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1 Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação em Antropologia / PPGAN Das ostras, só as pérolas Arqueologia pública e arqueologia subaquática no Brasil Bruno Sanches Ranzani da Silva Belo Horizonte Abril de 2011

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Universidade Federal de Minas Gerais

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Programa de Pós Graduação em Antropologia / PPGAN

Das ostras, só as pérolas

Arqueologia pública e arqueologia subaquática no Br asil

Bruno Sanches Ranzani da Silva

Belo Horizonte

Abril de 2011

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Bruno Sanches Ranzani da Silva

Das ostras, só as pérolas

Arqueologia pública e arqueologia subaquática no Br asil

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Antropologia (concentração em arqueologia). Orientador: Prof. Dr. Andrés Zarankin Co-orientador: Prof. Dr. Gilson Rambelli

Belo Horizonte

Abril de 2011

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306 Silva, Bruno Sanches Ranzani da S586d Das pérolas, só as ostras [manuscrito] : arqueologia pública e arqueologia 2011 subaquática no Brasil / Bruno Sanches Ranzani da Silva. – 2011.

237 f. Orientador:Andrés Zarankin Co-orientador:Gilson Rambelli Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.

.

1. Antropologia – Teses. 2. Arqueologia – Teses. I. Zarankin, Andrés. II. Rambelli, Gilson.III. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título

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To whom it may concern

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Agradecimentos

A ordem dos tratores não altera a rodovia. Fui escrevendo à medida que

minha cabeça foi lembrando.

À minha família, por tudo.

Aos meus orientadores, Andrés Zarankin e Gilson Rambelli, por toda a

confiança, paciência e instrução deste jovem padawan. Espero ter-lhes feito

valer o esforço.

Aos professores Carlos Magno Guimarães e Pedro Paulo Funari, pela

leitura atenta deste e de diversos outros trabalhos.

Além dos professores citados, gostaria de agradecer aos outros

docentes que também me acompanharam nas aulas do mestrado. Daniel

Simião, Andrei Isnardis, Cristóbal Gnecco e Mary Beaudry. Obrigado por

ampliarem meus caminhos entre antropologia e arqueologia.

Aos entrevistados e quase-entrevistados para esta pesquisa. Obrigado

pela paciência e interesse em meu trabalho. Peço desculpas por eventuais

inconvenientes e desencontros.

Além do Andrés, gostaria de agradecer sua família, Marcia e Lika, por

terem me recebido, e continuar me recebendo, com todo o afeto em BH.

Aos meus queridos colegas de turma, pesquisa, morada e salinha: Elis,

Igor, Evelyn, Roger, Loulou, Luis, Flávia, Fela, Barbi, Diogo, Ju, Fabiano,

Marianinha, Dani-socio, Carol, Xande, Nanda, João e Fernando. Obrigado por

me receberem tão calorosamente neste Belo Horizonte de Minas, com muita

cerveja, pão-de-queijo, bagunça, carinho e arqueologia.

Ao quarteto fantástico (eu incluso): Rui, Dani-Arq e Camila. Forever

Young! (rsrs).

Aos queridos calouros de antropologia, com quem já comecei minhas

ambições de orientação: Amanda, Dudu, Ciro, Gustavo.

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Aos meus irmãozinhos adotivos (aquela parte da família que a gente

pode escolher): Lalo, Lau, Galu, Bibico, Chopp e Fer.

Aos queridos amigos sulistas (natos ou incorporados), Loredana, Xico,

Lucio, Diniz, Iago, Edivânia, Ro e Paulinho. Obrigado pelas leituras atentas,

comentários, diversão, oportunidades, churrascos e doces portugueses.

À galerinha de Blu! Seus ítalo-alemãezinhos sapecas!

À Aninha, Angela e Alessandro, pela dezenas de vezes que me

salvaram o couro neste grande mundo burocrático.

Ao PPGAN e Capes pelo financiamento e apoio institucional desta

pesquisa.

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Los libros que leí, las teorías que frecuenté,

Se debieron a mis propios tropiezos con la realidad

Ernesto Sábato, “Antes del fin”

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Resumo

Os conflitos entre a prática arqueológica e o público leigo se tornaram

importante ponto de discussão dentro da disciplina nos últimos 30 anos. Minha

proposta é buscar na arqueologia pública experiências e abordagens que

reconheçam o viés político do conhecimento arqueológico, pensar sobre a

responsabilidade social do profissional e promover a interação entre este

profissional e seus distintos públicos. Além de uma breve revisão da literatura

internacional sobre o tema, proponho-me a discutir sua aplicabilidade ao

contexto nacional. Particular atenção será dada ao caso da arqueologia

subaquática brasileira, cujos embates entre mergulhadores recreativos e

arqueólogos, mediados por uma precária legislação nacional de proteção ao

patrimônio cultural submerso, têm chamado a atenção de quem se interessa

pela preservação e pela pesquisa.

Palavras chaves: Teoria Arqueológica; Arqueologia pública; Arqueologia

Subaquática.

Abstract

Conflicts between the archaeological practice and the lay public have

become central issues to the archaeological discipline over the last 30 years.

My proposal is to search for experiences and approaches, following the public

archaeological perspective, that clarify the political bias of the archaeological

knowledge, its responsibility towards society and promote ways of interactions

between the discipline and its many different publics. I’ll conduct a brief review

of the international literature on public archaeology and discuss its applicability

to the Brazilian context. Particular attention will be paid to Brazilian underwater

archaeology case, since it has been long concerned with its conflicting

relationship with recreational divers, mediated by a weak legislation for the

protection of the underwater cultural heritage.

Key-words: Archaeological Theory; Public Archaeology; Underwater

Archaeology.

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Sumário

Indice de Ilustrações ............................. ................................................................... 11

1. Antecedentes – A fome antes do bolo ............ ................................................. 12

1.2. Patrimonium, Patrimônio, Patrimônios .......................................................... 14

1.3. Arqueologia Subaquática no Brasil ............................................................... 22

1.3.1. As primeiras braçadas ........................................................................... 23

1.3.2. A consolidação da pesquisa submersa .................................................. 27

1.4. Patrimônio civil rumo às profundezas ........................................................... 34

2. Introdução ..................................... ..................................................................... 36

3. Capítulo 1 - Arqueologia Pública Internacional . .............................................. 39

3.1. Entre o civil e o Estado ................................................................................. 40

3.2. Pós-processualismo e novos olhares............................................................ 52

3.3. Arqueologias Públicas .................................................................................. 60

3.3.1. Imagens e expressões de arqueologia .................................................. 62

3.3.2. Alcance e Educação .............................................................................. 83

3.3.3. Antropofagia arqueológica ..................................................................... 97

4. Capítulo 2 - Arqueologia pública e colonialismo no Brasil .............................. 110

4.1. O “gingado” brasileiro ................................................................................. 113

4.2. Elegendo identidades ................................................................................. 122

4.3. Arqueologia pública no Brasil ..................................................................... 134

4.4. Síntese ....................................................................................................... 156

5. Capítulo 3 - The final showdown : arqueologia subaquática, mergulhadores e comunidades ....................................... ................................................................... 157

5.3. Arqueologia subaquática – desafios e estratégias de atuação pública........ 182

5.4. Comunidades costeiras, arqueologia e o impacto do turismo ..................... 198

5.5. Ao território dos lugares .............................................................................. 210

6. Conclusão – Das pérolas, só as ostras .......... ................................................... 213

7. Referência bibliográfica ....................... ........................................................... 217

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Indice de Ilustrações

Figura 1: No original o artigo diz, “Lei da selva - Lula na comemoração da demarcação da Raposa Serra do Sol, que feriu o estado de Roraima” (Coutinho et alii 2010). Foto: Manoel Marques. ...........................................................................Erro! Indicador não definido.

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1. Antecedentes – A fome antes do bolo

A iniciativa deste trabalho partiu de meu interesse pela arqueologia

subaquática, tema que havia começado a acompanhar ainda na graduação.

Com tal preocupação, meu objetivo inicial foi pensar as estratégias de atuação

do profissional de arqueologia frente ao conflito que envolve a prática

subaquática no país.

Gilson Rambelli (2009) resume de maneira precisa os problemas que

assolam a prática subaquática da arqueologia nacional. Primeiro, a ação de

caçadores de tesouros (brasileiros e estrangeiros) com forte influência lobista

nos altos escalões do governo (envolvendo o planejamento legislativo

nacional); segundo, a atribuição de salvaguarda e cuidados do patrimônio

cultural submerso à Marinha, ao invés do Ministério da Cultura (órgão de

competência pela proteção e manejo do patrimônio cultural “emerso”); terceiro,

a indiscriminação (possivelmente por influência legislativa) entre o resgate de

material para conservação e divulgação pública, e o resgate para leilão das

peças.

A meu ver, havia três “instâncias” que se envolviam com vestígios

humanos submersos e chocavam-se quanto a que destino dar a esses

vestígios. O Estado Nacional (1), em posição ambígua pela preservação do

patrimônio nacional, mas influenciável pelo lobby da “caça ao tesouro”, os

mergulhadores recreativos (2) interessados mais em aventuras e belas

paisagens do que em retóricas de pesquisa, e o(a) pesquisador(a)

arqueológico(a) (3), tomando parte de uma política internacional pela

preservação do patrimônio arqueológico submerso como patrimônio da

humanidade.

As comunidades costeiras (moradores locais próximos aos sítios

submersos) estavam ausentes no meu plano inicial, mas posteriormente discuti

alguns casos referentes aos impactos que as atividades arqueológicas e

turísticas podem exercer sobre estas populações e sua relação com os

vestígios humanos submersos.

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Nessa situação clara de conflito, as discussões sugeridas pela

arqueologia pública me pareceram pontuais. Em suas acepções mais

contemporâneas, a arqueologia pública tem como principal ponto de interesse

a relação entre a disciplina e o público não acadêmico.

A medida que caminhava minha pesquisa, fiquei cada vez mais

interessado em suas propostas e amplitude temática. Entre as polêmicas que o

conceito tangencia, dei-me conta (em especial depois do prolongado contato

com diversos arqueólogos durante as aulas, congressos e botecos do

mestrado) que o relacionamento entre o público não-arqueológo e a disciplina

não se resumia apenas à arqueologia subaquática. Tratava-se de um

movimento geral da disciplina no país, cuja entrada no mercado cultural tem

gerado questionamentos, sobre sua legitimidade, seus deveres, seus direitos e

sua ética.

Foi assim que este trabalho mudou um pouco suas dimensões. Ao

mesmo tempo em que não conseguia me desligar do tema subaquático, por

interesse próprio e por vê-lo como um exemplo central do que se passava na

arqueologia nacional, acabei me exaltando no interesse pelas diferentes

acepções da arqueologia pública no mundo e como esse conceito tem sido

usado no Brasil. Meu foco central dirigiu-se à compreensão da arqueologia

pública, tendo a arqueologia subaquática nacional como um estudo de caso.

Antes de dar início às delimitações e argumentos mais precisos do

trabalho (seus ingredientes e medidas), me foi sugerido (tomei-a de muito bom

grado) a redação desse pequeno “prólogo”, com os pontos fortes que me

levaram à concatenação desta produção: patrimônio e arqueologia subaquática

brasileira.

Em respeito à constante menção dos termos “patrimônio cultural e

arqueológico subaquático”, farei primeiro algumas considerações sobre o

conceito de patrimônio. Mais adiante (primeiro e terceiro capítulos) entrarei nos

aspectos legais da gestão patrimonial. Aqui, no entanto, me pareceu

necessário, inicialmente, uma breve reflexão sobre o significado histórico e

filosófico daquilo que a arqueologia tanto luta por defender. Em seqüência,

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pretendo descrever uma breve história, justamente, da arqueologia subaquática

brasileira e sua defesa do patrimônio cultural submerso. Desde o final dos anos

de 1990, os embates entre representantes da comunidade científica e líderes

do Poder Público têm marcado a prática arqueológica submersa nacional. As

perguntas que fiz à este “prólogo” foram: o que tratar como patrimônio? E como

a arqueologia subaquática brasileira tem tratado o patrimônio?

1.2. Patrimonium, Patrimônio, Patrimônios

O conceito de patrimônio merece, antes de tudo, uma breve discussão.

Considera-se, em princípio, a origem do termo patrimônio: a raiz provém do

latim, patrimonium, que conjuga o substantivo pater (pai) e o verbo moneo

(levar a pensar, lembrar; mesma raiz na palavra monumentum), ou seja, uma

linhagem material (que carrega consigo algo de mnemônico) transmitida pelo

chefe familiar da aristocracia romana (FUNARI e PELEGRINI 2006). Sua

origem epistemológica nos sugere dois aspectos. Em primeiro lugar, sugere a

linhagem privada na qual se insere o patrimonium, relembrando a origem

aristocrática do termo e que ainda vemos sendo reproduzida, muitas vezes,

nos critérios de seleção do patrimônio nacional. Esse primeiro aspecto gera a

dúvida que deve ser constante, a meu ver, nos estudos sobre patrimônio

arqueológico: quem esse patrimônio representa? Em segundo lugar, sugere

uma conseqüência hereditária carregada de ancestralidade, a transmissão dos

caracteres sociais adquiridos e a preservação da memória das origens. A

ancestralidade tem gerado calorosas discussões em nossos dias por relegar

para segundo plano uma qualidade inerente às sociedades: sua dinamicidade.

Apesar de considerar a abordagem etimológica apenas como uma

pequena parte da argumentação conceitual, acredito que ela pode trazer, como

é o caso, importantes reflexões sobre os usos e abusos do termo em questão.

Pretendo desenvolver ao longo do texto essas duas reflexões sobre o

patrimônio, uma vez que se tornam essenciais na discussão sobre patrimônio

arqueológico, sua proteção e qual sua importância para os diversos grupos que

vivem e interatuam através dele.

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Para além de sua etimologia, lidar com a questão patrimonial em caráter

individual e familiar não é, em definitivo, a mesma coisa que lidar com a

questão patrimonial em caráter coletivo.

A coletividade não é a simples soma de indivíduos, assim como o todo não é a mera junção das partes, como afirmou, há 2.500 anos, o filósofo Platão. (...) As coletividades são constituídas por grupos diversos, em constante mutação, com interesses distintos e, não raros, conflitantes (FUNARI e PELEGRINI 2006, p. 9-10).

Nesse aspecto, concordo com o argumento dos autores sobre o

surgimento dos Estados Nacionais modernos e uma verdadeira revolução

encaminhada ao conceito de patrimônio. A revolução francesa, marco

essencial na história dos direitos humanos e do iluminismo, acaba com a noção

familiar e privada do patrimônio, dando frente ao patrimônio hereditário social e

coletivo da nação.

A Revolução Francesa viria a destruir os fundamentos do antigo reino. Ao acabar com o rei, toda a estrutura do Estado perdia sua razão de ser. A República criava a igualdade, refletia na cidadania dos homens adultos (FUNARI e PELEGRINI 2006, p. 15).

Uma outra autora, a arqueóloga espanhola Margarita Díaz-Andreu parte

de uma perspectiva muito interessante em que duas formas de coletividade são

derivadas desse processo revolucionário do final do século XVIII e começo do

XIX. A Revolução francesa de 1789 primeiramente politizou o conceito de

nação1, uma “soberania” considerada “como a união de indivíduos governados

por uma única lei, e representados pela mesma assembléia legislativa”

(Kedourie 1988:5 apud Díaz-Andreu 2000, p. 40). Esse nacionalismo, Díaz-

Andreu chama “cívico”;

Para o nacionalismo cívico ou político, o conceito “nação” estava ligado a conceitos herdados do Iluminismo neoclássico, que ora se associaram intimamente com a nação: cidadania, território, direitos e deveres iguais para todos os cidadãos,

1 Do latim nascor, éris – “nascer” (HOUAISS 2007). Também encontramos os vocábulos natio, ónis –

“raça, espécie, povo” (GLARE 2006).

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educação universal e ideologia cívica (Smith, 1991: 9-10 apud Díaz-Andreu 2002, p. 8).

A segunda forma seria aquela atribuível aos movimentos de unificação

da Alemanha e Itália, carregando a soberania nacional com pressupostos

étnicos. Ou seja, uma nação que fosse, em primeiro lugar, culturalmente coesa,

com “costumes semelhantes e/ou uma língua compartilhada” (Díaz-Andreu

2002, p. 10); E, em segundo lugar, uma descendência comum. “Para tudo isso,

a História própria de cada nação tinha um papel fundamental legitimador”

(Díaz-Andreu 2002, p. 10).

A queda do Regime absolutista e a criação dos Estados Republicanos

alteram a sensibilidade sobre a participação da coletividade no

encaminhamento político do território, da economia e da história. Por um lado,

a conquista do acesso à direitos políticos por uma maioria não-aristocrática e

não-nobre é um dos grandes avanços das diretrizes iluministas e humanistas, e

permitem, a princípio, a maior proximidade ao que seria uma justiça social.

“Liberdade, igualdade e fraternidade”. Por outro, o surgimento do Estado não

mais centrado na figura do Monarca, mas sim na figura de seu coletivo

constituinte exige a unidade e o fundamento desse coletivo ao território em

distinção. “O líder da unificação Massimo D’Azeglio, constatou que ‘feita a Itália,

é preciso fazer os italianos’” (Funari & Pelegrini, 2006, p. 17). Na constituição

das novas nações étnicas é fundamental elencar os monumentos que serão

receptáculos da memória coletiva.

A experiência do nacionalismo étnico que começara na Europa no final

do século XIX culminaria nos horrores das duas Grandes Guerras e com o

Holocausto. A seqüência foi o desmantelamento das nações imperialistas, a

descolonização da África e Ásia e o realce das liberdades e direitos cívicos

garantidos pelo iluminismo, bem como o convívio e respeito às diversidades

(Funari & Pelegrini, 2006). Essas novas ideologias sobre a coletividade

convocam mudanças nas atribuições dos Estados Nacionais, que procuram

formular um novo enquadramento da identidade nacional, pautada

basicamente em dois pontos: 1) A demarcação do território geopolítico continua

sendo a fronteira dentro da qual o nascimento do indivíduo, ou seu grau de

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descendência de um nascido, determina seu pertencimento ao país

(nacionalidade). 2) A tentativa, pós-holocausto, de ampliar o reconhecimento

da diversidade étnica dentro do território nacional e garantir seus direitos

cívicos através de políticas de estado.

Essa diferença entre Estado “cívico”, resultante de um coletivo

heterogêneo, e “étnico”, homogeneizante do coletivo, me parece essencial na

compreensão da atual condição dos Estados Nacionais Latino-Americanos.

Como no caso do Brasil, onde o direito e promoção da diversidade tem sido

carro-chefe das políticas públicas governamentais, dentre o que tange à

distinção, nomeação, preservação e aclamação do patrimônio nacional.

Dentro desse novo panorama das nações européias, o trato do

patrimônio foi movido por três características básicas: sua materialidade e

monumentalidade, sua beleza e exemplaridade, e sua regência por Instituições

Públicas (Funari & Pelergini 2006). Portanto, tratava-se de eleger, entre os

edifícios e objetos atribuídos à vivencia histórica nacional, quais seriam os

maiores, mais belos, e mais típicos do caráter único e grandioso da Nação. A

criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização das

Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 1945

dão respaldo a essa empreitada nacional de respeito aos direitos do cidadão e

à diversidade cultural, direitos que são antes considerados humanos que

territoriais.

Em termos internacionais, as diferentes nações interagiam mais do que nunca, o que também contribuiu para a dissolução dos conceitos nacionalistas, apesar de os órgãos internacionais, como a ONU e a UNESCO, serem aglomerados de Estados nacionais e defenderem, em muitos casos, a nação como uma suposta unidade, sem contrastes internos. De toda forma, a convivência levou à eleição da diversidade humana e ambiental, como valor universal a ser promovido (Funari & Pelegrini, 2006, p. 23).

Assim, entre o final da 2º Guerra Mundial e os anos 1990, a ONU e

diversas nações investiram na construção de um aparato legislativo de

proteção patrimonial.

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A primeira Conferência Internacional para a Preservação dos

Monumentos Históricos aconteceu em 1931 em Atenas. Embora sua

“internacionalidade” tenha se resumido à presença de países europeus (Choay,

2001), a Carta de Atenas, documento gerado desse encontro, tornou-se

referência base à filosofia de preservação, valoração e conservação de

monumentos históricos e artísticos. Cita, inclusive, monumentos de interesse

arqueológico (parte da carta é dedicada aos trabalhos de restauro e

conservação da Acrópole Ateniense) (Sociedade das Nações, 1931). No

entanto, seu texto prezava demasiado por quesitos estéticos, recomendando a

derrubada de possíveis cortiços ao redor do monumento e enfatizava que nada

fosse construído em estilo semelhante ao monumento para não roubar-lhe a

atenção (Pelegrini 2006).

Posterior à Segunda Guerra-Mundial, as recomendações da ONU

começam a referenciar atenção cada vez maior à diversidade das acepções e

importâncias sociais do patrimônio. A Carta de Veneza de 1964 contou com a

participação de três países não europeus: México, Peru e Tunísia (Choay,

2001). Esse documento, conseqüente da II Conferência Internacional de

Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos do ICOMOS, trata de normas

para a conservação e restauro de monumentos históricos, definindo-os como

(...) criações arquitetônicas isoladas assim como o conjunto urbano ou rural de testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa, ou de um acontecimento histórico. Refere-se não somente às grandes criações, mas também às obras modestas que tem adquirido com o tempo uma significância cultural (ICOMOS 1964, p. 10).

Dando devida atenção às “obras mais modestas” que possuem

significado cultural e ao envolvimento da sociedade, a Convenção de 1964 já

inaugura uma nova postura política frente ao poder de representatividade social

do patrimônio. Da mesma forma, a Declaração de Amsterdam (1975) reforça a

inserção de conjuntos nas categorias de patrimônio e a viabilização de

“políticas de conservação integradas” (Pelegrini 2006, p. 4), bem como

“aconselha o envolvimento da população residente nos processos de

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preservação, de modo a evitar a evasão dos habitantes em virtude de

processos especulativos” (Pelegrini 2006, p. 5).

Esse cenário internacional será muito ativo na redação de leis, normas e

recomendações de proteção e salvaguarda do patrimônio mundial. Algumas

são de extrema importância para a definição e gestão do patrimônio

arqueológico. Exemplos: (i) a 13ª Conferência Geral da Unesco em Paris, no

dia 19 de novembro de 1964, faz “recomendação sobre medidas destinadas a

proibir e impedir a exportação, importação e a transferência de propriedade

ilícitas de bens culturais” (Unesco, 1964 apud Funari; Domínguez, 2005, p. 13),

que exigem a proteção, dentre outros “bens culturais”, daqueles de “interesse

histórico, artístico ou arqueológico” (Unesco, 1964 apud Funari; Domínguez,

2005, p. 14); (ii) a “Recomendação acerca da Preservação de Propriedade

Cultural Ameaçada por trabalho Público ou Privado” (Chih-Hung, 2004)2, em

dezembro de 1968; (iii) a “Convenção sobre os Meios de Proibição e

Prevenção da Importação Ilícita, Exportação e Transferência de Posse de

Propriedade Cultural” (Chih-Hung, 2004), assinada em 14 de novembro de

1970 em Paris, que trata da “propriedade cultural” como aquela que “por

estatuto religioso ou secular, é especificamente designada por cada Estado

como sendo de importância para a arqueologia, pré-história, história, literatura,

arte ou ciência” (Unesco, 1970, p. única); (iv) a “Recomendação de Paris sobre

Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, de 1972, que define como

patrimônio cultural, em seu Artigo 1º, “elementos ou estruturas de natureza

arqueológica, inscrições, cavernas (...)” e “lugares arqueológicos, que tenham

valor universal do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico”

(UNESCO, 1972)3.

Não somente cartas com propostas gerais, mas também alguns

encontros entre Nações Latino Americanas buscaram suprir as demandas

específicas de suas identidades e conjuntos patrimoniais, como a Carta de

2 Todas as traduções dos originais em lingua estrangeira são de minha autoria.

3 Mais documentos estão acessíveis gratuitamente do site da Unesco:

http://portal.unesco.org/en/ev.php-URL_ID=12024&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

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Machu Picchu em 1977, A Convenção de Tlaxcala em 1982 e a Declaração do

México de 1985 (Funari & Pelegrini, 2006). As convenções de Tlaxcala e do

México reforçaram o caráter popular do patrimônio e sua forma imaterial (ritos,

festas, danças) (Pelegrini 2006, p. 5), enquanto a Convenção de Machu Picchu

propunha a

(...) reintegração entre a arquitetura e as cidades em todos os seus elementos constitutivos, buscando a manutenção de sua vitalidade e significado contemporâneo, manifestando ainda preocupações com o impacto social gerado pela sobrevalorização das áreas restauradas e/ou revitalizadas e com os danos ao meio ambiente, anteriormente abordados na Convenção de Estocolmo (1972) (Pelegrini 2006, p. 5-6).

Em 1985, o reconhecimento do patrimônio arqueológico como um bem

que necessita de cuidados e medidas específicas para sua gestão levou à

criação de uma instância dentro do ICOMOS, o Comitê Internacional para

Gestão do Patrimônio Arqueológico (ICAHM, sigla do original em inglês4) (Elia,

1993 p. 97). O primeiro documento internacional a tratar especificamente do

patrimônio cultural arqueológico, a Carta da Lausanne, foi redigida por esse

órgão em 1990. Seu texto define o patrimônio arqueológico como “a porção do

patrimônio material a qual os métodos da arqueologia fornecem os

conhecimentos primários” (ICAHM 1990, Art.

1). Seu texto engloba também vestígios “sob

as águas”. A abrangência oferecida por essa

carta coloca a arqueologia em foco na

definição e manejo de um bem cultural

específico. A condição ontológica que liga

esse patrimônio à disciplina garante o direito de participação do público em sua

gestão (de proteção à integração nas atividades de pesquisa e gerência), e

conclama igualmente o Estado ao dever de manejo e respeito à memória

pública (ICAHM 1990).

Finalmente, no ano de 2001, durante a 31º Convenção Geral da

UNESCO em Paris, é redigida a “Convenção sobre a Proteção do Patrimônio

4 No original, International Committee on Archaeological Heritage Management.

“Patrimônio cívico”: O conceito de patrimônio tem tomado formas distintas no decorrer dos anos, e finalmente se transformou em uma parafernália jurídica de importância vital no manejo da memória e do espaço nacional.

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21

Cultural Subaquático”. Em seu texto, fica definido o “Patrimônio cultural

subaquático” como

Todos os traços de existência humana tendo um caráter cultural, histórico ou arqueológico, que tenham estado parcialmente ou totalmente debaixo de água, periódica ou continuamente, durante pelo menos 100 anos, tais como:

i) Sítios, estruturas, edifícios, artefatos e vestígios humanos, em conjunto com o seu contexto arqueológico e natural;

ii) Navios, aeronaves, outros veículos, ou qualquer parte deles, a sua carga ou outro conteúdo, em conjunto com o seu contexto arqueológico e natural; e

iii) Objetos de caráter pré-histórico (UNESCO, 2001).

A Convenção da Unesco de 2001 igualmente estabelece a prioridade da

preservação do patrimônio material subaquático in situ (Art. 2, nº5) e a

proibição de sua valoração comercial (Art. 2, nº 7 e Regra 2, Anexo). Essa

convenção consagra os esforços da arqueologia subaquática mundial (nascida

nos anos 1960). Infelizmente, o Brasil ainda não ratificou a Convenção. Não

somente a ignora como aprova uma lei, um ano anterior à Convenção, que

viabiliza a atribuição de valor do patrimônio submerso de acordo com as

demandas do mercado (Rambelli 1997, 1998, 2002, 2004).

Apesar da curta explanação sobre cada uma das leis, algumas

considerações de âmbito geral que dizem respeito à minha argumentação

podem ser deduzidas. Primeiro, todas as cartas coroam a necessidade de

atuação dos Estados Nacionais signatários na gestão e proteção do patrimônio

cultural, bem como sua cooperação internacional através da UNESCO e de

alianças com outros países. Segundo, a importância da especialização e

profissionalização dos gestores desse patrimônio. Terceiro, a indicação de um

patrimônio depende da sua valoração pelos órgãos competentes e pelo Estado.

A promulgação de leis e recomendações sobre a gestão do patrimônio

arqueológico constitui a sedimentação de um grande e complexo aparato

jurídico através do qual as entidades especializadas, com respaldo de órgãos

públicos nacionais e supranacionais, irão atuar na determinação e gestão dos

espaços e vestígios materiais classificados como “patrimônio arqueológico”. Ou

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22

seja, fica a cargo da disciplina arqueológica um papel imensurável na

construção de espaços de memória nacionais.

Isso não significa que esse papel seja uma novidade na agenda da

disciplina. Tanto os textos citados de Margarita Díaz-Andreu (2000, 2002)

quanto outros autores (Cf. Trigger 1984, Fowler 1987, Arnold 1996, Lima 2007)

trabalharam com o importante papel que a arqueologia teve na construção das

nações européias “étnicas”, através da descoberta de vestígios materiais do

purismo ariano nazista e da gloriosa ascendência romana do fascismo, para

citar alguns exemplos. Com a desestruturação dos nacionalismos étnicos, a

arqueologia é redirecionada para a gestão do patrimônio cívico focado em um

desenvolvimento da cultura humana, global e local.

As argumentações que aqui se tecem enxergam esses gigantes

regimentares como uma das respostas às demandas dos movimentos sociais e

um meio de abrir espaço oficial para as minorias. Assim, acredito na

importância da proteção desse “patrimônio cívico”, veículo de expressões de

diversas memórias sociais.

Ao mesmo tempo, nesse momento de credenciamento do poder da

arqueologia na participação dessa sociedade em luta, devemos prestar

atenção à responsabilidade que recai sobre nossas resoluções e relatórios. É

nesse momento que se começa a exigir a responsabilidade sobre seu papel

como mediador entre o público e essa parafernália jurídica encabeçada por

políticas humanistas internacionais.

1.3. Arqueologia Subaquática no Brasil

A questão do patrimônio submerso brasileiro me pareceu um excelente

caso para se pensar as políticas de proteção patrimonial, sua relevância social

e o papel da arqueologia neste cenário. Localizado em um espaço

extremamente ambíguo aos olhos do ser humano, envolvendo mistério e morte,

a apreciação do público pelos vestígios humanos submersos se misturam com

interesses particulares em grandes tesouros perdidos e entram em conflito com

profissionais da arqueologia que prezam pela proteção deste patrimônio

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material. Esse relacionamento conflituoso entre público leigo e arqueólogos

desenvolve-se pelas tramas confusas da legislação nacional específica desse

patrimônio e as posturas evasivas do IPHAN e da Marinha. Entremeando a

discussão sobre o patrimônio arqueológico submerso, tratarei brevemente da

história da arqueologia subaquática no país com especial atenção à sua

participação na preservação da cultura material imersa.

1.3.1. As primeiras braçadas

O primeiro resgate de material arqueológico submerso acompanhado de

um arqueólogo foi realizado na costa baiana em 1977. O Galeão Sacramento

foi escavado na Baia de Todos os Santos sob coordenação do arqueólogo

Ulysses Pernambucano de Mello Neto. O Galeão Sacramento e uma

embarcação holandesa não identificada foram apontados por um pescador

baiano em 1973 (Cf. Jornal da Tarde. 29 de setembro de 1977), na mesma

época em que fora encontrado por dois mergulhadores recreativos (Cf. Jornal

da Tarde. 22 de setembro de 1976)5. A meu ver, a importância do Sacramento

não apenas reside em sua excepcionalidade, mas também em sua

exemplaridade da situação que na qual se encontra a gestão dos vestígios

materiais submersos.

Várias notícias de jornais já apresentam um dos lados do panorama

conflituoso que identifiquei no início do texto. Até o início dos trabalhos da

Marinha no fim de 19756, o Galeão Sacramento passou por alguns anos de

depredação por parte de mergulhadores recreativos e caçadores de tesouro.

Algumas atividades viraram motivo da imprensa local e nacional, com

manchetes relatando um verdadeiro esquema de contrabando de antiguidades.

Os próprios descobridores da embarcação, José Rebelo e Francisco Gordilho

(“Chico Diabo”) venderam um canhão holandês no Recife por CR$ 190 mil

antes que a Marinha pudesse intervir (Faustino, 1976). “Chico Diabo” também

5 O Jornal do Brasil oferece a data de 1973 (Faustino, 1976).

6 Carta do Comando do 2º Distrito Naval de Salvador, 20/09/1976. Material pesquisado e cedido pela

amiga Beatriz Bandeira, a quem muito agradeço.

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fez alguns bons negócios com pratos de faiança, os quais vendeu por

US$ 1.000,00 a peça (Cf. O Globo. 13 de dezembro de 1976). Ambos haviam

difundido a presença de tubarões ao redor do naufrágio, como tentativa

“salvaguardar” sua descoberta (Cf. Jornal da Tarde. 22 de setembro de 1976).

Outra notícia que apareceu em diversos jornais da época foi a

apreensão de material arqueológico retirado do Sacramento. Seis canhões de

bronze 7 foram apreendidos no Recife pela Superintendência Regional da

Polícia Federal, em um ferro velho no aguardo de um carregamento que os

levaria a São Paulo, onde teriam já compradores (Cf. O Estado de São Paulo.

22 de setembro de 1976) e outros três estavam sendo procurados pela Polícia

Federal de Pernambuco (Cf. Jornal da Tarde. 27 de setembro de 1976). A

apreensão somente foi possível, como argumentarei mais adiante no terceiro

capítulo, devido à legislação já existente desde 1961 que determinam a posse

direta de “bens e sítios arqueológicos” à União. Além da legislação que rege a

posse sobre bens encontrados em costa nacional.

No entanto, a falta de regulamentação específica sobre a situação do

material arqueológico encontrado, levou (e ainda leva) a desentendimentos

entre os órgãos competentes. O Jornal da Tarde informou que o comandante

do 2° Distrito Naval, vice-almirante Fernando Ernes to Carneiro Ribeiro, “um dos

responsáveis diretos pela seriedade com que agora, afinal, está sendo

encarada atualmente a descoberta” (Cf. Jornal da Tarde. 27 de setembro de

1976) descobrira que há meses antes a Marinha permitira a remoção de

material submerso por mergulhadores e pescadores. E que somente tomou

ciência da situação quando vizinhos de um dos pescadores que guardava

consigo um torpedo, vieram reclamar o medo constante de uma explosão (Cf.

Jornal da Tarde. 27 de setembro de 1976).

Em cartas trocadas entre o comando do Serviço de Documentação

Geral da Marinha e o 2º Distrito Naval, existem informações sobre os trabalhos

7 O Jornal da Tarde diz que o Vice-Almirante Fernando Ernesto Carneiro Ribeiro anunciou que foram 9

canhões (Cf. Jornal da Tarde. 27 de setembro de 1976).

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da Marinha desde 1975 e as pilhagens de material vendido à colecionadores

nacionais e estrangeiros 8 . No entanto, não nega que tenham sido essas

descobertas de grande valor histórico e inclusive lamenta que pouco do

material retirado do fundo tenha sido doado ao Museu Naval9.

Após esses casos notórios de depredo e pilhagem do patrimônio

nacional, a Marinha, orientada pelo Serviço de Documentação Geral da

Marinha sobre o rico acervo que jazia no fundo do mar, começou a realizar

etapas de intervenção e retirada de material ainda em 197510, logo antes da

contratação do “jovem arqueólogo” Ulysses Pernambucano (Cf. Jornal da

Tarde. 27 de setembro 1976). O acordo entre a Marinha, através do 2º Distrito

Naval, e do Ministério da Educação e Cultura, através do Conselho Federal de

Cultura (Cf. Jornal do Brasil. 15 de novembro de 1976) permitiu que os

trabalhos arqueológicos no Galeão começassem. A primeira etapa tem início

em setembro de 1976 e foi concluída em maio de 1977. Mobilizou 24

mergulhadores, o NSS (Navio de Socorro Submarino) e mais duas corvetas

(Purus e Caboclo) e duas embarcações auxiliares (Juruá e Javari) (Cf. O

Estado de São Paulo. 22 de setembro de 1976; O Globo. 22 de setembro de

1976).

Do navio holandês, pouco se sabe além de sua localização próxima à

ilha de Itaparica. O vice-almirante Fernando Ernesto Carneiro Ribeiro,

comandante do 2º Distrito Naval que coordenou pessoalmente as atividades do

Projeto de arqueologia supôs que o casco soçobrado em Itaparica fosse de

uma nau holandesa que fora destruída durante um ataque feito por Maurício de

Nassau à Bahia em 1637 (Cf. O Globo. 13 de dezembro de 1976), afirmando

8 Carta do Contra-almirante Paulo Guilherme Brandão Padilha ao Serviço de Documentação Geral da

Marinha. 07/04/1976. Material pesquisado e cedido pela amiga Beatriz Bandeira.

9 Carta do Contra-almirante Paulo Guilherme Brandão Padilha ao Serviço de Documentação Geral da

Marinha. 07/04/1976.

10 Carta do Comando do 2º Distrito Naval de Salvador, 20/09/1976. Arquivo do Serviço de

Documentação Geral da Marinha, 1º Distrito Naval – Rio de Janeiro/RJ. Material pesquisado e cedido

pela amiga Beatriz Bandeira.

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26

que dos 20 canhões retirados, e que permitiram a identificação da nau como

holandesa, faltavam ainda 3.

Apesar da crítica concreta ao depredo por mergulhadores recreativos, os

trabalhos de arqueologia no Sacramento se limitaram à retirada de materiais do

fundo do mar como “ilustração da história trágico marítima”, nas palavras de

Gilson Rambelli, arqueólogo subaquático da Universidade Federal de Sergipe

(informação verbal)11. Apesar da notoriedade dos trabalhos no Sacramento, e

das apreensões de venda ilegal de material, não foram levados adiante

esforços pela reformulação das confusas políticas de manejo do patrimônio

cultural submerso.

Outra crítica feita aos trabalhos de Pernambucano foi sua opção por não

mergulhar. Ele acompanhou o trabalho de 24 mergulhadores (Cf. O Estado de

São Paulo. 22 de setembro de 1976; Jornal da Tarde. 22 de setembro de 1976;

Reportagem 1976a, Reportagem 1976b) desde a superfície. Já na década de

1960, início da arqueologia subaquática mundial, a importância do arqueólogo

em campo é reforçada.

Luiz Octavio de Castro Cunha foi outro arqueólogo que se envolveu com

arqueologia subaquática na década de 1980. Formado em arqueologia pela

Universidade Estácio de Sá em 1986, Castro Cunha cursou, no ano de 1988,

pós-graduação em História e Cultura Contemporânea, cuja conclusão se deu

com a redação de sua monografia “Arqueologia subaquática no Brasil e no

mundo: diferentes tecnologias” (Cunha, 2009). Como chefe da Seção de

Arqueologia Subaquática do Museu Histórico e Oceanográfico entre 1991 e

2003, tem publicado alguns poucos trabalhos em arqueologia subaquática (C.f.

Cunha 2009), entre eles um texto sobre o Galeão Sacramento, onde relata sua

participação na segunda etapa dos trabalhos em 1987 (Cunha, 1990).

11

Informação fornecida por Gilson Rambelli durante aula em 2008.

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27

1.3.2. A consolidação da pesquisa submersa

No Brasil, Gilson Rambelli e o Centro de Estudos de Arqueologia

Náutica e Subaquática (CEANS, hoje vinculado ao Nucleo de Estudos e

Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas –

NEPAM/UNICAMP) têm sido a principal militância pela revisão dessa

legislação e pela proteção do patrimônio submerso nacional. Desde o final dos

anos 1990, eles têm publicado textos sobre a necessidade de mantermos

compasso com a legislação e parâmetros internacionais de proteção

patrimonial (Rambelli 1997, 1998, 2002, 2004; CEANS 2004).

Existe uma depredação contínua, sobretudo dos naufrágios marítimos, provenientes da pouca importância dada a esses bens culturais por parte dos órgãos responsáveis pela gestão patrimonial nacional.

(...)

Com um litoral que se estende por mais de 8.500 km, palco de milhares de naufrágios em quase 500 anos de história trágico marítima, com águas interiores que representam uma das maiores redes fluviais do mundo, temos uma certeza: O Brasil desconhece os bens culturais submersos em suas águas (Rambelli 1997).

Já em 1993, durante a VII Reunião Científica da Sociedade de

Arqueologia Brasileira em João Pessoa, Gilson Rambelli e Maria Cristina

Scatamacchia12 sentaram-se com autoridades da Marinha e do IPHAN para

discutir a arqueologia subaquática no Brasil (Rambelli 2008, p. 18). Maria

Scatamacchia treinou uma nova geração de arqueólogos subaquáticos no

MAE/USP, todos engajados na proteção do patrimônio submerso através da

atuação do CEANS.

Em 1999 Paulo Bava de Camargo começa seu mestrado no MAE sobre

as fortificações de Cananeia (Camargo 2002). Na tentativa de compreender

como se formou o sistema defensivo do Baixo Vale do Ribeira durante o

Segundo Reinado e na eventualidade da Guerra Cisplatina, Camargo pretende

12

Arqueóloga do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP).

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ir além dos vestígios dos fortins emersos, já bastante degradados ou de

construção menos resistente às intempéries do tempo (Camargo 2002). Os

canhões foram alguns dos poucos instrumentos de defesa que sobreviveram, e

parte hoje se encontra submersa. Além da busca pelos vestígios, considerar o

ambiente aquático foi um dos meios encontrados para entender a formação

desses sítios costeiros e ribeirinhos.

Flavio Rizzi Calippo iniciou também seu mestrado em 2000 sob

orientação de Scatamacchia com o tema de sambaquis com interface entre os

ambientes aquáticos e secos. Seu projeto é igualmente um experimento bem

sucedido da aplicação das metodologias de campo da arqueologia subaquática

a casos brasileiros. Uma adaptação do vibracoring, instrumento de coleta

sedimentar, para as necessidades do estudo dos componentes estratigráficos

de alguns sambaquis em Cananéia. A metodologia foi aplicada a sítios tanto

fora como dentro d’água, com o objetivo de “compreender a ocorrência desses

sambaquis e de contextualizá-los espaço-temporalmente em meio às

flutuações holocênicas do nível do mar” (Calippo, 2004, resumo).

Em 2000, a equipe composta por esses pesquisadores do MAE, Gilson

Rambelli, Paulo Bava de Camargo e Flávio Rizzi Calippo criaram o Centro de

Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática,

objetivando o levantamento, estudo, divulgação, conscientização, gestão, proteção e preservação do patrimônio cultural náutico e subaquático brasileiro e internacional (CEANS, 2010).

Já em 2002, Leandro Domingues Duran começa a freqüentar o Museu

em uma disciplina de Introdução à arqueologia subaquática e, em 2003,

começa seu doutorado em arqueologia subaquática no MAE, também sob

orientação da Scatamacchia, com um estaleiro baleeiro.

Gloria Tega, jornalista especializada em divulgação científica pela

Universidade de São Paulo tem contribuído desde o início dos anos 2000 com

os projetos de arqueologia subaquática e com o CEANS. Não somente com a

divulgação das atividades levadas a cabo pelos integrantes, mas também

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29

agindo dentro dos meios midiáticos, na tentativa de entender estratégias de

conversão entre interesses do jornalismo e da divulgação científica (Tega 2004;

2010 – informação verbal13).

Em 2002, o CEANS passa a existir oficialmente como Centro de Estudos

vinculado ao Instituto Gaia, e em 2004 muda sua locação para o Núcleo de

Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE/UNICAMP).

No ano seguinte, membros do Centro de Estudos passaram a ministrar aulas

no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da mesma Universidade

(NEPAM/UNICAMP) relacionadas à “cultura material, relações sociais, políticas

públicas e meio ambiente” (CEANS, 2010). Hoje, o CEANS está locado no

NEPAM.

Sua atuação na luta pela proteção do patrimônio cultural subaquático

será marcante na arqueologia brasileira. Uma vez oficializado, o Centro de

Estudos passa a ser a Primeira Unidade de pesquisa especializada no tema

com apoio do Comitê Internacional sobre o Patrimônio Cultural Subaquático,

vinculado ao Comitê Internacional de Monumentos e Sítios

(ICUCH/ICOMOS/UNESCO) e com respaldo da Sociedade de Arqueologia

Brasileira (CEANS, 2010). Ele publicou em 2004 o “Livro Amarelo: manifesto

pró-patrimônio cultural subaquático brasileiro” (CEANS 2004) documento

gerado como repúdio às práticas de caça ao tesouro em águas nacionais e à

atual legislação (já promulgada em 2000) que transgride os interesses públicos

pelo patrimônio submerso, dando prioridade a interesses privados.

Deste modo, preocupado com as atividades que ameaçam o patrimônio cultural subaquático no Brasil e ciente da necessidade de medidas mais rigorosas e urgentes para impedir essas atividades, o CEANS/NEE apresenta este documento informativo – Manifesto – em defesa deste patrimônio cultural tão digno de atenção e respeito quanto sua contrapartida terrestre. O objetivo é contribuir com a sociedade brasileira munindo-a com informações pertinentes sobre o tema e chamando atenção para a necessidade da rediscussão da

13

Entrevista concedida por Glória Tega a Bruno S. R. da Silva via Skype Belo Horizonte-São Paulo, agosto

2010.

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atual legislação que trata do patrimônio arqueológico subaquático em águas brasileiras (CEANS, 2004, p. 1-2).

Como parte das empreitadas do CEANS estão cursos de extensão sobre

mergulho consciente em escolas especializadas, disciplinas acadêmicas em

Universidades estaduais (no caso do NEPAM/UNICAMP) e particulares, bem

como presença militante em encontros da comunidade arqueológica buscando

respaldo de sua atuação em prol do patrimônio arqueológico submerso.

Em 2005 os participantes do I Simpósio Internacional de Arqueologia

Subaquática, evento organizado dentro o XIII Congresso da Sociedade de

Arqueologia Brasileira, apelam à assembléia geral da Sociedade com uma

Moção

(...) para que a mesma interceda junto às instituições públicas brasileiras envolvidas com esta temática com vistas a pleitear a reformulação da legislação aplicável ao patrimônio arqueológico subaquático, bem como a ratificação da referida Convenção da UNESCO para a proteção do Patrimônio Cultural Subaquático, como meio de promover uma proteção efetiva dos bens culturais submersos em nossas águas (Rambelli, 2005, p. 2).

Essa Moção levou adiante a proposta da Equipe e, em 2006, a deputada

maranhense Nice Lobão levou ao Congresso o Projeto de Lei nº 7.566 cuja

fórmula carrega os termos sugeridos no Livro Amarelo (Tega 2007). Ou seja,

visa derrubar a lei 7.594, bem como suas alterações da lei 10.166, permitindo

que o Brasil assine a convenção da UNESCO de Proteção do Patrimônio

Submerso.

Durante o XIV Congresso da Sociedade de Arqueologia Brasileira em

Florianópolis, do dia 30 a 4 de outubro, a comunidade arqueológica

subaquática se reuniu mais uma vez com um Simpósio de Arqueologia

Subaquática.

Na programação, dividida em duas partes, há exposição de trabalhos que estudam o patrimônio cultural subaquático em diferentes formas, como naufrágios, paisagens marítimas, gravuras rupestres submersas, vestígios arqueológicos submersos no Arquipélago de São Pedro e São Paulo (localizado no meio do oceano atlântico, a 1100 km de Natal) e

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até a ocupação ao longo dos anos de uma ilha do litoral sul de São Paulo (Tega, 2007a).

No mesmo mês, entre os dias 27 e 28 de outubro de 2007, o Brasil

sediou uma reunião do Comitê Internacional sobre o Patrimônio Cultural

Subaquático (ICUCH/ICOMOS) por conta do II Simpósio Internacional de

Arqueologia Subaquática, cujo tema “Arqueologia Marítima nas Américas:

ocupações litorâneas, barcos e navios, portos e áreas portuárias” reuniu

pesquisadores de todas procedências nacionais e internacionais.

O evento pretende estabelecer novas perspectivas de pesquisas no Brasil e fortalecer a cooperação entre os países nos trabalhos sobre essa temática.

O Simpósio vem impulsionar o recém criado Núcleo de Estudos Avançados de Pesquisa em Arqueologia e Etnografia do Mar, em Itaparica, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia (MAE/UFBA) (Tega, 2007b).

Ao final desse evento, o Comitê Internacional se reuniu e redigiu a Carta

de Itaparica, documento oficial recomendando ao Brasil à adoção da

Convenção da UNESCO para a Proteção do Patrimônio Arqueológico

Submerso (Tega, 2008).

Esse extenso – e tenso – debate sobre a proteção do patrimônio

arqueológico subaquático teve suas repercussões positivas junto ao poder

legislativo com o Projeto de Lei 7566. Desde 2008, o Projeto foi reestruturado

por discussões entre a Marinha do Brasil, o IPHAN e a comunidade

arqueológica e foi reapresentado ao Congresso pelo Senado como Projeto de

Lei nº 45/08 (Guimarães 2010 - informação

verbal14).

A PL 45/08 é a melhor opção que

temos até o momento para uma nova redação

que dê respaldo à proteção do patrimônio

arqueológico subaquático nacional. Enquanto

14

Entrevista concedida por Ricardo Guimarães a Bruno Sanches no Rio de Janeiro, dia 27 de abril de

2010.

As publicações em arqueologia subaquática nacional mostram uma maior dedicação em dois aspectos: defesa do patrimônio cultural e sedimentação da prática entre os pares.

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isso, vale pensarmos em outras maneiras pelas quais a arqueologia pode atuar

pela defesa do patrimônio e pela representatividade social.

Além da equipe do CEANS, outros arqueólogos brasileiros têm

trabalhado com arqueologia subaquática na entrada do novo milênio. Francisco

Silva Noelli também é um arqueólogo brasileiro que se aventurou no campo da

arqueologia subaquática. Em 2004 ele passou a coordenar as atividades da

ONG Programa de Arqueologia Subaquática (PAS), uma empreitada sem fins

lucrativos que visava a pesquisa e a proteção do patrimônio cultural

subaquático em águas catarinenses (Viana et alii. 2004). Em 2002 a equipe

formada por Alexandre Viana, Marcelo L. Moura e Narbal Correa fundaram a

ONG PAS com o propósito de gerenciar a pesquisa de uma embarcação

encontrada por Alexandre Viana em 1989, na praia dos ingleses

(Florianópolis/SC) (PAS 2006). Essa era a embarcação à qual se dedicava o

Programa quando do ingresso de Chico Noelli à equipe.

Aceitei colaborar com a ONG PAS – Projeto de Arqueologia Subaquática -, após ver: 1) que o sítio sofria lenta destruição pelo impacto ambiental e antrópico; 2) que era uma área de pesca artesanal de arrasto; 3) que era área de interesse turístico que afetaria seu contexto no futuro; 4) a autorização da Marinha do Brasil; 5) o projeto da pesquisa; 6) o financiamento público da FAPESC fiscalizado pelo Tribunal de Contas de Santa Catarina; 7) as instalações; 8) os tipos de registro; 9) o trabalho de conservação; 10) o destino dos artefatos, a serem integrados a um museu público que se procura estabelecer em Florianópolis; 11) que havia uma exposição permanente na base de pesquisa da Praia dos Ingleses que, sem nenhuma propaganda, foi visitada por mais de 22 mil pessoas (incluindo inúmeras escolas e cursos universitários) (Noelli, 2010)15.

Sob coordenação de um arqueólogo, o Projeto conseguiu a anuência da

Marinha e do IPHAN, e em 2004 publicam sua primeira nota na Revista do

MAE/USP (Viana et alii. 2004). Os autores, ao mesmo tempo em que aderem

aos preceitos metodológicos e teóricos propostos pela academia para o

desenvolvimento de um trabalho arqueológico, fazem questão de demonstrar

15

Entrevista concedida por Francisco Silva Noelli via e-mail. Pelotas e São Paulo/Belo Horizonte. Junho

de 2010.

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sua origem de fora da academia como um ponto fundamental das políticas

atuais de gestão de bens culturais.

A pesquisa de naufrágios, como alternativa à preservação, é assegurada pela Declaração de Sofia: “A Arqueologia é uma atividade pública, todos têm o direito de indagar sobre o passado para enriquecer suas próprias vidas, e qualquer ação que restrinja esse conhecimento é uma violação da autonomia pessoal” (Viana et alii 2004, p. 388).

Na mesma nota, o Programa já anuncia um segundo projeto de

mapeamento de sítios arqueológicos submersos na costa de Santa Catarina.

“Primeiro serão mapeados os naufrágios localizados pelas autoridades

marítimas, por pescadores e pela equipe do PAS” (Viana et alii 2004, p. 388).

Para o prosseguimento desse segundo projeto, os autores já apresentam uma

lista detalhada, baseada em leituras sobre a história naval no Brasil, de 13

categorias de sítios, mais que de naufrágios, que poderão ser encontrados na

costa brasileira e catarinense (Viana et alii 2004). Hoje o projeto já conta com

mais outro artigo publicado na Revista do MAE sobre os trabalhos realizados

entre 2004 e 2009 (Noelli et alii 2009), de igual rigor acadêmico, bem como

criação de revistas e educação patrimonial (que serão comentadas no terceiro

capítulo), publicações conjuntas sobre a história marítima de Santa Catarina

(PAS 2006) e convênio com a Universidade do Vale do Itajaí (Noelli et alii

2009).

Na cidade do Rio Grande, o arqueólogo Rodrigo de Oliveira Torres vem

atuando em arqueologia subaquática desde 2003, inclusive com propostas e

atividades de sítios escolas sobre arqueologia subaquática com excelentes

resultados.

Randal Fonseca é outro membro do CEANS com ampla experiência em

mergulho. Desde 2004 participa como estagiário em projetos de pesquisa no

NEPAM/UNICAMP, dentre os quais está o Projeto de Arqueologia Subaquática

no Arquipélago de São Pedro e São Paulo. Em seu artigo publicado em 2004

(Fonseca 2004), faz uma crítica muito pontual e consciente ao mergulho

recreativo, à arqueologia subaquática e à relação de ambos com a cultura

material submersa. Por um lado, defende a prática do mergulho autônomo, não

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somente o recreativo, e sua relevância à sociedade moderna e à história

técnica da humanidade. Por outro, lembra que o mergulho recreativo tem sido

muitas vezes irresponsável com o patrimônio subaquático, e que instrutores

devem dialogar com seus alunos e equipe para o desenvolvimento de um

turismo responsável e para que uma prática tão cara ao mundo contemporâneo

não se torne danosa à história da humanidade.

Carlos Rios é um arqueólogo pernambucano, inicialmente formado em

ciências biológicas, mas que, posteriormente, seguiu carreira na marinha e no

estudo de arqueologia naval. Desde 2005 tem trabalhado com a temática.

Ingressou no mestrado em arqueologia de um naufrágio na costa

pernambucana, em Recife.

1.4. Patrimônio civil rumo às profundezas

Os Estados Nacionais hoje começam a utilizar esse aparato jurídico

como ferramenta para gerenciar a propriedade do espaço e da memória, em

um contexto social que exige sua atuação cada vez mais atenta às

reivindicações da diversidade. Como instrumento de execução da legislação o

Estado confia na palavra das ciências específicas a cada tipo de setor da

sociedade moderna. No caso do patrimônio arqueológico, cabe à arqueologia

trabalhar para sua indicação, preservação e representatividade, o que lhe

concede um papel fundamental nas políticas nacionais da memória e

territorialidade. O papel social e político da arqueologia e as contribuições da

arqueologia pública a essa discussão serão argumentadas durante este

trabalho.

As publicações em arqueologia subaquática nacional mostram uma

maior dedicação em dois aspectos: defesa do patrimônio cultural e

sedimentação da prática entre os pares. O Centro de Pesquisas em

Arqueologia Náutica e Subaquática, encabeçado por Gilson Rambelli, tem

marcado presença fundamental na campanha pela mudança da Lei e por uma

proteção efetiva do patrimônio arqueológico subaquático. Paralelamente,

outros pesquisadores têm buscado realizar trabalhos com caráter mais

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científico e de representatividade pública, a revelia do descaso Estatal. Como

anunciado no início desta apresentação, alguns desses trabalhos, bem como

outras possibilidades, serão resgatados no último capítulo, dedicado à pensar

sobre a arqueologia pública no caso subaquático.

Eis a situação na qual nos encontramos de profundis.

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2. Introdução

A situação da arqueologia subaquática brasileira, tal como apresentada,

me levou a buscar como objeto de pesquisa a relação que a disciplina e seus

profissionais têm desenvolvido com o público não arqueológico, em particular

com os mergulhadores recreativos. As arqueologia pública, com sua proposta

de auto-crítica, reflexiva da responsabilidade social do profissional e abertura

para temas relativos à sensibilidade para alteridade à disciplina, pareceu-me a

abordagem ideal para o problema em questão.

À medida que o estudo do tema se aprofundava, comecei a me

interessar cada vez mais pela arqueologia pública e o resultado foi que o texto

final da minha pesquisa ganhou corpo na revisão conceitual da arqueologia

pública no exterior, no Brasil e, conseqüentemente, sua aplicação na

arqueologia subaquática como estudo de caso.

O cerne da minha preocupação, e que me levou a buscar cada vez mais

exemplos de trabalhos de arqueologia pública, pode ser resumido em uma

troca de e-mails com Francisco Noelli (Silva 2010), um dos arqueólogos

entrevistados para este trabalho. Em conversa sobre o significado da

arqueologia pública e sobre o papel que cabia ao arqueólogo entre a

preservação patrimonial e os interesses sociais no presente, Noelli afirma que

não vê o arqueólogo como “negociador”, pois o patrimônio cultural não é

negociável, defendendo que, justamente aí, no momento em que a arqueologia

se insere no debate sobre os diferentes significados do patrimônio, é que

exercemos nosso papel social.

Apesar de estar em pleno acordo com essa perspectiva, e com a idéia

de que podemos contribuir com os significados do patrimônio através das

histórias e narrativas que criamos (Hilbert 2006, Bezerra 2009), não consegui

fugir à problemática do uso do espaço anterior à sua transformação em

patrimônio. Como tentei argumentar na apresentação, “patrimônio cultural” é

tanto um conceito científico quanto ferramenta jurídica, e sua etiqueta pode ou

não ser de interesse social, dependendo de quem seja esse social. A

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arqueologia, em suas atribuições consultivas sobre a história, deve também

refletir sobre sua atuação na construção de lugares da memória (Nora 1984).

O objetivo deste trabalho pode ser definido como buscar na arqueologia

pública, conceito de gênese internacional, sugestões e exemplos que possam

levar à reflexão da prática arqueológica em contexto nacional, tendo como

estudo de caso a arqueologia subaquática nacional. Rumo ao desenvolvimento

desse tema, meu texto ficou dividido em três capítulos.

O primeiro visa construir um campo conceitual do termo “arqueológica

pública” e buscar dificuldades e soluções apresentadas por essa abordagem

em trabalhos cujo foco seja a relação entre arqueologia e o público leigo. Meu

entendimento da arqueologia pública fica bem marcado pela perspectiva que

ganha nos anos 1980, sob influência da arqueologia interpretativa.

O segundo capítulo tenta abordar, primeiramente, a relação de filiação

da disciplina arqueológica com o Estado nacional brasileiro e o uso que o

conhecimento arqueológico pode adquirir como consultoria para políticas

públicas, em especial, após a publicação da Resolução CONAMA nº 001/86,

que obriga a execução de estudos de impacto sobre o patrimônio arqueológico

em processos de licenciamento ambiental. Em sequência, faço uma breve

análise de alguns trabalhos de arqueologia pública, com o propósito de refletir

sobre a aplicação desse conceito no contexto nacional.

O terceiro e último capítulo pretende pensar os conflitos que cercam a

arqueologia subaquática nacional, através das propostas da arqueologia

pública. De início, discuto a legislação específica para a preservação do

patrimônio submerso nacional e seu caráter quase predatório sobre o mesmo

patrimônio que deveria proteger. Em seguida, uma breve análise de artigos

escritos por mergulhadores recreativos e publicados em periódicos

direcionados ao mergulho recreativo, me permitiu tecer argumentos sobre o

interesse desse público específico em vestígios materiais submersos.

Finalmente, uma discussão sobre os modos encontrados por profissionais da

área para concatenar os esforços preservacionistas e a apreciação desses

vestígios no mergulho recreativo, com especial atenção ao turismo

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arqueológico submerso. Finalmente, tentei esboçar como o turismo submerso e

a prática arqueológica pode impactar na vida de comunidades costeiras, tema

que está praticamente ausente da literatura especializada em arqueologia

subaquática. Cabe lembrar que essa mesma lacuna na literatura me levou a

entrevistar vários arqueólogos subaquáticos em busca de suas experiências

não publicadas. Essas entrevistas aparecem, em sua grande maioria, na

“Apresentação” e no capítulo final.

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3. Capítulo 1 - Arqueologia Pública Internacional

Na apresentação procurei argumentar em especial sobre dois pontos. O

primeiro é sobre a responsabilidade social do arqueólogo auferida pelas novas

políticas do patrimônio sugeridas nas convenções e recomendações

internacionais. Não podemos esquecer de que essas políticas são fruto de

mudanças ocasionadas por movimentos sociais posteriores à Segunda-Guerra,

como argumentarei brevemente neste capítulo. O segundo ponto foi o percurso

da arqueologia subaquática nacional, com especial atenção em sua luta pela

preservação do patrimônio subaquático brasileiro. Seu discurso de proteção de

um patrimônio civil em nome do aproveitamento coletivo, e conflito com as

partes que tendem a usufruí-lo como um bem privado (exploração de seu valor

de mercado) me levaram a pensar a arqueologia pública como conceito

fundamental para refletir sobre sua atual situação. Encontrei na arqueologia

pública um campo de debates rico para ponderar sobre a atuação social da

arqueologia e a necessidade de diferentes estratégias para atuar em prol do

patrimônio e da diversidade cultural.

Meu propósito com esse capítulo foi fazer da arqueologia pública um

objeto de estudo crítico, analisar suas possibilidades, aplicações e significados,

antes de poder usá-la como carro chefe em reflexões posteriores. A medida

que comecei a atentar para a concepção de arqueologia pública que

preponderava na arqueologia brasileira (educação patrimonial e

aproveitamento econômico do sítio arqueológico), fui tomado pelo interesse de

aprofundar minhas leituras sobre a arqueologia pública e suas referências

conceituais no exterior. Por fim, encontrei usos e aplicações do termo que vão

muito além do que se costuma ver no Brasil. Assim como espero contribuir

para a prática da arqueologia subaquática nacional, este primeiro capítulo e

sua seqüência foram pensados a fim de contribuir com o estudo geral da

arqueologia pública em nosso país. Espero fazer jus aos esforços dos

pesquisadores que me antecederam na aplicação deste conceito ao caso

nacional.

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As perguntas que me guiaram pelo texto que segue foram basicamente:

O que seria exatamente arqueologia pública? Qual a extensão de seu sentido?

Como ela tem sido usada fora do Brasil?

Esse capítulo percorre três pontos principais. Primeiro fui à busca da

antiguidade do conceito e suas primeiras acepções, para seguir pelas

diferentes influências sofridas através dos anos, terminando com uma análise

de suas acepções modernas. Em segundo lugar, dedico um item à influência

da arqueologia interpretativa na virada conceitual da arqueologia pública, como

aproveito para deixar expressa minha afinidade com essa corrente. Finalmente

segue um item mais longo sobre diferentes acepções de arqueologia pública.

Apesar de ter dado preferência pela bibliografia de língua inglesa, por ser o

espaço de origem e de maior aplicação do conceito, alguns textos e

comentários sobre experiências na America Latina ou Brasil não foram

deixados de lado. Pretendo, no entanto, explorar mais a bibliografia sobre

arqueologia pública brasileira no próximo capítulo.

3.1. Entre o civil e o Estado

O atual interesse pela arqueologia pública surgiu de suas atribuições

mais recentes, entre as quais se vê que

O campo da arqueologia pública é relevante porque estuda os processos e resultados através dos quais a disciplina de arqueologia se torna parte de uma cultural pública mais ampla, onde contestação e dissonância são inevitáveis. (Merriman, 2004, p. 5).

A arqueologia pública me chamou atenção como ferramenta teórica e

postura política frente a situações que são inevitavelmente encontradas na

carreira do arqueólogo: conflito. A profissão do(a) arqueólogo(a) o(a) coloca em

uma posição delicada, pois tange realidades materiais que são sempre repletas

de vivências e significados sociais. O que para nós é um sítio arqueológico,

para grupos indígenas pode ser um lugar de valor espiritual e que garante o

clamo à terra, um incômodo para proprietários rurais não indígenas;

possibilidades de lucro para operadoras de turismo, paisagem para um bom

piquenique ou para o tédio; uma fonte de inspiração artística ou de estudo

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colegial; um furo jornalístico ou empecilho para o desenvolvimento de

empreendimentos de engenharia (Colley 2002).

O propósito da arqueologia pública – ao menos a vejo dessa forma –

não é aniquilar a disciplina tendo em vista sua presença como “estrangeira”, e

muitas vezes ameaçadora, ao espaço onde trabalha. Mas sim reconhecer essa

posição particular como mais uma dentre as diversas outras possíveis sobre a

mesma paisagem16, e pensar como pode se relacionar com elas, de modo a

cumprir seu objetivo (seja um licenciamento ambiental ou uma pesquisa sobre

a ocupação indígena do Brasil) conjuntamente com os objetivos alheios.

Essa abordagem nos permite trabalhar com a multiplicidade de enfoques

que se vinculam ao termo em questão: divulgação, melhores relações com

meios midiáticos, sítios arqueológicos e revitalização econômica, valorização

de culturas ditas tradicionais, arqueologia e turismo, gestão de patrimônio

arqueológico, arqueologia e legislação, quebra de cientificismo da disciplina...

Enfim. Em vista dessa multiplicidade, dessa diversidade de regras que estão

sendo propostas para se praticar a arqueologia, acreditei que seria interessante

iniciar pela exploração conceitual dessa peculiar combinação de vocábulos.

De fato, trata-se um questionamento que partiu não somente de minha

curiosidade, mas de curiosidades alheias. Em todas as ocasiões que me

perguntaram de que tratava minha dissertação, costumava responder “trabalho

com arqueologia pública e arqueologia subaquática”. Interessante foi observar

que a expressão de dúvida aparecia tanto no rosto de arqueólogos quanto de

não arqueólogos. “Como assim arqueologia pública, arqueologia do Estado?”,

“Arqueologia dos espaços comuns?” Também por essa razão coube-me iniciar

por esse capítulo, respondendo às demandas mais freqüentes.

Segundo Tim Schadla-Hall,

(...) o termo ‘arqueologia pública’ primeiramente recebeu ampla atenção com a publicação de Charles R. McGimsey III, Arqueologia Pública em 1972. Esse volume, que recebeu

16

Considero como paisagem “a arena na qual e através da qual a memória, identidade, ordem social e

transformação são construídas, encenadas, reinventadas e transformadas” (Knapp & Ashmore 1999).

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algum reconhecimento no Reino Unido e Europa na época, foi escrito ‘com dois públicos em mente... colegas de profissão... e o crescente número de legisladores e demais cidadãos que estão se tornando cada vez mais preocupados com a proteção dos sítios arqueológicos de seus estados’ (McGimsey1972: xiii) (Schadla-Hall, 1999, p. 147-8).

Do apontamento feito por Schadla-Hall, podemos, primeiramente,

atentar para sua origem nacional. O termo “arqueologia pública” surgiu do

inglês “public archaeology”. Como qualquer tradução, as tramas a serem

cruzadas de um significado ao outro sempre trazem seus perigos. Pedro Paulo

Funari e Erika Robrahn-González já chamaram a atenção para um desses

perigos:

No Brasil, a expressão Arqueologia Pública, surgida em âmbito

anglo-saxão, ainda é nova e pode levar a confusão. De fato,

público, em sua origem inglesa, significa “voltada para o

público, para o povo” e nada tem a ver, stricto sensu, com o

sentido vernáculo de público como sinônimo de estatal (Funari

& Robrahn-González, 2006, p.3).

Essas diferenças não aparecem tão marcantes nas definições fornecidas

pelos dicionários. O vocábulo em inglês “public”, visto como um adjetivo

(referente ao substantivo “arqueologia”):

1. pertencente a, ou relativo a população ou a comunidade como um todo: fundos públicos; incômodo público. 2. feito, construído, provindo de ação, etc., para a comunidade como um todo: acusação pública. 3. aberto a todas as pessoas: uma reunião pública. 4. da, pertinente a, ou estando a serviço da comunidade ou nação, especialmente um oficial do governo: um oficial publico. 5. custeado por financiamento publico e sob controle publico: uma biblioteca pública; uma estrada pública17.

17 Para tentar ser um pouco mais profícuo frente aos problemas de tradução supra-citados, coloco aqui o original em inglês da bibliografia: “1. of, pertaining to, or affecting a population or a community as a whole: public funds; a public nuisance. /2. done, made, acting, etc., for the community as a whole: public prosecution. /3. open to all persons: a public meeting. /4. of, pertaining to, or being in the service of a community or nation, esp. as a government officer: a public official. /5. maintained at the public expense and under public control: a public library; a public road. /6. generally known: The fact became public. / 7. familiar to the public; prominent: public figures. / 8. open to the view of all; existing or conducted in public: a public dispute. / 9. pertaining or devoted to the welfare or well-being of the community: public spirit. / 10. of or pertaining to all humankind; universal”.

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6. de conhecimento geral: o fato tornou-se público 7. familiar ao público; proeminente: figuras públicas 8. aberto a vista de todos; que existe ou é conduzido em público: uma disputa publica 9. pertencente ou dedicado ao bem-estar da comunidade: espírito público 10. de ou pertencente a toda a humanidade; universal. (Dictionary.com 2010).

Enquanto que o vocábulo em português, “público”:

1. relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade 2. Relativo ou pertencente ao governo de um país, estado, cidade etc. Ex.: poder p., funcionário p. 3. Que pertence a todos; comum. Obs.: p. 43pôs. A privado. Ex.: lugar p. 4. Que é aberto a quaisquer pessoas. Ex.: conferência p., audiência p. 5. Sem caráter secreto; manifesto, transparente. Ex.: debate p. 6. Universalmente conhecido. (Houaiss 2010).

De fato, as semelhanças entre as entradas para cada um dos vocábulos

nessas duas línguas diferentes não dão conta das sutilezas que nossa

percepção cotidiana pode trazer desses termos. Por exemplo, se eu citar

“interesse público pela arqueologia”, a impressão transmitida seria de

“interesse do Estado pela arqueologia”, “questões políticas envolvendo a

arqueologia”, enquanto que, em diversos textos em inglês, essa expressão

(public interest for archaeology) faz referência aos interesses leigos que

cercam a disciplina.

A segunda observação que pode ser feita sobre sua origem é no aporte

conceitual. Schadla-Hall defende que o cerne desse novo termo que passa a

existir vem de outros existentes ainda hoje, mas que já haviam feito sua

aparição anteriormente ao termo “arqueologia pública”.

McGimsey estava, acima de tudo, preocupado com o manejo dos recursos arqueológicos, e a possibilidade de uma legislação combinada com programas de preservação, bem planejados e sérios, que pudessem proteger os recursos arqueológicos para o futuro. Desde o final dos anos 1960, o termo CRM18 (Manejo de Recursos Culturais) tornou-se cada

18 Do original em inglês “Cultural Resource Management”.

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vez mais freqüente – e consequentemente os termos ARM19 (Manejo de Recursos Arqueológicos) e AHM 20 (Manejo de Patrimônio Arqueológico) passaram a ser mais usados. (Schadla-Hall, op. Cit., p. 148).

Cabe aqui um breve esclarecimento. De acordo com Ricardo Elia (1993),

a principal diferença entre Manejo de Recursos Culturais e Manejo de

Recursos Arqueológicos é basicamente sua amplitude e nacionalidade. O

termo “Cultural Resources” (Recursos Culturais) e “Cultural Resource

Management” são mais utilizados nos Estados Unidos como referente aos

sítios arqueológicos e patrimônio edificado (monumentos, edifícios). Enquanto

que o termo “Archaeological Heritage” (Herança/Recursos Arqueológica(os)) e

“Archaeological Heritage Management” são mais comuns na Inglaterra e

abordam com um viés predominantemente, embora não necessariamente,

arqueológico, deixando de lado o patrimônio arquitetônico (Elia 1993).

A arqueologia pública, afinal, nasce no contexto norte-americano como

uma referência às políticas de governo para a preservação do patrimônio

arqueológico. Não como ironia à sua compreensão de “voltada para o povo”,

pois se trata de uma postura em que a atuação do Estado como protetor do

patrimônio cultural é guiada pela ideologia de que ele próprio representa os

interesses gerais da população (Merriman 2004a). Sua voz fala por todos. Da

mesma maneira, o contexto arqueológico americano dos anos 1970 lida com o

passado (e presente) humano deixando de lado as diferenças entre homens e

mulheres de todo mundo, como uma postura condizente com o capitalismo

globalizante do país mais poderoso do mundo (Zarankin 2010 – com. pessoal)

e como uma postura filosófica de repulsa aos genocídios do Holocausto (Colley

2002).

Na busca de mais leituras, encontrei alguns poucos artigos americanos,

australianos e ingleses das décadas do final dos anos 1970 que fizessem

alguma menção ao termo “arqueologia pública”, numa tentativa de melhor

compreender qual sua situação conceitual no momento em que, como foi

19 Do original em inglês “Archaeological Resource Management”. 20 Do original em inglês “Archaeological Heritage Management”.

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colocado por Tim Schadla-Hall, “arqueologia pública” teria recebido “ampla

atenção”.

Brian Fagan possui um artigo publicado em 1977 na American Antiquity

entitulado “Teaching archaeology to the great loving public”. Seu enfoque está

na educação e acusa de incapacidade o atual sistema de formação de

profissionais, que não consegue desvincular a disciplina arqueológica das

fantasias da “arqueologia alternativa”. O que aqui tomo como “arqueologia

alternativa” será tratado com um pouco mais profundidade adiante, inclusive

por se tratar de um fenômeno que perdura até a contemporaneidade, e reflete

a separação que existe entre a prática acadêmica da arqueologia e as distintas

visões do passado que são produzidas pelo público leigo, ou, no caso,

“amador”. “(...) o interesse público pela arqueologia ainda está entre nós, e de

fato está levantando, numa onda de escapismo, sérias indagações intelectuais,

caçada de potes e loucuras absolutas.” (Fagan 1977, p. 119).

A relação entre o público não acadêmico e arqueologia sempre foi uma

preocupação existente e constante. Mas o que está em jogo no artigo de Fagan

parece ser uma simpatia pelo público leigo ao mesmo tempo em que toma uma

postura paternalista frente à “arqueologia amadora”. Por um lado, ele faz clara

sua crítica de que

(...) a maioria deles [cursos introdutórios de arqueologia] são um convite ao estudante para adentrar um “grupo seleto” que sabe sobre arqueologia, a se tornar membro de um clube fracamente exclusivo, e demasiado especializado. (Fagan 1977 p. 121).

Por outro, menciona as “porcarias que os ingressantes devem ter lido na

National Geographic” (Fagan 1977, p. 120) e afirma que “o que é importante,

contudo, é que o conhecimento arqueológico que você ganhou com sua

experiência de pesquisa ajude-o a formar uma perspectiva intelectual sobre a

pré-história que seja útil para seus alunos.” (Fagan 1977, p. 123).

O texto de Brian Fagan não trata o público leigo de modo desrespeitoso,

mas de modo, talvez, infantil. A visão de arqueologia com a qual ingressam na

academia os estudantes, pode ser um pouco deturpada ou mesmo perigosa de

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ser mantida dentro da cabeça de futuros pensadores, mas não deve ser

ignorada. É partindo dessa ideologia inicial que a arqueologia deve fazer-se

mais instigante e mais interessante, pois só o excitamento do exercício

intelectual pode levar os iniciados ao caminho dos mestres. Ao fim, o propósito

do esforço de Fagan parece estar bem explícito na passagem:

Mas será que concentramos suficientemente nosso entusiasmo em nossa clientela última – o público e o estudante leigo? Não deveriam eles também compartilhar de nosso entusiasmo? Esse sempre permanecerá como um dos derradeiros desafios da arqueologia, um dos quais poucos de nós temos considerado com o devido cuidado e tempo que o futuro de nossa disciplina necessita. (Fagan 1977, p. 124)

Nesse artigo, fica marcada a necessidade apresentada por Fagan de

desenvolvimento de uma relação mais compreensiva entre o arqueólogo e o

público leigo, interessado em suas práticas. Afinal, é justamente desse público

que vêm os interessados que irão continuar as obras de seus tutores. O

número crescente de estudantes nos cursos de introdução à arqueologia em

seu tempo está repleto de indivíduos que pretendem na arqueologia um

engrandecimento de sua experiência intelectual (Fagan 1977, p. 120). A meu

ver, essa “experiência intelectual” é extremamente relevante pois tange em um

ponto que me parece claro sobre essa proposta relacional entre arqueólogos e

não-arqueólogos: nem todo mundo quer ser arqueólogo; muitos apenas se

interessam pelo que fazem os arqueólogos. Como afirma Fagan, o Clube é

seleto, e nem todos possuem o desejo de ingressar. No entanto, não significa

que não existam desejos individuais e coletivos sobre o que o arqueólogo faz,

sobre o passado, sobre vestígios humanos, sobre aventura.

Gostaria antes de trazer dos textos de McGimsey e Fagan as razões

pelas quais partem para o questionamento da prática arqueológica de seu

tempo: a destruição maciça de sítios arqueológicos.

Hester Davis foi também uma importante antropóloga americana, com

diversas publicações na década de 1970 sobre o perigo de destruição do

patrimônio material indígena nacional. Em 1972, publicou um pequeno artigo

na revista Science (ainda hoje um dos mais prestigiados e populares periódicos

científicos do mundo) em que pretendia sintetizar as principais aflições da

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arqueologia americana. De acordo com ela, “a crise atual possui duas causas

paralelas: (i) o ritmo de destruição, considerando que o número absoluto de

sítios que são destruídos continua a crescer, e (ii) fundos para resgate de

dados essenciais não estão aumentando.” (Davis, 1972, p. 267).

No mesmo ano da publicação de McGimsey, Hester Davis apresenta

essa crítica contundente ao ritmo acelerado de crescimento dos projetos de

“desenvolvimento” que destroem, em sua passagem, vestígios arqueológicos

importantes para a compreensão do passado indígena americano, para não

dizer de toda a humanidade.

Segundo Davis, nos anos 1920 e 1930 já era percebido pela arqueologia

o ritmo com que eram destruídos os sítios arqueológicos por atividades “não

arqueológicas” (Davis 1972 p. 267). No entanto, somente nos anos 1960 o

governo começou a criar políticas de gestão e leis de proteção do patrimônio

arqueológico.

John Jameson Jr. possui um artigo na edição de Nick Merriman (Public

Archaeology), não dos anos 1970, mas que trata do mesmo problema, o

crescimento da preocupação pública da arqueologia no cenário americano. De

acordo com ele, a idéia de Manejo de Recursos Culturais teria surgindo nos

anos 1930, quando da implementação de trabalhos arqueológicos na gestão de

grandes empreendimentos.

O fluxo de informação advindo projetos de licenciamento21 dos anos 1930, junto com os ambiciosos programas das bacias fluviais dos anos 1940 e 1960, alertou tanto o público quanto a comunidade científica para a magnitude de pesquisa e o potencial de informações perdidas pela construção descontrolada e desenvolvimento (Jameson Jr. 2004, p. 30).

São dessa época: (i) o Ato de Resgate de Represas22 de 1960; o Ato

Nacional de Preservação Histórica 23 de 1966, alegando que aos vestígios

21

No original, relief projects. Pelo contexto, pode-se inferir que tratem de projetos de licenciamento e

análise de potencial natural e cultural, bem como de impacto, num momento em que esses projetos não

eram necessariamente de obrigatoriedade do Estado.

22 Do original em inglês “Reservoir Salvage Act”, lei 86-523.

23 Do original em inglês “National Historic Preservation Act”.

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materiais elegíveis pelo Registro Nacional deve ser prestado os devidos

cuidados; (ii) o Ato de Política Ambiental Nacional24 em 1969, exigindo a devida

atenção à vestígios arqueológicos frente a uma situação de impacto ambiental;

(iii) uma ordem presidencial, “Proteção e melhoramento do ambiente cultural”25,

de 1972, estabelecendo a demanda de que em todas as terras do Estado

sejam verificadas a presença de vestígios arqueológicos (Davis 1972, p. 268;

Raab et alii 1980, p. 540-541); e (iv) o Ato de Preservação Histórica e

Arqueológica 26 de 1974, estabelecendo um mecanismo de salvamento de

vestígios arqueológicos sob eminente destruição por obras federais (Raab et

alii 1980, p. 541).

Jameson Jr. coloca essas leis como de extrema relevância para a

constituição do aparato jurídico de preservação do patrimônio arqueológico

nacional, e suas criações aumentaram consideravelmente o investimento em

trabalhos arqueológicos e manejo de recursos culturais (Jameson Jr. 2004).

Em especial, o Ato Nacional de Preservação Histórica que cria

as fundações para um sistema de proteção de recursos centrado no Registro Nacional de Lugares Históricos, autorizou a criação do Conselho Consultivo do Presidente em Preservação Histórica, permitiu o estabelecimento de Marcos Históricos Nacionais, e proveu um mecanismo para o desenvolvimento de programas de preservação a nível estadual (Jameson Jr. 2004, p. 30).

O Registro Nacional de Lugares Históricos seria o “Livro do Tombo” para

a preservação de recursos culturais nos EUA. Como lembra a arqueóloga

americana Mary Beaudry, “Se você não está nele [Registro Nacional], você é

irrelevante” (Beaudry 201027, com. pessoal).

Em 1966, o governo americano aprova o Ato do Departamento de

Transportes que prevê a realização de prospecções e trabalhos de campo em

24

Do original em inglês “National Environmental Policy Act”. 25

Do original em inglês “Protection and enhacement of the cultural environment”, ordem exectuiva nº 11593, 13 de maio de 1972) 26

Do original em inglês “Archaeological and Historical Preservation Act”.

27 Informação fornecida por Beaudry durante curso em Belo Horizonte, em 2010.

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propriedades listadas no ou elegíveis para o Registro Nacional (Jameson Jr.

2004).

Vimos, já na apresentação anterior, como os anos 1960 e 1970 foram

igualmente um momento de expansão das leis internacionais pela preservação

do patrimônio edificado e arqueológico. Enquanto a Europa enfrentava um

momento de reconstrução de sua estrutura devastada por duas guerras

mundiais, a América passava por um momento de expansão urbana e

modernização, tanto no Norte quanto no Sul (como a construção de Brasília

durante os anos 1950).

Hester Davis aponta para três maneiras de destruição dos sítios

arqueológicos: construção de obras de grande porte, preparo de terra na

agricultura e “caça ao tesouro” (Davis 1972). Em uma de suas edições do

“Fórum de arqueologia pública” no periódico Journal of Field Archaeology,

apresenta o caso Venezuelano que nos fornece também outros casos no

Uruguai, Argentina e Brasil (Wagner 1987). Sua principal crítica é ao

desenvolvimento acelerado de grandes empreendimentos irresponsáveis do

patrimônio arqueológico nesses países. Assim como em Davis, esses

empreendimentos, combinados com a “huaquería” 28 , formam os principais

problemas de preservação do patrimônio arqueológico latino-americano.

Retomando a ressalva de Funari e Robrahn-González (2006), quanto às

sutilezas que cercam os significados deste mesmo significante, no inglês e no

português, percebe-se que, na bibliografia arqueológica da época de seu

surgimento, em especial nas nações de sua concepção, a referência feita à

arqueologia pública é a de um grito às políticas públicas de governo para a

preservação de um patrimônio material que pertence ao público, a todos, e que

se vê ameaçado por grandes empreendimentos e por traficantes ou

colecionadores de antiguidades. Mais adiante, veremos que a mudança do

conceito de “arqueologia pública” acompanha variações na compreensão de

quem é esse “público” é como o Estado nacional com suas políticas públicas

podem representá-lo. Até esse momento, penso que a principal contribuição da 28

Termo em espanhol para se referir aos traficantes de antiguidades.

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50

comunidade arqueológica em relação ao patrimônio cultural e sua

representatividade social é a oposição feita, e conquistada na lei, entre o

“público” e o “privado” (Sennet 1989).

De fato, volto à referência feita à Tim Schadla-Hall sobre a pouca

reflexão que faziam os “arqueólogos públicos” das necessidades de outros

grupos sociais que não estavam necessariamente representados nos direitos

cívicos. “Embora o propósito é servir o público, ele parece não ter nenhum

papel definido no processo – a visão do arqueólogo aparece como supremo.”

(Startin, 1995 apud Schadla, op. Cit., p. 149).

Existem autores que mencionam a importância da luta patrimonial em

nome dos povos indígenas. Mark Raab et alii (1980) escrevem sobre os

problemas de uma prática arqueológica surgida nesse período de

intensificação de obras públicas, “arqueologia de contrato”.

Informação científica trocada como mercadoria dentro dos limites de estreitas relações comerciais ou profissionais também ignora o interesse específico dos Nativo-Americanos (Johnson, 1977; Grady 1977:263-264) e de outros segmentos do público. A maior parte dos registros arqueológicos sendo investigados é de origem indígena. É incongruente que a história de um povo seja vista como informação passível de propriedade, especialmente por antropólogos. Nativo-Americanos têm um poder cada vez mais forte para barrar uma investigação arqueológica caso não estejam entre os beneficiários. Alternativamente, eles podem ser adeptos muito úteis da arqueologia de contrato se lhes for permitido o aproveitamento dos resultados arqueológicos. (Raab et alii, 1980, p. 548-549)

Na Austrália, R. P. Robins e G. L. Walsh fazem um comentário similar

quando defendem a devida tomada de iniciativa governamental para a

necessária alteração da legislação de defesa do patrimônio arqueológico.

Enquanto arqueólogos ao redor da Austrália estão cientes de suas responsabilidades com os sentimentos Aborígenes sobre seus parentes falecidos, em áreas onde não há mais Aborígenes para falar por ou proteger os enterramentos de casca de árvore uma política efetiva de manejo é necessária. (Robins; Walsh, 1979, p. 70).

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51

Sarah Colley menciona que a arqueologia australiana, nascida dos

estudos do passado indígena anterior ao contato com os europeus29, entra em

choque com reivindicações indígenas desde os anos 1960 e 1970, quando a

luta por maior representatividade política e direito à terra começa a ter respaldo

na publicação de políticas de proteção ao patrimônio indígena e de respeito à

seus modos de vida (Colley 2002). Veremos mais exemplos dessa situação

mais adiante no trabalho.

A arqueologia pública até começo dos anos 1980 era compreendida

como uma luta pela preservação do patrimônio arqueológico material como um

bem cívico30, pelo qual deveriam zelar as forças políticas do Estado. Mais uma

vez, retomo os questionamentos articulados no primeiro capítulo sobre a

representatividade e hereditariedade do patrimônio arqueológico. Quem é

exatamente a conformação desse corpo cívico? Como as políticas públicas

representariam os interesses dos diversos grupos humanos englobados, em

teoria, pela representatividade Estatal? O patrimônio arqueológico deve ser

protegido também pelo bem dos Nativo-Americanos, mas qual o interesse

específico desses Nativo-Americanos e Australianos pelo sítios arqueológico?

Como eles interpretam esses sítios arqueológicos? Seria a mesma coisa que

os arqueólogos?

Em suma, nos anos 1960 e 1970 diversas leis internacionais e nacionais

(como vimos o caso dos EUA e veremos o caso brasileiro no capítulo seguinte)

foram promulgadas, e deve-se muito ao esforço de comunidades profissionais

sobre respectivos governos. Esses questionamentos não representavam ainda

o peso necessário dentro das discussões de patrimônio arqueológico,

entendido em seu princípio como um bem de caráter humanista e global.

Posteriormente, esse caráter global começará a ser destrinchado e indagado

sobre seu poder de alcance das diversidades étnicas e sociais. Vale ressaltar,

mais uma vez, a importância que esse aparato jurídico atribui á disciplina

29

Como também o foi nos EUA (Jameson Jr. 2004; Bahn & Renfrew 1998).

30 Vale lembrar da distinção entre cívico e étnico feito por Díaz-Andreu anteriormente. Nesse caso, uso o

termo “cívico” para referir-me à postura do Estado como “gestor de bens comuns”, e não mais aquele “pai de uma etnia nacional”.

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arqueológica e define-lhe um novo espaço dentro das políticas de estado

contemporâneas.

3.2. Pós-processualismo e novos olhares

Os anos 1980 representaram, para a arqueologia, uma etapa no

surgimento de novas propostas, sugestões e revoluções interpretativas da

cultura material. De origem inglesa, o chamado pós-processualismo inseriu-se

na Academia com novas propostas teóricas e amplitudes temáticas

anteriormente inexistentes ou suprimidas: gênero, identidade, simbolismo,

colonialismo, oprimidos e poder (Trigger 2004; Johnson 2000). O retorno às

perspectivas históricas e a adoção de abordagens marxistas advindas do

revisionismo da Escola de Frankfurt marcaram fortemente os trabalhos da nova

trupe anglo-americana que encabeçou a arqueologia pós-processual (Trigger

2004). “Nos anos 1980 a arqueologia viu a emergência gradual de estudos

preocupados em interpretar significados culturais no passado que envolvessem

questões de poder e dominação, história e gênero.” (Hodder, 1999, xiii).

As discussões sobre a episteme, legitimidade e multiplicidade dessa

nova perspectiva são inúmeras, e não me cabe aqui colocá-las em tamanha

totalidade. Meu interesse em relevar as propostas interpretativas, como são

hoje mais evocadas, é em buscar a abertura temática e teórica rumo às

discussões da responsabilidade social do arqueólogo, de seus impactos sobre

o presente e ética profissional.

O início dos trabalhos ditos pós-processuais foi marcado por uma

oposição forte de autores britânicos aos trabalhos da arqueologia antropológica

americana denominada “Nova Arqueologia” (bem como a arqueologia analítica

do britânico David Clarke). As propostas da Nova Arqueologia, ou arqueologia

processual, foram construídas em contraponto ao excessivo historicismo e

seriação que preponderava na arqueologia européia até os anos 1960

(conhecida como histórico-cultural) (Trigger, 2004). O processualismo,

metodologia embasada nas “hard sciences”, considerando a sociedade como

homogênea e a cultura material como seu fiel reflexo, propunha a possibilidade

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de conhecer com precisão processos humanos de comportamento no passado

que fossem passíveis de certa generalização (Shanks & Hodder 1998).

Certamente, a arqueologia processual possui seus méritos

metodológicos. No entanto, me aproximo mais da arqueologia pós-processual

pois ela “não precisa mais ser ‘nova’ e unidirecional, apresentando uma frente

unificada. Ela possui a maturidade para permitir o desvio, a controvérsia e a

incerteza” (Hodder 1999).

Assim, um dos rompimentos que mais me atrai no pós-processualismo é

justamente a frente que faz ao cientificismo do processualismo. Em sua afronta,

o pós-processualismo inaugura a liberdade das subjetividades dentro da

arqueologia.

As doutrinas e valores da “nova” arqueologia estão sob processo de desmantelamento; para muitos eles nunca foram aceitáveis. Livros tais como Symbols in Action de Ian Hodder (1982b), The Evolution of Social Systems (Friedman and Rowlands (eds.) 1978), Symbolic and Structural Archaeology (Hodder (ed.) 1982), e Ideology, Power and Pre-history (Miller and Tilley (eds ) 1984) tem demonstrado o valor e importância de novas orientações de pesquisa para a análise das relações entre práticas sociais e padrões de cultura material. (Shanks; Tilley 1992, p. 1).

Dentre as inúmeras influências que agiram sobre o pós-processualismo,

vou me resumir à citação de algumas que me parecem as mais centrais. Bruce

Trigger defende que o retorno às perspectivas históricas e a adoção de

abordagens marxistas advindas do revisionismo da Escola de Frankfurt

marcaram fortemente os trabalhos da nova trupe anglo-americana que

encabeçou a arqueologia pós-processual (Trigger, 2004). De acordo com Mark

P. Leone, Parker Potter Jr. e Paul Shackel (1987), “arqueólogos são

convidados a considerar a teoria crítica, entre outros motivos, pelo fato de que

interpretações arqueológicas apresentadas ao público podem adquirir

significados não intencionados pelo arqueólogo e não encontrados nos dados”

(p. 284). Entre as diversas propostas da arqueologia crítica está a

desmistificação do trabalho arqueológico, encarado como ideologia, através da

exposição aberta de todos os seus processos, deixando à clara vista os

métodos de análise e construção do conhecimento (Leone et alli 1987).

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A influência do pós-modernismo e do pós-estruturalismo francês também

foi marcante nas novas propostas da arqueologia dos anos 1980. Matthew

Johnson nos dá um excelente panorama das propostas revisionistas

apresentadas pela “condição pós-moderna”.

A “condição pós-moderna” foi definida pelo filósofo francês François Lyotard como de incredulidade às metanarrativas. Lyotard sugere que a condição pós-moderna é o que caracteriza o conhecimento nas sociedades capitalistas ocidentais. Uma metanarrativa é um discurso sério que se apresenta como reivindicação à posse de uma verdade absoluta. (Johnson, 2000, p. 201).

Ela visa à desconstrução dessas metanarrativas que “se apresentam”

como detentoras da verdade absoluta e, conseqüentemente, do poder de

manejo das realidades sociais. A ciência é uma dessas metanarrativas e na

Academia segue-se o questionamento da disciplinaridade como produtora de

visões oficiais e superiores sobre as realidades sociais no presente e no

passado (Johnson, 2000). Cabe aqui assinalar três concordâncias entre o pós-

modernismo e o pós-processualismo essências para minha argumentação.

Primeiro, “a perda de confiança na Ciência, a crítica ao essencialismo, a

ênfase na diversidade de leituras e a dificuldade de fixar-se em um significado”

(Johnson 2000, p. 206). Segundo, o questionamento sobre a segurança

metodológica da disciplina: seria a arqueologia uma disciplina com métodos tão

específicos, distinta de suas similares nas ciências humanas? E terceiro,

O pós-modernismo sugere que exista um comprometimento com outras formas de conhecimento fora da esfera do que tradicionalmente se conhece como “arqueologia” ou “ciência”. (…) Não podemos simplesmente continuar escrevendo sobre o passado como “pensamos que deve ter ocorrido”, independentemente do presente. De fato, devemos atender ao contexto social, político e cultural da arqueologia (Johnson 2000, p. 206-207).

Essa preferência por uma posição política ao invés de uma suposta

neutralidade científica é uma das contribuições que mais me interessam do

pós-modernismo. A possibilidade de abrir a caixa-preta e mostrar seu complexo

funcionamento (Latour 2000) permitindo aí a inclusão de outros discursos no

fazer arqueológico é um meio de lidar com as situações de conflito, de

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democratizar as formas oficias de construção de conhecimento, de dar voz a

setores sociais antes silenciados. O pós-processualismo parte do pressuposto

de que a ciência não nos traz a verdade, mas sim uma das possíveis

perspectivas sobre o objeto estudado, sendo assim subjetiva e aberta a

revisões (Shanks & Hodder 1995, p. 3).

No final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, a arqueologia pós-

processual assume uma nova postura. Em 1995, Michael Shanks e Ian Hodder

publicam um texto em que tentam remanejar a imagem do pós-processualismo,

de maneira que passe a evocar mais as “maneiras correntes de pensar em

arqueologia” do que a oposição entre duas tendências. Assim, sugerem o

conceito “arqueologias interpretativas”, já que o interesse do artigo é pela

“interpretação em arqueologia” (SHANKS & HODDER 1998, p. 3).

O passado, mesmo quando foi presente, nunca se apresentou de

maneira homogênea, assim como tampouco se apresenta padronizado nos

dias de hoje. “A história é uma bagunça” (SHANKS & HODDER 1998, p. 9), o

cotidiano do passado é polissêmico, defendem os autores, e, portanto, cheio de

incertezas, conflitos e possibilidades. Citarei aqui apenas dois exemplos de

como a arqueologia interpretativa traz preocupações que são características da

arqueologia pública.

Um deles me foi indicado e pode ser encontrado numa obra igualmente

marcante entre as produções de arqueologia na pós-modernidade. Janet

Spector possui um artigo no livro Engendering Archaeology (“Colocando

gênero na arqueologia”), editado por Margaret W. Conkey e Joan M. Gero.

Nesse texto (What this Awl means – “O que este furador31 significa?”) (Spector

1991), a autora nos apresenta, como define, o desenvolvimento de seu método

de escrever arqueologia: de seus questionamentos sobre uma possível

arqueologia feminista aos questionamentos sobre uma arqueologia demasiado

colonialista.

31

Em inglês, o termo “awl” significa “um instrumento com ponta para perfurar pequenos buracos em

couro, madeira, etc.” (Dictionary.com 2010).

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Seu primeiro interesse foi tentar descobrir a que ponto podemos

enxergar, e a que ponto se pode preservar, relações de gênero na cultura

material. Para isso, partiu de dados etnográficos e etnohistóricos, além do

desenvolvimento do que chamou de Task differentiation system (“Sistema de

diferenciador de tarefas”), que aparenta ser uma tábula que identifica

primeiramente as relações de gênero e funcionalidades a elas atreladas e, em

segundo lugar, as expressões que essas relações deixam na cultura material.

A continuação de sua proposta era tentar identificar os resultados dessa tábula

em um sítio arqueológico.

Durante os trabalhos de campo, encontrou um furador decorado de

maneira peculiar. O trabalho com descendentes dos indígenas que viveram em

Little Rapids (comunidade de seu trabalho de campo), com outros indígenas

Wahpeton e em contato com bibliografia sobre o assunto, a autora começa a

se questionar sobre a forma como deveria escrever as interpretações dos

dados arqueológicos: “Enquanto o diferenciador de tarefas chama atenção para

o gênero ele não altera o modo como apresentamos conhecimento sobre o

passado” (Spector 1991, p. 393). Sentindo o peso do eurocentrismo na prática

arqueológica contraposto à alternativa interpretativa que lhe fora ficando clara

durante seu trabalho (pela etnografia, etnohistória, contato pessoal com

descendentes) a autora elege uma forma diferente de condensar seus dados e

apresentar seu trabalho. Ela cria uma narrativa centrada em uma garota

indígena de grande importância em sua aldeia, cujo furador é um elemento de

expressão de suas habilidades manuais na juventude e representa sua

capacidade em tornar-se uma mulher central na vida comunitária. Através do

mesmo foco, ela tenta alcançar a imagem ridícula de um missionário que tenta

ensinar aos Wahpeton como plantar.

Primeiro, Riggs [o missionário] ofereceu-se para ensinar aos homens como arar como se eles nunca tivessem considerado a idéia, ou como se as mulheres estivessem dispostas a abandonar seus campos de milho. Suas idéias sobre o trabalho adequado que cabia a homens e mulheres lhes apreciam espantosas, e suas sugestões de ferir a terra, cortando-a com um arado era incompreensível. Finalmente, Riggs insultou-lhes inconscientemente ao sugerir que poderia substituir Mazomani como líder espiritual da comunidade.

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(...)

Uma noite, enquanto guardavam o resto do milho colhido elas [mãe e filha] riram juntas, lembrando do “rezador” Riggs e suas idéias sobre homens plantando milho (Spector 1991, p. 398; 401).

De fato, a narrativa apresenta relações de gênero expressas nas

condutas cotidianas (resgatadas por documentação e oralidade) e marcadas na

cultura material (o furador decorado, peça central, mas não única, da narrativa).

Em contraponto ao seu próprio trabalho, ela nos dá detalhes da análise de

outro pesquisador, bem mais tradicional, do mesmo tipo de furador. A análise

tradicional se debruça mais sobre os dados quantitativos na formulação de

suas propostas. No entanto, o resultado é um discurso que trata a presença de

metal em aldeias indígenas, a exemplo, como prova de aculturação.

Por exemplo, um tema dominante em suas apresentações é que os furadores de metal produzidos pelos europeus são mais significativos que os instrumentos produzidos pelos indígenas. Essa história é incorporada as suas classificações, títulos de tabelas, e freqüentemente enfatizado ao longo do texto. Finalmente é reforçada quando os autores reiteram a significância dos de pontas de metal como marcadores de influências européias sobre indígenas e a desintegração da cultura nativa em suas discussões. Imagino que para mulheres Dakota (e certamente de outras tribos) essa história teria soado divertida, irritante, ou simplesmente errada, especialmente aquelas que inscreviam seus instrumentos de osso ou chifre como um modo de visualizar e expressar publicamente suas realizações (Spector 1991, p. 402).

Antes de uma arqueologia que fale sobre quantidades levando a um

perigoso estamento de aculturação, uma que fale de qualidades e se abra a

expressão de outras histórias e discursos. Sua proposta, condizente com a

corrente interpretativa, abarca questionamentos diretos sobre o rumo da

disciplina acadêmica. Que tipo de arqueologia queremos? Aquela que

responda às questões do colonizador branco ocidental ou dos povos

colonizados a lutar ainda hoje por seu passado? Seria melhor adotarmos uma

perspectiva mais metódica e, no entanto, mais excludente ou uma narrativa

diferenciada e, no entanto, menos precisa? Seria possível uma visão metódica

e includente? O texto da autora apresenta uma boa alternativa, a meu ver, para

essas questões. Pode ser que alguns ainda não aceitem tão bem a

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fragmentação da Verdade, mas parece interessante, em nossos dias, que

aprimoremos propostas multivocais. Veremos um caso similar sobre a “cor” dos

antigos egípcios quando for comentar as propostas de “alcance e educação”.

O segundo exemplo é da arqueologia da repressão, presente na

produção, por exemplo, do arqueólogo Andrés Zarankin. Um de seus textos

conta sobre os trabalhos desenvolvidos em um Centro Clandestino de

Detenção (CCD), o Clube Atlético (na verdade, codinome para Centro Anti-

subversivo, CA), que funcionou de fevereiro a dezembro de 1977, em Buenos

Aires. Esse artigo, escrito com um sobrevivente de um CCD, deixa bem claro

seus objetivos:

Por um lado, buscamos entender a lógica de funcionamento e organização do espaço e a arquitetura deste dispositivo desaparecedor de pessoas. O segundo objetivo foi contribuir à construção de uma memória material. Ou seja, transformá-la em algo físico, para assim poder ser percebida de maneiras diferentes à palavra (falada ou escrita). Uma memória que possa ser tocada, cheirada, experimentada (Zarankin & Niro 2006, p. 179).

Nesse trabalho, participaram outros sobreviventes de CCD’s. Além de

atrelar indivíduos à reconstrução de um passado marcante em suas vidas,

oferece novas possibilidades interpretativas à cultura material, como vemos no

trabalho de Janet Spector, contemplando significações profundas aos signos

materiais de momentos extremamente carregados.

Usando métodos de análise espacial provenientes da arquitetura, os

autores propõem uma compreensão dinâmica do funcionamento do porão do

CA.

A aplicação destes modelos permite observar como elemento como organizativo do espaço, um parâmetro de maximização e operacionalidade dos procedimentos repressivos. Funciona como base desta estrutura, uma circulação restringida e controlada, além de um profundo isolamento dos ambientes.

(...)

Existe também um elemento simbólico associado à organização do espaço. Assim, a medida que se avança em direção ao interior do CCD, o nível do suplício vai aumentando. Imaginemos que o prisioneiro não pode ver, mas sim experimentar esse espaço através dos sentidos. Os odores de

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corpos e fluidos humanos, a umidade e a falta de ventilação, o calor e o frio, os gritos e lamentos de outros detidos, a dureza das paredes e do piso – onde era colocados - (Zarankin & Niro 2006, p. 175).

Como podemos ver, o espaço não é um mero conjunto de materiais

construtivos, mas uma estrutura erigida em aspectos formais que dialogam

com nosso corpo, sem palavras a serem lidas, apelando para os demais

sentidos. Os trabalhos de Zarankin em arqueologia da arquitetura e

arqueologia da repressão mostram como os métodos e parâmetros analíticos

da arqueologia podem ser adotados para a compreensão do conflito na

sociedade contemporânea, através da demonstração sobre os mecanismos de

repressão. Não somente de compreensão, mas também de atuação na

sociedade contemporânea, na medida em que essa reificação das memórias

dos sobreviventes é artifício para o “não-esquecimento” e para a reivindicação

de justiça.

Não poderia me esquecer da importância do World Archaeological

Congress – WAC (Congresso de Arqueologia Mundial) nesse movimento de

“humanização” da disciplina. O WAC surgiu em 1986 como dissidência do

International Union of Prehistoric and Protohistoric Sciences - IUPPS (União

Internacional de Ciências Pre-históricas e Proto-históricas), devido a um

desentendimento interno sobre as posturas da instituição frente à liberdade

acadêmica e o regime do apartheid na África do Sul (Funari 2006). Desde seu

inicio, a proposta do WAC tem sido aproximar a prática e o conhecimento

arqueológico daqueles das populações vivas: aproximar-se do outro não como

um objeto de estudo, mas como indivíduos e grupos humanos que vivem o

mundo de acordo com suas próprias normas. Além de incorporar o outro leigo,

reforça a unidade e proximidade da ciências européia com os demais

continentes, bem como entre esses próprios continentes.

WAC é o resultado dessa luta, rompendo com a tradição ao incluir na Organização, representantes de todos os continentes e de povos indígenas. Pela primeira vez, a arqueologia teve chance de libetar o mundo ao invés de explorá-lo (Funari 2006, p. 75).

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Em suma, meu propósito com essa rápida passagem pelo pós-

processualismo foi mostrar como “nos anos 1980 a arqueologia viu a

emergência gradual de estudos preocupados em interpretar significados

culturais no passado que envolvessem questões de poder e dominação,

história e gênero.” (Hodder, 1999, xiii). Nos anos 1990 a perspectiva pós-

processual começa a tomar sua independência da dicotomia criada com o

processualismo e volta-se cada vez mais às múltiplas possibilidades que criou

dentro da teoria arqueológica.

É nesse contexto que o conceito de arqueologia pública começa a

ampliar suas fronteiras e ir além da batalha jurídica e legislativa, embora esse

tipo de atuação nunca tenha se esgotado (e não creio que deva).

3.3. Arqueologias Públicas

A diversidade de publicações e discussões que estão sob a ampla

denominação de “arqueologia pública” me levaram a pensar em uma maneira

de discerni-las, mais que classificá-las. Meu propósito com essa divisão não é

menosprezar determinadas práticas em benefício de outras, mas apenas

distingui-las de modo que possa melhor pensar sobre as possibilidades que

oferecem.

Por um lado, a prática da arqueologia pública como uma de manejo de

recursos culturais (CRM) e beneficiamento de um conhecimento como um

serviço público ainda é uma realidade cotidiana.

Assim, por um lado temos a noção de que o Estado assume o papel de estar falando em nome do publico e de agir “no interesse publico”. Isso pode incluir a provisão estatal de instituições e serviços públicos como arqueologia, museus e educação. O pressuposto do Estado de que ele atua pelo interesse geral do público significa que interesses menores podem não ser efetivamente representados, e uma abordagem despótica pode significar uma perda do contato com os desejos de um público diverso (Merriman 2004a, p. 1-2).

A arqueologia continua sendo um mecanismo institucional, e muitas

vezes torna-se mediador entre o estado nacional e o público. Vimos na

apresentação como o conceito de patrimônio cultural e arqueológico passou a

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ser solidificado por uma legislação internacional específica, uma legislação que

carrega consigo a arbitrariedade dos interesses públicos da humanidade. Entre

as normas do Estado que se pretende como servidor dos interesses públicos

cívicos, e os parâmetros de conduta dos tratados internacionais que se

dedicam ao respeito da humanidade do indivíduo universal, a arqueologia é

posta como identificadora e mediadora de relações entre essa parafernália

jurídica e o interesse social, através da memória materializada. Como atuar

nessa situação? Quais as pendências que ficam no caminho ao atuar em

benefícios da lei? E em benefício da sociedade? E em prol somente de

determinados grupos?

Além dessas indagações, fica uma mais central: quem é esse público?

Nick Merriman (2004a) já nos lembra que, além de ser “não-arqueológico”,

nada mais necessariamente conecta esses indivíduos que estamos

genericamente chamando de “público”.

Com uma compreensão tão pequena das atitudes, concepções e crenças dos receptores da informação arqueológica, arqueólogos tem, portanto, se comunicado cegamente com uma audiência que não entendem, e não é de se surpreender que tantas tentativas de comunicar arqueologia resultam em tédio ou incompreensão. Em termos de compreender o publico, enfim, a arqueologia tem muito o que aprender sobre o entendimento publico da ciência. (Merriman, 2004a, p. 8).

Enfim, acredito que essas são as principais questões levantadas pela

arqueologia pública contemporânea, e as sequências propõem uma discussão

através da revisão de leituras encontradas em coletâneas e livros cujo enfoque

está justamente nessas problemáticas. Escolhi por fazer uma divisão em três

pequenas partes que representassem de certa forma as propostas que

encontrei nas leituras e que me levaram a fazer as reflexões acima

desenvolvidas. 1) Imagens e expressões de arqueologia, contemplando o que

se fala da arqueologia e, ao mesmo tempo, o que pode a arqueologia contribuir

no que é falado. As argumentações desenvolvidas neste trecho serão

extremamente relevantes para a leitura de artigos e revistas de mergulho sobre

o patrimônio cultural submerso brasileiro. 2) Alcance e educação, buscando

reflexões sobre a postura da arqueologia frente ao outro na tentativa de

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mostrar-se útil. No Brasil, a educação patrimonial tem sido o principal modo de

alcance do público não arqueológico, e pretendo aplicar as reflexões

desenvolvidas aqui no caso nacional (inclusive no caso subaquático). 3)

Antropofagia arqueológica; analisando casos em que a arqueologia procura

questionar seus métodos e perspectivas, muitas vezes sendo ela mesma

tomada pelo público como forma de conquista institucional.

3.3.1. Imagens e expressões de arqueologia

No Brasil, diversos jornais regionais apresentam regularmente, apesar

da pouca freqüência, notícias sobre arqueologia nacional e internacional. Não

se trata de jornalismo somente impresso, mas também de algumas edições do

Globo repórter (programa televisivo de sexta-feira no horário nobre e alcance

nacional) e desenhos infantis durante o dia (Jackie Chan tem feito muito

sucesso). Esses programas apresentam relíquias, profissionais e aventureiros

que carregam consigo o poder do saber, o poder de conhecer os cálculos

certos e as imagens apropriadas para relevar os mistérios do passado.

Vários profissionais da nossa área também se interessam por esse

fenômeno comunicativo de apreciação da estética da revelação através da

escavação. Inglaterra, Alemanha, Suécia e EUA, são apenas alguns exemplos

de lugares onde programas de TV, propagandas em outdoors e filmes trazem,

e trouxeram desde o início das atividades comunicativas massivas (Clack &

Brittain 2007), a arqueologia ao alcance do cotidiano da gente comum (Holtorf

2007a, Faulkner 2004), dos “desempoderados”, aqueles que nunca foram

detentores dos métodos de reprodução oficial de sua história.

Apesar de acompanharmos essa apresentação, a nosso ver, um tanto

crua da arqueologia, e nos sentirmos no direito de exigir mais respeito às

nossas atividades e às comunidades com as quais nos relacionamos (Pyburn

2008), talvez possamos olhar a presença da arqueologia na mídia com outros

olhos. De uma perspectiva mais crítica, a mídia pode nos apresentar uma

faceta diferente da que costumamos ver de nossa própria profissão, permitindo

uma reflexão sem parcimônia (Taylor 2007). Pode também vir a ser, como

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63

apontamos acima, uma possibilidade de compartilhamento de conhecimento e

mesmo construção de um novo conhecimento. Talvez até uma maneira de

abordarmos o público não arqueológico, um link entre nós e eles, muito mais

efetivo (porque afetivo) do que partir do zero (Holtorf 2007a).

Todas estas propostas são interessantes e direcionam a interpretação

da mídia como parte da expressão pública do fenômeno arqueológico. A meu

ver, estas propostas são modos de reflexões consigo mesmo (auto-avaliação)

e com grupos sociais e profissionais diferentes de nós, mas que nem por isso

deixam de apreciar monumentos, paisagens, ruínas, relíquias... Mais

importante do que isso, é o exercício de sairmos de nossas preocupações e

observarmos o que os outros apreciam na cultura material, ou mesmo o que

consideram como vestígios físicos do homem, vestígios físicos da natureza, ou

imagens indistintas da vida. Afinal, a “ubiqüidade da arqueologia televisiva (...)

é uma medida da popularidade do assunto” (Faulkner 2004, p. 1-2).

Finalmente, a presença constante da arqueologia nos meios de

comunicação de massa é um alerta importante para o fato de que os fins em

nosso trabalho não são apenas de apreciação acadêmica. O que falamos e

produzimos deixa nosso breve nicho e circula fora de nosso controle direto,

sujeito às mais diversas interpretações. A imagem de arqueólogos,

arqueólogas e como nossos discursos são interpretados pela mídia é também

um motivo de preocupação social, cerne da arqueologia pública.

Como já assinalei em capítulo anterior, a relação entre uma disciplina

engendrada nas “Ciências Humanas” com as “Humanas” fora das “Ciências” é

uma necessidade que tem sido levada a cabo desde a década de 1960, com

uma série de movimentos sociais que atingiram um estágio global e pediram

uma reorganização do espaço de realizações e da posse do conhecimento.

Retomando Nick Merriman (2004a), para compreender o público é

preciso antes entender como o público compreende ciência (Merriman, 2004a,

p. 8). Podemos advogar à arqueologia pública, o papel de reflexão sobre o que

tem sido produzido do arqueológico fora do meio disciplinar. “O significado da

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arqueologia na cultura popular é um tópico que nasceu daquele mesmo

processo de abertura da disciplina arqueológica, manifestando uma tendência

rumo a uma verdadeira arqueologia pública” (Holtorf 2007a, p. 2). Como temos

feito a leitura até o momento, o princípio da arqueologia pública é participar da

cena conflituosa em que o arqueólogo encontra-se durante seu trabalho.

Procurar entender as dissonâncias e diversidades de modos de compreensão

do passado.

A obra editada por Timothy Clack e Marcus Brittain, Archaeology and the

media (Arqueologia e a mídia) de 2007, bem como a edição de Julie

Schablitsky, Box office archaeology (Arqueologia em Bilheteria) do mesmo ano,

trazem diversos trabalhos sobre essa peculiar mediação entre arqueologia e

seu público não arqueológico. Talvez um dos autores mais polêmicos e

centrais nessa discussão seja Cornelius Holtorf, cuja produção conta não

somente com artigos publicados em revistas e livros, como conta com duas

obras de sua autoria: From Stonehenge to Las Vegas: archaeology as popular

culture (De Stonehenge à Las Vegas: arqueologia como cultura popular), de

2005, e Archaeology is a brand! (Arqueologia é uma marca!), de 2007. Assim,

pretendo fazer uma pequena revisão crítica da relação entre arqueologia e

mídia a partir de algumas das leituras proporcionadas por esses autores.

Antes de continuar com a discussão, dois breves apontamentos.

Primeiramente, quando digo “relação entre mídia e arqueologia” me refiro à

dois aspectos que são tratados nessa literatura especializada: 1) as avaliações

das imagens construídas do fenômeno arqueológico nos veículos de mídia; 2)

uma avaliação de como a arqueologia promove e pode contribuir com a

compreensão popular do passado através da mídia. Em segundo lugar, essa

“revisão crítica” que menciono no parágrafo anterior não consiste em uma

completa “revisão bibliográfica” do tema, mas sim numa observação sobre o

tratamento oferecido por alguns autores (a seleção foi necessária, levando em

conta o que me pareceu mais relevante) tema da arqueologia pública como

cultura popular e como nossa disciplina se posiciona frente ao público não-

arqueológico através da mídia.

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65

Acredito que há dois comentários de Cornelius Holtorf que definem de

maneira precisa a afinidade desse tema dentro da perspectiva pública da

arqueologia. Baseada em visão de outros autores (cf. Holtorf 2005), ele diz que

“Cultura popular refere a como as pessoas escolhem viver suas vidas, como

elas percebem e moldam seus ambientes locais e suas ações, e o que elas

crêem atrativo ou interessante” (Holtorf 2005, p. 8). Igualmente, assume que

sua obra não pretende construir uma ponte entre o presente e o passado, mas

a perspectiva profissional/acadêmica da arqueologia com aquela apreciação

popular sobre o passado, ambos no presente (Holtorf 2005). Em nosso

cotidiano capitalista e consumista, a arqueologia torna-se igualmente produto

de consumo, uma “marca” (brand) de etiqueta.

Talvez isso possa explicar, pelo menos em parte, porque o “produto” arqueologia desfruta de tamanha popularidade. Ela oferece e é esperada a oferta, experiências válidas para muitos. Visitar um museu arqueológico ou sítio de escavação pode ser sobre arte antiga e educação sobre o passado, sobre reconstruções geralmente idílicas da vida cotidiana no passado e reassegurar a existência de um lar, ou pode tratar de tecnologia computacional moderna e buscas por tesouros no espírito de Indiana Jones que é provavelmente o melhor conhecido arqueólogo no mundo hoje (Bahn 1989:59). Em cada caso, é uma experiência particular no presente que conta no interesse das pessoas pelo passado (Holtorf 2007a, p. 4)

Acredito que a importância de considerarmos os estudos da arqueologia

na mídia condiz não somente com nossa curiosidade pelas peripécias dessa

engenharia comunicativa, mas também na busca desses interesses no

presente que são direcionados aos vestígios do passado.

Certamente, vale a pena destacar a relevância dessa perspectiva dentro

deste trabalho. Em minha monografia de conclusão do curso de graduação,

trabalhei com a leitura de alguns artigos da revista Mergulho, um periódico de

extenso alcance nacional sobre mergulho recreativo. Os artigos escolhidos

para análise foram aqueles que falavam de vestígios humanos submersos.

Meu propósito com essa leitura foi tentar aproximar-me dos interesses dos

mergulhadores recreativos pelo patrimônio submerso. Como me pareceu uma

questão central neste trabalho (inclusive foi meu ponto de partida para o

mestrado), decidi retomar algumas leituras e apontamentos. Para tanto,

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66

acredito que as novas leituras sobre arqueologia e suas expressões na mídia

me possibilitarão uma análise mais interessante.

Primeiramente, a pergunta: O que é mídia? Em busca de raízes

etimológicas, deparei-me com algo mais próximo da mediação:

Medium, i – 1) a parte do meio, centro; 2) o espaço interior ou intermitente, meio32; 3) o meio (como um local visível), o aberto, vista, publico, in medium proferre ou in medio ponere tornar público, de medio partindo da cena; 4) in medio disponível a todos, ao alcance, in medium reserva comum33; 5) O meio de um período de tempo, medio temporis, no meio tempo; 6) Um estágio ou curso intermitente, algo que age entre duas coisas, um intermediário, um meio34. (GLARE 2006).

Timothy Clack e Marcus Brittain trazem um significado mais

contemporâneo, ao qual podemos agregar sua acepção latina.

Mídia, em sua forma mais básica, são os meios de comunicação, ou uma agência pela qual aquela comunicação é transmitida, transferida ou conduzida35. “A mídia” pode ser vista como uma entidade em si mesma, um corpo de jornalismo com valores de transmissão que intersectam mercados e comercio, perfis de audiências, fronteiras do espaço discursivo, e conhecimento disciplinar. Pode ser igualmente compreendido como um processo de tradução ou engajamento incorporado na materialidade da forma midiática. Mídias diferentes transmitem 36 diferentes mensagens de maneiras variadas, tendo tanto impacto sobre os contextos de interpretação quanto enquadrando e reenquadrando os contextos de consumo (Clack & Brittain 2007, p. 12).

32

No original, midst. cuja definição dada pelo Dictionary.com seria: 1. the position of anything

surrounded by other things or parts, or occurring in the middle of a period of time, course of action,

etc./2. the middle point, part, or stage (Dictionary.com 2010).

33 No original, the common stock.

34 No original, medium, que pode também carregar o sentido de médium.

35 No original, conveyed. Cuja definição dada pelo Dictionary.com seria: 1. to carry, bring, or take from

one place to another; transport; bear/2. to communicate; impart; make known/3. to lead or conduct, as

a channel or medium; transmit/3. to lead or conduct, as a channel or medium; transmit (Dictionary.com

2010).

36 No original, convey.

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67

Desses trechos, acredito que podemos ver quatro etapas sobre a

discussão midiática contemporânea e suas conseqüências sobre a arqueologia.

Primeiro, uma maneira prática de lidar com a mídia como “tudo o que comunica”

(Tega 2010)37. De fato, isso nos permite o alcance necessário trabalhar com a

construção da imagem arqueológica em diversos meios comunicativos: filmes,

fotos, revistas, livros, TV, outdoors, propagandas... Enfim. Aproveitar da

amplitude veicular do conceito “mídia” para visitarmos diversos campos onde o

discurso arqueológico e do público se encontram.

Em segundo lugar, ser e estar na mídia significa tomar a posição de um

intermediário entre partes conectadas pelo enunciado midiático. No caso, o

jornalismo pode mediar a arqueologia com o público não arqueológico. Mas

também, a arqueologia, ao se apoderar dos veículos midiáticos, pode se tornar

o mediador entre o passado e o presente, entre o sítio e o público, entre o

território e o Governo. Um oficial dos estudos acadêmicos que in medio ponet.

Em terceiro lugar, a “vida própria” com que Clack e Brittain definem

mídia, permite-nos diferenciar as livres exposições dos fazeres e saberes

arqueológicos do público das tentativas dos arqueólogos de usar algumas

mídias (internet e livros de grande tiragem e circulação) para comunicarem-se

com o público não-acadêmico (as quais apresentarei no próximo item). Ainda,

posso acrescentar, podemos observar a comunicação entre diferentes

indivíduos do público não-arqueológico para tentar perceber quais são suas

impressões sobre o fenômeno arqueológico.

O que me leva ao último ponto, que é tomarmos parte de uma discussão

que vejo indissociável desse encontro entre o acadêmico e o leigo, é a cultura

de massa. Ou seja, encarar a mídia “como uma entidade em si mesma, um

corpo de jornalismo com valores de transmissão que intersectam mercados e

comércio, perfis de audiências, fronteiras do espaço discursivo, e

conhecimento disciplinar” (Clack & Brittain 2007, p. 12). A industrialização da

comunicação, controlada por conglomerados empresariais, e as mazelas da

37

Entrevista concedida por Glória Tega a Bruno S. R. da Silva via Skype. Belo Horizonte-São Paulo, agosto

2010.

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massificação cultural. São exatamente esses pontos que os arqueólogos mais

atacam. Nas palavras de Anne Pyburn,

Então arqueologia pública e sua versão local – arqueologia comunitária – acontecem nesse contexto de uma curta hype38, e arqueólogos muitas vezes tentam usar esse ângulo para engajar as pessoas em seu trabalho. É claro que arqueólogos não acham bonito murais do segundo século como os de San Bartolo, então se torna necessário inflar a significância de dados mais ordinários para ir ao encontro dos parâmetros de Indiana Jones (Pyburn 2008, p. 203).

Ao mesmo tempo, a própria autora afirma que

Mas se o público não está interessado, então o que estamos fazendo? Qual é exatamente o propósito de escavar os vestígios materiais do passado, agora que sabemos que não vamos mais coletar a verdade que irá nos libertar, nem irão nossos esforços acrescentar muito para o “bem de toda a humanidade”? (Pyburn 2008, p. 202).

Justamente esse é o ponto dialético em que se encontra o arqueólogo

na discussão sugerida nesse trabalho. Onde ficar e onde expressar-se entre o

apocalipse da norma disciplinar e a submissão aos veículos de massa. Na

tentativa de me socorrer em autorias fora do meio arqueológico, procurei uma

das imagens mais interessantes, a meu ver, do campo comunicativo,

justamente por circular igualmente pelos corredores da Universidade mais

antiga do mundo e pelas prateleiras de Best Sellers a cada publicação de um

romance: Umberto Eco.

Apologias a parte, seus comentários sobre a cultura de massa na obra

Apocalipticos e Integrados (Eco 2001) vem a calhar nesse impasse ético em

que nos encontramos.

Por um lado, a cultura de massa é acusada de configurar uma estrutura

capitalista de mau gosto, produtora de soluções simples que inibem a

38

No original seria hype, cuja definição segundo o Dictionary.com: 1. to stimulate, excite, or agitate/2.

to create interest in by flamboyant or dramatic methods/3. to intensify (advertising, promotion, or

publicity) by ingenious or questionable claims, methods, etc./4. to trick; gull. Optei por deixar o

vocábulo original por ser usado em diversos meios em território nacional (seu surgimento, inclusive, de

maneira hype).

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criatividade, reproduzem aquilo que já conhecemos através de fórmulas já

conhecidas que se adéquam facilmente às necessidades de difusão do

mercado, ao mesmo tempo em que impõe “símbolos e mitos de fácil

universalidade” e muitas vezes “sugere o que este [o espectador] deve desejar”

(Eco 2001, p. 41). Em outras palavras, morte à Indiana Jones, Lara Croft, Jacky

Chan, Múmia e todas as entidades arqueológicas espalhadas pelo planeta!

Por outro lado, Eco nos lembra que a massificação da cultura não é tão

própria do capitalismo, mas sim “nasce inevitavelmente em qualquer sociedade

do tipo industrial” (Eco 2001, p. 44). Inclusive, parece ser muito mais

emergente em regimes ditos democráticos populares:

A cultura de massa é própria de uma democracia popular como a China de Mao, onde as grandes polêmicas políticas se desenvolvem por meio de cartazes de histórias de quadrinhos; toda cultura artística da União Soviética é uma típica cultura de massa, com todos os defeitos de uma cultura de massa, entre os quais o conservantismo estético, o nivelamento do gasto pela média, a recusa das propostas estilísticas que não correspondem ao que o público já espera, a estrutura paternalista da comunicação de valores (Eco 2001, p. 44).

Não sendo apenas um fenômeno capitalista, a mídia massificada é um

fenômeno consumista, tampouco atribuível apenas ao regime do capital, se

pensarmos que “desde que o mundo é mundo, as multidões amaram os

circenses (...)” (Eco 2001, p. 45), com a diferença de possuir hoje um

panorama macroscópico realmente nunca visto antes. Indo mais além, é

cabível lembrarmos que esse fenômeno em gigantescas proporções ter sido

realizado também como uma faceta democrática, seja pela homogeneização

do gosto, eliminando uma das barreiras entre castas, seja através mídia

macerada pela indústria cultural (Eco 2001). Finalmente, é de uma consciência

pobre acreditar que todas as informações que cheguem à audiência sejam

interpretadas da mesma maneira planificada com que são pretensiosamente

dispostas em seu momento de codificação.

Os mass media oferecem um acervo de informações e dados acerca do universo sem sugerir critérios de discriminação; mas, indiscutivelmente, sensibilizam o homem contemporâneo face ao mundo; e na realidade, as massas submetidas a esse tipo de informação parecem bem mais sensíveis e participantes, no

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bem e no mal, da vida associada, do que as massas da antiguidade, propensas a reverências tradicionais face a sistemas de valores estáveis e indiscutíveis. Se esta é a época das grandes loucuras totalitárias, também não é a época das grandes mutações sociais e dos renascimentos nacionais dos povos subdesenvolvidos? Sinal, portanto, de que os grandes canais de comunicação difundem informações indiscriminadas, mas provocam subversões culturais de algum relevo 39 (Eco 2001, p. 48).

Desconfio seriamente que a mass media ofereça um acervo de dados

“sem sugerir critérios de discriminação”. Não vejo como se pode criar um

discurso das normas de consumo através da transmissão, sem sugerir critérios

de discriminação. Aliás, vejo como essa mesma a razão do despertar das

sensibilidades no público, que se sente tocado ou não pelas imagens

transmitidas pela mídia. De qualquer maneira, os apontamentos de Umberto

Eco servem para me munir de algumas idéias com as quais é possível passar

“pelo bem e pelo mal” de maneira ressabiada para ambos. Além de,

certamente, apontar para a condição da mídia de massa como resultado

igualmente importante de uma época de “grandes mutações sociais” e de

“subversões culturais” (Eco 2001).

A relação entre arqueologia e a mídia não é recente, vindo desde os

anos 1840, com um grande boom entre 1920’s e 1950’s (em especial devido a

desenvolvimento de mídias elétricas) e rompimento entre 1960s e 1980’s (Kulik

2005 apud Clack & Brittain 2007). Inclusive, nos anos 1950 Mortimer Wheeler e

Glyn Daniel foram eleitos personalidades televisivas por dois anos seguidos

(1954 e 1955) por seu programa Animal, Vegetable, Mineral? (Animal, Vegetal,

Mineral?) (Holtorf 2007a). Entre os anos 1946-55, a revista americana Life, que

atingiu em apenas um quarto do ano de 1953 cerca de 73 milhões de leitores

nos EUA, listou 34 artigos sobre arqueologia (Ascher 1960, p. 402). O retorno

das relações, posterior à 1980, é justamente o período de uma reviravolta na

tendência arqueológica mundial, com pós-processualismo (Clack & Brittain

2007).

39

Assistam a alguns episódios de House:MD, seriado americano, e vejam sua alegre reação aos

pacientes que se auto-diagnosticam através da internet.

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71

De acordo com os Timothy Clack e Marcus Brittain (Clack & Brittain

2007), a desconfiança que a arqueologia apresenta em relação à mídia vem de

tempos mais distantes, desde a década de 1930, quando intelectuais como

Huxley, Horkheimer, Adorno começaram a questionar a validade dos avanços

tecnológicos, vistos mais como uma força ideológica de massa para a

domesticação social. Traduzindo o termo mass media por “indústria cultural”,

assinalavam seu propósito de produção de entretenimento fútil em larga escala

para silenciar as massas. Hoje, acredito que a comunicação indiscriminada e

industrial gera outra tendência que é o ceticismo coletivo e a insensibilidade

frente aos desastres sociais.

Antes do ceticismo público, talvez uma das maiores preocupações dos

arqueólogos é como a presença da mídia pode irromper problemas éticos

dentro da disciplina. Ainda dentro do texto de Clack e Brittain, os autores

apresentam uma proximidade entre a arqueologia e o jornalismo. Ambas

profissões possuem apreço (mesmo que teórico) pela análise crítica das

informações a serem postas em jogo e um respeito mínimo pelo que liberam

dessas informações ao público. Embora nos alerte Glória Tega sobre situação

do jornalismo brasileiro atual.

Mas vejo que, no geral, os jornalistas não sabem o que é arqueologia. Nesse meio em que venho trabalhando, tenho feito muito contato entre cientistas e jornalistas, e os últimos não sabem o que é arqueologia, não sabem o que é uma escavação, não sabem que podemos contar uma história diferente através de objetos. Eles tem na cabeça a idéia de que transmitem fatos reais. Para mim isso já é o grande problema de tudo, pois se acreditam nisso a situação fica bem mais complicada.

(...)

Do jeito que o jornalismo funciona hoje no Brasil, não há tempo para que os profissionais corram atrás dessas coisas específicas, não tem tempo de fazer cursos. Quem está no mercado, com jornalismo diário, em revistas, não se atualiza nem faz cursos, pois não tem tempo. Apesar de achar que isso não justifica a falta de diálogo (Tega 2010)40.

40

Entrevista concedida por Glória Tega a Bruno S. R. da Silva via Skype. Belo Horizonte-São Paulo, agosto

2010

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72

Eis uma das críticas mais ferozes que a arqueologia atira sobre o

jornalismo: a compreensão errada da mensagem pelo desconhecido e,

podendo chegar ao ponto do desvirtuamento da imagem da disciplina,

esbarrando em questões éticas. Tomothy Clack e Marcus Brittain trazem um

caso específico em que a banalidade midiática trouxe sério descrédito à

arqueologia japonesa. É o caso de Fujimura Shinichi, arqueólogo nipônico

cujas descobertas controversas recuaram a presença humana no Japão para

quase 600.000 anos. No entanto, em 5 de novembro de 2000 foi capturado por

câmeras de jornais plantando um artefato arqueológico cuja descoberta

igualmente fenomenal fora anunciada por ele mesmo no dia seguinte (Clack &

Brittain 2007, p. 36). As repercussões internacionais foram de certa maneira

catastróficas, com “um artigo no jornal britânico Science intitulado ‘Fraude

japonesa destaca ética de pesquisa influenciada pela mídia’ culpando a

infiltração da mídia na arqueologia pelo fracasso da descoberta precoce dessa

fraude” (Normile 2001 apud Clack e Brittain 2007, p. 36).

Um dos ataques ao caso Shinichi foi justamente a necessidade de

repercussão midiática e de grandes manchetes jornalísticas para que o público

reconheça a arqueologia. A pressão governamental e acadêmica pela

promoção da imagem nacional sobrepôs-se à ética profissional e levaram à sua

corruptela através da mídia.

Peter Fowler traz uma argumentação semelhante sobre sua experiência

com veículos de comunicação em massa. Apesar de iniciar seu artigo com a

afirmação de que a mídia, se entendida de maneira geral como “comunicação”,

é o sangue da arqueologia, suas experiências e conseqüente postura frente a

imagem arqueológica na mídia são basicamente negativas. “(...) se você quer

jogar o jogo Televisivo, você deve jogá-lo de acordo com as regras da TV, que,

como outras profissões (notavelmente medicina e direito), aprenderam a seus

custos e nossa alegria” (Fowler 2007, p. 91).

Alguns seriados de TV são constantemente citados por diversos

arqueólogos europeus. Por vezes de maneira positiva, por vezes de maneira

negativa. Hidden Treasure (Tesouro Escondido), Meet the Ancestors (Conheça

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os ancestrais), Horizons (Horizontes), Time Team (Time do tempo), são alguns

dos programas de emissoras britânicas (BBC2, Channel 4, Channel 5) de maior

audiência na Europa. Tais programas, na visão de Fowler, somente contribuem

para a estereotipização da disciplina, trazendo imagens de diversão,

trivialidade, sagacidade e antiguidade, diluindo, como havia notado Anne

Pyburn em seu artigo já citado, a relevância social que a arqueologia possui.

Afinal, de maneira simples, podemos dizer que arqueologia na realidade não é sobre o passado, mas sobre o presente e o futuro; seu papel é mediar entre todos os três. Apenas tente dizer isso à mídia: rapidamente você será dito que “ISSO não é arqueologia” (Fowler 2007, p. 107 – ênfase no original).

Sobre essa questão, podemos tirar alguns comentários interessantes de

Cornelius Holtorf. O objetivo de suas duas obras é a compreensão da

arqueologia na cultura popular contemporânea (Holtorf 2005, 2007a). Em

Archaeology is a Brand! (Arqueologia é uma marca!), ele apresenta o caso da

presença arqueológica na TV em três países de sua familiaridade: Alemanha,

Inglaterra e Suécia, com comentários esporádicos sobre os EUA. Na Suécia

ele cita o caso de Göran Burenhult (Holtorf 2007a). Burenhult é um arqueólogo

da Universidade de Gotland, autor do mais importante manual de arqueologia

disponível em sueco, bem como de livros ilustrados para o grande público e

documentários entre os anos 1980 e 1990, que o tornaram o arqueólogo

profissional mais conhecido do país.

Não menos interessantes são os casos conduzidos por não-

arqueólogos, como na Alemanha onde os maiores sucessos arqueológicos na

TV foram escritos por uma jornalista, Gisela Grainchen. Seu programa C 14

agregava a metodologia de datação comum à arqueologia com revelações

sobre o passado feitas através dessa e de outras tecnologias. Seu outro

programa Schliemann’s Heirs (Os Herdeiros de Schliemann, fazendo alusão ao

conhecido arqueólogo aventureiro do XIX, Heinrich Schliemann) cruzou as

fronteiras nacionais, e alcançou outros países da Europa (Horltof 2007a). As

estimativas de audiência do C 14 são de que “até 1,7 milhões de espectadores

ligavam seus aparelhos de TV para cada episódio, correspondendo cerca de

10% do mercado adulto vital” (Holtorf 2007a, p. 34). Igualmente fascinantes são

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os números do programa britânico, Time Team (Time do Tempo), com uma

audiência regular de aproximadamente 3,4 milhões de espectadores em 2003

(algo entre 15-20% do mercado adulto, sendo 51% masculino e 56% entre 16 e

54 anos) (Holtorf 2007a – dados fornecidos para o autor pelo Channel 4).

São números assustadores, especialmente se você considerar que a série Big Brother do Channel 4, agora com a promessa de sexo real ao vivo (transmissão após as 22 horas), atraiu em maio de 2004 um numero similar de 3,3 milhões de espectadores, ou uma fatia do mercado de 15%! (Holtorf 2007a, p. 39).

A espantosa importância que a imagem arqueológica possui nessas

produções está, como afirma Holtorf, atrelada à sua imagem de exotismo,

aventura e descobrimento. Em um de seus artigos, o autor parece diagnosticar

que, antes de culpar a mídia por uma veiculação insana de nossa realidade,

devemos atentar para como nós mesmos estamos mostrando essa realidade.

Em “Um show de moda arqueológico” (Holtorf 2007b), ele fala sobre a imagem

televisiva do arqueólogo através de suas roupas. Geralmente, partimos do

princípio que alguns setores da vida acadêmica, a arqueologia inclusa,

permitem uma maleabilidade estética, ou seja, a moda fica a critério de cada

um. No entanto, ele constrói seus argumentos para mostrar que nem mesmo

nosso guarda-roupa é neutro.

Basicamente, seis são os modelos mais atuais: a seriedade

acadêmica/empresarial vestida de terno e gravata; o divertimento tatuado, com

piercing e roupas velhas; arqueólogos de contrato, “policiais da herança”

vestidos com capacetes de segurança e coletes protetores; e, claro, os

clássicos retro, explorador colonial (roupas e chapéu cáqui), aventureiro

sensual (jaqueta de couro, chapéu cowboy, shorts agarrados e corpos

voluptuosos) e cientista (terno, gravata, barba, cabelo emplastado, barba e

óculos).

Esses modelos podem ser encontrados geralmente nas passarelas da

Academia ou na empoeiradas transectas no campo. O autor não nega o certo

fascínio e furor que os modelos de campo causam na mídia. Ele apresenta o

exemplo do seriado britânico Time Team, já mencionado anteriormente como

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um dos mais famosos seriados arqueológicos na Europa: uma ode à lama e

sujeira, mas que direciona a atenção do público à etapa de campo, de maneira

atrativa (aventureira e científica), mas de real validade cognitiva, já que os

proprietários e trabalhadores dos campos onde trabalham deixam de perguntar

por “ouro” e passa a perguntar por “geofísica” (Holtorf 2007a,b).

Finalmente, acredito que a idéia central desse breve desfile é

argumentar que arqueólogos não são simples vítimas de um mundo onde a

moda está sempre a espreita por novos desfiles temáticos, eles são atores,

construtores e reprodutores de um estereótipo de sua profissão, e isso deve

ser mantido em mente quando se trata de aparecer nas câmeras (Holtorf

2007b). Arqueólogos, através do seu estilo se identificam (e são identificados)

mais com partes do processo arqueológico do que com os resultados de suas

pesquisas. Inclusive o público parece mais interessado no processo de

descobrimento do que no descobrimento. E acredito que o destaque à agencia

do arqueólogo na construção dessa imagem é verdadeira.

Por experiência pessoal, já compareci a reuniões com diretores de

empresas contratantes vestido à caráter de campo, pois acabávamos de sair

do trabalho e, de fato, não havia tempo de retornar ao alojamento para vestir-

me como manda o figurino empreendedor. No entanto, durante vários campos

já fomos (eu fazendo parte da equipe) para restaurantes e cafés imundos dos

pés à cabeça. Uma escolha baseada no “estamos com preguiça de voltar para

o alojamento e estamos com muita fome”. Claro, sensato. Mas não teríamos

nunca nos permitido romper com certos parâmetros de etiqueta se não

houvesse uma boa justificativa para tal: somos arqueólogos e tínhamos

acabado de sair do trabalho. Não somente essa conjuntura “emporcalhada” era

suficiente para convencer a mim e meus colegas: sabíamos que caso

sofrêssemos uma tentativa de escamoteamento, poderíamos dizer que “somos

arqueólogos e acabamos de sair de campo” para sermos salvos. Confiávamos

na imagem empoeirada e suada do arqueólogo.

Cabe ainda lembrar que, na perspectiva de Holtorf, muito do que surge

nessa imagem pop do arqueólogo é resultado de uma retroalimentação de

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romances e experiências arqueológicas do século XIX e começo do XX. Veja o

caso de Heinrich Schlieman e Howard Carter. Dois dos mais famosos,

prestigiados e históricos personagens de nosso ramo, cujas vidas

arqueológicas foram notoriamente, e realmente, exóticas! O achado de Troia e

a maldição da múmia! Mesmo se olharmos para nosso mais comportado

exemplo de personalidade arqueológica do começo do século XX, Mortimer

Wheeler, veremos que escavações se fazem no Oriente Médio, com dezenas

de auxiliares vestidos em roupas arábicas, trazendo a tona todos os tipos de

matérias de um passado longínquo e estético. São praticamente os modelos de

Alfred Kider, hairy chested (peito peludo) e hairy chinned (queixo peludo) (Kider

1949:XI apud Holtorf 2005, p. 42).

Diversas romances escritos foram produzidos a partir desse imaginário

arqueológico construído no final do XIX. Famosos romancistas como C. W.

Ceram (1949), autor de Deuses, Túmulos e sábios; Geoffrey Bibby (1957),

dinamarques, que escreve sobre sítios pré-históricos ao norte do Mediterrâneo,

o jornalista alemão Rudolf Pörtner (1959), pré-história e história da Alemanha,

bem como seu conterrâneo Phillip Vanderberg que recontou histórias de

descobertas na Grécia, Egito e Oriente Médio (Holtorf 2005, p. 56)

A idéia de cumplicidade não é necessariamente pecaminosa, no entanto,

mas sim uma tomada de frente aos perigos e vantagens dessa imagem. Como

extremo oposto ao caso Shiniche, os Timothy Clack e Marcus Brittain

apresentam um caso no qual o consumo da arqueologia pela mídia e pela

imagem pública criada também através de visitações, permitiram não só o

financiamento de pesquisas, mas também a revisão de um período pré-

histórico até então visto com preconceito. É o caso de novas descobertas no

sítio Jomon de Sanmai Maruyama, em 1994 que chamaram considerável

atenção da mídia jornalística. Com a abertura do sítio à intensa visitação e de

chamadas televisivas e jornalísticas, o Projeto conquistou financiamento

governamental para sua manutenção e estudos mais avançados do período

Jomon (até então mal-visto como nomadismo bárbaro) (Clack & Brittain 2007,

p. 37).

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Inclusive, Neil Ascherson aponta que a arqueologia, é muitas vezes mais

perspicaz no uso da mídia do o contrário (Ascherson 2004).

Uma velha prática já estabelecida é o patrocínio de jornais e outras mídias de expedições e escavações. Isso é barganha especulativa: nós financiamos nossas operações em retorno de direitos exclusivos para publicação de histórias e fotos que a escavação oferece. Em 1920, Mortimer Wheeler vendeu cobertura exclusiva de sua escavação no anfiteatro legionário romano em Caerleon para o Daily Mail, e alguns anos depois fez um acordo similar com Pathé Newsreels para financiar seu trabalho em Verulamium. No final dos anos 1960, The Observer era pelo menos um dos participantes no financiamento nas espetaculares escavações de Yagin Yadin em Massada, e colocou dinheiro da escavação de Cadbury Castle. The Sunday Times assinou embaixo e cobriu as sensacionais descobertas no sítio romano de Vindolanda e Fishbourne. A rede BBC investiu na escavação de um túnel investigativo embaixo de Silbury Hill, no complexo de Avebury, mas – para a irritação dos patrocinadores – praticamente nada ‘visual’ foi encontrado para justificar seus gastos (Ascherson 2004, p. 156).

Partindo dessas mesmas argumentações, vale nos estendermos ao seu

lado oposto: como a arqueologia e seus profissionais se portam quando de sua

responsabilidade sobre o discurso da mídia?

Não devemos esquecer que a arqueologia em sua história disciplinar já

fez parte de movimentos de suporte a movimentos nacionalistas e regimes

totalitaristas, exercendo cargo de reificador do heróico e mítico passado

ancestral, dos genes das nações de seu tempo (Arnold 1996, Fowler 1987,

Trigger 1984). E continuam sendo usadas, como argumento aqui. A presença

regular em jornais e revistas das novas descobertas da arqueologia continuam

sedimentando o papel da disciplina como viabilizadora da postura nacionalista:

“arqueólogos descobrem o mais antigo”, “o maior”, “o mais valioso”, “tal qual

nunca visto antes” (Ascherson 2004).

Timothy Clack e Marcus Brittain abrem seu livro justamente no ponto

paternalista e hierárquico através do qual a arqueologia teria se relacionado

com sua audiência (Clarke; Brittain, 2007, p. 12). E com o passar dos anos e o

advento de novas propostas teóricas, a diferença entre o popular e o educativo

não mais se guiam por suas configurações e objetivos sobre as quais são

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preparados cada tipo de comunicação. O problema, ressaltam os autores, está

na pausa que a produção do conhecimento faz quando chega ao público. A

questão deve tomar outro rumo, na medida em que a diferença na história que

contamos a nós mesmos e que contamos aos outros não está no tipo, mas no

nível da história.

Quanto a isso, concordo com a continuidade do conhecimento, mas

discordo sobre onde exatamente está a distinção entre arqueológico e não

arqueológico. A meu ver há sim uma diferença de tipo talvez mais do que nível

entre o discurso acadêmico e os demais. Ou pelo menos em distintos casos.

Se encararmos a mídia como espaço comunicativo através do qual até mesmo

as imagens mais banais podem despertar emoções subversivas no espírito

humano (Eco 2001), não acredito ser possível assistir ao ato comunicativo

como simples nivelação, quando ele pode estar sendo apreendido de uma

maneira completamente distinta daquela que o enunciador pretendia. Vejo que

seu nível só pode ser identificado dentro de um enunciado entre indivíduos ou

grupos que fazem parte de um mesmo sistema comunicativo. Ou seja, a meu

ver, para que um enunciado seja distinguível por nível ele deve ser

primeiramente emitido por uma parte e compreendido pela parte interlocutora

dentro do mesmo tipo.

Retomando a argumentação de Timothy Clack e Marcus Brittain,

concordo que a produção do conhecimento arqueológico não deve parar no

momento em que chega ao público.

Primeiro, esse é um meio através do qual problemas criados pela demarcação Popperiana entre o que constitui a ciência e a não-ciência são evitados. Segundo, as fronteiras entre campos disciplinários ficam alocadas de maneira fluida para intersecções entre considerações multidisciplinares e abordagens de questões específicas. Terceiro, a natureza recursiva da comunicação arqueológica está aberta para analise e consumo (Clack & Brittain 2007, p. 33).

Timothy Taylor (2007) possui uma interessante provocação nesse

sentido. Seu artigo faz uma comparação entre televisão e arqueologia referente

à suas diretrizes banais. A TV, com suas novelas, seriados e personagens

quase mitológicos, pretende mostrar-nos uma parcela do cotidiano tal como

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gostaríamos que ela fosse: o bem triunfando sobre o mal (ambos reconhecíveis

por caráter bem definido), as provas de amor, o rico generoso, o rico avarento,

pobre feliz, o pobre ambicioso. Não diferentemente, a arqueologia também

trabalha para criar uma experiência do cotidiano do passado. E da mesma

forma, se constrói sobre um banal que enquadra não o passado como poderia

ser, mas um passado que parece confortável à nossas próprias visões de

mundo forjadas pela parcimônia científica.

Seu desgosto com essa parcimônia científica aparece quando suas

propostas interpretativas sobre o canibalismo em tribos Citas durante a

ocupação dos arredores do Mar Negro é rechaçado por diversas revistas

científicas.

Ao contrário, espera-se que acenemos com a cabeça em sábia concordância nesse ponto, aliviados que o autor não nos exigiu dar esse salto desconfortável em nosso convencional e caseira compreensão de nós mesmos como humanos (Taylor 2007, p. 198).

A chamada de Timothy Taylor está mais para a possibilidade que a TV

pode nos oferecer a uma visão do passado de um tipo diferente daquela

prerrogativa parcimoniosa da academia. Não que a TV seja livre de

preconceitos, mas são, enfim, outros preconceitos. O que o autor faz é

exatamente nivelar o discurso televisivo ao acadêmico, deixando claro que, no

entanto, cada um traz consigo uma posição interpretativa diferente sobre o

mundo, e que atentar para a visão do outro pode nos abrir muitas portas. Não

se trata de uma questão de diferentes níveis, mas sim de diferentes tipos.

Comecei esse artigo dizendo que a banalidade era provavelmente o ponto de similaridade mais interessante entre arqueologia e televisão. Despe o banal de suas conotações pejorativas e ele se torna o que a sociedade normalmente espera – seu lugar comum. (...) Certamente há universalidades (ou quase universalidades) no que é verdadeiro sobre as pessoas, mas o que é mais interessante na arqueologia – tanto para nós praticantes quanto para o público em geral – é a patente e inegável diferença que ela continuamente revela (Taylor 2007, p. 200).

Talvez seja o caso de buscarmos o meio-termo, não por clichê, mas pela

mediação. O meio-termo não seria o nirvana, o perfeito equilíbrio entre A e B,

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entre o anti e o pró, mas sim o termo de onde podemos nos articular entre antis,

prós, contras, semi-contras, semi-antis, semi-prós, indefinidos, redefinidos e

assim por diante.

Mais uma vez busco auxílio nos argumentos de Umberto Eco (2001),

que considera que o pecado não reside na mídia de massa em si, mas na

permissividade de um “livre cambismo” cultural. Retomando as acepções

brevemente levantadas sobre apocalípticos e integrados, Eco direciona seu

olhar crítico à ambos.

O erro dos apologistas é afirmar que a multiplicação dos produtos da industria seja boa sem si, segundo uma ideal homeostase do livre mercado e não deva submeter-se à uma crítica e a novas orientações.

O erro dos apocalípticos-aristocráticos é pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por ser um fato industrial, e que hoje possa ministrar uma cultura subtraída ao conhecimento industrial. (Eco 2001, p. 49).

Retomando a crítica de Peter Fowler à sede midiática pelo fantástico, é

recorrente a situação na qual o arqueólogo se posiciona como um

pesquisador/indivíduo subjetivo e esperando que suas interpretações mostrem

apenas uma possível diversidade no passado ao invés de uma verdade

inalienável, e acaba sendo rechaçado com o comentário de que “isso não é

arqueologia”. Ou seja, estando a cultura popular imersa nessa realidade

irreverente da qual a arqueologia faz parte, fica difícil nos posicionar como

indivíduos ativos na sociedade. Em alguns momentos, a própria mídia é

inflexível ao diálogo com a arqueologia. Tente dizer que a arqueologia faz-se

desde o presente. Que não existe verdade sobre o passado, e que a

arqueologia tem se esforçado, na realidade, com maneiras de mostrar que o

próprio passado era tão diverso quanto o presente. Tente mostrar o quanto

podemos contribuir para um presente mais tolerante através de imagens do

passado mais múltiplo. Enfim, tente dizer que Palmares era um espaço de

multiplicidade étnica, e não só um Estado Negro41.

41

Retomarei o tema no próximo capítulo.

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Mas, não acredito que a provável falta de ouvidos do jornalismo deva

impedir que o arqueólogo tome essa posição, e tente expor sua pesquisa e

postura social da maneira mais coerente possível (não se esquecendo do

público ao qual se direciona). Responder com birra a qualquer falha de

comunicação ou má vontade pessoal não parece uma solução que leve a

algum lugar. Afinal, se mudar um paradigma social sobre a realidade fosse fácil,

não seriam necessário movimentos internacionais nem uma grande área

conhecida como “Ciências Humanas”. Além disso, o jornalismo é apenas umas

das formas de comunicação em grande escala. O cinema, os livros, as artes

visuais, as artes plásticas, todas oferecem formas diferentes de expressão,

comunicação e construção de conhecimentos baseados nos dados

arqueológicos.

Eco faz o certeiro apontamento de que o erro está, a seu ver, em

imaginar que possamos lidar com uma realidade diferente que a de cultura de

massas.

A falha está em formular o problema nesses termos: “é bom o mau que exista cultura a de massas?”

(...)

Quando, na verdade, o problema é: “do momento em que a presente situação de uma sociedade industrial torna ineliminável aquele tipo de relação comunicativa conhecido como conjunto dos meios de massa. Qual a ação cultural possível a fim de permitir que esses meios de massa possam veicular valores culturais” (Eco 2001, p. 50).

Para dar um exemplo de filmes, talvez

um dos mais interessantes já feitos sobre

arqueologia seja O Corpo (2001), filme de

Jonas McCord estrelado por Antonio

Banderas e Olivia Williams. Apesar de seu final um tanto apaziguador (ficou

clara a intenção de evitar atritos com o Catolicismo), o filme apresenta mais a

força política do trabalho arqueológico do que um clichê aventureiro (explosões

e assassinatos a parte). Sim, a arqueóloga possui uma personalidade tensa,

Nem apocalípticos, nem integrados. O público não-arqueológico irá re-interpretar e se re-apropriar do conhecimento arqueológico. Abordar o público através das visões criadas pela mídia, sem fugir da crítica que a ética profissional nos encarga, pode ser uma maneira muito mais efetiva (justamente porque é afetiva) de conectar-se ao público.

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nervosa, bruta e judia, e finalmente é domesticada e acalmada pelo bom padre

romano. Mas a imagem da arqueologia em campo não segue o necessário

movimento épico colonialista (repito, a arqueólogA é judia) e apresenta etapas

bem próximas à realidade arqueológica: exploração de diversos métodos

científicos para a compreensão da materialidade envolvida, as dúvidas

envolvidas na interpretação, as relações políticas envolvidas no processo, o

proprietário do terreno escavado francamente insatisfeito e um antropólogo

físico americano nada sexy, mal acostumado à trabalho fora do seu laboratório.

Concordo com Yamin e Cook quando dizem que

arqueólogos não podem competir com o drama das telas, nem podemos corrigir o que supostamente seria a verdade literal, para começar. O que de fato temos é a habilidade de comunicar a complexidade do passado que derivamos da arqueologia (Yamin & Cook 2007, p. 173).

A proposta que tem sido levantada pela literatura mais crítica sobre

arqueologia e mídia, e que acho mais proveitosa para a arqueologia pública, é

que própria arqueologia tem uma imagem a oferecer.

Isso talvez possa explicar, pelo menos em parte, porque o “produto” arqueologia goza da popularidade que possui. Ela oferece, e é vista como ofertadora, experiências valorizadas por muitos. Visitar um museu arqueológico ou um sítio de escavação pode ser sobre arte antiga e educação sobre o passado, sobre construções geralmente idílicas do cotidiano no passado e reassegurar-se sobre sua terra natal42, ou sobre tecnologia computacional moderna, e caça ao tesouro no espírito de Indiana Jones (...). Em cada caso, é uma experiência particular no presente que conta sobre o interesse das pessoas no passado (Holtorf 2007a, p. 4).

Apesar de não haver modo direto de controlar o destino figurativo de

nosso discurso fora de nosso meio (controle do qual nos vemos privados

muitas vezes dentro de nosso próprio meio), o discurso que é gerado a partir

do trabalho arqueológico ainda é nossa responsabilidade. Ignorar o que é dito

sobre nós nos veículos de comunicação é dar as costas para as possibilidades

42

No original, home village, “Vila natal”, “vila na qual nasceu”, “considerada como casa”.

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que temos de saber como esse discurso está sendo reaproveitado e como está

impactando paradigmas sobre a realidade social.

Se de fato o arqueólogo quer tomar o controle da imagem que se

constrói sobre ele fora de suas bordas disciplinares, não adianta negar ou

condenar uma prática inevitavelmente existente e corrente. A alienação não

altera a equação: “o silencio não é protesto, é cumplicidade; o mesmo

ocorrendo com a recusa do compromisso” (Eco 2001, p. 52).

Já está na boca do povo há muito tempo: “Quem cala, consente”.

3.3.2. Alcance e Educação

Nesse item, minha preocupação foi tentar entender uma das nuances

pelas quais se esboçam os trabalhos de arqueologia pública na

contemporaneidade, o que me parece muito bem definido na literatura em

língua inglesa como public outreach (alcance público, atingir as pessoas).

Muitos trabalhos denominados de arqueologia pública envolvem projetos em

que a arqueologia procura divulgar seu conhecimento para o público leigo.

Nesse processo, a disciplina se mantém como referencial de produção do

conhecimento, mas procura ao máximo aproximar-se do público com o objetivo

de democratizar o conhecimento produzido.

Essa abordagem envolve atuações que poderíamos definir como de

“extensão”: abertura de espaço para trabalho voluntário, produção de

bibliografia específica para um grupo não acadêmico, educação patrimonial,

cursos de treinamento e capacitação de professores e público em geral,

exposições museológicas. Uma das principais críticas a essa perspectiva, é à

sua maneira de proceder. Muitas vezes, o aproximar-se do público nada possui

de cuidadoso, sendo apenas mais uma maneira de disseminar o conhecimento

arqueológico como paradigma histórico e perpetuar sua preocupação com a

preservação patrimonial. Em contrapartida, vários trabalhos têm-se

apresentados como realmente preocupados em contribuir com as

necessidades do público na medida de suas demandas.

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A escolha pela abordagem dessa expressão da arqueologia pública foi

feita pela polêmica de sua aplicação. Não poderia esquecer que essa

perspectiva tem aparecido muito em trabalhos de licenciamento arqueológicos

no Brasil, conhecidos como “educação patrimonial”. Os trabalhos de educação

patrimonial no Brasil são obrigatórios por lei em todas as consultorias de

licenciamento ambiental (que veremos com mais detalhes no próximo capítulo).

As discussões sobre educação patrimonial no Brasil têm seguido a mesma

linha que se pretende analisar aqui: quais os benefícios e impactos do

conhecimento arqueológico para a população local, e como esse conhecimento

está sendo transmitido ao público.

De fato, parte da bibliografia sobre o tema dedica-se à postura de

arqueologia pública como as discussões relativas aos melhores métodos de

fazermos o público entender o valor da arqueologia na vida cotidiana através

da educação patrimonial (McManammon 2002) e sua importância na

autenticação e no fornecimento de interpretações válidas do passado (Little

2002a, 2002b; Lipe 2002). A divulgação de todos os benefícios da disciplina

arqueológica e o estudo de como fazê-la mais eficiente pelo bem da disciplina

e da proteção patrimonial não me parecem ser um caminho que vá muito além

de publicidade. Não pretendo menosprezar a importância da propaganda para

a arqueologia, a exposição da própria disciplina e de seu funcionamento, bem

como resultados para a sociedade. No entanto, não me parece caso de

discussão sobre postura política e promoção da diversidade social tanto quanto

discussões sobre as melhores maneiras de vender seu próprio peixe.

Acompanhando minha argumentação sobre a origem da arqueologia

pública, cito John Jameson Jr. (2004) sobre a educação arqueológica e

programas de alcance público que começaram com força nos Estados Unidos

entre os anos 1980 e 1990, quando os profissionais perceberam que não mais

poderiam se ausentar de “mecanismos e programas que tentassem transmitir

informação arqueológica para o público leigo” (Jameson Jr. 2004, p. 50). Já

Karolyn Frost argumenta que a arqueologia saiu de seu casulo quando

percebeu que não mais poderia “nem fazer sozinha, nem forçar com a ajuda da

legislação – a preservação de vastas quantidades de recursos culturais que

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estão tanto acima quando abaixo da terra por todo o continente” (Frost 2004, p.

60). Essa perspectiva educacional surge após o aumento considerável de

políticas estatais (e internacionais) para a preservação do patrimônio

arqueológico dos anos 1960 e 1970. Foi um momento em que a arqueologia se

deparou com a dificuldade de, sozinha, zelar pela integridade dos recursos

agora disponíveis. Igualmente, foi o momento em que muitos governos

começaram a colocar em pauta a dúvida sobre financiar trabalhos que não

trariam benefícios econômicos diretos (Colley 2002).

No entanto, penso que antes de fazer da sociedade polícia do patrimônio

arqueológico, existem outras propostas de aprendizagem e intercâmbio de

conhecimento que se aproximem da afinidade que o público não arqueológico

desenvolva com determinado lugar. De acordo com Ana Maria R. Gomes

(2006), nos anos 1970 a antropologia da educação ingressava como setor

acadêmico nos Estados Unidos e

tiveram como estímulo determinante a necessidade de contrapor-se ao modelo explicativo prevalente na época sobre os problemas de escolarização das minorias étnicas, ou seja, contrapor-se ao modelo da privação cultural, à noção de déficit cultural e aos desdobramentos em termos de uma pedagogia compensatória (Gomes 2006, p. 317).

A proposta adotada pela autora visa a resolução de problemas na

análise do desempenho escolar de minorias étnicas, com particular atenção

aos Xakriabá. Gomes defende a importância da antropologia da educação no

reposicionamento da escola dentro de um sistema educativo: ela deixa de ser o

único contexto de aprendizagem e, portanto, deve ser estudada em conexão

com as demais instituições e processos associados às dinâmicas educativas

de diferentes grupos sociais (Gomes 2006). Isso nos abre uma possibilidade

fundamental na discussão sobre diversidade de saberes, pois antes de

falarmos em dificuldades individuais (déficit cultural), teremos que falar “no

campo das diferenças coletivas na forma de viver e interpretar a experiência

social” (Gomes 2006, p. 318). E somente aí, a meu ver, podemos fazer da

educação uma ferramenta de libertação (Freire 1987). Buscar a compreensão

dos mecanismos de aprendizado do outro, suas necessidades e interesses, e

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por quais movimentos nossos parâmetros cognitivos podem se comunicar é a

única maneira de romper com a barreira entre educador e educando.

A partir daí, penso que teremos atividades de educação patrimonial que

não pretendam apenas conquistar adeptos e criar guardas patrimoniais, mas

que respeite a diversidade de experiências. Tim Copeland escreve sobre a

aplicação do método construtivista em um caso arqueológico, partindo do

pressuposto de que o aprendizado é um veículo muito mais eficaz quando

ocorrem “dissonâncias cognitivas”, ou seja, quando há conflito entre o que se

considerava fato estabelecido e uma nova informação (Copeland 2004, p. 134).

Tomando parte da proposta educativa, o autor acredita que o construtivismo é

um meio muito adequado de abordagem justamente por considerar o

conhecimento prévio do interlocutor, opondo, no caso, a “perspectiva do

visitante” à “perspectiva da exibição” que seria a interpretação arqueológica

(Copeland 2004, p. 135).

Seu texto é uma excelente reflexão sobre esses dois processos

cognitivos e aborda uma questão básica sobre trabalho de campo. Como a

visita ao sítio arqueológico deveria ser encarada pelo arqueólogo? Opondo-se

à idéia que julga positivista em que a arqueologia deve apresentar de maneira

clara e precisa qual é seu ponto de vista, ele opta por pesquisas que apóiam

reflexões fenomenológicas e construtivistas. Os resultados apresentados em

alguns casos que tem mostrado como uma recepção dialógica do visitante não

é uma experiência vazia.

Encorajar e aceitar iniciativa de visitantes (...); Usar fontes primárias junto com materiais manipuláveis (...); Usar interpretações que peçam ao visitante para classificar, analisar e criar (...); Usar as respostas dos visitantes como motores de interpretação (...); Perguntar sobre a compreensão que o próprio visitante possui de conceitos antes de apresentar sua interpretação (...); Encorajar visitantes a dialogarem tanto com os especialistas quanto entre si (...); Encorajar visitantes fazendo perguntas atenciosas, de mente aberta e encorajando os visitantes a fazerem perguntas entre si (...); Procure elaborações das reações iniciais dos visitantes à evidência (...); Engajar visitantes em experiências que possam gerar contradições às suas hipóteses iniciais e encorajar discussões (...); Permita espaços de tempo para a formulação de questões e para a construção de relações e metáforas por parte dos

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alunos (...) (Brooks & Brooks 1993 apud Copeland 2004, p. 140-142).

Em poucas palavras, a proposta é abrir mão da autoridade cognitiva

sobre o sítio e tomar a postura de mais um dos interessados em pensar sobre

ele. Não se trata de um pedido de abandono do conhecimento arqueológico,

mas de abertura a outras propostas que não tenham vindo necessariamente do

mesmo background. É uma experiência que pode terminar em lugar nenhum,

com o visitante entediado e cansado do sol e da poeira sem haver conquistado

o menor apreço por fazer buracos no chão (seja lá qual for a razão dos buracos

no chão). Mas a proposta não é convencer o público de que arqueologia é a

melhor atividade do mundo, mas sim dar abertura para outras interpretações do

passado e outras experiências no momento presente daquele espaço.

Devemos levar em conta, no entanto, que ter montado um sítio arqueológico já

é em si uma forma de interpretar o passado e de influenciar a percepção da

paisagem.

De qualquer maneira, uma vez já aberto, a proposta apresentada por

Copeland permite uma construção mais democrática do passado e uma

experiência mais diversificada do processo arqueológico. Abrir-se para uma

experiência fenomenológica não é só fornecer bom entretenimento ao público,

é abrir-se para o questionamento do público, permitir que ele se insira (veja

bem, “ser inserido” é diferente de “inserir-se”) na metodologia e processo

cognitivo usado pela arqueologia em suas interpretações: abrir a caixa-preta.

Isso exige um reconhecimento de que a experiência e conhecimento do(a)

arqueólogo(a) diferem da experiência e conhecimento do visitante, ao contrário

de abordá-lo como um estranho ao processo, cujo nível de apreciação

científico é inferior ao seu e, portanto precisa ser suprido.

Neil Faulkner defende que o trabalho voluntário na arqueologia pode ir

além de uma proposta de alcance do público, sendo a real saída para uma

arqueologia que venha de baixo (Faulkner 2004). As diversas experiências que

antecedem os participantes levam a interpretações múltiplas sobre as mesmas

descobertas feitas em campo e, se permitido pelo arqueólogo responsável,

podem ser a faceta de uma arqueologia socialista (Faulkner 2004).

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Em 2006 durante o estágio de licenciatura no meu curso de História,

fomos (eu e uma colega) falar sobre arqueologia para uma classe de 5ª série,

ensino fundamental de um colégio particular dos mais prestigiados de

Campinas/SP (do tipo que se esperava produzir os políticos da próxima

geração). Em uma sala de aula com 30 alunos, começamos a falar sobre a

arqueologia nos tempos de hoje, sobre a importância de que o arqueólogo seja

conectado com o mundo presente e não se afogue apenas em suas coleções e

peças, a importância de que seus achados sejam expostos ao público, não

ficando apenas fechadas em prateleiras de reservas técnicas.

Tamanha foi nossa surpresa quando uma das apresentações dos alunos

sobre arqueologia, ao reproduzir nosso discurso quase em sua integridade,

apresenta uma foto de peças arqueológicas em prateleiras de uma reserva

técnica como atitude reprovável. Tanto eu quanto minha colega, ficamos

perplexos com a tomada literal de nossa tão “inocente” metáfora.

Se olharmos para essa situação pelo viés de uma diferença de nível,

poderemos resolver a questão simplesmente entendendo que houve uma falha

de comunicação entre o nível acadêmico do qual partimos e o nível

fundamental da educação infantil na qual se encontravam nossos interlocutores.

Nós, que já sabíamos que usávamos uma linguagem figurada e que, mesmo

ressaltando a importância da exposição pública, as reservas técnicas são parte

do trabalho arqueológico, deveríamos ter deixado mais claro nosso ponto de

vista metafórico às crianças. Afinal, estamos em níveis diferentes. Inclusive,

podemos pensar que esse foi o ponto de partida dos infantes quando tentaram

ao máximo reproduzir na íntegra nosso discurso: “eles são alunos de faculdade,

estão mais avançados nos estudos e temos que aprender o que vier deles para

um dia também estar no mesmo patamar”. Aqueles alunos estão todos em fase

de preparo para a vida adulta, e pretendem seguir passos comuns aos

professores e estagiários: arranjar um emprego, passar no vestibular, escolher

uma área de atuação, tornar-se um membro de grupo social específico, ser um

cidadão ativo. Ou seja, há uma relação de nível se partirmos do pressuposto

que, em determinada relação, um dos indivíduos possui certo conhecimento

que o outro indivíduo almeja (seja lá qual for a razão): um aprendizado.

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No entanto, não acredito que a visão sobre o passado possa ser

colocada nesse mesmo patamar. Ou melhor, nosso interesse aqui é para a

atenção a diferentes formas de ver o passado, e não de formas “mais ou

menos evoluídas” de ver o passado.

Se observarmos pelo detalhe de que o enunciado foi praticamente o

mesmo em ambos os pronunciamentos, a perspectiva aparenta ser mais

interessante. Enquanto pronunciávamos uma metáfora, eles compreenderam

uma imagem literal. E quando pronunciaram sua mensagem literal, ficamos

confusos e fomos forçados a pensar no que seria possível apreender desse

diferente tipo de interpretação do enunciado. De fato, após a aula, ficamos

discutindo sobre o papel das reservas técnicas em um a arqueologia

preocupada com a interpretação e com o acesso público. Ou seja, para que

continuar a aumentar coleções fechadas? Seria melhor pararmos de escavar?

Não seria melhor trabalhar com exposições e contato direto com o público nos

sítios? Não seria melhor levar adiante as sugestões da arqueologia paisagística

e chamadas sócio-ambientais para escavar o menos possível? Será que já

estamos tomando essa postura? Foi uma interessante volta para casa.

O despertar de dúvidas não seria possível em uma relação de distinção

nivelar, pois a aproximação tenderia para certo paternalismo: “eles estão num

nível mais baixo, por isso não entenderam”; ou até mesmo “precisamos tomar

cuidado com o que falamos, pois eles estão em um nível diferente”. Agora,

“Será que estamos mesmo indo por esse caminho? Mas os museus e reservas

não estão cada vez mais cheios? Não seria melhor passar a adotar condutas

menos intervencionistas?” só seria possível se reconhecêssemos naquele

discurso um nível similar, de igual patamar de consciência e preocupação com

a realidade, uma diferença de tipo; uma outra opinião a ser levada em conta.

Repito, tanto no nivelamento quanto na tipologia é possível o

reconhecimento do estranhamento discursivo. E mesmo a tentativa de correção

desse estranhamento para que ambas as partes possam se entender melhor.

No entanto, o reconhecimento e validade da alteridade só é possível se

encararmos falhas na comunicação, antes do nível, como um possível

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90

problema de tipo. Retomando as argumentações de Ana Gomes (2006),

devemos reconhecer uma distinção cultural antes de um déficit a ser suprido.

Por mais que as crianças estejam matriculadas numa cadeia de ensino

progressiva, não devemos ignorar suas sensibilidades e perspectivas. O

exemplo de Copeland (2004) caminha na mesma direção, quando reconhece

que diferentes indivíduos (sejam adultos ou crianças) possuem modos distintos

de entender, reconhecer e sentir o presente e o passado.

Talvez esse seja o principal problema da educação patrimonial aplicada

em projetos arqueológicos. Não se encara o público não-arqueológico como

observador consciente de seu entorno; Pelo contrário, há o costume de encará-

lo como um deficitário da mirada precisa do arqueólogo. No entanto, me parece

óbvio que nem todos possuam a mirada precisa do arqueólogo. O que pode vir

a ser um grande equívoco, como vimos no item anterior: o público muitas vezes

possui um conhecimento arqueológico tal qual divulgado na mídia, podendo ou

não ter alguma compatibilidade com o discurso arqueológico acadêmico. Ou

mesmo não ter interesse algum em adotar a mirada do arqueólogo, como

argumentou Brian Fagan (1977).

Voltando ao texto de Tim Copeland, um esquema por ele apresentado

Copeland (2004, p. 136) parece desencontrar em parte de sua postura

construtivista. Tal esquema mostra com perspicácia a complexidade da

interação entre ciência e público, e como essa interação pode contribuir não só

para o conhecimento leigo do processo de produção científica, mas também

para a própria ciência que, sob os olhos do outro sofre uma crítica externa. No

entanto, penso que seja errôneo partir do princípio de que é apenas através da

arqueologia que o público toma contato com o lugar que passa a tratar como

sítio arqueológico. Não há dúvidas de que é unicamente através da arqueologia

que o leigo toma contato com o sítio arqueológico, já que este é uma criação

arqueológica. Mas antes de ser sítio, retomo meu argumento, o espaço pode

ser qualquer outra coisa com a qual a comunidade já teve contato e com o qual

pode ter desenvolvido algum tipo de relação. Relação da qual o público se

torna especialista, e não leigo.

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91

Não é incomum, pelo contrário é quase norma, a freqüência que sítios

arqueológicos são encontrados ao acaso por agricultores, jardineiros,

veranistas em passeio ao campo, mergulhadores. Tanto é que o Reino Unido,

a modo de exemplo, sentiu a necessidade de criar políticas de registro e

portabilidade legal de antiguidades e

vestígios arqueológicos encontrados por uma

horda de “detectoristas de metal” que fizeram

moda no lazer dos anos 1990 (Bland 2004)43.

Meu ponto é que não há porque

esperarmos que o público entenda

arqueologia como entendemos. Tampouco há

razões para forçarmos nossa compreensão

da realidade antes de procurarmos entender qual a bagagem que eles

possuem. Tanto por uma questão de ética e respeito à diversidade cultural

quanto pelo proveito que a interdisciplinaridade na qual se baseia a

arqueologia: Sempre vale a pena conferir se há algo mais entre o céu e a terra

do que pode imaginar nossa vã filosofia.

Nick Merriman (2004b) possui um texto no livro de sua edição em que

apresenta uma série de temas relativos à musealização e o contato com o

público. Sua primeira observação é de que no Reino Unido, “visitar museus e

galerias como um todo é uma atividade mais popular que assistir a jogos de

futebol ou qualquer outro evento esportivo ao vivo” (MORI/Resource 2001:7

apud Merriman 2004b, p. 85). Não só por ser uma atividade de entretenimento,

mas

Museus são representações midiáticas poderosas porque elas lidam com o próprio material sobre os quais repousam reivindicações de identidade e verdade. Sua concretude, sua posse da “evidência”, seu status oficial e sua associação com a Academia44, dão ao Museu maior autoridade e reivindicações à verdade que qualquer outra mídia. (Merriman 2004b, p. 86).

43

Veremos um caso similar à arqueologia subaquática no último capítulo.

44 No original, Scholarship, definido pelo Dictionary.com (2010) como 1. learning; knowledge acquired by

study; the academic attainments of a scholar./2. a sum of money or other aid granted to a student,

Seja qual for a proposta de alcance público, enxergar os não-arqueólogos como culturalmente diferentes, ao invés de culturalmente deficitários, é a única maneira de criar uma educação libertária e produzir uma experiência do passado e presente que responda às necessidades do(a) arqueólogo(a) e do público.

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92

Os museus possuem a materialidade do passado, assumindo assim um

papel muito semelhante ao sítio arqueológico: o receptáculo dos vestígios do

passado, das provas de outrora, da verdade agora revelada. Sua importância

tem sido atribuída muito mais ao seu “papel simbólico como repositórios da

matéria-prima sobre a qual a identidade é fundada” (Merriman 2004, p. 86-87)

do que em seu valor educacional.

Além da difusão via web, uma das pedagogias mais comuns é mostrar o

que está “por trás da cena”. No Museu Nacional de Gales, uma atividade

específica consiste em vestir um de seus funcionários como um indivíduo pré-

histórico, descrever à audiência suas roupas e acessórios. Os mesmos

espectadores ajudam a “enterrá-lo” numa caixa com fundo falso. Uma vez

dentro da “tumba”, o protagonista é trocado por um verdadeiro esqueleto, e a

audiência é convidada a discutir sobre alterações que o tempo causou à cultura

material associada ao enterramento (Merriman 2004b, p. 92).

Seguindo uma metodologia semelhante de contato direto, as “mãos no

passado” representam outra tentativa de inovação museológica. Basicamente,

é a tentativa de apresentar a materialidade a crianças e adultos através da

experiência táctil (tocando os objetos). Como não poderia ficar de fora, Nick

Merriman cita algumas propostas em que o material arqueológico deixa o

espaço do Museu e destina-se ao contato mais distante. As loan boxes,

conhecidas por nós como “kits arqueológicos”, são bens muito requisitados que

propiciam uma vivência com o objeto fora do espaço do Museu. Existem

também meios de levar o museu até o público através da movimentação das

coleções por outros espaços, como Shoppings, aeroportos, pubs ou mesmo

escritórios erguidos em sítios arqueológicos (Merriman 2004b). Alguns museus

do Reino Unido apresentam os Museums on the move (Museus em

movimento), caso dos Serviços de Museu de Shropshire, Herefordshire e

Worcestershire.

because of merit, need, etc., to pursue his or her studies. /3. the position or status of such a student./4. a

foundation to provide financial assistance to students. Optei por uma tradução que mantivesse o peso

institucional do conhecimento.

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A primeira exibição, ‘Munch!45: uma curta história da comida através dos anos’, incluiu material arqueológico, e apresentou material arqueológico real manuseável e replicas de objetos, ‘caixas de pegar’ e ‘caixa de cheiro’, fitas, vídeos, e um interprete a bordo que poderia responder perguntas (Merriman 2004b, p. 96).

Essas estratégias de alcance público pelos museus passam por uma

discussão crítica em seu texto. Em primeiro lugar, o entretenimento e estética

de apresentação sugeridos logo no início dos anos 1960 e 70 e levada a cabo

em Museus como o de Londres e Jorvik Centre, são criticadas por proporcionar

uma visão muito confortável e nostálgica do passado, geralmente a favor de

uma perspectiva histórica das classes dominantes (Merriman 2004b). Inclusive,

já na virada da arqueologia pós-processual Michael Shanks e Christopher Tilley

fazem um ataque muito feroz a esse tipo de exposição museológica pela

“cobertura estética” que coloca sobre o processo de construção do

conhecimento arqueológico, já que a exposição apresenta nada mais que o

resultado pronto (Shanks & Tilley 1992).

Em segundo lugar, a iniciativa digital promove de fato um alcance

fenomenal inerente à condição conectiva da internet, como já foi argumentado.

No entanto, questiona-se se essas ilustrações virtuais provêem uma

acessibilidade à coleção maior do que as velhas imagens em livros (Merriman

2004b, p. 91). Em terceiro lugar, nos exemplos “dos bastidores”, nada é

argumentado a não ser o suposto processo de decomposição do material que

vestia o guerreiro escapulido pelo fundo falso. Projetos de “mão na massa” não

podem ir muito além se tudo o que fazem é dar objetos para que o público

passe a mão. Além disso, não há uma real medida sobre o quão instrutivo

esses modelos de abordagem pública possam ser (Merriman 2004b).

Como um exemplo diferenciado de atividade museológica, Merriman cita

a exposição do Museu de Londres que entre 1993 e 1994 desenvolveu um

projeto chamado “O Povoamento de Londres”, cujo mote era a diversidade

45

Optei por deixar o original por falta de vocábulo em português que mantivesse o sentido e a estética

monossilábica da chamada do projeto. De acordo com o Dictionay.com (2010), munch é definido como 1.

to chew with steady or vigorous working of the jaws, often audibly.

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94

étnica que teria constituído o povoamento da cidade, a partir de fontes

materiais e escritas.

Quase 100.000 pessoas visitaram a exibição durante seus seis meses, e pesquisas junto com outras técnicas de avaliação demonstraram que a exibição conseguiu atrair uma nova audiência para o Museu, com 20% dos visitantes descrevendo-se como pertencentes à uma minoria étnica, comparado com os 4% anteriores à exibição. (Merriman 1997 apud Merriman 2004b, p. 98).

O estudo apresentado por Sally McDonald e Catherine Shaw sobre o

interesse do público nos temas egípcios foi em decorrência de uma pesquisa

feita pelo Museu Petrie da UCL apresenta questões, grupos focais e resultados

muito interessantes. A pesquisa consistiu em questionários aplicados a grupos

determinados de acordo com um critério de “público conhecido”, “público

potencial”, “entrevistas selecionadas” e “grupos focais”. Aos dois primeiros

foram aplicados questionários sobre temas de interesse em egiptologia,

diferente dos “entrevistados selecionados” e dos grupos focais (que participam

de discussões). Os primeiros foram os “amigos dos museus”, associação de

freqüentadores e seguidores das atividades do museu; o segundo grupo eram

escolas do ensino fundamental próximas à Londres Central (local do Museu),

dos quais responderam professores e não alunos; o terceiro grupo representou

uma soma de 24 indivíduos entrevistados que possuíam conhecido interesse

em egiptologia, sendo três egípcios, cinco negros não egípcios e os demais

brancos; o quarto foi composto por jovens mochileiros e adultos que já haviam

ido ao Egito através de cruzeiros, e outros dois grupos de indivíduos entre 25 e

45 anos que nunca haviam ido ao Egito.

Entre as diversas questões feitas e da variedade de tratamentos às

respostas, Cito aqui apenas alguns pontos que concernem à minha

argumentação. Como uma instituição universitária pública, o interesse principal

do Museu era em conhecer as “bases comuns” de seus visitantes, fossem

profissionais ou amadores (McDonald & Shaw 2004, p. 112). No entanto, levam

a cabo reflexões que tocam em temas polêmicos, como a “cor dos antigos

egípcios” e a relação entre o Egito moderno e Egito antigo. Inclusive a relação

entre egípcios modernos e o Antigo Egito.

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De início, é constatado através de uma pesquisa de órgão nacional

(English Heritage) que “três de cada quatro pessoas acreditam que ‘a

contribuição de povos negros e asiáticos na provisão patrimonial para nossa

sociedade não é totalmente representativa’” (MORI 2000 apud McDonald &

Shaw 2004, p. 112). Observam também que visitantes ao Museu que se

definem como negros é um número muito baixo, da mesma maneira que o

número de egípcios que visitam o Cairo é menor que 5% do público total, e o

quadro de estudantes conta apenas com 1 egípcio em cada 20, e que dos

“Amigos do Museu” apenas 1% é egípcio. Ou seja, de quem e para quem é a

história Egípcia exposta no Museu? O Egito é um território Africano ou branco?

Qual a relação entre o Antigo Egito e a vida egípcia contemporânea?

Essas perguntas fizeram parte das entrevistas e das discussões com os

grupos focais. Sobre a cor egípcia, “adultos brancos acharam questões sobre a

cor de pele dos antigos egípcios ‘profundamente perturbadora e inesperada’.

Havia evidência de um desejo de manutenção de uma identidade egípcia

branca” (Fisher 2000: chart 35 apud McDonald & Shaw 2004, p. 111-112).

Entretanto, se olharmos pelo outro lado “Correspondentes não brancos se

mostraram apaixonados ao invés de ameaçados pela pergunta. Era-lhes claro

que a o Antigo Egito havia sido tomado como parte da história branca” (Fisher

2000: chart 37 apud McDonald & Shaw 2004, p. 122). Podemos observar, do

mesmo modo, que “pessoas brancas pareceram despreocupados pela mistura

de fantasia e fato em sua versão do antigo Egito, enquanto correspondentes

não brancos eram mais conscientes de distorções” (Fisher 2000: chart 33 apud

McDonald & Shaw 2004, p. 121), em parte porque essa fora uma fantasia

criada pela própria sociedade branca ocidental; E como vimos no item anterior,

imagem construída pelos próprios arqueólogos que participavam da empresa

colonialista européia desde o final do século XIX (diga-se de passagem, a

maior parte da coleção do Museu Petrie vem de escavações durante a

presença Britânica no Egito). Dentre todos os correspondentes, apenas um foi

contra a política de manutenção do material arqueológico em seu país de

origem (McDonald & Shaw 2004, p. 125).

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96

Esse exemplo me pareceu interessante por duas razões. Primeiro, para

lembrar-nos de que o público atendido pela arqueologia e seus museus é

heterogêneo e não está necessariamente de acordo sobre a “cor” do passado.

Segundo, pelo papel que a institucionalidade e credibilidade da informação

arqueológica possui. Se, por um lado, seu conhecimento pode ser aplicado

como pressão normativa sobre a história da sociedade, pode ser usado, por

outro lado, para fornecer subsídios de luta para romper paradigmas

excludentes. De fato a decisão final sobre o que será exposto nas prateleiras

do museu está a cargo da equipe técnica (McDonald & Shaw 2004, p. 110).

Mas essa decisão pode ser tomada em prol da diversidade cultural.

A coesão desse discurso de utilidade pública da arqueologia se perde no

momento em que ela tenta lidar com o outro de maneira arrogante,

posicionando-se em nível mais alto: quando a educação e o alcance públicos

se tornam sinônimos do “modelo do déficit”, do público ignorante que deve ser

esclarecido (Merriman 2004a). A meu ver, as relações nas quais a arqueologia

se envolve devem ser vistas, de início, através de uma distinção de tipo

(discursos paralelos que se encontram) do que de nível (um único discurso em

estágios evolutivos diferentes). Como argumentou Ana Gomes (2006), antes

uma distinção resultante de variáveis culturais do que uma de deficiência

individual. Minha idéia não é, repito, evitar o conflito que me parece sempre

inevitável seja qual for seu grau. Minha proposta é fazer um esforço mínimo

para entender o outro antes de forçar-lhe a aceitar uma verdade, pura e

simples.

Por fim, penso que os breves exemplos explorados nesse trecho deixam

claros que a arqueologia esforça-se como pode para mostrar-se útil à

sociedade. A arqueologia pública como luta pela preservação do patrimônio

arqueológico (Frost 2004, p. 80) implícita nas propostas de alcance público,

educação patrimonial e gestão de recursos culturais é demonstração clara

disso. A depender da postura do profissional, seu conhecimento científico pode

também contribuir para a defesa da diversidade social.

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97

Agora, o que fazer quando a arqueologia se torna um entrave na

expressão da diversidade?

3.3.3. Antropofagia arqueológica

Um dos mecanismos cognitivos que sempre esteve atrelado fortemente

às formas de construção do passado é a memória. Segundo Jacques Le Goff,

“tal como o passado não é a história, mas seu objeto, também a memória não é

a história, mas um de seus objetos e, ao mesmo tempo, um nível elementar de

elaboração histórica” (Le Goff 2003, p. 49).

A memória não é em si uma construção disciplinar do passado,

tampouco sua única fonte. Ela é, antes de tudo, uma capacidade humana de

resguardo identitário, de identificação cósmica e de interpretação contextual.

A memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas (Le Goff 2003, p. 419).

E são essas impressões que mais nos importam individualmente como

objeto histórico e como dispositivos de identidade sócio-cultural. Não apenas

as memórias ditas voluntárias, produções de um regime oficial de verdade

(Seixas 2004), mas também

(...) a dimensão afetiva e descontínua relegada pela memória voluntária é a dimensão que parte das ciências humanas tem buscado precisamente integrar, com o estudo dos mitos, das sensibilidades, das paixões políticas, da imaginação e do imaginário na história (Seixas 2004, p. 48).

De fato, a arqueologia julga-se, acredito que justamente, na posição de

produzir subsídios para o desenvolvimento de uma memória mais abrangente

do que a memória oficial, dita voluntária nas palavras de Seixas. Como

vestígios involuntários, inconscientes do cotidiano, a cultura material torna-se o

palpável daquilo ao qual nem sempre estamos atentos. Vestígios que podem

falar sobre as vidas deixadas de lado pelas odes, pelas leis, pelos escribas. A

memória e a afetividade são ferramentas essenciais para a transformação de

um espaço vazio em um lugar de referência individual ou social (Tilley 2006).

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Em quais momentos, então, a disciplina pode contribuir com essa memória?

Em quais momentos ela a sufoca? A proposta desse trecho do capítulo é

dupla: 1) Analisar como o público toma posse do discurso, das práticas, dos

vestígios e das memórias das quais a arqueologia se julga dona; 2) Ver alguns

exemplos em que a autoridade arqueológica torna-se um incômodo à

diversidade de interesses. Em suma, observar como o público pode responder

à presunção arqueológica.

Sarah Colley (2002) argumenta que para vários grupos indígenas a

arqueologia é negada e julgada desnecessária: porque deveriam eles escutar o

que os brancos têm a dizer sobre os indígenas e sobre seu passado? Isso

cabe, antes de qualquer um, aos próprios indígenas. E eles têm os meios e

referências para tal. Em outro momento do livro, Colley coloca em questão o

caráter gerencial que sempre recai sobre o patrimônio: algo que tem sido

pouco discutido “é o conceito de que o patrimônio deva ser gerido, ao invés de

cuidado, estudado, estimado, deixado desaparecer ou apodrecer, vendido ou

destruído” (Colley 2002).

A repatriação de vestígios materiais e humanos, a exemplo, tem sido

uma das questões mais polêmicas entre arqueólogos, governos nacionais e

diferentes grupos étnicos de nações pós-coloniais, desde a repatriação de

vestígios materiais pelas autoridades egípcias à exigência de re-enterramento

de esqueletos indígenas na Austrália (Colley 2002, Jameson Jr. 2004, Raab et

alii 1980, Byrne 2004). John Jameson Jr. cita o caso do homem de Kennewick,

que gerou fortes controvérsias sobre as questões de propriedade intelectual e

territorial entre pesquisadores e comunidades indígenas sob os auspícios do

NAGPRA. Encontrado em 1996, o homem de Kennewick foi datado em torno

de 9000 anos, entrando assim dentro dos critérios do NAGPRA de “Nativo

Americano”. No entanto, o mesmo pesquisador que o descobriu creditou o

esqueleto com “feição facial longa e estreita”, sugerindo que fosse um europeu.

Imediatamente, começaram discussões sobre quem teria a posse da resolução

sobre o destino dos restos humanos.

Reivindicações foram feitas por tribos indígenas, oficiais locais, e alguns membros da comunidade científica. A Corporação de

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Engenheiros da Armada Americana, agência responsável pela terra os vestígios foram encontrados, tomou posse (Jameson Jr. 2004, p. 46).

Em 1999, outras datações por C14 (carbono 14) foram feitas, e

atestaram a mesma antiguidade de 1996. A análise de DNA mitocondrial e por

proteína de colágeno até o momento não foram confiáveis devido ao teor de

contaminação das amostrar retiradas do esqueleto. Até 2004, o esqueleto

estava ainda em posse de uma equipe de cientistas, posterior à um processo

judicial contra o enterramento do esqueleto, para continuação dos estudos

(Jameson Jr. 2004).

Essa posição indígena de resgate dos bens considerados como

ancestrais é parte de um movimento não apenas cultural, mas político.

Eu sugiro que povos aborígenes possam ver a presença de seus vestígios culturais em museus e outros repositórios não só, em seus próprios termos, impróprio e ofensivo, mas estrategicamente debilitando sua reivindicação moral à terra. Devemos ter em mente que, na história, o conceito de identidade racial ou étnica coalesce no pensamento europeu com a idéia de nação. Nesses termos não há como ter identidade sem terra (Byrne 2004, p. 248).

Os povos indígenas não separam o interesse pelo patrimônio cultural e

sua história de outros elementos de suas vidas, pois a posse de sua

propriedade cultural está intrinsecamente ligada com reivindicações pela posse

da terra, luta por justiça social, auto-determinação e soberania (Colley 2002, p.

65). Denis Byrne defende que essa relação de propriedade estabelecida com a

materialidade dos vestígios humanos pode ser resultado de uma interação com

os invasores brancos que, desde o século XIX, vem promovendo um

encadeamento político entre vestígios>ancestralidade>nação>direitos civis.

Para perseguir essa linha de pensamento, a visibilidade desses sítios arqueológicos para os brancos tem se tornado uma parte crucial de sua significância para povos aborígenes. Nessa medida os vestígios são fetichizados por povos aborígenes de uma maneira que eles indubitavelmente jamais teriam feito em tempos pré-contatos. A diferença vital é que prévio ao contato povos aborígenes não teriam que lutar com essa doutrina de terra nullius (terra inocupada), ‘a fantasia fundacional das colônias australianas’ (Jacobs 1996:105). (Byrne 2004, p. 251).

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100

Um caso com final mais feliz para os interesses comunitários trazido

pelo mesmo autor é o famoso Cemitério Africano em Nova Iorque. Descoberto

em 1993, durante as investigações de licenciamento, tais como exigidas pelo

Ato Nacional de Preservação Histórica, para a construção de um complexo do

escritório federal. “Os vestígios de 427 indivíduos foram, ao final, removidos do

sítio antes que a construção do projeto de 300 milhões de dólares fosse

interrompida frente aos protestos da comunidade local e científica” (Jameson Jr.

2004, p. 49). Os esqueletos, após serem estudados em Washington, foram

retornados à Nova Iorque e novamente sepultados no Memorial do Cemitério

Africano46, designados com um Marco Histórico Nacional em outubro de 2003

(Jameson Jr. 2004, p. 50).

A relação entre a materialidade como expressão da memória e da

identidade local, como se os vestígios materiais fossem as verdadeiras “raízes”

ao solo natal, faz parte do pensamento ocidental. Tão forte, que nações fruto

do colonialismo buscam construir laços com a “ancestralidade” da terra em

momentos de secessão com a metrópole.

Por volta dos anos 1880 na Austrália os colonos 47 brancos estavam reinventando-se como os “novos nativos” e os traços de ocupações aborígenes anteriores, junto com a flora e fauna indígenas, tornaram-se vetores de contato ou conexão com os ‘espíritos da terra’. Por fim, ao redor dos anos 1960, esses traços seriam apropriados como parte do patrimônio nacional. Como Benedict Anderson (1991) ter argumentado, a própria idéia de estado nação está atrelada ao ato de coleção: o museu, o censo, e o inventário patrimonial, todos contribuem substancialmente para essa elusiva entidade geopolítica (Byrne 2004, p. 248).

46

No original, African Burial Ground Memorial Site.

47 No original, settler, definido pelo Dictionary.com como 1. Designar, fixar ou resolver definivamente e

conclusivamente; concordar sobre/2. Colocar em um local desejado ou em ordem/5. Migrar para e

organizar (uma área, território, etc.); colonizar/6. Levar a tomar residência (Cf. Dictionary.com 2010 –

settle)

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101

Veremos no próximo capítulo como essa situação acontece de forma

semelhante no Brasil, como um dos exemplos da nação mestiça latino-

americana construindo suas políticas de manejo da nova identidade nacional.

A pressão da história colonialista ainda transparece em algumas

situações nas quais os arqueólogos, em sua maioria brancos, são vistos com

suspeita. O artigo de Bertram Mapunda e Paul Lane mostram tal situação com

um caso na Tanzânia. Apesar desse trabalho começar pela demonstração de

métodos sobre aproximação com o público, o que me pareceu mais

interessante foi sua conclusão, que fornece pistas sobre os antecedentes de

Bertram Mapunda. Ele havia deixado sua comunidade para estudar

arqueologia e retornou para ali realizar o campo de seu mestrado.

Como uma conseqüência direta de sua escolha de campo, uma necessidade de compartilhar a informação coletada com a população local surgiu como um resultado da pressão vinda de ambos os lados – os moradores que sentiram possuir certo direito de perguntar ao ‘seu garoto’ que explicasse o que ele estava fazendo e o que ele descobriu, e a obrigação que ‘o garoto’ sentiu de informar seus companheiros e parentes o que ele estava planejando fazer (Mapunda & Lane 2004, p. 219)

Os métodos apresentados para interação com o público são

basicamente os mesmos usados por arqueólogos “entre si”, sem muitas

alteraçõe: i) recrutar trabalhadores entre os membros das comunidades

(selecionados por eles mesmos), ii) exibir planos de trabalho (objetivos,

métodos, o que procuram, como o fazem), iii) conversar sobre as perspectivas

dos próprios moradores sobre o trabalho, o passado e os materiais e iv)

aconselhamento de figuras centrais da comunidade como informantes. A

própria posição dos autores se coloca inflexível, como de praxe, à necessidade

de preservação e conscientização para o não depredo dos sítios (Mapunda &

Lane 2004). No entanto, os antecedentes que o artigo apresenta, tanto a

procedência de Mapunda quanto a suspeita constante que as comunidades

rurais possuem da arqueologia e sua vinculação com o Governo, deixam a

impressão de que a arqueologia se presta muito mais ao esclarecimento do

público sobre si mesma do que absorve o público para sua empreitada. Ou seja,

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102

ela abre sua prática à vista pública não para tentar seduzi-la ou silenciá-la, mas

para prestar contas.

Já o caso de Mike P. Pearson e Ramilisonia vai muito mais além.

Assumem que seu trabalho na região malgaxe de Androy não seria possível

sem a presença do arqueólogo tandroy Retsihisaste. E mesmo assim, o vínculo

que o “arqueólogo indígena” possuía com as comunidades locais nem sempre

era amplo o suficiente. Trabalhando em territórios de comunidades muito

desconfiadas de estrangeiros, onde não existem meios “midiáticos” suficientes

para transportar a imagem (deturpada ou não) do arqueólogo e seu trabalho,

eles são não mais que estranhos e possíveis “caçadores de cabeça” 48 .

“Nossos piores problemas, tais como sermos feitos reféns, aconteceram

quando estávamos distantes da aldeia natal de Retsihisatse, em áreas onde

ninguém conhecia ou tinha escutado falar dele e de sua família” (Pearson &

Ramilisonia 2004, p. 233).

Em South Uist, nas Ilhas Híbridas Exteriores 49 as comunidades

conheciam e já reconheciam o indivíduo arqueológico, “São os turistas ideais

porque são previsíveis, relativamente gastadores e são conhecidos da

comunidades” (Pearson & Ramilisonia 2004, p. 228). No entanto, continuam

sendo estrangeiros que necessitam estar em contato com a realidade local,

que não possui arqueólogos “indígenas”, mas possui uma Sociedade Histórica

local que tem acompanhado os trabalhos por décadas.

A antropofagia do arqueológico pode chegar ao caso de Bertram

Mapunda e Ramilisonia, membros de sociedades exteriores à mainstream dos

estudantes de arqueologia que escolheram fazer parte desse mundo.

“Membros de sociedades exteriores” é um termo um pouco vazio, mas reflete a

certa dificuldade em lidar com essa oposição entre “arqueólogos” e “não-

48

A suspeita que pesa sobre os estrangeiros teria originado diversos rumores sobre sua vinda, em

especial de brancos, para roubar-lhes os fígados, corações e pulmões dos tandroy. Em 1993, os autores

descrevem que um rumor sobre “caçadores de cabeças” que as queriam para tirar-lhes o cérebro para

pesquisas pela cura da AIDS (Pearson & Ramilisonia 2004).

49 No original, Outer Hybrid.

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103

arqueólogos”. Uma vez que o indivíduo passou pelo processo de formação de

um profissional da área, a distinção é mais clara (amadorismos a parte). Mas,

como definirmos os aspirantes, quando seus antecedentes estão tão distantes?

Um arqueólogo indígena terá as mesmas carcterísticas que o arqueólogo

urbano? Não questiono as vias do mérito profissional de pesquisadores de

diferentes ascendências, mas me pergunto sobre as vias de posturas políticas

e interesses.

A reflexão sobre o conceito de indígena é colocada para além das

entradas propostas pelo dicionário 50. Ao mesmo tempo em que “indígena” se

refere ao nativo de alguma terra, quando usado pelo arqueólogo, abrange

também o peso colonizador. Ou seja, o indígena é aquele que estava na terra

(afinal, a depender do período cronológico que formos adotar, todos são

“estrangeiros” à terra) no momento em que alguma força estrangeira toma

posse (por paz ou por guerra) do território ocupado por aquele povo. Não se

sabe ao certo como aquele povo veio a firmar morada ou quais suas diferenças

internas. Ele passa a ser o indígena porque não é “branco” ou “romano” ou

“inglês”. Conseqüentemente, os descendentes desses indígenas serão também

indígenas, e assim continuarão sendo enquanto forem reconhecidos como

descendentes desse povo conquistado e oprimido.

De qualquer maneira, não pretendo me estender muito nessa questão. O

que vale observar aqui é a diversidade que compõe o público não arqueológico.

Ratsihisaste era um tandroy, mas isso não quer dizer que ele ou sua família

sejam conhecidos por todo o território. Os moradores de South Uist que

deixaram a região, mas retornam com frquencia como turistas, são ou não são

locais? As Ilhas Híbridas, por exemplo, são conhecidas por sua alta taxa de

emigração ao mesmo tempo em que os emigrados mantém um forte apego e

sentimento de pertença ao local (Pearson & Ramilisonia 2004, p. 228).

50

De fato, em busca ao Dictonary.com, o conceito de indígena faz referência somente ao seu vínculo

com uma terra natal, um nativo (Cf. Dictionary.com 2010 – indigenous).

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104

Não apenas sobre a heterogeneidade do público, os últimos três artigos

citados lidam com a problemática territorial mais que discursiva do trabalho

arqueológico. A presença de um indivíduo estrangeiro deve ser esclarecida, e

as devidas contas prestadas à comunidade local. A prática, método e

resultados da pesquisa arqueológica podem ser úteis para os propósitos da

população local. Como no caso das Híbridas, a arqueologia que se prestou a

estabelecer laços com a população local e seu trabalho foi encarada como uma

tecnologia para fomentar a identidade indígena local (Pearson & Ramilisonia

2004, p. 229). No caso de Androy a utilidade da arqueologia fica um pouco

mais difusa e incerta.

Poderíamos pensar que noções dos Tandroy já existentes sobre o passado, manifestadas em genealogias, tradições orais e a presença de ancestrais, fazem da arqueologia uma forma intrusiva e desnecessária de entender o passado (Pearson & Ramilisonia 2004, p. 229).

(...)

Nossa missão é primeiramente arqueológica e pode prover somente benefícios pouco tangíveis. Acreditamos que nosso trabalho é apreciado por duas razões. As pessoas gostam de nos contar o que elas sabem sobre sua história em termos dos lugares, tradições, genealogias e histórias sobre o passado. Talvez nosso mais papel significante seja na validação do patrimônio de Tandroy (Pearson & Ramilisonia 2004, p. 233).

Lembremos da argumentação de Sarah Colley sobre os momentos em

que o conhecimento arqueológico é preterido em favor das próprias referências

locais sobre o passado. Vale perguntar o que impediria, dentro dessa nova

arqueologia pública, que a indígena Hopi Leigh (Jenkins) Kuwanwisiwama se

tornasse uma arqueóloga com o propósito de modificar suas percepções

através da pertença aos dois mundos.

Os Hopis querem ser tratados como iguais nos projetos de pesquisa arqueológica, para que nossos conhecimentos, valores e crenças sejam vistos com o mesmo respeito que arqueólogos se concedem uns aos outros quando há diferenças em métodos e de interpretações do registro arqueológico. Os Hopis não querem, no entanto, sobrepor conhecimento sagrado de forma indiscriminada sobre o registro arqueológico. Nem queremos restringir conhecimento arqueológico injustamente. Não temos nenhum desejo de

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105

censurar as idéias de arqueólogos, nem desejamos impor moldes de pesquisa sobre os arqueólogos (Kuwanwisiwama 2002, p. 46).

O que era antes o outro cultural, objeto de estudo, é agora o

pesquisador. A metodologia científica do arqueólogo é apropriada e

desenvolvida, dentro de seus próprios moldes, pelo outro cultural. Que deixa de

ser outro para ser parte do seleto clube que detém o poder jurídico de defender

o patrimônio. Mas será que Leigh Kuwanwisiwama deixou de ser Hopi para ser

arqueóloga? Seu discurso não aparenta. De qualquer maneira, seria

aprofundar desnecessariamente em questões de identidade. Qual a autoridade

de um arqueólogo de origem não-indígena para dizer se Leigh Kuwanwisiwama

é, não é ou deixou de ser Hopi a partir do momento em que se torna

arqueóloga? Ela diz: “conduzimos [ela e sua equipe] nossas próprias revisões

arqueológicas e investigações; temos fornecido argumentos. Agora estamos

produzindo nossos próprios relatórios em história e etno-história da tribo Hopi

no Grand Canyon” (Kuwanwisiwama 2002, p.

47).

Retomando a posição de Janet

Spector: seria essa Kuwanwisiwama

“arqueologizada” um sinal de submissão ao

sistema? Prefiro entender sua postura como uma escolha em aprender a

técnica e a cosmologia acadêmica para seus próprios propósitos, e àqueles de

sua tribo. Mais uma antropofagia do arqueológico que uma submissão a ele.

A proposta da chamada “arqueologia comunitária” parte da própria

disciplina e encara o contato com o público de maneira mais atenta aos

conflitos inerentes ao processo que à tentativa de arrebanhar adeptos. A

arqueologia comunitária abraça a participação ativa do público em projetos de

pesquisa, na construção e interpretação dos dados e na entrega de parte da

gestão do projeto à comunidade local (Marshall 2002). De acordo com

Stephanie Moser et alii (2002), a condução dos trabalhos e a negociação dos

diversos interesses envolvidos na interpretação do passado, e de sua

relevância no presente, são assaz desafiadoras e muitas vezes frustrantes,

Parte da negociação entre a arqueologia e os demais públicos pode terminar na deglutição da “cosmologia arqueológica” pelas outras partes envolvidas.

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106

fruto do inevitável desentendimento entre algumas das partes da equipe sobre

o andamento do projeto. No entanto, a experiência da arqueologia comunitária

surge da inevitabilidade do exercício anti-colonial da profissão, uma prática que

não mais se limita a explorar os vestígios do passado alheio sem que o próprio

“Outro” tenha acesso aos seus benefícios (Moser et alii 2002).

Siân Jones (Jones 2010a, 2010b) atenta para o fato de que os

significados e relações que os diferentes públicos desenvolvem com o

patrimônio arqueológico, no entanto, não são óbvios e, de modo geral, são

perdidos por olhares desatentos. Métodos etnográficos como observação

participante e entrevistas têm se tornado uma prática recorrente para ajudar a

entender os valores locais e memórias não oficiais que são construídas sobre o

patrimônio histórico (Jones 2010a, 2010b). A realização de etnografias em

projetos de arqueologia não só tem permitido um olhar mais atento ao outro,

mas também a prática do(a) arqueólogo(a) e sua relação com os diversos

públicos e com a construção de conhecimento sobre o passado (Hamilakis &

Anagnotopoulos 2009).

Os choques e acertos entre a disciplina arqueológica e grupos indígenas

não são as únicas vias de negociação existentes pela propriedade do passado

e suas interpretações. A exemplo da arte, que muitas vezes nos apresenta

propostas inovadoras de como observar a realidade através de suas

representações estéticas. Um dos projetos do artista plástico Mark Dion partia

da intenção de coletar restos de diferentes lugares do mundo, processá-los,

classificá-los, limpá-los e colocá-los em estantes, tal qual o método

arqueológico. Sua quarta “escavação” foi em 1999 em Londres, nas margens

do Tâmisa. Os participantes de seu projeto eram moradores das comunidades,

a quem foram designados os “trabalhos de campo”, processamento e

exposição do material. A coleta foi feita em sua maioria nas margens do

Tamisa próximas ao Museu Britânico Tate, e o tratamento e exposição do

material, feitos sob um tenda no pátio do Museu. “De fato isso foi um tipo de

projeto de arqueologia comunitária, no qual metade dos participantes eram de

minorias étnicas (...)” (Merriman 2004, p. 99).

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107

A arqueologia costuma rotular todos esses exemplos de “arqueologia

amadora”, como vimos, no início desse capítulo, no texto de Brian Fagan.

Como o próprio nome diz, trata-se de situações nas quais indivíduos não

enquadrados como profissionais da área arqueológica tomam em mãos

trabalhos, leituras e vozes compatíveis com o credenciamento profissional. A

centralidade da polêmica gerada pelos arqueólogos amadores é o fato de que

sua prática começa a transpor limites entre o profissional e o não-profissional.

De acordo com Sally McDonald e Catherine Shaw, a distinção não é muito

clara porque, como disse, ambos lêem praticamente as mesmas coisas e

muitas vezes andam pelos mesmos círculos sociais (McDonald & Shaw 2004).

No entanto, colocam uma definição da equipe do Museu Petrie de Egiptologia

da UCL, de que

os profissionais são aqueles que ganham a vida, ou aspiram à ganhar sua vida, do assunto; A maioria possui relevantes qualificações de educação superior. Os amadores são aqueles para os quais o assunto é um interesse, mais que um trabalho (McDonald & Shaw 2004, p. 110).

O reconhecimento desse público pela arqueologia profissional gira em

torno do “espiritualismo New Age, aqueles que acreditam em reencarnação ou

o poder místico de pirâmides e cristais” (Roth apud McDonald & Shaw 2004, p.

111). Tim Schadla-Hall, por outro lado, prefere fazer referência a esse tipo de

arqueologia, de uma maneira mais discreta, como “arqueologias alternativas” já

que são alternativas “para o que poderia de modo neutro ser descrito como

arqueologia corrente” (Schadla-Hall 2004, p. 255).

Os temas considerados de arqueologia alternativas são aqueles que se

constroem sobre as práticas e discursos arqueológicos de maneira mais direta,

utilizando-se das descobertas e publicações arqueológicas para construir

interpretações não aceitas pela Academia. Tim Schadla-Hall apresenta uma

série de temas que são comuns a esse tipo de produção, como: i) a origem da

civilização em continentes perdidos (Atlântida, Mu) ou nas antigas civilizações

orientais e a difusão de seus conhecimentos para as Américas, ii) a tecnologia

extremamente avançada que essas populações possuíam e que hoje pode ser

revelada através da arqueologia, iii) a origem extraterrestre dessas civilizações,

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108

iv) o difusionismo do conhecimento entre elas provado por associações

lingüísticas e de elementos artísticos encontrados em diferentes pontos do

mapa e v) a verdade sobre as origens religiosas e os movimentos neo-

paganistas e New Age (Schadla-Hall 2004). Alguns nomes são muito famosos

por seus bestsellers, Erich Von Däniken, autor de “Eram os Deuses

Astronautas” e Graham Hancock autor de Fingerprints of the Gods (Impressões

digitais dos Deuses), são alguns exemplos (Schadla-Hall 2004; Colley 2002).

Não à toa, suas obras são consideradas como pseudo-científicas e

fraudulentas, pois com frequencia embasam seus argumentos em “citações

fora de contexto” e pensam antes no improvável (Schadla-Hall 2004). Meu

ponto de vista sobre a questão é contra a proposta de Brian Fagan e Tim

Schadla-Hall de que o crescimento das arqueologias alternativas é devido à

lacuna deixada pela arqueologia acadêmica (Fagan 1977; Schadla-Hall 2004).

Inclusive se constatamos que, nos Estados Unidos e Inglaterra, muitos

estudantes universitários acreditam nas proposições de Von Däniken (Fagan

1977; Schadla-Hall 2004).

A meu ver, as arqueologias alternativas são escolhas por maneiras

distintas de interpretação do passado, não tentativas leigas de preencher um

espaço vazio. Essa seria uma maneira de encarar seus leitores de forma

passiva. Apesar de não serem bestsellers, a obras arqueológicas acadêmicas

estão nas estantes das livrarias e nas bibliotecas. Comprá-las e lê-las é uma

questão de escolha. E o fato da arqueologia acadêmica não alcançar as

estantes de Best-sellers é o que a afasta da arqueologia amadora: seu

preciosismo técnico e abstração teórica não é apreciado pelo mesmo público

que prefere a literatura alternativa. Tomar à força os leitores do “excêntrico”

significa deixar de ser acadêmico e tornar-se alternativo. A meu ver, as

arqueologias alternativas existem como modos de expressão do arqueológico,

um modo que toma seus meios e resultados para pensar outras possibilidades

para a realidade atual e do passado.

Concordo com Schadla-Hall sobre os possíveis perigos das discussões

amadoras. Muitas delas são baseadas em concepções muito ocidentais da

história e tomam parte de discussões difusionistas e de superioridade entre

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109

civilizações que são hoje descartadas pela academia devido ao seu forte apelo

racista e evolucionista (Schadla-Hall 2004). Voltamos ao questionamento sobre

o papel social do arqueólogo e a liberdade discursiva do público. Nessa

situação, torno a repetir, uma das melhores maneiras pelas quais a arqueologia

pode contribuir é mostrando a diversidade que seus estudos nos permitem

conceber. Em casos como esses não vejo como a arqueologia poderia deixar

de acrescentar à discussão, mostrando que as possibilidades difusionistas

podem ser plausíveis. Ela poderia orientar para um certo cuidado com os

efeitos provindos do difusionismo e para outros modos de pensar esses

passados tão plausíveis quanto o difusionista. Essa contribuição, no entanto,

só pode acontecer se o arqueólogo estiver disposto a dialogar com essas

outras perspectivas, e não subjugá-las como “amadoras” e, portanto,

insuficientes.

A prática arqueológica, no complexo contexto descrito, pode ser

reconhecida como protetora de um conhecimento estratégico para os

interesses de grupos locais, ser relevada como detentora de um conhecimento

inútil e de uma prática irrelevante, pode, ainda, ser rechaçada como braço de

ferro das políticas de governo a pretender furtar-lhes o usufruto do espaço e do

passado (que se torna “bem cultural”), ou pode ser aceita como mensageira

das necessidades dessas comunidades às distantes políticas públicas. Cada

caso será um caso. O que se pressupõe como prática legítima de produção de

conhecimento é uma tomada clara de posição, para cada caso específico. São

situações que exigem da arqueologia o reconhecimento de sua posição

estrangeira e sua tentativa de negociar seu espaço com populações

específicas. Parte da negociação pode significar a “deglutição” do arqueológico

por outras formas de conceber o mundo.

Seria bom saber que a arqueologia ainda tem um sabor que vale a pena.

Page 110: Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de ...€¦ · 1 Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação em Antropologia

110

4. Capítulo 2 - Arqueologia pública e colonialismo no Brasil

Em 5 de maio de 2010, foi publicada na Revista “Veja”, um artigo

intitulado “A farra da antropologia oportunista”. Versava, em suma, sobre os

“critérios frouxos” que a antropologia supostamente vinha utilizando em

processos de demarcação de terras de povos indígenas e comunidades

tradicionais. Acusava o governo brasileiro (um governo associado à esquerda

política já por oito anos) de cúmplice do processo, como mostra a figura 1.

Page 111: Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de ...€¦ · 1 Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação em Antropologia

Desde meu ponto de vista, o que podemos ver na imagem não parece

uma forma de “cumplicidade” (ainda mais se pensarmos no atual interesse do

Estado na construção da Usina Belo Monte

sim uma questão de conjunção de interesses, uma das diversas

das políticas de governo para abrigar

artifício que tem se tornado interessante para as políticas de Estado

contemporâneas. Ou seja, a questão central nesse caso me parece ser a

relação com o outro. Uma interpretação possível, nessa imagem, é

tentativa do governo em

para si. Além da atuação política governamental, o tema da reportagem nos

remete à atuação política da disciplina antropológica e o poder que

conquistado em questões de território e

O artigo publicado na

argumentos embasados em dados

Figura 1: No original o artigo diz, “Lei da selva

demarcação da Raposa Serra do Sol, que feriu o estado de Roraima

alii 2010). Foto: Manoel

Desde meu ponto de vista, o que podemos ver na imagem não parece

uma forma de “cumplicidade” (ainda mais se pensarmos no atual interesse do

Estado na construção da Usina Belo Monte – Marcello 2010, Brito 2

sim uma questão de conjunção de interesses, uma das diversas

das políticas de governo para abrigar, sob o nacional, as minorias étnicas,

artifício que tem se tornado interessante para as políticas de Estado

contemporâneas. Ou seja, a questão central nesse caso me parece ser a

Uma interpretação possível, nessa imagem, é

em tornar-se o outro e, ao mesmo tempo,

para si. Além da atuação política governamental, o tema da reportagem nos

remete à atuação política da disciplina antropológica e o poder que

conquistado em questões de território e cultura tradicional no Brasil.

O artigo publicado na Veja, a meu ver, é francamente

argumentos embasados em dados distorcidos sobre a quantidade de territórios

Figura 1: No original o artigo diz, “Lei da selva - Lula na comemoração da

demarcação da Raposa Serra do Sol, que feriu o estado de Roraima”

Foto: Manoel Marques.

111

Desde meu ponto de vista, o que podemos ver na imagem não parece

uma forma de “cumplicidade” (ainda mais se pensarmos no atual interesse do

Marcello 2010, Brito 2011), mas

sim uma questão de conjunção de interesses, uma das diversas modulações

as minorias étnicas,

artifício que tem se tornado interessante para as políticas de Estado

contemporâneas. Ou seja, a questão central nesse caso me parece ser a

Uma interpretação possível, nessa imagem, é uma

, ao mesmo tempo, trazer o outro

para si. Além da atuação política governamental, o tema da reportagem nos

remete à atuação política da disciplina antropológica e o poder que ela tem

onal no Brasil.

francamente arbitrário, com

sobre a quantidade de territórios

Lula na comemoração da

(Coutinho et

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112

tradicionais e reservas indígenas. 51 Uma compreensão progressista da

economia nacional e um entendimento pobre da identidade indígena. No

entanto, o artigo é um produto (ao mesmo tempo em que “produz”) do cenário

atual, no qual o conhecimento antropológico (embora não possa inviabilizar por

si só a execução de um projeto de engenharia como uma usina hidrelétrica de

grande porte) tem aumentado sua relevância nas análises de impactos sócio-

ambientais gerados por esses empreendimentos.

Nessa mesma direção (do fortalecimento político do saber antropológico),

com a publicação da Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente

(CONAMA) nº001/86, o conhecimento arqueológico tornou-se referência oficial

sobre o patrimônio material, com conseqüente impacto na construção da

Memória Nacional, durante processos de licenciamento. Os Estudos de

Impacto Ambiental e Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) previstos

pelo CONAMA devem contemplar a pesquisa sobre os possíveis danos ao

patrimônio cultural nacional. À arqueologia é atribuído o poder técnico de

identificação e valorização (ou desvalorização) do patrimônio material

encontrado nos terrenos sobre licitação. Nesse capítulo, tentarei ver como as

propostas da arqueologia pública têm sido usadas no país para refletir sobre

esse novo cenário da arqueologia no Brasil.

Até o momento, abordei o cenário internacional e, de maneira breve, a

contribuição dos anos 1960 e 1970 à produção de um aparelho jurídico de

gestão do patrimônio cultural, conseqüente responsabilidade que relega ao

arqueólogo um papel de técnico patrimonial. Dediquei-me a rever algumas

propostas apresentadas sob a alcunha “arqueologia pública”, também

internacional, e como elas têm sido usadas para lidar com a relação entre

arqueólogos e a alteridade fora da disciplina. Relações que envolvem

51

“Áreas de preservação ecológica, reservas indígenas e supostos antigos quilombos abarcam, hoje,

77,6% da extensão do Brasil. Se a conta incluir também os assentamentos de reforma agrária, as

cidades, os portos, as estradas e outras obras de infraestrutura, o total alcança 90,6% do território

nacional” (Coutinho et alii 2010, p. única). Dados obtidos com a simples soma dos territórios marcados,

sem o cuidado de averiguar se as áreas demarcadas representavam diferentes tipos de reserva ao

mesmo tempo.

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113

profissionais do ramo, políticas de Estado, empreendimentos privados e

comunidades impactadas por trabalhos em seus locais de moradia e vivência.

Virando o rumo do trabalho ao caso brasileiro, a Resolução CONAMA, ao

mesmo tempo em que representa a conquista de uma luta pela preservação do

patrimônio material (Fernandes 2008), trouxe novos desafios à prática da

disciplina, em especial à relação com públicos desvinculados da Academia e o

papel social do profissional. Esse panorama no qual se insere a arqueologia

brasileira no final dos anos 1980, continua a me levar pelas questões: como a

arqueologia se relaciona com o outro? Qual sua função social? O que é que

fazem os arqueólogos? O que podemos fazer com esse poder que temos em

mãos?

Nesse capítulo, portanto, proporei alguns apontamentos sobre a relação

entre o Estado nacional brasileiro e a arqueologia, numa breve perspectiva

histórica, e, ainda, quais os debates e desafios que a Resolução CONAMA

nº001/86 trouxe à profissão no Brasil. E finalmente, como essa relação

prestigiosa e perigosa pode ser democratizada pelas sugestões práticas que

têm sido desenvolvidas no estrangeiro sobre a alcunha de “Arqueologia

Pública”. Já existem alguns trabalhos dessa natureza no Brasil, e, ao final do

capítulo, farei uma pequena revisão crítica de alguns deles.

4.1. O “gingado” brasileiro

Segundo Lucio Ferreira (2010), as ciências no Brasil já estavam

consolidadas na transição do Império para a República, incluindo-se a

arqueologia. Três dos mais importantes centros de pesquisa em ciências

naturais no país, e ainda importantes centros de referência em nossos dias, O

Museu Paulista (São Paulo), Museu Nacional (Rio de Janeiro) e o Museu

Paraense (Belém), surgiram entre o final do XVIII e início do XIX (Barreto 1999-

2000, Souza 1991). A arqueologia, em particular, não só encontrava-se

consolidada como participava enfaticamente das estratégias políticas de

definição de fronteiras étnicas e geográficas do Império e República.

A Arqueologia, como ciência geográfica, equacionava-se a uma geoestratégia. Servia a uma estratégia de anexação de

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territórios. Em primeiro lugar, porque os artefatos arqueológicos eram passíveis de serem marcadores do espaço, delimitadoras de fronteiras geopolíticas, instrumentos para moldar as raias do território nacional em construção. Em segundo lugar, porque, solidificando estereótipos sobre os indígenas como grupos sociais fossilizados, “degenerados” ou “primitivos”, desencadeou representações coloniais e legitimou projetos de colonização. A Arqueologia, em suma, foi uma ferramenta colonizadora (Ferreira 2010, p. 18).

De maneira similar à Europa, o Brasil do século XIX passava por um

momento semelhante ao do nacionalismo étnico europeu, com a

particularidade do processo de independência de Portugal. Norbert Lechner

(Lechner 2000) adentra o tema da construção da memória nacional da América

Latina, atentando, em princípio, para duas questões de valor à argumentação

que aqui se tece. Assim como na Europa, a construção da ordem independente

na América Latina toma forma de Estado-Nação, ou seja, o Estado é também o

escolhido [por uma elite revolucionária] para sustentar e manejar a consistência

social da Nação (Lechner 2000, p. 68). Em segundo lugar, a modelagem da

unidade nacional funda-se numa pequena, mas necessária, incoerência:

passado glorioso, mas futuro promissor. Ao mesmo tempo em que as

independências realizam-se em nome do futuro, rompendo com a

temporalidade herdada (no caso colonial), a cultura e a história são de

particular interesse na hora da construção de um “eu mesmo”, da memória

nacional (Lechner 2000, p. 69).

O passado evocado como mãe/pai fundadores de um grande povo é

selecionado em sacralizações de personagens, práticas, tradições e

edificações.

Dito de outro modo: como índice da formulação da auto-imagem de uma nação ou de um grupo étnico, o patrimônio cultural é periodicamente selecionado, re-selecionado, revisado, dispensado e, muitas vezes, intencionalmente destruído. Daí ele ser um poderoso símbolo dos conflitos sociais (Ferreira 2008, p. 84).

Era necessário “selecionar” as etnias que poderiam ou não fazer parte

da criação do brasileiro. Enquanto colônia, é fácil para a elite crioula identificar-

se com a Europa e fugir da herança indígena. No entanto, a partir do momento

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em que se nega o vínculo com a pátria metrópole, nega-se também com a

pátria mãe. Como, então, ser crioulo? Ser nativo? Ser misto? Ser europeu

perdido nos trópicos? Há que selecionar quem faz e quem não faz parte da

história e memória da nova nação crioula.

Assim, concordo com a argumentação de Lucio Ferreira de que a

construção discursiva sobre as pretensas “raízes” culturais indígenas é em si

um posicionamento político. Tal discursividade aciona automaticamente os

mecanismos de construção identitária do momento de secessão política com a

Europa e mecanismos de exclusão social remanescentes do pensamento

colonial.

Scientia et potentia – tratava-se, para a Arqueologia imperial, de melhor conhecer o indígena para melhor dominá-lo e civilizá-lo, para aproveitá-lo como mão-de-obra e como colonizador do interior do país, para amansá-lo como sujeito econômico e de direito, para abrigá-lo sob a égide de um contrato social (Ferreira 2005a, p. 144).

Os Museus são as propostas de preenchimento da lacuna entre passado

e presente, conectar os saltos históricos da canonização de alguns eventos em

detrimento de outros, e trazê-los como continuum anunciador do futuro

brilhante da nação (Lechner 2000, pp 71-72).

Vários foram os argumentos arqueológicos sobre o indígena, como

também nos mostra outro trabalho de Lucio Ferreira (2005b): para alguns,

possuíam uma ascendência gloriosa, virtuosa e promissora. Gonçalvez de

Magalhães, importante intelectual do Império, defendia uma antiga

superioridade indígena que se poderia averiguar em sua honra a um único

deus (Tupã), o resguardo da virgindade até a puberdade, a proteção a família e

as regras de matrimônio. Incluindo os rituais antropofágicos, possuíam uma

“dignidade viril” (Ferreira 2005b, p. 142). Para outros, não era mais que uma

raça de eternos condenados desde seu princípio. Para Francisco de

Varnhagen, o passado civilizado dos indígenas, reconhecido como fora por

outros intelectuais, não mais era uma realidade, e a única alternativa possível

para integrá-los aos planos nacionais de desenvolvimento era através da força

(Ferreira 2005b). Gonçalves Dias, no entanto, também sentia que o passado

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116

dos indígenas civilizados se havia perdido para sempre, mas seu histórico de

dignidade e pacifismo os garantiria um lugar na nação e a possibilidade de

assimilação, não pela guerra, mas pelo trabalho rural e industrial (Ferreira

2005b).

Seja partindo de uma ancestralidade indígena gloriosa, virtuosa e

promissora ou de uma raça eterna de condenados, as argumentações

arqueológicas sobre o passado indígena do território brasileiro confluíam no

mesmo presente: tribos degeneradas que necessitavam de manejo e

reestruturação. Ou seja, os heróis e inimigos do passado selecionados e

superpostos na tentativa de sacralização de um passado nacional, rumo à

exclusividade/inclusividade do povo moderno. A domesticação dessas tribos

significa a organização da população brasileira (Ferreira 2005b).

A mesma finalidade da ciência arqueológica continuará durante os

primeiros anos da república e, depois, com o movimento modernista das

décadas de 1920-1930. Não mais se tratava de extirpar a raça mais baixa de

um país em civilização, mas de absorver a massa indígena no corpo civil

republicano. Antes, tempo imperial, indígenas eram medidos pelos aspectos

biológicos. No início do XX, “o indígena” torna-se uma categoria humana como

qualquer outra, e sua integração à “brasilidade normal” seria apenas uma

questão de mudança em seu comportamento cultural. Alterando-se as práticas,

teríamos um civilizado como qualquer outro (Sequeira 2005). Nesse processo,

a educação cívica substituía a evangelização na efetiva pacificação e

introdução do indígena à população civil através da recategorização das

diversas etnias que povoavam o território nacional em uma única parcela de

potenciais trabalhadores urbanos.

A partir de uma perspectiva positivista, a integração de populações indígenas era parte de um avance inevitável à civilização. Assim, o indígena era visto como “não-índio”, i.e., um futuro brasileiro, um trabalhador em potencial, um ser a transformar-se em cidadão cedo ou tarde (Sequeira 2005, p. 356).

Ainda segundo Sequeira, não a o Serviço de Proteção do Índio e

Locação de Trabalhadores (nome sugestivo) criado em 1910, mas o próprio

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117

Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)52, criado em 1937,

e a proposta legislativa de preservação patrimonial de Mário de Andrade

também da década de 1930, são frutos dessa posição sócio-política de

integração do indígena à identidade nacional, elementos da “brasilidade”

excêntrica e distinguível das nações européias.

A idéia de preservação e inclusão da população indígena no presente e futuro da nação brasileira necessariamente evocava outro eixo temporal – o passado – através da incorporação da memória deles [indígenas] à da nação. Portanto, o conceito de herança e a existência de uma legislação para a preservação da herança, existem como aspectos complementários da modalidade discursiva engajada num processo de construção da nação que é imaginada e projetada pelo discurso republicano (Sequeira 2005, p. 357).

De acordo com Tania Andrade Lima e Regina Coeli Pinheiro da Silva

(Andrade Lima & Pinheiro da Silva 1999 apud Lima 2007), uma análise dos

livros didáticos de história do Brasil mostrou que, entre 1898 e 1998, dois foram

os momentos em que a pré-história brasileira foi usada com veemência para a

construção da identidade nacional: no final do século XIX e ao longo do

governo de Getúlio Vargas (Lima 2007, p. 17).

O índio passou a ser um elemento fundamental na arquitetura do mito da democracia racial, fundado na caracterização do povo brasileiro como uma “raça de mestiços”, expressão aglutinadora de qualidades positivas, morais e sociais (Lima 2007, p. 19).

O argumento de Tânia Andrade Lima nos remete à divisão conceitual de

um nacionalismo cívico apresentada por Margarita Díaz-Andreu. Não mais a

defesa de uma única raça pura a compor as fronteiras nacionais, mas um

nacionalismo embebido na mestiçagem e na aglutinação de toda a diversidade

sob as asas do Estado.

De fato, Sandra Pelegrini argumenta que a “linhagem modernista”

buscara a identificação de uma proposta cultural nacional através do

“mapeamento das manifestações culturais consideradas genuinamente

52

Atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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118

brasileiras” (Pelegrini 2006, p. 11). Entre as manifestações tidas como

“genuinamente brasileiras”, os processos de tombamento deram grande

atenção à arquitetura colonial, em especial àquela representativa de setores da

elite nacional, mas também a obras de caráter mais singelo como o “Museu

dos Caixeiros Viajantes do Rio Grande do Sul, sambaquis, coleções

arqueológicas” (Girão 2001:120 apud Pelegrini 2006, p. 11). No entanto, a

autora comenta que essas políticas seguiam, em essencia, os critérios da

Carta de Atenas sobre a visibilidade e viabilidade para apreciação de tais

monumentos. Política que não estaria isenta, certamente, de interesses sobre a

constituição da nova nação moderna sob o Estado Novo.

Tal tática de preservação subtrai da paisagem as imagens não concatenadas com o modelo escolhido para reafirmar a brasilidade considerada adequada àquele contexto histórico, qual seja um momento histórico em que se forjavam novas representações da nação e moldava-se um outro perfil para o cidadão brasileiro: limpo, ordeiro e trabalhador. A adoção desse tipo de prática intervencionista mostrava-se conveniente, pois somadas às medidas saneadoras das moradias populares, resultava na demolição de habitações coletivas consideradas desabonadoras da imagem nacional (Pelegrini 2006, p. 12).

Apesar de concordar com a argumentação das autoras, é também

importante salientar o peso jurídico dessa legislação modernista. Em primeiro

lugar, Mário de Andrade e os intelectuais modernistas defendiam a mudança

de vetores da história e política nacionais, da herança europeizada ao anti-

heroísmo de Macunaíma; inverte as linhas de troca, colocando o pólo humano

no estandarte tropical, fazendo da antropofagia, da deglutição de Fernão

Sardinha, o novo marco da Era, invertendo a fagocitose cultural (Andrade

1928). Em segundo lugar, alguns especialistas consideram a criação do

SPHAN e o Decreto-Lei 25/37 como os primeiros mecanismos oficiais de

proteção patrimonial no país (Cf. Pelegrini 2006, p. 10). Apesar de o Golpe de

Estado de Getúlio Vargas em 1937, o projeto de lei 511/36 que havia sido

proposto por Mário de Andrade foi outorgado pelo presidente como o Decreto-

Lei nº 25/37, “que ainda está em vigor” (Funari & Robrahn-González 2008, p.

17). E foi conseqüente dessa lei que “um novo código penal também foi emitido

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em 1940, pela primeira vez punindo a destruição de bens culturais, incluindo os

arqueológicos” (Funari & Robrahn-González 2008, p. 17).

Se observarmos a definição de “patrimônio histórico” explícita no corpo

textual do Decreto-Lei,

Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (Brasil 1937).

Apesar da “vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil”, a

consagração do patrimônio histórico fica também a cargo de seu “excepcional

valor arqueológico ou etnográfico” (Brasil 1937). Da mesma maneira que os

intelectuais modernistas tiveram forte poder de veto e decisão sobre o que

seria considerado como de grande valor na identificação da brasilidade, a

arqueologia e demais ciências humanas possuem igual peso na definição do

que é “excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”.

Mais uma vez, voltamos ao ponto instável entre as conveniências e

inconveniências da normatização da identidade. Por um lado, a proposta dos

modernistas arrasta a tarefa crioula de construção de uma imagem peculiar do

Brasil, materializando a história pretensiosa e centralizadora do Estado Novo

através dos bens tombados (Rodrigues 1996, p. 196). Por outro, esse aparelho

jurídico que se cria para a proteção do patrimônio arqueológico e cultural

nacional permite que a disciplina tenha espaço para dar sua opinião e colocar

em prática sua distinta capacidade técnica e interpretativa. É uma questão de

escolha: defender Peri ou Macunaíma? Mais uma vez para tomar as palavras

de Tânia Andrade Lima,

Em se tratando do Brasil, uma arqueologia a serviço da construção da identidade nacional precisa marchar no sentido contrário ao da perspectiva homogeneizante, unificadora, bem como refugar a erosão das diferenças. Antes, tem que trabalhar para resgatar e revelar, na profundidade temporal em que opera, a diversidade étnica e cultural que se instalou desde os primórdios da presença humana em nosso território, e que

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se intensificou ao longo de milênios, até a conquista (Lima 2007, p. 21).

Assim, concordo com Ana Piñon

Sequeira quando afirma que podemos falar

“de valores sociais e ideológicos, mais que

princípios científicos e teóricos, como pilares

da arqueologia e, por extensão, da identidade indígena” (Sequeira 2005, p.

359).

Com o retorno do regime democrático, a arqueologia brasileira vê a

atuação de um de seus mais importantes intelectuais, Paulo Duarte. Sua

militância pela proteção do patrimônio arqueológico nacional foi responsável

pela aprovação da primeira lei brasileira sobre patrimônio arqueológico, a lei

3924 de 1961. Como vimos no primeiro capítulo, essa lei é base legislativa da

proteção do patrimônio arqueológico nacional. Essa lei não só dá posse à

União das jazidas arqueológicas, livres das normas da propriedade privada

(Brasil 1961, Art.1) como penaliza qualquer atuação de valoração econômica

desse patrimônio (Brasil 1961, Art. 3 a 5). Cabe lembrar que, apesar da

denominação de “jazidas arqueológicas” ser hoje já considerada insuficiente

(atem-se principalmente aos sítios pré-históricos), seu artigo 7º retifica que

As jazidas arqueológicas ou pré-históricas de qualquer natureza, não manifestadas e registradas na forma dos Artigos 4° e 6° desta lei, são consideradas, para todos os efeitos, bens patrimoniais da União (Brasil 1961, Art. 7).

Outro parâmetro fundamental estabelecido por essa legislação foi a

atribuição ao IPHAN da responsabilidade de gestão sobre esse patrimônio e

também de prover as permissões para intervenção arqueológica (Brasil 1961,

Art.11).

O mesmo personagem criou o Instituto de Pré-história, baseado no

Musée de l’Homme de Paris, influenciado também por sua amizade com seu

diretor, Paul Rivet (Funari & Robrahn-González 2008, p. 15-16). Por essa

mesma aliança franco-brasileira, chega, entre 1954 e 1955, o casal Joseph e

Annette Laming-Emperaire, cuja contribuição para o início da pesquisa

O conhecimento arqueológico no Brasil, como no exterior, sempre foi usado para legitimar políticas Estatais de identidade nacional.

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científica no país é ressaltada até os dias de hoje. Joseph realizou a primeira

datação radiocarbônica (C14) no Brasil, e o casal lecionou um curso de

métodos e técnicas de campo e laboratório para aplicação em sambaquis, a

convite de José Loureiro Fernandes do Centro de Pesquisas Arqueológicas da

Universidade Federal do Paraná (Souza 1991). Assim, entre os anos 1950 e

1970 inicia-se uma nova fase de formação de profissionais da área

arqueológica, profissionais brasileiros sob tutoria e trabalhos com

pesquisadores estrangeiros (Soares 1991).

Em 1964 o exercito brasileiro toma o poder no governo federal através

de um Golpe de Estado, instaurando uma ditadura militar que duraria até final

dos anos 1980. No mesmo ano do golpe de estado, começa o Programa

Nacional de Pesquisa Arqueológica (PRONAPA) coordenado por dois

arqueólogos americanos do Instituto Smithsonian sediado em Washington,

Betty Meggers e Clifford Evans (Funari & Robrahn-González 2008), que já

haviam trabalhado no Brasil desde os anos 1950 (Soares 1991).

O propósito do Programa foi colocar em vigor uma estratégia tipológica

para a cerâmica brasileira, capaz de reconhecer processos de ocupação Pré-

históricos e a aplicação de datações relativas (Soares 1991). Apesar do

sucesso dessa estruturação tipológica (primeira disponível na arqueologia

brasileira, e ainda usada em nossos dias), o Programa foi criticado por diversas

razões. Dentre elas, sua vinculação ao regime militar brasileiro que inviabilizou

trabalhos arqueológicos com vieses mais críticos. Esse fato criou profissionais

preocupados somente com questões de método (Funari & Robrahn-González

2008), produzindo aquartelamentos em diversos estados do país. Em função

disso, o SPHAN passou a confiar nos pesquisadores do Programa como

extensões de sua vontade nos cantos do território de mais difícil acesso

(Soares 1991), além de criar um vício que até hoje atormenta a arqueologia

brasileira, que é o reconhecimento imediato de grupos indígenas à tipos

cerâmicos (Oliveira 2006).

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122

Com o fim do regime militar e a volta do regime democrático nos anos

1980, a arqueologia no Brasil volta a buscar outras influências nos trabalhos

desenvolvidos na Europa e Estados Unidos (Funari & Robrahn-González 2008).

São três pontos, portanto, que a descrição acima suscita: i) a filiação

estatal da arqueologia e o caso brasileiro, que não se afasta do contexto

internacional da história da disciplina; ii) o fato de que essa filiação estatal tem

demandado da arqueologia sua participação na construção da etnicidade que

definiria o panorama nacional e, por fim, iii) o processo pelo qual o Brasil

passou na construção de seu próprio aparato jurídico para a proteção do

patrimônio arqueológico nacional.

4.2. Elegendo identidades

Com o retorno do regime democrático, o Brasil ingressa, em teoria, na

era das liberdades individuais e diversidade cultural, seguindo uma

necessidade profunda de reafirmar os direitos civis que haviam sido suprimidos

pela ditadura militar. Nesse momento, as políticas de gestão da diversidade, e

conseqüentemente do patrimônio, parecem ser guiadas por duas pautas

principais: o multiculturalismo e o desenvolvimentismo.

Através de sua postura política, como a atual ânsia por Belo Monte

(Marcello 2010, Brito 2011), o Brasil transparece com freqüência a idéia de um

país que se vê sempre atrasado, programando um futuro que o leve à

completude. Norbert Lechner mais uma vez é evocado por conta de um

conceito que me pareceu precioso sobre esse argumento: sutura. A idéia de

que o progresso serviria como sutura contemporânea nos rasgos da formação

nacional Latino Americana (Lechner 2000). Discordo, entretanto, quando afirma

que o progresso tenha surgido como resposta à perda de fronteiras sócio-

culturais na pós-modernidade. Pelo menos no Brasil, o positivismo republicano

já inaugura o progresso como nova diretriz das políticas nacionais, substituindo

apenas em título o antigo mote “civilizador”. Apesar de ser clara a erosão das

fronteiras nacionais (Achugar 2001), dos gêneros, do estranho e do conhecido,

como temos visto na tal “pós-modernidade”, parece-me, pelo contrário, que o

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progresso seja uma amostra contínua de uma distância sempre existente entre

as Américas coloniais e a Europa colonizadora, entre o Terceiro e o Primeiro

mundo.

O progresso, transformado hoje em desenvolvimento, acompanha nossa

história como marco essencial de políticas governamentais sobre a sociedade,

economia e cultura e podemos vê-lo como um constante palimpsesto (Achugar

2001, p. 90) que se reescreve a cada rasura auto-conferida (falhas nas

propostas nacionalistas) ou a cada pichação dos movimentos sociais

(modernista, feminista, diversidade sexual). É dessa sutura, desse palimpsesto

do programa “civilizador” nunca terminado, que surge a nova modalidade do

desenvolvimento sustentável, que marca a época de negociação entre a

imensidão Amazônica ameaçada e o contexto mitigatório do Protocolo de

Kyoto. Assim, entre os novos desafios enfrentados pela arqueologia, há aquele

que resulta de sua relação com o Estado e comunidades indígenas e

tradicionais (quilombolas, ribeirinhas, caiçaras) que se tem moldado por esse

novo parâmetro desenvolvimentista.

Nesse mundo novo, o aparato tradicionalista do Estado tem que lidar

com reconfigurações de identidades sociais, fruto dos movimentos das

décadas de 1960, 1970 e da queda dos regimes militares na América Latina. O

que se tem passado, sob essa nova configuração das diversidades sociais

intra-nacionais é o que Cristóbal Gnecco chama de “Multiculturalismo” (Gnecco

2009). O Estado, comprometido pela pós-modernidade, tenta encontrar a

essência de cada uma das diversidades como vetor de identificação e,

conseqüentemente, manejo. O Estado Nacional não mais de etnia homogênea,

procura trabalhar a heterogeneidade através de categorias fixas de

reconhecimento, tomando para si o poder de definição e de pertença desses

grupos ao território nacional. Cristóbal Gnecco acredita que o Estado toma as

dores dos grupos recém re-descobertos, e permite-lhes a voz através das duas

ferramentas essenciais para sua existência dentro da sociedade nacional: a

autonomia e o reconhecimento. Ou seja, o paternalismo nunca morreu. O

Estado mantém-se íntegro ao aceitar (afinal, só aceita quem tem o poder de

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recusar) as novas identidades que surgem em seu seio (e que haviam sido

esmagadas em seu nome).

O multiculturalismo é visto por Cristóbal Gnecco como uma ferramenta

de manejo social e reestabelecimento da ordem através da domesticação dos

grupos rebeldes, ao mesmo tempo que segregador (pois são culturas

diferentes e, portanto, impossíveis de serem partícipes dos processos gerais da

nação) e apaziguador (desestrutura motes de união comum contra o Estado)

(Gnecco 2009).

É possível identificar em nossos dias políticas de governo que ainda

trazem a ideologia de averiguação da identidade indígena, de avaliar seu

exotismo e seu pertencimento ao país. Vejamos na Constituição Federal,

promulgada em 1988, em um capítulo intitulado Dos indígenas;

Art. 231 § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições (Brasil 1988 – grifo meu).

Parece-me que o artigo, parte do suposto respeito pelas sociedades

indígenas ao reconhecer a subjetividade de suas “necessidades e reprodução

física e cultural, de acordo com seus costumes e tradições”, e os prende no

conceito de “ancestralidade” ao anunciar que “são terras tradicionalmente

ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente”53. Se

considerarmos todos os séculos de extermínio e deslocamento destes povos,

essa determinação não se faz compreensível. Ou seja, os indígenas foram

considerados irreversivelmente primitivos no séc. XIX, depois feito iguais a

todos os brasileiros no início do XX, e agora lhes estão garantindo

53 O Ato da Disposição Constitucional Transitória (ADCT) art. 68 da Constituição

Federal reafirma mais detalhadamente a necessidade de comprovação de vínculo ancestral

com o território. Ver http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cfdistra.htm Artigo 68.

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reconhecimento e autonomia, uma vez que tenham sobrevivido a anos de

sofrimento e segregação durante o processo civilizatório.

Gostaria de retomar as palavras de Cristóbal Gnecco sobre as

mudanças do projeto de integração nacional.

Na AL [América Latina] esse projeto foi variado e adquiriu cores particulares de acordo com os antecedentes coloniais, a marca do catolicismo e as relações raciais em cada país; no entanto, uma característica comum básica (a marca de fábrica da lógica moderna) foi a criação de uma comunidade nacional definida por critérios morais de igualdade e identidade. Este projeto foi irremediavelmente destruído faz umas duas décadas pelo multiculturalismo, uma retórica mundial que busca organizar as sociedades em marcos de diferença mais rígidos e circunscritos durante a modernidade, esta vez definindo a igualdade pela distancia (Gnecco 2009, no prelo, p. 02).

O projeto nacional no qual se baseou a criação de uma identidade

étnica e que decidiu muitas vezes a pertença de populações indígenas (ou pior,

decidiu por seu extermínio) foi “reciclado” pelo contexto atual de novas

demandas sociais. O Estado, numa tentativa de tornar-se menos obsoleto,

promove o apoio e sustento à diversidade. Retomando o exemplo que nos

interessa: durante os processos de licenciamento ambiental, nos quais estão

incluídos o trabalho arqueológico, os conselhos entre empreendedores,

comunidades afetadas, figuras políticas e representantes institucionais,

constroem-se outros processos que podem ser considerados interessantes

para o exercício da “boa governança” e do consenso entre a diversidade de

interesse das diversas partes (Zhouri 2008).

Além do imbricamento de sociedade civil, mercado e Estado na prática [da democracia], outro aspecto relevante a considerar é que a sociedade civil chamada a participar desta governança é aquela “organizada”, e organizada nos moldes eleitos pelos segmentos dominantes da sociedade (Zhouri 2008, p. 99).

E as comunidades, ao defenderem seus direitos e interesses

atropelados pelo setor “organizado” da sociedade, acabam por ser

consideradas e tratadas como inimigas da democracia (Zhouri 2008). Assim,

acabam entrando em confronto “duas nacionalidades”: a daquelas

comunidades que resguardam a terra como patrimônio coletivo e familiar,

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território de compartilhamento de recursos, e a do Estado (e seus

empreendimentos públicos) unido aos empreendimentos privados sob a ótica

de mercado em que o território é um bem passível de compra e venda (Zhouri

& Oliveira 2005, p. 49-50).

Esta é a situação que a arqueologia brasileira tem enfrentado em

processos de licenciamento ambiental. Em 1986, o esforço da comunidade

arqueológica por uma regulamentação da Lei de proteção de sítios

arqueológicos, promulgada em 1961, finalmente obteve resultado (Fernandes

2008). A Resolução CONAMA nº 1 publicado no Diário Oficial da União que

exige a elaboração dos EIA/RIMA’s já referidos. Na execução destes EIA/RIMA,

os impactos sociais sobre comunidades viventes nas proximidades da área sob

licitação e o impacto sobre o patrimônio cultural nacional foram também

considerados como elementos de investigação durante o processo de

licenciamento.

Art. 6º O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:

I - Diagnóstico ambiental da área de influência do projeto completa descrição e análise dos recursos ambientais e suas interações, tal como existem, de modo a caracterizar a situação ambiental da área, antes da implantação do projeto, considerando:

(...)

c) o meio sócio-econômico - o uso e ocupação do solo, os usos da água e a socioeconomia, destacando os sítios e monumentos arqueológicos, históricos e culturais da comunidade, as relações de dependência entre a sociedade local, os recursos ambientais e a potencial utilização futura desses recursos (Brasil 1986).

Na história da arqueologia brasileira, os anos 1960, 1970 e 1980, de

maneira similar ao que se passava em outros países da America Latina e

América do Norte (Davis 1972, Wagner 1987, Vidal 2010), foram muito

importantes para a solidificação de uma proteção do patrimônio arqueológico,

em níveis federais, estaduais e municipais, que os tratava como patrimônio da

união e não simplesmente submetidos a regulamentos de propriedade privada

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(Funari & Robhran-González 2008). Inclusive, para o exercício da prática

arqueológica em licenciamento (igual aos projetos acadêmicos), é necessária a

Portaria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A

Portaria que regulamenta os procedimentos tidos como adequados para a

execução do EIA e para a elaboração do RIMA. Entre os detalhes dos três

momentos do trabalho arqueológico, que seguem três momentos de

implantação dos projetos, coloco abaixo alguns parágrafos que me parecem

centrais como pontos que destacam o poder social atribuído ao técnico

arqueológico.

Fase de obtenção de licença de instalação (LI)

(…)

Artº 5. (…) § 2º - O resultado final esperado é um Programa de Resgate Arqueológico fundamentado em critérios precisos de significância científica dos sítios arqueológicos ameaçados que justifique a seleção dos sítios a serem objeto de estudo em detalhe, em detrimento de outros, e a metodologia a ser empregada nos estudos.

(…)

Fase de obtenção da licença de operação

(…)

Artº 6. (…) § 1º - É nesta fase que deverão ser realizados os trabalhos de salvamento arqueológico nos sítios selecionados na fase anterior, por meio de escavações exaustivas, registro detalhado de cada sítio e de seu entorno e coleta de exemplares estatisticamente significativos da cultura material contida em cada sítio arqueológico.

§ 2º - O resultado esperado é um relatório detalhado que especifique as atividades desenvolvidas em campo e em laboratório e apresente os resultados científicos dos esforços despendidos em termos de produção de conhecimento sobre arqueologia da área de estudo. Assim, a perda física dos sítios arqueológicos poderá ser efetivamente compensada pela incorporação dos conhecimentos produzidos à Memória Nacional (Brasil 1986).

Fica clara a relação de autoridade que a arqueologia conquista sobre a

valoração do patrimônio arqueológico e nos mecanismos que definem a

“Memória Nacional”. E espera-se que ela o faça dentro do “bom senso” daquilo

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que cabe à boa imagem da História Nacional. No processo de reconhecimento

do que é digno de participar da identidade da nação, e de ser resgatado, o

arqueólogo profissional presta um serviço ao Estado da mesma maneira em

que o fazia desde o século XIX. Com a diferença de que, agora, não mais

distingue o bárbaro do civilizado, mas busca distinguir o verdadeiro tradicional

da cultura corrompida.

De acordo com o relato de Jorge Eremites de Oliveira (2006),

(...) desde a década de 1990 especialistas em arqueologia têm sido intimados pela justiça federal a elaborarem laudos periciais para averiguarem se determinadas áreas em litígio são ou não de ocupação tradicional indígena, conforme determina a legislação brasileira (Oliveira 2006, p. 35).

No licenciamento de grandes obras de engenharia, os trabalhos

arqueológicos e antropológicos possuem muita força nos argumentos

contrários e a favor da presença indígena na área em discussão. Ou seja, a

necessidade de provar o vínculo ancestral dos indígenas com suas terras põe a

arqueologia em situação de jurado, com o poder de determinar quem é e quem

não é indígena. A questão tem criado intensos debates entre profissionais do

setor.

Jorge Eremites de Oliveira apresenta um texto pontual sobre essa

questão, em que questiona a aplicação de metodologia arqueológica em casos

de comprovação de ocupação ancestral indígena à terra. Suas críticas recaem

sobre um “laudo pericial sobre a Terra Indígena Sucuri’y, cujo relatório foi

apresentado por um arqueólogo à 1ª Vara da 1ª Seção Judiciária de Campo

Grande, Mato Grosso do Sul, conforme consta nos autos do Processo n°

97.0864-9” (Oliveira 2006, p. 35). Segundo Jorge Oliveira, o uso de métodos

interpretativos da pré-história para a investigação de processos territoriais é

incoerente e descabida, pois dá preferência a processos ocupacionais

imemoriais. Isso ignora os processos históricos de deslocamentos forçados de

indígenas durante o processo colonial, além de ignorar por completo a

dinâmica cultural inerente a qualquer sociedade humana.

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129

O autor defende sua posição através de argumentos sobre a

impropriedade do método arqueológico para a questão. O cerne do problema

está no vício da imemorialidade. O perito criticado por Jorge Oliveira apega-se

em demasia às leituras sobre os processos pré-históricos de ocupação da área,

a busca por datações absolutas de material arqueológico e a aparente

irrelevância do real significado que esse material possa ter para a comunidade

local. O vínculo ancestral com a terra poderia ter sido observado em outras

evidências materiais mais recentes, “como ‘latas velhas’, ‘sola de sapato’,

‘entulho de lixo’, locais de importância simbólica para atividades de caça (como

o registrado como ogatawa), “alto topográfico” onde teria existido uma oga pysy

etc.” (Oliveira 2006, p. 41).

A memória social transmitida pela oralidade (fonte rica para diversas das

ciências humanas) e a historiografia local conservam inclusive as experiências

de um processo de esbulho pelo qual passaram os Kaiowá nos anos 1980, em

sua maioria ignorada pelo autor preocupado com a ancestralidade imemorial

(Oliveira 2006).

O próprio Jorge Oliveira possui um trabalho sobre o mesmo processo de

territorialização/desterritorialização na região de Sindrolândia, no sul do Mato

Grosso. Trata-se dos grupos Terena, envolvidos na Guerra do Paraguai

durante o século XIX (Oliveira & Pereira 2007). Uma história um tanto irônica,

por sinal. Mesmo com o abandono de algumas famílias devido a iminência da

invasão paraguaia, muitos terena ficaram na terra e inclusive prestaram auxílio

às tropas brasileiras locadas na região, quando não contribuíram com

resistência armada à entrada das tropas paraguaias. No entanto, na entrada do

século XX, terras indígenas não registradas foram passadas para terceiros

ainda no XIX e as famílias remanescentes foram reterritorializadas a uma área

de 2000 ha no começo do XX (muito menor que sua área de ocupação original)

(Oliveira & Pereira 2007).

Essa história está presente nas fontes orais que não são levadas tão a

sério quanto deveriam, além de as entrevistas terem sido conduzidas na

presença de outros técnicos envolvidos no litígio. Conseqüente desse uso

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descuidado das fontes, o trabalho arqueológico foi levado a cabo de forma

desrespeitosa com os indígenas por intervir com escavações em

sepultamentos. E com que propósito?

Seria realmente necessário tudo isso [datar os esqueletos e comparar DNA antigo com contemporâneo] para dar crédito à memória social coletiva de uma comunidade indígena, às evidências materiais encontradas in loco e às fontes textuais conhecidas? (Oliveira 2006, p. 43)

Ao fim, Jorge Oliveira acusa o trabalho arqueológico de excessivamente

“passadista”, incoerente com a dinâmica histórica das populações indígenas e

da ocupação colonial do território brasileiro.

Por este motivo principal é que se faz necessário superar um antigo paradigma histórico-cultural, qual seja, a de que a etnicidade ou a identidade étnica deve ser tratada como um fenômeno estático, fossilizado no tempo e no espaço e que surge de fora para dentro dos grupos étnicos. Pelo contrário, é um fenômeno dinâmico que emerge do interior dos grupos étnicos para a exterioridade, em situações de contatos interculturais (Oliveira 2006, p. 47).

Em uma passagem de seu artigo, transcreve uma interessante menção

da antropóloga assistente técnica do Ministério Público, em que afirma o papel

da lei (Art. 231 da Constituição de 1988) em “amparar direitos étnicos de povos

abstratos, situados em algum lugar do passado. [A lei] Busca, sim, amparar

direitos de povos vivos e contemporâneos” (Carreira 2000 apud Oliveira 2006,

p. 38).

De fato, é interessante observar que, apesar de exigir a “ocupação

ancestral da terra”, ela não define com precisão qual o grau de ancestralidade

e como essa ancestralidade pode ser definida. Jorge Oliveira acusa os

métodos aplicados à arqueologia pré-histórica de serem impróprios para essa

situação por nortearem os resultados de acordo com um passado inalcançável

por qualquer processo de ocupação dos últimos 500 anos. Ele apresenta sim

momentos em que o estudo da cultura material mais recente torna-se proposta

válida de reconhecimento social da ocupação do espaço: entre os pertences,

enterrados com seus mortos pelos Kaiwoá, podem constar colares de contas

ou bicicletas (Oliveira 2006). Durante seu texto, o autor parece defender que a

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antropologia, etnologia, etno-história e história local podem prover, não só uma

variedade maior de fontes, como uma variedade maior de métodos. E, por que

não, de cosmovisões ao arqueólogo? Mais uma vez, retornamos aos méritos

da ética arqueológica. Não se trata de criminalizar a arqueologia como serva do

Estado, mas de repreender a arqueologia por ignorar a situação política na qual

se encontra e de abusar de maneira indiscriminada de seus recursos técnicos

para emitir pesados julgamentos.

No entanto, cabe situar outro caso marcante nas discussões de ética

profissional do arqueólogo em que essa liberdade parece ser tolhida e

necessita de respaldo jurídico e institucional. Entre 2004 e 2007, uma séria

discussão ao redor dos resultados de avaliações antropológicas e

arqueológicas sobre a localização exata de um local sagrado às etnias do

Parque Indígena do Alto Xingú.

Em 2004, os povos do Xingu foram surpreendidos pela construção de uma barragem no rio Culuene. Os índios invadiram o canteiro de obras e solicitaram sua paralisação, alegando, de um lado, que o local é sagrado, pois seria o sítio em que o primeiro Quarup foi realizado; e, de outro, que o impacto ambiental causaria prejuízos às populações do Parque Indígena do Xingu, que vivem basicamente do consumo do pescado (Fausto 2006, p. 2).

O forte embate entre laudos e contra-laudos foi marcante da polêmica e

do conflito com os quais a arqueologia tem se deparado em processos de

licenciamento (Ver: Fausto 2006 e Robrahn-González 2006a). Longe de me

propor como juiz dos méritos dos pesquisadores, me parece apenas

interessante citar a observação de Carlos Fausto sobre a relação entre o

arqueólogo (como autônomo ou como representante de uma empresa

arqueológica) e a companhia contratante:

De todo modo, acho que é hora de começarmos a discutir a legislação e as condições em que são realizados estes estudos de maneira geral: a quem cabe a indicação da empresa de consultoria ou do profissional que vai realizar estudos arqueológicos e antropológicos para esses empreendimentos? Quem protege os arqueólogos e antropólogos que, porventura, cheguem a conclusões que contrariam os interesses do empreendedor? Quais os mecanismos públicos que visam

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impedir a produção de um círculo vicioso entre empreendedores e empresas de consultoria? Qual deve ser o papel dos órgãos públicos e das associações científicas nesse processo?

São estas as questões que devemos juntos, antropólogos e arqueólogos, enfrentar de modo a aperfeiçoar a legislação, garantir o livre exercício da profissão, proteger o patrimônio cultural nacional e defender a sociedade civil, em particular as populações minoritárias que são as mais afetadas por nossa atuação (Fausto 2006, p. 8 – grifos no original).

Estou seguro de que o propósito dos trabalhos de licenciamento não é a

produção de laudos de liberação de obra, mas sim de trabalhos científicos

mesmo que sob a forte pressão do tempo (Robhran-González 2006). Para que

isso seja possível, a atuação profissional precisa de um respaldo jurídico sobre

o qual possa sustentar a validade daquele

aparato técnico e, inclusive, moral para evitar

seu “sucateamento” ao sofrer as pressões do

mercado (Fernandes 2008, p. 65). Não só

dependente da legislação, a atuação

profissional necessita de um respaldo associativo, em que seus pares possam

apoiar uma postura ética comum. Voltamos à discussão sobre a filiação estatal

da arqueologia e sua base científica. Ambas são partes ontológicas da

disciplina arqueológica e são suas fontes de legitimidade. A pergunta foi feita

no capítulo anterior: “Será que a arqueologia deveria abandonar sua filiação ao

Estado”? A resposta depende de situações específicas. Não acredito que a

arqueologia possa abandonar sua filiação com o Estado Nacional. No Brasil, a

exemplo, isso significaria o fim da arqueologia como cargo público no IPHAN e

no Ministério Público, órgãos que têm lutado pela preservação do patrimônio

arqueológico e pela responsabilidade profissional do arqueólogo. Pela mesma

lógica, significaria o fim da arqueologia como disciplina acadêmica, uma vez

que a maior parte dos grandes centros de pesquisa arqueológicos são

instituições públicas. Aliás, podemos observar um franco fortalecimento nos

laços que unem a disciplina arqueológica à base estatal, através do surgimento

de novos cursos de graduação em arqueologia; Sua maioria em Universidades

públicas através do Pro-Uni (programa do governo federal de incentivo à

A Resolução CONAMA nº 001/86 marca um momento na reavaliação da prática profissional na arqueologia e de sua responsabilidade social.

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criação de novos cursos de graduação). Cursos que têm surgido para suprir a

demanda de pesquisadores, tanto na área de licenciamento, quanto na área

acadêmica.

No Brasil, a arqueologia continua sendo, em boa parte, prole do Estado

Nacional. Sua filiação a legitima através dos regulamentos de proteção e

manejo do patrimônio nacional, enquanto sua associação à produção científica

garante a autenticidade e autonomia de seu discurso. No entanto, tendo em

vista os limites de alcance das políticas de Estado (ou os não-limites), o

profissional deve, uma vez com esse suporte, decidir sobre a melhor maneira

de direcionar sua atuação.

A situação na qual se encontra a arqueologia de contrato no Brasil é

particularmente perigosa por ser uma profissão não regulamentada perante os

órgãos oficiais, não gozando assim daqueles benefícios jurídicos oferecidos por

Conselhos Regionais, bem como de parâmetros obrigatórios para garantir a

mínima qualidade e ética dos trabalhos. Sua força associativa também deixa a

desejar se observarmos o próprio Código de Ética da Sociedade de

Arqueologia Brasileira reafirma seu dever de.

Reconhecer como legítimos os direitos dos grupos étnicos investigados à herança cultural de seus antepassados, bem como aos seus restos funerários, e atendê-los em suas reivindicações, uma vez comprovada sua ancestralidade (SAB 2007, p. 3 – grifo meu).

A arqueologia brasileira tem se posicionado de modo condizente com a

política “multiculturalista” do Estado. Ou melhor, parece estar “tirando o corpo

de fora” ao reproduzir as palavras da Constituinte sem maiores detalhes sobre

suas obrigações com o mundo social dinâmico que a envolve. Em 1996, dez

anos após a publicação da Resolução CONAMA nº 001/86, arqueólogos e

arqueólogas se reúnem em Goiânia para a avaliação de métodos e

procedimentos de trabalho desenvolvidos e aplicados em processos de

licenciamento (Simpósio sobre política nacional (...) 1996). Um “Documento-

síntese” apresentado ao final das Atas do Simpósio faz importantes

recomendações sobre os procedimentos legais e metodológicos cabíveis aos

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arqueólogos e ao IPHAN, sobre os direitos autorais dos trabalhos técnicos

produzidos, bem como sobre a responsabilidade dos empreendimentos

impactantes na transparência de seus métodos de intervenção e de

conhecimentos prévios sobre o local (Simpósio sobre política nacional (...)

1996). No entanto, tanto os trabalhos presentes nas Atas do Simpósio quanto o

Documento-síntese, não fazem qualquer menção à participação pública e das

populações impactadas nos processos de construção do conhecimento

histórico dos lugares sob licitação. O conhecimento arqueológico é entendido

meramente como os vestígios materiais de populações mortas. Não espanta,

assim, o fato de que uma das maiores dificuldades para a preservação do

patrimônio nacional seja sua irrelevância para grande parte da população

nacional (Funari 2001) viva e não arqueológica.

Nesse contexto, as discussões e questionamentos trazidos pela

arqueologia pública se tornam essenciais para levar a cabo modificações na

ética profissional e nas propostas de pesquisa arqueológica no país.

4.3. Arqueologia pública no Brasil

Grande parte dos trabalhos de “arqueologia pública” no Brasil vem

desses projetos de trabalhos de licenciamento. Como exigido pela Portaria nº

230/2002 do IPHAN, qualquer trabalho de licenciamento arqueológico deve ser

acompanhado de um projeto de educação patrimonial

§ 7º - O desenvolvimento dos estudos arqueológicos acima descritos, em todas as suas fases, implica trabalhos de laboratório e gabinete (limpeza, triagem, registro, análise, interpretação, acondicionamento adequado do material coletado em campo, bem como programa de Educação Patrimonial), os quais deverão estar previstos nos contratos entre os empreendedores e os arqueólogos responsáveis pelos estudos, tanto em termos de orçamento quanto de cronograma (Brasil 2002, Art.6).

As demais portarias do Instituto exigem o desenvolvimento de alguma

forma de reaproveitamento e redirecionamento público do que foi produzido

pelo arqueólogo. A permissão para realizar trabalhos arqueológicos, de acordo

com a Portaria nº 7/88 só será concedida mediante aprovação do projeto de

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intervenção que deve obrigatoriamente conter uma “proposta preliminar de

utilização futura do material produzido para fins científicos, culturais e

educacionais” (Brasil 1988b, Art.5.IV.1).

Assim, apesar dos acalorados debates sobre ética profissional, muito do

que tem sido produzido no país sobre o nome de “arqueologia pública” recorre

aos métodos de uma educação ou alcance público, conhecido como educação

patrimonial. Como assinalam Pedro Paulo Funari e Aline Vieira de Carvalho

(2009), embora a legislação de 1961 já tivesse sido aprovada foi apenas com a

abertura política dos anos 1980 que estados e municípios puderam colocar em

vigor as normas nacionais e promover normas internas de proteção de seu

patrimônio local. Nesse contexto foi-se desenvolvendo discussões sobre a

importância da divulgação do trabalho arqueológico e da educação patrimonial

(Funari & Carvalho 2009). “Através da educação patrimonial o cidadão torna-se

capaz de entender sua importância no processo cultural em que ele faz parte,

cria uma transformação positiva entre a relação dele e do patrimônio cultural”

(Bastos e Funari, 2008: 1131 apud Funari & Carvalho 2009, p. única).

Como vimos no capítulo anterior, a importância de buscar meios através

dos quais o mecanismo de proteção patrimonial e de pesquisa arqueológica

ganhem significado para a sociedade é a semente da arqueologia pública, e

até hoje representa parte essencial dos trabalhos desenvolvidos sob essa

alcunha. Pedro Paulo Funari coloca em boas palavras “os desafios da

destruição e conservação do patrimônio cultural no Brasil”.

Devemos lutar para preservar tanto o patrimônio erudito, como popular, a fim de democratizar a informação e a educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como acadêmicos e como cidadãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nosso patrimônio comum. E isto não é uma tarefa fácil (Funari 2001, p. 25)

A arqueologia de contrato foi a introdutora das principais problemáticas

na discussão de arqueologia pública no Brasil. Como vimos no item anterior, os

processos de licenciamento tem sido os primeiros a chamar atenção da

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disciplina não apenas a necessidade de ferramentas jurídicas para a proteção

de um patrimônio que se destruía com o avanço da industrialização rumo ao

interior do país. Foi também um ponto de choque entre aqueles que viviam

nestes territórios impactados, que viviam perto de sítios arqueológicos, que os

usavam de outra maneira, que os viam de outra maneira, não necessariamente

de acordo com “os interesses da nação”. A arqueologia de contrato trouxe à

tona a relevância que a voz disciplinar ainda possui na declaração de pertença

social e de manejo da diversidade cultural através da cultura material.

Entre essa diversidade de diálogos própria da arqueologia pública,

gostaria de discutir aqui alguns exemplos de trabalhos produzidos no Brasil sob

esse conceito.

De inicio, vale atentar para o conceito de “educação patrimonial”, tal

como definido pelo “Guia Básico de Educação Patrimonial” do IPHAN (Horta et

alii 1999).

Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e enriquecimento individual e coletivo (Horta el alii 1999, p. 6 – grifos no original).

O Guia deixa claro sua intenção de manter uma relação interativa entre

“agentes responsáveis pela preservação e estudo dos bens culturais” e

“comunidades”, tendo em perspectiva a criação de um ambiente em que

adultos e crianças sejam envolvidas em um “processo ativo de conhecimento ,

apropriação e valorização de sua herança cultural” (Horta et alii 1999, p. 6).

No entanto, deixa também explícito que esse processo ativo visa capacitá-los

para um “melhor usufruto destes bens”, e declara abertamente que “a

Educação Patrimonial é um instrumento de ‘alfabetização cultural’ que

possibilita o indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia” (Horta et alii 1999,

p. 6). E, como consequência, que a educação patrimonial reforça a auto-estima

dos indivíduos e comunidade.

Fica clara a referência ao público “não-agente-responsável-pela-

preservação-e-estudo-dos-bens-culturais” como deficitários de cultura

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(Merriman 2004a), como simples recipientes vazios a serem preenchidos com

o conhecimento superior dos educadores (Freire 1987). A meu ver, autores e

IPHAN tomam uma postura lamentável quando publicam tal assertiva, uma vez

que me parece impossível que qualquer ser humano possa viver despossuído

de cultura e incapaz de ler o mundo que o rodeia. O texto só faz sentido uma

vez que tomemos “cultura” como sinônimo de uma cosmovisão erudita e

acadêmica, onde a ciência é a única capaz de desvendar as leis que regem o

universo e seu funcionamento.

Como vimos no capítulo anterior, conforme proposição de Ana Maria

Gomes (2006), não se trata de déficit cultural ou incapacidade individual, mas

de estar “no campo das diferenças coletivas na forma de viver e interpretar a

experiência social” (Gomes 2006, p. 318). Diferentes grupos sociais e

indivíduos interpretam o mundo de maneiras diferentes, de acordo com suas

diferentes vivências e experiências. A “leitura do mundo que o rodeia” é

indissociável da relação que o indivíduo, com sua bagagem social e abstrações

pessoais, estabelece com o espaço. Já argumentei isso anteriormente: a

transformação de um espaço qualquer em lugar, referencial cultural, depende

da relação afetiva que esse indivíduo estabelece com o espaço (Tilley 2006).

Aproximar-se de uma comunidade buscando preenchê-la com as modalidades

cognitivas que se acredita serem as únicas possíveis é caminhar para o que

Pedro Paulo Funari argumenta sobre o patrimônio nacional: grande parte da

população simplesmente não se identifica com ele (Funari 2001). Quando não

o depredo voluntário, pois o patrimônio, além de conceito jurídico, torna-se

sinônimo de imposição e desrespeito ao “lugar” local.

Para dar continuidade à argumentação deste trabalho, escolhi a leitura

mais profunda de teses e dissertações nacionais que abordassem o termo

“arqueologia pública”, com o propósito de ver como a Academia tem

contribuído com a reflexão sobre esse conceito e com a discussão sobre os

desafios contemporâneos da prática da arqueologia no país. Reconheço que

existam mais trabalhos interessados no estudo das relações entre

pesquisadores e a alteridade fora da academia, e discutir diferentes formas de

compreensão do passado, dos que aqui discutidos (e.g. Stuchi 2010, Pouget

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2010, Carvalho 2009). Devido às dimensões desta dissertação, no entanto,

reservei-me a comentar trabalhos que se identificassem sob a alcunha de

“arqueologia pública”.

Alguns poucos trabalhos acadêmicos têm sido produzidos sob essa guia.

O Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE/USP) foi responsável por uma

dissertação e uma tese na área. Em 2008, Tatiana Costa Fernandes defendeu

sua dissertação sobre uma experiência de arqueologia pública em um sítio

arqueológico em Guararema no interior de São Paulo, decorrente de um

trabalho com a Scientia Consultoria Científica Ltda (Fernandes 2008). A

primeira frase da introdução parece deixar muito clara a proposta da autora.

O presente estudo versa sobre as potencialidades e abrangências de uma Arqueologia Pública no Brasil. Mais do que um estudo delineado academicamente trata-se da possibilidade de reflexão sobre os profissionais e pesquisadores ligados à chamada ‘Gestão de Recursos Culturais’, mas também, ao campo de atuação do arqueólogo nas mais diferentes formas de intercepção do trinômio ciência-patrimônio-sociedade (Fernandes 2008, p. 1).

A autora define o que entende por arqueologia pública, tomando sua

postura voltada para a Gestão de Recursos Culturais. A partir daí, constrói uma

interessante trajetória desde o surgimento do conceito na década de 1970 até

os dias de hoje. Apesar de sentir a ausência de alguns pontos relativos ao

caráter conflituoso da arqueologia pública (em especial da literatura sobre os

conflitos territoriais indígenas), a autora percorre o histórico do tema de

maneira sólida para o sustento de sua conceituação. Ainda no primeiro capítulo,

ela deixa claro seu interesse pela educação patrimonial como parte essencial

da Gestão de Recursos Culturais e, conseqüentemente, da arqueologia pública

(Fernandes 2008).

Passando para o segundo capítulo, ela aposta em uma definição mais

pontual sobre arqueologia pública com a qual me identifico. “Arqueologia

pública como campo científico da Arqueologia destinado a discutir, intervir e

rever a relação dialética entre a ciência arqueológica e a sociedade”

(Fernandes 2008, p.33). Dessa forma, ela passa a defender de maneira

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condizente uma educação patrimonial que seja capaz de prover o público com

mecanismos culturais de libertação, mecanismos que possam ser apropriados

pelo público para defesa de seus interesses, seguindo a linha de Paulo Freire

na pedagogia da libertação. Tendo definido esse conceito de arqueologia

pública, é possível dizer que o cerne de sua proposta é construído na tentativa

de aplicação da educação patrimonial como possibilidade de Gestão de

Recursos Culturais (Fernandes 2008, p. 70)

Dando seqüência a seus argumentos, Tatiana Fernandes avança com

seu posicionamento teórico sobre sua proposta de trabalho. Nesse ponto ela

identifica a arqueologia em uma situação necessariamente vinculada ao

contexto social, que não pode se eximir de sua responsabilidade como Ciência

Social. Assim, ela deve encarar a situação atual em que se encontra, definida

pela periculosidade com que avança o desenvolvimento do setor urbano e

consumo de recursos naturais (sugerindo um maior controle de atividades

industriais, extrativistas e de descarte) ao mesmo tempo em que não se

concebe o retraso do desenvolvimento dos setores primários e secundários da

economia nacional (o que sugere uma condição desenvolvimentista que temos

enfrentado desde que nos conhecemos como colônia, ou pelo menos como

nação independente). Assim, temos os conceitos de “desenvolvimento

sustentável”, “sustentabilidade”, entre outros que tentam congregar essas duas

situações em uma. E a arqueologia está situada nesse meandro (Fernandes

2008).

Nesse processo “desenvolvimentista com os devidos cuidados”, não só

questões ambientais têm sido colocadas em pauta, mas o custo que o avanço

do capital tem sobre comunidades que antes quase não usavam o dinheiro. E,

desde a resolução CONAMA, como vimos, as análises de impacto social e

cultural exigem o trabalho do arqueólogo para avaliar qual será esse impacto

sobre os sítios arqueológicos. No mesmo espírito com que começara o trabalho,

Fernandes (2008) avalia as possibilidades conceituais da “Educação não-

formal” para contribuir com um processo educativo em que se promova a

democracia de oportunidades e conhecimento entre populações que, antes de

serem afetadas por um empreendimento, são afetadas pela marginalidade

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social. Sua aposta na educação não-formal é a de que ela permite explorar

processos educativos que ocorrem fora da escola.

No entanto, acredito que a aplicação de sua proposta teórica não foi

realizada em sua totalidade. Seu trabalho foi orientado, em suma, para três

tipos de público: estagiários da Universidade de Santos, estudantes de colégios

locais (fundamental e médio) e os auxiliares de campo. Sua atuação com os

interesses locais me pareceu desviar um pouco de sua proposta inicial.

Podemos ver um exemplo nos critérios de relevância dedicados aos sítios

arqueológicos: “Diversidade intrínseca (variabilidade cultural de um sítio);

diversidade regional (variabilidade cultural comparativa entre sítios); quantidade

e qualidade dos materiais; presença de estruturas arqueológicas,

perceptibilidade do registro; localização e acesso e; entorno ambiental”

(Fernandes 2008, p. 81). São critérios de caráter unicamente arqueológicos.

Por fim, ela considera

que a determinação desses atributos e sua pontuação (Alta, média, baixa, etc) deve ser a mais ‘livre’ possível, aberta à opinião pública e à crítica científica, de forma que seja constantemente renovada e contrastada, em interação dinâmica, jamais estática (Fernandes 2008, p. 81).

Ou seja, caberia apenas ao público dar sua opinião uma vez que as

regras do jogo foram definidas. Nenhum dos critérios apresentados foi proposto

pelo público (sua fonte para os critérios foi a dissertação de L. L. Brochier,

defendida em 2004). Apesar de, ainda assim, afirmar em diversas etapas do

texto que os conceitos de preservação e relevância a serem credenciados ao

sítio devem ser dinâmicos e sempre consultados com a opinião pública e

cientistas. Mais uma vez, não me parece algo muito relevante que a opinião

pública opine em métodos e parâmetros que nem foram feitos em seus termos.

Ou seja, a opinião pode ser pública, mas as regras do jogo continuam sendo

apenas científicas. Vale adicionar que, nos objetivos da pesquisa arqueológica

(p. 85) e nos critérios de relevância do sítio “Topo do Guararema” (p. 84), não

há pontos dedicados ao interesse da comunidade nem definidos por eles.

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A atuação do projeto junto aos estudantes do ensino fundamental e

médio tampouco leva em conta sua discussão sobre “empoderamento” social.

Os alunos do fundamental são inseridos no trabalho do arqueólogo através de

som ambiente e, palestras e da cartilha explicativa. As questões feitas aos

alunos no final da visita são para averiguar a retenção do conteúdo: “O que são

vestígios?”, “O que são vestígios materiais?”, “Alguém sabe o nome da ciência

que estuda o homem através de seus vestígios materiais?”, “A arqueologia

estuda ruínas de menos de 100 anos de idade?”.

Certamente meu conhecimento sobre paradigmas educacionais são

ínfimos e não possuo parâmetros para julgar níveis de aprendizagem dos

diversos estágios do desenvolvimento do indivíduo. Mas, repito, porque não

tentar ver primeiro as diferenças de tipos de aprendizagem. Não testar só o

teor de absorção da criança, mas também a diversidade de observações que

elas colocam sobre o ambiente e seu entorno. Talvez, ao invés de perguntar “o

que você entendeu?” seria mais válido partir da questão “o que você entende?”,

“O que acha que estamos fazendo aqui?”, “Você já veio aqui antes?”, “O que

acha daqui?”. Ou mesmo deixar que as crianças façam as perguntas, já que a

proposta é atendê-las em seus interesses enquanto parte do público. Isso foi

muito bem conduzido quando a autora apresenta sua experiência com

estudantes do ensino médio. Aos alunos foi dada maior liberdade de

questionamento e intervenção no trabalho arqueológico. Apesar do fato da

liberdade de questionamento ser dada aos estudantes após ter sido

apresentada a interpretação do arqueólogo (Fernandes 2008).

A autora cita inclusive o trabalho de Tim Copeland, citado aqui no

capítulo anterior (Copeland 2004) sobre a interação contínua entre a

interpretação do arqueólogo e a interpretação do público. Mais uma vez,

retomo a crítica feita ao trabalho de Copeland: parece-me errôneo imaginar que

a arqueologia é a primeira a revelar o passado e o espaço à comunidade local.

A população local deve estar ligada àquele sítio próximo, não por sensibilidade

científica, mas por seus parâmetros de concepção do espaço, mesmo que seja

o de um espaço que nunca demonstrou importância alguma. Não cabe à

arqueologia abrir a interpretação, pois ela nunca esteve fechada (Cabral &

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Saldanha 2008). Cabe a ela abrir-se a si mesma à tolerância de outras

interpretações e à crítica sobre seus métodos e atuação.

A tese de Marcia Bezerra de Almeida apresenta também uma

experiência de educação arqueológica, desta vez dentro da escola (2002). Sua

postura quanto à educação segue linhas semelhantes às expostas na

discussão do texto de Tatiana Fernandes, tomando Paulo Freire como principal

referência de uma educação que supere o medo ideológico e apresente-se

como campo de liberdade das expressões individuais e do conhecimento não-

oficial (Bezerra de Almeida 2002). Para definir o conceito de arqueologia

pública, toma as palavras de Pedro Paulo Funari, argumentando que

arqueologia pública é “mais do que a conotação tradicional de ‘alcance público’.

De uma maneira crítica, é entendida como uma investigação: cui bono, ‘quem

se beneficia’ da prática e teoria arqueológica, do discurso arqueológico? (...)

(Funari 2001a, p. 239 apud Bezerra de Almeida 2002, p. 9).

A aproximação de Bezerra de Almeida ao interesse e entendimento

público de arqueologia foi feita através de entrevistas semi-estruturadas com os

alunos da turma participante. O Projeto “Descobridores Mirins” foi desenvolvido

em 2001 com alunos da 5º série do ensino fundamental do Colégio Marista São

José, situado na Tijuca, Rio de Janeiro/RJ. O Projeto foi desenvolvido à convite

dos professores de história do colégio. De modo geral, as entrevistas foram

conduzidas de maneira a permitir a liberdade dos alunos nos comentários e

reflexões sobre o que conheciam de arqueologia e se a relacionavam com

algum aspecto de suas vidas atuais. Após as entrevistas, o trabalho foi seguido

de aulas sobre arqueologia e uma simulação de escavação em um sítio

arqueológico. Findas as escavações, os alunos deveriam produzir relatórios

interpretativos sobre o material encontrado, que foram então analisados pela

autora a fim de observar o que havia mudado na compreensão de arqueologia

dos alunos (Bezerra de Menezes 2002).

A completa liberdade interpretativa durante as escavações e as

entrevistas que precederam as aulas, a meu ver, são os pontos mais fortes do

trabalho de Marica Bezerra. A abordagem inicial através de entrevistas semi-

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estruturadas é uma maneira de diálogo direto com cada indivíduo, reconhecer

suas perspectivas e reações ao ambiente escolar do qual a própria arqueóloga

estava inserida naquele momento. A gravação das entrevistas com câmera de

vídeo ao invés de gravador de voz foi escolhida de modo a captar a reação

corporal às perguntas e a comunicação gestual que acompanha a

comunicação verbal. Apesar de ser um aparelho que causa certo desconforto

inicial (ou durante toda a entrevista para alguns indivíduos), a autora afirma que

muitas das crianças se “soltavam” em pouco tempo, algumas inclusive se

sentiam a vontade com a “teatralização” da situação (Bezerra de Almeida 2002).

A linguagem corporal das crianças durante as entrevistas, no entanto, não

foram exploradas com profundidade na tese.

A liberdade de expressão durante a interpretação dos vestígios permitiu

uma verdadeira revisão da construção cognitiva dos alunos resultante das

exposições em aula e da experiência de escavação, que envolve esforço físico,

trabalho conjunto, muita criatividade e estudo (Bezerra de Almeida 2002). A

leitura das expressões físicas, escritas e orais das crianças sobre arqueologia

foi feita através da Teoria das Representações Sociais de Serge Moscovici

(Bezerra de Almeida 2002, p. 94), interpretando essas expressões como

construções simbólicas sobre o mundo que as cerca, baseadas em suas

sensibilidades sociais. A leitura do contexto social e, em especial, relações de

gênero dos alunos apresentada pela autora foram muito bem conduzidas por

esse caminho. A proposta da autora visa entender as crianças como seres

sociais que possuem sua bagagem cognitiva e que, através dela, reconhecem

o funcionamento do mundo. Através desse conhecimento será possível levar a

cabo uma educação libertadora, que disponibilize as possibilidades que a

arqueologia possui para interpretação da realidade (Bezerra de Almeida 2002).

Finalmente, o ultimo estágio do Projeto foi uma segunda etapa de entrevistas

sobre a compreensão de arqueologia dos alunos após as aulas e a experiência

em “campo”.

A proposta de Marcia Bezerra carrega consigo muito de sua intenção

denotada no inicio do trabalho: executar uma arqueologia pública que vá além

do “alcance público”, respeitando a alteridade fora da Academia e

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disponibilizando o conhecimento arqueológico como uma ferramenta distinta

para a interpretação do passado. No entanto, algumas lacunas e confusões me

chamaram a atenção no trabalho. Primeiro quanto às referências ao tema da

“memória”, que em diversos momentos do texto, em especial durante o

primeiro capítulo que trata da noção de Patrimônio Cultural, parece confuso:

ora como domínio da história oficial e deficitária em alguns setores da

sociedade que destroem o patrimônio (como no primeiro trecho), ora como

ferramenta subjetiva, individual ou coletiva, de interpretação do passado

sempre a serviço da criação identitária, opressora ou libertadora (como no

segundo exemplo).

A este respeito, a relação do povo brasileiro com o seu patrimônio arqueológico é bastante esclarecedora. Como vimos, o patrimônio arqueológico é parte da memória do povo e um dos seus símbolos de identificação. O cidadão, contudo, não reconhece e não se reconhece neste patrimônio (Bezerra de Almeida 2002, p. 18).

Não se vive uma história que não é a sua. Esse vazio faz com que a memória individual e a memória social sejam invadidas “(...) por outra ‘história; por uma outra memória que rouba das primeiras o sentido, a transparência e a verdade” (Chauí, 1999, p.19). É preciso lutar contra a espoliação da memória, é preciso lutar contra a invasão cultural (Freire,2002) (Bezerra de Almeida 2002, p. 20 – grifos no original).

Junto com essa confusão da memória, ora campo realidade de todos,

ora realidade de poucos, está a confusão d’ “o povo” que tem posse dessa

memória. Quem seria o “povo brasileiro” que não se identifica com o patrimônio

arqueológico? Como pode o mesmo povo ter a identidade definida pelo

patrimônio arqueológico e não se reconhecer nele? E, mesmo não reconhecido

no patrimônio, ter sua memória invadida? De quem é o patrimônio, afinal, e

qual memória é invadida? Apesar dessa confusão, o referencial teórico e a

postura adotada pela autora de respeito ao conhecimento prévio dos alunos

deixa clara sua concepção da relação de poderes entre as “memórias”.

A lacuna que me pareceu maior no trabalho foi a “irreversibilidade” do

processo cognitivo: como as perspectivas e atuações das crianças fizeram com

que os membros do Projeto e a própria autora refletissem sobre a prática

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arqueológica? A notada criatividade dos alunos poderia ter sido discutida com

mais profundidade: será que a concepção delas está tão “distorcida” quanto se

pensava? Aliás, por que entender essa concepção como “distorcida”? As

práticas interpretativas que adotamos são tão diferentes de um exercício

criativo? Ou, de fato, fica evidente que a formação arqueológica distingue um

pesquisador amador de um profissional? Parece-me que o aprendizado do

educador a partir da visão de mundo do educando, como propõe Freire,

poderia ter sido mais explorada.

Retornando ao trabalho de Tatiana Fernandes, penso que temos um

exemplo interessante e bem conduzido para refletirmos uma relação particular

da arqueologia de contrato no Brasil: o emprego de mão-de-obra contratada,

mas sem qualificação arqueológica. De acordo com a descrição da autora, a

situação de choque inicial entre pesquisador e trabalhador foi-se transformando

em cumplicidade e em real contribuição do conhecimento arqueológico com o

interesse dos trabalhadores. De início, a equipe contratada não via qualquer

razão para o trabalho que estava sendo desenvolvido ali (C.f. Fernandes 2008,

p. 127). No entanto, durante o convívio, alguns dos trabalhadores começaram a

se interessar pelo conhecimento arqueológico e um deles inclusive pediu

referências de leitura para a equipe. Ao final, a cada trabalhador foi oferecido

um certificado de especialização arqueológica com a quantidade de horas de

trabalho em campo. De fato, Tatiana Fernandes se pergunta se esse certificado

poderá ou não servir para o credenciamento profissional, mas me pareceu uma

excelente contribuição ao pedido da equipe: usar o conhecimento científico da

disciplina para a qualificação profissional da equipe, atendendo a uma

preocupação da própria equipe com as possibilidades do mercado. Ao final,

pareceu-me que seu trabalho contribui através de sua deglutição pelo público

não-arqueológico (no caso, a equipe de auxiliares contratados) que pela

tentativa de alcance e educação patrimonial.

A mesma experiência foi conduzida em 2010, após a conclusão dos

trabalhos de campo na “Antiga Fábrica de Fogões Wallig” em Porto Alegre/RS

(Vidal 2010). Se bem que esse certificado “conferia-lhes a condição: ‘Auxiliares

da arqueologia’” (Vidal 2010, p. única – grifo meu). O uso da proposição “da” no

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lugar de “de” me deixa em dúvida se estamos vendo uma condição de

especialização de mão-de-obra ou de uma marginalização no processo

cognitivo. Enfim, todo cuidado é pouco.

A Educação Patrimonial é parte obrigatória dos trabalhos de consultoria

arqueológicos, pelo menos os executados a cargo da Resolução CONAMA nº

001/86. A educação entendida como o aprendizado de algo interessante, mas

cuja arte ainda não é dominada pelo indivíduo, não me parece um fim a ser

temido por si mesmo. O conhecimento arqueológico é uma forma de

interpretação da realidade que pode ser usada para atender os interesses de

grupos sociais ou indivíduos que ainda não dominem seus métodos (Zanettini

2009). Os métodos e interpretações usados na arqueologia não são, no

entanto, as únicas formas de compreensão da realidade e tampouco são “a”

cultura da qual o público carece. Eis o contato que devemos tomar: os meios

são importantes tanto quanto os fins.

O trabalho de Fernando Alexandre Soltys (2010) é outra das recentes

produções sobre o tema da arqueologia pública brasileira. Com a mesma

proposta de análise crítica da postura autoritária da produção científica

arqueológica, acredito que sua principal contribuição fora a leitura de cartilhas

educativas feitas como parte dos projetos de educação patrimonial para

distribuição entre o público infanto-juvenil. As cartilhas patrimoniais são muito

comuns e nenhum estudo foi feito sobre seu real impacto no público não

arqueológico.

De acordo com o autor, embora algumas cartilhas adotem conteúdo

interativo e mesmo façam um esforço para conectar o conhecimento

arqueológico com o referencial mais próximo ao senso comum regional, a

maior parte ainda reproduz um discurso escolar antiquado em que as crianças

escutam os adultos e arqueólogos (quando aparecem arqueólogas) e, não

apresentam nenhuma reflexão crítica sobre os métodos de produção do

conhecimento arqueológico, apenas dando continuidade às, muitas vezes

preconceituosas, visões sobre o passado indígena pré-colombiano (Soltys

2010).

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Mais uma vez, penso que o principal ponto de defasagem de alguns

trabalhos de educação patrimonial na arqueologia brasileira seja o problema já

levantado no capítulo anterior do nivelamento do conhecimento do fenômeno

arqueológico e dos espaços específicos aos quais a disciplina se dedica.

Retomando minha referência principal, o problema reside quando a arqueologia

adota o “modelo do déficit” tentando corrigir

imprecisões no conhecimento do público

(Merriman 2004, p. 5). Ou seja, quando a

educação patrimonial é encarada como uma

“alfabetização cultural” (Horta el alii 1996, Vidal

2010, Bastos 2006). Supõe-se que aquele que

necessita de alfabetização cultural seja aquele

que não conhece a cultura. Se existe algo que a antropologia já deixou claro há

muito tempo é que ninguém sabe com precisão o que é cultura, mas todos a

possuem.

Por fim, vimos que “patrimônio” é um status conferido sobre a paisagem,

o espaço ou o vestígio material por entidades especializadas. Nesse ponto, o

ensino sobre o patrimônio e sua importância para a constituição da memória

nacional conduzidos com o devido reconhecimento da condição artificial

desses conceitos, parece-me fazer um pouco mais de sentido. Ou seja, não

estamos ensinando o leigo sobre sua própria cultura: algo que me parece tão

absurdo quanto um brasileiro gritando em alta voz a pronúncia correta do

japonês em uma esquina de Tóquio. Mas sim, seríamos profissionais

ensinando sobre o funcionamento da nossa disciplina, dos regimentos da lei e

quais os impactos (e benefícios) que essa parafernália burocrática poderia ter

para a comunidade. No entanto, acredito que deveríamos confiar mais na

presença e estudos de educadores quando se trata de educar, e aproveitar

mais nossas bases antropológicas para interagir com o outro a fim de

compreendê-lo e fazer-nos igualmente compreensíveis.

Um dos espaços acadêmicos que gerou discussões dentro da

arqueologia pública brasileira foi o Núcleo de Estudos Estratégicos da

Universidade Estadual de Campinas (NEE/Unicamp). Entre suas atividades, as

Apesar de alguns trabalhos no Brasil estarem discutindo arqueologia pública sob diversas perspectivas, a “Educação Patrimonial”, encarada como “alfabetização cultural” ainda faz-se presente em diversas publicações e projetos.

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que mais lhe deram presença sobre o tema foram: a gestão do arquivo de

Paulo Duarte (sob custódia da Unicamp), e publicação do periódico

“Arqueologia Pública”, editorado por Pedro Paulo Funari e Erika M. Robrahn-

González. A Revista, já em seu terceiro número, traz artigos brasileiros e latino-

americanos sobre a prática do arqueólogo de nossos dias, e as possibilidades

de uma mudança frente às novas necessidades sociais. Entre os temas

propostos, estão: i) a configuração do espaço em museus e suas impressões

sobre o público (Castaña 2006; Tamanini e Peixer 2007; Quesada, Moreno &

Gastaldi 2007); ii) o discurso e a criação de interpretações públicas do passado

(Reis 2007; Schan 2006; Dominguez 2007; Cabral e Saldanha 2008); iii)

projetos multidisciplinares de manejo de recursos econômicos e culturais

(Berón & Guastavino 2007; Castro et alii 2007; Robrahn-González 2006b;

Sempé, Salceda & Martínez 2007); iv) educação patrimonial e o intercâmbio de

conhecimentos (Cury 2006; Lima & Francisco 2006; Moreira et alii 2008); v) a

ética e jurisdição em trabalhos de contrato (Robrahn-González & Migliacio 2008,

Caffa 2008); vi) arqueologia e mídia (Zapatero & Castaño 2008; Cândido 2008)

e vii) a arqueologia comunitária (Ferreira 2008). Vale fazer breves comentários

de alguns artigos de maior interesse para este trabalho.

Sobre a divulgação da arqueologia e sua re-apropriação pelo público, o

trabalho de Denise Schann analisa o interessante caso da cerâmica marajoara,

cujo estilo decorativo entre artesãos paraenses foi apropriado parcialmente por

discursos produzidos pelos arqueólogos (Schann 2006). Seu caso me parece

bem conduzido, pois leva em conta a dinamicidade da memória social e a

flexibilidade do conhecimento científico, nunca restrito às barreiras das

publicações acadêmicas.

Nos últimos anos, a produção, venda e circulação crescente desses produtos [réplicas de cerâmicas arqueológicas], impulsionada por órgãos governamentais, não-governamentais, associações de classe e a mídia tem estado associada com a uma valorização do exótico, do antigo e do regional, o que se poderia chamar de uma busca das “raízes” ou da “origem” da cultura (Schann 2006, p. 20).

Sua discussão circula a divulgação do conhecimento arqueológico entre

o público não especialista e como este reconfigura os interesses do

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pesquisador, baseado em seus próprios interesses e necessidades. Seu caso

de estudo é a apropriação e modificação de motivos decorativos retirados de

cerâmicas arqueológicas. Os modelos cerâmicos da chamada “civilização

marajoara” difundiram-se como imponente valor de mercado entre ceramistas

locais e turistas. Não apenas como fator de importância no comércio, mas

também como fator de marca identitária entre os artesãos do estado e sua

produção que excede as fronteiras estaduais, alcançando grande parte do

território nacional e estrangeiro.

Schann cita o caso do Mestre Raimundo Saraiva Cardoso que, durante

uma visita ao Museu Emilio Goeldi impressionou-se com a beleza da cerâmica

indígena, e pensou que, se poderiam fazer algo tão bonito apenas com

materiais da região, ele poderia também. “Começou aí sua história de mais de

30 anos de pesquisa sobre a cerâmica marajoara e tapajônica, tempo durante

o qual leu todos os livros, artigos e matérias de revistas que pudesse obter”

(Schann, 2006, p. 23). A partir daí, tornou-se referência na confecção de

artefatos em barro com motivos marajoara. Esses motivos, no entanto, foram

certamente reconfigurados e não seguem mais os parâmetros definidos pelas

publicações arqueológicas. A autora contempla em seu trabalho a perspectiva

de que “A representação do “outro” no passado deveria então ser um ponto de

reflexão dentro de projetos que colocam frente a frente cientistas sociais e

comunidades” (Schann, 2006, p. 27).

José Alberione dos Reis (2007) vai pela mesma perspectiva de análise

discursiva. Sua discussão levanta questionamentos sobre a autoria da

produção dos arqueólogos através da leitura de pronomes utilizados em

dissertações e teses de três grandes centros de pós-graduação em arqueologia

no Brasil: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS),

Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE/USP) e

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Seu propósito era argumentar

sobre a “quarta pessoa” científica, aquela que dava respaldo a todas as

atitudes do pesquisador e que permitia o uso dos “nós”, “ele”, “se”: ou seja, “eu

e a ciência”.

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A arqueologia do Outro convoca e inclui alteridades, diferenças, identidades – a multivocalidade das pessoas engajadas na construção dos passados, inclusive a dos cientistas da Arqueologia. Aqui a subjetividade explícita é desafiada a sair da toca e correr riscos de se opor (Reis, 2007, p. 36).

O artigo de Mariana Cabral e João Saldanha convoca, do mesmo modo,

para essa reflexão de múltiplas interpretações.

Não podemos falar em “abrir” um sítio à interpretação, simplesmente porque é impossível fechá-lo à interpretação. Todos nós, arqueólogos ou não, estamos interpretando sítios quando os visitamos. O que nós precisamos não é abrir os sítios à interpretação; o que nós precisamos é abrir nossos projetos a outras interpretações (Cabral & Saldanha 2008, p. 12).

O sítio AP-CA-18, um sítio de megalitos encontrado no Amapá, no

município de Calçoene, foi envolvido por uma diversidade de interesses. O

Governo estadual tomou o sítio como bandeira de identidade histórica e de

possibilidade de desenvolvimento, pois já contava com o turismo como

atividade econômica importante na região. Como estratégia política (afinal era

também época de eleição), o governo estadual, em 2006 investiu na

propaganda televisiva e impressa do sítio: desde TV Globo à revista Seleções

(Cabral & Saldanha 2008, p. 10-11). Essa política bem sucedida, tanto como

propaganda eleitora quanto como fomento do orgulho da população local.

Surge um orgulho por participar daquele projeto, por ter tamanho monumento

em seu território, “orgulho por conhecer de perto, de ser um pouco dono

daquilo” (Cabral & Saldanha 2008, p. 11). Interessante observar como a

arqueologia tornou-se um depositário de importante referencial comunitário,

não necessariamente do passado, mas do presente: o ponto onde Calçoene

concatena sua existência com o resto do mundo.

Como argumentei no capítulo anterior, a mídia é um espaço de interação,

discussão e, mais importante, de reconfiguração discursiva. A mídia é um

espaço onde a liberdade de expressão conquistada por jornalistas, cineastas e

demais artistas, permite o surgimento de diferentes tipos de reflexões sobre os

mais diferentes temas. Nesse caldeirão de possibilidades, algumas das

interpretações presentes nos meios de comunicação sobre a arqueologia

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podem ou não podem alimentar o orgulho do arqueólogo quanto a seu trabalho.

Como no caso de Calçoene, não sabemos pelo texto o que esteve presente

nas telas e folhas de papel. Provavelmente esteve próximo das palavras do

governador, seu maior propagandista, sobre a “importância histórica e

reconstituição das raízes” (Cabral & Saldanha 2008, p. 9). No entanto, a

repercussão foi a democratização tanto do conhecimento científico que ali

estava sendo produzido quanto da posse do que estava sendo produzido: um

patrimônio de Calçoene, do Amapá e de todos os seus moradores. Não só

arqueologia ao alcance da gente comum (Holtorf 2007a, Faulkner 2004), mas

também de reconhecida posse comum: um bem público.

Além de exemplos relativos à arqueologia e mídia, e discursividade,

profissionais brasileiros têm argumentado sobre a musealização arqueológica e

suas possibilidades de produção integrada de conhecimento. O artigo de

Marília Cury é um exemplo dessa preocupação. “Não é possível, para um

museu, prescindir de um acervo, mas o acervo não o torna museu, o que só é

possível com a comunicação e, especialmente, com a exposição” (Cury, 2006,

p. 33). Seu texto divulga as atividades do Museu Água Vermelha, em Ouroeste

interior de São Paulo. Seu foco central parece ser o do público como gourmets

culturais.

Com esse arsenal conceitual o educador pode trabalhar-se e trabalhar com o público na perspectiva de tornarem-se “gourmets” culturais (Garcia Canclini 1999: 2), pessoas habilitadas a transitar entre culturas distintas, viajando pelos repertórios simbólicos alheios, saboreando as diferenças e criando pontos de compreensão entre culturas. E por quê não? (Cury 2006, p. 45).

A idéia de compartilhar a alteridade através de ambientes cativantes

parece atender muito bem aos princípios de uma disciplina cujo propósito é

defender a diversidade. No entanto, poderia argumentar sobre a razão pela

qual a interpretação do público, tão cara ao processo museológico (Cury 2006,

p. 33) faz parte só do último estágio do processo de musealização do material.

O público está ausente da elaboração orçamentária, discussão do programa

arquitetônico, planejamento e instalação da reserva técnica. Somente a partir

do treinamento para as tarefas de conservação e educação é que funcionários

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da prefeitura local foram chamados. Alunos e demais tiveram contato apenas

com o acervo e com o museu depois de aberta a exposição.

Como vimos nos argumentos de Nick Merriman, raras são as situações

em que as práticas “por trás dos bastidores” são postas às vistas do público de

maneira que permita sua intromissão e participação do que está sendo

produzido. Por que não apreciar, além da diversidade, a maneira como ela é

construída? Poder inferir nessa construção de modo a deixar a exposição ainda

mais diversa?

Sobre essa participação do público no desenvolvimento de projetos e

seu acompanhamento, a proposta de Erika Robrahn-González e Maria Clara

Migliacio é ousada. Seu artigo transcreve uma Moção escrita como resultado

do “I Seminário Internacional de Gestão do Patrimônio Arqueológico Pan-

Amazônico” promovido em Manaus, novembro de 2007 pelo IPHAN (Robrahn-

González & Migliacio 2008). O documento foi discutido, formulado e relatado

durante na Sessão Temática “Preservação do Patrimônio Arqueológico em

Terras Indígenas”, que contou com a participação de Maria Clara Migliacio

(coordenadora), Erika M. Robrahn-González (relatora), Fabíola Andrea Silva,

Bonifácio José Baniwa, Afukaká Kuikuro, Mutuá Mehinaku (lideranças do

Parque Indígenas do Xingú) e Michael J. Heckemberger.

As recomendações da Moção dão um grande passo nos referenciais de

gestão do patrimônio arqueológico. Sua primeira preocupação foi conceituar

terra indígena ao ponto de reconhecer mesmo “as áreas consideradas

tradicionais pelas populações indígenas, demarcadas ou não, em especial seus

locais de significância simbólica/ sagrada/ cultural” (Robrahn-González &

Migliacio 2008, p. 16). A definição é fundamental no que reafirma a validade da

auto-definição indígena de seu território e de seu “espaço vital”. No entanto,

não vai além do que já está previsto pela constituição54, pelo código de ética da

54

Art. 231, §1, São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter

permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos

ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus

usos, costumes e tradições (Brasil 1988 – grifo meu).

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Sociedade de Arqueologia Brasileira55. O que me parece mais significativo

dessa Moção são suas recomendações e propostas de ações. As primeiras

prezam, de maneira sumária, a inserção das populações indígenas nas

decisões de acessibilidade, condução, priorização e manejo dos recursos

culturais em questão (recursos cuja definição e seleção deve atentar aos

interesses dos próprios indígenas). Podemos dizer que a preocupação central

da Moção é “considerar áreas de significância cultural, simbólica e sagrada das

comunidades, não necessariamente abrangendo vestígios materiais de sua

ocupação” (Robrahn-González & Migliacio 2008, p. 16).

As ações propostas contemplam a criação de Grupos de Trabalho para

a realização interdisciplinar das recomendações feitas no mesmo documento,

bem como atuação para a implementação de novas portarias do IPHAN

no Brasil, e de outros instrumentos normativos em cada país amazônico, objetivando normatizar a realização de pesquisas patrimoniais em terras indígenas tradicionais, a partir das especificidades técnicas, éticas e operacionais que lhe são intrínsecas (Robrahn-González & Migliacio 2008, p. 18).

Vale observar a atenção prestada pela Moção às normas e operações

realizadas em países vizinhos do Brasil, com igual paisagem amazônica. Essa

postura permite o reconhecimento de territórios indígenas que transpassem

limites dos Estados Nacionais.

Por certo, as recomendações e ações propostas por essa Moção

representam uma proposta de Arqueologia comunitária tal como proposto por

Marshal em texto visto no capítulo anterior. Reconhecer que não há como

esquivar-se do conflito e que nos cabe confrontar o passado de modo crítico

junto com as comunidades (Ferreira 2008).

Ao contrário, na arqueologia comunitária, nem mesmo a metáfora do teatro é pertinente. Não há protagonistas e coadjuvantes, diretores e platéia. Existem arenas, sítios de disputa e negociação de identidades. As representações e

55

Reconhecer como legítimos os direitos dos grupos étnicos investigados à herança cultural de seus

antepassados, bem como aos seus restos funerários, e atendê-los em suas reivindicações, uma vez

comprovada sua ancestralidade (SAB 2007, p. 3 – grifo meu).

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desejos das comunidades sobre seu próprio patrimônio são consideradas no fulcro das interpretações arqueológicas (Ferreira 2010, p. 7).

Para mencionar um caso prático e emblemático na arqueologia brasileira,

cito um ícone da histórica nacional, o Quilombo de palmares, nomeado “Angola

Janga” (Pequena Angola) por seus antigos habitantes. Hoje é um marco da

resistência à escravidão no Brasil. O estudo de quilombos e arqueologia da

escravidão no Brasil começou nos anos 1980, no estado de Minas Gerais com

os trabalhos de Carlos Magno Guimarães e Anna Lucia Lanna (Ferreira 2009).

A temática tem ganhado visibilidade internacional com os trabalhos de Charles

Orser Jr, Pedro Paulo Funari e Scott Joseph Allen nos anos 1990 com

Palmares (Ferreira 2009).

O sítio havia sido transformado em espaço de celebração do Dia da

Consciência Negra. Os trabalhos arqueológicos que começaram nos anos

1990 foram levados a cabo não apenas com a participação da comunidade e

do Movimento Negro, mas seu início foi devido a um pedido do Movimento

Negro, com o propósito de dar maior visibilidade para o Quilombo e a história

de brava resistência contra o domínio do branco. Os resultados dos trabalhos,

no entanto, não foram aceitos com o mesmo ânimo por todos os setores do

público. O sítio apresentava muitos materiais de europeus e indígenas, bem

como africanos. Para um grupo de pesquisadores, “essa diversidade de tipos

cerâmicos atestaria tanto a originalidade da cultura material utilizada no

quilombo como suas múltiplas origens – africana, indígenas, ibéricas, coloniais

(Funari & Carvalho, 2005, p. 49). Nesse contexto, a força do quilombo estaria

tanto na resistência escrava, quanto na resistência de distintos grupos em sua

luta para sobreviver em um sistema que os excluía. Palmares seria o

estandarte da resistência contra a opressão colonial (Funari et alii, 2009).

No entanto, para outros, inclusive para parte do Movimento Negro, “o

quilombo é um símbolo da resistência africana contra a opressão branca,

considerando que a presença de potes nativos e europeus poderia colocar a

africanidade do estado em questão (Allen, 2001 apud Funari et alii, 2009, p.

133). Em decorrência dessa assimilação do Quilombo como espaço multiétnico,

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o Movimento Negro decidiu fechá-lo para os arqueólogos, e apenas em tempos

recentes Scott Joseph Allen, arqueólogo da Universidade Federal de

Pernambuco, pôde regressar a campo e continuar projetos arqueológicos no

sítio.

Este exemplo não é só importante pela centralidade do sítio na história

nacional, mas também pelo peso da opinião pública e movimentos sociais na

decisão sobre o destino dos trabalhos arqueológicos. O impacto do discurso

arqueológico foi tomado com tão profundo ressentimento que o parque, sob

pressão do Movimento negro, foi fechado à presença arqueológica.

Poderíamos, entretanto, argumentar por um viés talvez opressor dessa atitude

tomada pelo Movimento. Se, por um lado, a arqueologia pública é uma

tentativa de atender as necessidades sociais de grupos não-arqueológicos que

possuem uma relação mais afetiva que científica com determinados espaços,

por outro não creio que o caminho seja silenciar outros grupos sociais em

nome dos primeiros. O caso de Palmares também me parece particular por

mostrar o cuidado, não só com os “outros” da arqueologia, mas também com a

relação que estes “outros” estabelecem entre si.

Mais uma vez, voltamos à questão de ética. Acredito que a arqueologia

pública seja, antes de uma submissão aos desejos do público ou uma tentativa

desesperada pela absorção desse público em seus trabalhos, é uma

abordagem auto-crítica e reflexiva sobre a responsabilidade social da

arqueologia. Nesse caso particular, os interesses da comunidade eram

avessos aos da arqueologia. Mas a arqueologia se encontrava em situação de

ser acusada de mostrar o passado através de uma abordagem multivocal. Que

fazer nesse caso? Dar vez ao interesse comunitário e suprimir uma imagem

heterogênea do passado? Partir do princípio em que a principal contribuição

social da arqueologia para uma sociedade democrática seja o levantamento da

diversidade que habitou o passado, e que pode igualmente habitar nosso

presente, ou tomar as dores de um Movimento social que suprime possíveis

alteridades em nome de seu passado oprimido?

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156

4.4. Síntese

Dois são os principais sujeitos sobre os quais esse capítulo tentou jogar

sua principal atenção. O Primeiro, o Estado. Qual, enfim, é o papel do Estado e

das Instituições Públicas nesse mundo de fronteiras borradas, de identidades

diversas e de sensibilidades perplexas? O primeiro passo seria reconhecer

esses movimentos como existentes e profundamente significantes para

milhares de indivíduos dentro do espaço administrado pelo Estado. O Estado

Nacional moderno tenta suportar o impacto desestruturador da

heterogeneidade social, através do controle de uma política multiculturalista

(Gnecco 2009).

A arqueologia brasileira, semelhante ao surgimento da arqueologia em

outros países, é filha de um Estado Nacional imperialista e colonialista. Mesmo

com a virada de dois séculos ela ainda é chamada à seu serviço, na definição

do que pertence ou não à Memória Nacional. No entanto, como toda prole, ser

filha do Estado não significa ser o Estado. A arqueologia como disciplina

científica independente pode buscar sua legitimidade social no Estado,

sedimentada na lei e na Instituição Pública (IPHAN e Universidades).

Legitimidade inclusive necessária para defendê-la frente aos perigos de sua

entrada no mercado econômico neo-liberal.

Mas sua atuação conta com o status de veracidade científica, conferindo

aos relatórios e laudos o real poder no qual o Estado se instrui para o manejo

de uma nação em “des-homogeneização”. Nossa disciplina é legitimada ao

mesmo tempo em que legitima o Estado. Assim, os trabalhos de consultoria

arqueológicas trazem à frente a importância das discussões de arqueologia

pública no Brasil por sua explicita razão política e econômica. Ao mesmo tempo

em que preocupa boa parte dos profissionais, temerosos dos efeitos que o

“capitalismo selvagem” pode ter sobre um trabalho essencialmente de pesquisa

científica, foi o “capitalismo selvagem” que mostrou a faceta mais cruel que a

pesquisa científica pode portar.

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Por fim, a arqueologia pública no Brasil aflora nesse meandro de conflito

e disputas territoriais. Seu nome começa a ser mencionado no início desse

novo século como auspício de uma nova demanda à disciplina, agora

reconhecidamente contextual e inevitavelmente bélica. Diversos trabalhos sob

a alcunha do “público” têm procurado de diversas maneiras responder à

pergunta: “O que fazemos?”

5. Capítulo 3 - The final showdown : arqueologia subaquática, mergulhadores e comunidades

A proposta desse capítulo é seguir as orientações da arqueologia

pública desenvolvidas nos capítulos anteriores para lidar com a questão

proposta no início sobre a proteção do patrimônio cultural subaquático. Meu

propósito é argumentar sobre os interesses envolvidos nos vestígios materiais

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submersos, e como a proposta da arqueologia pública pode contribuir com a

postura da arqueologia frete a diversidade de interesses nesses vestígios.

Foi apontada a fraqueza legislativa que rege o patrimônio cultural

subaquático, e neste capítulo sua incoerência será discutida com um pouco

mais de detalhes. Da mesma maneira que venho tratando o Estado Nacional e

as políticas públicas sobre o patrimônio, cabe aqui uma crítica sobre a

eficiência (no caso ineficiência) e representatividade da legislação de proteção

do patrimônio cultural submerso. A proposta da arqueologia pública frente à

agressão do patrimônio civil propõe dois movimentos: pressão sobre a

alteração da lei, e atuação junto ao público não acadêmico para buscar e fazer

valer outras vozes que estejam sendo suprimidas pela atual legislação e que

possam contribuir com a preservação do patrimônio.

Dando seqüência à discussão jurídica, pretendo retomar alguns

argumentos sobre as imagens e expressões dos vestígios humanos em duas

revistas especializadas no mergulho recreativo, a revista Mergulho

(http://www.mergulho.com.br/) e a revista Scuba, de modo a refazer as leituras

através da nova retórica desenvolvida nesse trabalho sobre a relação entre

arqueologia e mídia. Minha intenção com essa leitura é tentar perceber qual o

interesse que ronda o mergulho recreativo.

Uma vez argumentado sobre as impressões do arqueológico pelo

público mergulhador, pretendo passar à alternativa que muitos arqueólogos,

com respaldo de políticas públicas, têm escolhido para preservar esse

patrimônio ao mesmo tempo em que o preserva: o turismo arqueológico.

Finalmente, através de algumas leituras distintas, tentarei abordar os

problemas que envolvem as comunidades litorâneas e sua relação com os

vestígios humanos submerso, tema que ainda foi pouco tocado pela

arqueologia subaquática nacional e internacional.

5.1. Lex Rhodia, Lex Brasilis – Patrimônio, legislação e

arqueologia subaquática brasileira

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A discussão sobre patrimônio e as políticas de Estado não poderiam ser

conduzidas neste capítulo sem comentários à legislação brasileira que gere o

patrimônio subaquático: a Lei 7.542/86 e sua modificação 10.166/00. Seu

descaso pela preservação dos vestígios materiais submersos atribui ao

material retirado do mar valor de mercado, indo por completo na contramão das

políticas internacionais sobre esse tipo de patrimônio, além de mostrar postura

contrária à principal lei nacional de proteção ao patrimônio arqueológico em

geral.

Como já vimos na apresentação, uma das primeiras campanhas da

arqueologia subaquática nacional desde o final dos anos 1990 é a preservação

do patrimônio cultural submerso – luta que ainda não está terminada. O projeto

de Lei 7566/06 (agora como PL 45 do Senado Federal) cuja redação pode

reverter o atual quadro de permissividade à caça ao tesouro, é a condição pela

qual a legislação entrará em acordo com os parâmetros da UNESCO. E foi

considerando esse enclave jurídico sobre o patrimônio arqueológico

subaquático, o conflito entre arqueólogos e mergulhadores recreativos

condicionado por esse descaso estatal, e o contínuo depredo do patrimônio

pelo mergulho recreativo e empresas de salvatagem me levaram a procurar

nas propostas da arqueologia pública (disposta a lidar com o conflito) a chave

para pensar sobre essas questões.

No que concerne à defesa da soberania da costa nacional, nossa

legislação é bastante complexa e extensa. Para os propósitos deste trabalho,

não me cabe mais que trabalhar com a Legislação dedicada ao patrimônio

material submerso.

Entre os anos 1000 e 600 a.C., a ilha grega de Rhodes possuía larga

frota naval, postos coloniais em diversos pontos da costa mediterrânica e uma

Lei cuja data de redação poderia ser entre os anos 900-800 a.C., que versava

sobre comportamento de tripulação, passageiros, movimentações navais e

portuárias, bem como garantia pagamento de recompensa a mergulhadores

que fossem corajosos e habilidosos o suficiente para resgatar cargas perdidas

em naufrágios de navios (Duhaim 2010, Camargo 2002, Rambelli 2002). O

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documento original dessa lei nunca foi encontrado, mas foi referida em obras

posteriores como Lex Rhodia (Lei de Rodes).

Um dos argumentos centrais que ronda as discussões suscitadas neste

trabalho é a legislação vigente sobre a proteção específica ao patrimônio

cultural submerso que confunde a arqueologia subaquática com resgate de

peças e caça ao tesouro, assemelhando-se à Lex Rhodia de séculos atrás

(Camargo 2002, p. 27).

Promulgada em 26 de setembro de 1986, a Lei nº 7.542

dispõe sobre a pesquisa, exploração, remoção e demolição de coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terreno de marinha e seus acrescidos e em terrenos marginais, em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar (Brasil 2000)

Em uma primeira leitura desse texto, vemos que a redação preocupou-

se em relevar a importância cultural do patrimônio submerso.

Art 18. A Autoridade Naval, no exame de solicitação de autorização para pesquisa, exploração ou remoção de coisas ou bens referidos no art. 1º desta lei, levará em conta os interesses da preservação do local, das coisas ou dos bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, a segurança da navegação e o perigo de danos a terceiros e ao meio ambiente.

Parágrafo único. A autorização de pesquisa não dá ao interessado o direito de alterar o local em que foi encontrada a coisa ou bem, suas condições, ou de remover qualquer parte (Brasil 1986).

Sua redação havia sido uma conquista, já que a legislação que define

um sítio arqueológico (Lei nº 3.924/61) não menciona sítios submersos que

ficavam, pela legislação, passíveis de adjudicação em 80% aos exploradores e

20% à União (Rambelli 2002). Apesar do Art. 21 atribuir pagamento de

contratos de intervenção nos bens submersos, em dinheiro calculado sobre o

valor dos bens resgatados (inciso II, Art. 21) ou com parte dos bens (inciso III,

Art. 21), todos os bens submersos são, a princípio, patrimônio da União não

sendo passíveis de apropriação prévia por terceiros. Em 27 de dezembro de

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2000, o Congresso aprova a Lei nº 10.166 que altera a 7.542 e piora a

situação, introduzindo parágrafos irresponsáveis e atribuidores de valor de

mercado ao patrimônio nacional submerso.

Abaixo, o Art. 20 da Lei 7.542:

Art 20. As coisas e os bens resgatados, de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, permanecerão no domínio da União, não sendo passíveis de apropriação, adjudicação , doação, alienação direta ou através de licitação pública, e a eles não serão atribuídos valores para fins de fixação d e pagamento a concessionário (BRASIL 1986 – grifos meus).

Segue, agora, as alterações feitas pela Lei 10.166:

"Art. 20. As coisas e os bens resgatados de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico permanecerão no domínio da União, não sendo passíveis de apropriação, doação, alienação direta ou por meio de licitação pública, o que deverá constar do contrato ou do ato de autorização elaborado previamente à remoção." (NR)

"§ 1º O contrato ou o ato de autorização previsto no caput deste artigo deverá ser assinado pela Autoridade Naval, pelo concessionário e por um representante do Ministério da Cultura." (AC)

"§ 2º O contrato ou o ato de autorização poderá estipular o pagamento de recompensa ao concessionário pela remoção dos bens de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, a qual poderá se constituir na adjudicação de até quarenta por cento do valor total atribuído às coisas e bens como tais classificados ." (AC)*

"§ 3º As coisas e bens resgatados serão avaliados por uma comissão de peritos, convocada pela Autoridade Naval e ouvido o Ministério da Cultura, que decidirá se eles são de valor artístico, de interesse cultural ou arqueológ ico e atribuirá os seus valores, devendo levar em conside ração os preços praticados no mercado internacional ." (AC)

"§ 4º Em qualquer hipótese, é assegurada à União a escolha das coisas e bens resgatados de valor artístico, de interesse histórico ou arqueológico, que serão adjudicados." (AC) (BRASIL 2000 – grifos meus)

A viabilização de comercialização dos bens submersos, de pagamento

de recompensa pelo resgate do “patrimônio perdido” é uma tremenda

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irresponsabilidade social (Rambelli 2006) e na qual se vê envolvido o Ministério

da Cultura.

Devido a minha inexperiência na área do direito, fui buscar alguma

leitura que pudesse me guiar na compreensão da legislação sobre o patrimônio

subaquático. Felizmente, foram-me passados alguns textos de Inês Virgínia

Prado Soares, Procuradora da República em São Paulo, que possui parte de

sua formação em direito dedicada à tutela jurídica do patrimônio arqueológico

no Brasil. Nesse trajeto, ela publicou alguns trabalhos sobre a legislação

brasileira de proteção ao patrimônio subaquático, que me ajudaram muito na

leitura direcionada a coerência interna do complexo corpo legislativo que rege a

gestão e pesquisa sobre o patrimônio arqueológico nacional.

O primeiro ponto é a cobertura dada ao patrimônio submerso pela

legislação referente ao patrimônio arqueológico nacional. De acordo com

Inês Soares (2010) o “sistema normativo de proteção do patrimônio

arqueológico no Brasil” é constituído por leis e decretos específicos (Decreto-

Lei nº 25/37, Lei nº 3.294/61, Lei nº 7.542/86 e Portarias do IPHAN), além de

estar sob o amparo do sistema jurídico ambiental, “especialmente a Lei de

Política Nacional de Meio Ambiente e a Lei de Crimes Ambientais, as

Resoluções CONAMA (em especial, as Resoluções 001/86 e 237/97)”. Recebe

também cuidados do sistema processual de defesa dos bens difusos e

coletivos (Soares 2010, p. 3).

Dentro desse grande aparato jurídico, Inês Soares faz uma observação

que me parece central nas questões aqui levantadas. O conceito de sítio

arqueológico não faz distinção entre sítios submersos e sítios emersos (Soares,

2010). O artigo 2º da lei 3.942/61 estabelece as definições de um sítio

arqueológico.

a) - as jazidas de qualquer natureza, origem ou finalidade, que representem testemunhos da cultura dos paleoameríndios do Brasil, tais como sambaquis, montes artificiais ou tesos, poços sepulcrais, jazigos, aterrados, estearias ou quaisquer outras não especificadas aqui, mas de significado idêntico, a juízo da autoridade competente.

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b) - Os sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios, tais como grutas, lapas e abrigos sob rocha;

c) - Os sítios identificados como cemitérios, sepulturas ou locais de pouso prolongado ou de aldeiamento, "estações" e "cerâmicos", nos quais se encontrem vestígios humanos de interesse arqueológico ou paleoetnográfico;

d) - As inscrições rupestres ou locais como sulcos de polimentos de utensílios e outros vestígios de atividade paleoameríndios (Brasil, 1961).

Pela leitura do artigo podemos ver que, em primeiro lugar, não há

distinção entre sítios emersos e imersos. Em segundo lugar, Inês Soares

aponta bem, “não existe nenhuma predominância de importância entre os mais

antigos ou mais recentes” (Soares, 2010, p. 2-3). A definição de um local ou

agrupamentos de vestígios como sítio arqueológico é definido por seletividade

e segue critérios de relevância e representatividade (Soares, 2010, p. 3).

No caso dos sítios arqueológicos submersos, a seletividade e a representatividade devem vir de parâmetro para os órgãos envolvidos na sua tutela. A autorização da exploração para fins que não sejam de pesquisa sobre os bens culturais submersos deve ter como pré-requisito a comprovação da realização de pesquisas no sítio e a existência de um plano de manejo, que contemple, obviamente, a possibilidade de realização de atividades não científicas (Soares 2007, p. 3).

Antes que os bens submersos sejam declarados próprios de adjudicação

ou realização de quaisquer atividades que não sejam voltadas à pesquisa, é

necessário que o sítio no qual esses bens foram encontrados passe por uma

“revisão de perícia” de maneira a revelar seu potencial “artístico, histórico ou

arqueológico” e possível interesse da União na preservação desse material. É

necessário que seja feita uma pesquisa prévia, de caráter investigativo do

potencial cultural do sítio, ou mesmo para sua definição como sítio, antes de

qualquer atitude de exploração do espaço submerso.

Passo ao segundo apontamento: a propriedade sobre os bens materiais

submersos. Inês Soares (2007, p. 5) aponta que no inciso X do artigo 20 da

Constituição Federal de 1988 consta ser bem da União “as cavidades naturais

subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos” (Brasil, 1988).

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Igualmente, no artigo 17 da lei 9.324 também define que quaisquer achados

fortuitos de bens de natureza arqueológica ou pré-histórica são de posse, a

princípio, da União (Soares, 2007, p. 5). Assim, temos por um lado a lei 3.924

que não faz distinção entre sítio emerso e submerso, mais antigo ou mais

recente, que caracteriza um sítio arqueológico por sua relevância à memória

nacional. Nesse contexto, um sítio arqueológico definido pelo corpo técnico

como tal já o suficiente para adentrar as redes normativas de proteção

patrimonial (considerado como patrimônio da União).

Ainda dentro dessa argumentação, Soares cita o Código Civil em alguns

artigos sobre o direito de propriedade. O Art. 1230 diz que “A propriedade do

solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais

de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos

por leis especiais” (Brasil, 2002). Esse artigo vem precedido pelo Art. 1228,

cujo §1º explicita que

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (Brasil, 2002).

A autora ainda faz uma consideração interessante sobre a posse e

destino dos bens arqueológicos. Seu conferido atributo de importância para a

memória e história nacional, bem como para a produção de “dados e

informações” sobre os modos de vida antigos, faz do patrimônio arqueológico

um bem “afetado” (Sousa, 2010). Trata-se de um “ônus que recai sobre um

bem para garantir uma obrigação; ato que dá destino a um bem público”

(Houaiss, 2007). Além do caráter de bem afetado, o patrimônio submerso ainda

carrega a especificidade de encontrar-se sob terreno de posse da União (águas

nacionais). Essa especialidade faz com que a apropriação privada dos bens

submersos seja inconstitucional até que passe por um processo de

“desafetação”, ou seja, “ato pelo qual se desfaz um vínculo jurídico, inerente à

natureza de alguma coisa, à propriedade ou à posse, fazendo desaparecer a

affectatio, isto é, o poder ou o direito sobre ela” (Houaiss, 2007). E essa ação

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só é possível uma vez que tenham sido considerados todos os interesses

envolvidos no direito fundamental de posse da União e no direito fundamental

ao acesso público do patrimônio cultural (Sousa, 2010).

Desse modo, é absolutamente inconcebível juridicamente, que a União trate os bens arqueológicos subaquáticos como recursos econômicos passíveis de apropriação privada, sem um procedimento de desafetação. Mais absurdo ainda é que exista uma lei que, enviesadamente, respalde a atuação da União na gestão dos bens arqueológicos subaquáticos que, vale repetir, são afetados (Soares, 2010).

Chegamos ao terceiro ponto que é a responsabilidade de gestão e

salvaguarda do patrimônio arqueológico submerso. Uma vez considerados

como bens afetados, sua tutela torna-se “supraindividual e intermediada por

uma pessoa jurídica de direito público federal (atualmente pelo IPHAN,

autarquia federal com atribuições para a gestão desses bens)” (Soares, 2010,

p. 6).

O IPHAN seria a única autoridade federal com poder sobre a gestão e

tutela do patrimônio cultural subaquático nacional, pois é a única autoridade

federal competente para lidar com o patrimônio arqueológico brasileiro em seu

âmbito geral. Mesmo que a Marinha seja a competência sobre a jurisdição,

proteção e defesa do mar cabe só ao IPHAN descartar o interesse

arqueológico dos bens. No entanto, a lei 7.542 (e suas alterações pela lei

10.166) parece desconsiderar essa questão tutelar ao suprimir a autoridade do

IPHAN no artigo 16, parágrafo 5 como indica Inês Soares.

Art. 16 § 5º. Poderá ser concedida autorização para realizar operações e atividades de pesquisa, exploração, remoção ou demolição, no todo ou em parte, de coisas e bens referidos nesta Lei, que tenham passado ao domínio da União, a pessoa física ou jurídica nacional ou estrangeira com comprovada experiência em atividades de pesquisa, localização ou exploração de coisas e bens submersos, a quem caberá responsabilizar-se por seus atos perante a Autorida de Naval (Brasil, 2000 – grifo meu).

No entanto, a situação parece ser pior quando o próprio IPHAN dá sinais

de abandono de sua autoridade e responsabilidade desse patrimônio quando

divulga através da Portaria Interministerial nº 69 de 1989 que:

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4.1 – A autorização para exploração de áreas ou locais que contenham coisas ou bens afundados, submersos, encalhados e perdidos em águas sob jurisdição nacional, em terrenos de marinha e seus acrescidos em terrenos marginais em decorrência de sinistro, alijamento ou fortuna do mar, será de competência do Ministário da Marinha, ouvido o Mini stério da Cultura (Brasil 1989 – grifos meus)

É notório que o próprio IPHAN parece se eximir de sua tutela jurídica do

patrimônio submerso, que é um patrimônio arqueológico. E suas portarias, em

especial a Portaria 007/88, regulamentam os métodos a serem tomados

quando da identificação de sítios arqueológicos.

O propósito desses apontamentos legislativos foi tentar compreender de

que maneira as leis atuais que sugerem tutela

dos bens arqueológicos submersos estão em

inconstitucionalidade com a normatização

ainda corrente sobre bens arqueológicos de

quaisquer atribuições. Não somente essa

incoerência legislativa fere a preservação e fruição pública desse bem público,

mas também a posição do IPHAN perante essa incoerência legislativa.

É certo que o IPHAN não precisa recuperar a responsabilidade e gestão sobre o patrimônio cultural subaquático porque nunca a perdeu. A Lei nº 3.294/61 está vigente e não faz distinção entre bens emersos e submersos para o exercício do poder de política deste órgão e a prática de todos os atos inerentes a este poder (fiscalização, expedição de autorização, etc.) com a finalidade de proteção do patrimônio arqueológico no país (Sousa, 2010, p. 14).

Com a existência dessa legislação incompatível com os parâmetros já

existentes de proteção do patrimônio arqueológico nacional o Governo Federal

mostra-se permissivo a um lobby ganancioso de pessoas físicas e jurídicas

(nacionais e estrangeiras) pelo acesso permeável aos bens submersos

nacionais, vistos como potenciais fontes de riquezas (Rambelli 2002).

Sobre esse aspecto jurídico de proteção do patrimônio arqueológico

subaquático, o Brasil está em defasagem e mostra-se, além de tudo, confusa,

já que assinou em 1982 a “Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do

O patrimônio arqueológico submerso é regido por uma lei fruto de lobby de empresas de caça ao tesouro e insconstitucional que exige revisão urgente.

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Mar”, cujos artigos 149, 303 e 33 estabelecem proteção ao patrimônio cultural

subaquático, que está sob responsabilidade do Estado (Rambelli 1998). Desde

2001 vigora no meio internacional a “Convenção da UNESCO para a Proteção

do Patrimônio Cultural Subaquático”, cujos itens 7 do Art. 2 e a Regra 2 do

Anexo da Convenção citam explicitamente a proibição da valoração do

patrimônio cultural submerso (UNESCO, 2001), proibição baseada na Carta

Internacional do ICOMOS (Comitê Internacional de Sítios e Monumentos) sobre

o referido Patrimônio (ICOMOS 1996; RAMBELLI 2002, p. 108).

Como discuti na apresentação, o Projeto de Lei do Senado nº 45 é a

melhor opção que temos até o momento, e sua tramitação no Congresso

Nacional é uma esperança para a gestão do patrimônio subaquático nacional.

No entanto, como venho argumentando, acredito que a legislação é apenas o

primeiro passo para a proteção do patrimônio civil arqueológico, pois ainda

cabe à arqueologia, e à sociedade interessada, fazer da lei mais que letra

morta.

5.2. Apenas algumas léguas submarinas

Na procura pelos interesses que cercam os vestígios humanos

submersos, acredito que o interesse do mergulho recreativo é essencial na

compreensão dos embates que regem o espaço em questão. Já passei pela

arqueologia subaquática brasileira e pela legislação nacional. O enfoque nos

mergulhadores como seqüência da argumentação se deu a interesse anterior

pessoal. Em minha monografia de conclusão de curso de graduação (Silva

2007) havia feito uma análise de alguns artigos publicados em revistas

especializadas em mergulho recreativo, com o propósito de traçar algumas

linhas de compreensão do interesse do mergulhador em vestígios físicos da

presença humana embaixo d’água.

Neste capítulo, pretendo retomar esses artigos e parte das

argumentações então formuladas e desenvolvê-las sob os pontos levantados

no segundo capítulo sobre a relação entre a arqueologia e a mídia. De igual

importância me parece retomá-los aqui pelo fato de estar argumentando em

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prol de uma atenção especial aos interesses e necessidades do público não-

arqueológico. Meu interesse não é operar numa análise do discurso; acredito

que lingüistas, jornalistas e filósofos possam fazê-lo melhor do que eu. Trata-se

muito mais de um exercício de compreensão do outro através de sua escrita.

Basicamente, uma leitura atenta e comentada.

O mergulho recreativo atrai uma diversidade muito grande de interesses

e indivíduos. No entanto, devo aqui agrupá-los, devido a limitações deste

trabalho, como indivíduos oriundos da cidade com interesse comum pelo

mergulho recreativo, atividade que elegem como prática em momento de

descanso e lazer. Como já havia posto, os mergulhadores recreativos

constituem grande parte desse público que desenvolve contato direto com os

vestígios humanos submersos. Inclusive, e já toquei nessa questão, muitos dos

sítios submersos são antes encontrados por mergulhadores e relatados em

sequência à Marinha ou entidades públicas municipais e estaduais. No Brasil o

licenciamento de obras em portos e áreas costeiras ainda é novidade, e não

pode ser considerado relevante como força tarefa de localização e registro de

sítios submersos. Felizmente, desde o surgimento da arqueologia subaquática

no Brasil, programas de mapeamento da costa tem sido prioridade em muitos

projetos de pesquisa. No entanto, a dependência em achados fortuitos por

mergulhadores recreativos é uma realidade com a qual sempre teremos que

lidar (como ainda lida a arqueologia de ambientes emersos).

O estado Norte-Americano da Carolina do Sul, a exemplo, possui o Ato

de Antiquidades Submersas da Carolina do Sul (South Carolina Underwater

Antiquities Act), publicado em 1991 (Harris 2002). Esse ato permite pequenas

retiradas de materiais em sítios submersos por mergulhadores devidamente

licenciados e registrados pelo Instituto de Antropologia e Arqueologia da

Carolina do Sul (South Carolina Institute of Anthropology and Archaeology -

SCIAA). De acordo com Lynn Harris, o controle dos vestígios encontrados é

feito por relatórios quadrimestrais, contatos com dive shops e dive centers, e

encorajando projetos que envolvam o mergulho recreativo (Harris 2002).

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Relatórios quadrimestrais de descobertas são avaliados pela equipe do Programa de Manejo de Arqueologia de Mergulho Esportivo e acompanhado por visitações de sítio, documentação de coleções, e finalmente a submissão de dados dos sítios à Divisão de Informação do SCIAA para serem incluídos nos Arquivos de Sítios do Estado da Carolina do Sul (Harris 2002, p. 60).

A própria autora relata a desconfiança com que essa atividade é vista

por seus pares, mas diz ser um risco pelo qual as políticas de gestão do estado

escolheram correr (Harris 2002). Não sei se essa, de fato, seja a melhor

política de preservação a ser aplicada. Muitas das cartas internacionais, tanto

sobre sítios imersos como emersos, prezam pela permanência in situ do

material que, sem as condições adequadas de preservação, irá degradar-se de

maneira irreversível. Outro fator de importância tem a ver com as razões da

retirada de materiais estarem mais associadas à pilhagem do que a evidenciar

perante as autoridades a presença de um sítio arqueológico. Ou seja, trata-se

de um prazer e interesse pelo troféu pessoal, como veremos mais adiante.

Acredito que, ao prezar pela preservação dos sítios arqueológicos submersos,

a educação patrimonial em moldes mais construtivistas (Copeland 2004) seja a

melhor opção.

Além das reportagens, escolhi pensar sobre aqueles artigos entre 1997

(primeiro número da revista) até 2004. Meu foco principal eram textos sobre as

impressões causadas por vestígios humanos submersos, mas meu interesse

por uma “auto-imagem” do mergulhador me levou a selecionar um texto sobre

a complexidade do apetrecho SCUBA e um segundo artigo dessa revista sobre

apreciação do submerso. A seleção dos artigos não foi feita de maneira

metódica. Fui selecionando artigos de revistas que encontrava em bancas de

jornais e “sebos”, e que me chamaram a atenção pelo conteúdo em um

momento em que eu começava a pesquisar o tema. Inclusive, acredito que o

levantamento sistemático de artigos sobre arqueologia subaquática possa ser

levada adiante como tema de pesquisa56. Acredito, no entanto, que a falta de

56

Muito me alegrou a conversa com Glória Tega (Entrevista concedida por Glória Tega a Bruno S. R. da

Silva via Skype Belo Horizonte-São Paulo, agosto 2010.) sobre sua pesquisa de mestrado que envolve o

tema arqueológico em revistas brasileiras de história com grande tiragem.

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170

rigor quantitativo não determine a rigor qualitativo dessa breve análise,

considerando a atualidade das reportagens e o fato de ter visto muitos dos

autores desses artigos entre os presentes do II Simpósio Internacional de

Arqueologia Marítima nas Américas, em Itaparica/BA (24 a 26 de outubro de

2007), o que mostra o interesses desses mergulhadores pelo tema.

No primeiro capítulo, havia esclarecido que, ao passar a trabalhar com a

“relação entre mídia e arqueologia”, fazia referência “às avaliações das

imagens construídas do fenômeno arqueológico nos veículos de mídia” e

também “uma avaliação de como a arqueologia promove e pode contribuir com

a compreensão popular do passado através da mídia”. Na leitura dos artigos de

mergulhadores, me dei conta de que antes de pensarmos sobre as imagens

construídas do fenômeno arqueológico, muitas vezes nos deparamos com

imagens de paisagens que são definidas de várias maneiras, menos como

arqueológicas. De fato, pego em minha própria observação, o indivíduo

distante do círculo acadêmico e profissional específico da arqueologia,

estabelece relações particulares com os espaços que visita; relações que

dependem de seus antecedentes pessoais, que podem ou não terem passado

próximos da arqueologia. A maior parte dos textos não reconhece naufrágios

ou estruturas submersas como sítios arqueológicos, e acredito que essa seja o

primeiro ponto a ser observado se pensamos na preservação do patrimônio

arqueológico: não existe o patrimônio arqueológico. Minha idéia já na

monografia, e que aqui reitero, é tentar ver o que existe nos vestígios humanos

submersos pelo olhar do mergulhador. Estariam tão em contradição com o

olhar do arqueólogo? Além da contradição, representam caminhos tão distintos

e conflituosos?

De certa maneira, não vemos aqui o fenômeno arqueológico em

expressão dissonante com nossa própria. Mas antes, vemos uma dissonância

sobre a ontologia do espaço, pois os vestígios humanos submersos não são

caracterizados necessariamente como arqueológicos. Já argumentei no

primeiro capítulo sobre esse ponto: o sítio arqueológico é uma criação do

arqueólogo, uma delimitação territorial e normatização conceitual que envolve o

espaço em questão numa série de mecanismos jurídicos para sua gestão. Não

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171

considero a identificação de um sítio arqueológico uma atitude danosa; pelo

contrário, venho aqui defendendo o patrimônio arqueológico como ferramenta

importante para a preservação de um espaço social contra os avanços do

desenvolvimento econômico desmedido.

E por essa mesma razão acredito que a arqueologia não deveria se

abster da compreensão de como pensa o público sobre determinado espaço.

Toquei nesse ponto no primeiro capítulo: acredito que a arqueologia

direcionada para a leitura de suas impressões na mídia é antes de tudo uma

maneira de buscar os interesses públicos no presente que são direcionados

aos vestígios do passado. Para levar a cabo essa tarefa, acredito que as

leituras dos artigos aqui propostas tem muito a contribuir.

Por um lado, algumas empresas particulares tratam naufrágios como

fontes fáceis de fortuna, e nesse caso defendo que façamos da presença

arqueológica algo além do fantasioso; uma realidade de pesquisa e respeito

aos interesses locais sobre o mesmo espaço (Pyburn 2008). Por outro, muitos

mergulhadores, como veremos aqui, enxergam beleza e memória em ruínas

humanas submersas. E talvez essa concepção afetiva do espaço seja um bom

ponto de partida para criar laços entre arqueólogos e o público (Holtorf 2007a).

Dando inicio aos comentários, todos os textos possuem certos

parâmetros em comum: apontam locais de mergulho (points) e possuem uma

“ficha técnica” sobre o local (como chegar, distância dos principais centros

urbanos, locais de estadia – preço e conforto – companhias que fazem o

mergulho, melhores horários e períodos do ano para se visitar), assim como

dados de importância para apreciação e segurança do mergulho (campo de

visibilidade, profundidade do point, temperatura da água, presença de

correntes marítimas). A imersão não é um processo simples, por condições

naturais, e o mergulho exige um preparo anterior.

As técnicas e tentativas de permanecer submerso sempre foram dignas

de atenção, desde o mergulho em apnéia até os sinos de mergulho (Bass 1971,

Rambelli 2002, Diegues 1998, Martin 1978). Veio, então, a invenção da SCUBA

(Self-Contained Underwater Breathing Apparatus – Aparato para Respiração

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172

Submersa Auto-Contido) na década de 1940 por Jacques Cousteau e Emile

Gagnan, um equipamento constituído de tanques de ar comprimido e

reguladores de pressão possibilitando que o indivíduo se mantenha submerso

sem conexão direta com uma fonte de ar externa, criando o mergulho

autônomo (tal qual o chamamos na atualidade) e mais confortável (já que a

produção de seus acessórios entrou no mercado).

Primeiro seria interessante o reconhecimento de que o mergulho

recreativo pode ser uma atividade amadora do ponto de vista de um

mergulhador cuja ocupação é consertar plataformas de petróleo em alto-mar,

por exemplo. Existem, ao certo, aqueles mergulhadores eventuais que não

vislumbram na submersão algo além de um entretenimento ocasional. Mas a

elaboração técnica envolvida em mergulhos mais profundos e mais longos

exige um nível de atenção e especialização que chega quase ao profissional.

Um dos artigos menciona o mergulho como “verdadeiro estilo de vida;

essas pessoas mergulham para fazer novos amigos, estar em contato com a

natureza, viver novas experiências e conhecer lugares diferentes” (Werneck &

Henriques 1998, p. 52). Esse “estilo de vida” condiciona a uma profunda

“dedicação para aumentar as habilidades técnicas e os conhecimentos teóricos,

termina transformando o ‘recreativo’ em ‘técnico’” (Werneck & Henriques 1998,

p. 52). Na visita a cavernas profundas e pouco conhecidas, descidas de “4

horas ou mais, é comum o caverneiro recorrer a mais de um seis cilindros -

extras para estágios de descompressão” (Werneck & Henriques 1998, p. 54).

Não sei ao certo quantos dos leitores estão familiarizados com os

procedimentos de segurança e riscos envolvidos no mergulho autônomo. O

termo “estágios de descompressão” mencionado por Marcus Werneck e

Maurício Henriques se refere a uma medida de segurança adotada em

mergulhos muito profundos para evitar uma condição clínica conhecida como

“diabarismo” ou “doença descompressiva”. Quando em submersão, o corpo

humano sofre os efeitos da pressão atmosférica (valor equivalente de 1 atm) e

começa a sofrer os efeitos da pressão da massa de água marinha. A

densidade da água do mar, muito maior que a densidade do ar, faz com que

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poucos metros de submersão sejam o equivalente ao efeito de mais 1 atm. Ou

seja, à medida em que aumentamos a profundidade durante o mergulho, nosso

corpo começa a sofrer os efeitos do aumento da pressão. O termo diabarismo,

ou doença descompressiva, refere-se aos sintomas de uma queda muito súbita

da pressão do ambiente, ou seja, quando subimos rapidamente de uma grande

profundidade. O gás nitrogênio não é metabolizado com eficácia e se acumula

nos tecidos sanguíneo, adiposo e ósseo, podendo provocar dor nas juntas,

coceira e até paralisia temporária (Guyton & Hall 2006, p. 549).

De fato, a submersão não é uma prática fácil e exige um aprendizado.

Para alguns mergulhadores esse aprendizado alcança níveis de maestria

técnica. Muito menos Rambo, e muito mais McGhyver (Werneck & Henriques

1998, p. 54). Nesses casos, não estamos lidando com “leigos”, mas com

verdadeiros conhecedores sobre as técnicas de submersão. O domínio da

técnica consagra o domínio do espaço: um espaço que não é para todos.

Tendo em vista essas condições, podemos chegar a situações em que, como

descrevem muitos arqueólogos, não somos vistos como capazes de penetrar

nesses mundo de maravilhas porque não detemos o conhecimento sobre o

mergulho. São casos onde a arqueologia é vista como amadora. Aliás, se

percorrermos a história do mergulho autônomo, poderemos ver que muitos

desses mergulhadores, inclusive, foram os “iniciadores da arqueologia

subaquática” (Rambelli 2010 – informação verbal; Noelli 2010 – informação

verbal)57, intervindo em naufrágios afundados e resgatando peças submergidas.

O argumento da arqueologia a contraponto, é que ela nunca negou a

participação de mergulhadores recreativos nos trabalhos de campo. Sua

presença é reconhecida e sempre bem-vinda. A arqueologia entra em conflito

com o mergulho recreativo e profissional quando mergulhadores optam pela

retirada dos vestígios submersos sem os devidos cuidados para sua

57

Entrevista concedida por Gilson Rambelli a Bruno S. R. da Silva em Aracajú, julho/agosto 2010.

Entrevista concedida por Francisco Silva Noelli via e-mail. Pelotas e São Paulo/Belo Horizonte. Junho de

2010.

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conservação, além de inviabilizar por completo o estudo in situ do material;

dado essencial para realização de qualquer estudo arqueológico.

No entanto, não devemos nos esquecer de que há mais do que o

domínio técnico envolvido no mergulho profissional. A conquista da técnica leva

à conquista do espaço, sua domesticação e territorialização pelo mergulho

desbravador. Talvez esse seja o principal cuidado quando do contato com o

mergulho e seus praticantes fora da academia. Cuidar para que nossa

empreitada não seja vista de início como uma arrogância acadêmica, pois

nesses casos somos vistos como estrangeiros.

Retomando os artigos, o domínio técnico é o meio através do qual o

mergulho possibilita uma experiência sensitiva e corporal. Em uma visita à

Cuba, uma das atrações principais foi o mergulho em uma embarcação russa

naufragada especificamente para uso turístico, ou seja, mantinha muitas de

suas estruturas intactas e a localização planejada, “não é preciso dizer que a

sensação do grupo foi de delírio total” (Luca Jr. 1999, p. 31). O autor também

nos descreve sua sensação de “puro êxtase ao mergulhar em uma temperatura

de 32° C era homogênea pela coluna d’água, impressi onante água azul” (Luca

Jr. 1999, p. 33).

Esse caso também nos convoca a refletir sobre a relevância ou

irrelevância da historicidade associada ao naufrágio. Como já apontei, o que

para o arqueólogo é um vestígio material que revela parte das relações sociais

do tempo de sua confecção, para o público pode ser um espaço paisagístico,

uma pintura em três dimensões cuja interpretação repousa no sublime da

experiência estética. Ou seja, trata-se mais de uma valorização da

sensibilidade do que da autenticidade histórica, a experiência no presente que

pode vir a alimentar um interesse pela arqueologia (Holtorf 2007a). Podemos

considerá-lo, também, como a cultura material em seu pleno uso social.

Outro autor conta que a visita ao Parcel Manuel Luis no Maranhão

não tem as condições de mar maravilhoso do Caribe e tampouco o conforto do turismo caribenho. Aqui a conversa é outra: aventura. A navegação é longa, a estadia em mar aberto, cansativa e o lugar, selvagem, imprevisível. Mas ao olhar em

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volta e não ver nenhum outro barco, ao encontrar os grandes peixes de fundo ainda desacostumados aos mergulhadores, ao nadar acompanhado por barracudas que se aproximavam batendo os dentes, por tudo isso, confesso que o Parcel Manoel Luís já se tornou inesquecível (Amarante 1998, p. 33).

Em outro artigo, os desafios têm origem “divina”, pois fora a “exigência

que Poseidon, o Deus dos Mares, impôs aos mergulhadores para que

pudessem aproveitar as águas cristalinas e frias da ilha de Mykonos” (Lembo

1998, p. 20), como brinca o instrutor:

Fechamos o cinto de lastro. Colocamos o equipamento de mergulho autônomo. A máscara e as nadadeiras ficaram em nossas mãos. Foi com esse aparato completíssimo – incluindo o cilindro nas costas -, que atravessamos a pé 50 m. de uma praia de areias escaldantes, até o embarque em um barco inflável. O calor de 35 graus, por sí só, já seria um agravante. Imagine – se debaixo de um sol desses, dentro de um roupa de neoprene de 5 mm! Para complicar, havia um incômodo adicional; a praia estava lotada de nudistas, de todas as faixas etárias e preferências sexuais. (Lembo 1998, p. 20)

A dificuldade técnica, física e moral são barreiras que agem como

desafios suficientemente abrasadores, na medida em que permitem sua

superação e, por consequencia, a conquista de mais um ambiente: todo o

esforço é compensado pelas maravilhas vistas no submerso e pelo exótico fim

de dia, acompanhado de

histórias de mergulho, contadas em varias línguas pelos divemasters e instrutores, generosas doses de ouzo – a bebida nacional, um destilado com sabor de aniz, e o ‘tira-gosto’ eram fatias de queijo de cabra, o fetta, deliciosa especialidade grega (Lembo 1998, p. 24).

Podemos enxergar um elemento da cultura popular de grande

semelhança entre a paisagem submersa e a arqueologia emersa: o exotismo

da descoberta (Holtorf 2007a, 2005). A aventura se encontra na transgressão

dos obstáculos e na premiação pela coragem do transgressor. As águas de

Poseidon guardam maravilhas destinadas apenas aos poucos bravos que

forem capaz de transgredir os obstáculos. O prêmio pela coragem: histórias e

fartura de iguarias.

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Muitas dessas referências gloriosas à apreciação do mergulho estão

inclusive imbuídas de carga histórica. No mesmo artigo o autor transcorre

sobre o prazer proporcionado na “mitológica ilha de Mykonos”, que fora

mantida afastada dos mergulhadores por guardar “riquezas milenares”.

Entretanto, essa carga histórica parece estar mais associada com sonhos de

riqueza que com potencial cultural. “A idéia de que alguma coisa venha a ser

velha, interessante e sem valor simplesmente não é aceitável” (Ascherson

2004, p. 104).

Assim, muitas das referências históricas são apelativas à fantasia de

muitos que já pensaram sobre arqueologia e mergulho: caça ao tesouro. Vimos

na apresentação deste trabalho o caso do Galeão Sacramento. Outro exemplo

que posso mencionar é o da Nau Santa Rosa que naufragara em 1726 em

Pernambuco, carregando “6,9 toneladas de ouro em lingotes, mais uma grande

quantidade de pedras preciosas, segundo registros oficiais” (Lima 2001, p. 39).

Em dezembro do ano passado [2000], a Rede Globo levou ao ar em horário nobre, durante o Jornal Nacional, a notícia de que a legendária fragata Santa Rosa, carregada de ouro e jóias, havia sido localizada perto de Serrambi, litoral de Pernambuco (Lima 2001, p. 38).

Comparada à preciosa carga avaliada em US$ 700 milhões de reais, o

autor afirma que “no mínimo, o naufrágio tem um valor histórico” (Lima 2001, p.

38). Vale lembrar que no dia 26 de dezembro do ano anterior, a lei 10.166 foi

aprovada.

Nesse artigo, vemos uma das principais desconfianças da arqueologia

nos meios de comunicação: o sensacionalismo. Ao reproduzir, localizar e

confirmar um sonho de “horário nobre, durante o Jornal Nacional”, a mídia

reproduz um discurso que, longe de possibilitar uma realização subjetiva de

todos os praticantes (afinal não existem muitas fragatas com a carga da Santa

Rosa), acarreta sérias conseqüências à conservação do patrimônio histórico

submerso. Apesar de estarem cientes os mergulhadores da baixa

probabilidade de encontrar tamanha fortuna, o naufrágio visitado torna-se

sinônimo de tesouro com “no mínimo, um valor histórico”. Nesse caso, os

receios de Peter Fowler (2007) se concretizam: a mídia não procura entre a

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multiplicidade de perspectivas que a academia tem a oferecer sobre o passado.

Seu olfato é direcionado para o sensacional, o tesouro e a aventura. E daí o

medo de que a arqueologia venha a submeter-se às ganâncias da empresa do

áudio-visual e tente burlar sua própria ética em nome da fama e do

financiamento (Cf. caso Shinichi em Clack & Brittain 2007).

Muitos arqueólogos subaquáticos que possuem vivência no mergulho e

constante contato com mergulhadores recreativos apontam para a atitude

destrutiva com que muitos mergulhadores têm conduzido a prática. Segundo

Paulo Bava de Camargo, são vários os casos em que o mergulho é cercado

por algo de “machodiverismo”, posse do que reside no submerso porque foi

encontrado “por mim” (Camargo 2010 – informação verbal58). Leandro Duran

também descreve o mesmo tipo de situação,

Muitos são profissionais bem estabelecidos que tem isso como hobby, e defendem isso abertamente em encontros da sociedade civil, encontros de mergulho... Por exemplo, no São Paulo Boat Show você vê palestras desse pessoal. Eles têm uma voz ativa na comunidade e que, direta ou indiretamente, suporta o posicionamento político danoso (Duran 2010 – informação verbal59).

Inclusive a retirada de placas informativas de trilhas de turismo (Duran

2010 – informação verbal).

Por outro lado, muitos mergulhadores reconhecem nos vestígios

materiais resquícios de humanidade. Em uma das embarcações que afundara

no Parcel Manoel Luís em 1984, as “gavetas dos camarotes” com “objetos

pessoais” realmente chama a atenção do mergulhador (Amaranates 1998, p.

31).

Para citar um caso familiar para ambos arqueólogos e mergulhadores,

Gilson Galvão coloca a história do Galeão Sacramento em evidência tanto

através de seu valor histórico quanto natural e arqueológico.

58

Entrevista concedida por Paulo Bava de Camargo via skype. São Paulo/Belo Horizonte. Maio de 2010.

59 Entrevista concedida por Leandro Duran a Bruno Sanches via skype. São Paulo/Belo Horizonte. Abril

de 2010.

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O grande encanto do Sacramento é imaginar que se está entrando em um quebra-cabeças vivo, de mais de três séculos de idade que deixou poucas peças. É preciso mergulhar o tempo todo resgatando um pouco da sua importância histórica, lembrando que todo este cenário submarino, hoje lar de peixes e corais, um dia transportou mais de 800 pessoas, entre nobres, oficiais, soldados, marinheiros, mulheres prometidas aos donos de terras e o futuro governador-geral do Brasil, Francisco Correa da Silva, morto na tragédia antes de tomar posse (Galvão 2004, p. 18).

Como extensão dessa particular beleza histórica e natural, o Museu

Náutico da Bahia em Salvador apresenta os demais vestígios recuperados e

“dão embasamento teórico e estimulam as emoções” (Galvão 2004, p. 18) dos

interessados em mergulhar no sítio. É certo que a arqueologia pode contribuir

com “embasamento teórico e estímulo de emoções” quando essas são

estimuladas pelo referencial histórico e humano atribuído à cultura material.

São casos em que acredito que a educação patrimonial, sabendo informar ao

mesmo tempo em que explora a sensibilidade dos mergulhadores (Copeland

2004), é uma opção de abordagem pública fundamental.

Carlos Lima publica duas reportagens sobre mergulhos em points de

especial apelo histórico que também preza pela preservação. Em um deles,

nos conta sobre a visita à Trunk Lagoon, na Micronésia, onde o Japão fizera

ancoragem de parte gigantesca de sua frota naval que fora afundada por caças

americanos (em retaliação à Pearl Harbour).

A região se tornou um verdadeiro museu submerso da II Guerra Mundial. Hoje, as máquinas da morte criam vida e contam em imagens impressionantes a história de um período que jamais será esquecido pela humanidade (Lima 1999, p. 39).

Em outro artigo, Carlos Lima (1998) enaltece a transformação da área

em que se encontrava o naufrágio da embarcação australiana Yolanga em

parque nacional marinho. O Yolanga partia da Austrália com uma tripulação

enriquecida pela descoberta de ouro na Austrália, e isso teria levado caçadores

de tesouros nos anos 1950 a retirarem das profundezas um cofre encontrado

na embarcação (Lima 1998). A medida protecionista tomada pelo governo

australiano em respeito às famílias dos que foram vítimas do acidente no final

do século XIX (ainda existem esqueletos dos náufragos entre os destroços),

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“evitou também que aventureiros depenassem o navio” (Lima 1998, p. 34).

“Essa preservação torna o mergulho não apenas um espetáculo marinho, mas

também uma volta ao passado” (Lima 1998, p. 34)

O artigo de Carlos Lima nos apresenta um argumento pela preservação

que tenho usado desde o início do trabalho. A indicação de um sítio

arqueológico pode viabilizar sua proteção como patrimônio civil que possui

representatividade e peso de diferentes formas para diferentes setores da

sociedade. Para os parentes das vítimas, é um local de homenagem à memória

familiar; para os mergulhadores, é um “espetáculo marinho e uma volta para o

passado”. Aliás, o caso do SS Yolanga talvez fosse mais difícil para os

arqueólogos já que toca em questões éticas de escavação de enterramentos

contemporâneos e pontos com forte significado pessoal ainda nos dias de hoje.

José Eduardo Galindo mergulha em uma embarcação de naufrágio

recente, ainda presente na memória de moradores da localidade que a

presenciaram e movimentaram-se como puderam para salvar os embarcados:

“A memória das horríveis condições climáticas e do desespero do resgate

provavelmente originam todas as histórias fantásticas que envolvem o vapor”

(Galindo 2000, p. 32). As condições propícias ao mergulho produzidas pelo

horrível da tragédia parecem atuar, como há um século atrás (Corbin 1989), à

apreciação do simulacro da própria destruição, uma observação do que pode

acontecer a cada um de nós (tão instigante quanto assistir a um filme de

acidente aéreo). Assim, uma equipe de mergulho explora as salas de uma

hidrelétrica que foi submergida pelas águas de outra hidrelétrica. “Quem diria

que aquilo tudo teria sido erguido pelas próprias mãos do homem? Subimos

em êxtase” (Meurer & Rodrigues 1999, p. 22). Aumentado as imagens de morte

no ambiente, um cemitério (exumando antes da enchente) está presente na

paisagem, trazendo também a nostalgia da perda. Carlos Lima descreve uma

impressão semelhante do mórbido no naufrágio do Yolanga, que ainda possui

esqueletos dos náufragos (Lima 1998). Percorrer corredores, agora desertos,

que foram povoados de vidas humanas faz-se enxergar o patético da atitude

racional; Como uma atuação por binômios, frente è morte, o homem revê sua

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vida: Das cinzas extintas do alheio, o observador pode ressignificar sua própria

existência.

Dentre as reportagens lidas, encontrei duas da revista SCUBA que

tratavam da legislação de proteção dos vestígios submersos e do patrimônio

arqueológico. Uma delas foi o editorial de outra edição onde o autor faz

referência ao absurdo da legislação (que na época ainda era a de 1986, sem a

alteração de 2000) e, defendendo ambas as partes, investidor da exploração e

preservação patrimonial, comenta da riqueza histórica sob as águas da Baía de

Todos os Santos, em uma edição que comemora os 450 anos da cidade de

Salvador (Falanghe 1999). Um segundo artigo da mesma edição inclusive

proclama o “Banco da Panela”, também em Salvador, como um dos maiores

sítios arqueológicos subaquáticos do mundo (Zanardi, Vitória & Falanghe 1999).

Em 2004, Gloria Tega publica uma reportagem na revista Mergulho em

que promove a proteção do patrimônio arqueológico subaquático (Tega 2004).

A autora trata da inconstitucionalidade da lei 10.166, lembrando que sítios

submersos já estão sob custódia da União pelo artigo nº 216 da Constituição

de 1988. Suas entrevistas prezam pela preservação do patrimônio in situ, e

pelo reconhecimento do potencial cultural que os sítios submersos podem

prover; potencial muito maior do que os ganhos individuais feitos por pequenas

pilhagens (Tega 2004). Glória Tega entrevista diversos membros da equipe do

CEANS e faz questão de deixar claro que não se trata de proibir e criminalizar

o mergulho em naufrágios e sítios considerados arqueológicos. Mas sim, é uma

questão de evitar o depredo e destruição, levando em conta que essas

atividades inviabilizam outras muito mais vantajosas para o mergulho recreativo,

como o turismo consciente, o aprendizado histórico e a preservação de belezas

naturais. Sua posição fica clara na chamada da reportagem: “Diversos países

realizam o turismo sub-cultural em seus sítios arqueológicos. Por que isso não

acontece no Brasil?” (Tega 2004, p. 20).

A idéia dessa abordagem mais qualitativa que quantitativa de

reportagens escritas por mergulhadores foi seguir uma das tendências da

arqueologia pública, atinar a sensibilidade para as experiências presentes que

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parecem estar por trás da escolha do público pelo contato direto com vestígios

físicos do ser humano e, conseqüentemente, que os possa levar à arqueologia

com maior ou menos interesses (Holtorf 2007a).

Retomo minha conclusão (Silva 2007) de que nem todos os interesses

dos mergulhadores entram em choque com aqueles dos arqueólogos. Pelo

menos, não em aparência. As imagens transcritas e razões pelo apreço dos

sítios submersos aparecem tal como as experiências apontadas por Cornelius

Holtorf (2007a, p. 4). Sejam quais forem, trata-se de experiências no presente

que determinam o interesse das pessoas pelo passado. E podemos ver nesse

interesses, pelo menos a princípio, razões que justifiquem a preservação mais

que motivos de pilhagens impróprias. Assim, me parecem ser interesses e

sensibilidades através dos quais o arqueólogo pode conjugar seus interesses

pela preservação patrimonial.

O exercício de gestão patrimonial do

Estado através da lei 10.166 e sua

antecedente são tanto inconstitucionais

quanto irresponsáveis, pois elas viabilizam a exploração comercial dos

vestígios submersos, permitindo que um bem coletivo passível de

interpretações e relações das mais diferentes formas, seja apropriado por

empresas privadas (em sua grande maioria estrangeiras). Sob os bens

submersos, o Estado brasileiro caminha para o extremo oposto de uma postura

“multiculturalista”, retornando aos primórdios em que os bens e paisagens

culturais ficavam a cargo dos interesses da propriedade privada (Funari &

Robrahn-González 2008)

O mergulho recreativo, em geral praticado por uma população urbana, é

uma das poucas saídas encontradas por muitos para a revitalização da

sensibilidade destroçada pelo cotidiano pesado e conturbado dos grandes

centros urbanos (Silva 2007). A preservação dos sítios arqueológicos

subaquáticos conflui facilmente com a imagem já consagrada da preservação

natural. “Preservação para apreciação”, não resumir-se ao gosto egoísta da

conquista pessoal de pequenos troféus, mas permitir que esses espaços de

A sensibilidade que envolve o mergulho recreativo muitas vezes mostra um interesse que pode ser atrelado ao do protecionismo arqueológico.

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escape, entretenimento e memória permaneçam para regozijo da coletividade.

“E nessa acessibilidade podemos argumentar ‘não destrua, venha visitar e

aproveitar’” (Rambelli 2010 – informação pessoal60).

Enquanto a posição política do Estado frente ao patrimônio cultural

subaquático da União não mudar, a própria arqueologia tem que conduzir seus

esforços e seu trabalho tanto pela alteração da legislação vigente quanto pela

valorização e preservação do patrimônio cultural. Para essa tarefa, ter em

conta as sensibilidades que envolvem a experiência submersa fora da

arqueologia pode ser crucial. E muitos arqueólogos subaquáticos estão já

partindo dessa preocupação.

5.3. Arqueologia subaquática – desafios e estratégias de atuação

pública

Neste trecho, procuro observar o mesmo que já foi observado nos

capítulos anteriores: as alternativas que a arqueologia tem buscado para

melhorar sua relação com o público, fazer-se mais presente às demandas

sociais ao mesmo tempo em que se preocupa em não deixar desaparecer seus

próprios interesses.

É possível utilizar estratégias que são usadas em outras áreas da

arqueologia com considerável sucesso, como convidar o público (no caso, o (a)

mergulhador (a)) à inserção direta em projetos arqueológicos como voluntários

(Jameson Jr. 2004; Frost 2004; Faulkner 2004), ou através de ações

educativas (Copeland 2004) em points litorâneos e escolhas de mergulho. A

alternativa a qual dedicarei mais tempo é a do turismo arqueológico, muito

polêmica dentro da academia. Basicamente duas são as razões por essa

escolha. Primeira, não podemos esquecer que a intenção do mergulho

recreativo é “recreação”, entretenimento. Isso não significa que nosso foco

deve ser uma “atividade pastelão”, mas não vale deixar em segundo plano o

fato de que este público em particular toma em contato com os vestígios

submersos num momento de seu cotidiano que reserva a atividades lúdicas, ao

60

Entrevista concedida por Gilson Rambelli a Bruno S. R. da Silva em Aracajú, julho/agosto 2010.

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descanso e aos hobbies. Em segundo lugar, muitas das empreitadas do

turismo arqueológico submerso terminam por misturar a participação voluntária

em atividades de campo e palestras sobre arqueologia.

De início, podemos retomar o caso apresentado por Lynn Harris no

estado Norte Americano da Carolina do Sul para abordar o que chamamos no

Brasil de “educação patrimonial”. Como já deixei claro nos capítulos anteriores,

confio na transmissão de conhecimento e na aprendizagem. A questão central

e como, para quem e com qual objetivo estamos “educando”. Em 1989, o

Instituto de Antropologia e Arqueologia da Carolina do Sul criou o Programa de

Manejo Arqueológico de Mergulhadores Esportivos (SDAMP), junto à Divisão

de Arqueologia Subaquática do Instituto (Harris 2002). O Programa foi criado

especialmente para discutir o papel dos mergulhadores esportivos e ir ao encontro de necessidades de manejo de acordo com a legislação do estado, inventário de material submerso, e objetivos de pesquisa. O programa dedica todo o seu tempo à educação pública (Harris 2002, p. 59)

Sua execução não se limita a atividades esporádicas de educação

patrimonial e registro de mergulhadores como “portadores de antiguidades”

licenciados. Sua dedicação abarca um curso de formação técnica em

arqueologia, credenciados pelo SCIAA. O curso se divide em quatro partes: 1)

introdução aos princípios básicos da arqueologia, seus conceitos, técnicas,

registro, prospecção não-interventiva e políticas de preservação, bem como

legislação estadual sobre o patrimônio arqueológico e que tipos de sítios

podem ser encontrados. 2) e 3) são etapas de workshops de identificação de

material, fotografia e desenho, arquitetura naval, marcação e catalogação de

material, conservação, pesquisa histórica; atividades de campo como

estabilização do sítio, uso de equipamentos de sensoriamento remoto,

escavação e uso de quadras. 4) última parte, exige que os mergulhadores

participem de uma etapa de campo de 14 dias em um projeto do SCIAA ou

dirigir um projeto subaquático pelo mesmo tempo (C.f. Harris 2002, p 62-63

para mais detalhes).

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184

Os cursos têm recebido não só mergulhadores recreativos do estado,

mas diversos profissionais e estados vizinhos que não contam com esse tipo

de formação. Os projetos encorajam a participação também de não

mergulhadores em sítios de zonas pantanosas ou intersticiais, além da

pesquisa histórica em arquivos e trabalhos de conservação em laboratório

(Harris 2002).

A formação complementar e técnica do público em trabalhos

arqueológicos me parecem uma idéia, a princípio, formidável. As experiências

do “certificado dos auxiliares de campo” sugerida por Tatiana Fernandes (2009)

e Viviane Vidal (2010) mostram que o aparato metodológico e científico do

arqueólogo pode ser sim de interesse do público mais do que o romantismo

que desperta. Além da educação patrimonial, cursos de formação técnica

colocam a ciência a disposição do público leigo, desmistificando-a e

democratizando-a.

Quando digo “a princípio” é devido à nunca ter participado de tal

experiência para sentir como os interesses em jogo (mergulhadores e

arqueólogos) estariam sendo atendidos. Por um lado, temos a proposta de

democratização do conhecimento atende ao apelo da arqueologia pública. Por

outro, existe a possibilidade de que o conhecimento nas mãos dos

mergulhadores treinados siga caminhos próprios, e que muitos deles venham a

interessar-se pela execução de projetos por si mesmos, sem a presença

necessária de um arqueólogo. Há também a possibilidade de que esse

conhecimento não seja “democratizado”, mas “imposto” pela arqueologia como

forma de criação de uma “patrulha patrimonial” que nunca será permitida ir

além da sombra de uma “grande disciplina”.

Ponderar sobre essas possibilidades é colocar em questão a

legitimidade de uma disciplina, a diferença hierárquica entre patamares de uma

escala evolutiva profissional. Uma vez entrosado às normas e métodos da

arqueologia, o olhar do mergulhador aproxima-se muito mais daquele do

arqueólogo. No entanto, ainda resta a questão sobre as dedicações e tempos

de estudo: Em outras profissões, seria aceito que técnicos fizessem as

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mesmas coisas que graduados? Mas será que deveríamos colocar essa

diferença sendo que a maior parte dos arqueólogos no Brasil ainda não são os

formados por graduações específicas (e que até dez anos atrás havia

pouquíssimas graduações no país)? Ou ainda, a formação técnica não impede

que o indivíduo continue perseguindo a passagem definitiva para a

profissionalização arqueológica, ou impede?

Não sei com exatidão até que ponto essa discussão pode levar a planos

de conflito e conciliação válidos. A especialidade e grau de formação sempre

apresentaram um papel importantíssimo na profissionalização social brasileira.

Por vezes, até em demasia, visto que nos tornamos um país incapaz de

reconhecer o valor do trabalho manual. No entanto, não acredito que uma

formação técnica em arqueologia venha a colocar em risco o papel do

arqueólogo e mesmo a preservação do patrimônio. E tampouco acredito que

isso deva se tornar uma desculpa para evitar projetos que disponibilizem a

arqueologia ao alcance de todos. Tal como o arqueólogo, cabe ao mergulhador

ou mergulhadora estarem conscientes de suas atividades uma vez que de

posse da técnica.

Chico Noelli levanta algumas dessas perguntas.

Porque não atuar a partir de uma ação iniciada por um grupo da sociedade civil organizada? Porque deixar a oportunidade de incentivar a criação de um movimento local para proteger o patrimônio cultural? Porque não ajudar com a transmissão dos conteúdos corretos da Arqueologia, na direção da pesquisa e da preservação do patrimônio cultural? Porque não incentivar um grupo de amadores a buscar a formação específica da Arqueologia? (Noelli 2010 – informação pessoal)61

O Projeto de Arqueologia Subaquática da praia dos ingleses, ao qual já

fizemos referência na apresentação (Viana et alii 2004), partiu de

mergulhadores amadores que, interessados e preocupados com um naufrágio

que se degradava pela ação marítima e de pilhagens eventuais, iniciou um

movimento de pesquisa para poder levar a cabo trabalhos de arqueologia

61

Entrevista concedida por Francisco Silva Noelli via e-mail. Pelotas e São Paulo/Belo Horizonte. Junho

de 2010.

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186

subaquática. Sua preocupação com a qualidade e efetividade dos trabalhos os

levou a procurar um arqueólogo que pudesse coordenar o projeto. Não

podemos esquecer do ponto também relativo ao debate anterior, que é norma

do IPHAN que projetos arqueológicos sejam coordenados por arqueólogos

reconhecidos.

Ainda sobre a experiência do PAS, vale apontar que entre seus objetivos

está “criar as bases necessárias para a construção de um Museu de

Arqueologia, História e Cultura Marítima de Santa Catarina, dedicado à

pesquisa e a preservação da cultura material e das tradições locais” (Noelli et

alii 2009, p. 198).

A Musealização do acervo arqueológico tem sido uma questão central

nas discussões de arqueologia subaquática brasileira. Um dos principais

motivos apregoados pelos mergulhadores que emergiam material arqueológico

era de “trazer os vestígios da história ao alcance daqueles que não podem

mergulhar”. A resposta dos arqueólogos tem sido “Sim, mas a retirada sem os

devidos cuidados de conservação levam o material à ruína, além de

descontextualizá-lo e impedir a produção de qualquer conhecimento mais

profundo”. Esse debate certamente deixa claro alguns dos problemas do

acesso público aos bens culturais submersos. Apesar do crescimento do

mergulho autônomo, essa ainda é uma atividade cara e não praticada por

todos os apreciadores do litoral e do mar. Como fazer a “história contada a

partir dos vestígios” chegar até o público não mergulhador? O Museu do PAS

recebeu 12.000 visitantes até 2006 (PAS 2006), número considerável de

interessados.

Como contraponto, cabe lembrar as críticas feitas no primeiro capítulo. O

que se quer mostrar com um museu? Qual história é tocada por aqueles

materiais: pirataria? Cotidiano naval? História comercial? Qual a participação

das “tradições locais” na elaboração e construção desse museu? Lembremos

que a conservação é um problema central para a arqueologia subaquática (Cf.

Bass 1971, Godfrey et alii 2002, Hamilton 1996, Hermanson 2004, Rambelli

2002) e as responsabilidades envolvidas na conservação do material

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arqueológico (Johnson 1993, 1994). O que conservar e porque conservar? Que

tipo de informação pode ser retirada do material estabilizado? O processo de

musealização exige uma profunda responsabilidade. Não é apenas uma

exibição descompromissada de objetos para “ilustrar a história trágico-

marítima”, mas a criação de mais um lugar de narrativa sobre o passado. Um

lugar profundamente disciplinar e cuja arquitetura transmite idéias sobre o

passar do tempo e o funcionamento da sociedade.

Não se trata de um ataque direto à exposição citada de organização do

PAS, apenas apontamentos já discutidos sobre a responsabilidade envolvida

na elaboração de uma exposição museológica. O acesso público de material

arqueológico é uma premissa apontada pelas principais cartas sobre o

patrimônio arqueológico (ICAHM 1990, UNESCO, 2001). Esse acesso,

entretanto, deve ser pensado e planejado, tanto pela seriedade do discurso

histórico presente em uma exposição quanto pela condição delicada que

envolve a conservação do material proveniente de ambientes encharcados.

A profissionalização da arqueologia brasileira é um ponto central

também em trabalhos subaquáticos, pois o desafio de institucionalizar-se como

parte da disciplina, ou seja, ganhar valor entre seus pares, tomou tempo e

esforço dos profissionais da área no Brasil (Duran 2010). O trabalho

inicialmente desenvolvido por Maria Cristina Mineiro Scatamacchia e Gilson

Rambelli, seguido por outros profissionais dentro e fora do MAE/USP, como

vimos na apresentação, conferiram à prática subaquática nacional visibilidade e

credenciais sobre sua viabilidade. Nos últimos anos, mais duas teses de

doutorado são defendidas no MAE/USP, também sob orientação de

Scatamacchia, que deixam clara a potencialidade que oferece a prática

subaquática. Flávio Calippo (2010) e Leandro Duran (2008) trabalharam,

respectivamente, com as populações sambaquieiras do litoral paulista e com

uma armação baleeira também no litoral sul do estado de São Paulo. Essas

publicações cruzam temas caros à arqueologia nacional, como a ocupação pré-

histórica do continente e comportamento social das sociedades sambaquieiras,

em Calippo, e a vivência do sistema capitalista na América colonial e imperial,

em Duran. Seus trabalhos são excelentes exemplos da consolidação da

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arqueologia subaquática no Brasil, junto com a criação de uma nova vaga para

arqueólogo subaquático na Universidade Federal de Pernambuco (Duran 2010;

Guimarães 2010; Rambelli 2010).

Voltando à questão da exposição e musealização, uma alternativa

considerada primordial a conservação do patrimônio subaquático e seu

aproveitamento público é a preservação in situ (UNESCO 2001).

Um deles é o “Proyecto lugares de memória en el corregimiento de

Tierra Bomba” (Projeto lugares de memória no corregimento de Terra Bomba),

em quatro ilhas do corregimiento de Tierra Bomba, na Colombia, desde 2008.

Este projeto foi a sequencia do “Programa de sensibilización para al protección

del patrimônio cultural subacuático” (Programa de sensibilização para a

proteção do patrimônio cultural subaquático) cujo propósito foi identificar sítios

arqueológicos e a ligação das comunidades locais a eles (Fundación Terra

Firme 2011).

O projeto “Lugares de Memória” teve como objetivo a seleção pela

população de lugares que consideravam dignos de memória, de modo a

desenvolver atividades de conservação e musealização (Fundación Terra

Firme 2011). Ao fim das atividades do projeto se estruturaram duas fundações

sem fins lucrativos conformadas por membros das comunidades do

corregimiento: um centro histórico cuja função é “incentivar a cultura de nossa

comunidade e dar a conhecer ao mundo que nessa ilha se guarda um grande

tesouro deixado pelos espanhóis”; A segunda, a “Mergulhadores da história

dos canhões”, fundação com a proposta de “ser protetores e cuidadores dos

canhões e dos sítios históricos debaixo do mar, e narradores da história dos

sítios antigos que se encontram no mar e dos canhões” (Fundación Terra Firme

2011). Logo depois, surgiu o “Museu de Tierrabomba”, com um percurso

montado pelos próprios moradores, que também guiam o percurso.

A proposta do Projeto parece interessante e motivadora, em especial por

conjugar dois interesses, o preservacionista arqueológico e o mnemônico local.

Embora o nome do “Programa de Sensibilização” nos sugira a idéia de

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“inculcar” na população local uma ideologia de conservação e beneficiamento

econômico do lugar, não podemos esquecer que a relação entre comunidades

locais e instâncias ligadas ao governo central pode ser guiada por um interesse

local em aproveitar economicamente de recursos culturais em seu entorno e do

conhecimento introduzido pela arqueologia de modo a inserir-se com maior

eficacia no cenário nacional como possuidoras, e manipuladoras, de saber

oficial. Mais uma vez, a diferença entre aproveitamento do conhecimento

arqueológico e imposição de um discurso sobre o passado depende da

atuação e das sutilezas das relações pessoais no cotidiano do contato.

A Bahia de Todos os Santos tem-se mostrado um reduto muito rico para

o desenvolvimento de atividades públicas de arqueologia subaquática.

Recentemente desenvolve-se um projeto que, nos moldes da liberdade criativa

que vimos em alguns casos de arqueologia pública, toma o patrimônio como

objeto de apreciação estética como medida de apelo à preservação. O Projeto

Maraldi, de criação e execução da artista plástica baiana Lica Moniz de Aragão,

“apropria-se” do patrimônio submerso através de “poéticas visuais” (PROJETO

MARALDI 2010).

Inserido no contexto das poéticas visuais contemporâneas e constituído por uma apropriação artística submarina site specific, o projeto Maraldi promove discussões e reflexões entre arte e arqueologia de naufrágios, dilatando a dimensão estética das poéticas líquidas e incentivando a preservação dos bens culturais que constituem nossa história. Por se apresentar em um ambiente vivo, o mar, a obra conta com efeitos instáveis que emanam do próprio espaço. O encontro entre arte, natureza e patrimônio gera imagens fluidas e híbridas, como meios para uma possível comunicação (PROJETO MARALDI 2010).

Indo ao encontro dos interesses do público recreativo de mergulhadores,

tal como argumentei acima, o Projeto Maraldi vislumbra o apreço aos vestígios

submersos por sua beleza e historicidade. Tal como vimos o exemplo do artista

plástico britânico Mark Dion (Merriman 2004), a arte parte de outros preceitos

sobre a expressão do real, e parece ser uma forma riquíssima de trabalho

inter(trans/multi) disciplinar.

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190

A Bahia é também palco de atividades desenvolvidas pelos

pesquisadores universitários. O Projeto “ARCHEMAR – Centro de Pesquisa e

Referência em Arqueologia e Etnografia do Mar” está sob administração do

Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia

(MAE/UFBA) e da Prefeitura de Itaparica, tem sido igualmente uma bandeira

dessa preocupação (Rambelli 2009), com uma proposta de trabalhos

etnográficos concomitantes aos trabalhos arqueológicos e trabalhos de turismo

arqueológico, promovendo não só a construção de trilhas turísticas, mas

também a participação de mergulhadores nos trabalhos de campo. Apesar de

existirem atividades de Educação Patrimonial e turismo em Arqueologia

subaquática (I Simpósio Internacional de Arqueologia Marítima nas Américas

2007; Rambelli et alli 2004), o Projeto Archemar é pioneiro nessa empreitada

no país, por sua amplitude.

Por fim, uma das estratégias na qual a arqueologia subaquática no

mundo parece estar apostando seu esforço preservacionista e público é o

turismo arqueológico.

Desde o início do capítulo, estive discutindo os interesses envolvidos na

prática do mergulho recreativo, considerando os mergulhadores como público

não arqueológico com o qual a arqueologia subaquática tem mantido relações

conflituosas quando se trata do interesse sobre o patrimônio submerso. E uma

das tentativas que os arqueólogos têm encontrado para unir a apreciação do

mergulhador esportivo com as políticas de preservação é pelas portas já

abertas do turismo.

Antes de mais nada, uma definição de turismo é necessária. De acordo

com a Organização Mundial do Turismo, o conceito em questão

compreende em atividades de indivíduos viajando para ou ficando em lugares além de seu ambiente usual, por não mais de um ano consecutivo, por motivos de lazer, negócios e outros propósitos (WTO 1995).

O mergulho recreativo é, de acordo com essa definição, turismo. A saída

de seu “ambiente usual” durante períodos de recesso escolar e profissional por

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“motivos de lazer”. E uma das tentativas que os arqueólogos têm encontrado

para unir a apreciação do mergulhador esportivo com as políticas de

preservação é pelas portas já abertas do turismo. Talvez, o turismo

arqueológico submerso mereça atenção mais por inevitabilidade e existência já

arraigada na tradição brasileira e internacional do turismo litorâneo. Mesmo que

não seja uma atividade de resultados que mereçam sua aplicabilidade ao caso

arqueológico, o conhecimento de seu funcionamento e causas me parece

necessário como por razões de interação e manejo do que já está instalado.

É fundamental lembrar que essa movimentação de indivíduos por “lazer,

negócios e outro propósitos” envolve, também, movimentações financeiras:

Alojamento, alimentação, transporte, lazer, cultura, atividades esportivas,

compras (OMT 1994). Seja um turismo de pequeno porte, como uma viagem

de fim de semana de famílias de classe média - baixa, ou de grande porte em

resorts ou Cruzeiros, não podemos negar que as movimentações de pessoas e

dinheiro fazem do turismo uma indústria cuja previsão de rentabilidade pode

chegar a 8 trilhões de dólares americanos em 2010 (12,5% do PIB mundial),

segundo a Organização mundial do turismo (Goeldner et alii, 2002 apud Veloso

& Cavalcanti 2007). Não podemos ignorar, então, que o turismo é antes de

tudo uma indústria, e que isso implica na prioridade lucrativa.

Como toda indústria, seu propósito final é o lucro e isso exige uma

disposição das partes envolvidas para que o produto final seja consumido pelo

cliente de maneira satisfatória e, de preferência, que o encoraje a voltar a

consumi-lo. A grande problemática surge no momento da organização dessas

disposições, ditadas pelas normas do mercado capitalista exterior aos lugares

que receberão o turismo, e no peso que cada uma das partes terá na execução

dessas disposições e no usufruto real dos benefícios. A proposta desta parte

do capítulo é ver quais poderiam ser os resultados do turismo arqueológico

como mecanismo de interação de diferentes setores sociais em conflito pelo

mesmo espaço. Ou seja, que grupos se façam perceber uns aos outros em

suas diferenças, e que possam, dessa experiência, reavaliar suas próprias

visões de mundo (rever-se e revê-los). O espaço de interação seria aquele

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sobre o qual a arqueologia se debruça e define como patrimônio arqueológico.

No caso mais específico desse capítulo, o patrimônio arqueológico subaquático.

Ainda neste preâmbulo conceitual, entendo o termo “turismo

arqueológico” como uma delimitação temática, referindo-nos à estadia ou

passagem por paisagens que contenham vestígios de atividades humanas62.

Conseqüentemente, o turismo arqueológico submerso seria a passagem por

paisagens imersas que tivessem vestígios materiais humanos.

Partindo do principal consumidor do turismo, Doris Ruschmann defende

que o turista dos novos tempos,

Além de considerar apenas os aspectos naturais, o turista deseja integrar-se plenamente aos fenômenos culturais e considerar a dimensão humana das comunidades receptoras. Trata-se, atualmente, de uma clientela que deseja compreender uma paisagem, reconhecer nela os valores culturais; uma clientela sensível às noções de intercâmbio e ao encontro cultural (Ruschmann 1997, p. 147).

Se tomarmos essa premissa em nossa argumentação, podemos sim

pensar em excelentes possibilidades relacionais entre arqueologia, turistas e

comunidades.

E isto não é uma tarefa fácil e que se relaciona, de forma menos distante do que se poderia imaginar, com o Turismo, pois o lazer turístico, centrado numa das mais importantes indústrias da economia mundial, permite integrar pessoas de diferentes origens e pontos de vista, que se enriquecem, culturalmente, pela interação. O Turismo constitui parte de um esforço universal pela preservação da diversidade natural e cultural, tal como propugnada pela UNESCO, face à globalização que tende a tudo uniformizar (Funari 2004, p. única).

62 Turismo arqueológico: “processo decorrente do deslocamento e da permanência de visitantes a locais

denominados sítios arqueológicos, onde são encontrados os vestígios remanescentes de antigas sociedades, sejam elas pré-históricas e/ou históricas, passíveis de visitação terrestre ou aquática” (Manzato, 2005 apud Manzato 2007, p. 100).

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Nesse extrato, Pedro Paulo Funari faz um belo, e otimista, apontamento

à capacidade relacional da atividade turística. De fato, o Código de Ética da

Organização Mundial do Turismo, em seu primeiro artigo, prega pela

“contribuição do turismo ao entendimento mútuo e respeito entre povos e

sociedades” (WTO 2001, p. 4).

No entanto, o extrato de Doris Ruschmann deixa claro que se trata de

suprir as necessidades de uma “clientela”, ávida pelo consumo de bens

culturais. Seria possível uma aproximação cultural com benefícios mútuos para

local e estrangeiro através do consumo?

Vimos, no começo do capítulo que existem diversos elementos

envolvidos na apreciação do mergulho, concomitante às diferenças dos

mergulhadores: há a reafirmação da virilidade através da conquista de um

ambiente inóspito e da coleta de troféus profundos (atividade criticada neste

trabalho), o exercício da auto-estima ao percorrer barreiras quase

intransponíveis, o delírio das cores da água e dos seres vivos, o medo de

cruzar o limite da capacidade humana ao respirar embaixo d’água, a estética

do terror na apreciação de naufrágios e estruturas engolidas pelas águas

salgadas ou doces (Silva 2007). O mergulho recreativo é o consumo dessas

imagens e sonhos. A pergunta é se a arqueologia poderia argumentar pela

preservação do patrimônio submerso por essa estética à venda.

Como vimos, a arqueologia subaquática tem lutado pela preservação de

sítios arqueológicos submersos em nome de um interesse humanitário mundial,

e, apesar do receio em lidar com as ferramentas de seu próprio inimigo, tem

conseguido bons resultados quando atrela arqueologia subaquática e turismo.

O arqueólogo português Francisco Alves mostra uma série de exemplos

bem sucedidos do estabelecimento de “trilhas arqueológicas”, que seriam,

basicamente, roteiros de exploração submersa ao redor de vestígios materiais

(naufrágios em especial) (Alves 2009). Exemplos nos Estados Unidos, Sicília,

Croácia e Portugal tem tido ótimos resultados quanto à preservação dos sítios

submersos ao passarem pelo tocante da “preservação para apreciação”.

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“Recentemente (…) comentei que turistas mergulhadores estão procurando

pelos vestígios de embarcações que tenham sido preservadas, não naufrágios

que foram destruídos por pilhagem” (Alves 2009, p. 88). O Programa de

Manejo de Arqueologia de Mergulho Esportivo da Carolina do Sul, que

discutimos, obteve os mesmos resultados positivos quanto à experiência

(Harris 2002).

O caso da Croácia apresentado por Jasen Mesic (2009) é interessante

por abordar a dificuldade estrutural de manter diversos “Museus” de material

arqueológico retirado do fundo do mar. Apesar do aumento nos esforços para a

promoção da arqueologia subaquática no país, ainda há os meios de

conservação de todo material proveniente dos trabalhos arqueológicos. Ao

mesmo tempo, a intensidade com que a costa croata é visitada por

mergulhadores exige uma ação imediata pela preservação do patrimônio

imerso. Assim, o turismo aparece como opção adequada para lidar com a

questão.

Através de um processo peculiar, o governo croata parece ter

conseguido promover o turismo consciente em sua costa. A instalação de

redomas de malha metálica ao redor dos naufrágios, abertas pelos guias de

mergulho só no momento da visita, tem garantido a integridade física dos

vestígios, evitando pilhagens fortuitas e mantendo o material in situ como é o

mais recomendável, e tem permitido o contato entre os mergulhadores e o

patrimônio (há espaço suficiente para a circulação do visitante dentro das

redomas) (Mesic 2009). Situação similar a de cercar um sítio arqueológico ou

uma reserva natural. O autor afirma que os custos não são tão elevados. Mas

além do custo existe a questão de cercamento ser visualmente e

espacialmente impactante, podendo prejudicar a experiência do mergulho além

de, é claro, indisponibilizar por completo o espaço para aqueles que não

estejam acompanhados de equipes de mergulho: a comunidade local de

pescadores.

O turismo arqueológico pode ser uma empresa tão interessante para o

Estado quanto para os turistas, mesmo que ele ainda não tenha se dado conta,

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como no caso brasileiro (Rios 2010 – Informação verbal63). Tatiana Zamora

(2009), ao falar do descaso governamental que atinge o patrimônio

subaquático de muitos países da América Latina, termina seu texto com uma

citação de George Bass.

George Bass, o pai a arqueologia subaquática, diz: ‘ninguem consegue nomear um único país que enriqueceu trabalhando com caçadores de tesouros. Em contraposição, arqueologia subaquática gera milhões de dólares todos os anos em países que adotam uma abordagem conservativa do seu patrimônio cultural submergido, tais como Suécia ou Turquia, onde ambos Vasa e o Museu de Bodruem são atrações turísticas mundialmente conhecidas.’ (Zamora 2009, p. 28).

O arqueólogo brasileiro Carlos Rios faz o mesmo apontamento sobre o

caso brasileiro, lembrando que nossas águas apresentam condições muito

melhores que as de muitos países para apostarmos no turismo subaquático

(Rios 2010 – Informação pessoal64).

Em 2007, durante um workshop sobre mergulho, tentamos implantar o Turismo Arqueológico Subaquático, onde o mergulhador assistiria palestras explicando que embarcação é aquela (tipo, emprego), qual a sua importância para a evolução da arquitetura naval (material e técnica construtiva), história naval pertinente a mesma, bem como a causa do naufrágio, distribuição dos vestígios arqueológicos, dentre outros assuntos, ou seja, tornando o mergulho “arqueológico-histórico-cultural”. Infelizmente, possivelmente em face ao grande número de mergulhadores que frequentam o estado de Pernambuco e o seu distrito (Fernando de Noronha), o trabalho não surtiu o efeito desejado. Até a presente data, as operadoras de mergulho poderiam ganhar muito se tivessem uma visão empresarial mais ousada. Ou seja, perde o empresário e perde a população também, pois o estado poderia arrecadar muito mais com todo o valor agregado ao mergulho (hotéis, restaurantes, locadoras de veículos, companhias aéreas, guias de turismo, artesanato etc) (Rios 2010 – informação pessoal).

63

Entrevista concedida por Carlos Rios a Bruno Sanches via e-mail. Recife/Belo Horizonte. 23 de

setembro de 2010.

64 Entrevista concedida por Carlos Rios a Bruno Sanches via e-mail. Recife/Belo Horizonte. 23 de

setembro de 2010.

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196

Gilson Rambelli apresenta também pontos interessantes sobre o turismo

arqueológico. Primeiro, se coloca em desacordo quando o turismo arqueológico

é rechaçado por certo “ciúme” do pesquisador. Ou seja, quando o pesquisador

nega qualquer tipo de atividade sobre o sítio terá importância distinta da sua

pesquisa (Rambelli 2010 – informação pessoal65). E que, em segundo lugar, o

turismo arqueológico pode sim ser encarado como uma possibilidade nas

relações entre a arqueologia e as comunidades locais, através de um discurso

que envolva a sustentabilidade.

Como as outras pessoas vão se interessar pelo patrimônio submerso, como envolver o pescador de lagosta de uma comunidade do Espírito Santo que vivia próximo de um navio onde trabalhei logo quando comecei a me envolver com o tema no Brasil, em 1993? Essa embarcação era um Clipper inglês onde se pescava lagosta. Mergulhavam com compressor de ar e pescavam lagostas que ficavam nos cascos. Aí chega o arqueólogo dizendo que “isso é agora um patrimônio, vamos estudá-lo, aqui está nossa Portaria do IPHAN e não podem mais mergulhar para pescar lagostas”. Como fazer? Uma vez, estávamos de barco e encostamo-nos à embarcação de uns pescadores que estavam sobre o sítio e dissemos que tínhamos autorização para efetuar a pesquisa. Os pescadores se tivessem armas, certamente teriam atirado. Quer dizer, não é uma situação tão simples. O turismo pode ser uma opção de negociação (Rambelli 2010 – informação pessoal66).

Gilson aponta um dos debates centrais

deste trabalho que é a negociação, não do

patrimônio como bem alertou Chico Noelli,

mas do espaço e como podemos “patrimonializá-lo” também em prol dos

interesses locais. Lucio Ferreira lembra que

A maioria das comunidades brasileiras é marcada pela pobreza e opressão. Assim, se a arqueologia, conjugada com a Educação Patrimonial, é capaz de fomentar, por exemplo, o desenvolvimento auto-sustentável e o turismo, isso pode colaborar para a melhora das comunidades (Ferreira 2010, p. 6).

65

Entrevista concedida por Gilson Rambelli a Bruno S. R. da Silva em Aracajú, julho/agosto 2010.

66 Entrevista concedida por Gilson Rambelli a Bruno S. R. da Silva em Aracajú, julho/agosto 2010.

A arqueologia subaquática internacional e brasileira tem buscado diferentes maneiras de se relacionar com mergulhadores recreativos, entre elas o turismo.

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197

Gilson Rambelli prossegue com o exemplo de Randal Fonseca,

mergulhador profissional, cuja experiência de gerenciamento turístico em

Fernando de Noronha construiu em pareceria com a comunidade local,

restauro e uso dos próprios barcos, além de constituírem a equipe de trabalho

e de guias de mergulho.

Muitos arqueólogos não consideram o turismo como a melhor opção

para o desenvolvimento de uma abordagem pública da arqueologia, pelo

menos não da maneira que tem sido conduzido no Brasil. Seu interesse

primordial em atender o mercado e sua finalidade lucrativa não se escondem

no caso brasileiro, e o turismo submerso, em sua maioria, não tem tomado

outro rumo além daquele que favorece as operadoras de mergulho (Duran

2010 – informação pessoal 67 ; Noeli – informação pessoal 68 ; Rios 2010 –

informação pessoal 69 ). Por fim, podemos ver nos comentários de Ricardo

Guimarães, arqueólogo subaquático da Marinha, e Chico Noelli uma resolução

geral entre os profissionais da área: o investimento arqueológico no turismo

deve entendê-lo como parte de um projeto cultural maior, de modo que o

turismo seja regido por um interesse cultural maior e não que o projeto cultural

se submeta cegamente às regras do mercado (Noelli 2010 – informação

pessoal 70 ; Guimarães 2010 – informação pessoal 71 ). Além do mais, a

implementação do turismo, seja em sítios arqueológicos seja em Museus, é

67

Entrevista concedida por Leandro Duran a Bruno Sanches via skype. São Paulo/Belo Horizonte. Abril

de 2010.

68 Entrevista concedida por Francisco Silva Noelli a Bruno Sanches via e-mail. Pelotas e São Paulo/Belo

Horizonte. Junho de 2010.

69 Entrevista concedida por Carlos Rios a Bruno Sanches via e-mail. Recife/Belo Horizonte. 23 de

setembro de 2010.

70 Entrevista concedida por Francisco Silva Noelli a Bruno Sanches via e-mail. Pelotas e São Paulo/Belo

Horizonte. Junho de 2010.

71 Entrevista concedida por Ricardo Guimarães. Rio de Janeiro. Abril de 2010.

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198

muito mais do que a instalação de cordas, placas e disposição de material

sobre mesas (Bava de Camargo 2010 – Informação pessoal72).

É necessário um planejamento de aproveitamento cultural, de estudo

sobre os possíveis impactos que o aumento do fluxo de turistas, respeito às

necessidades das comunidades locais que podem ou não querem fazer parte

do turismo (desacordo que poderia inclusive inviabilizar a empreitada), além de

movimentação dos turistas em prol de um aproveitamento consciente da visita.

5.4. Comunidades costeiras, arqueologia e o impacto do turismo

A proposta turística de interação social em larga escala possui seus

atrativos. Por ele, podem encontrar-se no mesmo espaço o Estado Nacional

através de políticas públicas de preservação e manejo, empreendedores

particulares interessados em participar dos jogos do mercado, consumidores

dos empreendimentos públicos e particulares (os turistas) sedentos por

novidades e pesquisadores com projetos em idílicos paraísos.

O questionamento que aqui proponho é sobre o impacto da

industrialização da imagem e do contato sobre as comunidades receptoras. É

uma indagação que não dista muito do que já venho refletindo neste trabalho a

respeito da visibilidade e representatividade das comunidades locais em

atividades exteriores ao seu cotidiano. Por um lado, a arqueologia durante o

licenciamento; Por outro, o turismo: “Onde estão as comunidades locais? Os

caiçaras, pescadores tradicionais, quilombolas, pequenas comunidades que

vivem nesses “idílicos paraísos”, últimos redutos da vida pouco urbanizada? No

contexto de um Estado multicultural que pende fortemente para o apoio do

selvagem jogo do capitalismo, tendendo a satisfazer em primeiro lugar os

consumidores diretos do mercado, seria o turismo de fato a melhor opção para

as comunidades receptoras? E como o trabalho do arqueólogo pode pesar

sobre o cotidiano dessas comunidades?

72

Entrevista concedida por Paulo Bava de Camargo via skype. São Paulo/Belo Horizonte. Maio de 2010.

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199

Os habitantes da costa estão quase ausentes da literatura arqueológica

subaquática no Brasil e no exterior. A meu ver, isso se deve ao momento em

que se encontra a prática da arqueologia submersa, em especial no Brasil. A

preocupação com os reveses de uma disciplina sobre o público não acadêmico

fica difícil quando os próprios pares ainda tem dificuldade de reconhecê-la

como parte da disciplina. Junto com essa constatação, pude ver que havia uma

extensa bibliografia em arqueologia, turismologia e antropologia sobre o

impacto do turismo nas comunidades receptoras, com alguns casos em

comunidades litorâneas. Assim, o turismo mais uma vez veio a calhar como um

intermediário entre as atividades sociais no espaço litorâneo e submerso.

Apesar da relação indireta estabelecida aqui entre a disciplina arqueológica e

as comunidades receptoras, a proposta deste trecho é que caso a arqueologia

venha se envolver na proposição e gestão de um projeto de turismo

arqueológico é imprescindível que ela devote tempo e atenção ao impacto que

poderá ser exercido sobre as comunidades locais. Um pouco mais além,

transmitir também a sugestão de que os interesses dessas comunidades sejam

considerados em posteriores trabalhos arqueológicos, independentemente do

turismo.

Ao falar do impacto que o turismo pode exercer sobre essas

comunidades locais receptoras, Alexandra Campos Oliveira as define como:

Trata-se sim de localidades cujas populações são ditas tradicionais e que vivem (ou viviam, anteriormente ao processo de desenvolvimento turístico), basicamente, da pesca e da agricultura de subsistência, bem como municípios interioranos que não se inserem tão amplamente, em termos relativos, na economia global. Estes locais (municípios ou regiões de um município) correspondem à grande parte dos destinos "descobertos" pela atividade turística, por suas peculiaridades naturais e culturais preservadas, representando uma alternativa de fuga do cotidiano aos indivíduos dos conglomerados urbanos (que, por sua vez, correspondem em grande medida ao mercado consumidor de turismo) (Oliveira 2005, p. 76).

A antropologia possui muito mais a dizer sobre comunidades tradicionais,

mas acredito que o turismo apresenta um conceito interessante e mais

abrangente para o caso em questão. “Comunidade receptoras” faz referência

Page 200: Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de ...€¦ · 1 Universidade Federal de Minas Gerais Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós Graduação em Antropologia

200

às populações que vêem o turismo chegar-lhes às portas sem aviso prévio e

ameaça modificar completamente seu estilo de vida.

Preocupada com o que chama de “turismo sustentável”, Doris

Ruschmann aponta para as vantagens e desvantagens que o turismo ecológico

exerce sobre as comunidades receptoras. A Valorização do artesanato, da

herança cultural, do orgulho étnico e a preservação do patrimônio histórico são

contrapontos das possibilidades de descaracterização do artesanato, da

banalização das manifestações, arrogância cultural (transformação do turismo

em show de esquisitices e excentricidades) e destruição do patrimônio histórico

(Ruschmann 1997).

O manual de introdução ao turismo da Organização Mundial do Turismo

(OMT 2001) atenta para a mesma fragilidade do sistema turístico.

(...) ao contrário de outras empresas, o turismo leva os consumidores ao produto e não o produto aos consumidores.

Isso faz do turismo uma indústria particularmente frágil, vulnerável às mudanças do entorno natural, cultural e econômico, assim como a qualquer variação e incidente que aconteça nos limites de uma região. Por exemplo, a poluição de uma praia ou um ato criminal de grande cobertura jornalística podem ter conseqüências devastadoras sobre o próprio local (OMT 2001, p. 243).

O perigo do turismo é seu próprio consumo, capaz de atingir níveis

desmesurados até esgotar a capacidade de fornecimento de seu próprio

produto e da exaustão dos habitantes locais. O impacto do turismo

arqueológico sobre comunidades receptoras tem sido motivo de intenso debate

dentro do turismo, da antropologia e da arqueologia. Alexandra Campos

Oliveira dedica alguns trabalhos ao tema, argumentando com uma série de

problemas gerados a essas populações por conta do turismo excludente. Seu

caso é a vila de Trindade em Paraty/RJ: problemas imobiliários (deslocamento

das populações, que dão lugar a hotéis, resorts e espaços recreativos),

inflacionários (o comércio é impulsionado pelo turismo, mas a população não

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201

tem meios para sustentar-se na nova realidade dos preços), ambientais

(esgotos despejados no mar pelos hotéis é apenas um dos exemplos que a

autora cita, e as comunidades, negligenciadas pelos recursos municipais, são

as mais atingidas pela devastação), sócio-econômicos (dependentes da

sazonalidade do turismo, impossibilitados de manter seu modo de vida

tradicional, e de recursos do subemprego, prostituição e tráfico de drogas),

cultural (reproduções baratas de seus ritos e festejos), paisagísticos (o espaço

costeiro transforma-se num litoral paradisíaco artificial que, no entanto, perde

vida, pois perde viventes), renda (mutação do modos vivendi tradicional de

maneira expressa e sem conteúdo funcional, apenas uma necessidade de se

aproximar do conforto e luxo ao qual os turistas tem acesso) (Oliveira 2005).

O consumo turístico não se resume apenas a imagens e paisagens.

Como nos advertiu Doris Ruschmann. O turista dos novos tempos espera

apreciar o contato cultural como parte da experiência lúdica e construtiva, de

seu otium cum dignitate (Corbin 1989). E justamente o consumo do contato

pode gerar graves desconcertos.

A atividade turística está sujeita as inter-relações entre os habitantes locais e os próprios turistas com interação nos dois sentidos. Os turistas podem causar impacto negativo nas culturas que visitam (se vêm em grande número) e, de outro lado, o próprio crescimento turístico pode levar os habitantes do lugar a uma certa recusa das atividades turísticas devido ao incômodo a que vêem submetida sua vida diária (OMT 2001, p. 244).

Em outro texto sobre a Vila de Trindade, Oliveira nos apresenta mais

relatos dos moradores da vila que, desde que percebem a forte presença em

suas praias de turistas estrangeiros vindos de Paraty, passam a tomar frente

na demanda pelo manejo das atividades turísticas em seu espaço. No entanto,

dizem que a prefeitura pouco atende a suas exigências, e toma atitudes que

valorizam sempre a intervenção de empresas de fora na estruturação da Vila

para receber o turista. Como foi o caso do Plano Diretor de Desenvolvimento

Turístico do Município de Paraty, criado por uma empresa de São Paulo a

pedido da prefeitura de Paraty, e que nunca chegou a dialogar com a

população da Vila na implementação do Projeto. Em uma das entrevistas feitas

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202

por Alexandra Oliveira a Guadalupe Lopes, presidente da ONG local Caxadaço

Bocaina Mar,

Guadalupe conclui que a Prefeitura, ao invés de oferecer apoio à população, só a prejudica: "[a Prefeitura] quando quer ajudar, só atrapalha. E sempre pega na coisa pior que é o lixo e o esgoto. Não deixa a gente resolver, não dá uma força pra gente conseguir fazer isso". Ainda, Guadalupe conclui: "até onde eles vão querer chegar? Acho que eles vão querer dar mais um tempo para destruir as comunidades, porque quem fica aqui somos nós. A população começa a ficar enfraquecida, doente, começa a vender suas terras e pronto. Há um interesse por parte de Paraty em Trindade, mas não é com a comunidade que está presente (...)” (Oliveira 2004, p. 39).

Nesse contexto, não é de se estranhar que surjam embates entre

moradores das comunidades receptoras e turistas (quando não temos a

interferência do poder público em nome dos turistas), como o caso descrito por

Rosane Prado em Ilha Grande/RJ (Prado 2003). A partir da década de 1970, a

dinâmica turística na ilha aumentou sem precedentes, e, atrelado à queda da

prática artesanal da pesca, empregou a maior parte de seus habitantes. Nesse

momento começam a surgir enfrentamentos entre os moradores e os não

moradores pelo controle do território, visto de maneiras diferentes por cada

uma das partes. Os turistas e empresários do turismo recém chegados na

região, consideram-na como um paraíso a ser preservado e estruturado para a

visitação e exposição dessa grande beleza natural. Assim, sendo Ilha Grande

um enorme domínio natural, lhe restam dois destinos: Conservação ambiental

ou turismo ecológico sustentável, comandados, respectivamente, por técnicos

do meio ambiente e empresários das grandes cidades.

A visão paradisíaca é reforçada hoje pela mídia moderna que vende a ilha como símbolo do natural, do primitivo e do único. Ela se torna cada vez mais o domínio do que é sonhado, idealizado, como o espaço de liberdade, de prazer da aventura para o homem moderno, alienado e pressionado pela sociedade urbano-industrial (Diegues 1998, p. 110-111).

Vemos, nesse caso, que mesmo a apreciação natural pode ser motivo

de conflito, na medida em que essa visão idílica pode extrapolar a realidade

local, exigindo uma negação da “intrusão humana” em prol da construção de

uma imagem de “natureza intocada”.

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203

Ou seja, além da desestruturação do modo de vida pelo qual as

populações locais garantiam sua sobrevivência, o turismo pode ter um impacto

enorme sobre as configurações do ambiente em que vivem essas

comunidades, afetando seus referenciais paisagísticos e estratégias de

compreensão do mundo e seus fenômenos.

Se, inicialmente, o espaço desempenhava, para a população local, o papel de "mediador para a vida e as coisas acontecerem (...); de referências geográficas, psicológicas (lúdicas, afetivas), informativas (...) e, sobretudo, de alimento a memória social" (idem, p. 33), pode, a partir do turismo, passar a exercer os papéis de mero receptáculo para o turista e de lucros para alguns (Oliveira 2005, p. 76).

Francisco Gil fala sobre o caso, não submerso, mas que toca no ponto

que aqui desenvolvo, da região de Lípez (Bolívia) em que vemos posta em

ação de um Plano para reorganização do turismo local em favor das

comunidades receptoras. Nesse caso, ele aponta para o irreversível da

ambiguidade que se gerou quanto à significação de seu próprio patrimônio

paisagístico.

O turismo marca um antes e um depois na concepção dos sítios arqueológicos por parte do pensamento local. A partir da perspectiva tradicional (ou melhor, tradicionalista) as ruínas constituíram contornos liminares, localizando as fronteiras espaços-temporais da comunidade e habitados por formas extremas de alteridade selvagem pertencentes ao passado; no entanto, não podemos deixar de observar como hoje em dia os locais mantêm uma atitude ambígua em relação às ruínas e outros vestígios arqueológicos, ao invés de respeito (inclusive, com remanescentes desse terror tradicional) e de dessacralização utilitária em benefício de sua exploração turística (Gil 2009 apud Gnecco 2009, p. 8, nota 5).

Por um lado, acredito que não podemos simplificar as vidas dessas

comunidades num módulo de execução de atividades diárias e compreensão

cósmica estática que perde sua pureza no contato com qualquer vulto da

contemporaneidade. Inclusive, tentei argumentar no capítulo anterior pela

dinamicidade como elemento intrínseco à sociedade, que deve ser considerada

nos momentos de reivindicação de território ancestral. Ou seja, dizer que o

turismo “descaracteriza” remete a uma tentativa única de definir a essência de

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204

uma população através de parâmetros que nós atribuímos como típicos e, pior,

estáticos.

Por outro lado, o “impacto” do turismo que se insere nesse trabalho

refere-se, não à “descaracterização”, mas à completa desestruturação dos

modos de sobrevivência e de referências espaço temporais da população, pois

a maneira como o turismo se desenvolveu nos casos citados não foi à maneira

do contato, mas da intrusão simples e bruta. O turismo subaquático pode gerar

os mesmo problemas, pois contribui com o inchaço estrutural das comunidades

receptoras e com a transformação do espaço subaquático e litorâneo na

reprodução do Oasis predileto do(a) mergulhador(a) (Diegues 1998). O

resultado extremo das impressões idílicas que mais atraem no mergulho é a

transformação de um espaço social em espaço paradisíaco individual e egoísta

(a mesma situação fantasiosa que leva ao depredo do patrimônio cultural).

O conceito do Território do Vazio é argumentado por Alain Corbin como

relativo à apreciação litorânea pela população urbana européia desde o final do

século XVIII, até meados do século XIX (Corbin 1989). A intensidade do

processo de urbanização nos preâmbulos da revolução industrial atinge o

íntimo do indivíduo que habita o cerne desse turbilhão de novas experiências.

A intensidade com que vive as novidades é tamanha que chega a comprometer

a sanidade da sensibilidade individual. O spleen73, de acordo com Corbin, é o

cansaço, a supressão das emoções provocada pela explosão de atividades

que circundam a vida urbana. A cura para os excessos da vida privada e

contida da burguesia urbana encontra-se em seu oposto, no território onde não

há nem propriedade nem vida urbana; para curar os males do território

excessivamente civilizado, só o território isento de domínio humano (Corbin

1989). “Esse território do vazio, onde a propriedade é abolida, onde o objeto

readquire sua disponibilidade original, aparece nesse domínio também, como o

lugar de uma legítima colheita” (Corbin 1989, p. 241).

73

Spleen em inglês significa baço, órgão ao qual a medicina atribuía a libração do humor da melancolia.

Por vezes também associado com a alegria em excesso. Podemos assim compreender a referência ao

spleen como momento de tédio a partir do fim do século XVIII, e mesmo como uma alegria exacerbada,

podendo saturar os nervos e levar à uma insensibilidade extrema (Corbin 1989).

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205

Podemos ver o stress como a nova modalidade do spleen das

sociedades urbanas na atualidade. O caos, poluição dos carros, o calor do

asfalto e a impessoalidade dos vidros e aços confinam o espírito humano, e o

indivíduo urbano busca desesperadamente um entorno que o livre do cotidiano

mecanizado. Só a ausência da cidade pode curar os males tão profundos

criados por sua presença. Para recuperar as emoções feitas inelásticas pelos

excessos da civilização, apenas a ausência da civilização. Eis que vemos a

natureza, a pureza que conseguiu sobreviver ao avanço da civilidade, a

primordialidade em liberdade.

É desse paradoxo que vem o turista de nossos tempos.

Assim, como a atividade turística e o meio ambiente apresentam um relacionamento paradoxal, que é o uso turístico de um espaço, protegendo-o, também o comportamento do turista de espaços naturais se mostra contrastante. Ele deseja ver uma natureza intocada, mas quer tocar os animais; quer “viver a natureza”, porém com conforto e segurança; quer a natureza “pura”, porém acessível (Ruschmann 1997, p. 147).

É o desejo irrestrito do contato, a curiosidade despertada pelo

desconhecido, o medo suscitado pelo desconhecido, de sentir algo pela

primeira vez depois de meses em clausura. Enfim, a eternidade insaciável da

civilização, sendo a desapropriação de populações tradicionais, especulação

imobiliária de terras caiçara e a pilhagem de sítios submersos alguns exemplos

da faceta mais desagradável dessa sede civilizatória. “‘Viver a natureza’, porém

com conforto e segurança” (RUSCHMANN 1997, p. 147) só pode significar

domesticar a natureza e o espaço, para que ela seja selvagem só enquanto

bela e civilizada só quando tiver já prestado seu encanto.

O exemplo do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses (Maranhão)

apresentado por Álvaro Oliveira D’Antona (2000) trata dessa situação. Aqui

estou entrando pelos meandros que não dizem respeito diretamente à

arqueologia, mas que revelam problemas derivados de uma situação similar à

arqueologia: a “patrimonialização da natureza”. A criação do Parque Nacional

não levou em conta os meios de vida da população das diversas localidades ao

redor e no cerne do que viria a ser o parque. Na mesma direção que venho

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argumentando, a necessidade de encontrar espaços que permitam a

reconstituição da pretensa “originalidade” da natureza é uma atitude da vida

urbana moderna que se vê desesperada pelos excessos do vidro e concreto.

O modelo de preservação em parques deve ser entendido como uma conseqüência da Modernidade; de um padrão peculiar de degradação e preservação ambiental. O parque é aquele lugar da natureza distante que compensa a aceleração do ritmo de vida pois, nos devidos tempos, as pessoas podem se deslocar fisicamente até ele ou evocá-lo em suas memórias para atenuar a insatisfação da vida urbana (D’Antona 2000, p. 125).

Esse modelo de cercamento territorial tem mostrado inúmeras facetas

negativas, “tais como a expulsão de moradores; reassentamentos inadequados

que tiram das populações os elementos de subsistência material e cultural;

instalação de infra-estrutura para o turismo” (Ghimire 1992 apud D’Antona 2000,

p. 125).

A situação criada por um Parque Nacional mal planejado e mal

estruturado leva ao conflito entre a comunidade local, os órgãos de gestão do

Estado e o turista. Por um lado, a população não se vê representada nem

ouvida pelas instâncias governamentais de gestão do Parque, pois ela é

proibida de fazer coleta de material da reserva. “No ano passado até a madeira

seca, se tivesses a canoa cheia, eles tava pegano. Agora eu quero sabê

porque que eles queria aquela madeira seca. Se ela tava dentro do mangue,

seca...” (interlocutor – informação pessoal apud D’Antona 2000, p. 13174). Por

outro, o próprio IBAMA não tem estrutura suficiente para impedir atuação dos

principais destruidores da reserva, os grandes barcos de pesca de camarão

que vêm de todo país ao litoral maranhense (D’Antona 2000, p. 131, nota12).

Finalmente, a criação do parque força a interação entre turistas e moradores,

sempre em constante descompasso de interesses pela terra.

Na superficialidade do turista (por exemplo), assim como na intensidade do residente, se patenteia a desigualdade de relacionamento com o lugar onde se instala o parque. O turista coleciona imagens, aprecia paisagens, enquanto o morador

74

Transcrição de entrevista concedida a D’Antona por interlocutor (morador da região) não identificado.

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manifesta profundo apego à terra e um específico conhecimento da natureza (D’Antona 2000, p. 126)

Para lembrar o caso dos pescadores de lagosta colocado por Gilson

Rambelli, a condição imposta pela posse

patrimonial do Estado pode ser motivo de

sérios conflitos com grupos sociais que, em

geral, são excluídos das decisões

democráticas da nação. Como vimos no

capítulo anterior, a inserção dos espaços

dentro de categorias de manejo sociais

impostas pelo Estado correm o risco de ignorar os modos de vida de

populações alheias à vida capitalista e urbana, suplantando-as pelos valores de

mercado e sustentabilidade em nome da “nação”.

O problema é que tais significados construídos localmente chocam-se com os princípios da ideologia desenvolvimentista anunciada pelo Estado. A pluralidade de sentidos atribuídos ao território no local contrasta, portanto, com a concepção uma e homogeneizante de desenvolvimento formulada, na maioria dos casos, em nome de uma entidade englobante representada genericamente pela idéia de nação (Zhouri & Oliveira 2005, p. 55).

Voltamos ao receio dos capítulos anteriores de retomarmos o

colonialismo. Como bem lembrou Gilson Rambelli e os demais entrevistados,

as populações costeiras vivem uma realidade marítima, social e econômica

diferente da nossa, e não podemos simplesmente chegar e dizer “isso agora é

patrimônio, não mergulhem, não mexam”. Há a necessidade de negociação do

espaço, entre o patrimônio e seu uso social. O turismo neste caso é apenas um

dos problemas que vem desestabilizar as comunidades receptoras, mas temos

que atentar para os resultados de nossas posturas durante a realização de

nossas pesquisas, pois vimos alguns casos em que não somos bem vindos.

Acredito que a distinção entre um turismo que permita seu

aproveitamento pelas comunidades locais e um turismo que as transforme em

parte inerte do quintal de veraneio do indivíduo urbano é o poder. Quem tem o

controle do andamento da situação. A intrusão do turismo interfere na

Apesar da preocupação com o uso público do patrimônio submerso preservado, a literatura especializada, internacional e nacional, tem dado pouco espaço para reflexões sobre o impacto do turismo e do trabalho arqueológicos sobre comunidades costeiras.

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208

estruturação social das populações, e tira-lhes, assim, o controle sobre suas

atividades (concepção de tempo, técnicas de subsistência, produção de

conhecimento, dinamismo social), o que vai além da simples

“descaracterização”. Os ideais do paraíso perfeito são supervalorizados pelo

mercado, e, se não tomarmos cuidado, sua execução pode arrastar pelo asfalto

qualquer paisagem indigna de sua benevolência.

Alexandra Oliveira atenta para a força com a qual a comunidade de Vila

da Trindade vem buscando retomar a posse das atividades em seu território

através do controle do aparelho turístico que lhe fora imposto. Axel Nielsen,

Justino Calcina e Bernardino Quispe, apresentam o caso de populações

indígenas do Altiplano Sul, região de Lípez, na Bolívia (divisa com Argentina,

Chile – o mesmo citado na argumentação de Francisco Gil). O projeto Lakaya

foi uma tentativa de atender às demandas de valorização de sítios locais feitos

aos arqueólogos pela comunidade local, que sofria com as atividades turísticas

vindas de fora.

O turismo na região desenvolveu-se nas décadas de 1980 e cresceu

muito em 1990, como atividade exterior às comunidades, sendo que até o

momento elas possuíam pouca participação no manejo da atividade. Ele

surgira de maneira

“espontâneo” (ou seja, sem planificação alguma e como resultado de iniciativas privadas isoladas) e “exógeno” (ou seja, não foi escolhido pela população local, que tampouco tem a oportunidade de intervir em seu desenho, desenvolvimento e administração) (Nielsen et alli 2003, p. 372).

Desse modo, o turismo estava atingindo de maneira negativa as

comunidades por criarem desigualdades entre elas, pois apenas as mais

próximas das estradas eram chamadas pelas agências de turismo para

participarem do esquema de alojamento durante a trilha. Quanto ao patrimônio

arqueológico, o turismo o impactava diretamente (depredo por parte dos

turistas) e indiretamente (fomento do mercado de antiguidades por parte da

população local).

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209

Percebendo a marginalidade em que se encontravam em relação ao

turismo que acontecia em suas próprias terras, as comunidades locais dirigem-

se aos arqueólogos, “estrangeiros” mais presentes com maior regularidade no

território com suas pesquisas, na demanda pela maior participação no turismo

local, ou melhor, pelo controle das atividades desenvolvidas em seu espaço

(Nielsen et alli 2003).

Durante o desenvolvimento do “Projeto Lakaya”, os autores definem

como duas as estratégias principais de ação: a “auto-gestão” e a

“interculturalidade”. O primeiro pressupõe a participação ativa da comunidade

ou seus líderes “em todas as instâncias de desenvolvimento do trabalho, desde

sua planificação e desenho à investigação e execução das tarefas, criação de

organizações e avaliação de resultados” (Nielsen et alli 2003, p. 374). A

interculturalidade parte do princípio da “busca de um equilíbrio entre as lógicas

culturais da comunidade local, da equipe técnica e de outros agentes que

participem no processo (turistas, agências e turismo, instituições de

financiamento, etc.)” (Nielsen et alli 2003, p. 374).

Os autores apresentam o início do trabalho como muito positivo. Os

sítios arqueológicos a serem estruturados para visitação, os rituais a serem

apresentados aos visitantes, os alojamentos destinados aos turistas, foram

selecionados pela população local. Além disso, o Projeto direcionou esforços

para que a maior parte possível de recursos fosse destinada à população local,

bem como a restrição das áreas em que os turistas podem circular, a

quantidade de pessoas que podem visitar o local por ano, bem como um plano

de controle de resíduos e a tentativa, junto ao Estado, de transformar a área

em um Parque Arqueológico com administração entregue as comunidades

locais (Nielsen et alli 2003).

Além de atender as reivindicações da comunidade de participação no

mercado turístico, visando aproveitar os benefícios de um fluxo humano

existente em sua área, o turismo proporcionou uma revalorização do patrimônio

arqueológico local (embora não possamos esquecer a argumentação de

Francisco Gil - Gil 2009 apud Gnecco 2009) e a construção de uma estrutura

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de auto-afirmação frente aos estrangeiros visitantes. As festas e ritos a serem

apresentadas aos visitantes não caracterizaram uma simples etapa estética

para ambos, comunidade receptora e grupos visitantes, mas um momento de

vivência conjunta, de encenação social perante o estrangeiro perplexo, atrair os

olhares e a compreensão do outro no reconhecimento de si, uma dramatização

social de reafirmação e reconhecimento.

Enfim, será que o turismo arqueológico serve ou não serve?

5.5. Ao território dos lugares

Finalmente, cabe retornar ao envolvimento da arqueologia nessas

tramas sócio-políticas. Meu propósito nesse item não foi desencorajar a luta

pela identificação e preservação do patrimônio arqueológico. Retorno à postura

que havia tomado no início desse trabalho de acreditar, como estudante de

arqueologia, que a luta pela preservação dos vestígios arqueológicos, emersos

ou submersos, vale a pena.

Em primeiro lugar: posicionar determinado espaço sob a tutela jurídica

do patrimônio cultural e arqueológico é sim um exercício de poder do Estado,

mas é uma medida que torna o espaço público – em seu sentido mais simples

de oposto ao espaço privado/individual (Sennet 1989). A principal lei de manejo

e salvaguarda do patrimônio arqueológico brasileiro, a Lei 3924/61, retira o

patrimônio arqueológico das políticas dedicadas à propriedade privada e

criminaliza seu uso comercial (Funari & Robrahn-González 2008). Ou seja, o

bem cultural passa a ser de propriedade da União, inalienável ao indivíduo

privado e de usufruto coletivo.

O que me leva ao segundo ponto que é “como fazer desse patrimônio

um usufruto coletivo?” Apesar de uma origem patriarcal e hereditária, o

conceito de patrimônio tem sofrido intensas alterações desde o final das

guerras mundiais, e começa a abrir suas acepções às diversidades que

clamam por representatividade perante as fontes oficiais de história e de

memória. As principais cartas internacionais sobre o patrimônio cultural e

arqueológico, a exemplo, apontam como essencial a participação do público –

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211

agora com o sentido mais restrito de “grupos sociais quaisquer além do técnico

científico” – na identificação e gestão do patrimônio cultural. O caso mais

específico da legislação brasileira, como vimos, ainda não reforça essa

importância, mas deixa clara a necessidade de que o patrimônio seja

“representativo da história e memória da nação”. Ora, e quem avalia o caráter

nacional e representativo da memória, paisagem, expressão cultural? Nós, os

técnicos sobre o passado e sobre a cultura: historiadores, antropólogos,

arqueólogos, indigenistas, arquitetos, sociólogos... Enfim, os “cientistas

humanos”.

O que me leva ao terceiro ponto sobre a patrimonialização? Nos dois

capítulos anteriores pudemos ver como as políticas de Estado e atuação de

profissionais fortemente atrelados às entidades governamentais têm o poder de

definir quem faz e quem não faz parte do jogo, quem é e quem não é

representado. A arqueologia possui uma articulação fundamental na

transformação desses espaços em patrimônio de uso coletivo. Os últimos 20

anos têm sido de intensos debates, tanto no Brasil quanto no exterior, sobre o

reconhecimento do papel social do arqueólogo e da necessidade de uma ética

profissional que atenda às demandas por uma postura política. A arqueologia

pública é uma das respostas a esses debates, apresentando-se, a meu ver,

como um conceito-chave que abre as portas da disciplinas para questões de

cunho ético e questionadores de sua autoridade e papel social. Vimos como

seu termo expressa diversas tendências de pesquisa, desde a arqueologia no

cinema à arqueologia do conflito armado. Essas diversas tendências são a

justa expressão da potencialidade que nossa disciplina possui para lidar com

conflito, a diferença e sugerir perspectivas diversas sobre o passado.

Quanto ao turismo, acredito que seu principal problema é sua

inevitabilidade. Em especial no caso subaquático. O litoral é um dos principais

atrativos turísticos do nosso país, seja para o brasileiro seja para o estrangeiro.

Ao mesmo tempo, é um espaço que congrega anos de naufrágios e de história

de um pedaço de terra que foi invadido pelo mundo moderno através da

navegação. Além, logicamente, dos milhares de anos em que fora habitado por

diversas populações antes do início da colonização européia. O mergulho

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recreativo é uma atividade, se não completamente estrangeira,

caracteristicamente urbana e essencialmente de lazer. Ou seja, o vínculo que

esse público estabelece com os vestígios humanos submersos é através de

uma atividade turística. Talvez o investimento em projetos de pesquisa que

envolva alcance desse público específico sejam uma das melhores propostas

para tornar o lazer mais instrutivo. Mais uma vez, volto a dizer que não vejo

descrédito nos projetos de alcance e educação. Acredito que a arqueologia,

como no caso do mergulho recreativo, pode prover o público com abordagens

da realidade e do passado que possam ser-lhes úteis (Zanettini 2009). O

problema advém de quando a arqueologia confunde aprendizado com

imposição.

Quanto às populações tradicionais, acredito que a patrimonialização

pode sim contribuir com a salvaguarda de um ambiente cujo risco de alienar-se

do interesse público e passar a mãos privadas é cada vez mais forte. A

arqueologia subaquática brasileira e internacional tem se preocupado, desde

seu surgimento nos anos 1960, com a efetivação da patrimonialização para o

coletivo, em transformar os vestígios humanos submersos em lugares de

memória e apreciação social, ao invés de jazidas de riquezas a serem

exploradas. No entanto, a literatura especializada parece ter deixado de lado

um outro setor da sociedade, aquele que recebe os mergulhadores e que vive

constantemente nas regiões costeiras. Através de conversas com

pesquisadores do Brasil e exterior, fui informado, muitas vezess de ações e

projetos que envolvem as comunidades costeiras mais próximas aos sítios.

Mas essas experiências não são publicadas e, quando muito, são expressas

em encontros e congressos. Qual seria a razão da não publicação? Descaso?

Receio de não ser um tema acadêmico? A preocupação com o envolvimento

do público não arqueológico é recente no mundo e no Brasil.

Mas apesar das diversas razões que possam ter levado a essa omissão,

acredito que teremos que começar a expandir nossa percepção do outro para

além dos mergulhadores e das empresas de salvatagem. Trata-se, também, de

uma questão de legitimidade de nosso discurso de proteção, mostrar que

existem outros interessados naquele mesmo espaço e que sua destruição pode

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interromper uma importante fruição comunitária. Acredito que a mudança da

legislação venha a contribuir muito para essa postura, legitimando o patrimônio

civil e coletivo, e a necessidade de sua proteção contra o depredo. Mas cabe à

arqueologia e às demais disciplinas consagradas mestras do conhecimento

humanista fazer desse patrimônio algo mais que casas de barões do café

(Funari & Pelegrini 2006).

Não que a arqueologia possa resolver os problemas da sociedade

moderna, mas me parece sensato atuar na medida do que nos é referência:

pessoas e suas coisas.

6. Conclusão – Das pérolas, só as ostras

Minha proposta com essa pesquisa foi buscar exemplos e maneiras de

conduzir o trabalho arqueológico através da perspectiva da arqueologia pública,

e tentar comparar esses exemplos ao contexto nacional na tentativa de refletir

sobre debates e embates surgidos do choque entre interesses do arqueólogo e

do público leigo. Foi dada especial atenção ao caso da arqueologia

subaquática no Brasil, contexto que de início direcionou a realização deste

trabalho.

Uma das conclusões é sobre o campo normativo da lei. A legislação e as

políticas públicas são as principais maneiras de exercício de poder do Estado

nacional e a principal forma de legitimidade da atuação arqueológica perante à

sociedade. No entanto, isso não significa que elas sejam nosso porto seguro.

Vimos que a seleção, julgamento e gestão das coisas e pessoas públicas é um

papel inerente ao Estado Nacional. E a pressão exercida sobre a sociedade

durante o exercício dessa gestão pode suprimir diversos de seus setores com

os quais o Estado simplesmente não sabe com qual categoria rotular. Ao

mesmo tempo, as brechas na legislação e normas de conduta fornecidas pelas

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entidades governamentais exigem que o arqueólogo possua uma postura

própria, com respaldo de seus pares e uma ética condizente com seu papel

social. Num país cuja constituição é aclamada como uma das mais

democráticas do mundo e que, ainda assim, é um dos mais desiguais países

do planeta, devemos ter claro que a lei não é tudo.

Ainda preocupado com o caráter normativo do conhecimento

arqueológico, vale lembrar que a arqueologia é filha do colonialismo e do

imperialismo. E o Brasil não é exceção dessa gênese. Ainda hoje, somos

convocados a participar das políticas públicas e da construção da memória

oficial através de trabalhos de consultoria. Esse vínculo com políticas de

Estado não só nos legitima, como legitima a atuação do próprio Estado na

gestão de seus cidadãos: a arqueologia é de fato um setor estratégico (Funari

& Carvalho 2009) na gestão da diversidade social, e não podemos esquecer do

impacto de nossas decisões e discursos. Por essa razão, não podemos mais

abordar o público leigo através de uma “alfabetização cultural”, quando nos

cabe, a meu ver, lutar pela expressão da multivocalidade através do patrimônio

arqueológico.

A abordagem que chamo de “arqueologia pública”, interessada em

contextos de conflito e dissonâncias (Merriman 2004a), tem abraçado essas

reflexões sobre a responsabilidade social da disciplina e sua relação com os

diversos públicos. De maneira ampla, busquei formas pelas quais a

arqueologia poderia se relacionar com os públicos leigos, sempre tendo em

vista a necessidade de abrir-se às demandas sociais e, muitas vezes, negociar

o uso dos espaços antes de se tornarem patrimônio (Silva 2010). Entre os

temas evocados pelo termo “arqueologia pública”, estão o manejo de recursos

culturais (Davis 1972), a arqueologia como cultura popular (Holtorf 2005, 2007),

a arqueologia e a mídia (Pyburn 2008), a democratização do conhecimento

científico (Faulkner 2004), as utilidades públicas da arqueologia (Little 2002), o

empoderamento de grupos subordinados (Shackel 2004), a arqueologia em

meio a conflitos de interesses pelo passado (Merriman 2004) e a arqueologia

comunitária e colaborativa (Marshall 2002). Há muito mais além da

“alfabetização cultural” a ser pensado.

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215

O desenvolvimento da arqueologia subaquática no Brasil, seguindo uma

tendência internacional, tem defendido fortemente a reconfiguração da política

nacional em prol da preservação do patrimônio cultural subaquático. Frente à

minha argumentação sobre o “patrimônio” como um conceito jurídico, acredito

que a luta dos profissionais da área rumo à patrimonialização adequada dos

vestígios submersos garante a segurança de usos desse espaço que atendem

a um interesse público muito maior que a apropriação privada desses vestígios

(Funari & Robrahn-González 2008). Cabe, no entanto, o devido cuidado na

construção desse lugar da memória (Nora 1984) específico que é o patrimônio

arqueológico, uma vez que a atual postura “multicultural” do Estado brasileiro

pode abusar desse patamar jurídico para fagocitar setores extraviados das

políticas estatais, ou forçar a imersão desses setores extraviados dentro de

processos estranhos ao seu cotidiano. Talvez o caso mais perigoso na

arqueologia subaquática seja o do crescimento desestruturado do turismo

subaquático. A própria disciplina se vê envolvida nessa empreitada, pois tem

imergido no turismo patrimonial como forma de interagir com um público não-

arqueológico específico, o mergulhador recreativo. A arqueologia como

proposta de inserir-se nas necessidades sociais envolvidas em seu espaço de

interesse de pesquisa não pode eximir-se de certos grupos sociais em favor de

outros. Que seja ela rechaçada por determinado grupo, trata-se de uma

situação. Mas que faça vista grossa às necessidades e interesses alheios me

parece apenas uma recaída colonialista. Defendo, aqui, que há mais que

pérolas nas ostras, e isso implica numa visão mais ampla da paisagem

submersa na qual está inserido o patrimônio. Felizmente, as entrevistas,

simpósios e projetos mais recentes desenvolvidos por profissionais da área

mostram que esse cuidado e preocupação não está ausente da empreitada

cada vez melhor sucedida rumo à preservação efetiva do patrimônio

arqueológico submerso.

Finalmente, penso terminar este trabalho com duas citações. A primeira,

uma importação atrevida de Eduardo Viveiros de Castro sobre o papel que a

antropologia tem assumido desde as políticas do governo militar de

cadastramento e definição de identidades de grupos indígenas (Viveiros de

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Castro 2006). “Não cabe ao antropólogo definir quem é índio, cabe ao

antropólogo criar condições teóricas e políticas para permitir que as

comunidades interessadas articulem sua indianidade” (Viveiros de Castro 2006,

p. 16). Da mesma maneira, acredito que não cabe ao arqueólogo definir quem

é descendente de indígenas, de quilombolas, de caiçaras, ou dizer qual é a

verdadeira história de algum lugar e qual deve ser a importância que

comunidades locais devam dar ao “sítio arqueológico” recém-criado. Cabe ao

arqueólogo tentar entender, quais as relações que determinado grupo VIVO e

HABITANTE de um espaço estabelece com o entorno material e imaterial. Não

seremos, nem devemos ser, acredito, os estandartes da verdade sobre o rumo

de uma comunidade ou mesmo sobre o rumo de uma nação. Justamente

porque não há verdade única sobre o rumo de uma comunidade ou de uma

nação.

A segunda citação é de Marcia Bezerra de Almeida, defendendo a

perspectiva de Klaus Hilbert (2006) sobre o compromisso social do arqueólogo:

Acusados de contar [descrever] histórias, de contar [quantificar] histórias, de contar [inventar] histórias, contudo, nunca deixaram de contar [transmitir] histórias, o que, segundo Hilbert [2006], constitui o compromisso social do arqueólogo (Bezerra 2009, p. 208).

É aí, nesse caos indelével de narrativas, inerente ao convívio humano,

que está nosso propósito. Cabe-nos a oportunidade de fazer valer, com nosso

aparato e uma nova política, mais vidas do que se costuma pensar.

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