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Jeca Tatu e a urbe maravilhosa. Campo, cidade e modernização nacional na obra de Monteiro Lobato (1900-1930) DAVIDSON DE OLIVEIRA RODRIGUES Belo Horizonte 2007 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

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Jeca Tatu e a urbe maravilhosa. Campo, cidade e modernização nacional na obra de Monteiro Lobato

(1900-1930)

DAVIDSON DE OLIVEIRA RODRIGUES

Belo Horizonte 2007

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

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DAVIDSON DE OLIVEIRA RODRIGUES

Jeca Tatu e a urbe maravilhosa. Campo, cidade e modernização nacional na obra de Monteiro Lobato

(1900-1930)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação do Departamento de História da

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da

Universidade Federal de Minas Gerais, como

requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

História.

Linha de pesquisa: História Social da Cultura

Orientadora: Profª Maria Eliza Linhares Borges

Belo Horizonte Programa de Pós-Graduação em História/UFMG -2007

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III

Agradecimentos

Embora eu não seja muito propício a agradecimentos, no final de um trabalho dessa

natureza torna-se impossível não expressar minha gratidão com aqueles que contribuíram

para a viabilização dessa tarefa.

Começo pelos agradecimentos à professora Eliza, que tem sido minha orientadora desde

o meu segundo período da graduação. Além de sua competência e profissionalismo,

registro a sua paciência com meus atrasos e com minhas providenciais desaparecidas,

sobretudo nos momentos em que os prazos se findavam.

Agradecimentos diamond para Raphael Rajão, colega de orientação e que muito me

ajudou na realização dessa dissertação. Cabe dizer que era ele quem me comunicava os

prazos de entrega dos trabalhos, das provas e do material final. Gentilmente me deu

recomendações no meu texto de qualificação, sugestões na forma de abordar as fontes e

até conselhos em minha vida pessoal! Aliás, não seria exagero dizer que esse trabalho

também é um pouco dele.

Total gratidão para com a Fabiana, que, a bem da verdade, não me ajudou em nada nessa

dissertação, aliás, muito pelo contrário... Mas foi sua companhia que me livrou do

ensandecimento, principalmente quando eu já não conseguia redigir mais uma frase. Seus

convites para os cinemas, as exposições de artes, mini-cursos e toda uma variedade de

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IV

peruagem intelectual fez de mim uma pessoa bem mais feliz, embora bem mais atrasado

quanto ao prazo derradeiro.

Agradecimentos aos integrantes do Memória Arquitetura (Alex, Jô, Pat, Vivi, Maria Edna

e Vanessa). Durante muito tempo eles foram minha FAPEMIG particular. Onde o poder

público faltou, a iniciativa privada se fez presente. Eles também me enviaram a diversos

municípios mineiros, o que me permitiu um contato direto com o mundo rural.

Agradecimentos protocolares ao CNPQ pelo ano de bolsa e aos meus colegas de pós-

graduação, não a todos, mas àqueles cuja companhia sempre foi agradável e

enriquecedora.

Também expresso minha satisfação aos professores Luis Carlos Villalta e Regina Horta

Duarte que presidiram minha banca de qualificação, com ponderações que enriqueceram

esse trabalho.

Embora não seja usual, guardo o último parágrafo para os não-agradecimentos, isto é,

uma menção àqueles que dificultaram a concretização dessa pesquisa. Bibliotecários e

funcionários da UFMG, motoristas de ônibus que dirigem a quarenta quilômetros por

hora, esse não-obrigado, indubitavelmente, é para vocês.

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V

As páginas de Monteiro Lobato que revelaram às camadas culturas do país a figura

do Jeca Tatu, apesar de sua riqueza de observações, divulgam uma imagem

verdadeira do caipira dentro de uma interpretação falsa. Nos primeiros retratos,

Lobato o vê como um piolho da terra, espécie de praga incendiária que atiçava fogo

à mata, destruindo enormes riquezas florestais para plantar seus pobres roçados. A

caricatura só ressalta a preguiça, a verminose e o desalento que o faziam responder

com um “não paga a pena” a qualquer proposta de trabalho. Descreve-o em sua

postura característica, acocorado desajeitadamente sobre os calcanhares, a puxar

fumaça do pito, atirando cusparadas para os lados. Quem assim descrevia o caipira

era o intelectual-fazendeiro da Buquira, que amargava sua própria experiência

fracassada de encaixar os caipiras em seus planos mirabolantes.

Darcy Ribeiro em O povo Brasileiro

O grandioso para êle é algo relativo à sociedade em que êle vive, e o seu

projeto, exceto alguns pequenos defeitos, é grandioso. O grande mêdo, que

êle guarda dentro de si, é que, algum dia, o seu próprio mito desabe como

um circo, e êle se veja solitário e inútil. Mas isto não acontecerá, diz êle. Êle

é um dos escolhidos e sua mãe sempre afirmava que êle seria um grande

homem.

José Agripino de Paula em Lugar Público

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Sumário

Introdução ....................................................................................................... 2

Capítulo 1: Um Jeca na Belle Époque .......................................................... 12

Belle Époque caipira ..................................................................................................... 14

As cidades mortas ......................................................................................................... 22

O neocolonial: uma integração entre campo e cidade. ................................................. 34

Utopias lobatianas: as cidades de Lobato ..................................................................... 47

Capítulo 2: Jeca Tatu, antes de tudo um forte .............................................. 52

O fazendeiro Monteiro e a descoberta do Jeca ............................................................. 57

E eis que surge o microscópio ...................................................................................... 72

A inserção de Jeca Tatu na sociedade civil................................................................... 82

Capítulo 3: Jeca Lobato, caipira e citadino................................................... 93

Itinerários pelo campo e cidade – a auto-imagem do escritor ...................................... 98

Lobato: regionalista ou modernista?........................................................................... 107

Considerações finais ................................................................................... 122

Bibliografia e Fontes................................................................................... 136

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2

Introdução

Há pouca mata nativa, porém os pastos são amplos, tão amplos e extensos que as

pequenas cercas de arame farpado, dividindo as propriedades, são quase imperceptíveis.

Além desses tapetes de gramíneas, de um verde quase desbotado, nos quais os bois e os

cavalos estão espalhados, as plantações de café e de cana-de-açúcar são os outros tons

esverdeados que marcam esse quadro. O café é de um verde escuro, suas pequenas

árvores, plantadas em faixas longitudinais, dão um aspecto geométrico ao terreno em

contraste com a imensidão da paisagem. Já o verde da cana, embora mais claro, é de uma

tonalidade viva, quase alegre; essas plantações se parecem com pequenos matagais

espalhados ao longo da planície. As construções, distribuídas ao léu, encontram-se

distantes umas das outras. São casas simples, pequenas, com telhados coloniais, portas e

janelas de madeiras; algumas, as mais antigas, talvez até sejam de pau-a-pique. Mesmo as

construções das propriedades mais abastadas apresentam uma rusticidade bem

característica: a varanda no frontal e o teto forrado são as únicas pretensões de conforto.

A avenida é longa e suas faixas são largas, porém a quantidade de arranha-céus

impede uma visão panorâmica do entorno. Os edifícios foram construídos ao longo dos

anos; os mais novos nem são os mais altos, porém são os que parecem possuir menos

concreto. Essa impressão se deve a quantidade de vidros que cobrem todas as fachadas da

estrutura, dando um aspecto espelhado aos prédios. As verticalidades mais extremas

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foram construídas décadas atrás, quando a legislação era menos rigorosa, sem determinar

os limites volumétricos. Na avenida, veículos trafegam em todas as direções e, se não

fossem os semáforos, a situação seria caótica. Os pedestres tentam disputar, sem muito

sucesso, o espaço com os automóveis. Mas a velocidade e a truculência desses últimos

expulsam os andantes de volta para as calçadas – que são espaçosas, revestidas de um

ladrilho grosseiro e com pouca arborização. Em uma dessas calçadas há um toldo de

vidro, que na verdade é a entrada da escadaria que conduz ao subterrâneo, no qual há uma

estação de trem. Lá, a cada dez minutos, aporta o longo veículo de metal movido a

eletricidade, em constante carga e descarga de apressados transeuntes.

Mesmo um leitor desatento não teria dificuldades em relacionar cada um dos

parágrafos acima a um cenário rural ou urbano. A razão para isso parece clara, os

atributos que usamos para definir campo e cidade estão bem estabelecidos em nosso

imaginário. Trata-se, na verdade, de uma dicotomia profundamente enraizada no

pensamento ocidental, que vem sendo utilizada desde a Antigüidade. Em certo sentido, a

própria história seria o processo de ruralização ou urbanização dos espaços considerados

vazios, das regiões tidas como inóspitas ou inabitadas. Com efeito, a maior parte da

população mundial mora ou nos campos ou nas cidades. Foi através dos desmatamentos,

da abertura de pastos, da plantação de lavouras e da constituição de centros para

comércio que a maior parte das sociedades ocidentais modelou o ambiente segundo

padrões vigentes de civilização.

Dada a centralidade das categorias campo e cidade no imaginário do Ocidente,

não é inesperado constatar a recorrência desse par em variadas manifestações sócio-

culturais e artísticas. Dentre essas expressões destacamos a literatura, que se constitui em

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um documento no qual as citadas representações se manifestam com freqüência. Os

textos literários consolidaram atributos específicos para descrever e caracterizar núcleos

citadinos ou áreas agrícolas. Atributos como tranqüilidade, inocência, virtudes,

proximidade com a natureza (rural) e dinamismo, inovações, comercialização, troca de

idéias (urbano) acabaram incorporados às técnicas de ambientação e narração. O texto

literário assume um discurso que pode valorizar ou depreciar o campo e a cidade.

Portanto, como nos lembraria Christopher Hill: “O que os escritores dizem, deve ser

relacionado com o contexto no qual o fazem.” 1

Desse modo, o conceito de representação assume centralidade para a

compreensão dos imaginários existentes em um contexto histórico. Tal conceito possui

variados matizes, mas, partirmos de um entendimento similar ao de Luciana Teixeira de

Andrade2. Em diálogo com autores como Luiz Costa Lima, Howard Becker e Pierre

Bourdieu, ela entende a definição de representação como um componente do real, não no

sentido de um espelhamento ou de uma correspondência literal, mas como forma de

registro que, de certa maneira, reconstrói a realidade social3.

Outro enfoque possível para o uso desse conceito seria a vinculação dessa

categoria à chamada nova história cultural. É o que propõe Sandra Jatahy Pesavento, que

entende as representações como historicamente construídas4. Assim como em Bourdieu,

esse conceito não é tido como descarnado da realidade social, pois, trata-se tanto de um

1 HILL. “Sociedade e Literatura na Inglaterra do século XVII”. Varia História, 1995, p. 104. 2 ANDRADE. A Belo Horizonte dos Modernistas. 2004. 3 Ibidem, p.117-118. 4 PESAVENTO. “Relação entre História e Literatura”. Anos 90, 1995, p. 116.

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produto como de um dos constituintes do próprio real5. De acordo com Roger Chartier,

diferentes grupos possuem distintas representações, as quais se encontram em embates

umas com as outras. Certamente há uma disputa para que uma determinada concepção do

real prevaleça. Portanto:

As lutas de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são o seus, e o seu domínio. 6

Em Roger Chartier, o conceito de representação se desdobra em outros dois, o de

apropriação e o de prática. A noção de apropriação nos levaria a pensar o hiato existente

entre o significado presente na representação dada pelo grupo que a produziu e o

significado atribuído pelo leitor/decodificador dessa mesma representação7. Percebe-se

que as “visões” do social são construídas em uma determinada época, mas também são

consumidas de acordo com cada contexto:

A problemática do “mundo como representação”, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real. [...]

Todo o trabalho que se propõe a identificar o modo como as configurações inscritas nos textos, que dão lugar a séries, construíram representações aceites ou impostas do mundo social, não pode deixar de subscrever o projeto e colocar a questão, essencial, das modalidades da sua recepção. 8

5 BOURDIEU. A economia das trocas lingüísticas, 1996, p.107-116. 6 CHARTIER. A História Cultural, 1997, p.17. 7 A definição de prática cultural estaria ligada ao efeito exercido pelas representações nas conjunturas e tessituras sociais. Isto é, seu impacto nas formas cotidianas de agir, de produzir interações sociais. Cf: CAPELATO; DUTRA. “Representação Política. O reconhecimento de um conceito na historiografia brasileira”, 2000, p. 227-267. 8 CHARTIER. Op. cit, p.23-24.

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Estes parâmetros conceituais ordenaram toda a pesquisa documental desta

dissertação. Buscou-se, como será visto mais adiante, identificar nos escritos de Monteiro

Lobato, situados entre as décadas de 1900 a 1920, imagens do campo e da cidade.

Pretendeu-se compreender o processo de construção da figura do Jeca Tatu como uma

representação do homem rural brasileiro. Em sua obra, um elemento recorrente é a

procura por propostas e estratégias que pudessem promover a modernização nacional. As

relações estabelecidas entre o urbano e o rural indicam algumas de suas propostas para o

desenvolvimento do Brasil. O que esse escritor buscava era uma sincronização entre

cidade e campo. Seus projetos não se limitavam à prescrição de um crescimento urbano-

industrial, pressupunham também a busca pela estruturação dos pólos agrícolas – os

latifúndios, as médias propriedades e os canais para o escoamento da produção.

Era um contexto de modernização econômica e social para o país, ainda que fosse

a um ritmo lento. Pois, devemos lembrar, o aspecto rural da sociedade brasileira era

preponderante. A entrada dos imigrantes, o delineamento das classes operárias e o

surgimento de novos ricos (novas elites) tornavam perceptíveis – e para alguns

observadores da época, espetacular – a diversificação social ocorrida na cidade de São

Paulo. Para os contemporâneos, havia uma expectativa pela vivência do moderno e, o que

os movimentos de vanguarda realizaram foi transportar esse sentimento para as

expressões artísticas. A importância que São Paulo adquire e consolida durante as

primeiras décadas da Primeira República traz, junto com o desejo pelo novo, a

perspectiva quanto a uma urbanização quase ilimitada e, também, a procura por uma arte

inovadora que pudesse acompanhar essas transformações.

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Esse cenário moderno acabou por demandar e criar novas expressões na literatura.

Se pensarmos, por exemplo, na questão do operariado e do imigrante, as crônicas de

Alcântara Machado ilustrariam as visões dos intelectuais quanto a esses novos agentes

sociais. Esse escritor focalizou um universo social que então se constituía, destacando a

figura do italiano e do operário – os novos trabalhadores que tentavam se adaptar ao

turbilhão urbano:

Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.

A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARASIENSE, SÃO PAULO – PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras. 9

Em dois parágrafos Alcântara Machado nos traduz parte da efervescência de São

Paulo. As costureiras nas tecelagens industriais, o novo regime de trabalho regido pelo

tempo da fábrica, as descendentes de imigrantes (Carmela e Bianca) e a nova aparência

das ruas, marcada pelo comércio e pelo tráfego de automóveis. Certamente que havia um

ineditismo nesse contexto que atraiu o interesse da intelectualidade, absorta na

observação dessa nova cidade que estava em plena formação.

Machado fez do trabalhador urbano um personagem literário. Seus escritos nos

dão acesso a possíveis compreensões que a intelectualidade formalizava sobre o “homem

da cidade” – uma figura disposta a conviver com as inovações em curso. Mas muitos dos

novos habitantes da urbe vinham do campo e, nesse sentido, a importância dos escritos de

Lobato. Mesmo almejando – e almejando mais do que muitos – a modernização, ele se

focou no personagem da roça, na família jeca, nas mocinhas provincianas, nos figurões

9 MACHADO. Brás, Bexiga e Barra Funda, 1997, p.26.

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locais, nos fazendeiros e nos – tão aviltados por Lobato – padres de paróquia. Um escritor

que busca a cidade, mas escreve sobre o campo. Lobato é um caipira na cidade grande.

Um escritor, um homem moderno, mas também um Jeca que se recusa a abolir certas

tradições campesinas. Ele defendeu a modernização/urbanização, contudo, sem perder de

vista a contribuição do campo na constituição de uma identidade cultural, referente não

só a São Paulo, mas a todo o país.

Neste trabalho a literatura foi a principal fonte, o substrato documental que foi

posto em análise. A leitura dos textos foi realizada no sentido de identificar as

representações acerca do Jeca Tatu, tendo em mente a visão do escritor sobre o Brasil em

sua dicotomia rural e urbano. Ao optar pelo texto literário buscou-se reconstituir os

imaginários acerca do progresso e da modernização nacional. Para alguns escritores do

período estudado (as três primeiras décadas do século XX) a literatura era uma prática

social comprometida com a interpretação do país. Portanto ela não se restringiu a uma

dimensão documental, foi também, um objeto de estudo privilegiado. Buscou-se delinear

seu significado nas práticas da intelectualidade, seu valor como instrumento de reflexão e

embates.

Este estudo não foi realizado a partir das Obras Completas de Monteiro Lobato.

Embora todos os textos disponíveis tenham sido consultados, houve uma ênfase nos

escritos do autor que vão dos primeiros anos do século XX até finais da década de 1920.

Por ser uma pesquisa sobre a constituição de imaginários, o marco cronológico não é

rígido, em alguns casos foi necessário recuar e, em outros, avançar na linha do tempo. A

preocupação foi inserir os livros de Lobato em um contexto cultural mais diversificado,

permeado por questões como modernização econômica, social e cultura.

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Lobato saiu do campo e foi para a cidade, mas lá, novamente, ele encontrou o

rural, isto é, a vitalidade do mundo campesino no processo de construção de uma nova

identidade brasileira. As fontes oferecem um itinerário esclarecedor: preocupado com a

territorialidade e a temporalidade, o criador de Jeca Tatu percorreu variadas ambiências

urbanas e rurais, na tentativa de concretizar vários projetos – sejam familiares,

empresariais ou públicos – e, desse modo, desenvolveu uma compreensão específica da

modernização. O passado estava no campo e o futuro na cidade, portanto o projeto

modernizador lobatiano tem uma dimensão histórica e geográfica.

Assim, a questão-chave desse trabalho foi identificar como Monteiro Lobato

utilizou a literatura para descrever e interpretar as ambiências rurais e urbanas do país.

Buscou-se problematizar sua percepção da arte como um saber engajado à vida,

direcionada para uma intervenção na realidade social. Esse eixo principal se dividiu em

três apontamentos: a busca de Lobato por um modelo de modernização que integrasse o

campo e a cidade; a constituição do personagem Jeca Tatu como uma figura afetada nesse

processo de modernização; por fim, a relevância que Lobato atribuía a Literatura, como

um exercício de mapeamento do país e da identidade dos brasileiros.

Todas essas questões apontam para a idéia de que Monteiro Lobato desenvolveu a

compreensão de que a modernização do país passaria pela integração entre o rural e o

urbano. Desse modo, Jeca Tatu seria um dos agentes a ser atingido, e beneficiado, por

essa união. Se antes, o caipira se encontrava isolado e esquecido, com a aproximação

entre campo e cidade, haveria a possibilidade de ter suas debilidades sanadas. As doenças

e a indolência seriam extirpadas na medida em que fosse internalizado os valores

modernizantes. O que se evidencia a partir dessa visão de Lobato é que a literatura teria

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um papel significativo nesse processo, ao elaborar compreensões sobre o país, ao

descrever as regiões desconhecidas e prescrever, a partir do diálogo com saberes da

engenharia e medicina social (a higiene), soluções para a superação do atraso nacional.

Esse contraponto atraso X moderno é um elemento recorrente no pensamento do escritor

e espero que a presente pesquisa tenha acrescentado mais alguns delineamentos sobre

esse viés da obra lobatiana.

No primeiro capítulo são avaliadas as representações positivas e negativas do

campo e da cidade nos textos de Monteiro Lobato. Destacou-se a preocupação do escritor

em buscar uma modernização que não descartasse a importância do ambiente agrário. A

renovação urbana deveria refletir a cultura local e não copiar modelos estrangeiros.

No segundo capítulo, o objeto focado foi a própria figura de Jeca Tatu, sua

condição de representação do caipira brasileiro. Avaliou-se, em que medida Monteiro

Lobato considerou o caboclo como vítima ou causa do atraso do país. Também foi

problematizada a própria condição de não cidadão do trabalhador do campo, assinalando

como essa denúncia apareceu em seus escritos.

No último capítulo foi avaliada a compreensão de Lobato sobre a importância da

literatura como meio para conhecer o país. Foi destacada sua concepção de que a

atividade artística deveria possuir relação com o ambiente social, sendo descartável uma

arte que não mantivesse uma relação com seu lugar de origem. Discutiu-se também como

sua compreensão da literatura, como um discurso quase didático, acabou sendo a

responsável por seus confrontos com alguns intelectuais ligados ao modernismo de São

Paulo.

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Para Monteiro Lobato, a superação do atraso brasileiro demandaria uma nova

relação entre campo e cidade – esse era seu prognóstico. E foi a partir desse eixo que os

textos foram estruturados. A literatura teria, em seu entendimento, uma vinculação direta

com a realidade social, tanto que, em variados momentos de sua trajetória, Lobato usou

seus escritos para defender posicionamentos políticos, orientações estéticas, percepções

acerca do país, do modelo de desenvolvimento adotado e das próprias identidades

nacionais. Literatura combativa, “Literatura como missão”.

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Capítulo 1: Um Jeca na Belle Époque

De tal modo o estranhamento se impunha e era difuso, que envolvia a própria identidade da cidade. Afinal, São Paulo não era uma cidade nem de negros, nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem européia, nem nativa; nem era industrial, apesar do volume crescente das fábricas, nem entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café; não era tropical, nem subtropical; não era ainda moderna, mas já não tinha mais passado. Essa cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos, tentando entendê-la como podiam, enquanto lutavam para não serem devorados.

(SEVCENKO. Orfeu extático na metrópole, 1992, p. 31)

O campo e a cidade são cenários aos quais a literatura comumente recorre para

ambientar suas narrativas. Porém, mais do que uma “cenografia”, essas duas categorias

comportam distintas cargas simbólicas, representações que expressam juízos de valor

sobre esses ambientes. Trata-se, na verdade, de um par constantemente articulado para

criar no leitor uma sensação de “territorialidade”, de que há um ambiente concreto, no

qual um enredo se desenrola.

Raymond Willians, em seu livro Campo e Cidade (1989), sustenta que tanto a

paisagem urbana quanto a rural podem receber diferentes cargas valorativas nos textos

literários. As representações sobre cidade e campo se encontram em disputa, por vezes a

idéia que prevalece é do campo como local de virtude, inocência e paz em contraposição

à cidade marcada por vícios, corrupções, balbúrdia e violência. Mas essas representações

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podem se inverter, ao valorizar a cidade como espaço de vivência cultural, inovação e

dinamicidade, em detrimento das zonas rurais que seriam consideradas como atrasadas,

tacanhas e estáticas.

Essas imagens também são recorrentes na literatura brasileira, sendo que neste

caso foi muito comum a associação entre campo & atraso e cidade & progresso. Essa

dicotomia pode ser encontrada na literatura de diversas formas, como campo X cidade,

sertão X litoral, selva X costa, etc. Em todos esses casos a intenção é diferenciar espaços,

demarcar fronteiras, produzir cartografias capazes de ordenar o pensamento e as ações. O

literato brasileiro foi, muitas vezes, um cartógrafo, preocupado em conhecer e revelar um

Brasil perdido e ignorado10.

No presente capítulo, analisaremos os contrapontos entre campo e cidade

identificados na literatura de Monteiro Lobato. A intenção é mostrarmos como este

escritor transitou entre essas duas categorias para valorizar a experiência urbana, mas

também recusar um descarte integral das tradições rurais. Há uma aparente ambigüidade

nos escritos lobatianos no que concerne às representações do universo campesino, pois,

por vezes, a roça é tida como uma ambiência marcada pelo atraso na vida social e

econômica. No entanto, em outros momentos, o universo rural é valorizado como o viés

autêntico da cultura brasileira. O objetivo desse capítulo é compreendermos essas

mudanças de posições de Lobato, inserindo-as em seu projeto de modernização para o

país, um projeto cujo um dos objetivos seria promover a integração entre o campo e a

cidade.

10 Cf.: SOUZA. A pátria geográfica. 1997. SÜSSEKIND. O Brasil não é longe daqui. 1990.

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Belle Époque caipira

Pensar a relação campo-cidade na literatura de começos do século XX, nos remete

à necessidade de avaliarmos a experiência da Belle Époque no Brasil. Esse fenômeno foi

o desdobramento da mentalidade iluminista e otimista no que se refere ao futuro do

planeta, que, a julgar pelo presente de então, seria marcado por um crescente progresso,

possibilitado pelo desenvolvimento contínuo da ciência. No caso europeu esse sentimento

era corroborado, no plano econômico, pelo avanço industrial e tecnológico e, no plano

político, pela confiança nas soluções diplomáticas para os conflitos internacionais. Desse

modo, para as classes e grupos economicamente favorecidos, havia a promessa de uma

convivência social elegante e amena, praticamente destituídas de conflitos. Nos principais

países da Europa, a Belle Époque pode ser datada de meados do século XIX, estendendo-

se até a eclosão da Primeira Guerra Mundial.

Foi dentro desse contexto que ocorreram significativas intervenções no ambiente

urbano, como as reformas arquitetônicas pelas quais passaram as principais cidades da

Europa. Algumas tendências artísticas desse período – nas suas mais diversas expressões

como literatura, pintura, arquitetura, música – estiveram em consonância com uma visão

complacente. Isto é, buscava-se embelezar o cotidiano, as fachadas das casas, o design

dos objetos utilitários, as vestimentas, em suma, o conceito de Belle Époque remetia a

uma visão de mundo onde o gozo era constante, isento de quaisquer preocupações.

Foi uma época de grande ostentação e extravagância. Na Inglaterra, a sociedade e a corte, que, é claro, sempre se contrapuseram, agora começavam a coincidir, e o próprio rei estabelecia o exemplo. Como Virgina Cowles afirma “o fato de o rei gostar dos homens da cidade, de milionários, piadas de judeu e herdeiras americanas e mulheres bonitas (não importando a sua origem) significava que as portas estavam abertas a qualquer pessoa que conseguisse excitar os caprichos do monarca [...] a sociedade eduardiana modelava-se para satisfazer as

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exigências pessoais do rei. Tudo era maior que o natural. Havia uma avalanche de bailes e jantares e festas em casas de campo. Gastava-se mais dinheiro, consumia-se mais comida, mais cavalos corriam, mais infidelidades eram cometidas, mais pássaros eram mortos, mais iates eram encomendados, ficava-se acordado até mais tarde do que jamais se fez”. 11

O trecho acima ilustra uma mentalidade então em voga, na qual há uma aparente

despreocupação quanto aos afazeres e ao trabalho diário. O constante usufruto do

aristocrata e do burguês foi concomitante ao intenso processo de enquadramento e

expulsão das classes pobres e operárias, que foram retiradas dos centros e transferidas

para regiões periféricas, como bairros fabris, subúrbios em geral e, no caso do Brasil,

também as favelas. Nessa remodelação urbana muitos foram desalojados de suas antigas

moradias, ao mesmo tempo em que eram impostos vários regulamentos disciplinadores

dos comportamentos nos locais públicos e mesmo privados. Para os mais pobres, essa

Époque não teve nada de Belle, pois o processo de exclusão ao qual foram submetidos foi

dramático.

No que concerne às relações campo e cidade, configurou-se uma nova relação de

força entre essas duas zonas. A experiência urbana passou a ser valorizada como espaço

para trocas culturais, sociais e econômicas. A cidade passou a ser representada – e isso

pode ser constatado na literatura, na pintura e na arquitetura da época – como centro da

civilização, marca maior da modernidade. O campo foi considerado, na melhor das

hipóteses, como local de repasto, distante das inovações e das complicações do ambiente

urbano. Uma visão do universo rural como tacanho, provinciano e deselegante estava

basicamente consolidada.

11 LAVER. A roupa e a moda, 2006, p. 213.

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Se tomarmos o caso inglês como exemplo, veremos que uma representação

prosaica, ambígua, e, em alguns casos, negativa do trabalhador rural12 estava disseminada

na literatura desse período. A figura do hodge, um camponês ingênuo e ignorante13, é um

dos indícios de que os escritores desse período tenderam a supervalorizar e idealizar o

urbano. Em termos do processo histórico o que se verificou foi uma constante migração

dos camponeses para a cidade, sendo que as origens desse fenômeno estavam assentadas

na má distribuição de terra e em práticas de especulação imobiliária. Definitivamente,

nesse momento a balança não estava em favor do campo e dos seus habitantes.

No Brasil, assim como na própria Europa, a Belle Époque teve suas

peculiaridades, a experiência urbana e a industrialização, ainda restritas, não condiziam

plenamente com a expectativa de um futuro citadino promissor. O país era

majoritariamente rural, a economia se estruturava em produtos agrícolas direcionados

para a exportação. As fábricas e grandes cidades eram as exceções, concentrando-se, na

maior parte das vezes, nas zonas litorâneas. Com as migrações, que já se assinalavam

com alguma nitidez, as forças dos valores e tradições do campo gradualmente iam

conquistando espaços na cidade. Para padrões europeus da época, esses ambientes

urbanos seriam considerados provincianos, sujos e mal ordenados.

Para se adequar a esse modelo estrangeiro, mais ideal do que real, algumas

cidades brasileiras passaram a remodelar seus centros urbanos. A Belle Époque no Brasil

foi tardia, seu início se deu em finais do século XIX e se estendeu, em alguns casos, até

meados do século XX. Tratou-se de uma importação que elegeu o exemplo parisiense

12 No Brasil, o conceito de trabalhador rural data de 1962, quando o estatuto do trabalhador urbano também foi estendido ao trabalhador rural. 13 WILLIANS. O campo e a cidade, 1989, p. 258.

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como sua grande inspiração. Esses processos de embelezamento e higienização fizeram

parte de uma gama maior de intervenções modernizadoras que ocorreram no país. No

caso de cidades como Rio de Janeiro (a capital federal) e São Paulo (principal força

política e econômica) eram cada vez mais necessárias melhorias na infra-estrutura, como

ampliação de ruas, construção de praças, contenção de focos de doenças epidêmicas,

ampliação da iluminação pública e privada, além de melhor distribuição de água e

escoamento sanitário.

Essa racionalização do espaço atendeu a duas motivações, uma mais funcional,

ligada à ampliação da urbanização no país que, em décadas posteriores, seria

incrementada pelo crescimento dos parques industriais. Outra mais simbólica,

relacionada aos anseios dos dirigentes e das classes médias de reconstruírem as cidades

de modo que a paisagem urbana e seus moradores, aos olhos internos e externos,

parecessem civilizados, isto é, europeizados. Também deve ser considerada a influência

da Proclamação da República, que incentivou o rompimento com símbolos coloniais e

imperiais, tais como casarões coloniais e antigos traçados de ruas e praças.

No século XIX já ocorria reformas na cidade do Rio, coordenados pelo Serviço de

Viação e Obras Públicas (1865), porém as intervenções urbanas serão acentuadas no

século seguinte. Dentre os principais marcos dessas reformas encontram-se as

transformações ocorridas na cidade do Rio de Janeiro, planejada e conduzidas pelo

engenheiro Pereira Passos, entre os anos de 1903 e 1906. Um contemporâneo dessas

reformas relata que:

Penetramos o século das luzes e ainda estamos em plena morrinha colonial. [...] E assim continuamos a ser até o advento de Rodrigues Alves, até a obra magnífica de Pereira Passos e Oswaldo Cruz, quando

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se transforma a cidade pocilga em Éden maravilhoso, [...] para onde logo afluem estrangeiros que, até então, medrosamente nos visitavam, apavorados, todos, com a febre amarela: americanos, ingleses, italianos, alemães, que aqui chegavam trazendo-nos, além de um esforço pessoal apreciável, capitais, estímulo, e o que é melhor ainda, a visão civilizadora de pátrias adiantadas e progressistas. [...]

Passos vence a rotina. [...] Entra pelas casas que se fazem, [...] sem luz, sem ar; manda rasgar janelas nos aposentos de dormir, enche a morada de luz, de ar, de vida e de saúde! Do fundo dos armazéns manda arrancar toneladas de lixo, derrubar construções arcaicas; nas lojas manda substituir os assoalhos podres, ninhos de lacraias, de centopéias e de ratos; [...] acaba com a gritaria colonial dos pregoes, termina com a imundície dos quiosques e diminui a infâmia dos cortiços. [...]

Obra formidável! Obra de titã! 14

Nesse depoimento percebemos o fascínio que a reconstrução da cidade exerceu

em algumas camadas sociais. A atuação de Pereira Passos conseguiu alterar a ambiência

do Rio de Janeiro, tendo como resultado sua elevação à condição de monumento e

referência nacional de planejamento urbano. As largas avenidas, a nova arborização e a

iluminação elétrica eram os sintomas de uma Belle Époque tropical ou, como veremos

mais adiante, caipira. Assim como no caso europeu, ocorreu uma negação das tradições e

valores populares que culminaram em um processo de segregação da população pobre

que vivia no centro e arredores mais imediatos da cidade. Esses eventos estão

profundamente vinculados à própria dimensão industrial inaugurada pela modernidade,

na qual as relações sociais perderam toda e qualquer fluidez, bem como a paisagem

urbana foi que imersa em um contínuo processo de aceleração de transformações15.

Como aponta Nicolau Sevcenko havia uma coerência entre essa mentalidade

européia e a nova ordem econômica instaurada. Com a ampliação das cidades, que cada

14 EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. 1938. APUD: NEVES; HEIZER. A ordem é o progresso, 1993, p. 21-22. 15 BERMAN. Tudo que é sólido desmancha no ar, 1986, p. 98.

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vez recebia mais contingentes do campo, novas formas de controle e ordenação do espaço

tiveram que ser colocadas em prática. Na cidade do Rio, por exemplo, em 1900 havia

quase setecentos mil habitantes, já em 1920 havia mais de um milhão e cem mil

residentes16. Outra cidade que se consolidou como núcleo urbano brasileiro foi São

Paulo, pólo de riqueza econômica do país. Como mostra Fransérgio Follis, desde o último

quartel do século XIX que várias intervenções vinham ocorrendo no cenário urbano

paulistano, em busca de uma racionalização, higienização e embelezamento do espaço17.

Belo Horizonte viria a ser outro paradigma de cidade moderna, nascida com o

século XX, surgiu como uma promessa de planejamento urbano e plena racionalização do

espaço. Ao contrário das cidades do Rio e São Paulo, essa nova urbe não teria sobre si o

peso de um passado colonial. Belo Horizonte seria a emergência do novo, a fisiognomia

urbana plenamente controlada pelos administradores e técnicos municipais. Ao menos era

essa a promessa que, gradualmente, foi sendo negada pela especulação imobiliária,

crescimento descontrolado e os “inevitáveis” processos de segregação das camadas

pobres das áreas consideradas nobres, voltadas para o usufruto das classes privilegiadas.

No entanto, ainda seriam Rio de Janeiro e São Paulo as duas cidades alçadas à

categoria de símbolos do Brasil moderno, padrões civilizatórios que deveriam ser

seguidos em todo país. Eram expressões máximas dessa Belle Époque tropical: a vida

noturna, as atividades culturais, as transações financeiras e o tráfego de automóveis e

pessoas. A fisiognomia dessa paisagem centrava-se em uma arquitetura com forte

influência européia, especialmente a francesa, marcada por amplos espaços entre as

16 SEVCENKO. Literatura como missão, 1985, p. 82. 17 FOLLIS. Modernização na Belle Époque Paulista, 2004, p. 30-31.

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construções e as ruas e pelos frontais das edificações com profusões de ornamentação,

além de um trajeto urbano com longas e planas avenidas, facilitando acesso das gentes e

das mercadorias.

Os contrapontos dessa cidade moderna seriam os campos e as áreas provincianas

que estavam distantes de atingir as realizações metropolitanas. A busca pelo urbano era

contrariada pela realidade rural e suburbana18. Muitos pensadores, visivelmente

angustiados, afirmavam que o Brasil era um grande sertão, os pólos citadinos tratar-se-

iam de meras exceções. O historiador Rodrigo Ribeiro Paziani faz menção a uma Belle

Époque caipira 19, identificada nas cidades do interior que se inspiravam nos modelos

urbanos do Rio e São Paulo. Municípios eminentemente rurais, que pretendiam seguir

planejamentos de grandes urbes. O descompasso era evidente, regiões com baixas

densidades demográficas e economicamente centradas na agricultura e pecuária, mas que

almejavam um traçado urbanístico próprio de grandes áreas comerciais ou industriais.

No interior de São Paulo, a riqueza era produzida nos campos a partir da venda do

café, mas o anseio da população era pela vivência do fenômeno urbano e do

distanciamento do mundo rural. As receitas do poder público eram aplicadas em

melhoramentos nas sedes dos municípios, tendo como inspiração a capital paulista, então

símbolo do progresso e futuro. Os próprios moradores dos municípios rurais negavam-se

a reconhecer sua condição. As elites dirigentes (administradores públicos, engenheiros,

fazendeiros) supunham que ao construírem ruas largas, para o tráfego dos veículos, e

casas arejadas estariam superando o atraso e o provincianismo.

18 AMARAL. “A imagem da cidade moderna: o cenário e seu avesso”. In: FABRIS (org). Modernidade e modernismo no Brasil, 1994, p. 89-95. 19 PAZIANI. “O Fausto caipira”. Varia História, 2003, p. 177-195.

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Para nosso olhar contemporâneo há algo de cômico nessa experiência: uns “quase

jecas de pés no chão” que, sujos de barro e com pitinhos de palha na boca, subiam nos

automóveis e, fazendo fon-fon, percorriam os reduzidos núcleos urbanos supondo

representarem a civilização. Com efeito, uma Belle Époque caipira. Mas, na verdade, o

que essa imagem nos revela, é uma ambigüidade das elites rurais. Pois suas fontes de

poder econômico e político, além do prestígio social, eram originadas em suas

propriedades agrícolas. Mas ainda assim insistiam em desqualificar o campo, buscando

uma identificação com a cidade.

O anseio pelo moderno e pelo novo ancorou-se na representação de que a cidade

equivalia ao progresso ilimitado. Essa nova sensibilidade significou considerar o campo

como o atraso, a força retrógrada do país. Os escritos de muitos intelectuais da época vão

nesse sentido. Pois:

...mais do que nunca, agora se abusaria da oposição cidade industriosa – campo indolente, como se pode verificar facilmente nas obras de Euclides da Cunha, Graça Aranha e na figura símbolo do Jeca Tatu de Monteiro Lobato. É nesse momento que se registra na consciência intelectual a idéia da comunidade brasileira em duas sociedades antagônicas e dessintonizadas, devendo uma inevitavelmente prevalecer sobre a outra, ou encontrarem um ponto de ajustamento. 20

Entretanto, é importante acrescentar: Monteiro Lobato nem sempre foi um

entusiasta do modo como algumas transformações ocorriam na cidade de São Paulo.

Embora ele valorizasse a vida urbana, sua postura específica em relação a algumas

questões mais pontuais variou significativamente. Prédios, carros e gentes sempre o

maravilharam, mas o apego excessivo às coisas de fora o deixou reticente quanto ao

20 SEVCENKO. Literatura como missão, 1985, p. 32.

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francesismo reinante. Para Lobato, existiam elementos do universo rural que não

deveriam ser perdidos, pois a modernidade não se baseava no esquecimento do campo,

mas sim na articulação do rural à uma nova relação com a vida urbana. O que veremos

são algumas de suas proposições para a conciliação desses Brasis distintos. Sua visão da

arquitetura e do urbanismo paulistano é sugestiva para analisarmos sua proposta de um

equacionamento entre campo e cidade.

As cidades mortas

Em 1900 Monteiro Lobato ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São

Francisco em São Paulo. Nesse ambiente, acadêmico e boêmio (às vezes mais o segundo

que o primeiro), o jovem rapaz de Taubaté tomou contato com outros filhos de ilustres

fazendeiros, vindos de várias partes do Brasil. Nesse período, a faculdade do Largo era

um dos principais centros formadores das elites dirigentes do país. Mas, o ainda José

Bento – que fora para essa faculdade mal grado seu, uma vez que ele pretendia seguir as

Belas Artes – estava mais preocupado com associações, grêmios e atividades literárias do

que com o curso de Ciências Jurídicas. Envolveu-se na produção de jornais, revistas e

reuniões em cafés, onde passava horas com seus companheiros discutindo como atingir o

merecido destaque nas artes, ciências e na literatura.

Lobato seguia o caminho dos jovens de sua época que eram pertencentes às

famílias paulistas tradicionais. Com a inauguração da faculdade em 1828, a presença de

estudantes contribuíam para uma maior movimentação na cidade de São Paulo. Algazarra

típica de jovens despreocupados que, nem sempre mostrando interesse no curso de

Direito, estavam bastante inclinados a produzirem poesias, discutirem literatura e

freqüentarem a boemia. Enfim, usufruir despreocupadamente uns cinco anos de vida,

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antes de voltarem às suas cidades de origem e se prepararem para substituir seus

genitores nos quadros dirigentes locais e, às vezes, até estaduais ou nacionais.

Este foi o caso de Lobato que desfrutou uma vivência intelectual em seu período

acadêmico. Contudo, em 1905, terminado o curso ele retorna para Taubaté, sua cidade

natal, sendo recebido com festejos pelo avô e seus agregados. Trocar a movimentação da

cidade pela calmaria e provincianismo interioranos teve um impacto significativo em seu

cotidiano, o jovem doutor não apreciou essa mudança. Em carta datada de 30 de

dezembro de 1904, já prevendo seu futuro naquela pequena cidade, ele desabafava a um

amigo:

Aqui no exilio a modorra é um mal ambiente que derruba até os mais fortes. Exilio, Rangel, pura verdade! Saltar da libérrima vida estudantina de S.Paulo e cair neste convencionalismo de aldeia, com trabalhos forçados... Sinto-me rodeado de conspiradores; todos tramam o meu achatamento. Tudo quanto mais prezavamos – o nosso individualismo, etc., é crime de lesa-aldeia, de que o vigario, os parentes e as mais pessoas “gradas” nos querem curar. [...] O homem aqui só fica bem “grado” quando se confunde com todos os outros e é irmão do Santissimo Sacramento. 21

Em apenas um parágrafo Lobato desqualifica a vivência do interior, das áreas

rurais. Ele classifica sua cidade como modorrenta, tacanha e sem individualidade, uma

continuidade de sociabilidades atrasadas: a família enxerida, a religiosidade excessiva, o

destaque social do vigário. Ele retorna a Taubaté, terra de origem, mas não sente

nenhuma identidade com essa cidade. A experiência em São Paulo, ao menos é o que ele

julga, o transformou em um cosmopolita. Para os acostumados com exaltados debates

sobre Hegel, o naturalismo francês e a filosofia de Nietzsche, nada poderia parecer mais

21 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 84. T.1.

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tedioso do que um povoado em que as discussões eram sobre namoricos ou politiquices

locais 22.

O recém-formado Monteiro Lobato estava mais preocupado em delimitar um

espaço próprio, distinto daquele de seu avô, um influente coronel da região. Contudo esse

rompimento com o rural não é pleno, pois em vários momentos de sua trajetória ele

recupera ou retoma sensibilidades desenvolvidas na infância, como as comidas típicas, o

cheiro da terra molhada, a lembrança dos sons da roça etc. Em entrevista radiofônica

concedida em 2 de julho 1948, dois dias antes de sua morte, o já afamado e finalizado

Monteiro Lobato reconhecia que:

Pamonha é uma das belas coisas que há no Interior e em tôda parte onde há milho há pamonha. Depois do içá, a melhor coisa do Interior é a pamonha. [...] Não sei se o público moderno, aqui na cidade, sabe o que é içá. Iça é formiga torrada. Tem um gôsto muito especial, muito característico e um cheirinho muito característico que eu não digo do que é para não escandalizar o público. 23

Esse senhor de 66 anos já não faz questão de se afirmar como um citadino, pois

ele próprio considerou seus hábitos como interioranos. Contudo, como pode ser

percebido no excerto acima, Lobato manteve as dicotomias cidade/moderno e

campo/tradição – com um entendimento próximo àquele de sua juventude. Ao que

parece, a polaridade atraso X moderno não sofreu uma significativa alteração em seu

pensamento ao longo dos anos. O urbano continuou vinculado a uma representação do

progresso, ao passo que o rural ainda era relacionado ao passado, ao imutável e, em

alguns momentos, ao atraso.

22 Ibidem, p. 50. 23 LOBATO. Conferências, Artigos e Crônicas, 1964, p. 342-343.

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Contudo, ob jovem Lobato, que se encontrava insatisfeito em Taubaté, acabou por

se mudar para Areias (SP), ao assumir a promotoria local, em 1906. Uma cidade que

parecia ser uma “sonolência” maior que sua terra natal. De certo que, para alguém recém

saído da capital, a vida em pequenos povoados, com poucos mil habitantes, se é que se

chegava ao milhar24, deveria ser tediosa. Só restava a Lobato duas atividades, ler ou

namorar as moças da roça, duas tarefas que ele se dedicou com afinco, tanto que, em

1908, ele se casou com Maria da Pureza de Castro Natividade, filha de um fazendeiro de

Taubaté.

Esse seria o momento apropriado para Lobato se integrar aos quadros das elites

oligárquicas locais. Pertencente à classe dos proprietários de terras (pois já era esperado

que ele herdasse Buquira, fazenda do avô), era uma questão de tempo para que sua vida

econômica se estabilizasse. No entanto, a sensação de residir fora dos grandes centros

culturais e econômicos era-lhe frustrante.

Nesse momento, ele ainda insiste em pensar, não como um futuro fazendeiro, mas

como empreendedor urbano, em busca de atividades econômicas rendosas e dinâmicas,

diferenciadas dos ciclos repetitivos da agricultura. Os planos que Lobato fazia para um

enriquecimento fácil e rápido nos parecem quase quixotescos e, se não são um bom

prenúncio de seu viés empresarial, ao menos revelam sua imaginação de literato. Seus

24 Segundo dados de 2003, a cidade de Areias possui pouco mais de 3.000 habitantes. A estrutura predial e arquitetônica da cidade foi, para o progressista Lobato um motivo de desalento, mas hoje, para os guardiões da memória local, é um patrimônio cultural, motivo de orgulho. O que nos levaria a pensar nas atuais relações entre campo e cidade, em um contexto de preservação às antigas paisagens urbanas e ambientais. Talvez a explicação seja encontrada na expectativa do desenvolvimento sustentável, um progresso citadino sem danificar os ambientes ecológicos e rurais. Confira: <http://www.areias.sp.gov.br/> Acesso em dezembro de 2006.

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planejamentos incluíam ações como construir colégios para rapazes das elites ou fábricas

de tortas ou geléias25.

Em sua percepção, o interior de São Paulo ainda vivia na era colonial, o que ele

chama de tempo pretérito. Várias crônicas relatam suas impressões sobre as cidades

mortas, ou seja, sobre essa noção do passado e do tempo perdido. Municípios que, no

século XIX, viveram o auge do dinamismo provocado pela expansão do café, mas que

acabaram estagnados. O que ele presencia é o próprio declínio do Vale do Paraíba26. Na

crônica Os perturbadores do silencio27, o jovem promotor fala de uma cidade cujo maior

barulho era um carrinho de mão enferrujado, produtor do estrondo que incomodava todos

os habitantes. Seu “condutor”, um mulato, tinha todo o cuidado para não atropelar

possíveis pessoas que trafegassem pela rua. Nessa descrição anedótica soa evidente sua

crítica a essa vivência, aos sons interioranos – os barulhos dos carros de bois, os do sino

da igreja e dos animais domésticos.

O que esse auto-proclamado citadino desejava era o som das urbes, o movimento

das multidões e as paisagens cosmopolitas. Assim, a vida nessas cidadezinhas é dada

como morta, sua efervescência social nula, pois até as festividades estavam ligadas às

comemorações religiosas. Os símbolos da vida moderna, como ramais ferroviários,

automóveis e sorveteiros italianos estavam ausentes. Enfim, era o atraso do interior que

se contrapunha à agitada vida da capital.

As cidades mortas são descritas por Monteiro Lobato como permanências da vida

colonial. Antigos centros de poder econômico do século XIX, devido sobretudo à

25 Cf.: LAJOLO. A Modernidade do Contra, 1985, p. 25. 26 CARONE. A República Velha, 1975, p. 29. 27 LOBATO. Cidades Mortas, 1950, p. 15-17.

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prosperidade efemeramente propiciada pelo surto cafeeiro regional. A arquitetura de

então era majestosa, caracterizada por casarões coloniais e sobrados, além de igrejas e

ruas irregulares, uma ambiência coerente com aquele momento histórico. Mas, com a

perda do solo fértil, as populações e riquezas migraram para outras paragens. Restaram-se

os “... os palacios mortos da cidade morta” 28, antigas edificações, símbolos de prestígio

social que, com a estagnação local, tornaram-se memoriais de passado fausto.

Sobre essas cidades Lobato afirma que:

Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matacoleja sequer uma carroça; de ha muito, em materia de rodas, se voltou ao rodizio desses rechinantes carros de boi. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, solidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões que lembram ossaturas de megaterios donde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiaram. 29

O próprio movimento urbano cessou, não há mais comércios ou armazéns. Dentro

de uma perspectiva que nos lembra um naturalismo de Zola, Monteiro Lobato descreve a

estagnação econômica local, para, em seguida, caracterizar seus efeitos na arquitetura e

nos moradores desses municípios. Para o escritor, até as decorações das casas refletem

essa decadência econômica.

Vivem dentro, mesquinhamente, vergonteas mortiças de familias fidalgas, de boa prosapia entroncada na bobilarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem da paina dos anos e cujo estuque, largateado de fendas, esboroa à força de goteiras, paira o bafio da morte. Ha nas paredes quadros antigos, “crayons”, figurando efigies de captães-mores de barba em colar. Ha sobre os aparadores Luiz XV brônzeos candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinavre. Mas nem se acendem as velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados – e por tudo se agruma o bolor rancido da velhice. 30

28 Ibidem, p. 4. 29 Ibidem, p. 4-5. 30 Ibidem, p. 4.

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O conto “Cidades Mortas” é síntese dessa visão de Monteiro Lobato sobre a vida

interiorana, decadência promovida pelo esgotamento do solo provocado pela produção

cafeeira. Nos textos da primeira década do século XX é identificável uma indisposição

contra essa “paisagem colonial”. A referência aos carros de bois não é gratuita, pois o que

pretendiam os apologistas do moderno era alcançar a era dos automóveis. Dois aspectos

merecem consideração, a crítica à monocultura cafeeira e a expectativa quanto a um novo

modelo de urbanização, relacionado ao novo regime republicano.

As críticas ao latifúndio e à produção cafeeira perpassavam as análises e os

escritos de parte da intelectualidade. Já em finais do século XIX, haviam grupos liberais

que associavam escravidão e latifúndio, defendendo a necessidade da pequena e média

propriedade, como condições para o desenvolvimento. Observadores da época acusavam

a economia nacional de ser estruturada quase que exclusivamente a partir do café. Lima

Barreto foi um dos que se opuseram aos modelos econômico e social vigentes em

começos do século XX. A ganância dos cafeicultores – seja na recusa de libertar os

cativos ou nos processos especulativos para manter o preço do café em alta – foi

severamente criticada por esse literato. Sendo pobre e mulato, pode vivenciar a pressão e

o descaso de um regime excludente e segregacionista, que ignorou parcelas significativas

da população trabalhadora rural e urbana31.

Monteiro Lobato também foi um crítico do regime da monocultura. No entanto, a

partir de um viés diferenciado, pois seu foco era a modernização das relações econômicas

e o desenvolvimento de uma nova infra-estrutura urbana e industrial. Lima Barreto

31 Cf.: GILENO. “Isaías Caminha, a abolição e a República”. Estudos de Sociologia, 1998, p.65-81.

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lamuriava a exclusão dos ex-escravos e lamentava a destruição da antiga arquitetura

colonial (junto com a expulsão dos pobres das áreas centrais cariocas), já Lobato, por sua

vez, preconizava a necessidade de importar mão-de-obra européia e higienizar e

revitalizar os centros urbanos. Contudo, no que concernia a agro-exportação, os dois

concordavam, era necessário diversificar a economia e superar as limitações importas

pelo sistema monocultor.

As cidades mortas de Lobato não deixaram de ser um plano alegórico da condição

do Brasil. Representavam um modo de vida onde a produção de riquezas efêmeras

favorecia a um grupo restrito. Embora o Brasil exportasse muito café, os benefícios desse

comércio só eram acessíveis aos fazendeiros e grandes comerciantes32. Durante muito

tempo de sua trajetória, Lobato considerou que um modelo alternativo seria aquele que

possibilitasse o aparecimento de novas relações de trabalho, inseridas dentro de um

mercado capitalista internacional. Com a condução dos assuntos financeiros e

econômicos do país nas mãos dos cafeicultores, o Brasil corria o risco de ter suas

riquezas dissipadas por incompetentes e egoístas aventureiros. A região que esse escritor

visitou e descreveu, foram as terras do vale do Paraíba que, embora produtivas no século

XIX, estavam completamente exauridas no século seguinte.

Conforme mencionado, paralela à proclamação da República veio uma nova

percepção urbanística e arquitetônica, negando a antiga fisiognomia colonial e se

inspirada em modelos europeus. Até os começos da década de 1910, Lobato defendeu

uma percepção de cidade significativamente influenciada pela Belle Epoque tropical. Pois

esse jovem advogado procura o progresso, identificado-o com as grandes urbes. Embora 32 Embora sabe-se que as remodelações urbanas, as estradas de ferro e a ampliação do mercado de trabalho geraram uma inclusão social e econômica que englobaram camadas mais largas da população.

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Monteiro Lobato lembrasse a efemeridade da produção cafeeira, por vezes ele acabava

enlevado por esse sentimento de inconseqüência típico do período. Sua apreciação sobre

Ribeirão Preto, foi bem diferente de sua negativa visão de Areias e Taubaté. Em carta a

Godofredo Rangel (18/01/1907), fala que:

Em Ribeirão, a colheita do municipio foi o ano passado de 4 e meio milhões de arrobas – coisa fabulosa e nunca vista. Um fazendeiro, o Schmidt, colheu, só ele, 900.000 arrobas. Costumes, habitos, ideias, tudo lá é diferente destas nossas cidades do velho S.Paulo e da tua Minas. Em Ribeirão dizem que há 8000 “mulheres da vida”, todas “estrangeiras e caras”. Ninguem “ama” as nacionais. O Moulin Rouge funciona ha 12 anos e importa champanha e francesas diretamente. 33

Nesse trecho transparece algumas das marcas do mundanismo da Belle Époque, as

meretrizes caras, as bebidas importadas e todo o luxo que poderia vir da França, diferente

do atraso dos velhos arraiais de São Paulo. Parece que, nesse momento, Monteiro Lobato

engrossava o coro dos pensantes nacionais que identificavam progresso com a

importação de sociabilidades e sensibilidades européias. Ribeirão Preto, como já foi

anteriormente assinalado, foi uma dessas cidades interioranas afetadas pelas novas

percepções urbanísticas difundidas por São Paulo e Rio. O município – que era base

política de algumas figuras destacadas da oligarquia nacional – vivia uma prosperidade

decorrente do seu auge cafeeiro, com ampla abundância de recursos. No trecho, Monteiro

Lobato se refere a Francisco Schmidt, o mais poderoso produtor de café do país, influente

coronel local.

Essas prósperas elites, profundamente auto-condescendentes, apossadas do

aparelho público, viabilizaram modificações no centro urbano da cidade. Houve

33 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 153. T.1.

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pavimentação de macadame, instalação de água, energia elétrica e esgoto além da

implantação de serviços como instituições bancárias e instalação de pequenas

indústrias34. Foi esse cenário que Monteiro Lobato presenciou, mas sem considerar a

contraparte da exclusão das populações pobres e a insuficiência do poder público em

estender esses serviços a todas as camadas sociais. Ribeirão Preto se revelou como uma

promessa de urbanização, algo bem diferenciado das cidades mortas. Mas aí reside uma

aparente contradição, pois a base econômica não continuou a mesma? Isto é, quais as

garantias teriam este município de que seu fim não seria o mesmo dos arraiais do Vale do

Paraíba? Ao que parece Lobato não se colocou essa questão, estava ocupado

contemplando o espetáculo do cosmopolitismo provinciano, um indício do quanto,

mesmo nele, o imaginário do progresso estava associado ao café e ao contato com a

Europa.

Monteiro Lobato, muitas vezes, entendeu a monocultura do café como uma

sucção das riquezas locais. Mas nesse trecho em específico o que vemos é uma

perspectiva mais positiva, já que: “Corri as linhas da Paulista, Mogiana e Sorocabana,

com paradas nas inconcebiveis cidades que da noite para o dia o Café criou...” 35. A

preocupação é somente com a fruição, Lobato não se indaga sobre os limites desse

modelo econômico, completamente baseado no café.

No entanto a referência à fugacidade da “civilização do café” não deixam de estar

presentes, já que surgiram “da noite para o dia”. Campo e cidade, no pensamento de

Monteiro Lobato, são categorias constantemente articuladas. Esse jovem Promotor –

34 Cf.: PAZIANI. “O Fausto caipira”. Varia História, 2003, p. 177- 195. 35 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 153. T.1.

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mesmo que interessado na efervescente vida citadina de São Paulo – questionava essa

urbanização assentada em exportação de produtos agrários. Não que ele minimizasse a

importância da agricultura, mas, sem dúvida, questionava o potencial econômico da

monocultura.

A temática do campo é recorrente na obra de Lobato, contudo nesses primeiros

anos, suas reflexões não são aprofundadas. O Promotor de Areias, em sua espera por

Buquira, está mais preocupado em delimitar sua identidade de citadino do que em avaliar

as imbricações entre urbano e rural. Porém desde o começo de sua trajetória intelectual, a

ânsia de superar o atraso econômico e social está bem definida. Os hábitos culturais

interioranos são motivos de joça para esse leitor de Spencer e Nietsche:

... o que acontece a este teu amigo exilado neste lugar provinciano onde a Semana Santa assume foros de Panateneia e o padre Valois é ouvido como outro Bossuet [...]

Ha uma semana que estou preso em casa porque lá fora a semana é santa. Ha procissões de pretos e brancos a atravancar as ruas. Nas igrejas, muito consumo de aguinhas e fumaças cheirosas, e litanias. Por toda parte, povo – o nosso povo, essa coisa feia, catinguda e suada. Sovacos ambulantes. [...] Os olhos cansam-se de feiuras semventes. Que urbes, estas nossas! As casas são caixões com buracos quadrados. E nem sequer os velhos beirais: inventaram agora o horror da platibanda. Não ha mulheres, ha macacas e macaquinhas. Não ha homens, ha macacões. 36

Observe como Monteiro Lobato relaciona manifestações imateriais, estruturas

arquitetônicas e habitantes de Taubaté. Essas instâncias criam uma paisagem coerente

que, aos olhos desse leitor de Zaratustra, parece provinciana e retrógrada, um exemplo da

influência das sociabilidades rurais sobre a cidade. Todo esse quadro é pitorescamente

resumido na representação de uma urbe interiorana, na qual tudo remete ao colonial. As

36 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 157. T. 1

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referências são indiretas, mas mesmo assim facilmente identificáveis: a divisão entre

escravos e senhores, a centralidade da igreja e do convívio religioso como espaço de

interação social e os antigos casebres coloniais, edificados dentro de uma concepção bem

distante dos novos modelos urbanos.

Assim como a imagem de Jeca Tatu, as cidades mortas se tornaram um elemento

presente no imaginário coletivo – mesmo que em uma repercussão menor. Um dos

elementos dessa representação é que o campo não é um grande produtor de riquezas.

Evidentemente a questão não era suprimi-lo, mas sim possibilitar uma integração ao setor

urbano e industrial. É no livro Cidades Mortas que a relação entre campo se delineia com

toda a clareza. De certo que essa análise de Lobato encontrou suporte em um processo

histórico real da decadência econômica de algumas regiões de São Paulo:

Ao mesmo tempo injusta e brilhante nos parece que é, também, a imagem de cidades mortas projetada sobre aquela porção do espaço, o Vale do Paraíba.o espaço não é um palco em que os agentes sociais se movimentam, mas é, ele mesmo, um produto social. [...]

Algumas das velhas formas erigidas durante o período cafeeiro estão presentes até hoje na paisagem de Areais, Silveira, São José do Barreiro, Bananal e de ouros pequenos municípios do Vale. Fazendas rodeadas por sacadas, senzala nos subterrâneos, terreiros para a secagem d café, moinhos para a fabricação de farinha e, nos núcleos urbanos, o comércio que supria as fazendas daquilo que não podiam fabricar, além das casas dos cafeicultores, em geral de dois andares e voltadas pra a parca, onde tem lugar de destaque a igreja matriz. Casas que, na maior parte do ano, permaneciam desabitadas, uma vez que a fazenda era também a mordia do fazendeiro. Eram ocupadas apenas por ocasião das festas religiosas... 37

É justamente essa ambiência, vivenciando as condutas do regime imperial, que é

recusada por Monteiro Lobato. Ao tecer seus comentários sobre a arquitetura, ele a

37 MELERO; OLIVIERA. “Um Diálogo com Monteiro Lobato”. Imaginário, 1998, p. 64-65.

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entende como um reflexo e produto dos grupos sociais locais. Portanto, o almejado é uma

arquitetura que seja contemporânea e expresse uma nova concepção do mundo, afinada

com as propostas modernizadoras. Porém, a contribuição do campo não pode ser negada,

elas são referências históricas e culturais, tentar abandoná-las completamente seria, para

Monteiro, sucumbir ao risco de perder a autenticidade. Os hábitos sociais e a própria

arquitetura deveriam, necessariamente, se referenciar em alguns traços da vida nas roças

e sertões, pois, afinal, o Brasil ainda era um país mais rural do que o urbano e, a despeito

da rusticidade da cultura sertaneja, ela se constituía como uma matriz cultural inalienável.

Já foi esclarecido o antagonismo de Monteiro Lobato às ambiências interioranas.

Seu interesse pelo novo e pelo moderno o conduziu a corroborar, ao menos parcialmente,

com algumas visões difundidas pela onda da Belle Époque. As renovações realizadas nos

grandes centros urbanos impressionaram o escritor. Ele reverenciou os principais

símbolos da modernidade, porém, no que se refere à arquitetura, ele não compactuou por

completo com esses novos valores. Aliás, a arquitetura é uma chave para adentrarmos em

sua percepção acerca da relação campo e cidade e das estratégias de promover um

equilíbrio entre essas partes. Portanto, passamos agora a analisar como Lobato defendeu

o estilo arquitetônico neocolonial, considerando-o como uma estratégia pedagógica para

promover uma aproximação entre campo e cidade.

O neocolonial: uma integração entre campo e cidade.

Em começos do século XX, em cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro

e Minas Gerais, prédios particulares eram edificados sob influência de estilos

europeizados como o neoclássico e o art noveau. Essas influências partiam da Europa e

chegavam às grandes urbes brasileiras e, desses novos pólos difusores, eram

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disseminadas para as cidades mais afastadas. Claro que os elementos construtivos e

ornamentais eram adaptados a cada realidade local e à competência técnica dos

construtores. Mas também é identificável que, mesmo em rincões distantes, as volutas, as

novas colunas, os frisos e (as por Lobato tão odiadas) platibandas chegaram, resultando

em novas composições arquitetônicas.

O estilo comumente denominado ecletismo, muito embora com características

próprias, foi constituído por essas diferentes matrizes estilísticas. Na capital paulista, a

heterogeneidade dos estilos das edificações era sintoma da ausência de preocupação em

promover um conjunto harmonioso de construções. No interior dessas estruturas

arquitetônicas, ocorreram novos ordenamentos dos cômodos e instalações, possibilitando

um melhor conforto e rompendo com a planta das construções coloniais38 .

O ecletismo estava, pois, em consonância com o contexto social dos finais do

século XIX e os primeiros anos do século XX. A chegada dos imigrantes trouxe novos

materiais, métodos construtivos e percepções estéticas que teriam uma influência na

arquitetura de São Paulo. Construtores advindos de outros países tendiam a reproduzir os

modelos habitacionais de suas ambiências de origem. Também foi um momento de

ascensão para os novos ricos que, ao encomendarem casas e mansões exerceram uma

influência na caracterização fisiognômica da cidade. Por fim, não podem ser esquecidos

os bairros populares (principalmente os destinados aos operários fabris), que certamente

acrescentaram novas dimensões ao cenário urbano paulistano39. Em suma, o ecletismo foi

uma proposta de modernização, uma assimilação da efervescente diversidade cultural

38 LEMOS. “El estilo que nunca existió”. In: AMARAL (cord.). Neocolonial, 1994, p. 148. 39 Sobre os bairros populares e operários confira: SEVCENKO. Orfeu Extático na Metrópole, 1992, p. 127-132.

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dinamizada em São Paulo. Tratou-se de uma arquitetura preocupada com o belo e a

praticidade, refletindo a prosperidade econômica, mas também explicitando as

diferenciadas e segregadas formas de ocupações do espaço.

Desencadeiam-se assim as séries de “derrubadas, celebrizadas pelas crônicas, tanto dos antigos edifícios públicos, quanto das velhas edificações religiosas coloniais, feitas de materiais pouco duráveis e já em lastimáveis condições, quanto ainda dos antigos casarões e taperas rústicos∗. Os últimos vestígios da arquitetura paulistas dos períodos colonial e monárquico eram demolidos às pressas, para dar lugar a uma cidade de perfil nitidamente diverso. Os resultados do novo impulso edificatório poderiam ser previstos pela característica dos homens que o implementavam. 40

Em meio a esse processo, já em 1914, Monteiro Lobato se envolve em uma nova

dinâmica intelectual que se delineava na capital paulista. A Belle Époque européia, nesse

momento, se findava, já que a sensação de descontração, a despreocupação e o gosto por

amenidades davam vez ao nacionalismo, à xenofobia e à mobilização, cada vez mais

intensa, de tropas militares. A eclosão da Primeira Guerra Mundial é o derradeiro suspiro

dessa época bela, é também o germe de uma nova era, mais militaresca e menos

diplomática.

Mesmo que no Brasil a Belle Époque tenha persistido, a deflagração dos conflitos

europeus provocou rachas na intelectualidade local, resultando numa divisão entre

francófilos e os gemanófilos. Essa nova conjuntura internacional estimulou

posicionamentos nacionalistas, ufanistas e, em certos escritores, até xenofóbicos. Já não

∗ Bruno, Histórias e tradições da cidade de São Paulo, p. 930-55. (nota do autor citado) 40 SEVCENKO. Op. cit, p. 118.

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era mais um consenso a convicção de que a reprodução do modo de vida europeu seria

um indício da modernidade41.

A Grande Guerra praticamente interrompeu o fluxo de materiais e idéias que

vinham da Europa. A própria visão dos imigrantes foi alterada, pois eles foram acusados

de descaracterizarem a cultura nacional. Antes, buscavam-se nos estrangeiros as soluções

para problemas locais, mas, nesse novo contexto, acabaram considerados como uma

ameaça potencial à soberania nacional. Após 1917, houve uma explosão de greves e

reivindicações operárias, sendo que vários imigrantes, de orientação anarquista, estavam

na liderança desses movimentos. Essa conjuntura repercutiu no pensamento das elites,

que se sentiram receosas quanto uma “perniciosa” influência que a Europa poderia

exercer no Brasil. Assim, seria patriótico – e politicamente mais conveniente – voltar os

olhos para as raízes culturais locais, incluindo aí, as inspirações na arquitetura.

Outro ponto que colocou o ecletismo em xeque foi o desapreço das elites pelas

profusões de elementos ornamentais das edificações dos novos ricos. Como buscavam

uma identidade própria, os grupos tradicionais se mostraram inclinados a aceitar

construções inspiradas em modelos construtivos tradicionais.

Portanto, contra o ecletismo, se desenvolveu uma nova tendência, francamente

conservadora, que passou a ser denominada estilo neocolonial ou tradicional. Podem ser

consideradas expressões dessa tendência as construções inspiradas em casarões, casas de

fazendas e igrejas do século XVII e XVIII. Na verdade, como apontam vários estudiosos,

o conhecimento que os defensores do neocolonial tinham sobre a arquitetura colonial era

41 KESSEL. “Vanguarda Efêmera: arquitetura neocolonial na Semana de Arte Moderna”. Estudos Históricos, 2001, p. 117.

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pouco42. Tratava-se mais de um processo de invenção do que propriamente de estudo das

antigas estruturas arquitetônicas. Devemos lembrar também que, como toda ida ao

passado, essa também foi seletiva. Privilegiaram-se os modos de habitar das elites

coloniais, enquanto as moradas dos indígenas, dos escravos e dos pobres foram

ignoradas.

Os motivos arquitetônicos tradicionais, isto é, inspirados no Brasil colonial, eram

cada vez mais valorizados em contraposição aos estrangeirismos. Disseminou-se um

interesse, entre setores da intelectualidade, de conservar e restaurar as igrejas coloniais e

as construções mais opulentas (como sobrados e casas de fazendas). Aumentava o

interesse de se preservar antigas fazendas, igrejas, casarões e sobrados, justamente o tipo

de edificação que Lobato esnobou em suas passagens pelo interior de São Paulo. A

fisiognomia das cidades mortas não era mais a lembrança do atraso. Poderiam não ser

chics, mas eram consideradas autênticas fontes inspiradoras para os arquitetos. A relação

entre presente e passado (e também campo e cidade) foi reformulada, a ligação com o

pretérito foi retomada, através da busca das tradições.

Observa-se que o neocolonial, desde os finais do século XIX, foi uma forte

tendência em toda a América portuguesa e hispânica, sendo percebida, inclusive, em

partes dos Estados Unidos em divisa com o México. No Brasil, esse estilo arquitetônico

foi divulgado pelo engenheiro português Ricardo Severo (um tradicionalista auto-

proclamado) que emprestou um conteúdo fortemente conservador a essa modalidade de

construção43. A introdução das idéias neocoloniais no Brasil pode ser localizada no ano

42 Uma importante referência sobre o neocolonial é: AMARAL (cord.). Arquitectura Neocolonial. 1994. 43 KESSEL. “Vanguarda efêmera: arquitetura neocolonial na Semana de Arte moderna”. Estudos Históricos, 2001, p. 110-128.

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de 1914, quando Severo faz sua primeira palestra em São Paulo44. Esse engenheiro nunca

negou a participação popular no processo de elaboração de uma arquitetura nacional. Mas

seu foco de análise se centrou nos expoentes das edificações civis e religiosas,

consideradas exemplares do autêntico estilo brasileiro. Também estava implícita a

superioridade do talento artístico do homem branco em comparação aos outros grupos

étnicos.

A arte que exprime essa historia evolutiva de um organismo social, e nos conserva o cunho indelevel de sua ascendencia, o caracter dominante do seu sêr moral, essa é a sua ARTE TRADICIONAL. Não se manifesta por vezes nas grandiosas produções que constituem os monumentos da sua historia – em que a influencias estrangeiras se acentuam ou predominam –; tem formas mais rudimentares de expressão e demonstra-se nas artes humildes do povo, em cujos artefactos, do mais singelo e rude factura, se vasam os mais puros elementos das obras de uma nação. 45

Essa compreensão de Ricardo Severo será similar a adotada por Monteiro Lobato

ao considerar a contribuição da cultura popular na constituição de um estilo46. Assim,

remetia-se ao passado colonial e rural do país, no qual as casas de pau-a-pique e os

pequenos casebres se constituíam em elementos marcantes da paisagem. Tratava-se de

uma estratégia para criticar as construções das cidades – as edificações do litoral –

profundamente influenciadas pelos estilos europeus. Contudo, essa adesão a uma

arquitetura mais rústica é mais aparente do que real, pois predominaram, como modelos,

os grandes símbolos de poder do período colonial, tais como a casa grande e as igrejas.

44 AMARAL. “La invención de um passado”. In: AMARAL (cord.). Neocolonial, 1994, p.12. 45 SEVERO. A arte tradicional no Brasil, 1916, p. 7. 46 Monteiro Lobato escrevia que: “… compete aos artistas provoca-la, criando o estado d’alma propicio./ E que artista é capaz disso/ O anonimo, o artista legião – só ele.” In: LOBATO. Idéias de Jeca Tatu, 1955, p. 27.

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Nestor Cancline – pensando na experiência histórica de países latino-americanos

– constata que o retorno ao passado, incentivado por elites intelectuais, teve uma relação

com a rememoração e idealização de um período pré-moderno 47. Um momento no qual

as oligarquias puderam estabelecer privilégios, com expulsão e expropriação de grupos

populares. Assim, ao se deparar com a democratização e massificação provocadas pela

modernidade, esses grupos passaram a buscar um consolo em uma história mitificada48.

Figuras importantes da vida intelectual paulista como Mario de Andrade, Wasth

Rodrigues – este patrocinado por Ricardo Severo – e o próprio Monteiro Lobato – que

em finais da década de 1910 se muda para São Paulo – acabaram por aderir os postulados

do neocolonial. Aquele Lobato que desdenhava os “palácios mortos” parecia ter mudado

de idéia e, justamente no momento em que ele retornava à cidade, invertia suas

considerações sobre a relação entre arquitetura e modelos de desenvolvimento para o

país. Todas essas alterações nas relações urbano X rural levaram os intelectuais a

refletirem acerca de qual parcela do campo comporia a identidade dos brasileiros. O

confronto entre ecletismo e neocolonial é o correlato da arquitetura para os embates entre

uma visão cosmopolita – profundamente influenciada pela Europa – e outra regionalista.

Trata-se da clássica bipolaridade no pensamento intelectual brasileiro, o campo versus o

sertão49.

47 CANCLINE. Culturas Híbridas. 2000. (Sobretudo capítulo 4). 48 Contudo o neocolonial não pode ser reduzido a uma “ideologia” dos conservadores. Houve mesmo um momento no qual ele foi associado ao Modernismo de 1922. Essa expressão arquitetônica se encontra inserida dentro de um contexto social e cultural mais amplo, no qual se buscava a todo custo encontrar uma identidade coletiva para os brasileiros. 49 Cf.: SOUZA. A pátria geográfica. 1997.

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Contudo, ainda que ele tenha se colocado ao lado de Ricardo Severo50, tendo

publicado artigos defendendo explicitamente seu programa estético, Lobato não pode ser

considerado um conservador da linha dessas elites tradicionais. Sua intenção não era uma

pura busca das origens e tampouco uma defesa irrestrita das tradições. Indício de que

estava longe dessas tendências mais retrógradas foi seu interesse pelas ações dos

pedreiros, carpinteiros e artesãos em geral, considerando-os como os verdadeiros

responsáveis pela ambientação das cidades. Desta forma ele minimizava a proeminência

que muitos atribuíam aos arquitetos e engenheiros.

Ao se aliar com o neocolonial, o que Monteiro Lobato propôs foi uma

regeneração da vida intelectual, pois, de acordo com sua opinião, tudo estava muito

centrado num francesismo diletante, totalmente despreocupado com a realidade nacional.

Novamente é a relação campo-cidade que marca seu pensamento. Antes, ele acusava o

modo de vida das cidades mortas de serem contrários à “civilização”. Ao se centrarem na

agricultura e nas práticas do mundo rural, esses povoados não foram capazes de alcançar

a modernização. Agora a crítica é construída dentro de outra perspectiva, pois as cidades

esqueceram a parcela do campo que existem nelas ao optarem pela importação de estilos

europeus. Esse novo posicionamento de Lobato esclarece o anterior, o que ele buscava

não era a supressão do campo, mas sim um equilíbrio entre o urbano e o rural.

Esse Lobato, dos anos de 1914-1918, já não é mais aquele jovem doutorzinho de

uma década atrás. Trata-se agora de um importante intelectual, conhecido pelo artigo que

fez sobre Jeca Tatu e várias críticas de arte publicadas nos periódicos do estado. Nesse

momento, Monteiro se engaja na defesa da arte nacional como contraponto à transposição 50 Lobato escrevia que: “Ramos de Azevedo e Ricardo Severo são, mais que dois nomes, duas forças propulsoras no campo da estetica.” In: LOBATO. Idéias de Jeca Tatu, 1955, p. 28.

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dos estilos europeus, ficando claro seu antagonismo ao ecletismo arquitetônico. Pois esse

estilo impedia que a cidade desenvolvesse uma fisiognomia, um padrão nas edificações

que lhe dotasse de uma identidade própria.

O posicionamento de Monteiro Lobato é singular e incisivo porque ele não

idealiza a contribuição da cultura rural e popular. Ele as considera como manifestações

ingênuas, rudes e grosseiras, porém autênticas. É a contribuição das camadas populares

que evidenciam as incongruências da Belle Époque tropical:

Basta que no “Trianon”, entre flores exoticas, encasacado á francesa, conversando em “artot”, comendo “foiegras” de Nantes, ouvindo versos d’Avray, aspirando perfumes de Fre Val, sonhando passeatas chiques pelo Bois de Boulogne e comentando a politica de Briand ou a derradeira peça de bataille, passe na rua um cafageste gemendo no pinho o “luar do Sertão”, para que o Brumel se remexa na cadeira, perca o aprumo, quebre a linha, estale o verniz, arregale o olho e denuncie a mentira viva que ele prega em oito ou dez avós vaqueiros, açucareiros ou tropeiros que circulam no sangue.51

Tratava-se de voltar o olhar para o campo – que equivalia a contemplar o passado.

No trecho acima, Lobato denúncia que esses citadinos brasileiros – que tentavam passar

por europeus – eram um engodo. Suas origens estavam em um país assentado na

agricultura e pecuária. É justamente esse “cafageste”, o personagem destabilizador, que,

quase como um anti-herói, traz para a cena urbana a lembrança de que o Brasil é rural e

de que está distante do Velho Mundo.

Nesse sentido, o neocolonial é a tentativa de trazer o campo para a cidade,

integrar sertão e litoral do Brasil, promover um desenvolvimento sem negar as matrizes

culturais. Essa nova arquitetura deveria integrar um movimento cultural mais amplo,

51 Ibidem, p. 25.

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capaz de regenerar parte da vida intelectual da paulicéia, que teria perdido sua

autenticidade ao se tornar um eco de Paris. O escritor considerou o Brasil dividido em

duas zonas, o interior, portador das tradições culturais do país e o litoral, as chamadas

“zonas plagiárias”, que, em seu deslumbre pela Europa teriam se desprendido de suas

raízes originais, eliminando justamente o que o Brasil teria de singular52.

Segundo Lobato, as cidades – “zonas plagiárias” – ignorariam os sertões. Ele

retoma Euclides da Cunha, ao lembrar que o relato sobre Canudos revelou um Brasil

forte e com tonalidades heróicas, ainda que inexplorado pelos litorâneos. Os próprios

carros de boi que Lobato desdenhara tornavam-se agora elementos da paisagem brasílica.

Uma guinada inquestionável, provocada, em parte, pelo clima nacionalista da década de

1910, pela oposição aos francesismos reinantes e também pela volubilidade natural deste

escritor, que sempre tendeu a rever suas próprias interpretações.

Quando nos ambientes interioranos, Monteiro Lobato berrou pela experiência

urbana. As igrejas, as casas coloniais, as carroças, tudo exalava passadismo. Mas é chegar

à cidade de São Paulo e Lobato se pôs a criticar a fisionomia da Belle Époque. Os bares,

as ruas, as vestimentas e as edificações passam a ser consideradas como alienações,

estruturas incoerentes com a cultura luso-brasileira. Essa sua postura exemplifica as

dificuldades de promover a integração entre campo e cidade. O que o detrator das cidades

mortas buscava não era a última moda de Paris, mas sim desenvolver um projeto de

modernização que não se esquecesse dos campos e sertões, e que ajudasse a (re)definir a

identidade brasileira.

52 CHIARELLI. Um Jeca nos Vernissages, 1995, p. 161-168.

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Portanto, não era relevante discutir qual arquitetura era mais esplendorosa, se a

eclética ou a neocolonial. A simplicidade das capelas e sobrados revelava um estilo em

gestação. Por isso a necessidade de um estudo das formas do passado, para que elas

fossem aplicadas aos projetos urbanos contemporâneos. Não se tratava de retornar as

alcovas ou os elementos construtivos como pau-a-pique e adobe, mas sim dialogar com

os modos de habitação do período colonial. O trânsito que Monteiro Lobato faz entre

passado e presente, revela que ele não era simplesmente um tradicionalista. Suas

preocupações não estavam limitadas à ordem estética, havia um projeto, um modelo de

cidade a ser alcançado, eficiente e higiênica, mas que tivesse como referências culturais a

própria história.

Entre os anos de 1916 e 1918, Monteiro Lobato publica vários artigos e ensaios

na imprensa de São Paulo. Esses textos, que acabaram reunidos no livro Idéias de Jeca

Tatu, publicado em 1919, é um protesto contra o “copismo” intelectual que, de acordo

com sua opinião, predominava em todo o país. Em relação à fisiognomia das cidades o

que ocorria era que suas características estavam sendo diluídas pela sobreposição de

variados estilos. Nesse sentido, Idéias de Jeca Tatu é um posicionamento político e

estético ao sustentar a preservação das raízes culturais do país.

Para Monteiro Lobato a associação entre modernização e construções ecléticas era

falha. O simples fato de ornamentar as fachadas, construir frisos ou platibandas não

alinhava as construções com as forças modernizadoras em curso. A feição estética não

poderia está desvencilhada do elemento funcional. Lobato criticou o caipirismo das

cidades do interior que tentavam conferir às edificações um aspecto de modernidade por

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meio de reformas superficiais53. O que se evidencia é que o desejo de modernização era

falso, pois ele entrava em incongruência com as especificidades do Brasil. Um

modernismo pró-forma, incapaz de pensar nos efeitos pragmáticos da remodelação e de

seus impactos no entorno urbano.

Nesses momentos de crítica à superficialidade Belle Èpoque, Monteiro Lobato se

identifica com o interior, mas agora atribuindo uma conotação positiva. O mundo rural

surge como reservatório das tradições nacionais, mantendo as características originais do

país, para fazer frente à desvirtuação das cidades. Aqui, o detrator das cidades mortas

muda sua identidade, pois ele passa a falar como o homem do sertão, que vai para o

mercado da cidade conclamar aos litorâneos para que eles não se esqueçam de que o

verdadeiro Brasil está no interior54.

Nos escritos de Lobato, rural e urbano são ambiências em busca de um equilíbrio,

por isso as oscilações entre as representações do campo e da cidade. Campo é

autenticidade cultural, mas também é atraso, cidade é ambiente de inovação e grandes

realizações econômicas, mas se mostrando como corrompida e artificial. Equacionar

essas duas realidades é a preocupação que perpassou o pensamento de Monteiro Lobato,

fosse em seus ataques ao ecletismo, em sua indignação contra o trabalhador rural ou na

proposta de nacionalização do petróleo. O urbano é seu anseio, mas a cidade que ele

buscou não foi Paris, Londres ou mesmo Nova York. Sua expectativa era encontrar um

modelo autêntico de vida pública, que integrasse as zonas agrícolas e pecuárias (os

sertões) às faixas litorâneas.

53 O beiral, por exemplo, era uma herança do período colonial, e bem mais prático do que uma platibanda, já que protegia as pessoas e as paredes das chuvas. In: LOBATO. America, 1964, p. 90. 54 LIMA. Um sertão Chamado Brasil, 1998, p. 151-154.

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As diversas representações que se conformaram em torno do rural e urbano – e

que repercutiram na própria arquitetura – foram estratégias para compreender os

impasses vivenciados. Enfim, qual seria a causa do atraso brasileiro? Excesso de

estrangeirismos ou o peso insuportável das tradições agrárias? As importações não eram

somente nos hábitos e estilos, mas também de mercadorias industrializadas,

desfavorecendo a balança comercial e acentuando a dependência econômica. Entretanto,

se nas zonas rurais que eram produzidos os bens agrícolas, a principal divisa de

exportação nacional, a riqueza gerada era mal distribuída e aplicada. Em suma, para

incentivar o desenvolvimento brasílico, onde intervir? Campo ou cidade? Lobato

responderia que esses dois universos deveriam ser sincronizados, para viabilizar um

progresso genuinamente nacional. Nem tradicionalismo e nem estrangeirismos,

possivelmente esse seria seu veredicto.

Na opinião do escritor, a variedade arquitetônica vista na cidade de São Paulo a

impedia de ter uma feição própria, o Brasil como um todo padeceria desse mal. Seria uma

cidade de caipiras, mas que falariam francês, leriam livros franceses, beberiam bebidas

francesas em bares com nomes franceses, amariam francesas, morariam em casas

francesas decoradas à francesa, mas não seriam franceses e nessa evidência residia o

problema. Era necessário despir-se e aceitar as vestimentas que competiam aos

moradores de um país mestiço: a tanga indígena, os trapos dos africanos e as chitas

rasgadas dos caipiras. Rústico, reconheceria Lobato, mas nacional. Era essa lógica que

ele aplicava a assuntos tão distintos quanto economia, política, cultura e questões sociais.

A modernização só seria possível quando os elementos populares, arcaicos e rurais

fossem considerados como um componente da matriz brasileira.

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Utopias lobatianas: as cidades de Lobato

Eldorado. Representação máxima das riquezas e exotismos das Américas.

Durante os processos de colonização espanhola e portuguesa, muitos aventureiros se

embrenharam pelas matas americanas a procura dessa maravilhosa urbe. Talvez o último

explorador a ter se lançado nessa busca tenha sido coronel Percy Harrisson Fawcett,

financiado pela Royal Geografical Society de Londres. Em 1925 ele conduzia uma

expedição ao interior do Mato Grosso. O desaparecimento de um experiente explorador

despertou controvérsias e realimentou os imaginários acerca dos perigos existentes nos

sertões.

Como mostra Johnni Langer55, foi esse evento – junto com a descoberta de

Macchu Picchu em 1911 – que precipitou o surgimento de romances sobre as cidades

perdidas na América do Sul. Livros como Amazônia Misteriosa (1925) de Gastão Cruls,

A filha do Inca (1930) de Menotti del Picchia e O ouro de Manoa (1933) e A cidade

perdida (1948) de Jerônimo Monteiro são expressões do interesse de intelectuais e de um

público leitor mais amplo em imaginar os longínquos e desconhecidos interiores do país.

Esses textos se ambientam em uma paisagem bem distante das zonas rurais, trata-se dos

extremos sertões, mais arredios e distanciados do que aquelas surpreendentes paragens

descritas por Euclides da Cunha.

A marcha para o Oeste Brasileiro, se deu em um ritmo bem diferente do caso

americano. Os processos de ocupação do interior não foram conduzidos de forma

sistemática e nem tiveram na expansão ferroviária e telegráfica um ponto decisivo de

55 LANGER. “Mito, história e literatura: as ‘cidades perdidas’ do Brasil”. História & Perspectivas, 1996, p. 67-83.

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apoio56. Portanto, essa literatura imaginativa foi mais uma expressão do espanto dos

intelectuais perante a extensão territorial do país e o total desconhecimento dessas

regiões. Um contexto marcado pelo interesse em transportar os símbolos da cidade

(civilização) aos afastados rincões.

... é explícito o aviso de que a fronteira não é o movimento, mas sim o pouso, o estabelecimento de pontos de fixidez, a solidificação mínima de núcleos de vida sedentária diante da errância toda que faz o sertão [...] Marca da posse inarredável dos espaços ganhos com a arrancada do sertão, a fronteira sinaliza a presença firme de gente civilizadora no território do Brasil. 57

O tema das cidades perdidas nunca entusiasmou Monteiro Lobato. Elas

representavam um sertão longínquo, misterioso e imprevisível. Suas preocupações eram

com áreas que pudessem ser convertidas em pólos agrícolas ou cidades, o Brasil extremo

e inatingível – que muitas vezes ainda era associado ao fantástico – não estava incluído

em seus projetos modernizadores. Mas assim como Cruls e del Picchia, Lobato está

interessado em integrar o incógnito ao conhecido, civilizar os sertões, transformando-os

em áreas agrícolas ou povoados urbanos. Por isso, para ele, a experiência das cidades

norte-americanas58 era tomada como um exemplo de sucesso da integração campo-

cidade. No romance America, o narrador comenta sua impressão sobre um trecho da área

rural entre Washington e Nova York:

Plantações de milho perfeitas, como as das estações experimentais. Cientificas. Pela simples inspeção visual percebe-se que já não subsiste nada que seja rotina. Tudo, desde a escolha da semente até á ceifa, está

56 A grande referência para o desbravamento dos sertões foram as explorações conduzidas pelo engenheiro militar Rondon. Cf: DIACON. Stringing togheter a nation. 2004. 57 SOUZA. A pátria geográfica, 1997, p.134. 58 Entre os anos de 1927 e 1931, Monteiro Lobato assume o cargo de adido comercial, se mudando para Nova York. O livro America (1932) explicita o fascínio de Lobato pela sociedade americana.

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se fazendo de acordo como o que preceitua a experimentação cientifica.

[...]

- Outro aspecto totalmente novo para quem chega da América do sul, continuei eu, é este das habitações rurais. Em nada diferem das urbanas. Sempre o bangalô de agradavel aspecto exterior e todo comodidades modernas por dentro. O radio para a captação da voz do mundo e supressão do isolamento antigo, a maquina de lavar, a maquina de passar, a maquina de lustrar, a maquina de descascar laranjas, a maquina de matar mosquitos...59

O nível de conforto existente na cidade é o mesmo do campo, a própria

fisionomia das áreas rurais lembra as ambiências urbanas. No entanto não ocorre uma

negação da importância da agricultura, os valores campesinos continuam, mas inseridos

dentro de uma orientação modernizadora. A cidade imaginária de Lobato – espelho

invertido do Brasil – não é Atlântida ou Eldorado, mas sim as urbes americanas. O ex-

fazendeiro de Taubaté sentiu-se fascinado pelos projetos urbanos e arquitetônicos norte-

americanos. Mas essa sua postura de admiração não fez com que ele defendesse a

reprodução desses modelos no país. Pois as arquiteturas dos bangalôs, das chaminés, dos

arranha-céus e das longas estradas interligadas estavam associadas à matriz cultural

estadunidense, coerentes com o “espírito” do povo americano.

Todas essas qualidades, atribuídas ao modo de vida americano, já estavam

presentes no livro O presidente negro, publicado em 1926 60, ou seja, antes da viagem do

autor para os Estados Unidos. O romance é estruturado em dois planos narrativos. Na

primeira pessoa, o personagem Aytron narra o contato que ele teve com uma cientista,

Miss Jane – filha do inventor da máquina do tempo. É essa jovem que relatará para o

59 LOBATO. America, 1964, p. 65 e 67. 60 Com o título original O choque das raças.

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protagonista – abrindo uma narrativa em terceira pessoa – os acontecimentos sucedidos

em 2228 nos Estados Unidos. A cidade imaginária de Monteiro Lobato não foi inspirada

nas ruínas de Macchu Picchu ou nos mitos de Atlântida e Eldorado, mas nos anseios de

se alcançar uma sociedade moderna, higiênica, eugênica e eficiente.

Nesse livro – que para nossa sensibilidade contemporânea é tediosamente racista

e determinista – Lobato constrói uma narrativa sobre o futuro para pensar os problemas

do presente. Embora o foco principal não seja o contraponto campo-cidade, esse tema é

abordado. É dito que, no século XXIII, o Brasil estaria dividido em duas partes, o centro-

sul, transformado em um país urbano e industrial, inclusive com clima temperado, e o

norte, que se manteria como uma república tropical, a continuidade do sertão e do atraso.

... é significativo que a imagem comum do campo seja agora uma imagem do passado, e a imagem comum da cidade, uma imagem do futuro. Se as isolarmos deste modo, fica faltando o presente. A idéia do campo tende à tradição, aos costumes humanos e naturais. A idéia da cidade tende ao progresso, à modernização, ao desenvolvimento. Assim num presente vivenciado enquanto tensão, usamos o contraste entre campo e cidade para ratificar uma divisão e um conflito de impulsos ainda não resolvidos, que talvez fosse melhor encarar em seus próprios termos. 61

Como vários escritores do período, Monteiro Lobato pensou o presente a partir do

passado e do futuro. Ao defender o neocolonial, tomou-o como uma estratégia quase

didática para explicitar a necessidade de um contato entre campo e cidade. No próximo

capítulo será avaliado como Lobato julgou a maneira de inserir o caipira nessa nova

sociedade por ele almejada. Nos livros America e O presidente negro, o que se evidencia

é a ânsia pelo desenvolvimento econômico. Fica clara a importância de uma equivalência

61 WILLIANS. Campo e Cidade, 1989, p. 397.

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entre o urbano e o rural, pois a modernização deveria se constituir de dentro para fora.

Arquiteturas inspiradas no passado, baseadas em uma história nacional (seja ela real ou

idealizada), mas inseridas em um planejamento urbano quase futurístico – talvez uma

radicalização de Le Corbusier – com avenidas arborizadas, rodovias para circulação

intensa dos automóveis, túneis subterrâneos, quadras arejadas e iluminadas. A

autenticidade do campo integrada ao dinamismo da cidade, essa foi a utopia de Lobato.

Alguns sonhavam com o Eldorado. Ele com um bangalô na quinta avenida.

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Capítulo 2: Jeca Tatu, antes de tudo um forte

Ainda havia um contraste entre cidade e campo, baseado nas concepções mais antigas de estabilidade e inocência rurais. Porém o contraste se daria em sentido oposto: entre consciência e ignorância, vitalidade e rotina, entre o que é presente e concreto e o que é passado ou desaparecido. A experiência urbana se generalizava tanto, e um número desproporcional de escritores estava tão profundamente envolvido nela, que qualquer outra forma de vida parecia quase irreal; todas as fontes de percepção pareciam começar e terminar na cidade, e, se havia alguma coisa além dela, estaria também além da própria vida. (WILLIANS. Campo e Cidade, 1989, p. 316)

Começos do século XX. Perpassava por todo o país um sentimento de otimismo

próprio dessas ocasiões de mudanças de século. Alguns faziam uma associação entre

progresso, prosperidade e a República proclamada em finais do século XIX. Porém, em

verdade, ela já nasceu problemática, resultado de confabulações entre militares,

fazendeiros e políticos profissionais. Não obstante, também era entendida como um

assunto desinteressante e maçante para a maior parte da população que, acostumada às

mudanças de gabinetes políticos, via no golpe republicano nada mais do que um rearranjo

entre as elites. Algo tedioso, com o qual não valia a pena se envolver62.

Se é que a república é o espaço para o exercício da cidadania, pelo menos assim

não foi no Brasil de começos do século XX. A maior parte da população brasileira residia

nas zonas rurais, sem qualquer participação na vida política institucionalizada e

62 Cf: CARVALHO. Os Bestializados. 1987.

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partidária. É verdade que nesse período as áreas urbanas começavam a ganhar certa

pujança, o que pode ser percebido nas reformas das cidades do Rio de Janeiro e São

Paulo63. Nesses pólos citadinos que se desenvolviam, a atuação política das camadas

populares manifestada através de tumultos e revoltas assustava os grupos dirigentes

(incluindo aí os intelectuais) que interpretavam essas ações como prova da incapacidade e

indisposição democrática do povo brasileiro.

Uma concepção que ganhava força era aquela que entendia o progresso como

desenvolvimento urbano e industrial. Áreas ermas e desconhecidas, como os sertões e as

roças isoladas, eram interpretadas como espaços da barbárie. Para os defensores de um

projeto urbano, como os engenheiros (os novos técnicos do espaço), a prosperidade do

Brasil seria correlata à expansão das cidades. Claro que havia uma inerente contradição

nessas interpretações, pois, afinal, era no campo que a maior parte da riqueza brasileira, o

café, era produzida.

O ideário republicano, então sustentado, pressupunha, mesmo que implicitamente,

a necessidade e as vantagens do Brasil se tornar um país urbano. Em termos de

experiência histórica, como nos mostra José Murilo de Carvalho, o que pode ser

observado é que vida urbana, cidadania e prática republicana são fatores interligados, uns

reforçando aos outros. Porém no caso brasileiro, a situação foi peculiar:

Nossa República, passado o momento inicial de esperança de expansão democrática, consolidou-se sobre um mínimo de participação eleitoral, sobre a exclusão do envolvimento popular no governo. Consolidou-se sobre a vitória da ideologia liberal pré-democrática, darwinista, reforçadora do poder oligárquico. 64

63 Cf: IGLÉSIAS. Trajetória Política do Brasil, 2000, p. 215-216. 64 CARVALHO. Op. cit, p. 161.

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Para parte da intelectualidade, bem afinada com os anseios das elites econômicas

e políticas, a questão era justamente como promover essa transição sem perder um

controle das camadas populares. O crescimento urbano implicaria na presença de uma

parcela maior de pobres nas cidades, por isso se tornava necessário encontrar novas

formas de vigiá-la e ordená-la.

O que será analisado nesse capítulo é como Monteiro Lobato, ao criar a figura de

Jeca Tatu, desenvolveu suas reflexões acerca do trabalhador rural brasileiro e sua

inserção em um mundo urbano-industrial. O pano de fundo para esta discussão é a

relação entre cidadania e trabalhador rural65, dentro de um contexto de transição do

universo rural para o urbano.

Durante o século XIX, os intelectuais comprometidos com a construção de uma

identidade nacional buscaram nos indígenas e nos sertanejos a base para a nacionalidade

brasileira. Preocupados em encontrar as “raízes” do país, atribuíram várias características

positivas às populações nativas e aos trabalhadores dos campos e sertões. Na literatura

romântica, por exemplo, os índios e, em um segundo momento, os sertanejos, aparecem

com sentimentos e comportamentos europeus: verdadeiros cavaleiros medievais vivendo

nas terras brasílicas. Nessas representações eles aparecem como cristãos, em convívio

harmonioso com a natureza e sem preocupação em acumular riquezas. Em suma, uma

nova atualização do bom selvagem:

Graças a Rousseau, tivemos o indianismo à Chateaubriand e rendemos culto ao índio bom, belo e digno, irmão dos Natchez. No Norte, vestiram-no de moicano. No Sul, chamaram-no Peri, Ubirajara, Tabaré. Atala tomou, no Brasil, o nome de Iracema e, no Equador, conheceram-na como Cumandá.

65 Cabe relembrar que a categoria de “trabalhador rural” é aqui usada pelo estudioso, não sendo um termo articulado por Monteiro Lobato.

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Cantados todos os cantos timbiras, pampas e charruas, esgotadas a inspiração lírica que floriu al italico modo em ópera, guarani, o mito sobrevive.∗ Ainda. Ei-lo, atuante, no prestígio do caboclo, do vaqueiro, do huaso, do llanero, do cow boy: todos fortes, ingênuos, honestos. 66

No entanto, a instauração da República e o desenvolvimento dos centros urbanos

promoveram uma identificação cada vez maior de parte da intelligentzia e das elites

econômicas com o modo de vida europeu, sobretudo o francês. Essa conjuntura implicou

em uma negação da participação das culturas populares na construção de um Brasil

moderno67. Dos indígenas, passou-se a buscar não mais o reconhecimento como

ancestral, mas sim a distância de um elemento bárbaro. A construção da República foi

concomitante ao processo de negação de direitos civis às camadas populares urbanas e

rurais. No caso destas últimas, a situação era mais agravante, na medida em que lhes era

negada a condição de trabalhadores.

Na virada do século XIX para o século XX, emerge uma nova forma de

compreender a natureza, tomando-a como uma potencialidade econômica, uma riqueza a

ser explorada. A alteração na forma de avaliar o ambiente natural implicou em um novo

entendimento sobre suas populações residentes. Ao serem constatadas as riquezas dos

solos, dos rios, da fauna e flora passou-se a criticar o mau uso que os moradores locais

faziam dessas reservas naturais. O que a literatura indianista via como um ponto positivo,

o desinteresse dos indígenas pelas riquezas materiais, foi considerado pelos defensores do

desenvolvimento nacional como um sintoma de incompetência e primitivismo. Índios e

∗ Recorde-se, com espanto, que Darwin, Freud, Marx, empenhados nas mais efetivas reformas da história moderna, esqueceram-se (ou esquivaram-se a isso) de condenar o nostálgico e romântico postulado da inocência e da bondade natural do homem. (nota da autora citada) 66 QUEIRÓZ. “Mitos e frustrações: Jeca Tatu, a outra face do Bom Selvagem.”, Kriterion, 1977, p. 179. 67 SEVCENKO. Literatura como Missão, 1985, p. 28-32.

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sertanejos eram acusados de uso inadequado dos recursos disponíveis e da ausência de

uma produção racional em larga escala que estivesse voltada para o mercado.

Caracterizados como nômades e indolentes, os indígenas e os sertanejos foram

alijados de sua posição de representantes da nação. Desta forma, iniciou-se uma gradual

desqualificação do caipira e do camponês que passaram a ser considerados preguiçosos e

ineptos. O contexto histórico da época favoreceu enormemente a consolidação dessa

representação. Havia uma grande preocupação com as extensões geográficas do país,

com seus territórios ignotos. No estado de São Paulo havia regiões completamente

desconhecidas pelo governo, e por isso mesmo chamadas de sertões. Expedições como as

de Cornélio Schmidt (1904) e Teodoro Sampaio (1905), por áreas não mapeadas de São

Paulo, explicitaram muito bem um sentimento comum de que havia muito pouco controle

sobre o natural e de que as populações ali residentes, fossem indígenas ou colonos, eram

incivilizadas e improdutivas.

No caso de São Paulo, o crescimento das cidades e o desenvolvimento da

industrialização acentuaram a valorização da experiência urbana em detrimento da vida

no campo. Assim:

O sertão, o interior, ou mesmo o campo, mais comumente chamado de roça, começava a sofrer um processo de caracterização, sendo denominado como um espaço “selvagem”, “bárbaro”, “inóspito” seus moradores como “rotineiros incivilizados, bárbaros” ou mesmo “selvagens”. A própria vida no interior levaria o morador a tornar-se um “atrasado”. 68

Isso nos permite aventar a hipótese de que Monteiro Lobato não inventou “do

nada” a figura do Jeca Tatu. Sua criação se deu em uma conjuntura em que os grupos

68 ARRUDA. Cidades e Sertões, 2000, p. 167.

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dirigentes estavam preocupados com quem era o habitante do interior e qual seria seu

lugar em uma sociedade urbanizada. Cabe agora averiguar a maneira como Monteiro

Lobato se relacionou com o trabalhador rural, possibilitando-lhe desenvolver sua

representação sobre o caipira.

O fazendeiro Monteiro e a descoberta do Jeca

Como apontado no primeiro capítulo, o contato inicial de Monteiro Lobato com o

mundo rural foi em sua infância, vivendo na fazenda de seu avô chamada Buquira. Seus

primeiros anos de vida coincidiram com o declínio da escravidão. Ao redor de seu avô

materno, José Francisco Monteiro – o visconde de Tremembé – se aglutinavam os ex-

escravos e os agregados. Uma situação propriamente mandonista, pois os pobres, dentro

dessa estrutura fundiária, eram genuínos deserdados da terra que viviam em função dos

mandos e desmandos dos grandes fazendeiros.

Quando pensamos na ambiência social em que Monteiro Lobato nasceu e cresceu,

o mais significativo é justamente sua inserção nas estruturas de poder do mundo agrário.

Lobato pertencia a uma família de fazendeiros, para os quais, provavelmente, a

subserviência dos escravos, dos agregados, dos meeiros e dependentes em geral era algo

natural. Entretanto nenhuma dominação é plena, algo que Lobato descobriria em sua

experiência como dono da Buquira, ao perceber que as ações e negociações ocorridas

entre fazendeiros e trabalhadores eram permeadas por constantes tensões.

Um paralelo que nos ocorre é entre o livro de Leon Tolstoi, Ana Karenina, e o

próprio comportamento de Lobato. Nesse romance, o escritor narra experiências de um

fazendeiro russo chamado Liêvin, que lastimava enormemente o comportamento dos seus

trabalhadores que se recusavam a executar as tarefas de acordo com que ele desejava.

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Liêvin tentava estabelecer métodos mais eficientes para cuidar das terras, das plantações

e dos animais, entretanto os camponeses insistiam em trabalhar de acordo com antigos

costumes. Esse confronto ilustra muito bem as limitações do poder de um detentor de

terras, pois, por mais capatazes que possam estar ao seu serviço, ter um controle pleno

sobre o trabalhador é impossível.

Liêvin reclamava que os camponeses insistiam em trabalhar seguindo práticas

tradicionais, que muitas vezes resultavam em desperdícios. De um lado o proprietário

desejoso de maximizar seus lucros, do outro, os trabalhadores, para os quais não faz

muita diferença um aumento ou diminuição da produção. Esse conflito entre as partes

pode, em parte, explicar uma “visão” que os proprietários de terra têm de seus

empregados.

Esse personagem de Tolstoi acaba por nos remeter ao próprio Lobato. Em 1911,

ele herdou a fazenda do seu avô, aceitando o encargo de ser fazendeiro com muito

entusiasmo. Sua intenção era implantar novas técnicas de trabalho, para que a

propriedade se tornasse mais produtiva. Seu otimismo pode ser percebido em uma carta

(data atribuída de 19/08/1912) remetida a seu amigo Rangel, na qual ele fala do

cruzamento de frangos que está empenhado em fazer, usando para isso processos

americanos69.

Contudo essa sua expectativa inicial será contrafeita pela própria experiência

cotidiana como fazendeiro. Pois afinal, embora esse ambiente lhe fosse familiar, ele não

possuía experiência em administrar uma fazenda. Em uma carta anteriormente remetida a

Rangel (10/12/1911) ele comenta que:

69 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 330. T.1.

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Estou na fazenda ha já uma semana, lidando com doenças de bestas, bicheiras de carneiro, roças de milho e mais coisas. Ainda não adquiri o olho exclusivamente utilitario. Uso muito o estetico – e temo que isso me dê prejuizo no fim do ano. É a opinião do meu utilitarismo administrador.70

O que Lobato buscava era justamente um “olhar” sobre o mundo rural, mas do

ponto de vista dos fazendeiros. Era importante compreender a melhor maneira de gerir

sua propriedade, por isso ele se interou dos assuntos cotidianos da roça. Lobato não lidou

com a vida no campo sob a ótica de um literato a procura de temas “exóticos”. Sua

intenção foi encontrar a melhor maneira de produzir riquezas a partir de suas terras. É

certo que sua formação intelectual também contribuiu para o desenvolvimento desse

“olhar”. Basta lembrarmos que Monteiro Lobato constantemente se referia a si mesmo

como um pintor que, por não ter oportunidade de desenvolver essa profissão, acabou

usando a literatura como um substituto para a pintura71. Para um pintor, a questão visual é

fundamental, sobretudo dentro de uma concepção de arte naturalista como a de Lobato.

Às 2 horas vou ver um cercado de porcas com cria para onde entraram ontem 70 leitõezinhos novos. Divirto-me com aquele formigueiro de apetites e rabinhos encaracolados. Conto-os. Falta um. Descubro-o morto a um canto na palha [...] Depois vou dali ver a malhação do feijão. Quadro pitoresco. Eles sabem escolher varas no mato – compridas, rijas e bem flexiveis. Só de certos paus. E malham num ritmo lindo. As varadas conjuntas produzem um som especial que fica na memória – lhá, lhá, lhá ... Suo de ve-los suar naquilo e lembro-me de que é hora do banho na cachoeira. 72

Na condição de proprietário, ver foi a principal tarefa a que o fazendeiro Monteiro

se dedicou. Interessado em zelar pelos seus interesses ele percorreu suas terras, contou

70 Ibidem, p. 321-322. 71 Ibidem, p. 251-252. 72 LOBATO. A barca de Gleyre, 1968, p. 84. T. 2.

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seus animais, observou seus trabalhadores na labuta. Entretanto, não abandonou

plenamente a visão do literato da cidade, como sugere a frase “Quadro pitoresco” e a

onamotopéia “lhá, lhá, lhá”. Por fim, há também a referência da fazenda como um lugar

de repouso, já que, quando cansado (de ver o trabalho alheio), se retirou da presença dos

trabalhadores para ir banhar-se na cachoeira. O olhar de Lobato é quase auto-

complacente, um observador privilegiado que, ao mesmo tempo em que vigia sua

propriedade, percebe alguns traços da vida do caipira∗.

Foi com essa visão senhorial que Monteiro Lobato descobriu o caipira como

alguém que vivia à margem da vida na fazenda. Antes de receber a propriedade rural de

seu avô, ele já havia redigido alguns escritos sobre o caboclo, porém dentro de uma

perspectiva mais literária. Com efeito, boa parte da sua literatura anterior a 1911 se passa

em ambientes rurais ou interioranos. Como no conto “Pedro Pichorra” (1910), no qual

Lobato fez algumas descrições sobre a vida do caboclo descrevendo, inclusive, sua

morada: “... casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de Santo Antonio com

os desenhos já escorridos pela chuva e a bandeira rota trapejante ao vento.” 73

Contudo, ao administrar Buquira, Lobato passou a conviver com o caipira

diariamente, vendo-o com um olhar diferente daquelas suas intuições literárias. Desejoso

de tornar suas terras mais produtivas, o fazendeiro Monteiro acabou se convencendo de

que os trabalhadores eram indolentes e nômades, tendo um baixo rendimento econômico.

Assim, aos poucos, a figura do caipira foi sendo associada à imagem de um parasito

predador das propriedades rurais.

∗ Nos escritos de Monteiro Lobato os termos caipira e caboclo, muitas vezes, sinônimos. 73 LOBATO. Cidades Mortas, 1950, p. 51.

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Em 1912, em uma carta, Monteiro Lobato se refere ao trabalhador rural como um

piolho, sarcasticamente apelidado de Porrigo Decalvans74. As tensões entre o

empregador e seus agregados provavelmente se agravaram ao longo dos anos. Lobato era

um entusiasta de novas técnicas agrícolas e, para ele, os trabalhadores (como muitos

fazendeiros) insistiam em utilizar métodos ultrapassados e pouco eficientes. Em

20/10/1914, assim escreve para Rangel:

Atualmente estou em luta contra quatro piolhos desta ordem – “agregados” aqui das terras. Persigo-os, quero ver se os estalo nas unhas. Meu grande incêndio de matas deste ano a eles o devo. Estudo-os. Começo a acompanhar o piolho desde o estado de lendea, no utero duma cabocla suja por fora e inçada de superstições por dentro. Nasce por mãos duma negra parteira, senhora de rezas magicas de macumba. Cresce no chão batido das choças e do terreiro, entre galinhas, leitões e cachorrinhos, com uma eterna lombriga de ranho pendurada no nariz. Ve-lo virar menino, tomar o pito e a faca de ponta, impregnar-se do vocabulario e “sabedoria” paterna, provar a primeira pinga, queimar o primeiro mate, matar com a picapau a primeira rolinha, casar e passar a piolhar a serra nas redondezas do sítio onde nasceu, até que a morte recolha. Constrói lá uma choça de palha igualzinha á paterna, produz uns piolhinhos muitos iguais ao que ele foi, com a mesma lombrigas nas ventas. Contar a obra de pilhagem e depredação do caboclo. A caça nativa que ele destrói, as velhas arvores que ele derruba, as extensões de matas lindas que ele reduz a carvão.75

O caboclo é comparado a um animal, o fazendeiro Monteiro o vê como um ser

inferior, que vive nas paragens rurais, sem oferecer nenhuma contrapartida. Essa

representação do trabalhador rural é francamente negativa. Entretanto é possível

vislumbrar que Lobato presenciou o cotidiano do caipira. Em termos etnográficos, há

muitos detalhes, embora estejam inseridos em uma análise, cuja inspiração política é

elitista. Por isso, não foi desinteressado esse olhar que o escritor-fazendeiro lançou sobre

74 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 326-327. T.1. 75 Ibidem, p. 362-363.

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seus agregados, nesse sentido é difícil falarmos em um antropólogo Lobato, como

querem alguns autores.

Para Azevedo, Camargos e Sacchetta, Monteiro Lobato foi um “arguto crítico

social” ao expor “... sem mistificação, a conduta do agente deletério, habitante das zonas

limites do mundo civilizado...” 76. Essas autoras, de certa forma, foram condescendentes

com o fazendeiro Monteiro, pois não contextualizaram plenamente seu olhar e, desse

modo, corroboraram com sua visão. Uma posição mais sustentável seria a de Dilma

Castelo Branco Diniz que, mesmo admitindo uma precisão na visão de Lobato, reconhece

que ele não procurou conhecer a fundo as causas do modo de vida do Jeca Tatu77. É

correto que as perspectivas do intelectual e do fazendeiro foram somadas, tendo como

resultado a figura de Jeca Tatu, um personagem síntese de todos os alegados problemas

da vida rural brasileira.

O que mais exasperava esse escritor-fazendeiro eram as queimadas cometidas

pelos seus agregados. A prática de por fogo em capões para adubar o solo era considerada

ultrapassada e arriscada. Segundo o autor, facilmente se perdia o controle das chamas,

iniciando os incêndios, o que representava tanto um ônus à natureza local como à

propriedade do fazendeiro. Através dos artigos “Velha Praga” e “Urupês”, a figura de

Jeca Tatu ganhou forma. Ambos os textos são de 1914 e expressam a indignação máxima

do fazendeiro Monteiro com o problema das queimadas.

Em “Velha Praga”, Lobato sintetiza a visão do homem do campo como um

parasita: “A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra, peculiar ao

76 AZEVEDO, CARMARGOS, SACCHETTA. Monteiro Lobato, 1996, p. 58. 77 DINIZ. Monteiro Lobato, 1997, p. 18.

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solo brasileiro...”78. Esse caboclo, segundo o autor, era uma “subespécie” danosa ao

ambiente, pois, indiscriminadamente, matava animais e aves, derrubava árvores antigas e

provocava queimadas. Enfim, o autor o considerou um agente deletério, “quantidade

negativa”, que resultava em danos para a propriedade do fazendeiro e as matas nativas.

Por isso, o escritor o chamou de Porrigo decalvans, pois esse é o nome científico do

piolho que causa pelada. Para o escritor-fazendeiro, por onde o caipira passava nada

restava. Jeca Tatu só é mencionado ao final do artigo, junto com nomes de outros

caipiras, Manoel Peroba e Chico Maribondo, também inventados por Lobato.

Em “Urupês” – um dos textos mais corrosivos de toda a literatura de Monteiro

Lobato – Jeca Tatu finalmente tornou-se personagem principal. O texto inicia-se

mostrando a “evolução” do indianismo ao caboclismo, já que os românticos deixaram de

idealizar o índio para se ufanar do caipira. Frase que marca a distinção entre a visão

romântica e a sustentada por Lobato é: “Pobre Jeca Tatu! Como és bonito no romance e

feio na realidade!” 79. Inicialmente o ataque é dirigido aos poetas e romancistas que

idealizavam a vida no campo. Para o fazendeiro Monteiro esses escritores desconheciam

a realidade, já que nunca haviam visitado um ambiente rural verdadeiro. Inclusive, em

carta enviada a Rangel (20-10-1914), fica mais nítido seu antagonismo com a literatura

romântica e ufanista:

A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não penetram nos campos de medo dos carrapatos. E se por acaso um deles se atreve e faz uma “entrada”, a novidade do cenário embota-lhe a visão, atrapalha-o, e ele, por comodidade, entra a ver o velho caboclo romântico já cristalizado – e até vê caipirinhas cor de jambo, como Fagundes Varela. O meio de curar esses homens de letras é retificar-

78 LOBATO. Urupês, 1950, p. 235. 79 Ibidem, p. 245.

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lhes a visão. Como? Dando a cada um, ao Coelho, à Julia Lopes, uma fazenda na serra pra que a administrem. 80

Jeca Tatu é caracterizado como alheio a qualquer sentimento cívico ou patriótico.

Monteiro Lobato retoma a frase de Aristides Lobo de que “O país assistiu beastificado a

proclamação da República”, mostrando que o caboclo simplesmente não tomou

conhecimento da mudança do “... trono vitalício pela cadeira quadrienal” 81. Assim, a

argumentação de que o caipira estava isolado da civilização tornou-se mais consistente.

Contudo, a caracterização mais famosa de Jeca Tatu, seria a sua indolência e

incapacidade para o trabalho racional. Lobato o descreve como um nômade, que trabalha

o mínimo possível, somente o necessário para que não ocorra o padecimento por fome.

Jeca Tatu não é um lavrador, pois essa atividade demandaria esforço, o que ele faz

é coletar o que a natureza oferece, como mel, palmito, mandioca e – quando há munição

– as aves e as pacas. Sua casa é rústica, feita de barro e sapé, pouco eficiente para se

proteger das chuvas, há buracos por toda a parte, mas Jeca tem preguiça de vedá-los. No

interior da residência, ausência de móveis, a família se deita em colchões de palha; há

somente um banco de três pernas (pois a quarta é desnecessária) para as visitas. O

vasilhame são cuias e tamelas, extraídas diretamente da própria natureza. A precariedade

é o aspecto mais evidente, resultado da ausência de qualquer sentimento estético e do

desinteresse de Jeca em adquirir um patamar mínimo de conforto.

A descrição feita por Lobato do modo de vida do caboclo – as roupas, os

utensílios, a alimentação, as crenças – foi o resultado do seu contato com esse universo

80 LOBATO. A barca de Gleyre, 1950, p. 364. T. 1. 81 LOBATO. Urupês, p. 244.

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do trabalhador rural pobre. Como proprietário das terras, ele tinha facilidade de percorrer

sua propriedade para observar a maneira como viviam seus dependentes. Há certa

validade etnográfica em seus escritos. Pesquisas posteriores, de natureza mais

sociológica, têm uma caracterização da cultura caipira próxima à realizada por Lobato,

embora, de um modo geral, elas não corroborem com essa visão de um trabalhador

indolente.

Antonio Candido, em seu livro Parceiros do Rio Bonito, visitou esse universo

descrito pelo fazendeiro Monteiro, com uma caracterização etnográfica, por vezes,

similar a fornecida pelo pai do Jeca Tatu82. Porém, como aponta Candido, a persistência

de Lobato em considerar o caipira como indolente e atrasado acabou por inviabilizar uma

compreensão mais realista do seu modo de vida83. A caracterização feita por Lobato

estaria mais próxima da literatura do que da antropologia: “Daí o atraso que feriu a

atenção de Saint-Hilaire e criou tantos estereótipos, fixados sinteticamente e de maneira

injusta, brilhante e caricatural, já neste século, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato.” 84

Como mostra Carlos Rodrigues Brandão, a concepção de que o caipira é indolente

remontaria a viajantes estrangeiros do século XIX, como o próprio Saint-Hilaire. Porém,

a acusação de Lobato é ainda mais severa, já que o caipira não seria vítima do atraso,

82 Em entrevista concedida a Luiz Carlos Jackson, Antonio Candido faz uma distinção entre sua forma de ver o caipira e aquela produzida por Lobato: “A posição inicial dele em relação ao caipira era odiosa. Como fazendeiro decepcionado, estava indignado com aqueles caboclos atrasados, que botavam fogo em tudo; e escreveu um artigo desagradável, recolhido em um de seus livros. A posição de Monteiro Lobato em relação ao caboclo, tanto quanto me lembro, ou é de franco desprezo pelo seu atraso, que não permite ao fazendeiro tocar a lavoura de maneira progressista; ou então, é de franca piada. Não quero fazer injustiça, porque muita coisa dele não li. Mas o que li corresponde a uma visão pouco compreensiva.” In: JACKSON. Os Parceiros do Rio Bonito e a Sociologia de Antonio Candido, 2002, p. 143. 83 Cabe acrescentar que Antônio Cândido contribuiu com a discussão acerca do homem do campo ao apresentar a noção de “cultura caipira”. O estudioso inseriu o modo de vida do caboclo em uma conjuntura sócio-cultural específica, marcada pela capacidade das comunidades caipiras operarem em um mínimo social e biológico mínimos, estando pouco acima aos níveis de anomia e miséria. 84 CANDIDO. Parceiros do Rio Bonito, 1982, p. 82

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como pensava o viajante francês, mas sim um produtor de miséria, responsável pelas tão

odiadas coivaras (queimadas) 85. Saint-Hilaire também fala da tristeza do camponês

brasileiro, incapaz de cantar e se expressar alegremente. Monteiro Lobato, em “Urupês”,

expressou mesma opinião ao afirmar que:

No meio da natureza brasilica, tão rica de formas e côres [...] o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas.

Só ele não fala, não canta, não ri, não ama.

Só ele, no meio de tanta vida, não vive... 86

De fato, nos dois mais famosos ensaios de Lobato a figura que emerge do

trabalhador rural é essencialmente negativa. Vários atributos foram reunidos e

estereotipados na figura do Jeca, de modo que o personagem ganhasse força retórica.

Porém o que mais se destaca é a perspectiva pessimista do futuro de um país composto

por jecas. As regiões interioranas do Brasil, as roças e os sertões, seriam habitadas por

uma sub-raça, mestiços entre brancos e índios, uma estirpe de bandeirantes degenerados.

Para o escritor essas populações viveriam isoladas, improdutivas e afastadas da

civilização, tratar-se-iam de imprudentes consumidores, meros sobreviventes.

Cabe aqui um pequeno desvio de rota, pois é perceptível uma sintonia entre as

idéias apresentadas por Lobato e as visões negativas da mestiçagem no Brasil.

Interpretações explicitamente pessimistas que, em diálogo com autores como Taine,

Gustave Le Bon, Gobineau e Agassis, questionavam a possibilidade de construir uma

nação moderna em um país de população minoritariamente branca, com expressiva

85 BRANDÃO. Os caipiras de São Paulo, 1983, p. 27. 86 LOBATO. Urupês, 1950, p. 256.

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presença de mulatos e caboclos87. Esse determinismo racial pode ser encontrado em toda

obra de Monteiro Lobato, embora nunca tenha sido o tom dominante. Alguns intelectuais

passaram a citar Jeca como prova da inviabilidade de um projeto liberal e democrático no

Brasil. Entretanto a questão étnica não era o foco de interesse principal de Lobato. Mais

importante era descobrir uma forma de se modernizar as relações de trabalho no campo e

mudar o perfil do homem rural88.

Essa posição ambígua no que toca a questão racial vincula-se diretamente ao

grupo intelectual pelo qual Monteiro Lobato foi formado. Como aluno da Faculdade de

Direito de São Paulo, seu contato com as teorias deterministas não foi tão intenso como

seria em outras instituições que também congregavam as elites dirigentes, como a escola

de Recife, por exemplo. Pois:

... existia um claro repúdio às teorias deterministas raciais, que informavam ambos os domínios – a antropologia criminal e a medicina legal. A desconfiança com relação a esses modelos representava nesse local um apego a outras tradições teóricas, uma aposta no liberalismo político e em uma interpretação que via com ceticismo explicações exclusivamente calcadas na raça. 89

Mesmo que a legitimação das desigualdades por meio de explicações raciais não

estivesse excluída, esse nunca foi o tom dominante da instituição do Largo de São

Francisco. A própria ênfase dada na medicina pública, já é um indício que nos remete ao

futuro posicionamento de Lobato no que toca ao higienismo. Entretanto a noção de

cidadania estava muito distante desse pensamento conservador. A defesa de uma

87 LUCA. A Revista do Brasil, 1998, p. 165-168. 88 CAMPOS. “Terra, Trabalho e Progresso na Obra de Monteiro Lobato”. Revista Brasileira de História, 1986, p. 67-68. 89 SCHWARCZ. O Espetáculo das Raças, 1993, p. 180.

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democracia liberal não significava, necessariamente, no reconhecimento de direitos civis.

No extremo, e de forma essencialmente perversa, isso implicaria que ao trabalhador rural

poderia ser concedido o direito de votar, mas não o de ser cidadão. Lobato oscilou entre

tomar Jeca Tatu como excluído do regime republicano ou um degenerado racial.

Jeca Tatu foi considerado um descendente dos primeiros exploradores paulistas.

Muitos intelectuais viram a continuidade entre os bandeirantes e os habitantes das zonas

rurais. A dúvida seria se essa mudança representava um avanço ou uma degenerescência

da população brasileira. A figura de Jeca também expressou a angústia da

intelectualidade diante do pouco controle que o Estado detinha dos limites internos e

externos do país. Nas primeiras décadas do século XX, a discussão sobre as fronteiras e o

espaço nacional era um ponto sensível para políticos e intelectuais.

Foi nesse contexto que Monteiro Lobato problematizou sobre a necessidade de

modernizar os campos, cujas especificidades das relações de trabalho eram

desconhecidas pelas autoridades governamentais. É intrigante constatar que o suposto

nomadismo do sertanejo e do caboclo, recebeu, dentro dessas discussões, muitas vezes,

uma avaliação ambígua. A ausência de sedentarismo do trabalhador rural poderia ser

interpretada como uma dificuldade para a consolidação de uma unidade agrícola

produtiva. Mas, como contraparte, também equivaleria à manutenção desse espírito

bandeirante, cuja conseqüência seria um maior conhecimento dos territórios isolados do

país90.

90 O “espírito bandeirante” era um dos elementos da identidade paulista. Cf.: SOUZA. A pátria Geográfica, 1987, p. 40-43.

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O nomadismo foi resultado de uma estrutura política e econômica que impediu a

sedentarização do trabalhador. A movimentação dos caipiras pelos territórios não

colonizados já ocorria no século XIX e manteve-se em andamento durante o século XX.

Na medida em que os índios eram afastados e as terras “domesticadas” a presença dos

grandes fazendeiros passava a ser sentida. O trabalhador acabava expulso, tendo que se

dirigir para outras paragens, ou se tornava um agregado e dependente dos expropriadores.

Nessa dinâmica, o caboclo não viveria à margem da “civilização”, mas, por ela seria

marginalizado91.

Monteiro Lobato, mais do que muitos “defensores” do caboclo, reconheceu a

precariedade de vida do trabalhador rural. Isso ainda na primeira fase dos seus escritos –

entre 1900 e 1918 – e, mesmo em “Urupês”, já admitia, ao menos parcialmente, a causa

do nomadismo do caipira: “Há mil razões para isso; porque não é sua a terra; porque se

o ‘tocarem’ não ficará nada que a outrem aproveite...” 92. O próprio Lobato admitiu que

“tocava” os caboclos que incendiavam sua propriedade.

Apesar dos seus duros ataques ao trabalhador do campo, seu discurso se voltou

principalmente contra um arcaico sistema fundiário. Como dito anteriormente, em seus

escritos, que vão de 1900 até 1918, já estava delineado que seu alvo principal seria às

relações econômicas pré-capitalistas e a incompetência do aparelho estatal. O trabalhador

rural é considerado como parte do problema, mas não como a única causa do atraso

nacional.

...dentro desse contexto de transição, de redefinição das relações de trabalho, o Jeca Tatu e seu mundo constituem verdadeiros símbolos de

91 BRANDÃO. Os caipiras de São Paulo, 1983, p. 32-35. 92 LOBATO. Urupês, 1950, p.247.

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um atraso econômico, político e mental que, no entender de Lobato, devia ser vencido. O momento exigia um tipo de trabalhador eficaz, produtivo, integrado à economia de mercado. O caipira, com sua vida semi-nômade, sua submissão aos coronéis e sua mentalidade fatalista era um obstáculo ao progresso...93

O fazendeiro Monteiro reconhecia a ausência de trabalhadores qualificados que

viessem a preencher o mercado de trabalho que estão se modernizava. A gradual

desqualificação das relações escravocratas resultou, de forma indireta, em uma

desvalorização do negro, marginalizando-o dos setores produtivos. O ideal de trabalho

livre passou a ser associado à imagem do imigrante europeu, o que desfavoreceu

significativamente à integração da mão-de-obra local. No caso dos trabalhadores rurais, o

discurso de que eram indolentes foi paralelo ao processo de expropriação de suas terras.

Argumentava-se sobre as vantagens da substituição do caboclo indolente pelo imigrante

laborioso. Indiretamente, o próprio Lobato reconhece esse processo de exclusão:

À medida que o progresso vem chegando com a via ferrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugiando em silencio, com o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo a sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. 94

Mantém-se firme uma convicção, presente desde o Segundo Reinado, de que a via

férrea representaria o avanço da civilização ao interligar as zonas interioranas às cidades.

A expansão das redes ferroviárias são exemplos da emergência de uma nova mentalidade

que valorizou o dinamismo e a técnica em detrimento do estático e do natural. As

estradas de ferro foram acompanhadas de uma especulação imobiliária em volta dos

terrenos adjacentes aos seus trajetos. Nesse processo de valorização do capital,

93 CAMPOS. A República do Picapau Amarelo, 1986, p. 24. 94 LOBATO. Op. cit., p. 235.

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populações indígenas foram exterminadas e as comunidades caipiras – resultados das

miscigenações entre brancos e índios - direcionadas para rincões mais afastados95.

Monteiro Lobato, ao longo de toda sua trajetória intelectual, sempre associou o

ambiente urbano à possibilidade de um maior desenvolvimento intelectual e material.

Não foi gratuitamente que o modelo de cidade norte-americano o fascinou. Segundo o

escritor, a vida interiorana oferecia poucos incentivos materiais, o que desfavorecia

enormemente qualquer iniciativa econômica. No conto “A grande ideia”96, Lobato fala

das condições dos professores do interior, com baixos rendimentos públicos e péssimas

condições de trabalho. Os alunos seriam uma “jecalhada miúda”, analfabetos e

desinteressados, cuja única preocupação seria os afazeres da roça. Assim, a proposta de

Lobato é que fosse concedida uma gratificação ao docente por cada criança alfabetizada,

estimulando o maior empenho profissional do professor.

O caipira preguiçoso e estereotipado no “Jeca Tatu de Monteiro Lobato contrasta radicalmente com a profunda valorização do trabalho entre populações caipiras do Alto Paraíba, nas vizinhanças da mesma região montanhosa em que Lobato trabalhou como promotor público e fixou as impressões que definiram esse personagem... As observações desse autor estão diretamente fundadas na valorização do modo de vida urbano contra o tradicionalismo agrário, o que constitui um dos núcleos da ideologia da modernização, que se estrutura no país ao menos desde o início do século e que veio a ser um dos componentes básicos do extensionismo rural no Brasil.97

Foi nesse contexto, de procura por estratégias que permitissem maior

aproximação entre campo e cidade, que Lobato se posicionou como um crítico de uma

produção assentada em produtos primários que, em sua opinião, estava excessivamente 95 Cf: ARRUDA. Cidades e Sertões. 2000. (sobretudo terceiro capítulo). 96 LOBATO. Na Antevespera, 1950, p. 221-226. 97 MARTINS. “Capitalismo e Tradicionalismo”. APUD: BRANDÃO. Os caipiras de São Paulo, 1983, p. 32-33.

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direcionada para o mercado externo. Durante as primeiras décadas do regime

republicano, várias iniciativas de mapeamento do território e de expansão ferroviária

estavam em andamento. Falava-se em modernização dos campos, desbravamento dos

sertões, expedições na selva, em suma, de avançar contra o território ignoto, para mapeá-

lo e colonizá-lo. Assim, as discussões levantadas por Monteiro Lobato sobre a relação

entre campo e cidade, a superação da monocultura cafeeira e o destino da mão-de-obra

local não eram ponderações isoladas, ao contrário, refletiam propostas e estratégias do

governo federal e das administrações estaduais.

Portanto, devem ser sublinhados dois aspectos importantes do pensamento de

Monteiro Lobato sobre o trabalhador rural. Em primeiro lugar, o caipira não é

considerado a causa única do atraso nacional, ele faz parte de uma estrutura latifundiária

obsoleta. Em segundo lugar, um dos componentes essenciais para constituir a

representação de Jeca Tatu foi seu atributo de isolamento, isto é, ser um tipo que se

afastava da vida em sociedade. A princípio seu distanciamento da civilização era

creditado a uma particularidade de sua sub-raça. Porém, na medida em que Lobato se

envolveu com os preceitos da campanha higienista, ele acabou por rever essa sua

concepção sobre o roceiro brasileiro.

E eis que surge o microscópio

Em julho de 1917 a fazenda Buquira finalmente era vendida e o fazendeiro

Monteiro deixava de existir. Esse “estágio rural” foi importante para que o escritor

desenvolvesse uma interpretação sobre o ambiente interiorano e seus moradores.

Contudo, nenhuma revolução agrícola ocorrera em sua propriedade, como antes ele

esperava, a implantação de métodos americanos também não salvou a fazenda de seus

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constantes déficits. Definitivamente Lobato não logrou o sucesso esperado como

administrador de sua propriedade. Em compensação, como escritor, ele já possuía alguma

notoriedade, um reflexo de sua escrita ágil e da forma inovadora como ele abordou temas

polêmicos, a exemplo dos escritos sobre Jeca Tatu e Arte Moderna. Com os recursos

adquiridos com a venda da propriedade, Lobato mudou-se para a cidade de São Paulo,

onde passou a ter um convívio mais próximo com os grupos intelectuais locais.

O Lobato daquela época, apesar de já conhecido, era um ser à procura de identidade como cidadão quer retraçava um caminho tão comum dos vale-paraibanos que viam na agricultura um empreendimento esvaziado de possibilidades. A cidade, o parque industrial que se abria consubstanciavam a esperança moderna dos homens que queriam riqueza. A utopia da cidade era pois condição da modernidade e Lobato a aspirava mais que nada e mais que muitos que já a tinham desde a infância. Em Lobato a lógica de seu tempo: vinha com capital oriundo do campo, para a cidade grande; na cidade grande instalava-o com uma cultura de rejeição ao meio agrícola que era, afinal, metáfora do passado colonial. 98

Em São Paulo, Monteiro Lobato teve a oportunidade de estreitar relações com o

grupo de intelectuais que havia se formado ao redor do jornal Estado de São Paulo e a

Revista do Brasil – ambos pertencentes ao grupo da família Mesquita. Nessas duas

publicações, afamados escritores, ensaístas e estudiosos de diferentes matizes ideológicos

expressavam suas opiniões a respeito de vários temas da vida nacional. Sérgio Miceli fala

do cosmopolitismo intelectual da Revista do Brasil ao mostrar como esse mensário

buscou ser uma edição erudita, com artigos de importantes pensadores brasileiros, um

contrapeso ao mundanismo das magazines ilustradas99.

98 MEIHY. “Monteiro Lobato e o outro lado da rua”. In: FABRIS (org.). Modernidade e Modernismo no Brasil, 1994, p. 42. 99 MICELI. Intelectuais e classe dirigente no Brasil, 1979, p. 4-5.

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Em 1918, Monteiro Lobato comprou a Revista do Brasil, um projeto por ele

acalentado desde que suas contribuições para essa publicação se tornaram mais

freqüentes. A aquisição dessa revista foi a oportunidade para que Lobato ingressasse no

ramo editorial, no ano seguinte ele já iniciava a publicação de livros, de sua autoria e

também de terceiros. Sua atuação como empresário do ramo editorial popularizou ainda

mais seu nome entre os grupos letrados do país. O editor Lobato manteve a linha editorial

da publicação, mas acentuou seu aspecto mercadológico, inclusive se valendo de vários

apelos publicitários100.

Essa alteração de ocupação profissional é bem ilustrativa, ao mudar-se do campo

para a cidade, mudou-se de fazendeiro para editor. O papel social de Monteiro Lobato

não é mais aquele de observador do campo que envia seus registros para cidade,

revelando uma realidade desconhecida da maioria dos citadinos. Temos agora uma outra

figura, a de editor gráfico, detentor de um amplo conhecimento sobre a vida cultura do

país, responsável por selecionar qual material deverá ser divulgado entre o grande

público. Para quem sempre teve uma loquacidade de profeta, nada mais apropriado do

que possuir uma editora.

Certamente essa mudança de ambiência alterou a maneira de Lobato conceber a

figura de Jeca Tatu, sua experiência na fazenda o convenceu de que os problemas do

campo eram mais profundos, não se limitando à “ação parasitária” de uns poucos

agregados. Porém, o principal fator para re-interpretação do caboclo foi o próprio

contexto intelectual e cultural do momento, que passava por algumas mudanças. As

100 Cf: LUCA. A Revista do Brasil, 1998, p. 64-72.

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expedições médicas ocorridas em localidades pouco conhecidas e os movimentos pró-

saneamento trouxeram novas inquietações sobre as condições do povo brasileiro.

Após 1910, diversas expedições foram dirigidas ao interior do país, promovidas e

financiadas pelo Instituto Oswaldo Cruz101. Os relatórios dessas viagens conformaram a

imagem de um sertão abandonado e doente, afetado por moléstias como malária,

amarelão e mal de chagas. A representação do sertão como lugar de atraso tornou-se a

tônica dominante nesses discursos, mas, em contrapartida, seus habitantes (sejam índios

ou caipiras) começam a ser desculpados pelo suposto atraso em que viviam. A situação

de desleixo dos interiores do país passou a ser vista como decorrência do descaso e

desinteresse do governo em ter um maior controle de seu território e de seus cidadãos.

Essas viagens contribuíram para uma perda da importância da categoria racial

como elemento explicativo da sociedade brasileira, não se tratava mais de uma nação de

mestiços inferiores, mas sim de doentes. Portanto, a representação de que os sertões

estavam repletos de ociosos e incivilizados foi substituída pela imagem de uma zona rural

doente e abandonada, impossibilitada de assimilar os desenvolvimentos tecnológicos.

Dentro das discussões desses médicos higienistas, o Brasil não seria um ermo sertão, mas

sim uma promissora zona rural que se encontrava desamparada e empobrecida. Nessa

nova representação do país, a assertiva de que os trabalhadores, por natureza, seriam

preguiçosos não poderia mais ser sustentada.

Os médicos Arthur Neiva e Belisário Penna foram pioneiros desse movimento e,

em 1912, participaram de uma expedição às regiões pouco conhecidas do nordeste e

centro-oeste do país. O relatório dessas viagens influenciou a comunidade médica,

101 LIMA. Um Sertão chamado Brasil. 1998. (Ver capítulos 3 e 4)

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políticos e intelectuais em gerais que se impressionaram com as descrições feitas dos

campos e sertões do país.

Um argumento importante do relatório é que se estava diante de uma população abandonada e esquecida que, mesmo vitimada por doenças, ainda poderia [...] se apresentar robusta e resistente [...] Esses médicos ressaltam o contraste entre o que observaram e relataram e a retórica romântica sobre o caboclo e o sertanejo, descrevendo o povo como ignorante, abandonado, isolado, com instrumentos primitivos de trabalho, desconhecendo o uso da moeda, tradicionalista e refratário ao progresso. Esse quadro de isolamento era responsável pela ausência de qualquer sentimento de identidade nacional.102

A denúncia mais evidente existente nessa literatura influenciada pelos relatos

médicos de viagens é que as populações se encontravam ilhadas em um ambiente hostil e

opressivo. Por isso:

Apesar de a imagem da população descrita pelo relatório, muitas vezes, assemelhar-se a uma imagem negativa corrente no período, a grande mudança está na atribuição de responsabilidade pela apatia e pelo atraso. Seria o governo o grande culpado pelo abandono da população à sua própria sorte, e não mais a natureza, a raça ou o próprio indivíduo [...] As autoridades públicas, em todos os níveis, são apontadas como as verdadeiras responsáveis pela situação vigente no interior do país, cujo abandono deixa como legado as endemias rurais e suas funestas conseqüências. 103

Se por um lado, o Jeca Tatu foi inicialmente retratado como um fugitivo da

civilização, representante de uma espécie cuja indisposição ao trabalho era natural, por

outro, essa interpretação não subsistiu por muito tempo. Em consonância com os debates

higienistas, que se propagavam nos círculos intelectuais paulistas, novos fatores para

explicar a indolência e o nomadismo de Jeca Tatu foram encontrados. Amigo do médico

102 HOCHMAN. “Logo ali, no final da Avenida.” História, Ciências, Saúde, 1998, p. 222. 103 Ibidem, p. 223.

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sanitarista Arthur Neiva, Lobato acabou, em finais da década de 1910, cooptado pelas

campanhas de saneamento.

Tania Regina de Luca fala que a mudança de perspectiva que Jeca Tatu sofreu é

representativa do aparecimento de novas formas de analisar os problemas sociais do

país104. Havia um paralelo entre regeneração dos sertões, dos brasileiros e da nação. Uma

crença de que as dificuldades e deficiências seriam resolvidas pelos preceitos e receitas

dos médicos. Lobato, assim como os sanitaristas, acreditou que suas concepções não

eram otimistas, mas embasadas pelo saber científico, pois era através da medicina social

que os problemas nacionais seriam solucionados.

O momento em que Lobato adquiriu A Revista do Brasil coincidiu com seu

interesse pelas campanhas de saneamento. Em 1918 ele já havia redigido vários artigos

sobre o assunto, destacando a importância do sanitarismo para a recuperação das zonas

rurais e dos centros urbanos. Também defendeu o argumento de que o Brasil deveria ser

administrado em bases científicas, com os cientistas ocupando o lugar dos políticos. Em

1919, editou o livro Problema Vital, coletânea de textos que anteriormente tinham sido

publicados em periódicos. Com seu usual estilo, ele atacou a mentalidade bacharelesca,

representada na figura do advogado diletante, enquanto, em contrapartida, elogiou os

cientistas de Manguinhos.

Monteiro Lobato chegou mesmo a participar de algumas missões conduzidas por

Arthur Neiva, nessas viagens deparou-se com cidades inteiramente doentes. Os artigos de

Problema Vital são uma exteriorização de uma experiência desagradável a parte da

intelectualidade: braços que a lavoura e a indústria perderam, populações parasitadas por

104 LUCA. A Revista do Brasil. 1998, p. 234.

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micróbios e incapazes de se integrar ao trabalho regular. Diante de uma situação

insustentável para o país, o escritor indagou as razões da indiferença do governo, fazendo

coro ao grupo de pensadores que não se identificavam com a República Oligárquica.

Comparando os livros Urupês e Problema Vital, o primeiro publicado em início

de 1918 e o outro em fins do mesmo ano, percebe-se uma mudança radical de

perspectiva. Jeca Tatu é redescoberto, não é mais aquele mestiço imprestável que

parasitava as terras dos fazendeiros, mas sim um homem abandonado pelo Estado,

carcomido por verminoses, protozoários e bactérias, enfim, toda uma fauna

microbiológica. O editor Lobato abandonou, ao menos parcialmente, uma trágica

perspectiva racial em proveito de uma mais otimista: a higienista. O saber prático do

fazendeiro cedia lugar ao conhecimento dos cientistas médicos. Era nos laboratórios de

Manguinhos que se encontraria a solução para os problemas nacionais, cujas origens se

assentavam nas endemias e epidemias que assolavam o campo e também as cidades. De

fato, todos os problemas nacionais, a começar pelo agrário, seriam resolvidos por essa

via: “Entretanto, a solução definitiva do problema eterno da lavoura quem a dará é a

higiene.” 105

Em 1918 ocorre a definitiva redenção de Jeca Tatu, contradizendo aquela primeira

descrição negativa, surgida em 1914. Uma nova caracterização do trabalhador do campo

foi constituída, a frase estampada no frontispício de Problema Vital já é um indicativo:

“O Jéca não é assim; está assim” 106. Jeca nunca fora um preguiçoso nato, afirmou

Lobato, suas dificuldades são decorrentes do seu estado de saúde. A constatação de que a

105 LOBATO. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital, 1950, p. 243. Em outra passagem (p.272): “Só a alta crescente do índice de saúde coletiva trará a solução do problema econômico, do problema imigratório, do problema financeiro, do problema militar e do problema político.” 106 Ibidem, p. 221.

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debilidade dos trabalhadores era um problema sanitário e não étnico mereceu inclusive

um comentário aliviado de Lobato: “Respiramos hoje com mais desafogo. O laboratório

dá-nos o argumento que ansiávamos. Firmados nele contraporemos à condenação

sociológica de Le Bon a voz da mais alta biologia.” 107

O roceiro se encontraria doente, vítima de doenças que poderiam se evitadas se o

poder público fosse presente108. A descrição do caipira, em si, não foi alterada, os

atributos iniciais que o retratavam como improdutivo permaneceram, mas não mais como

uma característica intrínseca. Aquele caboclo de cócoras poderia render tanto quanto um

imigrante europeu se não estivesse repleto de moléstias. Segundo Lobato essas eram

verdades que as autoridades e os nacionalistas cegos ignoravam – as cidades insistiam em

desconhecer as péssimas condições de vida o interior. Novamente há um ataque aos

idealizadores, que enxergaram beleza onde só havia doenças:

Retrato do nosso caboclo quem o dá perfeito, com fidelidade fotográfica, é o médico ao desenhar o quadro clínico do ancilostomado. Tudo mais é mentira, retórica, verso. Esses heróicos sertanejos, fortes e generosos, evolução literária dos índios plutárquicos de Alencar; essa caipirinha arisca, faces cor de jambo, pés lépidos de veada, carne dura de pêssego: licenças bucólicas de poetas jamais saídos das cidades grandes. 109

É curioso observarmos a referência aos literatos da cidade, desconhecedores da

realidade do ambiente rural – no conto “Urupês” já é perceptível uma crítica a

representação romântica do sertanejo e do indígena. Para Lobato o contato com as regiões

107 Ibidem, p. 298. (grifo do autor) 108 Todavia, esse mar de esperanças não estava isento de agitações. Subconscientemente o fantasma racial não estava plenamente exorcizado. Se o higienismo falhasse o que seria da nação brasileira? Ao falar da necessidade das reformas sanitárias, Lobato arrisca: “E além disso, é o ultimo cartucho que nos resta queimar...” (Ibidem, p. 328). 109 Ibidem, p. 233.

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interioranas era imprescindível para que se desenvolvesse um saber relevante sobre o

modo de vida do homem do campo. Quando registrou suas primeiras impressões sobre o

caipira essa idéia já estava implícita; antes, ela falara na posição de fazendeiro, mas agora

ele se embasava nas pesquisas realizadas pelos médicos de Manguinhos. Esse empirismo

de Lobato é perceptivelmente destoante dos discursos ufanistas que se vangloriavam da

natureza local: “O Brasil é o país mais rico do mundo, diz com entono o Pangloss

indigena. Em parasitas hetafagos transmissores de molestias letais – conclue

Manguinhos.” 110

O novo Jeca não é mais o parasita, mas sim parasitado. Explorado, roubado e

sugado, agredido por bactérias, vírus e protozoários, pelos fazendeiros, pelos políticos e

pelo próprio estado. De acordo com Lobato e os sanitaristas, essa seria a verdadeira

condição do trabalhador rural brasileiro. Jeca Tatu não revelaria mais uma fraqueza, mas

sim uma força, já que ele sobrevivia aos parasitismos biológico e social. Mesmo repleto

de doenças, era ele quem produziria as riquezas no país.

A esta hora milhões de verdadeiros patriotas lá estão no eito, porejantes de suor, na faina da limpa e do plantio. Febrentos de maleita, exaustos pelo amarelão, espezinhados pelo ácaro politico, lá estão cavando a terra como podem, desajudados de tudo, sem instrução, sem saude, sem gozo da mais elementar justiça. 111

Percebe-se que, gradualmente, a responsabilidade pelo fracasso do Brasil agrário

foi transferida do caboclo para as elites governantes. O parasita não é mais o Porrigo

Decalvans, aquele incendiário que, em 1914, tanto incomodou o fazendeiro Monteiro,

mas sim o Triatoma bacalaureatus, isto é, o arrivista da república, bovarista e

110 Ibidem, p. 247. 111 LOBATO. Mr. Slang e o Brasil e Problema Vital, 1950, p. 270.

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aventureiro. A idéia do caipira improdutivo se dilui nesses ensaios, pois há uma

explicação para sua suposta ineficiência. Ele deveria sobreviver aos parasitas internos e

externos, sendo que esses últimos seriam os políticos, aproveitadores da debilidade dos

brasileiros para sugar as riquezas do país. Portanto o alheamento do governo perante as

patologias do sertão não seria inocente, pois haveria, segundo o escritor, uma

intencionalidade política. Deixar os brasileiros doentes seria deixá-los inertes. Nesse

sentido: “Tornaram-se aliados naturais, os parasitos internos e os externos.” 112

Os intelectuais que compactuaram com a campanha de saneamento contribuíram

para a formação da imagem do Brasil como um “vasto hospital”, para empregar a

conhecida expressão do médico Miguel Pereira. Monteiro Lobato passou a defender esses

mesmos princípios, chegando a afirmar que o país era, de fato, um imenso hospital e que

deveria ser administrado por médicos e enfermeiros e não por bacharéis. O discurso de

Lobato é direcionado no sentido de valorizar a experiência de Manguinhos, considerada

nas primeiras décadas do século XX como a única instituição que produzia

verdadeiramente ciência no Brasil113. Daí o contraste com a administração da república,

considerada como incompetente, corrupta e pouco informada sobre os assuntos de

relevância nacional. Por isso, o incômodo dos defensores do saneamento com os

pronunciamentos ufanistas que, para eles, revelavam uma grande ignorância sobre a

realidade brasileira.

Tratava-se de uma disputa de representações sobre o país e seus habitantes. De

um lado, uma nova elite intelectual que pretendia legitimar sua práxis política a partir de

112 Ibidem, p. 263. 113 SCHWARTZMAN. Um Espaço para a Ciência, 1993, p. 118-119.

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seu saber científico, do outro lado estavam os intelectuais e representantes tradicionais da

república oligárquica, com seus discursos ufanistas e nacionalistas. Debatia-se não só

qual era o perfil do país, mas também seu futuro próximo, ou seja, discutia-se sobre

modelos distintos de desenvolvimento nacional. O grupo ao qual Lobato estava inserido

recusou concepções românticas e positivamente idealizadas do trabalhador do campo, a

opção foi por um diagnóstico no qual a figura do Jeca emergiu como um doente, alguém

pouco preparado para o trabalho regular e racional.

A inserção de Jeca Tatu na sociedade civil

A partir do momento em que o fator raça deixou de ser condicionante, Lobato

passou a vislumbrar alternativas para a “regeneração” do trabalhador rural. Ele sugeriu,

por exemplo, que fossem criados códigos que obrigassem os fazendeiros a construírem

moradias adequadas aos trabalhadores. Propôs que as moradas de palha, como aquelas

descritas em “Velha Praga” e “Urupês”, fossem substituídas por residências higiênicas,

que protegessem seus moradores de insetos e contágios de doenças infecciosas. A

intenção era tornar o caipira sedentário e mais eficiente. Para o escritor, se Jeca Tatu

desenvolvesse uma noção do conforto, acabaria por almejar uma contínua melhoria de

vida, tornando-se dessa forma competitivo e laborioso.

Buscava-se, portanto, reabilitar o trabalhador brasileiro, curando suas doenças

para que sua mão-de-obra fosse valorizada. André Luiz Vieira de Campos encontra nessa

percepção de Lobato a influência dos pressupostos tayloristas:

Percebemos então que, ao tratar da questão da saúde, Lobato estava tratando de dois temas, na verdade intimamente associados:

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implantação não só da ciência médica como também de uma nova organização e disciplina de trabalho. 114

Nas propostas de modernização que Monteiro defendia, o trabalhador seria um

agente passivo, caberia a ele acatar resoluções tomadas por terceiros. Jeca Tatu nunca foi

chamado para dizer quais eram seus anseios ou suas perspectivas em relação às mudanças

que a intelectualidade almejava. Em parte porque Lobato considerava que Jeca estava

muito longe de ser um cidadão e, desta forma, incapaz de decidir livremente.

Em sua estadia nos Estados Unidos, Monteiro Lobato ficou impressionado com a

força da sociedade civil americana. Lá as pessoas exigiam seus direitos, questionavam as

decisões do estado e, caso se sentissem lesadas, recorriam judicialmente. Situação bem

diversa do Brasil, caracterizada por um despotismo dos funcionários públicos que podiam

destratar impunemente as pessoas pobres e “não apadrinhadas”. Monteiro Lobato passou

a acreditar que a população deveria se relacionar com o aparelho estatal de uma forma

não servil, mas sim como cidadãos conscientes dos seus direitos e dos deveres do Estado.

De fato, no Brasil das décadas de 1910 e 1920, sobretudo nos ambientes rurais, as

relações de poder eram profundamente verticalizadas. Não havia espaços para recorrer

contra as arbitrariedades dos grupos dirigentes. O próprio Lobato, que já fora fazendeiro,

sabia muito bem que, se incomodado por um dos seus empregados, bastava “tocá-lo”. A

dependência econômica de Jeca Tatu o incapacitou de ser um agente ativo, capaz de

reivindicar seus direitos, pois:

País tão pobre que necessita trocar o voto por um chapeu, nunca poderá alçar-se à categoria de eleitor. Tem que permanecer na posição

114 CAMPOS. A República do Picapau Amarelo, 1986, p. 48.

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de “portador de cedula”, sem que lhe seja permitida, sequer, a audacia, o topete, de querer saber o nome que a cedula traz. 115

Assim, não seria suficiente que o Brasil tivesse leis similares as em vigor nos

Estados Unidos. Para que a cidadania florescesse no país, seria necessária a existência de

uma estrutura econômica moderna, própria dos países capitalistas desenvolvidos. A

siderurgia, o petróleo e a indústria agrícola eram condições necessárias para que Jeca

Tatu fosse libertado do domínio dos fazendeiros e pudesse exercer sua expressão política.

Porém, enquanto esse painel econômico não se convertesse em realidade, os

trabalhadores – tanto os rurais quanto os urbanos – deveriam ser tutelados por aqueles

que já dispusessem de um conhecimento científico sobre a realidade nacional.

Para que o Brasil atingisse a independência econômica, várias medidas deveriam

ser tomadas, entre elas a melhoria física e mental dos trabalhadores através da higiene. É

no texto “Jeca Tatu: A ressurreição” 116, que Lobato explicitou claramente sua crença na

medicina social como um caminho para incentivar o aumento da produtividade rural.

Uma verdadeira cartilha117, o texto inicia-se partindo da conhecida figura de Jeca Tatu

como um indolente, alguém incapaz de cultivar seu rincão de terra, uma triste figura,

capaz de despertar a piedade e asco.

Tal situação perdurou até o dia em que um “doutor” foi ao sítio de Jeca Tatu e

diagnosticou que este tinha anquilostomíase, o conhecido amarelão. O médico prescreveu

remédios e sugeriu que o caipira passasse a usar botinas. Dessa forma Jeca acabou curado

– e por não andar mais descalço parou de ser infectado – rapidamente se transformando

115 LOBATO. America, 1964, p. 170. 116 LOBATO. Problema Vital. 1950. 117 Esse texto de Lobato acabou amplamente divulgado através do almanaque de Cândido Fontoura.

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em um ativo empreendedor rural, capaz de trabalhar com muito afinco. Enriqueceu,

constituiu uma fazenda, passou a estudar o inglês para compreender o modo de vida

norte-americano e iniciou uma série de melhorias na infra-estrutura da região, além de

instruir os outros caipiras sobre os riscos do amarelão.

Esse texto é uma fábula sobre o progresso advindo pelos intermédios da ciência.

Enquanto Jeca Tatu estava doente sua vida era miserável, sua força de trabalho era

empregada simplesmente para não morrer de fome. Depois de curado ele desenvolveu

desejos de ascensão social e preocupou-se em ajudar outros caipiras. A cura biológica era

condição para cura social e econômica, somente após atingida essas etapas que Jeca Tatu

poderia se tornar um cidadão e patriota. O tom otimista e pedagógico nesse texto é

evidente, bastava o trabalhador do campo ser curado para que a indústria agrícola se

consolidasse. A eficiência seria atingida não pelo estímulo e assimilação de uma ética

protestante, mas sim pela aplicação de intervenções dos médicos higienistas.

Em seus escritos a favor da campanha de saneamento, as críticas são voltadas

principalmente para denunciar a incompetência do governo. Porém, o esperado do poder

público era somente que este curasse os brasileiros, a formação de uma indústria

produtiva e o desenvolvimento de uma sociedade civil seria uma “conseqüência natural”,

vindo por parte do próprio povo, sem participação direta do Estado.

A visão de mundo liberal-fordista de Lobato fará com que o autor, ao discutir a concepção de governo privilegie principalmente o espaço da sociedade civil para o exercício da cidadania, em detrimento da instância do Estado. É na sociedade civil que efetivamente se exerce a cidadania no cotidiano, se realiza a política e se defendem interesses 118

118 CAMPOS. A República do Picapau Amarelo, 1986, p.148

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As referências à democracia americana e as relações entre cidadão e Estado são

comuns na obra de Monteiro Lobato. Um dos sintomas da regeneração de Jeca Tatu é seu

interesse em aprender a língua inglesa: “- Quero falar a lingua dos bifes para ir aos

Estados Unidos ver como é lá a coisa”119. O contraponto é entre um país com forte

tradição nos direitos civis e o Brasil, cujas relações políticas foram historicamente

pautadas por um autoritarismo, existindo pouco espaço para a prática dos direitos civis.

Nada mais contrário à cidadania do que a estrutura política coronelista que vigorou

durante a Primeira República. Naqueles ambientes rurais e interioranos, que eram

controlados pelos fazendeiros120, os trabalhadores tinham um espaço de ação reduzido.

Os supostos símbolos da civilização, como a delegacia, a igreja, a escola e a farmácia,

estavam a serviço dos coronéis.

Dentro dessas relações de poder, Jeca Tatu é um “paria rural” 121, sua doença se

constitui em mais uma amarra dessa estrutura política, impossibilitando-o de ser um

agente histórico. O agregado vive de propriedade em propriedade, as poucas terras que

possui podem ser perdidas a qualquer momento. A ação mais afirmativa do caboclo

perante uma sociedade tão adversa são seus arroubos de violência. Em um breve artigo,

Jorge Coli fala da agressividade do caipira. A partir de um estudo dos quadros de

Almeida Júnior é analisada a aparente gratuidade da violência nas sociedades caipiras,

119 LOBATO. Op. cit., p. 338. 120 Isto não quer dizer que eram coronéis somente os fazendeiros. Na verdade, a discussão sobre coronelismo é complexa e foge aos objetivos desse ensaio. José Murilo de Carvalho discutiu as confusões usualmente feitas entre os termos mandonismo, coronelismo e clientelismo. Ele esclarece que: “Da imagem simplificada do coronel como grande latifundiário isolado em sua fazenda, senhor absoluto de gentes e coisas, emerge das novas pesquisas um quadro mais complexo em que coexistem vários tipos de coronéis, desde latifundiários a comerciantes, médicos e até mesmo padres”. CARVALHO. “Mandonismo, Coronelismo e Clientelismo: Uma discussão conceitual”. Dados, p. 232. 121 Cf: LOBATO. Problema Vital, 1997, p. 277, 318.

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mostrando que assassinatos e emboscadas afloravam com facilidade em um ambiente

supostamente harmonioso.

A faca que o caipira usa para picar fumo, a machadinha para lenha ou a

espingarda de cano para caça são instrumentos para o cotidiano que rapidamente podem

se converter em armas para atacar o inimigo, o vizinho e até mesmo um parente122.

Dentro de um ambiente no qual as relações entre os cidadãos não estão constituídas,

manifestações agressivas não significariam anormalidades, mas sim normas próprias para

resolver impasses que, ao observador externo, poderiam ser considerados como banais.

Monteiro Lobato compreendeu a dificuldade de inserir o caipira dentro de um

conjunto de regras comuns que determinassem direitos e deveres. Em “Velha Praga”,

essas idéias já estavam esboçadas, pois uma das poucas vantagens de ser um não cidadão

era que o caboclo poderia provocar queimadas, uma vez que, pelo fato de ser um eleitor

do coronel local, não seria punido. Há um conto de Lobato no qual um personagem de 11

anos passa a se sentir adulto após receber do pai uma faca de ponta, atributo de virilidade

e atestado de que entrava na vida adulta123. Assim, ao receber uma arma, o jovem tomou

ciência que caberia a ele mesmo zelar por sua vida e honra.

A experiência de Monteiro Lobato como fazendeiro e, anos depois, como adido

comercial nos Estados Unidos (1927-1931) foram dois momentos no qual ele refletiu

sobre a dificuldade de se constituir uma sociedade civil ativa no Brasil. Ele percebeu que

a população rural vivia um conjunto de regras próprias, sem relação com as leis do

Estado de Direito. Mas ele atribuía a vitalidade da democracia americana à prosperidade

122 COLI. “A violência e o caipira”. Estudos Históricos, 2002, p. 23-30. 123 LOBATO. “Pedro Pichorra”. In: Cidades Mortas, 1950, p. 51-57.

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econômica daquele país. O mercado assume em seu pensamento a conotação clássica do

liberalismo: um espaço para troca de mercadorias, permuta de idéia e desenvolvimento de

noções de liberdade e livre iniciativa. Em sua opinião revoluções ou reformas

institucionais e jurídicas teriam pouco ou nenhum efeito sobre o comportamento político

dos brasileiros, somente após o aumento do índice de riqueza geral – constituição de um

novo mercado – que seria possível a superação dos traços coloniais e autoritários.

Na relação entre Jeca Tatu e a cidadania, há um outro ponto que também deve ser

considerado: a importância da experiência urbana para a superação de mandonismos

políticos. De fato, na história do Ocidente, as cidades foram ambientes propícios para o

florescimento de práticas republicanas e de afirmação dos direitos civis. O urbano foi um

local privilegiado para a expressão política, um espaço no qual floresceu ligas, confrarias

e sindicatos, palco de lutas, manifestações e reivindicações. A associação entre a

cidadania e o urbano foi suficientemente forte para que a intelectualidade pensasse que a

superação da mentalidade rural brasileira seria um quesito para o desenvolvimento da

sociedade civil no país.

O Brasil era fortemente marcado pela vida rural, e Monteiro Lobato, como um

cosmopolita e pretenso citadino, almejava uma maior urbanização e industrialização do

país como estratégia para promover o desenvolvimento econômico, político e moral.

Percebe-se também que, na própria tradição intelectual brasileira, prevaleceu um

entendimento de que as áreas rurais não eram propícias ao desenvolvimento da cidadania.

Essa concepção acentuou ainda mais o processo de desqualificação do trabalhador rural,

uma vez que ele passou a ser representado como um agente incapaz de agir livremente.

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A liderança local, nos municípios rurais ou predominantemente rurais, é privativa das classes dominantes, incluídos os seus aliados. Se nas cidades mais populosas já encontramos líderes operários, o fenômeno é ainda desconhecido no meio rural, onde não passaria pela cabeça de ninguém dar posição de chefia ao trabalhador assalariado, incapaz de governar o próprio voto. 124

O trecho acima, na verdade, foi redigido por um dos primeiros estudiosos a pensar

a lógica própria do campo. Assim como Antônio Cândido, Victor Nunes Leal tentou

compreender os modos de organização do ambiente rural, destacando suas

especificidades políticas e sociais. No entanto, seu livro Coronelismo, enxada e voto

apresentou um Brasil rural atrasado, em descompasso com o progresso urbano. A pobreza

geral atingia inclusive os fazendeiros locais, então decadentes que, para manter prestígio

social e liderança política, recorriam a favores do governo, oferecendo em troca os votos

dos seus dependentes.

Interessa aqui especificamente a retomada da visão do caipira como pária, em

descrições que se não o tomam como parasita, ao menos o consideram como um

elemento sobressalente em uma organização econômica obsoleta, incapaz de assimilar

efetivamente a mão-de-obra disponível. O trabalhador continua a ser representado como

alguém dependente dos senhores, vivendo em um estado de nomadismo, sem a

capacidade de articular seus próprios interesses. Mas Leal traz outra dimensão a essa

análise, quando entende essa conjuntura como característica própria do mundo campesino

Brasileiro em vigor durante a Primeira República. Assim, a não ação política dos caipiras

estaria inserida em um contexto mais amplo, já que:

124 LEAL. Coronelismo, enxada e voto, 1975, p. 22-23 (nota 3).

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... seria ilusório pretender que esse novo paria tivesse consciência do seu direito a uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é o que presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabestro, que resultam em grande parte, da nossa organização econômica rural. 125

Esse incômodo sobre a definição política e social do trabalhador rural também

está presente nas reflexões de Monteiro Lobato. Como pode ser percebido, em seu

pensamento ocorre uma identificação entre cidadania e cidades, uma vinculação direta

entre experiência urbana e vida política. Ao se deparar com o abandono do caipira, o

escritor teceu críticas que culparam a República Oligárquica pela exclusão do interiorano

do modo de vida dito civilizado, que então era associado às áreas mais urbanizadas.

Eventos como os sucedidos em Canudos somente confirmariam a tese da incapacidade do

governo federal em lidar com as especificidades do interior126. O projeto de

modernização defendido deveria levar o urbano ao rural, um processo de atualização não

só econômica, mas também social e política.

A figura de Jeca Tatu permitiu que todas essas discussões fossem

operacionalizadas através de artigos, prefácios, cartas e texto literários propriamente

ditos. Uma das explicações para a vitalidade da imagem do Jeca é que esse personagem

foi facilmente moldável a várias teorias que pretenderam explicar o universo do homem

rural brasileiro. A precariedade de vida do caipira poderia ser decorrente de sua

inferioridade racial, mas também conseqüência das suas doenças, ou então resultado do

descaso do governo. A defasagem educacional, como queria Roquete Pinto, era outra

explicação possível para o desânimo e fatalismo do Jeca. 125 Ibidem, p. 25. 126 Monteiro Lobato foi um leitor de Euclides da Cunha, nesse sentido ele também considerava o governo republicano como pouco tático na resolução de seus impasses com os “sertões”.

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Monteiro Lobato, ao longo de sua trajetória intelectual, oscilou entre todas essas

argumentações. Mas a imagem do homem do campo afastado da cidade, desanimado e

enfraquecido acabou cristalizada no imaginário social. A figura do caipira se tornou

jocosa, por vezes patética e trágica. Esse processo pode ser explicado no fato de que, em

todas essas teorias arroladas, nenhuma considerou Jeca Tatu como um agente político

real, capaz de fazer escolhas e constituir estratégias de adaptação e confrontação perante

o sistema no qual estava inserido. Como vimos no primeiro capítulo, a associação entre

campo e atraso é existente na obra de Lobato, embora as tradições campesinas não fosse

descartadas em absoluto. Portanto, a representação do trabalhador rural na obra de

Monteiro Lobato foi coerente com essa sua percepção do campo. Pois a figura do Jeca

Tatu oscilou entre o apanágio da sua possibilidade de resistência e regeneração e a

denúncia de sua fraqueza física e incapacidade produtiva.

Na verdade, como veremos no próximo capítulo, a própria auto-imagem de

Lobato seguia esse mesmo esquema de transitar entre uma identificação com o urbano e o

rural. O que ocorre é que esse escritor, por meio da literatura traduzia suas inquietações,

suas indagações sobre as possibilidades de uma modernização local. Assim, Jeca Tatu era

a expressão da dificuldade do equilíbrio entre o interior e o litoral. O caipira era um ser

de fronteira, cuja (in)capacidade de resistir e prosperar estava sempre em discussão.

É possível fazermos uma análise na qual a dimensão heróica desse personagem

seja ressaltada. Explorado pelos proprietários de terras, portador de várias doenças e

abandonado pelo governo, uma condição de plena marginalidade. Mas, mesmo em meio

a essa exclusão, o sitiante, o roceiro e o meeiro continuavam, bem ou mal, em sua labuta.

O parasitado Jeca Tatu, mesmo que tropegamente, plantava, colhia e vendia. Assim,

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apesar das visões pessimistas e fatalistas, Jeca Tatu foi considerado, antes de tudo, um

forte.

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Capítulo 3: Jeca Lobato, caipira e citadino

O Escritor opera distinções a partir de seu lugar de habitante do litoral, sobrevoando o panorama nacional, de onde destaca as terras do interior como diferença. Portanto as narrativas consideradas expõem vozes sobre o Brasil a partir de um ponto fixo, origem do escrevente, o qual parte em viagem – sempre imaginária, seja ela textual ou concreta – rumo as regiões outras do vasto território.

(SOUZA. A pátria geográfica, p. 39)

Apesar da precariedade de vida ao qual foi submetido, o caipira era um

sobrevivente. No conto “Urupês” já estava definido que a existência de Jeca Tatu seria

uma sobrevivência, um constante deslocamento por paragens, uma vez que, de tempos

em tempos, sua ação predatória – a baixa produtividade, a indolência ou as

descontroladas coivaras – seria identificada, resultando em sua expulsão das propriedade

nas quais se encontrava alojado. Um ciclo parasitário, o trabalhador rural foi representado

como um agente que infeccionava as fazendas e as áreas rurais, um ônus para a

produtividade agrícola.

Essa representação do Jeca Tatu nunca foi consensual. Tanto os críticos de

Lobato, quanto ele próprio, tentaram encontrar outras chaves para caracterizar o

trabalhador rural brasileiro. No entanto, essa foi uma das representações mais perenes

sobre o homem do campo, imediatamente à publicação dos textos sobre o caipira

seguiram-se várias celeumas. Defensores e críticos da visão Jeca do caipira se

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posicionaram nesse debate. Portanto, cabe pensar a figura do Jeca Tatu em um contexto

cultural marcado pela procura de uma identidade do brasileiro e de um vislumbre da vida

no campo, tendo em vista o contexto cultural do modernismo.

Porque, para além de uma procura pelo perfil do homem do campo, persistia a

discussão acerca do papel da literatura nesse contexto de (re)definição de identidades

nacionais. Discutia-se também se a literatura possuía foros para discursar sobre a

sociedade brasileira ou se ela deveria restringir-se à esfera artística, isto é, a uma noção

de arte mais ensimesmada, direcionada para suas próprias questões estéticas.

Naturalmente que esse debate não era explícito e mesmo tão polarizado, no entanto,

enquanto alguns escritores produziam uma literatura “sorriso da sociedade” outros se

debruçavam nos dilemas da vida nacional.

A persistência da literatura como um instrumento político e pedagógico indica

que parte da intelectualidade manteve a convicção acerca de sua importância na vida

pública do Brasil. Como mostra Nicolau Sevcenko, com a eclosão da Grande Guerra, o

contato entre Europa e Brasil foi reduzido, portanto os escritores acabaram:

Obrigados a voltar-se para si mesmos, para seu território e sua própria gente, na necessidade crua de garantir a sua sobrevivência, todos os grupos intelectuais patenteavam a urgência e a conveniência de prover um saber eficaz sobre a realidade da nação. E mesmo a desconfiança e o desprezo para com a elite política, que renascem intensificados após um período de latência, convergiam nesse sentido. É deste entrecruzamento de fatores que nasceu a proposta estética mais candente desse fim de período, da pena de Monteiro Lobato. Graça Aranha, em “A estética da vida”, de 1921, pouco mais faria do que dar maior consistência filosófica e teórica, à parte de um maior refinamento literário, a uma matéria que Lobato já entalhara. O mérito maior seja mais das condições do período do que qualquer dos dois. 127

127 SEVCENKO. Literatura como Missão, p. 107.

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Portanto, este capítulo delineará a interação de Monteiro Lobato com a

intelectualidade, privilegiando os entendimentos dessas partes sobre a funcionalidade da

literatura como instrumento de práxis. Afirmar que, em certa medida, Lobato foi um

educador não é exagero. Seu interesse pela literatura infantil e pelo ramo editorial é

coerente com a preocupação de ampliar o público leitor no país. Sua tão repetida frase:

“Um país se faz com homens e livros.” evidencia uma concepção na qual cabe ao escritor

o dever de intervir na realidade social e se afasta irremediavelmente de outra orientação,

aquela que defenderia “a arte pela arte”.

A presente pesquisa é uma compreensão sobre as representações do campo e

cidade em alguns escritos lobatianos. Portanto, como uma discussão complementar, faz-

se necessário entender porque este escritor decidiu se debruçar sobre os problemas da

vida rural brasileira. Assim, o presente capítulo busca visualizar a própria concepção de

arte da qual Monteiro Lobato era engajado. Em seu entendimento, a arte não estaria

dissociada da vida, mas antes, estaria vinculada a um projeto de transformação social. Por

isso, seus projetos para a literatura, a pintura e a arquitetura buscavam uma maior

profundidade no conhecimento acerca da realidade nacional.

Se retomarmos a produção artística no decorrer do século XIX, perceberemos que

alguns escritores, interessados na construção e consolidação da nação, preocupavam-se

em usar seus romances para esboçar aspectos da identidade brasileira. O indianismo, por

exemplo, foi uma tentativa de expressar o nacional por meio da produção artística.

Escrevia-se e lia para buscar um Brasil que até então desconhecido e inexistente.

Grande significado social, como se vê, tem este processo por meio do qual a produção literária se transferiu do grupo fechado de estudantes para a comunidade, organizando-se de acordo com padrões definidos

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pelos da elite social. Processo que serviu à própria poesia romântica – ao alargar o âmbito dos seus consumidores, dando-lhes difusão que antes não possuía. E ao fazê-lo, recalcou as tendências satânicas tão características do meado do século, selecionando as do sentimentalismo e do nacionalismo, mais comunicáveis [...] resultado: talvez nunca tenha havido em S.Paulo uma coincidência tão grande entre a inspiração dos criadores, o gosto do público, a aprovação das elites. 128

Existia uma literatura articulada à vida da sociedade, abordando assuntos

relacionados aos interesses dessas próprias comunidades. Muitas dessas temáticas tinham

relação com os sentimentos de nacionalidade que, na segunda metade do oitocentismo,

ainda estavam em processo de constituição. Os romances falavam sobre casos amorosos e

aventuras sentimentais, mas também contemplavam tópicos como o perfil do brasileiro

ou a descrição dos ambientes litorâneos ou interioranos.

Já em começos do século XX, a literatura pode encontrar novas temáticas e, o que

talvez seja mais significativo, uma nova definição de sua função e importância. Alguns

escritores puderam se afastar das atribuições de pensar temáticas como a identidade

nacional, as problemáticas do estado-nação e os projetos de desenvolvimento para o país.

Delineava-se, portanto, inclusive de forma muito coerente com a Belle Époque, uma

literatura mundana, isto é, direcionada para as amenidades e para o cotidiano das altas

rodas, a chamada “vida em sociedade”.

É como se, se nas primeiras décadas do século XX, houvesse ocorrido uma

ruptura dentro da intelectualidade. Alguns escritores passaram a redigir textos que

viessem atender às demandas desse novo público leitor, interessado em escritos leves,

distantes daqueles ensaios que traziam embutidos interpretações sobre a realidade

128 CANDIDO. Literatura e Sociedade, p. 143.

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nacional. No entanto, outros pensadores insistiram na importância social do escritor, em

sua legitimidade de produzir diagnósticos e prognósticos para o país.

Já na década de 1920, os modernistas acrescentariam outros vieses a essa

conjuntura, pois embora não negasse a função social da literatura, estavam dispostos a se

aprofundarem em questões estéticas, que diretamente diziam muito pouco sobre o

conhecimento e a intervenção na vida nacional. Portanto, para a intelectualidade, não

havia um consenso quanto à importância da literatura. Assim, seria importante

avaliarmos as especificidades de Lobato em meio a esse contexto.

Monteiro Lobato manteve a convicção de que ao escritor caberia uma

responsabilidade perante a superação do atraso nacional. Vemos que ele não aderiu ao

modernismo, mas nem por isso se desconsiderou como um homem moderno. Não

devemos confundir o modernismo literário (bem afinado com algumas vanguardas

européias) com os projetos de modernização econômico e social do país. Mesmo sendo

um ferrenho crítico de variados aspectos da vida rural, Lobato nunca chegou a negar que

sua origem estava no interior, em um Brasil rural. Portanto, pensar na figura do Jeca Tatu

implica em analisar a auto-representação do escritor.

Um ponto de partida para essa discussão seria o próprio diário público de

Monteiro Lobato, isto é, sua correspondência endereçada a Godofredo Rangel e

publicada na coletânea A barca de Gleyre. Esse livro, inicialmente lançado em 1944,

acabou reeditado junto com as obras completas do escritor. Trata-se de uma importante

referência para pensarmos os recursos de que Lobato se valeu para fixar sua imagem

junto ao público. Sua capacidade para criar uma auto-propaganda já foi citada por Tânia

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Regina de Luca, mostrando como ele utilizou a Revista do Brasil (na época em que era

editor e proprietário) para projetar seu nome, livros e idéias junto aos leitores129.

Percebe-se que Lobato supunha uma influência da literatura na sociedade. Da

mesma maneira em que ele criou a figura do caipira, também almejou elaborar uma auto-

imagem de si mesmo e compartilhá-la com seus leitores. Um meio de conquistar a

empatia do público, favorecendo, desse modo, a função pedagógica atribuída aos seus

escritos. Portanto, cabe agora analisar como Lobato avaliou sua importância como um

crítico das relações entre campo e cidade. Isto é, por meio de sua correspondência com

Rangel é possível avaliarmos como ele utilizou a literatura para criar representações

sobre si e também sobre as paragens por ele visitadas.

Itinerários pelo campo e cidade – a auto-imagem do escritor

No ano de 1903, Monteiro Lobato iniciou uma troca de correspondência com seu

amigo Rangel que durou até o ano de sua morte, em 1948. Ainda em vida, e contando

com a colaboração de seu amigo, o escritor reuniu as cartas enviadas e as publicou em

dois volumes. Desde então esse conjunto de missivas tornou-se uma importante

referência para o estudo da obra lobatiana.

Em um primeiro momento, não podemos considerar a literatura e as

correspondências como uma mesma tipologia de fontes. Cada um desses suportes teria

sua singularidade, demandando abordagens próprias. No entanto, as correspondências

d’A Barca de Gleyre não se tratariam de cartas publicadas, pois sua intencionalidade é

muito mais ideológica do que poderíamos supor em um primeiro momento. Usualmente,

as missivas são textos privados, remetidos a destinatários selecionados e 129 LUCA. A Revista do Brasil, 1998, p. 67-74.

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individualizados, trata-se de uma escrita na qual há um espaço maior para confidências,

para a constituição de sociabilidades e sensibilidades. Muito diferente de um texto

literário propriamente dito, como, por exemplo, um conto ou artigo, direcionado para um

público mais amplo. Nesse caso, a interação entre redator e leitor é mais indireta, contudo

os leitores potenciais são bem maiores.

Mas, no caso específico, é legítimo verificarmos se as correspondências presentes

n’ A Barca de Gleyre, deveriam ser lidas como cartas publicadas. A forma pela qual elas

vieram a público sugere um tratamento literário prévio. Quando o historiador trabalha

com um arquivo privado de correspondências, deve considerar que aquele acervo foi

constituído de seleções, já que:

Nos arquivos privados pessoais, os titulares tornam-se ao mesmo tempo objetos e sujeitos de uma escrita de si, convertendo-se em autores de um registro sobre a sua própria história. Através dessa escritura, o colecionador do acervo manipula a existência de seu titular dando destaque e registro a determinados acontecimentos, ou, inversamente, omitindo e “esquecendo” outros. Essa prática acaba por determinar o sentido que o colecionador procura doa ao próprio arquivo. 130

Foi o próprio Monteiro Lobato que fez uma triagem de suas cartas, escolhendo

trechos, omitindo frases e nomes e acrescentando notas de rodapés explicativos, entre

outros recursos para tornar os textos mais palatáveis ao leitor. Lobato nunca escondeu

essas intervenções que ele produziu em suas missivas destinadas ao seu amigo Rangel.

130 VENANCIO. “Cartas de Lobato a Vianna: uma memória epistolar silenciada pela história”. In: GOMES (org.). Escrita de Si, Escrita da História, 2004, p.113.

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100

Não que ele as tenha alterado, mas ele as ordenou de modo que o conjunto adquirisse um

determinado sentido, utilizando a correspondência como um nível de memórias131.

Para um intelectual que considerava a arte como vinculada ao social, a sua própria

intervenção nas correspondências era coerente, pois não deveria haver ambigüidades de

sua imagem junto ao público. Lobato estabeleceu uma auto-representação, utilizando as

cartas para divulgar essa sua imagem. Sugestivo pensarmos n’A Barca de Gleyre como

um livro de memórias, pois em Memórias de Emília (1936), Monteiro Lobato fustiga a

suposta verdade e isenção contidos no gênero autobiográfico.

- Bem sei – disse a boneca – Bem sei que tudo na vida não passa de mentiras, e sei também que é nas memórias que os homens mentem mais. Quem escreve memórias arruma as coisas de jeito que o leitor fique fazendo uma alta idéia do escrevedor. Mas para isso ele não pode dizer a verdade, porque senão o leitor fica vendo que era um homem igual aos outros. Logo, tem de mentir com muita manha, para dar idéia de que está falando a verdade pura. [...] Verdade é uma espécie de mentira bem pregada, das que ninguém desconfia. Só isso. 132

Uma irônica constatação, porém convidativa para pensarmos qual era a imagem

que Lobato pretendeu forjar de si e divulgar para os leitores. Interessa-nos avaliarmos

suas auto-representações como um habitante da cidade e um caipira, as estratégias

utilizadas para se comparar com a intelectualidade local, sobretudo nos momentos de seu

desentendimento com alguns modernistas. Para esse escritor a literatura era um

instrumento de combate que exercia uma influência no público leitor. Portanto, Lobato

foi cuidadoso em tecer um perfil de si próprio, convencendo ao público (e a si mesmo) de

131 Além das alterações realizadas por Lobato, devemos também considerar as eventuais intervenções dos editores em posteriores edições. Em uma das cartas (3/2/1908) o trecho no qual o autor defende a segregação e discriminação racial acabou retirado das edições posteriores. Indicativos de uma clara estratégia de construção de uma determinada imagem de Monteiro Lobato perante leitores. Cf: CASSAL. “Monteiro Lobato: Um Utopista na Jecatatuásia”. Ciências e Letras, 2000, p. 209-235. 132 LOBATO. Memórias de Emília, s.d, 450.

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que ele havia vivenciado a experiência do interior – as fazendas, as “cidades mortas”, os

sertões doentes – e do litoral – as grandes cidades, a vida de Nova York e Buenos Aires.

Como foi vislumbrado no segundo capítulo, uma estratégia retórica do escritor

para descaracterizar as imagens românticas do trabalhador foi acusar seus criadores de

um desconhecimento da vida do campo, de um alheamento das reais condições do

ambiente rural. Esse recurso ilustra muito bem uma ação típica de Lobato. Quando

desejoso de criticar a artificialidade da cidade, ele se atribuía o papel de um caipira ou

sertanejo, alguém que, como Euclides da Cunha ou Rondon, visitou e conheceu partes do

interior brasílico. Agindo em um outro sentido, ele também se apresentava como um

cidadão cosmopolita, amante da experiência urbana, vestindo os trajes de um citadino,

justamente no momento em que desejava criticar o provincianismo local. Não se

limitando a um recurso retórico, essas inconstâncias ilustram sua oscilação entre o mundo

do campo e o mundo da cidade.

A Barca de Gleyre é um relato de viagens ao interior e ao litoral, pois esses textos

se localizam em ambientes urbanos ou rurais. Algumas cartas remetem à sua vida nas

grandes e médias cidades, evidenciando seus embates de homem público. Já durante os

primeiros anos da troca de correspondências os cenários mais correntes são as províncias,

onde ele atua como promotor ou fazendeiro. A literatura ficcional brasileira, desde suas

origens foi marcada pela semelhança com os relatos de viajantes europeus. Com efeito, a

intelectualidade brasileira se sentia estrangeira no próprio país. Portanto, o escritor

almejava realizar um processo de catalogação e mapeamento da realidade local.

Percorrer o país, registrar a paisagem, colher tradições: esta a tarefa não só dos viajantes estrangeiros que visitam e definem um Brasil nas

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primeiras décadas do século passado, este o papel que se atribuem também escritores e pesquisadores locais à época. [...]

É “dentro” de certos poemas, da prosa de ficção e das primeiras tentativas de “história nacional” que parece se escrever esses relatos e se alojar esse viajante local, em busca de paisagens, memórias e tradições curiosas. 133

Essencialmente foi esse o procedimento de Lobato, narrar suas experiências no

ambiente rural ou citadino. Então, uma possibilidade para pensarmos A Barca de Gleyre

seria como um gênero da literatura de viagens. Em 14 de abril de 1907, o jovem bacharel

em direito comentava ao amigo Rangel que ele conseguira uma promotoria na “...

comarca de Areias, que deve ser nalgum lugar” 134. O escritor/desbravador anuncia para

o amigo sua partida rumo a uma paragem desconhecida que, como poderá ser constatado

nas cartas posteriores, é uma ambiência com costumes e tradições próprias das

províncias. Logo após seus primeiros dias em Areias comenta que: “Areias, Rangel! Isto

dá um livro á Euclides [...] Areias, tipo de ex-cidade, de majestade decaida” 135.

Esse procedimento do viajante será repetido em várias outras passagens de sua

vida, seja ao residir em São Paulo ou no Rio de Janeiro, ou ao se mudar para Nova York

ou então em suas viagens a Buenos Aires. Esse processo de alteração de identidades

(morador do campo/ morador da cidade) era importante para um intelectual que defendia

a estética naturalista, isto é, a necessidade conhecer o entorno para descrevê-lo. Assim, se

vislumbra uma crítica n’A Barca de Gleyre destinada aos redatores que, de acordo com a

opinião de Lobato, ignoravam o Brasil ou os modelos estrangeiros de eficiência urbana.

O que o pai de Jeca Tatu procurou foi conhecer os ambientes, para transformá-los em

133 SÜSSEKIND. O Brasil não é longe daqui, 1990, p. 55. 134 LOBATO. A barca de Glyere, 1950, p. 158. T.1. 135 Ibidem, p. 166-167.

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literatura. É por isso que a viagem aos Estados Unidos teve uma centralidade em sua

vida. Foi devido a essa estadia na América que pode vivenciar um modelo de eficiência

até então, por ele, desconhecido.

Nesse entendimento de Lobato, a literatura estava articulada a uma observação e

intervenção na sociedade. O universo caipira se constituía em um dos alicerces da

realidade nacional, por isso a insistência em escrever sobre os caboclos e seus hábitos. Ao

contrário de alguns dos seus contemporâneos, este escritor não se ateve ao interesse

folclórico. Seu foco de análise estava mais voltado para as relações entre um país arcaico

e outro moderno. Seu interesse era encontrar uma fusão entre esses elementos, de que

modo a viabilizar a constituição de um Brasil autêntico e moderno.

No capítulo 2 vimos, a partir de trechos da correspondência, detalhes de sua

percepção sobre o ambiente rural. Já como morador de Nova York, um tema recorrente

em seus escritos foi a grandiosidade da América e a ausência de parâmetros brasileiros

para compreender as medidas estadunidenses. Lobato é agora um viajante na grande

cidade, para quem faltam palavras e conceitos para descrever suas experiências na

metrópole, pois os provincianos do sul não teriam as medidas suficientes para quantificar

as magnitudes do estrangeiro. Contudo, há momentos em que esse suposto cidadão do

mundo se trai, e a faceta do Jeca Lobato vem à tona, quando, por exemplo, saindo do seu

escritório na Battery Place, presenciou pela primeira vez a lua em Nova York. Essa visão

o remeteu imediatamente às cidades do interior nas quais ele vivera, revelando um

saudosismo um tanto envergonhado136. É interessante perceber que foi também durante

sua estadia nos Estados Unidos que os personagens do Sítio do Picapau amarelo

136 LOBATO. A barca de Glyere, 1968, p. 315. T.2.

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começaram a ganhar forma – personagens de um cenário que remetia a algumas das

características do universo rural.

Através da literatura, Lobato articulava suas experiências, seus projetos e suas

proposições artísticas. A literatura esteve diretamente relacionada a sua trajetória de

homem público. Vemos, por exemplo, como ele utiliza seus escrito para criticar a

administração pública do país ou então alfinetar seus “desafetos” modernistas.

Lobato relata alguns eventos em que o consulado brasileiro forjava falsas notícias

sobre cidadãos do Brasil homenageados nos Estados Unidos. Figuras que passavam

despercebidas pela vida social e cultural americana, mas que aqui eram noticiadas como

recebedoras de banquetes e tributos. O missivista confidencia a Rangel o quão

vergonhosa era essa prática em que o corpo diplomático ludibriava a opinião pública

nacional. O que se coloca é o logro efetuado contra os brasileiros, que continuavam

incógnitos em sua própria terra, pois esse tipo de notícia era destinado a alimentar os

ufanismos locais, impedindo-os de ter uma avaliação mais realista da América do Sul.

Assim, sua literatura se insere na vida nacional, revelando-se tributária de uma ética,

tratava-se de um posicionamento político, do qual o escritor não poderia fugir. Em seus

livros, Lobato critica os burocratas brasílicos, ineficientes e corruptos, responsáveis

também pela condição do atraso brasileiro.

Em suas cartas remetidas de Buenos Aires, em 1946, se percebe um cansaço com

a condição de viajante. Embora conhecido naquele país, seu entusiasmo para com as

novidades é menor. No entanto, ele aproveita a ocasião para vangloriar-se do seu sucesso

editorial, fazendo questão de delimitar sua distância para com a arte modernista no Brasil.

As homenagens recebidas (e ao que parece, essas realmente aconteceram!) também se

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constituem em um ataque indireto aos modernistas, já que internacionalmente seu sucesso

como escritor de livros infantis era conhecido.

A Barca de Gleyre é um dos últimos recursos usados contra seus adversários. Já

no final de sua trajetória física e intelectual, Monteiro não se sente completamente

vitorioso, as perdas que tivera em vida – dos seus filhos à sua riqueza – eram

desanimadoras. Por isso:

Com a publicação da correspondência trocada com Rangel, enfeixada nos dois volumes d’A barca de Gleyre, Lobato respondia aos críticos com a exemplaridade de sua própria história, consubstanciada num testemunho involuntário, e, segundo julgava, fidedigno. Muito mais do que curiosidade literária, a Barca constituía-se, de fato, num instrumento de combate – era a arma com se credenciava para a luta derradeira: disputa pela representação de si. É certo que se trata de uma imagem dilacerada e não foi por acaso que Lobato escolhe o quadro de Glyere, originalmente intitulado Ilusões Perdidas para nomear sua autobiografia. 137

Mais do que relato de viagem, A Barca de Gleyre é um relato de vida, e, como

sugere a autora supracitada, uma última peleja para constituir uma auto-representação.

Trata-se de uma fonte privilegiada para percebemos como Lobato interpretou suas

vitórias e derrotas, como ele avaliou seu percalço do anonimato até a fama e consagração

como escritor e homem público. A correspondência de Lobato nos traz um escritor que se

julgava um citadino, mas nunca objetou plenamente suas origens e tradições interioranas,

que aliás foram as responsáveis por sua consagração intelectual. Quando no campo ele

via a cidade, quando na cidade ele via o campo, a localização geográfica de Lobato foi

sempre um estímulo para ele refletir acerca das ambiências das quais ele estava

distanciado. 137 LUCA. “Monteiro Lobato: estratégias de poder e auto-representação n’A barca de Gleyre”. In: GOMES. Escrita de Si, Escrita da História, 2004, p. 158.

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Assumir a imagem de um caipira era uma estratégia útil, um modo de rejeição aos

modismos da Belle Époque. Nos momentos em que Monteiro Lobato se insinuou como

um caipira, sua intenção era perfazer uma crítica a intelectualidade que havia perdido

contato com os supostos valores nacionais. Segundo Nísia Trindade Lima:

Essa auto-identificação do intelectual com o caipira, o caboclo ou o sertanejo, a que se atribuiu um caráter positivo, aparece em diversos momentos, de que são expressivos depoimentos como os de Rondon e Euclides da Cunha acerca de sua condição de caboclos, e da herança indígena de que eram portadores. [...]

Em alguns casos, é possível estabelecer uma relação direta entre a eleição do homem rural como base de formação da nacionalidade e esse processo de auto-identificação. 138

Esse processo de identificação de Lobato com o Jeca é coerente. O escritor

considerava que o artista deveria buscar na sua realidade as fontes, os temas e a

inspiração. Era necessário considerar a contribuição popular na formação da matriz

cultural brasileira. Para Monteiro Lobato, o problema não seria a existência dos Jecas,

mas sim a tentativa de escondê-los para criar um cenário europeizado. Ao se dizer

autêntico e interessado no Brasil rural, o escritor assumia a condição de um caipira,

propondo que os intelectuais se voltassem para os interiores do país, os descobrindo e os

escrevendo, mas sem ufanismo ou lamentações.

Por meio dos seus escritos, Lobato foi capaz de tecer um conjunto de

representações, sobre si, sobre o caipira e sobre o ambiente rural. O denominador comum

dessas imagens é que, em todas elas, a contraposição campo-cidade se faz presente. Por

meio da literatura Monteiro Lobato não só inventou Jeca Tatu, como criou a si próprio:

um peixe de Ribeirão, mas que se deliciava no alto-mar, para recuperarmos sua própria

138 LIMA. Um sertão chamado Brasil, 1998, p. 151.

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metáfora. A arte para Lobato estava compromissada com o real, mas isso não significa

que ela se contrapusesse a fantasia. Através de sua imaginação literária seus personagens

vivenciaram o rural e o urbano; visitaram os interiores brasílicos, mas também as grandes

urbes do mundo, cidades imaginárias do futuro e até mesmo a lua.

Lobato foi um incansável viajante, sua literatura é informativa, compromissada

com a descrição e análise da realidade, um texto com plena autonomia perante o meio

social não se encaixaria nesse seu modelo de intelectual. Para ele, a arte deveria servir a

vida, em uma acepção especificamente nietzscheneana. Cabe agora avaliarmos sua

concepção de arte, destacando seu diálogo com os modernistas.

Lobato: regionalista ou modernista?

A imagem de Jeca Tatu assumiu uma significação muito específica no contexto

cultural de então. Sua carga simbólica, sua penetração nas camadas cultas e populares

indicam que Monteiro Lobato foi bem sucedido quando almejou criar uma determinada

representação do homem do campo. No entanto o escritor também criou uma imagem de

si próprio, representando-se como alguém comprometido com a descoberta do Brasil

agrário e com a superação do atraso nacional.

Tendo em vista essa relação de Lobato com a sua criação, será analisada sua

relação com os intelectuais ligados aos movimentos modernistas. Interessa pensar o

contexto cultural mais amplo, isto é, que não pode ser restringido ao modernismo. É cada

vez mais consensual a compreensão de que a atuação dos modernistas não foi uma

inovação absoluta, que teria rompido plenamente com as manifestações artísticas

anteriores e prescindido de qualquer colaboração de artistas de outras vertentes.

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No que concerne à atuação de Lobato no período, tornou-se um itinerário quase

obrigatório indagar se sua produção artística foi ou não modernista. Os defensores mais

incondicionais da versão paulista do modernismo e da Semana de 1922 tendem a ver

Monteiro Lobato como o algoz de Anita Malfati, ou seja, como um pensador que não

soube acompanhar as inovações estéticas do período. Em contrapartida, a nova crítica

tende a minimizar essas diferenças, atribuindo as supostas desavenças entre os Andrades

e Lobato a um mal entendido ou, mais apropriadamente, a um aparente mal entendido139.

Pois, na verdade esses intelectuais sempre se elogiaram mutuamente, reconhecendo seus

respectivos talentos e contribuições para o cenário intelectual brasileiro. Mais do que uma

troca de cortesias, Mario e Oswald trocaram com Lobato correspondências, idéias e

favores ao longo de suas trajetórias intelectuais e profissionais140.

Devemos lembrar que Lobato atuou como editor, uma posição estratégica no

circuito de distribuição de livros e periódicos. Assim, ele soube se manter no foco de um

efervescente contexto cultural, com movimentos que não se limitavam às ações dos

modernistas. A editora de Lobato e a própria Revista do Brasil foram centralizadores de

várias tendências artísticas e literárias. De tal forma que Monteiro Lobato esteve tanto

entre os regionalistas quanto entre os cosmopolitanos.

O cosmopolitismo, como já foi referenciado no primeiro capítulo, estaria

articulado à influência européia na vida cultural brasileira. Além de mercadorias se

importavam artistas, estilos, percepções e sensibilidades estéticas. O regionalismo é o

contraponto mais evidente, autores que passaram a buscar elementos para uma arte

139 LANDERS. De Jeca a Macunaíma, 1988; CHIARELI. Um Jeca nos Vernissages, 1995; DINIZ. Monteiro Lobato, 1997. 140 Muito embora não possamos negar certa indisposição entre Mário e Lobato.

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nacional, revisitando temáticas do romantismo, do indianismo e sertanismo. Contudo não

podemos reduzir essa multiplicidade de idéias a uma classificação dual tal como

regional/cosmopolita. Antonio Candido, por exemplo, em um ensaio clássico, reduz a

questão dos temas sertanejos na literatura ao mero regionalismo:

O regionalismo, que desde o início do nosso romance constitui uma das principais vias de autodefinição da consciência local [...] que alcança voga surpreendente.Gênero artificial e pretensioso, quando um sentimento subalterno e fácil de condescendência em relação ao próprio país, a pretexto de amor da terra, ilustra bem a posição dessa fase que procurava, na sua vocação cosmopolita, um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais típicas. Forneceu-lho o “conto sertanejo”, que travou o homem rural do ângulo pitoresco, sentimental e jocoso, favorecendo a seu respeito idéias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social quanto sobretudo, estético. 141

A literatura promovia uma estilização da vida do sertanejo. Porém, esse interesse

pelo trabalhador do campo não se limitava a uma busca pelo exotismo. Conforme

discutido em outros momentos, o interesse de modernizar o país se esbarrava nas forças

supostamente retrogradas das zonas rurais. A busca de um Brasil interiorano estava

ligada à procura por um controle sobre esses espaços pouco explorados. Para além disso,

o anseio em redefinir identidades nacionais direcionou o olhar de parte da

intelectualidade para os sertanejos.

Boa parte dos escritos propriamente literários de Monteiro Lobato é referente aos

interiores de São Paulo. Nos livros Urupês, Velha Praga, Negrinha e A Onda Verde, o

ambiente rural e provinciano são as temáticas mais recorrentes. Expressões que podem

ser consideradas regionalismo, haja visto o interesse em caracterizar a realidade local. A

141 CANDIDO. Literatura e Sociedade, 200, p. 104-105.

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linguagem que o escritor usa em seus textos assume pretensões naturalistas, descrevendo

os sons e as paisagens locais.

- Monjolo? Ché, que’esperança!

[...]

- Bééé! rematou o marido.

[...]

E tomando entre os dedos o cordel pelo meio, plaf, chicoteava a madeira, riscando nela um traço negro.

[...]

O cocho despejou a augaceira – chóó! A munheca bateu firme no pilão – pan! 142

No conto “A vingança da peroba”, fica perceptível as formas que ele usa para

representar sons e expressões orais. A tentativa de aproximar língua falada da escrita,

superando a dependência ao vernáculo de Portugal, é uma forte tendência na literatura

modernista, mas que se encontrava esboçada em parte da literatura conhecida como pré-

modernista ou regionalista. Na verdade, no caso dos modernistas, o interesse na

descoberta do português do Brasil transcendia a uma questão formal ou estilística, estava

em jogo a independência cultural e a libertação das ortodoxias lusitanas. Porém, não

podemos reduzir os escritos de Lobato a mera estilização da vida no campo.

Esse escritor procura novas expressões e palavras capazes de representar a vida

nos ambientes rurais e a própria mentalidade do caipira. Portanto é compreensível seu

elogio ao livro Dialeto Caipria de Amadeu Amaral, pois a intenção era descobrir a

especificidade do português do Brasil, e sobretudo a variante paulista. Para Lobato, o

142 LOBATO. Urupês, 1950, p. 102, 103,106-107, 109.

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trabalho desse estudioso revelaria uma língua em formação, coerente com a psicologia do

povo brasileiro.

Novamente, em seu pensamento surge o contraponto campo-cidade, pois a língua

em gestação nos interiores do país – sertões da Amazônia, pampas gaúchos, roças de São

Paulo – desagradaria os gramaticólogos das cidades, ainda presos ao vernáculo de

Portugal143. Para Vasda Bonafini Landers, Monteiro Lobato e Amadeu Amaral teriam

sido os primeiros a buscar o dialeto caipira, resgatando as formas de expressão do homem

do campo. Visto sob essa perspectiva, o escritor, ao se posicionar contra as características

coloniais da cultura brasileira, teria sido um dos percussores dos modernistas. Com

efeito, e como sugere a estudiosa, mais do que uma procura por um estilo nacional, o

modernismo “... representou uma atitude de dissociação, de recusa contra a última

faceta do predomínio europeu – o cultural – sobre o país.”144

A arte deveria se articular ao lugar de sua produção, refletindo as características

do meio. Por isso, Lobato aproxima a escrita da oralidade. A gramática, em seu

entendimento, deveria ser uma normatização da mentalidade e fala da população.

A literatura também deveria está apta para assimilar os processos de

modernização. Por isso, Lobato se interessou em descrever os novos fenômenos

citadinos. Dado que a literatura estava compromissada com a vida social, era uma

coerência esperar que ela abordasse temas do cotidiano. Em O Presidente Negro,

redigido na década de 1920, o escritor traduz o impacto dos automóveis na compreensão

do fenômeno urbano. O protagonista do romance relata que:

143 LOBATO. “Dialeto Caipira”. In: A Onda Verde, 1950, p. 77-82. 144 LANDERS. De Jeca a Macunaíma, 1988, p. 111-112.

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Ora, na rua eu via a humanidade dividida em duas casas, pedestres e rodantes, como os batizei aos homens comuns e aos que circulavam sobre quatro pneus. [...] Quantas vezes não parei nas calçadas para gozar o espetaculo do formigamento dos meus irmãos pedestres, a abrirem alas inquietas á Cadillac arrogante que por eles se metia, a reluzir esmaltes e metal! O ronco do porco do klaxon parecia-me dizer: - “Arreda canalha!” 145

Em outro trecho fica perceptível que o carro – como um símbolo do moderno –

representa uma aproximação entre campo e cidade. Pois ele passa a trafegar pelos

espaços com mais velocidade.

Mal me vi naquele setimo ceu de macadame, dei toda a força á maquina e desforrei-me da lentidão de até ali com uma chispada a 60 por hora, o maximo que o meu fordinho permitia.

A região que eu atravessava era de maravilhosa beleza. Serras azues ao longe, quais muralhas de safira a sopesarem um ceu de cobalto. Dia de limpidez absoluta. Paisagem das que vibram de nitidez. Desafeito aos formosos quadros da natureza, distrai-me com a novidade o espetáculo e ... catapruz! 146

A referência ao macadame é bem propositada, pois esse revestimento do solo

significou, na história do urbanismo, uma possibilidade de veículos circularem com

maior velocidade. O desenvolvimento desse tipo de pavimentação – que remete às

reformas de Haussmann em Paris – implicou na saída das multidões das ruas, que se

viram obrigadas a trafegar somente na área restrita das calçadas. Portanto, Lobato fala da

cidade moderna por excelência, na qual a máquina assume a supremacia sobre as pessoas.

Com um ford, a 60 quilômetros por hora, torna-se possível deslocar rapidamente pelas

cidade e cruzar os campos, em uma postura próxima a de um flâneur.

145 LOBATO. O Presidente Negro, 1950, p. 131-132. 146 Ibidem, p. 133-134.

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Assim, o texto de Monteiro Lobato novamente assume as feições de um relato de

viagem. Porém, no trecho supracitado, devemos observar que a descrição da paisagem

soa convencional, pois aqui o ambiente rural é apresentado de forma quase bucólica. O

que, por sua vez, serve de contraponto aos elementos da civilização, o carro e o asfalto147.

Portanto, no que concerne a compreensão de Lobato da relação arte e sociedade, é

válido lembrar que, mais importante do que buscar as filiações literárias de Lobato, deve-

se perceber o contexto moderno ao qual ele estava inserido. As inovações que ocorriam

na cidade de São Paulo o afetaram significativamente. Sua atuação no ramo da indústria

editorial, por exemplo, possibilitou-lhe relacionar-se com a modernização tecnológica de

uma maneira sui generis. Ele sentiu-se como um modernizador, um cosmopolita,

desejoso de romper com o atraso assentado no mundo rural.

Sua concepção de arte esteve vinculada a sua percepção do processo histórico.

Influenciado por Taine – que inclusive é citado em trechos d’A Barca de Gleyre –

validou a proposição de que os povos se desenvolviam influenciados pelo meio. Povos

com exigüidades materiais, buscariam formas alternativas para suprir suas deficiências,

gerando, dessa forma, uma “mentalidade” inventiva e criativa. A grande referência para a

história da arte ainda seria a Europa. Esse é mais um dos aspectos que assinala a

separação entre Lobato e os modernistas, pois mesmo recusando os francesismos que

impregnavam a vida cultural brasileira, o escritor não rompe plenamente com a matriz

147 Aqui cabe uma breve digressão, pois é curioso observarmos que Monteiro Lobato estava interessado na abertura de estradas em plena década de 1920, quando a quantidade dos automóveis ainda era restrita. Em sua estadia pelos Estados Unidos, as facilidades do transporte público e privados o impressionaram. Em Nova York, além dos carros, os trens subterrâneos também despertaram, em Jeca Lobato, descrições entusiasmadas sobre composições que partiam das entranhas da Grand Central e passavam por baixo do Hudson. Como vemos, esses indícios sinalizam que Monteiro Lobato, e sua literatura, estava em compasso com a vivência e a descrição do mundo moderno. Embora seu foco privilegiado tenha sido o ambiente rural ele não pode ser reduzido à categoria de regionalista e, muito menos, pré-modernista. Sobre os trens, veja: LOBATO. A barca de Gleyre,1968, p.304.T.2

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européia. Na verdade, nem mesmo os modernistas realizaram uma essa ruptura total com

uma pintura mais figurativa. Tarsila do Amaral, por exemplo, trabalhou com o cubismo

em uma versão mais clássica que a de Picasso.

Lobato oscilou em um aparente paradoxo, por um lado ele reconhecia na cultura

popular as bases autênticas para uma arte nacional, mas, por outro lado, sua visão sobre

essas manifestações artísticas era negativa. A contribuição dos caipiras, escravos e índios

constituiria uma feição nacional, mas ainda assim careceria da sofisticação cultural de

países como Inglaterra, Holanda e Alemanha.

Porém, em termos de um tratamento irreverente da cultura, a literatura de Lobato

muito se assemelhou aos modernistas, agindo como um verdadeiro antropófago e um

compositor de pastiches provocadores. Basta pensar em Capitão Gancho, o inimigo de

Peter Pan, lutando contra Popeye, Alice do País das Maravilhas e Chapeuzinho Vermelho

em companhia de Narizinho, Tom Mix rondando arredores do Sítio do Pica Pau Amarelo,

gato Félix comendo os pintinhos de Dona Benta, Emília e Visconde de Sabugosa

visitando Shirley Temple e representando a peça de Don Quixote, são passagens de

alguns de seus livros infantis que ilustram sua habilidade em se apropriar de outras

referências culturais, integrando-as em um relato brasílico.

Mas, se havia um incomodo com os regionalistas ufanistas, que insistiam em

desconhecer as especificidades reais do mundo rural, não deixava de inexistir certa

divergência entre o criador do Jeca Tatu e os modernistas, seja no âmbito paulista e

mesmo internacional. Pois as vanguardas estéticas de começos do século XX vieram a

questionar o conceito de verdade nas artes plásticas, propondo novas formas de

representação que, segundo Lobato, significaram uma deformação da realidade. No artigo

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“Paranoia ou mistificação?”, publicado em 1917, seu ataque ao cubismo é incisivo, foi

por esse texto que surgiu sua fama de anatoliano anti-modernista148. O escritor

considerou que as vanguardas eram incoerentes com o contexto brasileiro e, novamente, é

tematizada a necessidade de desenvolver uma postura mais precavida contra importação

das idéias européias149. Também o que estava em discussão é que a arte não poderia

manter essa independência do mundo “real”.

Monteiro Lobato se filiou a uma concepção de arte como representação

naturalista da realidade. Por isso, em sua opinião, os tão propalados artistas modernos não

representavam o novo, mas sim um a decadência da civilização.

A outra especie [de artistas] é formada dos que vêem anormalmente a natureza e a interpretam á luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrabica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furunculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os periodos de decadencia; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedoiro.

[...]

Embora se dêem como novos, como precursores duma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratologica: nasceu com a paranóia e a mistificação. 150

No artigo, o objetivo de Monteiro Lobato era destacar a incongruência dessas

tendências artísticas européias. Ele propõe a discussão a partir de uma análise da

exposição da Anita Malfatti. Embora não a critique em absoluto, Lobato ataca as

influências de sua pintura. Na verdade o crítico chega a elogiar o talento da artista:

Se vissemos na sra. Malfatti apenas a “moça prendada que pinta”, como os ha por aí ás centenas, calar-nos-iamos, ou talvez lhe déssemos

148 MICELI. Intelectuais e classe dirigente no Brasil, 1979, p. 16-18. 149 LANDERS. De Jeca a Macunaíma, 1988, p. 23. 150 LOBATO. Idéias de Jéca Tatú, 1955, p. 59-60.

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meia duzia desses adjetivos bombons que a critica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.

Julgamo-la, porém, merecedora de alta homenagem que é ser toada a sério e receber a respeito da sua arte uma opinião sincerissima – a valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do publico não idiota, dos criticos não cretinos, dos amadores normais, dos seus colegas de cabeça virada... 151

Sua condenação era à alteração/deformação da realidade em proveito de

experimentações estéticas. Pois esse escritor buscava discursos que pudessem desvelar as

mazelas do Brasil de forma clara e sem hipocrisias. Tratava-se de captar a realidade e

transferi-la para a tela, não no sentido de uma reprodução realista, mas objetivando

compreender o ambiente e transmitindo ao público o que o próprio artista sentira durante

a produção da obra. A arte deveria assumir uma função prática e pedagógica, de

promover a interação entre meio, artista e público, pois:

Lobato tratava dos assuntos de arte com a mesma independência com que tratava de qualquer outro assunto – fosse ele agricultura, pecuária, literatura, saúde pública etc. -, trazendo suas preocupações com a arte para o plano de sua visão pragmática e transformadora. 152

Como ainda salienta Tadeu Chiarelli, a fonte para as idéias estéticas de Lobato

estaria no “... naturalismo de Zola intensificado – na ênfase à individualidade do artista

pela filosofia de Nietzsche” 153. Portanto, torna-se compreensível a razão pela qual o

escritor se identificou com a arte de Almeida Júnior, considerando-a representativa de um

estilo vigoroso e pessoal. O artista de Itu pintou Caipira picando fumo e Caipiras

Negaceando, já o escritor de Taubaté elaborou a mais conhecida representação do

151 Ibidem, p. 64-65. 152 CHIARELLI. Um Jeca nos Vernissages, 1995, p. 248. 153 Ibidem, p. 120.

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trabalhador rural brasileiro. Ao defender os quadros desse artista plástico, Lobato

fundamentava uma compreensão de arte naturalista que legitimava sua própria produção

intelectual, conseguindo um espaço próprio que escapava às rotulações mais

convencionais de regionalista ou modernista. Para esse ex-fazendeiro, Almeida Júnior

também teve um contato com o ambiente rural, não endossando, portanto, as usuais

afirmações sobre o caipira.

Monteiro Lobato foi um crítico de arte respeitado no cenário intelectual de São

Paulo, suas análises exerceram influência entre a intelectualidade. Desse modo, ele se

preocupou em instrumentalizar suas orientações estéticas para analisar a produção de

artistas brasileiros. No trecho abaixo, o contraponto campo-cidade aparece mais uma vez,

já que é insinuado que Almeida Júnior é um homem interiorano, mas em um sentido

positivo, já que ele possui uma autenticidade inexistente nas áreas citadinas.

Almeida Junior, inimigo mortal do cabotinismo e da mentira, paulista da velha tempera, “caboclo de bem”, adotava por temperamento a concepção de Alberto Dürer, de que a preocupação da beleza é nociva á arte. Preocupava-se com a verdade somente – e nisto revelou maravilhosa compreensão da verdadeira estetica. 154

A classificação de naturalista é mais apropriada para pensarmos as concepções

artísticas de Lobato, sobretudo no que se refere às artes plásticas. É correto que ele

dialogou com a produção da literatura regionalista, sua preferência pelos temas sertanejos

indica um interesse em compor um painel acerca do universo caboclo.

Também é necessário considerar sua ação modernizadora, que inovou em vários

setores da vida intelectual e pública no Brasil. Ao contrário de muitos pensadores, sua

154 LOBATO. Idéias de Jéca Tatú, 1955, p. 85-86.

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atuação não se limitou à esfera do discurso, foi um personagem que teve ação concreta na

vida cultural, política e econômica do Brasil como empresário editorial e também livre

empreendedor da área petrolífera. Um Howard Hughes brasileiro, que traduzia e adaptava

livros, produzia literatura infantil, discursava e estudava sobre o petróleo ao mesmo

tempo em que cruzava o país a bordo de pequenos aeroplanos para angariar recursos para

sua empresa de prospecção. Um comportamento moderno, no qual ação e reflexão não se

encontram dissociados.

Os temas lobatianos evoluem do local e da exceção para o nacional e genérico. Assim falando primeiro do caipira do Vale do Paraíba, da cidade morta, passa à abordagem da saúde pública, do livro, da industrialização e acaba como homem público na cadeia. A modernização de Lobato, pois, solta-se das letras, ganha o espaço político para morrer como militante das palavras. Algo mais moderno?155

Na verdade, quando pensamos, não em um único, mas em vários modernismos,

vislumbra-se com maior clareza a atualidade de Monteiro Lobato e a validade de suas

proposições estéticas. Com efeito, não podemos considerar que aqueles intelectuais

paulistanos ligados a Semana de 1922 fossem a única expressão do pensamento artístico

moderno no país. Em alguns sentidos, Lobato inclusive os superou, demonstrando uma

melhor percepção do advento dos novos meios de comunicação e do impacto gerado na

“cultura de massa”.

Os modernistas se voltaram para experimentações estéticas e literárias. Suas

preocupações formalistas os conduziram a buscas por novas expressão e linguagens. No

155 MEIHY. “Monteiro Lobato e o outro lado da rua”. In: FABRIS (org.). Modernidade e Modernismo no Brasil, 1994, p. 52.

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entanto, a preponderância da função estética156 tornou muitas dessas obras inacessíveis

para um público mais amplo. No século XX o acesso aos meios formais de ensino

aumentou significativamente, no entanto essa ampliação educacional não representou um

maior consumo de arte, pois a literatura e, principalmente, as artes plásticas atingiram um

grau de complexidade inteligíveis somente a especialistas e amadores dedicados.

Os próprios modernistas paulistas de começos das primeiras décadas do século

passado não estiveram interessados em atingir o leitor médio. Esta é uma divergência

irremediável para com Monteiro Lobato, alguém que via no livro um valor instrumental.

Seus livros eram sucessos de vendas e as edições de suas obras rapidamente se

esgotavam. Lobato não estava interessado em uma estética pura, para ele o texto literário

também deveria possuir uma função social. Ele entende a literatura como uma força

capaz de arregimentar valores e formar gerações futuras.

Lobato, em 1946, comenta suas divergências com os modernistas em uma carta

direcionada a um amigo. Para os defensores dos modernistas, Lobato foi considerado

como um passadista, por isso, aquele desentendimento de 1917 foi supervalorizado e

tomado como um ataque às vanguardas paulistanas. No entanto, os livros do criador de

Jeca Tatu eram editados e vendidos em tiragens bem mais volumosas do que as dos seus

“adversários”.

No fundo, o que há contra mim é inveja em conseqüência da minha vitória comercial nas letras. Até o fim do ano, passo de 2 milhões em minhas tiragens. Estou (ou vou ficar até o fim do ano) com 66 edições aqui e 37 na Argentina (ou mundo de língua espanhola), tudo isso dando renda. Aqui é que está o busílis. Êles, por mais que eu escondesse o leite, descobriram que o ano passado paguei 54 mil cruzeiros de impôsto sobre a renda – renda exclusiva de direitos autorias. Isso sem cotar a minha renda na Argentina. Êles, são uns

156 Cf.: CÂNDIDO. Literatura e Sociedade, 2000, p. 37-63.

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gênios – mas não vendem; têm que viver como carrapatos do Estado, presos a empreguinhos. O Lobato é uma besta, mas está vendendo bestialmente, cada vez mais. Daí o atual “pau no Lobato”. 157

É o próprio Lobato que estabelece a diferença entre ele e a intelectualidade

vanguardista. Uma de suas grandes satisfações foi sua trajetória desenvolvida

independente do aparelho do Estado. Excetuando seu cargo de promotor em Areias e

adido comercial em Nova York, a carreira profissional de Monteiro Lobato foi na

iniciativa privada. Ele não precisou cavar empregos públicos, como foi o caso de

eminentes intelectuais brasileiros, sobretudo durante o governo de Getúlio Vargas.

Lobato se orgulhava de ter seus livros vendidos e lidos, com suas idéias divulgadas para

um amplo público. Quanto aos modernistas, a complexidade lingüística e conceitual de

suas obras afastava o leitor médio. É interessante observar que Lobato registrou seu êxito,

não do ponto de vista intelectual, mas sim comercial. Ironicamente ele próprio insinuou

que, independente de suas qualidades, no aspecto mais importante, o mercantilista, ele era

imbatível.

Monteiro Lobato valorizou a relação entre arte e vida pública, uma linha de

pensamento que o conduziu para uma literatura descritiva, analítica e de fácil

comunicação com o público. Em parte, por isso Jeca Tatu teve um impacto no imaginário

social da época, pois o autor redigiu aqueles artigos com objetivo produzir um efeito nos

seus receptores. Da mesma maneira, foi por meio dos seus escritos que Lobato pode criar

e divulgar sua auto-imagem. Esses elementos sugerem convicções – como editor e

escritor – de que os leitores reagiriam aos textos que lhes fossem apresentados. Por

157 LOBATO. Cartas Escolhidas, 1959, p. 178. T.2.

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acreditar nesse canal de comunicação, Lobato usou a literatura para divulgar críticas à

realidade brasileira e propor projetos de modernização.

Os próprios modernistas se impressionavam com linha de ação de Lobato, pois

este se mostrou capaz de atuar como empresário e intelectual. Assim, na década de 1920,

o criador de Jeca Tatu teve um destaque na vida literária e artística de São Paulo. Jeca

Lobato, ao mesmo tempo em que desenvolvia uma proeminência nesse contexto,

vivenciava embates, confrontos e enfrentamentos. Como forma de compreender essa

dinamicidade em que estava inserido – de dar um sentido a essa experiência – ele

gerenciava sua identidade para o público e para si mesmo. Por vezes vinha à tona o

caipira que, reticente quanto ao movimento moderno, voltava olhos para sertão adentro.

Mas, em outros casos, o que sobressaía era o citadino ansioso pela vida urbana, disposto a

abandonar a tradição rural, deixando-a em um plano secundário, para seguir rumo a

descoberta da metrópole, da cidade moderna por excelência.

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Considerações finais

A casa parece diminuta quando confrontada àquele imenso cenário agrário. Mas

ela nem é pequena, são os pastos e lavouras que se estendem displicentemente, dando à

paisagem uma monotonia. O caminho que leva às plantações passa em frente ao paiol,

construído há muitas décadas atrás. O observador que parar nesse trilho e olhar para

esquerda verá a estrebaria, logo no começo do pasto. Aos fundos, próximo da cozinha, há

até um pequeno ribeirão, que é usado para lavar as vasilhas empretecidas com a fumaça

do fogão-a-lenha. Essa descrição poderia parecer – ao menos ao morador da cidade –

muito característica, quando não típica. Porém, há outros elementos nessa paisagem que

não foram citados, como a antena parabólica situada no telhado da casa, a nova garagem

– tão destoante do restante das edificações – usada para guardar o carro 4X4 e a piscina,

construída especificamente para os netos terem onde nadar nos finais de semana, quando

em visita à fazenda.

Muitas de nossas visões sobre o campo são idealizadas, incapazes de apreender as

transformações sócio-históricas. Essa recusa por ver as aparentes ambigüidades é, muitas

vezes, uma estratégia (ou uma defesa) para não reconhecermos os conflitos estabelecidos

e as disputas pelo poder. Pois o aparente bucolismo do campo esconde uma configuração

de forças desigual; basta pensar nos trabalhadores que passam toda uma vida em uma

dura lida diária nas propriedades de senhores que, poucas vezes ao ano, visitam suas

fazendas. Sob outra perspectiva, a idéia do campo como lugar do atraso também esconde

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intenções. Como, por exemplo, os interesses dos citadinos em ter um controle mais

efetivo das zonas rurais, com a garantia do abastecimento de suas cidades, ao mesmo

tempo em que se vangloriam de suas agitadas vidas culturais e desdenham a ignorância

interiorana.

As ambigüidades nas representações do campo e da cidade estão relacionadas a

esses embates. Desse modo, os paradoxos de Monteiro Lobato, em parte explicam por si

mesmos. Pois ele era um intelectual situado entre a costa e o interior, embora seja

inegável sua pretensão de superar as relações sociais que constituíam aquele mundo

agrícola, então identificado com o coronelismo, a monocultura, o latifúndio e o atraso

nacional. Contudo, ir em direção a um modelo urbano não implicou uma desvalorização

total do campo. O próprio Jeca Tatu, um personagem do meio rural, quando curado de

suas doenças não se tornou um industrial ou um comerciante, mas sim um empreendedor

rural. Mesmo com a visão urbana, cosmopolita e modernizadora de começos do século

XX, o campo persistia como uma variável indispensável nas identidades nacionais – do

Brasil, e de outras partes do mundo.

É necessária uma reflexão final acerca do imaginário previamente existente sobre

o caipira. Os embates campo-cidade observados nos discurso dos intelectuais e

administradores públicos dos primeiros anos republicanos apontam para a centralidade de

muitas temáticas abordadas por Lobato. A figura do Jeca Tatu estava relacionada a uma

série de valores já existentes sobre o trabalhador rural. Por isso, faz-se necessário delinear

o impacto dos escritos lobatianos nas representações sobre os caipiras.

Devemos lembrar que, no século XIX, o campo era descrito na prosa e na poesia:

a vida dos indígenas nas florestas adensadas, a rústica existência dos sertanejos nos

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pampa e a prosaica vida dos trabalhadores nos campos, esses eram alguns dos cenários

em que as tramas dos romances e novelas eram desenvolvidas. Escritores como José de

Alencar, Visconde de Taunay e até mesmo Capistrano de Abreu estiveram envolvidos na

constituição de representações acerca do mundo rural brasileiro.

Monteiro Lobato, inclusive, seria opositor de algumas dessas convenções criadas

pelo romantismo. Convenções nas quais o sertanejo e o caipira – misturas entre o índio e

o branco – apareciam de uma forma idealizada, como homens fortes, virtuosos e com um

sentimento patriótico já esboçado. Na verdade, o que esses escritores possibilitaram foi a

constituição de uma identidade nacional, viabilizando uma compreensão acerca de como

seria a vida e os valores dos interiores brasílicos.

Jeca Tatu foi um ataque a esse construto oitocentista. Vivendo no cenário

constantemente visitado pela literatura dita regionalista, o personagem representou um

ataque à concepção idealizada do caboclo, sertanejo ou camponês. Jeca era preguiçoso,

não era produtivo, não possuía nenhum sentimento patriótico. Mesmo quando ele foi

considerado um doente, infeccionado por microorganismos, sua representação no

imaginário dos brasileiros continuou negativa.

Os artigos “Velha Praga” e “Urupês” tiveram um impacto nas discussões acerca

da identidade dos brasileiros. Aquele fazendeiro de Taubaté declarava sem muita

cerimônia a incompetência de grande parte da população brasileira que vivia em

ambientes agrários. Esse posicionamento representou uma ofensiva aos escritores com

tendências românticas, uma vez que algumas convenções literárias e estilísticas foram

ridicularizadas por Monteiro Lobato. Segundo este escritor, não haveria uma beleza na

roça, mas sim uma rudeza. Era quase como se Lobato dissesse que o ambiente rural não

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era perfumado por flores silvestres ou pelo cheiro dos biscoitos de polvilho assados ao

fogão à lenha, mas sim pelo odor dos excrementos dos cavalos e bois, do cheiro do barro

molhado e do suor respingado dos trabalhadores do campo.

Era o dandismo literário e as convenções urbanas que saíram abaladas com a

iconoclastia do escritor. No conto “Bucolica”, o autor abre a narrativa com uma descrição

idealizada do ambiente rural:

A natureza orvalhada tem a frescura de uma criancinha ao deixar o banho. Inda ha rolos de cerração vadia nas grotas. O sol já nado e ela com tanta preguiça de recolher os veus de neblina... A vegetação toda a pingar orvalho, bisbilhante de gotas que caem e tremelicam, sorri como em extase. Ha em cada vergôntea folhinhas de esmeralda tenra brotadas durante a noite. A mão de quem passa não resiste; colhe-as de alcance, porque é um gosto mordiscar-lhes a polpa macia. 158

Uma operação irônica, já que ele parte desse belo quadro inicial para revelar as

“mazelas” dos habitantes rurais, os doentes e preguiçosos, os alcoólatras, a mãe sem amor

pela filha etc. No decorrer do conto, Lobato enumera a beleza do ambiente rural e as

falhas morais dos seus habitantes. A partir desse paralelo, a noção de um interior inocente

e ingênuo se desmancha.

O marido – coitado – um bobo que anda pelo cabresto – Pedro suã. Ganhou esse apelido desde o celebre dia em que a mulher o surrou com um suã de porco [...]

Sem querer, dirijo-me para a casa dele. Não gosto da Véva. É horrenda, beiço rachado, olhar mau – e aquele papo! 159

Os personagens destoam do ambiente em que vivem, a beleza da paisagem não é

refletida no aspecto humano. Os habitantes do interior aparecem como agentes

158 LOBATO. Urupês, 1950, p.157. 159 Ibidem, p. 161.

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carregados de vícios e corrupções. A positivação da roça e do sertão está ausente. Devido

a esses artifícios usados, parte da intelectualidade que ainda se mantinha presa às

convenções do romantismo acabou por se chocar com Lobato. Mas, era a própria

literatura naturalista que reconsiderava algumas dessas idealizações. Como já foi

discutido, o interesse pela vivência do urbanismo e do cosmopolitismo impulsionou um

desdém pelo popular e rural160. Monteiro Lobato não criou uma nova discussão acerca da

identidade do caipira, o que ele fez foi se inserir em um debate já em curso.

No momento em que Lobato escrevia sobre caipiras debatia-se sobre a

importância do rural na identidade brasileira. De modo que seus textos foram apropriados

em uma conjuntura intelectual bem mais ampla do que ele inicialmente esperava. A

possibilidade de que o povo brasileiro se constituísse em uma sub-raça não deixava de ser

incômoda para as elites dirigentes. De tal modo que a identidade do trabalhador rural era

um tema que não se restringia às conversas dos literatos, mas refletia importantes dilemas

contidos no imaginário social.

Muitos intelectuais, sobretudo os interessados nas tradições rurais, a exemplo de

Cornélio Pires, não concordaram com a simbologia aparentemente inerente ao

personagem de Lobato. Houve até mesmo respostas, outras figuras que foram criadas

para serem contrapostas à imagem de um caipira debilitado. Mané Chique-Chique de

Ildefonso Albano, Juca Leão de Rocha Pombo e Jeca Bravo de Renato Khel161, tentativas

de constituir uma representação positiva do trabalhador, que minimizasse os aspectos

160 Apesar da literatura regionalista se ater sobre o ambiente rural (através de imagens idealizadas do campo e sertão) ela não significava, necessariamente, a recusa de estereótipos que relacionavam o interior com o atraso. 161 LAJOLO. Monteiro Lobato, 1985, p. 41.

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simbólicos e alegóricos do Jeca Tatu. No entanto, todos esses personagens se revelaram

inexpressivos, pois se basearam em um ufanismo que gradativamente caía em desuso162.

Em começos do século XX, industriais, técnicos e administradores tinham uma

expectativa em desenvolver um maior controle e disciplina sobre a força de trabalho.

Portanto a suposição de que os caipiras e sertanejos fossem independentes se chocava

claramente com uma nova concepção de trabalho formada pelo capitalismo

contemporâneo. O discurso dos engenheiros e gestores postulava que a população livre

era indolente. Argumentava-se que, fora das cidades, os habitantes produziam muito

pouco, sendo necessário adequá-los ao novo mercado de mão-de-obra que então se

configurava. Como podemos perceber, a figura de Jeca Tatu era, para os interessados em

uma colonização dos territórios pouco habitados, mais útil do que a permanência do

imaginário romântico.

Mais do que isso, as representações do trabalhador, contidas nos dois artigos de

Lobato, respaldavam o imaginário das elites acerca das especificidades da população

rural. Rui Barbosa percebeu como Jeca Tatu estava sendo apropriado por grupos

contrários à prática democrática, ao usarem o personagem como exemplo da

incapacidade do brasileiro comum.

Não sei bem, senhores, se no tracejar deste quadro, teve o autor só em mente debuxar o piracuara do Paraiba e a degnerescencia inata da sua raça. Mas a impressão do leitor é que, neste simbolo de preguiça e fatalismo, de sonolencia e imprevisão, de esterilidade e tristeza, de subserviencia e hebetamento, o genio do artista, refletindo alguma coisa do seu meio, nos pincelou, conciente ou inconcientemente, a sintese da concepção que tem, da nossa nacionalidade, pelos homens que a exploram. 163

162 AZEVEDO; CAMARGOS; SACCHETA. Monteiro Lobato, 1996, p. 61. 163 NEVES. “Notas Biograficas e criticas”. In: LOBATO. Urupês, 1950, p. [23].

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Rui Barbosa esclarece que a concepção do Jeca Tatu como um preguiçoso e

indolente correspondia à visão de uma classe social, e não propriamente a uma realidade

acerca do camponês. Para esse estadista, os exploradores eram os que alegavam a

preguiça do povo. O que o famoso jurista insinuou foi que o brasileiro não era indolente

ou fraco, mas sim super-explorado. Sua pobreza não seria resultado de sua natureza

biológica/racial, mas sim de uma conjuntura social e política. Das análises feitas na

época, com certeza essa foi uma das mais sofisticadas, pois ela não caiu nos extremos de

considerar o trabalhador sob um enfoque ufanista ou fatalista.

Portanto, a análise das representações de Jeca Tatu trouxe a tona algumas

perspectivas sobre o trabalhador rural em começos da Primeira República. A idéia do

caipira como um não cidadão, identificada nos escritos de Monteiro, explicitou o

descontentamento de parte da intelectualidade com a República Oligárquica – como seria

o caso de Rui Barbosa. Havia uma compreensão muito clara de que o regime instaurado

atendia a demandas de um grupo muito restrito, enquanto relegava o bem comum a um

plano secundário, denunciando, também, a ausência de uma sociedade civil constituída

no país. O próprio Lobato, ao se engajar na campanha de saneamento, levantou a

bandeira contra a situação de desamparo em que o governo deixou Jeca Tatu.

A temática cabocla ou sertaneja estava em voga nas primeiras décadas do século

XX, não só a literatura, mas também a pintura foi buscar na roça cenas cotidianas. O

caipira de Monteiro Lobato perfazia um claro diálogo com os caipiras de Almeida Júnior.

Ambos os artistas tinham uma estética similar, embora um fosse, sobretudo, um escritor e

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o outro um pintor. Caso se tratasse de uma questão de rótulos, poderíamos dizer que

ambos foram, às suas próprias maneiras, naturalistas.

Almeida Júnior pintou uma série de quadros tematizando o cotidiano do caipira.

Esse ambiente sobre o qual ele se debruçou também era conhecido por Lobato. A vida

diária do caboclo, seus instrumentos mais próximos (faca, espingarda, machado), sua

casa de pau-a-pique, a vegetação ao redor e seu momento e despreocupação e ócio são

cenas encontradas tanto nas composições do pintor de Itu como nos contos e crônicas do

escritor de Taubaté. Como podemos perceber a figura de Jeca Tatu se interligava a outras

referências disponíveis no universo cultural de então. Indubitavelmente Jeca Tatu

dialogou com as artes visuais.

A figura do caipira – seja em uma acepção positiva ou negativa – já existia no

imaginário social da época, não podemos dizer que Jeca foi uma invenção absoluta.

Lobato não era o único que tentava dar um rosto ao homem interiorano de São Paulo.

Conforme visto no primeiro e segundo capítulo, havia uma expectativa em mapear os

“sertões” e conhecer suas populações. Nesse contexto, um esboço para o caipira já estava

delineado, seja nos relatórios técnicos ou nos textos literários. No entanto é

inquestionável que seu personagem teve uma versatilidade sem antecedentes, pois ela

acabou disseminada e Jeca virou sinônimo de matuto, de roceiro e de caboclo, na maior

parte das vezes, de forma negativa. O êxito de Monteiro foi criar um personagem que

cristalizasse uma série de atributos capazes de convencer tanto a intelectualidade quanto

o público menos letrado de que o camponês possuía aquelas características.

O êxito foi tamanho que o próprio Lobato não foi capaz de criar uma outra

imagem de Jeca que rivalizasse com a sua primeira descrição deste caipira. Como já foi

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dito, outras representações não tiveram o alcance suficiente para alterar o quadro

originalmente proposto. A figura fatalista do Jeca – por vezes trágica, por vezes prosaica

– persistiu, o Jeca-doente, o Jeca-preguiça e o Jeca-atraso se tornaram imagens comuns

nos meios de comunicação. A própria história que Lobato elaborou para o Biotônico

Fontoura, foi incapaz de alterar plenamente essa visão do homem indolente e semi-

nômade.

Já no começo da década de 1960, um paulista que, quando criança, também teve

passagem por Taubaté, iria retomar a figura de Jeca Tatu através do circo, da televisão e,

principalmente, do cinema. Tratava-se de Amácio Mazzaropi cuja apropriação da figura

do caipira potencializou ainda mais a criação original de Monteiro Lobato. O sucesso

desse empresário cultural ilustra o quão profundamente a imagem de Jeca Tatu havia se

enraizado no imaginário popular. Na verdade, trata-se de uma outra questão determinar

em que medida o caipira de Mazzaropi se assentou no personagem de Monteiro Lobato:

Uma das questões mais controversas a respeito da vida de Mazzaropi vem a ser justamente a sua relação com a obra de Monteiro Lobato [...] Mazzaropi nunca teria lido Monteiro Lobato. É difícil de acreditar nisto. Principalmente em se tratando de Jeca Tatuzinho, um fenômeno de penetração popular no Brasil ao longo de meio século. Provavelmente ele não tenha lido toda a obra de Lobato, nem mesmo todas as aventuras do Sítio do Pica-Pau amarelo, mas é mais que evidente que teve contato com a obra de Lobato, pelo menos o conto Jeca Tatuzinho através dos gibis do Laboratório Biotônico Fontoura.164

Com efeito, o conto Jeca Tatuzinho publicado pelo almanaque teve uma

repercussão em um público amplo e variado. Mazzaropi soube dialogar com as

referências existentes acerca do personagem. Porém, o cineasta não teve o mesmo

164 FERREIRA. Jeca Tatu, 2001, p. 115.

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engajamento social que Lobato, não havendo a perspectiva de apresentar o ambiente

rural, desconhecido e ignorado para o citadino. Dessa vez, buscava-se somente elaborar

uma descrição cênica e prosaica do modo de vida rural. Além disso, Mazzaropi não

elevou Jeca Tatu a um status de identidade nacional, já que:

O tratamento dado pelo autor [Lobato] ao personagem colocava Jeca como sendo a imagem de toda a massa camponesa paulista. Esse caráter simbólico foi ainda mais reforçado no gibi do Biotônico Fontoura como forma de propaganda. No filme, Jeca Tatu é tratado como exceção e não como regra, dentre os lavradores. 165

Pensar que Jeca Tatu, com sua preguiça extremada, fosse exceção aos

trabalhadores rurais, ofereceria maiores oportunidades cômicas. O humor centra-se

justamente no desvio da norma, na exceção e no diferente. Contudo, uma ridicularização

do trabalhador rural em geral também é perceptível nos filmes de Mazzaropi. O caipira

surge como um oposto da cidade, uma figura tacanha, incapaz de acompanhar as

convenções sociais da urbe.

Em resumo, a imagem do caipira e sertanejo, que surgiu de observadores do

século XIX, ganhou forma na prosa e poesia do romantismo. Na pintura, foi Almeida

Júnior que melhor esboçou a fisionomia e a vida do homem rural. Monteiro Lobato, em

diálogo com essas matrizes foi além e criou uma representação do interiorano que

repercutiu fortemente no imaginário popular. Ao longo dos seus escritos a figura do

caboclo esteve sempre presente, muitas vezes metamorfoseadas em novos personagens,

como o expropriado Zé-Brasil. Amácio Mazzaropi, por sua vez, retomou a criação de

165 Ibidem, p. 120.

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Monteiro Lobato e criou sua versão para Jeca Tatu, se inserindo na nascente indústria

cultural brasileira.

Seja nos nichos intelectuais ou populares, as representações dos caipiras estão

ligadas a maneiras específicas de compreender e valorizar o ambiente agrário. Nesse

sentido retomamos a figura de Jeca Tatu e propomos pensá-la dentro de um contexto não

regionalista, mas modernista – o que nos permitiria, conforme o terceiro capítulo,

insinuar mais um denominador comum entre Lobato e aqueles intelectuais ligados a

Semana de Arte de 1922. Seria Jeca Tatu um antropófago? Um canibal capaz de deglutir

diferentes referências culturais para transformá-las em um produto nacional/local?

Mesmo sem propor uma resposta para essa problematização, sabemos que Jeca

Tatu possui certa iconoclastia em relação aos padrões românticos e uma irreverência que

poderia lembrar alguns personagens modernistas. Uma personagem resistente, que

consegue se adaptar as inovações, subvertendo as determinações iniciais que lhe são

impostas. Aliás, segundo Célia Magalhães, haveria vários monstros na narrativa

modernista brasileira e o antropófago seria um deles.

O antropófago, formado a partir dos fragmentos humanos que consome, teria um ponto de contato com a criatura de Frankenstein. Seu movimento é de reação frontal contra seu criador ou benfeitor, e seu objetivo é destruí-lo para que a sua própria identidade se afirme. 166

Em Emília no País da Gramática, há um momento em que a boneca se depara

com o Provincianismo, um personagem que representava a figura de linguagem

responsável pelo surgimento de palavras e expressões locais, a exemplo do dialeto

caipira. Tal figura se encontrava presa em uma espécie de prisão gramatical, pois era 166 MAGALHÃES. Os Monstros e a Questão Racial na Narrativa Modernista Brasileira, 2003, p. 19.

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rotulado como um atentado contra a Sintaxe. O provincianismo é caracterizado no texto

como o próprio Jeca Tatu. Emília não concorda com sua prisão e opta por libertá-lo:

- Vá passear Sêo Jeca. Muita coisa que hoje esta senhora [Sintaxe] condena vai ser lei um dia. Foi você quem inventou o Você em vez de Tu e só isso quanto não vale? Estamos livres da complicação antiga do Tuturututu. Mas não se meta a exagerar, senão volta para cá outra vez, está ouvindo?

O Provincianismo agarrou a trouxinha, o pito, o fumo e as palhas e, limpando o nariz com as costas da mão, lá se foi fungando. Tão bobo, o coitado, que nem teve a idéia de agradecer à sua libertadora. 167

O que esse trecho bem alegórico mostra é que Jeca Tatu (a população rural)

representava uma inovação na vida cultural brasileira. O que aparentemente poderia

significar uma degenerescência seria o surgimento do novo, de uma transformação

operada internamente. Essas sutilezas no texto do autor nem sempre foram identificáveis

e, tomar Jeca Tatu como um antropófago, ainda que mal grado de Lobato, implica em

reconhecer uma aproximação com o modernismo mais estreita do que até pouco tempo

era considerada. Contudo não podemos esquecer a maneira pela qual Lobato entendia o

texto literário. Ele tinha as artes em geral como instrumentos pedagógicos dedicados a

difundir determinadas compreensões e análises do real. No caso da literatura infantil, fica

patente a intenção de desenvolver nas crianças, ainda que de forma lúdica, uma visão

acerca de determinados aspectos da vida nacional. Assim como a literatura, a pintura

também deveria ter um compromisso com a superação do atraso brasileiro. É essa

perspectiva que singulariza, e muito, a posição de Lobato ante os modernistas.

Todo esse quadro ilustra muito bem as ambigüidades de Monteiro Lobato.

Paradoxos que não se referiam somente à figura do caipira, mas também a sua própria

167 LOBATO. Emilia no País da Gramática, s.d, p. 353.

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vida. Na leitura d’A barca de Gleyre, e também em outras entrevistas e declarações, esse

escritor sempre fez questão de afirmar sua ânsia pelo enriquecimento através de

empreendimentos na iniciativa privada. Mas a maior parte de suas ações acabou por

empobrecê-lo, como também a destiná-lo a situações dificilmente vivenciadas por um

capitalista. Aliás, me parece, que sua tributada trajetória daria um filme típico de Martin

Scorcese, um personagem que devido aos seus sonhos e excentricidades colocou em risco

toda uma riqueza constituída.

O fazendeiro Lobato almejou prosperar através da modernização agrícola em sua

propriedade, mas o que ocorreu foi um processo de endividamento. Dessa sua experiência

o principal ganho foi a figura de Jeca Tatu, um personagem que passou a povoar o

imaginário brasileiro, expressão de variados simbolismos sobre o campo. O editor

Monteiro tinha expectativas de um grande enriquecimento com as suas publicações, mas

acabou falido, porém, contribuindo decisivamente para a consolidação do mercado

editorial brasileiro, com barateamento dos livros e lançamento de novos escritores.

Há também o Monteiro Lobato que se lançou a uma procura por reservas

petrolíferas no Brasil, em uma tentativa quase individual, de retirar de nossos sertões uma

Detroit ou uma Nova York. Tentar superar o problema petrolífero do país – uma questão

cara a qualquer projeto modernizador – ou seria o afã por um extremo enriquecimento ou

então uma preocupação exacerbada com o bem público. Aliás, foi esse

empreendedorismo que o conduziu à cadeia, um local não muito visitado pelos

empresários, mas sim pelos revolucionários, pelos subversivos e pelos idealistas.

Claro que, em Lobato, a procura por um bem comum (público e nacional) não

estava dissociada do interesse de um enriquecimento individual. Dentro do próprio

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ideário liberal, essa postura seria muito coerente. Entretanto, em um contexto no qual a

principal base econômica do país era a monocultura e em que os latifundiários tinham um

peso na vida pública nacional, impondo interesses privativos sobre vontades e premências

gerais, não seria um quixotismo acreditar em um livre mercado competitivo? Bem

avaliado, Lobato aparece menos como um empresário e mais como um utopista168. A

idéia de um Jeca Lobato expressa essa condição do escritor situado entre a intervenção no

mundo concreto e a fantasia. Em suas prospecções pelo país, foi muito dificultoso

encontrar petróleo, mas em um dos seus livros infantis as facilidades para a descoberta

foram bem maiores. O faz de conta lhe dava muito prontamente aquilo que o real lhe

negava.

Com uma atuação no real e no ficcional, Lobato buscou uma integração entre

interior e litoral, entre arraial e cidade grande. As suas oscilações e aparentes

ambigüidades se solucionam na medida em que consideramos que havia uma coerência

muito profunda em seu projeto modernizador. O fazendeiro Monteiro e o Editor Lobato

tinham as mesmas aspirações: conhecer o rural, descrevê-lo e integrá-lo a modernização

que partiria das zonas urbanas. O próprio Jeca Tatu seria um “vir a ser”, um protótipo do

brasileiro – trabalhador do campo perante o mundo urbano e industrial – um rascunho de

cidadão, mas uma promessa de uma identidade mais autêntica, mais nacional. Um

personagem que refletiu muito bem seu criador, um intelectual e empreendedor que

estava disposto a se mudar para o litoral, mas jamais se esquecendo dos gostos e os

cheiros do seu sertão.

168 CASSAL. “Monteiro Lobato: Um Utopista na Jecatatuásia”. Ciência e Letras, 2000, p.209-236.

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