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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO INSTITUTO DE FILOSOFIA E ARTES CÊNICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO TRABALHO DO ATOR SOBRE SI OURO PRETO - MG 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO

INSTITUTO DE FILOSOFIA E ARTES CÊNICAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO

TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

OURO PRETO - MG

2018

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PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO

TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Artes Cênicas da Universidade

Federal de Ouro Preto como requisito para a

obtenção de título de mestre em Artes Cênicas.

Linha de pesquisa 1: Estética, Crítica e História das

Artes Cênicas.

Orientadora: Prof.ª Dr. Luciana da Costa Dias

OURO PRETO - MG

2018

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Universidade Federal de Ouro Preto

Instituto de Filosofia, Artes e Cultura

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

Curso de Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas

Paola Cyntia Moreira Bonuti

A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO

TRABALHO DO ATOR SOBRE SI

Área de Concentração: Artes Cênicas

Linha de Pesquisa: Estética, Crítica e História das Artes Cênicas

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Para todos os brasileiros idôneos que pagam seus

impostos devidamente e que possibilitaram o

financiamento desta pesquisa através da bolsa

UFOP

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AGRADECIMENTOS

A todos os meus guias, pela intuição e caminhada nesta nave “louca”. Aos meus pais,

Efigênia Carvalho de Souza e Paulo Roberto Mateus Moreira, minha gratidão pela vida e pelo

amor. Aos meus filhos, Cauã Moreira Bonuti e Iasmim Moreira Bonuti, motivos que me

fazem realizar esta pesquisa: que meu esforço os faça desejar a liberdade de serem eles

mesmos. Ao meu marido, Gustavo Araujo Bonuti, pelo amor cujo porto quero sempre voltar e

pela paciência nos meses de ausência e TPM sobrenaturais: você é o pai de quem me orgulho

incondicionalmente. À Evânia Maria de Araújo, por várias vezes ter me dado o suporte como

uma mãe. As minhas amigas irmãs do coração, longe ou perto são meu sustento: Danielle

Pimenta Kascher, fã de carteirinha do meu trabalho de atriz e modelo de mãe a ser seguido;

Eliana Moreira Gomes, pelo amor que nada modifica, nem a distância, e Luciane Trevisan,

minha co-orientadora voluntária de afeto, discussões e auxílio nas correções, minha

admiração e agradecimento pelos anos de parceria no Teatro do Dragão, onde aprendi a ser

atriz e fazer do teatro minha profissão e sobrevivência à “loucura”. E à Lívia, minha amiga

irmã caçula que não me deixa perder a fé. Aos companheiros de jornada e agora amigos de

caminhada: Estela Valle e Emerson Pereira. A todos os usuários de Caps. – Centro de

Atenção Psicossocial da cidade de Ouro Preto, que criaram comigo, me fizeram crescer e

superar o transtorno bipolar, mas, principalmente, a Sueli Basílio e Maria Geralda – Teca,

atrizes que não desistem de manter o Coletivo Ser ou Não Ser em atividade. A minha

orientadora, Luciana da Costa Dias, por acreditar nesta pesquisa e fazê-la possível comigo.

Aos professores que mudaram a minha trajetória e deixaram marcas nas minhas escolhas,

Paulo César Bicalho, com quem aprendi, conheci e vivi Stanislávski e Clarissa Alcântara

pelas pulsões de nos colocarmos como criador de afetos. A todos os profissionais da Raps –

Rede de Atenção Psicossocial de Ouro Preto pela parceria e pela luta aos direitos dos

usuários, principalmente à Suzana, pela parceria e amizade que me servem de inspiração;

Elaine, que sempre me deu forças para alçar voos cada vez mais altos, André, pelo carinho e

inteligência ao pontuar o meu trabalho teatral, o que me fez repensar os caminhos, e Ana

Cláudia, que, várias vezes, teve o ouvido atento e afetuoso típico dos psicólogos que se

dedicam à profissão. E a todas as pessoas que diretamente ou indiretamente se fazem

presentes em mim, muito, muito obrigada!

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“Não há exemplos a seguir, e decerto não o meu. O que é necessário

para uma pessoa, de modo nenhum o é para outra. Todos nós temos

as nossas próprias loucuras, os nossos atalhos”.

- David Cooper

“A arte existe porque a vida não basta”.

- Ferreira Gullar

“O advir define-se para nós por um duplo movimento: de um lado a

parte móvel do Sensível, processo dinâmico que conduz o sujeito para o

futuro; do outro, a parte imóvel do Sensível, que acolhe o movimento

da temporalidade por vir. A noção de advir circunscreve o lugar de

encontro encarnado que atualiza o futuro no presente e contribui para

dar sentido ao que era, até então, despercebido pelo sujeito”.

- Dani Bois

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RESUMO

Esta pesquisa objetiva investigar, através do trabalho do ator sobre si na construção do

personagem e tendo, como ferramenta de criação, a memória emocional, de Stanislávski, a

prática do teatro como instrumento de auto formação e autoconhecimento por possibilitar ao

sujeito se colocar diante do personagem em uma relação de alteridade e, assim, alcançar uma

perspectiva de auto cuidado na criação de uma estética da existência, termo cunhado por

Michel Foucault. Ao longo da investigação, pôde ser observado que, tendo o personagem

como porta-voz, é possível alcançar certo distanciamento crítico e uma análise daquilo que

emergiu do inconsciente do ator para a construção da cena. Buscou-se, na metodologia

autobiográfica, realizar o percurso de investigação-formação, em que o sujeito se insere em

perspectiva epistemológica, ou seja, se torna detentor da investigação como ferramenta de

legitimação da própria prática e da própria subjetividade através da trajetória pessoal,

acadêmica e profissional. Finalizando, esta discussão pôde ser estendida ao meu trabalho no

CAPS – Centro de Atenção Psicossocial de Ouro Preto, junto a portadores de transtornos

psíquicos, cujos resultados também são discutidos nesta dissertação.

Palavras-chave: Autobiografia; Subjetividade; Construção do personagem; Autocuidado;

Estética da Existência.

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ABSTRACT

This research aims to investigate, through the work of the actor on himself in the construction

of the character and having as a tool of creation the emotional memory of Stanislavsky, the

practice of theatre as a possibility of self-training and self-knowledge that enables the subject

and the character in a relation of alterity, thus reaching a perspective of self-care in the

creation of an aesthetic of existence, a term coined by Foucault. Throughout the investigation

it has been observed that, having the character as spokesperson, it is possible to actor achieve

a certain critical distance and an analysis of what emerged from each subject's unconscious

for the construction of the scene. It was sought in the autobiographical methodology to carry

out the research-training course where the subject is inserted in an epistemological

perspective, that is, becomes the holder of the investigation as a tool of legitimation of the

own practice and of the own subjectivity. Finally, this discussion could be extended to my

work in the CAPS Ouro Preto with patients with psychic disorders, whose results are also

discussed in this dissertation.

Keywords: Autobiography; Subjectivity; Character construction; Self-care; Aesthetics of Existence.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006). ................................... 30

Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006). ................................... 31

Figura 3 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto,2006) ..................................... 41

Figura 4 - Edifício Dora (Mariana, 2013)................................................................................. 44

Figura 5 - Edifício Dora (Mariana,2013).................................................................................. 44

Figura 6 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP -Ouro Preto, 2016). ................. 53

Figura 7 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP -Ouro Preto, 2016). ................. 53

Figura 8 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016). .......... 57

Figura 9 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016). .......... 57

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SUMÁRIO

A ARTE IMITA A VIDA OU A VIDA IMITA A ARTE? CONTEXTUALIZANDO O

CAMINHO DE PESQUISA... .................................................................................................. 11

PARTE I – “O LOUCO QUE HÁ EM MIM SAÚDA O LOUCO QUE HÁ EM TI! ”

1 AUTOBIOGRAFIA: UM CAMINHO METODOLÓGICO ................................................ 15

1.1 Meu Caminho ..................................................................................................................... 15

1.2 A autobiografia e seus reflexos para a formação pessoal e profissional do sujeito através

da relação arte e vida ................................................................................................................ 21

PARTE II - “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA”

2 O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI: A ARTE DA VIVÊNCIA ..................................... 29

2.1 A vivência do ator e seus reflexos: uma mulher marginal nas ruas de Ouro Preto ............ 29

2.2 A memória emocional como recurso para um autoconhecimento ..................................... 34

2.3 A relação de alteridade com o personagem ........................................................................ 38

2.4 Demonstrações práticas da relação de alteridade com o personagem ................................ 39

2.4.1 Diários de bordo .............................................................................................................. 41

2.5 A construção de um corpo biográfico................................................................................. 50

PARTE III - “SER OU NÃO SER EIS A QUESTÃO”

3 O TRABALHO TEATRAL REALIZADO NO COLETIVO SER OU NÃO SER ............. 52

3.1 A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa................................................... 54

3.2 A vivência do trabalho do ator no coletivo e seus reflexos: estudos de caso ..................... 60

3.2.1 Caso 1: E ela fugiu com seu Patrick Schweizer... ........................................................... 61

3.2.2 Caso 2: A “Louca” e o Brio ............................................................................................. 66

PARTE IV - “EU VOU FICAR, FICAR COM CERTEZA, MALUCO BELEZA...”

4 A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ............................................ 74

4.1 Os conceitos das práticas de si em conversa com a prática teatral através da minha

experiência ................................................................................................................................ 74

4.2 Provocações para pensarmos a ressignificação do sujeito “louco” como sujeito de si:

considerações em Michel Foucault e David Cooper ................................................................ 81

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 87

REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 90

ANEXOS .................................................................................................................................. 93

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A ARTE IMITA A VIDA OU A VIDA IMITA A ARTE? CONTEXTUALIZANDO O

CAMINHO DE PESQUISA...

A célebre frase: “a arte imita a vida”, do filósofo grego Aristóteles, um dos

fundadores da filosofia ocidental, influencia diversas pesquisas no âmbito das artes nas

relações entre arte e vida. Dentre o seu abrangente legado, destaco, aqui, os conceitos

presentes na frase: arte (techné), natureza (physis) e imitação (mímesis). Não farei um

aprofundamento dos mesmos a partir da obra Aristotélica, que é extensa, mas trarei autores

influenciados por essa máxima, cuja reverberação influi nas relações entre arte e vida, assim

como na investigação desta pesquisa. Através dos estudos de Alessandro Barrivieira, em

“Poética de Aristóteles – tradução e notas” (2006), ressalto o conceito de mimeses a partir do

seu pensamento, buscando compreender até onde é possível considerá-la como uma prática

para se pensar questões existenciais do sujeito por estar associada à natureza e a arte. Segundo

Barrivieira (2006), a natureza em Aristóteles seria um princípio interno à coisa que sofre a

mudança, produzindo matéria e forma, em contraste com a técnica, que é um princípio

externo à coisa que sofre a mudança. Assim, configurarei, aqui, a título de entendimento, a

natureza sendo um princípio interno e o teatro (técnica), um princípio externo. Como a

natureza, a arte tem que produzir matéria e forma, assim, pretendo realizar, ao longo desta

dissertação, aproximações entre arte e vida através dos conceitos de teóricos do teatro e da

filosofia, investigando a possibilidade de o teatro completar os efeitos da natureza em vista de

um fim, que aqui se configura como um processo de autoconhecimento e ressignificação da

“loucura”1. O que quero ressaltar e destacar é a reflexão feita pelo autor sobre a imitação,

quando esta não somente reproduz a natureza, mas dá ao homem um mecanismo de auxílio

contemplativo através da arte, para reproduzir ou vivenciar aquilo que a natureza não

conseguiu lhe proporcionar (BARRIVIERA, 2006). Investigarei o papel da arte,

principalmente para se pensar o sujeito contemporâneo e a produção de sua subjetividade para

a busca de uma auto formação pessoal, acadêmica e profissional.

O presente estudo surge de uma hipótese específica que pretende ser respondida

através de um diálogo investigativo das práticas teatrais que venho realizando como atriz, no

1 Ao longo dessa dissertação as palavras “loucura” e “louco” virão acrescidas de aspas, isso será feito

para destacar a possibilidade de construção de novos sentidos para estes termos, distanciado do senso

comum. “Loucura”, entra aqui sempre, como um conceito aberto a ser explorado nas discussões e

possíveis entendimentos da mesma na contemporaneidade, não sendo o objetivo fim se chegar a um

conceito fechado, mas uma tentativa de desmitificá-la e desestigmatizá-la. E “louco” como sujeito dos

reflexos da ação da “loucura”, e a possibilidade de ressignificá-lo como sujeito da experiência e sujeito

de si.

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Teatro do Dragão, grupo de pesquisa em atividade há 12 anos, com sede em Mariana/MG, e,

também, como mediadora teatral2 do Coletivo Ser ou Não Ser formado em 2015, por usuárias

do CAPS 1 - Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental -, na cidade de Ouro

Preto/MG. O grupo Teatro do Dragão tem como característica essencial, em seu processo de

trabalho, a inserção do ator como criador, assegurando a ele autonomia no processo de

criação. E as práticas realizadas no Coletivo Ser ou Não Ser é uma interpretação dos estudos e

práticas realizadas no Teatro do Dragão, em uma livre adaptação para indivíduos com

transtornos psíquicos.

Antes mesmo de realizar essa pesquisa, observei que, trabalhando a criação do

personagem pela técnica do improviso através das minhas memórias pessoais, foi possível

constituir um mecanismo de autoconhecimento. Percebi que, uma vez não presa a um texto e

às características pré-estabelecidas para a criação do personagem, e tendo como mote de

criação o meu próprio eu, destaquei características da minha personalidade embutidas nas

falas e ações dos mesmos. Dessa imersão no meu inconsciente3, em um processo criativo ao

traduzi-lo em cena, e da interpretação dos escritos do diário de bordo desse processo de

criação, foi possível criar uma relação de alteridade com o personagem, ou seja, ao

transformá-lo em outro, criei um mecanismo singular de análise e investigação de mim

mesma, porque foi necessário um distanciamento crítico para essa realização. Esse

mecanismo permite a criação de um corpo biográfico4, que são processos práticos de uma

subjetividade cognitiva que passa pelas vias do corpo, objetivando um processo de

autoeducação, sobre o qual discorre Marie-Christine Josso (2012).

2 Sinto-me mais à vontade com esse termo, o qual utilizarei nesta pesquisa, porque o trabalho desenvolvido com

as participantes do Coletivo Ser ou Não Ser se dá no formato colaborativo, em que todas trabalham juntas na

elaboração do espetáculo. A partir do meu repertório e experiência, realizo a mediação ou orientação para a

melhor execução dos nossos desejos comuns. 3 O conceito de inconsciente que trabalharei será a partir dos estudos de Carl Gustav Jung (1987, p. 58): “O

inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações

dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é,

percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não

amadureceram para a consciência”. 4 Em seu artigo “O corpo biográfico: corpo falado e corpo que fala”, Josso (2012, p. 23) diz que “Elaborar a sua

narrativa de vida e, a partir daí, separar os materiais, compreendendo o que foi a formação para, em seguida,

trabalhar na organização do sentido desses materiais ao construir uma história, a sua história, constitui uma

prática de encenação do sujeito que se torna autor ao pensar a sua vida na sua globalidade temporal, nas suas

linhas de força, nos seus saberes adquiridos ou nas marcas do passado, assim como na perspectivação dos

desafios do presente entre a memória revisitada e o futuro já atualizado, porque induzido por essa perspectiva

temporal. Numa palavra, é entrar em cena um sujeito que se torna autor ao pensar na sua existencialidade.

Porque o processo autorreflexivo, que obriga a um olhar retrospectivo e prospectivo, tem de ser compreendido

como uma atividade de autointerpretação crítica e de tomada de consciência da relatividade social, histórica e

cultural dos referenciais interiorizados pelo sujeito e, por isso mesmo, constitutivos da dimensão cognitiva da sua

subjetividade. (JOSSO, 2012, p. 23).

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Então, experienciando a construção do personagem, através da memória emocional

terminologia cunhada pelo ator, diretor e obsessivo estudioso das artes dramáticas, Constantin

Stanislávski (2016), pude perceber que, para além da sua colaboração na elaboração estética

do espetáculo, ela proporciona uma vivência física e psicológica única para o ator, em que as

vozes e atitudes do personagem revelam traços desconhecidos, pouco explorados, outros

pontuais da personalidade do ator, criando, assim, a ideia de uma estética da existência5,

porque a interpretação partindo do real vira outra realidade quando transformada em cena. Ao

investigar a constituição de uma estética da existência, quero, por meio do pensamento de

Michel Foucault, trazer a discussão para se pensar a possibilidade de ressignificar o sujeito

“louco” como um sujeito autônomo, ou seja, livre e detentor de sua verdade, visando uma

possível diminuição de seus estigmas.

Amadurecendo minha prática teatral, percebo que a maneira de sentir a realidade é

individual, ou seja, a mesma vivência pode ter aspectos diferentes para cada sujeito, deixando

claro que o trabalho desenvolvido com as atrizes do coletivo torna-se uma extensão do meu

trabalho de atriz no Teatro do Dragão, ou seja, um dispositivo positivo de autocuidado6,

perpetuando a transformação do meu sujeito através da prática teatral, continuando, assim,

meu processo de autoconhecimento. Através do trabalho das atrizes do Coletivo Ser ou Não

Ser, pude perceber com mais clareza a relação de alteridade com o personagem que cria uma

atmosfera de conforto e de segurança - uma vez que sou levada a crer que as atitudes e as

falas não são minhas, estando imerso em situação ficcional – sendo assim, para a realização

de um processo de autoconhecimento, foi necessária a minha intervenção como mediadora

teatral. Os objetivos do coletivo não estão voltados para esse fim, o grupo foi idealizado como

um mecanismo de criação de espetáculos teatrais para a promoção da inserção social. Aqui,

ela é pontuada e destacada para demonstrar a influência e os reflexos da prática do ator sobre

si, através da memória emocional para constituição de um mecanismo de autoconhecimento,

sendo que a mesma realidade ainda em perspectivas bem diferentes se assemelha com a

minha vivência teatral, desta forma, destacarei, também, a metodologia e os reflexos do

trabalho do ator sobre si com as atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser, fomentando a

aplicabilidade da prática teatral destacada nesta pesquisa.

5 Fazer da própria vida objeto de uma tékhne, portanto, fazer da própria vida uma obra –que (como deve ser tudo

o que é produzido por uma boa tékhne, uma tékne razoável) seja bela e boa – implica, necessariamente, a

liberdade e escolha daquele que utiliza sua tékhne. 6 O conceito de autocuidado está presente nos estudos de Michel Foucault, no seu último trabalho, intitulado A

Hermenêutica do Sujeito (2010), e será aprofundada no Capítulo 3 desta dissertação.

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Assim, através da apropriação das memórias dos diários de bordos elaborados por

mim como atriz no Teatro do Dragão e como mediadora teatral no Coletivo Ser ou Não Ser,

buscarei investigar os reflexos positivos e negativos das experiências teatrais, comprovando a

possibilidade de constituição de uma estética para além do espetáculo, através dos estudos de

A Hermenêutica do Sujeito (2010), de Michel Focault, além de se configurar como um

mecanismo investigativo formativo7, através da metodologia autobiográfica, que me coloca

como sujeito desta narrativa e objeto de pesquisa. Assim, os conceitos e teóricos aqui

destacados realizam um diálogo transversal, no qual o eu narrativo, que é um recurso

metodológico típico das pesquisas autobiográficas, se configura como um mecanismo

autoformativo. Me coloco como objeto de pesquisa, reivindicando e legitimando minha

própria prática e subjetividade na relação entre arte e vida através da minha formação

acadêmica e profissional como mecanismo de saber.

O importante, ao realizar uma pesquisa autobiográfica, é dizer que o teatro se tornou

um mecanismo potente e positivo de superação da minha “loucura”. E se minha história

pessoal tem lugar nesta pesquisa, é a partir da sua hipótese, que trago como a pergunta

norteadora do estudo: É possível o trabalho do ator sobre si ressignificar o “louco” como

sujeito de si ao constituir uma estética da existência?

7 “(...) Na pesquisa narrativa ou de histórias de vida como procedimento de recolha das fontes e também como

potencializadora de um trabalho formativo porque possibilita a organização das experiências vividas através da

preparação e da construção que o ator faz para o seu relato – oral ou escrito – configurando-se também como

uma prática reflexiva das experiências, através da auto-análise empreendida enquanto dispositivo de investigação

formação” (SOUZA, 2004, p. 152-153).

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PARTE I – “O LOUCO QUE HÁ EM MIM SAÚDA O LOUCO QUE HÁ EM TI!”

1 AUTOBIOGRAFIA: UM CAMINHO METODOLÓGICO

1.1 Meu Caminho

Caminante nao há caminho, o caminho se faz ao andar. - Antonio Machado

Um dos pontos centrais da pesquisa autobiográfica é não separar vida e pesquisa, algo

muito pertinente para a prática de uma atriz que busca seu autoconhecimento, seu próprio

caminho de vida e suas próprias escolhas. Neste sentido, nada mais coerente que começar

pelo meu próprio caminho, onde o imbricamento entre realidade, imaginação e interpretação

se intercruzam através das minhas memórias, buscando a criação de sentidos

pontencializadores para minha autoformação sobre a vida, a formação acadêmica e as

escolhas profissionais.

Sou filha mais velha de Paulo Roberto Mateus Moreira e de Efigênia Regina Carvalho

de Souza, nasci no mesmo dia que morreu Elvis Presley, 16 de agosto de 1977. Minha mãe

me relata saudosista que meu Pai, ao me pegar no colo, falou: “morre um rei, nasce uma

princesa”. Somos três filhos desta união. Nasci no bairro de Santa Efigênia, em Belo

Horizonte, e, lá, vivi os primeiros 25 anos da minha vida. Não tenho muitas memórias da

minha infância, a considero padronizada dentro dos aspectos de uma família de baixa-renda,

que tinha a avó materna como figura central afetiva e financeira. Minha avó faleceu no dia 02

de janeiro de 1993, e, ainda, depois de todos estes anos, ela faz muita falta. Me pego, muitas

vezes, tentando resgatar memórias da infância: alguns episódios são bem claros, como, por

exemplo, certa pré-disposição para o teatro. Lembro-me de várias participações em coroações

e autos de igreja e algumas apresentações teatrais no ensino fundamental.

Em 1990, ocorre uma situação bem delicada, mas de extrema necessidade para uma

pesquisa que se configura como uma narrativa formativa nas relações entre arte e vida, assim,

já justifico tamanha exposição. Meus pais se separaram quando eu tinha treze anos e, um ano

depois, minha se casou novamente com um rapaz 12 anos mais novo que ela e, ainda nesta

idade, fui molestada por esse sujeito durante meses. Dormíamos eu e meus irmãos no mesmo

quarto e, com a desculpa do bom padrasto, todas as noites, ao nos cobrir, passava as mãos em

meu corpo. Na época, não tive coragem de contar o fato a minha mãe e recorri a uma prima.

Um dia, ao chegar da escola, encontrei minha mãe aos prantos e minha prima se encontrava

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sentada ao seu lado, gelei de cima a baixo. Ao ser confrontada sobre o destino de seu

casamento, não tive condições maduras de manter a verdade, muito menos quis me tornar o

motivo de ruína da sua vida, palavras ditas por ela. A minha omissão foi bem aceita, porque já

vinha taxada como mentirosa e fantasiosa dentro da família, por ter inventado ficar doente

quando o meu pai saiu de casa. Então, tudo não passou de em episódio infantil criado por uma

mente que queria ver os pais novamente juntos, causando a discórdia da nova constituição

familiar. E ele continuou me molestando, até que um dia eu o enfrentei, dizendo que iria ligar

para o meu pai e chamar a polícia. Consegui pedir um trinco para o meu quarto, justificando

estar crescendo e querer privacidade. E, daí para frente, a minha defesa era ser agressiva e

estúpida com ele. Assim, meu estigma de ser “louca” inicia-se aos trezes anos, quando passo a

ser uma criança má que criava constrangimentos no seio familiar – por várias vezes, escrevi e

apaguei esta história no percurso desta escrita. Ao destacá-la, quero reafirmar que, após anos

de terapia psicanalítica e outros métodos alternativos, esse acontecimento foi fundamental

para instaurar minha formação subjetiva, ou seja, a minha formação como sujeito. Aqui, traço

como a “loucura” perpassa pela minha vida, as escolhas acadêmicas e profissionais, a vinda

para Ouro Preto, me constituir nesta cidade, desenvolver o meu trabalho teatral na RAPS –

Rede Atenção Psicossocial de Ouro Preto. Então, falar sobre esse episódio traz reflexões,

hoje, bem conscientes de tudo de positivo e negativo que ele me trouxe. E, de certa forma, foi

o que me trouxe até aqui também, em um desejo enorme de resgatar a minha autoestima, meu

papel de mulher, de sujeito social, de pesquisadora e de formadora de saberes. É com um

grande orgulho que me intitulo, com certo humor negro, típico de pessoas que já passaram por

poucas e boas: a louca fazendo pesquisa.

Dos meus 13 aos 18 anos, passei por anos difíceis. Queria sair de casa, mas não tinha

para onde ir e fui me tornando uma pessoa irritadiça, com fortes crises de enxaqueca e com

mudanças bruscas de humor. Aos 16 anos, comecei a trabalhar para ajudar nas despesas da

casa: após a segunda separação da minha mãe, que se deu em 1999, o trabalho tornou-se

prioridade. É importante dizer que, tendo como prioridade o trabalho, os estudos foram

conduzidos para segundo plano. Mas, tinha o desejo de estudar, queria uma realidade

diferente e tentei, por diversas vezes, ingressar em cursos que me proporcionassem isso. À

época, os objetivos eram a área da saúde, então iniciei o curso de enfermagem na Santa Casa

e, depois, o curso de instrumentação cirúrgica, mas, quando as mensalidades confrontavam as

necessidades financeiras da casa, eu abria mão dos mesmos. Quero destacar, também, que os

reflexos de não ter priorizado os estudos e não colocá-los como um trampolim para projeções

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profissionais futuras trouxeram muitas dificuldades na minha formação acadêmica e tentar

superá-las é sempre um desafio muito grande para mim.

Retomando minha história, em 1995, resolvi buscar orientação médica e fiz isso com

ajuda de amigas da escola. Assim, aos 18 anos, fui diagnosticada com transtorno bipolar. O

ambulatório que fazia terapias coletivas foi destituído de seu lugar de origem, localizado na

Regional Leste na Avenida dos Andradas, e não consegui resgatar os prontuários deste tempo.

Fato é que cheguei a tomar alguns medicamentos associados à fluoxetina e seu uso diminuía

consideravelmente o meu raciocínio e ações, e não somente nos primeiros dias considerados

de adaptação, o mal-estar se estendia por meses. Sendo assim, ao longo da minha experiência,

não me recordo de uma boa adaptação com medicações psicotrópicas. Iniciei uma busca de

autoconhecimento corporal, emocional e espiritual, auxiliada, no máximo, pela psicanálise

nesses momentos reflexivos.

A vida familiar foi seguindo sobre o estigma de mal-humorada, excêntrica e meu

diagnóstico e tratamento sempre foi realizado de forma velada para evitar conflitos. E a vida

foi caminhando. Aos 22 anos, iniciei o namoro com meu atual marido e minhas perspectivas

se ampliaram, pela sua influência benéfica de me auxiliar a ter uma crítica melhor sobre mim

mesma, correr atrás dos meus sonhos, como estudar, por exemplo. Foi com ele que, pela

primeira vez, assisti a uma peça teatral, “O Moliére imaginário”, do Grupo Galpão, no

Palácio das Artes. Foi uma paixão avassaladora, imediatamente desejei tanto um dia estar no

lugar daquelas atrizes. Mas a vida seguiu seu curso sem grandes expectativas, trabalhando e

cuidando da minha saúde quando essa se encontrava debilitada. Mas, aí, veio o que considero

um divisor de águas: como forma de rebeldia, me inscrevi no vestibular em artes cênicas na

UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, onde passei em segundo excedente. Hoje, sei

que queria quebrar as lembranças ruins do meu passado e da relação fragmentada com minha

mãe, mas os resultados positivos desta decisão são transformadores. Assim, aos 25 anos, vim

para Ouro Preto fazer artes cênicas sem ter feito teatro antes, sem saber nada a respeito,

grávida, “louca” diagnosticada e com uma ajuda de custo de R$ 100,00 (cem reais) que meu

Pai me dava mensalmente.

Tive complicações no 6º mês de gestação, o que me obrigou a trancar matrícula. Um

universo de possibilidades e de conteúdos foi apresentado a mim após meu ingresso na

Universidade: as rodas de conversas, as discussões entre os alunos e professores foram

abrindo meu leque de instrução cultural, social e política. Antes disso, tive pouquíssimo

contato com as artes da cena, vinha de uma estrutura familiar em que atividades culturais e

intelectuais não eram vistas como importantes. A relevância de pontuar isso novamente se dá

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por ser, este, um fator que também marcou a minha formação subjetiva até chegar à

universidade. Sendo assim, ao entrar para a graduação, me sentia um “zero à esquerda” em

todas as disciplinas, quase nada entendia, nunca tinha ouvido falar daqueles teóricos e suas

práticas e sempre me perguntava o porquê de ter entrado por essa via.

Em 2004, retomei os estudos. A partir desse período, pude perceber uma virada

significativa no meu modo de perceber e entender meus estados de consciência. Foi o meu

regresso para as atividades acadêmicas do curso e, consequentemente, as práticas teatrais que

me possibilitaram uma reflexão cuidadosa sobre mim. Da convivência em sala de aula, se deu

a formação de um grupo teatral, o Otrâmite, em 2004, e, atualmente, Teatro do Dragão,

sendo que, da formação original, permanecemos eu e a pesquisadora e diretora do grupo,

Luciane Trevisan, que mantém viva e atualizada toda a pesquisa estética do grupo. Já

realizava pequenas interpretações em cenas das disciplinas obrigatórias e, também, no grupo,

identificando, assim, uma predisposição para atuação, o que me deixava extremamente

envolvida pelo teatro. Foi a partir da prática teatral que todos os textos teóricos, até então

complexos, tornaram-se claros, fazendo com que eu descobrisse a importância do trabalho

sobre si, de Stanislávski, do teatro ritual, de Grotowisk, bem como a “loucura” e a (des)

construção do corpo, em Artaud. Juntamente com essas descobertas, iniciei estudos informais

sobre a “loucura”.

Em 2005, no V Festival de Monólogos e Música Original da UFOP, ganhei meu

primeiro prêmio de atriz com a adaptação do livro de Hilda Hilst, O Caderno Rosa de Lori

Lamby. O grupo levou, ainda, os prêmios de melhor direção, iluminação e cenário.

Ao longo da graduação, fomos criando trabalhos em que nos arriscávamos na tentativa

de incorporar, em nossas pesquisas, diversas linguagens e teorias, ocupando sempre o

interesse pela criação do ator. Fizemos inúmeras experimentações que pudessem nos levar ao

estado de criação atoral que queríamos. Entre muitos teóricos, artistas e afins, usamos de

forma não ortodoxa o método denominado memória emotiva, do diretor, ator e teatrólogo

russo, Costantin Stanislávski. Dentre muitas diferenças, a principal é que não trabalhávamos

com textos prontos. Em 2006, realizei meu trabalho de conclusão de curso em interpretação,

Myzéryaz Buzznezz: no país do futebol. Foi nesse momento, ainda de forma intuitiva, que

percebi que a prática teatral exercia em mim um bem estar, diminuindo consideravelmente a

minha ansiedade e as minhas inseguranças. No período do processo de criação do espetáculo

Myzeryaz... não vivi crises de ansiedade e/ou depressivas, estava em um processo de criação

intenso e proveitoso, o que me configurava uma melhora considerável da autoestima. A

escrita do diário de bordo do personagem tornou-se um hábito e, relendo o processo de

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criação dos meus personagens, percebi que a liberdade de construção a partir da minha

subjetividade emergia muitas questões das quais não queria saber sobre mim, destaquei traços

da minha personalidade até então desconhecidos. Então, nessa prática que configurei como

uma relação de alteridade com os meus personagens, desenvolvi um processo de

autoconhecimento, ou seja, dando a eles um lugar de outro, realizei de forma bem peculiar um

interpretação do meu eu.

Em 2008, finalizando minha graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal de

Ouro Preto, um novo ocorrido me fez buscar auxílio médico e, assim, dei início a minha

relação com Caps. 1- Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental de Ouro Preto, como

paciente. Estava iniciando a circulação do monólogo “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, meu

filho Cauã estava com cinco anos, e precisei muito do auxílio do meu marido, no que fui

correspondida, porém, familiares e vizinhos começaram a influenciá-lo, dizendo que minhas

escolhas iriam fazer mal para nosso filho. Comecei a ser pressionada pelas escolhas

profissionais que fiz. O meu filho sempre estava comigo nos ensaios e eu tinha todo o cuidado

de levar comida, um edredom que pudesse colocá-lo deitado caso quisesse dormir e tantas

outras coisas que as mães zelosas fazem, mas isso foi, cada vez mais, ganhando um aspecto

negativo e a pressão só aumentava. Morávamos no Morro São Sebastião, um bairro em Ouro

Preto que fica a 3 km da Praça Tiradentes, de uma subida muito, mas muito íngreme, eu

estava levando o Cauã para o ensaio quando ele começou a pirraçar, não queria ir, eu poderia

ter ficado com ele em casa, mas insisti e descemos os dois “ladeira a baixo”. Em um

determinado momento – ainda pirraçando em meu colo – o coloquei no chão e pedi que

andasse ao meu lado, a pirraça continuou agora no chão. Confesso que, nesse momento, fiquei

com raiva e o tirei do chão com certa truculência, ele se jogou para trás em meu colo e, na

época, eu estava com unhas enormes, e, na tentativa de não deixá-lo cair, minhas unhas

pegaram fortemente em seu ombro na direção do pescoço, deixando um hematoma muito feio.

Isso foi à gota d´água para eu ser julgada como uma péssima mãe e a prova dos reflexos

negativos do teatro em minha vida. Iniciei um processo depressivo e fui procurar ajuda

médica. Esse foi um novo episódio muito marcante nas investigações e questões que aqui

proponho. Assim, no dia 19 de março de 2008, fui consultada no Caps 1 de Ouro Preto.

Em meu prontuário em anexo, estão dois relatórios realizados no meu atendimento: o

primeiro no acolhimento feito por um psicólogo e, no segundo momento, no mesmo dia, feito

por uma psiquiatra. Percebe-se claramente, no primeiro momento, uma condução, a mesma

realizada pelos meus familiares e vizinhos, que considero preconceituosa, em que a mulher

tem que abdicar de uma vida profissional, precisa ser perfeita, não pode sentir raiva, não pode

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errar. No prontuário, podemos ver uma supervalorização da agressão cometida, como se já

tivesse ocorrido outras vezes, inclusive, escreve situações que não aconteceram. Tenho total

consciência ao dizer isso, porque o atendimento e conduta realizada pela psiquiatra foi

completamente diferente dizendo que a agressão carregava em si culpa e é obvio que me senti

péssima após o episódio, nunca agredi meu filho, e se procurei ajuda médica foi pelo medo de

perder a minha sanidade e colocar meu filho em risco. Porém, o mais importante para mim e

que muda os aspectos da condução da minha vida e da minha formação subjetiva é que não

foram caracterizados pela psiquiatra estados maníacos ou depressivos.

Desde 1995 até aqui, foi realizada uma longa caminhada no sentido de compreensão

do transtorno bipolar, formas alternativas foram buscadas para sanar e entender o que se

passava comigo. Uma busca árdua, sofrida, mas, principalmente, “superada” foi se

aproximando ao longo dos anos e esse diagnóstico foi extremamente importante para isso.

Mas e o diagnóstico anterior? Teria sido prematuro? Então o teatro, realmente, me ajudou na

“superação” do “transtorno psíquico”? Eu não sou “louca”? A “loucura” foi produzida em

mim? Não quero, em hipótese alguma, confrontar os diagnósticos médicos para um “antes” e

“depois”, ou até mesmo constatar se me enquadro ou não em um CID (Classificação

Internacional de Doenças), e muito menos denunciar a conduta deste profissional de

psiquiatria que me atendeu. Ser diagnosticada ou não como “louca” não faz mais diferença na

minha constituição de sujeito, até mesmo porque, desde aquele primeiro diagnóstico,

convivendo com outras pessoas com transtorno, já tinha percebido que, se tinha algum tipo de

transtorno psíquico, este estava longe de ser bipolaridade. Com o passar dos anos, sofri mais

pelo estigma do que pela doença em si. A psiquiatra que fez meu atendimento no Caps 1 de

Ouro Preto me indicou a psicanálise e o uso da fluoxetina. Fiz nova tentativa para tomar a

medicação sugerida, mas, realmente, não me enquadro, o uso do medicamento atrapalha

minha relação familiar e de trabalho. Assim, busquei formas alternativas para manter meu

organismo funcionando bem física e emocionalmente.

Vinte dias depois dessa consulta e vendo os reflexos dos remédios, resolvo cancelar o

retorno e proponho à coordenação do Caps 1 iniciar, de forma voluntária, um trabalho teatral

com usuários. Por necessidade interna, me pediram para desenvolver o trabalho no Caps –ad

– Centro de Atenção Psicossocial a usuários de álcool e outras drogas, e que tivesse um

produto final como resultado das atividades teatrais. Ao longo de nove meses de trabalho,

com dois encontros semanais de 02 horas, nasceu uma livre adaptação do conto original do

Mágico de Oz, de Lyman Baum (1901), mesclado com histórias pessoais dos participantes.

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Apresentamos em Ouro Preto, inclusive no Festival de Teatro do Projeto Manuelzão8. A partir

desse trabalho, supus que o teatro poderia realizar com outros o que ocorreu comigo e

continuei realizando atividades teatrais no Caps de forma voluntária. Tive, também, a

oportunidade de entrar no quadro de funcionários através de dois processos seletivos

simplificados da Secretária de Saúde da Prefeitura de Ouro Preto, onde o Caps está locado,

com o cargo de Monitora de Oficina Terapêutica, cujas atribuições são o desenvolvimento de

ações produtivas com atividades artesanais, sensoriais, corporais, dentre outras. Foram dois

contratos de um ano e meio em intervalos de balões de dois anos e, nesse meio, sempre

realizava algum trabalho com os usuários. Foi então que, em março de 2015, uma usuária me

fez o convite para criar um grupo teatral e, assim, nasceu o Coletivo Ser ou Não Ser, com

objetivo de realização de criação de espetáculos teatrais e sua circulação para a inserção social

dos seus participantes.

Trazer minha história de uma forma tão intima e desnudada é uma forma de me

aproximar das características da pesquisa (auto) biográfica que buscam traçar um percurso

pessoal, social e profissional para o aprimoramento do sujeito, por considerá-lo em sua

completude. Além de a abordagem ser considerada um movimento de investigação-formação,

que se associa a uma tomada de consciência do sujeito pelo exercício de uma meta reflexão

do ato de narrar, é como contar para si através da sua trajetória os conhecimentos adquiridos

através da experiência (SOUZA, 2004). Aqui, propus uma visita a minha experiência de como

a “loucura” atravessa minha personalidade e como ela contribui para as escolhas profissionais,

além de aproximar a minha história da metodologia autobiográfica, pela qual a investigação

aqui proposta na forma de narrativa realiza uma pedagogia da formação, em que o sujeito

descobre, ao longo da sua trajetória dos fatos destacados, indícios para um autoconhecimento

pessoal e profissional.

1.2 A autobiografia e seus reflexos para a formação pessoal e profissional do sujeito

através da relação arte e vida

A escrita da narrativa remete ao sujeito uma dimensão de auto escuta, como se

tivesse contando para si próprio suas experiências e as aprendizagens que construiu

ao longo da vida, através do conhecimento de si (SOUZA, 2004, p. 72. Grifo do

autor).

8 http://www.manuelzao.ufmg.br/festivelhas/festivelhas_2009/festivelhas_ouro_preto

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A pesquisa autobiográfica possibilita uma apropriação da história pessoal através de

uma narrativa memorial, tornando-se material de investigação-formação, e esta dupla função

realiza uma dinâmica epistemológica entre sujeito e objeto de pesquisa, ou seja, o sujeito

pesquisador e o sujeito da narrativa são o mesmo. Esse movimento o leva a uma

ressignificação da própria história ao levantar situações de extremo significado para sua

formação enquanto sujeito, ou, até mesmo, levantar situações que ainda não foram vistas, mas

que se tornam possíveis através desta metodologia, na qual o sujeito se coloca como narrador

ao se apropriar das suas memórias e tem como objetivo a autoformação do sujeito ao

considerar aspectos de sua singularidade. Vislumbra, também, quebras de paradigmas com os

modelos ortodoxos de pesquisa, nos quais o poder científico se dá através da racionalidade,

porque insere a subjetividade como mote.

Gostaria, também, de investigar os reflexos da metodologia autobiográfica – que tem

ampla abrangência na área da educação contemporânea, em específico, na formação de

professores – como possível pedagogia para o ensino do teatro, nos moldes da educação não

formal, para sujeitos com transtornos psíquicos, sobre reflexos da experiência que destaco

nesta pesquisa através da influência dos estudos realizados por Elizeu Clementino de Souza

(2004) e Marie-Christine Josso (2010).

Motivada por encontrar ressonâncias para relatar minha história pessoal, mas, também,

pelo discernimento que essa pesquisa só poderia vir à tona através da minha experiência

narrativa, porque os relatos aqui pontuados e destacados buscam, além de uma interpretação

bem particular, investigar que a prática teatral através do trabalho do ator sobre si pode vir a

ser um mecanismo de autoconhecimento como recurso pedagógico de autoformação, iniciei

uma busca para encontrar autores e conceitos que dialogassem com os objetos propostos. Foi

então que me deparei com o trabalho de Elizeu Clementino de Souza9, pesquisador pioneiro

em pesquisa autobiográfica no Brasil. A partir daí, contemplei a possibilidade de

desenvolvimento desta pesquisa em 1ª pessoa e de me colocar como objeto da mesma. Ainda

esbarramos dentro dos programas de pós-graduação com as questões técnicas e metodológicas

da pesquisa, onde o caminho se dá de forma tradicional e mecanicista, em que o objeto de

9 Professor efetivo do Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do

Estado da Bahia, e líder do GRAFHO – “Grupo de Pesquisa (auto) biografia, formação e história oral”. Sua

pesquisa sofre influências dos estudos de iminentes professores da Universidade de Genebra, oriundos da

antropologia, das ciências e da psicologia da educação: Marie-Christine Josso, Mahtias Finger e Pierre

Dominicé, e do professor da Universidade de Lisboa, Antônio Sampaio da Novóa, doutor em ciências da

educação e história moderna e contemporânea. Os reflexos dos pensamentos destes professores visam uma

perspectiva de autonomização educativa, ou seja, a busca de sujeitos autogerirem seus próprios processos

educativos e educacionais.

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observação está fora com a alegação de que o distanciamento se faz necessário para uma boa

crítica e melhor assimilação dos resultados. Por anos, o pensamento subjetivo foi considerado

descartável. As pesquisas autobiográficas se inserem na educação contemporânea, onde o

sujeito e suas subjetividades ganham legitimidade para o campo do saber.

Então precisava encontrar um campo de quebra de paradigmas para investigar as

possíveis contribuições da história de vida vir a ser considerada como válidas para uma

aproximação científica, ou como recurso pedagógico para se pensar a auto formação nas

relações entre vida pessoal, acadêmica e profissional, assim como tem sido nas pesquisas

autobiográficas desenvolvidas nos programas de pós-graduação da área da educação

contemporânea, e foi assim que encontrei meu mote metodológico. Reforço ainda mais

dizendo que os paradigmas aqui propostos se inserem através do mecanismo de pesquisa pós-

positivista, que não rejeita o método cientifico, mas pensa em novas aberturas de saberes e

suas bases estão pautadas no realismo ontológico, ou seja, as relações entre a natureza, a

existência e a realidade do ser, a possibilidade e o desejo pela verdade objetiva - existem duas

realidades: a objetiva que é aquilo que vejo a olho nu, e a subjetiva que são abstrações sobre

algo. Os estudiosos desta vertente observaram que, para cada verdade objetiva, existem

muitas mais verdades subjetivas, assim, foi necessário dar um corpo concreto para a

subjetividade, porque o homem se baseia muito mais na verdade subjetiva que está

estritamente relacionado à sua verdade, do que na objetiva, que é indiferente a ele, e por fim o

uso da metodologia experimental que aqui se aplica a metodologia autobiográfica e a essa

pesquisa, onde parto das minhas experiência e vivência (FORTIN, GOSSELIN, 2014). No

entanto, a metodologia autobiográfica e sua inserção pesquisa ainda é muito recente no

cenário brasileiro.

A utilização do termo história de vida corresponde a uma denominação genérica em

formação e em investigação, visto que se revela como pertinente para a auto

compreensão do que somos, das aprendizagens que construímos ao longo da vida,

das nossas experiências e de um processo de conhecimento de si e dos significados

que atribuímos aos diferentes fenômenos que mobilizam e tecem a nossa vida

individual/coletiva. Tal categoria integra uma diversidade de pesquisas ou de

projetos de formação, a partir das vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas

plurais ou vidas profissionais, no particular e no geral, através da tomada da palavra

como estatuto da singularidade, da subjetividade e dos contextos dos sujeitos

(SOUZA, 2006, p. 27).

Em específico, a partir da década de 90, houve uma expansão das pesquisas

autobiográficas nos programas de pós-graduação, principalmente na área da educação, tendo

em vista um mecanismo pedagógico para docentes na sua formação inicial, continuada e até

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mesmo memorial, através do entrecruzamento da história de vida, história acadêmica e

história profissional, “como meio de investigação e instrumento pedagógico, segundo Nóvoa

(1988), para melhor compressão do sujeito que se coloca como objeto de pesquisa” (SOUZA,

2004, p. 15), cujo objetivo fim é investigar como a relação vida pessoal, formação acadêmica

e profissional traçam estratégias para refletir, interagir e sentir os mecanismos de ação da

formação do nosso sujeito, aqui em específico, o de docente. Em sua tese de doutorado, o

pesquisador Souza (2006, p. 24) diz: “busco uma revelação das aprendizagens construídas ao

longo da vida como um metacognição ou metarreflexão do conhecimento de si”. O

pesquisador continua dizendo a importância desse recurso para extrair metodologias para o

ensino de seus alunos, ou seja, ao investigar o percurso e as práticas utilizadas em campo de

ensino, fortaleço aquelas que são caras para uma aprendizagem de qualidade e um revisar de

outras que não alcançaram tais fins. Apesar de eu não ter escolhido, na graduação, o caminho

da licenciatura e não ter buscado uma profissionalização nesta área, desenvolvi, ao longo dos

anos, uma docência nos moldes de uma educação não formal, onde o trabalho em sua maior

parte foi voluntário, dentro de uma instituição destinada a cuidar da saúde mental. Completa-

se, esse ano, 10 anos de atividades teatrais desenvolvidas com sujeito com transtornos

psíquicos e ainda estamos engatinhando nos enfrentamentos que essa prática se destina. Essa

pesquisa é um ponta pé inicial para descortinar os reflexos positivos e até mesmo negativos da

relação teatro e saúde mental dentro da nossa realidade e experiência. Existem trabalhos de

destaque na relação entre teatro e saúde mental, dentre os quais podemos citar dois grupos

com esse fim: o grupo teatral Sapos e Afogados, de Belo Horizonte, e Cia UEINZZ, de São

Paulo, grupos com trajetórias há mais de 10 anos com circulação de espetáculos até no

exterior.10 O importante aqui é destacar que a metodologia autobiográfica se insere no cenário

das artes11 recentemente.

Para sistematizar uma pesquisa nos moldes biográficos, são utilizados diversos

mecanismos, como relatos orais, diários pessoais, entrevistas, correspondências, dentre outros.

E, nesta pesquisa, destacarei os diários de bordo dos meus processos de criação do

personagem dentro do Teatro do Dragão e no Coletivo Ser ou Não Ser. Souza (2004) vai

dizer que as narrativas expressas através de diários apropriadas na narrativa de pesquisa

organizam e potencializam não somente a vida profissional, mas como a pessoal em um

10 Mais informações em: <https://www.facebook.com/saposeafogadosbr/> e <http://www.pucsp.br/nucleode-

subjetividade/ueinzz.htm> 11 Existe uma publicação recém-lançada em 2017 pelos organizadores Elizeu Clementino de Souza, Irene

Tourinho e Raimundo Martins, de título “Pesquisa Narrativa: interfaces entre história de vida, arte e

educação”.

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recurso formativo não somente para si como para os outros. Digo, então, que, mesmo antes

da realização desta pesquisa, meu diário de bordo já exercia uma função de instrumento

pedagógico, porque, a partir de uma leitura crítica dos meus escritos, mesmo que

informalmente, percebia traços e características da minha personalidade embutidas nas falas e

ações do personagem, e isso me proporcionou um autoconhecimento da minha subjetividade,

sendo assim, já vinha, intuitivamente, realizando uma pesquisa investigativa formativa. Esse

processo pedagógico, ao longo dos anos, estimulou o desejo e maturidade de querer ensinar a

prática teatral para sujeitos com transtornos psíquicos, observando o seu impacto positivo para

a auto expressão corporal e psicológica.

Farei, aqui, um recorte para trazer o conceito de subjetividade, pelo qual me pontuarei,

através de Michel Foucault, descrito em seu livro A Hermenêutica do Sujeito (2010). A

evidente questão que norteia toda relação entre poder e saber em busca da verdade na

formação do sujeito em sua obra é ampliada neste livro a respeito das práticas pelas quais nos

tornamos sujeitos ou como elaboramos nossos modos de subjetivação, que são mecanismos

de produção da própria subjetividade. Como esses modos permitem com que o sujeito

constituía sua própria verdade? Foucault (2010) resgata, nesta obra, a experiência da Grécia

nas práticas de si, que se constituem como exercício da subjetividade, ou como o sujeito se

forma na relação com o mundo que o envolve e cerca. É importante destacar que, a partir da

influência do pensamento grego, este autor determina que a subjetividade envolve um modo

de vida, mas, prioritariamente, uma mudança de conduta do sujeito com relação ao seu tempo

histórico nas relações de poder e saber em busca da sua verdade. Portanto, é inevitável que, se

a subjetividade se constitui na relação com tempo histórico, ela tem que abarcar as coisas, as

relações, ou seja, que estão inseridas neste contexto. E o campo possível para acolher essas

relações é o corpo, mas muito mais que um corpo orgânico, Foucault (2010) vai destacar um

corpo constituído por via da existência, que, ao longo da sua trajetória, se depara com as

coisas do mundo e estas, também, por sua vez, tornam-se corpo: ideias, instituições, imagens,

coisas e etc. Ele vai dar destaque àqueles corpos instituídos como dispositivos disciplinares da

relação de poder e saber, como as escolas, as prisões, os hospícios, a fábrica, etc., tornando

eles dispositivos que colocam os sujeitos inseridos dentro de um raciocínio hegemônico como

forma de controle, ou seja, uma experiência que tende a ser singular, porque praticamos

nossos modos de subjetivação de forma individual, e que pode ser aplicado a todos, colocando

os indivíduos dentro da mesma caixa. Quebrar com essa lógica permite a criação de uma

prática que combata o assujeitamento ao conhecimento, porque as ciências humanas, ao longo

da história ocidental e a partir de uma busca para a produção do conhecimento do homem,

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acabou formulado conceitos de identidade e normalidade, segregando sujeitos que fugiam

desta ordem (FOUCAULT, 2013).

Foucault (2010) diz que exercitar a subjetividade de forma livre é ter uma experiência

de si, porque a experiência que efetua uma subjetividade promove modos historicamente

singulares de se realizar a experiência de si (modos de subjetivação), assim, a necessidade de

Foucault, ao final de sua obra, mesmo tendo anteriormente declarado a morte do sujeito ao

retomar a importância da subjetividade como um recurso singular contra os saberes e poderes,

é sua força de resistência que cria uma nova episteme, ou seja, no contexto histórico onde o

sujeito se insere se constituí novos paradigmas para se pensar os saberes científicos em um

modo autônomo de existência.

Através do pensamento de Foucault (2010; 2013) e das características da autobiografia

destacadas nos estudos do professor Souza (2004; 2006) na relação entre sujeito e tempo

histórico, argumento que as relações estabelecidas pelo meu corpo (subjetividade) com tantos

outros corpos, que, aqui, destaco o corpo acadêmico, o psiquiátrico e o teatral me permitiram

chegar até aqui ciente de como a “loucura” atribuiu aspectos negativos e positivos para meus

modos de subjetivação e investigar se essa experiência se faz pertinente para um processo

além de autoformativo existencial se aproxima de uma formação profissional não formal em

que o teatro se torna uma prática potente para levar o ator a um autoconhecimento,

principalmente na experiência aqui destacada com sujeitos com transtorno psíquico. Essa é a

primeira justificativa em caráter particular atribuída ao presente estudo: dizer que, ao me

permitir vivenciar uma experiência de resistência do saber e poder psiquiátrico, instaurei um

mecanismo de subjetivação para a ressignificação da “loucura”, buscando formas alternativas

para os reflexos negativos do uso de medicamento psicotrópicos e não aceitando o diagnóstico

de transtorno bipolar, ou seja, ao me aproximar da confirmação sobre os reflexos do estudo de

Michel Foucault, realizei um modo de vida.

Mas, esse lugar em que o sujeito se coloca com todo o seu arcabouço subjetivo tornou-

se um grande problematizador de pesquisa, além de permitir um caminho de horizontalidade,

de colaboração e coparticipação das relações humanas, uma vez que, como já foi dito através

do pensamento de Foucault (1984), é nas relações com os diversos corpos que eu me

reconheço e me formo enquanto sujeito. A necessidade e importância de validar essas

pesquisas nas quais a subjetividade se torna mote de constituição de saberes é justamente

perceber que, ao longo da sua constituição, a discussão sobre o que é possível ou não ser

considerado ciência ainda tem muito o que se descortinar. E encontro ressonância entre arte e

autobiografia nas palavras de Daniel Hugo Suárez, que fala da possibilidade de evolução e

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ampliação “da esperança das políticas de subjetividades”, em que a quebra com a

racionalidade ortodoxa científica é necessária para projetar

(...) pegadas simbólicas, experiências e afetos vividos e sentidos criam espaços para

interpretar aspectos de itinerários subjetivos e coletivos que, via reflexão sensível

(ou sensibilidade reflexiva), podem ser transformados em aprendizagem (...)

explorar, aprofundar e propor formas de compreender como vida, arte e educação

traçam, desmancham e redesenham nossos jeitos de conceber, pensar e agir e sentir

enquanto fazemos (nossas) histórias. (SUÁREZ, 2015 apud MARTINS; SOUZA;

TOURINHO, 2017, p. 14).

Assim, os saberes produzidos se dão sempre em mecanismos relacionais no encontro

de corpos afins ou não para a constituição da história. Retomando a tese do pesquisador Souza

(2004), quando destaca o itinerário de formação acadêmica, pessoal e profissional com as

relações na formação de docentes como recurso para levantar e investigar os mecanismos que

constituíram o que eles são, o que serão, e o que querem ser no campo educacional, quero

traçar uma trajetória no mesmo viés educacional e educativo destacando 03 (três) períodos de

grande importância – em uma conjunção de investigação-formação, a saber: 1) a minha

inserção na graduação, onde qualifico a prática teatral como pesquisa; 2) o meu trabalho de

atriz no Teatro do Dragão, onde adquiri, através da prática do ator, um processo de

autoconhecimento e “ressignificação da loucura”; 3) o exercício prático teatral com os

usuários de saúde mental, que se configurou, ao longo dos anos, como minha escolha

profissional. Posso dizer, então, que essas três instâncias me proporcionaram aspectos

similares ao de uma formação e auto formação pelo viés educacional abordado pela

metodologia autobiográfica?

Através da tomada da subjetividade, que, nas pesquisas da narrativa de si, tem

objetivos heurísticos e fenomenológicos de abordagem, tanto em Foucault (2010) quanto em

Souza (2004), é dito da ruptura com o pensamento cartesiano. No campo das artes da cena, já

vemos, também, ressonâncias no livro de Narciso Telles, “Pesquisa em artes cênicas: textos e

temas” (2012), com objetivos de romper fronteiras das pesquisas com abordagens subjetivas

para “instalar parâmetros que permitam a análise da criação no contexto da própria criação,

sem comparações com parâmetros outros que não os próprios determinados pela obra ou

processo” (ALEIXO, 2002 apud TELLES, 2012, p. 08)12. Esses movimentos considerados

experimentais, que abordam uma nova relação entre o investigador e seu objeto de estudo,

12 Citação de Fernando Aleixo, ator e professor do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade

Federal de Uberlândia, quando diz que a pesquisa em arte traz aspectos do relativismo e da subjetividade, e que é

justamente nesse lugar que o pesquisador ocupa uma liberdade de expressar em um não-lugar (melhor definido

como lugar expandido).

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vieram de uma vertente de pensamento quebrando paradigmas autoritários na condução do

saber, da necessidade de promover outros métodos de investigação e de se ter outros

mecanismos para pensar a ciência, principalmente nas artes da cena. Motivada por realizar

essa inserção, me senti impulsionada através do último periódico da Revista Brasileira de

Pesquisa (Auto) Biográfica, de agosto de 2017, na qual está publicado o artigo “Estado da

arte da pesquisa (auto) biográfica: uma análise do portal de periódicos capes”, de Oliveira,

Ramos e Santos. Os autores realizam um mapeamento da produção do conhecimento no

campo da pesquisa autobiográfica e fazem uma chamada no fim do seu estudo:

Ou seja, necessitam de mais movimentos no caleidoscópio, para que possamos

conferir outros arranjos e imagens sobre o estudo deste artigo; como sugestão pode-

se ampliar a área do conhecimento para além do campo da educação, procurando

como tem se configurado o campo da pesquisa autobiográfica com a saúde, a

administração, a literatura, as artes, entre outros (OLIVEIRA; RAMOS; SANTOS,

2017, p. 464).

Finalizo este capítulo dizendo que a metodologia autobiográfica, para além de

encontrar um lugar confortável que situa esta pesquisa, tornou-se grande desafio para se

pensar o ensino das artes cênicas no âmbito da saúde mental através da minha história

pessoal. A autobiografia ainda pode ser considerada uma modalidade de discurso típico da

modernidade, como uma ideia central de um nascimento do sujeito com tarefa de se tornar um

entendedor de si mesmo para a prática com outro.

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PARTE II - “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA”

2 O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI: A ARTE DA VIVÊNCIA

Neste capítulo, descrevo minha prática teatral desenvolvida no Teatro do Dragão

através da vivência do trabalho do ator sobre si, tendo como mote de criação a memória

afetiva, termo usado aqui no Brasil pela influência das traduções inglesas, mas que, nos

manuscritos diretamente do russo, aparece como memória emocional. Isso será feito tomando

como base o livro Stanislávski: vida, obra e sistema (2016), dos autores Aimar Labaki e

Elena Vássina. Essa prática me permitiu criar uma relação de alteridade com o personagem,

ou seja, o transformando em outro, observei, através das suas características e ações, nuances

da minha personalidade. Por isso, digo que desenvolvi e me aproximei da constituição de um

corpo biográfico (JOSSO, 2012), onde os meus modos de subjetivação foram percebidos nas

falas e ações do personagem, me aproximando de um mecanismo de autoconhecimento. Essas

observações se deram através da leitura e crítica dos meus registros do processo de criação

feitos em diários de bordo. A cada novo processo de criação, mais me aproximei de uma

prática pedagógica de autoconhecimento, mesmo que informalmente, e o único objetivo era

me aproximar de uma realidade, como na frase de Ferreira Gullar que intitula a segunda parte

desta dissertação.

2.1 A vivência do ator e seus reflexos: uma mulher marginal nas ruas de Ouro Preto

Na época de Stanislávski, os espetáculos eram apresentados nos palcos italianos tendo

o texto como mola propulsora para a construção do personagem. Na contemporaneidade, a

prática teatral foi experimentada em novas possibilidades de espaços e estéticas para a criação

dos espetáculos. O importante no sistema criado por Stanislávski é criar um diálogo com seus

conceitos e trazer a luz pistas onde há prática na vivência do ator: “onde há a verdade, a fé e o

“eu existo” inevitavelmente nasce à vivência verdadeira, humana (e não atoral)” (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 309). Ou seja, investigar para além do espetáculo através da vivência do

ator, onde a imersão na construção do personagem permite a construção de uma realidade

psicofísica para aproximação de si. O espetáculo Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (2006)

foi o terceiro trabalho realizado no Teatro do Dragão e foi, também, o meu TCC – Trabalho

de conclusão de curso em Interpretação.

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A história central do espetáculo se passava através do drama de uma mãe com o nome

de Luneta (feita por mim), mulher pobre que sonhava em ser cantora, apesar de não saber

cantar, engravidou por descuido ao relacionar-se com um homem casado e via no filho um

entrave para as suas relações e conquistas, mas nunca teve coragem de abandoná-lo. Por sua

vez, Cleiton Rogério, também ambicionava ser famoso e seu sonho era ser jogador de futebol,

mas o estigma sanguíneo não o deixou, além de ele ser um grande perna de pau. Assim, não

viu outra forma de conseguir dinheiro fácil que não fosse pelo envolvimento com o tráfico de

drogas, contraindo uma dívida como o dono da boca, o Macu, colocando sua sobrevivência

em jogo. Deste triângulo, a trama se desenrolava. Luneta e seu filho se aventuram na busca do

“jeitinho brasileiro” de conseguir o dinheiro para pagar a dívida, através da ajuda de pares

comuns, políticos, lideranças religiosas, santos devotos e até do apresentador de programa

Sílvio Santos, tendo em seu encalço sempre a figura opressora de Macu.

Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).

Fonte: Arquivo pessoal

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Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).

Fonte: Arquivo pessoal

Pelas influências da estética cinematográfica de Glauber Rocha e seu manifesto “A

estética da fome” (1965), a proposta de criação do espetáculo realizada por Luciane Trevisan,

diretora e pesquisadora do grupo, era a de criar um espetáculo com traços bem brasileiros, no

qual os personagens e seus dramas trouxessem a tona questões da nossa sociedade: a própria

miséria, a desigualdade social, o fascínio pelo futebol, as influências e consequência do

tráfico de drogas, a intervenção da televisão nas formas de opinião e na conduta do povo, a

diversidade religiosa, os reflexos da política, dentre outros. Além disso, pretendia realizar um

trabalho nas ruas e em espaços alternativos, e que esses influenciassem e contribuíssem para o

trabalho de criação do ator; colocar o ator em vivências de criação do personagem, onde esse

fosse inserido dentro da rotina e dia-a-dia da cidade; criar alegorias que representassem as

qualidades e mazelas brasileiras a partir das influências do trabalho de Glauber Rocha.

A narrativa e dramaturgia do espetáculo foram construídas em três atos, o objetivo era

proporcionar aos espectadores a sensação de tempo-espaço das tragédias gregas. Eles eram

realizados em três lugares e horários distintos ao longo de um dia.13

O grande barato deste trabalho, para nós, atores, foi perceber que, em determinado

momento da trama, ficção e realidade se fundiram - porque os personagens foram tão

13 A trama começava na feira da barra – de legumes, frutas e verduras - ao mesmo tempo em que ela acontecia.

Após o almoço, o próximo ato era realizado em espaços distintos dentro da Escola de Minas/UFOP – nesta

época, o curso de artes cênicas ainda incorporava o prédio. Por fim, à noite, o desfecho do espetáculo se dava em

uma ruína na Rua Pandiá Calogerás, conhecida como morro do gambá, na subida para o Campus da

universidade.

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incorporados e aceitos pela cidade e seus moradores que, ao sair nas ruas e mesmo não

estando mais vestida no figurino da Luneta, era tratada como ela, e isso se configurou como

uma realidade favorável de comunicação entre espectador ator, muito parecido com os atores

do TAM, através do trabalho de vivência do ator, onde “literalmente nosso sentimentos e

desejos interiores emitem raios que saem por nossos olhos, por todo o corpo, e que envolvem

as outras pessoas com sua corrente” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 309), e isso se configura

com uma excelência na interpretação. Outra experiência muito potente foi a imersão dos

atores, que ficavam ao longo de todo o dia do espetáculo imerso na realidade ficcional, ou

seja, os atores não saiam dos personagens no intervalo dos atos, continuavam vivendo a

realidade de um dia. E, também, essa experiência se aproxima da vivência do ator

estabelecida por Stanislávski, quando destaca as características desse trabalho, em que inseria

“tarefas do ator mesmo, como ser humano, análogas ás tarefas do papel” (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 306).

Assim como Stanislávski, a diretora do Teatro do Dragão queria nos aproximar de

uma excelência na atuação na relação entre arte e vida. Mas, para além do espetáculo, quero

dizer que essa realidade me aproxima de uma vivência psicofísica potente de

autoconhecimento, uma vez que, estando nas ruas e vivendo seus imprevistos, o meu estado

de atenção me faz perceber quais as minhas reações e raciocínio na relação como os outros

atores e com os moradores da cidade, ao passoque existe uma linha tênue entre o que é reação

do personagem e do ator, e se, de fato, elas se distinguem. Quando transformei o personagem

em outro para destacar nuances da minha personalidade, o fiz de forma figurativa, uma vez

que as reações do personagem em cena se davam em respostas à minha forma cognitiva de

pensar e atuar no cotidiano. Para isso, Stanislávski diz que: “a criação seguindo um tema de

outra pessoa, ás vezes, é mais difícil do que a criação de sua própria invenção” (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 296). Ele segue dizendo que os estímulos em cena através da vivência do

ator é elaborado neste em um mergulho psíquico e físico para criação de personagens vivas

(LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 296). Assim, quero dizer que esse tipo de prática em que vida

e arte estão em verdadeira simbiose aproxima o ator para além de um exercício na busca da

excelência da interpretação teatral, levando-o a um exercício estético para além do espetáculo,

uma prática pedagógica da formação de si. Aqui, comecei a vislumbrar que essa prática me

possibilitava um bem estar e expressão corporal e psicológica positiva ao ponto de perceber,

nitidamente, a diminuição das características consideradas sintomas do transtorno bipolar:

mudanças episódicas da transição da depressão para a mania, me mantendo mais equilibrada.

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A construção da personagem Luneta se desdobrava em alegorias que fazem parte do

inconsciente coletivo brasileiro, que “corresponde ás camadas mais profundas do

inconsciente, aos fundamentos estruturais da psique comuns a todos os homens” (SILVEIRA,

1997, p. 64), através das figuras de um pai de santo, uma pastora evangélica, um apresentador

de TV e uma cantora prostituta decadente. A psiquiatra Nise da Silveira (1997), baseada nos

estudos de Carl Gustav Jung14, diz que, como seres humanos, possuímos uma anatomia

comum, ou seja, a psique possui um substrato comum e, a esse substrato, Jung deu o nome de

inconsciente coletivo. E, portanto, dentro de uma interpretação psicológica ele “é a expressão

psíquica da identidade da estrutura cerebral, independente de todas as diferenças raciais”

(SILVEIRA, 1977, p. 66). O inconsciente coletivo brasileiro representado no espetáculo

Myzéryazz se dava através das alegorias que são “representações figuradas de objetos ideais

ou materiais” (SILVEIRA, 1997, p. 66). Esta abordagem de criação vem, também, das

influências da estética de Glauber Rocha, onde o diretor criou, através dos personagens dos

seus filmes, uma identidade alegórica nacional. Um aprofundamento melhor destas

características pode ser realizado através do texto “Alegorias do Desenvolvimento” de Ismail

Xavier (2012)15.

O que quero ressalvar no parágrafo anterior é que o teatro não somente promoveu um

desenvolvendo da minha formação subjetiva, mas também ampliou a minha inteligência

intelectual. Ainda sem nenhuma preocupação formal, acadêmica e profissional, comecei a

fazer pesquisas informais como os acima mencionados: estéticos, filosóficos, culturais e

teatrais, traçando estudos que viriam a se tornar os meus objetivos profissionais, além de

iniciar estudos sobre a “loucura”. O trabalho teatral realizado sobre a direção da Luciane

Trevisan nos obrigava não somente a uma imersão profunda em nós mesmos, mas a uma

ampliação de nossos conhecimentos intelectuais. Assim, o espetáculo Myzéryas Buzzinezz

(2016) foi um divisor de águas, porque, a partir dos reflexos físicos, psicológicos e

intelectuais, fui ganhando cada vez mais autonomia nas minhas escolhas na lida com a

“loucura”, me conduzindo para as minhas escolhas e caminhada profissional. Concluo,

também, que a prática narrativa, através da memória, me permitem aproximar a cada nova

criação de capítulo um percurso pedagógico daquilo que fui, que sou e quero me tornar

(SOUZA, 2004).

14 Psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica, criador de conceitos como inconsciente

coletivo, self, anima e animus, dentre outros. 15 Professor e teórico do cinema brasileiro, cujo texto acima está em sua tese de doutorado.

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2.2 A memória emocional como recurso para um autoconhecimento

Aqui farei um diálogo entre minhas práticas teatrais e os conceitos de memória

emocional, investigando que a construção do personagem através do trabalho do ator sobre si

proporciona uma aproximação de si, ou seja, da própria subjetividade.

Em cada novo processo de construção do Teatro do Dragão, os atores, juntamente

com a direção, destacam temas ou personas norteadores para a criação - todas as abordagens

de temas e possíveis novas configurações de personalidade do personagem que quis realizar

me foram abertas para a exploração ao longo desses anos. Os limites do trabalho sempre

foram respeitados e estabelecidos pela direção, éramos conduzidos a dizer quando algo,

supostamente, infringisse nosso estado físico e emocional. Sempre tivemos a segurança do

olhar atento da Luciane quando estávamos trabalhando nas ruas ou na sala de ensaio, sempre

estava correndo atrás de atores mais afoitos para assegurá-los o seu bem estar e, quando algo

pudesse sair do controle, falava um sonoro e enérgico: Parou. As cenas durante o processo de

criação do espetáculo foram construídas através do improviso, que é uma “técnica do ator que

interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e inventado no calor da emoção”.

(PAVIS, 1999, p. 205). A maior parte dos espetáculos teatrais criados no Teatro do Dragão

foi criada a partir da técnica do improviso, ao invés de se basear em uma dramaturgia pronta.

Antes de o processo ir para as ruas, trabalhei em salas de ensaio tendo como material

para criação, além da memória emocional, estímulos externos como: uma música, uma peça

de roupa, etc. Todo esse material passa a ser agregado ao trabalho de construção do ator, nada

é perdido, mas vai sendo incorporado no repertório do personagem. Munidos desses

materiais, em sala de ensaio, éramos estimulados por uma circunstância dada pela direção

para vivenciá-la o mais próximo da realidade, e muitos atores que já passaram pelas

experimentações do Dragão foram surpreendidos por essa imersão profunda, na qual a

vivência era, de fato, colocada a cabo.

Na feira da barra, por exemplo, como o passar do tempo, os atores e seus personagens

já estavam tão bem inseridos naquela realidade que ninguém mais se importava com a nossa

presença, não causava mais estranheza. Como existiam pessoas muitos humildes que, em

todos os domingos estavam lá à espera da xepa – que são as frutas e legumes que são

desprezadas pelas feirantes – nossas figuras também marginalizadas foram incorporadas de

uma forma muito natural. Ao ponto de uma das mulheres que ia acompanhada dos filhos para

pegar a xepa encrencar com a minha personagem - e mesmo não mais vestida com o vestido

azul com rosas bordadas de lantejoula e meia calça arrastão vermelha e salto – ela me

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perseguia nas ruas quando eu estava indo para a aula, sempre me xingando e dizendo que

queria tirar a comida da boca dos filhos dela. Uma vez, tentei abordá-la, dizendo não ser a

Luneta, e que essa era um personagem de teatro, mas não adiantou. Ficção e realidade tinham

uma linha muito tênue e acredito que, devido a esse tipo de imersão da vivência do ator,

através da criação do personagem, foi possível realizar uma aproximação e crítica da minha

personalidade, porque tínhamos que lidar com situações de fato reais ao nos relacionarmos

com os moradores da cidade, os feirantes da barra, os trabalhadores da padaria, bares e outros

estabelecimentos comerciais onde tínhamos que responder como seres reais fazendo com que

nossas ações e atitudes também fossem reais. E, a cada novo ensaio, conseguia permear entre

realidade e ficção sem confundir as duas. Mas, tinha, também, cada vez mais clareza crítica à

realidade ficcional, trazia para minha realidade uma percepção cada vez mais clara dos traços

da minha personalidade.

Outro momento interessante dessa linha tênue entre realidade e ficção foi quando a

direção nos propôs uma circunstância realista e de maior aproximação com os moradores da

cidade. Fizemos um laboratório - já estávamos bem próximo da apresentação do espetáculo e

os personagens já se encontravam bem construídos, conseguíamos sair com mais facilidade

dos imprevistos que a rua nos causava, como o caso anteriormente relatado. Fomos a um forró

na Água Limpa, um bairro de Ouro Preto bem próximo à Igreja do Rosário. A noite era

regada ao som de Juninho e Paquinha - dupla carimbada nos bailes da redondeza - e era certa

a lotação de público. O bar não era grande, o que nos permitia uma aproximação muito íntima

com as demais pessoas que ali estavam e, chegando lá, novamente houve a identificação e

rápida imersão daquelas figuras. Dançamos, rimos - até bebemos, com moderação, é claro -

sem perder o foco da investigação do trabalho do ator. Em nenhum momento foi questionado

se aquilo era teatro ou não, ou alguma suspeita daquelas figuras serem consideradas falsas.

Dancei a noite inteira com um senhor bem mais velho - dava a entender que era bem

disputado pelas mulheres pela sua habilidade na condução da dama - e como eu era novidade

naquele salão, ele ficou me levando de uma ponta a outra, exibindo seus dotes através da

minha personagem. Perguntou sobre a minha história e sem pestanejar falei que me chamava

Luneta, que queria ser cantora e que tinha um filho envolvido no tráfico. Ele chegou a me dar

conselhos e até quis me prestar ajuda, dizendo conhecer um advogado. Ao fim da noite falei

com ele que se tratava de uma investigação teatral e ele disse um sorridente tudo bem.

Nesta noite do forró, sonhei que estava cantando em um bar e estava vestida com as

roupas da Luneta. Ao acordar, tive a sensação de ser ela, como se ela tivesse sonhado e não

eu. Essa sensação foi de realização, porque sabia que ela estava extremamente incorporada a

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minha realidade, posso dizer que essa sensação foi a mais próxima de um ideal de natureza

preconizado por Stanislávski, quando diz “que o primeiro sentimento criador é estimulado

pela essência da vivência, e o segundo, pela beleza da forma que a expressa” (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 137). Então, posso dizer que, depois de meses incorporando e vivendo a

realidade da Luneta, a sua criação estava bem próxima desta concretude.

A cada nova circunstância proposta pela direção, nos solicitavam, assim como

Stanislávski propunha a seus atores, “a acreditar muito sinceramente na possibilidade concreta

desta vida na própria realidade: é preciso habituar-se a ela até o ponto de sentir que esta vida

alheia é sua” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 296). Mas, aqui, quero demonstrar que, quanto

mais entrava no mundo ficcional da Luneta, mais próxima de mim eu me encontrava. A

psiquiatra Nise da Silveria (1997, p. 79) diz que a persona “são recortes tirados da psique. E,

numa certa medida, a persona representa um sistema útil de defesa, poderá suceder que seja

tão excessivamente valorizada a ponto de o ego consciente identificar-se com ela”.

Aqui, em particular, está falando da persona - sobre as influências psicanalíticas de

Jung - que se dá pela construção da máscara social como mecanismo de defesa nas relações.

Por vezes, criamos corpos dóceis e frágeis simulando certa passividade, que, ao estímulo

vindo do inconsciente, essa máscara cai, ou seja, nas palavras de Silveira (1997, p. 79-80): “o

indivíduo funde-se então com os seus cargos e títulos, ficando reduzido a uma impermeável

casca de revestimento. Por dentro não passa de lamentável farrapo, que facilmente será

estraçalhado se soprarem lufadas fortes vindas do inconsciente”. Comigo, posso dizer que o

processo se deu de forma inversa, não criei uma máscara para criar uma defesa social, mas, a

partir da construção de uma persona (personagem) dentro do teatro, adquiri, através dela, uma

relação de alteridade que me aproximou de um reconhecimento de características da minha

personalidade que precisavam ser trabalhadas, e, também, para viver uma realidade estética

onde a vida em si não bastava, assim, criei um modo de vida para vivenciar os reflexos da

“loucura” de uma forma mais leve.

Um passo dos mais importantes para o conhecimento de si próprio, bem como para

o tratamento das neuroses, será trazer á consciência os complexos inconscientes.

Mas convém não esquecer que a tomada de consciência do complexo apenas no

plano intelectual muito pouco modificará sua influência nociva. Há neuróticos que

seriam até capazes de escrever excelentes monografias sobre seus conflitos, mas que

continuam quase tão doentes quanto antes. Para que se dê a assimilação de um

complexo, será necessário, junto à sua compreensão em termos intelectuais, que os

afetos nele condensados sejam ab-reagidos, isto é, exteriorizem-se por meio de

descargas emocionais. Os primitivos davam expressão por meio de descargas

emocionais. Os primitivos davam expressão a choques e traumas emocionais, por

meio de danças e cantos repetidos inúmeras vezes, até que se sentissem purgados

desses afetos (SILVEIRA, 1997, p. 31-32).

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Silveira, assim, se dedicou através do trabalho com a pintura e a argila a identificar os

aspectos da personalidade de seus pacientes no Hospital Psiquiátrico de Engenho de

Dentro/RJ, incentivando-os a expurgarem suas emoções e afetos no ato de pintar e moldar, ou

seja, por meio da interpretação da criação artística produzida, destacava traços das

personalidades dos seus pacientes. Por que a psiquiatra diz que é preciso ter estímulo externo

para emergir o inconsciente? Porque nosso inconsciente pessoal, aquele que pertence ao

indivíduo “são traços de acontecimentos ocorridos durante o curso da vida e perdidos pela

memória consciente; recordações penosas de serem relembradas (...)” (SILVEIRA, 1997, p.

64). Era necessário, então, criar mecanismos para acessar o inconsciente, onde estão

enraizadas nossas questões mais íntimas e, na grande maioria das vezes, desconhecidas.

Através do exercício consciente da vivência da personagem Luneta, em analogia com

essa fala de Silveira (1997), posso dizer que trouxe nas falas e ações realizadas no improviso

teatral e em suas características, a percepção de traços da minha personalidade até então

desconhecidos para mim. Ou seja, ao criar uma mulher forte que não media esforço para a

realização dos seus desejos em confronto com o filho – que o entendia como sendo o

impeditivo para suas realizações - traz reflexos muito precisos da minha história pessoal.

Luneta foi criada a partir do meu ideal de mulher, o que eu gostaria de ser, mas não

conseguia. Através dela, foi possível criar discursos enérgicos e bem persuasivos, diferente da

atriz, que, na grande maioria, se posiciona com sentimento de inferioridade em relação ao

outro - fruto do estigma da “loucura”, mas também do pensamento social e hegemônico de

que a mulher não deve colocar em prática atribuições que a tirem do lugar social construído

de mãe abnegada. Além de me fazer perceber que, também, outras atribuições precisavam de

uma melhora de conduta, como, por vezes, achar que o nascimento do meu filho tinha tirado a

minha possibilidade de desenvolvimento profissional como atriz. Como era uma atitude da

qual não me orgulhava, me vi interpretando em Luneta esse conflito com seu filho Cleiton

Rogério na trama, e essa situação se aproxima da citação de Silveira, quando diz os conflitos e

complexos precisam de um descarga emocional para serem ab-reagidos, mas precisam de

uma compreensão intelectual para serem modificados e incorporados na personalidade. Ao

trazer à tona questões dos meus modos de subjetivação, destacá-los e fazer um senso crítico

de distanciamento, fui me aproximando de mim cada vez mais e, a cada novo trabalho, isso se

tornava cada vez mais claro. Assim, vou me aproximando desse mecanismo que configurei

com uma relação de alteridade com o personagem.

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2.3 A relação de alteridade com o personagem

A personagem trazia reflexos do meu inconsciente para posturas que deveria ter diante

da vida e, assim, ia, cada vez mais, assimilando as minhas questões de conflito. Todo esse

processo só foi possível por ter desenvolvido, com os personagens, uma relação de alteridade,

em que ficava cada vez mais claro e crítica às características pertinentes da atriz e as da

personagem, ou seja, colocar o personagem no lugar de outro não criou o mesmo mecanismo

que a persona estabelece na nossa personalidade, tinha clareza do que era dela, e do que era

meu, e esse mecanismo foi se aproximando de um mecanismo de autoconhecimento. Como o

acesso ao inconsciente não se dá de uma de forma espontânea, é preciso criar condições para

que ele venha à tona (SILVEIRA, 1997). Percebi que, ao ser levada à vivência do ator na

criação do personagem, em uma aproximação de realidade paralela – claro que com plena

consciência, sendo possível sair deste lugar a cada vez que me era solicitado – começava a

vislumbrar aquilo que Stanislavski estabeleceu e percebeu através da mesma, que essa

experiência empírica leva “o artista busca material espiritual em sua alma e também nas

experiências de vida que acontecem ao seu redor e na natureza” (LABAKI; VÁSSINA, 2016,

p. 294). Assim, fui adquirindo habilidades técnicas para entrar nessa realidade paralela, sem

causar prejuízos a sua personalidade, ou se confundir com o mesmo. Mas, ao mesmo tempo,

criei habilidades estéticas existenciais pelas quais o autoconhecimento foi possível, uma vez

que essa imersão me aproximava da minha própria natureza e dos meus mecanismos de

constituição dos modos de subjetivação. Desse modo, desenvolvi, através da relação de

alteridade com a personagem, uma habilidade bem particular que defendo como positiva para

me aproximar da constituição de uma estética da existência.

Então, aqui, desenvolvi por meio desta prática um mecanismo “para estabelecer

contato com o mundo exterior, para adaptar-se às exigências do meio onde vive, o homem

assume uma aparência que geralmente não corresponde ao seu modo de ser autêntico”

(SILVEIRA, 1997, p. 64). Ciente da minha característica passiva e da dificuldade de mudar,

ao estar inserida no ambiente ficcional, criava um personagem ideal, onde eu podia colocar

em prática vivências que queria viver no ambiente real. Se a criação do personagem tem que

passar por mim, pelas minhas sensações e sentimentos, ou seja, pelo meu corpo, os reflexos

disso, para além do exercício da interpretação primorosa, pode me levar a outros

desdobramentos e implicações.

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2.4 Demonstrações práticas da relação de alteridade com o personagem

Ao destacar, nas entrelinhas do meu diário de bordo, o processo de construção da

personagem, observei que o “ator cria a partir de si mesmo e vivencia a imagem. No caderno

em que ator anota o papel, do direito está a obra do ator, enquanto, do lado esquerdo, ele

anota seu trabalho espiritual” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 139). Através desse exercício

de interpretação e crítica e, também, das falas e ações do personagem, comecei a perceber um

existir enquanto humano - não criei uma relação esquizofrênica com os mesmos – ao projetar

para cena as minhas memórias (meu inconsciente), fiz um resgate intimo da minha

personalidade. Lembrando que, aqui, o inconsciente se configura com ideias de Jung, que são

projeções daquela parte minha que foram muitas vezes recalcadas. Então, ressaltei as

características do personagem, as destaquei e coloquei em primeiro plano, depois comparei

com as minhas características pessoais. Aos poucos, fui percebendo a necessidade de olhar

para essas características e incorporá-las a minha realidade, seja em um embate de mudança

de postura a partir da minha necessidade e crítica de mim mesma, seja fortalecendo as

qualidades percebidas. É importante destacar que Jung traz a ideia de sombra para aquilo que

precisa ser iluminado – ou seja, reconhecido, trazido à nossa consciência – com o desejo de

nos conhecermos, e que os mesmos estão imersos na nossa inconsciência, mas não somente os

aspectos negativos se encontram desconhecidos, existem potencialidades na nossa

personalidade que também se encontram na sombra (JUNG, 1978).

Todo esse processo foi realizado de forma intuitiva e não se deu de forma tão fácil,

deste insight até aqui são 11 anos em uma busca de autoconhecimento necessária para uma

ressignificação de como a “loucura” perpassou na minha vida. Lembrando que a doutora Nise

da Silveira (1997), quanto à influências do pensamento Junguiano, reconheceu a necessidade

de encontrar mecanismos para acessar o inconsciente e descobriu, através da prática do ato de

pintar e moldar a argila, um recurso necessário para abrir esse campo, assim, digo que a

prática do ator sobre si me aproxima desta mesma realidade. Então, o processo de alteridade

com o personagem, pelo qual suas vozes e ações trouxeram evidências das características da

minha personalidade, se aproxima de uma entrevista dada pelo psiquiatra e psicoterapeuta

brasileiro Joel Birman, atualmente, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ), para o programa Arte do Artista do Canal TV Brasil. Transcrevo partes que

considero relevante para essa possível comprovação:

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Talvez eu vá dizer uma heresia para alguns dos meus colegas psicanalistas, mas eu

acho que a invenção da psicanálise ela deve muito mais a tradição literária do que a

tradição científica (...) E sobretudo ao teatro. O Freud começa o seu primeiro

momento de tratamento com a cura catártica. Ele traz a teoria da tragédia do

Aristóteles para falar do efeito da catarse sobre o público que assistia as tragédias

antigas. É isso que ele traz para a experiência psicanalítica. Por que quando os

ingleses traduziram Freud fizeram uma tradução cientificista dele, tiraram todas

essas marcas que o texto dele tem. Como o Freud descreve a experiência psíquica,

inconsciente. Qual a palavra ele utiliza? Cena. A cena psíquica, então existe uma

cena na consciência, uma cena do inconsciente. (...) O psicanalista opera uma

aventura com seu analisando, que ele sabe como começa, mas que não sabe como

vai acabar. O psicanalista pode ser um crítico de arte e ao mesmo tempo pode ser

um artista a sua maneira, por que o que está sendo forjado ali, se podemos usar uma

imagem literária, você está forjando uma história, dando uma nova versão de uma

história do sujeito que te procura. Os personagens daquela história serão relançados,

e de certa maneira aquela história tem dois autores, o analisando e o analista. (...)

Nesse sentido que eu acho que o teatro é a arte, a modalidade de arte mais próxima

da psicanálise, por conta da cena (BIRMAN, 2014, s/p).

Para Birman (2014), é na cena psíquica e na apropriação da memória através do

diálogo do analista e analisando que esse reconhecimento do que emerge do inconsciente é

revisitado e reinterpretado, podendo se configurar como um novo olhar sobre questões e

características de difícil compreensão para o sujeito analisado. Essa descrição foi o que mais

se aproxima desta prática que constituí ao longo desses anos. Digo, a partir dela, que a cena

teatral, sendo reproduzida em detalhes através da minha escrita de diário de bordo e ao fazer o

personagem outro, o constitui como o analisando e me coloquei no papel de analista

destacando as características das falas e ações do personagem, associando com minha

personalidade. Esse processo, ao se tornar hábito, revelou-se como uma prática pedagógica de

autoconhecimento. Destacarei três diários de bordo de processos diferentes, dentro de uma

ordem cronológica ascendente de ano, mas apontando, nos três momentos, uma característica

marcante da minha personalidade, que é a baixa estima. Optei por destacar uma única

característica presente nos três diários para entendimento de como eles exercem uma função

autorreflexiva sobre mim mesma. As interpretações são bem pessoais e, por assim ser, digo

que esse mecanismo se faz potente e positivo através da minha própria realidade e leitura, mas

se retomarmos os estudos de Foucault (2010), sendo a subjetividade como um meio de vida,

posso dizer e afirmar que essa prática se tornou um meio eficaz de equilíbrio pessoal.

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2.4.1 Diários de bordo

Fonte: Arquivo Pessoal

1) Processo de construção do espetáculo Myzéryaz Buzznezz – Dia 24 de julho de 2006,

domingo

Fonte: Diário de Bordo

Vivíamos os ensaios de forma muito intensa e, na grande maioria das vezes,

estabelecíamos diálogo com o espaço e as pessoas que ali se colocavam. Nesse momento do

processo de criação, os personagens já estavam com suas personalidades bem estabelecidas,

bem como suas relações, tanto com os demais atores, como com as pessoas que se

encontravam nos espaços que ensaiávamos. Todos os domingos, os ensaios aconteciam na

feira da barra, como demonstra a Figura 3. A direção nos orientou a estabelecer quais seriam

os lugares de atuação de cada núcleo da trama, já que vínhamos realizando ensaios

Figura 3 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol

(Ouro Preto,2006)

“... ado, ado, cada um no seu quadrado... Quando dentro do exercício se tem um objetivo e uma meta a

ser alcançada e esse mesmo objetivo se mistura a vida? No exercício em específico, defender ou

conquistar algo que se quer muito. E, nesses casos sempre penso na minha família. Isso traz uma força

muito maior, a energia da conquista também ganha uma proporção maior, porque insiro no mesmo

exercício essa linha tênue de arte e vida, que para mim funciona muito bem. Meu objetivo era de

proteção, e dentro estavam pessoas muito importantes, iria fazer de tudo para expulsar quem ali

estivesse. E fui obrigada a raciocinar, porque lidando com homens, a força física deles é muito maior, ter

que usar de estratégia e não de agressividade me fez sentir inteligente, porque na grande maioria das

vezes me sinto burra por não conseguir pensar nas minhas ações. Obs.: O cauã disse que foi o ensaio

mais legal porque tinha uma tarefa difícil”.

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conjuntamente e não mais separados. Assim, com o espetáculo sendo realizado em três

espaços distintos, cada núcleo teria um local como sendo de seu domínio. A feira da barra já

se constituía como um lugar de acolhimento e significados para nosso núcleo, formado por

mãe (Luneta) e filho (Cleiton Rogério). O estímulo dado pela direção era para definir lugares

e estabelecer aquele território como sendo meu, para já pensarmos em possíveis marcações de

cena para o espetáculo. Então, cada núcleo tinha que defender seu território da invasão do

outro e, para gerar um estímulo afetivo, tinha que colocar, dentro do espaço, algo ou alguém

de muita estima. Através do recurso da imaginação, artifício esse muito usado pelo ator,

coloquei meu marido e filho. Lembro que o embate foi duro, o jogo só terminaria com um

vencedor e, ao final, estávamos exaustos porque, tendo que disputar com o homem, saberia

que iria perder em força física, então tive que usar de recursos criativos e persuasivos para

alcançar o meu objetivo, como, por exemplo, usar do discurso como mecanismo para tirar a

atenção do adversário, enquanto minha companheira de trabalho, que também era mulher,

mas fazia uma construção masculina, conseguia vir por trás e, unidas em força, conseguirmos

tirar o adversário (ator) daquele espaço. Outra forma foi, também, usar os feirantes e

transeuntes que ali se encontravam a comprar nossa briga, uns já sabendo se tratar de teatro e

entrando no jogo do faz de conta, e outros que, mesmo não sabendo do que se tratava, se

compadecia da dor daquela mulher que estava sofrendo uma eminência de agressão

masculina.

Essa mistura entre ficção e realidade em uma vivência de ator muito profunda exercia

uma faceta comentada por Stanislávsk, que é a utilização do consciente e do inconsciente na

criação. Ele vai dizer: “Durante o processo de busca das tarefas que se usam para a construção

consciente do papel, o inconsciente desempenha uma grande e importante função” (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 190). Aqui, quero, recorrendo a Birman (2014), me aproximar e fazer

uma relação de possível diálogo através do exercício do que emerge do inconsciente para a

cena psíquica e do que emerge do inconsciente do ator para a cena teatral. Ao recordar a

própria história através da narrativa oral no processo de análise, analista e analisando a

recriam em possíveis ressignificações, essa fala e escuta imbricadas fazem das histórias

difíceis de serem elaboradas se tornarem apaziguadas pelo analisando. Assim, posso dizer que

na cena teatral, ao trazer fatos do inconsciente para a cena por meio das falas e ações do

personagem e ao percebê-los como recalques ou características de personalidade minha que

evitava encarar, tornam-se apaziguadores pela repetição do ato teatral.

Por meio do exemplo descritivo deste diário de bordo, quero dizer que, ao trazer para

o jogo cênico a energia afetiva do valor familiar pelo improviso usando a memória emotiva,

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trouxe, para a minha construção, um vigor para a conquista e sobre o valor do sentimento.

Stanislávski diz que “o afeto às vezes é mais forte do que a realidade” e que ele pode ser

consciente ou inconsciente, porque é necessário que a ação passe pelo sentimento do ator para

se tornar uma interpretação verdadeira (LABAKI, VÁSSINA, 2016, p. 143). Assim, entregue

à ficção com um senso de realidade muito potente, passei a estabelecer o meu intento, mas,

quando deixei o meu raciocínio de ator interferir na proposta, comecei a perder o jogo,

porque, como já mencionei aqui, estava em crise com a minha maternidade ao acreditar que

ela me traria reflexos negativos para a realização das minhas escolhas profissionais. Foi

quando comecei a me colocar abaixo dos atores homens e o que me fez conseguir estabelecer

o comando do jogo foi trazer para minha realidade de atriz (sujeito) a energia da Luneta,

mulher que, mesmo tendo problemas bem parecidos com seu filho, se safava das situações

mais cabeludas pelo amor a ele e, mesmo em muitos momentos de baixa estima, conseguia

passar um batom da mesma cor da meia arrastão e correr atrás dos seus sonhos. Com isso,

quero comprovar que comecei a observar nas entrelinhas da construção do personagem e nos

escritos dos meus diários de bordo aspectos da minha personalidade que precisavam ser

ressignificados. Assim como na cena psicanalítica, a cena teatral se descortinou, para mim,

como um mecanismo de autoconhecimento.

Outra situação que ainda quero destacar é o comentário ao final do diário, no qual fica

clara a inserção do meu filho nos períodos de ensaio e, ao trazer a metodologia autobiográfica

para essa pesquisa, me recordei o quanto era divertido a sua participação, o quanto sua

infância foi regada pela ludicidade do jogo cênico como uma prática positiva e como

estávamos juntos e cúmplices da construção da nossa história. Por muito tempo depois, me

deixei levar por comentários contrários e achei que tivesse agido negativamente com ele, mas

esta pesquisa me estimulou a conversar com ele e o que tanto me chamou a atenção foi

perceber que suas recordações são muito positivas, embate que sempre foi negado por mim

pelo medo da resposta. Mas, ainda assim, posso dizer que, se assim o fosse, teríamos tempo

de reaver seus reflexos.

Percebe-se que o processo autobiográfico se dá através de uma investigação por

elementos múltiplos e heterogêneos do sujeito: físicos, psíquicos, fisiológicos, sociais,

religiosos, etc. (SOUZA, 2004). Através da narrativa nesta pesquisa, fez-se um exercício

mental de apropriação da memória - em consonância com a proposta autobiográfica, que é

uma investigação-formação que passa pelas minhas vivências pessoais, educacionais e

profissionais. Sendo assim, posso dizer que, antes de entrar para a graduação, tinha uma

postura obtusa em relação aos diversos corpos ao meu redor e, somente após o exercício

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intelectual da minha formação acadêmica, vislumbro possibilidades de entendimento e forças

para questionar e investigar o meu lugar de sujeito na relação com os mesmos.

Consequentemente, a minha situação emocional vem ficando cada vez mais equilibrada para

processar todas as questões que me afetavam para um equilíbrio e crítica. Foi necessário um

tempo de exercício até me considerar madura para formalizar essa experiência pessoal em

possível pesquisa, buscando a efetivação desta prática como recurso pedagógico.

2) Processo de ensaio do Edifício Dora – 26 de Agosto de 2012, domingo

Figura 4 - Edifício Dora (Mariana, 2013)

Fonte: Arquivo pessoal

Figura 5 - Edifício Dora (Mariana,2013)

Fonte: Arquivo pessoal

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Esse espetáculo foi criado dentro das dependências da casa de Cultura de Mariana e

teve patrocínio do Fundo Estadual de Cultura. Os atores vivenciaram a realidade de uma casa

e seus conflitos familiares. A trama girava em torno de uma parteira e seus filhos adotivos,

todos rejeitados pelos seus pais. Esse foi o primeiro trabalho em que realizei uma relação de

casal: o meu personagem era homem e a personagem do ator Edgar Barros, uma travesti.

“Achei interessante o fato do Flávio não poder participar do ensaio hoje para ver se consigo retomar a

relação de Castanha e Reginaldo. Mas, sem saber que o Edgar vinha ensaiar com toda uma ação

arquitetada. Castanha se arrumou toda e levou Reginaldo para o fundo da casa, arrumando no quintal uma

toalha, e em cima um pote com calda de chocolate, vinho e um baralho, dizendo ter visto na televisão esse

piquenique. Disse que tinha programado passar a tarde juntos, e toda insinuante e jogando charme

convencia Reginaldo a se lambuzar de calda de chocolate e beber o vinho, mesmo ele tendo feito uma

promessa para Padim Virgulino de não beber até arrumar um novo emprego. (Quando consigo empregar em

Reginaldo pensamentos masculinos e pensar como homem sinto satisfação porque nos momentos de

relação conflituosa e em momentos que tenho que usar de raciocínio rápido penso como a atriz e mulher

que sou, aí dá certos conflitos, por que foge um pouco do reflexo masculino. E para fazer isso preciso de

estar muito concentrada nas ações do personagem e nas ações que estão sendo realizadas pelos meus

companheiros de trabalho). E quando ele percebe em Castanha toda essa sedução, ele se demonstra muito

macho querendo tirar proveito daquela que é seu objeto de desejo. Concorda com toda a sua artimanha,

mesmo que somente para realizar seu intento de possuí-la, ao convencê-lo a vender o filho de Marta.

Mas, ao mesmo tempo discorda inventando uma história fiada pode encontrar um pepita de ouro nas minhas

de mariana no mesmo valor da venda do menino: 40 mil reais. Mas, que para isso precisava ser registrado

na firma, e passar os meses de experiência. (Agora avaliando esse momento e depois de uma discussão

sobre o que é o pensamento do ator e o que é o pensamento do personagem, me pergunto: é Reginaldo que

inventa uma história para tirar proveito da situação ou é a Paola que não quer colocar um macula na sua

criação, inserindo um desvio de caráter em seu personagem?!. Quero empregar um boa índole na

construção deste personagem, mas isso têm feito com que eu não ampliei meu jogo de cena quando as

propostas de trabalho são voltadas para o desvio da moral e isso está um pouco conflituoso na minha

construção). Reginaldo tendo o baralho que Castanha havia levado em mãos propõe um jogo a valer

favores sexuais. Tendo ganhado a partida pedi para ela dançar para ele cantando a música da Dalva de

Oliveira e nesses momentos o meu personagem parece que ganha vida sobre a minha pessoa e minha

concentração se volta toda para a relação que ele estabeleceu com Castanha, ele fica muito excitado por ela.

Ele reforça o seu desejo de ser Diva dizendo que ela pode chegar a esse lugar. Como ela se empolga com a

situação, e como medo de perdê-la fica com ciúmes e desconversa chamando a atenção de novo para ele.

Nesse momento, Castanha começa a lambuzá-lo com calda de chocolate e o faz beber o vinho beijando a

sua boca, insistindo nos 40 mil reais e na venda do menino dizendo precisar do dinheiro para montar um

salão para ela. Os dois se empolgam no contato físico, Reginaldo joga Castanha em cima da toalha e

começa a beijar a sua barriga. Ela se levanta e ele atordoado corre atrás dela dizendo que não pode deixá-lo

assim tesudo e ir embora (...).

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Fonte: Diário de bordo.

Para um melhor entendimento, relatarei a situação da trama para situar o processo de

ensaio descrito. Uma das filhas da parteira, Marta, se encontrava grávida e era mantida presa

no porão da casa, todos os demais filhos tinham interesses individuais no nascimento desta

criança. Esse conflito virou um jogo cênico potente para estabelecer a relação e a história

comum entre os personagens, além das particularidades individuais de cada um. Castanha

queria vender o filho de Marta para o comércio clandestino de órgãos com objetivos de

montar um salão. Reginaldo, por sua vez, queria estabelecer com Marta uma relação familiar

de fachada para manter sua relação às escondidas com Castanha. Na trama, seu desejo era se

apropriar das terras de sua família nordestina e voltar para a vida no sertão para um regaste e

reconhecimento do que era antes de vir para a capital.

Novamente, percebo, através desta história criada pelo meu personagem, o desejo de

retorno à família. Esse conflito estabelecido por mim entre o teatro e família e seus reflexos,

em certa medida, sempre permeiam as minhas construções. E, também, a questão da

autoestima, pois, além de trazer um personagem que por si já sofre muitos preconceitos

sociais por ser nordestina, tem uma deficiência na perna. Eu não consegui, ao longo da trama,

entender porque ele tinha essa deficiência. Às vezes, tentava trazer uma história que

justificava, mas não me convencia, então, comecei a investigar uma possibilidade psicológica

embutida. Foi quando percebi que essas fragilidades demonstradas pelo personagem eram

minhas: estava, novamente, demonstrando a minha baixa estima em relação ao jogo com o

outro.

Quando comecei a construir esse personagem, iniciei o processo com o meu rosto

tampado. Não queria uma identidade e nem um gênero para ele, queria que, ao longo do

processo, isso fosse se descortinando. Depois, começamos a trabalhar com uma máscara

neutra e, quando ele se estabeleceu como homem, a mantive em uma alusão há quando,

(...) Ela pega uma mangueira e joga água nele, depois nela e dois voltam a rolar no chão. Existe um frenesi

nessas ações, um estado de entrega muito grande entre os atores. (Pensando agora friamente sobre o ensaio

de hoje, fica cada vez mais evidente que realmente existe uma realidade ficcional criada pelos atores, e que

existe também uma humanização nessa relação e uma química muito grande. E que de fato não consigo

manter o mesmo nível de excitação e de atração pelo Edgar depois que o ensaio termina assim

estabelecendo uma divisão clara de ficção e realidade). E que empresto o meu corpo para a relação de

atração e passionalidade que existem entre Castanha e Reginaldo. O toque dos dois é abrupto, tosco, existe

uma possessão. Hoje, por exemplo, talvez não teria me entregando tanto ao contato como o Edgar propôs,

mas devolvo o jogo na mesma proporção de energia que me é mandado. E acho muito interessante essa

construção”.

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socialmente, criam-se padrões com alguns grupos, como se cada indivíduo que pertença a ele

não tenha uma individualidade, são considerados iguais. Nesse caso, estava trazendo a figura

do homem nordestino.

Através do desejo da inserção social do meu sujeito “louco”, busquei recursos também

considerados marginalizados, e o teatro ainda é uma instância social que sofre muitos

preconceitos. Isso fica muito claro quando alguém pergunta: - O que você faz? - Teatro, eu

respondo, e a pessoa retruca: - Mas, você trabalha com o quê? Como se o teatro não fosse

trabalho. Ao longo desses 13 anos de grupo, não há outra coisa na vida que tenha feito que

não seja trabalhar muito para estabelecer minhas escolhas. Ao trazer o tema da “loucura” para

dentro da academia sem ter uma formação tecnicista, faço um movimento hercúleo de

legitimar a minha prática como válida para a comunidade científica e, ao realizar minha

defesa, percebi quantas vezes repeti a palavra L-E-G-I-T-I-M-I-D-A-D-E. Notei que,

primeiro, precisava reforçar em mim a minha própria competência ao trazer essa temática e

discuti-la mesmo que pela via do empirismo, da subjetividade. Assim, como o personagem

Reginaldo, que precisava voltar para o sertão para reencontrar sua essência para se reconhecer

e legitimar a suas raízes, precisei mergulhar em mim, na minha história para validar a sua

importância para mim, é claro, mas para uma reverberação possível daqueles que querem

realizar o mesmo aprofundamento.

3) Processo de criação do espetáculo Léon – 05 de Junho de 2013, quarta-feira

Muitas vezes, iniciamos um novo processo pensando em uma temática comum para

todos os personagens e, nesse trabalho, a abordagem eram as diversas deficiências humanas:

físicas e intelectuais. Escolhi a falta da visão como abordagem de construção. Tive que

abandonar o processo por problemas pessoais e a atriz Jailda Freitas continuou a construção

da minha personagem.

“Terminei o ensaio com uma sensação dúbia: satisfação e insatisfação. Aconteceram algumas coisas

interessantes para traçar a personalidade da minha personagem e as relações e as relações com o Luiz e a

Dani. A direção nos orientou que eu e Guina trabalharíamos juntos com algumas músicas românticas

selecionadas em um pendrive, e o objetivo era trabalhar a afetividade entre os personagens, e representarem

nas ações os conteúdos das músicas. Dani e Luiz trabalhariam temas individuais. A direção levou para mim

fotos de pessoas mortas, não me deixou vê-las, o que achei interessante, por que criei uma relação intuitiva

e sensorial com elas (...).

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Fonte: Diário de bordo

A cada novo processo, foi se estabelecendo não somente uma construção e

crescimento em âmbito teatral, mas ampliando as percepções de mim mesma e das relações e

coisas ao meu entorno. O jogo cênico estabelecido entre atores se tornou campo fértil para os

meus reflexos e respostas servirem de autorreflexão para uma percepção muito pessoal de

como eram minhas reações e, ao me perguntar o que me levava a reagir assim, através da

Como estou criando um painel ao lado da minha cama para fixá-las precisava entender com o tato o lado

correto da impressão, já que todas tinham a mesma textura do papel, com os dedos não conseguia sentir

essa diferença, passando no rosto conseguia sentir um lado mais poroso, o que considerei como o lado

impresso. Um delas coloquei do lado errado, e não lembro agora se estava dispersa com outra informação

para fixá-la errado. Algumas ficaram de ponta a cabeça, mas super pertinente. Essa relação com a morte

para mim é muito presente, por que não tenho medo dela, e de uma certa forma, a desejo, não por que

queira adiantá-la, mas me sinto presa estando viva, a tal liberdade que temos discutido, para mim se dá

depois da morte. Sempre tive essa sensação, que estar vivo e estar limitado, mas não sabia descrevê-la.

Estudando um pouco filosofia cheguei aos estudos de Kardec e a continuidade da vida pós-morte, enquanto

espíritos eternos que somos, estando cativos em mundos corpóreos para o aperfeiçoamento moral. Ainda

estou estudando e não posso me dizer convicta dessa realidade. O que sei de pronto, que a morte é uma

temática universal e esse possível fim acarreta no humano, sensações, sentimentos, atitudes diferentes a

partir do que se acredita no depois. No caso dessa personagem que prepara o seu dia como um

acontecimento importante de libertação, em que voltará e enxergar, porque acredita estar

momentaneamente cega, vive os seus dias preparando o local que seu corpo irá descansar. Ao fim do ensaio

comentei com a direção que gostaria de já traçar uma possível personalidade. Já existem algumas atitudes

que permanecem a cada novo ensaio: a autoestima elevada, a infantilidade, certa sensualidade, a busca de

atenção para si, uma superproteção com o irmão. Acredito que essa forma de postar é um mecanismo

compensador para a cegueira (vou pesquisar novamente possíveis mitos). A relação com o irmão

(personagem do Luiz) vai ficando mais afetuosa, possessiva e dependente. Eles são carinhosos um com o

outro, mas tem uma percepção um do outro estranha, de negação, se não se admitem como deficientes.

Como a personagem da Dani existe e hoje isso ficou mais evidente, uma admiração do que essa mulher

representa um ideal de mulher. Mas, a relação afetuosa ainda é fraca e não consigo perceber se é uma

pessoa confiável.

Como o Guina, hoje o exercício foi um desastre, tentei entrar no universo que ele começou a propor

imitando cachorro e galo, comecei também a fazer seu pares, quando o contato se deu, percebei que existia

um limite de jogo imposto por ele, aí me senti super travada, por que levei o negócio para o pessoal, como

se ele estivesse obrigado a executar esse jogo comigo. Isso é péssimo para o ator quando ele vai para o jogo

carregando seus fantasmas pessoais e não consegue reconectá-los, transformá-los em outras energias.

Porque lidar com suas questões dentro de um processo de construção psicológica e saber transformá-las em

energia e características par esse personagem, e não te deixar bloqueado perdendo assim a criatividade

iniciativa de construção. E assim foi até o fim do ensaio, travei geral”

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descrição do ensaio, via nuances bem claras da minha personalidade. Uma característica

evidenciada nos três diários foi a autoestima, como disse. Nesse último caso, criei uma

personagem com um discurso persuasivo, uma autoestima elevada, certo ar de sensualidade e

ingenuidade. Assim, criei, nesse momento, um ideal, reforçando características que não tinha.

Stanislávski fala do trabalho de análise da psicologia do personagem:

A arte do verdadeiro ator é diferente. Depois de perceber o desenho geral e a

tonalidade do papel, depois de estudar a vida cotidiana e as condições de vida,

depois de ressuscitar na sua memória afetiva todo o material necessário, o artista

começa a analisar o papel. Esse trabalho amplia a psicologia do papel e seu desenho

e estabelece à lógica e coerência nos movimentos psicológicos. Por causa disso, o

desenho do papel se desenvolve, e é elaborado em detalhes. Ao mesmo tempo, a fim

de enriquecer a sua paleta, o ator se funde com o papel em todas as situações que sua

fantasia seja capaz de inventar, indo além das palavras do papel (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 164).

Percebe-se, então, que o Stanisláski vai dizer que, antes de entender a psicologia do

personagem papel presente no texto, características essas que lhes foram dadas pelo autor da

obra, é necessário buscar na própria memória emocional do ator junções, ligas que façam que

as sensações psicológicas interpretadas pelo ator se tornem reais, porque passam pela sua

sensação pessoal e emocional ao trazer memórias que se aproximam da realidade do texto. O

que quero propor é outro raciocínio. A situação que me coloco para viver através do

personagem, mesmo que não a tenha vivido antes, não projeta reações do ator? Não é a ator

que pensa e reage? Não é o ator que está emprestando o seu corpo? Sim, é o ator transvestido

de personagem que está raciocinando, mesmo que o personagem não tenha nada a ver com as

minhas características, mesmo que seja levado a fazer um assassino, é a minha lógica a partir

do que acredito, do que vivi e do que sou que vai responder ao estímulo dado pelo jogo

cênico. Relembrando a citação da psiquiatra Nise da Silveira (1997), quando fala da

necessidade de criar um mecanismo para acessar o inconsciente, quero relaciona-la com a

seguinte frase de Stanislávski: “a verdade é inseparável da fé, como a fé o é da verdade. Elas

não podem existir uma sem a outra e sem ambas há nem vivência, nem criação” (LABAKI;

VÁSSINA, 2016, p. 307). Quando entrava em cena estando imersa na vivência do

personagem e não ficava pensando friamente o quê aquela cena iria trazer de possíveis traços

da minha personalidade, ao entrar nesta realidade e ao vivenciá-la com toda a minha fé e

sentido de verdade, abro brechas do meu inconsciente. Assim, o trabalho de vivência do ator

nesta imersão físico psicológica permite a ele ir além da construção estética de uma

interpretação, uma construção estética existencial de reconhecimento de si, a aquisição de

uma técnica para além do espetáculo.

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2.5 A construção de um corpo biográfico

O conceito de corpo biográfico chega até nós através do artigo “O corpo biográfico:

corpo falado e corpo que fala” (2012), de Marie Christine Josso16. Nas abordagens

investigativas propostas pela autora, diz que, para se chegar a uma interpretação de sua

própria narrativa, a experiência relatada tem que se passar pelas vias do corpo, de como “ele

foi cuidado, afagado, vestido, alimentado e às vezes maltratado e abusado” (JOSSO, 2012, p.

24). Ao encontrar seus estudos, me senti mais segura para relatar minha experiência de abuso.

Estamos vivenciando momentos de grandes mudanças sociais, em que mulheres de vários

países se sentem seguras para relatarem suas histórias, e acredito, também, que somente a

partir de uma rede de cooperação, onde vários relatos ganham evidência, podemos pensar em

relações futuras mais saudáveis. Ela destaca que a saúde do corpo e sua morte ocupam um

lugar muito importante e merecem destaque para se chegar ao que a autora denomina como

corpo falado. Ela destaca que o aspecto de saúde do corpo, “em particular o portador de

estigmas são fonte de compressão da unidade do ser somatofísico em todos os seus atributos”

(JOSSO, 2012, p. 12). Por toda experiência vivenciada, pelos reflexos do exercício da minha

subjetividade, e ao resgatá-la nesta pesquisa, arrisco dizer como uma provocação para o futuro

que a minha história de abuso me aproximou da “loucura”. A autora resolveu agregar a saúde

em seus estudos de auto formação através das histórias de vida depois de ter passado pela

Síndrome de Bornout – caracterizada com um caráter depressivo seguido de esgotamento

físico e mental ligado à vida profissional. Ela está visando uma percepção corporal mais

ampla e insere essa percepção em suas pesquisas. Assim, Josso (2012), a partir da sua

experiência com um transtorno psíquico, propõe uma ampliação da sua pesquisa

autobiográfica, através de outros mecanismos para chegar aos mecanismos de investigação-

formação, principalmente no que tange ao sensível pelas vias corporais em “um projeto de

saúde, projeto de formação, projeto de mudanças de relação consigo, com os outros, com

nosso ambiente humano e natural, assim como uma disponibilidade para uma evolutiva

criativa com saídas surpreendentes” (JOSSO, 2012, p. 25).

Josso (2012) vai dizer que esse mecanismo leva muitos sujeitos a buscarem a melhoria

ou “a sua cura” através do corpo, porque tudo fica registrado no corpo e, nele, também estão

16 É socióloga e antropóloga, doutora em Ciências da Educação, professora na Faculdade de Psicologia e

Ciências da Educação da Universidade de Genebra, especializada nas problemáticas da educação de adulto e na

formação profissional continuada para acompanhamento, ensino e assistência social e à saúde. Tornou-se

conhecida no Brasil através de sua obra “Experiência de Vida e Formação”, publicada pela Editora Cortez, em

2002, trazendo uma inovação para a proposta de trabalho com formação de adultos, ao considerar o lado pessoal

e não apenas o profissional, nos cursos de formação profissional e de professores

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as respostas. Esses mecanismos ainda considerados alternativos pela ciência erudita em que o

sujeito busca o seu próprio aprimoramento através das vias do corpo se tornam objetivo

central em suas vidas, e existe uma grande identificação com essa afirmação. Assim, me

apropriando e em conformidade com esse raciocínio, quero dizer que, uma vez estabelecida a

relação de alteridade com o personagem, e através de um distanciamento crítico da análise

dos meus diários de bordo, me aproximo da construção de um corpo biográfico. As narrativas

desta pesquisa associadas às narrativas de meus diários de bordo se aproximam do exercício

realizado pela metodologia autobiográfica, na qual “as narrativas de formação e o trabalho

intersubjetivo efetuado para analisá-las e interpretá-las dão acesso a um conhecimento de si”

(JOSSO, 2012, p. 20).

Através do hábito da leitura e da interpretação crítica dos meus diários de bordos,

percebo muito claramente que, em paralelo ao relato da construção do personagem, há uma

escrita que narra aspectos da minha personalidade e isso não foi feito de forma intencional. É

possível fazer uma identificação de questões que emergem e de situações que estão sendo

vividas no momento. Através desta prática, é possível fazer uma investigação de si ao ponto

“até em um nível ainda mais profundo, das crenças, das visões do mundo ou cosmogonias”

(JOSSO, 2012, p. 20). Então, já habituada, através dos meus diários de bordo, a constituir

uma interpretação crítica de características da minha personalidade e esse mecanismo ter me

proporcionado o autoconhecimento, fui me aproximando de uma melhora em relação à

“loucura”, buscando, nas práticas teatrais, uma saída criativa de sobreviver a mesma. Quero

demonstrar, assim, que essa escrita realizada nos meus diários de bordo, mesmo antes de

conhecer a metodologia autobiográfica, já possuía a característica de biografização, pela qual

não somente realizava a descrição psicofísica do personagem, mas discorria sobre a minha

própria formação subjetiva e, juntamente a essa pesquisa narrativa que se constitui como uma

apropriação das experiências e memórias que estão enraizadas em meu corpo, se constituem

como fonte potente de revelação de si mesmo e autoconhecimento (JOSSO, 2012).

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PARTE III - “SER OU NÃO SER EIS A QUESTÃO”

3 O TRABALHO TEATRAL REALIZADO NO COLETIVO SER OU NÃO SER

Neste capítulo, por meio dos conceitos anteriormente expostos, proponho uma

discussão das práticas realizadas no Coletivo Ser ou Não Ser acerca do uso da memória

emocional de Stanislávski como mecanismo de criação no trabalho do ator sobre si. O grupo

está em atividade desde março de 2015 e é formado por usuárias do Caps 1 – Centro de

Atenção Psicossocial em Saúde Mental –, de Ouro Preto, onde realizo a mediação teatral

gerando estímulos e circunstâncias a partir da prática do improviso. Mas, aqui, trarei algumas

experiências teatrais do coletivo no desejo de analisar e entrecruzar nossas experiências,

fortalecendo a investigação de que o trabalho do ator sobre si e a criação do espetáculo o leva

ao mecanismo estético de autoconhecimento. Essa aproximação da própria subjetividade traz

aspectos positivos e negativos para o ator pela interpretação que faz deste mecanismo. Assim,

no grupo, observei que, diferente da minha realidade, onde a interpretação e crítica se deu de

uma forma individual, tive que, em alguns momentos, me colocar como mediadora das

questões do inconsciente que estavam vindo para a cena porque eles não conseguiam fazer o

mesmo distanciamento e criar uma relação de alteridade com o personagem. Trarei dois

estudos distintos.

O coletivo foi criado pelo desejo de criação de um grupo teatral nos modelos do teatro

colaborativo em que os participantes tivessem a oportunidade de realizar uma atividade que os

inserisse socialmente através da apresentação e circulação de espetáculos. O nome do grupo

foi sugerido por uma atriz em uma discussão pós-ensaio sobre o que as caracterizavam como

sendo “loucas” entre os normais. Cada apontamento era embasado pela própria experiência,

sendo que umas diziam se considerar louca e outras não, e quando estavam trocando de roupa

para finalizarmos o dia de trabalho uma delas disse: ser ou não ser “louco” eis a questão...

Nesse momento sugeri que era um nome interessante para o grupo e todas concordaram.

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Figura 6 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP - Ouro Preto, 2016).

Fonte: Arquivo pessoal

Figura 7 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP - Ouro Preto, 2016).

Fonte: Arquivo pessoal

É importante dizer que não tenho formação psicológica para fazer uma interpretação

detalhada dos aspectos individuais de cada participante ao ponto de estabelecer um processo

terapêutico ou psicanalítico com resultados pautados por essa via. Este não é o objetivo. As

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interpretações se dão e se deram de uma forma associativa em conversas pós-ensaio e a

condução era realizada de forma livre, sem objetivos de indução do pensamento das atrizes do

grupo. Trarei, neste capítulo, contribuições do estudo de Stanislávski, Nise da Silveira, David

Cooper e Danis Bois.

Algumas observações: os nomes das atrizes (o grupo está formado, ultimamente,

apenas por mulheres) serão mantidos anônimos por questões éticas. Além disso, escolhi me

referir às participantes do coletivo pelo substantivo feminino atriz e não como paciente ou

usuária, como forma de manter sua identidade pessoal fora dos estigmas da “loucura” – e

reforçando, assim, o objetivo da formação de um grupo teatral, por um lado, como mecanismo

de inserção social, através da busca de uma excelência na interpretação, e, por outro, com

objetivos de autodesenvolvimento da própria subjetividade e do cuidado de si como

mecanismo terapêutico. Outro pronto a ser frisado é que este não foi um trabalho isolado, mas

feito em paralelo ao acompanhamento delas por outros profissionais do CAPS: psiquiatras,

psicólogos e terapeutas ocupacionais, associados ao programa terapêutico individual de cada

paciente. Essa prática teatral partiu do desejo de que as atrizes pudessem chegar às percepções

pessoais e que as mesmas contribuíssem para uma melhora no trato e um melhor

entendimento de sua própria “loucura”. E, muitas das vezes, a mesma percepção estabelecida

por mim não era realizada da mesma forma por elas, assim, não obrigava um aprofundamento

do mesmo, ou seja, às vezes, eu destacava alguma característica ou situação que emergia da

memória para a cena, correlacionando com que eu sabia das histórias pessoais das

participantes, e deixava que as mesmas fizessem sua própria crítica. As contribuições

normalmente auxiliavam de forma positiva para uma melhor compreensão de si, já que,

muitas vezes, também não tinham percepções claras quanto a isso.

3.1 A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa

As contribuições da prática desenvolvida ao longo dos anos no Teatro do Dragão

foram de extrema importância para o amadurecimento do trabalho realizado no coletivo, mas

este se mostrou como interpretações e revisões do trabalho do ator como criador. E foram (e

ainda são) pensadas, como um working in progress, em sua melhor adequação para as atrizes

do coletivo – envoltas e prejudicadas não apenas pelo estigma em torno da doença mental,

mas, também, pelos reflexos negativos, oriundos do uso da medicação psicotrópica:

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enrijecimento muscular, fadiga, perda de memória, aumento de peso, falta de concentração,

etc.

Pelos anos de prática teatral e as experiências teatrais realizada com usuários de Caps

anteriormente, na formação do coletivo, tinha em vista que o trabalho com eles deveria se

autogerir exclusivamente no corpo, sem o uso de textos fixos ou temáticas pré-concebidas.

Este corpo possui atribuições sensoriais e reflexivas através dos estímulos teatrais,

principalmente na criação do personagem – porque esse nos obriga a uma constituição

corporal extra cotidiana – a estabelecer, destacar e interpretar traços da personalidade do ator,

e, também, a fazer uma imersão muito forte na vivência do ator, o que me leva às ações antes

não pensadas e que, senão pontuadas e destacadas corretamente, podem trazer prejuízos à

personalidade.

Assim, em minha própria prática, sabia que precisaria sistematizar uma metodologia

de trabalho que estabelecesse entrar e sair do mundo ficcional, de modo a delimitar de forma

clara meu eu-ator e meu eu-personagem. Joel Birman (2003) e David Cooper (1978) vai dizer

que a doença mental, muitas vezes, sugere um mecanismo de defesa, uma realidade paralela

que precisa ser construída para que se estabeleça uma possível relação com o meio que estou

vivendo. Dentre as discussões realizadas com a equipe do Caps, esse mecanismo seria de

grande importância para evitar que as atrizes perdessem a relação ou o referencial com o real

ou com o próprio eu, além de evitar o “ganho secundário” (conceito que explico a seguir) –

uma atitude já observada por técnicos do Caps após a realização de oficinas de teatro

(algumas nem mesmo realizadas por mim) – e, também, para estabelecer uma técnica e

percepção da interpretação teatral.

No ano de 1901, Freud publicou “Fragmento da análise de um caso de histeria: a

paciente Dora”. Com 16 anos, além de possuir pensamentos patológicos – tinha uma relação

obsessiva com o pai – possuía uma dor de garganta que aparecia e desaparecia

espontaneamente. Acreditava que os motivos da doença da garota não estavam nos sintomas

“físicos”. Com a continuidade e observação do seu caso, Freud introduziu os conceitos de

ganho primário e secundário. Em psicanálise, ganho secundário é, então, sintomas que

aparecem e parecem propiciar, para aquela subjetividade, vantagem pela condição de estar

doente (o sujeito se torna objeto de cuidado do outro e, automaticamente, estabelece uma

relação de compadecimento). Sobre o tal “ganho secundário”, era perceptível que, algumas

vezes, uma participante, ao sair das oficinas teatrais, se tratava pela personagem falando em

terceira pessoa, muitas das vezes para conseguir atenção, mas, também, para se livrar de

tomar uma medicação ou ser repreendida por uma conduta inadequada.

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Para evitar isso, fazíamos, no início e no final do ensaio, um trabalho bem

sistematizado de entrar e sair do personagem, de modo a pontuar as fronteiras entre o

ficcional e o real de forma clara e, assim, garantir uma imersão na construção do personagem

que causasse “prejuízos” à personalidade, ou que trouxesse à tona aspectos íntimos das quais

não conseguisse, ainda, fazer uma elaboração considerada positiva. Confesso que esse

mecanismo pontuado em equipe, entendendo suas considerações e as acatando para o respeito

pelo senso coletivo, sempre me causaram certo estranhamento, pensando em um movimento

antipsiquiatria. O desejo não é o de impedir a apropriação de um recurso estético em prol da

ordem médica, mas estabelecer uma discussão, inclusive com os próprios pacientes, para

vasculhar sua subjetividade e saber o que o levou a fingir estar no personagem para fugir de

tomar uma medicação ou ser repreendido? Fica aqui uma provocação ainda sem respostas,

mas não poderia deixar de destacar um pensamento que vai à via contrária de uma

constituição da técnica da existência, fazendo com que meu discurso se torne contraditório.

Outros estímulos também eram realizados para facilitar o trabalho. Assim, estabeleci

estímulos visuais, auditivos e táteis para criar uma sincronização corporal que determinasse

esse lugar, ou seja, da associação de estímulos sensoriais, criei uma movimentação corporal

ou partitura que marcasse claramente as fronteiras de início e fim do trabalho teatral com as

atrizes. Sobre o personagem a ser construído por cada uma, deixo claro que elas sempre foram

livres para realizar qualquer escolha. A pergunta inicial do primeiro encontro era bem clara:

Qual personagem gostaria de interpretar no teatro? Pude observar (no Coletivo Ser ou Não Ser

e em outros trabalhos anteriores no CAPS) que essa frase aciona a escolha de uma persona

que se aproximava do ideal do participante já trazendo em si aspectos bem importantes da sua

própria subjetividade para o trabalho do ator. A partir daí, as ferramentas de criação eram: a

memória das atrizes associadas a músicas, objetos cênicos, figurino e estímulos dados pela

mediação teatral.

Sobre a importância do desejo como impulso inicial para a criação ao estudar os

conceitos de Freud, faço uma aproximação desta realidade nos estudos da libido em seu livro

“Introdução ao Narcisismo” (2010). Para Freud, existe em sua teoria da personalidade –

grosso modo –, para contextualizar o conceito de libido, três dispositivos que a constitui: id,

ego e superego. No id, estão as pulsões, nossas inclinações mais elementares e é onde

buscamos a satisfação acima de qualquer preço. O ego é o eu que me apresento socialmente, e

o super ego é o detentor das normas e da moral dos grupos sociais nas quais estamos imersos.

A formação da libido está entre o conflito de id e superego, ou seja, o campo do desejo se dá

na associação dos aspectos psicológicos e emocionais. Freud (2010) caracterizou essa energia

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como sendo a que move o sujeito na direção ao prazer, assim, o princípio do prazer é nosso

maior motivador. Assim, as atrizes do coletivo imediatamente são levadas a escolha de

personagens que representam o reflexo de seus desejos íntimos.

Figura 8 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016).

Fonte: Arquivo pessoal

Figura 9 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016).

Fonte: Arquivo pessoal

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Feita a escolha, era necessário pedir que estabelecessem um referencial a ser

trabalhado, porque alguns personagens eram, algumas vezes, arquétipos por demais

generalizados, por exemplo: uma bailarina e um palhaço. Para que tivéssemos um ponto de

partida mais concreto (ou pré-texto), pedia que escolhessem, também, uma figura que

representasse suas escolhas. Assim R. escolheu, por exemplo, não apenas uma bailarina, mas

a bailarina do filme Cisne Negro (2010), dirigido por Darren Aronofsky e estrelado pela atriz

Natalie Portman. Já D. escolheu um palhaço triste – fui até a internet e ela escolheu uma foto

que o representava – justificando que, assim como ela, a personagem da foto “era triste, mas

gostava de fazer as pessoas rirem”. As outras atrizes escolheram personas bem distintas e com

suas histórias bem determinadas: Zé Pelintra e Cleópatra. A partir deste pré-texto, algumas

características já vinham determinadas para o ensaio.

Para entrar nesse universo, o mecanismo estabelecido se dava da seguinte maneira:

foram impressas fotos dessas personas que eram pregadas na parede na altura dos olhos de

cada ator – como é possível ver nas figuras 8 e 9 – de frente para sua foto, o ator era levado a

trocar de roupa e colocar algumas peças do seu figurino juntamente com a escuta de uma

música – e escolhi uma música que particularmente gosto muito, cuja tradução é significativa

– “Don´t let me be misunderstood”, da Nina Simone. Os benefícios da música para o estimulo

é estabelecer um clima, muito usado no teatro, e eu sabia que uma música em outra língua não

iria fazê-las dispersarem em sua letra, dando o aspecto que queria alcançar: concentração. Ao

fim da música, elas começavam a andar pela sala, o que as ajudava a estarem prontas para

iniciar os improvisos propostos no dia: um tema, uma situação, uma memória, a sugestão de

alguma atriz, entre outros. Ao final do ensaio, elas faziam uma movimentação curta e

repetitiva e ia diminuindo o ritmo até ficarem paradas e “voltarem a si”. Como a assimilação

desse entrar e sair do personagem foi ficando mais necessária, tirei o estímulo visual da foto e

a troca de roupa – que já era feita antes de iniciarmos o ensaio – mas, mantive a música para a

concentração, a pedido das mesmas. A atriz T., que permanece no grupo, por exemplo, não

consegue entrar no clima se não fizer o recurso da concentração com a música.

A cada fim de ensaio, estabelecíamos um diálogo para compartilhamentos, desde uma

questão prática do ensaio, sensações que a prática tinha produzido no corpo ou de uma

questão pessoal que desejassem verbalizar, mesmo não estando associada de imediato com o

que havia sido praticado. Quando acontecia alguma situação considerada delicada, ou alguma

alteração de humor, algum conflito, este era colocado em roda para uma possível conclusão

coletiva, sem imposições ou juízos de valores. Tato que tinha que ter a todo o tempo e que,

algumas vezes, saem mesmo do controle. Tivemos algumas poucas situações, mas ocorreram.

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É importante dizer que as atrizes do coletivo têm, além do psiquiatra, um profissional da

psicologia ou da terapia ocupacional que faz um atendimento terapêutico de escuta com datas

determinadas ou da sua necessidade. Nesses atendimentos, o trabalho teatral e seu

desenvolvimento vinham à tona para destacar percepções positivas ou negativas de sua prática

para o tratamento delas, objetivo do Caps. O pré-requisito para a participação no coletivo era

a indicação do psiquiatra, do psicólogo ou do terapeuta ocupacional responsável, além de o

usuário estar em quadro considerado estável, o que lhe garantiria uma boa assimilação e

resultados positivos da prática proposta, e sabíamos de riscos eminentes. Em seu texto “Que é

a casa da Palmeiras”, a psiquiatra Nise da Silveira discorre sobre o trabalho expressivo e a

terapêutica ocupacional e faz uma advertência:

Entretanto, se o ego está muito atingido, a utilização do trabalho com fins

terapêuticos que envolvem característica do trabalho só convém a indivíduos

capazes de manter corajosas e persistentes relações com o mundo externo.

Teremos de ir ao encontro do doente nos pontos instáveis onde ele se acha

ainda, a fim de ajudá-lo a fortalecer o ego de modo gradativo (SILVEIRA

apud GULLAR, 1996, p. 84).

Confesso que considero estabilidade e instabilidade um aspecto muito abrangente de

discussão e tênue dentro do desenvolvimento de qualquer trabalho cujo corpo nas suas

instâncias psicofísicas está imerso, de um momento ao outro essas características podem se

inverter. Mas, sim, considero e sei ser de extrema importância esse lugar em que o ego está

consciente para fazer interpretações e crítica sobre si capaz de justificar as suas escolhas e

atitudes, mesmo que essas sejam consideradas despadronizadas. Assim, juntamente com a

equipe do Caps, o acompanhamento do trabalho era feito para estabelecer o bem estar físico e

emocional de cada participante.

Quando o trabalho já estava melhor estabelecido pelas atrizes, tirei os ensaios da

dependência do Caps, porque, além da interferência dos demais usuários que a todo o

momento entravam e saiam do espaço onde trabalhávamos tirando a atenção das mesmas,

dava a elas a constituição de uma autonomia. Esse era um dos aspectos também discutidos em

equipe e que todos acharam ser benéfico para as atrizes.

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3.2 A vivência do trabalho do ator no coletivo e seus reflexos: estudos de caso

Apesar de um universo extensivo de situações ocorridas ao longo do trabalho com as

atrizes oriundas do CAPS, irei recortar, neste capítulo, apenas duas situações distintas, com

duas atrizes diferentes, de modo a poder aprofundar melhor os conceitos envolvidos na pratica

teatral desenvolvida, para, assim, discutir o trabalho realizado com estas duas e demonstrar

como a relação de alteridade estabelecida com a construção de um personagem pode conduzir

ao autoconhecimento. Destacarei, portanto, um caso considerado com efeitos positivos e

outro, negativos. Aqui, vou me permitir a uma ousadia de criar nomes para os dois estudos de

caso, assim como Freud, que dava nome a seus casos a partir de uma cena psíquica

(BIRMAN, 2014).

Para desenvolvimento dos estudos de caso, vou trazer um novo autor cujo conceito de

corpo biográfico foi criado por ele e apropriado na pesquisa de Marie Christine Josso, o

terapeuta do corpo Dani Bois17, com o trabalho “O corpo sensível e a transformação das

representações no adulto” (2007). Ela vai pensar em uma prática em que o sujeito nela

imerso vivencie, pelas vias do corpo, uma percepção para aproximação de si nas relações com

os sentidos: a visão, a audição, o tato e paladar. A autora defende que é preciso estabelecer

uma noção de um novo paradigma: o sensível, que, aqui, designa a função do corpo responder

a estímulos, ou seja, “a sensibilidade designa a propriedade de todo tecido vivo de ser

reagente, e assinala a pertença do que é vivo ao mundo que o cerca” (BOIS, 2007, p. 03). Ao

mesmo tempo, traz a dimensão qualitativa “que indica a ressonância subjetiva que acompanha

toda a recepção de informação pelo corpo” (BOIS, 2007, p.03). Trago, através de Bois (2007),

um reforço teórico para dizer que as investigações da prática realizada pelas atrizes do

coletivo se dão através de uma interpretação da constituição das nossas subjetividades em

diálogo com o corpo e suas percepções sobre as mesmas. Através da construção do

personagem, que se dá pelo mecanismo de improviso, o inconsciente que emergi para a cena

traz ações e respostas da minha própria subjetividade. Quando as atrizes foram levadas a crer

que as atitudes e ações dos personagens eram distintas do seu eu porque se surpreendia com o

que emergia, isso dava a elas um conforto ou defesa para aprofundarem mais ainda em si

17 Professor da Universidade Moderna de Lisboa/Portugal e Universidade de Sevilha/Espanha, diretor do

CERAP - Centro de Estudos e Investigação Aplicada em Psicopedagogia Perceptiva e Somato Psicopedagogia

da Universidade Moderna de Lisboa. O CERAP tem como objetivo estudar a relação particular à experiência

sensível do corpo bem como o lugar do corpo sensível nos processos de aprendizagem educativos, formativos e

existenciais. A originalidade da prática formadora situa-se no acompanhamento de um sentido imanente

emergente à experiência sensível do corpo. A investigação desta vivência requer uma postura de investigador

adequada, que assuma seu caráter evidentemente subjetivo e implicado.

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mesmas. Assim, através das reações corporais, questionava o porquê daquela reação quando

identificava, nelas, reflexos da sua história pessoal. Muitas vezes, elas falavam para mim que

as conheciam demais, se perguntando como aquilo era possível e eu respondia que o corpo

fala. Assim, os dois casos apresentados a seguir é um livre interpretação das reações dos

personagens associadas a suas vidas pessoais (até onde sei, pelos seus relatos). Já disse que o

inconsciente do qual me refiro é a abordagem de Carl Gustav Jung, que traz aspectos que não

estão no plano da consciência.

3.2.1 Caso 1: E ela fugiu com seu Patrick Schweizer...

A atriz R. não está mais no grupo, a sua inserção e manutenção sempre foi acometida

pelo conflito de pertencer à religião Testemunhas de Jeová e, por isso, seus familiares e os

participantes não consideravam a prática teatral como bem vista. Várias vezes saiu e entrou,

até que nunca mais voltou depois de ter conseguido, não somente pelos benefícios do teatro –

mas com certeza com seus efeitos –, fazer um enfrentamento familiar bem positivo para sua

constituição subjetiva (Esse processo foi considerado positivo por sua psicóloga.)

R. tem transtorno bipolar e escolheu fazer uma bailarina e tinha o sonho de dançar

para os pais demonstrando que ela era capaz. À época, R. estava com 34 anos e mantinha,

com os pais, uma relação de dependência, em grande parte, criada pela superproteção da mãe,

que não aceita o diagnóstico da filha e, sendo Testemunha de Jeová, não aceitava o fato de

Deus ter lhe dado uma filha “doente”. R. já havia sido casada, mas, mediante um surto, foi

abandonada em casa pelo marido até o momento que sua mãe a levou de volta para sua casa.

Percebia características bem definidas de conflito interior pelos reflexos da moral dos pais e

da religião repressora. Por ter escolhido a dança como mote de criação, percebia claramente o

quanto se sabotava quando, em improvisos, os movimentos ficavam mais soltos, ou iam para

uma energia mais sensual (algo “demonizado em sua religião”). Em dois ensaios, isso ficou

bem claro. Como tinha escolhido como pré-texto a bailarina do filme cisne negro e a

personagem dançava balé clássico, R. sabia fazer bem a distinção de ser uma dança com

movimentação mais precisa e técnica, chegou a buscar aulas particulares com uma professora

da região e, como não tinha dinheiro para pagar, sugeriu uma contrapartida, iniciativa que nos

deixou muito feliz, eu e sua psicóloga. Teve um ensaio que, ao contracenar com a atriz que

fazia um palhaço, pediu que o mesmo, ao dançar com ela, deslizasse suas mãos na lateral do

seu corpo e, ao mesmo tempo, sorria para mim dizendo que não era para eu falar nada e nem a

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criticar. Ao final do ensaio, perguntei se ela se sentia confortável para a realização de tal

contato e de imediato me respondeu “a D. está fazendo um homem, mas ela é mulher então

não tem problema pode tocar em mim”18. Retruquei dizendo que o seu personagem era

homem e seria isso que as pessoas iriam enxergar na apresentação, pois queria saber e ter

certeza que não iria causar constrangimentos para ela. De pronto, respondeu: “Meus pais me

matam”. O conflito de R., causado pela repressão sexual era muito claro – uma energia

feminina presente com ímpetos de ser vivida de forma natural em confronto com a imposição

moral dos pais e da religião familiar.

A outra situação foi mais intensa. Por causa deste mecanismo de confronto entre o

desejo e o pudor sua dançarina foi se constituindo com uma movimentação muito rígida e eu

queria que ela encontrasse um meio termo para se sentir confortável. Propus que fizéssemos

ensaios individuais para trabalharmos a dança de uma forma mais livre, havia preparado uma

situação bem simples colocar alguns gêneros de música e pedir a ela que dançasse à vontade,

já que estávamos só nós duas. Antes de o ensaio começar, conversamos um pouco sobre seu

estado de humor e outras coisas corriqueiras para deixá-la mais à vontade, e foi aí que me

contou que já tinha sido casada, que sentia falta deste contato, mas que não podia se permitir

de jeito nenhum a se aventurar nesta realidade por causa dos pais e da religião, e que, depois

de ter voltado para a casa dos mesmos, nunca mais tinha visto o marido, que sentia saudade,

mas também sentia raiva. Iniciamos o ensaio com a música Lago do Cisne, de Tchaikovsky

(1875), depois a música What a feeling, de Irene Cara (1983), e, na sequência, a música I put

a Spell on you, de Nina Simone (1965). Desta vez, pedi que dançasse para outra pessoa e ela

me perguntou para quem. Eu, sabendo que mexeria em aspectos pessoais, mas correndo o

risco, disse: “Quer dançar para seu ex-marido?”

Com seu consentimento, iniciei a música e ela começou a dançar com muita

sensualidade, trazendo movimentos que não condizia com aquele corpo enrijecido, travado.

Confesso que fiquei muito emocionada, até que ela começou a tirar a sua roupa e a jogava no

chão com muita raiva, até ficar somente de calcinha. Ao terminar, cobriu seu corpo com as

mãos, comecei a bater palma dizendo que tinha sido de uma expressão linda a sua dança e ela

percebendo que não havia repreensão na minha atitude começou a se vestir dizendo estar bem.

Perguntei se queria conversar e ela disse que estava se sentindo leve apesar de envergonhada,

que não sabia explicar, mas a sensação era que tudo que sentia pelo ex-marido tinha saído ali

18 Todas as falas de R. descritas neste trabalho foram feitas em conversas comigo durante as atividades do

Coletivo Ser ou Não Ser.

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naquele momento e que, agora, não se sentia mais presa a ele. Volto ao texto de Nise da

Silveira (1996, p. 84), quando fala:

Certamente todas as atividades são expressivas desde que saiba observar como são

executadas (seja a maneira de empurrar um serrote ou até o bater de um martelo).

Mas se denominam especialmente atividades expressivas àquelas que permitem a

espontânea expressão das emoções, que dão mais larga oportunidade para os afetos

tomarem forma e se manifestarem, seja na linguagem dos movimentos, dos sons, das

formas e cores etc.). É através dessas atividades que se pode conseguir maior

penetração no mundo íntimo do psicótico. (...). Essas atividades permitem a

expressão de vivências muitas vezes não verbalizáveis, fora do alcance das

elaborações da razão e do pensamento.

A autora destaca as atividades expressivas manuais, mas, a partir da descrição anterior,

podemos, por analogia, perceber que o teatro pode funcionar muito bem também como

atividade expressiva para acessar e elaborar o mundo íntimo do ator. Até aqui, destaquei duas

situações vivida em ensaios que ajudam a demostrar a constituição de um corpo biográfico,

assim como se deu comigo, e isso é possível porque o trabalho é realizado a partir da

subjetividade e memória do ator, trazendo seus aspectos emocionais para dentro da cena.

Agora, irei detalhar aspectos das características do personagem na relação de

alteridade em que é possível destacar traço da atriz. R., que escolhe o filme Cisne Negro, em

que a trama conta a história de Nina, bailarina de uma Cia. de sucesso em Nova York,

perfeccionista e obsessiva, que quer muito o papel de destaque na apresentação do grupo. ao

ponto de perder o senso de realidade. Tem com a mãe uma relação castradora e controladora,

que a mesma aceita de forma masoquista, querendo provar para mãe que conseguiu ser

escolhida para o papel de destaque. As características opostas dos cines, sendo que o preto

representa as pulsões, os desejos, e o branco, o discurso da mãe que almeja a ver a filha como

primeira bailarina da Cia, é possível ver semelhanças na história pessoal de R., que, ao

mesmo tempo que reconhecia todo desvelo de sua mãe, percebia a sua imposição e castração.

Assim, podemos, novamente, recorrer aos conceitos de libido de Freud (2010) e dizer que o

teatro correspondia, na relação de R., ao Id, e sua mãe, ao super ego. À época, estava

começando a se relacionar com um usuário também do Caps, e isso se tornou um grande

conflito para a atriz, que via nessa figura masculina o objeto que te tiraria do julgo da mãe,

mas, como sofreu forte advertência dos pais, teve uma recaída e entrou em processo de

depressão, se ausentando do grupo.

Um mês e meio se passaram quando R. voltou dizendo que estava melhor e queria

retomar as suas atividades, mas que, agora, queria ter outro pré-texto: a bailarina do filme

Dirty Dance (1987), com Patrick Schweizer e Frances Houseman. A trama da vez trazia a

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personagem Baby, que vai com os pais para uma colônia de férias e se envolve com o

professor de dança, se apaixonando por ele, mas sendo advertida pelo pai, que não queria que

a filha se envolvesse homem que ele considerava irresponsável. Baby enfrenta a família e

assume sua relação ao final do filme. Vemos aí, novamente, a persona escolhida trazendo

aspectos do mundo íntimo da atriz, que estava decidida, agora, a manter um relacionamento

mesmo que o pais não consentissem, e sua movimentação nos ensaios e improvisos estavam

mais leves e expressivos – algumas vezes, ele ia ao final do ensaio buscá-la e os dois desciam

juntos para o Caps, Era visível o seu envolvimento e benefícios positivos que essa relação

estava lhe trazendo, como autoestima, leveza e reconhecimento de sua energia feminina .

Quando perguntei a R. sobre o motivo de sua mudança de personagem, ela disse que estava

querendo realizar um dança mais livre e que o balé era uma dança muito dura. Essa

interpretação que aqui faço era perceptível e clara para mim, mas não queria induzi-la a nada.

Tempos depois, R. saiu novamente, dizendo que os pais não estavam felizes com sua

permanência no teatro e que avó materna iria morar em sua casa devido a uma doença e que

precisava ajudar a mãe. No final do ano passado, perto do natal, encontrei com R. no ônibus e

disse que estava voltando da casa do namorado. Quando perguntei para ela sobre os pais me

respondeu que precisava viver a sua vida, e que sentia saudade do teatro e sua prática tinha

devolvido o seu sentimento de ser mulher. R. e seu “Patrick Schweizer” estão em planos de se

casarem.

Aqui, é possível perceber os benefícios do trabalho do ator sobre si para trazer do

inconsciente para a cena situações bem similares da realidade, sendo que, muitas vezes, o ator

não tem a mínima noção de estar fazendo essa transferência. Silveira (1996, p. 80) diz que “a

criatividade é esse catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu

intermédio, sensações, emoções, pensamentos, são levados a reconhecerem-se entre si,

associarem-se, e mesmo tumultos internos adquirem forma”. Percebe-se que, assim como se

deu comigo, é possível realizar essa relação de alteridade com o personagem e destacar

aquelas características, que, aqui no estudo de caso de R., estão presentes em conflitos

pessoais a serem resolvidos e que, muitas vezes, não são verbalizados pelo sentimento de

recalque, encontrando abertura e fluidez na prática do improviso.

Stanislávski também menciona que “os impulsos criadores do talento devem ser

instintivos e inconscientes. Essa espontaneidade do talento faz sua criação se tornar

verdadeira e ingênua” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 132). Estabelecendo um diálogo entre

Silveira e Stanislávski, quero dizer que as atrizes do coletivo, no exercício da sua criatividade

pelo uso da memória emocional, foram levadas a improvisos que também trouxeram, do

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inconsciente para a cena, nuances da personalidade, assim como descrevi na vivência do ator

realizada no Teatro do Dragão. O nossos trabalhos não foram condicionados a uma conduta

terapêutica e, sim, de criação teatral, e acredito ser ela que permite uma criação verdadeira e

ingênua porque tanto a realidade ficcional, como o personagem, promovem um campo de

criação confortável para esse acontecimento.

Aqui, vou, ainda, fazer uma analogia com os estudos de Danis Bois (2008), que,

através da dimensão do sensível, elaborou o conceito movimento interno, observado por meio

do toque do terapeuta no tecido tissular do paciente, “uma auto regulação orgânica, fisiológica

do corpo, como também da regulação psíquica da pessoa” (BOIS, 2008, p. 42). Bois queria

criar um mecanismo em que fosse possível ir mais fundo para atingir a dimensão psicológica

do paciente. Assim, encontro analogia nos seus estudos porque busco, na prática teatral, além

do espetáculo e da construção do personagem, uma abordagem através do sensível,

representando a capacidade de absorver as vivências e a relação com o movimento interno, a

recepção destes conteúdos para um autoconhecimento. Bois reforça que:

Pelo fato de remeter à noção de sentido, o termo sensível faz também

referência à noção de significação. Isto representou uma de nossas grandes

surpresas ao nos dar conta de que os conteúdos de vivências em ligação com

o movimento interno não eram apenas percepções do corpo, mas também

portadores de sentido para o próprio sujeito, portadores de um novo tipo de

conhecimento. (AUSTRY; BOIS, 2008, p. 03)

Todas as interpretações aqui presentes e diálogos propositivos foram criados para dar

viabilidade e legitimidade a esta pesquisa, mas, ainda assim, são, de certo modo, insuficientes

enquanto método para sua ampliação e aplicação direta. Entretanto, posso afirmar, por meio

do resgate das atividades teatrais realizadas no Teatro do Dragão, em ressonância e relação

com as atividades do coletivo, que são pistas inicias para dizer que o trabalho de vivência do

ator, tendo como ferramenta a memória através da realização de improvisos – onde o jogo

estabelecido em cena se dá através da sua subjetividade e sua integridade cognitiva, está

presente e é bom que esteja –, o aproximando de uma experiência empírica em que fica

estabelecido a constituição de um corpo biográfico ou um mecanismo de biografização, em

que a pessoa assume seu estatuto de sujeito e a vivência toma seu lugar qualitativo. Assim,

Consideramos que a natureza humana possui os recursos perceptivo-

cognitivos necessários para penetrar profundamente o instante do presente

em consciência. E é graças a uma relação da consciência e do sentir com sua

experiência que a pessoa se descobre a si mesma como sujeito (AUSTRY;

BOIS, 2008, p. 03).

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Ao incorporar esta noção de vivência no trabalho de criação do ator, permite com ele

“certo conteúdo de vivência subjetivo, e por sua vez fonte de um conhecimento particular”

(AUSTRY; BOIS, 2008, p. 03). Mas, a relação de alteridade entre ator e personagem é de

extrema importância para estabelecer um senso crítico das questões e características da minha

personalidade percebidas, levantadas e interpretadas. No caso das atrizes do coletivo há

necessidade do papel da mediação teatral para pontuar estas características. E digo mais, o

personagem se torna um grande facilitador para vivenciar outras maneiras de ser, ou seja,

praticar ações diferentes do meu eu social, me permitindo uma vivência extra cotidiana que

me aproxima, cada vez mais, de mim mesma.

3.2.2 Caso 2: A “Louca” e o Brio

Trarei, como contraponto, a inserção e saída de uma atriz dentro do coletivo em que os

aspectos do trabalho foram considerados negativos para o seu processo terapêutico. C. tem

esquizofrenia paranoide19 desenvolvida após ter ficado em coma no hospital João XVIII, em

Belo Horizonte, por tentativa de autoextermínio – diagnóstico feito pela perícia, mas não

admitido pela família. O seu desejo em participar do grupo sempre foi muito forte, mesmo

sabendo que teríamos dificuldades relacionadas a concentração devido aos episódios

delirantes20, e um enrijecimento corporal, além do excesso de peso, reflexos do uso de vários

medicamentos psicotrópicos associados. Um dos delírios de C. era que estava grávida de

Jesus porque não tinha relacionado com nenhum homem sendo a interseção feita pelo espírito

santo. O que reforçava sua crença era o aumento de sua barriga e a produção de leite. C. faz

uso de lítio e um de seus reflexos é o aumento da prolactina, hormônio que produz leite nas

glândulas mamárias. Após o episódio de seu acidente, a família começou a tratá-la com

recompensas e uma delas era através da comida, o que também fazia que seu peso estivesse

acima do recomendado. C. escolheu como pré-texto a cantora Sandy. Antes do acidente, fazia

parte de uma banda de axé juntamente com um irmão e dizem que tinha uma voz muito

19 “Caracteriza-se igualmente pela maior facilidade desses pacientes em constituir uma elaboração delirante:

costumam procurar e apresentar explicações, mesmo bizarras e fragmentárias, para as vozes, os pensamentos

impostos, as vivências delirantes primárias, etc. Esses pacientes, sobretudo quando recebem os cuidados

adequados, têm maior facilidade de recuperar-se entre uma crise e outra, assim como de preservar sua

personalidade e vida social” (SOUZA, 2006, p. 124). 20 São característicos das psicoses e caracterizados como primários. As vivÊncias delirantes primárias, prossegue

Jaspers, são de difícil caracterização, “por implicar num modo de vivência completamente estanho para nós”. Eis

como as define: consistem na imposição de novas significações, não partilháveis como outras pessoas. (SOUZA,

2006, p. 114).

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bonita. Por causa do ocorrido, foi submetida a uma traqueotomia21, o que deixou sua voz

embargada, letárgica e sem brilho. O seu desejo de ser cantora é muito forte na sua

personalidade.

A partir de agora, destacarei, na integra, dois diários de bordo escritos por mim

referentes a participação de C. o coletivo.

1) Descrição do relato de Ensaio do coletivo do dia 16 de abril de 2015

21 Intervenção cirúrgica que consiste na abertura de um orifício na traqueia e na colocação de uma cânula para a

passagem de ar.

Após alongamento e aquecimento propus trabalharmos com improvisação, venho testando deixá-las

mais livres para compor seus personagens a partir do desejo, e observar se dão conta desta iniciativa, hoje

farei comandos se assim achar necessário. Quero testar se conseguem dar asas ao personagem, mesmo que

ainda, em pequenos gestos, falas e jogos. Coloquei cada participante em um lugar distinto do salão. Falei

que após a partitura corporal realizada para a concentração, e se sentindo prontas começassem a buscar o

corpo do personagem e suas características buscando novas nuances. Se achassem desejo de se relacionarem

poderia fazê-lo, mas não era obrigatório. As ações da A. foram muito bacanas, simulou uma trouxa de roupa

na cabeça, lavou diversas peças de roupa, falou algumas frases sobre a exploração do trabalho.

D. estava com muita dificuldade de concentração, então comecei a estimulá-la com perguntas sobre

o personagem o chamando pelo seu nome, coisas simples “Como estava?” “Como estava a vida no circo?”

Aí conseguiu melhorar a concentração, engrossou a voz, dizendo que era um palhaço triste. Quando a

questiono o porquê de ser um palhaço triste, sempre responde que “ele é assim como ela”.

R. ficou o tempo todo executando passos de dança. Hoje estava mais infantilizada, me pareceu.

Perguntei como via a sua personagem e respondeu: “forte, decidida e bonita”. Perguntei: “E o que é isso que

está fazendo hoje?” Começou a rir. Disse que sua postura me mostrava o contrário. E questionei se era

mesmo essa postura que gostaria de dar a sua personagem. Porque em último ensaio estava com postura

mais séria e enérgica. “Quer ir por esse caminho? Ela pode ser assim, como está me demonstrando: infantil,

insegura, não tem problema”. Ela disse que não era isso. Aí levantou o peito e começou a dizer como sua

vida era linda, como era feliz, com a mesma voz infantil de antes.

T. pegou uma cadeira, e se sentou, ficou um tempo de olhos fechados, depois ainda sentada fazia

movimentos de benzedeira. Outras vezes, simulava tocar um violão, falava bem baixinho, coisas que eu não

entendia. Ficou o tempo todo nessa construção mais introspectiva.

E. dançou e fazia pequenas apresentações se reverenciando dizendo ser a Cleópatra, cantou

novamente a música O amor e o Poder da cantora Rosana, venho notando que está andando em círculos e

sempre vai para o mesmo lugar.

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Fonte: Diário de bordo

2) Relato do ensaio do coletivo do dia 28 de maio de 2015

Hoje propus uma discussão e avaliação do andamento do processo, a discussão dos mitos

(narrativas pessoais), e como está o repertório das características físicas e psicológicas dos personagens.

Foi destacando o trabalho das atrizes a partir das características realizada até então pelos

personagens, e abri a discussão para o coletivo, assim todos poderiam opinar e contribuir para o mesmo na

criação do outro.

Ao fim, a atriz teria a liberdade de agregar no seu repertoria uma sugestão dada no que achou de

mais interessante, deixando as demais características do fruto do seu desejo para sua criação.

Foi bem proveitoso, tentei elaborar com eles as características escolhidas de forma a auxiliar na

construção ressaltando as dificuldades. Peguei exemplos bem simples, usando o recurso da teledramaturgia,

dos programas de TV para facilitar, e que fazem parte do repertório de acesso das mesmas. (...)

C. é que tem mais dificuldade de concentração, o tempo todo entra no seu processo íntimo,

introspectivo, fica falando com os olhos fixos em algum ponto, de vez em quando ri. Pediu para se sentar,

mas prometeu que iria continuar trabalhando mesmo sentada. Vem se sentindo muito cansada e acho que é

devido a seu sobrepeso. Ficou sentando por um tempo olhando para suas companheiras.

Aproveitei para dizer que caso perdessem a concentração, não forçar a continuidade do trabalho,

pararia o trabalho e caso quisessem retomar, partiria novamente da partitura corporal, para se concentrarem

e entrarem no universo do personagem.

Aproximei de C. e resolvi fazer uma provocação, a chamei pelo nome de sua personagem: “Sandy,

as pessoas estão te esperando estão aqui para assisti-la, você não gostaria de cantar?” Levantou foi até o

palco que tem no salão de ensaio e começou a cantar a música A Lenda da cantora Sandy. Aos poucos as

participantes começaram a se aproximar e assistir sua apresentação, e conforme a apresentação foi sendo

realizada começaram a vaiá-la. Então a C. começou a rir dizendo seu jargão: “Ai que engraçado!” Senti o

seu constrangimento e então parei o ensaio e perguntei: “Essa vaia foi direcionada a atriz ou a personagem

dela?”. Confesso que fiquei com medo da resposta e isso causar um constrangimento ainda maior. E antes de

dar tempo de elas responderem intervi dizendo que toda crítica deveria ser feita de forma construtiva para a

construção do personagem, que ainda se encontra inacabado e em construção. A. disse que era para a

personagem e T. disse: “É para essa Sandy aí ó!” As outras ficaram caladas. Perguntei a C. se estava tudo

bem: E consentiu com a cabeça e repetiu seu jargão. Fiz novamente uma intervenção lembrando nosso trato

de convivência que toda a ação realizada dentro do grupo e que causa constrangimento aos participantes

serão resolvidas no momento da ação, ou na discussão pós-ensaio. Senti que o clima ficou tenso, coloquei

uma música e pedi que dançássemos para extravasar. Relatei o episódio à sua referência técnica no Caps

que, no caso de C., é uma profissional com formação em terapia ocupacional. Ficamos de observar qualquer

mudança de atitude.

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(...) Conversamos mais uma vez sobre a escolha do gênero comédia para o espetáculo que foi

unânime. Explicando como são as características de construção para esse tipo de espetáculo. E que nem tudo

precisa ser risível. Falei da comédia como recurso de trazer situações trágicas a possibilidade de torná-la

mais leves ao ponto de as pessoas rirem. Rir da própria desgraça brinquei.

O objetivo é criar um roteiro não fixo, mas que sirva de referência para acessar e construir o

personagem, mediante a dificuldade que venho percebendo da fixar a memórias das ações realizadas

anteriormente. E que o mesmo vá agregando novas características à medida da necessidade e desejo do ator,

e do coletivo.

Nossa última discussão se deu na personagem da C. que tem como pré-texto a personagem da

(cantora) Sandy. Em discussão novamente ela levantou a afirmação de sua voz ser igual à da cantora. E

quando perguntei se achava mesmo que sua voz era igual? Ao dizer que sim, eu disse que não achava, e isso

não tinha a menor importância para a personagem que estava construindo que a Sandy era somente um ponto

de partida, que seu desejo de cantar era mais importante. Mas se ofendeu e disse se eu não queria que

participasse mais do grupo era só ter dito. Uma atriz neste momento tentou apaziguar, mas C. se levantou

dizendo que tinha sido vaiada, e que não esqueceria isso nem após a sua morte. Questionei o porquê de não

ter falado que isso a estava machucando. Respondeu: “Coitada de mim. Levantou com raiva – e hoje vi sua

raiva, e não estou fazendo ironia disso”* – dizendo que não queria mais fazer parte do grupo e foi embora.

Fiquei muito triste, mas achei autêntica sua atitude, apesar do risco de simplismo, isto não me

pareceu um surto, ou uma atitude fruto do seu transtorno, a reação foi de uma pessoa que teve seu orgulho

ferido. Que se sentiu menosprezada e ferida naquilo que ela considera muito importante. Assim como eu

também me sentiria, na mesma situação, ou qualquer ator considerado “normal”. Não sei se perdeu o

referencial da sua voz depois do acidente, por uma não escuta da mesma ou por não querer admitir que não

tenha a mesma voz. Fato é que não posso, dentro de uma construção a partir da si, fazer uma construção

baseada em ilusões, a minha intenção não era constrangê-la, mas dar a ela a oportunidade de cantar de novo

mesmo que não fosse dentro do padrão de afinação, ritmo e brilho anterior, mas que fosse verdadeiro e

afetuoso. Sei que sua construção merece cuidados pelas limitações físicas fruto não somente do acidente,

mas da dosagem alta de suas medicações. Qual o limiar de “loucura” e normalidade? Vejo como doentes,

nos reflexos dos efeitos colaterais das medicações. Mas na sala de ensaio, são como atores “normais”. As

questões, os medos, posso dizer, até a vaidade são muito semelhantes. Como será a elaboração agora desse

orgulho ferido? Terei que conversar com a S., sua referência técnica e terapeuta Ocupacional. “O que posso

fazer para contribuir nessa questão”? “Como deverá o grupo se posicionar perante ela”? As aconselhei a

pedirem desculpas, já que esta se magoou seria o justo, mas sem reforçar o fato que sua voz se pareceria com

a da Sandy. Veio aqui à intuição e vou sugerir a S. aulas de canto individuais para ela no Caps.

Cabe observar que, após esse episódio, pedi o auxílio de Luciane Trevisan, diretora do Dragão que

vinha dentro da sua pesquisa realizando um aprofundamento do aparelho vocal com práticas voltadas para o

canto, e pedi que ministrasse aulas de canto para C. com objetivos de fazê-la entender a própria (nova) voz,

aceitá-la como está e uma vez na semana a Luciane Trevisan ia voluntariamente trabalhar com C. A

condução da sua terapeuta era realmente não fortalecer a sua ilusão de ter uma voz igual à da “Sandy”, mas

dar a ela uma possível melhoria no resgate da técnica do canto por que já havia participado de coral, e

estabelecer sua autoestima e retorno para o grupo. (...)

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* Esse comentário se refere a um exercício que dei a elas para trabalharmos a emoções, dispondo-as em roda

pedi que mandassem bola umas para a outras, fiz variações de ritmos, depois pedi que junto com a bola fosse

introduzido uma qualidade, quando estabeleci no jogo uma qualidade ofensiva, a única atriz que não reagiu ao

estímulo da emoção raiva foi C. dizendo que não sentia raiva em hipótese alguma.

** A Eletroconvulsoterapia (ECT) é uma técnica de estimulação cerebral não invasiva, em que dois eletrodos são

colocados em regiões específicas da cabeça do paciente liberando uma energia elétrica que visa induzir uma

crise convulsiva controlada no paciente. É indicada em situações clínicas nas quais o risco à vida é iminente,

como em quadros depressivos graves com situações clínicas especiais. Referência no estado de Minas Gerais e

no país, o serviço de ECT do Hospital Espírita André Luiz (HEAL) oferece o que há de mais moderno em

relação à técnica, à aparelhagem e ao cuidado com o paciente e com os familiares. O procedimento é realizado

por uma equipe de médicos psiquiatras, anestesiologistas e de enfermagem altamente capacitada. Disponível em:

<http://heal.org.br/services/ect/>. Acesso em: 27 de janeiro de 2018.

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Fonte: Diário de bordo

A partir desta descrição, fica estabelecido que o trabalho do ator sobre si pode acessar

questões sobre as quais ele pode não estar preparado para aceitar e que acabam por não

contribuir para uma elaboração positiva de reconhecimento de questões presentes na sua

personalidade. E sei que o trabalho teatral com sujeitos com transtorno psíquico é um

universo imenso a ser explorado com muita ética e cuidado. Mas ainda quero ampliar as

investigações desta pesquisa no futuro, em novos estudos que me permitam sistematizar e

observar a prática teatral com sujeitos com transtorno psíquico, realizando o trabalho do ator

sobre si tendo como ferramenta a memória e o desejo como um mecanismo positivo de um

melhor entendimento da “loucura” e “superação”.

Como David Cooper (1978, p. 104) nos diz:

O poder é tornar possível uma práxis que exprime um desejo. Que mal há no desejo,

contra todas as desvantagens, de permanecer intacto. Em todo o sistema repressivo,

no entanto, todo o poder é perversão, mas a potência é sempre revolucionária.

Cooper (1978) vai dizer da vulnerabilidade em que se encontram os sujeitos com

transtorno psíquicos inseridos em uma sociedade opressora e repressora, com a lobotomia em

alta em 1976, onde a não compreensão do sujeito levava o médico a diagnosticá-lo. Todas

essas interferências se deram pelo controle do capitalismo, pelo qual “vivemos

milagrosamente num universo fenomenológico em que os logos se escapa a todo o momento

dos fenômenos da experiência” (COOPER, 1978, p. 103). Percebe-se que, mesmo que já

(...) Poucas semanas depois do início das aulas, essas tiveram que ser interrompidas porque C. vinha

aguardando uma vaga no Hospital André Luiz, em Belo Horizonte, para realização de

eletroconvulsoterapia** porque já estava fazendo uso de das dosagens máximas dos medicamentos

psicotrópicos causando prejuízos na sua saúde. Após o seu retorno não quis mais participar do teatro e nem

das aulas de canto. Respeitamos o seu desejo, mas fiquei com esse pesar.

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tenhamos avançado muito, há quase quarenta anos, a antipsiquiatria já via a necessidade de

um chamamento em que experiência quebrasse paradigmas.

O sujeito com transtornos psíquicos está inserido em uma trama de maior

vulnerabilidade e existem outros aspectos na manutenção do grupo muito mais prejudiciais

que o enfretamento de se aproximar de si. Quando começamos, eram sete atores, dentre eles,

um do sexo masculino, que deixou de participar porque o ensaio começava às 9h da manhã e,

para comparecer, teria que se deslocar de ônibus, já que se viesse com a Van disponibilizada

pelo CAPS, chegaria com uma hora de atraso. Uma das questões que levaram a tirar os

ensaios do CAPS no que tange a autonomia era que eles perdessem a relação de dependência

com o transporte, todos tinham gratuidade no transporte público e tinham condições de se

deslocarem sozinhos, mas este paciente, no caso, não quis abrir mão da sua comodidade.

Outra saiu por que foi cuidar da irmã com câncer; uma foi atropelada e, por isso, associado a

outras questões pessoais, desenvolveu processos depressivos cada vez mais frequentes; R.

pela interferência dos pais; D. foi presa ao ser pega levando drogas para o filho na cadeia.

Hoje, duas atrizes mantêm o desejo vivo da criação de grupo teatral e, assim, seguimos nesta

realização.

3.3 A experiência da arte da vivência em um busca de si mesmo

Apesar das dificuldades, dos preconceitos, estigmas, e deficiências da minha

abordagem teórica ao tratar da linguagem da loucura através da pratica teatral, é uma via pela

qual corremos riscos, mas os benefícios são proporcionalmente maiores e, ao trazer essas

realidades tão distintas, podemos ter noção exata e clara do terreno das minhas escolhas e de

que o trabalho com as atrizes do coletivo na exploração da sua subjetividade não tem a mesma

finalidade que teve na minha experiência.

O principal motivo é dar elas mecanismos de inserção social, de diminuição do

estigma da “loucura” e trabalhar práticas do desejo, ou seja, autoconhecimento sobre desejos e

motivações e, também, práticas do bem-estar e auto cuidado a partir destas percepções.

Alguns apontamentos foram feitos tentando fazer uma aproximação para reconhecimento e

melhor entendimento da personalidade das atrizes e, algumas vezes, isso foi feito de forma

muito produtiva, como o depoimento, que apresenta a seguir (Transcrição de Fotocópia

apresentada no ANEXO E):

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O teatro para mim só me fez bem, coisa que fazia no CAPS não faço mais,

ainda tenho que melhorar muito. Sei que que sou agressiva, compulsiva e

outras coisas além disto, mas isto é como o tempo, a Paola conversa muito

com a gente e tudo que ela fala é verdade, ela me conhece melhor do que

muitos. O teatro me deixa à vontade é claro tudo tem que ter limite,

respeitando o próximo e o próximo me respeitando também, é maravilhoso

me soltar naquele lugar, apesar que às vezes fico com vergonha! Mas o

teatro muito o meu modo de ver as coisas, é lindo, maravilhoso! A Paola fala

que tenho que tomar os medicamentos porque não vou dar conta, me fala da

bebida. A Paola é um amor de pessoa. (Transcrição do depoimento de S., 09

de janeiro de 2018).

S. foi diagnosticada como tendo transtorno bipolar e entrou no grupo em maio de

2016. Chegou já dizendo o que ia fazer e como fazer, trouxe escrito o seu papel dizendo que

já tinha procurado saber como era o meu mecanismo de trabalho, não tinha respeito pela

minha condução e nem pelas outras atrizes, demonstrando uma necessidade muito grande de

chamar a atenção. Nos improvisos, não dava tempo dos outros falarem, sempre

interrompendo, ocupando o lugar de fala e de ação do outro. Continua tendo muitas atitudes

impulsivas, mas já consegue se relacionar – mesmo que ainda sem paciência e tolerância –

com outra atriz, dando o direito de seu tempo de fala e ação, o que, para mim, já é um grande

avanço.

Dani Bois (2008), em seus estudos, nos convida a pensarmos em formas de

conhecimento através da relação entre corpo e mundo, em experiências nas quais a vivência

tenha o aspecto fenomenológico da prática, e que essa se dê pelas aplicações do sensível, onde

o corpo seja a caixa de ressonância pela qual o sujeito da experiência recebe os reflexos do

mundo, devolvendo, de forma acessível, pela via reflexiva na relação íntima consigo mesmo e

pelas vias do corpo, e podendo nutrir representações e significações renovando os valores.

Quando iniciei as atividades com o coletivo, apesar de já identificar de forma bem

clara os benefícios do teatro para minha formação com sujeito e tentar fazer uma aplicação,

ainda que informal e parcial, desta realidade com atrizes, não vislumbrava meios de fazer uma

investigação mais aprofundada sobre isso e nem tinha intenção. Com o desenvolvimento desta

pesquisa, posso dizer que, ao fazer uma correlação da minha prática atoral com a prática das

atrizes do coletivo para legitimar a narrativa da minha experiência e levantando os aspectos

positivos e negativos da prática teatral para um mecanismo de autoconhecimento e

“superação” da “loucura” através do trabalho do ator sobre si no resgate da memória

emocional, fiquei motivada a querer ir adiante e continuar me profissionalizando para

trabalhar com o ensino do teatro para sujeitos com transtorno psíquico.

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Mas, por agora, só posso legitimá-la através da minha própria experiência, com a

consciência de que desenvolvi um entendimento e “superação” da “loucura” através da prática

teatral, me aproximando de um mecanismo parecido com a psicanálise, que se dá por meio da

minha própria construção, em que o analisando

(...) consiga se reconstruir como ser humano, encaixar as peças que não

faziam sentido em sua vivência e compreender os meandros do seu

inconsciente, saindo do círculo de repetições na qual estava inserido. A partir

daí será capaz de tornar-se autor e ao mais coadjuvante – de sua própria

história e vivê-la segundo o que “escreveu” na sua análise (AZEVEDO,

2010, p. 51).

Através dos relatos e experiência e da citação de Azevedo (2010), digo que me

aproximo da autonomia social proposta por Foucault ao sair da condição de paciente para a de

profissional que realiza a prática teatral com sujeitos com transtornos psíquicos com o

objetivo de levá-los a inserção social. Saí do lugar de coadjuvante dos reflexos da “loucura”

para a constituição de um mecanismo de superação da mesma, e essa é e continua, sendo a

meta por trás deste estudo.

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PARTE IV - “EU VOU FICAR, FICAR COM CERTEZA, MALUCO BELEZA...”

4 A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA

Neste capítulo, irei discutir alguns conceitos a partir do pensamento de Michel

Foucault, principalmente aqueles que se fazem presentes em seus últimos escritos – onde

retoma a constituição do sujeito enquanto formador de si mesmo –, em seu livro A

Hermenêutica do Sujeito (2010), que são compilações de suas duas últimas obras, A história

da sexualidade (1985 e 1988), e que foi rescrito a partir de cassetes de suas últimas aulas

ministradas no Collège de France, nos anos 1980. Recorremos a esses trabalhos para

pensarmos possíveis ressignificações do sujeito “louco” através da prática de si: Epiméleia

heautoû (cuidado de si) e Gnôthi seautión (conhece-te a ti mesmo) e a Tékneu toû bíou (arte

da existência). Aqui, quero propor que, através das experiências teatrais, além da criação

estética do espetáculo, é possível alcançar uma estética da existência, ou seja, o sujeito como

artista de si mesmo que, segundo Foucault, esse retorno à ética grega o fez pensar e criticar

sobre como o sujeito constitui a sua subjetividade na contemporaneidade, fazendo emergir a

necessidade de um sujeito que busca sua própria ética de forma inventiva nas morais

estabelecidas, vivendo uma ética autônoma e criativa.

4.1 Os conceitos das práticas de si em conversa com a prática teatral através da minha

experiência

A Epimèleia heautôu é “o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de

preocupar-se consigo, etc.” (FOUCAULT, 2010, p. 06). É através do autocuidado que se dá a

conexão entre verdade e subjetividade. Através do texto de Platão em Alcebíades, Foucault

(2010) ressalta que o cuidado de si, além de ser uma atitude para consigo em uma busca da

melhoria pessoal, também traz quatro considerações: incitar os outros a se ocuparem com si

mesmo e com os outros, desempenhar nos seus concidadãos o despertar e a constituição de

uma inquietude no curso da existência.

O filósofo afirma que o cuidado de si se refere ao conjunto de ações que transformam

o sujeito para o encontro com a verdade, condição essa necessária para acessá-la, e que a

forma de pensamento que se interroga sobre a verdade é a filosofia. E continua:

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Pois bem, se a isso chamarmos filosofia, creio que poderíamos chamar de

espiritualidade o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como purificação,

as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc.,

que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do

sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade (FOUCAULT, 2010, p. 15).

Foucault vai dizer que, mediante uma reflexão filosófica, ou seja, somente através do

conhecimento se dá o acesso a verdade. É necessário, então, possuir uma evidência como

critério, e isso ele chama de momento cartesiano. Foi neste momento que o pensamento grego

se afastou dos pensamentos de constituição do sujeito moderno, havendo uma dissociação da

prática com a teoria, ou seja, o pensamento cartesiano destituiu o cuidado de si do pensamento

filosófico moderno. Assim, se instaura o pensamento de que “não se pode conhecer a verdade

quando se é louco”. É necessário, também, “ter estudo, ter formação, inscrever em algum

consenso científico” (FOUCAULT, 2010, p. 18).

Com isso, se perde toda a importância ao “por em jogo o ser mesmo do sujeito”

(FOUCAULT, 2010, p. 16), porque, para que o sujeito se constitua como autônomo, é

necessário colocar em movimento e trabalho, o tirando do seu lugar atual, ou seja, “trabalho

de si para consigo, elaboração de si para consigo, transformação progressiva de si para

consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor que é o da ascese”

(FOUCAULT, 2010, p. 16). Posso dizer que o teatro e sua prática me trouxe uma consciência

corporal e psicológica através do trabalho do ator sobre si, não somente pela relação de

alteridade com o personagem, mas, também, promovidos pela rotina e comprimentos do

cronograma de ensaios e apresentações, práticas que me proporcionaram esse cuidado comigo

porque uma ação desencadeava em outras. Assim, continuei buscando o auxílio da psicanálise

e usos alternativos dos fitoterápicos – mesmo em meu último prontuário não ter sido

diagnosticada com o transtorno bipolar. É necessário estar bem fisicamente e

psicologicamente. Ao longo desses anos do aprendizado, o ofício de atriz me possibilitou esse

cuidado de si que se dá por um conjunto de práticas para consigo, ou seja, “refere-se a uma

forma de atividade, atividade vigilante, contínua, aplicada, regrada, etc.” (FOUCAULT, 2010,

p. 77). Assim, o trabalho com o Coletivo Ser ou Não Ser se tornou uma extensão do meu

cuidado.

Retomando as práticas de si através do texto platônico de Alcebíades, Foucault fala

que o objeto do cuidado de si era a cidade onde o governante tinha como objetivo “aplicar-se

a governar, para salvar a si mesmo e a cidade - a si mesmo enquanto parte da cidade”

(FOUCAULT, 2010, p. 77). Aqui, o objetivo é o eu, mas a finalidade é a cidade. Ainda é cedo

dizer se a mesma atitude e percepção dos benefícios do teatro para um autoconhecimento se

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dão da mesma forma nas atrizes do coletivo como se deu comigo. O que posso dizer de

imediato é que elas também tiveram a oportunidade, ainda que mínima, de ressignificarem

seus corpos sociais através da prática teatral, com a apresentação de um ensaio aberto que

teve em Julho de 2016 na FAOP – Fundação de Arte de Ouro Preto, na abertura no I

Simpósio da Rede de Atenção Psicossocial, de Ouro Preto/MG. Ainda, como já foi dito aqui,

não conseguimos estabelecer a construção de um espetáculo e sua circulação. A meta para

esse ano de 2018 é colocar essa realidade em prática e continuar a investigação de um

ressignificação do sujeito louco através da prática teatral para além da minha individualidade.

A prática ética é de extrema importância na prática do cuidado de si.

O Gnôthi Seautión (conhece-te a ti mesmo) “é a questão fundadora da questão das

relações sujeito e verdade” (FOUCAULT, 2010, p. 04) Quando foi instaurado esse conceito

no pensamento filosófico, que se deu na pessoa de Sócrates e em muitos de seus textos, como,

por exemplo, o Alcebíades, o termo conhece-te a ti mesmo se torna contrapartida do cuida-te

de ti mesmo, ou seja, um desdobramento. Porque o cuidado de si é considerado como um

primeiro despertar e se constitui como um princípio fundamental para caracterizar a atitude

filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana. Torna-se “uma atitude

para consigo, para com os outros, para com o mundo” (FOUCAULT, 2010, p. 11).

Como já falado no conceito anterior, essa questão ética das práticas de si serão sempre

preponderantes para realizá-las, além de uma formação do próprio pensamento ao converter o

olhar do interno para o externo, consequentemente, modificando a relação entre subjetividade

e verdade (FOUCAULT, 2010). Então, o gnôthi seautíon é uma reflexão de si mesmo, uma

necessidade de conhecer seus próprios valores, condutas e intenções em uma imersão em si

mesmo antes de propor o mesmo cuidado aos outros e, para isso, é necessária uma téchne, ou

seja, uma técnica, um saber, um desenvolvimento prático.

Lidar com nossa subjetividade não é tarefa fácil, então é de extrema necessidade que

eu entenda como lidar com todo tipo de situação primeiro em mim. Assim, digo que, ao longo

desses anos fazendo uma análise crítica através dos escritos do diário de bordo, levantei vários

aspectos da minha personalidade que me ajudaram a um autoconhecimento. Posso dizer que

viver uma imersão na construção do personagem em vivências muito próximas de uma vida

real – como a vivência descrita no espetáculo Myzèryaz Buzzenyzz, em que os personagens

foram imersos no dia a dia da vida ouro-pretana – foi o que me possibilitou a uma

aproximação do meu eu e, assim, destacar através das ações e falas do personagem

características da minha personalidade.

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Claro que nem sempre a coisa é feita de uma forma fácil, tem questões nossas que

precisam de um tempo de assimilação, um tempo de amadurecimento. E para deixar mais

claro, os estudos das práticas de si feitas por Foucault dizem que, para aquisição do

autoconhecimento, é preciso uma técnica e, chegando aqui, já posso afirmar, a partir da minha

experiência relatada, que o teatro me serviu como esse mecanismo.

Vou abrir aqui uma janela para trazer à tona meu segundo trabalho realizado dentro do

Teatro do Dragão e que me auxiliou muito sobre meu processo de abuso, o Caderno Rosa de

Lori Lamby (2015). Percebo claramente que, mesmo nesse trabalho não tendo, ainda, a menor

noção de que o teatro serviria como mecanismo de trazer o inconsciente à luz e da

necessidade de constituir um mecanismo criativo para esse fim, esse trabalho foi o primeiro

impacto positivo do teatro para me ajudar a sobreviver aos meus fantasmas e traumas, mesmo

que de forma totalmente intuitiva. Aqui, vou agregar o estudo realizado por Elaine

Christovam de Azevedo22, “Teatro e Psicanálise” (2010) sobre a analogia que a autora faz

sobre o repetir no palco e no setting psicanalítico.

Apesar de ter um texto fixo, o processo de criação se baseava em exercícios em que as

minhas memórias também eram campo de investigação. Lembro que fiquei muito impactada

com a leitura, porque relata as experiências sexuais de uma menina de oito anos. Ao final do

livro, a autora Hilda Hilst23 deixa uma incógnita da cabeça do leitor: aquela história era

mesmo verídica ou era fruto de uma imaginação fértil? O reconhecimento com a história

aconteceu de imediato, e quis abarcar aquele texto com unhas e dentes. Na minha história algo

similar se dava: quando o ocorrido veio à tona, não tive coragem de confrontar a minha mãe,

nem mesmo quando ela me questionou sobre a veracidade do fato. Para aliviar a sua dor,

menti e, assim, dentro do contexto familiar, essa história foi colocada como um invenção de

criança - e para criar um mecanismo de defesa, como acontece na maioria das vezes, a partir

do sofrimentos psíquicos acreditei ser ela uma mentira de criança. Essa interpretação não se

22 É psicóloga, especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica pela Universidade Gama Filho e em Gestão de

Recursos Humanos pela PUC-RJ. É autora de diversos artigos publicados em livros e revistas especializadas.

Atualmente dedica-se ao estudo de obras audiovisuais. É apaixonada por teatro desde criança. 23 Hilda Hilst (1930-2004) foi uma ficcionista, cronista, dramaturga e poeta brasileira, considerada pela crítica

especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século 20. Iniciou sua produção literária

em São Paulo, com o livro de poemas Presságio (1950). Em 1965, ela se muda para Campinas e inicia a

construção da Casa do Sol, para ser um porto seguro de sua criação. É na Casa do Sol que Hilda dedica-se

exclusivamente ao trabalho literário, realizando ali mais de 80% de sua obra. Em 1967, ela estreia na

dramaturgia e em 1970, na ficção, com Fluxo floema. Dona de uma linguagem inovadora e abrangente, Hilda

produziu mais de quarenta títulos, entre poesia, teatro e ficção, e escreveu por quase 50 anos, recebendo

importantes prêmios literários do Brasil. Criadora de textos em que Atemporalidade, Real e Imaginário se

fundem, e os personagens mergulham no intenso questionamento dos significados, buscando compreensão e

encontro do essencial, Hilda retrata sem cessar a frágil e surpreendente condição humana. Fonte:

https://www.hildahilst.com.br/hilda

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deu naquela época, mas apenas hoje, comigo mais madura e consciente do que essa história

representa.

Não mencionei na época da construção desse trabalho sobre o meu episódio de abuso,

não dava conta ainda, mas as escolhas de roteiro para a criação do espetáculo pela direção de

Luciane me serviu de expurgo da minha própria história. O texto era falado de forma

verborrágica, a minha personagem dava o texto de costa para o público todo o tempo, se

divertindo com seus brinquedos. A cada nova apresentação de Lori Lamby, o meu abuso foi

sendo assimilado e aceito, porque, através do discurso da personagem, encontrava uma forma

de contar aquela história da qual não tinha coragem de revelar nem a mim mesma. E sobre

esse processo, encontro ressonância em Azevedo (2003, p. 49), que diz que “repetir é uma

maneira encontrada pelo inconsciente de alcançar o controle de uma situação que ainda não

foi psiquicamente elaborada”. A psiquiatra diz que a pulsão em Freud tem resistência à

mudança e a repetição é algo salutar enquanto não vira compulsão. Por isso, então, é que

análise é um processo longo em “jogos intermináveis de repetições” (AZEVEDO, 2003, p.

50). Bem sei que desde o momento que realizei esse empreendimento de me conhecer melhor

e estabelecer uma relação diferente com a “loucura” do que a instituída pelo saber médico,

venho, a cada nova etapa, realizando um aprofundamento para sobreviver a seus reflexos.

Chego até aqui através dos conceitos da prática de si nos estudos de Foucault (2010)

para investigar aquilo que fomentou o título da minha pesquisa. Posso dizer, então, que

realizei uma constituição de uma estética da existência por meio do trabalho do ator sobre si?

Todo o aprofundamento do autor no comportamento dos gregos foi para trazer à tona o

pensamento da era clássica que “estava em definir certa tékhneu toû bíou (uma arte de viver,

uma técnica de existência). E foi no interior dessa questão geral da téchne toû bíou que se

formulou o princípio ocupar-se consigo mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 402). Ele diz que

esse é o grande tocante do pensamento e da moral grega:

Por mais opressiva que seja a cidade, por mais importante que seja a ideia de nómos,

por mais amplamente difundia que seja a religião no pensamento grego, nunca será a

estrutura política, ou a forma de lei, ou o imperativo religioso que poderão, para um

grego ou para um romano, mas sobretudo, para um grego dizer o que se deve

concretamente fazer ao longo de toda a sua vida. E, principalmente, não poderão

dizer o que se dever fazer da própria vida (FOUCAULT, 2010, p. 402).

Então, as técnicas de si são práticas que resistem às estruturas e às relações de poder,

tornando-se campos de possibilidades para sujeitos que se inventam e reinventam, ou seja,

buscam neste desvio das relações de poder se permitir a inventar sua própria existência. O

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sujeito ético em Foucault busca sua própria autonomia, que se liberta de suas tutelas em uma

emancipação racional e que, principalmente, se configura como uma obra de arte inacabada,

estando sempre por se transformar.

Foucault (2010) diz que é mais determinante aquilo que o sujeito faz daquilo que

fizeram com ele do que seu contrário, assim, é possível ver a constituição de uma

transformação do sujeito vir a ser. O cuidado de si é um grande empreendimento de um viver

para si como projeto existencial, desdobrando nas funções da crítica de si, luta e terapia

(FOUCAULT, 2010, p. 90-96). Enquanto crítica, ações que se consiga apontar os erros, as

más inclinações, o mau caráter. Por muitas vezes, no meu percurso pessoal e profissional,

como recurso para continuidade do desenvolvimento do autoconhecimento e ressignificação

da “loucura” e trazê-la para uma investigação cientifica, me causou arrepios e desejos de

recuar, fiz vários apontamentos antes de iniciar e durante a escrita: não quero sugestionar o

outro em uma interpretação singular que só pode ser legitimada por mim mesma. Se eu quiser

mentir aqui, quem vai provar o contrário? Não estarei usando as atrizes do coletivo como um

degrau para minha ascensão profissional no campo da docência em teatro para sujeitos com

transtorno psíquico? Não estarei transversalmente propondo conceitos teóricos em

legitimidade do meu discurso? Em que aspectos as pesquisas centradas na subjetividade se

configuram como importante para o ensino do teatro? Quais os benefícios de uma pesquisa

empírica teatral com sujeitos com transtorno psíquico? Até onde essa pesquisa não se torna

panfletária, narcisista e até preconceituosa com a própria “loucura”?

Posso dizer que um movimento por um pensamento estreitamente voltado para um

saber-poder-ética já se dava mesmo antes desta pesquisa e agora está embasado pelas

influências do pensamento de Foucault, e digo que o meu objetivo não é provar se existe uma

verdade a contrapor ou salientar, mas trazer pistas para realizar uma empreitada em que o

sujeito crie recursos que lhes é próprio para lidar com questões que o paralisam, que o

mantêm com a sensação de prisioneiro de si mesmo. Um mecanismo de se pensar o poder sem

o combate de empunhar uma espada em sua direção, mas para fazer dos seus reflexos

impulsos para criar uma arte de viver na qual cada papel seja vivido e construído na relação,

porque, quando reconheço o meu corpo, posso fazer um enfrentamento sadio com outros

corpos e instaurar outros possíveis campos ou caminhos e saberes de sobreviver.

Enquanto terapia, a busca pelo equilíbrio entre corpo e espírito. Uma permanente

terapêutica é o que o sujeito grego visava e o que sugere Foucault, pela influência do

pensamento grego, é que o sujeito da contemporaneidade realize uma prática de autocuidado,

sendo o sujeito médico de si mesmo (FOCAULT, 2010, p. 89-91). O teatro de toda a forma,

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para além da estética da criação, provocou em mim uma estética da existência, uma

ferramenta que se aproxima, talvez, de uma pedagogia que me permitiu criar estratégias, um

modo de viver próprio através das sensações estéticas.

Existe um artigo chamado “Pedagogia Teatral como cuidado de si: problematizações

na companhia de Foucault e Stanislavski” (2007), de Gilberto Icle24, que traz possibilidade

de se pensar a pedagogia de Stanislavski, através do trabalho de imersão do ator na construção

do personagem, e dos estudos de Foucault, por meio da prática de si como um mecanismo de

autocuidado, de humanização para a educação do sujeito e desenvolvimento humano para se

tornar “sujeitos de seu corpo, de seus afetos, de suas reflexões” (ICLE, 2007, p. 02). Aqui,

então, proponho uma pedagogia a partir da minha experiência e que pode ser aplicada com

muita positividade por outros sujeitos com transtornos psíquicos.

E, por fim, a luta como preço a se pagar para se chegar à verdade, para desenvolver

sua própria téchne, para ser tornar um ser autônomo. Ao que concerne ao direito do sujeito

grego de ser ele mesmo, não se confere a imposição da cidade, do imperativo religioso, a

estrutura política dizer o que se deve “fazer ao longo da própria vida” (FOUCAULT, 2010, p.

402), mas no desenvolvimento de uma téchne (essa arte de si mesmo) que nós mesmos

praticamos. Assim, o filósofo conclui que:

Doravante, parece-me que não somente o cuidado de si atravessa, comanda, sustenta

de ponta a ponta toda a arte de viver – para saber existir não basta saber cuidar de si

– mas, é a tékneu toû bíou (a técnica de vida) que se inscreve por inteiro no quadro

doravante autonomizado em relação ao cuidado de si (FOUCAULT, 2010, p. 403).

Então, para nos tornamos autônomos, qual preço a se pagar? Porque todos esses

empreendimentos nos colocam em confronto com as verdades hegemônicas. O objetivo maior

em Alcebíades se configurava na máxima: “deve-se viver de modo que se tenha consigo a

melhor relação possível” (FOUCAULT, 2010, p. 403). Assim, posso dizer que pouco importa

comprovar cientificamente a realidade destes fatos aqui descritos – a academia vai me

desculpar à ousadia -, não estou, de forma alguma, negando a importância e os benefícios da

ciência para o processo e evolução de nossa raça, nem contradizendo o pensamento

racionalista e tecnicista tão bem aplicados e com reflexos positivos desde Descartes, isso

atestaria o meu lugar de alienação. E também não ousaria usar a frase - atestaria o meu lugar

de “louca” - porque a experiência me comprovou que a “loucura” que diz existir em cada

artista se aproxima do que Azevedo (2010, p. 41) mencionou em seu livro: “não estamos aqui

24 Professor de Pós-Graduação em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ator e diretor teatral.

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falando de doença, mas de uma espécie de anti-doença, que permite o sujeito encontrar um

caminho sublimatório para o seu desejo de ir além”. Estou, nesse momento, percebendo

claramente como o processo da narrativa de si se aproxima das práticas de si do sujeito grego:

Procedimento de subjetivação do discurso verdadeiro é isso que encontrarem

continuamente expresso nos textos de Sêneca, quando, a respeito do saber, da

linguagem do filósofo, da leitura, da escrita, das anotações, etc., ele afirma: trata-se

de fazer suas (facere suum) as coisas que se sabe, fazer seus os discursos que se

ouve, fazer seus os discursos que se reconhece como verdadeiros ou que nos foram

transmitidos como verdadeiros pela tradição filosófica. Fazer sua a verdade, tornar-

se sujeito de enunciação do discurso verdadeiro: é isso, creio, o próprio cerne dessa

ascese filosófica. (FOUCAULT, 2010, p. 297).

Foi difícil confrontar essa postura que agora se descortina para mim. Quando notei a

repetição da palavra legitimar, percebi claramente quando Azevedo (2010), em seu estudo

sobre psicanálise e teatro, diz que a repetição nos serve como mecanismo de elaboração para

tudo aquilo que ainda não está bem resolvido em mim. Vi claramente o meu receio de

encontrar o meu próprio discurso dentro do discurso dos filósofos que aqui destaquei, vi o

receio de não ter a formação técnica suficiente para falar da “loucura”, um tema ainda cheio

de contradições, preconceitos e descobertas por vir, receio pelas minhas limitações teóricas,

mas elas em nada me tiram a constituição de minhas memórias por meio desta narrativa, no

desejo de me aproximar de uma hermenêutica do sujeito proposta por Foucault. Através da

minha livre interpretação, realizei um processo de ressignificação da “loucura” em mim, o que

me fez sobreviver aos reflexos negativos socialmente criados e chegar até aqui.

4.2 Provocações para pensarmos a ressignificação do sujeito “louco” como sujeito de si:

considerações em Michel Foucault e David Cooper

Neste item, gostaria de levantar algumas questões provocativas para pensarmos a

“loucura”. Realizar um aprofundamento sobre a mesma me faria sair muito da área de

concentração desta pesquisa, além de não ter recursos teóricos dentro desta mesma área que

me aproximem desta realização. Em seu livro História da Loucura (2013), Foucault traz

perspectivas da existência do saber médico desde a idade média até os tempos modernos,

enquanto um saber e poder dominante inaugura a “loucura” como doença mental, banindo de

convívio social todo o sujeito considerado fora dos padrões de normalidade, ou seja, os

considerados “loucos”. Já nos primeiros capítulos deste livro, conceitua a “loucura” como

parte da existência do ser e da formação da produção de sua subjetividade, e não como uma

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criação institucionalizada, onde é resguardada, explicada, caracterizada e catalogada por meio

da criação das práticas psiquiátricas. Podemos dizer que, nesse momento, o “o louco” também

passa a ser um objeto do saber (FOUCAULT, 2013, p. 24). É sabido que o que foi

considerado como grande internação tinha como propósito segregar todo sujeito que era

considerado desarticulador da ordem e da moral vigente e aí estava imersa a figura do

“louco”. Com a criação dos manicômios na modernidade e das diversas terapêuticas

desenvolvidas para curar o indivíduo considerado alienado mental, surgem as formas

correcionais médicas que passam a ser domínio de uma verdade absoluta com objetivos de

uma genealogia de poder da disciplina (FOUCAULT, 2013).

Sobre os aspectos de pensar a “loucura” como constituinte do ser e não como doença,

cabe mencionar o seu livro “Vigiar e Punir” (1987), quando menciona que, nas relações de

poder e saber, existe uma força contrária com que objetiva criar mecanismos de resistência ao

que está estabelecida pelo corpo hegemônico, nesse caso aqui, o corpo psiquiátrico que

colocou os modos de subjetivação da “loucura” como um discurso sem validação, sem

coerência, me posicionar como um ser que buscou na “loucura” a sua linguagem, o seu

discurso e, assim, através dela, encontro nos meus modos de subjetivação, liberta-me não em

confronto com o poder, mas no desvio, na curva que me liberta a um viver pleno.

Em seu livro “O Poder Psiquiátrico” (2006), Foucault destaca o aparecimento da

crítica institucional, ou movimento da antipsiquiatria a partir dos anos 1930-1940, que surge

de um discurso psiquiátrico que não se supõe verdadeiro e evidencia a violência do poder

médico no trato com os “loucos” (FOUCAUT, 2006, p. 50). Aqui, chamo para a

argumentação o psiquiatra David Cooper (1978)25. Esse movimento se destacava por um

movimento de contracultura. Eles acreditavam que a “loucura” era uma fabricação das

relações de poder nas várias instâncias que o constitui. Encontramos, assim, como em

Foucault, uma afirmação bem próxima da “loucura” como sendo uma fabricação social. Os

estudos dos psiquiatras David Cooper e Ronald Laing26 são caracterizados por trazerem à

tona, principalmente, as relações familiares como motivadoras da criação da loucura. Em seus

livros “Psiquiatria e Antipsiquiatria” (1967) e “O eu e os outros” (1972), trazem relatos

detalhados de pacientes e seus parentes mais próximos, dizendo que é mais correto afirmar

que as relações estão adoentadas do que qualificar um indivíduo doente específico dessa

25 Um dos incentivadores e criadores do movimento antipsiquiátrico na década de 1960 juntamente com outros

grandes nomes da psiquiatria Ronald Laing e Gregory Bateson. 26 Psiquiatra britânico um dos fundadores também da antipsiquiatria, apesar de certa rejeição ao rótulo,

desenvolveu estudos em que os transtornos sofrem influências do existencialismo onde os pensamentos do

paciente deveriam ser considerados rompendo assim com a psiquiatria ortodoxa (LAING, 1972).

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relação. Existem reflexões severas dos dois psiquiatras sobre as constituições do poder

começar. E, assim, serei provocativa, como descrevi no começo deste item, em pensarmos em

desdobramentos desta pesquisa: É possível a minha “loucura” ser um reflexo e se constituir a

partir das relações negativas familiares? Aqui, destaco novamente a história do abuso. Em seu

livro “Freud & Filosofia” (2003), Joel Birman destaca que a “loucura” não é caracterizada

por uma anomalia física, mas os sofrimentos psíquicos são reflexos e formados no nosso

inconsciente (modos de subjetivação) e, nos pensamentos de Foucault, o sujeito se forma nas

relações com outros corpos sociais. Posso dizer que os reflexos sociais vão influenciar

diretamente nos meus modos de subjetivação e como eu só me reconheço e projeto através do

outro, estabeleço a escolha desta relação: uma verdade instituída pelo o outro, ou uma verdade

que construo para a busca da autonomia?

Assim, ao buscar um desvio do pensamento hegemônico psiquiátrico, volto o meu

olhar através do pensamento da antipsiquiatria.

A linguagem da loucura é nem mais nem menos do que a compreensão da

linguagem. As nossas palavras começam a atingir o outro e é aí que reside o perigo

da loucura: quando ela diz a sua verdade. Um perigo, o único perigo da loucura, é a

desnormalização violenta das palavras triviais e das palavras da segurança.

(COOPER, 1978, p. 32).

Neste capítulo, o psiquiatra critica o poder da verdade nas mãos dos médicos da

psiquiatria tradicional e da psicanálise, mas não como sendo mecanismos de todo negativos,

mas do uso do poder que era feito onde a verdade estava contida. Também menciona que a

verdadeira alienação está na normatização do pensamento (fruto do poder capitalista). O

discurso do “louco” representava uma ameaça às normas de segurança. Ele diz que “um

excesso de segurança deveria fazer que começássemos a sentir-nos inseguros” (COOPER,

1978, p. 35) e que a linguagem da loucura se faz necessária como um movimento

revolucionário para mudanças de perspectivas sociais, principalmente, ligadas a normatização

e alienação, onde o controle “impõe limites ‘moralistas’ e, mais ou menos subtilmente, destrói

a vida na medida em que a limita” (COOPER, 1978, p. 39). Assim, também caracterizo o meu

compromisso de me colocar como porta voz destes que estão à margem, que não tem direito

de fala – pela influência de uma historicidade que coloca o “louco” como sendo um sujeito

desprovido de uma razão, lógica e sentido de verdade, como já foi dito aqui de diversas

formas pela perspectiva filosófica e psiquiátrica. Cooper (1978) diz da urgente necessidade de

se criar uma autonomia responsável. Me coloco como porta voz e não menciono a

importância de dar a eles o seu direito de voz, o que se configura como mais prudente e justo,

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porque, infelizmente, essa realidade ainda se encontra no plano do ideal. Várias vezes em que

dei a eles direito de voz, foram calados por falas tecnicistas e racionalistas e, muitas outras

vezes, pelo fato de estar desenvolvendo essa pesquisa, fui colocada com direito de fala,

calando novamente suas vezes de forma abrupta. Mesmo eu tendo aberto a freteira para essa

vozes se constituírem no seu legitimo discurso, essa construção se constitui capenga e cheia

de preconceitos.

Posso concluir dizendo que tanto Foucault, como Cooper, sobre a “loucura”, vão dizer

da necessidade de considerarmos os nossos eus (modos de subjetivação), e que a alienação é

uma invasão em nós de uma alteridade deformada, fruto de nossas experiências pessoais com

o institucional e o macro social.

Antes de iniciar minhas atividades no teatro e através dele fazer uma imersão na minha

subjetividade, já trazia questões e dúvidas sobre o meu diagnóstico e, na busca por um melhor

entendimento sobre o transtorno bipolar, iniciei estudos informais sobre as características e

mecanismos do mesmo. Mas não foi através do pensamento e do conhecimento que entendi o

que se passava comigo, e comecei a não aceitar essa condição. O incômodo não era ter um

diagnóstico de transtorno, frequentar os consultórios psiquiátricos e psicológicos, ter um

rótulo de “louca”, mas, perder o raciocínio através do uso de medicamentos psiquiátricos e me

tornar uma dependente química. Essa era a sensação física e mental que sentia: um

embotamento em que passava dias, semanas, deitada, sem vontade de fazer nada e sem desejo

de sair daquele estado. Os médicos diziam que o remédio iria me deixar mais disposta, mais

calma, que o mundo lá fora poderia estar caindo, que eu estaria bem e que as sensações iriam

passar, bastava o meu organismo acostumar-se com os efeitos ditos colaterais e de adaptação.

Mas não passava, eu ficava semanas grogue, com o raciocínio sobre mim mesma e o que se

passava em meu entorno bem reduzidos. Foi a partir desse desconforto que comecei a

questionar a “loucura” em mim e a buscar mecanismos diferentes - dos ditos verdades

médicas - sobre o uso de medicamentos. Então, antes de uma atitude filosófica sobre a

“loucura”, foi pelo corpo que comecei a criar mecanismos de resistência à mesma. Então, na

busca de atividades alternativas para lidar com os fantasmas da minha subjetividade e na

emancipação dos mecanismos de dominação da “loucura” - no caso aqui mencionado, o uso

contínuo de medicamentos psicotrópicos, encontrei no teatro o mecanismo que possibilitaria o

extravasamento dos mesmos.

A partir do pensamento de Foucault (2006), podemos dizer que a subjetividade é

sinônimo de diferenciação. Mas, o diferente que me refiro é quando o sujeito encontra

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caminhos não determinados pelo saber e poder hegemônicos, como, no meu caso, o corpo

psiquiátrico. E, assim, ele diz:

Mas, esse poder do médico, claro, não é o único poder que se exerce, porque, no

asilo, como em toda a parte, o poder nunca é aquilo que alguém detém, tampouco é

o que emana de alguém. O poder não pertence nem a alguém nem, aliás, a um

grupo; só há poder porque há dispersão, intermediações, redes, apoios recíprocos,

diferenças de potencial, defasagens, etc. É nesse sistema de diferenças, que será

preciso analisar, que o poder pode se pôr em funcionamento (FOUCAULT, 2006, p.

07).

Reforço que não quis e ainda não pretendo fazer um confronto da verdade médica

instituída. Existem sujeitos que ainda precisam e se comprazem desta relação, assim como

não incentivo nenhum dos usuários de Caps que já trabalharam comigo ao longo desses anos

a criarem um mecanismo de ruptura. O que quero é legitimar o meu percurso realizado por

outra via, outra rota. Se não tivesse criado intuitivamente o reconhecimento positivo e

negativo dos confrontos que meu corpo estava estabelecendo com o corpo psiquiátrico, com o

corpo farmacêutico, com o corpo da “loucura”, como o corpo do transtorno bipolar, com o

corpo familiar, com o corpo manicomial, com o corpo acadêmico, com o corpo “louco”, com

o corpo teatro e com o corpo personagem, não teria chegado até aqui e, possivelmente, estaria

completamente viciada e entorpecida pelos remédios psicotrópicos, sem me permitir buscar

novas formas de sobreviver à “loucura” e seus reflexos.

Sendo assim, por uma busca da verdade (a minha verdade), manifesto-me, hoje,

positivamente nas experiências pessoais em que a “loucura” me perpassa. E na busca de uma

possível constituição da ressignificação do meu sujeito – e, talvez, na verberação da

ressignificação de tantos outros sujeitos considerados “loucos”. Finalizo dizendo que,

pensando o conceito de corpo em Foucault (2010), posso dizer que me aproximo da

autonomia do sujeito de si proposto por ele, em que sai do lugar de paciente, de doente, para o

lugar de um profissional docente que busca a sua formação no ensino do teatro para sujeitos

com transtorno psíquicos.

Ao destacar, novamente, a história pessoal como aporte de importância dentro das suas

singularidades para o campo de pesquisa, quero retomar a tese do professor Souza (2004), que

dedica um capítulo ao tema da singularidade da narrativa dos sujeitos que se colocam como

objetos de pesquisa. Ao trazer os relatos de professoras – que é o seu objeto de pesquisa - no

seu processo inicial de formação docente, destaca que as particularidades da aprendizagem

pessoal e profissional, ao serem narradas, se tornam exercícios interpretativos e reflexivos

para entendimento do “percurso escolar, da reflexão sobre si mesmo e pontencializadora de

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uma práxis educativa reflexiva no processo inicial e contínuo de formação” (SOUZA, 2004,

p. 130). Assim, no processo de realização desta pesquisa, fica cada vez mais evidente o meu

interesse na profissionalização docente do teatro para sujeitos com transtorno psíquico, o que

configura a necessidade de um entendimento muito claro e crítico dos estados de “loucura”,

sabendo que ele se constitui como mecanismo potente de expressão do eu. Então, se quero

mesmo efetivar uma formação do ensino do teatro para esses sujeitos, é de extrema

importância o conhecimento de uma possível linguagem da loucura.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta pesquisa de mestrado, procurei responder à pergunta: É possível o trabalho do

ator ressignificar o “louco” como sujeito de si? Investigando esta questão, acabei resgatando

parte da minha história, já que recorri à pesquisa autobiográfica como recurso metodológico

para abordagem das relações entre o teatro e da “loucura” e suas aplicações como ferramenta

pedagógica de auto formação pessoal e profissional. Assim, essa ferramenta se configura com

mecanismo potente para pensarmos o caminho docente de profissionais do teatro também.

A doença mental está ligada à noção de anormalidade e, por muitas vezes e com o

recurso do eu narrativo, ficou mais evidente ao reler a minha narrativa que, mesmo depois do

meu diagnóstico ter sido considerado dentro dos padrões da normalidade, busquei formas de

me manter em construção nos mesmos padrões, criando um discurso defensivo e repetitivo de

legitimidade para não ser classificada como “louca”. Trazer a própria subjetividade abrindo

brechas para novos paradigmas do pensamento moderno que é considerado válido pelas

práticas racionais traz pistas para pensarmos em uma sociedade que, na grande maioria das

vezes, quis calar o corpo como sendo teatro das emoções. A partir do marco filosófico entre

razão e desrazão apontado por Foucault como momento cartesiano, o conceito de corpo foi

classificado pelo rebaixamento das emoções e paixões.

Assim, para relacionar estética da existência e loucura, me apropriei das minhas

memórias e dos reflexos emocionais das mesmas para não mais me envergonhar dos reflexos

da “loucura” na minha história, não me envergonhar do que fui, do que sou e do que quero

ser, mas ressignificar a “loucura” como um adjetivo positivo, ao passo que os artistas de si, ao

romperem com os padrões preestabelecidos na criação de novos modos de subjetivação, são

considerados “loucos”, marginais e anormais.

É necessário reivindicarmos uma linguagem da loucura, com já diz David Cooper,

onde ela é considerada uma rebeldia contra o familiarismo. Estamos acostumados ao cabresto

e, muitas vezes, movida pela coerência de um discurso tecnicista, porque somente por ele

existe a coerência e racionalidade, me desviei da própria criatividade, da emoção que me

permite sair do padrão, e produzi discursos que reproduzem o saber hegemônico, cujo único

propósito é nos manter presos, colocando todos os indivíduos na mesma caixa e padronizando

o pensamento e as emoções. Buscar uma construção estético-existencial para romper com esse

mecanismo não me coloca acima dos que se encontram, ainda, presos e nem me blinda de

cometer equívocos e até mesmo estabelecer pré-conceitos com relação à “loucura”. Mas,

procurar essa via me permitiu, sim, ao longo desses anos, buscar uma possível ressignificação,

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incorporando a arte no meu ser considerado “louco” e, como na grande maioria das vezes, ele

não tem medo e nem é movido pela crítica aos padrões, me permiti a ousadia de filosofar as

relações entre teatro e “loucura”, porque a filosofia, nas palavras de Foucault, permite o

sujeito a construir uma liberdade de pensamento e de construção de si mesmo, mesmo que

isso, ao olhos sociais, se articule como “loucura”.

Neste sentido, a fim de melhor entender este processo, quis comprovar, através da

minha experiência singular, que o trabalho do ator sobre si, por meio da técnica do improviso

e pela memória emotiva, cria um corpo biográfico ao fazer emergir, do inconsciente para a

cena, meus modos de subjetivação, levando-me a um mecanismo de autoconhecimento,

quando estabeleço com o personagem uma relação de alteridade.

Então, o que antes era somente intuição e desejo de sobrevivência à “loucura”,

amadureceu na forma desta pesquisa, ampliando o meu olhar sobre o trabalho desenvolvido

com as atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser, ao perceber que venho constituindo uma formação

profissional de educação não formal no ensino do teatro para pessoas com transtorno psíquico

e que essa mesma realidade vivida por mim, ainda que em aspectos distintos, se fazem

semelhantes a uma abordagem pedagógica de auto formação pelas vias do corpo. Assim,

confirmo que, pelo recurso da pesquisa autobiográfica, empreendi um mecanismo

epistemológico pelo qual realizo um projeto de formação e auto formação nas relações entre

vida pessoal e profissional.

Espero ter instaurado um mecanismo de conhecimento ganhe campo através da

metodologia autobiográfica, em que a singularidade e subjetividade se configuram como um

ato de reflexão e invenção do eu sob aspectos educativos, ou seja, um sujeito em potencial de

auto formação. Para estudos futuros, fica aberta a possibilidade de ampliação deste escopo,

em direção à área da educação contemporânea, principalmente na docência e no ensino do

teatro, criando perspectivas metodológicas do aprendizado dentro da área e como forma de

inserção social.

O teatro se faz com o corpo e foi no exercício deste corpo que estabeleci uma

interpretação para além do espetáculo, criando, sim, uma estética da existência, e, se posso

dizer que é possível ressignificar o “louco” como sujeito de si só, posso dizer, a partir de mim

mesma, ao sair da condição de “louca” diagnosticada para pesquisadora teatral, o que

socialmente já se estabelece como uma inserção positiva. Mas, o mais importante que a

opinião alheia e o status quo, é a verdade de si mesmo, em que é necessária uma postura de

reinvenção, criando técnicas outras que as estabelecidas pela a verdade hegemônica, técnica

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cujo o objetivo é a própria vida ou fazer da própria vida uma obra de arte, na qual a liberdade

e escolha se dá por aquele que a utiliza e a produz.

Em minha prática profissional – e, sobretudo, em meu trabalho junto ao Caps Ouro

Preto e com o Coletivo Ser ou Não ser, procurei transmitir a necessidade de autocuidado, de

modo a evidenciar a influência positiva da prática teatral como processo de autoconhecimento

e ferramenta para uma possível superação da “loucura”, mas essa realidade nunca foi

imposta. É importante frisar que trabalhar com o inconsciente é um campo minado, sendo que

nem sempre emergem imagens bonitas. Por vezes, aflora o que não gostamos de enxergar e

Jung, não por acaso, fazia referência a uma sombra, portanto, é de extrema importância o

respeito em uma conduta ética, mas, principalmente, o conhecimento da prática realizada.

Aqui, temos apenas pistas para uma aproximação entre teatro e subjetividade. Ter vivido nos

entremeios da “loucura” e viver há 10 anos ao lado de sujeito considerados “loucos” me

proporcionou perceber a violência que as pessoas fazem umas às outras e como é importante o

cuidado de si – cuidar da própria saúde mental, objetivando a criação de um ser mais sensível,

equilibrado e consciente, não somente consigo, mas, principalmente, com o outro, lugar esse

necessário para o meu reconhecimento enquanto sujeito – sem juízos de valores.

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ANEXOS

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ANEXO A - CARTA DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM

Eu, .... RG.... e CPF.... residente à..... concedo o direito de imagem e vídeos dos processos de ensaio e

espetáculos realizados no Teatro do Dragão cobertos pela Lei federal n. 9.610, de 19 de fevereiro de

1998, que também se aplica o Código Civil (Lei federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), para

Paola Cynthia Moreira Bonuti inseri-las em sua pesquisa de mestrado A constituição de um estética da

existência através do trabalho do ator com orientação da Profª. Dr.ª Luciana da Costa Dias do

Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto/MG.

1. Deixo plenamente autorizado a utilizar os registros fotográficos e de vídeo no todo ou em

parte, editado ou integral.

2. Declaro ter total confiabilidade na pesquisadora e sua orientadora, disponibilizando a

participar, permitindo que seja utilizado meus registros fotográficos e de vídeo (parciais ou totais) nos

resultados da pesquisa de mestrado, por tempo indeterminado

3. Asseguro ter sido esclarecido sobre os procedimentos e desenvolvimento da pesquisa de

mestrado A criação de uma estética da existência através do trabalho do ator sobre si

Objetivos geral e específico: realizar uma investigação que comprove o que trabalho do ator sobre si

na construção do personagem, tendo como ferramenta de criação a memória emocional produz-se um

corpo biográfico. E a partir dos relatos feitos em diário de bordo do processo de criação é possível

fazer uma interpretação crítica e destacar traços desconhecidos, poucos explorados e outros pontuais

da personalidade do ator, constituindo-se assim uma relação de alteridade com o personagem levando-

o a um mecanismo de autoconhecimento. Busca-se comprovar que essa prática se assemelha com a

psicanálise, e que ao longo dos anos através da mesma, criei um mecanismo de superação do

transtorno bipolar e constituição de uma Estética da Existência.

Metodologia: Através do diálogo e correlação da prática atoral realizada no Teatro do Dragão com a

prática das atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser busca-se afirmar os benefícios do teatro para a

superação da “loucura” e de um exercício de autoconhecimento através da minha experiência pessoal.

Serão levantados três processos de criação no trabalho do Dragão e três relatos das atividades

realizadas no Coletivo para fomentar a investigação de que a experiência teatral para além do

espetáculo possibilita a criação de outros fins estéticos: a constituição de uma “Estética da Existência”

preconizada por Michel Foucault onde o sujeito desenvolve uma tékne toû bíou (uma arte de viver)

que implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que a utiliza, e através dela realiza um

aperfeiçoamento de vida ou uma autoeducação.

4. Afirmo que tenho total conhecimento sobre a pesquisa, podendo recusar participar caso não

me sinta confortável em alguma situação, retirando meu consentimento em qualquer momento.

5. Responsabilizo-me a buscar esclarecimentos sobre o desdobramento da pesquisa, tendo a

certeza de que em qualquer momento eles estarão disponíveis para aplicar eventuais dúvidas

existentes.

Ministrantes do projeto:

Paola Cynthia Moreira Bonuti

Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

E-mail: [email protected]

Luciana da Costa Dias

Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP

E-mail: [email protected]

Ouro Preto, 15 de fevereiro de 2017

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ANEXO B - CARTA DE CESSÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO – UFOP

PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO

CESSÃO DE DIREITOS SOBRE USO DA IMAGEM E DEPOIMENTO ORAL E ESCRITO

1. Pelo presente documento eu

NOME CI CPF ASSINATURA

Autorizo a mestranda Paola Cynthia Moreira Bonuti e a orientadora Prof.ª. Drª. Luciana da Costa Dias a utilizar

a utilizar os registros fotográficos e de vídeos, além de depoimentos orais e escritos realizados nas atividades do

grupo teatral Coletivo Ser ou Não Ser formado por usuários do Caps 1 – Centro de Atenção Psicossocial em

Saúde Mental antes e durante a realização da pesquisa de mestrado: A construção de uma estética da existência

através do trabalho do ator.

2. Na forma preconizada pela legislação nacional e pelas convenções internacionais de que o Brasil e

signatário, o Depoente, terá, indefinidamente, o direito ao exercício pleno dos seus direitos morais sobre os

referidos registros, de sorte que terá sempre seu nome ou o pseudônimo citado por ocasião de qualquer

utilização.

3. Deixo plenamente autorizado a utilizar os registros fotográficos e de vídeo e os depoimentos orais e

escritos, no todo ou em parte, editado ou integral.

4. Declaro ter total confiabilidade na pesquisadora e sua orientadora, disponibilizando a participar,

permitindo que seja utilizado meus registros fotográficos e de vídeo (parciais ou totais) nos resultados da

pesquisa de mestrado, por tempo indeterminado

5. Asseguro ter sido esclarecido sobre os procedimentos e desenvolvimento da pesquisa de mestrado A

criação de uma estética da existência através do trabalho do ator sobre si

Objetivos geral e específico: realizar uma investigação que comprove o que trabalho do ator sobre si na

construção do personagem, tendo como ferramenta de criação a memória emocional produz-se um corpo

biográfico. E a partir dos relatos feitos em diário de bordo do processo de criação é possível fazer uma

interpretação crítica e destacar traços desconhecidos, poucos explorados e outros pontuais da personalidade do

ator, constituindo-se assim uma relação de alteridade dom o personagem levando-o a um mecanismo de

autoconhecimento. Busca-se comprovar que essa prática se assemelha com a psicanálise, e que ao longo dos

anos através da mesma criei um mecanismo de superação do transtorno bipolar e constituição de uma Estética da

Existência.

Metodologia: Através do diálogo e correlação da prática atoral realizada no Teatro do Dragão com a prática das

atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser busca-se afirmar os benefícios do teatro para a superação da “loucura” e de

um exercício de autoconhecimento através da minha experiência pessoal. Serão levantados três processos de

criação no trabalho do Dragão e três relatos das atividades realizadas no Coletivo, além da inserção de um

depoimento escrito de uma das atrizes participantes como forma de fomentar a investigação de como a

experiência teatral para além do espetáculo possibilita a criação de outros fins estéticos: a constituição de uma

“Estética da Existência” preconizada por Michel Foucault onde o sujeito desenvolve uma tékne toû bíou (uma

arte de viver) que implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que a utiliza e através dela realiza um

aperfeiçoamento de vida ou uma autoeducação.

Os encontros com o Coletivo se dão desde 2015 com um encontro semanal de 03 horas de duração onde são

realizados improvisos através da memória emocional das atrizes com objetivos de constituição de um espetáculo

teatral e inserção social, e não como mecanismo psicanalítico. Suas vozes promovem uma relação ética também

preconizada por Michel Foucault onde o sujeito se reconhece na relação e no embate com outros corpos.

A análise será pautada pela metodologia autobiográfica no método pós-positivista, onde as subjetividades

promovem o uso de metodologia experimental e a possibilidade e o desejo pelo encontro de uma verdade

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objetiva ou o chamado uma nova hermenêutica onde o sujeito é levado a fazer uma nova história através dos

estudiosos das narrativas de si: Elizeu Clementino de Souza, Marie-Christine Josso e Danis Bois.

6. Afirmo que tenho total conhecimento sobre a pesquisa, podendo me recusar a participar caso não me

sinta confortável em alguma situação, retirando meu consentimento em qualquer momento.

7. Responsabilizo-me a buscar esclarecimentos sobre o desdobramento da pesquisa, tendo a certeza de que

em qualquer momento eles estarão disponíveis para aplicar eventuais dúvidas existentes.

Ministrantes do projeto:

Paola Cynthia Moreira Bonuti

Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

E-mail: [email protected]

Luciana da Costa Dias

Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP

E-mail: [email protected]

Ouro Preto, 15 de fevereiro de 2017.

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ANEXO C - CARTA DE CESSÃO PARA USO DE PRONTUÁRIO MÉDICO

Ouro Preto, 15 de Fevereiro de 2018.

Eu, ..... RG.... e CPF.... residente à...... concedo o direito de inserção do prontuário médico de nº 6863 no regime

de atendimento de plantão do Caps 1 – Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental de Ouro Preto/MG

com base na Lei federal n. 1.638 de 29de setembro de 1939 , e no código de ética médica da Resolução

federal n. 1931, de 24 de fevereiro de 2009 para usuária Paola Cynthia Moreira Bonuti, RG 8.345.522 e

CPF 033.877.366-57 inserir em sua pesquisa de mestrado A construção de um estética da existência através do

trabalho do ator com orientação da Profª. Dr.ª Luciana da Costa Dias do Programa de Pós-Graduação em Artes

Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto/MG.

6. Deixo plenamente autorizado a utilizar o registro no todo ou em parte, editado ou integral.

7. Declaro ter total confiabilidade na pesquisadora e sua orientadora, disponibilizando a participar

permitindo que sejam utilizados meus registros psiquiátricos (parciais ou totais) nos resultados da pesquisa de

mestrado, por tempo indeterminado.

8. Asseguro ter sido esclarecido sobre os procedimentos e desenvolvimento da pesquisa de mestrado A

construção de uma estética da existência através do trabalho do ator sobre si

Objetivos geral e específico: realizar uma investigação que comprove o que trabalho do ator sobre si na

construção do personagem, tendo como ferramenta de criação a memória emocional produz-se um corpo

biográfico. E a partir dos relatos feitos em diário de bordo do processo de criação é possível fazer uma

interpretação crítica e destacar traços desconhecidos, poucos explorados e outros pontuais da personalidade do

ator, constituindo-se assim uma relação de alteridade com o personagem levando-o a um mecanismo de

autoconhecimento. Busca-se comprovar que essa prática se assemelha com a psicanálise, e que ao longo dos

anos através da mesma, criei um mecanismo de superação do transtorno bipolar e constituição de uma Estética

da Existência.

Metodologia: Através do diálogo e correlação da prática atoral realizada no Teatro do Dragão com a prática das

atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser busca-se afirmar os benefícios do teatro para a superação da “loucura” e de

um exercício de autoconhecimento através da minha experiência pessoal. Serão levantados três processos de

criação no trabalho do Dragão e três relatos das atividades realizadas no Coletivo para fomentar a investigação

de que a experiência teatral para além do espetáculo possibilita a criação de outros fins estéticos: a constituição

de uma “Estética da Existência” preconizada por Michel Foucault onde o sujeito desenvolve uma tékne toû bíou

(uma arte de viver) que implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que a utiliza, e através dela

realiza um aperfeiçoamento de vida ou uma autoeducação.

9. Afirmo que tenho total conhecimento sobre a pesquisa, podendo recursar-sem de participar caso não me

sinta confortável em alguma situação, retirando meu consentimento em qualquer momento.

10. Responsabilizo-me a buscar esclarecimentos sobre o desdobramento da pesquisa, tendo a certeza de que

em qualquer momento eles estarão disponíveis para aplicar eventuais dúvidas existentes.

Ministrantes do projeto:

Paola Cynthia Moreira Bonuti

Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP

Email: [email protected]

Luciana da Costa Dias

Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP

Email: [email protected]

________________________

Nome, assinatura e carimbo

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ANEXO D – Prontuário de Paola Moreira (autora)

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ANEXO E – Depoimento escrito de atriz participante do Coletivo Ser ou Não Ser (2018)

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ANEXO F – Cartas de cessão devidamente assinadas

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