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UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E ARTES CÊNICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO
TRABALHO DO ATOR SOBRE SI
OURO PRETO - MG
2018
PAOLA CYNTHIA MOREIRA BONUTI
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO
TRABALHO DO ATOR SOBRE SI
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal de Ouro Preto como requisito para a
obtenção de título de mestre em Artes Cênicas.
Linha de pesquisa 1: Estética, Crítica e História das
Artes Cênicas.
Orientadora: Prof.ª Dr. Luciana da Costa Dias
OURO PRETO - MG
2018
Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Curso de Mestrado Acadêmico em Artes Cênicas
Paola Cyntia Moreira Bonuti
A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ATRAVÉS DO
TRABALHO DO ATOR SOBRE SI
Área de Concentração: Artes Cênicas
Linha de Pesquisa: Estética, Crítica e História das Artes Cênicas
Para todos os brasileiros idôneos que pagam seus
impostos devidamente e que possibilitaram o
financiamento desta pesquisa através da bolsa
UFOP
AGRADECIMENTOS
A todos os meus guias, pela intuição e caminhada nesta nave “louca”. Aos meus pais,
Efigênia Carvalho de Souza e Paulo Roberto Mateus Moreira, minha gratidão pela vida e pelo
amor. Aos meus filhos, Cauã Moreira Bonuti e Iasmim Moreira Bonuti, motivos que me
fazem realizar esta pesquisa: que meu esforço os faça desejar a liberdade de serem eles
mesmos. Ao meu marido, Gustavo Araujo Bonuti, pelo amor cujo porto quero sempre voltar e
pela paciência nos meses de ausência e TPM sobrenaturais: você é o pai de quem me orgulho
incondicionalmente. À Evânia Maria de Araújo, por várias vezes ter me dado o suporte como
uma mãe. As minhas amigas irmãs do coração, longe ou perto são meu sustento: Danielle
Pimenta Kascher, fã de carteirinha do meu trabalho de atriz e modelo de mãe a ser seguido;
Eliana Moreira Gomes, pelo amor que nada modifica, nem a distância, e Luciane Trevisan,
minha co-orientadora voluntária de afeto, discussões e auxílio nas correções, minha
admiração e agradecimento pelos anos de parceria no Teatro do Dragão, onde aprendi a ser
atriz e fazer do teatro minha profissão e sobrevivência à “loucura”. E à Lívia, minha amiga
irmã caçula que não me deixa perder a fé. Aos companheiros de jornada e agora amigos de
caminhada: Estela Valle e Emerson Pereira. A todos os usuários de Caps. – Centro de
Atenção Psicossocial da cidade de Ouro Preto, que criaram comigo, me fizeram crescer e
superar o transtorno bipolar, mas, principalmente, a Sueli Basílio e Maria Geralda – Teca,
atrizes que não desistem de manter o Coletivo Ser ou Não Ser em atividade. A minha
orientadora, Luciana da Costa Dias, por acreditar nesta pesquisa e fazê-la possível comigo.
Aos professores que mudaram a minha trajetória e deixaram marcas nas minhas escolhas,
Paulo César Bicalho, com quem aprendi, conheci e vivi Stanislávski e Clarissa Alcântara
pelas pulsões de nos colocarmos como criador de afetos. A todos os profissionais da Raps –
Rede de Atenção Psicossocial de Ouro Preto pela parceria e pela luta aos direitos dos
usuários, principalmente à Suzana, pela parceria e amizade que me servem de inspiração;
Elaine, que sempre me deu forças para alçar voos cada vez mais altos, André, pelo carinho e
inteligência ao pontuar o meu trabalho teatral, o que me fez repensar os caminhos, e Ana
Cláudia, que, várias vezes, teve o ouvido atento e afetuoso típico dos psicólogos que se
dedicam à profissão. E a todas as pessoas que diretamente ou indiretamente se fazem
presentes em mim, muito, muito obrigada!
“Não há exemplos a seguir, e decerto não o meu. O que é necessário
para uma pessoa, de modo nenhum o é para outra. Todos nós temos
as nossas próprias loucuras, os nossos atalhos”.
- David Cooper
“A arte existe porque a vida não basta”.
- Ferreira Gullar
“O advir define-se para nós por um duplo movimento: de um lado a
parte móvel do Sensível, processo dinâmico que conduz o sujeito para o
futuro; do outro, a parte imóvel do Sensível, que acolhe o movimento
da temporalidade por vir. A noção de advir circunscreve o lugar de
encontro encarnado que atualiza o futuro no presente e contribui para
dar sentido ao que era, até então, despercebido pelo sujeito”.
- Dani Bois
RESUMO
Esta pesquisa objetiva investigar, através do trabalho do ator sobre si na construção do
personagem e tendo, como ferramenta de criação, a memória emocional, de Stanislávski, a
prática do teatro como instrumento de auto formação e autoconhecimento por possibilitar ao
sujeito se colocar diante do personagem em uma relação de alteridade e, assim, alcançar uma
perspectiva de auto cuidado na criação de uma estética da existência, termo cunhado por
Michel Foucault. Ao longo da investigação, pôde ser observado que, tendo o personagem
como porta-voz, é possível alcançar certo distanciamento crítico e uma análise daquilo que
emergiu do inconsciente do ator para a construção da cena. Buscou-se, na metodologia
autobiográfica, realizar o percurso de investigação-formação, em que o sujeito se insere em
perspectiva epistemológica, ou seja, se torna detentor da investigação como ferramenta de
legitimação da própria prática e da própria subjetividade através da trajetória pessoal,
acadêmica e profissional. Finalizando, esta discussão pôde ser estendida ao meu trabalho no
CAPS – Centro de Atenção Psicossocial de Ouro Preto, junto a portadores de transtornos
psíquicos, cujos resultados também são discutidos nesta dissertação.
Palavras-chave: Autobiografia; Subjetividade; Construção do personagem; Autocuidado;
Estética da Existência.
ABSTRACT
This research aims to investigate, through the work of the actor on himself in the construction
of the character and having as a tool of creation the emotional memory of Stanislavsky, the
practice of theatre as a possibility of self-training and self-knowledge that enables the subject
and the character in a relation of alterity, thus reaching a perspective of self-care in the
creation of an aesthetic of existence, a term coined by Foucault. Throughout the investigation
it has been observed that, having the character as spokesperson, it is possible to actor achieve
a certain critical distance and an analysis of what emerged from each subject's unconscious
for the construction of the scene. It was sought in the autobiographical methodology to carry
out the research-training course where the subject is inserted in an epistemological
perspective, that is, becomes the holder of the investigation as a tool of legitimation of the
own practice and of the own subjectivity. Finally, this discussion could be extended to my
work in the CAPS Ouro Preto with patients with psychic disorders, whose results are also
discussed in this dissertation.
Keywords: Autobiography; Subjectivity; Character construction; Self-care; Aesthetics of Existence.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006). ................................... 30
Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006). ................................... 31
Figura 3 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto,2006) ..................................... 41
Figura 4 - Edifício Dora (Mariana, 2013)................................................................................. 44
Figura 5 - Edifício Dora (Mariana,2013).................................................................................. 44
Figura 6 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP -Ouro Preto, 2016). ................. 53
Figura 7 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP -Ouro Preto, 2016). ................. 53
Figura 8 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016). .......... 57
Figura 9 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016). .......... 57
SUMÁRIO
A ARTE IMITA A VIDA OU A VIDA IMITA A ARTE? CONTEXTUALIZANDO O
CAMINHO DE PESQUISA... .................................................................................................. 11
PARTE I – “O LOUCO QUE HÁ EM MIM SAÚDA O LOUCO QUE HÁ EM TI! ”
1 AUTOBIOGRAFIA: UM CAMINHO METODOLÓGICO ................................................ 15
1.1 Meu Caminho ..................................................................................................................... 15
1.2 A autobiografia e seus reflexos para a formação pessoal e profissional do sujeito através
da relação arte e vida ................................................................................................................ 21
PARTE II - “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA”
2 O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI: A ARTE DA VIVÊNCIA ..................................... 29
2.1 A vivência do ator e seus reflexos: uma mulher marginal nas ruas de Ouro Preto ............ 29
2.2 A memória emocional como recurso para um autoconhecimento ..................................... 34
2.3 A relação de alteridade com o personagem ........................................................................ 38
2.4 Demonstrações práticas da relação de alteridade com o personagem ................................ 39
2.4.1 Diários de bordo .............................................................................................................. 41
2.5 A construção de um corpo biográfico................................................................................. 50
PARTE III - “SER OU NÃO SER EIS A QUESTÃO”
3 O TRABALHO TEATRAL REALIZADO NO COLETIVO SER OU NÃO SER ............. 52
3.1 A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa................................................... 54
3.2 A vivência do trabalho do ator no coletivo e seus reflexos: estudos de caso ..................... 60
3.2.1 Caso 1: E ela fugiu com seu Patrick Schweizer... ........................................................... 61
3.2.2 Caso 2: A “Louca” e o Brio ............................................................................................. 66
PARTE IV - “EU VOU FICAR, FICAR COM CERTEZA, MALUCO BELEZA...”
4 A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA ............................................ 74
4.1 Os conceitos das práticas de si em conversa com a prática teatral através da minha
experiência ................................................................................................................................ 74
4.2 Provocações para pensarmos a ressignificação do sujeito “louco” como sujeito de si:
considerações em Michel Foucault e David Cooper ................................................................ 81
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................... 87
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 90
ANEXOS .................................................................................................................................. 93
11
A ARTE IMITA A VIDA OU A VIDA IMITA A ARTE? CONTEXTUALIZANDO O
CAMINHO DE PESQUISA...
A célebre frase: “a arte imita a vida”, do filósofo grego Aristóteles, um dos
fundadores da filosofia ocidental, influencia diversas pesquisas no âmbito das artes nas
relações entre arte e vida. Dentre o seu abrangente legado, destaco, aqui, os conceitos
presentes na frase: arte (techné), natureza (physis) e imitação (mímesis). Não farei um
aprofundamento dos mesmos a partir da obra Aristotélica, que é extensa, mas trarei autores
influenciados por essa máxima, cuja reverberação influi nas relações entre arte e vida, assim
como na investigação desta pesquisa. Através dos estudos de Alessandro Barrivieira, em
“Poética de Aristóteles – tradução e notas” (2006), ressalto o conceito de mimeses a partir do
seu pensamento, buscando compreender até onde é possível considerá-la como uma prática
para se pensar questões existenciais do sujeito por estar associada à natureza e a arte. Segundo
Barrivieira (2006), a natureza em Aristóteles seria um princípio interno à coisa que sofre a
mudança, produzindo matéria e forma, em contraste com a técnica, que é um princípio
externo à coisa que sofre a mudança. Assim, configurarei, aqui, a título de entendimento, a
natureza sendo um princípio interno e o teatro (técnica), um princípio externo. Como a
natureza, a arte tem que produzir matéria e forma, assim, pretendo realizar, ao longo desta
dissertação, aproximações entre arte e vida através dos conceitos de teóricos do teatro e da
filosofia, investigando a possibilidade de o teatro completar os efeitos da natureza em vista de
um fim, que aqui se configura como um processo de autoconhecimento e ressignificação da
“loucura”1. O que quero ressaltar e destacar é a reflexão feita pelo autor sobre a imitação,
quando esta não somente reproduz a natureza, mas dá ao homem um mecanismo de auxílio
contemplativo através da arte, para reproduzir ou vivenciar aquilo que a natureza não
conseguiu lhe proporcionar (BARRIVIERA, 2006). Investigarei o papel da arte,
principalmente para se pensar o sujeito contemporâneo e a produção de sua subjetividade para
a busca de uma auto formação pessoal, acadêmica e profissional.
O presente estudo surge de uma hipótese específica que pretende ser respondida
através de um diálogo investigativo das práticas teatrais que venho realizando como atriz, no
1 Ao longo dessa dissertação as palavras “loucura” e “louco” virão acrescidas de aspas, isso será feito
para destacar a possibilidade de construção de novos sentidos para estes termos, distanciado do senso
comum. “Loucura”, entra aqui sempre, como um conceito aberto a ser explorado nas discussões e
possíveis entendimentos da mesma na contemporaneidade, não sendo o objetivo fim se chegar a um
conceito fechado, mas uma tentativa de desmitificá-la e desestigmatizá-la. E “louco” como sujeito dos
reflexos da ação da “loucura”, e a possibilidade de ressignificá-lo como sujeito da experiência e sujeito
de si.
12
Teatro do Dragão, grupo de pesquisa em atividade há 12 anos, com sede em Mariana/MG, e,
também, como mediadora teatral2 do Coletivo Ser ou Não Ser formado em 2015, por usuárias
do CAPS 1 - Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental -, na cidade de Ouro
Preto/MG. O grupo Teatro do Dragão tem como característica essencial, em seu processo de
trabalho, a inserção do ator como criador, assegurando a ele autonomia no processo de
criação. E as práticas realizadas no Coletivo Ser ou Não Ser é uma interpretação dos estudos e
práticas realizadas no Teatro do Dragão, em uma livre adaptação para indivíduos com
transtornos psíquicos.
Antes mesmo de realizar essa pesquisa, observei que, trabalhando a criação do
personagem pela técnica do improviso através das minhas memórias pessoais, foi possível
constituir um mecanismo de autoconhecimento. Percebi que, uma vez não presa a um texto e
às características pré-estabelecidas para a criação do personagem, e tendo como mote de
criação o meu próprio eu, destaquei características da minha personalidade embutidas nas
falas e ações dos mesmos. Dessa imersão no meu inconsciente3, em um processo criativo ao
traduzi-lo em cena, e da interpretação dos escritos do diário de bordo desse processo de
criação, foi possível criar uma relação de alteridade com o personagem, ou seja, ao
transformá-lo em outro, criei um mecanismo singular de análise e investigação de mim
mesma, porque foi necessário um distanciamento crítico para essa realização. Esse
mecanismo permite a criação de um corpo biográfico4, que são processos práticos de uma
subjetividade cognitiva que passa pelas vias do corpo, objetivando um processo de
autoeducação, sobre o qual discorre Marie-Christine Josso (2012).
2 Sinto-me mais à vontade com esse termo, o qual utilizarei nesta pesquisa, porque o trabalho desenvolvido com
as participantes do Coletivo Ser ou Não Ser se dá no formato colaborativo, em que todas trabalham juntas na
elaboração do espetáculo. A partir do meu repertório e experiência, realizo a mediação ou orientação para a
melhor execução dos nossos desejos comuns. 3 O conceito de inconsciente que trabalharei será a partir dos estudos de Carl Gustav Jung (1987, p. 58): “O
inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações
dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é,
percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não
amadureceram para a consciência”. 4 Em seu artigo “O corpo biográfico: corpo falado e corpo que fala”, Josso (2012, p. 23) diz que “Elaborar a sua
narrativa de vida e, a partir daí, separar os materiais, compreendendo o que foi a formação para, em seguida,
trabalhar na organização do sentido desses materiais ao construir uma história, a sua história, constitui uma
prática de encenação do sujeito que se torna autor ao pensar a sua vida na sua globalidade temporal, nas suas
linhas de força, nos seus saberes adquiridos ou nas marcas do passado, assim como na perspectivação dos
desafios do presente entre a memória revisitada e o futuro já atualizado, porque induzido por essa perspectiva
temporal. Numa palavra, é entrar em cena um sujeito que se torna autor ao pensar na sua existencialidade.
Porque o processo autorreflexivo, que obriga a um olhar retrospectivo e prospectivo, tem de ser compreendido
como uma atividade de autointerpretação crítica e de tomada de consciência da relatividade social, histórica e
cultural dos referenciais interiorizados pelo sujeito e, por isso mesmo, constitutivos da dimensão cognitiva da sua
subjetividade. (JOSSO, 2012, p. 23).
13
Então, experienciando a construção do personagem, através da memória emocional
terminologia cunhada pelo ator, diretor e obsessivo estudioso das artes dramáticas, Constantin
Stanislávski (2016), pude perceber que, para além da sua colaboração na elaboração estética
do espetáculo, ela proporciona uma vivência física e psicológica única para o ator, em que as
vozes e atitudes do personagem revelam traços desconhecidos, pouco explorados, outros
pontuais da personalidade do ator, criando, assim, a ideia de uma estética da existência5,
porque a interpretação partindo do real vira outra realidade quando transformada em cena. Ao
investigar a constituição de uma estética da existência, quero, por meio do pensamento de
Michel Foucault, trazer a discussão para se pensar a possibilidade de ressignificar o sujeito
“louco” como um sujeito autônomo, ou seja, livre e detentor de sua verdade, visando uma
possível diminuição de seus estigmas.
Amadurecendo minha prática teatral, percebo que a maneira de sentir a realidade é
individual, ou seja, a mesma vivência pode ter aspectos diferentes para cada sujeito, deixando
claro que o trabalho desenvolvido com as atrizes do coletivo torna-se uma extensão do meu
trabalho de atriz no Teatro do Dragão, ou seja, um dispositivo positivo de autocuidado6,
perpetuando a transformação do meu sujeito através da prática teatral, continuando, assim,
meu processo de autoconhecimento. Através do trabalho das atrizes do Coletivo Ser ou Não
Ser, pude perceber com mais clareza a relação de alteridade com o personagem que cria uma
atmosfera de conforto e de segurança - uma vez que sou levada a crer que as atitudes e as
falas não são minhas, estando imerso em situação ficcional – sendo assim, para a realização
de um processo de autoconhecimento, foi necessária a minha intervenção como mediadora
teatral. Os objetivos do coletivo não estão voltados para esse fim, o grupo foi idealizado como
um mecanismo de criação de espetáculos teatrais para a promoção da inserção social. Aqui,
ela é pontuada e destacada para demonstrar a influência e os reflexos da prática do ator sobre
si, através da memória emocional para constituição de um mecanismo de autoconhecimento,
sendo que a mesma realidade ainda em perspectivas bem diferentes se assemelha com a
minha vivência teatral, desta forma, destacarei, também, a metodologia e os reflexos do
trabalho do ator sobre si com as atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser, fomentando a
aplicabilidade da prática teatral destacada nesta pesquisa.
5 Fazer da própria vida objeto de uma tékhne, portanto, fazer da própria vida uma obra –que (como deve ser tudo
o que é produzido por uma boa tékhne, uma tékne razoável) seja bela e boa – implica, necessariamente, a
liberdade e escolha daquele que utiliza sua tékhne. 6 O conceito de autocuidado está presente nos estudos de Michel Foucault, no seu último trabalho, intitulado A
Hermenêutica do Sujeito (2010), e será aprofundada no Capítulo 3 desta dissertação.
14
Assim, através da apropriação das memórias dos diários de bordos elaborados por
mim como atriz no Teatro do Dragão e como mediadora teatral no Coletivo Ser ou Não Ser,
buscarei investigar os reflexos positivos e negativos das experiências teatrais, comprovando a
possibilidade de constituição de uma estética para além do espetáculo, através dos estudos de
A Hermenêutica do Sujeito (2010), de Michel Focault, além de se configurar como um
mecanismo investigativo formativo7, através da metodologia autobiográfica, que me coloca
como sujeito desta narrativa e objeto de pesquisa. Assim, os conceitos e teóricos aqui
destacados realizam um diálogo transversal, no qual o eu narrativo, que é um recurso
metodológico típico das pesquisas autobiográficas, se configura como um mecanismo
autoformativo. Me coloco como objeto de pesquisa, reivindicando e legitimando minha
própria prática e subjetividade na relação entre arte e vida através da minha formação
acadêmica e profissional como mecanismo de saber.
O importante, ao realizar uma pesquisa autobiográfica, é dizer que o teatro se tornou
um mecanismo potente e positivo de superação da minha “loucura”. E se minha história
pessoal tem lugar nesta pesquisa, é a partir da sua hipótese, que trago como a pergunta
norteadora do estudo: É possível o trabalho do ator sobre si ressignificar o “louco” como
sujeito de si ao constituir uma estética da existência?
7 “(...) Na pesquisa narrativa ou de histórias de vida como procedimento de recolha das fontes e também como
potencializadora de um trabalho formativo porque possibilita a organização das experiências vividas através da
preparação e da construção que o ator faz para o seu relato – oral ou escrito – configurando-se também como
uma prática reflexiva das experiências, através da auto-análise empreendida enquanto dispositivo de investigação
formação” (SOUZA, 2004, p. 152-153).
15
PARTE I – “O LOUCO QUE HÁ EM MIM SAÚDA O LOUCO QUE HÁ EM TI!”
1 AUTOBIOGRAFIA: UM CAMINHO METODOLÓGICO
1.1 Meu Caminho
Caminante nao há caminho, o caminho se faz ao andar. - Antonio Machado
Um dos pontos centrais da pesquisa autobiográfica é não separar vida e pesquisa, algo
muito pertinente para a prática de uma atriz que busca seu autoconhecimento, seu próprio
caminho de vida e suas próprias escolhas. Neste sentido, nada mais coerente que começar
pelo meu próprio caminho, onde o imbricamento entre realidade, imaginação e interpretação
se intercruzam através das minhas memórias, buscando a criação de sentidos
pontencializadores para minha autoformação sobre a vida, a formação acadêmica e as
escolhas profissionais.
Sou filha mais velha de Paulo Roberto Mateus Moreira e de Efigênia Regina Carvalho
de Souza, nasci no mesmo dia que morreu Elvis Presley, 16 de agosto de 1977. Minha mãe
me relata saudosista que meu Pai, ao me pegar no colo, falou: “morre um rei, nasce uma
princesa”. Somos três filhos desta união. Nasci no bairro de Santa Efigênia, em Belo
Horizonte, e, lá, vivi os primeiros 25 anos da minha vida. Não tenho muitas memórias da
minha infância, a considero padronizada dentro dos aspectos de uma família de baixa-renda,
que tinha a avó materna como figura central afetiva e financeira. Minha avó faleceu no dia 02
de janeiro de 1993, e, ainda, depois de todos estes anos, ela faz muita falta. Me pego, muitas
vezes, tentando resgatar memórias da infância: alguns episódios são bem claros, como, por
exemplo, certa pré-disposição para o teatro. Lembro-me de várias participações em coroações
e autos de igreja e algumas apresentações teatrais no ensino fundamental.
Em 1990, ocorre uma situação bem delicada, mas de extrema necessidade para uma
pesquisa que se configura como uma narrativa formativa nas relações entre arte e vida, assim,
já justifico tamanha exposição. Meus pais se separaram quando eu tinha treze anos e, um ano
depois, minha se casou novamente com um rapaz 12 anos mais novo que ela e, ainda nesta
idade, fui molestada por esse sujeito durante meses. Dormíamos eu e meus irmãos no mesmo
quarto e, com a desculpa do bom padrasto, todas as noites, ao nos cobrir, passava as mãos em
meu corpo. Na época, não tive coragem de contar o fato a minha mãe e recorri a uma prima.
Um dia, ao chegar da escola, encontrei minha mãe aos prantos e minha prima se encontrava
16
sentada ao seu lado, gelei de cima a baixo. Ao ser confrontada sobre o destino de seu
casamento, não tive condições maduras de manter a verdade, muito menos quis me tornar o
motivo de ruína da sua vida, palavras ditas por ela. A minha omissão foi bem aceita, porque já
vinha taxada como mentirosa e fantasiosa dentro da família, por ter inventado ficar doente
quando o meu pai saiu de casa. Então, tudo não passou de em episódio infantil criado por uma
mente que queria ver os pais novamente juntos, causando a discórdia da nova constituição
familiar. E ele continuou me molestando, até que um dia eu o enfrentei, dizendo que iria ligar
para o meu pai e chamar a polícia. Consegui pedir um trinco para o meu quarto, justificando
estar crescendo e querer privacidade. E, daí para frente, a minha defesa era ser agressiva e
estúpida com ele. Assim, meu estigma de ser “louca” inicia-se aos trezes anos, quando passo a
ser uma criança má que criava constrangimentos no seio familiar – por várias vezes, escrevi e
apaguei esta história no percurso desta escrita. Ao destacá-la, quero reafirmar que, após anos
de terapia psicanalítica e outros métodos alternativos, esse acontecimento foi fundamental
para instaurar minha formação subjetiva, ou seja, a minha formação como sujeito. Aqui, traço
como a “loucura” perpassa pela minha vida, as escolhas acadêmicas e profissionais, a vinda
para Ouro Preto, me constituir nesta cidade, desenvolver o meu trabalho teatral na RAPS –
Rede Atenção Psicossocial de Ouro Preto. Então, falar sobre esse episódio traz reflexões,
hoje, bem conscientes de tudo de positivo e negativo que ele me trouxe. E, de certa forma, foi
o que me trouxe até aqui também, em um desejo enorme de resgatar a minha autoestima, meu
papel de mulher, de sujeito social, de pesquisadora e de formadora de saberes. É com um
grande orgulho que me intitulo, com certo humor negro, típico de pessoas que já passaram por
poucas e boas: a louca fazendo pesquisa.
Dos meus 13 aos 18 anos, passei por anos difíceis. Queria sair de casa, mas não tinha
para onde ir e fui me tornando uma pessoa irritadiça, com fortes crises de enxaqueca e com
mudanças bruscas de humor. Aos 16 anos, comecei a trabalhar para ajudar nas despesas da
casa: após a segunda separação da minha mãe, que se deu em 1999, o trabalho tornou-se
prioridade. É importante dizer que, tendo como prioridade o trabalho, os estudos foram
conduzidos para segundo plano. Mas, tinha o desejo de estudar, queria uma realidade
diferente e tentei, por diversas vezes, ingressar em cursos que me proporcionassem isso. À
época, os objetivos eram a área da saúde, então iniciei o curso de enfermagem na Santa Casa
e, depois, o curso de instrumentação cirúrgica, mas, quando as mensalidades confrontavam as
necessidades financeiras da casa, eu abria mão dos mesmos. Quero destacar, também, que os
reflexos de não ter priorizado os estudos e não colocá-los como um trampolim para projeções
17
profissionais futuras trouxeram muitas dificuldades na minha formação acadêmica e tentar
superá-las é sempre um desafio muito grande para mim.
Retomando minha história, em 1995, resolvi buscar orientação médica e fiz isso com
ajuda de amigas da escola. Assim, aos 18 anos, fui diagnosticada com transtorno bipolar. O
ambulatório que fazia terapias coletivas foi destituído de seu lugar de origem, localizado na
Regional Leste na Avenida dos Andradas, e não consegui resgatar os prontuários deste tempo.
Fato é que cheguei a tomar alguns medicamentos associados à fluoxetina e seu uso diminuía
consideravelmente o meu raciocínio e ações, e não somente nos primeiros dias considerados
de adaptação, o mal-estar se estendia por meses. Sendo assim, ao longo da minha experiência,
não me recordo de uma boa adaptação com medicações psicotrópicas. Iniciei uma busca de
autoconhecimento corporal, emocional e espiritual, auxiliada, no máximo, pela psicanálise
nesses momentos reflexivos.
A vida familiar foi seguindo sobre o estigma de mal-humorada, excêntrica e meu
diagnóstico e tratamento sempre foi realizado de forma velada para evitar conflitos. E a vida
foi caminhando. Aos 22 anos, iniciei o namoro com meu atual marido e minhas perspectivas
se ampliaram, pela sua influência benéfica de me auxiliar a ter uma crítica melhor sobre mim
mesma, correr atrás dos meus sonhos, como estudar, por exemplo. Foi com ele que, pela
primeira vez, assisti a uma peça teatral, “O Moliére imaginário”, do Grupo Galpão, no
Palácio das Artes. Foi uma paixão avassaladora, imediatamente desejei tanto um dia estar no
lugar daquelas atrizes. Mas a vida seguiu seu curso sem grandes expectativas, trabalhando e
cuidando da minha saúde quando essa se encontrava debilitada. Mas, aí, veio o que considero
um divisor de águas: como forma de rebeldia, me inscrevi no vestibular em artes cênicas na
UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto, onde passei em segundo excedente. Hoje, sei
que queria quebrar as lembranças ruins do meu passado e da relação fragmentada com minha
mãe, mas os resultados positivos desta decisão são transformadores. Assim, aos 25 anos, vim
para Ouro Preto fazer artes cênicas sem ter feito teatro antes, sem saber nada a respeito,
grávida, “louca” diagnosticada e com uma ajuda de custo de R$ 100,00 (cem reais) que meu
Pai me dava mensalmente.
Tive complicações no 6º mês de gestação, o que me obrigou a trancar matrícula. Um
universo de possibilidades e de conteúdos foi apresentado a mim após meu ingresso na
Universidade: as rodas de conversas, as discussões entre os alunos e professores foram
abrindo meu leque de instrução cultural, social e política. Antes disso, tive pouquíssimo
contato com as artes da cena, vinha de uma estrutura familiar em que atividades culturais e
intelectuais não eram vistas como importantes. A relevância de pontuar isso novamente se dá
18
por ser, este, um fator que também marcou a minha formação subjetiva até chegar à
universidade. Sendo assim, ao entrar para a graduação, me sentia um “zero à esquerda” em
todas as disciplinas, quase nada entendia, nunca tinha ouvido falar daqueles teóricos e suas
práticas e sempre me perguntava o porquê de ter entrado por essa via.
Em 2004, retomei os estudos. A partir desse período, pude perceber uma virada
significativa no meu modo de perceber e entender meus estados de consciência. Foi o meu
regresso para as atividades acadêmicas do curso e, consequentemente, as práticas teatrais que
me possibilitaram uma reflexão cuidadosa sobre mim. Da convivência em sala de aula, se deu
a formação de um grupo teatral, o Otrâmite, em 2004, e, atualmente, Teatro do Dragão,
sendo que, da formação original, permanecemos eu e a pesquisadora e diretora do grupo,
Luciane Trevisan, que mantém viva e atualizada toda a pesquisa estética do grupo. Já
realizava pequenas interpretações em cenas das disciplinas obrigatórias e, também, no grupo,
identificando, assim, uma predisposição para atuação, o que me deixava extremamente
envolvida pelo teatro. Foi a partir da prática teatral que todos os textos teóricos, até então
complexos, tornaram-se claros, fazendo com que eu descobrisse a importância do trabalho
sobre si, de Stanislávski, do teatro ritual, de Grotowisk, bem como a “loucura” e a (des)
construção do corpo, em Artaud. Juntamente com essas descobertas, iniciei estudos informais
sobre a “loucura”.
Em 2005, no V Festival de Monólogos e Música Original da UFOP, ganhei meu
primeiro prêmio de atriz com a adaptação do livro de Hilda Hilst, O Caderno Rosa de Lori
Lamby. O grupo levou, ainda, os prêmios de melhor direção, iluminação e cenário.
Ao longo da graduação, fomos criando trabalhos em que nos arriscávamos na tentativa
de incorporar, em nossas pesquisas, diversas linguagens e teorias, ocupando sempre o
interesse pela criação do ator. Fizemos inúmeras experimentações que pudessem nos levar ao
estado de criação atoral que queríamos. Entre muitos teóricos, artistas e afins, usamos de
forma não ortodoxa o método denominado memória emotiva, do diretor, ator e teatrólogo
russo, Costantin Stanislávski. Dentre muitas diferenças, a principal é que não trabalhávamos
com textos prontos. Em 2006, realizei meu trabalho de conclusão de curso em interpretação,
Myzéryaz Buzznezz: no país do futebol. Foi nesse momento, ainda de forma intuitiva, que
percebi que a prática teatral exercia em mim um bem estar, diminuindo consideravelmente a
minha ansiedade e as minhas inseguranças. No período do processo de criação do espetáculo
Myzeryaz... não vivi crises de ansiedade e/ou depressivas, estava em um processo de criação
intenso e proveitoso, o que me configurava uma melhora considerável da autoestima. A
escrita do diário de bordo do personagem tornou-se um hábito e, relendo o processo de
19
criação dos meus personagens, percebi que a liberdade de construção a partir da minha
subjetividade emergia muitas questões das quais não queria saber sobre mim, destaquei traços
da minha personalidade até então desconhecidos. Então, nessa prática que configurei como
uma relação de alteridade com os meus personagens, desenvolvi um processo de
autoconhecimento, ou seja, dando a eles um lugar de outro, realizei de forma bem peculiar um
interpretação do meu eu.
Em 2008, finalizando minha graduação em Artes Cênicas na Universidade Federal de
Ouro Preto, um novo ocorrido me fez buscar auxílio médico e, assim, dei início a minha
relação com Caps. 1- Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental de Ouro Preto, como
paciente. Estava iniciando a circulação do monólogo “O Caderno Rosa de Lori Lamby”, meu
filho Cauã estava com cinco anos, e precisei muito do auxílio do meu marido, no que fui
correspondida, porém, familiares e vizinhos começaram a influenciá-lo, dizendo que minhas
escolhas iriam fazer mal para nosso filho. Comecei a ser pressionada pelas escolhas
profissionais que fiz. O meu filho sempre estava comigo nos ensaios e eu tinha todo o cuidado
de levar comida, um edredom que pudesse colocá-lo deitado caso quisesse dormir e tantas
outras coisas que as mães zelosas fazem, mas isso foi, cada vez mais, ganhando um aspecto
negativo e a pressão só aumentava. Morávamos no Morro São Sebastião, um bairro em Ouro
Preto que fica a 3 km da Praça Tiradentes, de uma subida muito, mas muito íngreme, eu
estava levando o Cauã para o ensaio quando ele começou a pirraçar, não queria ir, eu poderia
ter ficado com ele em casa, mas insisti e descemos os dois “ladeira a baixo”. Em um
determinado momento – ainda pirraçando em meu colo – o coloquei no chão e pedi que
andasse ao meu lado, a pirraça continuou agora no chão. Confesso que, nesse momento, fiquei
com raiva e o tirei do chão com certa truculência, ele se jogou para trás em meu colo e, na
época, eu estava com unhas enormes, e, na tentativa de não deixá-lo cair, minhas unhas
pegaram fortemente em seu ombro na direção do pescoço, deixando um hematoma muito feio.
Isso foi à gota d´água para eu ser julgada como uma péssima mãe e a prova dos reflexos
negativos do teatro em minha vida. Iniciei um processo depressivo e fui procurar ajuda
médica. Esse foi um novo episódio muito marcante nas investigações e questões que aqui
proponho. Assim, no dia 19 de março de 2008, fui consultada no Caps 1 de Ouro Preto.
Em meu prontuário em anexo, estão dois relatórios realizados no meu atendimento: o
primeiro no acolhimento feito por um psicólogo e, no segundo momento, no mesmo dia, feito
por uma psiquiatra. Percebe-se claramente, no primeiro momento, uma condução, a mesma
realizada pelos meus familiares e vizinhos, que considero preconceituosa, em que a mulher
tem que abdicar de uma vida profissional, precisa ser perfeita, não pode sentir raiva, não pode
20
errar. No prontuário, podemos ver uma supervalorização da agressão cometida, como se já
tivesse ocorrido outras vezes, inclusive, escreve situações que não aconteceram. Tenho total
consciência ao dizer isso, porque o atendimento e conduta realizada pela psiquiatra foi
completamente diferente dizendo que a agressão carregava em si culpa e é obvio que me senti
péssima após o episódio, nunca agredi meu filho, e se procurei ajuda médica foi pelo medo de
perder a minha sanidade e colocar meu filho em risco. Porém, o mais importante para mim e
que muda os aspectos da condução da minha vida e da minha formação subjetiva é que não
foram caracterizados pela psiquiatra estados maníacos ou depressivos.
Desde 1995 até aqui, foi realizada uma longa caminhada no sentido de compreensão
do transtorno bipolar, formas alternativas foram buscadas para sanar e entender o que se
passava comigo. Uma busca árdua, sofrida, mas, principalmente, “superada” foi se
aproximando ao longo dos anos e esse diagnóstico foi extremamente importante para isso.
Mas e o diagnóstico anterior? Teria sido prematuro? Então o teatro, realmente, me ajudou na
“superação” do “transtorno psíquico”? Eu não sou “louca”? A “loucura” foi produzida em
mim? Não quero, em hipótese alguma, confrontar os diagnósticos médicos para um “antes” e
“depois”, ou até mesmo constatar se me enquadro ou não em um CID (Classificação
Internacional de Doenças), e muito menos denunciar a conduta deste profissional de
psiquiatria que me atendeu. Ser diagnosticada ou não como “louca” não faz mais diferença na
minha constituição de sujeito, até mesmo porque, desde aquele primeiro diagnóstico,
convivendo com outras pessoas com transtorno, já tinha percebido que, se tinha algum tipo de
transtorno psíquico, este estava longe de ser bipolaridade. Com o passar dos anos, sofri mais
pelo estigma do que pela doença em si. A psiquiatra que fez meu atendimento no Caps 1 de
Ouro Preto me indicou a psicanálise e o uso da fluoxetina. Fiz nova tentativa para tomar a
medicação sugerida, mas, realmente, não me enquadro, o uso do medicamento atrapalha
minha relação familiar e de trabalho. Assim, busquei formas alternativas para manter meu
organismo funcionando bem física e emocionalmente.
Vinte dias depois dessa consulta e vendo os reflexos dos remédios, resolvo cancelar o
retorno e proponho à coordenação do Caps 1 iniciar, de forma voluntária, um trabalho teatral
com usuários. Por necessidade interna, me pediram para desenvolver o trabalho no Caps –ad
– Centro de Atenção Psicossocial a usuários de álcool e outras drogas, e que tivesse um
produto final como resultado das atividades teatrais. Ao longo de nove meses de trabalho,
com dois encontros semanais de 02 horas, nasceu uma livre adaptação do conto original do
Mágico de Oz, de Lyman Baum (1901), mesclado com histórias pessoais dos participantes.
21
Apresentamos em Ouro Preto, inclusive no Festival de Teatro do Projeto Manuelzão8. A partir
desse trabalho, supus que o teatro poderia realizar com outros o que ocorreu comigo e
continuei realizando atividades teatrais no Caps de forma voluntária. Tive, também, a
oportunidade de entrar no quadro de funcionários através de dois processos seletivos
simplificados da Secretária de Saúde da Prefeitura de Ouro Preto, onde o Caps está locado,
com o cargo de Monitora de Oficina Terapêutica, cujas atribuições são o desenvolvimento de
ações produtivas com atividades artesanais, sensoriais, corporais, dentre outras. Foram dois
contratos de um ano e meio em intervalos de balões de dois anos e, nesse meio, sempre
realizava algum trabalho com os usuários. Foi então que, em março de 2015, uma usuária me
fez o convite para criar um grupo teatral e, assim, nasceu o Coletivo Ser ou Não Ser, com
objetivo de realização de criação de espetáculos teatrais e sua circulação para a inserção social
dos seus participantes.
Trazer minha história de uma forma tão intima e desnudada é uma forma de me
aproximar das características da pesquisa (auto) biográfica que buscam traçar um percurso
pessoal, social e profissional para o aprimoramento do sujeito, por considerá-lo em sua
completude. Além de a abordagem ser considerada um movimento de investigação-formação,
que se associa a uma tomada de consciência do sujeito pelo exercício de uma meta reflexão
do ato de narrar, é como contar para si através da sua trajetória os conhecimentos adquiridos
através da experiência (SOUZA, 2004). Aqui, propus uma visita a minha experiência de como
a “loucura” atravessa minha personalidade e como ela contribui para as escolhas profissionais,
além de aproximar a minha história da metodologia autobiográfica, pela qual a investigação
aqui proposta na forma de narrativa realiza uma pedagogia da formação, em que o sujeito
descobre, ao longo da sua trajetória dos fatos destacados, indícios para um autoconhecimento
pessoal e profissional.
1.2 A autobiografia e seus reflexos para a formação pessoal e profissional do sujeito
através da relação arte e vida
A escrita da narrativa remete ao sujeito uma dimensão de auto escuta, como se
tivesse contando para si próprio suas experiências e as aprendizagens que construiu
ao longo da vida, através do conhecimento de si (SOUZA, 2004, p. 72. Grifo do
autor).
8 http://www.manuelzao.ufmg.br/festivelhas/festivelhas_2009/festivelhas_ouro_preto
22
A pesquisa autobiográfica possibilita uma apropriação da história pessoal através de
uma narrativa memorial, tornando-se material de investigação-formação, e esta dupla função
realiza uma dinâmica epistemológica entre sujeito e objeto de pesquisa, ou seja, o sujeito
pesquisador e o sujeito da narrativa são o mesmo. Esse movimento o leva a uma
ressignificação da própria história ao levantar situações de extremo significado para sua
formação enquanto sujeito, ou, até mesmo, levantar situações que ainda não foram vistas, mas
que se tornam possíveis através desta metodologia, na qual o sujeito se coloca como narrador
ao se apropriar das suas memórias e tem como objetivo a autoformação do sujeito ao
considerar aspectos de sua singularidade. Vislumbra, também, quebras de paradigmas com os
modelos ortodoxos de pesquisa, nos quais o poder científico se dá através da racionalidade,
porque insere a subjetividade como mote.
Gostaria, também, de investigar os reflexos da metodologia autobiográfica – que tem
ampla abrangência na área da educação contemporânea, em específico, na formação de
professores – como possível pedagogia para o ensino do teatro, nos moldes da educação não
formal, para sujeitos com transtornos psíquicos, sobre reflexos da experiência que destaco
nesta pesquisa através da influência dos estudos realizados por Elizeu Clementino de Souza
(2004) e Marie-Christine Josso (2010).
Motivada por encontrar ressonâncias para relatar minha história pessoal, mas, também,
pelo discernimento que essa pesquisa só poderia vir à tona através da minha experiência
narrativa, porque os relatos aqui pontuados e destacados buscam, além de uma interpretação
bem particular, investigar que a prática teatral através do trabalho do ator sobre si pode vir a
ser um mecanismo de autoconhecimento como recurso pedagógico de autoformação, iniciei
uma busca para encontrar autores e conceitos que dialogassem com os objetos propostos. Foi
então que me deparei com o trabalho de Elizeu Clementino de Souza9, pesquisador pioneiro
em pesquisa autobiográfica no Brasil. A partir daí, contemplei a possibilidade de
desenvolvimento desta pesquisa em 1ª pessoa e de me colocar como objeto da mesma. Ainda
esbarramos dentro dos programas de pós-graduação com as questões técnicas e metodológicas
da pesquisa, onde o caminho se dá de forma tradicional e mecanicista, em que o objeto de
9 Professor efetivo do Programa de Pós Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do
Estado da Bahia, e líder do GRAFHO – “Grupo de Pesquisa (auto) biografia, formação e história oral”. Sua
pesquisa sofre influências dos estudos de iminentes professores da Universidade de Genebra, oriundos da
antropologia, das ciências e da psicologia da educação: Marie-Christine Josso, Mahtias Finger e Pierre
Dominicé, e do professor da Universidade de Lisboa, Antônio Sampaio da Novóa, doutor em ciências da
educação e história moderna e contemporânea. Os reflexos dos pensamentos destes professores visam uma
perspectiva de autonomização educativa, ou seja, a busca de sujeitos autogerirem seus próprios processos
educativos e educacionais.
23
observação está fora com a alegação de que o distanciamento se faz necessário para uma boa
crítica e melhor assimilação dos resultados. Por anos, o pensamento subjetivo foi considerado
descartável. As pesquisas autobiográficas se inserem na educação contemporânea, onde o
sujeito e suas subjetividades ganham legitimidade para o campo do saber.
Então precisava encontrar um campo de quebra de paradigmas para investigar as
possíveis contribuições da história de vida vir a ser considerada como válidas para uma
aproximação científica, ou como recurso pedagógico para se pensar a auto formação nas
relações entre vida pessoal, acadêmica e profissional, assim como tem sido nas pesquisas
autobiográficas desenvolvidas nos programas de pós-graduação da área da educação
contemporânea, e foi assim que encontrei meu mote metodológico. Reforço ainda mais
dizendo que os paradigmas aqui propostos se inserem através do mecanismo de pesquisa pós-
positivista, que não rejeita o método cientifico, mas pensa em novas aberturas de saberes e
suas bases estão pautadas no realismo ontológico, ou seja, as relações entre a natureza, a
existência e a realidade do ser, a possibilidade e o desejo pela verdade objetiva - existem duas
realidades: a objetiva que é aquilo que vejo a olho nu, e a subjetiva que são abstrações sobre
algo. Os estudiosos desta vertente observaram que, para cada verdade objetiva, existem
muitas mais verdades subjetivas, assim, foi necessário dar um corpo concreto para a
subjetividade, porque o homem se baseia muito mais na verdade subjetiva que está
estritamente relacionado à sua verdade, do que na objetiva, que é indiferente a ele, e por fim o
uso da metodologia experimental que aqui se aplica a metodologia autobiográfica e a essa
pesquisa, onde parto das minhas experiência e vivência (FORTIN, GOSSELIN, 2014). No
entanto, a metodologia autobiográfica e sua inserção pesquisa ainda é muito recente no
cenário brasileiro.
A utilização do termo história de vida corresponde a uma denominação genérica em
formação e em investigação, visto que se revela como pertinente para a auto
compreensão do que somos, das aprendizagens que construímos ao longo da vida,
das nossas experiências e de um processo de conhecimento de si e dos significados
que atribuímos aos diferentes fenômenos que mobilizam e tecem a nossa vida
individual/coletiva. Tal categoria integra uma diversidade de pesquisas ou de
projetos de formação, a partir das vozes dos atores sobre uma vida singular, vidas
plurais ou vidas profissionais, no particular e no geral, através da tomada da palavra
como estatuto da singularidade, da subjetividade e dos contextos dos sujeitos
(SOUZA, 2006, p. 27).
Em específico, a partir da década de 90, houve uma expansão das pesquisas
autobiográficas nos programas de pós-graduação, principalmente na área da educação, tendo
em vista um mecanismo pedagógico para docentes na sua formação inicial, continuada e até
24
mesmo memorial, através do entrecruzamento da história de vida, história acadêmica e
história profissional, “como meio de investigação e instrumento pedagógico, segundo Nóvoa
(1988), para melhor compressão do sujeito que se coloca como objeto de pesquisa” (SOUZA,
2004, p. 15), cujo objetivo fim é investigar como a relação vida pessoal, formação acadêmica
e profissional traçam estratégias para refletir, interagir e sentir os mecanismos de ação da
formação do nosso sujeito, aqui em específico, o de docente. Em sua tese de doutorado, o
pesquisador Souza (2006, p. 24) diz: “busco uma revelação das aprendizagens construídas ao
longo da vida como um metacognição ou metarreflexão do conhecimento de si”. O
pesquisador continua dizendo a importância desse recurso para extrair metodologias para o
ensino de seus alunos, ou seja, ao investigar o percurso e as práticas utilizadas em campo de
ensino, fortaleço aquelas que são caras para uma aprendizagem de qualidade e um revisar de
outras que não alcançaram tais fins. Apesar de eu não ter escolhido, na graduação, o caminho
da licenciatura e não ter buscado uma profissionalização nesta área, desenvolvi, ao longo dos
anos, uma docência nos moldes de uma educação não formal, onde o trabalho em sua maior
parte foi voluntário, dentro de uma instituição destinada a cuidar da saúde mental. Completa-
se, esse ano, 10 anos de atividades teatrais desenvolvidas com sujeito com transtornos
psíquicos e ainda estamos engatinhando nos enfrentamentos que essa prática se destina. Essa
pesquisa é um ponta pé inicial para descortinar os reflexos positivos e até mesmo negativos da
relação teatro e saúde mental dentro da nossa realidade e experiência. Existem trabalhos de
destaque na relação entre teatro e saúde mental, dentre os quais podemos citar dois grupos
com esse fim: o grupo teatral Sapos e Afogados, de Belo Horizonte, e Cia UEINZZ, de São
Paulo, grupos com trajetórias há mais de 10 anos com circulação de espetáculos até no
exterior.10 O importante aqui é destacar que a metodologia autobiográfica se insere no cenário
das artes11 recentemente.
Para sistematizar uma pesquisa nos moldes biográficos, são utilizados diversos
mecanismos, como relatos orais, diários pessoais, entrevistas, correspondências, dentre outros.
E, nesta pesquisa, destacarei os diários de bordo dos meus processos de criação do
personagem dentro do Teatro do Dragão e no Coletivo Ser ou Não Ser. Souza (2004) vai
dizer que as narrativas expressas através de diários apropriadas na narrativa de pesquisa
organizam e potencializam não somente a vida profissional, mas como a pessoal em um
10 Mais informações em: <https://www.facebook.com/saposeafogadosbr/> e <http://www.pucsp.br/nucleode-
subjetividade/ueinzz.htm> 11 Existe uma publicação recém-lançada em 2017 pelos organizadores Elizeu Clementino de Souza, Irene
Tourinho e Raimundo Martins, de título “Pesquisa Narrativa: interfaces entre história de vida, arte e
educação”.
25
recurso formativo não somente para si como para os outros. Digo, então, que, mesmo antes
da realização desta pesquisa, meu diário de bordo já exercia uma função de instrumento
pedagógico, porque, a partir de uma leitura crítica dos meus escritos, mesmo que
informalmente, percebia traços e características da minha personalidade embutidas nas falas e
ações do personagem, e isso me proporcionou um autoconhecimento da minha subjetividade,
sendo assim, já vinha, intuitivamente, realizando uma pesquisa investigativa formativa. Esse
processo pedagógico, ao longo dos anos, estimulou o desejo e maturidade de querer ensinar a
prática teatral para sujeitos com transtornos psíquicos, observando o seu impacto positivo para
a auto expressão corporal e psicológica.
Farei, aqui, um recorte para trazer o conceito de subjetividade, pelo qual me pontuarei,
através de Michel Foucault, descrito em seu livro A Hermenêutica do Sujeito (2010). A
evidente questão que norteia toda relação entre poder e saber em busca da verdade na
formação do sujeito em sua obra é ampliada neste livro a respeito das práticas pelas quais nos
tornamos sujeitos ou como elaboramos nossos modos de subjetivação, que são mecanismos
de produção da própria subjetividade. Como esses modos permitem com que o sujeito
constituía sua própria verdade? Foucault (2010) resgata, nesta obra, a experiência da Grécia
nas práticas de si, que se constituem como exercício da subjetividade, ou como o sujeito se
forma na relação com o mundo que o envolve e cerca. É importante destacar que, a partir da
influência do pensamento grego, este autor determina que a subjetividade envolve um modo
de vida, mas, prioritariamente, uma mudança de conduta do sujeito com relação ao seu tempo
histórico nas relações de poder e saber em busca da sua verdade. Portanto, é inevitável que, se
a subjetividade se constitui na relação com tempo histórico, ela tem que abarcar as coisas, as
relações, ou seja, que estão inseridas neste contexto. E o campo possível para acolher essas
relações é o corpo, mas muito mais que um corpo orgânico, Foucault (2010) vai destacar um
corpo constituído por via da existência, que, ao longo da sua trajetória, se depara com as
coisas do mundo e estas, também, por sua vez, tornam-se corpo: ideias, instituições, imagens,
coisas e etc. Ele vai dar destaque àqueles corpos instituídos como dispositivos disciplinares da
relação de poder e saber, como as escolas, as prisões, os hospícios, a fábrica, etc., tornando
eles dispositivos que colocam os sujeitos inseridos dentro de um raciocínio hegemônico como
forma de controle, ou seja, uma experiência que tende a ser singular, porque praticamos
nossos modos de subjetivação de forma individual, e que pode ser aplicado a todos, colocando
os indivíduos dentro da mesma caixa. Quebrar com essa lógica permite a criação de uma
prática que combata o assujeitamento ao conhecimento, porque as ciências humanas, ao longo
da história ocidental e a partir de uma busca para a produção do conhecimento do homem,
26
acabou formulado conceitos de identidade e normalidade, segregando sujeitos que fugiam
desta ordem (FOUCAULT, 2013).
Foucault (2010) diz que exercitar a subjetividade de forma livre é ter uma experiência
de si, porque a experiência que efetua uma subjetividade promove modos historicamente
singulares de se realizar a experiência de si (modos de subjetivação), assim, a necessidade de
Foucault, ao final de sua obra, mesmo tendo anteriormente declarado a morte do sujeito ao
retomar a importância da subjetividade como um recurso singular contra os saberes e poderes,
é sua força de resistência que cria uma nova episteme, ou seja, no contexto histórico onde o
sujeito se insere se constituí novos paradigmas para se pensar os saberes científicos em um
modo autônomo de existência.
Através do pensamento de Foucault (2010; 2013) e das características da autobiografia
destacadas nos estudos do professor Souza (2004; 2006) na relação entre sujeito e tempo
histórico, argumento que as relações estabelecidas pelo meu corpo (subjetividade) com tantos
outros corpos, que, aqui, destaco o corpo acadêmico, o psiquiátrico e o teatral me permitiram
chegar até aqui ciente de como a “loucura” atribuiu aspectos negativos e positivos para meus
modos de subjetivação e investigar se essa experiência se faz pertinente para um processo
além de autoformativo existencial se aproxima de uma formação profissional não formal em
que o teatro se torna uma prática potente para levar o ator a um autoconhecimento,
principalmente na experiência aqui destacada com sujeitos com transtorno psíquico. Essa é a
primeira justificativa em caráter particular atribuída ao presente estudo: dizer que, ao me
permitir vivenciar uma experiência de resistência do saber e poder psiquiátrico, instaurei um
mecanismo de subjetivação para a ressignificação da “loucura”, buscando formas alternativas
para os reflexos negativos do uso de medicamento psicotrópicos e não aceitando o diagnóstico
de transtorno bipolar, ou seja, ao me aproximar da confirmação sobre os reflexos do estudo de
Michel Foucault, realizei um modo de vida.
Mas, esse lugar em que o sujeito se coloca com todo o seu arcabouço subjetivo tornou-
se um grande problematizador de pesquisa, além de permitir um caminho de horizontalidade,
de colaboração e coparticipação das relações humanas, uma vez que, como já foi dito através
do pensamento de Foucault (1984), é nas relações com os diversos corpos que eu me
reconheço e me formo enquanto sujeito. A necessidade e importância de validar essas
pesquisas nas quais a subjetividade se torna mote de constituição de saberes é justamente
perceber que, ao longo da sua constituição, a discussão sobre o que é possível ou não ser
considerado ciência ainda tem muito o que se descortinar. E encontro ressonância entre arte e
autobiografia nas palavras de Daniel Hugo Suárez, que fala da possibilidade de evolução e
27
ampliação “da esperança das políticas de subjetividades”, em que a quebra com a
racionalidade ortodoxa científica é necessária para projetar
(...) pegadas simbólicas, experiências e afetos vividos e sentidos criam espaços para
interpretar aspectos de itinerários subjetivos e coletivos que, via reflexão sensível
(ou sensibilidade reflexiva), podem ser transformados em aprendizagem (...)
explorar, aprofundar e propor formas de compreender como vida, arte e educação
traçam, desmancham e redesenham nossos jeitos de conceber, pensar e agir e sentir
enquanto fazemos (nossas) histórias. (SUÁREZ, 2015 apud MARTINS; SOUZA;
TOURINHO, 2017, p. 14).
Assim, os saberes produzidos se dão sempre em mecanismos relacionais no encontro
de corpos afins ou não para a constituição da história. Retomando a tese do pesquisador Souza
(2004), quando destaca o itinerário de formação acadêmica, pessoal e profissional com as
relações na formação de docentes como recurso para levantar e investigar os mecanismos que
constituíram o que eles são, o que serão, e o que querem ser no campo educacional, quero
traçar uma trajetória no mesmo viés educacional e educativo destacando 03 (três) períodos de
grande importância – em uma conjunção de investigação-formação, a saber: 1) a minha
inserção na graduação, onde qualifico a prática teatral como pesquisa; 2) o meu trabalho de
atriz no Teatro do Dragão, onde adquiri, através da prática do ator, um processo de
autoconhecimento e “ressignificação da loucura”; 3) o exercício prático teatral com os
usuários de saúde mental, que se configurou, ao longo dos anos, como minha escolha
profissional. Posso dizer, então, que essas três instâncias me proporcionaram aspectos
similares ao de uma formação e auto formação pelo viés educacional abordado pela
metodologia autobiográfica?
Através da tomada da subjetividade, que, nas pesquisas da narrativa de si, tem
objetivos heurísticos e fenomenológicos de abordagem, tanto em Foucault (2010) quanto em
Souza (2004), é dito da ruptura com o pensamento cartesiano. No campo das artes da cena, já
vemos, também, ressonâncias no livro de Narciso Telles, “Pesquisa em artes cênicas: textos e
temas” (2012), com objetivos de romper fronteiras das pesquisas com abordagens subjetivas
para “instalar parâmetros que permitam a análise da criação no contexto da própria criação,
sem comparações com parâmetros outros que não os próprios determinados pela obra ou
processo” (ALEIXO, 2002 apud TELLES, 2012, p. 08)12. Esses movimentos considerados
experimentais, que abordam uma nova relação entre o investigador e seu objeto de estudo,
12 Citação de Fernando Aleixo, ator e professor do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade
Federal de Uberlândia, quando diz que a pesquisa em arte traz aspectos do relativismo e da subjetividade, e que é
justamente nesse lugar que o pesquisador ocupa uma liberdade de expressar em um não-lugar (melhor definido
como lugar expandido).
28
vieram de uma vertente de pensamento quebrando paradigmas autoritários na condução do
saber, da necessidade de promover outros métodos de investigação e de se ter outros
mecanismos para pensar a ciência, principalmente nas artes da cena. Motivada por realizar
essa inserção, me senti impulsionada através do último periódico da Revista Brasileira de
Pesquisa (Auto) Biográfica, de agosto de 2017, na qual está publicado o artigo “Estado da
arte da pesquisa (auto) biográfica: uma análise do portal de periódicos capes”, de Oliveira,
Ramos e Santos. Os autores realizam um mapeamento da produção do conhecimento no
campo da pesquisa autobiográfica e fazem uma chamada no fim do seu estudo:
Ou seja, necessitam de mais movimentos no caleidoscópio, para que possamos
conferir outros arranjos e imagens sobre o estudo deste artigo; como sugestão pode-
se ampliar a área do conhecimento para além do campo da educação, procurando
como tem se configurado o campo da pesquisa autobiográfica com a saúde, a
administração, a literatura, as artes, entre outros (OLIVEIRA; RAMOS; SANTOS,
2017, p. 464).
Finalizo este capítulo dizendo que a metodologia autobiográfica, para além de
encontrar um lugar confortável que situa esta pesquisa, tornou-se grande desafio para se
pensar o ensino das artes cênicas no âmbito da saúde mental através da minha história
pessoal. A autobiografia ainda pode ser considerada uma modalidade de discurso típico da
modernidade, como uma ideia central de um nascimento do sujeito com tarefa de se tornar um
entendedor de si mesmo para a prática com outro.
29
PARTE II - “A ARTE EXISTE PORQUE A VIDA NÃO BASTA”
2 O TRABALHO DO ATOR SOBRE SI: A ARTE DA VIVÊNCIA
Neste capítulo, descrevo minha prática teatral desenvolvida no Teatro do Dragão
através da vivência do trabalho do ator sobre si, tendo como mote de criação a memória
afetiva, termo usado aqui no Brasil pela influência das traduções inglesas, mas que, nos
manuscritos diretamente do russo, aparece como memória emocional. Isso será feito tomando
como base o livro Stanislávski: vida, obra e sistema (2016), dos autores Aimar Labaki e
Elena Vássina. Essa prática me permitiu criar uma relação de alteridade com o personagem,
ou seja, o transformando em outro, observei, através das suas características e ações, nuances
da minha personalidade. Por isso, digo que desenvolvi e me aproximei da constituição de um
corpo biográfico (JOSSO, 2012), onde os meus modos de subjetivação foram percebidos nas
falas e ações do personagem, me aproximando de um mecanismo de autoconhecimento. Essas
observações se deram através da leitura e crítica dos meus registros do processo de criação
feitos em diários de bordo. A cada novo processo de criação, mais me aproximei de uma
prática pedagógica de autoconhecimento, mesmo que informalmente, e o único objetivo era
me aproximar de uma realidade, como na frase de Ferreira Gullar que intitula a segunda parte
desta dissertação.
2.1 A vivência do ator e seus reflexos: uma mulher marginal nas ruas de Ouro Preto
Na época de Stanislávski, os espetáculos eram apresentados nos palcos italianos tendo
o texto como mola propulsora para a construção do personagem. Na contemporaneidade, a
prática teatral foi experimentada em novas possibilidades de espaços e estéticas para a criação
dos espetáculos. O importante no sistema criado por Stanislávski é criar um diálogo com seus
conceitos e trazer a luz pistas onde há prática na vivência do ator: “onde há a verdade, a fé e o
“eu existo” inevitavelmente nasce à vivência verdadeira, humana (e não atoral)” (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 309). Ou seja, investigar para além do espetáculo através da vivência do
ator, onde a imersão na construção do personagem permite a construção de uma realidade
psicofísica para aproximação de si. O espetáculo Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (2006)
foi o terceiro trabalho realizado no Teatro do Dragão e foi, também, o meu TCC – Trabalho
de conclusão de curso em Interpretação.
30
A história central do espetáculo se passava através do drama de uma mãe com o nome
de Luneta (feita por mim), mulher pobre que sonhava em ser cantora, apesar de não saber
cantar, engravidou por descuido ao relacionar-se com um homem casado e via no filho um
entrave para as suas relações e conquistas, mas nunca teve coragem de abandoná-lo. Por sua
vez, Cleiton Rogério, também ambicionava ser famoso e seu sonho era ser jogador de futebol,
mas o estigma sanguíneo não o deixou, além de ele ser um grande perna de pau. Assim, não
viu outra forma de conseguir dinheiro fácil que não fosse pelo envolvimento com o tráfico de
drogas, contraindo uma dívida como o dono da boca, o Macu, colocando sua sobrevivência
em jogo. Deste triângulo, a trama se desenrolava. Luneta e seu filho se aventuram na busca do
“jeitinho brasileiro” de conseguir o dinheiro para pagar a dívida, através da ajuda de pares
comuns, políticos, lideranças religiosas, santos devotos e até do apresentador de programa
Sílvio Santos, tendo em seu encalço sempre a figura opressora de Macu.
Figura 1 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).
Fonte: Arquivo pessoal
31
Figura 2 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol (Ouro Preto, 2006).
Fonte: Arquivo pessoal
Pelas influências da estética cinematográfica de Glauber Rocha e seu manifesto “A
estética da fome” (1965), a proposta de criação do espetáculo realizada por Luciane Trevisan,
diretora e pesquisadora do grupo, era a de criar um espetáculo com traços bem brasileiros, no
qual os personagens e seus dramas trouxessem a tona questões da nossa sociedade: a própria
miséria, a desigualdade social, o fascínio pelo futebol, as influências e consequência do
tráfico de drogas, a intervenção da televisão nas formas de opinião e na conduta do povo, a
diversidade religiosa, os reflexos da política, dentre outros. Além disso, pretendia realizar um
trabalho nas ruas e em espaços alternativos, e que esses influenciassem e contribuíssem para o
trabalho de criação do ator; colocar o ator em vivências de criação do personagem, onde esse
fosse inserido dentro da rotina e dia-a-dia da cidade; criar alegorias que representassem as
qualidades e mazelas brasileiras a partir das influências do trabalho de Glauber Rocha.
A narrativa e dramaturgia do espetáculo foram construídas em três atos, o objetivo era
proporcionar aos espectadores a sensação de tempo-espaço das tragédias gregas. Eles eram
realizados em três lugares e horários distintos ao longo de um dia.13
O grande barato deste trabalho, para nós, atores, foi perceber que, em determinado
momento da trama, ficção e realidade se fundiram - porque os personagens foram tão
13 A trama começava na feira da barra – de legumes, frutas e verduras - ao mesmo tempo em que ela acontecia.
Após o almoço, o próximo ato era realizado em espaços distintos dentro da Escola de Minas/UFOP – nesta
época, o curso de artes cênicas ainda incorporava o prédio. Por fim, à noite, o desfecho do espetáculo se dava em
uma ruína na Rua Pandiá Calogerás, conhecida como morro do gambá, na subida para o Campus da
universidade.
32
incorporados e aceitos pela cidade e seus moradores que, ao sair nas ruas e mesmo não
estando mais vestida no figurino da Luneta, era tratada como ela, e isso se configurou como
uma realidade favorável de comunicação entre espectador ator, muito parecido com os atores
do TAM, através do trabalho de vivência do ator, onde “literalmente nosso sentimentos e
desejos interiores emitem raios que saem por nossos olhos, por todo o corpo, e que envolvem
as outras pessoas com sua corrente” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 309), e isso se configura
com uma excelência na interpretação. Outra experiência muito potente foi a imersão dos
atores, que ficavam ao longo de todo o dia do espetáculo imerso na realidade ficcional, ou
seja, os atores não saiam dos personagens no intervalo dos atos, continuavam vivendo a
realidade de um dia. E, também, essa experiência se aproxima da vivência do ator
estabelecida por Stanislávski, quando destaca as características desse trabalho, em que inseria
“tarefas do ator mesmo, como ser humano, análogas ás tarefas do papel” (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 306).
Assim como Stanislávski, a diretora do Teatro do Dragão queria nos aproximar de
uma excelência na atuação na relação entre arte e vida. Mas, para além do espetáculo, quero
dizer que essa realidade me aproxima de uma vivência psicofísica potente de
autoconhecimento, uma vez que, estando nas ruas e vivendo seus imprevistos, o meu estado
de atenção me faz perceber quais as minhas reações e raciocínio na relação como os outros
atores e com os moradores da cidade, ao passoque existe uma linha tênue entre o que é reação
do personagem e do ator, e se, de fato, elas se distinguem. Quando transformei o personagem
em outro para destacar nuances da minha personalidade, o fiz de forma figurativa, uma vez
que as reações do personagem em cena se davam em respostas à minha forma cognitiva de
pensar e atuar no cotidiano. Para isso, Stanislávski diz que: “a criação seguindo um tema de
outra pessoa, ás vezes, é mais difícil do que a criação de sua própria invenção” (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 296). Ele segue dizendo que os estímulos em cena através da vivência do
ator é elaborado neste em um mergulho psíquico e físico para criação de personagens vivas
(LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 296). Assim, quero dizer que esse tipo de prática em que vida
e arte estão em verdadeira simbiose aproxima o ator para além de um exercício na busca da
excelência da interpretação teatral, levando-o a um exercício estético para além do espetáculo,
uma prática pedagógica da formação de si. Aqui, comecei a vislumbrar que essa prática me
possibilitava um bem estar e expressão corporal e psicológica positiva ao ponto de perceber,
nitidamente, a diminuição das características consideradas sintomas do transtorno bipolar:
mudanças episódicas da transição da depressão para a mania, me mantendo mais equilibrada.
33
A construção da personagem Luneta se desdobrava em alegorias que fazem parte do
inconsciente coletivo brasileiro, que “corresponde ás camadas mais profundas do
inconsciente, aos fundamentos estruturais da psique comuns a todos os homens” (SILVEIRA,
1997, p. 64), através das figuras de um pai de santo, uma pastora evangélica, um apresentador
de TV e uma cantora prostituta decadente. A psiquiatra Nise da Silveira (1997), baseada nos
estudos de Carl Gustav Jung14, diz que, como seres humanos, possuímos uma anatomia
comum, ou seja, a psique possui um substrato comum e, a esse substrato, Jung deu o nome de
inconsciente coletivo. E, portanto, dentro de uma interpretação psicológica ele “é a expressão
psíquica da identidade da estrutura cerebral, independente de todas as diferenças raciais”
(SILVEIRA, 1977, p. 66). O inconsciente coletivo brasileiro representado no espetáculo
Myzéryazz se dava através das alegorias que são “representações figuradas de objetos ideais
ou materiais” (SILVEIRA, 1997, p. 66). Esta abordagem de criação vem, também, das
influências da estética de Glauber Rocha, onde o diretor criou, através dos personagens dos
seus filmes, uma identidade alegórica nacional. Um aprofundamento melhor destas
características pode ser realizado através do texto “Alegorias do Desenvolvimento” de Ismail
Xavier (2012)15.
O que quero ressalvar no parágrafo anterior é que o teatro não somente promoveu um
desenvolvendo da minha formação subjetiva, mas também ampliou a minha inteligência
intelectual. Ainda sem nenhuma preocupação formal, acadêmica e profissional, comecei a
fazer pesquisas informais como os acima mencionados: estéticos, filosóficos, culturais e
teatrais, traçando estudos que viriam a se tornar os meus objetivos profissionais, além de
iniciar estudos sobre a “loucura”. O trabalho teatral realizado sobre a direção da Luciane
Trevisan nos obrigava não somente a uma imersão profunda em nós mesmos, mas a uma
ampliação de nossos conhecimentos intelectuais. Assim, o espetáculo Myzéryas Buzzinezz
(2016) foi um divisor de águas, porque, a partir dos reflexos físicos, psicológicos e
intelectuais, fui ganhando cada vez mais autonomia nas minhas escolhas na lida com a
“loucura”, me conduzindo para as minhas escolhas e caminhada profissional. Concluo,
também, que a prática narrativa, através da memória, me permitem aproximar a cada nova
criação de capítulo um percurso pedagógico daquilo que fui, que sou e quero me tornar
(SOUZA, 2004).
14 Psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica, criador de conceitos como inconsciente
coletivo, self, anima e animus, dentre outros. 15 Professor e teórico do cinema brasileiro, cujo texto acima está em sua tese de doutorado.
34
2.2 A memória emocional como recurso para um autoconhecimento
Aqui farei um diálogo entre minhas práticas teatrais e os conceitos de memória
emocional, investigando que a construção do personagem através do trabalho do ator sobre si
proporciona uma aproximação de si, ou seja, da própria subjetividade.
Em cada novo processo de construção do Teatro do Dragão, os atores, juntamente
com a direção, destacam temas ou personas norteadores para a criação - todas as abordagens
de temas e possíveis novas configurações de personalidade do personagem que quis realizar
me foram abertas para a exploração ao longo desses anos. Os limites do trabalho sempre
foram respeitados e estabelecidos pela direção, éramos conduzidos a dizer quando algo,
supostamente, infringisse nosso estado físico e emocional. Sempre tivemos a segurança do
olhar atento da Luciane quando estávamos trabalhando nas ruas ou na sala de ensaio, sempre
estava correndo atrás de atores mais afoitos para assegurá-los o seu bem estar e, quando algo
pudesse sair do controle, falava um sonoro e enérgico: Parou. As cenas durante o processo de
criação do espetáculo foram construídas através do improviso, que é uma “técnica do ator que
interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e inventado no calor da emoção”.
(PAVIS, 1999, p. 205). A maior parte dos espetáculos teatrais criados no Teatro do Dragão
foi criada a partir da técnica do improviso, ao invés de se basear em uma dramaturgia pronta.
Antes de o processo ir para as ruas, trabalhei em salas de ensaio tendo como material
para criação, além da memória emocional, estímulos externos como: uma música, uma peça
de roupa, etc. Todo esse material passa a ser agregado ao trabalho de construção do ator, nada
é perdido, mas vai sendo incorporado no repertório do personagem. Munidos desses
materiais, em sala de ensaio, éramos estimulados por uma circunstância dada pela direção
para vivenciá-la o mais próximo da realidade, e muitos atores que já passaram pelas
experimentações do Dragão foram surpreendidos por essa imersão profunda, na qual a
vivência era, de fato, colocada a cabo.
Na feira da barra, por exemplo, como o passar do tempo, os atores e seus personagens
já estavam tão bem inseridos naquela realidade que ninguém mais se importava com a nossa
presença, não causava mais estranheza. Como existiam pessoas muitos humildes que, em
todos os domingos estavam lá à espera da xepa – que são as frutas e legumes que são
desprezadas pelas feirantes – nossas figuras também marginalizadas foram incorporadas de
uma forma muito natural. Ao ponto de uma das mulheres que ia acompanhada dos filhos para
pegar a xepa encrencar com a minha personagem - e mesmo não mais vestida com o vestido
azul com rosas bordadas de lantejoula e meia calça arrastão vermelha e salto – ela me
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perseguia nas ruas quando eu estava indo para a aula, sempre me xingando e dizendo que
queria tirar a comida da boca dos filhos dela. Uma vez, tentei abordá-la, dizendo não ser a
Luneta, e que essa era um personagem de teatro, mas não adiantou. Ficção e realidade tinham
uma linha muito tênue e acredito que, devido a esse tipo de imersão da vivência do ator,
através da criação do personagem, foi possível realizar uma aproximação e crítica da minha
personalidade, porque tínhamos que lidar com situações de fato reais ao nos relacionarmos
com os moradores da cidade, os feirantes da barra, os trabalhadores da padaria, bares e outros
estabelecimentos comerciais onde tínhamos que responder como seres reais fazendo com que
nossas ações e atitudes também fossem reais. E, a cada novo ensaio, conseguia permear entre
realidade e ficção sem confundir as duas. Mas, tinha, também, cada vez mais clareza crítica à
realidade ficcional, trazia para minha realidade uma percepção cada vez mais clara dos traços
da minha personalidade.
Outro momento interessante dessa linha tênue entre realidade e ficção foi quando a
direção nos propôs uma circunstância realista e de maior aproximação com os moradores da
cidade. Fizemos um laboratório - já estávamos bem próximo da apresentação do espetáculo e
os personagens já se encontravam bem construídos, conseguíamos sair com mais facilidade
dos imprevistos que a rua nos causava, como o caso anteriormente relatado. Fomos a um forró
na Água Limpa, um bairro de Ouro Preto bem próximo à Igreja do Rosário. A noite era
regada ao som de Juninho e Paquinha - dupla carimbada nos bailes da redondeza - e era certa
a lotação de público. O bar não era grande, o que nos permitia uma aproximação muito íntima
com as demais pessoas que ali estavam e, chegando lá, novamente houve a identificação e
rápida imersão daquelas figuras. Dançamos, rimos - até bebemos, com moderação, é claro -
sem perder o foco da investigação do trabalho do ator. Em nenhum momento foi questionado
se aquilo era teatro ou não, ou alguma suspeita daquelas figuras serem consideradas falsas.
Dancei a noite inteira com um senhor bem mais velho - dava a entender que era bem
disputado pelas mulheres pela sua habilidade na condução da dama - e como eu era novidade
naquele salão, ele ficou me levando de uma ponta a outra, exibindo seus dotes através da
minha personagem. Perguntou sobre a minha história e sem pestanejar falei que me chamava
Luneta, que queria ser cantora e que tinha um filho envolvido no tráfico. Ele chegou a me dar
conselhos e até quis me prestar ajuda, dizendo conhecer um advogado. Ao fim da noite falei
com ele que se tratava de uma investigação teatral e ele disse um sorridente tudo bem.
Nesta noite do forró, sonhei que estava cantando em um bar e estava vestida com as
roupas da Luneta. Ao acordar, tive a sensação de ser ela, como se ela tivesse sonhado e não
eu. Essa sensação foi de realização, porque sabia que ela estava extremamente incorporada a
36
minha realidade, posso dizer que essa sensação foi a mais próxima de um ideal de natureza
preconizado por Stanislávski, quando diz “que o primeiro sentimento criador é estimulado
pela essência da vivência, e o segundo, pela beleza da forma que a expressa” (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 137). Então, posso dizer que, depois de meses incorporando e vivendo a
realidade da Luneta, a sua criação estava bem próxima desta concretude.
A cada nova circunstância proposta pela direção, nos solicitavam, assim como
Stanislávski propunha a seus atores, “a acreditar muito sinceramente na possibilidade concreta
desta vida na própria realidade: é preciso habituar-se a ela até o ponto de sentir que esta vida
alheia é sua” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 296). Mas, aqui, quero demonstrar que, quanto
mais entrava no mundo ficcional da Luneta, mais próxima de mim eu me encontrava. A
psiquiatra Nise da Silveria (1997, p. 79) diz que a persona “são recortes tirados da psique. E,
numa certa medida, a persona representa um sistema útil de defesa, poderá suceder que seja
tão excessivamente valorizada a ponto de o ego consciente identificar-se com ela”.
Aqui, em particular, está falando da persona - sobre as influências psicanalíticas de
Jung - que se dá pela construção da máscara social como mecanismo de defesa nas relações.
Por vezes, criamos corpos dóceis e frágeis simulando certa passividade, que, ao estímulo
vindo do inconsciente, essa máscara cai, ou seja, nas palavras de Silveira (1997, p. 79-80): “o
indivíduo funde-se então com os seus cargos e títulos, ficando reduzido a uma impermeável
casca de revestimento. Por dentro não passa de lamentável farrapo, que facilmente será
estraçalhado se soprarem lufadas fortes vindas do inconsciente”. Comigo, posso dizer que o
processo se deu de forma inversa, não criei uma máscara para criar uma defesa social, mas, a
partir da construção de uma persona (personagem) dentro do teatro, adquiri, através dela, uma
relação de alteridade que me aproximou de um reconhecimento de características da minha
personalidade que precisavam ser trabalhadas, e, também, para viver uma realidade estética
onde a vida em si não bastava, assim, criei um modo de vida para vivenciar os reflexos da
“loucura” de uma forma mais leve.
Um passo dos mais importantes para o conhecimento de si próprio, bem como para
o tratamento das neuroses, será trazer á consciência os complexos inconscientes.
Mas convém não esquecer que a tomada de consciência do complexo apenas no
plano intelectual muito pouco modificará sua influência nociva. Há neuróticos que
seriam até capazes de escrever excelentes monografias sobre seus conflitos, mas que
continuam quase tão doentes quanto antes. Para que se dê a assimilação de um
complexo, será necessário, junto à sua compreensão em termos intelectuais, que os
afetos nele condensados sejam ab-reagidos, isto é, exteriorizem-se por meio de
descargas emocionais. Os primitivos davam expressão por meio de descargas
emocionais. Os primitivos davam expressão a choques e traumas emocionais, por
meio de danças e cantos repetidos inúmeras vezes, até que se sentissem purgados
desses afetos (SILVEIRA, 1997, p. 31-32).
37
Silveira, assim, se dedicou através do trabalho com a pintura e a argila a identificar os
aspectos da personalidade de seus pacientes no Hospital Psiquiátrico de Engenho de
Dentro/RJ, incentivando-os a expurgarem suas emoções e afetos no ato de pintar e moldar, ou
seja, por meio da interpretação da criação artística produzida, destacava traços das
personalidades dos seus pacientes. Por que a psiquiatra diz que é preciso ter estímulo externo
para emergir o inconsciente? Porque nosso inconsciente pessoal, aquele que pertence ao
indivíduo “são traços de acontecimentos ocorridos durante o curso da vida e perdidos pela
memória consciente; recordações penosas de serem relembradas (...)” (SILVEIRA, 1997, p.
64). Era necessário, então, criar mecanismos para acessar o inconsciente, onde estão
enraizadas nossas questões mais íntimas e, na grande maioria das vezes, desconhecidas.
Através do exercício consciente da vivência da personagem Luneta, em analogia com
essa fala de Silveira (1997), posso dizer que trouxe nas falas e ações realizadas no improviso
teatral e em suas características, a percepção de traços da minha personalidade até então
desconhecidos para mim. Ou seja, ao criar uma mulher forte que não media esforço para a
realização dos seus desejos em confronto com o filho – que o entendia como sendo o
impeditivo para suas realizações - traz reflexos muito precisos da minha história pessoal.
Luneta foi criada a partir do meu ideal de mulher, o que eu gostaria de ser, mas não
conseguia. Através dela, foi possível criar discursos enérgicos e bem persuasivos, diferente da
atriz, que, na grande maioria, se posiciona com sentimento de inferioridade em relação ao
outro - fruto do estigma da “loucura”, mas também do pensamento social e hegemônico de
que a mulher não deve colocar em prática atribuições que a tirem do lugar social construído
de mãe abnegada. Além de me fazer perceber que, também, outras atribuições precisavam de
uma melhora de conduta, como, por vezes, achar que o nascimento do meu filho tinha tirado a
minha possibilidade de desenvolvimento profissional como atriz. Como era uma atitude da
qual não me orgulhava, me vi interpretando em Luneta esse conflito com seu filho Cleiton
Rogério na trama, e essa situação se aproxima da citação de Silveira, quando diz os conflitos e
complexos precisam de um descarga emocional para serem ab-reagidos, mas precisam de
uma compreensão intelectual para serem modificados e incorporados na personalidade. Ao
trazer à tona questões dos meus modos de subjetivação, destacá-los e fazer um senso crítico
de distanciamento, fui me aproximando de mim cada vez mais e, a cada novo trabalho, isso se
tornava cada vez mais claro. Assim, vou me aproximando desse mecanismo que configurei
com uma relação de alteridade com o personagem.
38
2.3 A relação de alteridade com o personagem
A personagem trazia reflexos do meu inconsciente para posturas que deveria ter diante
da vida e, assim, ia, cada vez mais, assimilando as minhas questões de conflito. Todo esse
processo só foi possível por ter desenvolvido, com os personagens, uma relação de alteridade,
em que ficava cada vez mais claro e crítica às características pertinentes da atriz e as da
personagem, ou seja, colocar o personagem no lugar de outro não criou o mesmo mecanismo
que a persona estabelece na nossa personalidade, tinha clareza do que era dela, e do que era
meu, e esse mecanismo foi se aproximando de um mecanismo de autoconhecimento. Como o
acesso ao inconsciente não se dá de uma de forma espontânea, é preciso criar condições para
que ele venha à tona (SILVEIRA, 1997). Percebi que, ao ser levada à vivência do ator na
criação do personagem, em uma aproximação de realidade paralela – claro que com plena
consciência, sendo possível sair deste lugar a cada vez que me era solicitado – começava a
vislumbrar aquilo que Stanislavski estabeleceu e percebeu através da mesma, que essa
experiência empírica leva “o artista busca material espiritual em sua alma e também nas
experiências de vida que acontecem ao seu redor e na natureza” (LABAKI; VÁSSINA, 2016,
p. 294). Assim, fui adquirindo habilidades técnicas para entrar nessa realidade paralela, sem
causar prejuízos a sua personalidade, ou se confundir com o mesmo. Mas, ao mesmo tempo,
criei habilidades estéticas existenciais pelas quais o autoconhecimento foi possível, uma vez
que essa imersão me aproximava da minha própria natureza e dos meus mecanismos de
constituição dos modos de subjetivação. Desse modo, desenvolvi, através da relação de
alteridade com a personagem, uma habilidade bem particular que defendo como positiva para
me aproximar da constituição de uma estética da existência.
Então, aqui, desenvolvi por meio desta prática um mecanismo “para estabelecer
contato com o mundo exterior, para adaptar-se às exigências do meio onde vive, o homem
assume uma aparência que geralmente não corresponde ao seu modo de ser autêntico”
(SILVEIRA, 1997, p. 64). Ciente da minha característica passiva e da dificuldade de mudar,
ao estar inserida no ambiente ficcional, criava um personagem ideal, onde eu podia colocar
em prática vivências que queria viver no ambiente real. Se a criação do personagem tem que
passar por mim, pelas minhas sensações e sentimentos, ou seja, pelo meu corpo, os reflexos
disso, para além do exercício da interpretação primorosa, pode me levar a outros
desdobramentos e implicações.
39
2.4 Demonstrações práticas da relação de alteridade com o personagem
Ao destacar, nas entrelinhas do meu diário de bordo, o processo de construção da
personagem, observei que o “ator cria a partir de si mesmo e vivencia a imagem. No caderno
em que ator anota o papel, do direito está a obra do ator, enquanto, do lado esquerdo, ele
anota seu trabalho espiritual” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 139). Através desse exercício
de interpretação e crítica e, também, das falas e ações do personagem, comecei a perceber um
existir enquanto humano - não criei uma relação esquizofrênica com os mesmos – ao projetar
para cena as minhas memórias (meu inconsciente), fiz um resgate intimo da minha
personalidade. Lembrando que, aqui, o inconsciente se configura com ideias de Jung, que são
projeções daquela parte minha que foram muitas vezes recalcadas. Então, ressaltei as
características do personagem, as destaquei e coloquei em primeiro plano, depois comparei
com as minhas características pessoais. Aos poucos, fui percebendo a necessidade de olhar
para essas características e incorporá-las a minha realidade, seja em um embate de mudança
de postura a partir da minha necessidade e crítica de mim mesma, seja fortalecendo as
qualidades percebidas. É importante destacar que Jung traz a ideia de sombra para aquilo que
precisa ser iluminado – ou seja, reconhecido, trazido à nossa consciência – com o desejo de
nos conhecermos, e que os mesmos estão imersos na nossa inconsciência, mas não somente os
aspectos negativos se encontram desconhecidos, existem potencialidades na nossa
personalidade que também se encontram na sombra (JUNG, 1978).
Todo esse processo foi realizado de forma intuitiva e não se deu de forma tão fácil,
deste insight até aqui são 11 anos em uma busca de autoconhecimento necessária para uma
ressignificação de como a “loucura” perpassou na minha vida. Lembrando que a doutora Nise
da Silveira (1997), quanto à influências do pensamento Junguiano, reconheceu a necessidade
de encontrar mecanismos para acessar o inconsciente e descobriu, através da prática do ato de
pintar e moldar a argila, um recurso necessário para abrir esse campo, assim, digo que a
prática do ator sobre si me aproxima desta mesma realidade. Então, o processo de alteridade
com o personagem, pelo qual suas vozes e ações trouxeram evidências das características da
minha personalidade, se aproxima de uma entrevista dada pelo psiquiatra e psicoterapeuta
brasileiro Joel Birman, atualmente, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), para o programa Arte do Artista do Canal TV Brasil. Transcrevo partes que
considero relevante para essa possível comprovação:
40
Talvez eu vá dizer uma heresia para alguns dos meus colegas psicanalistas, mas eu
acho que a invenção da psicanálise ela deve muito mais a tradição literária do que a
tradição científica (...) E sobretudo ao teatro. O Freud começa o seu primeiro
momento de tratamento com a cura catártica. Ele traz a teoria da tragédia do
Aristóteles para falar do efeito da catarse sobre o público que assistia as tragédias
antigas. É isso que ele traz para a experiência psicanalítica. Por que quando os
ingleses traduziram Freud fizeram uma tradução cientificista dele, tiraram todas
essas marcas que o texto dele tem. Como o Freud descreve a experiência psíquica,
inconsciente. Qual a palavra ele utiliza? Cena. A cena psíquica, então existe uma
cena na consciência, uma cena do inconsciente. (...) O psicanalista opera uma
aventura com seu analisando, que ele sabe como começa, mas que não sabe como
vai acabar. O psicanalista pode ser um crítico de arte e ao mesmo tempo pode ser
um artista a sua maneira, por que o que está sendo forjado ali, se podemos usar uma
imagem literária, você está forjando uma história, dando uma nova versão de uma
história do sujeito que te procura. Os personagens daquela história serão relançados,
e de certa maneira aquela história tem dois autores, o analisando e o analista. (...)
Nesse sentido que eu acho que o teatro é a arte, a modalidade de arte mais próxima
da psicanálise, por conta da cena (BIRMAN, 2014, s/p).
Para Birman (2014), é na cena psíquica e na apropriação da memória através do
diálogo do analista e analisando que esse reconhecimento do que emerge do inconsciente é
revisitado e reinterpretado, podendo se configurar como um novo olhar sobre questões e
características de difícil compreensão para o sujeito analisado. Essa descrição foi o que mais
se aproxima desta prática que constituí ao longo desses anos. Digo, a partir dela, que a cena
teatral, sendo reproduzida em detalhes através da minha escrita de diário de bordo e ao fazer o
personagem outro, o constitui como o analisando e me coloquei no papel de analista
destacando as características das falas e ações do personagem, associando com minha
personalidade. Esse processo, ao se tornar hábito, revelou-se como uma prática pedagógica de
autoconhecimento. Destacarei três diários de bordo de processos diferentes, dentro de uma
ordem cronológica ascendente de ano, mas apontando, nos três momentos, uma característica
marcante da minha personalidade, que é a baixa estima. Optei por destacar uma única
característica presente nos três diários para entendimento de como eles exercem uma função
autorreflexiva sobre mim mesma. As interpretações são bem pessoais e, por assim ser, digo
que esse mecanismo se faz potente e positivo através da minha própria realidade e leitura, mas
se retomarmos os estudos de Foucault (2010), sendo a subjetividade como um meio de vida,
posso dizer e afirmar que essa prática se tornou um meio eficaz de equilíbrio pessoal.
41
2.4.1 Diários de bordo
Fonte: Arquivo Pessoal
1) Processo de construção do espetáculo Myzéryaz Buzznezz – Dia 24 de julho de 2006,
domingo
Fonte: Diário de Bordo
Vivíamos os ensaios de forma muito intensa e, na grande maioria das vezes,
estabelecíamos diálogo com o espaço e as pessoas que ali se colocavam. Nesse momento do
processo de criação, os personagens já estavam com suas personalidades bem estabelecidas,
bem como suas relações, tanto com os demais atores, como com as pessoas que se
encontravam nos espaços que ensaiávamos. Todos os domingos, os ensaios aconteciam na
feira da barra, como demonstra a Figura 3. A direção nos orientou a estabelecer quais seriam
os lugares de atuação de cada núcleo da trama, já que vínhamos realizando ensaios
Figura 3 - Myzéryaz Buzznezz no país do futebol
(Ouro Preto,2006)
“... ado, ado, cada um no seu quadrado... Quando dentro do exercício se tem um objetivo e uma meta a
ser alcançada e esse mesmo objetivo se mistura a vida? No exercício em específico, defender ou
conquistar algo que se quer muito. E, nesses casos sempre penso na minha família. Isso traz uma força
muito maior, a energia da conquista também ganha uma proporção maior, porque insiro no mesmo
exercício essa linha tênue de arte e vida, que para mim funciona muito bem. Meu objetivo era de
proteção, e dentro estavam pessoas muito importantes, iria fazer de tudo para expulsar quem ali
estivesse. E fui obrigada a raciocinar, porque lidando com homens, a força física deles é muito maior, ter
que usar de estratégia e não de agressividade me fez sentir inteligente, porque na grande maioria das
vezes me sinto burra por não conseguir pensar nas minhas ações. Obs.: O cauã disse que foi o ensaio
mais legal porque tinha uma tarefa difícil”.
42
conjuntamente e não mais separados. Assim, com o espetáculo sendo realizado em três
espaços distintos, cada núcleo teria um local como sendo de seu domínio. A feira da barra já
se constituía como um lugar de acolhimento e significados para nosso núcleo, formado por
mãe (Luneta) e filho (Cleiton Rogério). O estímulo dado pela direção era para definir lugares
e estabelecer aquele território como sendo meu, para já pensarmos em possíveis marcações de
cena para o espetáculo. Então, cada núcleo tinha que defender seu território da invasão do
outro e, para gerar um estímulo afetivo, tinha que colocar, dentro do espaço, algo ou alguém
de muita estima. Através do recurso da imaginação, artifício esse muito usado pelo ator,
coloquei meu marido e filho. Lembro que o embate foi duro, o jogo só terminaria com um
vencedor e, ao final, estávamos exaustos porque, tendo que disputar com o homem, saberia
que iria perder em força física, então tive que usar de recursos criativos e persuasivos para
alcançar o meu objetivo, como, por exemplo, usar do discurso como mecanismo para tirar a
atenção do adversário, enquanto minha companheira de trabalho, que também era mulher,
mas fazia uma construção masculina, conseguia vir por trás e, unidas em força, conseguirmos
tirar o adversário (ator) daquele espaço. Outra forma foi, também, usar os feirantes e
transeuntes que ali se encontravam a comprar nossa briga, uns já sabendo se tratar de teatro e
entrando no jogo do faz de conta, e outros que, mesmo não sabendo do que se tratava, se
compadecia da dor daquela mulher que estava sofrendo uma eminência de agressão
masculina.
Essa mistura entre ficção e realidade em uma vivência de ator muito profunda exercia
uma faceta comentada por Stanislávsk, que é a utilização do consciente e do inconsciente na
criação. Ele vai dizer: “Durante o processo de busca das tarefas que se usam para a construção
consciente do papel, o inconsciente desempenha uma grande e importante função” (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 190). Aqui, quero, recorrendo a Birman (2014), me aproximar e fazer
uma relação de possível diálogo através do exercício do que emerge do inconsciente para a
cena psíquica e do que emerge do inconsciente do ator para a cena teatral. Ao recordar a
própria história através da narrativa oral no processo de análise, analista e analisando a
recriam em possíveis ressignificações, essa fala e escuta imbricadas fazem das histórias
difíceis de serem elaboradas se tornarem apaziguadas pelo analisando. Assim, posso dizer que
na cena teatral, ao trazer fatos do inconsciente para a cena por meio das falas e ações do
personagem e ao percebê-los como recalques ou características de personalidade minha que
evitava encarar, tornam-se apaziguadores pela repetição do ato teatral.
Por meio do exemplo descritivo deste diário de bordo, quero dizer que, ao trazer para
o jogo cênico a energia afetiva do valor familiar pelo improviso usando a memória emotiva,
43
trouxe, para a minha construção, um vigor para a conquista e sobre o valor do sentimento.
Stanislávski diz que “o afeto às vezes é mais forte do que a realidade” e que ele pode ser
consciente ou inconsciente, porque é necessário que a ação passe pelo sentimento do ator para
se tornar uma interpretação verdadeira (LABAKI, VÁSSINA, 2016, p. 143). Assim, entregue
à ficção com um senso de realidade muito potente, passei a estabelecer o meu intento, mas,
quando deixei o meu raciocínio de ator interferir na proposta, comecei a perder o jogo,
porque, como já mencionei aqui, estava em crise com a minha maternidade ao acreditar que
ela me traria reflexos negativos para a realização das minhas escolhas profissionais. Foi
quando comecei a me colocar abaixo dos atores homens e o que me fez conseguir estabelecer
o comando do jogo foi trazer para minha realidade de atriz (sujeito) a energia da Luneta,
mulher que, mesmo tendo problemas bem parecidos com seu filho, se safava das situações
mais cabeludas pelo amor a ele e, mesmo em muitos momentos de baixa estima, conseguia
passar um batom da mesma cor da meia arrastão e correr atrás dos seus sonhos. Com isso,
quero comprovar que comecei a observar nas entrelinhas da construção do personagem e nos
escritos dos meus diários de bordo aspectos da minha personalidade que precisavam ser
ressignificados. Assim como na cena psicanalítica, a cena teatral se descortinou, para mim,
como um mecanismo de autoconhecimento.
Outra situação que ainda quero destacar é o comentário ao final do diário, no qual fica
clara a inserção do meu filho nos períodos de ensaio e, ao trazer a metodologia autobiográfica
para essa pesquisa, me recordei o quanto era divertido a sua participação, o quanto sua
infância foi regada pela ludicidade do jogo cênico como uma prática positiva e como
estávamos juntos e cúmplices da construção da nossa história. Por muito tempo depois, me
deixei levar por comentários contrários e achei que tivesse agido negativamente com ele, mas
esta pesquisa me estimulou a conversar com ele e o que tanto me chamou a atenção foi
perceber que suas recordações são muito positivas, embate que sempre foi negado por mim
pelo medo da resposta. Mas, ainda assim, posso dizer que, se assim o fosse, teríamos tempo
de reaver seus reflexos.
Percebe-se que o processo autobiográfico se dá através de uma investigação por
elementos múltiplos e heterogêneos do sujeito: físicos, psíquicos, fisiológicos, sociais,
religiosos, etc. (SOUZA, 2004). Através da narrativa nesta pesquisa, fez-se um exercício
mental de apropriação da memória - em consonância com a proposta autobiográfica, que é
uma investigação-formação que passa pelas minhas vivências pessoais, educacionais e
profissionais. Sendo assim, posso dizer que, antes de entrar para a graduação, tinha uma
postura obtusa em relação aos diversos corpos ao meu redor e, somente após o exercício
44
intelectual da minha formação acadêmica, vislumbro possibilidades de entendimento e forças
para questionar e investigar o meu lugar de sujeito na relação com os mesmos.
Consequentemente, a minha situação emocional vem ficando cada vez mais equilibrada para
processar todas as questões que me afetavam para um equilíbrio e crítica. Foi necessário um
tempo de exercício até me considerar madura para formalizar essa experiência pessoal em
possível pesquisa, buscando a efetivação desta prática como recurso pedagógico.
2) Processo de ensaio do Edifício Dora – 26 de Agosto de 2012, domingo
Figura 4 - Edifício Dora (Mariana, 2013)
Fonte: Arquivo pessoal
Figura 5 - Edifício Dora (Mariana,2013)
Fonte: Arquivo pessoal
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Esse espetáculo foi criado dentro das dependências da casa de Cultura de Mariana e
teve patrocínio do Fundo Estadual de Cultura. Os atores vivenciaram a realidade de uma casa
e seus conflitos familiares. A trama girava em torno de uma parteira e seus filhos adotivos,
todos rejeitados pelos seus pais. Esse foi o primeiro trabalho em que realizei uma relação de
casal: o meu personagem era homem e a personagem do ator Edgar Barros, uma travesti.
“Achei interessante o fato do Flávio não poder participar do ensaio hoje para ver se consigo retomar a
relação de Castanha e Reginaldo. Mas, sem saber que o Edgar vinha ensaiar com toda uma ação
arquitetada. Castanha se arrumou toda e levou Reginaldo para o fundo da casa, arrumando no quintal uma
toalha, e em cima um pote com calda de chocolate, vinho e um baralho, dizendo ter visto na televisão esse
piquenique. Disse que tinha programado passar a tarde juntos, e toda insinuante e jogando charme
convencia Reginaldo a se lambuzar de calda de chocolate e beber o vinho, mesmo ele tendo feito uma
promessa para Padim Virgulino de não beber até arrumar um novo emprego. (Quando consigo empregar em
Reginaldo pensamentos masculinos e pensar como homem sinto satisfação porque nos momentos de
relação conflituosa e em momentos que tenho que usar de raciocínio rápido penso como a atriz e mulher
que sou, aí dá certos conflitos, por que foge um pouco do reflexo masculino. E para fazer isso preciso de
estar muito concentrada nas ações do personagem e nas ações que estão sendo realizadas pelos meus
companheiros de trabalho). E quando ele percebe em Castanha toda essa sedução, ele se demonstra muito
macho querendo tirar proveito daquela que é seu objeto de desejo. Concorda com toda a sua artimanha,
mesmo que somente para realizar seu intento de possuí-la, ao convencê-lo a vender o filho de Marta.
Mas, ao mesmo tempo discorda inventando uma história fiada pode encontrar um pepita de ouro nas minhas
de mariana no mesmo valor da venda do menino: 40 mil reais. Mas, que para isso precisava ser registrado
na firma, e passar os meses de experiência. (Agora avaliando esse momento e depois de uma discussão
sobre o que é o pensamento do ator e o que é o pensamento do personagem, me pergunto: é Reginaldo que
inventa uma história para tirar proveito da situação ou é a Paola que não quer colocar um macula na sua
criação, inserindo um desvio de caráter em seu personagem?!. Quero empregar um boa índole na
construção deste personagem, mas isso têm feito com que eu não ampliei meu jogo de cena quando as
propostas de trabalho são voltadas para o desvio da moral e isso está um pouco conflituoso na minha
construção). Reginaldo tendo o baralho que Castanha havia levado em mãos propõe um jogo a valer
favores sexuais. Tendo ganhado a partida pedi para ela dançar para ele cantando a música da Dalva de
Oliveira e nesses momentos o meu personagem parece que ganha vida sobre a minha pessoa e minha
concentração se volta toda para a relação que ele estabeleceu com Castanha, ele fica muito excitado por ela.
Ele reforça o seu desejo de ser Diva dizendo que ela pode chegar a esse lugar. Como ela se empolga com a
situação, e como medo de perdê-la fica com ciúmes e desconversa chamando a atenção de novo para ele.
Nesse momento, Castanha começa a lambuzá-lo com calda de chocolate e o faz beber o vinho beijando a
sua boca, insistindo nos 40 mil reais e na venda do menino dizendo precisar do dinheiro para montar um
salão para ela. Os dois se empolgam no contato físico, Reginaldo joga Castanha em cima da toalha e
começa a beijar a sua barriga. Ela se levanta e ele atordoado corre atrás dela dizendo que não pode deixá-lo
assim tesudo e ir embora (...).
46
Fonte: Diário de bordo.
Para um melhor entendimento, relatarei a situação da trama para situar o processo de
ensaio descrito. Uma das filhas da parteira, Marta, se encontrava grávida e era mantida presa
no porão da casa, todos os demais filhos tinham interesses individuais no nascimento desta
criança. Esse conflito virou um jogo cênico potente para estabelecer a relação e a história
comum entre os personagens, além das particularidades individuais de cada um. Castanha
queria vender o filho de Marta para o comércio clandestino de órgãos com objetivos de
montar um salão. Reginaldo, por sua vez, queria estabelecer com Marta uma relação familiar
de fachada para manter sua relação às escondidas com Castanha. Na trama, seu desejo era se
apropriar das terras de sua família nordestina e voltar para a vida no sertão para um regaste e
reconhecimento do que era antes de vir para a capital.
Novamente, percebo, através desta história criada pelo meu personagem, o desejo de
retorno à família. Esse conflito estabelecido por mim entre o teatro e família e seus reflexos,
em certa medida, sempre permeiam as minhas construções. E, também, a questão da
autoestima, pois, além de trazer um personagem que por si já sofre muitos preconceitos
sociais por ser nordestina, tem uma deficiência na perna. Eu não consegui, ao longo da trama,
entender porque ele tinha essa deficiência. Às vezes, tentava trazer uma história que
justificava, mas não me convencia, então, comecei a investigar uma possibilidade psicológica
embutida. Foi quando percebi que essas fragilidades demonstradas pelo personagem eram
minhas: estava, novamente, demonstrando a minha baixa estima em relação ao jogo com o
outro.
Quando comecei a construir esse personagem, iniciei o processo com o meu rosto
tampado. Não queria uma identidade e nem um gênero para ele, queria que, ao longo do
processo, isso fosse se descortinando. Depois, começamos a trabalhar com uma máscara
neutra e, quando ele se estabeleceu como homem, a mantive em uma alusão há quando,
(...) Ela pega uma mangueira e joga água nele, depois nela e dois voltam a rolar no chão. Existe um frenesi
nessas ações, um estado de entrega muito grande entre os atores. (Pensando agora friamente sobre o ensaio
de hoje, fica cada vez mais evidente que realmente existe uma realidade ficcional criada pelos atores, e que
existe também uma humanização nessa relação e uma química muito grande. E que de fato não consigo
manter o mesmo nível de excitação e de atração pelo Edgar depois que o ensaio termina assim
estabelecendo uma divisão clara de ficção e realidade). E que empresto o meu corpo para a relação de
atração e passionalidade que existem entre Castanha e Reginaldo. O toque dos dois é abrupto, tosco, existe
uma possessão. Hoje, por exemplo, talvez não teria me entregando tanto ao contato como o Edgar propôs,
mas devolvo o jogo na mesma proporção de energia que me é mandado. E acho muito interessante essa
construção”.
47
socialmente, criam-se padrões com alguns grupos, como se cada indivíduo que pertença a ele
não tenha uma individualidade, são considerados iguais. Nesse caso, estava trazendo a figura
do homem nordestino.
Através do desejo da inserção social do meu sujeito “louco”, busquei recursos também
considerados marginalizados, e o teatro ainda é uma instância social que sofre muitos
preconceitos. Isso fica muito claro quando alguém pergunta: - O que você faz? - Teatro, eu
respondo, e a pessoa retruca: - Mas, você trabalha com o quê? Como se o teatro não fosse
trabalho. Ao longo desses 13 anos de grupo, não há outra coisa na vida que tenha feito que
não seja trabalhar muito para estabelecer minhas escolhas. Ao trazer o tema da “loucura” para
dentro da academia sem ter uma formação tecnicista, faço um movimento hercúleo de
legitimar a minha prática como válida para a comunidade científica e, ao realizar minha
defesa, percebi quantas vezes repeti a palavra L-E-G-I-T-I-M-I-D-A-D-E. Notei que,
primeiro, precisava reforçar em mim a minha própria competência ao trazer essa temática e
discuti-la mesmo que pela via do empirismo, da subjetividade. Assim, como o personagem
Reginaldo, que precisava voltar para o sertão para reencontrar sua essência para se reconhecer
e legitimar a suas raízes, precisei mergulhar em mim, na minha história para validar a sua
importância para mim, é claro, mas para uma reverberação possível daqueles que querem
realizar o mesmo aprofundamento.
3) Processo de criação do espetáculo Léon – 05 de Junho de 2013, quarta-feira
Muitas vezes, iniciamos um novo processo pensando em uma temática comum para
todos os personagens e, nesse trabalho, a abordagem eram as diversas deficiências humanas:
físicas e intelectuais. Escolhi a falta da visão como abordagem de construção. Tive que
abandonar o processo por problemas pessoais e a atriz Jailda Freitas continuou a construção
da minha personagem.
“Terminei o ensaio com uma sensação dúbia: satisfação e insatisfação. Aconteceram algumas coisas
interessantes para traçar a personalidade da minha personagem e as relações e as relações com o Luiz e a
Dani. A direção nos orientou que eu e Guina trabalharíamos juntos com algumas músicas românticas
selecionadas em um pendrive, e o objetivo era trabalhar a afetividade entre os personagens, e representarem
nas ações os conteúdos das músicas. Dani e Luiz trabalhariam temas individuais. A direção levou para mim
fotos de pessoas mortas, não me deixou vê-las, o que achei interessante, por que criei uma relação intuitiva
e sensorial com elas (...).
48
Fonte: Diário de bordo
A cada novo processo, foi se estabelecendo não somente uma construção e
crescimento em âmbito teatral, mas ampliando as percepções de mim mesma e das relações e
coisas ao meu entorno. O jogo cênico estabelecido entre atores se tornou campo fértil para os
meus reflexos e respostas servirem de autorreflexão para uma percepção muito pessoal de
como eram minhas reações e, ao me perguntar o que me levava a reagir assim, através da
Como estou criando um painel ao lado da minha cama para fixá-las precisava entender com o tato o lado
correto da impressão, já que todas tinham a mesma textura do papel, com os dedos não conseguia sentir
essa diferença, passando no rosto conseguia sentir um lado mais poroso, o que considerei como o lado
impresso. Um delas coloquei do lado errado, e não lembro agora se estava dispersa com outra informação
para fixá-la errado. Algumas ficaram de ponta a cabeça, mas super pertinente. Essa relação com a morte
para mim é muito presente, por que não tenho medo dela, e de uma certa forma, a desejo, não por que
queira adiantá-la, mas me sinto presa estando viva, a tal liberdade que temos discutido, para mim se dá
depois da morte. Sempre tive essa sensação, que estar vivo e estar limitado, mas não sabia descrevê-la.
Estudando um pouco filosofia cheguei aos estudos de Kardec e a continuidade da vida pós-morte, enquanto
espíritos eternos que somos, estando cativos em mundos corpóreos para o aperfeiçoamento moral. Ainda
estou estudando e não posso me dizer convicta dessa realidade. O que sei de pronto, que a morte é uma
temática universal e esse possível fim acarreta no humano, sensações, sentimentos, atitudes diferentes a
partir do que se acredita no depois. No caso dessa personagem que prepara o seu dia como um
acontecimento importante de libertação, em que voltará e enxergar, porque acredita estar
momentaneamente cega, vive os seus dias preparando o local que seu corpo irá descansar. Ao fim do ensaio
comentei com a direção que gostaria de já traçar uma possível personalidade. Já existem algumas atitudes
que permanecem a cada novo ensaio: a autoestima elevada, a infantilidade, certa sensualidade, a busca de
atenção para si, uma superproteção com o irmão. Acredito que essa forma de postar é um mecanismo
compensador para a cegueira (vou pesquisar novamente possíveis mitos). A relação com o irmão
(personagem do Luiz) vai ficando mais afetuosa, possessiva e dependente. Eles são carinhosos um com o
outro, mas tem uma percepção um do outro estranha, de negação, se não se admitem como deficientes.
Como a personagem da Dani existe e hoje isso ficou mais evidente, uma admiração do que essa mulher
representa um ideal de mulher. Mas, a relação afetuosa ainda é fraca e não consigo perceber se é uma
pessoa confiável.
Como o Guina, hoje o exercício foi um desastre, tentei entrar no universo que ele começou a propor
imitando cachorro e galo, comecei também a fazer seu pares, quando o contato se deu, percebei que existia
um limite de jogo imposto por ele, aí me senti super travada, por que levei o negócio para o pessoal, como
se ele estivesse obrigado a executar esse jogo comigo. Isso é péssimo para o ator quando ele vai para o jogo
carregando seus fantasmas pessoais e não consegue reconectá-los, transformá-los em outras energias.
Porque lidar com suas questões dentro de um processo de construção psicológica e saber transformá-las em
energia e características par esse personagem, e não te deixar bloqueado perdendo assim a criatividade
iniciativa de construção. E assim foi até o fim do ensaio, travei geral”
49
descrição do ensaio, via nuances bem claras da minha personalidade. Uma característica
evidenciada nos três diários foi a autoestima, como disse. Nesse último caso, criei uma
personagem com um discurso persuasivo, uma autoestima elevada, certo ar de sensualidade e
ingenuidade. Assim, criei, nesse momento, um ideal, reforçando características que não tinha.
Stanislávski fala do trabalho de análise da psicologia do personagem:
A arte do verdadeiro ator é diferente. Depois de perceber o desenho geral e a
tonalidade do papel, depois de estudar a vida cotidiana e as condições de vida,
depois de ressuscitar na sua memória afetiva todo o material necessário, o artista
começa a analisar o papel. Esse trabalho amplia a psicologia do papel e seu desenho
e estabelece à lógica e coerência nos movimentos psicológicos. Por causa disso, o
desenho do papel se desenvolve, e é elaborado em detalhes. Ao mesmo tempo, a fim
de enriquecer a sua paleta, o ator se funde com o papel em todas as situações que sua
fantasia seja capaz de inventar, indo além das palavras do papel (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 164).
Percebe-se, então, que o Stanisláski vai dizer que, antes de entender a psicologia do
personagem papel presente no texto, características essas que lhes foram dadas pelo autor da
obra, é necessário buscar na própria memória emocional do ator junções, ligas que façam que
as sensações psicológicas interpretadas pelo ator se tornem reais, porque passam pela sua
sensação pessoal e emocional ao trazer memórias que se aproximam da realidade do texto. O
que quero propor é outro raciocínio. A situação que me coloco para viver através do
personagem, mesmo que não a tenha vivido antes, não projeta reações do ator? Não é a ator
que pensa e reage? Não é o ator que está emprestando o seu corpo? Sim, é o ator transvestido
de personagem que está raciocinando, mesmo que o personagem não tenha nada a ver com as
minhas características, mesmo que seja levado a fazer um assassino, é a minha lógica a partir
do que acredito, do que vivi e do que sou que vai responder ao estímulo dado pelo jogo
cênico. Relembrando a citação da psiquiatra Nise da Silveira (1997), quando fala da
necessidade de criar um mecanismo para acessar o inconsciente, quero relaciona-la com a
seguinte frase de Stanislávski: “a verdade é inseparável da fé, como a fé o é da verdade. Elas
não podem existir uma sem a outra e sem ambas há nem vivência, nem criação” (LABAKI;
VÁSSINA, 2016, p. 307). Quando entrava em cena estando imersa na vivência do
personagem e não ficava pensando friamente o quê aquela cena iria trazer de possíveis traços
da minha personalidade, ao entrar nesta realidade e ao vivenciá-la com toda a minha fé e
sentido de verdade, abro brechas do meu inconsciente. Assim, o trabalho de vivência do ator
nesta imersão físico psicológica permite a ele ir além da construção estética de uma
interpretação, uma construção estética existencial de reconhecimento de si, a aquisição de
uma técnica para além do espetáculo.
50
2.5 A construção de um corpo biográfico
O conceito de corpo biográfico chega até nós através do artigo “O corpo biográfico:
corpo falado e corpo que fala” (2012), de Marie Christine Josso16. Nas abordagens
investigativas propostas pela autora, diz que, para se chegar a uma interpretação de sua
própria narrativa, a experiência relatada tem que se passar pelas vias do corpo, de como “ele
foi cuidado, afagado, vestido, alimentado e às vezes maltratado e abusado” (JOSSO, 2012, p.
24). Ao encontrar seus estudos, me senti mais segura para relatar minha experiência de abuso.
Estamos vivenciando momentos de grandes mudanças sociais, em que mulheres de vários
países se sentem seguras para relatarem suas histórias, e acredito, também, que somente a
partir de uma rede de cooperação, onde vários relatos ganham evidência, podemos pensar em
relações futuras mais saudáveis. Ela destaca que a saúde do corpo e sua morte ocupam um
lugar muito importante e merecem destaque para se chegar ao que a autora denomina como
corpo falado. Ela destaca que o aspecto de saúde do corpo, “em particular o portador de
estigmas são fonte de compressão da unidade do ser somatofísico em todos os seus atributos”
(JOSSO, 2012, p. 12). Por toda experiência vivenciada, pelos reflexos do exercício da minha
subjetividade, e ao resgatá-la nesta pesquisa, arrisco dizer como uma provocação para o futuro
que a minha história de abuso me aproximou da “loucura”. A autora resolveu agregar a saúde
em seus estudos de auto formação através das histórias de vida depois de ter passado pela
Síndrome de Bornout – caracterizada com um caráter depressivo seguido de esgotamento
físico e mental ligado à vida profissional. Ela está visando uma percepção corporal mais
ampla e insere essa percepção em suas pesquisas. Assim, Josso (2012), a partir da sua
experiência com um transtorno psíquico, propõe uma ampliação da sua pesquisa
autobiográfica, através de outros mecanismos para chegar aos mecanismos de investigação-
formação, principalmente no que tange ao sensível pelas vias corporais em “um projeto de
saúde, projeto de formação, projeto de mudanças de relação consigo, com os outros, com
nosso ambiente humano e natural, assim como uma disponibilidade para uma evolutiva
criativa com saídas surpreendentes” (JOSSO, 2012, p. 25).
Josso (2012) vai dizer que esse mecanismo leva muitos sujeitos a buscarem a melhoria
ou “a sua cura” através do corpo, porque tudo fica registrado no corpo e, nele, também estão
16 É socióloga e antropóloga, doutora em Ciências da Educação, professora na Faculdade de Psicologia e
Ciências da Educação da Universidade de Genebra, especializada nas problemáticas da educação de adulto e na
formação profissional continuada para acompanhamento, ensino e assistência social e à saúde. Tornou-se
conhecida no Brasil através de sua obra “Experiência de Vida e Formação”, publicada pela Editora Cortez, em
2002, trazendo uma inovação para a proposta de trabalho com formação de adultos, ao considerar o lado pessoal
e não apenas o profissional, nos cursos de formação profissional e de professores
51
as respostas. Esses mecanismos ainda considerados alternativos pela ciência erudita em que o
sujeito busca o seu próprio aprimoramento através das vias do corpo se tornam objetivo
central em suas vidas, e existe uma grande identificação com essa afirmação. Assim, me
apropriando e em conformidade com esse raciocínio, quero dizer que, uma vez estabelecida a
relação de alteridade com o personagem, e através de um distanciamento crítico da análise
dos meus diários de bordo, me aproximo da construção de um corpo biográfico. As narrativas
desta pesquisa associadas às narrativas de meus diários de bordo se aproximam do exercício
realizado pela metodologia autobiográfica, na qual “as narrativas de formação e o trabalho
intersubjetivo efetuado para analisá-las e interpretá-las dão acesso a um conhecimento de si”
(JOSSO, 2012, p. 20).
Através do hábito da leitura e da interpretação crítica dos meus diários de bordos,
percebo muito claramente que, em paralelo ao relato da construção do personagem, há uma
escrita que narra aspectos da minha personalidade e isso não foi feito de forma intencional. É
possível fazer uma identificação de questões que emergem e de situações que estão sendo
vividas no momento. Através desta prática, é possível fazer uma investigação de si ao ponto
“até em um nível ainda mais profundo, das crenças, das visões do mundo ou cosmogonias”
(JOSSO, 2012, p. 20). Então, já habituada, através dos meus diários de bordo, a constituir
uma interpretação crítica de características da minha personalidade e esse mecanismo ter me
proporcionado o autoconhecimento, fui me aproximando de uma melhora em relação à
“loucura”, buscando, nas práticas teatrais, uma saída criativa de sobreviver a mesma. Quero
demonstrar, assim, que essa escrita realizada nos meus diários de bordo, mesmo antes de
conhecer a metodologia autobiográfica, já possuía a característica de biografização, pela qual
não somente realizava a descrição psicofísica do personagem, mas discorria sobre a minha
própria formação subjetiva e, juntamente a essa pesquisa narrativa que se constitui como uma
apropriação das experiências e memórias que estão enraizadas em meu corpo, se constituem
como fonte potente de revelação de si mesmo e autoconhecimento (JOSSO, 2012).
52
PARTE III - “SER OU NÃO SER EIS A QUESTÃO”
3 O TRABALHO TEATRAL REALIZADO NO COLETIVO SER OU NÃO SER
Neste capítulo, por meio dos conceitos anteriormente expostos, proponho uma
discussão das práticas realizadas no Coletivo Ser ou Não Ser acerca do uso da memória
emocional de Stanislávski como mecanismo de criação no trabalho do ator sobre si. O grupo
está em atividade desde março de 2015 e é formado por usuárias do Caps 1 – Centro de
Atenção Psicossocial em Saúde Mental –, de Ouro Preto, onde realizo a mediação teatral
gerando estímulos e circunstâncias a partir da prática do improviso. Mas, aqui, trarei algumas
experiências teatrais do coletivo no desejo de analisar e entrecruzar nossas experiências,
fortalecendo a investigação de que o trabalho do ator sobre si e a criação do espetáculo o leva
ao mecanismo estético de autoconhecimento. Essa aproximação da própria subjetividade traz
aspectos positivos e negativos para o ator pela interpretação que faz deste mecanismo. Assim,
no grupo, observei que, diferente da minha realidade, onde a interpretação e crítica se deu de
uma forma individual, tive que, em alguns momentos, me colocar como mediadora das
questões do inconsciente que estavam vindo para a cena porque eles não conseguiam fazer o
mesmo distanciamento e criar uma relação de alteridade com o personagem. Trarei dois
estudos distintos.
O coletivo foi criado pelo desejo de criação de um grupo teatral nos modelos do teatro
colaborativo em que os participantes tivessem a oportunidade de realizar uma atividade que os
inserisse socialmente através da apresentação e circulação de espetáculos. O nome do grupo
foi sugerido por uma atriz em uma discussão pós-ensaio sobre o que as caracterizavam como
sendo “loucas” entre os normais. Cada apontamento era embasado pela própria experiência,
sendo que umas diziam se considerar louca e outras não, e quando estavam trocando de roupa
para finalizarmos o dia de trabalho uma delas disse: ser ou não ser “louco” eis a questão...
Nesse momento sugeri que era um nome interessante para o grupo e todas concordaram.
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Figura 6 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP - Ouro Preto, 2016).
Fonte: Arquivo pessoal
Figura 7 - Coletivo Ser ou Não-Ser (Apresentação no FAOP - Ouro Preto, 2016).
Fonte: Arquivo pessoal
É importante dizer que não tenho formação psicológica para fazer uma interpretação
detalhada dos aspectos individuais de cada participante ao ponto de estabelecer um processo
terapêutico ou psicanalítico com resultados pautados por essa via. Este não é o objetivo. As
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interpretações se dão e se deram de uma forma associativa em conversas pós-ensaio e a
condução era realizada de forma livre, sem objetivos de indução do pensamento das atrizes do
grupo. Trarei, neste capítulo, contribuições do estudo de Stanislávski, Nise da Silveira, David
Cooper e Danis Bois.
Algumas observações: os nomes das atrizes (o grupo está formado, ultimamente,
apenas por mulheres) serão mantidos anônimos por questões éticas. Além disso, escolhi me
referir às participantes do coletivo pelo substantivo feminino atriz e não como paciente ou
usuária, como forma de manter sua identidade pessoal fora dos estigmas da “loucura” – e
reforçando, assim, o objetivo da formação de um grupo teatral, por um lado, como mecanismo
de inserção social, através da busca de uma excelência na interpretação, e, por outro, com
objetivos de autodesenvolvimento da própria subjetividade e do cuidado de si como
mecanismo terapêutico. Outro pronto a ser frisado é que este não foi um trabalho isolado, mas
feito em paralelo ao acompanhamento delas por outros profissionais do CAPS: psiquiatras,
psicólogos e terapeutas ocupacionais, associados ao programa terapêutico individual de cada
paciente. Essa prática teatral partiu do desejo de que as atrizes pudessem chegar às percepções
pessoais e que as mesmas contribuíssem para uma melhora no trato e um melhor
entendimento de sua própria “loucura”. E, muitas das vezes, a mesma percepção estabelecida
por mim não era realizada da mesma forma por elas, assim, não obrigava um aprofundamento
do mesmo, ou seja, às vezes, eu destacava alguma característica ou situação que emergia da
memória para a cena, correlacionando com que eu sabia das histórias pessoais das
participantes, e deixava que as mesmas fizessem sua própria crítica. As contribuições
normalmente auxiliavam de forma positiva para uma melhor compreensão de si, já que,
muitas vezes, também não tinham percepções claras quanto a isso.
3.1 A passagem do mundo real para o ficcional e vice-versa
As contribuições da prática desenvolvida ao longo dos anos no Teatro do Dragão
foram de extrema importância para o amadurecimento do trabalho realizado no coletivo, mas
este se mostrou como interpretações e revisões do trabalho do ator como criador. E foram (e
ainda são) pensadas, como um working in progress, em sua melhor adequação para as atrizes
do coletivo – envoltas e prejudicadas não apenas pelo estigma em torno da doença mental,
mas, também, pelos reflexos negativos, oriundos do uso da medicação psicotrópica:
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enrijecimento muscular, fadiga, perda de memória, aumento de peso, falta de concentração,
etc.
Pelos anos de prática teatral e as experiências teatrais realizada com usuários de Caps
anteriormente, na formação do coletivo, tinha em vista que o trabalho com eles deveria se
autogerir exclusivamente no corpo, sem o uso de textos fixos ou temáticas pré-concebidas.
Este corpo possui atribuições sensoriais e reflexivas através dos estímulos teatrais,
principalmente na criação do personagem – porque esse nos obriga a uma constituição
corporal extra cotidiana – a estabelecer, destacar e interpretar traços da personalidade do ator,
e, também, a fazer uma imersão muito forte na vivência do ator, o que me leva às ações antes
não pensadas e que, senão pontuadas e destacadas corretamente, podem trazer prejuízos à
personalidade.
Assim, em minha própria prática, sabia que precisaria sistematizar uma metodologia
de trabalho que estabelecesse entrar e sair do mundo ficcional, de modo a delimitar de forma
clara meu eu-ator e meu eu-personagem. Joel Birman (2003) e David Cooper (1978) vai dizer
que a doença mental, muitas vezes, sugere um mecanismo de defesa, uma realidade paralela
que precisa ser construída para que se estabeleça uma possível relação com o meio que estou
vivendo. Dentre as discussões realizadas com a equipe do Caps, esse mecanismo seria de
grande importância para evitar que as atrizes perdessem a relação ou o referencial com o real
ou com o próprio eu, além de evitar o “ganho secundário” (conceito que explico a seguir) –
uma atitude já observada por técnicos do Caps após a realização de oficinas de teatro
(algumas nem mesmo realizadas por mim) – e, também, para estabelecer uma técnica e
percepção da interpretação teatral.
No ano de 1901, Freud publicou “Fragmento da análise de um caso de histeria: a
paciente Dora”. Com 16 anos, além de possuir pensamentos patológicos – tinha uma relação
obsessiva com o pai – possuía uma dor de garganta que aparecia e desaparecia
espontaneamente. Acreditava que os motivos da doença da garota não estavam nos sintomas
“físicos”. Com a continuidade e observação do seu caso, Freud introduziu os conceitos de
ganho primário e secundário. Em psicanálise, ganho secundário é, então, sintomas que
aparecem e parecem propiciar, para aquela subjetividade, vantagem pela condição de estar
doente (o sujeito se torna objeto de cuidado do outro e, automaticamente, estabelece uma
relação de compadecimento). Sobre o tal “ganho secundário”, era perceptível que, algumas
vezes, uma participante, ao sair das oficinas teatrais, se tratava pela personagem falando em
terceira pessoa, muitas das vezes para conseguir atenção, mas, também, para se livrar de
tomar uma medicação ou ser repreendida por uma conduta inadequada.
56
Para evitar isso, fazíamos, no início e no final do ensaio, um trabalho bem
sistematizado de entrar e sair do personagem, de modo a pontuar as fronteiras entre o
ficcional e o real de forma clara e, assim, garantir uma imersão na construção do personagem
que causasse “prejuízos” à personalidade, ou que trouxesse à tona aspectos íntimos das quais
não conseguisse, ainda, fazer uma elaboração considerada positiva. Confesso que esse
mecanismo pontuado em equipe, entendendo suas considerações e as acatando para o respeito
pelo senso coletivo, sempre me causaram certo estranhamento, pensando em um movimento
antipsiquiatria. O desejo não é o de impedir a apropriação de um recurso estético em prol da
ordem médica, mas estabelecer uma discussão, inclusive com os próprios pacientes, para
vasculhar sua subjetividade e saber o que o levou a fingir estar no personagem para fugir de
tomar uma medicação ou ser repreendido? Fica aqui uma provocação ainda sem respostas,
mas não poderia deixar de destacar um pensamento que vai à via contrária de uma
constituição da técnica da existência, fazendo com que meu discurso se torne contraditório.
Outros estímulos também eram realizados para facilitar o trabalho. Assim, estabeleci
estímulos visuais, auditivos e táteis para criar uma sincronização corporal que determinasse
esse lugar, ou seja, da associação de estímulos sensoriais, criei uma movimentação corporal
ou partitura que marcasse claramente as fronteiras de início e fim do trabalho teatral com as
atrizes. Sobre o personagem a ser construído por cada uma, deixo claro que elas sempre foram
livres para realizar qualquer escolha. A pergunta inicial do primeiro encontro era bem clara:
Qual personagem gostaria de interpretar no teatro? Pude observar (no Coletivo Ser ou Não Ser
e em outros trabalhos anteriores no CAPS) que essa frase aciona a escolha de uma persona
que se aproximava do ideal do participante já trazendo em si aspectos bem importantes da sua
própria subjetividade para o trabalho do ator. A partir daí, as ferramentas de criação eram: a
memória das atrizes associadas a músicas, objetos cênicos, figurino e estímulos dados pela
mediação teatral.
Sobre a importância do desejo como impulso inicial para a criação ao estudar os
conceitos de Freud, faço uma aproximação desta realidade nos estudos da libido em seu livro
“Introdução ao Narcisismo” (2010). Para Freud, existe em sua teoria da personalidade –
grosso modo –, para contextualizar o conceito de libido, três dispositivos que a constitui: id,
ego e superego. No id, estão as pulsões, nossas inclinações mais elementares e é onde
buscamos a satisfação acima de qualquer preço. O ego é o eu que me apresento socialmente, e
o super ego é o detentor das normas e da moral dos grupos sociais nas quais estamos imersos.
A formação da libido está entre o conflito de id e superego, ou seja, o campo do desejo se dá
na associação dos aspectos psicológicos e emocionais. Freud (2010) caracterizou essa energia
57
como sendo a que move o sujeito na direção ao prazer, assim, o princípio do prazer é nosso
maior motivador. Assim, as atrizes do coletivo imediatamente são levadas a escolha de
personagens que representam o reflexo de seus desejos íntimos.
Figura 8 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016).
Fonte: Arquivo pessoal
Figura 9 - Ensaio das atrizes do Coletivo Ser ou Não-Ser (CAPS - Ouro Preto, 2016).
Fonte: Arquivo pessoal
58
Feita a escolha, era necessário pedir que estabelecessem um referencial a ser
trabalhado, porque alguns personagens eram, algumas vezes, arquétipos por demais
generalizados, por exemplo: uma bailarina e um palhaço. Para que tivéssemos um ponto de
partida mais concreto (ou pré-texto), pedia que escolhessem, também, uma figura que
representasse suas escolhas. Assim R. escolheu, por exemplo, não apenas uma bailarina, mas
a bailarina do filme Cisne Negro (2010), dirigido por Darren Aronofsky e estrelado pela atriz
Natalie Portman. Já D. escolheu um palhaço triste – fui até a internet e ela escolheu uma foto
que o representava – justificando que, assim como ela, a personagem da foto “era triste, mas
gostava de fazer as pessoas rirem”. As outras atrizes escolheram personas bem distintas e com
suas histórias bem determinadas: Zé Pelintra e Cleópatra. A partir deste pré-texto, algumas
características já vinham determinadas para o ensaio.
Para entrar nesse universo, o mecanismo estabelecido se dava da seguinte maneira:
foram impressas fotos dessas personas que eram pregadas na parede na altura dos olhos de
cada ator – como é possível ver nas figuras 8 e 9 – de frente para sua foto, o ator era levado a
trocar de roupa e colocar algumas peças do seu figurino juntamente com a escuta de uma
música – e escolhi uma música que particularmente gosto muito, cuja tradução é significativa
– “Don´t let me be misunderstood”, da Nina Simone. Os benefícios da música para o estimulo
é estabelecer um clima, muito usado no teatro, e eu sabia que uma música em outra língua não
iria fazê-las dispersarem em sua letra, dando o aspecto que queria alcançar: concentração. Ao
fim da música, elas começavam a andar pela sala, o que as ajudava a estarem prontas para
iniciar os improvisos propostos no dia: um tema, uma situação, uma memória, a sugestão de
alguma atriz, entre outros. Ao final do ensaio, elas faziam uma movimentação curta e
repetitiva e ia diminuindo o ritmo até ficarem paradas e “voltarem a si”. Como a assimilação
desse entrar e sair do personagem foi ficando mais necessária, tirei o estímulo visual da foto e
a troca de roupa – que já era feita antes de iniciarmos o ensaio – mas, mantive a música para a
concentração, a pedido das mesmas. A atriz T., que permanece no grupo, por exemplo, não
consegue entrar no clima se não fizer o recurso da concentração com a música.
A cada fim de ensaio, estabelecíamos um diálogo para compartilhamentos, desde uma
questão prática do ensaio, sensações que a prática tinha produzido no corpo ou de uma
questão pessoal que desejassem verbalizar, mesmo não estando associada de imediato com o
que havia sido praticado. Quando acontecia alguma situação considerada delicada, ou alguma
alteração de humor, algum conflito, este era colocado em roda para uma possível conclusão
coletiva, sem imposições ou juízos de valores. Tato que tinha que ter a todo o tempo e que,
algumas vezes, saem mesmo do controle. Tivemos algumas poucas situações, mas ocorreram.
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É importante dizer que as atrizes do coletivo têm, além do psiquiatra, um profissional da
psicologia ou da terapia ocupacional que faz um atendimento terapêutico de escuta com datas
determinadas ou da sua necessidade. Nesses atendimentos, o trabalho teatral e seu
desenvolvimento vinham à tona para destacar percepções positivas ou negativas de sua prática
para o tratamento delas, objetivo do Caps. O pré-requisito para a participação no coletivo era
a indicação do psiquiatra, do psicólogo ou do terapeuta ocupacional responsável, além de o
usuário estar em quadro considerado estável, o que lhe garantiria uma boa assimilação e
resultados positivos da prática proposta, e sabíamos de riscos eminentes. Em seu texto “Que é
a casa da Palmeiras”, a psiquiatra Nise da Silveira discorre sobre o trabalho expressivo e a
terapêutica ocupacional e faz uma advertência:
Entretanto, se o ego está muito atingido, a utilização do trabalho com fins
terapêuticos que envolvem característica do trabalho só convém a indivíduos
capazes de manter corajosas e persistentes relações com o mundo externo.
Teremos de ir ao encontro do doente nos pontos instáveis onde ele se acha
ainda, a fim de ajudá-lo a fortalecer o ego de modo gradativo (SILVEIRA
apud GULLAR, 1996, p. 84).
Confesso que considero estabilidade e instabilidade um aspecto muito abrangente de
discussão e tênue dentro do desenvolvimento de qualquer trabalho cujo corpo nas suas
instâncias psicofísicas está imerso, de um momento ao outro essas características podem se
inverter. Mas, sim, considero e sei ser de extrema importância esse lugar em que o ego está
consciente para fazer interpretações e crítica sobre si capaz de justificar as suas escolhas e
atitudes, mesmo que essas sejam consideradas despadronizadas. Assim, juntamente com a
equipe do Caps, o acompanhamento do trabalho era feito para estabelecer o bem estar físico e
emocional de cada participante.
Quando o trabalho já estava melhor estabelecido pelas atrizes, tirei os ensaios da
dependência do Caps, porque, além da interferência dos demais usuários que a todo o
momento entravam e saiam do espaço onde trabalhávamos tirando a atenção das mesmas,
dava a elas a constituição de uma autonomia. Esse era um dos aspectos também discutidos em
equipe e que todos acharam ser benéfico para as atrizes.
60
3.2 A vivência do trabalho do ator no coletivo e seus reflexos: estudos de caso
Apesar de um universo extensivo de situações ocorridas ao longo do trabalho com as
atrizes oriundas do CAPS, irei recortar, neste capítulo, apenas duas situações distintas, com
duas atrizes diferentes, de modo a poder aprofundar melhor os conceitos envolvidos na pratica
teatral desenvolvida, para, assim, discutir o trabalho realizado com estas duas e demonstrar
como a relação de alteridade estabelecida com a construção de um personagem pode conduzir
ao autoconhecimento. Destacarei, portanto, um caso considerado com efeitos positivos e
outro, negativos. Aqui, vou me permitir a uma ousadia de criar nomes para os dois estudos de
caso, assim como Freud, que dava nome a seus casos a partir de uma cena psíquica
(BIRMAN, 2014).
Para desenvolvimento dos estudos de caso, vou trazer um novo autor cujo conceito de
corpo biográfico foi criado por ele e apropriado na pesquisa de Marie Christine Josso, o
terapeuta do corpo Dani Bois17, com o trabalho “O corpo sensível e a transformação das
representações no adulto” (2007). Ela vai pensar em uma prática em que o sujeito nela
imerso vivencie, pelas vias do corpo, uma percepção para aproximação de si nas relações com
os sentidos: a visão, a audição, o tato e paladar. A autora defende que é preciso estabelecer
uma noção de um novo paradigma: o sensível, que, aqui, designa a função do corpo responder
a estímulos, ou seja, “a sensibilidade designa a propriedade de todo tecido vivo de ser
reagente, e assinala a pertença do que é vivo ao mundo que o cerca” (BOIS, 2007, p. 03). Ao
mesmo tempo, traz a dimensão qualitativa “que indica a ressonância subjetiva que acompanha
toda a recepção de informação pelo corpo” (BOIS, 2007, p.03). Trago, através de Bois (2007),
um reforço teórico para dizer que as investigações da prática realizada pelas atrizes do
coletivo se dão através de uma interpretação da constituição das nossas subjetividades em
diálogo com o corpo e suas percepções sobre as mesmas. Através da construção do
personagem, que se dá pelo mecanismo de improviso, o inconsciente que emergi para a cena
traz ações e respostas da minha própria subjetividade. Quando as atrizes foram levadas a crer
que as atitudes e ações dos personagens eram distintas do seu eu porque se surpreendia com o
que emergia, isso dava a elas um conforto ou defesa para aprofundarem mais ainda em si
17 Professor da Universidade Moderna de Lisboa/Portugal e Universidade de Sevilha/Espanha, diretor do
CERAP - Centro de Estudos e Investigação Aplicada em Psicopedagogia Perceptiva e Somato Psicopedagogia
da Universidade Moderna de Lisboa. O CERAP tem como objetivo estudar a relação particular à experiência
sensível do corpo bem como o lugar do corpo sensível nos processos de aprendizagem educativos, formativos e
existenciais. A originalidade da prática formadora situa-se no acompanhamento de um sentido imanente
emergente à experiência sensível do corpo. A investigação desta vivência requer uma postura de investigador
adequada, que assuma seu caráter evidentemente subjetivo e implicado.
61
mesmas. Assim, através das reações corporais, questionava o porquê daquela reação quando
identificava, nelas, reflexos da sua história pessoal. Muitas vezes, elas falavam para mim que
as conheciam demais, se perguntando como aquilo era possível e eu respondia que o corpo
fala. Assim, os dois casos apresentados a seguir é um livre interpretação das reações dos
personagens associadas a suas vidas pessoais (até onde sei, pelos seus relatos). Já disse que o
inconsciente do qual me refiro é a abordagem de Carl Gustav Jung, que traz aspectos que não
estão no plano da consciência.
3.2.1 Caso 1: E ela fugiu com seu Patrick Schweizer...
A atriz R. não está mais no grupo, a sua inserção e manutenção sempre foi acometida
pelo conflito de pertencer à religião Testemunhas de Jeová e, por isso, seus familiares e os
participantes não consideravam a prática teatral como bem vista. Várias vezes saiu e entrou,
até que nunca mais voltou depois de ter conseguido, não somente pelos benefícios do teatro –
mas com certeza com seus efeitos –, fazer um enfrentamento familiar bem positivo para sua
constituição subjetiva (Esse processo foi considerado positivo por sua psicóloga.)
R. tem transtorno bipolar e escolheu fazer uma bailarina e tinha o sonho de dançar
para os pais demonstrando que ela era capaz. À época, R. estava com 34 anos e mantinha,
com os pais, uma relação de dependência, em grande parte, criada pela superproteção da mãe,
que não aceita o diagnóstico da filha e, sendo Testemunha de Jeová, não aceitava o fato de
Deus ter lhe dado uma filha “doente”. R. já havia sido casada, mas, mediante um surto, foi
abandonada em casa pelo marido até o momento que sua mãe a levou de volta para sua casa.
Percebia características bem definidas de conflito interior pelos reflexos da moral dos pais e
da religião repressora. Por ter escolhido a dança como mote de criação, percebia claramente o
quanto se sabotava quando, em improvisos, os movimentos ficavam mais soltos, ou iam para
uma energia mais sensual (algo “demonizado em sua religião”). Em dois ensaios, isso ficou
bem claro. Como tinha escolhido como pré-texto a bailarina do filme cisne negro e a
personagem dançava balé clássico, R. sabia fazer bem a distinção de ser uma dança com
movimentação mais precisa e técnica, chegou a buscar aulas particulares com uma professora
da região e, como não tinha dinheiro para pagar, sugeriu uma contrapartida, iniciativa que nos
deixou muito feliz, eu e sua psicóloga. Teve um ensaio que, ao contracenar com a atriz que
fazia um palhaço, pediu que o mesmo, ao dançar com ela, deslizasse suas mãos na lateral do
seu corpo e, ao mesmo tempo, sorria para mim dizendo que não era para eu falar nada e nem a
62
criticar. Ao final do ensaio, perguntei se ela se sentia confortável para a realização de tal
contato e de imediato me respondeu “a D. está fazendo um homem, mas ela é mulher então
não tem problema pode tocar em mim”18. Retruquei dizendo que o seu personagem era
homem e seria isso que as pessoas iriam enxergar na apresentação, pois queria saber e ter
certeza que não iria causar constrangimentos para ela. De pronto, respondeu: “Meus pais me
matam”. O conflito de R., causado pela repressão sexual era muito claro – uma energia
feminina presente com ímpetos de ser vivida de forma natural em confronto com a imposição
moral dos pais e da religião familiar.
A outra situação foi mais intensa. Por causa deste mecanismo de confronto entre o
desejo e o pudor sua dançarina foi se constituindo com uma movimentação muito rígida e eu
queria que ela encontrasse um meio termo para se sentir confortável. Propus que fizéssemos
ensaios individuais para trabalharmos a dança de uma forma mais livre, havia preparado uma
situação bem simples colocar alguns gêneros de música e pedir a ela que dançasse à vontade,
já que estávamos só nós duas. Antes de o ensaio começar, conversamos um pouco sobre seu
estado de humor e outras coisas corriqueiras para deixá-la mais à vontade, e foi aí que me
contou que já tinha sido casada, que sentia falta deste contato, mas que não podia se permitir
de jeito nenhum a se aventurar nesta realidade por causa dos pais e da religião, e que, depois
de ter voltado para a casa dos mesmos, nunca mais tinha visto o marido, que sentia saudade,
mas também sentia raiva. Iniciamos o ensaio com a música Lago do Cisne, de Tchaikovsky
(1875), depois a música What a feeling, de Irene Cara (1983), e, na sequência, a música I put
a Spell on you, de Nina Simone (1965). Desta vez, pedi que dançasse para outra pessoa e ela
me perguntou para quem. Eu, sabendo que mexeria em aspectos pessoais, mas correndo o
risco, disse: “Quer dançar para seu ex-marido?”
Com seu consentimento, iniciei a música e ela começou a dançar com muita
sensualidade, trazendo movimentos que não condizia com aquele corpo enrijecido, travado.
Confesso que fiquei muito emocionada, até que ela começou a tirar a sua roupa e a jogava no
chão com muita raiva, até ficar somente de calcinha. Ao terminar, cobriu seu corpo com as
mãos, comecei a bater palma dizendo que tinha sido de uma expressão linda a sua dança e ela
percebendo que não havia repreensão na minha atitude começou a se vestir dizendo estar bem.
Perguntei se queria conversar e ela disse que estava se sentindo leve apesar de envergonhada,
que não sabia explicar, mas a sensação era que tudo que sentia pelo ex-marido tinha saído ali
18 Todas as falas de R. descritas neste trabalho foram feitas em conversas comigo durante as atividades do
Coletivo Ser ou Não Ser.
63
naquele momento e que, agora, não se sentia mais presa a ele. Volto ao texto de Nise da
Silveira (1996, p. 84), quando fala:
Certamente todas as atividades são expressivas desde que saiba observar como são
executadas (seja a maneira de empurrar um serrote ou até o bater de um martelo).
Mas se denominam especialmente atividades expressivas àquelas que permitem a
espontânea expressão das emoções, que dão mais larga oportunidade para os afetos
tomarem forma e se manifestarem, seja na linguagem dos movimentos, dos sons, das
formas e cores etc.). É através dessas atividades que se pode conseguir maior
penetração no mundo íntimo do psicótico. (...). Essas atividades permitem a
expressão de vivências muitas vezes não verbalizáveis, fora do alcance das
elaborações da razão e do pensamento.
A autora destaca as atividades expressivas manuais, mas, a partir da descrição anterior,
podemos, por analogia, perceber que o teatro pode funcionar muito bem também como
atividade expressiva para acessar e elaborar o mundo íntimo do ator. Até aqui, destaquei duas
situações vivida em ensaios que ajudam a demostrar a constituição de um corpo biográfico,
assim como se deu comigo, e isso é possível porque o trabalho é realizado a partir da
subjetividade e memória do ator, trazendo seus aspectos emocionais para dentro da cena.
Agora, irei detalhar aspectos das características do personagem na relação de
alteridade em que é possível destacar traço da atriz. R., que escolhe o filme Cisne Negro, em
que a trama conta a história de Nina, bailarina de uma Cia. de sucesso em Nova York,
perfeccionista e obsessiva, que quer muito o papel de destaque na apresentação do grupo. ao
ponto de perder o senso de realidade. Tem com a mãe uma relação castradora e controladora,
que a mesma aceita de forma masoquista, querendo provar para mãe que conseguiu ser
escolhida para o papel de destaque. As características opostas dos cines, sendo que o preto
representa as pulsões, os desejos, e o branco, o discurso da mãe que almeja a ver a filha como
primeira bailarina da Cia, é possível ver semelhanças na história pessoal de R., que, ao
mesmo tempo que reconhecia todo desvelo de sua mãe, percebia a sua imposição e castração.
Assim, podemos, novamente, recorrer aos conceitos de libido de Freud (2010) e dizer que o
teatro correspondia, na relação de R., ao Id, e sua mãe, ao super ego. À época, estava
começando a se relacionar com um usuário também do Caps, e isso se tornou um grande
conflito para a atriz, que via nessa figura masculina o objeto que te tiraria do julgo da mãe,
mas, como sofreu forte advertência dos pais, teve uma recaída e entrou em processo de
depressão, se ausentando do grupo.
Um mês e meio se passaram quando R. voltou dizendo que estava melhor e queria
retomar as suas atividades, mas que, agora, queria ter outro pré-texto: a bailarina do filme
Dirty Dance (1987), com Patrick Schweizer e Frances Houseman. A trama da vez trazia a
64
personagem Baby, que vai com os pais para uma colônia de férias e se envolve com o
professor de dança, se apaixonando por ele, mas sendo advertida pelo pai, que não queria que
a filha se envolvesse homem que ele considerava irresponsável. Baby enfrenta a família e
assume sua relação ao final do filme. Vemos aí, novamente, a persona escolhida trazendo
aspectos do mundo íntimo da atriz, que estava decidida, agora, a manter um relacionamento
mesmo que o pais não consentissem, e sua movimentação nos ensaios e improvisos estavam
mais leves e expressivos – algumas vezes, ele ia ao final do ensaio buscá-la e os dois desciam
juntos para o Caps, Era visível o seu envolvimento e benefícios positivos que essa relação
estava lhe trazendo, como autoestima, leveza e reconhecimento de sua energia feminina .
Quando perguntei a R. sobre o motivo de sua mudança de personagem, ela disse que estava
querendo realizar um dança mais livre e que o balé era uma dança muito dura. Essa
interpretação que aqui faço era perceptível e clara para mim, mas não queria induzi-la a nada.
Tempos depois, R. saiu novamente, dizendo que os pais não estavam felizes com sua
permanência no teatro e que avó materna iria morar em sua casa devido a uma doença e que
precisava ajudar a mãe. No final do ano passado, perto do natal, encontrei com R. no ônibus e
disse que estava voltando da casa do namorado. Quando perguntei para ela sobre os pais me
respondeu que precisava viver a sua vida, e que sentia saudade do teatro e sua prática tinha
devolvido o seu sentimento de ser mulher. R. e seu “Patrick Schweizer” estão em planos de se
casarem.
Aqui, é possível perceber os benefícios do trabalho do ator sobre si para trazer do
inconsciente para a cena situações bem similares da realidade, sendo que, muitas vezes, o ator
não tem a mínima noção de estar fazendo essa transferência. Silveira (1996, p. 80) diz que “a
criatividade é esse catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu
intermédio, sensações, emoções, pensamentos, são levados a reconhecerem-se entre si,
associarem-se, e mesmo tumultos internos adquirem forma”. Percebe-se que, assim como se
deu comigo, é possível realizar essa relação de alteridade com o personagem e destacar
aquelas características, que, aqui no estudo de caso de R., estão presentes em conflitos
pessoais a serem resolvidos e que, muitas vezes, não são verbalizados pelo sentimento de
recalque, encontrando abertura e fluidez na prática do improviso.
Stanislávski também menciona que “os impulsos criadores do talento devem ser
instintivos e inconscientes. Essa espontaneidade do talento faz sua criação se tornar
verdadeira e ingênua” (LABAKI; VÁSSINA, 2016, p. 132). Estabelecendo um diálogo entre
Silveira e Stanislávski, quero dizer que as atrizes do coletivo, no exercício da sua criatividade
pelo uso da memória emocional, foram levadas a improvisos que também trouxeram, do
65
inconsciente para a cena, nuances da personalidade, assim como descrevi na vivência do ator
realizada no Teatro do Dragão. O nossos trabalhos não foram condicionados a uma conduta
terapêutica e, sim, de criação teatral, e acredito ser ela que permite uma criação verdadeira e
ingênua porque tanto a realidade ficcional, como o personagem, promovem um campo de
criação confortável para esse acontecimento.
Aqui, vou, ainda, fazer uma analogia com os estudos de Danis Bois (2008), que,
através da dimensão do sensível, elaborou o conceito movimento interno, observado por meio
do toque do terapeuta no tecido tissular do paciente, “uma auto regulação orgânica, fisiológica
do corpo, como também da regulação psíquica da pessoa” (BOIS, 2008, p. 42). Bois queria
criar um mecanismo em que fosse possível ir mais fundo para atingir a dimensão psicológica
do paciente. Assim, encontro analogia nos seus estudos porque busco, na prática teatral, além
do espetáculo e da construção do personagem, uma abordagem através do sensível,
representando a capacidade de absorver as vivências e a relação com o movimento interno, a
recepção destes conteúdos para um autoconhecimento. Bois reforça que:
Pelo fato de remeter à noção de sentido, o termo sensível faz também
referência à noção de significação. Isto representou uma de nossas grandes
surpresas ao nos dar conta de que os conteúdos de vivências em ligação com
o movimento interno não eram apenas percepções do corpo, mas também
portadores de sentido para o próprio sujeito, portadores de um novo tipo de
conhecimento. (AUSTRY; BOIS, 2008, p. 03)
Todas as interpretações aqui presentes e diálogos propositivos foram criados para dar
viabilidade e legitimidade a esta pesquisa, mas, ainda assim, são, de certo modo, insuficientes
enquanto método para sua ampliação e aplicação direta. Entretanto, posso afirmar, por meio
do resgate das atividades teatrais realizadas no Teatro do Dragão, em ressonância e relação
com as atividades do coletivo, que são pistas inicias para dizer que o trabalho de vivência do
ator, tendo como ferramenta a memória através da realização de improvisos – onde o jogo
estabelecido em cena se dá através da sua subjetividade e sua integridade cognitiva, está
presente e é bom que esteja –, o aproximando de uma experiência empírica em que fica
estabelecido a constituição de um corpo biográfico ou um mecanismo de biografização, em
que a pessoa assume seu estatuto de sujeito e a vivência toma seu lugar qualitativo. Assim,
Consideramos que a natureza humana possui os recursos perceptivo-
cognitivos necessários para penetrar profundamente o instante do presente
em consciência. E é graças a uma relação da consciência e do sentir com sua
experiência que a pessoa se descobre a si mesma como sujeito (AUSTRY;
BOIS, 2008, p. 03).
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Ao incorporar esta noção de vivência no trabalho de criação do ator, permite com ele
“certo conteúdo de vivência subjetivo, e por sua vez fonte de um conhecimento particular”
(AUSTRY; BOIS, 2008, p. 03). Mas, a relação de alteridade entre ator e personagem é de
extrema importância para estabelecer um senso crítico das questões e características da minha
personalidade percebidas, levantadas e interpretadas. No caso das atrizes do coletivo há
necessidade do papel da mediação teatral para pontuar estas características. E digo mais, o
personagem se torna um grande facilitador para vivenciar outras maneiras de ser, ou seja,
praticar ações diferentes do meu eu social, me permitindo uma vivência extra cotidiana que
me aproxima, cada vez mais, de mim mesma.
3.2.2 Caso 2: A “Louca” e o Brio
Trarei, como contraponto, a inserção e saída de uma atriz dentro do coletivo em que os
aspectos do trabalho foram considerados negativos para o seu processo terapêutico. C. tem
esquizofrenia paranoide19 desenvolvida após ter ficado em coma no hospital João XVIII, em
Belo Horizonte, por tentativa de autoextermínio – diagnóstico feito pela perícia, mas não
admitido pela família. O seu desejo em participar do grupo sempre foi muito forte, mesmo
sabendo que teríamos dificuldades relacionadas a concentração devido aos episódios
delirantes20, e um enrijecimento corporal, além do excesso de peso, reflexos do uso de vários
medicamentos psicotrópicos associados. Um dos delírios de C. era que estava grávida de
Jesus porque não tinha relacionado com nenhum homem sendo a interseção feita pelo espírito
santo. O que reforçava sua crença era o aumento de sua barriga e a produção de leite. C. faz
uso de lítio e um de seus reflexos é o aumento da prolactina, hormônio que produz leite nas
glândulas mamárias. Após o episódio de seu acidente, a família começou a tratá-la com
recompensas e uma delas era através da comida, o que também fazia que seu peso estivesse
acima do recomendado. C. escolheu como pré-texto a cantora Sandy. Antes do acidente, fazia
parte de uma banda de axé juntamente com um irmão e dizem que tinha uma voz muito
19 “Caracteriza-se igualmente pela maior facilidade desses pacientes em constituir uma elaboração delirante:
costumam procurar e apresentar explicações, mesmo bizarras e fragmentárias, para as vozes, os pensamentos
impostos, as vivências delirantes primárias, etc. Esses pacientes, sobretudo quando recebem os cuidados
adequados, têm maior facilidade de recuperar-se entre uma crise e outra, assim como de preservar sua
personalidade e vida social” (SOUZA, 2006, p. 124). 20 São característicos das psicoses e caracterizados como primários. As vivÊncias delirantes primárias, prossegue
Jaspers, são de difícil caracterização, “por implicar num modo de vivência completamente estanho para nós”. Eis
como as define: consistem na imposição de novas significações, não partilháveis como outras pessoas. (SOUZA,
2006, p. 114).
67
bonita. Por causa do ocorrido, foi submetida a uma traqueotomia21, o que deixou sua voz
embargada, letárgica e sem brilho. O seu desejo de ser cantora é muito forte na sua
personalidade.
A partir de agora, destacarei, na integra, dois diários de bordo escritos por mim
referentes a participação de C. o coletivo.
1) Descrição do relato de Ensaio do coletivo do dia 16 de abril de 2015
21 Intervenção cirúrgica que consiste na abertura de um orifício na traqueia e na colocação de uma cânula para a
passagem de ar.
Após alongamento e aquecimento propus trabalharmos com improvisação, venho testando deixá-las
mais livres para compor seus personagens a partir do desejo, e observar se dão conta desta iniciativa, hoje
farei comandos se assim achar necessário. Quero testar se conseguem dar asas ao personagem, mesmo que
ainda, em pequenos gestos, falas e jogos. Coloquei cada participante em um lugar distinto do salão. Falei
que após a partitura corporal realizada para a concentração, e se sentindo prontas começassem a buscar o
corpo do personagem e suas características buscando novas nuances. Se achassem desejo de se relacionarem
poderia fazê-lo, mas não era obrigatório. As ações da A. foram muito bacanas, simulou uma trouxa de roupa
na cabeça, lavou diversas peças de roupa, falou algumas frases sobre a exploração do trabalho.
D. estava com muita dificuldade de concentração, então comecei a estimulá-la com perguntas sobre
o personagem o chamando pelo seu nome, coisas simples “Como estava?” “Como estava a vida no circo?”
Aí conseguiu melhorar a concentração, engrossou a voz, dizendo que era um palhaço triste. Quando a
questiono o porquê de ser um palhaço triste, sempre responde que “ele é assim como ela”.
R. ficou o tempo todo executando passos de dança. Hoje estava mais infantilizada, me pareceu.
Perguntei como via a sua personagem e respondeu: “forte, decidida e bonita”. Perguntei: “E o que é isso que
está fazendo hoje?” Começou a rir. Disse que sua postura me mostrava o contrário. E questionei se era
mesmo essa postura que gostaria de dar a sua personagem. Porque em último ensaio estava com postura
mais séria e enérgica. “Quer ir por esse caminho? Ela pode ser assim, como está me demonstrando: infantil,
insegura, não tem problema”. Ela disse que não era isso. Aí levantou o peito e começou a dizer como sua
vida era linda, como era feliz, com a mesma voz infantil de antes.
T. pegou uma cadeira, e se sentou, ficou um tempo de olhos fechados, depois ainda sentada fazia
movimentos de benzedeira. Outras vezes, simulava tocar um violão, falava bem baixinho, coisas que eu não
entendia. Ficou o tempo todo nessa construção mais introspectiva.
E. dançou e fazia pequenas apresentações se reverenciando dizendo ser a Cleópatra, cantou
novamente a música O amor e o Poder da cantora Rosana, venho notando que está andando em círculos e
sempre vai para o mesmo lugar.
68
Fonte: Diário de bordo
2) Relato do ensaio do coletivo do dia 28 de maio de 2015
Hoje propus uma discussão e avaliação do andamento do processo, a discussão dos mitos
(narrativas pessoais), e como está o repertório das características físicas e psicológicas dos personagens.
Foi destacando o trabalho das atrizes a partir das características realizada até então pelos
personagens, e abri a discussão para o coletivo, assim todos poderiam opinar e contribuir para o mesmo na
criação do outro.
Ao fim, a atriz teria a liberdade de agregar no seu repertoria uma sugestão dada no que achou de
mais interessante, deixando as demais características do fruto do seu desejo para sua criação.
Foi bem proveitoso, tentei elaborar com eles as características escolhidas de forma a auxiliar na
construção ressaltando as dificuldades. Peguei exemplos bem simples, usando o recurso da teledramaturgia,
dos programas de TV para facilitar, e que fazem parte do repertório de acesso das mesmas. (...)
C. é que tem mais dificuldade de concentração, o tempo todo entra no seu processo íntimo,
introspectivo, fica falando com os olhos fixos em algum ponto, de vez em quando ri. Pediu para se sentar,
mas prometeu que iria continuar trabalhando mesmo sentada. Vem se sentindo muito cansada e acho que é
devido a seu sobrepeso. Ficou sentando por um tempo olhando para suas companheiras.
Aproveitei para dizer que caso perdessem a concentração, não forçar a continuidade do trabalho,
pararia o trabalho e caso quisessem retomar, partiria novamente da partitura corporal, para se concentrarem
e entrarem no universo do personagem.
Aproximei de C. e resolvi fazer uma provocação, a chamei pelo nome de sua personagem: “Sandy,
as pessoas estão te esperando estão aqui para assisti-la, você não gostaria de cantar?” Levantou foi até o
palco que tem no salão de ensaio e começou a cantar a música A Lenda da cantora Sandy. Aos poucos as
participantes começaram a se aproximar e assistir sua apresentação, e conforme a apresentação foi sendo
realizada começaram a vaiá-la. Então a C. começou a rir dizendo seu jargão: “Ai que engraçado!” Senti o
seu constrangimento e então parei o ensaio e perguntei: “Essa vaia foi direcionada a atriz ou a personagem
dela?”. Confesso que fiquei com medo da resposta e isso causar um constrangimento ainda maior. E antes de
dar tempo de elas responderem intervi dizendo que toda crítica deveria ser feita de forma construtiva para a
construção do personagem, que ainda se encontra inacabado e em construção. A. disse que era para a
personagem e T. disse: “É para essa Sandy aí ó!” As outras ficaram caladas. Perguntei a C. se estava tudo
bem: E consentiu com a cabeça e repetiu seu jargão. Fiz novamente uma intervenção lembrando nosso trato
de convivência que toda a ação realizada dentro do grupo e que causa constrangimento aos participantes
serão resolvidas no momento da ação, ou na discussão pós-ensaio. Senti que o clima ficou tenso, coloquei
uma música e pedi que dançássemos para extravasar. Relatei o episódio à sua referência técnica no Caps
que, no caso de C., é uma profissional com formação em terapia ocupacional. Ficamos de observar qualquer
mudança de atitude.
69
(...) Conversamos mais uma vez sobre a escolha do gênero comédia para o espetáculo que foi
unânime. Explicando como são as características de construção para esse tipo de espetáculo. E que nem tudo
precisa ser risível. Falei da comédia como recurso de trazer situações trágicas a possibilidade de torná-la
mais leves ao ponto de as pessoas rirem. Rir da própria desgraça brinquei.
O objetivo é criar um roteiro não fixo, mas que sirva de referência para acessar e construir o
personagem, mediante a dificuldade que venho percebendo da fixar a memórias das ações realizadas
anteriormente. E que o mesmo vá agregando novas características à medida da necessidade e desejo do ator,
e do coletivo.
Nossa última discussão se deu na personagem da C. que tem como pré-texto a personagem da
(cantora) Sandy. Em discussão novamente ela levantou a afirmação de sua voz ser igual à da cantora. E
quando perguntei se achava mesmo que sua voz era igual? Ao dizer que sim, eu disse que não achava, e isso
não tinha a menor importância para a personagem que estava construindo que a Sandy era somente um ponto
de partida, que seu desejo de cantar era mais importante. Mas se ofendeu e disse se eu não queria que
participasse mais do grupo era só ter dito. Uma atriz neste momento tentou apaziguar, mas C. se levantou
dizendo que tinha sido vaiada, e que não esqueceria isso nem após a sua morte. Questionei o porquê de não
ter falado que isso a estava machucando. Respondeu: “Coitada de mim. Levantou com raiva – e hoje vi sua
raiva, e não estou fazendo ironia disso”* – dizendo que não queria mais fazer parte do grupo e foi embora.
Fiquei muito triste, mas achei autêntica sua atitude, apesar do risco de simplismo, isto não me
pareceu um surto, ou uma atitude fruto do seu transtorno, a reação foi de uma pessoa que teve seu orgulho
ferido. Que se sentiu menosprezada e ferida naquilo que ela considera muito importante. Assim como eu
também me sentiria, na mesma situação, ou qualquer ator considerado “normal”. Não sei se perdeu o
referencial da sua voz depois do acidente, por uma não escuta da mesma ou por não querer admitir que não
tenha a mesma voz. Fato é que não posso, dentro de uma construção a partir da si, fazer uma construção
baseada em ilusões, a minha intenção não era constrangê-la, mas dar a ela a oportunidade de cantar de novo
mesmo que não fosse dentro do padrão de afinação, ritmo e brilho anterior, mas que fosse verdadeiro e
afetuoso. Sei que sua construção merece cuidados pelas limitações físicas fruto não somente do acidente,
mas da dosagem alta de suas medicações. Qual o limiar de “loucura” e normalidade? Vejo como doentes,
nos reflexos dos efeitos colaterais das medicações. Mas na sala de ensaio, são como atores “normais”. As
questões, os medos, posso dizer, até a vaidade são muito semelhantes. Como será a elaboração agora desse
orgulho ferido? Terei que conversar com a S., sua referência técnica e terapeuta Ocupacional. “O que posso
fazer para contribuir nessa questão”? “Como deverá o grupo se posicionar perante ela”? As aconselhei a
pedirem desculpas, já que esta se magoou seria o justo, mas sem reforçar o fato que sua voz se pareceria com
a da Sandy. Veio aqui à intuição e vou sugerir a S. aulas de canto individuais para ela no Caps.
Cabe observar que, após esse episódio, pedi o auxílio de Luciane Trevisan, diretora do Dragão que
vinha dentro da sua pesquisa realizando um aprofundamento do aparelho vocal com práticas voltadas para o
canto, e pedi que ministrasse aulas de canto para C. com objetivos de fazê-la entender a própria (nova) voz,
aceitá-la como está e uma vez na semana a Luciane Trevisan ia voluntariamente trabalhar com C. A
condução da sua terapeuta era realmente não fortalecer a sua ilusão de ter uma voz igual à da “Sandy”, mas
dar a ela uma possível melhoria no resgate da técnica do canto por que já havia participado de coral, e
estabelecer sua autoestima e retorno para o grupo. (...)
70
__________________________________________________________________________________________
* Esse comentário se refere a um exercício que dei a elas para trabalharmos a emoções, dispondo-as em roda
pedi que mandassem bola umas para a outras, fiz variações de ritmos, depois pedi que junto com a bola fosse
introduzido uma qualidade, quando estabeleci no jogo uma qualidade ofensiva, a única atriz que não reagiu ao
estímulo da emoção raiva foi C. dizendo que não sentia raiva em hipótese alguma.
** A Eletroconvulsoterapia (ECT) é uma técnica de estimulação cerebral não invasiva, em que dois eletrodos são
colocados em regiões específicas da cabeça do paciente liberando uma energia elétrica que visa induzir uma
crise convulsiva controlada no paciente. É indicada em situações clínicas nas quais o risco à vida é iminente,
como em quadros depressivos graves com situações clínicas especiais. Referência no estado de Minas Gerais e
no país, o serviço de ECT do Hospital Espírita André Luiz (HEAL) oferece o que há de mais moderno em
relação à técnica, à aparelhagem e ao cuidado com o paciente e com os familiares. O procedimento é realizado
por uma equipe de médicos psiquiatras, anestesiologistas e de enfermagem altamente capacitada. Disponível em:
<http://heal.org.br/services/ect/>. Acesso em: 27 de janeiro de 2018.
__________________________________________________________________________________________
Fonte: Diário de bordo
A partir desta descrição, fica estabelecido que o trabalho do ator sobre si pode acessar
questões sobre as quais ele pode não estar preparado para aceitar e que acabam por não
contribuir para uma elaboração positiva de reconhecimento de questões presentes na sua
personalidade. E sei que o trabalho teatral com sujeitos com transtorno psíquico é um
universo imenso a ser explorado com muita ética e cuidado. Mas ainda quero ampliar as
investigações desta pesquisa no futuro, em novos estudos que me permitam sistematizar e
observar a prática teatral com sujeitos com transtorno psíquico, realizando o trabalho do ator
sobre si tendo como ferramenta a memória e o desejo como um mecanismo positivo de um
melhor entendimento da “loucura” e “superação”.
Como David Cooper (1978, p. 104) nos diz:
O poder é tornar possível uma práxis que exprime um desejo. Que mal há no desejo,
contra todas as desvantagens, de permanecer intacto. Em todo o sistema repressivo,
no entanto, todo o poder é perversão, mas a potência é sempre revolucionária.
Cooper (1978) vai dizer da vulnerabilidade em que se encontram os sujeitos com
transtorno psíquicos inseridos em uma sociedade opressora e repressora, com a lobotomia em
alta em 1976, onde a não compreensão do sujeito levava o médico a diagnosticá-lo. Todas
essas interferências se deram pelo controle do capitalismo, pelo qual “vivemos
milagrosamente num universo fenomenológico em que os logos se escapa a todo o momento
dos fenômenos da experiência” (COOPER, 1978, p. 103). Percebe-se que, mesmo que já
(...) Poucas semanas depois do início das aulas, essas tiveram que ser interrompidas porque C. vinha
aguardando uma vaga no Hospital André Luiz, em Belo Horizonte, para realização de
eletroconvulsoterapia** porque já estava fazendo uso de das dosagens máximas dos medicamentos
psicotrópicos causando prejuízos na sua saúde. Após o seu retorno não quis mais participar do teatro e nem
das aulas de canto. Respeitamos o seu desejo, mas fiquei com esse pesar.
71
tenhamos avançado muito, há quase quarenta anos, a antipsiquiatria já via a necessidade de
um chamamento em que experiência quebrasse paradigmas.
O sujeito com transtornos psíquicos está inserido em uma trama de maior
vulnerabilidade e existem outros aspectos na manutenção do grupo muito mais prejudiciais
que o enfretamento de se aproximar de si. Quando começamos, eram sete atores, dentre eles,
um do sexo masculino, que deixou de participar porque o ensaio começava às 9h da manhã e,
para comparecer, teria que se deslocar de ônibus, já que se viesse com a Van disponibilizada
pelo CAPS, chegaria com uma hora de atraso. Uma das questões que levaram a tirar os
ensaios do CAPS no que tange a autonomia era que eles perdessem a relação de dependência
com o transporte, todos tinham gratuidade no transporte público e tinham condições de se
deslocarem sozinhos, mas este paciente, no caso, não quis abrir mão da sua comodidade.
Outra saiu por que foi cuidar da irmã com câncer; uma foi atropelada e, por isso, associado a
outras questões pessoais, desenvolveu processos depressivos cada vez mais frequentes; R.
pela interferência dos pais; D. foi presa ao ser pega levando drogas para o filho na cadeia.
Hoje, duas atrizes mantêm o desejo vivo da criação de grupo teatral e, assim, seguimos nesta
realização.
3.3 A experiência da arte da vivência em um busca de si mesmo
Apesar das dificuldades, dos preconceitos, estigmas, e deficiências da minha
abordagem teórica ao tratar da linguagem da loucura através da pratica teatral, é uma via pela
qual corremos riscos, mas os benefícios são proporcionalmente maiores e, ao trazer essas
realidades tão distintas, podemos ter noção exata e clara do terreno das minhas escolhas e de
que o trabalho com as atrizes do coletivo na exploração da sua subjetividade não tem a mesma
finalidade que teve na minha experiência.
O principal motivo é dar elas mecanismos de inserção social, de diminuição do
estigma da “loucura” e trabalhar práticas do desejo, ou seja, autoconhecimento sobre desejos e
motivações e, também, práticas do bem-estar e auto cuidado a partir destas percepções.
Alguns apontamentos foram feitos tentando fazer uma aproximação para reconhecimento e
melhor entendimento da personalidade das atrizes e, algumas vezes, isso foi feito de forma
muito produtiva, como o depoimento, que apresenta a seguir (Transcrição de Fotocópia
apresentada no ANEXO E):
72
O teatro para mim só me fez bem, coisa que fazia no CAPS não faço mais,
ainda tenho que melhorar muito. Sei que que sou agressiva, compulsiva e
outras coisas além disto, mas isto é como o tempo, a Paola conversa muito
com a gente e tudo que ela fala é verdade, ela me conhece melhor do que
muitos. O teatro me deixa à vontade é claro tudo tem que ter limite,
respeitando o próximo e o próximo me respeitando também, é maravilhoso
me soltar naquele lugar, apesar que às vezes fico com vergonha! Mas o
teatro muito o meu modo de ver as coisas, é lindo, maravilhoso! A Paola fala
que tenho que tomar os medicamentos porque não vou dar conta, me fala da
bebida. A Paola é um amor de pessoa. (Transcrição do depoimento de S., 09
de janeiro de 2018).
S. foi diagnosticada como tendo transtorno bipolar e entrou no grupo em maio de
2016. Chegou já dizendo o que ia fazer e como fazer, trouxe escrito o seu papel dizendo que
já tinha procurado saber como era o meu mecanismo de trabalho, não tinha respeito pela
minha condução e nem pelas outras atrizes, demonstrando uma necessidade muito grande de
chamar a atenção. Nos improvisos, não dava tempo dos outros falarem, sempre
interrompendo, ocupando o lugar de fala e de ação do outro. Continua tendo muitas atitudes
impulsivas, mas já consegue se relacionar – mesmo que ainda sem paciência e tolerância –
com outra atriz, dando o direito de seu tempo de fala e ação, o que, para mim, já é um grande
avanço.
Dani Bois (2008), em seus estudos, nos convida a pensarmos em formas de
conhecimento através da relação entre corpo e mundo, em experiências nas quais a vivência
tenha o aspecto fenomenológico da prática, e que essa se dê pelas aplicações do sensível, onde
o corpo seja a caixa de ressonância pela qual o sujeito da experiência recebe os reflexos do
mundo, devolvendo, de forma acessível, pela via reflexiva na relação íntima consigo mesmo e
pelas vias do corpo, e podendo nutrir representações e significações renovando os valores.
Quando iniciei as atividades com o coletivo, apesar de já identificar de forma bem
clara os benefícios do teatro para minha formação com sujeito e tentar fazer uma aplicação,
ainda que informal e parcial, desta realidade com atrizes, não vislumbrava meios de fazer uma
investigação mais aprofundada sobre isso e nem tinha intenção. Com o desenvolvimento desta
pesquisa, posso dizer que, ao fazer uma correlação da minha prática atoral com a prática das
atrizes do coletivo para legitimar a narrativa da minha experiência e levantando os aspectos
positivos e negativos da prática teatral para um mecanismo de autoconhecimento e
“superação” da “loucura” através do trabalho do ator sobre si no resgate da memória
emocional, fiquei motivada a querer ir adiante e continuar me profissionalizando para
trabalhar com o ensino do teatro para sujeitos com transtorno psíquico.
73
Mas, por agora, só posso legitimá-la através da minha própria experiência, com a
consciência de que desenvolvi um entendimento e “superação” da “loucura” através da prática
teatral, me aproximando de um mecanismo parecido com a psicanálise, que se dá por meio da
minha própria construção, em que o analisando
(...) consiga se reconstruir como ser humano, encaixar as peças que não
faziam sentido em sua vivência e compreender os meandros do seu
inconsciente, saindo do círculo de repetições na qual estava inserido. A partir
daí será capaz de tornar-se autor e ao mais coadjuvante – de sua própria
história e vivê-la segundo o que “escreveu” na sua análise (AZEVEDO,
2010, p. 51).
Através dos relatos e experiência e da citação de Azevedo (2010), digo que me
aproximo da autonomia social proposta por Foucault ao sair da condição de paciente para a de
profissional que realiza a prática teatral com sujeitos com transtornos psíquicos com o
objetivo de levá-los a inserção social. Saí do lugar de coadjuvante dos reflexos da “loucura”
para a constituição de um mecanismo de superação da mesma, e essa é e continua, sendo a
meta por trás deste estudo.
74
PARTE IV - “EU VOU FICAR, FICAR COM CERTEZA, MALUCO BELEZA...”
4 A CONSTRUÇÃO DE UMA ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA
Neste capítulo, irei discutir alguns conceitos a partir do pensamento de Michel
Foucault, principalmente aqueles que se fazem presentes em seus últimos escritos – onde
retoma a constituição do sujeito enquanto formador de si mesmo –, em seu livro A
Hermenêutica do Sujeito (2010), que são compilações de suas duas últimas obras, A história
da sexualidade (1985 e 1988), e que foi rescrito a partir de cassetes de suas últimas aulas
ministradas no Collège de France, nos anos 1980. Recorremos a esses trabalhos para
pensarmos possíveis ressignificações do sujeito “louco” através da prática de si: Epiméleia
heautoû (cuidado de si) e Gnôthi seautión (conhece-te a ti mesmo) e a Tékneu toû bíou (arte
da existência). Aqui, quero propor que, através das experiências teatrais, além da criação
estética do espetáculo, é possível alcançar uma estética da existência, ou seja, o sujeito como
artista de si mesmo que, segundo Foucault, esse retorno à ética grega o fez pensar e criticar
sobre como o sujeito constitui a sua subjetividade na contemporaneidade, fazendo emergir a
necessidade de um sujeito que busca sua própria ética de forma inventiva nas morais
estabelecidas, vivendo uma ética autônoma e criativa.
4.1 Os conceitos das práticas de si em conversa com a prática teatral através da minha
experiência
A Epimèleia heautôu é “o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de
preocupar-se consigo, etc.” (FOUCAULT, 2010, p. 06). É através do autocuidado que se dá a
conexão entre verdade e subjetividade. Através do texto de Platão em Alcebíades, Foucault
(2010) ressalta que o cuidado de si, além de ser uma atitude para consigo em uma busca da
melhoria pessoal, também traz quatro considerações: incitar os outros a se ocuparem com si
mesmo e com os outros, desempenhar nos seus concidadãos o despertar e a constituição de
uma inquietude no curso da existência.
O filósofo afirma que o cuidado de si se refere ao conjunto de ações que transformam
o sujeito para o encontro com a verdade, condição essa necessária para acessá-la, e que a
forma de pensamento que se interroga sobre a verdade é a filosofia. E continua:
75
Pois bem, se a isso chamarmos filosofia, creio que poderíamos chamar de
espiritualidade o conjunto de buscas, práticas e experiências tais como purificação,
as asceses, as renúncias, as conversões do olhar, as modificações de existência, etc.,
que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do
sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade (FOUCAULT, 2010, p. 15).
Foucault vai dizer que, mediante uma reflexão filosófica, ou seja, somente através do
conhecimento se dá o acesso a verdade. É necessário, então, possuir uma evidência como
critério, e isso ele chama de momento cartesiano. Foi neste momento que o pensamento grego
se afastou dos pensamentos de constituição do sujeito moderno, havendo uma dissociação da
prática com a teoria, ou seja, o pensamento cartesiano destituiu o cuidado de si do pensamento
filosófico moderno. Assim, se instaura o pensamento de que “não se pode conhecer a verdade
quando se é louco”. É necessário, também, “ter estudo, ter formação, inscrever em algum
consenso científico” (FOUCAULT, 2010, p. 18).
Com isso, se perde toda a importância ao “por em jogo o ser mesmo do sujeito”
(FOUCAULT, 2010, p. 16), porque, para que o sujeito se constitua como autônomo, é
necessário colocar em movimento e trabalho, o tirando do seu lugar atual, ou seja, “trabalho
de si para consigo, elaboração de si para consigo, transformação progressiva de si para
consigo em que se é o próprio responsável por um longo labor que é o da ascese”
(FOUCAULT, 2010, p. 16). Posso dizer que o teatro e sua prática me trouxe uma consciência
corporal e psicológica através do trabalho do ator sobre si, não somente pela relação de
alteridade com o personagem, mas, também, promovidos pela rotina e comprimentos do
cronograma de ensaios e apresentações, práticas que me proporcionaram esse cuidado comigo
porque uma ação desencadeava em outras. Assim, continuei buscando o auxílio da psicanálise
e usos alternativos dos fitoterápicos – mesmo em meu último prontuário não ter sido
diagnosticada com o transtorno bipolar. É necessário estar bem fisicamente e
psicologicamente. Ao longo desses anos do aprendizado, o ofício de atriz me possibilitou esse
cuidado de si que se dá por um conjunto de práticas para consigo, ou seja, “refere-se a uma
forma de atividade, atividade vigilante, contínua, aplicada, regrada, etc.” (FOUCAULT, 2010,
p. 77). Assim, o trabalho com o Coletivo Ser ou Não Ser se tornou uma extensão do meu
cuidado.
Retomando as práticas de si através do texto platônico de Alcebíades, Foucault fala
que o objeto do cuidado de si era a cidade onde o governante tinha como objetivo “aplicar-se
a governar, para salvar a si mesmo e a cidade - a si mesmo enquanto parte da cidade”
(FOUCAULT, 2010, p. 77). Aqui, o objetivo é o eu, mas a finalidade é a cidade. Ainda é cedo
dizer se a mesma atitude e percepção dos benefícios do teatro para um autoconhecimento se
76
dão da mesma forma nas atrizes do coletivo como se deu comigo. O que posso dizer de
imediato é que elas também tiveram a oportunidade, ainda que mínima, de ressignificarem
seus corpos sociais através da prática teatral, com a apresentação de um ensaio aberto que
teve em Julho de 2016 na FAOP – Fundação de Arte de Ouro Preto, na abertura no I
Simpósio da Rede de Atenção Psicossocial, de Ouro Preto/MG. Ainda, como já foi dito aqui,
não conseguimos estabelecer a construção de um espetáculo e sua circulação. A meta para
esse ano de 2018 é colocar essa realidade em prática e continuar a investigação de um
ressignificação do sujeito louco através da prática teatral para além da minha individualidade.
A prática ética é de extrema importância na prática do cuidado de si.
O Gnôthi Seautión (conhece-te a ti mesmo) “é a questão fundadora da questão das
relações sujeito e verdade” (FOUCAULT, 2010, p. 04) Quando foi instaurado esse conceito
no pensamento filosófico, que se deu na pessoa de Sócrates e em muitos de seus textos, como,
por exemplo, o Alcebíades, o termo conhece-te a ti mesmo se torna contrapartida do cuida-te
de ti mesmo, ou seja, um desdobramento. Porque o cuidado de si é considerado como um
primeiro despertar e se constitui como um princípio fundamental para caracterizar a atitude
filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana. Torna-se “uma atitude
para consigo, para com os outros, para com o mundo” (FOUCAULT, 2010, p. 11).
Como já falado no conceito anterior, essa questão ética das práticas de si serão sempre
preponderantes para realizá-las, além de uma formação do próprio pensamento ao converter o
olhar do interno para o externo, consequentemente, modificando a relação entre subjetividade
e verdade (FOUCAULT, 2010). Então, o gnôthi seautíon é uma reflexão de si mesmo, uma
necessidade de conhecer seus próprios valores, condutas e intenções em uma imersão em si
mesmo antes de propor o mesmo cuidado aos outros e, para isso, é necessária uma téchne, ou
seja, uma técnica, um saber, um desenvolvimento prático.
Lidar com nossa subjetividade não é tarefa fácil, então é de extrema necessidade que
eu entenda como lidar com todo tipo de situação primeiro em mim. Assim, digo que, ao longo
desses anos fazendo uma análise crítica através dos escritos do diário de bordo, levantei vários
aspectos da minha personalidade que me ajudaram a um autoconhecimento. Posso dizer que
viver uma imersão na construção do personagem em vivências muito próximas de uma vida
real – como a vivência descrita no espetáculo Myzèryaz Buzzenyzz, em que os personagens
foram imersos no dia a dia da vida ouro-pretana – foi o que me possibilitou a uma
aproximação do meu eu e, assim, destacar através das ações e falas do personagem
características da minha personalidade.
77
Claro que nem sempre a coisa é feita de uma forma fácil, tem questões nossas que
precisam de um tempo de assimilação, um tempo de amadurecimento. E para deixar mais
claro, os estudos das práticas de si feitas por Foucault dizem que, para aquisição do
autoconhecimento, é preciso uma técnica e, chegando aqui, já posso afirmar, a partir da minha
experiência relatada, que o teatro me serviu como esse mecanismo.
Vou abrir aqui uma janela para trazer à tona meu segundo trabalho realizado dentro do
Teatro do Dragão e que me auxiliou muito sobre meu processo de abuso, o Caderno Rosa de
Lori Lamby (2015). Percebo claramente que, mesmo nesse trabalho não tendo, ainda, a menor
noção de que o teatro serviria como mecanismo de trazer o inconsciente à luz e da
necessidade de constituir um mecanismo criativo para esse fim, esse trabalho foi o primeiro
impacto positivo do teatro para me ajudar a sobreviver aos meus fantasmas e traumas, mesmo
que de forma totalmente intuitiva. Aqui, vou agregar o estudo realizado por Elaine
Christovam de Azevedo22, “Teatro e Psicanálise” (2010) sobre a analogia que a autora faz
sobre o repetir no palco e no setting psicanalítico.
Apesar de ter um texto fixo, o processo de criação se baseava em exercícios em que as
minhas memórias também eram campo de investigação. Lembro que fiquei muito impactada
com a leitura, porque relata as experiências sexuais de uma menina de oito anos. Ao final do
livro, a autora Hilda Hilst23 deixa uma incógnita da cabeça do leitor: aquela história era
mesmo verídica ou era fruto de uma imaginação fértil? O reconhecimento com a história
aconteceu de imediato, e quis abarcar aquele texto com unhas e dentes. Na minha história algo
similar se dava: quando o ocorrido veio à tona, não tive coragem de confrontar a minha mãe,
nem mesmo quando ela me questionou sobre a veracidade do fato. Para aliviar a sua dor,
menti e, assim, dentro do contexto familiar, essa história foi colocada como um invenção de
criança - e para criar um mecanismo de defesa, como acontece na maioria das vezes, a partir
do sofrimentos psíquicos acreditei ser ela uma mentira de criança. Essa interpretação não se
22 É psicóloga, especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica pela Universidade Gama Filho e em Gestão de
Recursos Humanos pela PUC-RJ. É autora de diversos artigos publicados em livros e revistas especializadas.
Atualmente dedica-se ao estudo de obras audiovisuais. É apaixonada por teatro desde criança. 23 Hilda Hilst (1930-2004) foi uma ficcionista, cronista, dramaturga e poeta brasileira, considerada pela crítica
especializada como uma das maiores escritoras em língua portuguesa do século 20. Iniciou sua produção literária
em São Paulo, com o livro de poemas Presságio (1950). Em 1965, ela se muda para Campinas e inicia a
construção da Casa do Sol, para ser um porto seguro de sua criação. É na Casa do Sol que Hilda dedica-se
exclusivamente ao trabalho literário, realizando ali mais de 80% de sua obra. Em 1967, ela estreia na
dramaturgia e em 1970, na ficção, com Fluxo floema. Dona de uma linguagem inovadora e abrangente, Hilda
produziu mais de quarenta títulos, entre poesia, teatro e ficção, e escreveu por quase 50 anos, recebendo
importantes prêmios literários do Brasil. Criadora de textos em que Atemporalidade, Real e Imaginário se
fundem, e os personagens mergulham no intenso questionamento dos significados, buscando compreensão e
encontro do essencial, Hilda retrata sem cessar a frágil e surpreendente condição humana. Fonte:
https://www.hildahilst.com.br/hilda
78
deu naquela época, mas apenas hoje, comigo mais madura e consciente do que essa história
representa.
Não mencionei na época da construção desse trabalho sobre o meu episódio de abuso,
não dava conta ainda, mas as escolhas de roteiro para a criação do espetáculo pela direção de
Luciane me serviu de expurgo da minha própria história. O texto era falado de forma
verborrágica, a minha personagem dava o texto de costa para o público todo o tempo, se
divertindo com seus brinquedos. A cada nova apresentação de Lori Lamby, o meu abuso foi
sendo assimilado e aceito, porque, através do discurso da personagem, encontrava uma forma
de contar aquela história da qual não tinha coragem de revelar nem a mim mesma. E sobre
esse processo, encontro ressonância em Azevedo (2003, p. 49), que diz que “repetir é uma
maneira encontrada pelo inconsciente de alcançar o controle de uma situação que ainda não
foi psiquicamente elaborada”. A psiquiatra diz que a pulsão em Freud tem resistência à
mudança e a repetição é algo salutar enquanto não vira compulsão. Por isso, então, é que
análise é um processo longo em “jogos intermináveis de repetições” (AZEVEDO, 2003, p.
50). Bem sei que desde o momento que realizei esse empreendimento de me conhecer melhor
e estabelecer uma relação diferente com a “loucura” do que a instituída pelo saber médico,
venho, a cada nova etapa, realizando um aprofundamento para sobreviver a seus reflexos.
Chego até aqui através dos conceitos da prática de si nos estudos de Foucault (2010)
para investigar aquilo que fomentou o título da minha pesquisa. Posso dizer, então, que
realizei uma constituição de uma estética da existência por meio do trabalho do ator sobre si?
Todo o aprofundamento do autor no comportamento dos gregos foi para trazer à tona o
pensamento da era clássica que “estava em definir certa tékhneu toû bíou (uma arte de viver,
uma técnica de existência). E foi no interior dessa questão geral da téchne toû bíou que se
formulou o princípio ocupar-se consigo mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 402). Ele diz que
esse é o grande tocante do pensamento e da moral grega:
Por mais opressiva que seja a cidade, por mais importante que seja a ideia de nómos,
por mais amplamente difundia que seja a religião no pensamento grego, nunca será a
estrutura política, ou a forma de lei, ou o imperativo religioso que poderão, para um
grego ou para um romano, mas sobretudo, para um grego dizer o que se deve
concretamente fazer ao longo de toda a sua vida. E, principalmente, não poderão
dizer o que se dever fazer da própria vida (FOUCAULT, 2010, p. 402).
Então, as técnicas de si são práticas que resistem às estruturas e às relações de poder,
tornando-se campos de possibilidades para sujeitos que se inventam e reinventam, ou seja,
buscam neste desvio das relações de poder se permitir a inventar sua própria existência. O
79
sujeito ético em Foucault busca sua própria autonomia, que se liberta de suas tutelas em uma
emancipação racional e que, principalmente, se configura como uma obra de arte inacabada,
estando sempre por se transformar.
Foucault (2010) diz que é mais determinante aquilo que o sujeito faz daquilo que
fizeram com ele do que seu contrário, assim, é possível ver a constituição de uma
transformação do sujeito vir a ser. O cuidado de si é um grande empreendimento de um viver
para si como projeto existencial, desdobrando nas funções da crítica de si, luta e terapia
(FOUCAULT, 2010, p. 90-96). Enquanto crítica, ações que se consiga apontar os erros, as
más inclinações, o mau caráter. Por muitas vezes, no meu percurso pessoal e profissional,
como recurso para continuidade do desenvolvimento do autoconhecimento e ressignificação
da “loucura” e trazê-la para uma investigação cientifica, me causou arrepios e desejos de
recuar, fiz vários apontamentos antes de iniciar e durante a escrita: não quero sugestionar o
outro em uma interpretação singular que só pode ser legitimada por mim mesma. Se eu quiser
mentir aqui, quem vai provar o contrário? Não estarei usando as atrizes do coletivo como um
degrau para minha ascensão profissional no campo da docência em teatro para sujeitos com
transtorno psíquico? Não estarei transversalmente propondo conceitos teóricos em
legitimidade do meu discurso? Em que aspectos as pesquisas centradas na subjetividade se
configuram como importante para o ensino do teatro? Quais os benefícios de uma pesquisa
empírica teatral com sujeitos com transtorno psíquico? Até onde essa pesquisa não se torna
panfletária, narcisista e até preconceituosa com a própria “loucura”?
Posso dizer que um movimento por um pensamento estreitamente voltado para um
saber-poder-ética já se dava mesmo antes desta pesquisa e agora está embasado pelas
influências do pensamento de Foucault, e digo que o meu objetivo não é provar se existe uma
verdade a contrapor ou salientar, mas trazer pistas para realizar uma empreitada em que o
sujeito crie recursos que lhes é próprio para lidar com questões que o paralisam, que o
mantêm com a sensação de prisioneiro de si mesmo. Um mecanismo de se pensar o poder sem
o combate de empunhar uma espada em sua direção, mas para fazer dos seus reflexos
impulsos para criar uma arte de viver na qual cada papel seja vivido e construído na relação,
porque, quando reconheço o meu corpo, posso fazer um enfrentamento sadio com outros
corpos e instaurar outros possíveis campos ou caminhos e saberes de sobreviver.
Enquanto terapia, a busca pelo equilíbrio entre corpo e espírito. Uma permanente
terapêutica é o que o sujeito grego visava e o que sugere Foucault, pela influência do
pensamento grego, é que o sujeito da contemporaneidade realize uma prática de autocuidado,
sendo o sujeito médico de si mesmo (FOCAULT, 2010, p. 89-91). O teatro de toda a forma,
80
para além da estética da criação, provocou em mim uma estética da existência, uma
ferramenta que se aproxima, talvez, de uma pedagogia que me permitiu criar estratégias, um
modo de viver próprio através das sensações estéticas.
Existe um artigo chamado “Pedagogia Teatral como cuidado de si: problematizações
na companhia de Foucault e Stanislavski” (2007), de Gilberto Icle24, que traz possibilidade
de se pensar a pedagogia de Stanislavski, através do trabalho de imersão do ator na construção
do personagem, e dos estudos de Foucault, por meio da prática de si como um mecanismo de
autocuidado, de humanização para a educação do sujeito e desenvolvimento humano para se
tornar “sujeitos de seu corpo, de seus afetos, de suas reflexões” (ICLE, 2007, p. 02). Aqui,
então, proponho uma pedagogia a partir da minha experiência e que pode ser aplicada com
muita positividade por outros sujeitos com transtornos psíquicos.
E, por fim, a luta como preço a se pagar para se chegar à verdade, para desenvolver
sua própria téchne, para ser tornar um ser autônomo. Ao que concerne ao direito do sujeito
grego de ser ele mesmo, não se confere a imposição da cidade, do imperativo religioso, a
estrutura política dizer o que se deve “fazer ao longo da própria vida” (FOUCAULT, 2010, p.
402), mas no desenvolvimento de uma téchne (essa arte de si mesmo) que nós mesmos
praticamos. Assim, o filósofo conclui que:
Doravante, parece-me que não somente o cuidado de si atravessa, comanda, sustenta
de ponta a ponta toda a arte de viver – para saber existir não basta saber cuidar de si
– mas, é a tékneu toû bíou (a técnica de vida) que se inscreve por inteiro no quadro
doravante autonomizado em relação ao cuidado de si (FOUCAULT, 2010, p. 403).
Então, para nos tornamos autônomos, qual preço a se pagar? Porque todos esses
empreendimentos nos colocam em confronto com as verdades hegemônicas. O objetivo maior
em Alcebíades se configurava na máxima: “deve-se viver de modo que se tenha consigo a
melhor relação possível” (FOUCAULT, 2010, p. 403). Assim, posso dizer que pouco importa
comprovar cientificamente a realidade destes fatos aqui descritos – a academia vai me
desculpar à ousadia -, não estou, de forma alguma, negando a importância e os benefícios da
ciência para o processo e evolução de nossa raça, nem contradizendo o pensamento
racionalista e tecnicista tão bem aplicados e com reflexos positivos desde Descartes, isso
atestaria o meu lugar de alienação. E também não ousaria usar a frase - atestaria o meu lugar
de “louca” - porque a experiência me comprovou que a “loucura” que diz existir em cada
artista se aproxima do que Azevedo (2010, p. 41) mencionou em seu livro: “não estamos aqui
24 Professor de Pós-Graduação em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ator e diretor teatral.
81
falando de doença, mas de uma espécie de anti-doença, que permite o sujeito encontrar um
caminho sublimatório para o seu desejo de ir além”. Estou, nesse momento, percebendo
claramente como o processo da narrativa de si se aproxima das práticas de si do sujeito grego:
Procedimento de subjetivação do discurso verdadeiro é isso que encontrarem
continuamente expresso nos textos de Sêneca, quando, a respeito do saber, da
linguagem do filósofo, da leitura, da escrita, das anotações, etc., ele afirma: trata-se
de fazer suas (facere suum) as coisas que se sabe, fazer seus os discursos que se
ouve, fazer seus os discursos que se reconhece como verdadeiros ou que nos foram
transmitidos como verdadeiros pela tradição filosófica. Fazer sua a verdade, tornar-
se sujeito de enunciação do discurso verdadeiro: é isso, creio, o próprio cerne dessa
ascese filosófica. (FOUCAULT, 2010, p. 297).
Foi difícil confrontar essa postura que agora se descortina para mim. Quando notei a
repetição da palavra legitimar, percebi claramente quando Azevedo (2010), em seu estudo
sobre psicanálise e teatro, diz que a repetição nos serve como mecanismo de elaboração para
tudo aquilo que ainda não está bem resolvido em mim. Vi claramente o meu receio de
encontrar o meu próprio discurso dentro do discurso dos filósofos que aqui destaquei, vi o
receio de não ter a formação técnica suficiente para falar da “loucura”, um tema ainda cheio
de contradições, preconceitos e descobertas por vir, receio pelas minhas limitações teóricas,
mas elas em nada me tiram a constituição de minhas memórias por meio desta narrativa, no
desejo de me aproximar de uma hermenêutica do sujeito proposta por Foucault. Através da
minha livre interpretação, realizei um processo de ressignificação da “loucura” em mim, o que
me fez sobreviver aos reflexos negativos socialmente criados e chegar até aqui.
4.2 Provocações para pensarmos a ressignificação do sujeito “louco” como sujeito de si:
considerações em Michel Foucault e David Cooper
Neste item, gostaria de levantar algumas questões provocativas para pensarmos a
“loucura”. Realizar um aprofundamento sobre a mesma me faria sair muito da área de
concentração desta pesquisa, além de não ter recursos teóricos dentro desta mesma área que
me aproximem desta realização. Em seu livro História da Loucura (2013), Foucault traz
perspectivas da existência do saber médico desde a idade média até os tempos modernos,
enquanto um saber e poder dominante inaugura a “loucura” como doença mental, banindo de
convívio social todo o sujeito considerado fora dos padrões de normalidade, ou seja, os
considerados “loucos”. Já nos primeiros capítulos deste livro, conceitua a “loucura” como
parte da existência do ser e da formação da produção de sua subjetividade, e não como uma
82
criação institucionalizada, onde é resguardada, explicada, caracterizada e catalogada por meio
da criação das práticas psiquiátricas. Podemos dizer que, nesse momento, o “o louco” também
passa a ser um objeto do saber (FOUCAULT, 2013, p. 24). É sabido que o que foi
considerado como grande internação tinha como propósito segregar todo sujeito que era
considerado desarticulador da ordem e da moral vigente e aí estava imersa a figura do
“louco”. Com a criação dos manicômios na modernidade e das diversas terapêuticas
desenvolvidas para curar o indivíduo considerado alienado mental, surgem as formas
correcionais médicas que passam a ser domínio de uma verdade absoluta com objetivos de
uma genealogia de poder da disciplina (FOUCAULT, 2013).
Sobre os aspectos de pensar a “loucura” como constituinte do ser e não como doença,
cabe mencionar o seu livro “Vigiar e Punir” (1987), quando menciona que, nas relações de
poder e saber, existe uma força contrária com que objetiva criar mecanismos de resistência ao
que está estabelecida pelo corpo hegemônico, nesse caso aqui, o corpo psiquiátrico que
colocou os modos de subjetivação da “loucura” como um discurso sem validação, sem
coerência, me posicionar como um ser que buscou na “loucura” a sua linguagem, o seu
discurso e, assim, através dela, encontro nos meus modos de subjetivação, liberta-me não em
confronto com o poder, mas no desvio, na curva que me liberta a um viver pleno.
Em seu livro “O Poder Psiquiátrico” (2006), Foucault destaca o aparecimento da
crítica institucional, ou movimento da antipsiquiatria a partir dos anos 1930-1940, que surge
de um discurso psiquiátrico que não se supõe verdadeiro e evidencia a violência do poder
médico no trato com os “loucos” (FOUCAUT, 2006, p. 50). Aqui, chamo para a
argumentação o psiquiatra David Cooper (1978)25. Esse movimento se destacava por um
movimento de contracultura. Eles acreditavam que a “loucura” era uma fabricação das
relações de poder nas várias instâncias que o constitui. Encontramos, assim, como em
Foucault, uma afirmação bem próxima da “loucura” como sendo uma fabricação social. Os
estudos dos psiquiatras David Cooper e Ronald Laing26 são caracterizados por trazerem à
tona, principalmente, as relações familiares como motivadoras da criação da loucura. Em seus
livros “Psiquiatria e Antipsiquiatria” (1967) e “O eu e os outros” (1972), trazem relatos
detalhados de pacientes e seus parentes mais próximos, dizendo que é mais correto afirmar
que as relações estão adoentadas do que qualificar um indivíduo doente específico dessa
25 Um dos incentivadores e criadores do movimento antipsiquiátrico na década de 1960 juntamente com outros
grandes nomes da psiquiatria Ronald Laing e Gregory Bateson. 26 Psiquiatra britânico um dos fundadores também da antipsiquiatria, apesar de certa rejeição ao rótulo,
desenvolveu estudos em que os transtornos sofrem influências do existencialismo onde os pensamentos do
paciente deveriam ser considerados rompendo assim com a psiquiatria ortodoxa (LAING, 1972).
83
relação. Existem reflexões severas dos dois psiquiatras sobre as constituições do poder
começar. E, assim, serei provocativa, como descrevi no começo deste item, em pensarmos em
desdobramentos desta pesquisa: É possível a minha “loucura” ser um reflexo e se constituir a
partir das relações negativas familiares? Aqui, destaco novamente a história do abuso. Em seu
livro “Freud & Filosofia” (2003), Joel Birman destaca que a “loucura” não é caracterizada
por uma anomalia física, mas os sofrimentos psíquicos são reflexos e formados no nosso
inconsciente (modos de subjetivação) e, nos pensamentos de Foucault, o sujeito se forma nas
relações com outros corpos sociais. Posso dizer que os reflexos sociais vão influenciar
diretamente nos meus modos de subjetivação e como eu só me reconheço e projeto através do
outro, estabeleço a escolha desta relação: uma verdade instituída pelo o outro, ou uma verdade
que construo para a busca da autonomia?
Assim, ao buscar um desvio do pensamento hegemônico psiquiátrico, volto o meu
olhar através do pensamento da antipsiquiatria.
A linguagem da loucura é nem mais nem menos do que a compreensão da
linguagem. As nossas palavras começam a atingir o outro e é aí que reside o perigo
da loucura: quando ela diz a sua verdade. Um perigo, o único perigo da loucura, é a
desnormalização violenta das palavras triviais e das palavras da segurança.
(COOPER, 1978, p. 32).
Neste capítulo, o psiquiatra critica o poder da verdade nas mãos dos médicos da
psiquiatria tradicional e da psicanálise, mas não como sendo mecanismos de todo negativos,
mas do uso do poder que era feito onde a verdade estava contida. Também menciona que a
verdadeira alienação está na normatização do pensamento (fruto do poder capitalista). O
discurso do “louco” representava uma ameaça às normas de segurança. Ele diz que “um
excesso de segurança deveria fazer que começássemos a sentir-nos inseguros” (COOPER,
1978, p. 35) e que a linguagem da loucura se faz necessária como um movimento
revolucionário para mudanças de perspectivas sociais, principalmente, ligadas a normatização
e alienação, onde o controle “impõe limites ‘moralistas’ e, mais ou menos subtilmente, destrói
a vida na medida em que a limita” (COOPER, 1978, p. 39). Assim, também caracterizo o meu
compromisso de me colocar como porta voz destes que estão à margem, que não tem direito
de fala – pela influência de uma historicidade que coloca o “louco” como sendo um sujeito
desprovido de uma razão, lógica e sentido de verdade, como já foi dito aqui de diversas
formas pela perspectiva filosófica e psiquiátrica. Cooper (1978) diz da urgente necessidade de
se criar uma autonomia responsável. Me coloco como porta voz e não menciono a
importância de dar a eles o seu direito de voz, o que se configura como mais prudente e justo,
84
porque, infelizmente, essa realidade ainda se encontra no plano do ideal. Várias vezes em que
dei a eles direito de voz, foram calados por falas tecnicistas e racionalistas e, muitas outras
vezes, pelo fato de estar desenvolvendo essa pesquisa, fui colocada com direito de fala,
calando novamente suas vezes de forma abrupta. Mesmo eu tendo aberto a freteira para essa
vozes se constituírem no seu legitimo discurso, essa construção se constitui capenga e cheia
de preconceitos.
Posso concluir dizendo que tanto Foucault, como Cooper, sobre a “loucura”, vão dizer
da necessidade de considerarmos os nossos eus (modos de subjetivação), e que a alienação é
uma invasão em nós de uma alteridade deformada, fruto de nossas experiências pessoais com
o institucional e o macro social.
Antes de iniciar minhas atividades no teatro e através dele fazer uma imersão na minha
subjetividade, já trazia questões e dúvidas sobre o meu diagnóstico e, na busca por um melhor
entendimento sobre o transtorno bipolar, iniciei estudos informais sobre as características e
mecanismos do mesmo. Mas não foi através do pensamento e do conhecimento que entendi o
que se passava comigo, e comecei a não aceitar essa condição. O incômodo não era ter um
diagnóstico de transtorno, frequentar os consultórios psiquiátricos e psicológicos, ter um
rótulo de “louca”, mas, perder o raciocínio através do uso de medicamentos psiquiátricos e me
tornar uma dependente química. Essa era a sensação física e mental que sentia: um
embotamento em que passava dias, semanas, deitada, sem vontade de fazer nada e sem desejo
de sair daquele estado. Os médicos diziam que o remédio iria me deixar mais disposta, mais
calma, que o mundo lá fora poderia estar caindo, que eu estaria bem e que as sensações iriam
passar, bastava o meu organismo acostumar-se com os efeitos ditos colaterais e de adaptação.
Mas não passava, eu ficava semanas grogue, com o raciocínio sobre mim mesma e o que se
passava em meu entorno bem reduzidos. Foi a partir desse desconforto que comecei a
questionar a “loucura” em mim e a buscar mecanismos diferentes - dos ditos verdades
médicas - sobre o uso de medicamentos. Então, antes de uma atitude filosófica sobre a
“loucura”, foi pelo corpo que comecei a criar mecanismos de resistência à mesma. Então, na
busca de atividades alternativas para lidar com os fantasmas da minha subjetividade e na
emancipação dos mecanismos de dominação da “loucura” - no caso aqui mencionado, o uso
contínuo de medicamentos psicotrópicos, encontrei no teatro o mecanismo que possibilitaria o
extravasamento dos mesmos.
A partir do pensamento de Foucault (2006), podemos dizer que a subjetividade é
sinônimo de diferenciação. Mas, o diferente que me refiro é quando o sujeito encontra
85
caminhos não determinados pelo saber e poder hegemônicos, como, no meu caso, o corpo
psiquiátrico. E, assim, ele diz:
Mas, esse poder do médico, claro, não é o único poder que se exerce, porque, no
asilo, como em toda a parte, o poder nunca é aquilo que alguém detém, tampouco é
o que emana de alguém. O poder não pertence nem a alguém nem, aliás, a um
grupo; só há poder porque há dispersão, intermediações, redes, apoios recíprocos,
diferenças de potencial, defasagens, etc. É nesse sistema de diferenças, que será
preciso analisar, que o poder pode se pôr em funcionamento (FOUCAULT, 2006, p.
07).
Reforço que não quis e ainda não pretendo fazer um confronto da verdade médica
instituída. Existem sujeitos que ainda precisam e se comprazem desta relação, assim como
não incentivo nenhum dos usuários de Caps que já trabalharam comigo ao longo desses anos
a criarem um mecanismo de ruptura. O que quero é legitimar o meu percurso realizado por
outra via, outra rota. Se não tivesse criado intuitivamente o reconhecimento positivo e
negativo dos confrontos que meu corpo estava estabelecendo com o corpo psiquiátrico, com o
corpo farmacêutico, com o corpo da “loucura”, como o corpo do transtorno bipolar, com o
corpo familiar, com o corpo manicomial, com o corpo acadêmico, com o corpo “louco”, com
o corpo teatro e com o corpo personagem, não teria chegado até aqui e, possivelmente, estaria
completamente viciada e entorpecida pelos remédios psicotrópicos, sem me permitir buscar
novas formas de sobreviver à “loucura” e seus reflexos.
Sendo assim, por uma busca da verdade (a minha verdade), manifesto-me, hoje,
positivamente nas experiências pessoais em que a “loucura” me perpassa. E na busca de uma
possível constituição da ressignificação do meu sujeito – e, talvez, na verberação da
ressignificação de tantos outros sujeitos considerados “loucos”. Finalizo dizendo que,
pensando o conceito de corpo em Foucault (2010), posso dizer que me aproximo da
autonomia do sujeito de si proposto por ele, em que sai do lugar de paciente, de doente, para o
lugar de um profissional docente que busca a sua formação no ensino do teatro para sujeitos
com transtorno psíquicos.
Ao destacar, novamente, a história pessoal como aporte de importância dentro das suas
singularidades para o campo de pesquisa, quero retomar a tese do professor Souza (2004), que
dedica um capítulo ao tema da singularidade da narrativa dos sujeitos que se colocam como
objetos de pesquisa. Ao trazer os relatos de professoras – que é o seu objeto de pesquisa - no
seu processo inicial de formação docente, destaca que as particularidades da aprendizagem
pessoal e profissional, ao serem narradas, se tornam exercícios interpretativos e reflexivos
para entendimento do “percurso escolar, da reflexão sobre si mesmo e pontencializadora de
86
uma práxis educativa reflexiva no processo inicial e contínuo de formação” (SOUZA, 2004,
p. 130). Assim, no processo de realização desta pesquisa, fica cada vez mais evidente o meu
interesse na profissionalização docente do teatro para sujeitos com transtorno psíquico, o que
configura a necessidade de um entendimento muito claro e crítico dos estados de “loucura”,
sabendo que ele se constitui como mecanismo potente de expressão do eu. Então, se quero
mesmo efetivar uma formação do ensino do teatro para esses sujeitos, é de extrema
importância o conhecimento de uma possível linguagem da loucura.
87
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta pesquisa de mestrado, procurei responder à pergunta: É possível o trabalho do
ator ressignificar o “louco” como sujeito de si? Investigando esta questão, acabei resgatando
parte da minha história, já que recorri à pesquisa autobiográfica como recurso metodológico
para abordagem das relações entre o teatro e da “loucura” e suas aplicações como ferramenta
pedagógica de auto formação pessoal e profissional. Assim, essa ferramenta se configura com
mecanismo potente para pensarmos o caminho docente de profissionais do teatro também.
A doença mental está ligada à noção de anormalidade e, por muitas vezes e com o
recurso do eu narrativo, ficou mais evidente ao reler a minha narrativa que, mesmo depois do
meu diagnóstico ter sido considerado dentro dos padrões da normalidade, busquei formas de
me manter em construção nos mesmos padrões, criando um discurso defensivo e repetitivo de
legitimidade para não ser classificada como “louca”. Trazer a própria subjetividade abrindo
brechas para novos paradigmas do pensamento moderno que é considerado válido pelas
práticas racionais traz pistas para pensarmos em uma sociedade que, na grande maioria das
vezes, quis calar o corpo como sendo teatro das emoções. A partir do marco filosófico entre
razão e desrazão apontado por Foucault como momento cartesiano, o conceito de corpo foi
classificado pelo rebaixamento das emoções e paixões.
Assim, para relacionar estética da existência e loucura, me apropriei das minhas
memórias e dos reflexos emocionais das mesmas para não mais me envergonhar dos reflexos
da “loucura” na minha história, não me envergonhar do que fui, do que sou e do que quero
ser, mas ressignificar a “loucura” como um adjetivo positivo, ao passo que os artistas de si, ao
romperem com os padrões preestabelecidos na criação de novos modos de subjetivação, são
considerados “loucos”, marginais e anormais.
É necessário reivindicarmos uma linguagem da loucura, com já diz David Cooper,
onde ela é considerada uma rebeldia contra o familiarismo. Estamos acostumados ao cabresto
e, muitas vezes, movida pela coerência de um discurso tecnicista, porque somente por ele
existe a coerência e racionalidade, me desviei da própria criatividade, da emoção que me
permite sair do padrão, e produzi discursos que reproduzem o saber hegemônico, cujo único
propósito é nos manter presos, colocando todos os indivíduos na mesma caixa e padronizando
o pensamento e as emoções. Buscar uma construção estético-existencial para romper com esse
mecanismo não me coloca acima dos que se encontram, ainda, presos e nem me blinda de
cometer equívocos e até mesmo estabelecer pré-conceitos com relação à “loucura”. Mas,
procurar essa via me permitiu, sim, ao longo desses anos, buscar uma possível ressignificação,
88
incorporando a arte no meu ser considerado “louco” e, como na grande maioria das vezes, ele
não tem medo e nem é movido pela crítica aos padrões, me permiti a ousadia de filosofar as
relações entre teatro e “loucura”, porque a filosofia, nas palavras de Foucault, permite o
sujeito a construir uma liberdade de pensamento e de construção de si mesmo, mesmo que
isso, ao olhos sociais, se articule como “loucura”.
Neste sentido, a fim de melhor entender este processo, quis comprovar, através da
minha experiência singular, que o trabalho do ator sobre si, por meio da técnica do improviso
e pela memória emotiva, cria um corpo biográfico ao fazer emergir, do inconsciente para a
cena, meus modos de subjetivação, levando-me a um mecanismo de autoconhecimento,
quando estabeleço com o personagem uma relação de alteridade.
Então, o que antes era somente intuição e desejo de sobrevivência à “loucura”,
amadureceu na forma desta pesquisa, ampliando o meu olhar sobre o trabalho desenvolvido
com as atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser, ao perceber que venho constituindo uma formação
profissional de educação não formal no ensino do teatro para pessoas com transtorno psíquico
e que essa mesma realidade vivida por mim, ainda que em aspectos distintos, se fazem
semelhantes a uma abordagem pedagógica de auto formação pelas vias do corpo. Assim,
confirmo que, pelo recurso da pesquisa autobiográfica, empreendi um mecanismo
epistemológico pelo qual realizo um projeto de formação e auto formação nas relações entre
vida pessoal e profissional.
Espero ter instaurado um mecanismo de conhecimento ganhe campo através da
metodologia autobiográfica, em que a singularidade e subjetividade se configuram como um
ato de reflexão e invenção do eu sob aspectos educativos, ou seja, um sujeito em potencial de
auto formação. Para estudos futuros, fica aberta a possibilidade de ampliação deste escopo,
em direção à área da educação contemporânea, principalmente na docência e no ensino do
teatro, criando perspectivas metodológicas do aprendizado dentro da área e como forma de
inserção social.
O teatro se faz com o corpo e foi no exercício deste corpo que estabeleci uma
interpretação para além do espetáculo, criando, sim, uma estética da existência, e, se posso
dizer que é possível ressignificar o “louco” como sujeito de si só, posso dizer, a partir de mim
mesma, ao sair da condição de “louca” diagnosticada para pesquisadora teatral, o que
socialmente já se estabelece como uma inserção positiva. Mas, o mais importante que a
opinião alheia e o status quo, é a verdade de si mesmo, em que é necessária uma postura de
reinvenção, criando técnicas outras que as estabelecidas pela a verdade hegemônica, técnica
89
cujo o objetivo é a própria vida ou fazer da própria vida uma obra de arte, na qual a liberdade
e escolha se dá por aquele que a utiliza e a produz.
Em minha prática profissional – e, sobretudo, em meu trabalho junto ao Caps Ouro
Preto e com o Coletivo Ser ou Não ser, procurei transmitir a necessidade de autocuidado, de
modo a evidenciar a influência positiva da prática teatral como processo de autoconhecimento
e ferramenta para uma possível superação da “loucura”, mas essa realidade nunca foi
imposta. É importante frisar que trabalhar com o inconsciente é um campo minado, sendo que
nem sempre emergem imagens bonitas. Por vezes, aflora o que não gostamos de enxergar e
Jung, não por acaso, fazia referência a uma sombra, portanto, é de extrema importância o
respeito em uma conduta ética, mas, principalmente, o conhecimento da prática realizada.
Aqui, temos apenas pistas para uma aproximação entre teatro e subjetividade. Ter vivido nos
entremeios da “loucura” e viver há 10 anos ao lado de sujeito considerados “loucos” me
proporcionou perceber a violência que as pessoas fazem umas às outras e como é importante o
cuidado de si – cuidar da própria saúde mental, objetivando a criação de um ser mais sensível,
equilibrado e consciente, não somente consigo, mas, principalmente, com o outro, lugar esse
necessário para o meu reconhecimento enquanto sujeito – sem juízos de valores.
90
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93
ANEXOS
94
ANEXO A - CARTA DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM
Eu, .... RG.... e CPF.... residente à..... concedo o direito de imagem e vídeos dos processos de ensaio e
espetáculos realizados no Teatro do Dragão cobertos pela Lei federal n. 9.610, de 19 de fevereiro de
1998, que também se aplica o Código Civil (Lei federal n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002), para
Paola Cynthia Moreira Bonuti inseri-las em sua pesquisa de mestrado A constituição de um estética da
existência através do trabalho do ator com orientação da Profª. Dr.ª Luciana da Costa Dias do
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto/MG.
1. Deixo plenamente autorizado a utilizar os registros fotográficos e de vídeo no todo ou em
parte, editado ou integral.
2. Declaro ter total confiabilidade na pesquisadora e sua orientadora, disponibilizando a
participar, permitindo que seja utilizado meus registros fotográficos e de vídeo (parciais ou totais) nos
resultados da pesquisa de mestrado, por tempo indeterminado
3. Asseguro ter sido esclarecido sobre os procedimentos e desenvolvimento da pesquisa de
mestrado A criação de uma estética da existência através do trabalho do ator sobre si
Objetivos geral e específico: realizar uma investigação que comprove o que trabalho do ator sobre si
na construção do personagem, tendo como ferramenta de criação a memória emocional produz-se um
corpo biográfico. E a partir dos relatos feitos em diário de bordo do processo de criação é possível
fazer uma interpretação crítica e destacar traços desconhecidos, poucos explorados e outros pontuais
da personalidade do ator, constituindo-se assim uma relação de alteridade com o personagem levando-
o a um mecanismo de autoconhecimento. Busca-se comprovar que essa prática se assemelha com a
psicanálise, e que ao longo dos anos através da mesma, criei um mecanismo de superação do
transtorno bipolar e constituição de uma Estética da Existência.
Metodologia: Através do diálogo e correlação da prática atoral realizada no Teatro do Dragão com a
prática das atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser busca-se afirmar os benefícios do teatro para a
superação da “loucura” e de um exercício de autoconhecimento através da minha experiência pessoal.
Serão levantados três processos de criação no trabalho do Dragão e três relatos das atividades
realizadas no Coletivo para fomentar a investigação de que a experiência teatral para além do
espetáculo possibilita a criação de outros fins estéticos: a constituição de uma “Estética da Existência”
preconizada por Michel Foucault onde o sujeito desenvolve uma tékne toû bíou (uma arte de viver)
que implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que a utiliza, e através dela realiza um
aperfeiçoamento de vida ou uma autoeducação.
4. Afirmo que tenho total conhecimento sobre a pesquisa, podendo recusar participar caso não
me sinta confortável em alguma situação, retirando meu consentimento em qualquer momento.
5. Responsabilizo-me a buscar esclarecimentos sobre o desdobramento da pesquisa, tendo a
certeza de que em qualquer momento eles estarão disponíveis para aplicar eventuais dúvidas
existentes.
Ministrantes do projeto:
Paola Cynthia Moreira Bonuti
Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
E-mail: [email protected]
Luciana da Costa Dias
Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP
E-mail: [email protected]
Ouro Preto, 15 de fevereiro de 2017
95
ANEXO B - CARTA DE CESSÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO – UFOP
PROGRAMA DE PÓS - GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO
CESSÃO DE DIREITOS SOBRE USO DA IMAGEM E DEPOIMENTO ORAL E ESCRITO
1. Pelo presente documento eu
NOME CI CPF ASSINATURA
Autorizo a mestranda Paola Cynthia Moreira Bonuti e a orientadora Prof.ª. Drª. Luciana da Costa Dias a utilizar
a utilizar os registros fotográficos e de vídeos, além de depoimentos orais e escritos realizados nas atividades do
grupo teatral Coletivo Ser ou Não Ser formado por usuários do Caps 1 – Centro de Atenção Psicossocial em
Saúde Mental antes e durante a realização da pesquisa de mestrado: A construção de uma estética da existência
através do trabalho do ator.
2. Na forma preconizada pela legislação nacional e pelas convenções internacionais de que o Brasil e
signatário, o Depoente, terá, indefinidamente, o direito ao exercício pleno dos seus direitos morais sobre os
referidos registros, de sorte que terá sempre seu nome ou o pseudônimo citado por ocasião de qualquer
utilização.
3. Deixo plenamente autorizado a utilizar os registros fotográficos e de vídeo e os depoimentos orais e
escritos, no todo ou em parte, editado ou integral.
4. Declaro ter total confiabilidade na pesquisadora e sua orientadora, disponibilizando a participar,
permitindo que seja utilizado meus registros fotográficos e de vídeo (parciais ou totais) nos resultados da
pesquisa de mestrado, por tempo indeterminado
5. Asseguro ter sido esclarecido sobre os procedimentos e desenvolvimento da pesquisa de mestrado A
criação de uma estética da existência através do trabalho do ator sobre si
Objetivos geral e específico: realizar uma investigação que comprove o que trabalho do ator sobre si na
construção do personagem, tendo como ferramenta de criação a memória emocional produz-se um corpo
biográfico. E a partir dos relatos feitos em diário de bordo do processo de criação é possível fazer uma
interpretação crítica e destacar traços desconhecidos, poucos explorados e outros pontuais da personalidade do
ator, constituindo-se assim uma relação de alteridade dom o personagem levando-o a um mecanismo de
autoconhecimento. Busca-se comprovar que essa prática se assemelha com a psicanálise, e que ao longo dos
anos através da mesma criei um mecanismo de superação do transtorno bipolar e constituição de uma Estética da
Existência.
Metodologia: Através do diálogo e correlação da prática atoral realizada no Teatro do Dragão com a prática das
atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser busca-se afirmar os benefícios do teatro para a superação da “loucura” e de
um exercício de autoconhecimento através da minha experiência pessoal. Serão levantados três processos de
criação no trabalho do Dragão e três relatos das atividades realizadas no Coletivo, além da inserção de um
depoimento escrito de uma das atrizes participantes como forma de fomentar a investigação de como a
experiência teatral para além do espetáculo possibilita a criação de outros fins estéticos: a constituição de uma
“Estética da Existência” preconizada por Michel Foucault onde o sujeito desenvolve uma tékne toû bíou (uma
arte de viver) que implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que a utiliza e através dela realiza um
aperfeiçoamento de vida ou uma autoeducação.
Os encontros com o Coletivo se dão desde 2015 com um encontro semanal de 03 horas de duração onde são
realizados improvisos através da memória emocional das atrizes com objetivos de constituição de um espetáculo
teatral e inserção social, e não como mecanismo psicanalítico. Suas vozes promovem uma relação ética também
preconizada por Michel Foucault onde o sujeito se reconhece na relação e no embate com outros corpos.
A análise será pautada pela metodologia autobiográfica no método pós-positivista, onde as subjetividades
promovem o uso de metodologia experimental e a possibilidade e o desejo pelo encontro de uma verdade
96
objetiva ou o chamado uma nova hermenêutica onde o sujeito é levado a fazer uma nova história através dos
estudiosos das narrativas de si: Elizeu Clementino de Souza, Marie-Christine Josso e Danis Bois.
6. Afirmo que tenho total conhecimento sobre a pesquisa, podendo me recusar a participar caso não me
sinta confortável em alguma situação, retirando meu consentimento em qualquer momento.
7. Responsabilizo-me a buscar esclarecimentos sobre o desdobramento da pesquisa, tendo a certeza de que
em qualquer momento eles estarão disponíveis para aplicar eventuais dúvidas existentes.
Ministrantes do projeto:
Paola Cynthia Moreira Bonuti
Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
E-mail: [email protected]
Luciana da Costa Dias
Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP
E-mail: [email protected]
Ouro Preto, 15 de fevereiro de 2017.
97
ANEXO C - CARTA DE CESSÃO PARA USO DE PRONTUÁRIO MÉDICO
Ouro Preto, 15 de Fevereiro de 2018.
Eu, ..... RG.... e CPF.... residente à...... concedo o direito de inserção do prontuário médico de nº 6863 no regime
de atendimento de plantão do Caps 1 – Centro de Atenção Psicossocial em Saúde Mental de Ouro Preto/MG
com base na Lei federal n. 1.638 de 29de setembro de 1939 , e no código de ética médica da Resolução
federal n. 1931, de 24 de fevereiro de 2009 para usuária Paola Cynthia Moreira Bonuti, RG 8.345.522 e
CPF 033.877.366-57 inserir em sua pesquisa de mestrado A construção de um estética da existência através do
trabalho do ator com orientação da Profª. Dr.ª Luciana da Costa Dias do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto/MG.
6. Deixo plenamente autorizado a utilizar o registro no todo ou em parte, editado ou integral.
7. Declaro ter total confiabilidade na pesquisadora e sua orientadora, disponibilizando a participar
permitindo que sejam utilizados meus registros psiquiátricos (parciais ou totais) nos resultados da pesquisa de
mestrado, por tempo indeterminado.
8. Asseguro ter sido esclarecido sobre os procedimentos e desenvolvimento da pesquisa de mestrado A
construção de uma estética da existência através do trabalho do ator sobre si
Objetivos geral e específico: realizar uma investigação que comprove o que trabalho do ator sobre si na
construção do personagem, tendo como ferramenta de criação a memória emocional produz-se um corpo
biográfico. E a partir dos relatos feitos em diário de bordo do processo de criação é possível fazer uma
interpretação crítica e destacar traços desconhecidos, poucos explorados e outros pontuais da personalidade do
ator, constituindo-se assim uma relação de alteridade com o personagem levando-o a um mecanismo de
autoconhecimento. Busca-se comprovar que essa prática se assemelha com a psicanálise, e que ao longo dos
anos através da mesma, criei um mecanismo de superação do transtorno bipolar e constituição de uma Estética
da Existência.
Metodologia: Através do diálogo e correlação da prática atoral realizada no Teatro do Dragão com a prática das
atrizes do Coletivo Ser ou Não Ser busca-se afirmar os benefícios do teatro para a superação da “loucura” e de
um exercício de autoconhecimento através da minha experiência pessoal. Serão levantados três processos de
criação no trabalho do Dragão e três relatos das atividades realizadas no Coletivo para fomentar a investigação
de que a experiência teatral para além do espetáculo possibilita a criação de outros fins estéticos: a constituição
de uma “Estética da Existência” preconizada por Michel Foucault onde o sujeito desenvolve uma tékne toû bíou
(uma arte de viver) que implica necessariamente a liberdade e a escolha daquele que a utiliza, e através dela
realiza um aperfeiçoamento de vida ou uma autoeducação.
9. Afirmo que tenho total conhecimento sobre a pesquisa, podendo recursar-sem de participar caso não me
sinta confortável em alguma situação, retirando meu consentimento em qualquer momento.
10. Responsabilizo-me a buscar esclarecimentos sobre o desdobramento da pesquisa, tendo a certeza de que
em qualquer momento eles estarão disponíveis para aplicar eventuais dúvidas existentes.
Ministrantes do projeto:
Paola Cynthia Moreira Bonuti
Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP
Email: [email protected]
Luciana da Costa Dias
Instituição: Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP
Email: [email protected]
________________________
Nome, assinatura e carimbo
98
ANEXO D – Prontuário de Paola Moreira (autora)
99
100
ANEXO E – Depoimento escrito de atriz participante do Coletivo Ser ou Não Ser (2018)
101
ANEXO F – Cartas de cessão devidamente assinadas
102
103
104
105
106
107
108
109
110
111
112
113
114