que o país voltou a sediar o evento. Sobre a Copa de 2002,

não discutiremos uma música em específico. O mais valioso será a compreensão de um novo

contexto do futebol brasileiro que chamaremos de crise da pátria em chuteiras. Já sobre a

Copa de 2014, realizada no Brasil, analisaremos a canção Mostra a tua força, Brasil.

No quinto capítulo, discutiremos a metodologia do trabalho, destrinchando a técnica

de coleta de dados e sua consequente análise. Por fim, as considerações dão números finais a

esse trabalho de conclusão de curso.

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CAPÍTULO 1 - ENTRE O FOOTBALL MULATO E O COMPLEXO DE VIRA-LATAS: UM POUCO SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DE 1938 E 1950

Antes de iniciar a análise sobre as edições de 1938 e 1950, vale a pena historicizar o

futebol mundial e brasileiro. Acreditamos que essa breve cronologia a ser descrita será de

grande serventia para o restante da obra. Sobre essa cronologia, utilizaremos duas

concepções. Uma voltada para uma história do futebol em âmbito internacional e outra

nacional. A primeira é mais generalista e se baseia nas reflexões feitas pelo sociólogo

Richard Giulianotti (2002). Para melhor analisar a história do futebol, ele adota uma divisão

com base em três estágios diferenciados. São eles: a) o Tradicional; b) o Moderno; c) e o

Pós-Moderno.

As definições desses estágios são fundamentalmente sociológicas. Sendo assim,

deve-se entender por tradicional, um estágio pré-moderno do futebol que continha

características consideradas como pré-capitalistas ou pré-industriais. Essas características se

relacionam tanto a prática em si do futebol, quanto a sua gerência e/ou administração. “De

modo geral, isso envolve a aristocracia ou a classe média tradicional, que exerce sua

autoridade muito mais por convenções do que por meios racionais ou democráticos”

(GIULIANOTTI, 2002, p. 9). Vale lembrar que os esportes em geral, e o futebol em

particular, desenvolveram-se inicialmente em universidades e escolas europeias como uma

forma de distinção social para uma ascendente classe média que buscava se vincular à elite

nacional autêntica (HOBSBAWM; RANGER, 1984). E, buscando se diferenciar das classes

subalternas, essa classe média defendeu arduamente uma prática esportiva baseada em

valores de respeitabilidade que apenas o amadorismo poderia oferecer.

Como moderno, deve-se entender o estágio em que esse esporte começa a se

popularizar entre as classes subalternas, profissionalizando-se. Graças a um intenso e

complexo processo de urbanização e industrialização, o futebol começa a ser praticado pela

classe trabalhadora. Segundo Hobsbawm,

Entre meados da década de 1870, no mínimo, e meados ou fins da décadade 1880, o futebol adquiriu todas as características institucionais e rituaiscom as quais estamos familiarizados: o profissionalismo, a Confederação, aTaça, que leva anualmente em peregrinação os fiés à capital para fazeremmanifestações proletárias triunfantes, o público nos estádios todos ossábados para a partida do costume, os “torcedores” e sua cultura, arivalidade ritual, normalmente entre facções de uma cidade ou conurbaçãoindustrial (Manchester City e United, Notts County e Forest, Liverpool eEverton) (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 296).

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Finalmente, o estágio pós-moderno se refere a quebra das construções formadas e

alicerçadas durante o estágio moderno. Sua principal característica é a fragmentação que

marca um futebol globalizado. É durante esse estágio pós-moderno que “somos

confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis,

com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL,

2006, p. 13). Aqui a ideia de um estilo de jogo genuinamente nacional é substituída por uma

prática futebolística cosmopolita e sem barreiras definidas. Como exemplo deste estágio,

temos as principais competições europeias como a Premier League (Campeonato Inglês) ou

a La Liga (Campeonato Espanhol), onde o números de estrangeiros ultrapassam ou são

equivalentes ao números de jogadores nativos, mesclando atletas de diferentes

nacionalidades em um punhado pequeno de clubes.

E a nível nacional, como podemos traçar uma cronologia do desenvolvimento do

futebol brasileiro? Sem excluir as definições acima desenvolvidas, utilizaremos a cronologia

feita por Robert M. Levine (1982) e José Sebastião Witter (1982) que assim distribuem o

desenvolvimento do futebol nacional: a) de 1894 a 1904, período inicial quando o futebol se

manteve restrito a clubes urbanos pertencentes a estrangeiros; b) de 1905 a 1933, período

marcado pelo amadorismo e por um grande salto de divulgação do esporte, convivendo com

uma forte pressão para melhorar o nível do jogo através de subsídios para os jogadores; c) de

1933 a 1950, período inicial do profissionalismo; d) de 1950 a 1980, período de

reconhecimento internacional do futebol brasileiro, acompanhado de uma progressiva,

intensiva e sofisticada comercialização da prática.

Podemos afirmar que os dois períodos iniciais, de 1894 a 1933, marcam o estágio

tradicional que mencionamos acima; já o período que vai de 1933 a 1980, marca o estágio

moderno em que o futebol brasileiro ultrapassa os limites das classes altas e médias,

populariza-se e se expande a nível nacional, continental e internacional. A partir de 1980,

ocorre uma intensa exportação de jogadores brasileiros, acumulada a queda de público nas

competições nacionais, formando uma crise do futebol brasileiro (HELAL, 1997) que

podemos vincular com o estágio pós-moderno. Mas, ainda sobre esses estágios descritos,

tanto a nível internacional, quanto a nível nacional, devemos deixar claro o seguinte:

No entanto, considero essas periodizações como “tipos ideais” com umaheurística intrínseca e valor hermenêutico. São conceitos e categoriasgerais úteis para estruturar e compreender ações e acontecimentoshistóricos, embora se saiba que a “realidade” nem sempre se adapta muitoprecisamente a essas categorizações. Essas categorias históricas nosajudam a dar um “sentido de documentário” para eventos ouacontecimentos específicos ao futebol, relacionando-os ao contexto social epolítico mais amplo ou à weltanschauung (visão de mundo) da época(GIULIANOTTI, 2002, p. 11).

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Outro ponto a ser destacado é referente a resposta da seguinte pergunta: por que a

análise de Copas do Mundo e não de outro evento esportivo como a Copa América ou as

Olimpíadas? Levando em consideração a bibliografia consultada, acreditamos que a Copa do

Mundo é um evento que consegue encarnar melhor a ideia de nações em campo. A Copa

América tem limites continentais; já as Olimpíadas tem pouca repercussão, pelo menos

quando tratamos do futebol. Por seu alcance e representatividade política (e também

econômica), o futebol acabou desenvolvendo uma competição própria. Por enquanto que as

outras modalidades, majoritamente, encontram nas Olimpíadas seu apogeu; o futebol criou e

desenvolveu a Copa do Mundo como um evento singular. Considerando a Copa do Mundo

como um fenômeno econômico-midiático, contendo forte caráter ritual e simbólico,

podemos afirmar que:

Jogos da Copa do Mundo estão entre os eventos de maior concentração deaudiência global em todos os tempos, reunindo mais de um bilhão depessoas em todo o mundo em torno de um retângulo gramado em queatletas uniformizados perseguem uma bola (GASTALDO; GUEDES, 2006,p. 7).

O cerne do nosso trabalho acredita que, por conter um forte caráter ritual e

simbólico, a Copa do Mundo desenvolve quadrienalmente uma atmosfera nacionalista que

envolve torcedores de diferentes níveis; seja aquele fã de futebol, já acompanhante do seu

time de coração, até torcedores menos assíduos que acabam sendo arrastados pelo clima

festivo e aglutinador que esse evento consegue instigar. Ainda segundo Édison Gastaldo e

Simoni Guedes:

As Copas do Mundo talvez sejam um dos últimos redutos do nacionalismono mundo moderno e, por esta via, talvez sejam um dos mais importantesespaços para a produção simultânea das identidades nacionais. Talvez sejaum anacronismo trazido diretamente do século XIX (GASTALDO;GUEDES, 2006, p. 9).

Como veremos no decorrer do trabalho, as Copas do Mundo permanecem sendo um

importante palco para a reprodução de tradições inventadas (HOBSBAWM; RANGER,

1997) e de símbolos que reforcem uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2008); isso

independente de contexto histórico e estágio em que esteja o futebol. No caso brasileiro, a

Seleção Brasileira começa a ser vista como uma representante não-oficial do país a partir da

Copa de 1938, tendo o Estado Novo como pano de fundo. É a partir dessa edição que a

tradição inventada do futebol-arte tem início, sendo uma expressão da genuinidade do

brasileiro. Apesar do pessimismo pós-1950, essa tradição ressurge e ao lado de outra: a de

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que a Seleção Brasileira representa a pátria em chuteiras, homogeneizando o brasileiro como

fã de futebol. As músicas analisadas reproduzem ambas as ideias e enquanto a primeira é

relativa ao jogo dentro das quatro linhas (afinal, jogamos um futebol diferenciado dos

demais, sendo um tipo de expressão artística); a segunda tem relação com o exterior, pois

busca criar uma identidade do torcedor brasileiro.

Por fim e a título de informação sobre os capítulos do presente trabalho, os dois

primeiros que abarcam um período que vai de 1938 a 1970, analisa o estágio moderno do

futebol brasileiro em que várias tradições inventadas (analisaremos em específico as ideias

de futebol-arte e pátria em chuteiras, tendo os jingles como objeto de estudo da reprodução

dessas tradições) foram criadas e desenvolvidas. Já o capítulo três, tirando a parte 3.1 onde

brevemente passaremos pelo futebol brasileiro nos anos de 1970, e o capítulo quatro terão

como foco edições de Copa do Mundo que se enquadram no estágio pós-moderno. Enfim,

acreditamos que essas definições iniciais esclareçam o leitor sobre a cronologia que esse

trabalho visa se orientar e a partir de agora entraremos a fundo na análise das edições.

1.1 1938: A GÊNESE DO FUTEBOL BRASILEIRO COMO ARTE

A Copa do Mundo de 1938, realizada na França, marcou o início das tradições

inventadas em torno do futebol brasileiro. No âmbito esportivo, foi a primeira edição em que

o Brasil se encontrava devidamente organizado para a disputa. Isso porque, tanto em 1930,

quanto em 1934, a desorganização logística e as intrigas entre amadores versus

profissionalistas atrapalharam a preparação da Seleção Brasileira de Futebol. Em 1930,

primeira edição de uma Copa do Mundo, ocorreu uma confusão envolvendo as federações

paulistas e cariocas. A Confederação Brasileira de Desportos (CBD), fundada em 1916 com

o intuito de apaziguar conflitos entre federações estaduais, foi incapaz de resolver os

impasses. Motivo do descontentamento: a Associação Paulista de Esportes Atléticos (APEA)

recusou enviar jogadores paulistas para o evento, pois a comissão técnica da Seleção

Brasileira era composta por cariocas. Por conta disso, o Brasil ficou sem sua principal

estrela: o paulista Arthur Friedenreich.

Em 1934, a confusão envolveu adeptos do amadorismo versus adeptos do

profissionalismo. Isso porque a CBD, então simpática ao amadorismo, decidiu levar para a

Copa do Mundo apenas atletas amadores. A Federação Brasileira de Futebol (FBF),

instituição que reunia paulistas e cariocas adeptos ao profissionalismo; tratou de reunir

atletas, federações e clubes com o intuito de boicotar o evento. Com isso, a CBD, instituição

encarregada pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) de convocar os atletas, chamou

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basicamente a base do time do Botafogo de Futebol e Regatas, então único clube de grande

expressão que não aderiu ao boicote. O resultado dessas contendas foi a obtenção de duas

campanhas pífias, tanto no Uruguai (1930) como na Itália (1934).

Já sob o Brasil Estado-novista, a Copa do Mundo de 1938 ganhou diferentes

contornos em comparação com as edições anteriores. A primeira grande diferença foi o

apaziguamento das rivalidades estaduais, permitindo ao Brasil levar para à França (então o

país-sede do evento) seus melhores jogadores, independente de clube ou federação. A

segunda diferença estava na logística, pois foi a primeira edição em que os jogadores

passaram um período em treinamento preparatório. No caso, o palco da preparação foi a

estância hidromineral de Caxambu, em Minas Gerais. Em termos comparativos, a

preparação dos jogadores brasileiros para a Copa de 1934, ocorreu de forma rústica no

convés do navio Comte Biancamano. Mas o terceiro aspecto era simbólico, através da

seguinte novidade:

Já a CBD lançou a “Campanha do Selo”. Quem adquirisse um selocebedense por apenas quinhentos réis estaria ajudando os jogadoresbrasileiros a irem à França e concorreriam a um lugar na delegação. O selotinha a seguinte frase: “Auxiliar o escrete é o dever de todo o brasileiro”.Mais do que um ato esportivo, comprar o selo era encarado como um atopatriótico (SOUZA, 2008, p. 62).

Mas essas diferenças expostas acima foram impulsionadas e organizadas por um

novo contexto político e ideológico por qual passava o país. Como já foi dito, o Brasil da

Copa de 1938 era o Estado-novista. A partir do golpe de 1937, instaurando o Estado Novo,

as mudanças iniciadas a partir da Revolução de 30 foram intensificadas com base numa

centralização política e forte autoritarismo. Segundo eminentes ideólogos do Estado Novo,

analisados pela historiadora Ângela Maria de Castro Gomes (OLIVEIRA; VELLOSO;

GOMES, 1982), como Azevedo Amaral, a Revolução de 30 teve um forte caráter restaurador

tendo em vista o caos social e político existente antes de 1930. A partir desse acontecimento

histórico, passou-se a dar atenção a problemas sociais. E a chamada questão social, segundo

Getúlio Vargas em comício na Esplanada do Castelo em 2 de janeiro de 1930, passava a ser

“um dos problemas que terão de ser encarados com seriedade pelos poderes públicos”

(RIBEIRO, 2001, p. 62). Para esses ideólogos, o Estado Novo surgiu para preservar essas

conquistas iniciadas em 1930, intensificando-as e fundando um Estado nacional nunca visto

antes na história do país.

Na defesa dessa questão social, o Estado teria papel fundamental na formulação de

uma legislação social que humanizasse o trabalho e “Pelo trabalho o cidadão encontraria sua

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posição na sociedade e estabeleceria relações com o Estado” (OLIVEIRA; VELLOSO;

GOMES, 1982, p. 127). Foi neste contexto que o futebol foi oficialmente profissionalizado

no Brasil em 1933, sendo a confusão em torno da Copa de 1934 a última grande resistência

dos setores adeptos ao amadorismo. Depois desse caso, o profissionalismo se desenvolveu e

alicercou-se no país, sendo a edição de 1938 a mais tranquila para que esses setores

organizassem a Seleção Brasileira.

Essas foram mudanças no âmbito político, mas existiram outras no âmbito intelectual

e que merece destaque. Segundo Ludwig Lauerhass (1986), brasilianista que estudou o

desenvolvimento do nacionalismo brasileiro de 1880 a 1945, o período de fluidez e confusão

vistos entre 1930-1937 foi substituído pelo triunfo ou predomínio nacionalista vistos entre os

anos de 1937 a 1945. Nesse período, o bonapartismo varguista (BANDEIRA, 1985)

conseguiu atingir um alto grau de consenso entre as várias correntes nacionalistas que

existiam na época. O golpe que instaurou o Estado Novo não serviu apenas para pacificar a

nação contra as imaginadas ideologias extremistas, representadas pelos comunistas do

Partido Comunista do Brasil (PCB) e fascistas da Ação Integralista Brasileira (AIB); ele

também serviu como ponto de partida para uma sistemática campanha nacionalista que

combatia não só os regionalismos (vejamos que o apaziguamento das disputas entre os

estados não ficou apenas no futebol) como buscava formar uma consciência genuinamente

nacional sobre o Brasil.

A busca por essa explicação do Brasil pelo Brasil foi vista em algumas medidas

governamentais como a criação do Instituto Nacional do Livro, ação do Ministério da

Educação que visava popularizar escritos sobre a cultura nacional; e também o

desenvolvimento de valores cívicos nas escolas como a nacionalidade, o vigor físico, a

moralidade, o trabalho etc. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em

1939, por decreto do então presidente Getúlio Vargas, cumpriu um importante papel na

construção de uma identidade nacional a partir da divulgação de filmes nacionais

(LAUERHASS, 1986). Um forte aliado do Estado Novo, e também do futebol, foi bastante

utilizado pelo DIP: o rádio. Sobre o rádio e sua importância na popularização do futebol

como traço da identidade nacional, tendo a Copa de 1938 como pano de fundo, podemos

destacar:

A criação de mitos e heróis pelo rádio esportivo, e posteriormente pelaimprensa em geral, ajudou a formatar o caráter nacionalista e épicoatribuído ao futebol. A seleção brasileira começava a representar a pátria, eo futebol, em geral, era uma robusta manifestação de brasilidade(GUTERMAN, 2014, p. 75).

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Mas essa relação rádio-futebol, não surgiu do nada e houve eventos testes antes da

realização da Copa do Mundo de 1938. A primeira transmissão direta do rádio para o Brasil

de um torneio internacional foi o Campeonato Sul-Americano de Futebol de 1936-1937

(GUTERMAN, 2014). O sucesso foi repetido em 1938 e acrescido de uma nova marca

histórica a ser destacada:

Na Copa de 1938, a proeza foi a participação de uma emissora brasileira noevento que ocorria na Europa. O locutor Gagliano Neto era o únicoradialista da América do Sul atuando durante o Mundial diretamente dosestádios, por meio de emissoras de ondas curtas que chegavam ao Brasilcom algumas interferências e chiados (HELAL; CABO, 2014, p. 46).

A relação rádio-futebol foi acrescida pela política-futebol. A política sempre se

misturou com o futebol e vice-versa, porém, a partir dos anos de 1930 a relação entre a

esfera política (falamos aqui da política oficial e/ou institucional) e o mundo da bola ganhou

contornos mais intensos. É bem verdade que, segundo alguns, a primeira intervenção da

esfera política na Seleção Brasileira ocorreu ainda durante a Primeira República, também

chamada por República Velha. No Campeonato Sul-Americano de 1921, realizado na

Argentina, a CBD teria acatado um pedido do então presidente da República Epitácio Pessoa

e teria barrado jogadores negros e “mestiços” da convocação com o intuito de “preservar a

imagem no exterior”1. E se em 1934 vimos a nomeação de Lourival Fontes como chefe da

delegação, homem que meses depois do torneio seria indicado como Ministro de

Propaganda do Presidente Getúlio Vargas; em 1938 tivemos uma ligação direta com Alzira

Vargas, filha do presidente, escolhida como madrinha da Seleção Brasileira2 e as próprias

considerações de Vargas que não só recebeu o selecionado nacional antes da viagem como

expressou a eliminação brasileira para os italianos da seguinte forma: “O jogo monopolizou

as atenções. A perda do team brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e

tristeza no espírito público, como se se tratasse de uma desgraça nacional” (Fundação

Getúlio Vargas, 1995, v. 2, p. 140 apud PEREIRA, 2000, p. 13). O Brasil não conseguiu o

título, como lamenta Getúlio Vargas em seu diário, mas caso tivesse conquistado a taça

houve uma declaração do presidente em que ele prometia “casa própria para os craques, o

prêmio oferecido pelo chefe da nação se o Brasil levantar o campeonato mundial”3.

Feita essas explanações mais gerais, podemos indagar a questão fundamental do

capítulo: qual a importância da Copa do Mundo de 1938 para o imaginário nacional em

1 PIRES, Breiller. Do primeiro título ao preconceito explícito, Copa América cravou mancha do racismo na camisa da seleção. El País, São Paulo, 15 jun, 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/14/deportes/1560542966_765592.html>. Acesso em: 15, jun, 2019.

2 Correio da Manhã, 1° jun 1938 apud SOUZA, 2008, p. 63.

3 Jornal dos Sports, 20 mar, 1938 apud SOUZA, 2008, p. 63.

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torno do futebol? É possível afirmar que a edição de 1938 representou a gênese do futebol

brasileiro, sendo as construções reproduzidas nas edições seguintes uma consequência das

aqui iniciadas. Isso porque foi durante a sua realização que uma ideia fundante surgiu: trata-

se da ideia de Foot-ball Mulato do sociólogo e historiador pernambucano Gilberto Freyre e

que posteriormente seria transformada em uma espécie de futebol-arte (BARRETO, 2004).

Gilberto Freyre é fruto de uma geração de intelectuais que buscaram compreender o

Brasil, aprofundando o estudo sobre sua formação social e histórica. Ele se encontra em um

panteão de “autores de teorias e interpretações vistas como basilares e influentes nos

pensamentos político, econômico e historiográfico do Brasil” (PERICÁS; SECCO, 2014, p.

11). Dentro desse panteão, alguns enxergavam o Brasil de forma negativa, vendo o processo

de miscigenação como um traço da fraqueza nacional. O mais conhecido desses autores é o

maranhense Nina Rodrigues, autor da obra Os Africanos no Brasil de 1932. A principal tese

desse livro é que a causa do subdesenvolvimento brasileiro se encontra na predominância da

mão-de-obra negra no país. Freyre, segundo o antropólogo Roberto DaMatta (2006), visa

combater essas ideias em sua obra máxima Casa-Grande e Senzala, publicada originalmente

em 1933.

Para DaMatta, a interpretação gilbertiana do Brasil carrega uma visão inovadora para

o contexto dos anos de 1930. Isso ocorre,

Ao mostrar que o Brasil é o que é, precisamente por causa do português, donegro e do índio; que ele não é mesmo burguês – francês ou inglês – comogostaríamos que fosse, Gilberto Freyre abre espaço para uma visão positivade nós mesmos (FREYRE, 2006, p. 15).

Sua obra teria três objetivos principais: a) combate ao racismo, interpretando o Brasil

sob um viés culturalista; b) ênfase no papel da mestiçagem, enxergando positivamente esse

processo e colocando o racismo às avessas; c) destaque para a contribuição do negro, se

afastando da visão do negro como causa do nosso atraso civilizatório, enxergando-o como

um traço positivo e fundamental na formação social do país (FREYRE, 2006). Teríamos,

enfim, uma formação própria que não era melhor (muito menos pior) que outras. O diferente

para Freyre não significava inferioridade ou superioridade, ideia que ele vai beber no contato

com a antropologia de Franz Boas e de seu conceito de particularismo histórico. Conceito

esse que casaria com seus objetivos de estudar a formação social do Brasil com base nas

nossas singularidades, pois:

Sua aplicação se baseia, em primeiro lugar, num território geográficopequeno e bem definido, e suas comparações não são estendidas além doslimites da área cultural que forma a base de estudo. Apenas quando

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obtiverem resultados definidos com relação a essa área, será lícito estendero horizonte além desses limites (BOAS, 2004, p. 34).

A crônica Foot-ball Mulato, publicada em 17 de junho de 1938, no tradicional jornal

Diário de Pernambuco, surgiu dois dias antes da final da Copa do Mundo (realizada entre

Itália e Hungria) marcando a fundação de uma inconfundível forma do brasileiro jogar

futebol. A partir daquele texto, “foi sendo construído o ideal de um estilo brasileiro baseado

na habilidade, na criatividade, na improvisação, no drible, enfim, aquilo que até hoje se

admira e reivindica como estilo nacional” (HELAL; CABO, 2014, p. 47).

A crônica, basicamente, apresenta três pilares ou ideias centrais. O primeiro pilar é a

constatação de que o brasileiro, a partir do futebol apresentado na competição, teria uma

forma de jogar que se diferencia das demais. Buscando reforçar essa ideia, Freyre diferencia

o brasileiro do europeu em várias passagens, como na seguinte:

O nosso estilo de jogar foot-ball me parece contrastar com o dos europeuspor um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astúcia, deligeireza e ao mesmo tempo de espontaneidade individual em que seexprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhorafirmação na arte política (FREYRE; 1938, p. 4).

Criativo, hábil e alegre o futebol apresentado pelos brasileiros é tido por Freyre como

dionisíaco; já o futebol europeu, estreito em sua dedicação aos chamados métodos

científicos e de extrema coletividade, é tido como apolíneo. Essa diferença entre a natureza

brasileira e europeia é vista em outras ocasiões na sociologia freyreana. Por exemplo, ao

analisar o processo de reeuropeização por qual passou o Brasil a partir do século XIX, ele

apresenta as três primeiras décadas de colonização como genuína ao combinar traços da

cultura portuguesa, espanhola, africana e asiática, adquirindo condições de vida vistas como

exóticas para o europeu que viesse conhecer o país. Através da assimilação, imitação e

coerção os brasileiros passaram a desenvolver novas condições de vida a partir do século

XIX que são assim descritas por Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos: “A nova Europa

impôs a um Brasil ainda liricamente rural, que cozinhava e trabalhava com lenha, o preto, o

pardo, o azul-escuro de sua civilização carbonífera” (FREYRE, 2006, p. 433).

Sua crítica a essas novas formas de condições de vida, chega a atingir D. Pedro II,

visto por ele como um grande entusiasta do processo de reeuropeização. D. Pedro II seria

um “europeu de cidade” que, por se vestir e pensar como um velho, era o monarca “mais

triste do mundo” aos vinte e poucos anos (FREYRE, 2006). O europeu e sua cultura são

tratados por Freyre como uma expressão antagônica à felicidade e ao colorido. Essa mesma

lógica é vista em sua crônica de 1938, vinculando o futebol europeu a adjetivos como:

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apolíneo, racional, mecanizado etc.

Diferenciado o brasileiro do europeu, Freyre avança. Mas quais as origens dessa

forma diferenciada do brasileiro jogar futebol? A resposta é o segundo pilar da crônica: a

valorização da mestiçagem. O europeu não pratica o mesmo futebol que o brasileiro, pois

sua formação social não foi marcada pelo processo de mestiçagem, retirando o privilégio de

ter uma figura supervalorizada na sociologia freyreana: o mulato, visto como uma “meia-

raça” ou débil classe média que conseguia certa ascensão social no rígido e hierarquizado

sistema patriarcal (FREYRE, 2006). A valorização da inserção do negro e do mulato no

futebol é vista já no início da crônica. Perguntado pelo jornalista sobre as razões do sucesso

da Seleção Brasileira em solo francês, Freyre responde de imediato: “uma das condições dos

nossos triunfos, este ano, me parecia a coragem, que afinal tiveramos completa, de mandar à

Europa um team fortemente afro-brasileiro” (FREYRE, 1938, p. 4). E sobre quem seriam os

componentes desse time afro-brasileiro, Freyre afirma: “Brancos, alguns, é certo; mas um

grande número de pretalhões bem brasileiros e mulatos ainda mais brasileiros” (FREYRE,

1938, p. 4).

Separado o brasileiro do europeu e devidamente valorizada a mestiçagem, chegamos

no terceiro e último pilar da crônica que seria o pano de fundo para a reprodução dos dois

primeiros: a constituição de uma formação social democrática. Essa formação social que

cumpre o papel de pano de fundo para a reprodução desse Foot-ball Mulato, pode ser vista

no seguinte trecho da crônica:

O contraste pode ser alongado: o nosso foot-ball mulato, com seus floreiosartísticos, cuja eficiência – menos na defesa do que no ataque – ficoudemonstrada brilhantemente nos encontros deste ano com os poloneses e ostchecoslovacos é uma expressão de nossa formação social democráticacomo nenhuma (FREYRE, 1938, p. 4).

Freyre acreditava que o futebol brasileiro, marcado pela mistura de raças, seria palco

para uma minimização das disparidades sociais que marcavam a sociedade brasileira. Não é

à toa que foi no futebol que encontramos os primeiros negros consagrados como ídolos

nacionais. É o exemplo de Leônidas da Silva, muito bem analisado por Denaldo Alchorne de

Souza em O Brasil entra em campo: construções e reconstruções da identidade nacional

(1930-1947); e Pelé, tricampeão mundial pela Seleção Brasileira e considerado até hoje

como o “rei do futebol”. Assim como não acabou com as diferenças entre as classes sociais,

o futebol também não foi capaz de extinguir um problema social tão crônico como o

racismo. Porém, podemos afirmar que a partir do processo de profissionalização, ele foi um

importante espaço para que diversos homens negros ascendessem econômica e socialmente

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(RODRIGUES FILHO, 2003; ROSENFELD, 2000).

Por fim, é bem verdade que as ideias expostas por Gilberto Freyre em Football

Mulato não eram completamente novas. Já existiam ideias anteriores que caminhavam em

busca de uma diferenciação do futebol brasileiro dos demais. O Campeonato Sul-Americano

de 1919, vencido pelo Brasil em cima dos uruguaios, já trazia reflexões nesse sentido. O

jornalista Américo Netto justificou a vitória sobre os uruguaios da seguinte forma:

“Vencemos simplesmente porque não jogamos como eles, porque é muito diferente, é muito

nossa, muito brasileira, a escola de foot-ball que adotamos ou, antes, que criamos para nosso

uso exclusivo” (SOARES; LOVISOLO, 2003, p. 133 apud GIGLIO; SILVA, 2014, p. 110).

José Lins do Rego (1943, p. 7 apud GIGLIO; SILVA, 2014, p. 111), após o título da Copa

Rio Branco de 1932, “Os rapazes que venceram, em Montevidéu, eram um retrato da nossa

democracia racial”. Logo, a crônica feita por Freyre dialoga com essas e outras ideias, sendo

o resultado de um dado contexto sócio-histórico. Sendo assim, o texto não é subjetivo em

absoluto, pois ele mantém relações com o mundo exterior, mostrando como a comunicação

age sobre esse mundo:

Ou seja, o texto precisa captar o que circula na sociedade, o que está naságuas desse lago (seu referencial). A narrativa necessita, mesmo projetandoum mundo “real”, corresponder à atmosfera, estando em sintonia com ovivido. Em suma, a narrativa não inventa um mundo, ela busca noimaginário suas bases e pode sim, por conta de projetar tal cenário e intrigacomo “o real”, influenciar ações dos indivíduos (HELAL; MOSTARO,2018, p. 22).

Apesar dos exemplos anteriores a 1938, nenhum dos casos conseguiu reunir num

único texto todo o sentimento impregnado no imaginário social da época. Football Mulato

conseguiu transmitir tamanha complexidade com leveza e simplificidade, fundando o

futebol brasileiro como arte dionisíaca. A ideia de futebol-arte, reivindicada pelos brasileiros

a partir deste texto, pode ser definida como uma tradição inventada. Dentro das diferenças

de manifestação desse conceito, proposto por Hobsbawm (1982), podemos concluir que o

futebol-arte nasce vinculado a um tipo não-oficial e/ou “social”, forjada por grupos sociais

sem organização formal. Ela nasce fora de instituições formais, como o Estado, mas que por

seu alcance e aceitabilidade também acaba sendo utilizada pela institucionalidade. Surgida

num período em que a sociedade brasileira buscava explicações de si própria com base em

modelos próprios, a ideia de futebol-arte surge para “estruturar de maneira imutável e

invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWM; RANGER, 1982, p.

10), afirmando a identidade nacional com base no futebol.

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1.2 1950: A TRAGÉDIA DO MARACANAZO E O COMPLEXO DE VIRA-LATA

A Copa do Mundo de 1950 foi a quarta edição desse torneio, sendo a primeira após a

trágica Segunda Guerra Mundial. O Brasil de 1950 era governado por Eurico Gaspar Dutra

do Partido Social Democrático (PSD). Apoiado por Getúlio Vargas (deposto em fins de

1945, após oito anos sob liderança de uma ditadura), Gaspar Dutra venceu o brigadeiro

Eduardo Gomes nas eleições realizadas em dezembro de 1945. Mesmo após o fim do Estado

Novo, o país vivia sob uma democracia frágil. Em março de 1946, Dutra assinou o decreto-

lei 9.070, conhecido como lei antigreve (RIBEIRO, 2001). Já em janeiro de 1948, dois anos

após assumir a presidência, ele baniu o Partido Comunista do Brasil (PCB) e se posicionou

como um aliado dos Estados Unidos na Guerra Fria. O golpe dado no Estado Novo, a priori,

não resultou num aperfeiçoamento da democracia brasileira.

Já na economia, o governo Dutra surfou no crescimento visto a nível mundial. A

intensa recuperação econômica da Europa Ocidental, proporcionada pelo Plano Marshall,

contribuiu para o Brasil crescer a uma taxa média de 8% ao ano entre 1946 e 1950

(GUTERMAN, 2014). Por outro lado:

Os reajustamentos salariais foram pouco expressivos, já que as greves eramreprimidas. Não houve qualquer iniciativa governamental para oreajustamento salarial durante todo o período do governo Dutra. Apesar dainflação (o custo de vida aumentou no Rio mais de 60% no governo Dutra),as únicas alterações salariais no período ocorreram por iniciativa autônomade empresários isolados, para responder às reivindicações diretas de seusoperários, que conseguiram romper com os controles estatais sobre seussindicatos (ALMINO, 1980, p. 281 apud RIBEIRO, 2001, 294).

Foi em meio a esse cenário que as obras do Maracaña foram iniciadas, exatamente no

ano de 1948, dois anos antes da realização da Copa do Mundo. O estádio, então o maior do

mundo, não foi construído exclusivamente para a realização da Copa do Mundo, mas acabou

sendo bastante utilizado como propaganda. Após a Copa de 1938, três países se mostraram

como postulantes a país-sede da edição seguinte, a ser realizada em 1942. Esses países eram:

Alemanha, Argentina e Brasil. Os alemães, sob o comando de Adolf Hitler, enxergava na

realização do torneio como mais uma demonstração de força e organização do seu regime; e

era franca favorita por conta da realização exitosa das Olimpíadas de 1936, realizada em

Berlim. Os argentinos, por sua vez, enxergavam importância na possibilidade da Copa do

Mundo voltar a América do Sul após duas edições seguidas em solo europeu.

Mas, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a Copa do Mundo foi adiada. Após

o fim do conflito, os alemães se encontravam em desvantagem e sequer foram permitidos de

participar da Copa de 1950. Restavam Argentina e Brasil, países interessados e inseridos

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numa região que não sofreu com as desvastações da guerra. Sobre essa disputa e a opção

pelo Brasil:

Os dirigentes da Fifa desejavam um país democrático para a realização dotorneio. A Argentina de Perón não se enquadrava nesse quesito. Alémdisso, o país não tinha mais interesse em receber a competição. Restava,então, o Brasil, que foi oficialmente anunciado como sede do Mundial em25 de julho de 1946 (FARRUGIA; SALGADO; ZUCCHI; XIMENES,2014, p. 20).

A partir dessa oficialização, o Brasil começou a enxergar na realização desse evento

uma forma de se mostrar para o mundo. Era o momento de demonstrar orgulho por suas

origens e seu pujante desenvolvimento, provando que o país não era um lugar musical e

improdutivo. A construção do maior estádio do mundo era um exemplo desta força e, assim,

a recepção a Copa do Mundo de 1950 transformou-se em uma tentativa de afirmação

nacional. O próprio ano de 1950 era simbólico e significativo: ocorreriam eleições nacionais

no país, marcadas para dezembro. E esse pleito trazia a candidatura de Getúlio Vargas, figura

política que não se enfraqueceu apesar dos oito anos liderando uma ditadura.

Já nas eleições nacionais de 1946, Vargas mostrara sua força. Ele foi eleito Senador

por dois estados diferentes: Rio Grande do Sul e São Paulo. Além disso, foi eleito Deputado

Federal por sete estados diferentes, foram eles: Rio Grande do Sul, São Paulo (mais votado),

Distrito Federal (mais votado), Rio de Janeiro, Minas Gerais (segundo mais votado), Bahia e

Paraná. E “No Distrito Federal, Getúlio teve 116 mil votos para deputado; o segundo mais

votado no PTB teria pouco mais de 3 mil” (RIBEIRO, 2001, p. 290). Não foi à toa que em

dezembro de 1950, após a tragédia do maracanazo, Getúlio voltaria a presidência da

República após uma vitória tranquilo sobre Eduardo Gomes da União Democrática Nacional

(UDN).

Dada essa breve contextualização do momento em que vivia o país, podemos

aprofundar sobre o desenrolar da Copa de 1950 e como o vice-campeonato em pleno

Maracaña foi combustível para que mais tarde Nelson Rodrigues cunhasse o termo

complexo de vira-latas ao tratar da relação do brasileiro com o seu país. A Copa de 1950

encontrou dificuldades típicas de uma época em que o futebol, já profissional, ainda

carregava consigo fortes traços dos tempos amadores. A FIFA, sob liderança do então

presidente Jules Rimet, enfrentou problemas logísticos que hoje parecem fora de cogitação a

sua repetição. Por exemplo, antes da competição ter início ocorreram várias desistências de

seleções nacionais. Antes mesmo de iniciar as eliminatórias, vários países desistiram como:

a Argentina, o Peru e o Equador. Junto a essas três desistências na América do Sul, se

juntaram países asiáticos como: a Birmânia (atual Myanmar), as Filipinas, a Indonésia e a

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Índia. A desistência dos indianos comprovam a relutância do amadorismo ser eliminado por

completo, pois o país localizado no Sul da Ásia abriu mão da competição pela

impossibilidade de seus atletas jogarem descalços. Porém, foi na Europa que ocorreram mais

desistências. Entre as seleções desistentes no Velho Continente, tivemos: a Áustria, a

Bélgica, a Finlândia, a Escócia, a França, a Turquia e Portugal.

Tirando esses empecilhos enfrentados pela FIFA, a Copa de 1950 representou

desafios para o Brasil que sediava pela primeira vez um evento de tamanha magnitude. A

Copa de 1950 representava o primeiro evento esportivo internacional que o país sediava,

isso porque os Sul-Americanos de 1919, 1922 e 1949 tiveram contornos continentais. Dessas

três competições, as duas primeiras foram disputadas apenas na cidade do Rio de Janeiro.

Apenas no Sul-Americano de 1949 que se viram sedes descentralizadas, no caso: o Estádio

do Pacaembu, a Vila Belmiro, o Estádio de São Januário e o Estádio Independência. O

evento, que ocorreu um ano antes da Copa do Mundo, se limitou a três estados do Sudeste:

São Paulo (Pacaembu e a Vila Belmiro), Rio de Janeiro (São Januário) e Minas Gerais

(Independência). Já a Copa do Mundo de 1950 contou com seis cidades-sede de três regiões

diferentes do país. As cidades-sede em 1950, foram: São Paulo (Pacaembu), Rio de Janeiro

(Maracaña), Belo Horizonte (Independência), Porto Alegre (Estádio dos Eucaliptos),

Curitiba (Estádio Durival Britto e Silva, atual Vila Capanema) e Recife (Estádio da Ilha do

Retiro).

A responsabilidade pela organização do evento ficou à cargo da CBD, junto com a

FIFA e cidades interessadas em receber as partidas. O Governo Federal teve uma

participação pequena, para não dizer nula. Mas os esforços envolvendo os governos

estaduais e municipais, junto com a FIFA e a CBD, valeram a pena. Para as condições da

época, a realização do evento foi satisfatório. Segundo os números,

A Copa do Mundo de 1950 levou 1.045.246 espectadores aos seis estádiosdo torneio. A renda oficial gerada por esse público chegou aos 36,58milhões de cruzeiros (o equivalente a 65,3 milhões de reais) (FARRUGIA;SALGADO; ZUCCHI; XIMENES, 2014, p. 142).

A Copa de 1950 não só representou o primeiro evento esportivo de âmbito

internacional que o Brasil organizou, mas também mostrou as afinidades existentes entre

futebol e música popular, objeto central do nosso estudo. É bem verdade que a relação

música e Seleção Brasileira não começa em 1950, afinal, não podemos nos esquecer da

famosa Um a Zero, feita por Pixinguinha e que se inspirava no inédito título do Sul-

Americano de 1919; quando o Brasil sagrou-se campeão no Estádio das Laranjeiras com gol

do mulato Friedenrich, dando o pontapé inicial para a futura inserção de negros e mestiços

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no futebol (GUTERMAN, 2014). O “1 x 0 também representa o marco inicial de uma série

de composições instrumentais com títulos inspirados em clubes, jogadores e jogadas”

(XAVIER, 2009, p. 26). E mais,

1 x 0 é uma das composições instrumentais mais gravadas de todos ostempos na música brasileira e recebeu centenas de versões em disco outocadas em shows por todo o país. Há uma enorme lista de discos egravações, que inclui o clássico de Pixinguinha (XAVIER, 2009, p. 26).

Também não podemos esquecer da canção Paris feita em homenagem aos jogadores

brasileiros que partiram para a França, composta em 1938 por Alberto Ribeiro e Alcyr Pires

Vermelho; sob interpretação de Carmen Miranda (XAVIER, 2009). Porém, no caso de

Pixinguinha, o chorinho não continha letra; já a canção Paris, não remetia diretamente ao

futebol, sendo apenas uma menção à capital do país que sediou o evento naquele ano.

Trataremos disso com mais detalhe no capítulo destinado à metodologia, porém, se faz

necessário fazer alguns adiantamentos sobre a questão. A presente pesquisa, centrada em

uma análise de conteúdo como técnica, pressupõe que as letras das músicas analisadas

oferecem mensagens com significados antropológicos, sociológicos, políticos e também

históricos. Porém, aparentemente, elas não demonstram essa dimensão. Tendo em vista o

objetivo da análise de conteúdo, buscaremos trazer o que se encontra implícito nestas letras

(BARDIN, 2011).

Utilizaremos uma importante aliada da análise de conteúdo, trata-se da análise

temática que visa encontrar os núcleos de sentido das mensagens produzidas pelas letras

(MINAYO, 2009). Dentro do quadro de categorias a ser destrinchado mais à frente, teremos

como base metodológica três categorias que acreditamos aparecer nas músicas. São elas: a)

Diferenciação, tendo a ideia de futebol-arte e tradição inventada como componentes; b)

Coletividade, tendo a ideia da pátria em chuteiras e a comunidade imaginada como

componentes; c) Nacionalidade, tendo a ideia de cidadania deslocada como componente

único.

Da Copa de 1950, duas canções com forte teor nacionalista merecem destaque. São

elas: a Marcha do scratch brasileiro4 e O Brasil há de ganhar5. A referência a um imaginado

futebol-arte ainda não está presente nestas letras, pois o foco é a exaltação do evento em si.

Mas a pátria em chuteiras, termo criado por Nelson Rodrigues anos depois, já era incitado

4 GOULART, Jorge. “Hino ao scratch brasileiro.” Por: BABO, Lamartine. Continental, 1950, LP. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sVlD-AsjiFw> , Acesso: 08/12/19.

5 BATISTA, Linda. “O Brasil há de ganhar.” Por: BARROSO, Ary. RCA Victor, 1950, LP. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Im1B-qAP7cE>, Acesso em: 08/12/19.

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nas canções. Logo, o evento sediado no Brasil foi tratado como aliado na busca pela

formulação de uma comunidade imaginada. Ao mesmo tempo, a ideia de cidadania

deslocada está presente quando o sucesso fora dos gramados depende dos feitos dentro das

quatro linhas. Por fim, a cidadania deslocada também está presente na exaltação de símbolos

nacionais como as cores oficiais do Brasil. Sobre esse conceito de cidadania deslocada,

desenvolvido por DaMatta, esclarecemos sua definição como uma forma específica de

encarar o futebol no Brasil:

[…] como força integrativa é a sua capacidade de proporcionar ao povo,sobretudo ao povo pobre, enganado, mal-servido pelos poderes públicos –povo destituído de bens e, pior que isso, de visibilidade social e cívica – , aexperiência da vitória e do êxito (DAMATTA, 2006, p. 164).

Feito esse breve aviso, vamos para a análise das músicas envolvendo a Copa de

1950, começando por Hino do Scratch Brasileiro. Na primeira estrofe desta canção

encontramos importantes elementos a serem analisados, porque se ligam ao contexto em que

foi produzido. Segue a estrofe: “Salve, salve o nosso estádio municipal /No campeonato

mundial /Salve a nossa bandeira /Verde, ouro e anil /Brasil, Brasil, Brasil!” É possível

perceber a presença da categoria “nacionalidade”. Os símbolos oficiais da nação como a

bandeira e suas cores, são apresentadas para a população através do futebol. É aqui que,

segundo o conceito de cidadania deslocada, esse esporte substitui instituições sociais como o

Estado e aproxima os indivíduos dos símbolos nacionais. Sobre esse elemento, devemos

retornar as reflexões de Roberto DaMatta (2006) que atesta o seguinte:

No caso brasileiro, foi indiscutivelmente através do futebol, como jáafirmei, que o povo pôde finalmente juntar os símbolos do Estado nacional:a bandeira, o hino e as cores nacionais, esses elementos que sempre forampropriedade de uma elite restrita e dos militares, aos seus valores maisprofundos. Ainda é o futebol que nos faz ser patriotas e que permite queamemos o Brasil sem medo da zombaria elitista que, conforme sabemos,diz que se deve gostar somente da França, da Inglaterra, da Rússia, deCuba ou dos Estados Unidos e jamais do nosso país (DAMATTA, 2006, p.165).

A menção ao Maracaña, reforça a categoria “nacionalidade”, pois vincula a grandeza

da sua construção ao poderio do país. É, mais uma vez, o futebol sendo utilizado como uma

demonstração de força e orgulho de um povo, historicamente, destituído de direitos sociais

e/ou políticos de que possam se orgulhar. Em suma, a menção ao “estádio municipal”,

simboliza o poderio do Brasil e do brasileiro. O estádio era o maior do mundo até aquele

momento e a prova da grandeza do país; já a canção “foi tocada nos altos-falantes do

Maracaña em todos os jogos da Seleção, na mais fatídica Copa da história do escrete”

(XAVIER, 2009, p. 73). O Maracaña foi o estádio mais caro do torneio, fazendo o Rio de

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Janeiro ser a cidade-sede mais gastadora. Para entendermos a magnitude da construção do

‘Maraca’, apelido carinhoso dado ao Maracaña, vamos aos números: o custo total do

Mundial de 1950 foi de 437,5 milhões de reais, com o Rio de Janeiro gastando 415,67

milhões de reais só para a construção do novo estádio (FARRUGIA; SALGADO; ZUCCHI;

XIMENES, 2014).

Na segunda estrofe da canção Marcha ao scratch brasileiro, temos o seguinte: “Eu

sou brasileiro/ Tu és brasileiro /Muita gente boa /Brasileira é! /Vamos torcer com fé /Num

nobre coração /Vamos torcer para o Brasil ser campeão!”. Observamos o uso dos pronomes

pessoais “Eu” e “Tu”, primeira pessoa do singular e segunda pessoa do singular,

respectivamente. Logo, a música parece ser cantada de brasileiro para brasileiro. O emissor e

o destinatário são indivíduos de uma mesma nacionalidade. Dessa observação, vemos a

presença da categoria “coletividade” presente nesta primeira estrofe. A noção de pátria em

chuteiras está aqui presente de forma implícita: temos uma mensagem de brasileiro para

brasileiro, conclamando (com base em um “nobre coração”) para a torcida pelo Brasil ser

campeão mundial. A característica geral dessas canções, tendo a edição de 1950 como ponto

de partida, tecem um elo entre o time de futebol (no caso, a seleção nacional) e o indivíduo.

Utilizando uma linguagem socioantropológica, podemos assim inferir sobre esse fenômeno:

Elos que recriam num nível moderno da escolha individual a ideia decoletividade imperativa e coercitiva. Aquela comunidade que,diferentemente da casa e da família, nos engloba voluntariamente, porescolha e decisão, esses elementos básicos do credo individualista e da vidasocial igualitária (DAMATTA, 2006, p. 161).

Por falar na representatividade da construção do Maracaña, ela teve forte apoio do

cantor e compositor Ary Barroso que, junto com o jornalista Mario Filho, mobilizaram a

opinião pública em prol do novo estádio (GUTERMAN, 2014). E Ary foi o compositor da

outra canção que marcou a Copa de 1950: O Brasil há de ganhar, interpretada pela cantora

paulista Linda Batista. Vamos a primeira estrofe da música: “O Brasil há de ganhar /Para se

glorificar /Toca a pelota no gramado /Palmas para o selecionado /Deixa a moçada se

espalhar”. Nesta estrofe, podemos perceber claramente como o sucesso em campo da

Seleção Brasileira é esperado como um reforço da glória que foi recepcionar o evento. A

glória extracampo depende de sua continuação dentro das quatro linhas, sendo essa última a

cereja do bolo que deve vim para glorificar o país. Essa glorificação (“Para se glorificar”) é

tratada com a conjunção subordinativa “se”, indicando uma hipótese ou condição. Mas qual

seria essa condição? Seria o Brasil jogar o mundial (“Toca a pelota no gramado”) e, com a

ajuda da torcida (“Palmas para o selecionado”), conquistá-lo. A categoria “nacionalidade”

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está aqui presente, visto que o triunfo nos gramados é visto como meio de glorificação ou

redenção da nação em sua totalidade.

Já na estrofe seguinte, temos: “É a raça brasileira /Numa festa altaneira /Mostrando o

que é bom e varonil /Quando o time aparecer, gritaremos até morrer /Brasil, Brasil!”.

Diferente de um futebol-arte dionisíaco, a letra se remete a uma suposta “raça brasileira”,

porém, o foco da canção não é imaginar uma suposta forma do brasileiro jogar futebol; mas

sim exaltar o evento e a festa altaneira, boa e varonil que ele proporciona a nação. A

categoria “coletividade”, se encontra na flexão do verbo gritar na primeira pessoa do plural

(“gritaremos até morrer”), formando uma torcida uníssono que na prática seria uma pátria

em chuteiras que torce conjuntamente por sua seleção. Enquanto que a categoria

“nacionalidade”, está presente em trechos como: “Numa festa altaneira /Mostrando o que é

bom e varonil”. Ou seja, o brasileiro sente o que é bom e varonil através de um evento

esportivo. Não é um movimento social ou partido político que proporciona tal fato, mas uma

Copa do Mundo de Futebol. Por fim, as duas canções fazem parte de um contexto dado:

Era uma época em que a nação queria deixar para trás o estigma de “paísdo futuro” e aspirava ocupar um lugar de destaque na “modernidade”. Nãoà toa construíra para o evento o maior estádio do mundo, o Maracaña, comcapacidade para 200 mil pessoas. Naquele contexto ufanista, os destinos dopaís e da “raça brasileira” foram colocados e definidos em campo(GIGLIO; SILVA, 2014, p. 113).

Além dessas duas canções destacadas, outras duas fizeram alusão à Copa de 1950.

Apesar de gravadas desde julho, só foram lançadas em setembro. O adiamento do

lançamento do disco, provavelmente, ocorreu em virtude da derrota brasileira. Segundo

Paulo Luna (2011),

Mesmo assim, o LP foi a público homenageando a torcida brasileira na“Marcha da torcida”, de Ari Machado e Francisco Malfitano, gravado porRubens Peniche, também pela Continental, e cantando o grande estádioconstruído para a Copa do Mundo na marcha “Colosso do Maracaña”, deAri Machado e Antônio Sergi, com o grupo vocal Vagalumes do Luar eacompanhamento da Orquetra de Francisco Sergi. A torcida brasileira, porsinal, dera um verdadeiro espetáculo à parte naquela Copa, seja pelo grandecomparecimento, sempre pacífico, pelo apoio à seleção, pela manifestaçãoespontânea, como no caso da marcha “Touradas de Madrid”, cantada emuníssono no jogo contra a Espanha, ou também pela imensa tristeza esilêncio no jogo final contra os uruguaios, depois da derrota por 2 x1(LUNA, 2011, p. 235).

Vale salientar que a análise dessas músicas, assim como das seguintes, serão sob a

ótica da Sociologia da música e não da musicologia tradicional. Nosso foco será entender o

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contexto sócio-histórico em que essas letras foram produzidas, trazendo possíveis diálogos

delas com a realidade exterior. No caso, pudemos enxergar a exaltação do Brasil como país-

sede de um evento esportivo internacional. A presença de uma pátria em chuteiras já está

presente, assim como de uma cidadania deslocada. Detalhando a diferença de abordagem da

Sociologia da música para a musicologia tradicional, afirma K. Boehmer:

Ao contrário da musicologia tradicional a sociologia da música nãoreconhece diferenças estéticas na arte musical, na música popular ounoutras formas musicais mais recentes; encara estas categorias de um pontode vista sócio-histórico e analisa as condições em que certas classes ouestratos sociais […] . Outra diferença entre a musicologia tradicional e asociologia da música é que esta parte da relevância social do consumomusical e não de alegadas qualidades estéticas ou formais do produtomusical (BOEHMER, 1980, p. 433 apud CAMPOS, 2007, p. 77).

Como sabemos, todo esse clima otimista e ufanista não foi suficiente para evitar a

derrota do Brasil por 2 a 1, frente ao Uruguai de Juan Alberto Schiaffino e Alcides Ghiggia.

A Seleção Brasileira, que jogava até pelo empate em um Mundial decidido via quadrangular

final, viu a chance de coroar seus esforços escorrer pelas mãos. Apesar da boa repercussão

do Brasil no exterior, como as falas do jornalista austríaco Willy Meisl (PERDIGÃO, 1986),

não foram suficientes para a derrota frente aos uruguaios ser vista como uma verdadeira

tragédia conhecida mundialmente como maracanazo. A unidade nacional foi fortemente

abalada, desenvolvendo uma espécie de trauma cultural, visto como mais que um simples

trauma psicológico, mas à maneira como uma coletividade constrói social e culturalmente

uma teia de significados que funcionam como um espelho quebrado de sua própria história e

formação (MORAIS; RATTON, 2006).

Esse trauma cultural, advindo por conta da tragédia frente os uruguaios, fez ressurgir

o racismo que ainda predominava no futebol brasileiro, mas que estava velado por conta da

profissionalização do esporte e sua massificação. Os vilões da derrota, foram três jogadores

negros: o goleiro Barbosa, o zagueiro Juvenal e o meio-campista Bigode. Toda a construção

em torno dos benefícios da inserção do negro e do chamado “mulato” no futebol, foram

questionados por diversos atores da opinião pública a partir dessa derrota que demonstrou

uma imaginada “fraqueza mental do homem brasileiro”.

Pois bem, a obra rodrigueana que desaguará na ideia de complexo de vira-latas em

maio de 1958 (em sua última crônica antes do início da Copa do Mundo de 1958), dialoga

diretamente com o sentimento pessimista e autodestrutivo que paira sobre o país após o vice-

campeonato em 1950. Encerrando a discussão do capítulo, vamos analisar como se deu o

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desenvolvimento das ideias de Nelson Rodrigues nessa época. Passaremos pela Copa do

Mundo de 1954 até momentos antes da redenção nacional, vista na Copa do Mundo de 1958.

1.3 NELSON RODRIGUES E O “COMPLEXO DE VIRA-LATAS”

Talvez por ter 30% da sua visão comprometida, em decorrência de uma tuberculose,

Nelson encarava o futebol como uma dramaturgia em que o jogo em si era apenas um

elemento. Para ele, “O jogo era o elemento desencadeador de uma narrativa que transcendia

os fatos” (ANTUNES, 2004, p. 211). Suas crônicas apresentam as seguintes características:

Em suas crônicas, Nelson Rodrigues quase desliga o futebol da vida real eo coloca numa dimensão de eternidade. Transforma pessoas empersonagens fascinantes, quase heróis míticos. Mesmo que o leitor nãotenha muita informação sobre elas, acaba inevitavelmente atraído por seusdramas pessoais (ANTUNES, 2004, p. 212).

Nossa análise acerca da crítica de Nelson Rodrigues à atmosfera pessimista do

período pós-1950 tem como foco quatro crônicas escritas pelo autor na revista Manchete

Esportiva entre os anos de 1955 a 1958. Dessas quatro crônicas recortadas, duas conservam

seus títulos originais (Freud no futebol e Irresistível Flamengo); por enquanto que as outras,

originalmente publicadas sob a famosa rubrica Meu personagem da semana, apresentam

novos títulos com base no pensamento e na obra do autor (RODRIGUES, 1993).

Acreditamos que, unificadas, estas crônicas encarnam a crítica rodrigueana.

Após a tragédia de 1950, várias foram as teorias que buscavam explicar as razões do

fracasso. Nelson busca explicações com base nas emoções e psiquê dos brasileiros. E assim,

Para Nelson, enquanto os brasileiros eram idealizadores e sonhadores, osuruguaios, ao contrário, buscavam a vitória com todo o empenho possível,mesmo que, para isso, tivessem de recorrer à violência. Diante dessesdiferentes comportamentos, Nelson Rodrigues chegava à conclusão de queo brasileiro era humilhado porque era humilde e, a partir dessa constatação,resolveu empreender uma busca sistemática às raízes de tanta humildade(ANTUNES, 2004, p. 218).

No percurso em busca dessas raízes, Nelson Rodrigues detecta a instabilidade

emocional dos jogadores brasileiros em crônica publicada em abril de 1956 - intitulada

Freud no Futebol - destacando a necessidade da presença de um psicanalista entre a

comissão técnica da Seleção Brasileira. Para ele, “Cuida-se da integridade das canelas, mas

ninguém se lembra de preservar a saúde interior, o delicadíssimo equilíbrio emocional do

jogador” (RODRIGUES, 1993, p. 25).

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O jogador brasileiro tem alma como qualquer ser humano, mas torcedores e

personagens da imprensa se esquecem desse detalhe ao focar apenas em acidentes de cunho

físico como uma distensão muscular ou coisa do gênero. Porém, diferente da atmosfera

pessimista, Nelson não deixava de valorizar a imaginada essência do futebol brasileiro;

apesar de detectar problemas emocionais entre os atletas. O diagnóstico do problema, não

afeta o brilho inato do futebol nacional. Nelson admite o sentimento que pairava na época,

de que os jogadores brasileiros eram instáveis. Ele não desconsiderava o que vinha sendo

construído sobre o futebol brasileiro desde a edição de 1938. Um exemplo disso é o seguinte

trecho:

Para nós, o futebol não se traduz em termos técnicos e táticos, maspuramente emocionais. Basta lembrar o que foi o jogo Brasil x Hungria,que perdemos no Mundial da Suíça. Eu disse “perdemos” e por quê? Pelasuperioridade técnica dos adversários? Absolutamente. Creio mesmo que,em técnica, brilho, agilidade mental, somos imbatíveis. Eis a verdade: -antes do jogo com os húngaros, estávamos derrotados emocionalmente.Repito: - fomos derrotados por uma dessas tremedeiras obtusas, irracionaise gratuitas (RODRIGUES, 199, p. 26).

Reparem que no trecho acima, Nelson não rebaixa o futebol brasileiro, pois esse

permanece brilhante e superior. A altivez do nosso futebol, ideia fundada a partir da Copa de

1938, permanece viva apesar da atmosfera pessimista e autodestrutiva. Não poderia ser

diferente, quando tratamos de um jornalista admirador da sociologia freyreana. Apesar de

crítico da Sociologia, possivelmente pela hegemonia marxista nas ciências sociais brasileiras

nas décadas de 1950 e 1960, o direitista Nelson Rodrigues nutria fortes simpatias por

Gilberto Freyre. Chegou a afirmar que se caso lhe perguntassem quais são os brasileiros

mais inteligentes, responderia: “Gilberto Freyre, Gilberto Freyre, Gilberto Freyre”

(RODRIGUES, 1997, p. 73).

Voltando à valorização da altivez do futebol brasileiro, Nelson não só a preserva

como assevera: só fomos derrotados pelos húngaros, confronto válido pelas quartas-de-finais

da Copa do Mundo de 1954, por conta de uma instabilidade emocional que transcende as

quatro linhas. Foi uma repetição do visto em 1950 frente aos uruguaios. A irracionalidade de

tal desestabilização faz o autor reportar para o inexplicável. É por isso que apenas um Freud

explicaria essas derrotas. Com isso, seu objetivo é buscar explicar o desânimo, mas sem

desconstruir as superstições alicerçadas. E surtiu efeito, pois, “Até hoje, as práticas

supersticiosas no futebol são frequentes e podem ser constatadas pela imprensa esportiva nas

manifestações das torcidas nos estádios e no comportamento de jogadores, técnicos e

dirigentes” (DAOLIO, 2005, p. 6-7).

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Essa atmosfera pessimista, iniciada em 1950 e reforçada em 1954, foi incentivada

pela imprensa nacional que Nelson critica na crônica Irresistível Flamengo, publicada em

janeiro de 1957. Ao descrever a vitória do Flamengo (que jogava com sua equipe aspirante,

repleta de jovens) por 6 a 4, frente o time húngaro Honved, o cronista pernambucano critica

a impossibilidade do brasileiro valorizar suas próprias conquistas. Apesar da expressiva

goleada flamenguista frente um time que vinha do país emblemático nos anos de 1950 por

seu futebol, a Hungria, muitos trataram de menosprezar a vitória do time brasileiro. Não

aceitavam que jovens desconhecidos, pudessem ter vencido “os Puskas”, adjetivo que

Nelson utiliza para tratar dos jogadores do Honved. Tudo isso por conta de uma versão, para

ele, desfigurada que a imprensa brasileira transmitiu sobre o fatídico jogo em 1954.

Supervalorizaram a vitória dos húngaros e se esqueceram de destacar que a derrota brasileira

não foi por sua inferioridade técnica ou tática, mas por sua instabilidade emocional. Sem

esse fator, o resultado da partida poderia ter sido outro. Percebendo essa capacidade que os

brasileiros vinham desenvolvendo, a de rejeitar os próprios feitos, Nelson utiliza o termo

“Narciso às avessas”, uma espécie de termo precursor do complexo de vira-latas:

O brasileiro gosta muito de ignorar as próprias virtudes e exaltar aspróprias deficiências, numa inversão do chamado ufanismo. Sim, amigos: -somos uns Narcisos às avessas, que cospem na própria imagem. Mas certasvitórias merecem um total respeito. Por exemplo: - a de sábado. A garotadarubro-negra deu-nos uma lição maravilhosa, que é a seguinte: - o futebolbrasileiro, jogando o que sabe, observando as suas verdadeirascaracterísticas, é o melhor do mundo (RODRIGUES, 1993, p. 30).

Um caso semelhante ao visto acima, repetiu-se em 1958, mas agora envolvendo a

Seleção Brasileira que se preparava para a Copa do Mundo da Suécia. Nos dias 04 e 07 de

maio, a canarinha enfrentou a Seleção Paraguaia; primeiro no Maracaña e depois no

Pacaembu. A estupenda vitória sobre os paraguaios por 5 a 1 no primeiro jogo, não foi

motivo de alegria. A euforia deu lugar ao menosprezo do adversário, visando diminuir o

triunfo brasileiro. Até se esqueceu que o time paraguaio, havia desclassificado o Uruguai nas

eliminatórias e vencido a Argentina em amistoso. De nada adiantou, a vitória canarinha foi

diminuída apesar do desempenho paraguaio, então classificados para o Mundial. Mas o

empate sem gols na segunda partida, realizada no Estádio do Pacaembu, foi o suficiente para

críticas surgirem.

Questiona Nelson na crônica chamada O Quadrúpede de 28 patas, publicada em

maio de 1958: “Que estímulo poderá ter um escrete que é negado mesmo na vitória? A

seleção não tem saída” (RODRIGUES, 1993, p. 50). As raízes do fracasso não estava apenas

na instabilidade emocional dos jogadores, mas também dos torcedores, pois “Há uma

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relação nítida e taxativa entre a torcida e a seleção. Um péssimo torcedor corresponde a um

péssimo jogador. De resto, convém notar o seguinte: - o escrete brasileiro implica todos nós

e cada um de nós” (RODRIGUES, 1993, p. 50). É diante dessa situação que o complexo de

vira-latas, ganha outro percursor: o quadrúpede de 28 patas, assim descrito por Nelson

Rodrigues:

A propósito, eu me lembro de um amigo que vivia, pelas esquinas e peloscafés, batendo no peito: - “Eu sou uma besta! Eu sou um cavalo”. Outrasvezes, ia mais longe na sua autoconsagração; e bramava: - “Eu sou umquadrúpede de 28 patas!”. Não lhe bastavam as quatro regulamentares;precisava acrescentar-lhe mais 24. Ora, o torcedor que nega o escrete está,como o meu amigo, xingando-se a si mesmo. E por isso, porque é umNarciso às avessas, que cospe na própria imagem, eu o promovo a meupersonagem da semana (RODRIGUES, 1993, p. 50).

E, por fim, chegamos a histórica crônica do dia 31 de maio de 1958; publicada oito

dias antes da estreia da Seleção Brasileira. Essa crônica analisa o ambiente que a Seleção

Brasileira precisava superar para chegar ao título. A tragédia em 1950, tratada como

humilhação nacional, paira sobre os jogadores brasileiros e faz a torcida desconfiar do

sucesso. O pessimismo era uma defesa contra possíveis e esperados fracassos. As inatas

qualidades do futebol brasileiro é reforçada nesta crônica, mas apenas uma coisa nos

atrapalha: o complexo de vira-latas. Mas o que seria complexo de vira-latas? Segundo

Nelson Rodrigues, “Por ‘complexo de vira-latas’ entendo eu a inferioridade em que o

brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e,

sobretudo, no futebol (RODRIGUES, 1993, p. 52). O complexo de vira-latas é o

desenvolvimento de uma ideia que visava expressar uma atmosfera de desânimo dos

brasileiros, após dois fracassos seguidos em Copas do Mundo, onde uma delas ocorreu no

Brasil e em um evento que deveria exportar uma visão positiva do país. Assim como o artigo

Football Mulato, publicado por Gilberto Freyre em 1938, a ideia de complexo de vira-latas

se utiliza de uma bacia semântica (DURAND, 1997) ao captar no imaginário social um

contexto de depreciação do brasileiro de sua própria imagem, sendo o futebol um

dramatizador desse problema macrossocial; que afetava outros âmbitos da vida social, como

a política.

Em suma, a Copa de 1938, funda uma imaginada forma diferenciada do brasileiro

jogar futebol. A base teórica dessa ideia é o artigo Football Mulato do sociólogo Gilberto

Freyre, publicado no jornal Diario de Pernambuco. Já a Copa de 1950, a primeira pós-

guerra, foi vista como uma oportunidade ímpar do Brasil se mostrar ao mundo como um país

desenvolvido. A vitória dentro do campo, seria essencial nessa demonstração de força. Foi

nessa edição que as primeiras músicas, relacionando Seleção Brasileira e povo brasileiro,

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foram compostas e cantadas. Porém, com a derrota frente aos uruguaios, todo esse otimismo

foi devastado. A opinião pública, passava a reforçar uma autodestruição do brasileiro, com o

futebol dramatizando esse problema mais geral. E é neste contexto que surge a ideia de

complexo de vira-latas, desenvolvida por Nelson Rodrigues. Entender o contexto e o

significado simbólico desse termo é tão importante, quanto o entendimento da noção de

Football Mulato, transformado posteriormente em futebol-arte. Pois, enquanto uma visa

construir uma identidade, com base numa brasilidade imaginada; a outra ideia objetiva

desconstruir, impulsinada por um trauma cultural que foi a tragédia do maracanazo. A partir

do título mundial em 1958, na Suécia, todo o imaginário, refletido na musicalidade a ser

analisada; dialoga com a tentativa de voltar às origens de 1938 e afastar-se da desconstrução

e do pessimismo visto entre 1950 e 1958. Vamos analisar no próximo capítulo como o Brasil

superou seu complexo de vira-latas, reforçando duas tradições imaginadas: o futebol-arte e a

pátria em chuteiras.

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CAPÍTULO 2 - BRASIL, UMA PÁTRIA EM CHUTEIRAS: NO ENCALÇO DOTRICAMPEONATO

Entre os anos de 1950 e 1958, ocorreram significativas mudanças no Brasil; dentro e

fora dos gramados. Fora dos gramados, o presidente Getúlio Vargas suicidou-se em agosto

de 1954 após uma crise política desencandeada pelo Atentado da Rua Toneleros. Nesse

atentado, membros da guarda pessoal de Vargas tentaram matar o jornalista (e principal

opositor do governo) Carlos Lacerda. Com o malogro da investida, Lacerda sofreu um

ferimento no pé e o major Rubens Florentino Vaz (que fazia a segurança do jornalista) foi

morto. Do suicídio de Vargas até a posse de Juscelino Kubitschek (JK), o país teve três

temporários presidentes. Foram eles: o potiguar Café Filho, do Partido Social Progressista

(PSP), durante 01 ano e 76 dias; o mineiro Carlos Luz, do PSD, durante 03 dias; e o

catarinense Nereu Ramos, também do PSD, durante 81 dias.

Juscelino venceu as eleições de 1955 por uma pequena margem – foram 35,68% dos

votos, contra 30,27% do udenista Juarez Távora. O vice-presidente (eleito em um pleito à

parte), o trabalhista e ex-Ministro do Trabalho João Goulart, também foi eleito por uma

estreita margem - foram 44,25% dos votos, contra 41,70% do udenista Milton Campos. Em

suma, venceu a aliança PSD-PTB, preservando o legado varguista. Em janeiro de 1956 o

mineiro JK assume à presidência e a palavra desenvolvimento encarna suas promessas de

campanha. Sendo assim,

Juscelino havia feito uma campanha baseada em promessasgrandiloquentes, que apontavam para a modernização do país, a partir dointerior. O mais vistoso item de sua plataforma foi justamente a construçãode uma nova capital do Brasil no Planalto Central, mas ele tambémapresentou um projeto desenvolvimentista de grande impacto, resumindono slogan “50 anos em 5” (GUTERMAN, 2014, p. 113).

Em setembro de 1956, meses após sua posse, o Congresso Nacional aprovava o

projeto do governo que visava a construção de Brasília; a nova capital do Brasil. A promessa

era inaugurar a nova cidade em menos de quatro anos, o que foi devidamente cumprido, pois

a inauguração de Brasília remete a abril de 1960. A construção da nova cidade em tempo

recorde, contribuiu para a recuperação da autoestima do brasileiro em um feito fora das

quatro linhas. O crescimento econômico visto no período, antes da escalada inflacionária

começar a ser sentida, também foi visto como ponto de estímulo para a elevação da

autoestima dos brasileiros. E,

Do ponto de vista econômico, JK manteve as linhas varguistas da presençado Estado na economia, mas procurou atrair capital estrangeiro para osinvestimentos – reforçava-se assim o chamado “nacional-

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desenvolvimentismo”, que marcaria a economia brasileira nas décadasseguintes. Houve um acentuado boom na atividade econômica em todos ossetores, e o PIB cresceu a taxas médias de 7% ao ano entre 1955 e 1961. Aárea mais vistosa dos investimentos foi a automobilística, concentrando-sesobretudo em São Paulo a partir da chegada das montadoras dos EUA e daEuropa – General Motors, Ford, Volks e Willys Overland, entre outras(GUTERMAN, 2014, p. 113).

Neste mesmo período, o futebol brasileiro tentava juntar os cacos do fracasso da

Copa de 1954. O país dava mostras de mudanças no âmbito político e econômico, mas o

fantasma dos fracassos de 1950 e 1954 ainda existiam e o complexo de vira-latas imperava

no meio jornalístico, razão das críticas de Nelson Rodrigues analisadas acima. Em entrevista

ao documentário 1958 – O ano em que o mundo descobriu o Brasil6, o jornalista João

Máximo, declarou:

Tava chegando aí a Bossa Nova, o cinema novo, o Brasil estavamelhorando pelo menos aos olhos da maioria, mas o futebol continuava amesma coisa, não tinha ganho Copa do Mundo, e pra nós a Copa doMundo foi sempre o grande termômetro, somos um grande país seganharmos uma Copa do Mundo, mas não somos tão grande país seperdermos a Copa. Essa identificação existia, equivocada que fosse, existia,futebol era o Brasil, ou o Brasil era o futebol.

Essa identificação tem data de início: 29 de junho de 1958, data em que a Seleção

Brasileira conquistou seu primeiro campeonato mundial. O Brasil se mostrava para o

mundo, sob a liderança de Pelé e Garrincha. A partir desta data, o futebol brasileiro daria

início aos seus anos dourados que seria coroado com o tricampeonato mundial em 1970. A

geração marcada por Pelé e Garrincha, mas que contou com outros grandes nomes como

Zagallo, Djalma Santos, Nilton Santos, Rivelino, Tostão etc., faria o Brasil tornar-se a pátria

em chuteiras e/ou o país do futebol. O futebol passava a ser a marca do país, sendo

exportado via Seleção Brasileira e clubes como o emblemático Santos dos anos de 1960. O

capítulo presente visa - tendo as edições de 1958, 1962 e 1970 como recorte - estabelecer

as relações entre música e Copas do Mundo. Os jingles analisados, representam o reforço

das ideias iniciadas por Gilberto Freyre em 1938 e continuada pelo trabalho jornalístico de

Nelson Rodrigues. O futebol-arte e a pátria em chuteiras se unificam nas canções analisadas,

tendo os bons resultados dentro de campo como verdadeiras inspirações para as produções

musicais.

6 1958 – O ano em que o mundo descobriu o Brasil. Direção: José Carlos Asbeg. Brasil, Pandora Filmes:2007. DVD (88 minutos) apud GIGLIO; SILVA, 2014, p. 52

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2.1 A TAÇA DO MUNDO É NOSSA E TAMBÉM O OTIMISMO

Para que o Brasil vencesse sua primeira Copa do Mundo, superando o complexo de

vira-latas, quatro nomes foram essenciais. Dois circunscritos dentro das quatro linhas e os

outros fora. Começando pelos dois nomes fora das quatro linhas, temos as figuras de João

Havelange e Paulo Machado de Carvalho, presidente e vice-presidente da CBD,

respectivamente. Havelange, carioca filho de pai suíço, assumiu à presidência da CBD em

1956 com a promessa de impor uma organização empresarial e técnica à Seleção Brasileira.

Para começar, Havelange organizou uma comissão técnica diferenciada para a disputa da

Copa de 1958. Além do habitual treinador, médico, massagista e roupeiro; ele inseriu dois

administradores, um dentista, um psicólogo e mais um massagista. A importância de um

psicólogo na comissão técnica, destacada por Nelson Rodrigues após a eliminação na Copa

de 1954, talvez mostre a influência que setores do jornalismo esportivo exerciam sobre a

administração da seleção. Mas além dessas mudanças, outras foram vistas:

Tudo isso era uma grande novidade, mas havia outras, dentro dodetalhadíssimo planejamento para a Copa. O médico Gosling foi até aSuécia para escolher as melhores acomodações para a equipe – até então,nas outras Copas, a seleção chegava ao local da disputa sem saber ondeficaria. Meses antes da disputa, até o cardápio dos jogadores estava pronto,incluindo a projeção de teor de gordura que seria consumida(GUTERMAN, 2014, p. 123).

Conhecido nacionalmente como marechal da vitória, o empresário Paulo Machado

de Carvalho (que hoje dá nome ao Estádio Pacaembu, em São Paulo) foi o grande

articulador dessas mudanças, muito graças ao cargo de Chefe da Delegação que cumpriu.

Dono e fundador da Rede Record de Televisão, a primeira emissora a transmitir um jogo de

futebol pela TV brasileira, Paulo tinha fortes ligações com o futebol; sendo dirigente do São

Paulo Futebol Clube. Além desses dois gestores que atuavam fora dos gramados, o Brasil

contaria com dois jogadores que marcaram uma geração vencedora: os avançados Pelé e

Garrincha.

Garrincha surgiu primeiro que Pelé e já estava na lista dos 40 convocados para a

Copa de 1954, porém, não foi relacionado na lista final que continha 22 atletas. Apenas no

ano seguinte que Garrincha teve sua primeira oportunidade no escrete brasileiro. Já Pelé

surgiu em 1956, mesmo ano em que Havelange assumiu à presidência da CBD, aos 15 anos

de idade. E aos 17 anos, em partida no Maracaña entre Santos 5 a 3 América, pelo Torneio

Rio-São Paulo, Pelé seria chamado de rei pela primeira vez por Nelson Rodrigues, que na

crônica A Realeza de Pelé, de 08 de março de 1958, assim descreveu o atleta:

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Pois bem: - verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo comuma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei seLear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peitoparecem pender mantos invisíveis. Em suma: - ponham-no em qualquerrancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor(RODRIGUES, 1993, p. 42).

Ainda sobre a estupenda exibição de Pelé, Nelson Rodrigues continua com seu estiloexagerado de escrever suas crônicas:

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. EPelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: - a de sesentir rei, de cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla umadversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro epiolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade quenão faz cerimônias (RODRIGUES, 1993, p. 42).

Em tom profético, Nelson encerra sua crônica com os seguintes dizeres: “Com Pelé

no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é

que tremerão diante de nós” (RODRIGUES, 1993, p. 44). Apesar disso, o clima hegemônico

não era de otimismo. Apesar dos bons jogadores que o Brasil obtinha, a moda era valorizar o

“futebol científico”, praticado pelos europeus. A atmosfera pré-Copa em 1958 foi de

reprodução do complexo de vira-latas. Foi neste contexto, como analisamos acima, que

surge o termo.

Apesar da menção de Nelson Rodrigues à raça do Pelé (visto como “Racialmente

perfeito”), a Seleção Brasileira estreou na Copa de 1958 com apenas um negro em campo; o

volante Didi. A dupla Pelé e Garrincha, ironicamente reprovados nos testes psicológicos, só

entrariam em campo juntos na terceira partida da primeira fase contra os soviéticos. Neste

jogo, o Brasil estava ameaçado de eliminação, após vencer os austríacos no primeiro jogo

(por 3 a 0) e empatar sem gols contra os ingleses. O ineditismo do futebol brasileiro, alegre e

que respeita a individualidade, foi visto na crônica de Nelson Rodrigues chamada

Descoberta de Garrincha e publicada em 21 de junho de 1958. Assim ele retratou a estreia

de Garrincha na Copa do Mundo, perante o científico futebol praticado pelos soviéticos:

Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeiravez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dosrussos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas asconcepções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalparo impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhavaGarrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: - “Isso não existe!”(RODRIGUES, 1993, p. 53).

Graças a realeza de Pelé e ao imarcável Garrincha, o Brasil sagrou-se campeão

mundial pela primeira vez em sua história no dia 29 de junho de 1958, sob uma imponente

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goleada de 5 a 2 frente a Suécia. O palco de tal histórico feito foi o Estádio Rasunda,

localizado na região metropolitana da gélida Estocolmo, capital sueca. O título representou

uma redenção nacional e a superação de um complexo de vira-latas que atormentava os

brasileiros no futebol, tendo implicações em outros âmbitos da vida social. Além da

superação desse complexo de inferioridade, nomeado de vira-lata, o Brasil golpeava o

racismo escancarado que associava a instabilidade emocional dos jogadores ao processo de

mestiçagem que buscava provar o subdesenvolvimento do povo brasileiro por meio do

futebol. Porém, “O mestiço Garrincha e o negro Pelé devolvem-nos o vigor de nossa raça.

Desde então, ser brasileiro é ser naturalmente bom de bola. Em nosso corpo está inscrito a

malemolência, a ginga e a sabedoria do futebol (BITENCOURT, 2009, p. 182 apud

GIGLIO; SILVA, 2014, p. 54).

Mas quais as vinculações entre o inédito título da Copa do Mundo de 1958 com a

música? A canção que marcou o Brasil em 1958 foi A Taça do Mundo é Nossa, composta por

Lauro Muller, Maugeri Sobrinho, Victor Dagô e Wagner Maugeri. Em 1958 ela foi

interpretada pela Orquestra e Coro RGE7, gravadora RGE, em disco que trazia no lado B a

“Marcha dos futebolistas” de Agib Franceschici (LUNA, 2011); mas também pelo grupo

Titulares do Ritmo8, gravadora Copacabana. A representatividade dessa canção é tamanha

que ela aparece em LP’s e CD’s dedicados a outras edições de Copa do Mundo como, por

exemplo, as edições de 1962, 1978, 1986 e 1994. Sobre essas edições, veremos seus detalhes

no decorrer do trabalho.

A Taça do Mundo é Nossa contém aspectos importantíssimos no que tange as

tradições inventadas, diferenciando-se da Copa de 1950 por fazer menções a um futebol-arte

tipicamente nacional. Como veremos, ela reúne as três categorias que tomamos como base

metodológica. Se o papel das tradições inventadas é “estruturar de maneira imutável e

invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p.

10), a canção em questão obtém êxito, pois as que surgem posteriormente seguirão suas

principais ideias. O aspecto mais importante a ser destacado da canção é a menção a

superioridade do brasileiro no que tange a prática futebolística, sendo a conquista da Copa

do Mundo uma prova sentenciada dessa altivez nacional. Encontramos o seguinte na

primeira estrofe: “A taça do mundo é nossa/ Com brasileiro/ Não há quem possa/ Êta

esquadrão de ouro/ É bom no samba/ É bom no couro” O pronome possessivo “nossa”, não

7 MULLER, Lauro; SOBRINHO, Maugeri; DAGÔ, Victor; MAUGERI, Wagner. “A Taça do Mundo éNossa.” Por: Orquestra e Coro RGE. RGE, 1958, LP. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tNsA1OA8AUk>, Acesso em: 20/12/19.

8 MULLER, Lauro; SOBRINHO, Maugeri; DAGÔ, Victor; MAUGERI, Wagner. “A Taça do Mundo éNossa.” Por: Titulares do Ritmo. Copacabana, 1958, LP. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=l6y4K3s6ASA>, Acesso em: 20/12/19.

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está na primeira pessoa do plural à toa. A taça do mundo, ou seja, o título de campeão

mundial no futebol, perpassa o indivíduo em sua singularidade. Ela é vendida como uma

conquista da nação brasileira, ou seja, dentro de uma categoria que chamamos por

“coletividade”.

Segundo Benedict Anderson (2008), a construção de uma nação depende da união de

três características: a) limitação, ou seja, faz-se necessário a existência de um território

circunscrito; b) soberania, ou seja, o direito da população residente responder pelo território

em que habita; c) comunidade imaginada, ou seja, a capacidade de estabelecer “a ideia de

um ‘nós’ coletivo, irmanando relações em tudo distintas” (ANDERSON, 2008, p. 12). A

presença do pronome “nossa”, indica uma conquista generalizada e que encarna a nação. E

ela só é “nossa”, pois torcemos juntos, ou seja, fomos uma pátria em chuteiras.

E se falamos em nação, falamos de invenção, pois a nacionalidade nasce imbricada

de uma variedade de tradições que resultam em uma comunidade imaginada. Logo,

Ela condensa-se numa alma nacional, que deve ser elaborada. Uma naçãodeve apresentar um conjunto de elementos simbólicos e materiais: umahistória, que estabelece uma continuidade com os ancestrais mais antigos;uma série de herois; modelos das virtudes nacionais; uma língua;monumentos culturais; um folclore; lugares importantes e uma paisagemtípica; representações oficiais; como hino, bandeira, escudo; identificaçõespitorescas, como costumes, especialidades culinárias, animais e árvores-símbolo (THIESSE, 1999, p. 14 apud FIORIN, 2009, p. 117).

Várias das características acima mencionadas, o Brasil já continha em 1958. Mas

faltava uma delas: modelos das virtudes nacionais. Naquela época, tínhamos hino nacional,

bandeira e escudos oficiais; sabíamos que entre a nossa descendência estava o cruzamento

de três culturas diferentes; a Língua Portuguesa já era oficial e utilizada organicamente entre

os cidadãos etc. Porém, faltava identificar quais as qualidades de um povo marcado pelo

processo de colonização e escravidão. E se, em 1938, Gilberto Freyre anunciava o futebol

como uma virtude nacional, sua teoria foi testada e comprovada com a atuação de gala da

Seleção Brasileira em solo sueco. Por isso que a conquista desse mundial foi creditada não

somente aos onze jogadores que estavam em campo, mas a toda nação, não deixando o título

da música analisada nos desmentir.

É por isso que além da taça do mundo ser nossa (pronome possessivo da primeira

pessoa do plural), “Com o brasileiro /Não há quem possa”, associando o título coletivo a

uma superioridade típica dos discursos nacionalistas. A categoria “nacionalidade”, está aqui

presente, pois o brasileiro se posiciona positivamente com base na prática do futebol. Com o

Brasil, não há quem possa. Mas não se trata de debater assuntos políticos, sociais ou

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econômicos. Tendo em vista as limitações do país nesses aspectos, o brasileiro se reafirma

pelo futebol, tendo o título mundial inédito como base naquela conjuntura.

Em seguida, a canção recorre a comparação do samba9 com o couro (alusão a bola),

interligando diferentes elementos simbólicos, no caso, a música e o futebol. Ambos os

elementos são vistos no senso comum como marcas da imaginada identidade nacional

brasileira. O samba, por exemplo, é marca do carnaval brasileiro que é outro traço

característico de nossa sociedade. E tanto o samba como o futebol representam o mundo

como teatro e prazer onde todos se harmonizam, tendo como produto construções de festas,

como o carnaval e a Copa do Mundo. Sobre a comparação entre carnaval e Copa do Mundo,

ambas são festas bastante caras para a sociedade brasileira, pois carregam cargas simbólicas

geradoras de fantasias que, por sua vez:

A fantasia liberta, desconstrói, abre caminho e promove a passagem paraoutros lugares e espaços sociais. Ela permite e ajuda o livre trânsito daspessoas por dentro de um espaço social que o mundo cotidiano tornaproibitivo com as repressões da hierarquia e dos preconceitosestabelecidos. É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém(DAMATTA, 1986, p. 75).

Na segunda estrofe, contém o seguinte: “O brasileiro lá no estrangeiro/ Mostrou o

futebol como é que é/ Ganhou a taça do mundo/ Sambando com a bola no pé/ Goool!”. A

diferenciação entre brasileiro e estrangeiro, principalmente o europeu, já foi debatida neste

trabalho sob a ótica freyreana e se encaixa na categoria “diferenciação”. O que vemos na

letra é apenas o reforço e a repetição (característica central das tradições inventadas) de uma

ideia já existente no país e por um intelectual com forte influência na opinião pública.

Aprofundando esse debate, podemos afirmar que “Dois grandes princípios regem as

culturas: o da exclusão e o da participação” (FIORIN, 2009, p. 115). Para que o discurso

nacionalista obtenha êxito, ele necessita inserir os indivíduos considerados aqui como

nativos ou compatriotas, mas apontando diferenças desse determinado povo e/ou nação com

relação a outros. As culturas são movidas pelas misturas, mas também por uma forte triagem

do que “nós somos” e do que “eles são”. Temos, então, uma categoria não vista nas músicas

relativas a Copa de 1950: a categoria da diferenciação, onde encontramos as tradições

inventadas e a ideia de futebol-arte como sua expressão narrativa.

Discernido o brasileiro do estrangeiro, fomos nós, brasileiros, que mostramos como

se joga o verdadeiro futebol. O samba com a bola nos pés, reforça a visão dionisíaca que

Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues imaginavam do futebol brasileiro. A menção ao

9 Sobre a construção do samba como parte da identidade nacional brasileira, ver Lira Neto (2017).

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“sambando com a bola no pé”, certamente retrata a oposição do formalismo apolíneo com o

ânimo dionisíaco que é marcado pela ginga. Para DaMatta, o uso do pé foi uma das razões

para a popularidade do futebol no Brasil. A centralidade dos pés no futebol acaba unindo

indivíduos de diferentes biótipos, bem diferente dos excludentes voleibol e basquetebol,

atividades esportivas que requerem alta estatura. Pés, pernas e quadris, partes inferiores da

anatomia humana, no caso brasileiro, ganham grande valor pois “são centrais para as danças

nacionais como o samba e alvo de um elevado simbolismo” (DAMATTA, 2006, p. 156).

Outrossim, o paralelo entre dança e futebol já é retratado por Freyre no célebre artigo

Football Mulato, na seguinte passagem:

No foot-ball, como na política, o mulatismo brasileiro se faz marcar por umgosto de flexão, de surpresa, de floreio que lembra passos de dança e decapoeiragem. Mas sobretudo de dança. Dança dionisíaca. Dança quepermita o improviso, a diversidade, a espontaneidade individual. Dançalírica (FREYRE, 1934, p.4).

A canção funda uma tradição quadrienal que visa reforçar, por intermédio da música,

as qualidades nacionais no futebol a cada edição de Copa do Mundo. Sua grande diferença

para as músicas existentes na Copa de 1950, e que analisamos no capítulo anterior, é que seu

foco passa a ser não no evento em si (e em 1950 a valorização do evento era justificável,

pois o Brasil era o país-sede); mas a pátria em chuteiras, acumulada a tradição do futebol-

arte. A Taça do Mundo é Nossa, inicia uma caracterização musicalizada de um ethos

futebolístico, reunindo as três categorias que esse trabalho se baseia: a diferenciação, vista

na descrição do futebol jogado tipicamente nacional, jogado como dança e mostrado no

exterior; a coletividade, vista no pronome “nossa” ao retratar a extensão do título mundial

conquistado; e a nacionalidade, quando o brasileiro se coloca como referência na prática do

futebol e que nesse aspecto não há quem possa com ele. Em suma,

Com uma melodia simples e contagiante estruturada em apenas duasestrofes, a canção fora publicada depois da Copa e chamava a atenção paraa superioridade brasileira (“Com brasileiro não há quem possa) e para oethos futebolístico da malemolência e da habilidade tupiniquins ilustradosnos versos “O brasileiro lá no estrangeiro/ Mostrou o futebol como é queé”, tudo isso por meio da dança e do ritmo: “Sambando com a bola no pé”(HELAL; CABO, 2014, p. 96).

Como veremos adiante, a defesa desse ethos (fundado teoricamente em 1938 e

musicalmente em 1958) perpassará todas as edições seguintes. O que existe nas músicas de

cada edição é uma menção a esse ethos, esperando que a Seleção Brasileira reproduza uma

tradição já alicerçada culturalmente. Quando esse futebol-arte, praticado como uma dança

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dionisíaca, não é devidamente mostrado na prática; vários se levantam contra tal postura

herege. Mas ainda sobre o significado simbólico da canção em questão, podemos afirmar:

Primeiramente, ela retoma abordagens colocadas no início do século XXsobre a grandeza brasileira que precisava ser comprovada e, quando ofosse, ninguém duvidaria. O futebol, nesse caso, cumpria o destino previstoda grandeza da raça brasileira, que ganhara a taça do mundo, objeto decobiça e desejo de todas as nações (LUNA, 2011, p. 241).

A Taça do Mundo é Nossa, reafirma as ligações entre música popular e futebol, já

vista desde a produção de Pixinguinha nos anos de 1920; mas com importantes acréscimos

simbólicos graças ao título mundial finalmente conquistado. O espírito de euforia no futebol,

finalmente se aliava com a presenciada no âmbito político e econômico, esse graças às ações

do governo Juscelino Kubitschek. O país mergulhava em um otimismo nunca visto antes em

sua história, fazendo Nelson Rodrigues rasgar elogios a Juscelino Kubitschek, em crônica

publicada em fevereiro 1961; então visto pelo cronista como o presidente ideal para a

formação do novo Brasil que emergia. Segundo Nelson, exagerado como de costume, JK era

um “cafajeste dionisíaco e genial” que soube elevar o país sem a rigidez e o formalismo dos

antigos chefes de Estado. O otimismo e a euforia que os anos do governo JK

proporcionaram ao país, foi assim resumido por Nelson Rodrigues:

Eu poderia falar em Furnas, Três Marias, estradas, Brasília, indústriaautomobilística, mas não é isso o que importa. Amigos, o que importa é oque Juscelino fez do homem brasileiro. Deu-lhe uma nova e violentadimensão interior. Sacudiu, dentro de nós, insuspeitadas potencialidades. Apartir de Juscelino, surge um novo brasileiro. Aí é que está o importante, omonumental, o eterno na obra do ex-presidente. Ele potencializou ohomem do Brasil (Brasil em Marcha, 10.2.1961 apud ANTUNES, 2004, p.228).

Esse novo brasileiro que emerge durante os anos de JK na presidência, é aquele que

abandona o complexo de vira-latas, vendo as potencialidades do país dentro e fora dos

gramados. Na crônica seguinte ao título mundial, Nelson Rodrigues já mostrava a existência

desse novo brasileiro. Faltava apenas a superação de inferioridade no futebol e ele veio,

então “O povo já não se julga mais um vira-lata. Sim, amigos: - o brasileiro tem de si mesmo

uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e

humanas” (RODRIGUES, 1993, p. 60-61).

Por fim, encerrando a discussão, Juscelino Kubitschek soube se utilizar muito bem

dos feitos que a Copa de 1958 proporcionaram. Primeiro fez questão de convidar, durante a

competição, familiares dos atletas para ouvir os jogos da Seleção Brasileira no Palácio do

Catete. Cortejou o pai de Garrincha, Amaro, na partida entre Brasil x País de Gales; a noiva

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de Vavá, Miriam, e a esposa de Didi, Guiomar, foram convidadas para a partida final contra

os suecos. Além disso, após o título, Juscelino bebeu champanhe na taça Jules Rimet

(GUTERMAN, 2014). O Presidente Bossa Nova, também foi do futebol.

E é por essas vinculações entre a Seleção Brasileira e a esfera política, vista antes de

Juscelino Kubitschek, que acreditamos que A Taça do Mundo é Nossa e as canções

seguintes; representam, na verdade, jingles que “podem ser conceituados como anúncios

publicitários ou propagandísticos musicados”, pois “Eles operam por caminhos, sutis ou

explícitos, de sedução, no sentido de estimular no público desejos ou comportamentos

(PANKE, 2015, p. 83). Conforme Sant’anna (2002), “vemos, pois, que a palavra publicidade

significa, genericamente, divulgar, tornar público, e propaganda compreende a ideia de

implantar, de incluir uma ideia, uma crença na mente alheia (SANT’ANNA, 2002, p. 75

apud PANKE, 2015, p. 84). As ideias implantadas na canção de 1958 (assim como das

seguintes), terão uma importância política considerável, pois se utiliza do esporte mais

consumido pela população para formar uma consciência nacional que sirva de auxílio na

edificação do Brasil enquanto nação.

Dito isso, as tradições inventadas em torno da Seleção Brasileira, visando a formação

ideológica e simbólica de uma comunidade imaginada, não foram criadas oficialmente pelo

Estado mas foram utilizadas por essa instituição. O Estado brasileiro, independente de

governo, utilizou a seleção como um importante unificador e homogeneizador social. Como

diria DaMatta, “a construção de uma identidade social, então, como a construção de uma

sociedade, é feita de afirmativas e de negativas diante de certas questões” (DAMATTA,

1986, p. 17). E qual as afirmações e as negações engendradas pela Copa do Mundo de 1958?

Ela negava a inferioridade brasileira em comparação aos europeus, pois fomos campeões do

mundo jogando o melhor futebol; e ao mesmo tempo, afirmava o Brasil enquanto uma nação

com enormes potencialidades. O Brasil se vinculava à noção de vitória, ginga,

espontaneidade e alegria. Ser campeão mundial no futebol, representava ser bom em algo. E

“Dominar a geopolítica no futebol significa que o brasileiro foi capaz de dominar algo em

âmbito mundial, o que se assemelha à conquista de um território importante, o qual agrega

poder e riqueza” (GIGLIO; SILVA, 2014, p. 54). Em suma, podemos assim resumir a

representatividade do ano de 1958 para os brasileiros e as brasileiras:

Notemos, portanto, que o ano de 1958, a par do triunfo da seleçãobrasileira na Copa, serviu para fundar uma identidade brasileira muitoassociada à noção de vitória e supremacia na vida e no futebol,incorporando-se nesses valores associados à ginga, à habilidade e à técnicado jogador brasileiro (não nos esqueçamos dos versos da já citada cançãodo título de 1958: “A Taça do Mundo é nossa/ Com brasileiro não há quempossa”). Nesse processo de invenção das tradições, várias narrativas

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ajudaram a compor esse amálgama que, nos anos 1950, potencializa nossoimaginário futebolístico (HELAL; CABO, 2014, p. 103).

Diante de tais questões, podemos concluir que a taça do mundo é nossa e o otimismo

também. A euforia que marcava o país antes da tragédia do maracanazo, retornava e com

representações simbólicas mais consolidadas. Os anos de 1950 e 1954 haviam sido

finalmente superados pelos brasileiros que agora começavam a se imaginar enquanto uma

nova nação. A nação da Bossa Nova, com o cantor João Gilberto lançando o álbum Chega

de Saudades em 1959; do Cinema Novo, que tem a formação da sua primeira geração a

partir de 1960. E, principalmente, a nação do futebol, personificada nos malabarismos feitos

por Pelé e Garrincha dentro dos gramados. A taça Jules Rimet de 1958, levantada pelo

zagueiro Bellini em um gesto até então ímpar, proporcionou ao brasileiro a esperança no

triunfo. O humilde cabisbaixo tornava-se um dionisíaco vencedor.

2.2 1962: O FREVO DO BI E A CONSOLIDAÇÃO DA PÁTRIA EMCHUTEIRAS

O mandato de Juscelino Kubitschek durou de 31 de janeiro de 1956 a 31 de janeiro

de 1961. Como vimos, foi durante o seu governo que os brasileiros começaram a superar o

complexo de vira-latas, segundo a máxima de Nelson Rodrigues, tendo a conquista da Copa

do Mundo de 1958 um importante papel nessa sobrepujança. Antes de encerrar o seu

mandato, JK inaugurou em abril de 1960 a cidade de Brasília, então a mais nova capital do

país. Localizada no Centro-Oeste brasileiro, a cidade representava o auge do

desenvolvimento nacional, pois foi a primeira do país totalmente planejada. As ruas de

Brasília obedeciam ao plano piloto implantado pela Companhia Urbanizadora da Nova

Capital (Novacap), empresa estatal criada em setembro de 1956 com o objetivo de construir

a nova capital do Brasil, a partir de um anteprojeto do arquiteto Lúcio Costa; escolhido

através de um concurso público nacional. O engenheiro Joaquim Cardozo e o arquiteto

Oscar Niemeyer projetaram os principais prédios públicos da cidade. Como havia

prometido, JK entregou a mais nova cidade dentro do prazo estipulado, contribuindo para a

confiança do povo brasileiro que via perante seus olhos o país levantar uma capital projetada

em menos de quatro anos, sendo o ápice do lema “Cinquenta anos em cinco”.

Nas eleições de outubro de 1960, Jânio Quadros do Partido Trabalhista Nacional

(PTN) foi eleito Presidente da República com 48,26% dos votos válidos; contra 32,94% dos

votos para o marechal Henrique Teixeira Lott do PSD. Para Vice-Presidente, João Goulart

do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) venceu novamente por uma pequena margem. O

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trabalhista ficou com 36,1% dos votos válidos, contra 33,7% do udenista Milton Campos. A

dupla “Jan-Jan”, foi motivada por dois jingles que marcaram os pleitos eleitorais no país.

Jânio Quadros, baseado em um discurso moralista, foi embalado pelo jingle Varre, Varre,

Vassourinha composto por Fernando Azevedo de Almeida e Maugeri Neto (um dos

compositores do jingle A Taça do Mundo é Nossa).

A música, de estrofe única, dizia: “Varre, varre, vassourinha!/ Varre, varre a

bandalheira!/ Que o povo já tá cansado/ De sofrer dessa maneira/ Jânio Quadros é a

esperança desse povo abandonado!/ Jânio Quadros é a certeza de um Brasil, moralizado!/

Alerta, meu irmão!/ Vassoura, conterrâneo!/ Vamos vencer com Jânio!”. João Goulart, ou

simplesmente Jango, teve o jingle Vamos Jangar como principal marca no pleito de 1960. A

curta música, também de estrofe única, dizia: “Na hora de votar/ O meu Rio Grande vai

jangar/ É Jango, é Jango, é o João Goulart/ Pra vice-presidente/ Nossa gente vai jangar/ É

Jango, é Jango, é o João Goulart”. Contra à corrupção e “acima dos partidos”, Jânio Quadros

assumiu o poder em meio à alta do custo de vida e à crise gerada pelos partidos

conservadores. Venceu criticando JK (a quem chamava de “presidente voador”), a

construção de Brasília (acusando de “obra faraônica”) e também a inflação que assolava o

país. Enfim,

Quando Jânio subiu a rampa para tomar posse, em 31 de janeiro de 1961,ele levava consigo um inconciliável conflito de classes e interesses, que seupopulismo de baixa extração não teria condições de controlar. O presidenteoptou pelo apoio dos militares e dos governadores, deixando de fora umCongresso dominado pela oposição e chamado por ele de “clube deociosos”. Seu estilo de governo era autoritário e provinciano(GUTERMAN, 2014, p. 133).

Na economia, Jânio Quadros aproximou o Brasil do Fundo Monetário Internacional

(FMI), recebendo numerosos empréstimos em troca da adoção de uma política econômica

liberal. O governo Jânio Quadros pôs em prática todo o receituário do liberalismo com o

incentivo à livre iniciativa, abertura ao capital internacional e redução de gastos públicos. E

“Funcionou: o FMI acreditou no perfil ortodoxo das medidas e soltou dinheiro”

(GUTERMAN, 2014, p. 134). Essas medidas liberais ortodoxas fariam os movimentos

sociais e partidos políticos à esquerda tornarem-se oposição ao governo.

Por outro lado, Jânio Quadros também recebeu oposição da direita por, em meio aos

conflitos da Guerra Fria, aproximar diplomaticamente o Brasil da União Soviética. Seguindo

a posição de não alinhamento de Afonso Arinos, então Ministro das Relações Exteriores, o

governo Jânio Quadros ainda foi responsável pela condenação do governo John Kennedy

após a invasão a Baía dos Porcos e por abrir embaixadas em vários países africanos, recém

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independentes. Mas o caso mais emblemático, provocando grande histeria entre os setores

políticos mais conservadores, como a UDN, foi a condecoração ao revolucionário comunista

Ernesto ‘Che’ Guevara, com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul10.

Em meio a essa dupla oposição e cinco dias após condecorar Ernesto Guevara, Jânio

Quadros renunciou ao cargo após pouco menos de sete meses de mandato. Apesar da

resistência de setores golpistas das Forças Armadas, o que gerou movimentos sociais como a

Campanha da Legalidade11 no Rio Grande do Sul, João Goulart foi empossado no dia 08 de

setembro de 1961. A classe dominante e seus representantes no espectro político,

pressionada, permitiu a posse de João Goulart, mas limitou seus poderes, impondo no dia 02

de setembro de 1961 um sistema parlamentarista aprovado pelo Congresso Nacional. Jango,

ex-ministro de Getúlio Vargas, assumia a Presidência ao lado do novo Primeiro-Ministro: o

também ex-ministro Tancredo Neves, do PSD. O Brasil só voltaria a ser presidencialista

após um referendo, datado de janeiro de 1963.

O ano de 1962 inspirava duas esperanças entre os brasileiros: primeiro, esperavam

que o Plano Trienal, elaborado pelo economista Celso Furtado, surtisse efeitos positivos para

a economia do país; segundo, torciam esperançosos pelo bicampeonato mundial da Seleção

Brasileira que estava automaticamente classificada para a Copa do Mundo, a ser realizada no

Chile. Se a primeira esperança não foi realizada, graças a uma ferrenha oposição ao Plano

Trienal, a segunda foi possível e reafirmou a hegemonia brasileira no futebol. E, se a

situação política e econômica do país era instável, o futebol brasileiro vivia dias de glória.

Entre o título mundial de 1958 e o início da Copa de 1962, o futebol brasileiro passou por

mudanças internas e também passou por uma considerável projeção externa.

A primeira grande mudança entre 1958 e 1962 foi a criação do primeiro campeonato

nacional entre clubes, a Taça Brasil. O maior torneio entre clubes da época era o Torneio

Rio-São Paulo, reunindo clubes das duas maiores cidades do país. Porém, a necessidade

imposta pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) do Brasil indicar um

representante para a disputa da recém-criada Copa Libertadores da América, fez a CBD criar

um torneio a nível nacional. Entre as dificuldades para criar tal competição estavam: as

dimensões continentais do país; a falta de espaço no calendário dos clubes, por conta dos

campeonatos estaduais e das constantes (e rentosas) excursões para o exterior; e as

limitações financeiras da própria CBD. Foi,

10 Folha de S. Paulo, 20 de agosto de 1961.

11 A Campanha da Legalidade foi uma mobilização militar e civil que, durante 14 dias, defendeu o direitoconstitucional do Vice-Presidente da República assumir à Presidência do país, após a renúncia de JânioQuadros. O Vice-Presidente de então era João Goulart que estava em viagem oficial na China de Mao Tsé-tung.

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Diante de tal quadro, a criação da Taça Brasil, que reuniria todos oscampeões estaduais (e alguns vices), foi a solução encontrada pela CBD.Como base, utilizou-se a organização dos tempos do CampeonatoBrasileiro de Seleções ou seja, dividiu-se o país em duas grandes chaves(Norte/Nordeste e Centro/Sul) e, após os jogos eliminatórios de ida e volta,os times paulistas e cariocas entrariam, já na fase de semifinais. Dessamaneira, os custos seriam diminuídos e, teoricamente, a qualidade dosconfrontos seria maior, vislumbrando-se um torneio democrático, uma vezque abria a possibilidade do campeão do Amazonas representar o Brasil naLibertadores (SANTOS, 2012, p. 35).

Além da criação da Taça Brasil, o país tinha o mérito de ter o melhor time do mundo:

o Santos de Pelé, Pepe, Coutinho e cia. Em 1959, primeira edição da Taça Brasil, o campeão

foi o Esporte Clube Bahia, justamente em cima do Santos. Mesmo com o vice-campeonato,

a equipe santista ainda era considerada pela imprensa esportiva como o melhor time do

mundo. Segundo matéria do jornal O Globo, retratando o título do time baiano:

(…) primeiro campeão brasileiro de todos os tempos (…) um título inéditode uma importância sem igual. Uma odisséia fantástica do Esporte ClubeBahia, quase desacreditado depois da derrota em Salvador, vitorioso einconstante no Rio de Janeiro, no templo do futebol, o Maracaña, contra omaior time do mundo12.

Em 1960, segunda edição do torneio, o campeão foi outro grande time da época: o

Palmeiras, chamado de “Academia do Futebol” por conta do seu refinado jogo. O Santos só

viria conquistar a Taça Brasil em 1961, mas logo emendou com um impressionante

pentacampeonato nacional (1961-1965). Mas, além do Santos de Pelé e da “Academia de

Futebol do Palmeiras”, o Brasil entre os anos de 1958 e 1962 também foi testemunha ocular

de outro grande esquadrão: o Botafogo de Garrincha, Zagallo e Nilton Santos. O encanto do

alvinegro carioca, antecede a Copa de 1958, iniciando seu apogeu em 1957. De 1957 a 1962,

ano em que estamos, o Botafogo de Garrincha já havia conquistado três Campeonatos

Cariocas e um Torneio Rio-São Paulo.

Pelé, principal jogador na conquista em 1958, passou a ser incorporado como

símbolo da nação. Em 1960, foi convidado para ser garoto-propaganda do Instituto

Brasileiro de Café e “Pelos serviços, receberia 50 mil cruzeiros, quantia considerada

‘simbólica’ pelo jogador, que disse ter assinado o contrato ‘pelo espírito de patriotismo’”

(GUTERMAN, 2014, p. 138). Em suma, o futebol nacional vivia seus anos de glória que se

esperava manter com o bicampeonato mundial.

A Copa do Mundo de 1962, realizada na América do Sul após duas edições no

continente europeu, foi disputada de 30 de maio a 17 de junho. No Grupo 03 da competição,

12 Jornal O Globo, dia 30 de março de 196o. Texto de Ricardo Serran apud SILVA, 2012, p. 36.

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a Seleção Brasileira passou pela primeira fase após duas vitórias (contra México e Espanha)

e um empate (contra a extinta Tchecoslováquia). Ingleses e chilenos, foram eliminados pelo

Brasil nas quartas-de-finais e semifinais, respectivamente. Disputando sua segunda final

consecutiva, no dia 17 de junho em Santiago, o escrete canarinho conquistou o

bicampeonato mundial após vencer a Tchecoslováquia pelo placar de 3 a 1. Com Pelé

machucado na segunda partida, a principal estrela desta Copa do Mundo foi Garrincha.

E foi em torno de Manuel Francisco dos Santos, ou simplesmente Mané Garrincha,

que as construções simbólicas do ethos futebolístico foram centralizadas. Sua genialidade

preservou as tradições do futebol-arte, transformando o Brasil, agora bicampeão mundial,

em uma verdadeira pátria em chuteiras. Sobre a liderança técnica de Garrincha em 1962,

“Sua imagem é a do atleta que não valoriza esquemas táticos ou treinamentos físicos, Seu

sucesso dentro dos campos de futebol é narrado como expressão de um dom ante as

adversidades enfrentadas” (HELAL; LOVISOLO; SOARES, 2011, p. 55).

Com relação a música, a Copa de 1962, foi a primeira a ter um hino oficial do

evento. Foi a canção El Rock del Mundial13, composta por Jorge Rojas Astorga e interpretada

pelos Los Ramblers. No Brasil várias canções embalaram o bicampeonato mundial. A

principal foi a Frevo do bi14, composta por Braz Marques e Diógenes Bezerra, gravado pela

Philips por Jackson do Pandeiro. Em termos de projeção, Frevo do bi ganhou mais

popularidade que as canções que veremos adiante por conta do seu intérprete, Jackson do

Pandeiro, conhecido como o “Rei do Ritmo”. Lançada no começo da competição, “Essa

composição alusiva ao campeonato apontava para aquilo que se poderia esperar do

selecionado brasileiro em gramados chilenos. Era esperado um autêntico baile brasileiro

com gols de Pelé” (LUNA, 2011, p. 243).

Com apenas duas estrofes, a primeira diz o seguinte: “Vocês vão ver como é/ Didi,

Garrincha e Pelé/ Dando seu baile de bola/ Quando eles pegam no couro/ O nosso escrete de

ouro/ Mostra o que é nossa escola”. A música inicia com um pronome pessoal e de

tratamento, “vocês”, utilizado na Língua Portuguesa quando se dirige a outrem. Logo,

pressupõe que a letra está sendo voltada para os adversários, prometendo a esses um

verdadeiro “baile de bola” sob liderança das três principais estrelas do escrete brasileiro no

momento: o meia Didi; o ponta-direita Garrincha; e o atacante Pelé. Todos, por curiosidade,

não brancos. O uso do pronome pessoal “vocês”, tanto diferencia o brasileiro do estrangeiro

13 ASTORGA, Jorge Rojas. “El Rock del Mundial”. Por: Los Ramblers, CRC, 1962. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=zPFMeswtVa8>. Acesso em: 23/12/2019.

14 MARQUES, Braz; BEZERRA, Diógenes. Por: Jackson do Pandeiro, Philips, 1962. Disponível em:<https://www.youtube.com/watch?v=ijtomkfn7CQ>. Acesso em 23/12/2019.

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(a quem a música parece ser direcionada), como cria uma ideia de que existe uma

coletividade que podemos chamar de Brasil, então detentora de uma escola no futebol.

Temos, portanto, alusão a categoria “diferenciação” (o que seria essa escola senão o futebol-

arte brasileiro?) e também a “coletividade” (a música parece ser direcionada para não

brasileiros, dando a entender que o grupo brasileiro existe, emitindo tal mensagem).

A referência ao baile, retorna ao debatido anteriormente sobre a importância da

vinculação entre dança e futebol, valorizando as partes inferiores da anatomia humana

(DAMATTA, 2006). Assim como retorna a importância das festas para a sociedade

brasileira, basta perceber que existe “baile de bola” assim como temos “baile de carnaval”.

E é em contato com o “couro”, referência a bola também vista em 1958, que os brasileiros

“Mostra o que é a nossa escola”. O pronome possessivo “nossa”, se refere ao ethos

futebolístico que se transformou em uma “escola”. Além do habitual significado da palavra

“escola”, visto como um estabelecimento público ou privado destinado ao ensino coletivo,

existem outros como: conjunto de conhecimentos e saberes; e o conjunto de pessoas que

seguem um sistema de pensamento, uma doutrina, uma estética etc. Já que tomamos a Copa

do Mundo como um evento de fundamento simbólico, reificando as nações através de suas

seleções nacionais (GASTALDO; GUEDES, 2006), entendemos que durante esse evento foi

comum a criação de “escolas futebolísticas”, assim como existem “escolas filosóficas”. O

uso da palavra escola fora do seu significado habitual, normalmente vinculado a esfera

educacional, faz a letra conter a categoria “nacionalidade”. A escola que se tem orgulho não

é a formal, aquela estrutura física em que se pratica o ensino coletivo; mas sim uma “escola

futebolística”.

Esse caso não está limitado no Brasil, pois se fomos observar a América do Sul,

encontraremos a mesma tentativa de criar “escolas futebolísticas”. Na Argentina esse

processo teve início nos anos de 1920, tendo como propulsora a imprensa esportiva local,

principalmente, a revista El Gráfico. Os argentinos buscaram se diferenciar do futebol

europeu, criando a ideia de futebol criollo, visto como técnico e individual. Os vizinhos

uruguaios também passaram pelo mesmo processo, acrescentando a garra charrua que se

cria a partir das conquistas da equipe celeste entre as décadas de 1920 e 1930. Assim como o

Brasil, os uruguaios criaram suas tradições futebolísticas em meio aos anos de glória do país

no esporte. A equipe celeste conquistou duas medalhas de ouro olímpico no futebol (1924 e

1928) e a Copa do Mundo de 1930. Essa garra charrúa voltaria com força depois da vitória

uruguaia na Copa de 1950, quando venceu o Brasil em pleno Maracaña. O enaltecimento da

raça uruguaia é assim visto após esse feito:

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Tenemos que convencernos que existe algo adentro del jugador celeste quelos impele al triunfo en los instantes de las grandes definiciones, algo muygrande que nada tiene y a lo que llamamos corazón, clase, coraje, pero queno es sino la combinación de todas esas virtudes fundamentales, que bienpudiéramos compendiar diciendo que es la sangre charrúa, esa sangre quenos diferencia, para enaltecernos, de todos los demás deportistas del orbe(El País, 17 jul. 1950, p. 18 apud HELAL; CABO, 2014, p. 76).

Assim como os vizinhos uruguaios e argentinos, estávamos criando nossas tradições

em meio ao sucesso do selecionado nacional dentro de campo. Se a “escola futebolística”

dos uruguaios era marcada pelo sangue charrúa, a nossa tinha outros elementos como: a

ginga, o improviso, a molecagem, a esperteza etc. Eis a nossa “escola”, mencionada na letra.

Na segunda e última estrofe, temos: “Quando a partida esquentar/ E Vavá de calcanhar/

Entregar a pelota a Mané/ E Mané Garrincha a Didi/ Didi diz que: é por aqui/ Aí vem gol de

Pelé”. Reparem que o gol, o momento máximo do futebol, foi dado a Pelé; a principal

estrela do Brasil. O coletivo é subordinado a ação última do ídolo, daquele responsável pelo

êxtase. Não é para menos: Pelé havia sido o artilheiro do Brasil na Copa de 1958 com 06

gols marcados.

Porém, como aponta a letra, o grupo que trabalha em prol do grande craque também

contém suas proezas. Seja Vavá com o toque de calcanhar ou Didi, o príncipe etíope para

Nelson Rodrigues, que mostra o caminho do gol ao acionar Pelé. O rodízio dos nomes, cada

um exercendo sua função até o momento ápice do gol, demonstra uma característica do

futebol-arte. Pois,

Uma das características que o futebol-arte apresenta é o fato de o jogo serencarado como espetáculo. A estrutura da partida está centrada naplasticidade das jogadas encenadas pelos artistas da bola em um gramado,ou melhor, em um teatro de arena (DAOLIO, 2005, p. 56).

Além de Frevo do bi, outras canções surgiram depois do título consumado. Como

aponta Paulo Luna (2011), nove músicas foram gravadas com alusão à conquista do

bicampeonato. Vamos enumerá-las e, em seguida, mencionar algumas letras que acreditamos

pertinentes ao debate. As sete primeiras canções foram:

“Bailarinos do gramado”, samba de Lourival Ramos, Moreira da Silva eRibeiro Cunha, foi lançado por Moreira da Silva pela Odeon; a marcha“Brasil bi-campeão”, de Umberto Silva e Lewis Jr., foi gravada pelo corodo Clube do Guri pela Continental, em junho de 1962; Altamiro Carrilho,sua bandinha e coro lançaram pela Copacabana a marcha “Brasilcampeão”, de Philip Egner e Vicente Leporace. Por sua vez, Alfredo Borbae Edson Borges fizeram a marcha “Brasil sensacional”, lançada peloiniciante Jair Rodrigues pela Philips; Mário Albanese compôs a marcha“Brasil, tradição esportiva”, gravada por Osvaldo Rodrigues, no mesmodisco em que gravou a marcha “Parabéns bi campeões”, de sua autoria e de

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Arquimedes Messina, em disco pela Copacabana. Houve ainda uma cançãointitulada “Brasil bi campeão”, de autoria do Padre Ralfy Mendes, gravadapelo grupo coral Os Pequenos Cantores da Guanabara, em disco pelaPhilips (LUNA, 2011, p. 244).

As outras duas canções alusivas ao bicampeonato de 1962, têm origem na música

sertaneja. Conhecido como “música caipira”, o sertanejo surge com força no Centro-Oeste e

em partes do Sudeste (interior de São Paulo e sul de Minas Gerais), Norte (Rondônia e

Tocantins). Hoje, na sua Quarta Era, chamada de Sertanejo Universitário, tem popularidade

em todo o Brasil. Sobre as duas músicas sertanejas em alusão ao futebol:

“A embolada do bi”, de Silveira, registrada pela dupla Silveira e Barrinha,pela RCA, e a moda de viola “Bi campeão mundial”, de Teddy Vieira e ZéCarreiro, gravado pela dupla Tião Carreiro e Pardinho no LP Pagodes –volume 2, lançado pela Chantecler (LUNA, 2011, p. 244).

Vamos começar pela Bicampeão Mundial da dupla Tião Carreiro e Pardinho. A

primeira estrofe da música retorna as ideias de Gilberto Freyre, diferenciando o futebol

brasileiro do estrangeiro, da seguinte forma: “A seleção canarinho brilhou lá no estrangeiro/

Mostrou a classe e o valor do futebol brasileiro/ Conquistou o bicampeão, nem um tento eles

perderam/ Trouxeram a taça de volta pra terra que eles nasceram”. O brilho e a classe são

características do futebol-arte, detendo um valor para a sociedade brasileira. Esse valor dado

ao futebol brasileiro, essencialmente diferente do estrangeiro, incentiva uma apreço a

nacionalidade; gerando uma “redefinição dos modos de perceber as possibilidades e as

capacidades do Brasil” (DAMATTA, 2006, p. 144).

Em seguida, outro ponto interessante: através do futebol, os brasileiros passavam a

tratar antigas referências, como os ingleses, de forma jocosa. A tradicional “resenha

futebolística”, marcada pelo bom humor, quebra uma antiga subjugação nacional a tudo que

vem da Europa. Gilberto Freyre (2006) fez várias menções em tom crítico dessa submissão

nacional, relatando o enriquecimento súbito de negociantes europeus no século XIX, que

vendiam no país produtos de qualidade duvidosa por um preço alto. A justificativa para o

preço era a origem dos produtos, normalmente ligado a qualquer grande cidade europeia

como Londres ou Paris.

Diz a estrofe: “Brasil jogou com a Inglaterra que o futebol inventaram/ A taça

campeã mundial os ingleses nunca levaram”. Ainda sobre essa busca de diferenciar o

brasileiro do europeu, segue a descrição do que foi a final: “Brasil e Tchecoslováquia para a

disputa final/ Contavam que eles venciam a seleção nacional/ Aplicaram o tal ferrolho e

saíram muito mal/ Brasil conquistou invicto o bicampeão mundial”. O “ferrolho” na

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linguagem do futebol, seria uma postura de jogo centrada na busca de evitar o gol do

adversário. Abre-se mão de atacar para evitar o gol do outro time, demonstrando uma

inferioridade técnica. O ferrolho só teria êxito sob um jogo centrado no coletivo, onde todos

trabalham para evitar os ataques do oponente. Essa forma de jogar futebol é totalmente

contrária a brasileira, como afirma Gilberto Freyre:

Enquanto o foot-ball europeu é uma expressão apolínea – no sentidospengleriano – de método científico e de esporte socialista em que a pessoahumana resulta mecanizada e subordinada ao todo – o brasileiro é umaforma de dança, em que a pessoa humana se destaca e brilha (FREYRE,1934, p. 4).

Em Brasil bi campeão, cantada pelo coro Os Pequenos Cantores da Guanabara, a

primeira estrofe sustenta uma superstição que vinha sendo formada: só o Brasil produz

craques diferenciados, pois é a potência máxima desse esporte. Diz a estrofe: “A vitória lá no

Chile vai ser nossa/ Pois, na bola, craque mesmo que é brasileiro”. Além do pronome

possessivo “nossa”, remetendo a categoria “coletividade”; o craque ser apenas o brasileiro

vai repercutir na sociedade brasileira da seguinte forma:

Para o senso comum, essa habilidade é inata, ou seja, o brasileiro já nascesabendo jogar futebol, possui um dom, como expressão de sua natureza. Aoprofessor de futebol restaria a incumbência apenas de dar algumas dicas emostrar quais gestos são corretos (DAOLIO, 2005, p. 57).

A crença na existência de um dom, normalmente vinculado ao divino, também

repercute na própria cabeça dos jogadores. Pelé, se referindo a uma conversa que teve com

Neymar, alertou para o jovem jogador que Deus tinha dado um dom para ele, fazendo

necessário um bom uso15. Prosseguindo: “E a turma do café tem nova bossa/ Pra mostrar o

que é Brasil ao mundo inteiro”. Assim como na referência ao samba em 1958, a canção visa

ligar futebol com outros importantes símbolos do país como o café (produto exportador de

grande valia para a economia brasileira) e a Bossa Nova (gênero musical que se expandia na

época, levando para o exterior a música brasileira). O objetivo é mostrar o futebol como um

produto de exportação que personifica o país e sua gente no exterior (“Pra mostrar o que é

Brasil ao mundo inteiro”). Como veremos, o Brasil a ser mostrado é aquele que pratica o

futebol-arte, marcado por uma prática comparável a uma dança.

Segue a música: “No comando de Feola, para dominar a bola/ Vai Pelé dançar o

samba e o Garrincha o chá, chá, chá/ Nesse show sensacional, a torcida vai vibrar/ E alegre

15 Pelé reprova atitude de Neymar: “Ficou difícil defender o Neymar”. Rede Gazeta, 05 de fev, 2018.Disponível em: <https://www.agazeta.com.br/esportes/futebol/pele-reprova-atitude-de-neymar —ficou-dificil-defender-o-neymar-1218>. Acesso em: 24/12/19.

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gritará: gol/ Venceu o Brasil!”. O futebol dionisíaco é visto em um Pelé que dança samba,

gênero musical que volta a aparecer atrelado ao futebol. Garrincha, outro representante do

futebol-arte, também aparece como um jogador-dançarino. Ademais, vale ressaltar o papel

da torcida no final da música, aquela que vibra junto com a seleção e que se encontra alegre

pelo desempenho dos craques. A categoria “diferenciação”, presente através dos jogadores-

dançarinos (“Vai Pelé dançar o samba e o Garrincha o chá, chá, chá), é acrescentada pela

presença da categoria “coletividade” (“Nesse show sensacional, a torcida vai vibrar”); e por

último a “nacionalidade” com a alegria da vitória da própria nação (“E alegre gritará: gol/

Venceu o Brasil!”). Na última estrofe, temos: “Hip, hip hurra!/ Auriverde esquadrão, manda

a bola para frente/ Para ser bicampeão”.

Por fim, a canção Brasil Sensacional também traz apontamentos que reforçam a

linha de argumentação. Diz a primeira estrofe: “Nossa terra, nossa terra tem beleza/ Tem

cachaça, tem mulata e carnaval/ Tem também, tem também os canarinhos/ Pra mostrar que o

Brasil é mesmo o tal”. Sobre a junção do futebol com a cachaça, mulata e carnaval podemos

inferir a seguinte interpretação:

Essa relação entre povo e futebol tem sido tão profunda e produtiva, quemuitos brasileiros se esquecem de que ele foi inventado na Inglaterra epensam que ele é, como a mulata, o samba, a feijoada, o jogo do bicho, ocafuné, a sacanagem e a saudade, um produto brasileiro (DAMATTA,2006, p. 143).

Segue a canção: “Nossa terra, nossa terra tem café/ Tem um rei, tem um rei que é

Pelé/ Lindas praias namorando o velho sol/ Tem também campeões no futebol/ Brasil,

Brasil, Brasil sensacional/ Bicampeão mundial”. A terra de onde se origina o café é a mesma

do rei do futebol, o Pelé. As riquezas naturais do país (como as praias) e nossa capacidade

agroexportadora (como as referências ao café), são vinculadas ao esporte mais popular do

país. Por isso a categoria “nacionalidade” se faz presente na letra em trechos como “Tem

também, tem também os canarinhos/ Pra mostrar que o Brasil é mesmo o tal” e “Tem

também os campeões no futebol/ Brasil, Brasil, Brasil sensacional”, estando o futebol entre

os vários orgulhos de ser brasileiro. E se outrora fomos a nação do complexo de vira-latas,

agora acreditamos em um Brasil sensacional, por conta do bicampeonato mundial. Os

triunfos dentro das quatro linhas formava um novo brasileiro, crente de suas potencialidades.

Em crônica publicada no dia 18 de junho de 1962, um dia após o bicampeonato, afirmou o

eufórico Nelson Rodrigues:

Amigos, depois da vitória não me falem na Rússia, não me falem nosEstados Unidos. Eis a verdade: - a Rússia e os Estados Unidos começarama ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais: - foi a vitória do homembrasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil tem a

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potencialidade criadora de uma nação de napoleões (RODRIGUES, 1993,p. 94).

Os feitos da Seleção Brasileira no Chile, assim como as canções aqui analisadas,

teriam um forte aliado que estava presente na casa da maioria dos brasileiros: o rádio. Foi

através das transmissões radiofônicas, despertando a sensorialidade dos ouvintes-torcedores,

que foi possível desenhar os triunfos nacionais (FILHO; SILVA, 2012). Mas foi a última

edição em que o rádio mostrou sua força mobilizadora, sendo engolido pela força da

televisão a partir da Copa de 1966 a nível internacional e da Copa de 1970 a nível nacional.

Em suma, o bicampeonato no Chile serviu como reforço para o ascendente futebol

brasileiro. O complexo de vira-latas, abalado em 1958, era agora completamente destruído e

esquecido entre a imprensa e as massas. E “Com uma identidade definida e reconhecida, o

país teria conquistado uma espécie de cidadania internacional. Naquele momento, via a

concretização do projeto que idealizara para a nação” (ANTUNES, 2004, p. 232). O samba

com a bola no pé iniciou a projeção do futebol-arte e da pátria em chuteiras; enquanto o

bicampeonato, embalado com frevo, alicerçou as duas ideias.

2.3 1970: PRA FRENTE, BRASIL! FUTEBOL-ARTE E UFANISMO

Após o bicampeonato mundial em 1962, o Brasil passou por uma aguda instabilidade

política e econômica. A situação gerou o golpe de Estado em 1964, formando uma Ditadura

Militar que perdurou no país por longos vinte e um anos. O alvo do golpe, o governo João

Goulart, não conseguiu conter a reação dos setores políticos de direita contra suas

anunciadas Reformas de Base (reforma agrária, educacional, fiscal, urbana e bancária).

Segundo o historiador Marcos Napolitano (1998), em meio a crise socioeconômica, João

Goulart foi derrotado pela convergência de três grupos básicos que arquitetaram a ofensiva

golpista. Foram eles: a) Grupos políticos civis ligados à UDN e a demais setores

antivarguistas, entre esses grupos algumas lideranças se destacaram como Carlos Lacerda,

Ademar de Barros, Juscelino Kubitschek e Magalhães Pinto; b) Oposição militar,

organizados contra o varguismo desde a década de 1950, sendo responsáveis diretos pela

instabilidade política que gerou o suicídio de Getúlio Vargas; c) Oposição do Instituto de

Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), criado pelo general Golbery do Couto e Silva em 1962,

esse instituto foi capaz de articular a conspiração unindo setores militares e empresariais.

Com isso,

Uma combinação explosiva de crise econômica (o país não crescia desde1960, e a inflação chegava a 100% ao ano), crise política (o governo perdiaparte de seus aliados no Congresso Nacional), crise social (os trabalhadores

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urbanos e rurais cada vez mais se faziam presentes no cenário político) ecrise militar (a tropa de subalternos exigia maior participação política)criou o clima para o golpe (NAPOLITANO, 1998, p. 9-10).

Além de todos esses fatores internos, o contexto turbulento e bipolar da Guerra Fria,

ajudaram externamente para o agravamento das tensões. As Reformas de Base, defendidas

por Jango, visavam um desenvolvimento capitalista autônomo para o país; contrariando os

interesses norte-americanos. O sempre acionado fantasma comunista, personificado na época

pela ilha de Cuba, foi bastante utilizado pelos setores anticomunistas que enxergavam no

governo João Goulart uma “ameaça vermelha” ao país. O golpe de Estado foi posto em

prática entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964 da seguinte forma:

Naquela noite de 1 de abril, Darcy Ribeiro enviou ofício ao CongressoNacional, comunicando que Goulart viajara para Porto Alegre. Nãoobstante, sabendo que ele se encontrava em território nacional e nãorenunciara, o Senador Auro Moura Andrade, Presidente do Congresso,convocou uma sessão extraordinária e, ao abri-la, declarou em brevesminutos, violentando as normas constitucionais e o próprio RegimentoInterno da Casa, a vacância do cargo. Consumou-se, assim, o golpe deEstado. Ranieri Mazzili, Presidente da Câmara dos Deputados, chegoudessa maneira ao Palácio do Planalto. Não se observou qualquerformalidade legal, como, por exemplo, a votação do impeachment(BANDEIRA, 1983, p. 183).

A articulação golpista foi rápida e no dia 11 de abril de 1964 o marechal Castelo

Branco foi eleito indiretamente Presidente da República, tomando posse oficial no dia 15 de

abril do mesmo ano. Inicialmente, Castelo Branco foi eleito para terminar o mandato

iniciado por Jânio Quadros em 1961, devendo então deixar o cargo em 1966. Porém, seu

mandato foi estendido até 1967 e as eleições presidenciais, marcadas para outubro de 1965,

foram canceladas. O governo Castelo Branco foi responsável pelos Atos Institucionais

número 01, 02, 03 e 04 (AI-1, AI-2, AI-3 e AI-4), oferecendo as bases para a instauração da

Ditadura Militar.

No AI-1, ficou estabelecido “o poder de cassar os direitos políticos dos cidadãos,

decretar estado de sítio (suspensão dos direitos individuais e concessão de plenos poderes às

forças de repressão policial), controlar o Congresso Nacional” (NAPOLITANO, 1998, p.

16). O AI-2 impunha ao país um bipartidarismo que jogou todos os partidos políticos

existentes na clandestinidade, formando apenas duas legendas: o Movimento Democrático

Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (ARENA). Se a ARENA era o partido

oficial da Ditadura Militar, o MDB “supostamente congregando a oposição, mas limitado em

sua organização e no campo das manifestações públicas” (NAPOLITANO, 1998, p. 20).

Além disso, impôs eleições indiretas para Presidente e Vice-Presidente da República. O AI-3

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estendeu as eleições indiretas para os níveis estaduais e municipais; já o AI-4 convocou o

Congresso Nacional a fim de promulgar uma nova constituição, revogando a promulgada de

1946.

E foi em meio ao governo Castelo Branco que ocorreu a Copa do Mundo de 1966,

sediada na Inglaterra. Realizada entre os dias 11 e 30 de julho, a Copa de 1966 tinha o Brasil

como franco favorito. Atual bicampeão mundial, os brasileiros chegaram na Inglaterra para

defenderem uma hegemonia consolidada. Da expressiva campanha de 1962, restavam oito

remanescentes: desses, pilares como Gylmar, Djalma Santos e Bellini que passavam dos 35

anos; Orlando, Garrincha e Zito tinham 31, 33 e 34 anos, respectivamente; e mais novos,

Altair e Pelé completavam a lista. O clima eufórico e a desorganização da CBD, atrapalhou

o desempenho do time em campo, começando pela preparação da equipe. Vicente Feola,

campeão do mundo em 1958, retornara a seleção e a pedido da CBD:

Convocou inacreditáveis 44 jogadores, para dentre esses escolher 22 – e adecisão só foi tomada duas semanas antes do início da competição, criandoum clima terrível entre os jogadores. Mesmo depois da confirmação doelenco que disputaria a Copa, a indefinição sobre qual o time principal foicrucial para comprometer o desempenho da equipe (GUTERMAN, 2014,p. 154).

Em crônica publicada no dia 02 de junho de 1966 pelo jornal O Globo, Nelson

Rodrigues (que após o fim da Manchete Esportiva em 1959, só voltaria a fazer crônicas de

futebol em 1962, pelo jornal O Globo e na coluna À Sombra das Chuteiras Imortais)

demonstrava a angústia da torcida brasileira com relação a indefinição do time principal para

a disputa da Copa na Inglaterra da seguinte forma: “Que nós não o conhecêsse-mos, vá lá.

Afinal, somos pobres e ignaros mortais. Mas a própria Comissão Técnica participa da nossa

ignorância e da nossa perplexidade” (RODRIGUES, 1993, p. 123). O atraso para a definição

dos 22 atletas e do consequente time titular, tinha razões externas, pois a Comissão Técnica

(subordinada a CBD) decidiu separar os 44 convocados iniciais em três grupos de

treinamento. Esses grupos fizeram vários excursões pelo país, atendendo a apelos de

personalidades políticas locais que desejam usufruir do prestígio da Seleção Brasileiro frente

a população16. A falta de consolidação de um grupo fechado mais o excesso de jogos

desnecessários, foram cruciais para o pífio desempenho canarinho em gramados ingleses.

Diante disso, o resultado em campo foi desastroso. A Seleção Brasileira foi eliminada

ainda na primeira fase após três jogos, uma vitória e duas derrotas. Outro ponto a ser

16 LOPES, Lucas Salgado. A militarização do futebol brasileiro: como a Seleção foi afetada na Copa de 1970.Ludopédio, São Paulo, 16 de maio de 2018. Disponível em<https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/militarizacao-do-futebol-brasileiro-como-selecao-foi-afetada-na-copa-de-1970/>. Acesso em: 29 de dezembro de 2019.

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mencionado foram as interferências externas na Seleção Brasileira, durante a competição. O

relato seguinte foi dado pelo então zagueiro Bellini:

Ele contou que, contra Portugal, Feola lhe disse que foi obrigado a tirá-lodo time. “Querem trocar nove jogadores. Sou voto vencido”, disse otécnico ao zagueiro, segundo o relato do jogador, mostrando que Feolaatribuiu a terceiros a decisão de alterar a escalação do time. “Ele (Feola)deixou claro que achava uma temeridade mudar tanto” (“Bellini”, emTodas as Copas, edição especial do jornal Lance!, p. 80 apudGUTERMAN, 2014, p. 155).

Já a relação entre música e futebol durante a Copa de 1966 foi pequena e, tirando

duas canções compostas por Ari Lobo e Luís Boquinha (Quem é o campeão? e Recordando

a Copa de 58), não tivemos nenhum grande sucesso. Isso ocorria porque não só a política

brasileira passava por transformações, como também a música popular. Como afirma Paulo

Luna (2011):

Por outro lado, a música popular brasileira passava por momentos deprofundas reformulações, num amplo processo de modernização quealinhava, por um lado, a uma corrente ligada à bossa nova e, por outrolado, a turma da jovem guarda, e a tentativa de implantação do rock noBrasil. Tanto a bossa nova quanto a jovem guarda, que ditavam o sucessona época, estavam um pouco distanciadas do futebol. Finalmente, aditadura militar, implantada dois anos antes do mundial da Inglaterra, fezcom que as posições políticas e ideológicas ficassem acirradas e, assim,muitas pessoas que combatiam a ditadura achavam o futebol puraalienação. Pelo sim, pelo não, a Copa de 1966 passou praticamente embranco na música popular brasileira da época (LUNA, 2011, p. 246).

O fracasso das seleções da América do Sul, fizeram renascer teorias que colocavam o

futebol europeu como superior. Das quatro seleções do continente classificadas, duas foram

eliminadas ainda na primeira (casos do Brasil e do Chile) e as outras nas quartas-de-finais.

Os chilenos foram lanterna do seu grupo e saiu da competição sem nenhuma vitória; os

uruguaios foram goleados por 4 a 0 pelos alemães ocidentais nas quartas-de-finais e apenas

os argentinos caíram de pé, eliminados pelos ingleses por 1 a 0. As quatro primeiras seleções

da Copa de 1966 advinham da Europa: Inglaterra, Alemanha Ocidental, Portugal e União

Soviética, respectivamente. O “futebol científico”, marcado pela coletividade e pela força

física, triunfou sobre a espontaneidade e ginga da América do Sul.

No Brasil, o complexo de vira-latas retornava ao apontar o sucesso europeu na

competição. Tomando a ideia de pátria em chuteiras, aquela que vibra ou se abala frente aos

resultados em campo da Seleção Brasileira, Nelson Rodrigues acreditou em “80 milhões de

brasileiros numa humilhação feroz”. Sobre as provas dessa sentença? “Olhem para as nossas

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esquinas e os nossos botecos. Por toda parte uma sensação de orfandade. Dir-se-ia que

Suécia e Chile são duas glórias fenecidas” (RODRIGUES, 1993, p. 129).

Passada a Copa de 1966 e entendida as mudanças por qual passava o futebol, agora

mais atencioso com a parte física dos atletas, a CBD se aliava aos militares em busca de uma

melhor estrutura. João Havelange e Paulo Machado de Carvalho, desejavam uma ajuda

financeira dos militares como bem registrou o jornal Folha de S. Paulo:

Os dois dirigentes irão solicitar apoio e recursos do governo federal para oselecionado brasileiro que ano que vem disputará as eliminatórias para oCampeonato Mundial de 1970. A Confederação Brasileira de Desportos e aCosena [Comissão Selecionadora Nacional] farão esta solicitação partindodo princípio de que o sucesso da seleção brasileira nas eliminatórias eprincipalmente no Mundial constituirá fator de importância não apenasesportiva, mas também política, tendo em vista as eleições presidenciais de1970 (Folha de S. Paulo, 03/12/1968. Primeiro Caderno, p. 18. Grifonosso).

Como podemos ver, o Brasil já estava em 1968 sob o governo Costa e Silva. As

forças golpistas passaram por uma luta intestina entre os militares mais moderados e

influenciados pela Escola Superior de Guerra (ESG) versus os militares chamados de “linha

dura”, aglutinados em torno da Escola de Guerra de Fort Leavenworth. Nesta disputa

interna, a “linha dura” venceu e o marechal Artur da Costa e Silva assumiu à Presidência da

República em março de 1967. Ele venceu em eleições indiretas, realizadas em outubro de

1966, com 100% dos votos válidos. Isso porque o MDB se absteve de votar, enquanto os

294 deputados da ARENA votaram a favor de Costa e Silva. Foi em seu governo que a

economia brasileira passou para as mãos do economista Delfim Netto, direcionando o país

para o desenvolvimento econômico e abandonando a política de contenção dos gastos

públicos, realizada pelo governo de Castelo Branco. “Assim, o Brasil entrava na era do

‘milagre econômico’, cuja fórmula era: expansão do crédito para o consumo, facilitado pelos

juros baixos no mercado financeiro internacional, e controle dos preços básicos e, sobretudo,

dos salários” (NAPOLITANO, 1998, p. 27).

Mas voltando ao futebol e com base na busca de recursos pela CBD, Costa e Silva

acenou positivamente para a proposta e expressou:

Eu acho, realmente, que o Brasil não pode perder este campeonato [a Copade 1970]. Temos que dar um jeito, de qualquer forma [...]17. “Em 1970 oBrasil estará disputando a taça do mundo. Como presidente, gostaria que opovo brasileiro, ainda na minha gestão, festejasse a conquista.18”“Precisamos combinar bem tudo isso, pois afinal de contas em 1970 eu

17A Gazeta Esportiva, 04/12/1968, p. 7. Fala de Costa e Silva publicada no jornal apud CHAIM, 2014, p. 52.

18 A Gazeta Esportiva, 05/12/1968, p. 8. Outro trecho da fala de Costa e Silva apud CHAIM, 2014, p. 53.

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ainda estarei no governo e não vou gostar nada de ter perdido essecampeonato.19”

Foi no contexto desta conversa que se criou no país a Loteria Esportiva, chamada

popularmente de “Loteca”. Costa e Silva permitiu a Havelange que projetasse suas ideias em

torno de tal projeto, entregando-as posteriormente ao ministro-chefe do seu gabinete, o

mineiro Rondon Pacheco. O entusiasmo do Presidente com a ideia foi assim registrada pelos

jornais:

Quero as coisas da maneira mais simples possível. Após darem umaredação parlamentar, encaminhá-lo-ei ao Congresso.20 […] Com a LoteriaEsportiva os senhores terão tanto dinheiro que é bem capaz que o governoFederal venha a solicitar-lhes algum empréstimo.21

No início do ano seguinte, fevereiro de 1969, a CBD anunciou o nome do técnico

que seria responsável pela reestruturação da Seleção Brasileira: o jornalista João Saldanha,

ironicamente filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), que, como treinador, fora

campeão pelo Botafogo e, na época, era uma unanimidade como comentarista esportivo

entre os pares e os torcedores. Diferentemente do que ocorrera em 1966, Saldanha, já em sua

apresentação, anunciou os 22 jogadores convocados e o time que seria inicialmente titular.

Esses foram logo chamados pela imprensa de “as feras do João”, o que procurava responder

ao espírito que se pretendia imprimir na época.

Saldanha herdou a comissão técnica de 1968, já com a presença de militares como

Admildo Chirol e Lídio Toledo. Durante as eliminatórias de 1969, outros militares foram

inseridos na comissão como o capitão Bonetti da Escola de Educação Física do Exército

(EsEFEx). Outros nomes se juntariam aos citados como Carlos Alberto Parreira, Cláudio

Coutinho, Kleber Camerino e Raul Carlesso. Não entraremos em detalhes sobre os conflitos

que existiram entre Saldanha e a comissão técnica militarizada. Dentre esses problemas,

apenas citaremos o envolvendo o recém-contratado treinador e o médico, Lídio Toledo.

Saldanha, “denuncia que o médico usava drogas e analgésicos pesados para que o jogador

entrasse em campo, independentemente dos problemas colaterais que a medicação pudesse

provocar (HELAL; CABO, 2014, p. 151).

Esta denuncia revela a natureza que o futebol passava a desenvolver na época,

eliminando o antigo romantismo e substituindo-o por métodos técnicos e/ou científicos que

19 Folha de S. Paulo, 04/12/1968. Primeiro Caderno, p. 15. Fala de Costa e Silva a João Havelange e outrosrepresentantes do esporte brasileiro apud CHAIM, 2014, p. 53.

20 A Gazeta Esportiva, 05/12/1968, p. 8. Outro trecho da fala de Costa e Silva apud CHAIM, 2014, p. 53.

21 Folha de S. Paulo, 04/12/1968. Primeiro Caderno, p. 15 apud CHAIM, 2014, p. 53.

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visavam uma otimização do rendimento físico do atleta. Desse modo, jogadores como

Garrincha (aposentado da seleção após a Copa de 1966) não mais se enquadrariam. Era

necessário, pois, aliar condicionamento físico com qualidade técnica. Temos as origens do

que chamaríamos no futuro de “futebol moderno”, restando pouco ou quase nenhum espaço

para a individualidade e indisciplina. O destaque para essa mudança estrutural do futebol,

visto a nível mundial, será importantíssimo para o entendimento do papel das tradições

inventadas. Sobre a preparação para essa Copa do Mundo, a ser realizada no México:

Ao consultarmos as narrativas jornalísticas de 1970, poderemos observarque a Seleção de 70 significa uma ruptura em termos de planejamento,organização e método de treinamento esportivo em relação às Copasanteriores. A Comissão Técnica daquela seleção teve à sua disposição asteorias mais avançadas sobre treinamento físico e sobre adaptação emaltitude na época. O método de adaptação à altitude e os estudos sobre ainfluência da temperatura nas atividades físicas foram fundamentais nacompetição. Os conhecimentos científicos e as tecnologias do treinamentoforam fortes aliadas da competência técnica dos jogadores (GASTALDO;GUEDES, 2006, p. 105-106).

Mesmo diante de tal preparação, utilizando de modernas práticas e estudos, o

imaginário social reproduzido nas letras das canções, esquecem desse detalhe e permanecem

incutindo a ideia de que o êxito da Seleção Brasileira naquela edição se deve ao brilho

técnico dos jogadores. Essa contradição, pode ser explicada dentro do conceito de

enquadramento da memória, desenvolvido por Michael Pollack (1989) que diz respeito a

construção da memória e a manutenção de identidades. Segundo ele, “No ‘jogo’ das

representações identitárias, o fio condutor acaba sendo pautado pelas necessidades de uma

memória coletiva que reproduza os valores necessários ao fenômeno de identificação

comum” (HELAL; CABO, 2014, p. 18). E mais: romper com a ideia de futebol-arte

moleque e dionisíaco, mesmo diante de tais inovações científicas, seria ir de encontro a um

imaginário social construído a cada quatro anos desde 1938. Isso porque o imaginário social

conteriam, as imagens formuladas ao longo do tempo sobre uma nação, por exemplo, que

ajudam a forjar determinadas narrativas” (HELAL; MOSTARO, 2018, p. 19).

Dito isso e antes de entrar nas ponderações sobre a música, vamos expor rapidamente

a trajetória canarinha até o tricampeonato mundial. As eliminatórias para a Copa do Mundo

de 197, iniciaram para o Brasil em agosto de 1969. Saldanha, técnico desde abril do mesmo

ano, classificou tranquilamente o selecionado nacional após uma impecável campanha de 06

jogos e 06 vitórias. A Seleção Brasileira fez 23 gols, levando apenas 02 gols, sendo líder

isolada do Grupo B (Paraguai, Colômbia e Venezuela). O artilheiro e maior destaque dessas

eliminatórias foi o atacante Tostão, do Cruzeiro, anotando incríveis 10 gols. Tostão esteve

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presente na Copa de 1966, fazendo gol na única partida em que jogou: a derrota brasileira

frente os húngaros por 3 a 1.

Saldanha foi demitido em março de 1970, apesar de obter um aproveitamento de

90,9% (11 jogos, 10 vitórias e 01 derrota). Mário Jorge Lobo Zagallo, bicampeão mundial

como jogador, assumiu o cargo e foi o responsável por dirigir a Seleção Brasileira durante a

Copa. A primeira da história a ser transmitida pela televisão ao vivo no Brasil, a Copa de

1970 foi realizada de 31 de maio a 21 de junho. O Brasil já vivia sob os horrores do AI-5

(decretado em dezembro de 1968) e o presidente era o gaúcho Emílio Médici que assumiu à

Presidência da República em outubro de 1969, devido a um acidente vascular cerebral que

afastou Costa e Silva do cargo. O governo Médici foi marcado pela expansão do “Milagre

Brasileiro” e forte repressão política, sendo o período mais duro do regime. A Seleção

Brasileira conquista o tricampeonato mundial no dia 21 de junho, após vencer os italianos

por 4 a 1. Foram 06 jogos e 06 vitórias, uma campanha memorável.

O time de 1970 é, até os dias atuais, considerado por muitos o melhor da história da

Seleção Brasileira; quiçá das Copas do Mundo. E foi assim escalado por Zagallo: Félix,

Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza e Everaldo. Clodoaldo, Gérson, Rivelino e Jairzinho.

Tostão e Pelé. O tricampeonato inédito marcou todos esses jogadores, principalmente, Pelé

que também participou das trajetórias vitoriosas em 1958 e 1962. Em crônica publicada no

dia 22 de junho, disse Nelson Rodrigues sobre tal conquista: “Amigos, glória eterna aos

tricampeões mundiais. Graças a esse escrete, o brasileiro não tem mais vergonha de ser

patriota. Somos 90 milhões de brasileiros, de esporas e penacho, como os Dragões de Pedro

Américo” (RODRIGUES, 1993, p. 193).

Ademais, quais as relações entre a Copa de 70 e a música brasileira? É o que

veremos agora. Diferente da edição de 1966, a Copa de 70 foi bastante rica no quesito

música popular. A principal canção foi, obviamente, a Pra Frente Brasil; composta por

Miguel Gustavo, famoso compositor de jingles, marchas e sambas no período. Composto

inicialmente para uma cervejaria que patrocinava as transmissões televisivas, Pra Frente

Brasil acabou virando um verdadeiro hino do tricampeonato mundial, sendo bastante útil

para a propaganda ufanista da Ditadura Militar. Sobre a importância dessa canção:

Essa música se tornou realmente um caso especial, pois, composta comojingle de cerveja, virou hino da seleção e, ao mesmo tempo, acabouservindo aos propósitos propagandísticos do regime, pois falava em uniãonacional, como em “todos juntos vamos”, “tudo é um só coração”, “pareceque todo o Brasil deu a mão”, que era tudo o que o regime militar pregavaem sua busca forçada de uma impossível união nacional (LUNA, 2011, p.247).

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Os anos de Ditadura Militar e ufanismo parecem ter influenciado diretamente a

produção da letra que, diferente das anteriores, não faz qualquer menção a categoria

“diferenciação” que busca distinguir o futebol-arte brasileiro dos demais. Entretanto, as

categorias “coletividade” e “nacionalidade” estão fortemente presentes. Diz a música:

“Noventa milhões em ação/ Pra frente, Brasil!/ Do meu coração/ Todos juntos, vamos/ Pra

frente, Brasil!/ Salve a seleção”. A ideia de uma coletividade já pode ser vista na indicação

do número de habitantes, trazendo quantitativamente a dimensão da pátria em chuteiras. A

Seleção Brasileira não está sozinha, pois conta com noventa milhões de torcedores que

agem. Ou seja, não são meros expectadores passivos, pois estão em “ação”. O substantivo

feminino “ação”, significa uma faculdade de agir e que gera um determinado modo de

proceder. Ligado ao contexto histórico em que foi produzido, o intento aos números fazia

parte de um período marcado na historiografia como “milagre brasileiro” em que o país

crescia “a uma taxa média de 10% ao ano, uma das maiores de toda a história do

capitalismo” (NAPOLITANO, 1998, p. 40).

Em “Pra frente, Brasil”, título da música, tem no substantivo “frente” um sentido

significativo entre a linguagem militar pois refere-se a uma fileira ou linha avançada de um

exército. Se o futebol tem a capacidade de se transformar em metonímia da nação, como

pudemos ver, a Seleção Brasileira de Futebol que jogava em solo mexicano representava

todo um país nos gramados. E se existiam combates na vida política, vide os grupos

guerrilheiros que combatiam a Ditadura Militar, também existiam no mundo simbólico em

que o futebol fazia parte. A conquista do tricampeonato era apenas mais uma frente de um

combate mais amplo. Além disso, o uso do substantivo “frente” também pode se referir a um

contexto de desenvolvimento econômico, atrelado à noção de progresso.

Já o trecho “Do meu coração” suscita a questão em torno da formação de uma

comunidade imaginada, como aquela que visa criar a “alma” de um povo, no sentido de

ressaltar a emoção. Como diria, Benedict Anderson, “ao contrário do modelo marxista, que

privilegia a esfera da ‘emissão’ e entende a política como exercício exclusivo dos

mandatários e poderosos, [a comunidade imaginada] possui uma legitimidade emocional

profunda” (ANDERSON, 2008, p. 10). Ou seja, a música em análise foi sim utilizada por

representantes oficiais do Estado, mas não se sabe exatamente se a canção foi encomendada

por esses representantes. Diante disso, ela permanece exercendo influência emocional sobre

os cidadãos e no caso fazendo menção direta ao órgão que popularmente é vinculado a

reprodução das emoções e paixões humanas. Mas, seguindo o pronome possessivo “meu”, a

canção continua com o trecho “Todos juntos, vamos”. A emoção, sentida com o coração, é

“minha” mas também é de “todos”; formando uma verdadeira pátria em coro único.

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O fim dessa primeira estrofe, termina com: “Pra frente, Brasil!/ Salve a seleção”.

Repete-se o título da música, acrescentando aquela instituição responsável por levar o país

“pra frente”, no caso, a seleção. Não é a educação ou os índices econômicos, mas a seleção

nacional de futebol que é a responsável por esse passo adiante. Temos, então, a categoria

“nacionalidade” presente neste trecho. A cidadania é deslocada e o futebol, visto como

sinônimo de vitória e orgulho. A expressão de saudação, “salve”, cumprimenta aquela

responsável pelo orgulho nacional.

Segue a segunda estrofe: “De repente/ É aquela corrente pra frente/ Parece que todo

o Brasil deu a mão/ Todos ligados na mesma emoção/ Tudo é um só coração”. A ação

repentina no “De repente”, pode remeter a tradição quadrienal da Copa do Mundo que

representa “O momento fora do comum que é planejado e tem tempo marcado para

acontecer, portanto, é um espelho muito importante pelo qual a sociedade se vê a si mesma e

pode ser vista por quem quer que deseje conhecê-la” (DAMATTA, 1986, p. 71). Essa ação

repentina e quadrienal tem um importante efeito simbólico: formar uma ideia de

coletividade, criando imaginações sobre a nação em que todos se juntam em uma mesma

corrente (“É aquela corrente pra frente”). E mesmo diante de um período ditatorial, marcado

pela tortura, “Parece que todo o Brasil deu a mão”.

Afinal, a Copa do Mundo no Brasil é vista como uma espécie de “carnaval fora de

época”, uma verdadeira festa. E como sabemos, no Brasil, os espaços festivos tem a

capacidade “De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade

e, sobretudo, à igualdade de todos perante a lei” (DAMATTA, 1986, p. 78); mesmo que

apenas na aparência como denuncia o contexto.

Diante de “um só coração”, unificando as emoções de uma verdadeira pátria em

chuteiras, a célebre canção termina da seguinte forma: “Todos juntos, vamos/ Pra frente,

Brasil, Brasil!/ Salve a seleção”. Nesse refrão final, as categorias “coletividade” (em “Todos

juntos, vamos”) da pátria em chuteiras se soma à categoria “nacionalidade” (em “Pra frente,

Brasil, Brasil!/ Salve a seleção”) do país que exalta seu progresso para frente por intermédio

do futebol. Mas quando o assunto é a Copa de 1970, existiram outras músicas apesar de suas

repercussões serem incomparáveis a Pra Frente Brasil. Independentemente da repercussão

em termos quantitativos, a música exerce uma função social que lhe é intríseca. Pois, A

música é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados produzidos por

membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros (SEEGER, 2008, p.

239).

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É por isso que iremos analisar rapidamente outras três canções, relativas ao

tricampeonato mundial do Brasil. A primeira chama-se O Caneco é Nosso, composta e

cantada por Teixeirinha que a gravou no LP Doce Amor, então lançado pela gravadora

Copacabana. Destacaremos apenas alguns trechos dessa música, começando pelo seguinte:

“Agora o caneco é nosso/ Campeão do mundo/ Gritar eu posso/ A seleção canarinho/

tricampeão do mundo inteiro/ Não há quem resista/ O esquadrão brasileiro”. Assim como em

1958, o caneco é “nosso” e utiliza-se de um pronome possessivo na primeira pessoa do

plural. A conquista da taça ou caneco é remetida a toda nação brasileira, sendo uma prova

imediata que somos a pátria em chuteiras. Esse “nosso” no plural, logo se transforma no

singular (“Gritar eu posso”), unificando indivíduo e coletividade. E em comparação com o

“mundo inteiro”, somos diferentes. Afinal, somos tricampeões (feito inédito até então em

termos de Copa do Mundo) e por isso somos incomparáveis (“Não há quem resista”). E se

existe um “esquadrão brasileiro” irresistível, é porque existem outros resistíveis e

superáveis, surgindo a categoria “diferenciação”.

Segue a canção: “O Brasil provou três vezes/ Com a seleção do seu povo/ Já fizeram

outro caneco/ Iremos buscar de novo/ Salve Pelé e Tostão/ Jairzinho e Everaldo/ O Gérson e

Carlos Alberto/ Rivelino e Clodoaldo/ Brito e Wilson Piazza/ Félix que o arco conserva/

Ainda mais chumbo/ Lá no banco de reservas”. A categoria “coletividade”, já vista acima,

também aparece nessa estrofe através de um selecionado que é propriedade de um povo.

Segundo Nelson Rodrigues, “o escrete brasileiro implica todos nós e cada um de nós. Afinal,

ele traduz uma projeção de nossos defeitos e de nossas qualidades” (RODRIGUES, 1993, p.

50). É a música reproduzindo artisticamente uma ideia criada e alicerçada em sociedade.

A importância da festa para a sociedade brasileira debatida anteriormente, retorna

nesta canção por conta da seguinte estrofe: “Foguetes subiram aos céus/ Fogo, explosão e

fumaça/ Pra saudar a seleção do futebol e da raça/ Dia vinte e um de junho/ Ficou bem

assinalado/ Venham passear no Brasil/ Este dia é feriado”. A Copa do Mundo é vista

abertamente como um evento de congregação, união, leveza e alegria. A categoria

“nacionalidade” se faz presente, tendo o futebol tanta representatividade para o povo

brasileiro, ao ponto da música mencionar um suposto feriado nacional para comemorar o

título de tricampeão mundial.

A criação dos feriados civis após a Revolução Francesa de 1789, como adverte

Hobsbawm (1984), se vincula à produção em massa de tradições inventadas durante os anos

de 1879 a 1914. Após o processo revolucionário francês, novidades foram criadas para

alicerçar ideologicamente os ideais dos revolucionários e entre essas novidades estiveram as

cerimônias públicas, festejadas através de feriados nacionais como 14 de julho, data da

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queda da Bastilha. O tricampeonato inédito, marcante para a época, é tratado na letra como

um dia a ser lembrado com um feriado.

Por fim, a canção se encerra: “Nosso treinador Zagallo/ Com a seleção vai pra

história/ Sem derrotas e sem empates/ Goleou e trouxe a vitória/ A taça Jules Rimet/ É nossa

da boca ao fundo/ Veio morar no Brasil/ O tricampeão do mundo”. A veneração ao time na

estrofe anterior se junta a do técnico Zagallo, participante das três conquistas da Seleção

Brasileira, assim como Pelé. O pronome possessivo “nossa” aparece novamente quando se

remete à taça de campeão e o Brasil é visto com relevância por abrigar um tricampeonato de

âmbito mundial. Em suma,

Sendo uma crônica da conquista, essa gravação de Teixeirinha tinha, éclaro, todo o tom exortativo e ufanista requerido pela ocasião, embora seusucesso tenha sido mais regional do que nacional, assim como a “Marchado tri”, gravada por Tonico e Tinoco, também em 1970. Bem mais sucessofez a música “Sou tricampeão”, da dupla Paulo Sérgio Valle e MarcosValle, lançada em compacto simples pelo conjunto Golden Boys, atéporque, em um dos lados do disco estava a música “Fumacê”, uma dasmais tocadas na época (LUNA, 2011, p. 248).

Em Marcha do Tri, temos na primeira estrofe: “Brasil, Brasil/ Os canarinhos da

seleção/ Brasil, Brasil/ Trouxeram a taça do tricampeão/ Foi a maior das proezas/ Salve

nosso esquadrão/ Mereceste com nobreza/ A taça do tricampeão”. O verbo trazer, flexionado

na terceira pessoa do plural, segue a lógica das outras canções em não tratar a conquista da

Copa do Mundo como algo individual. Pelo contrário, sempre se remete a uma coletividade

vencedora, pois somos a pátria em chuteiras e por isso ganhamos ou perdemos juntos com os

atletas em campo e por isso se trata do “nosso esquadrão”. Segue a música: “Brasil, Brasil/

Esta página da história/ Simboliza tradição/ Ficará em nossa memória/ Pra futura geração/

Brasi, Brasil”. Neste trecho final, Tonico e Tinoco resumem a prática e o significado do

conceito de tradições inventadas ao acionar uma tradição que tende a se perdurar na

memória coletiva. Sobre a essência desse valioso conceito, temos:

Contudo, na medida em que há referência a um passado histórico, astradições “inventadas” caracterizam-se por estabelecer com ele umacontinuidade bastante artificial. Em poucas palavras, elas são reações asituações novas que ou assumem a forma de referência a situaçõesanteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quaseque obrigatória (HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 10).

A música Sou tricampeão, vista acima como detentora de uma maior repercussão que

as outras, “mostrava uma exaltação à conquista para nacionalista nenhum botar defeito” e

tudo isso “Com uma melodia em tom maior, em ritmo crescente, de fácil memorização e

muito bem interpretada pelo trio, a música era um canto emocionado ao selecionado

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canarinho e à conquista do tricampeonato mundial de futebol (LUNA, 2011, p. 248). Diz a

canção: “Eu hoje, igual a todo brasileiro/ Vou passar o dia inteiro entre faixas e bandeiras

coloridas/ Parece até que eu estava em campo/ Buscando a paz aos quatro cantos/

Companheiros, vamos todos cantar a vitória pela raça/ Ficamos com a taça de melhor entre

os mais”. Ela parece relatar a experiência individual de um brasileiro que, porém,

compartilha com outros a grandeza do título mundial (“Eu hoje, igual a todo brasileiro”).

Assim como descreve DaMatta (2006), o futebol é visto como aquela atividade que

aproxima o brasileiro de seus símbolos pátrios (“Vou passar o dia inteiro entre faixas e

bandeiras coloridas”); e, além disso, a ideia de pátria em chuteiras é personificada da melhor

forma possível como o torcedor que se sente em campo (“Parece até que eu estava em

campo”). Temos, então, a categoria “coletividade” presente.

Além de aproximar o brasileiro comum dos símbolos pátrios, o futebol também é

responsável por oferecer o gosto pela vitória a esse cidadão espoliado de diversas formas na

vida real e cotidiana. A conquista do seu time de futebol ou da seleção, são momentos

ímpares de festejo (“Companheiros, vamos todos cantar a vitória pela raça”) e alta

autoestima (“Ficamos com a taça de melhor entre os mais”). A categoria “nacionalidade”

está presente nesta estrofe. A canção se encerra: “Minha gente, a distância não tem mais

sentido/ Nosso grito é gol é ouvido pelo chão, pelo mar/ Agora, só tenho a Copa em minha

mente/ Só vejo escrete em minha frente/ Sofri, sofri, mas, afinal, ganhei o mundo/ Sou

tricampeão do mundo”. A distância reduzida entre seleção e torcedor pode ter relações com o

advento da TV na Copa de 1970, sendo a primeira transmitida ao vivo no país. O sofrimento

que foi recompensado pela conquista do mundo mais a conquista que não sai da cabeça,

fazem parte de um ritual quadrienal que “tende a criar o movimento coletivo, fazendo

sucumbir o individual e o regional no coletivo e no nacional”, ou seja, “engloba na vitória os

outros indivíduos, passando a expressar o campeonato” (DAMATTA, 1997, p. 33).

Encerrando a discussão sobre essa canção:

Interessante observar que, voluntariamente ou não, essa composição ficoucomo um forte registro da alienação política que grassava entre apopulação naqueles tempos, fosse pela força das baionetas militares, fossepela força do comando midiático na busca de um consenso que parecia tersido alcançado com a seleção de 1970 e a conquista do tricampeonatomundial de futebol (LUNA, 2011, p. 249).

Como vimos, as canções envolvendo a Copa de 1970 seguem o enredo metodológico

que utilizamos para nortear nossa análise musical, passando pelas três categorias

(diferenciação, coletividade e nacionalidade) centrais. Se buscou diferenciar o Brasil dos

demais, mesmo que o futebol-arte não tenha aparecido explicitamente nas canções. Dentro

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do contexto de Ditadura Militar e campanha ufanista, as noções de coletividade e

nacionalidade apareceram com maior frequência. O título foi visto como uma conquista de

todos os brasileiros, sendo o futebol nacional um motivo de orgulho. Os militares souberam

se utilizar da conquista, Médici foi fotografado com a Jules Rimet e durante a competição

buscaram mostrar para a população que os jogadores (vistos como verdadeiros ídolos

nacionais) estavam com o regime.

O caso mais emblemático foi o visto no dia 17 de junho de 1970, quando quarenta

guerrilheiros foram postos no exílio em troca da vida do embaixador alemão Ehenfried

Anton Theodor, sequestrado por um grupo armado no dia 11 do mesmo mês. Em sua

primeira página de 17 de junho, dizia a Folha de S. Paulo: “Notícias do México dão conta

da perturbação que a notícia do sequestro provocou no ambiente do nosso selecionado. Pelé,

Rivelino e outros jogadores manifestaram-se, condenando o ato terrorista” (Folha de S.

Paulo, 17 jun. 1970, p.3 apud GUTERMAN, 2014, p. 177).

Enfim, a Copa de 1970 colocava o futebol brasileiro novamente no topo do mundo,

consagrando mais uma geração. Pelé era reverenciado em todo o país, sendo o maior

representante de uma geração que tirou o país do complexo de vira-latas e o transformou na

maior potência futebolística do mundo. Era a última grande conquista da chamada era de

ouro do futebol nacional, responsável pelo alicerçamento de tradições inventadas desde os

anos de 1930. As canções analisadas de 1958 a 1970 apenas reforçaram musicalmente essas

ideias já presentes na sociedade brasileira. A criação se aliava a reprodução e/ou prática do

que se imaginava ser o Brasil no futebol. Após o tricampeonato inédito, se passariam longos

24 anos (totalizando cinco edições) até que voltássemos a conquistar o mundo e um outro

contexto foi desenvolvido.

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CAPÍTULO 3 - A MANUTENÇÃO DAS TRADIÇÕES: O FUTEBOLBRASILEIRO NA ERA PÓS-MODERNA

Neste capítulo, analisaremos o início e o desenvolvimento do futebol em sua era pós-

moderna. Começaremos com os anos de 1970, período de transição, e passaremos pelos anos

de 1980 e 1990. As edições de 1974, 1978, 1982 e 1994 serão analisadas com maior atenção.

Já as edições de 1986 e 1990, serão passadas rapidamente por conta do recorte escolhido.

Em 1974 e 1978, se misturam características antigas e novas do futebol, tanto a nível

nacional quanto internacional. Foram, também, as duas últimas edições em que o discurso

ufanista dos militares tiveram maior influência nas músicas. A Copa de 1982, apresenta uma

geração até hoje reverenciada pela imprensa esportiva como uma das mais talentosas,

representando uma volta às origens após dois pífios desempenhos.

Nesse período, o Brasil ainda vivia sob o Regime Militar iniciado em 1964, mas com

indícios de um retorno da democracia. Por fim, a Copa de 1994 representa o

tetracampeonato mundial do Brasil, então sob o período chamado de Nova República. Pela

primeira vez foi conquistado um mundial sem a áurea do futebol-arte. Vencemos sem

convencer em campo, mesmo com antigas tradições levantadas nas músicas.

Mas, entre 1970 e 1974, ocorreram mudanças significativas a serem mencionadas.

No futebol, como dissemos, a era pós-moderna tinha início a partir de uma intensa

mercantilização do esporte. O futebol da espontaneidade e de traços amadores dava espaço

para uma profissionalização em todos os níveis. O jogo técnico dava lugar ao jogo físico; a

Copa do Mundo tornou-se um evento cada vez mais mercantilizado; a exportação de

jogadores africanos e latino-americanos para o continente europeu começou a se

desenvolver; e a gestão conservadora da FIFA, comandada pelo inglês Stanley Rous, caía e

dava lugar a gestão de João Havelange.

Ocorreu, de fato, um poder maior de compra dos torcedores a partir do pós-guerra,

mas a indústria esportiva era incipiente na exploração desses potenciais consumidores. Com

isso, os clubes sobreviviam basicamente da venda de ingressos e das mensalidades dos

sócios-torcedores. Apesar de tributar os clubes, as federações e confederações não viam

circular uma farta quantia de dinheiro. Porém, a partir da gestão João Havelange, dois

processos foram incentivados, modificando para sempre as estruturas do futebol. Foram

eles: “a esportivização da moda prêt-à-porter, de um lado, e as transmissões televisivas de

outro” (DAMO; OLIVEN, 2014, p. 59). Esses dois processos foram primordiais para que o

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futebol mergulhasse em sua era pós-moderna, transformando-se em uma mercadoria. Com

isso,

As grandes marcas esportivas – Adidas, Nike, Puma, Reebok etc. - sãorelativamente recentes e nenhuma delas abdica de um marketing agressivo,o que inclui o patrocínio de equipes e atletas profissionais. Na esteira dosucesso dessas empresas do ramo têxtil e calçadista, pegaram carona outrossetores da indústria, como o de bebidas e os automotivos, até o esporte emgeral e o futebol em particular se consolidarem como bons espaços para osmais diversos anunciantes (DAMO; OLIVEN, 2014, p. 60).

Como lembramos no início deste trabalho, estamos tratando de categorias

sociológicas abstratas e que caem nos chamados tipos ideais. O que isso significa? Significa

que, antes de 1970, características acima mencionadas já se faziam presentes no futebol em

geral e nas Copas do Mundo em particular. A Copa de 1966 foi a primeira a ter transmissão

televisiva, mas apenas para os europeus. A TV só chega a transmitir uma Copa do Mundo no

Brasil, em 1970. Também foi na edição de 1970 que Pelé foi responsável pela polêmica

envolvendo duas grandes marcas esportivas: as alemãs Adidas e Puma22. O que está sendo

debatido é um processo de intensificação e globalização de práticas esparsamente presentes

no universo futebolístico. A globalização citada fez a FIFA inserir continentes até então

esquecidos, como Ásia, África e Oceania, aumentando o número de participantes de 16 para

24 seleções a partir de 1982. Ainda sobre o processo de globalização a partir da gestão João

Havelange na FIFA:

Sem retirar a cota dos representantes europeus, que até ampliaram suaparticipação em termos absolutos, Havelange garantiu a inserção da Áfricae da Ásia, além de uma eliminatória exclusiva para a Oceania, com direitoà disputa de uma vaga em repescagem – contra membros da CONCAFAF[Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe] ou daCONMEBOL [Confederação Sul-Americana de Futebol]. Embora africanose asiáticos nunca tenham conquistado um único título mundial – a melhorparticipação foi o quarto lugar da Coreia do Sul, em 2002 – , a presençadeles cumpriu duas funções igualmente importantes: dar às copas umsentido coerente ao termo “mundial” ou “do mundo”, algo que nenhumoutro esporte consegue fazer de forma tão convincente, e gerar um passivopolítico dos dirigentes dessas confederações para com Havelange, razãopela qual suas sucessivas reeleições jamais foram ameaçadas (DAMO;OLIVEN, 2014, p. 62. Grifos nossos).

O mundo se complexificava, as economias tornavam-se cada vez menos nacionais e

o futebol se transformava conforme o novo contexto. Segundo David Harvey (1992), os

anos de 1970 representaram uma mudança estrutural no esqueleto do sistema capitalista. As

potências capitalistas que se recuperaram das mazelas da trazidas pela Segunda Guerra

22 VICTOR, Fábio. O truque de Pelé em 1970 iludiu empresa alemã. Folha de S. Paulo, 07 de junho de2006. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk0706200619.htm>. Acesso em:01/01/2020.

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Mundial sob um Estado de Bem-Estar Social, baseado economicamente no modelo fordista-

keynesiano, dava lugar a chamada acumulação flexível. Sobre essa nova fase do capitalismo,

“Ela se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos

produtos e padrões de consumo” (HARVEY; 1992, p. 140). Esse era o contexto

internacional, mas com implicações no Brasil. Dentre as possíveis razões que deram origem

a reestruturação capitalista, passando do modelo fordista-keynesiano para a acumulação

flexível, estão: aparecimento da concorrência nipônica e europeia frente aos Estados Unidos;

intensiva substituição de importações por parte dos países subdesenvolvidos; surgimento de

novas necessidades de mercado de consumo e os impactos decorrentes da crise do petróleo

em 1973. Sobre esse último evento, ele repercutiu negativamente na economia brasileira,

sendo o início do desmoronamento da política desenvolvimentista dos militares. Para Celso

Furtado,

Ao produzir-se o choque petroleiro de 1973, a economia brasileira seencontrava em posição particularmente vulnerável. O sistema industrialoperava a plena utilização de sua capacidade num momento em que sepassava de uma fase de persistente melhora dos termos do intercâmbioexterno (+ 20 por centro entre 1967 a 1973) para outro de bruscadegradação (FURTADO, 1982, p. 43).

Esse era o cenário econômico internacional e nacional. No cenário político nacional,

como já mencionado, o Brasil se encontrava sob uma Ditadura Militar e, entre os anos de

1970 a 1974, o General Médici terminava seu mandato com uma popularidade em alta. Não

só pelo tricampeonato, mas o governo Médici foi certamente aquele que mais se utilizou do

futebol para institucionalizar seus interesses políticos. Antes da Copa de 1970, pegando a

ideia já alicerçada por Costa e Silva, foi Médici o responsável por regulamentar a Loteria

Esportiva que deveria funcionar, a priori, somente em São Paulo e na Guanabara.

Regulamentada em janeiro, a Loteria Esportiva já movimentava em julho de 1970 um total

de NCr$ 2.000.000 por concurso e apenas na Guanabara23.

Logo após a Copa de 1970 foi criado o Campeonato Brasileiro, extinguindo a antiga

Taça Brasil (sob o nome de Torneio Roberto Gomes Pedrosa entre 1968 a 1970). Dentro da

ideia de “Brasil grande”, era inadmissível para o atual tricampeão mundial que

permanecesse com uma competição restrita e sem estruturas como era o “Robertão”. Fazia-

se necessário expandir o futebol brasileiro, rompendo fronteiras e interligando todas as

regiões do país. Foi dentro desse contexto que:

Durante a implementação das medidas do plano de integração nacional, asregiões Nordeste e Norte tornaram-se cada vez mais presentes nos grandeseventos futebolísticos que ocorreram no país. Neste ponto, deve-se destacar

23 A Gazeta Esportiva, 14/04/1970, p. 9 apud CHAIM, 2014, p. 68.

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dois eventos centrais: o Campeonato Brasileiro – ou Campeonato Nacional– realizando anualmente, e a Taça da Independência, que seria realizada em1972 em comemoração dos 150 anos de aniversário da Independência doBrasil (CHAIM, 2014, p. 105).

A expansão da competição não ocorreu de imediato, sendo acrescentado apenas três

clubes na edição de 1971: um de Minas Gerais (América Futebol Clube), um de Pernambuco

(Sport Club do Recife) e outro do Ceará (Ceará Sporting Club). Porém, o ano de 1972 foi

crucial ao inserir os seguintes estados: Pará (Clube do Remo), Amazonas (Nacional Futebol

Clube), Sergipe (Club Sportivo Sergipe), Alagoas (Clube de Regatas Brasil), Bahia (Esporte

Clube Vitória) e o Rio Grande do Norte (ABC Futebol Clube). Segundo a A Gazeta

Esportiva:

Amazonas, Sergipe, Alagoas, Rio Grande do Norte, com as belas praçasesportivas que tiveram oportunidade de mostrar ao mundo [o jornal serefere aos jogos da Taça Independência de 1972 que foram realizadosnesses estados], em hipótese alguma, poderiam permanecer de fora da Taçade Prata [alusão ao Campeonato Brasileiro]. Os estádios foram construídoscom o objetivo de serem palco de grandes espetáculos e a decisão da CBDfoi um prêmio ao esforço dos seus dirigentes. Até o Pará foi obrigado aampliar o estádio do Remo para garantir sua vaga (A Gazeta Esportiva,30/07/1972, p. 5, grifos nossos apud CHAIM, 2014, p. 108).

A menção aos estádios é bastante interessante pois, durante a Ditadura Militar, vários

foram construídos com estruturas modernas para a época. Fazia parte do projeto de

integração nacional. Dentre esses estádios, tivemos: Estádio Lourival Baptista ou Batistão,

Sergipe, inaugurado em 1969; Estádio Vivaldo Lima, Amazonas, inaugurado em 1970 e que

deu lugar a Arena da Amazônia; Estádio Rei Pelé, Alagoas, inaugurado em 1970; Estádio

João Cláudio de Vasconcelos Machado ou Machadão, Rio Grande do Norte, inaugurado em

1972 e que deu lugar a Arena das Dunas; Estádio José do Rego Maciel ou Arruda,

Pernambuco, inaugurado em 1972; Estádio Governador Plácido Castelo ou Castelão, Ceará,

inaugurado em 1972 e que deu lugar a Arena Castelão; e o Estádio Governador João Castelo

ou Castelão, Maranhão, inaugurado em 1982.

Além dessas construções e com o intuito de reforçar as equipes do Norte e Nordeste,

reduzindo a disparidade para o Sul e Sudeste, o então Banco Nacional do Norte

(BANORTE) foi oferecido para realizar empréstimos aos clubes24. Tricampeonato mundial;

nacionalização do esporte através de construções de estádios e competições de alcance

nacional; Ditadura Militar dominando a esfera política do país e profundas mudanças

internas e externas na economia. Esse era o cenário dos anos de 1970, palco das edições de

1974 e 1978 que analisaremos abaixo.

24 A Gazeta Esportiva, 23/08/1972, p. 7 apud CHAIM, 2014, p. 108.

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3.1 COPAS DE 1974 e 1978: OS ANOS DE 1970 E A CONTINUAÇÃO DOUFANISMO

Antes da realização da Copa do Mundo de 1974, sediada na Alemanha Ocidental, o

Brasil passou por uma troca na Presidência da República. Saiu Emílio Médici e entrou o

também general Ernesto Geisel. Médici, representante do período mais repressor do Regime

Militar Brasileiro, saiu em março de 1974 e deixou o país com uma enorme dívida externa,

além uma alta concentração de renda. Sobre os resultados da sua política nacional-

desenvolvimentista, liderada por Delfim Netto, “Os 5% mais ricos tiveram sua participação

na renda total do país aumentada de 28,3% em 1960, para 39,8%, em 1972. Nesse período, a

participação dos 50% mais pobres caiu de 17,4% para 11,3%” (GUTERMAN, 2014, p. 186).

A ideia de deixar o bolo crescer para depois dividi-lo, não vinha sendo posta em prática

pelos militares.

Com total controle sobre sua sucessão, Médici (que chegou a criar a Copa Emílio

Garrastazu Médici, disputada entre 1971 e 1973, sob organização da CBD e que ficou

conhecido como Torneio do Povo)25, escolheu o também general Geisel, então presidente da

Petrobras e irmão de Orlando Geisel, ministro do Exército e um grande expoente do Regime

Militar Brasileiro.

Ernesto era considerado “castelista”, isto é, ligado à linha moderada do ex-presidente Castello Branco, ala que vinha se articulando para voltar àpresidência e tinha o propósito de fazer a transição do país para o regimedemocrático, de modo “lento, gradual e seguro”. Com Geisel, trabalhouintensamente o general Golbery do Couto e Silva, que se tornaria seu braçodireito e que costuraria a abertura democrática. Golbery tratou de buscarapoio do empresariado a Geisel” (GUTERMAN, 2014, p. 186).

Apoiado por Médici e pelo empresariado, o general Geisel vence Ulysses Guimarães

(MDB) em uma votação indireta, através do Congresso Nacional. Com a maioria

esmagadora dos deputados vinculados a ARENA, Geisel venceu tranquilamente com 84%

dos votos válidos (significava o voto de 400 deputados) contra 16% (significava o voto de

76 deputados) de Ulysses Guimarães. Essa eleição ocorreu em janeiro de 1974 e Geisel

assumiu oficialmente em março do mesmo ano.

Já sob novo governo, a Copa de 1974 foi iniciada em 31 de junho e durou até o dia

07 de julho. A edição contou com 16 participantes e teve a Alemanha Ocidental de Sepp

Maier, Paul Breitner, Franz Beckenbauer e Gerd Muller como grande campeã. Os alemães

ocidentais conseguiram vencer a Seleção Holandesa, sensação da época, que foi liderada sob

25 Revista Placar, 16 de dezembro de 1977, p. 26.

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a batuta de Johan Cruijff. Classificada automaticamente por conta do título em 1970, a

Seleção Brasileira permanecia com Zagallo no comando técnico. Dos 22 convocados, 8

atletas haviam participado da campanha do tricampeonato no México. Eram eles: Leão, Zé

Maria, Marco Antônio, Piazza, Rivelino, Paulo César Caju, Jairzinho e Edu.

Mas fatores como a aposentadoria de Pelé da Seleção Brasileira em 1971; as

ausências de importantes jogadores da campanha de 1970, como Tostão e Gérson, mais o

pífio desempenho em campo em jogos preparatórios fizeram a imprensa esportiva olhar com

desconfiança para o selecionado. Na primeira fase, o Brasil caiu no Grupo 02 com

Iugoslávia, Escócia e Zaire. Após empatar os dois primeiros jogos em Frankfurt por 0 a 0,

contra iugoslavos e escoceses, os canarinhos só se classificaram na última rodada após

vencer o desconhecido Zaire por 3 a 0. Em segunda no grupo e classificada graças ao saldo

de gols (+3 para os brasileiros, contra +2 dos escoceses), a Seleção Brasileira conseguiu

chegar nas quartas-de-finais. E lá ficou no Grupo A juntamente com Holanda, Alemanha

Oriental e Argentina.

Após duas vitórias apertadas contra os alemães orientais (1 a 0) e os argentinos (2 a

1), o Brasil precisava vencer os holandeses no último jogo do grupo para chegar à final. A

Holanda tinha vantagem no saldo de gols e jogaria pelo empate, mas mesmo diante disso,

Zagallo deixou claro que o favoritismo era da equipe atual campeã: “A vantagem da

Holanda é muito pequena. Basta um gol da seleção brasileira e ela acaba

instantaneamente”26. A soberba não adiantou e o Brasil perderia o jogo por 2 a 0. Mas, como

segunda do grupo, a seleção comandada pelo contestado Zagallo ainda tinha o direito de

disputar o terceiro lugar no Estádio Olímpico de Munique, contra a Polônia. E no dia 06 de

julho, a Seleção Brasileira se despediu da Copa de 1974 perdendo para os poloneses por 1 a

0. O gol foi anotado pela principal estrela da Seleção Polonesa: o meio-campista Grzegorz

Lato, que aos 24 anos ainda seria o artilheiro da edição com sete gols.

Na música, as canções típicas de Copa do Mundo ganharam dois empecilhos em

1974: primeiro a canção Pra Frente Brasil de 1970, que ainda mantinha sua força, e o

recrudescimento da censura, inibindo as criações. Porém, a canção Camisa Dez, composta e

cantada por Luiz Américo antes da realização da Copa do Mundo, fez sucesso e retratava a

angústia do torcedor brasileiro frente a ausência de Pelé e a incapacidade de Zagallo. Em

tom irônico, a canção começa criticando abertamente o técnico (“Desculpe seu Zagallo/

Mexe nesse time que tá muito fraco/ Levaram uma flecha, esqueceram o arco/ Botaram

muito fogo e sopraram o furacão/ Que nem saiu do chão”) e termina mascarando à crítica

26 “O passeio do Carrossel”, em Todas as Copas, edição especial do jornal Lance!, p. 107 apudGUTERMAN, 2014, p. 191.

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(“Desculpe seu Zagallo/ A crítica que eu faço é pura brincadeira/ Espírito de humor, torcida

brasileira/ A turma está sorrindo para não chorar/ Tá devagar”).

Pelo desempenho e críticas da imprensa esportiva, parece que o Brasil não praticou

em solo alemão o característico futebol-arte que fez o país vencer três das últimas quatro

edições do torneio. E o samba de Luiz Américo, ironicamente o gênero musical associado ao

futebol-arte em canções anteriores, retratava a angústia de uma torcida desconfiada e sem

esperanças. Resumindo as considerações sobre a canção:

Falando das preocupações de Zagalo, novamente técnico da seleção, paramontar o time que tentaria a conquista do tetracampeonato mundial defutebol, a música destacava as dificuldades do meio de campo, que já nãotinha Gérson para fazer os lançamentos para Jairzinho e daí a afirmação de“levaram a flecha”, que seria Jairzinho e não levaram o arco, que seriaGérson, o que fazia com que o Furacão, apelido de Jairzinho em 1970, porsua velocidade e poder destrutivo sobre as defesas adversárias, não saíssenem do chão. Havia o destaque para a força defensiva do time centrada nafigura do zagueiro Luiz Pereira, que resguardava o goleiro Leão, mas oprincipal era a falta que fazia Pelé, daí a repetição do mote “Quem é quevai no lugar dele?”. Interessante observar a defesa prévia das garras dacensura no verso que diz “Desculpe, seu Zagalo”, indicando que a críticaera brincadeira e que, portanto, não devia ser levada tão à sério, o que,aliás, era um salvaguarda para o autor, pois a seleção era assunto de“segurança nacional” para os militares e, naquele momento, criticá-lademais, quando a comissão técnica estava composta por vários militares,era algo que realmente podia ser perigoso (LUNA, 2011, p. 250).

Porém, a canção que melhor retrata o ufanismo dos anos de 1970 foi Cem Milhões

de Corações, interpretada pelo grupo Os Incríveis. Não era a primeira vez que esse grupo

ganhava sucesso às custas de canções com tom ufanista, pois em 1970 interpretaram Eu te

amo, meu Brasil que foi transformado em um hino não-oficial do governo Médico, centrado

no slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Eu te amo, meu Brasil foi composta pela dupla Dom

& Ravel, que louvaram o Brasil dos militares em outras canções como: Terra Boa, Êxodo

Rural e Você também é responsável, hino do Movimento Brasileiro de Alfabetização

(MOBRAL)27.

Mas, se Eu te amo, meu Brasil ficou como hino não oficial, em Marcas do que se foi,

o grupo Os Incríveis interpretaram uma canção que serviu de trilha sonora para uma

propaganda institucional do Governo Federal em 197628. A canção fez parte do disco

27 MAZZA, Thatiana. A história do hino ufanista do regime militar “Eu te amo meu Brasil”. VICE, 13 denovembro de 2018. Disponível em: <https://www.normaseregras.com/normas-abnt/referencias/>. Acesso em:04/01/2020.

28 SEED/PR, Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Propaganda Institucional: governo Geisel –Marcas do que se foi. Disponível em: <http://www.historia.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=20463>. Acesso em: 04/01/2020.

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Trabalho e Paz, de 1976, lançado pela gravadora RCA Victor. O título do disco foi utilizado

em propaganda oficial, durante o governo Geisel29.

Com apenas duas estrofes, a primeira agitada e a segunda mais lenta, Cem Milhões

de Corações diz o seguinte: “Todos juntos de bandeira na mão/ Saudando os canarinhos da

nossa seleção/ É uma nação inteira/ Mostrando a todo mundo a glória brasileira”. O

pronome indefinido no plural “todos”, se alia ao “juntos”, uma flexão do verbo juntar na

primeira pessoa do singular do presente do indicativo. A utilização de pronomes no plural é

uma característica vista em canções anteriores, assim como a utilização de verbos como

juntar, relacionando-se a algo que está em contato com ou colocado ao lado de. No caso, é o

indivíduo (aspecto subjetivo) e a nação (aspecto objetivo) que se encontram ao lado da

Seleção Brasileira, formando a pátria em chuteiras de que fazemos parte. A “bandeira na

mão”, retorna as reflexões de DaMatta (2006) que enxerga o futebol como elo entre povo

brasileiro e símbolos nacionais oficiais.

Justificando o uso do verbo juntar, se corteja a Seleção Brasileira (“Saudando os

canarinhos da nossa seleção”) que é vista como “nossa”, pronome possessivo também visto

em outras músicas. E onde se juntam esses brasileiros? Se juntam à nação (“É uma nação

inteira”) que está unida para mostrar, dentro de campo, nosso real valor (“Mostrando a todo

mundo a glória brasileira”). A primeira estrofe desta canção é tão rica de carga simbólica que

consegue conter todas as categorias que utilizamos para facilitar nossa análise musical.

Ela se refere a uma “coletividade” ou pátria em chuteiras (“Todos juntos de bandeira

na mão”/ “Saudando os canarinhos da nossa seleção”/ “É uma nação inteira”); e em

“Mostrando a todo mundo a glória brasileira”, finaliza com a categoria “nacionalidade” (a

cidadania deslocada se encontra no cultivo de um orgulho do Brasil e de ser brasileiro, por

conta do futebol detentor de uma glória) e também “diferenciação” (pois a glória é um valor

nosso, ou seja, do brasileiro e ele deve defendê-la do mundo inteiro e/ou dos outros). Não é à

toa que essa primeira estrofe também é o refrão da música. Estando todos juntos e em defesa

de uma glória brasileira, “O futebol passou a ser exaltado como popular, participativo e

expressão autêntica da cultura ou do ser nacional” (HELAL; LOVISOLO; SOARES, 2011,

p. 15).

Já na última estrofe, ela encerra: “Cem milhões de corações/ Vibrando de uma só

vez/ É mais uma emoção/ Brasil na Alemanha, tetracampeão”. A referência aos cem milhões,

traça um diálogo com a canção Pra Frente Brasil que apresenta um país em 1970 de noventa

29 SEED/ PR, Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Propaganda Institucional: governo Geisel –Trabalho e Paz. Disponível em: <http://www.historia.seed.pr.gov.br/modules/video/showVideo.php?video=20467>. Acesso em: 04/01/2020.

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milhões em ação. O aumento populacional retratado na letra, não só demonstra uma

veracidade como também uma noção de progresso. Crescemos, aumentamos, somamos. E

todos, como representantes da pátria em chuteiras que somos, estamos com os corações na

Alemanha em sintonia com os jogadores brasileiros. Enquanto tal, podemos vibrar

(“Vibrando de uma só vez”), se emocionar (“É mais uma emoção”) e também se frustrar

como foi o caso da Copa de 1966 (e também da edição de 1974) em que “80 milhões de

sujeitos estão aí, pagando pela burrice alheia” (RODRIGUES, 1993, p. 130). E nesta estrofe,

encontramos claramente a categoria “coletividade” de um país vibrante e emocionado que,

em grande número, está ligado a Seleção Brasileira.

Após a Copa de 1974, o país encontrou avanços e recuos típico da transição “lenta,

gradual e segura”, proposto pelo governo Geisel. Visando dar uma aparência mais

democrática ao Regime Militar imposto a partir de 1964, foi permitido o acesso da oposição

à televisão nas eleições legislativas de 1974. Entretanto, o resultado das urnas deixou os

militares preocupados após o bom desempenho conquistado pela oposição, aglutinada no

MDB. E foi nos grandes centros urbanos, sensíveis aos pontos negativos trazidos pelo

“milagre econômico”, onde mais o MDB obteve êxito. Outro importanto avanço no período

foi a suspensão a censura dada ao jornal O Estado de S. Paulo, um dos maiores do país.

Porém, nos porões da ditadura, ocorria a emblemática morte do jornalista Vladimir Hergoz

em outubro de 1975.

Tendo em vista o sucesso oposicionista, os militares resolveram não oferecer mais

espaços demasiados nas eleições municipais de 1976. Aprovaram a chamada “Lei Falcão”,

autorizando somente a foto, o nome e o número do candidato na propaganda política

televisiva. Porém, o resultado foi mais uma vez favorável ao MDB: o partido foi maioria em

59 Câmaras Municipais das cem maiores cidades do país. Em outra manobra para evitar o

crescimento da oposição, Geisel impôs o “Pacote de Abril” em 1977. Esse pacote criava o

“senador biônico”, ou seja, aquele eleito de modo indireto, impedindo que o MDB fizesse

maioria no Senado. Além disso, impôs a maioria simples no Poder Legislativo favorecendo

os interesses da ARENA.

Por fim, o mandato do presidente da República foi estendido para seisanos, e todos os governadores de estado seriam escolhidos de modoindireto em 1978. Tudo isso com o Congresso fechado por Geisel, em 1º deabril, com base no AI-5 (GUTERMAN, 2014, p. 193).

Assim o ano de 1978 começava sob um governo disposto à abertura democrática,

mas ainda preso a antigos instrumentos autoritários. Era ano de Copa do Mundo e também

de eleição presidencial, com o processo inteiramente nas mãos de Geisel que já havia

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escolhido seu sucessor: o general João Figueiredo, eleito em outubro do mesmo ano. No

futebol, a influência da Ditadura Militar na CBD permaneceu após o fracasso em 1974 e

após a saída de João Havelange do cargo de presidente da instituição, em 1975. Eleito

presidente da FIFA em 1974, Havelange deu início a profundas transformações no

gerenciamento do futebol e foi substituído na CBD pelo almirante Heleno Nunes. E,

Não poderia ter sido mais claro o gambito. Com Nunes, o CampeonatoBrasileiro passou a ter quase uma centena de clubes, com evidentesobjetivos políticos, como já vimos. Parte dos jornalistas esportivos daépoca já discutia o “fim do futebol brasileiro” (GUTERMAN, 2014, p.195).

Para explicar melhor essa crise que o futebol brasileiro começa a sentir em fins dos

anos de 1970, mas que ganha contornos maiores nos anos de 1980, Ronaldo Helal (1997) se

utiliza das reflexões de Roberto DaMatta sobre o chamado dilema brasileiro. A ideia de

dilema brasileiro se refere a uma distinção ética que é desta forma resumido:

Este viés é centrado na distinção entre éticas únicas e duplas que permeiamsociedades modernas e tradicionais respectivamente. Para DaMatta, oBrasil é uma sociedade que adotou padrões éticos duplos para regular adinâmica de sua vida social (HELAL; 1997, p. 28).

Essa perspectiva é fundada na Sociologia Compreensiva de Max Weber (2004) que

acreditava que as sociedades modernas haviam desenvolvido uma ética única, daí “a

pregação advinda da práxis moral do calvinismo recomendava que o indivíduo tivesse como

dever considerar-se salvo e, além disso, considerar o trabalho profissional sem descanso

como meio mais eficiente para esta autoconfiança” (SELL, 2015, p. 128). E mais, “Se o

puritano fez do trabalho um meio em busca da salvação, a racionalidade inerente ao mundo

industrial moderno fez do trabalho uma atividade cujo fim é ele mesmo” (SELL, 2015, p.

139). Não movida por uma ética única baseada no trabalho racionalizado e disciplinado,

sociedades como a brasileira foram marcadas por um antagonismo que marcam suas

formações: o moderno e o tradicional.

Em Gilberto Freyre esse antagonismo é debatido nas discussões em torno da

influência europeia sobre a cultura brasileira. E sobre essa tendência nacional em misturar

características modernas com tradicionais, ele analisa como o desenvolvimento industrial e

urbano trazido pelos europeus a partir do século XIX era fundido com as antigas estruturas

patriarcais e agrestes. Observa Freyre, “Mas o técnico europeu repita-se que acabou

triunfando. Até que o mulato aprendeu com ele a dirigir os trens, os tornos, as máquinas, a

fabricar o vidro, a fazer o macarrão e aletria” (FREYRE, 2006, p. 464).

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Mas quais as ligações desse debate com o futebol brasileiro e sua mencionada crise,

iniciada em fins dos anos de 1970? Para Helal:

A “crise do futebol brasileiro” é explicada pelo modelo “tradicional” deorganização do futebol, baseado no amadorismo dos dirigentes e na políticade troca de favores entre clubes e federações. Este modelo é o responsávelpela desorganização dos campeonatos, gerando jogos deficitários queacabam contribuindo para a emigração dos craques para o exterior(HELAL, 1997, p. 33).

Em contraponto a esse modelo tradicional, existe o moderno que significa “a

exigência de um alto grau de profissionalização e comercialização, que objetiva lucrar com o

espetáculo futebolístico” (HELAL, 1997, p. 33). Se a Europa ruma em definitivo para o

modelo moderno, junto com o evento Copa do Mundo, o futebol brasileiro do ponto de vista

interno encontrava-se em disputa por conta dessa ética dupla. Essa era a faceta da anunciada

“crise do futebol brasileiro”.

Foi diante disso que se iniciou os preparativos para a Copa de 1978, sediada pela

vizinha Argentina, também marcada por uma Ditadura Militar. Para as Eliminatórias da

Copa de 1978 foi contratado o técnico Oswaldo Brandão. Apostando em um futebol técnico

e focado no toque de bola, Brandão fracassou e pediu demissão logo após o primeiro jogo

das eliminatórias quando o Brasil empatou por 0 a 0 com a Colômbia, em Bogotá. O estilo

de jogo que Brandão tentara impor não dava mais certo por um claro motivo: não havia

material humano para tal, isto é, o Brasil não tinha número suficiente de jogadores para

exercer esse papel. Assim, ganhava força a sensação de que era preciso abandonar as raízes e

finalmente render-se ao futebol eficiente da Europa. Era dessa forma que pensava Cláudio

Coutinho, o novo técnico da Seleção Brasileira, contratado no lugar de Brandão.

Visto na época como inovador, Coutinho dizia ter acesso às principais inovações

táticas produzidas pelos técnicos europeus. “Assim, introduziu no linguajar dos técnicos

expressões como ‘overlapping’ (jogada de transição) e ‘ponto futuro’ (para onde deveria ser

lançada a bola em ação coordenada com outro jogador, que se deslocaria para esse ponto”

(GUTERMAN, 2014, p. 196). Sob novo comando, a Seleção Brasileira do antigo

“sambando com a bola no pé”, requeria um inovador perfil de jogador: aquele polivalente,

habilitado a exercer diversas funções durante o jogo e com acentuada obediência tática. Era

o advento do “método científico e de esporte socialista em que a pessoa humana resulta

mecanizada e subordinada ao todo” (FREYRE, 1938, p. 4), que outrora serviu para nos

diferenciar dos europeus.

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Com base nessas ideias inovadoras, Cláudio Coutinho cumpriu sua missão e

classificou o Brasil para mais uma Copa do Mundo. Com os mesmos 16 participantes da

edição anterior, a Copa de 1978 foi realizada entre 1º de junho a 25 de junho. Na primeira

fase, a Seleção Brasileira ficou no Grupo 03 com Áustria, Espanha e Suécia. E pela segunda

edição consecutiva, terminou em segundo lugar e com uma classificação garantida apenas na

última rodada. Após empatar os dois primeiros jogos (1 a 1 frente os suecos e 0 a 0 contra os

espanhóis), o Brasil venceria a Áustria por 1 a 0 com gol salvador do atacante Roberto

Dinamite, destaque do Vasco da Gama.

Classificada para as quartas-de-finais no apagar das luzes, ficou no Grupo B na

segunda fase com Argentina, Peru e Polônia. Com um melhor desempenho do que o

apresentado na primeira fase, o Brasil venceu os peruanos por 3 a 0 e empatou sem gols com

os argentinos. Na última rodada, venceu os poloneses por 3 a 1 em jogo realizado no dia 21

de junho às 16h45m, horário local. Com a vitória, o Brasil obrigava a Argentina a vencer o

Peru por mais de três gols de diferença. Caso contrário, os donos da casa estariam

eliminados. Mas em partida realizada às 19h15m do mesmo dia, os argentinos meteram uma

goleada de 6 a 0 nos peruanos e se classificaram em um jogo com graves suspeitas de

suborno30. Com o mesmo número de pontos que os argentinos, mas eliminados por conta do

saldo de gols, o Brasil jogava pela segunda vez seguida uma disputa de terceiro lugar. Mas

diferente de 1974, saiu vencedor em 1978 ao derrotar a Itália por 2 a 1 no Estádio

Monumental de Núñez, Buenos Aires.

A música que embalou a Copa de 1978 foi Corrente 78, presente no álbum Corrente

78 – Brasil país do futebol, lançado pela gravadora Som Livre. O álbum tinha músicas de

diversos artistas como Wilson Simonal (Aqui é o País do Futebol), Jorge Ben Jor (Cadê o

penalty?), Jackson do Pandeiro (Um a Um) e Maria Alcina (Fio Maravilha). Além de grupos

como o Trio Esperança (Replay) e Os Incríveis (Este é um País que vai pra frente e Eu te

amo meu Brasil). Tendo em vista o conceito de tradições inventadas, “aquelas cujo propósito

é a socialização, a inculcação de ideias, sistemas de valores e padrões de comportamento”

(HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 17), canções de antigas edições estiveram presentes

neste álbum. Das mais emblemáticas para o imaginário social como Pra Frente Brasil e A

Taça do Mundo é Nossa (ambas interpretadas pelo Coral do Caneco), até menos como Sou

Tricampeão (interpretada pelo grupo Golden Boys) e Camisa 10 (Luiz Américo). Enfim,

com 16 músicas alusivas exclusivamente ao evento Copa do Mundo o álbum foi lançado e

representou a trilha sonora brasileira nesta edição.

30 Ex-goleiro admite fraude na Copa-78, Folha de S. Paulo, 9 de outubro de 1998. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk09109801.htm>. Acesso em: 04/01/2020.

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Mas, dentre tantas canções, Corrente 78 foi a considerada como “O hino da Copa”,

segundo a própria descrição do álbum. Cantada pelo Coro de Joab Teixeira, a música

começa da seguinte forma: “Corrente 78/ Tornamos na mesma emoção/ E quando o tango

tocar/ Eu vou pra rua sambar/ Vamos nessa, minha gente/ Empurrando a seleção”. Nesta

primeira estrofe, podemos destacar de imediato a repetição do título da música. Como

adjetivo, a palavra “corrente” dentre vários sentidos, pode significar a aceitabilidade por

todos ou pela maioria. Ou seja, a palavra “corrente” nessa música parece ser sinônimo de

consensualidade e/ou estabelecimento de uma opinião corrente. E o que seria essa corrente

ou o que a motivaria? Simplesmente a Seleção Brasileira que Nelson Rodrigues assim

descreve categoricamente como “a pátria em calções e chuteiras, a dar rútilas botinadas, em

todas as direções” (RODRIGUES, 1994, p. 195). Já aqui encontramos a categoria

“coletividade” que é vista simbolicamente por intermédio de uma corrente.

Mantendo uma ideia de regularidade quadrienal ao “Tornamos na mesma emoção”,

ou seja, a emotividade de torcer pelo Brasil em campo retornou. Os trechos que visam

diferenciar o Brasil da Argentina, contém importantes aspectos. O samba retorna na

comparação com o futebol, mas não o jogador em campo que pratica uma forma de jogar

comparável a dança dionisíaca freyreana, mas os torcedores que vão as ruas festejar o

evento. Com isso, esses trechos reforçam a categoria “coletividade”, sem trazer referências

ao futebol-arte que marca a categoria “diferenciação”. O brasileiro torce com o samba, já o

argentino torce com o tango. Essa oposição brasileiro/samba de argentino/tango, remete a

uma característica do conceito de cultura, “porque, para mim, a palavra cultura exprime

precisamente um estilo, um modo e um jeito, repito, de fazer coisas” (DAMATTA, 1986, p.

17). O jeito de festejar dos dois países citados na letra, contém diferenças de estilos entre as

duas culturas.

Segue a segunda estrofe: “Todas as cores unidas/ Razões esquecidas/ No meio de

tantas nações/ Nossa camisa amarela/ Nasceu da aquarela, mais de 120 milhões/ Não há

cidade ou fronteira, a lá brasileira/ O povo se uniu/ Sambando no norte/ Sambando no sul/

Brasil, Brasil!”. O grande ideólogo do Regime Militar Brasileiro e Ministro-Chefe do

Gabinete Civil do governo Geisel, general Golbery do Couto e Silva, assim imaginava o

ideal de nacionalismo:

Ser nacionalista é reconhecer, como suprema lealdade, a lealdade à naçãode que se é ínfima parte, mas parcela atuante e consciente. Ser nacionalistaé sobrepor, portanto, a quaisquer interesses outros, individuais ou defacções ou de grupos, a quaisquer vantagens regionalistas ou paroquiais, osverdadeiros interesses da nacionalidade. Ser nacionalista é estar semprepronto a sacrificar qualquer doutrina, qualquer teoria, qualquer ideologia,sentimentos, paixões e ideais e valores, quando quer se evidenciem nocivos

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e de fato incompatíveis ante a lealdade suprema que se deve dedicar,sobretudo, à Nação (SILVA, Golbery do Couto e; 1981, p. 99).

Sem supor que a música foi encomenda dos militares, ela carrega em sua letra

elementos que se fundem com as ideias daqueles que dominavam a esfera política do país.

Era de interesse desses militares que a ideia de integração nacional, vista no futebol com a

criação do Campeonato Brasileiro em 1971, prevalecesse sobre os regionalismos. Também

era necessário o apaziguamento dos conflitos, por isso a tentativa de união independente de

ideologia, doutrina ou sentimentos. O lema institucional do governo Geisel, Paz e Trabalho,

visava acalmar os ânimos para que a “transição lenta, gradual e segura” fosse posta em

prática. Porém, além dessas especificidades, fruto de um dado contexto histórico, as ideias

de Golbery e a música em questão contém aspectos do nacionalismo que são gerais.

Segundo Eric Hobsbawm (1990), existe uma visão de nação ligada a uma ideia de

Estado de larga escala, com território definido, grande população e dotado de recursos que

facilitem o fortalecimento da economia nacional. Do advento desta concepção de nação,

surgem duas consequências. São elas: o princípio da nacionalidade passa a ser regido por um

ponto crítico, reconhecendo nacionalidades com um certo tamanho e excluindo

nacionalidades menores em termos quantitativos; por fim, a construção de uma nação se

baseia em um processo constante de expansão e unificação, reunindo grupos dispersos e não

dividindo-os. É dessa construção que surge a tentativa de imaginar o Estado-Nação enquanto

esfera homogênea, multiétnica e multilinguístico da vida social.

A busca por essa homogeneidade é vista na letra, neste trecho: “Não há sotaque ou

fronteira, a la brasileira/ O povo se uniu/ Sambando no norte/ Sambando no sul/ Brasil,

Brasil”. O samba, originário do Rio de Janeiro por volta do século XIX, aparece tanto no

norte quanto no sul do país; simbolizando a integridade nacional. Mas essa integridade era

harmônica, como lembra o início da estrofe: “Todas as cores unidas/ Razões esquecidas/ No

meio de tantas nações”. E remetendo mais uma vez a símbolos nacionais oficiais, a letra

traça uma continuidade com as canções de 1970 e 1974: “Nossa camisa amarela/ Nasceu da

aquarela, deste 120 milhões”. Não éramos mais 90 milhões em ação ou 100 milhões de

corações, mas 120 milhões que sambavam de norte a sul fazendo da Copa do Mundo um

verdadeiro carnaval fora de época. Mesmo sem fazer menção ao futebol-arte, as categorias

“coletividade” e “nacionalidade” estão presentes nessa música. A coletividade de uma pátria

em chuteiras que se junta, esquecendo razões e unindo cores, em prol da torcida pela Seleção

Brasileira; ao mesmo tempo que o evento Copa do Mundo, proporciona a esses brasileiros

de diferentes classes sociais a oportunidade de ser feliz, sambando de norte a sul do país.

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Os anos de 1970 deu início ao que conhecemos como “crise de identidade” (HALL,

2006), porém, como “um anacronismo trazido diretamente do século XIX” (GASTALDO;

GUEDES, 2006, p. 9), as Copas do Mundo resistem a essas crises ao personificar a nação

em 22 jogadores selecionados. Pelo menos é o que nos mostra as letras aqui analisadas,

utilizando do poder da comunicação para reforçar uma identidade nacional. E sobre o papel

da comunicação e da propaganda (representada de formas variadas como através da música,

por exemplo) na busca por essa homogeneização, típica da identidade nacional:

Mas a propaganda deliberada quase certamente era menos significativa doque a habilidade de a comunicação de massa transformar o que, de fato,eram símbolos nacionais em parte da vida de qualquer indivíduo e, a partirdaí, romper as divisões entre as esferas privada e local, nas quais a maioriados cidadãos normalmente vivia, para as esferas pública e nacional(HOBSBAWM; 1990, p. 170).

Em suma, os anos de 1970 reforçam o ufanismo visto nas edições anteriores,

atrelando-se de forma direta ou indireta a propaganda oficial do Regime Militar Brasileiro

que dava as rédeas na esfera política. Apesar de mudanças externas de cunho estrutural,

como o advento da crise de identidades na esfera cultural e da acumulação flexível na esfera

econômica, o Brasil permaneceu carregando a bandeira do nacionalismo em períodos

quadrienais de Copa do Mundo. A tradição de edificar à nação nesse período foi vista nas

canções analisadas mesmo diante de resultados insatisfatórios em campo. As categorias

“coletividade” e “nacionalidade” estiveram bastante presentes nas letras, porém, pudemos

observar a ausência de uma menção direta ao futebol-arte que tanto marcou a invenção de

tradições em edições anteriores. Seja pelo contexto de Ditadura Militar ou de crise do

futebol brasileiro, o futebol-arte característico dos brasileiros deu lugar a um carregado

louvor da nação e da pátria em chuteiras que se une em torno da Seleção Brasileira. Porém,

seu retorno estava próximo.

3.2 1982: VOA CANARINHO E O RESGATE DO FUTEBOL-ARTE

Após a Copa de 1978, o Brasil passou por uma eleição e no dia 15 de outubro elegeu,

indiretamente, o sucessor de Ernesto Geisel. O escolhido foi o general João Figueiredo que

seria o último presidente da Ditadura Militar. Eleito para um mandato de 06 anos, Figueiredo

venceu com 61,1% dos votos válidos (significava o voto de 355 deputados), contra 38,9%

(significava o voto de 226 deputados) do general Euller Bentes, apoiado pelo MDB,

mostrando as divisões internas dentro das Forças Armadas. Euller Bentes ingressou na

Escola Militar de Realengo em 1933 e formou-se na Escola Superior de Guerra em 1961;

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tendo participação ativa nos acontecimentos políticos do país. Em 1945, participou da

conspiração que derrubou o Estado Novo. Nos anos de 1950, foi defensor do monopólio

estatal do petróleo e em 1964 se posicionou contrário ao golpe de Estado contra Jango.

Mesmo assim, Bentes foi promovido internamente como general-de-brigada em 1965 e

general-de-exército em 1974. Também ocupou o cargo de presidente da Superintendência do

Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) entre 1967 e 1968.

Mas a indicação e a vitória de João Figueiredo representou o triunfo da ala

“castelista” moderada em contraposição a chamada “linha dura”. Ainda em 1978, após dez

anos de vigência, o AI-5 foi encerrado e o direito ao habeas-corpus retornava. Além da

queda do AI-5, o governo Figueiredo seria designado por colocar em práticas outras medidas

liberalizantes, reforçando a “abertura lenta, gradual e segura”. Sendo assim,

Essa pauta incluía ainda a reforma partidária, a promulgação de uma anistiaaos presos políticos e perseguidos pelo regime e as eleições diretas paragovernadores de Estado. Era a chamada “abertura lenta, gradual e segura”que se consolidava (NAPOLITANO, 1998, p. 68).

Essas eram mudanças previstas no âmbito político, porém, a política econômica do

regime não parecia dar sinais de alteração. E “No máximo, estudava-se uma nova lei salarial

que permitisse um repasse mais eficaz da inflação” (NAPOLITANO, 1998, p. 68-69). Por

isso que os fins dos anos de 1970 e o início dos anos de 1980, foi marcado por uma forte

organização da classe trabalhadora, principalmente, em regiões industrializadas como o

ABC Paulista (região tradicionalmente industrial do estado de São Paulo, parte da Região

Metropolitana de São Paulo, comportando cidades como Santo André, São Bernardo do

Campo e São Caetano do Sul). A partir de 1978 começaram a surgir manifestações desses

setores da sociedade, resultando na formação de partidos políticos como o Partido dos

Trabalhadores (PT), que surgia se colocando como contrário a Doutrina de Segurança

Nacional, as ideias liberais clássicas e até mesmo a posturas consideradas antiquadas dos

partidos comunistas mais antigos como o Partido Comunista Brasileiro (PCB) e o Partido

Comunista do Brasil (PCdoB). Diante disso, esse era o cenário econômico do Brasil em fins

dos anos de 1970:

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada em 1976 pelaFIBGE, revelou que 44 por cento das famílias brasileiras se incluem no quese considera a faixa de pobreza, tendo acesso a uma renda total (monetáriae não monetária) inferior a dois salários mínimos. Como o salário mínimodescresceu nos últimos 20 anos, o menos que se pode concluir é que cercade metade da população foi excluída de qualquer benefício do considerávelaumento de produtividade ocorrido durante esse período. Em outraspalavras: a solução dos problemas da metade da população que vive na

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miséria mereceu sinal negativo na ordem de prioridades que orientam odesenvolvimento (FURTADO, 1982, p. 59).

A crise na economia também era vista no universo futebolístico nacional e por razões

diversas. Como vimos, os anos de 1970 representou o rompimento de fronteiras do futebol

brasileiro, tendo a criação do Campeonato Brasileiro em 1971 como seu maior marco. No

mesmo período, grandes estádios foram construídos com estrutura moderna e capacidade de

público considerável. Porém, a ética dupla mencionada anteriormente impedia avanços na

gestão do esporte. E se os jogadores estavam profissionalizados desde os anos de 1930, o

mesmo não era visto entre os dirigentes dos clubes e das federações. Em troca da

profissionalização, imperava a troca de favores entre federações, clubes e a CBD. Isso tudo

mesmo com a extinção da CBD e a criação da Confederação Brasileira de Futebol (CBF),

em 24 de setembro de 1979, após uma norma da FIFA, segundo o qual todas as entidades

nacionais de futebol deveriam cuidar exclusivamente deste esporte. Como a CBD

administrava todos os esportes olímpicos do país, incluso o futebol, a entidade foi extinta,

sendo o já citado almirante Heleno de Barros Nunes seu último presidente.

Essa norma da FIFA seguia a tendência internacional, sob liderança de João

Havelange, de profissionalização do futebol. Esse esporte de alcance mundial, passava a ser

encarado como uma mercadoria a ser gerida conforme métodos modernos de administração.

Mas, no contexto brasileiro, a realidade era bem diferente com clubes e federações sem

autonomia para organizar um calendário esportivo atraente. O resultado do sufocamento de

clubes e federações e a interferência do Estado gerou a organização de campeonatos

nacionais obsoletos. Valia de tudo para manter a ideia de integração nacional no

Campeonato Brasileiro, chegando a edição de 1978 a conter 74 clubes de todos os estados e

em 1979, incríveis 94 clubes. A expansão desorganizada e exagerada prejudicadava os

grandes clubes e inseriam clubes de menor expressão no cenário futebolístico do país. Em

setembro de 1978, o jornal O Globo chegou a organizar uma série de artigos envolvendo

jornalistas, dirigentes e técnicos de futebol tendo “A decadência do futebol brasileiro” como

tema (O Globo, 17/09/78 a 22/09/78 apud HELAL, 1997, p. 53). Da análise desses artigos,

concluiu Ronaldo Helal:

A tensão entre duas éticas, uma “tradicional”, baseada em troca de favores,relações interpessoais e amadorismo na administração, e uma outra“moderna”, reivindicando profissionalização dos dirigentes, leis impessoaise uma visão empresarial, ficou evidente na minha análise desses artigos(HELAL, 1997, p. 53).

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Os anos de 1980 começaram com Giulite Coutinho, primeiro presidente da recém-

criada CBF, reduzindo o número de participantes do Campeonato Brasileiro de 94, em 1979,

para 44 em 1980. Ainda era um número exorbitante, mas a ação indicava um desejo de tentar

reorganizar o futebol brasileiro. Resumindo os fatores que geraram essa crise, podemos

elencar os seguintes:

Assim, a presença de vários fatores inter-relacionados estava levando aorganização do futebol para a beira de um colapso: a) a interferência doEstado, devido a uma legislação esportiva que não dava autonomia aosclubes e federações; b) os interesses pessoais e políticos dos diretores dasfederações, da CBF e de alguns clubes; c) a queda de público; d) o fracassofinanceiro dos clubes; e) o paradoxo de haver dirigentes amadoresadministrando uma atividade cada vez mais profissional e comercial; f) oscampeonatos deficitários; g) o êxodo dos craques para o exterior; e h) osucesso administrativo do futebol na Europa (HELAL, 1997, p. 55).

Foi em meio a esse contexto que surgiu a talentosa geração de 1982, até hoje

presente no imaginário social. Após a eliminação nas semifinais da Copa América de 1979

para o Paraguai, o técnico Cláudio Coutinho foi demitido do comando técnico da Seleção

Brasileira. Em seu lugar foi contratado Telê Santana, ex-jogador e técnico que havia obtido

bons trabalhos no Fluminense Football Club, no Clube Atlético Mineiro e no Grêmio Foot-

Ball Porto Alegrense. Telê havia sido, em 1971, campeão pelo Atlético-MG na primeira

edição do Campeonato Brasileiro, expandido pela CBD com o apoio dos militares.

A Seleção Brasileira de Telê Santana se classificou facilmente para a Copa do Mundo

de 1982, sediada na Espanha. Nas eliminatórias, caiu em um grupo com Bolívia e

Venezuela, países sem tradição no futebol. Em quatro jogos, ida e volta, o Brasil venceu

todos marcando 11 gols e levando apenas 2. Classificada, fez excursão vitoriosa pela

Europa. Venceu a Inglaterra pela primeira vez na história em Wembley (1 a 0, gol de Zico); a

França em Paris (3 a 1) e a Alemanha Ocidental em Stuttgart (2 a 1). O Brasil viajara para a

Espanha como favorito, após uma classificação sem sustos e uma excursão exuberante.

Mas a grande novidade estava entre os 22 convocados, pois após 48 anos (o

equivalente a nove edições) o Brasil voltava a convocar um atleta que não jogava em um

clube brasileiro. A primeira e até então última vez que isso aconteceu foi na convocação para

a Copa do Mundo de 1934, quando o técnico Luis Vinhaes convocou o atacante Patesko,

então pertencente ao Club Nacional de Football, do Uruguai. Mesmo assim permanecia o

tabu de nunca um jogador brasileiro ter sido convocado para uma Copa do Mundo enquanto

atuava na Europa. Esse fenômeno começa em 1982 e se desenvolve nos anos seguintes a

ponto de atualmente a Seleção Brasileira conter mais jogadores que atuam na Europa do que

em clubes brasileiros. Em 1982, eram os jogadores: Paulo Roberto Falcão, meio-campista da

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Associazione Sportiva Roma e o atacante Dirceu do Club Atlético de Madrid. Como a

tendência era de exportação dos jogadores, vários dos convocados em 1982, logo em

seguida passaram a atuar no futebol europeu, como o lateral-esquerdo Júnior; o volante

Toninho Cerezo e os meio-campistas Sócrates e Zico.

A Copa de 1982 foi realizada entre os dias 13 de junho a 11 de julho, contendo 24

participantes, o maior número de uma competição que, desde 1934, reunia 16 participantes.

Abaixo que isso apenas em 1930, na primeira edição, quando 13 seleções nacionais

disputaram o título na anfitriã Uruguai. Fazia parte do projeto de João Havelange não só

aumentar o número de participantes como inserir continentes historicamente esquecidos

como a África e a Oceania. Com relação ao continente africano, pela primeira vez, passaram

a ter dois representantes, um número que só tenderia a aumentar com o passar dos anos. Nas

edições de 1934, 1970, 1974 e 1978 a África contou com apenas um participante.

Na primeira fase, a Seleção Brasileira ficou no Grupo F com União Soviética,

Escócia e Nova Zelândia. Provando seu favoritismo, a bela geração comandada por Telê

Santana terminou a primeira fase com 100% de aproveitamento. Venceram os soviéticos do

bom goleiro Rinat Dessaev por 2 a 1; golearam os escoceses do atacante Kenny Dalglish por

4 a 1; e na última rodada derrotaram os neozelandeses por 4 a 0. Foram duas goleadas e uma

vitória contra uma tradicional seleção europeia, fazendo do Brasil franco favorito no Grupo

03 da segunda fase, onde ficou junto com Argentina e Itália.

Os argentinos haviam se classificado em segundo lugar no seu grupo, já os italianos

passaram de fase após colecionar três empates. No primeiro jogo do grupo, os italianos

desencantaram e venceram a Argentina por 2 a 1. No segundo jogo do grupo, os argentinos

voltaram a perder, mas dessa vez para o Brasil que vingava o ocorrido na Copa de 1978 ao

vencer por 3 a 1. Porém, no último jogo do grupo, a Seleção Brasileira perdeu para a Seleção

Italiana por 3 a 2 e via o sonho do tetracampeonato se perder pelo caminho. Com três gols

do atacante italiano Paolo Rossi, a excelente geração canarinha se despedia da Espanha e via

a Itália se sagrar tricampeã mundial, igualando a marca brasileira. Todos os jogos do grupo,

aconteceram no lendário Estádio Sarrià, demolido em 1997.

Para entender o significado simbólico da eliminação em 1982, utilizamos o conceito

de Hermenêutica da Derrota. Desenvolvido por Leda Costa (HELAL; CABO, 2014), a

Hermenêutica da Derrota visa interpretar os sentidos ocultos (ou imaginadamente ocultos)

de uma derrota da Seleção Brasileira, principalmente, sua repercussão entre a imprensa

esportiva. Essa imprensa assim tratou a seleção de 1982 antes da realização da Copa:

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Havia um aparato discursivo que colocava em circulação uma série derepresentações e significados que iam sendo anexados àquela seleção.Representações relacionadas ao futebol-arte, tão caro à imagem e àautoimagem do futebol brasileiro. A seleção de 1982 foi compreendida pormuitos como aquela que traria de volta um futebol especial (HELAL;CABO, 2014, p. 180).

Essas representações em torno da seleção de 1982 retornavam como uma crença em

um contexto de desilusão na esfera política e econômica. Desilusão que afetava até o próprio

futebol, vide a crise que se instalava no Brasil e que analisamos acima. Em meio a esses caos

surge uma geração de jogadores que, em campo, parecem retornar as imaginadas origens

e/ou raízes do futebol nacional. Muitos comportamentos humanos não são justificados por

preceitos científicos, pelo contrário, a ciência é uma construção recente que não consegue

lidar com todas as reações e comportamentos humanos.

Dentre esses comportamentos está a crença, normalmente vinculada a seres

superiores, intuições ou em ações que outrora “deram certo”. O último aspecto se vincula ao

contexto analisado, pois foi através do futebol-arte que o Brasil superou o complexo de vira-

latas e conquistou um tricampeonato inédito. Sem Nelson Rodrigues, falecido em 1980, mas

com outros nomes que ganhavam destaque nacional como o paulista Juca Kfouri, a imprensa

esportiva assim imaginava o futebol-arte em torno dos comandados por Telê Santana:

Telê desenvolveu a magia que esquecemos como ideologia de jogo edeixou o resto a cargo dos jogadores. Deu certo. E digo que deu certo semtemor. Podemos até não conseguir o tetra […] mas o mais importante foiconquistado. A beleza, a sutileza, o encantamento com que fizemos dofutebol uma arte misteriosa para a maior parte do mundo. Nosso feitiço estáde volta, irremediavelmente estabelecido […] (Placar, 25 jun, 1982 apudHELAL; CABO, 2014, p. 180).

Os dizeres de Juca Kfouri tem elementos importantíssimos a serem destacados.

Primeiro, a imediata defesa de uma suposta derrota na competição. Independente do que

vier, a seleção de 1982 permanecerá no imaginário como representante do futebol-arte

brasileiro. “Ora, a crença é mantida e transmitida justamente pelo seu significado, nem

sempre pelos seus resultados imediatos e funcionais” (DAMO, 2005, p. 8). As características

do que seria esse futebol-arte parecem viver perante o tempo: prática bela e encantadora.

Tratado como detentor de uma feitiço, o futebol-arte em 1982 só foi derrotado por uma

tragédia. O termo Tragédia de Sarrià em referência a vitória italiana, não poderia ser melhor.

Afinal, à concepção de tragédia remonta da Grécia Antiga significando uma crença de que as

ações dos indivíduos eram mediadas pela vontade dos deuses. Ou seja, vontade cuja

motivação fugiam ao conhecimento humano. Assim sendo,

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Em virtude da interferência dos deuses, a cobrança pela responsabilidadedos indivíduos sobre os acontecimentos perde o sentido, já que a açãohumana estaria sob influência da vontade divina. Por causa dessa limitaçãoda ação humana, os heróis trágicos costumam despertar a compaixão dopúblico (HELAL; CABO, 2014, p. 183).

Se até o primeiro título mundial em 1958 os fracassos da Seleção Brasileira eram

creditados pela suposta instabilidade emocional dos jogadores, agora se coloca a culpa no

acaso. Se nas derrotas nos anos de 1970 a culpa foi de abandono das raízes, em 1982 foram

os “deuses do futebol” que assim quiseram, pois a praticabilidade do futebol-arte foi

exercida em campo. Se funda uma crença de que o futebol-arte brasileiro não pode ser

derrotado pelo mérito do adversário, pois quando colocado em prática sempre é sinônimo de

vitória. Com a excepcionalidade, que foi a edição de 1982, o que se viu foi a edificação dos

jogadores mesmo diante da derrota junto a “um sentimento de compaixão em relação a uma

geração tomada como singular na história do futebol nacional” (HELAL; CABO, 2014, p.

176). Em suma, o futebol-arte não pode ser derrotado por forças humanas, segundo essa

narrativa.

A edição de 1982 foi realmente repleta de novidades e na música foi a primeira vez

que um jogador lançava um disco alusivo à Copa do Mundo. O lateral-esquerdo Júnior,

jogador do Clube de Regatas do Flamengo, cantou a principal música quando o assunto é

Copa de 1982: Voa Canarinho, também título do compacto gravado pela RCA Victor.

Composta por Alceu Maia, diz o início da canção: “Voa canarinho, voa/ Mostra pra esse

povo que és um rei/ Voa canarinho, voa/ Mostra na Espanha o que eu já sei”. A sutileza, um

dos adjetivos que Juca Kfouri utiliza na descrição da seleção de 1982, aparece

implicitamente nesta letra no ato de voar. No futebol, o termo “voar” é sinônimo de ótimo

desempenho. Por isso se diz que determinado clube ou atleta, quando está em boa fase, “está

voando”31 32. Logo, o começo (que também representa o título) da música espera que a

Seleção Brasileira tenha um rendimento alto na Espanha.

A música segue diferenciando o brasileiro dos outros povos, sendo o papel dos

jogadores mostrar para esses povos a realeza do futebol brasileiro. Vale lembrar que até o

lançamento da canção, o Brasil era o único tricampeão mundial, só sendo alcançado pela

Itália no fim da competição. E após o retorno do “Voa canarinho, voa”, surge a menção

31 Quase profissional, brasileiro ‘voa’ em time japonês do torneio de Neymar. UOL, 12 jul. de 2019.Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/lancepress/2019/07/12/quase-profissional-brasileiro-voa-em-time-japones-do-torneio-de-neymar.htm>. Acesso em: 06/01/2020.

32 Palmeiras usa tecnologia para fazer o time ‘voar’ em campo. Estadão, 10 mar. de 2015. Disponível em:<https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,palmeiras-usa-tecnologia-para-fazer-o-time-voar-em-campo,1641443>. Acesso em: 06/01/2020.

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indireta ao futebol-arte que deve ser mostrado na Espanha e que o povo brasileiro já sabe

como é a sua prática. Isso mostra o porquê “toda tradição inventada, na medida do possível,

utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal”

(HOBSBAWM; RANGER, 1984, p. 21). Esse “o que eu já sei”, remete não só as atuações

da seleção de 1982 como pode fazer uma alusão implícita as outras edições em que o Brasil

saiu vitorioso, comprovando sua realeza no futebol. Enxergamos as categorias

“diferenciação” e “nacionalidade”, pois no primeiro caso encontramos menção ao que seria

o futebol-arte brasileiro (“Mostra na Espanha o que eu já sei”) e no segundo caso coloca à

nação como superior no futebol. Ou seja, se orgulha da superioridade do Brasil não em

aspectos econômicos, sociais e/ou políticos mas sim por intermédio do futebol que acaba

sendo uma espécie de substituto desses aspectos ausentes na vida cotidiana.

Segue a canção: “Verde, amarelo, azul e branco/ Forma o pavilhão do meu país/ O

verde toma conta do meu canto/ O amarelo, azul e branco/ Fazem o meu povo feliz”. O povo

brasileiro em sua diferentes classes sociais, se vincula aos símbolos oficiais do país “que

sempre foram propriedade de uma elite restrita e dos militares, aos seus valores mais

profundos” (DAMATTA, 2006, p. 165). Em seu sentido militar, a palavra “pavilhão”

significa instrumento de música militar que consta de um pequeno cone guarnecido de

campainhas. Talvez esse seja o sentido dado a “pavilhão” na letra, pois em seguida se refere

ao canto como expressão do torcedor brasileiro. A ligação entre o futebol e termos militares,

também visto em outras canções, tem um significado importante. Afinal,

Ao contrário dos uniformes das equipes que representam clubes, que salvoexceções são tomados por anúncios, a FIFA restringiu a presença dasmarcas nos uniformes das seleções e com isso garantiu uma condiçãoessencial de verossimilhança com os fardamentos dos exércitos nacionais,que tampouco utilizam patrocinadores. Tal associação, como mostramos nocapítulo anterior, é fundamental para mobilizar o interesse de um públicoamplo e não apenas dos aficionados pelo futebol (DAMO; OLIVEN, 2014,p. 60).

Em toda estrofe, podemos sentir a presença da categoria “coletividade”, assim como

veremos nas estrofes seguintes. Segue a descrição da pátria em chuteiras em período de

Copa do Mundo: “E o meu povo/ Toma conta do cenário/ Enaltece o que ele faz/ Bola

rolando e o mundo se encantando/ Com a galera delirando/ Tô aí e quero mais”. O pavilhão

que se envolve e se orgulha das cores nacionais, parece estar jogando com os atletas com o

“Tô aí e quero mais”, fazendo do torcedor uma espécie de décimo segundo jogador que atua

só no ato de torcer. Para o clássico Nelson Rodrigues, é exatamente isso que ocorre:

Não me venham dizer que o escrete é apenas um time. Não. Se uma equipeentra em campo com o nome do Brasil e tendo por fundo musical o hino

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pátrio – é como se fosse a pátria em calções e chuteiras, a dar botinadas e areceber botinadas (RODRIGUES, 1993 apud SILVA, 1997, p. 59).

A canção Voa Canarinho, retorna a mencionar o futebol-arte, diferente das analisadas

durante os anos de 1970. Pela presença de material humano capaz de reproduzir a imaginada

raiz do futebol brasileiro, a categoria “diferenciação” retorna em 1982 e se espera que os

jogadores mostrem na Espanha o que sabemos fazer com realeza. Como dissemos, a

cidadania deslocada da categoria “nacionalidade” se encontra presente em um país que se

orgulha do futebol em vista da escassez em outros aspectos da vida; mas em termos

quantitativos a categoria “coletividade” é mais uma vez superior às demais, mostrando as

características do que seria uma pátria em chuteiras pulsante em períodos quadrienais. O

sucesso da música foi assim descrito:

Com vinte dias de lançamento, esse compacto vendeu cerca de 620 milcópias, consagrando-se como um sucesso popular e tendo recebido disco deouro, sendo cantado em toda e qualquer reportagem sobre a seleçãobrasileira (LUNA, 2011, p. 252).

Ainda segundo Paulo Luna (2011), dois foram os fatores que ajudaram no sucesso da

música. Primeiro, o euforismo em torno da seleção montada pelo técnico Telê Santana, vista

como a responsável por resgatar o futebol-arte; e, por outro lado, o apoio midiático recebido

pela TV Globo que não só reproduzia a canção em seus comerciais como chegou a lançar um

concurso para escolher a rua mais enfeitada do país, mobilizando grande parte da população

e trazendo empolgação em um contexto de decadência da Ditadura Militar. Por sua

representatividade e alcance, Voa Canarinho se inclue na galeria de clássicos como Pra

Frente Brasil e A Taça do Mundo é Nossa.

Como vimos, antigas tradições foram criadas em torno de uma Copa do Mundo que

se inseria no chamado período pós-moderno do futebol, caracterizado pela quebra das

fronteiras e dos estilos nacionais. Se por um lado o processo de exportação de jogadores

dava seus primeiros passos, com a convocação pioneira de dois atletas que atuavam na

Europa; do outro foi possível perceber anacronismos de uma edição que reverenciou o

retorno do imaginado futebol-arte e fez questão, musicalmente falando, de descrever a

empolgação e a felicidade que a pátria em chuteiras sentia ao acompanhar mais uma edição

de Copa do Mundo.

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CAPÍTULO 4 - AS TRADIÇÕES EM MEIO A CRISE DA PÁTRIA EMCHUTEIRAS: OS ANOS 1990 e 2000

Após a Copa de 1982 o Brasil passou por agitações políticas que culminaram na

queda da Ditadura Militar. João Figueiredo, que assumira desde março de 1979, teve que

enfrentar após a Copa do Mundo uma eleição geral realizada em novembro de 1982. O

eleitorado brasileiro foi chamado pela primeira vez desde os anos de 1960 para eleger

diretamente seus Governadores, Senadores, Deputados Federais e Estaduais. Neste pleito

vigorou o chamado “voto vinculado”, ou seja, o eleitor precisava votar em candidatos de um

mesmo partido para todos os cargos em disputa. Com o fim do bipartidarismo em 1979,

através da chamada “Lei Orgânica dos Partidos Políticos”, siglas alternativas foram criadas

como o Partido dos Trabalhadores (PT), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o

Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Além dessas siglas, a ARENA deu lugar ao Partido

Democrático Social (PDS) e o MDB deu origem ao Partido do Movimento Democrático

Brasileiro (PMDB).

O PDS viu a distância para o PMDB ser ainda mais encurtada e, junto com os demais

partidos de oposição recém-criados, os descendentes do MDB formaram a maioria na

Câmara dos Deputados. Entusiasmada pelo resultado nas eleições de 1982 a oposição tratou

de apresentar em março de 1983 uma emenda constitucional que marcava as eleições diretas

para Presidente da República, em 1985. Em abril, aproveitando o potencial da proposta, o

PMDB lançou Ulysses Guimarães como candidato e iniciou uma campanha nacional junto

com outros partidos políticos, movimentos sociais e setores da Igreja Católica. Era a

campanha das “Diretas Já” que surgia, ganhando força em todo o país. Sobre essa campanha

cívica:

Superou de longe os muros da política de Brasília para envolver asociedade civil – jornais, como a Folha de S. Paulo, assumiram acampanha; foram criados camisetas, adesivos e slogans alusivos aomomento; artistas, como Chico Buarque e Elba Ramalho, animavam oscomícios que reuniam milhares de pessoas e que sempre terminavam com oHino Nacional – cantado por Fafá de Belém num arranjo nada marcial(GUTERMAN, 2014, p. 215-216).

A campanha “Diretas Já” ganhou adeptos, inclusive do universo futebolístico.

Jogadores de alcance nacional com o meio-campista Sócrates, visto como representante do

futebol-arte brasileiro, participou ativamente das manifestações; assim como o locutor

esportivo Osmar Santos. Em abril de 1984, o governo Figueiredo conseguiu barrar a emenda

constitucional que precisava de 320 votos para ser aprovada, que obteve insuficientes 298

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votos. Porém, a votação mostrava as divisões internas no PDS, pois 55 deputados do partido

votaram a favor das eleições diretas, causando desconforto e constrangimento entre os

apoiadores de João Figueiredo. Contudo, os governistas não conseguiam derrotar a crise

econômica que assolou o país como consequência da política desenvolvimentista dos

governos Médici e Geisel.

Enquanto isso, o PIB brasileiro recuou 5% em 1983, um tombo espetaculare inédito na história nacional. A renda per capita do Brasil caiu 7,3%. Acapacidade ociosa da indústria nacional – isto é, a diferença entre o que éproduzido e o que poderia ser produzido – chegava a 50%. O desempregosubiu 15%, comparado a 1978. Finalmente, a inflação em 1983 chegou aespantosos 211% ao ano, e os salários perdiam seu valor cinco vezes maisrápido do que em 1978 (GUTERMAN, 2014, p. 214).

Frente ao cenário caótico na economia e após a derrota da campanha “Diretas Já”, o

restante do ano de 1984 foi para saber quem seria o sucessor de João Figueiredo nas eleições

indiretas marcadas para janeiro de 1985. No PDS, três nomes disputaram o título de sucessor

do general. Foram eles: o vice-presidente Aureliano Chaves, o ministro do Interior Mário

Andreazza e o Deputado Federal Paulo Maluf. Após articulações internas, o paulista Maluf

foi o escolhido pelo PDS como seu candidato. Já a oposição aglutinou suas forças em torno

do mineiro Tancredo Neves, Governador de Minas Gerais com longa carreira política.

Seguindo o esperado, Tancredo foi eleito indiretamente no início de 1985 com 72,40% dos

votos válidos, contra 27,30% de Maluf. Era o primeiro presidente civil eleito após 21 anos

de Ditadura Militar. Porém, dias antes de assumir o cargo, Tancredo Neves faleceu.

Em seu lugar, assumiu o vice-presidente José Sarney, que havia sido da ARENA por

quase vinte anos. Sarney defendeu o golpe de Estado em 1964, ingressou na ARENA logo

em seguida e foi eleito (e reeleito) Senador pelo partido durante os anos de 1970 e início dos

anos de 1980; agora já sob o nome de PDS. Apenas em 1984 que Sarney ingressa no PMDB,

sendo logo posto como vice-presidente na chapa liderada por Tancredo Neves. Sendo assim,

o primeiro civil a ocupar o cargo de Presidente da República após 21 anos de domínio

militar, foi um forte apoiador e sustentador do regime. Empossado em março de 1985, com

pouca resistência por parte dos militares, Sarney iniciava a chamada “Nova República” e o

Brasil entrava em uma estabilidade política necessária para pensar na Copa do Mundo que se

aproximava.

No futebol ocorreram significativas mudanças entre 1982 e 1986. A nível

internacional o futebol europeu se profissionalizava ainda mais. A profissionalização fora

dos gramados, repercutia na forma de jogar dos clubes e seleções. Dando uma maior atenção

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ao lado tático e físico dos atletas, o futebol nos anos de 1980 se modificou. Típico da era

pós-moderna:

As variações táticas envolviam tentar deixar a defesa mais forte: sejajogando com um “varredor”/líbero ou com “quatro recuados”; seja jogandocom um ala (dois seriam desperdício) ou com um homem extra no meio decampo. O fim da modernidade do futebol viu o sistema 4-4-2 predominar,principalmente na Inglaterra, com o qual as antigas esquadras britânicas doLiverpool, Nottingham Forest e Aston Villa venceram uma sucessão deCopas Européias. Numa era de nivelamento e de desaparecimento dediferenciais de habilidade, o zagueiro que dava cobertura podia jogar comoponta, enquanto os meias-armadores eram forçados a trabalhar na defesa(GIULIANOTTI, 2002, p. 174).

Além dessas mudanças táticas, o futebol nos anos de 1980 representou o início do

poderio financeiro dos clubes italianos. Após a Copa de 1982 alguns destaques da Seleção

Brasileira rumaram para o país que começava a reunir os principais jogadores do mundo em

torno de seu campeonato nacional. Além de Falcão na Roma, que já estava no país antes da

Copa do Mundo ser realizada, outros o seguiram, como Júnior, contratado pelo Torino

Football Club; Sócrates, contratado pela Associazone Calcio Firenzi Fiorentina e Zico,

contratado pela Udinese Calcio. Isso só para citar os principais nomes, pois o número de

jogadores exportados durante os anos de 1980 não tem precedentes. E um ano após a Copa

de 1982, oito atletas da Seleção Brasileira estavam jogando na Europa. Nesse mesmo

período, as médias de público dos principais campeonatos do Brasil começaram a cair

(HELAL, 1997), aguçando a crise do futebol brasileiro anunciada desde meados dos anos de

1970.

Segundo dados apresentados por Ronaldo Helal (1997), o ano de 1980 teve 76

vendas de jogadores brasileiros para o exterior contra 51 em 1979. Em 1981 e 1982, esse

número passa para 154 vendas em cada ano. Entre as principais causas dessa exportação,

estavam: “Na situação contemporânea, os jogadores deixam o país por dois motivos: a) é a

oportunidade de tornarem-se financeiramente independentes; e b) é o meio pelo qual os

clubes aliviam seus problemas econômicos” (HELAL, 1997, p. 77). Apesar desse número

significativo no início da década, o ano de 1986 somou 96 vendas. Número bastante alto em

comparação com números antes dos anos de 1980, mas que mostrava uma redução na

comparação com a tendência da década. Sendo assim, entre os convocados para a Copa do

Mundo de 1986, sediada no México, apenas três jogavam na Europa. Em comparação com

1982, havia mais um atleta jogando fora do Brasil, entretanto, a tradição da maioria dos

jogadores atuarem no país permanecia mantida apesar do aumento das exportações visto

acima.

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Falcão, Sócrates e Zico haviam retornado ao futebol brasileiro após passagens pela

Itália. Apenas o lateral-esquerdo Júnior e o zagueiro Edinho, vendidos para o futebol italiano

após a Copa de 1982, permaneceram jogando no exterior. Para comandar o Brasil nessa nova

jornada rumo ao tetracampeonato, Telê Santana foi escolhido novamente pela CBF, após

passagem na Arábia Saudita. Eliminado nas quartas-de-finais pela França do atacante Michel

Platini, o Brasil terminou o mundial em quinto colocado na classificação geral após quatro

vitórias e um empate.

A Seleção Brasileira venceu seus três primeiros compromissos na primeira fase, onde

ficou no Grupo D, contra espanhóis (1 a 0); argelinos (1 a 0) e norte-irlandeses (3 a 0). Nas

oitavas-de-finais, os comandados de Telê Santana golearam a Polônia por 4 a 0. Mas se

despediu nas quartas-de-finais após empatar com os franceses no tempo normal (1 a 1) e

perder na disputa por pênaltis (3 a 4). Seguindo 1982, a edição de 1986 também reuniu 24

seleções, mantendo a expansão mundial do evento; marca da gestão João Havelange. Os

anos de 1980, marcado pelo intenso desenvolvimento do futebol em sua era pós-moderna,

terminou com mais uma derrota para os brasileiros. Perdeu para os italianos em 1982, apesar

daquela geração mágica; perdeu a taça Jules Rimet, derretida por ladrões em 1983; em

seguida, perderia a emenda das “Diretas Já”, em 1984, e o presidente Tancredo Neves

morreria, em 1985; finalmente, perdeu para a França na Copa de 1986. Eram doses enormes

de decepção de um país à mercê de seus fantasmas. Na música, via-se o seguinte:

Com os eflúvios das Organizações Globo, através da Som Livre, foilançado o LP Mexicoração, com música título de Michael Sullivan, PauloMassadas e Luís Campos, que embalou o personagem “Araken, o showman”, que aparecia em vinhetas incentivando a seleção e gozandoadversários. O disco contou com uma turma hoje absolutamentedesaparecida de qualquer mapa, como a Turma da Seleção, o Coral doCaneco, o cantor Santa Cruz e o grupo Gool 86. Mas trazia também nomesfamosos como a cantora Gal Costa, em grande sucesso, o cantor LuizAyrão e os grupos que haviam surgido na jovem guarda: Os Incríveis eGolden Boys (LUNA, 2011, p. 255-256).

Diz a letra de Mexicoração em suas duas primeiras estrofes: “Mexe, mexe, mexe

coração/ Vamos que vamos que essa bola vai rolar/ Mexe, mexe, mexe coração/ Tanta

emoção vai ser difícil segurar/ Vai mais, vai mais Brasil/ Povo guerreiro, mensageiro da

esperança” e “Vai no peito e na raça/ Buscar nossa taça/ E ensinar pro mundo inteiro a sua

dança”. A música contém elementos contidos em canções anteriores, seguindo a lógica das

tradições inventadas. A flexão do verbo “ir” na primeira pessoa do plural, “vamos”, indica

uma ideia de coletividade de uma nação que caminha junto com o selecionado nacional em

períodos de Copa do Mundo. Esse envolvimento desperta emoções a partir do momento em

que a bola começar a rolar, ou seja, volta-se à ideia de pátria em chuteiras e à categoria

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“coletividade”. Através do futebol, o brasileiro se enxerga como um “povo guerreiro” e

“mensageiro da esperança”, dando a ideia de que esse esporte é um caminho para que essa

comunidade nacional crie imaginações sobre si mesma. Essas imaginações são aqui

positivas, o que cai na ideia de cidadania deslocada, vista na categoria “nacionalidade”.

A menção ao “mundo inteiro” a quem deve-se ensinar “a sua dança” remete a uma

busca de diferenciação do brasileiro com os demais povos e essa diferença é vista na forma

como jogamos futebol. É o retorno a dança dionisíaca freyreana onde predominam “os

nossos, os nossos pitu’s, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma

coisa de dança e de capoeiragem que marca o estilo brasileiro de jogar foot-ball” (FREYRE,

1934, p. 4). Por isso encontramos a categoria “diferenciação”, fazendo menção ao futebol

dançarino ou futebol-arte que marca o nosso estilo nacional.

Por fim, a última estrofe: “Ginga pra lá, gol!/ Ginga pra cá, Brasil!/ E reviver mais

uma vez a emoção/ Ginga pra lá, gol!/ Ginga pra cá, Brasil!/ Mostra pro mundo que o Brasil

é o campeão”. As menções às gingas, assim como expressar para o mundo “que o Brasil é o

campeão”, caem na categoria “diferenciação”, onde o Brasil se diferencia dos demais pela

ginga e o futebol vitorioso. Quanto à repercussão, a música caiu no esquecimento após a

eliminação do Brasil frente aos franceses. Mas o LP Mexecoração, ao conter antigas canções

como A Taça do Mundo é Nossa e Pra Frente Brasil, busca fazer uma continuidade com o

passado, implicando nas reflexões desencandeadas pelo conceito de tradições inventadas

(HOBSBAWM; RANGER, 1984).

Mesmo diante de uma crise do futebol brasileiro, vista na queda de público dos

principais campeonatos do país mais a crescente exportação de jogadores, tradições

permaneceram sendo levantadas em 1986. Os produtores desse conteúdo permaneciam

achando que, em períodos de Copa do Mundo, o ufanismo e a exaltação de velhas tradições

ainda surtiam efeitos positivos na sociedade brasileira. No plano futebolístico, os anos de

1980 são marcados pelo desenvolvimento do futebol europeu, inovações táticas, crise

interna e antigas tradições levantadas nas canções. Veremos como se deu o processo durante

os anos de 1990, passando rapidamente pela Copa de 1990 e focando na mais emblemática

do período, a Copa de 1994.

4.1 1994: TETRACAMPEONATO COM DIREITO A REPLAY

Após a Copa de 1986 o Brasil passou por sua primeira eleição direta para Presidente

da República, após o golpe de Estado, então realizada em 1989. Com número recorde de

candidatos, as eleições presidenciais de 1989 terminou com a vitória de Fernando Collor de

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Melo do Partido da Reconstrução Nacional (PRN). Collor assumiu em março de 1990 tendo

que resolver problemas crônicos herdados do governo José Sarney, como a hiperinflação.

Surfando no anticomunismo, Collor venceu defendendo em sua campanha o modelo

neoliberal que vinha sendo posto em prática na Grã-Bretanha, com a Primeira-Ministra

Margaret Thatcher, e pelos Estados Unidos, através do governo Ronald Reagan.

Dias após sua posse, ele anunciou o Plano Brasil Novo, chamado popularmente de

Plano Collor. Visando a implementar o modelo neoliberal, anunciou medidas, como o

retorno do cruzeiro como unidade monetária, substituindo o cruzeiro novo; congelou preços

e salários; eliminou incentivos fiscais para importações e exportações; aumento de preços do

serviço público como gás, energia elétrica e serviços postais; e extinção de vários institutos

governamentais assim como o anúncio de intenção do governo em demitir funcionários

públicos, visando uma redução dos gastos administrativos.

Mas a principal medida, gerando desconforto na população, foi o confisco de saldos

acima de 50 mil cruzados novos por 18 meses. As medidas adotadas pelo governo Fernando

Collor foram conduzidas pela ministra da Economia, Fazenda e Planejamento do Brasil, a

economista Zélia Cardoso de Mello, prima do Presidente eleito. Por conta da reação às

medidas, Zélia Mello foi demitida do cargo em maio de 1990. Marcílio Marques Moreira foi

seu sucessor e mentor do Plano Collor II e do Plano Marcílio, todos postos em prática em

1991 e ambos fracassados.

No futebol, a década de 1990 foi marcada pela falência da maioria dos clubes

brasileiros, fazendo destes meros exportadores de atletas. O destino desses jogadores era o

continente europeu, altamente profissionalizado em sua gestão. E tentando replicar o modelo

europeu:

O desejo de parecer “moderno” fez Collor escolher Zico, e não umburocrata qualquer, para seu Ministério dos Esportes. O ex-craque seguiu àrisca o modelo e propôs a extinção do “passe” (vínculo dos jogadores defutebol aos clubes), frequentemente comparado à escravidão, e quispermitir que os clubes se tornassem empresas – a “profissionalização” doscartolas era um discurso muito comum na época, como se disso dependessea salvação do futebol brasileiro. A lei foi bastante desfigurada graças aotrabalho dos dirigentes, mas o que importa, aqui, é que Zico respondia apressões conjunturais óbvias (GUTERMAN, 2014, p. 230).

Foi neste contexto de crise econômica aguda que a Copa do Mundo de 1990 foi

realizada na Itália, país que detinha a hegemonia do futebol entre os clubes. Foi uma das

edições mais fracas tecnicamente, sendo a que teve a menor média de gols na história da

competição. De 52 partidas, o resultado que mais se repetiu foi o 1 a 0, visto em 10

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confrontos. Para comandar a Seleção Brasileira foi contratado por Ricardo Teixeira

(presidente da CBF desde janeiro de 1989) o técnico Sebastião Lazaroni. Após ser campeão

carioca nos anos de 1986, 1987 e 1988 Lazaroni adotou o modelo de jogo considerado

moderno, inibindo a antiga criatividade do jogador brasileiro. Jogando um futebol

pragmático e centrado na obediência tática, a Seleção Brasileira se classificou

tranquilamente para a Copa de 1990 após vencer Venezuela e Chile nas eliminatórias.

Também conseguiu o título da Copa América de 1989, sediada no Brasil. Tudo à base do que

ficou conhecido como “lazaronês”.

Se, na Copa de 1982, foram dois jogadores que atuavam na Europa e, na Copa de

1986, o número aumentou para três, em 1990 a lista dos convocados contou com inéditos 12

atletas que atuavam no futebol europeu. Foi a primeira edição em que os jogadores atuantes

no exterior ficaram acima do número de jogadores que atuavam no Brasil, sendo uma

tendência aumentada edição após edição. O “futebol lazaronês” praticado pela Seleção

Brasileira resultou em três jogos e três vitórias na primeira fase, onde o Brasil ficou no

Grupo C junto com Costa Rica, Escócia e Suécia.

Porém, após vencer a tradicional Suécia por 2 a 1 no primeiro jogo, o Brasil venceria

Escócia e Costa Rica pelo placar mínimo de 1 a 0. Nas oitavas-de-finais, o 1 a 0 também foi

responsável por nossa eliminação frente a Argentina, que seria vice-campeã após perder à

final para a Alemanha Ocidetal. Placar do jogo? 1 a 0. O símbolo daquela Copa do Mundo

foi o volante Dunga, que, “Nesse período, encarnou a ‘modernidade’ do futebol: era um

jogador com senso tático, excelente passe e objetividade. Não brilhava, mas era eficiente”,

por isso que “Não é por outra razão que aquele período do futebol brasileiro – que, para

muitos, ainda não foi superado – ficou conhecido como Era Dunga” (GUTERMAN, 2014, p.

234).

O baixo entusiasmo do público brasileiro com a Copa do Mundo, frente o caos

econômico que o país enfrentava mais o futebol pouco vistoso da Seleção Brasileira,

acarretou consequências e “a produção musical destinada à celebração daquele certame ficou

mais por conta das emissoras de televisão que tentaram, através de clipes promocionais,

tocar a bola pra frente” (LUNA, 2011, p. 259). E como bem retrata a revista Placar:

Se hino garantisse o tetra, o Brasil não precisaria sequer entrar em campo.Afinal, as quatro maiores redes de televisão já lançaram clipes commúsicas que tentam repetir o sucesso da imortal “Pra frente Brasil”, de1970. A Globo, que não é boba, passou essa tarefa para Michael Sullivan ePaulo Massadas – dupla que nos últimos seis anos ganhou noventa discosde ouro (100 mil cópias vendidas. “‘Para frente Brasil’ foi composta naterra de Pelé, Três Corações”, conta Sullivan. Ironicamente, a Manchete foiatrás do ex-supervisor musical da Globo, Guto Graça Mello, para equilibrar

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a briga. “Fizemos uma primeira letra, rejeitada por ser muito ufanista”,conta o autor de “Avante Brasil”. A Bandeirantes, porém, optou por umareceita caseira: Daltony Nóbrega, diretor musical da emissora, que levoudois dias para concluir “Pedra 90”. Enquanto o SBT atacou com o trioRoberto Manzoni, diretor do programa Viva a noite, e Marco AntônioPassoto, autores da famosa “Dança da galinha azul” para emplacar com o“Brasil é bom de bola”” (Placar, nº 1031, 23 mar. 1990, p. 28 apud LUNA,2011, p. 259-260).

Após o fracasso na Copa do Mundo de 1990, a chamada “Era Dunga” ainda passaria

por outros sufocos. O primeiro, na Copa América de 1991, quando o Brasil passou da

primeira fase da competição em segundo lugar em um grupo com Colômbia, Uruguai,

Equador e Bolívia. O Brasil só não foi eliminado porque apesar de empatar com os

uruguaios no saldo de gols, obteve dois gols a mais que a celeste olímpica. Na segunda fase,

ficou em segundo novamente e viu a Argentina tornar-se campeã. No comando técnico

estava Paulo Roberto Falcão, ídolo como jogador, e substituto de Lazaroni. Mas Falcão não

suportou a pressão por ter perdido a Copa América e foi demitido.

Para seu lugar a CBF trouxe Carlos Alberto Parreira, membro da comissão técnica na

Copa de 1970; última vencida pelo Brasil até então. Assumindo em outubro de 1991,

Parreira só conseguiu classificar o Brasil para a Copa do Mundo de 1994 na última rodada

das eliminatórias. O jogo foi marcado por uma exibição espetacular do atacante Romário,

autor dos dois gols da vitória brasileira sobre o Uruguai, no Maracaña. Dentre os

convocados para a Copa do Mundo de 1994, sediada nos Estados Unidos, a Seleção

Brasileira contou com 11 jogadores que atuavam no exterior. Foram 10 atletas atuantes na

Europa e um no Japão, país que desde fins dos anos de 1980 começou a popularizar o

futebol. Romário era a principal estrela dos convocados, sendo uma expressão isolada do

futebol-arte em meio a “Era Dunga”, marcada por jogadores menos habilidosos e mais

pragmáticos.

Romário é um elemento reforçador de nossa suposta identidadefutebolística, em um elenco reconhecido mais por sua disciplina tática eforça do que por seus talentos individuais. Paradoxalmente, ele representouum momento de transição em um êxodo cada vez mais precoce de nossoscraques para o futebol europeu, parte do processo de internacionalização,profissionalização e mercantilização desse esporte em nível mundial (LeiteLopes e Faguer, 1999, p. 177 apud HELAL; CABO, 2014, p. 210).

O Brasil do período da Copa do Mundo de 1994 tinha um novo presidente, era

Itamar Franco, vice de Fernando Collor que tinha sofrido um processo de impeachment em

dezembro de 1992. Realizada nos Estados Unidos, a Copa de 1994 aconteceu entre os dias

17 de junho a 17 de julho. O Brasil ficou no Grupo B e se classificou para as oitavas-de-

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finais após duas vitórias e um empate. Sobre o futebol apresentado, observamos que grande

parte da imprensa esportiva contestava o pragmatismo de Carlos Alberto Parreira. Como

desafaba Armando Nogueira33:

O Brasil não joga o futebol do meu encantamento. Dificilmente jogará. Aconcepção tática de Parreira só funciona quando a equipe contra-ataca. Éopção dele. Está dando bons frutos. É o futebol de resultados. Entre aminha exigência um tanto romântica e o realismo incontornável deParreira, sei que o Brasil inteiro, sedento de glória, fica com Parreira.Sejamos todos felizes, eternamente (Jornal do Brasil, 25 jun. 1994, p. 8apud HELAL; CABO, 2014, p. 202).

A crítica ao futebol de resultados não era exclusiva de Armando Nogueira, outros

veículos reforçavam tal visão sobre os selecionados de Parreira. Um dos principais veículos

de comunicação do país, assim resumiu o futebol apresentado durante a primeira fase: “A

equipe, embora primeira colocada do grupo, não se livrou das pressões e das críticas feitas

pelo futebol feio” (Lance!, 29 jun. 1994 apud HELAL; CABO, 2014, p. 202-203). No mata-

mata as mesmas críticas se repetiram, como Sérgio Noronha que disse: “não fomos, nesta

Copa, o Brasil brasileiro” (Jornal do Brasil, 30 jun., p. 7 apud HELAL; CABO, 2014, p.

203). Mas o Brasil, a base do futebol de resultados, conseguiu conquistar o tetracampeonato

mundial após vencer nos pênaltis a Itália no dia 17 de julho. Seguindo a tendência de

pobreza técnica e atenção redobrada na parte tática, a final de 1994 foi a primeira a terminar

0 a 0 em toda história da competição. Também foi a primeira a ser definida nos pênaltis,

onde a Seleção Brasileira venceu por 3 a 2.

Iniciada em 1986, a tradição dos canais televisivos criarem vinhetas em período de

Copa do Mundo deu lugar a antigas canções feitas por cantores independentes. Em 1994, a

música que mais marcou a campanha brasileira foi a vinheta feita pela Rede Globo, chamada

Coração Verde e Amarelo. Diz a letra: “Na torcida são milhões de treinadores/ Cada um já

escalou a seleção/ O verde e o amarelo são as cores/ Que a gente pinta no coração”. Neste

primeiro trecho, a categoria “coletividade” se encaixa ao imaginar uma pátria em chuteiras

tão conhecedora de futebol ao ponto de escalar a Seleção Brasileira como um verdadeiro

técnico. Os “milhões de treinadores”, trazendo uma ideia geral, se alia a “Cada um já

escalou a seleção”, em um sentido mais subjetivo e particular. A emotividade da torcida que

“pinta no coração” as cores nacionais, alia conhecimento e paixão futebolística.

33 Armando Nogueira (1927-2010) foi um jornalista e cronista esportivo de alcance nacional, tendotrabalhado em veículos diversos, como Jornal do Brasil, Rádio CBN, Sportv e TV Bandeirantes. Durante aCopa de 1994, mostrou-se crítico de Parreira, que se apegaria demais a um futebol pragmático, renegando oque ele chamava de “escola brasileira”.

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Segue a vinheta: “A galera vibra, canta e se agita/ E unida grita: é tetracampeão/ O

toque de bola é nossa escola/ Nossa maior tradição”. A tradição, parte de uma escola

futebolística baseada no toque de bola, representa a categoria “diferenciação” de quem busca

traçar uma ideia do que seria o futebol brasileiro, produtor do futebol-arte. Mesmo que em

campo a Seleção Brasileira não reproduza tal estilo, como foi o caso de 1994, a memória foi

enquadrada (POLLACK, 1989) e se investiu na antiga ideia de que o Brasil é portador de

uma tradição no futebol. Segundo Lauerhass (1986), o pensamento nacionalista se

desenvolve em três aspectos: a) ideológico, através de escritos; b) institucional, através de

instituições sociais e símbolos oficiais como a bandeira, as cores, o hino etc; c) popular,

através de um sentimento supremacista. A menção às tradições no futebol, exemplifica o

aspecto popular, onde o país cria narrativas que buscam imaginá-las como entidades

grandiosas e detentoras de tradições e valores a serem defendidos. Mas também encontramos

a categoria “coletividade” de uma pátria em chuteiras que vibra, canta e se agita; gritando

unida que o Brasil será o tetracampeão. Vemos a unidade nacional em torno da Copa do

Mundo, misturando expressões como a vibração, o canto, a agitação e, por fim, o grito.

Por fim, a canção se encerra: “Eu sei que vou/ Vou do jeito que eu sei/ De gol em

gol, com direito a replay/ Eu sei que vou com o coração batendo a mil/ É taça na raça,

Brasil!”. Se no momento anterior se exaltou as tradições no futebol, aquela detentora de uma

escola marcada pelo toque de bola, a vinheta é encerrada fazendo alusão a raça como

elemento primordial para a conquista do título. Parece que a raça, elemento que não fez parte

das construções narrativas em torno do futebol-arte, sendo muito mais cara para o futebol

argentino e uruguaio, deve ser usada neste novo contexto como elemento adicional. Seria a

“Era Dunga” trazendo sua marca nas imaginações e construções em torno do futebol

brasileiro? O que podemos afirmar aqui é a presença da categoria “coletividade” em uma

música que abusa da primeira pessoa do singular (“eu sei” é utilizado três vezes neste trecho

destacado), dialogando diretamente com o telespectador. Diante disso, vale destacar o

objetivo ao abordar essa e outras canções:

Chirstopher Small, por exemplo, utiliza a expressão musicking (musicar)no sentido de sublinhar que o seu objecto de análise não é tanto a música,mas sim as pessoas que a ouvem ou compõem, que tocam, cantam emesmo as que dançam, assim como as formas como o fazem e as razõespresidem a tais práticas, as relações sociais e culturais que elas implicam eas experiências sensoriais e cognitivas que elas constituem (CAMPOS,2007, p. 77).

Mesmo após o título mundial, não se viu produções musicais representativas em

alusão a Copa de 1994. O Rap da Copa de 1994, de Hermes Dumont, Lia e Armando

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Martins, teve baixa repercussão e caiu totalmente no esquecimento. Apesar dos festejos, o

tetracampeonato em 1994 foi o primeiro título mundial do Brasil que não ultrapassou os

limites esportivos. Diferente de 1958, 1962 e 1970, vistos como elementos que afirmaram as

potencialidades da nação, 1994 foi festejado nas ruas como uma conquista meramente

futebolística de um país com tradição e história naquele esporte. O episódio envolvendo os

jogadores e a Receita Federal foi um exemplo disso. Buscando evitar a fiscalização,

colocando-se acima da lei, Ricardo Teixeira tentou impedir que a Receita Federal

fiscalizasse produtos que os jogadores haviam comprado nos Estados Unidos. O pedido foi

acatado, mas não foi bem visto pela população. “No episódio, os jogadores saíram como

muambeiros – para 70% dos brasileiros, segundo pesquisa, eles tinham que pagar os

impostos devidos – e o governo apareceu como fraco e hesitante” (GUTERMAN, 2014, p.

246).

A Copa do Mundo de 1998 também foi bastante escassa de produções musicais, se

limitando a repetição da vinheta Coração Verde e Amarelo da Rede Globo. Dos 22

convocados, 14 jogavam no exterior, ampliando o que havia sido iniciado nos anos de 1980.

E, assim como em 1994, quando Romário jogava no Futbol Club Barcelona; em 1998, o

Brasil voltava a ter seu principal jogador atuando na Europa, dessa vez era o atacante

Ronaldo, que na época jogava no Football Club Internazionale Milano. Como defende Helal

(1997), a exportação dos melhores jogadores brasileiros para a Europa foi um dos vários

fatores que contribuíram para a queda de público nos principais campeonatos do país entre

os anos de 1980 e 1990. Ronaldo, exportado aos 18 anos de idade, foi o primeiro grande

ídolo do futebol brasileiro que teve a maior parte da sua carreira feita na Europa. A Copa de

1998 também foi responsável pelo caso CBF e Nike, empresa de material esportivo acusada

de exercer seu poderio econômico sobre a Seleção Brasileira. De contrato com a CBF desde

1996, perdurando até os dias atuais, a Nike foi protagonista da seguinte situação:

Após a final da Copa de 1998, houve muitos boatos acerca dos “homens daNike” na concentração da seleção, que teriam forçado a participação deRonaldinho (mesmo sem condições físicas) na partida decisiva, por forçade um contrato de patrocínio que ele teria com a empresa. Pouco importa oque tenha ou não acontecido “de fato” no episódio. A versão apócrita,jamais confirmada (foram várias, após a derrota), fala de um sentimento derevolta pela profanação de um “símbolo sagrado”, o poder econômico“escalando” a seleção (GASTALDO, 2002, p. 59).

A profissionalização da Seleção Brasileira, processo que se intensificou a partir da

gestão Ricardo Teixeira, se resultou altos lucros e conquistas dentro do campo, gerou um

desencantamento do público com a Seleção Brasileira, vista como mais uma instituição no

país disposta a tudo para ganhar dinheiro. São contradições da ética dupla na vida brasileira

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(HELAL, 1997) que acarretará um afastamento daquela que foi durante décadas uma

homogeneizadora da sociedade brasileira. Vamos agora, nesta última parte do trabalho,

analisar a intensificação dessa crise do futebol brasileiro e as reproduções das tradições nos

anos 2000, palco de um futebol cada vez mais mercantilizado e globalizado.

4.2 2002 e 2014: DO PENTA AO MINEIRAÇO, VELHAS TRADIÇÕES ECRISE DO FUTEBOL BRASILEIRO

Os anos 2000 foi marcado pela intensificação do que Stuart Hall chama de “crise de

identidade”, com o desenvolvimento do processo de globalização. Essa crise é marcada pelo

declínio do sujeito iluminista e sociológico, dando lugar a um novo tipo de sujeito: o pós-

moderno, caracterizado pela fragmentação entre estrutura social e indivíduo. Essa

fragmentação resulta em uma multiplicidade de identidades, assim como a quebra das

antigas e construídas identidades nacionais. Sobre a não existência de uma identidade fixa e

coerente, afirma Hall:

A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é umafantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação erepresentação cultural se multiplicam, somos confrontados por umamultiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, comcada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menostemporariamente (HALL, 2006, p. 13).

Esse sujeito pós-moderno descrito por Hall é visto no universo futebolístico a partir

dos anos de 1980 através do processo de exportação para o continente europeu. A Europa

profissionaliza a gestão esportiva, seus clubes crescem financeiramente e começam a utilizar

jogadores de outros continentes, principalmente América do Sul e África. Esse processo

perpassou todo os anos de 1990 e alcançou seu ápice nos anos 2000.

Para autores como Ronaldo Helal e Antônio Jorge Soares (2003), a pátria em

chuteiras sofreu uma crise a partir da Copa de 2002. Analisando parte do material

jornalístico produzido durante essa edição, os autores concluíram que as narrativas que

sustentavam o Brasil como “país do futebol” não eram mais hegemônicas como antes.

Segundo esses autores,

O que estamos argumentando é que as narrativas jornalísticas, se tomarmoscomo referência mesmo os anos 50, apesar das diferenças entre os veículos,foram obrigadas a narrar o futebol como uma expressão da nacionalidade,tanto pela estrutura da competição das copas quanto pelo projeto nacionalque construía uma imagem homogeneizante do “ser brasileiro”, imagemessa que teve grande impulso e eficácia a partir da “Era Vargas”. Hoje,embora o projeto de nação tenha assumido outros contornos, as narrativasjornalísticas ainda tomam o futebol como emblema da nação durante a

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Copa, embora possamos já verificar uma transformação em curso noscadernos esportivos (HELAL; SOARES, 2003, p. 5).

Dentro da perspectiva aqui utilizada, acredito que assim como nos cadernos

esportivos, a tradição de compor canções durante o período de Copas do Mundo foi se

perdendo a partir dos anos 2000. Não estamos afirmando que as canções pararam de existir,

mas que perderam força entre o público, que não enxerga mais as conquistas da Seleção

Brasileira como uma vitória da nação. Como vimos, desde a Copa de 1986 que as canções

escolhidas como trilha sonora da Seleção Brasileira foram organizadas por canais televisivos

e não por cantores independentes. Em 2002, sequer os canais televisivos criaram alguma

música específica relacionada ao evento.

Se a Copa do Mundo de 1998 não logrou grandes registros musicais, a de2002, disputada no Japão e na Coreia do Sul, apresentou uma novidadeinesperada, pois duas composições não inicialmente programadas paraserem temas futebolísticos acabaram se tornando os hinos da Copa asiática:“Deixa a vida me levar”, de Serginho Meriti e Eri do Cais, gravação deZeca Pagodinho, que passou a acompanhar a seleção nos batuques entre osjogadores como música tema para as reportagens e durante a reprodução delances dos jogos, sendo totalmente associada àquela Copa. A outracomposição foi “Festa” de Anderson Cunha, interpretada por IveteSangalo, cujo refrão avisava: “O povo do gueto mandou avisar/ Que vairolar a festa/ Vai rolar” (LUNA, 2011, p. 264).

Como podemos observar, as antigas canções que aqui analisamos fizeram parte de

um dado contexto em que o futebol era visto como parte do projeto de alavancagem

nacional. O tricampeonato mundial (1958, 1962 e 1970) representou a afirmação de uma

nação que desejava ser desenvolvida. Por isso que o maracanazo e o tricampeonato mundial

foram sentidos como, respectivamente, tragédia e triunfo nacional. “Já as vitórias de 1994 e

2002 não transcederam o terreno esportivo” (HELAL; CABO, 2014, p. 214). Isso ocorreu

mesmo diante de uma convocação onde a maioria dos jogadores atuava no Brasil, o que não

acontecia desde a edição de 1986. Dos 22 convocados pelo técnico Luiz Felipe Scolari,

apenas 10 atuavam na Europa.

Porém, desses 10 atletas “estrangeiros”, oito figuravam no time titular. E dos três

restantes, apenas um não jogaria na Europa. Foi o caso do goleiro Marcos que passou toda

sua carreira na Sociedade Esportiva Palmeiras. As principais estrelas do pentacampeonato

atuavam na Europa: os laterais Cafú e Roberto Carlos; os meio-campistas Ronaldinho

Gaúcho e Rivaldo; e o atacante Ronaldo. E mais: eram estrelas ligadas não só a clubes

internacionais como também a marcas nacionais e, principalmente, internacionais. Apesar de

defender uma nação, os jogadores se transformam em figuras multifacetados, com diferentes

identificações, como é o caso do atacante Ronaldo, artilheiro da edição:

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Não devemos perder de vista de que ele é brasileiro, e isso é enfatizadopelos jornais, mas também que a imagem de Ronaldo está associada à Nikee outras marcas nacionais e internacionais. Esse processo de ‘pluralização’de identidades para além das fronteiras nacionais é que parece ser novo(BARTHOLO; SOARES; SALVADOR, 2010, p. 14).

O próprio evento da Copa do Mundo em 2002 foi um claro sinal dessa “pluralização

de identidades”, visto que os países-sede não tinham nenhuma tradição no esporte e mesmo

assim foram anfitriões. Se o Japão ao menos buscava desenvolver o futebol em seu país

desde os anos de 1980, a Coréia do Sul tinha um desenvolvimento pífio no futebol, só

conquistando sua primeira vitória em Copas do Mundo naquela edição. Essa flexibilização

das identidades nacionais não era só vista no futebol, mas também na economia. O ano de

2002 foi o último dos dois mandatos presidenciais exercidos pelo sociólogo Fernando

Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Apesar de carregar

em sua sigla o nome de social democrata, o PSDB jamais teve identidade ideológica com a

própria social democracia europeia. Pelo contrário, entre 1994 e 2002 (período do governo

FHC), o Brasil passou pela maior onda de privatizações de sua história. Inspirados na

agenda econômica ditada pelo Consenso de Washington, Fernando Henrique intensificou a

introdução do neoliberalismo no país, processo iniciado no governo Fernando Collor. Entre

as principais estatais privatizadas, estiveram a Vale do Rio Doce (fundada em 1942) e a

Telebras (fundada em 1972).

Como bem afirmou Fernando Henrique Cardoso, seu governo representava o “fim da

Era Vargas”34. A busca por um projeto nacional, característicos dos anos de 1930 até os anos

de 1970, começou a ser questionado nos anos de 1980, sendo minado a partir de 1990. O

mesmo processo foi visto no futebol, com exportação crescente de jogadores para a Europa,

queda da média de públicos dos principais campeonatos e uma visão da Seleção Brasileira

que não ultrapassava as fronteiras do esporte. As edições de 2006 e 2010 são exemplos

disso.

Na Copa do Mundo de 2006, sediada na Alemanha, ocorreu o mesmo que na edição

anterior e uma canção sem nenhuma ligação com o futebol foi escolhida como trilha sonora

da Seleção Brasileira. Assim, “a música “Epitáfio”, de Sérgio Brito, gravada pelo grupo de

rock Titãs em 2001 foi escolhido pelo treinador Parreira e pelos jogadores da seleção

brasileira como hino do time” (LUNA, 2011, p. 266). Apesar da fase excepcional que se

encontrava o meio-campista Ronaldinho Gaúcho, eleito melhor jogador do mundo em 2005,

o Brasil decepcionou e foi eliminada nas quartas-de-finais pelos franceses. O mesmo

34 FHC diz que lei é ‘fim da Era Vargas’, Folha de S. Paulo 14 de fev. 1995. Disponível em:<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/2/14/brasil/26.html>. Acesso em: 10/01/20.

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ocorreu na Copa do Mundo de 2010, realizada na África do Sul, onde apenas a música

Samba para a seleção, do sambista Neguinho da Beija-Flor, foi composto especialmente

para a Seleção Brasileira. Mas a música teve baixa repercussão, não ganhou o título de hino

da seleção em uma Copa do Mundo e o Brasil, comandado pelo técnico Dunga, foi mais

uma vez eliminado nas quartas-de-finais mas dessa vez para os holandeses.

A Copa de 2010 foi marcada por grandes eventos de ruas nos jogos da seleção, mas

“com apresentações musicais em que cantar a seleção em si não era o mais importante”

(LUNA, 2011, p. 267). É exatamente nesse ano que a FIFA introduz as FanFest, espaços

patrocinados pelas empresas associadas à entidade e ao evento em várias partes do mundo,

destinadas a entreter os torcedores. Modelo diferente às espontâneas concentrações

organizadas pelos próprios torcedores em períodos de Copa do Mundo no passado. Assim,

por ser uma produção social, a música se relaciona com o mundo exterior, sendo a redução

de canções vinculadas à Seleção Brasileira uma consequência de um dado contexto.

No momento, a seleção brasileira passa por uma fase diferente daquela queenvolveu o país e o futebol brasileiro entre 1950 e 1970, que era de franconacionalismo. Hoje, todos os titulares da seleção jogam no exterior emuitos atuaram pouco tempo no futebol do Brasil e assim a identificaçãoentre seleção e país, nos moldes de meados do século passado, torna-se umfator menos simples. Vender a seleção como um produto a mais e, aomesmo tempo, identificá-la com o país, a nação e a pátria é tarefa árduapara os publicitários (LUNA, 2011, p. 267).

A última tentativa de criar uma canção de estilo ufanista, glorificando o Brasil e suas

conquistas no futebol, ocorreu na Copa do Mundo de 2014; sediada novamente no Brasil

após 64 anos. O país foi escolhido anfitrião do evento em 2007, durante o primeiro mandato

de Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva do PT, eleito em 2002. Baseado em uma política econômica

diferente da vista durante o governo FHC, Lula liderou um novo programa

desenvolvimentista para o país que, baseado na ampliação do consumo interno e com o

auxílio de fatores externos, fizeram a economia brasileira crescer. Recepcionar um evento

internacional do prestígio da Copa do Mundo significava para o governo Lula uma

demonstração de desenvolvimento. A sua fala após a confirmação do Brasil como país-sede

demonstra o que dissemos acima:

No fundo, no fundo, nós estamos aqui assumindo uma responsabilidadeenquanto nação, enquanto Estado brasileiro, para provar ao mundo que nóstemos uma economia crescente e estável, […] com uma estabilidade[política] […] conquistada. Somos um país que tem muitos problemas, sim,mas somos um país com homens determinados a resolvermos essesproblemas (Parte do discurso proferido pelo ex-presidente Luiz Inácio Lulada Silva na ocasião do cerimonial de anúncio do Brasil como sede oficialda Copa do Mundo de Futebol FIFA de 2014, apud DAMO; OLIVEN, p.61).

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Mas, diferente de 1950, setores da sociedade civil se levantaram contra a recepção

deste evento e vários protestos ocorreram no país. Principalmente no ano de 2013, agora já

sob o governo da presidenta Dilma Rousseff, eleita em 2010 e correligionária de Lula. Era

preciso mobilizar diversos meios para justificar a vinda do evento, mesmo que ele não

trouxesse ganhos reais para a maioria dos brasileiros. Foi neste contexto que a música

Mostra tua força Brasil foi composta por Jair Oliveira e interpretada pelos cantores Paulo

Miklos e Fernanda Takai.

Diferente das antigas marchas e jingles essa música tem uma entonação mais lenta e

uma letra mais longa, como podemos observar em seguida. Diz a canção: “Vamos soltar o

grito do peito/ Deixar o coração no jeito/ Que aí vem mais uma emoção/ Vamos torcer e

jogar todos juntos/ Mostrar novamente pro mundo/ Como se faz um campeão/ Pois só a

gente tem as cinco estrelas/ Na alma verde-amarela/ E só a gente sabe emocionar/ Cantando

o hino à capela/ Pátria amada, Brasil”. Dentro das categorias que escolhemos para analisar

todas as canções presentes neste trabalho, a “coletividade” se encontra em diversos trechos

dessa primeira parte como no “Vamos torcer e jogar todos juntos”, sendo uma clara menção

a pátria em chuteiras que torce e joga junto com os selecionados. O uso da flexão do verbo ir

na primeira pessoa do plural, “Vamos”, em duas oportunidades, mostra que a música está

sendo direcionada para todos os brasileiros. É uma espécie de convite à torcida, feito sem

distinção.

A categoria “diferenciação” também se encontra presente, pois se busca “Mostrar

novamente pro mundo” o “Como se faz um campeão”, e remontando às tradições do

passado, remete às “cinco estrelas”, que são os títulos mundiais conquistados pelo Brasil. A

relação entre nós e eles, ou o Brasil e o mundo, está bem estabelecida. Como um saudosismo

do passado vitorioso, remete-se ao pentacampeonato como uma tentativa de sensibilizar os

torcedores, mencionando antigas conquistas do país. A música prossegue: “Mostra tua força,

Brasil/ E amarra o amor na chuteira/ Que a garra da torcida inteira/ Vai junto com você,

Brasil/ Mostra tua força, Brasil/ E faz da nação sua bandeira/ Que a paixão da massa inteira/

Vai junto com você, Brasil”.

A utilização da palavra “força”, pode ser enquadrada na categoria “nacionalidade”,

pois a grandeza da nação é atrelada ao futebol, como uma espécie de cidadania deslocada

debatida por Roberto DaMatta (2006). O motivo de orgulho do povo brasileiro,

principalmente dos mais humildes, aparece como sendo o futebol e não outros aspectos da

vida social. Mais uma vez a categoria “coletividade” se apresenta em uma pátria em

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chuteiras que está envolvida ao ponto de, simbolicamente, ajudar os jogadores com a garra e

paixão generalizada de uma “massa inteira” que está junto com aqueles que estão no campo.

Enfim, a canção encomendada pelo Banco Itaú marcou forte presença nos comerciais

televisivos de diversos canais. Apesar de uma lista de convocados, onde apenas quatro

jogadores atuavam no Brasil, buscou-se rememorar antigas tradições que outrora marcaram

o país em períodos de Copa do Mundo. A encomenda da canção já diz um pouco sobre a

natureza do momento, onde músicas espontâneas de diferentes cantores não mais surgiam. O

ufanismo de períodos quadrienais de Copa do Mundo, ainda visto nas ruas através dos

enfeites e das praças lotadas em dias de jogos, não mais foi acompanhado de marchas ou

jingles que reforçavam tal noção do que é o futebol brasileiro e, consequentemente, do que é

ser brasileiro. A edição de 2014 foi um ponto fora de curva, visto a necessidade de

movimentar símbolos que ajudassem na aceitação da população a esse megaevento

esportivo, realizado exatamente Brasil.

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CAPÍTULO 5 - METODOLOGIA

O presente trabalho se baseou em uma pesquisa social qualitativa, de caráter

exploratório, que visou fundamentar e contextualizar o objeto de pesquisa com o marco

teórico que o cerca. Entendendo a prática sociológica como uma interpretação, seguimos os

métodos qualitativos “visando a entender a lógica de processos e estruturas sociais, a partir

de análises em profundidade de um ou poucos casos particulares” (ABDAL; et al., 2006, p.

8). Como técnica de análise utilizamos a análise de conteúdo por seu objetivo de investigar

as comunicações através de uma densa descrição, inferindo conhecimento sobre a produção

e recepção destas mensagens. Isto é, a análise de conteúdo procura investigar o que existe

por trás da produção das mensagens, assim como sua recepção por terceiros (BARDIN,

2011).

Uma das principais características da análise de conteúdo é a diferença, através de

sua utilização, entre descrição e análise. A descrição apresenta a visão do mensageiro de

modo mais fiel, como se os dados falassem por si próprios; já na análise o objetivo é ir além

do descrito, decompondo os dados e visando as relações entre as partes decompostas. A

utilização da análise, visa a interpretação dos dados. Pois, a intepretação “é o ponto de

partida (porque se inicia com as próprias interpretações dos atores) e é o ponto de chegada

(porque é a interpretação das interpretações)” (GOMES; et al., 2005 apud MINAYO, 2009,

p. 80).

Dentre as várias maneiras de analisar os dados com base na análise de conteúdo,

escolhemos a análise temática que coloca o tema como central em suas interpretações. O

tema escolhido foi a identidade nacional, expressa nas músicas. A unidade de registro é o

tema identidade nacional, utilizando como categorização, critérios semânticos e sintáticos.

Utilizamos a criação de três categorias para basear a análise dessas letras, foram elas: a)

Categoria Diferenciação, composta pelo componente futebol-arte; b) Categoria Coletividade,

composta pelo componente pátria em chuteiras; c) Categoria Nacionalidade, composta pelo

componente cidadania deslocada.

Entendendo que as músicas reproduzidas quadrienalmente durante o período de Copa

do Mundo visam a construção de uma identidade nacional, criando tradições inventadas que

baseiam ideológica e simbolicamente comunidades imaginadas, dividimos a reprodução

dessa identidade nacional em três diferentes categorias que dialogam o marco teórico

escolhido. A primeira categoria, chamada “diferenciação”, visa captar nas letras sentidos ou

verbos, adjetivos e/ou advérbios que singularize o futebol brasileiro como uma expressão

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artística e por isso diferente dos demais. Ela dialoga com a ideia de football-mulato, fundada

pelo sociólogo Gilberto Freyre, ainda em 1938.

A segunda categoria, chamada “coletividade”, busca captar nessas letras sentidos ou

verbos, adjetivos e/ou advérbios que mostrem a menção dada a uma pátria em chuteiras que

se mobiliza (fisicamente e emocionalmente) em torno do evento Copa do Mundo, unindo

forças em torno da Seleção Brasileira. Essa categoria se vincula a ideia de pátria em

chuteiras, criada pelo jornalista Nelson Rodrigues, na descrição do que seria o Brasil e sua

ligação com o futebol.

Por fim, a terceira e última categoria, denominada como “nacionalidade”, visa

perceber como essas letras reproduzem a ideia de cidadania deslocada, conceito criado pelo

antropólogo Roberto DaMatta. Esse conceito significa que o futebol, simbolicamente,

proporciona para o povo brasileiro (principalmente os mais humildes) o contato com os

símbolos nacionais oficiais, além da possibilidade da vitória e da alegria. O futebol acaba

substituindo instituições sociais fixas, como o Estado, e propicia ao indivíduo o sentimento

de orgulho da nação, fazendo transcender feitos restritos ao universo esportivo.

Foram analisadas um total de 17 músicas, tendo a seguinte distribuição: quatro

relativas à Copa de 1962; mais quatro relativas à Copa de 1970; duas relativas à Copa de

1950; e uma (para cada edição) relativa às Copas de 1958, 1974, 1978, 1982, 1986, 1994 e

2014. Foram 10 edições de Copas do Mundo envolvidas e contextualizadas. Dentre as

categorias escolhidas, a “coletividade”, referente a pátria em chuteiras, foi a que teve maior

presença. Ela esteve presente em quinze canções; seguida da categoria “nacionalidade”, com

treze canções; e “diferenciação”, vista em dez canções.

Todas as categorias escolhidas apresentaram uma frequência, acima de 50%. A pátria

em chuteiras está em 88,23% das canções; a cidadania deslocada se encontra em 76,47% das

canções; e, por último, a categoria diferenciação esteve presente em 58,82% das letras

analisadas. Elas foram bem distribuídas por edição e apenas a categoria “diferenciação”

esteve ausente em uma Copa do Mundo, no caso, nas duas músicas analisadas de 1950.

Como dissemos, o foco das letras em 1950 esteve voltado mais para o evento que o Brasil

recepcionava do que na imaginação de um futebol-arte, tipicamente nacional.

A Copa do Mundo é um evento comparável a uma orquestra, onde jogadores,

torcedores, jornalistas e locutores esportivos se tornam um ente único em busca de mais uma

conquista, onde “Em frente a cada televisor ou rádio ligados, um grupo de brasileiros em

silêncio escuta, calado, tenso, em transe, à espera do desenlace dos fatos do jogo”

(GASTALDO, 2002, p. 19). Nas letras analisadas, a união nacional é expressa de diversas

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formas. Por exemplo, o pronome possessivo “nosso/nossa” apareceu 24 vezes das várias

estrofes analisadas. Das 17 músicas, tal pronome está presente em 13 letras, tendo um total

76,47% de frequência. Seu uso denota a tentativa de vincular as conquistas esportivas a um

projeto nacional, onde “A taça do mundo é nossa” ou “O toque de bola é nossa escola/ Nossa

maior tradição”. Se primeiro caso é o título mundial vinculado à nação, no segundo temos a

posse de um estilo de jogo tipicamente nacional.

A utilização considerável desse pronome, comprova a tese de que em períodos de

Copa do Mundo todo o contexto social, incluso as músicas, tendem a “tomar o time de

futebol pela nação” em que “também interpelam a reificação das nações através de suas

seleções de futebol” (GASTALDO; GUEDES, 2006, p. 8). Outra presença marcante nas

letras são os símbolos nacionais como a bandeira e as cores oficiais do país. Já em 1950 a

bandeira é exaltada, “Salve a nossa bandeira/ Verde, ouro e anil/ Brasil, Brasil, Brasil”;

sendo o orgulho também expresso fisicamente em trechos como “Todos juntos de bandeira

na mão” de 1974 ou, mais recentemente, expressa simbolicamente em “Mostra tua força,

Brasil/ E faz da nação sua bandeira”, de 2014. No total, os símbolos nacionais oficiais

aparecem em seis músicas, ou seja, 35,29%. Segundo DaMatta (2006), foi “através do

futebol que o povo pôde finalmente juntar os símbolos do Estado nacional: a bandeira, o

hino e as cores nacionais”, permitindo aos mais desfavorecidos que amem “o Brasil sem

medo de zombaria elitista” (DAMATTA, 2006, p. 165).

Já sobre a imaginada brasilidade, o futebol se mistura ao samba em quatro canções

(23,52%); e ao café em outras duas (11,76%). Outros elementos da cultura brasileira também

aparece, uma vez cada, como a Bossa Nova, a cachaça, o carnaval e as belezas naturais

como as lindas praias, tendo uma frequência de 5,88%. Sobre o samba, aquele com maior

presença, se vinculou ao futebol tanto no reforço do que seria o futebol-arte como em

trechos como “O brasileiro lá no estrangeiro/ Mostrou o futebol como é que é/ Ganhou a

taça do mundo/ Sambando com a bola no pé”; mas também surgiu como elemento integrante

da atmosfera festiva que representa uma Copa do Mundo para o país, vide trechos como

“Corrente 78/ Tornamos na mesma emoção/ E quando o tango tocar/ Eu vou pra rua

sambar”. Isso prova que, diferente de outras atividades sociais, “o futebol tem a capacidade

de unir muitas dimensões simbólicas na sua invejável multivocalidade” (DAMATTA, 2006,

p. 139).

Por fim, vale destacar a utilização dos verbos nestas músicas. A flexão do verbo “ir”,

“vamos”, aparece em sete músicas tendo uma frequência de 41,17%. O uso desta flexão,

significa o mesmo que “estamos” e/ou “estejamos” e/ou mover-se de um local para outro.

Logo, seu uso parece significar uma convocação para a torcida, por exemplo em trechos

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como: “Vamos nessa, minha gente/ Empurrando a seleção” ou “Todos juntos, vamos/ Pra

frente, Brasil/ Salve a seleção”. Em seguida, aparece o verbo “emocionar”, visto em 29,41%

das músicas. O envolvimento da pátria em chuteiras com a sua seleção nacional é,

primordialmente, emotiva pois o selecionado representa uma metonímia da nação. Como

podemos observar nos seguintes trechos: “De repente é aquela corrente pra frente/ Parece

que todo o Brasil deu a mão/ Todos ligados na mesma emoção”; ou “Vamos soltar o grito do

peito/ Deixar o coração no jeito/ Que aí vem mais uma emoção”.

Os verbos “gritar” e “vibrar”, cada um, aparecerem em 23,52% das músicas. Após a

convocação, através da flexão verbal “vamos”, o torcedor é convidado para enfrentar

emoções envolvendo a Seleção Brasileira. E quais as principais expressões que as canções

esperam ou incitam nesses torcedores? Os atos se unem como no seguinte trecho: “Nesse

show sensacional, a torcida vai vibrar/ E alegre gritará: gol!/ Venceu o Brasil”. E o que esses

atos representam? Representam características vistas na energia do “torcer”, verbo

encontrado em 17,64% das canções. Outros sentimentos e/ou ações são esperados do

torcedor brasileiro em Copas do Mundo como o “cantar” e o “unir” (11,76%, cada). Por fim,

outros verbos são vistos em uma menor frequência como o “saudar, o sofrer, o agitar, o

delirar, o enaltecer e o glorificar”. Toda essa gama de sentimentos que o futebol proporciona

aos brasileiros em períodos de Copa do Mundo, mas que se encontra também no que tange

aos clubes, pode ser assim resumido:

[…] com todas as contradições possíveis, o futebol brasileiro é uma formade cidadania. Nesse sentido, ele não é bom nem mau, certo ou errado,expressão generosa do povo brasileiro ou seu ópio. Constitui-se numaforma do brasileiro expressar-se (DAMO, 2000, p. 36).

Em suma, as músicas analisadas, a partir da unidade de registro, apresentaram as três

categorias criadas para facilitar a imersão no objeto. Após a identificação dessas categorias,

vistas no decorrer do trabalho, pudemos observar quantitativamente a presença de

determinadas verbos, pronomes ou palavras que vinculassem o futebol a uma imaginação do

que seria ser brasileiro; reforçando tradições inventadas como a pátria em chuteiras e o

futebol-arte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o trabalho buscamos entender as ligações entre futebol brasileiro, Copas do

Mundo e identidade nacional tendo como recorte as músicas reproduzidas durante esse

período. Não só passeamos pela história do futebol brasileiro, desde o seu período pré-

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moderno, marcado pelo amadorismo elitista; até sua fase pós-moderna onde os diversos

atores que compõem esse esporte (como a seleção nacional, os clubes e os jogadores)

transformaram-se em um produto extremamente lucrativo.

Também vimos como o futebol dialoga com a conjuntura política e econômica do

país. Não é coincidência que o futebol passa de amador para profissional, justamente em

meados dos anos de 1930, quando o Brasil passou por transformações políticas, econômicas

e sociais advindas da Revolução de 1930. Na esfera econômica, o desenvolvimento da

urbanização e da industrialização, acompanharam o processo de profissionalização do

futebol. Enquanto na esfera política, a relação futebol e política ocorreu independente do

regime existente no país, ditadura ou democracia (BARRETO, 2006; 2018). É verdade que

durante o regime militar algumas características foram acentuadas em função da tentativa

dos militares de legitimarem junto à população, inclusive, à militarização da preparação para

a Copa de 1970, por exemplo. Mas, por outro lado, também é fato que em períodos

democráticos, o futebol e, no nosso caso, a seleção e as músicas que a embalavam foram

objetos igualmente de jingles que uniam as categorias aqui usadas em nossa análise.

Através das músicas analisadas, entre os anos 1950 a 2018, pudemos ver como

tradições inventadas, caso da pátria em chuteiras e do futebol-arte, foram introjetadas no

imaginário social. Como qualquer manifestação artística, a música tem a função de

transmitir ideias e valores já presentes em sociedade. A permanência dessas tradições

inventadas, mesmo após o falecimento de seus artífices, mostram a representatividade que

Gilberto Freyre e Nelson Rodrigues têm para a cultura brasileira.

É bem verdade que várias dessas criações podem ser questionadas, vide a

essencialização que ambos carregam em suas ideias. Será mesmo que o negro é o indivíduo

mais apropriado para a prática do futebol, como imaginou Freyre em 1938? Apesar de

revolucionária para uma época em que os fracassos no futebol e em outros aspectos da vida

social eram creditadas a fraqueza oriunda da miscigenação, as ideias freyreanas sobre o que

ele chamou de foot-ball mulato não deixam de ser biologizante. Assim como a ideia

rodrigueana de pátria em chuteiras estereotipa o brasileiro.

Mesmo diante dessas questões plausíveis, mas tomando como base o marco teórico

utilizado, as ideias em torno do futebol contribuíram na construção do Brasil enquanto

nação. As imaginações em torno de uma comunidade soberana e limitada territorialmente, é

um fato dado, tendo as comunidades imaginadas o papel de estabelecer “a ideia de um ‘nós’

coletivo, irmanando relações em tudo distintas (ANDERSON, 2008, p. 12). Com um

nacionalismo retardatário, por conta de processos históricos que não proporcionaram ao

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Brasil uma independência política através de uma revolta armada, então característico em

toda América do Sul, o país só veio desenvolver aspectos nacionalistas a partir da

Proclamação da República em 1889 (LAUERHASS, 1986). Porém, o nacionalismo

brasileiro esteve durante o início do século XX restrito às elites políticas e econômicas.

O orgulho do país e de seus símbolos nacionais oficiais, como a bandeira, é

sistematicamente desenvolvido a partir da Seleção Brasileira em períodos de Copa do

Mundo. Esse evento esportivo, analisado aqui musicalmente, proporciona as classes mais

desfavorecidas sentimentos então restritos. O futebol no Brasil, através da seleção nacional,

conseguiu substituir tradições inventadas que no século XIX serviram para unificar e

homogeneizar países europeus. Se a França, por exemplo, precisou da consolidação da

Terceira República para popularizar símbolos nacionais como a bandeira tricolor, a

Marselhesa ou Marianne, o Brasil conseguiu expandir simbolicamente através dos períodos

quadrienais de Copas do Mundo, onde o hino nacional é tocado de Norte à Sul do país ou a

bandeira que é vista em praças públicas, bares e residências das mais diversas.

Enfim, todas essas imaginações e construções também têm efeitos práticos e

potencialidades. Apesar da crise de identidade analisada durante o texto, a tradição de torcer

pela Seleção Brasileira e de esvaziar o comércio e as atividades produtivas durante os jogos

do Brasil no mundial permanecem vivas. Nas últimas edições, vimos a permanência da Copa

do Mundo como um evento festivo, integrativo e semelhante a um “carnaval fora de época”.

O futebol também permanece como o esporte mais praticado e consumido no país, mesmo

que seu alcance tenha diminuído por conta diversos fatores que o presente trabalho não

comporta divagar.

O que fica da análise musical feita é a noção de que “As Copas funcionam como

metalinguagem. Ao falarmos da seleção, de suas conquistas e derrotas, estamos falando

também do Brasil e de seus dilemas” (HELAL; CABO, 2014, p. 12). Se foi através do

futebol que o brasileiro superou o complexo de vira-latas, também foi através deste esporte

que o mesmo brasileiro dramatizou sua indignação com os usos (ou abusos) do dinheiro

público, vide às manifestações nacionais a partir de 2013. Esperamos que o presente

trabalho possa contribuir para futuros estudos envolvendo futebol e música popular,

entendendo a importância dessas duas manifestações artísticas para a sociedade brasileira.

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